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Terri Cheney - Bipolar, Memórias de Extremos 1 PDF
Terri Cheney - Bipolar, Memórias de Extremos 1 PDF
"Mais do que demolidora história sentimental, Bipolar é uma biografia com força
descritiva... e observações assustadoramente lúcidas."
PUBLISHERS WEEKLY
Abas:
Em um momento, Terri Cheney está agachada sob sua mesa em seu escritório de
advocacia em Beverly Hills, paralisada pela depressão; no momento seguinte, está
empinando pipas à beira de um penhasco em Big Sur, sob uma violenta tempestade.
Em outro momento, ela está tomando uma dose excessiva de analgésicos com
tequila, e depois está perdidamente apaixonada. Bonita, extremamente bem-sucedida
e brilhante, Cheney - como outros 10 milhões de pessoas, apenas nos Estados Unidos
- sofre de transtorno bipolar, um terrível segredo que quase a matou.
BIPOLAR
MEMÓRIAS DE EXTREMOS
não é uma viagem segura. Ela não vai partir do ponto A e chegar ao
queria que este livro espelhasse a doença, que desse ao leitor uma
experiência visceral. É por isso que decidi contar minha história de vida
querem bem, mas elas não entendem que, quando você está seriamente
mantém vivo. Basta saber que existe uma saída — mesmo que
deprimida ou não. Havia uma guerra a travar. Mas no dia em que dei
a ordem de aumentar a morfina para uma dose letal, a luta perdeu
todo o significado para mim. Então eu quis morrer. Não vi nada de
excepcional nesse desejo, embora tivesse apenas 38 anos de idade.
Naquelas circunstâncias, parecia uma resposta perfeitamente natural.
Estava fatigada, esgotada, e a morte soava como um período de férias
para mim. Tudo o que realmente desejava era estar em outro lugar.
Quando me foi oferecida a oportunidade de deixar Los Angeles
e fazer uma longa viagem até Santa Fé sozinha, fiquei em êxtase.
Aluguei uma pequena hacienda perto de Canyon Road, a parte
intelectual e artística da cidade, com galerias de arte, barzinhos de
jazz e excêntricos cafés-livrarias. Era um bom lugar para morar,
especialmente em dezembro, quando a neve caía espessa e profunda
sobre as ruas calçadas de pedra, abafando o ruído da cidade de tal
modo que parecia que todos andavam de meias.
Houve uma quantidade excepcional de neve naquele mês.
Tudo parecia um estudo de contrastes: o sol feroz e redondo do
deserto, fulgurante enquanto eu tremia; as sombras brancas e azuis da
neve contra as grossas paredes vermelhas; e sempre, para toda parte
que eu olhasse, havia as pontiagudas colunas da cidade antiga
pressionando-se contra as lustrosas curvas do novo. Mas o mais
flagrante contraste era eu: emocionada até as lágrimas, simplesmente
por estar viva nesses ambientes — e mais determinada do que nunca
em morrer.
Nunca me senti tão bipolar na minha vida.
A crise maníaca chegou num jorro que durou quatro dias. Quatro
dias sem comer nem dormir, apenas sentando-me não mais do que
cinco minutos em cada lugar. Quatro dias de compras - e Canyon
Road é o lugar certo para se fazer isso, com todo o seu fantástico
conjunto de lojas. E quatro dias falando indiscriminadamente e sem
parar: em primeiro lugar, com todas
as pessoas que conhecia na Costa Oeste e, em seguida, com todos que
continuavam acordados na Costa Leste; depois, na própria Santa Fé,
com qualquer um disposto a ouvir-me. A verdade é que eu não
precisava falar, apenas tinha medo de ficar sozinha. Havia coisas
pairando no ar, em torno de mim, que não queria lembrar: a expressão
no rosto do meu pai quando eu disse a ele que era a fase IV do câncer, já
em metástase; seu olhar perplexo quando não pude fazer sua dor ir
embora; e a maneira como seus olhos me observavam no final, um olhar
fixo seguindo-me em cada movimento, implorando por um conforto que
não fui capaz de lhe dar. Nunca pensei que pudesse ser assombrada por
algo tão familiar, e tão querido, quanto os olhos de meu pai.
Na maioria das vezes, porém, eu conversava com homens.
Canyon Road tem uma série de bares e boates extremamente
simpáticos, todos a pouca distância da minha hacienda. Não era difícil
para uma ruiva, com um sorriso no rosto e um brilho febril nos olhos,
engajar-se numa conversa que só terminaria nas primeiras horas da
manhã seguinte, na casa dele ou na minha. A única palavra que eu não
dizia era "não". Mas consigo aliviar a minha consciência lembrando-me
de que o sexo maníaco não é realmente intercurso, é apenas uma outra
forma de aliviar a insaciável necessidade de contato e comunicação. Em
lugar das palavras, simplesmente falava usando a minha pele.
Eu já havia decidido, há muito tempo, que a véspera de Natal
seria meu último dia na Terra. Escolhi esta data precisamente porque
tinha significado e beleza, e escolhi Santa Fé por causa de seu festival
de luzes. Neste dia, cantores vinham de todos os lugares do mundo,
descendo as ruas iluminadas entoando cânticos natalinos até o
amanhecer. Todas as portas ficavam abertas e o ar era impregnado pelo
aroma pungente de cidra e pinhão.
Escolhido morrer quando o mundo estivesse no seu melhor
momento, quando eu poderia oferecer meu coração a Deus e dizer:
"Obrigada por tudo". Não é que eu seja ingrata. É só que não sou mais
capaz da alegria que uma noite como esta merece. Alegria é
14 Terri Cheney
apenas uma única rosa, mas braçadas das mais raras e resplandecentes
limite do obsceno.
o tom: desprezo. E tudo o que eu podia pensar era sobre o que eles
diriam se vissem a cornucópia farmacêutica que eu levava, naquele
momento, na minha bolsa. Se o velho lítio era merecedor daquela
gargalhada toda, eles morreriam de rir se vissem meus estabilizadores
de humor, antidepressivos, agentes contra ansiedade e antipsicóticos.
Muitas vezes pensara sobre o que aconteceria se a empresa
descobrisse o meu transtorno mental. Agora, eu sabia. E sabia também,
sem que ninguém precisasse me dizer, que Joe estava fora do negócio
desde aquele momento, e que ele não teria chance de atuar como um
perito no caso de Michael Jackson e nem teria qualquer tipo de ligação
com o escritório, no futuro. E eu seria a pessoa a lhe contar tudo isso.
Enquanto todo mundo ria, eu avaliava as minhas opções:
primeiro, poderia defender o pobre Joe, lembrando suas credenciais,
reputação e a boa impressão pré-lítio que causara a todos; segundo,
poderia fazer uma grande defesa do transtorno bipolar e ensinar aqueles
homens influentes sobre a importância de lutar contra o estigma; ou,
terceiro, eu poderia simplesmente não dizer nada e acordar amanhã
sabendo estar a um passo de me tornar a mais nova sócia do escritório
— e também a um passo mais longe de mim mesma.
Ao olhar meu futuro de maneira simples, sem enfeites, percebi
que não estava pronta para abandonar o conto de fadas. Não o conto de
fadas de me tornar sócia — olhando os homens sentados ao meu lado,
sabia que nunca seria um deles. Mas eu queria ser insensível, durona a
ponto de nunca me importar com nada, mas não era assim. A verdade é
que eu era muito mole, bem lá no fundo, onde as decisões mais difíceis
devem ser tomadas. E sabia que choraria muito pelo que tinha
acontecido com Joe.
Não, o único e verdadeiro conto de fadas que eu não poderia
renunciar era aquele no qual eu despertava numa ensolarada manhã e
descobria que o feitiço tinha sido quebrado, a maldição terminara e eu
não era mais bipolar. Naquela época, não me considerava
uma pessoa maníaco-depressiva, isso era apenas alguma coisa que eu
tinha, algo simples como uma gripe. Na verdade, nem estava convencida
de ser portadora desse transtorno, apenas entendia que, seja lá o que
fosse que eu tivesse, era minha culpa e não pretendia passar muito tempo
pensando sobre aquilo.
Minha escolha foi feita. Ia defender Joe, isso seria um ato de
solidariedade para com a doença - um ato simbólico, sutil, mas
inconfundível. Eu não estava prestes a sacrificar o meu futuro por algo
se não acreditasse naquilo de verdade, se achasse que seria algo que
desapareceria como mágica, no dia seguinte. Assim, quando Joe voltou à
mesa, evitei seu olhar, do mesmo jeito que os outros.
Levei uma semana inteira para que reunisse coragem suficiente
para chamar Joe à minha sala e contar-lhe as más notícias. Não falei
nada sobre o lítio, mas inventei uma história sobre advogados
antiquados que preferiam peritos antiquados. Toda vez que eu mentia,
porém, me dava vontade de pedir perdão e absolvição pelo pecado da
hipocrisia que estava devorando minha alma católica desesperada.
Em vez disso, ele me ofereceu flores: um lindo ramalhete de
narcisos, comprados na floricultura naquela manhã. Quando ele saiu,
senti-me mal por fingir que estava gostando das piadas sobre lítio que
circulavam no escritório até que finalmente fossem substituídas por
gracinhas sobre Prozac. Comecei a evitar os outros membros da equipe
que trabalhavam no caso Jackson, chegando cada dia mais tarde, até o
momento em que estava fazendo quase todo o meu trabalho à noite.
Passei a entregar minhas flores mortas ao pessoal da limpeza, primeiro
alguns vasos, depois várias braçadas de uma vez, até que me vi sem
nada na sala... E esqueci de encomendar mais flores.
Peguei o telefone e liguei para a floricultura, mas desliguei ao
primeiro toque. Não haveria flores suficientes no mundo, percebi, para
embelezar o escritório, minha vida, e a mentira perpetuava-se.
Novamente com o telefone na mão liguei para outro número: o do
:
30 Terri Cheney
conhecia o Dr. Cameron e nem tinha idéia do que ele ia dizer sobre o
mencionada, e é por isso que eu estava lá, para falar sobre tumores e
reparei e observei que, quando o sol bate na água depois da chuva, cria
linha branca onde o sol não queimava, era o dedo de alguém não
comprometido.
"Uau, deve ser fantástico!", eu respondi. "Ele se parece com você
nesse teste? Ele chega a beijar a Elizabeth Taylor? Ou ele beija outra
pessoa? Ele chega a falar alguma coisa sobre beijar? Uau. Eu adoraria
ver esse teste".
Ele colocou meu fichário na mesa. "Pelo jeito, você é uma
verdadeira fã. Terei muito prazer em emprestar — se você prometer que
o trará de volta na próxima semana".
"Mas... nós não tínhamos acabado? Pensei que já soubesse o que
estava errado comigo. Terei que voltar?"
"Você não tem que voltar", disse ele; a ênfase fez meu coração
parar. "Mas espero que volte. Pelo menos para me dizer o que você
achou da fita. Estou em cirurgia nas segundas e quartas, mas as sextas
geralmente são mais tranqüilas, especialmente depois das quatro. Se
puder, venha nesse horário. Você normalmente pode ver o pôr-do-sol
daqui e isso ultimamente tem sido incrível. Parece durar para sempre-
assim como o beijo, suponho eu". Outro sorriso pirotécnico.
Comecei a dizer-lhe que não ocorrera nenhum pôr-do-sol naquele
dia, pelo menos que eu tivesse visto; que a sala de espera estava
brilhantemente ensolarada e quente naquela tarde. Eu estava cativada
por ele e queria avisá-lo de que havia um céu azul brilhante e que nós
dois deveríamos ser muito cuidadosos... Mas ele já havia deixado a sala
para pegar a fita.
Pare, espere um minuto, calma lá. Eu nem precisava perguntar se
estava feliz, eu estava terrivelmente feliz, e o que tinha acontecido?
Estar terrivelmente feliz era estar feliz além da conta? E a pergunta mais
assustadora de todas: o que eu tinha feito desta vez para merecer isso?
Droga, droga, droga! Se havia um sinal seguro de que o transtorno
bipolar estava se aproximando, era a convicção secreta de que eu era a
suprema juíza da sexualidade alheia, essa confiança súbita de que
nenhum homem — ou mulher - estava além de minha jurisdição.
Peguei meu espelho e comecei a retocar meu batom, então me
obriguei a parar. Não. Resisti à quase necessidade física de pentear meus
cabelos, endireitar minha saia, verificar minha respiração. Não, não,
não. Não podia sucumbir ao redemoinho delirante em meu ouvido, que
me exortava a aproveitar qualquer alegria ao meu alcance, porque
amanhã eu poderia estar num lugar pior do que a morte — poderia estar
deprimida. Não, eu disse. Eu não queria agarrar a felicidade, nunca
mais. Pelo menos uma vez, eu queria que a felicidade apenas flutuasse
suavemente e pousasse sobre meus ombros.
Dr. Cameron voltaria, a qualquer instante, e me senti
dolorosamente consciente de que a risca de meu cabelo estava torta, eu
podia sentir a assimetria. Olhando para baixo, vi um fio puxado em
minha meia, que eu poderia ter escondido se eu tivesse apenas me
levantado por um segundo, sob a saia. Estava absolutamente certa de
que havia um risco no meu sapato esquerdo também. Mas essa era a
minha forma de sedução, fingindo que estava perfeita em todos os
lugares, mesmo naqueles em que estava mais imperfeita. Então me
obriguei a ficar sentada, tentando não imaginar como meus lábios
deviam parecer pálidos sob a iluminação fria.
Minha sensação de felicidade rapidamente se dissolvia em uma
situação não muito confortável. Como era maravilhoso. Como era
emocionante. Provavelmente ninguém, a não ser um maníaco-
depressivo, pode compreender que pisar nos freios pode ser muito mais
excitante do que ganhar a corrida. Algo estava funcionando e desta vez
eu estava certa de que era a nova medicação. O Aripiprazol, quando
funcionava, buscava o equilíbrio entre muita e pouca dopamina, até que,
finalmente, chegava à quantidade adequada.
"Adequada". Quem teria pensado que eu ficaria satisfeita com a
palavra "adequada", quando "mais" é o que eu sempre procurava? Mas
eu sabia o que me esperava quando corria atrás dos excedentes. Foi por
isso que a felicidade, para mim, já não
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estreita cela, uma cela sem grades, sem janelas, sem distrações, a não
para virar naquele sinal verde. Não conseguia me lembrar direito. Mas
2
Quando uma pessoa se levanta bruscamente, a gravidade faz com que uma parte do
sangue se detenha nas veias das pernas e na parte inferior do corpo. A acumulação reduz a
quantidade de sangue que volta ao coração e, portanto, a quantidade bombeada. A
conseqüência disso é uma queda da pressão arterial. Perante essa situação, o organismo
responde rapidamente: o coração bate com mais rapidez, as contrações são mais fortes, os
vasos sangüíneos contraem-se e reduz-se a sua capacidade. Quando essas reações
compensatórias falham ou são lentas, verifica-se a hipotensão ortostática. (N. do T.)
Quando os policiais em Van Nuys me mandaram sair do carro,
hesitei, porque isso significava levantar-me. "Saia do carro, cora as
mãos à vista". Saí do carro, coloquei minhas mãos na porta e, de
repente, o mundo ficou branco novamente. Então, pequenos pontos
começaram a pipocar na frente de meus olhos, como acontecia com
freqüência. Tudo o que eu podia ver claramente era um capacete de
bicicleta se aproximando ameaçadoramente. "Caminhe em linha reta",
disse ele. "Sinto muito, eu queria poder fazer isso, de verdade. Mas
estou um pouco tonta no momento..."
Um segundo capacete surgiu e, em seguida, quatro braços, e,
então, fui jogada contra o carro e meu corpo começou a ser revistado.
"Está na minha bolsa", eu disse. Eu me referia ao número do telefone do
meu médico, que iria resolver todos os problemas, assim como
acontecera com os policiais gentis em Beverly Hills. Mas aqui era Van
Nuys, e quando despejaram o conteúdo da minha bolsa na calçada, as
pílulas de reserva se espalharam. Enquanto eu tentava explicar, eles
leram meus direitos. Igualzinho na tv.
Foi tudo como você já viu nos filmes, e um pouco mais. As
algemas frias em meus pulsos fizeram um inesperado som quando
foram fechadas. A delegacia estava suja, lotada, e eu não conseguia
identificar o cheiro. Quando eles tiraram a foto para me fichar, eu não
sabia se sorria ou se olhava com seriedade. Mas o pior de tudo foi o
fichamento. Eu continuava tentando explicar, implorando para que eles
apenas me deixassem chamar o meu médico. Ou meu advogado, meu
terapeuta, meu namorado. Uma mulher cuidadosamente rolava meus
dedos na tinta preta, recusando-se até mesmo a olhar-me nos olhos.
Nenhum deles me olhou nos olhos. Eles focavam algum lugar na minha
garganta, como se estivessem medindo seu tamanho para um possível
estrangulamento. Comecei a perceber que não era mais humana, porque,
uma vez que eles tinham me atribuído um número no processo, os meus
olhos já não existiam.
Em seguida, uma policial me levou para uma pequena sala,
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No original, "wet reckless". É uma sentença do juiz, ligada à direção temerária e relacionada ao
consumo de álcool. Para se obter este benefício, porém, o indivíduo não deve ter causado nenhum
acidente e não pode ter sido sentenciado previamente. Tal sentença reduz a multa e não obriga
que a pessoa passe um tempo na cadeia. Se, no entanto, houver outro caso igual, o "wet r eckless"
será considerado como um registro prévio e a sentença será mais pesada. (N. do T.)
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com a petição estava acabando. Mas, nas últimas duas horas, eu tinha
musicais noturnas, com o treino das escalas ao piano logo cedo, e com
o Álbum Branco dos Beatles tocando sem parar, numa homenagem sem
fim aos anos 1960. E tinha sido paciente porque ouvira dizer que meu
vizinho era um
grande produtor e compositor, um cara poderoso da indústria
musical, e eu adorava viver ao lado de um grande produtor e
compositor. De certa forma, ele fazia meu aluguel parecer um
pouco menos obsceno.
Mas quando você está a caminho de uma crise maníaca, a menor
sensação frita seus nervos. Qualquer som é ruído, o sol é apenas um
clarão ofuscante e você precisa de todo o seu autocontrole para não
cortar fora o pedaço do tornozelo que foi picado por um pernilongo.
Naquela manhã, as cerdas de minha escova de cabelos me atormentaram
tanto, que joguei a escova na privada. Tenho jogado um monte de coisas
na privada, nesse meu caminho até a crise maníaca — nem todas
visíveis, ou facilmente substituíveis.
Quarenta e dois minutos mais de tump-tump-da-tump e os
pelinhos da minha nuca e braços estavam irritados de indignação.
Alguma coisa tinha que ser feita — e naquele mesmo instante, antes que
meu sangue pulsante jorrasse pelos meus ouvidos. A raiva costuma me
impulsionar para a ação antes mesmo que eu possa me perguntar o
motivo, ou se é a hora certa de fazer qualquer coisa. Entre os batimentos
do coração e respirações entrecortadas, me preparei para enfrentar o
bastardo, cara a cara. Olhando da perspectiva atual, aquele deve ter sido
um dos meus momentos mais precários, quando meu equilíbrio químico
estava desabando e minha quase estabilidade deixava de existir. Num
minuto, eu estava pensando em como cobrir minhas janelas com fita
isolante para abafar o som, e no minuto seguinte, já estava fuçando em
meu guarda-roupa, procurando a roupa mais sexy do gênero enfrente-
seu-vizinho que pudesse encontrar.
Você fica maravilhosamente magra quando se vê a caminho da
depressão maníaca. Comer é um ato que não lhe ocorre, porque existem
muitos outros pensamentos que ocupam sua mente, importantes
reflexões, pensamentos que até podiam mudar o mundo — isso se você
tivesse um tempinho para anotá-los. Portanto, eu estava suficientemente
magra nesse dia para vestir
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meu jeans preto lustroso. Aquele jeans não era minha vestimenta
habitual, mas combinava perfeitamente com minha camisa verde de seda
favorita, uma que parecia superdelicada sobre minha pele branca, isto é,
até que a luz batesse diretamente sobre ela e a seda ficasse transparente.
"Os mamilos são coisa natural", pensei, enquanto abotoava a
camisa e calçava meus sapatos. Eram sapatos baixos como uma
concessão à sobriedade, o que prova que eu não devia estar totalmente
maníaca naquela hora. Uma verdadeira maníaca jamais pisaria na rua se
não estivesse usando um scarpin com salto agulha.
Jeans apertados, mamilos visíveis e sapatos baixos: uma estranha
reunião de personalidades, mas não era isso o que eu estava realmente
vestindo quando marchei até o portão do meu vizinho. Em minha mente,
eu estava vestida para a batalha, no cruel terno cinza que usava apenas
no tribunal e naqueles casos de vida ou morte; calçando aqueles sapatos
de couro negro que eu havia comprado em um número menor de
propósito, apenas para me manter irritada.
Ao chegar em frente ao portão do inimigo, passei a mão nos
cabelos, me endireitei e alinhei os ombros. Era estranha, mas conhecida
a sensação. O movimento foi tão automático como o meu pulso
acelerando. Era tudo muito familiar: eu estava em pé, na frente da porta
do tribunal.
Meu corpo simplesmente não esquecia, não importava o quanto
minha mente tentasse: aquela excitação das altas batalhas na corte. Fora
assim nos últimos quatro anos, desde que saíra da cena principal, e por
mais que lamentasse todo o dinheiro que deixara de ganhar, eu sabia que
não seria seguro voltar a praticar advocacia em período integral. Sabia
disso, com absoluta certeza; mas, como um alcoólatra que se lembra do
porre e nunca da ressaca, o meu corpo ainda suplicava pela embriaguez
da adrenalina, de sempre jogar para ganhar. Vencer sempre tinha sido
meu treinamento e, sem falsa modéstia, era o que eu sabia fazer melhor.
Então saboreei, apenas por um momento, a lembrança da agulhada
daqueles sapatos pretos, que nunca encaixavam nos meus pes, nem
mesmo quando eu ganhava. Então, estiquei o braço e pressionei a
campainha da casa do vizinho, segurando-a por alguns segundos além
do tempo indicado para uma pessoa educada.
Ele abriu a porta e seu "olá, como vai?" foi tão doce que soou
como se ele estivesse cantando. Ou estaria chapado? Aí, eu vi os olhos
verdes. Esses homens com olhos verdes causam algum efeito na
cartilagem de meus ossos, sempre foi assim. E sempre será.
"Eu moro aqui ao lado", e apontei na direção errada. "Sou
advogada". Ele fez sim com a cabeça e ficou esperando. Mas eu não
disse mais nada. Apesar de existir mais coisas a dizer, atoladas em
minha garganta, mas com medo de sair e se mostrarem mais idiotas do
que "oi, sou a advogada que mora aqui ao lado".
"Bem, obrigado. Eu estou muito contente com meu advogado
atual, mas certamente vou me lembrar de você, se um dia precisar de
alguma coisa", ele falou. "Por que não deixa um de seus cartões com
minha empregada, qualquer dia desses, que tal? Foi um prazer conhecê-
la".
Eu ainda tinha bastante raiva residual em mim e bastante
irritabilidade maníaca, para aceitar um insulto dito na mais inocente das
observações, não importa se de maneira educada e nem mesmo se os
olhos verdes eram lindos. Eu poderia até não ser capaz de continuar
vivendo naquele bairro e minha casinha aos pedaços provava esse fato.
Mas não aceitaria jamais que alguém insinuasse que eu estaria
mascateando meu registro de advogada para cima e para baixo na rua,
como se fosse uma vendedora da Avon. Então, resgatei A Voz que eu
usava para destilar venenos polidos como "meu digníssimo oponente"
ou "senhor juiz, eu discordo respeitosamente".
"Olhe", disse A Voz, "eu tenho que preparar uma petição e o
tempo está acabando, não há maneira de eu conseguir fazer isso se essa
bateria não parar. Quero dizer, já tentei de tudo, usei fones de ouvido,
tampões e...".
58 Terri Cheney
ficar lá girando até o jogo terminar. Era uma escolha difícil: juntar-me
aos homens, sabendo que eu iria ser ignorada pelas próximas horas, ou
juntar-me às outras mulheres, sabendo que estava quase no pico de meu
surto. No meu caso, outras mulheres e um surto maníaco são
incompatíveis. Em algum ponto desse meu caminho, a sedução torna-se
o meu objetivo primário e as outras mulheres representam o inimigo.
Velhas, jovens, bonitas, feias, curvilíneas — não importa. Outras
mulheres violam o meu direito fundamental de ser a única mulher na
sala.
Mas, pelo menos, as mulheres falam. Todas as mulheres falam.
Por isso, dei as últimas rodadas no banco giratório e segui em direção ao
campo adversário. Havia seis delas, em diferentes graus de beleza: três
morenas e duas louras, e outra entre os dois extremos. Uma delas,
certamente, seria a dona do pedaço, a mulher que estava no comando e
de quem eu deveria tentar ganhar intimidade, até que o jogo terminasse
e Julian estivesse livre novamente. E então caiu a ficha: a mulher no
comando poderia ser a mulher de Julian.
A minha moral, assim como minha memória, torna-se
incrivelmente desgastada quanto mais eu me aproximo de uma crise
maníaca. E daí, se Julian tivesse uma namorada? Eu não estava sendo
uma invasora, eu havia sido convidada, e pelo mais belo par de olhos
verdes que eu havia visto nos últimos anos. É um fato bem conhecido de
que Deus fez homens com olhos verdes para um único propósito:
relembrar-me de que o amor é também um desequilíbrio químico. Que
os perigosos altos e baixos de humor não são sempre sintomas de uma
mente em frangalhos, mas também sinais de um coração pulsante.
Além do mais, meus quatorze anos em tribunais haviam me
ensinado a enfrentar qualquer situação litigiosa sem demonstrar nenhum
sinal de medo. Sem mostrar sinal de que meu coração batia loucamente.
Eu era capaz de estender uma mão gelada e firme, dizendo meu nome
friamente. Lembrei-me de tudo isso, enquanto entrava na sala e punha a
mão sobre uma cadeira vazia.
Uma das louras me viu e acenou. Ela era a mais jovem e mais
bonita de todas, com um caríssimo alongamento nos cabelos: uma boa
aposta para ser a garota de Julian. Isso ficou mais evidente quando ela
me perguntou, num tom um pouco ávido demais: "Quer dizer que você é
amiga de Julian?"
"Somos vizinhos", respondi, e então acrescentei: "Há quanto
tempo você o conhece?". Mas a atenção da loura já tinha sido desviada,
o que me deixou sem nada para fazer, a não ser sorrir para o vazio.
Fiquei ouvindo. E rapidamente aprendi onde obter a melhor depilação
em Aspen; quais escolas privadas são, na realidade, verdadeiramente
privadas, antes da bela loira se voltar para mim e dizer: "Estávamos nos
perguntando — na verdade, até fizemos uma aposta — quem fez a cor
de seu cabelo".
Finalmente, pensei. Esse era um tópico que eu dominava. Como
todas as verdadeiras ruivas, sou muito vaidosa com meu cabelo. Acho
que, se Deus quisesse que eu fosse humilde, não me teria feito tão
notável. Então, sorri de volta e respondi: "Na verdade, minha cor é
natural".
"Natural? Jura?"
"Juro."
"Nem mesmo uns reflexos?"
"Não."
"Isso é extraordinário", disse a loura. Não foi nada parecido com
"puxa, que lindo!", ou "que sorte você tem", nada que soasse como um
cumprimento. Então, ela sorriu novamente, doce como uma torta de
limão e disse: "acho que vamos querer uma prova!", enquanto o resto
das mulheres explodiu em risadas.
"Pois bem, há apenas uma maneira infalível de uma ruiva provar
que ela é ruiva...", e, então hesitei, corando até as raízes de meu cabelo
suspeito. Se aquela mesa estivesse cheia de homens, toda a conversa
teria sido deliciosamente maliciosa, e eles estariam sob controle. Mas o
transtorno bipolar distorce tudo na presença de mulheres, ele sabota
meus sentidos. Então, só o que eu podia ver eram sobrancelhas
arqueadas e sorrisos de escárnio, onde não
66 Terri Cheney
existiam. Mas, de novo, eles até podiam existir. Eu nunca tinha certeza
de nada, e era essa incerteza que me deixava louca da vida.
Eu precisava de ar. Eu precisava de espaço. A crescente
sensualidade que eu tinha valorizado tanto uma hora antes, enquanto
flertava com os homens, não era mais tão excitante; estar no meio de
mulheres, repleta dessa sensualidade, era torturante. Eu podia sentir
cada prancha da cadeira de madeira pressionando minhas costas,
enquanto as vozes femininas à minha volta estalavam como os raios
numa tempestade de verão. O assunto agora eram as babás, as babás que
nunca chegavam na hora, babás que custavam caro, que eram sedutoras
e que roubavam as pratarias da casa. Era uma busca pela babá perfeita.
O desejo de falar, de interagir, ainda era forte em mim, e queria
participar da conversa. Então pensei sobre babás, pensei muito.
Tentando lembrar de alguma piada sobre elas. Nada veio à mente. Eu
não tinha nada a dizer.
Não era possível. Minha personalidade maníaca tinha muitas
vozes e nenhuma delas era silenciosa. Mas minha língua continuava
pesada em minha boca. Na verdade, eu não me importava se as babás
roubavam a prataria das casas, ou se uma Mercedes era melhor que um
Porsche, ou qual dermatologista fazia atendimento em domicílio, ou
quanta bagagem de mão era permitida no Concorde. Eu pensava
mesmo na pilha de contas sobre minha mesa de cozinha: médicos,
drogarias, hospitais, faturas do seguro-saúde, todas as lembranças
desagradáveis de minha doença mental, que eu encarava todas as
manhãs. A busca pela babá perfeita parecia uma coisa absurda, se
comparada à busca pela sanidade. Isso, sim, era um tópico que valia a
pena discutir.
Mas a sala estava girando rápido demais, agora, com muitos
nomes que eu não reconhecia, muitos lugares onde eu nunca tinha
estado e problemas que eu não tinha dinheiro suficiente para enfrentar.
Mal e mal eu conseguia distinguir o contorno do enorme carvalho que
crescia junto da janela da cozinha. Alguns de seus galhos desciam sobre
meu quintal, e lá deveria estar bem quieto,
principalmente depois que o ruído da bateria tinha cessado. Lá não havia
outras vozes, nem fragrâncias sutis que me provocavam e me
confundiam. A única outra mulher presente seria meu reflexo no
espelho. Estranho, mas a idéia de fugir dali não havia me ocorrido antes,
não enquanto Julian, ou a promessa de Julian, ainda estava nas
proximidades. De repente, percebi: era hora de voltar para casa.
Levantei-me e disse abruptamente à loura: "lamento, mas
tenho de sair agora. Estou esperando um telefonema".
"Pelo menos, experimente alguma sobremesa antes de ir", disse
ela, empurrando um prato em minha direção. "Aqui, leve alguns
morangos. Eles são deliciosos".
"Eu sei que eles são. Mas já comi o suficiente por hoje". Virei-me
e saí. Continuei andando pela cozinha, pela sala, e saí pela porta da
frente. Hesitei quando estava no portão, lembrando-me da risada de
Julian, de seus olhos. Mas sacudi a cabeça e prossegui pelo portão, pela
calçada, até a porta da minha casa. E só voltei a respirar novamente
quando ouvi o trinco da fechadura travando atrás de mim.
Então, finalmente, a calma chegou. Espessa, como um útero,
envolvendo-me inteiramente. Era exatamente o que eu precisava — ou
não? O silêncio ampliava qualquer som: meu coração pulsava em meus
ouvidos; eu quase podia ouvir meu sangue se comprimindo pelos vasos
capilares. Porém, acima de todos os sons, ouvia uma voz queixosa em
minha cabeça, perguntando por vezes seguidas: "como você pôde sair,
sem ao menos se despedir dele?".
Eu sabia a resposta, mas não queria ouvi-la. A verdade é que eu
tive que sair porque estava num estado que nunca seria resolvido com
um simples "até logo". Eu teria insistido em trocar os telefones com
Julian, ou marcado um encontro com ele. Mas aquilo não era o que eu
deveria fazer — não agora, não daquele jeito, não tão instável. Pensei
sobre o assunto o dia todo. Desde o momento em que acordei, todos os
minutos seguintes me tornaram uma massa agitada de volatilidade:
deprimida, alegre, raivosa, sensual, briguenta, sedutora, paranóica.
Assumi quase doze
68 Terri Cheney
ser com aquele preço. Meu seguro-saúde não cobriria os gastos, mas
isso não era novidade antes das mudanças que mais tarde
plásticas.
todos os dias. Talvez ajude se você pensar dessa maneira: o seu cérebro
é como uma Ferrari, uma excelente máquina quando tudo está bem. Mas
é muito temperamental e, algumas vezes, precisa de uma boa
regulagem. Você não levaria uma Ferrari em qualquer mecânico da
esquina, levaria? Não, você a levaria numa concessionária Ferrari e
deixaria que os peritos mexessem nela. Vamos então permitir que os
peritos dêem uma olhada em você".
Ele me conhecia muito bem. Não era à toa que, entre todas as
cidades do mundo, eu havia me estabelecido em Beverly Hills. E nem
fora uma grande surpresa o fato de eu ter insistido em ter uma educação
de primeira linha. Eu sabia reconhecer: o esnobismo era parte da minha
personalidade. Eu desejava - não, eu exigia — o melhor. Eu pensava
nisso como uma espécie de autoproteção. Porque tanto quanto eu
pudesse me lembrar, eu sempre me sentia suscetível àquilo que me
circundasse. Sujeira e miséria me deixavam fisicamente doente, mesmo
que eu as visse somente na tv. Se o dinheiro não poderia comprar
felicidade, pelo menos podia comprar harmonia. Bastava eu usar meu
cartão de crédito e então poderia manipular a superfície das coisas:
substituir a dissonância por simetria, e a distorção pelo equilíbrio.
Eu me refugiava na estética. Esperava, ao enganar meus olhos,
enganar também a mim mesma: e conseguia fazer isso, freqüentemente.
Melhor até, eu havia aprendido a enganar o mundo todo ao permitir que
minhas posses falassem por mim. Ou seja, se eu sou capaz de ter um
Porsche, logo, sou bem ajustada. Ou, então, se uso um terninho Armani,
é porque minha vida é boa.
A analogia com a Ferrari, portanto, fez sentido para mim. Talvez
fosse isso que eu precisasse, um pequeno ajuste fino nas mãos
cautelosas dos especialistas. "Quanto vai me custar uns três dias nesse
hospital?". Meu terapeuta respondeu ironicamente: "Será café pequeno
para você". E mencionou um valor absurdo. Eu imaginei que, se alguma
coisa custasse tanto assim, deveria ser o melhor. Além disso, deveria ser
um ambiente maravilhoso, o tipo de lugar cercado por muros altos que
evitariam que a feiúra contaminasse o ambiente.
Na seqüência, tirei três dias de folga, justificando minha ausência
com uma morte na família. Na verdade, me senti surpreendentemente
bem dirigindo até lá, com o sol da tarde derramando-se sobre o vidro do
carro. A única coisa que realmente me incomodava era o que eu havia
colocado nas malas: apressadamente, no último momento e numa
confusão considerável. O que você usa num lugar cheio de malucos?
Coco Chanel, que sempre tinha alguma coisa a dizer sobre tudo, havia
silenciado sobre isso.
A placa "Casa Pacífica" era tão discreta que quase passei direto
por ela. Fiz uma curva, numa estrada sinalizada por acesso proibido,
algo que gostei de ler, pois indicava exclusividade. No final da estrada,
cercada por árvores, havia um grande edifício branco, na frente do qual
crescia o maior salgueiro que eu jamais tinha visto na vida. Um enxame
de funcionários veio me receber. Eles não usavam uniformes brancos,
para meu alívio, mas, sim, uma roupa azul clara que me lembrava,
agradavelmente, a dose de 10 miligramas do meu antidepressivo
preferido. Um deles pegou minhas malas, outro levou meu carro e uma
senhora, com bons dentes e cabelos brancos, sorriu para mim e estendeu
as mãos: "bem-vinda à Casa Pacífica. Venha, vou acomodá-la".
Eu a segui por um bali aconchegante, decorado com flores e
sofás. Os vasos de lírios brancos estavam espalhados por toda parte e eu
parei em frente a um deles. "Se você gosta de lírios brancos, posso
mandar um vaso para o seu quarto, se quiser". Fiz que sim com a cabeça
e pensei: "Eu ainda não estou pronta para baixar a guarda, mas por tudo
o que vi até agora, este lugar será muito bom".
Meia hora mais tarde, eu estava sentada no escritório da mulher,
tomando chá com bolachas, enquanto ela falava sobre as regras. Eram
apenas duas. "Você deve se encontrar com seu terapeuta uma vez ao dia.
E você deve manter um diário". Nenhuma das duas regras parecia
opressiva, mas aí veio a pegadinha: "Espero que você fique bem
sozinha. Vai ser por
74 Terrl Cheney
Martini. Estávamos na década de 1980 e ele era tão essencial para mim
ótima, mas nem pude apreciá-la direito. O garçom com paletó branco, as
velas, a música, tudo aquilo era desperdiçado comigo. Na hora em que a
sobremesa chegou, não pude mais me segurar.
"Rick, precisamos falar sobre Sarah", eu disse. "Quais são seus
planos sobre ela? Você tem intenção de contar-lhe sobre nós? Aliás,
existe algum nós para contar-lhe?"
Rick baixou seu garfo e me olhou irritado. "Claro que existe um
nós. O que acha que estivemos fazendo todos estes meses?"
"É exatamente isso o que eu quero saber. O que estivemos
fazendo todos estes meses?"
"Eu acho que nós temos alguma coisa muito especial", ele
respondeu. "Não podemos deixar as coisas como estão?"
Para sua sorte, o garçom veio perguntar se o cavalheiro queria um
charuto. Rick aceitou e optou por esticar o jantar, ou talvez não quisesse
ficar sozinho comigo. Fiquei feliz, porque era um bom momento para
aliviar a tensão entre nós. Iniciei então uma velha rotina: escolhi o
charuto para ele, cortei a ponta e acendi. Eu achava calmante aquele
ritual. Era uma postura antiquada e submissa, mas adorava fazer aquilo
enquanto fosse apenas uma rotina depois de um jantar especial.
Mas naquela noite o ritual apenas inflamou meu humor. Quando
acendi o fósforo, não consegui afastar meus olhos da chama, o que só
podia significar uma coisa: estava entrando em crise. Quando eu entrava
em crise, minha fascinação incendiaria aumentava. Eu me cercava de
velas acesas, arrumava amigos que tivessem lareiras e adorava observar
coisas queimando. Eu era capaz de passar horas arrancando chumaços
de cabelos e jogando-os no fogo, apenas para vê-los queimar. Fiquei
tanto tempo observando a chama do fósforo, que Rick arrancou-o de
minha mão.
"Qual é o seu problema?", ele perguntou.
"Coisas de maníaco-depressiva", respondi.
Ele desviou o olhar por um segundo. "A verdade é que você
parecia muito melhor, como se fosse outra pessoa", ele disse.
"Mas..."
"Mas?"
"Mas estou esperando para ver se isso é verdade."
Quando você está numa crise maníaca, sua mente corre tão rápido que
consegue visualizar desfechos para qualquer situação. Então, eu podia me
ver de pé, saindo intempestivamente do restaurante. Também podia me ver
sentada quietinha e sorrindo tristemente. E, ainda, podia me ver queimando
a minha mão na chama da vela e dizendo: "Você quer a verdade? Pois vou
lhe mostrar a verdade".
Embora eu quisesse provocar um final dramático, fiquei sentada ali,
com um sorriso de Mona Lisa. A minha mente já havia pulado dez passos à
frente: se eu conseguisse enganar Rick e fazê-lo pensar que estava tudo
bem, talvez eu pudesse convencê-lo a me deixar caminhar sozinha depois
que saíssemos do restaurante. Eu sabia que não poderia encarar a cama do
hotel, não agora, não depois daquela rejeição estremecendo a nossa relação.
Depois que Rick pagou a conta, disse a ele que eu daria uma volta
pelo parque que ficava em frente ao nosso hotel. "Já passa das onze", ele
disse. "O parque é bem patrulhado", assegurei-lhe. Ele concordou desde que
eu voltasse antes da meia-noite.
Eu sabia exatamente aonde queria ir. Do outro lado do parque, havia
degraus que levavam diretamente a uma enseada, protegida por todos os três
lados por pura rocha. Queria sentir a fria areia molhada sob meus pés, de
modo que tirei meus sapatos de salto e cruzei o gramado que me levava a
meu destino.
"Não entre. Perigo. Ondas perigosas", dizia a placa de madeira no
início dos degraus. Não havia ninguém ao redor. Passei por baixo da
corrente e desci para a praia. Manter meu equilíbrio era uma luta constante.
Então fui finalmente forçada a parar e tirar a meia-calça, deixando-a numa
pedra ao lado, continuado o percurso até a praia.
Era exatamente como me lembrava: perigoso, solitário, o tipo de
lugar onde os piratas teriam escondido seu tesouro ou violado as donzelas.
Havia apenas uma pequena faixa de areia onde pisar,
86 Terri Cheney
e mesmo ali era impossível não ficar molhada. Parecia que a maré
estava subindo, mas... Qual o problema? Eu estava lá. Entrei na água
gelada e, em minutos, não sentia mais meus pés. Não sentia mais frio.
Eu nem sequer percebia o quanto estava molhada. Meus pés tinham
deixado de existir.
E se...? Uma voz na minha cabeça ficava perguntando, me
empurrando contra a maré. E se eu ficasse entorpecida como meus pés?
E se a minha mente parasse de pensar, pensar, pensar?
Olhei para o céu. Era uma noite clara, estrelada, com um
requintado tipo de brilho, como o dos quadros de Van Gogh. Pois bem,
eu estava doente do requintado brilho da loucura. Eu queria coisas
simples e saudáveis. Tirando isso, eu queria nada. Queria o torpor.
Levantando a anágua tão alto quanto pudesse, entrei mais
profundamente na água, deixando-a molhar minhas pernas e coxas. A
dor era aguda e fiquei forte, até que tudo cessou.
E se...? Tirei meu vestido e o joguei nas pedras. Tirei o sutiã e a
calcinha e os joguei junto do vestido - em seguida mergulhei na
arrebentação, nua.
Plach! Uma onda veio da esquerda, cambaleei mas logo consegui
ficar de pé novamente. Plach! Outra onda, agora da direita,
desequilibrou-me e me atirou para o fundo. Não ia demorar muito para
o frio me entorpecer totalmente. Eu só precisava ficar ali e esperar que o
frio tomasse conta do meu corpo.
Não me ocorreu ficar deitada e deixar que a água fizesse seu
trabalho. Isso teria sido suicídio, e eu não queria necessariamente
morrer, queria apenas ficar dormente por algum tempo. Tinha que sair
dali. As emoções dos maníaco-depressivos são tão abruptas que parece
não existir maneira de suportá-las. Para mim, não havia nenhuma
loucura em mergulhar no mar gelado durante uma ressaca, perto da
meia-noite. Loucura teria sido continuar me sentindo como estava.
Portanto, dançamos juntos, a maré e eu. Eu comecei a relaxar, no
ritmo do oceano: o som e a arrebentação, o som e a arrebentação das
ondas. Minhas pálpebras ficaram pesadas, uma
sonolência e um calor estranhos começaram a inundar meu corpo. Minha
cabeça começou a balançar, meus olhos se fecharam e me vi dormindo nos
braços do mar. Nós dançamos juntos como um ser integrado, a única dança
que meu corpo conhecia, a única dança que jamais aprendera... O tango do
oceano: três passos para trás, três passos para frente, três passos para trás.
A água estava na altura do meu queixo e eu de repente começara a
ficar com medo. Eu queria voltar para a faixa da praia, mas ela já não existia
mais. Não havia mais nada, a não ser água em torno de mim - e à distância,
pude ver meu vestido de noite preso à rocha, agitando-se na brisa noturna.
E, então, a coisa mais extraordinária aconteceu. As estrelas se desprenderam
de suas amarras e começaram a perseguir-se mutuamente pelo céu. Uma a
uma, dispararam no meio da noite, os arcos brilhantes de prata por trás
delas. Por um breve e espetacular momento, todo o céu acendeu, como um
gigantesco bolo de aniversário. Em seguida, o céu apagou-se e as trevas
reclamaram o que era seu, por direito.
Eu sabia que, provavelmente, havia uma explicação simples para o
que eu tinha acabado de ver, mas não queria ouvi-la. Era o clima certo para
receber mensagens: queria acreditar que o que tinha acontecido significava
alguma coisa. Eu não conseguia imaginar o que poderia ser. Entre os
mergulhos e o bater de meus dentes, tudo era muito ruidoso para que
pudesse me concentrar. Tudo o que eu podia pensar era: graças a Deus que
eu não pisquei. E, talvez, aquela fosse a mensagem: não pisque, nunca
pisque, ou você vai perder todo o espetáculo.
Isso era tudo o que eu tinha feito até então: piscar. Fechando meus
olhos para a realidade, recusando-me a enfrentar a verdade sobre Rick e eu.
Não é de se admirar que eu estivesse entrando em depressão, mais uma vez.
O mundo estava repleto de estrelas cadentes e brilhantes, e eu estava ali,
afundando na escuridão. Agora me encontrava totalmente desperta e
consciente do perigo. Mergulhei e passei a esfregar minhas pernas, meus
braços,
88 Terri Cheney
sobreviveu por alguma razão. Não se pode duvidar disso: deve haver
algum objetivo
92 Terri Cheney
maior, senão você estaria morto. Logo, você tem o resto da vida para
descobrir qual é esse objetivo e deve começar a procurá-lo o mais
rápido possível.
Minha busca começou na África. Eu não havia planejado ir para
lá, mas também não havia planejado continuar viva. No início de 1991,
havia passado por uma tentativa de suicídio sincera, porém frustrada
(bastante amadora comparada com a que eu faria muitos anos mais
tarde, em Santa Fé). Algum tempo depois, uma amiga me perguntou se
eu não teria interesse em acompanhá-la num safári. Ela deveria ir com o
namorado, mas ele estava com problemas. Minha amiga, Lisa, sabia que
eu estava infeliz no trabalho e férias talvez fosse o que estivesse
precisando.
Lisa não tinha consciência da minha recente tentativa de suicídio,
ninguém sabia, exceto meus médicos e os paramédicos que tinham me
socorrido. Mas ela estava certa sobre a minha infelicidade. Durante os
últimos dois anos, tinha me tornado cada vez mais infeliz, apesar das
promoções e aumentos de salário que recebi. Parecia que, cada vez que
eu me sentia pior por dentro, maior seria o meu sucesso. Parte disso
devia-se, ironicamente, à minha depressão: eu tinha que me esforçar
mais do que qualquer um, o que tinha lá suas recompensas. Mas o resto
— a melhor parte — era por causa de David. David era um advogado
sênior da minha firma. Ele estava um ano à minha frente e havia sido
designado meu mentor profissional. Mas a sua proteção se estendia bem
além dos limites das nossas carreiras. Ele já sabia que eu era diferente. E
David foi a primeira pessoa a me ensinar que essa diferença também
significava alguma coisa especial.
David saiu do armário logo que entrou na firma, muitos anos
atrás. E agiu com tal dignidade e amor próprio, que acabou por se tornar
"David," apenas mais um dos rapazes do escritório. Ele era o único
sócio que usava camisas vermelhas de seda com gravatas estampadas.
Mas que lhe caiam muito bem. Tudo o que ele usava ficava
deslumbrante. Eu não diria que ficava cem por cento elegante, mas de
todo modo, David era especial, sendo o único que
permitia que fôssemos à sua sala depois do horário para reclamar de
algum colega, ter compaixão de um juiz teimoso ou em meu caso,
reclamar da vida.
David foi o primeiro colega a quem contei sobre o meu transtorno
bipolar, o que ele aceitou sem hesitação. Sempre me procurava quando eu
não aparecia no trabalho e nunca me criticou por não retornar seus
telefonemas. De vez em quando, deixava pequenos bilhetes na gaveta da
minha mesa ou dentro de um arquivo, e então eu tinha um choque de
amor na hora em que menos esperava. Ele me ensinou tudo sobre as
tulipas e os vinhos de Borgonha. E, o mais importante de tudo, David me
fez ver que eu sabia escrever. Incentivou-me a ser uma escritora e quase
me convenceu disso. Mas então, ele ficou doente, e nada mais importava;
nada mais importou durante um longo período.
A Aids era apenas um boato sarcástico naquela época, um flagelo
distante, algo do outro lado do mundo; devastadora, sim, mas com o que
não precisávamos nos preocupar. No início, as tosses persistentes e as
dores de cabeça que tanto incomodavam David cederam às medicações;
mas, inevitavelmente, chegou o dia em que as drogas pararam de
funcionar. Eu, é claro, tinha grande identificação com aquele cenário
tortuoso, tendo passado por tudo aquilo em meu tratamento para
depressão. Mas, subitamente, David ficou muito mais doente e tão doente
que ele não pôde mais trabalhar. Quando o vi uma semana mais tarde, seu
cabelo estava caindo e ele se tornara incapaz de comer. Nas semanas
seguintes, ele parou totalmente de se alimentar e aquele corpo atlético
tornou-se cadavericamente magro, enquanto seu espesso cabelo não era
mais do que uma lembrança na foto sobre a mesinha de cabeceira. Foi
então que sua mente não resistiu e ele não me reconhecia mais.
Por mais que eu às vezes pareça insensível, devo admitir que fiquei
feliz por tudo aquilo ter acabado rapidamente. Até aquele momento, eu
não tinha presenciado a morte tão de perto.
Minha depressão, que já era ruim o suficiente antes da
94 Terri Cheney
única parte do corpo que eu podia mexer era a cabeça; comecei então a
alguma pista sobre o lugar onde estava. Mas não importava o quanto
Alex não parecia se importar com isso. Duas semanas mais tarde, voltei
à UTI, mas desta vez por minha causa. Meu luto doía demais, mas não
era isso que causara uma febre de 40 graus. Eu sabia o que significava
aquela coisa amarela e pegajosa que saía de meus pulmões, mas não
levantou os olhos, ele disse: "Estou ficando cansado. Você quer mesmo
a sobremesa?"
Talvez ele não acreditasse em mim. Uma doença apresenta
sintomas que aparecem nos testes e são evidentes. Mas eu mantinha
meus altos e baixos fora das vistas de Alex, escondidos por trás de
telefonemas não respondidos e convites recusados. Eu era "perfeita"
quando ele me viu, porque estava perfeitamente hipomaníaca: estava a
três passos de entrar na crise maníaca, naquele momento em que todas
as coisas, especialmente a pessoa com quem você está, parecem
absolutamente fascinantes. Naquele momento, eu não precisava das
velas porque eu estava naturalmente incandescente. Se eu sorrisse para
você, você veria o brilho. Se eu lhe tocasse, sentiria o fogo. Você nunca
perceberia como estava frio até nos beijarmos.
Talvez se eu tivesse dito "maníaco-depressiva" logo no início —
falando com os olhos e não com os lábios — ele teria suspirado de
alívio e me contado sobre todas as maneiras de como eu poderia ser
tratada. Uma coisa é ser clinicamente compassiva. Outra coisa,
totalmente diferente, é a garota perfeita com a qual você está jantando
ser alguém que você nunca viu.
Acabamos ficando para a sobremesa naquela última noite.
Framboesa com mousse de chocolate branco. Estava delicioso, mas a
minha tinha um vago sabor de lágrimas. Pedi licença e fui ao banheiro
feminino. Olhei-me no espelho. Ele queria alguém imperfeita? Então eu
poderia mostrar quão imperfeita a perfeição poderia ser. Eu começaria a
retornar suas ligações quando estivesse maníaca. E iria falar, falar, falar,
não deixando que desligasse o telefone e nem me importando se ele
tivesse uma emergência para atender. Ou, talvez, eu o chamasse bem no
meio da pior depressão...
Não, nem mesmo na mais fantasiosa das minhas vinganças eu
poderia imaginar Alex me vendo daquele jeito. Ninguém me via assim.
Meu médico nunca tinha me visto e ninguém jamais o faria, porque eu
me transformava em algo tão repugnante que
eu precisava cobrir os espelhos, até que o pior passasse. Eu não tinha
energia suficiente para sair da cama e tomar um banho. Meu cabelo
vivia despenteado e oleoso, os lençóis cheiravam a urina e minúsculos
demônios escoavam dos meus poros. Minha boca era o único músculo
que ainda se movia, e, mesmo assim, eu precisava forçá-la a abrir e
fechar usando minhas mãos. Mesmo na pior das crises, eu comia e
comia tudo o que encontrasse. Açúcar diretamente do pacote. Macarrão
cozido ou cru. Queijo embolorado. Comia até cair adormecida e então
acordava e comia o que estivesse no travesseiro. Dez quilos de
depressão e aquele minivestido preto não serviria mais. Isso não é
narcisismo: é uma crise genuína, se você estiver namorando um homem
que só a viu no estado de perfeição.
Então aquela perfeição toda olhou de volta para mim no reflexo
do espelho. Será que seria imperdoável, perguntei a mim mesma, se eu
despenteasse todo o cabelo, borrasse a maquiagem e voltasse para Alex
com a semente de framboesa ainda presa nos dentes da frente? O que
aconteceria se eu não retocasse o batom hoje à noite, amanhã ou na
próxima vez que o visse? Ou o que aconteceria se eu desabotoasse meu
vestido nas costas? As pessoas normais sempre andam com um botão
faltando, eu via isso o tempo todo.
Mas eu sabia a resposta. Eu não faria nada disso porque
simplesmente não consigo aparecer desarrumada em público. Cem anos
atrás, a insanidade era diagnosticada pela aparência — a chamada
teoria/ciência da fisiognomia. E não avançamos muito desde então. Eu
sabia que o ninho da serpente ainda estava vivo e se contorcendo porque
eu estivera lá, com a diferença de que agora, ele se chamava Hospital
Geral. Eu estivera no hospital durante duas semanas, depois de uma
tentativa de suicídio e nem um único paciente apareceu na enfermaria
bem vestido, nem mesmo limpo. Nem eu estava assim, depois de ficar
deitada em minha própria urina durante horas, incapaz de me livrar dos
lençóis úmidos. A insanidade é feia e cheira mal.
Assim, quando você tem a tendência a ficar maluca com tanta
freqüência não é seguro parecer desleixado — nem em seu
comportamento, nem em seu discurso e muito menos na sua aparência.
Algumas vezes, eu acho que a única coisa que me separa de uma
internação de duas semanas é um corte de cabelo de cem dólares.
Ainda assim, eu achava que devia alguma coisa a Alex. Ele tinha
me trazido a ilusão de normalidade e também a idéia de que a vida se
resolvia em torno de decisões do tipo: "Será que esta blusa combina
melhor com os meus olhos ou que sapatos eu devo usar com este
vestido?" Então, meu presente de agradecimento consistia em me
apresentar sempre bonita e bem vestida, feliz por estar viva. Isso era o
máximo que eu podia oferecer: aparência de sanidade.
Nem precisaria dizer: saí do banheiro, naquela noite, com os
cabelos arrumados, os dentes perfeitos, o batom recém retocado — e
todos os meus botões fechados.
11
que caíam no mar. Ali, o silêncio só era quebrado pelo estrondo das
ondas.
126 Terri Cheney
importava. Iria comprar algo brilhante, algo absurdo, alguma coisa que
fizesse o céu ficar azul novamente. E lá estava: uma pequena loja de
pipas, com uma fachada de madeira. Perfeito, perfeito! Eles tinham
todos os estilos de pipa imagináveis — pipas japonesas na forma de
lanternas de papel, enormes carpas laranja com longas caudas, pipas de
combate que pareciam falcões, tudo tão colorido, tão bobo, exatamente
o que eu queria! Comprei uma dúzia delas e duas a mais para dar sorte,
porque você nunca sabe quando poderá precisar de uma pipa.
Colocar quatorze pipas dentro do meu carro foi um pouco
complicado, mas os homens do posto de gasolina me deram uma mão.
Eles haviam consertado o problema, mas me alertaram sobre a
tempestade que estava por vir. Bem, se ela estava chegando queria dizer
que ainda não estava por ali. E a luz de freio não estava mais acesa. Eu
ainda tinha um pouco mais de tempo. Acho que eu era a única pessoa
voltando para Esalen. Estava tudo calmo.
Bons carros têm bons sistemas de som, e eu estava dirigindo o
melhor de todos. O aparelho poderia fazer a Família Dó-Ré-Mi soar
como heavy metal, e eu tinha a fita perfeita para aquele momento:
Melissa Etheridge cantando sobre amor e desespero, e sempre desejando
o homem errado. Aprisionada numa tempestade, rodeada por fúria, o
que mais poderia combinar com meu estado de espírito? Estacionei o
carro, pus o som no último volume e deixei Melissa gritar com raiva
contra o vento: "Se eu quisesse, eu poderia dançar com um demônio no
sábado à noite..."
Estava quase perfeito, mas ainda não o suficiente. Abri as janelas
e deixei a chuva atingir o meu rosto. O vento soprou através do interior
do carro, chacoalhando as pipas que eu tinha deixado sobre o assento do
passageiro e debaixo do painel. Inclinei-me para prendê-las e então tive
aquela idéia: que melhor momento para empinar uma pipa do que em
plena tempestade? Por que tudo deveria ser tão planejado? Desamarrei a
pipa de combate e a prendi ao redor de meu punho. Então abri o teto
solar, apontei a pipa em direção ao céu e a libertei.
Ela voou. Por apenas um minuto ou dois, mas como
balançou, como voou, que viagem. Mais.
Amarrei duas das grandes carpas ao meu pulso e saí do carro. O
vento as capturou num instante. Eu podia sentir o seu protesto, uma
contração em desafio e então a súbita rendição. Sentia o vento me
empurrando também, sussurrando promessas em meus ouvidos. Se eu
pulasse, não iria cair. Iria voar com as carpas e com a pipa de combate
sobre as nuvens de tempestade e através do oceano, para algum lugar
maior e melhor do que este. Eu poderia dançar com o demônio na noite
que eu escolhesse...
Mas eu tinha prometido as pipas.
Levei quase uma hora para soltar todas elas. E então já havia me
cansado de ouvir os problemas de Melissa Etheridge. Estava com frio,
faminta e molhada. Ainda longe de Esalen, ia demorar horas até o
jantar. E eles esperavam que eu escrevesse alguma coisa. Escrever o
quê? Escrever por quê? Graças a Deus, o carro pegou e as luzes
adequadas ficaram acesas e apagadas, na estrada não havia ninguém na
minha frente.
Eu devia estar assustadora quando cheguei ao portão de Esalen,
porque o guarda me pediu os documentos. Que diabos ele achava que ia
fazer, afinal de contas? Ter uma aula para aprender a tocar bateria? Ele
me deixou passar e até me perguntou se eu estava bem. Aparentemente,
ninguém mais tinha se aventurado para fora naquele dia, porque não
havia um único espaço vago no estacionamento. Só consegui parar o
carro a mais de 800 metros do meu bangalô. Foi uma caminhada
sombria e melancólica, carregando todas aquelas sacolas através da
lama, no escuro, sem nenhum vaga-lume para iluminar o caminho. O
que teria acontecido com a chuva? Ela, que uma vez parecia lançar
beijos eletrificados na minha pele, agora chicoteava como se eu fosse
um cavalo louco. E havia também toda aquela gritaria, uma gritaria
insuportável — o vento e a chuva e as árvores atormentadas, e o oceano
urrando lá em baixo.
Eu não queria calma, mas também não queria isso. Queria
130 Terri Cheney
que ele não estava lá. Também fiquei intrigada por eu estar presa à cama
com cintas, uma vez que aquele não era o quarto por onde eu passava
durante a ECT. E, mais do que tudo, eu me perguntava por que
continuava viva.
Fui informada, depois que o dedetizador me encontrou. E amei a
ironia daquilo. O exterminador de insetos costuma vir dedetizar a casa
uma vez por mês, tem a chave da porta da frente porque pode entrar na
hora que achar melhor para fazer seu trabalho. Só que, em vez de
aranhas, ele me encontrou estendida no carpete da sala, com sangue e
espuma saindo pela boca. Não sei dizer que tipo de espuma era aquela,
talvez a cobertura das pílulas dissolvendo-se na tequila, não sei. Mas o
sangue eu compreendia: havia mordido toda minha língua. Você só
descobre o quão alto é capaz de gritar quando lhe dão vinte pontos na
língua, sem anestesia.
Quem poderia saber o que deu errado na última sessão de ECT?
Pessoalmente, acredito ter sido alguma espécie de benção dos deuses.
Eu saí daquele caos como uma pessoa totalmente diferente, com outra
identidade. Não estava mais deprimida, mas ainda com transtorno
bipolar e esse rótulo era importante, porque dava significado à minha
vida errática. Eu nunca havia compreendido, até então, como eu
conseguia trabalhar com tamanho grau de competência durante semanas
ou meses, para, em seguida, ficar por longos períodos escondida sob
minha mesa, sob as cobertas, totalmente imersa em escuridão.
Para ser honesta, nunca me senti confortável com o conceito de
"depressão", por mais articulada que fosse minha defesa daquele
conceito perante minha família e meus amigos. E nunca revelei meu
diagnóstico para meus colegas de trabalho. Ainda acho que a depressão
seria algo que eu deveria ser capaz de manter sob controle. Deus sabe
quantos conselhos recebi sobre como fazer isso — corra todos os dias
ou evite todos os tipos de açúcar, ou coisas assim. Fazendo isso, você
ficará bem. Todo mundo tinha uma receita, receitas triviais.
Mas a depressão maníaca é um estado muito difícil de os outros
identificarem. Quando se está nesse estado, o leigo raramente discute
com você: você acaba falando sozinha. Então, eu me encontro
genuinamente insana de tempos em tempos, mas pelo menos é uma
insanidade verdadeira, reconhecida pelas autoridades médicas e
previdenciárias.
13
não podem ficar impunes — e eles sempre acabam por deixar sua
marca. Olhe atentamente no espelho e você verá uma nova leva de pés
de galinha ou uma nova ruga em sua testa antes lisinha. Hoje, vejo os
e animada, apesar de ser como era. Não contei a ele sobre o meu
transtorno bipolar. Ele não sabia nada sobre ECT, estava entusiasmado
com o nosso caso e achava meus freqüentes lapsos de memória uma
brincadeira adorável.
Uma semana, duas semanas, um mês inteiro e Jeff e eu nos
tornamos mais próximos a cada dia. Em todo esse tempo, nunca
mencionei seu nome a Linda, mas ela continuava falando de Jeff. Ela
não conseguia entender por que ele tinha desaparecido tão subitamente.
"Ele simplesmente parou de me telefonar. Não consigo entender, eu
realmente achava que ele era o homem para mim". Eu murmurava
alguma coisa. E falava sobre outros assuntos. Mas a culpa crescia a
cada dia. Comecei a evitar o telefone, sabendo que poderia ser Linda,
fazendo sua eterna pergunta. Então comecei a evitá-la mais e mais, até
que finalmente nossas conversas passaram a ser semanais, depois
quinzenais, depois mensais, até que pararam de vez. Eu invocava todas
as desculpas que eu conseguia pensar para justificar meu silêncio: a
visita de parentes distantes, uma pesada carga de trabalho, uma nova
ocorrência de depressão, uma gripe. Mas sequer uma vez eu mencionei
a verdade: de que eu estava apaixonada.
Porque aquilo deveria ser amor, dizia a mim mesma. Eu não era
o tipo de garota que trairia a sua melhor amiga, por nada menos do que
a paixão. Então, eu deixava de ver as muitas falhas de Jeff: suas
pequenas mentiras, seu beijo empapado, seu pendor para falar em voz
alta durante os filmes e sua mania de usar meias de lã na cama.
E, então, no quarto mês de nosso relacionamento, ele teve um
caso com uma garçonete, e eu ignorei. Achava que aquilo era tanto
culpa minha quanto dele. Minha crise maníaca já havia atingido o
estágio da irritação e então eu brigava e discutia com todo mundo,
especialmente com Jeff. Não podia evitar. Bem abaixo da superfície,
encontrava-se uma profunda ferida, uma constante e dolorosa solidão.
Eu tentava conversar com Jeff sobre o meu dia de trabalho, sobre as
discussões com outros advogados,
mas o máximo que eu conseguia era um movimento afirmativo de cabeça.
Ou, pior ainda, ele me oferecia conselhos de como resolver os problemas.
"Eu não quero conselhos", tentei explicar durante um jantar.
"Então por que está reclamando?", ele perguntou, espetando um
aspargo com o garfo.
"Mas eu não estou reclamando", repliquei. "Estou... bem... eu...".
Mas eu estava sem ação. Desisti e recheei minha boca com um enorme
pedaço de mu-shu. A verdade, droga, é que eu estava reclamando, sim, mas
de algum jeito não era assim que parecia quando eu conversava com Linda.
Naquela noite, fiquei acordada bem depois de Jeff adormecer. Olhei
as portas, o céu, a janela: tantos meios possíveis de fuga. Empurrei as
cobertas, suavemente, de modo a não acordá-lo e examinei o corpo de Jeff.
Era um belo corpo, musculoso, que tinha me dado muitas horas de prazer.
Mas a ilícita emoção que ambos tivemos no início, quando estávamos
cientes da traição a Linda, tinha desaparecido. Fora substituída por um
calor estável, intensamente agradável, mas que não tinha a pecaminosa
atração do fogo.
Deitei e olhei para o teto. Depois de ter estudado tanto sobre o
pecado nas escolas católicas, você poderia achar que eu entendia tudo sobre
isso. Mas eu não tinha percebido que, depois do delicioso primeiro
mergulho na tentação, você só se mantém em queda. Não apenas por causa
da força da gravidade, mas principalmente por causa do imperativo moral.
E isso iria me manter presa a esse homem, travada numa interminável
queda livre em conjunto, pelo tempo que ele ficasse comigo, pelo tempo
que eu pudesse convencê-lo a ficar.
Foi exatamente isso que acabou acontecendo. Jeff e eu somos amigos
até hoje. Nós vamos ser sempre amigos, amantes, ou qualquer outra coisa
indissoluvelmente entrelaçada. Não tem nada a ver com amor, e, sim, com
retribuição. Quando Deus quer nos punir, Ele concede os nossos pecados.
14
mais amava na face da Terra: Big Sur. Nossa suíte tinha vista para o
esta noite. A espera pelo suicídio está terminada, pelo menos por
enquanto.
Tudo na minha vida era exultante, e nada era mais alegre do que
Rick, a pessoa que havia telefonado tantas vezes sem a esperança de
receber um retorno. Fez muito sentido quando Rick me ligou naquela
noite com a voz um pouco embargada por causa do vinho, propondo
uma celebração pela minha recuperação. "Nós merecemos", ele disse e
eu sorri quando ele falou "nós". "Dez dias em Big Sur, tudo por minha
conta. Você não vai ter que fazer nada, a não ser ficar deitada e
comungar com as árvores. Você ficará melhor comigo do que com todas
essas drogas juntas".
A minha medicação foi sempre um tema espinhoso entre nós:
Rick reconhecia com relutância minha necessidade de tomar algum tipo
de estabilizador de humor, mas ele nunca aprovou totalmente a
quantidade e a variedade de drogas que eu tomava diariamente. "Isso é
polifarmacologia", tentei explicar. "Você está engolindo pílulas como
pipoca", foi o que ele respondeu. Eu ignorei o comentário e comecei a
falar sobre a viagem: para onde iríamos, onde ficaríamos e como
iríamos até lá.
Não que eu estivesse preocupada com isso. Eu estava
perfeitamente contente em deixar Rick lidar com os detalhes. Isso é o
que ele fazia melhor no nosso relacionamento: cuidar dos detalhes. Ele
cuidava de tudo — quero dizer, cuidava de mim, principalmente. Será
que eu tinha comida em casa? Eu tinha pago as contas do mês? Quando
minha roupa ficaria pronta na lavanderia? Fosse o que fosse, não
importava, Rick tomava conta: de todas as contas, de todos os
incômodos.
Mas não tinha sido sempre assim. Quando nos encontramos pela
primeira vez na faculdade, eu era auto-suficiente, de um modo
inflexível. Eu era uma menina de Vassar, não seria um encargo para
nenhum homem. Mas minha doença era apenas intermitente, naquela
época. Por pior que fosse a depressão, não durava muito tempo e os
períodos entre uma depressão e outra eram cobertos de promessas. Ao
longo dos dez anos seguintes, enquanto a doença
crescia progressivamente, ficando pior e mais difícil de esconder, a
independência se tornou mais do que um grito revigorante, tornou-se uma
obsessão. Vivia aterrorizada com medo de ser descoberta, mas,
felizmente, a independência se tornou uma fachada ideal para uma mulher
jovem em início de carreira.
Pelo menos, eu chamava de independência. Os homens que tive em
minha vida davam outros nomes para aquilo. Eu os mantinha o mais
distante possível, mesmo Rick, que me conhecia melhor e quem
provavelmente gostava mais de mim. Nós continuamos a nos encontrar
durante quase dez anos depois da faculdade, até um ponto em que ele foi
embora frustrado — e eu me retraí ainda mais atrás da parede da auto-
suficiência.
A auto-suficiência falhou comigo logo após a morte de meu pai.
Fiquei doente, estava quebrava, precisava comer e precisava de ajuda. Era
inútil fingir o contrário. Peguei o telefone e disquei aquele número que há
muito tempo eu tinha enterrado. Chorei, implorei por ajuda e Rick veio.
Durante os meses seguintes, a menor pressão sobre meus nervos
me jogava numa espiral de histeria, na mais profunda depressão. Rick viu
tudo isso, e, para minha surpresa, não sentiu repulsa. Ele foi movido a me
ajudar. Na primeira vez em que ele me ofereceu dinheiro, eu recusei
ultrajada. Na segunda vez, protestei por alguns dias, e, então, aceitei com
relutância. Com o tempo, meus protestos se tornaram mais curtos e mais
esparsos até que um dia eu esqueci de dizer qualquer coisa exceto
"obrigada". E assim foi que Rick gradualmente assumiu as minúcias da
minha vida. Todos aqueles pequenos detalhes que estavam
desesperadamente além da minha capacidade de lidar.
Rick e seus detalhes. Fiquei subitamente tomada de carinho por
ele, ouvindo o som da sua voz por telefone, ansiosamente descrevendo o
itinerário de nossa viagem. Deus, como eu tinha sorte de ter um homem
como ele na minha vida. E como seria maravilhoso tirarmos férias juntos.
Era exatamente o que eu precisava, as férias perfeitas, exceto...
154 Terri Cheney
Exceto.
Eu sabia que eu devia ter ficado feliz com o entusiasmo dele,
fazendo perguntas e oferecendo sugestões. Mas a depressão, como todo
o veneno virulento, não sai de seu corpo de uma vez. Ela fica se
prolongando nos vestígios, muito depois que você pensa ter se
recuperado. Mesmo naquele momento, sentia-me enrijecida só de pensar
em ter que fazer as malas. Eram muitas decisões a tomar: que sapatos
levar? Jeans escuros ou azuis claros? Quantas blusas? Protetor solar
fator 15 ou 30? Ou seria melhor levar o 45, apenas para garantir?
O simples fato de que eu estar segurando o telefone significava
alguma coisa, lembrei a mim mesma. Isso queria dizer que eu estava
melhorando e que viver a vida fazia sentido novamente. Era a hora de
andar para frente.
"Adorei isso", eu disse, interrompendo Rick. "A que horas devo
ficar pronta?"
A viagem para Big Sur foi sublime, as colinas ao longo da estrada
pareciam um tapete de cores. Eu queria ter parado ao longo do caminho
e colher algumas flores, e decidi ignorar minha irritação quando Rick
me falou que compraria flores no hotel, assim que chegássemos.
Chegamos bem depois do pôr-do-sol. Tarde demais para comprar flores,
tarde demais para drinques no terraço, tarde demais para qualquer coisa,
exceto ir para a cama. Não estava com sono, mas me sentia estranha:
inquieta e irritada. Enquanto eu estava desfazendo as malas, Rick veio
por trás, beijou meu pescoço e eu pulei longe.
"Não é por sua causa", eu tentei explicar. "E só que... Eu não sei...
eu não quero ser tocada".
Vi um brilho de mágoa e decepção em seus olhos. Então ele
sorriu. "Você precisa de suas flores, vou chamar a recepção logo pela
manhã".
"Rick, não são as flores, sou eu. Eu me sinto estranha.
Irritada, como se eu estivesse deprimida".
Eu o vi estancar quando ouviu a palavra deprimida. "Você está
apenas cansada", ele disse. "Vou lhe preparar um banho7. Ele se
virou e foi até o banheiro.
Foi um banho delicioso, devo admitir. Fiquei deitada com os olhos
fechados, disposta a relaxar corpo e mente. Mas a pressão da água morna
contra a minha pele foi insuportável. Eu liguei o jato da banheira apenas
para ver as bolhas. Bolhas em toda a parte: no meu rosto, no nariz, no
cabelo — daí eu ter me obrigado a ficar na água completamente parada até
que todas as bolhas evaporassem. Então contei lentamente até cem,
prestando atenção a qualquer ruído que viesse do quarto. Se eu pudesse
apenas suportar a espera na banheira até que Rick fosse para a cama, eu
poderia entrar sob as cobertas e ele só perceberia que eu estava lá na manhã
seguinte.
De manhã, será que ele ainda iria querer me tocar? Será que eu ainda
desejaria não ser tocada? A manhã teria que esperar, decidi. Os dedos das
minhas mãos e pés estavam enrugados e, há muito, a água da banheira tinha
se aquietado. Saí da banheira tão discretamente quanto pude, envolvendo-
me em várias toalhas, para prevenir gotejamentos. Então apaguei a luz e
cuidadosamente abri a porta do banheiro. Nenhum sinal de vida, apenas a
forma inerte de Rick deitado na cama. Deixei as toalhas caírem ao chão e
deslizei sem ruído sob as cobertas.
O lençol de cetim parecia uma lixa contra minha pele. E o ruído do
relógio na mesa de cabeceira soava como uma bomba. Rick resmungou
alguma coisa e virou para o meu lado. Eu me movi um pouco antes dos
nossos corpos se tocarem, então aninhei meu travesseiro em sua barriga.
Funcionou. Ele ficou quieto novamente. Resistindo à urgência de beijá-lo
no queixo, fui para a sala, agradecida por Rick sempre insistir em alugar
suítes.
Acordei cedo na manhã seguinte, cheia de energia e irritada como um
gato molhado, encharcado. Tudo o que Rick fazia me irritava, desde a
maneira como ele batia seis vezes de cada lado da casca de seus ovos
quentes até o jeito como ele dizia "eu te amo". Ele falava isso muitas vezes
durante o dia. De fato, quanto mais irritada eu ficava, mais afetuoso ele se
tornava. Continuei a
156 Terri Cheney
dormir no sofá da sala, mas Rick não fez nenhum comentário. A questão
do sexo continuava no ar entre nós. Rick insistia em que eu deveria
receber uma massagem todas as tardes, embora eu não quisesse ser
tocada. Depois de cinco dias eu finalmente fiz valer a minha vontade, eu
não queria uma massagem, eu queria ir à cidade sozinha — "sem você,"
enfatizei.
Rick não gostou da idéia, mas me deixou ir, fazendo-me prometer
que voltaria a tempo para o jantar. Meu desejo era ir a todo lugar e ver
todas as coisas, mas, na verdade, eu não sabia o que fazer. Havia opções
demais, além disso, o carro alugado tinha um cheiro engraçado e eu não
conseguia fazer o ar condicionado funcionar. Fugindo de meus hábitos,
fui direto a uma livraria apenas para ser bombardeada pelos sorrisos
ansiosos dos vendedores, todos querendo a minha atenção. Eu não
conseguia entender. Costumava ser a minha livraria favorita, eu tinha
tido horas de prazer ali, examinando as prateleiras, conversando com os
vendedores. Quando exatamente ela se tornou tão odiosa? Ou, talvez, a
pergunta verdadeira seria: quando eu me tornei tão cheia de ódio?
Com relutância, evitei a coleção de Sherlock Holmes e fui direto
para a seção de Psicologia/Psiquiatria. Tirei um gato de uma enorme
cadeira, recolhi vários livros sobre o assunto e sentei-me para ler; havia
alguma coisa errada comigo, só não sabia o quê. Eu odiava o mundo,
odiava a mim mesma e a morte era uma palavra que soava muito bem:
sintomas clássicos da depressão. Mas - e era um mas crucial — eu ainda
conseguia me mover. Não apenas podia me mover, eu tinha que me
mover. Apesar de estar repleta de uma energia inquieta, não tinha para
onde ir. Tive vontade de riscar ou quebrar alguma coisa, de preferência
alguma coisa que se partisse em milhões de pedacinhos. Pensei no
enorme vidro da janela do nosso quarto de hotel, e, de repente, tudo fez
sentido: não era de admirar que eu não pudesse desfrutar das massagens.
Durante todo o tempo, eu vinha fantasiando sobre o que eu sentiria se
desse um murro naquele vidro, socando e socando várias vezes até que
não restasse mais nada.
Demorei mais algumas horas e vários outros livros, mas finalmente
encontrei a solução do mistério, o termo clínico para o que estava errado
comigo. Aparentemente, existe um lugar estranho no espectro bipolar
chamado de "Estados Misturados no Transtorno Bipolar", no qual a mania e
a depressão se encontram e colidem. Nesse estado, você pode sofrer a
implacável movimentação da mania, mas nada de euforia. Em vez disso,
você sente a miserável depressão e auto-aversão. Essa é a mais perigosa
condição possível, durante a qual ocorre a maioria dos suicídios. Sem ter
mais a proteção da inércia gerada pela depressão, você agora terá a
capacidade de atuar sobre o seu desespero.
Estava lá, em preto e branco: a minha absolvição. Eu não estava
louca, nem deprimida e nem sequer maníaca, era um estado misturado. Eu
tinha o direito de me sentir mal, eu estava num estado misturado. Fiquei
repetindo aquele termo para mim mesma ao longo do caminho de volta para
o hotel. Pela primeira vez desde que a viagem começara, não via a hora de
ver Rick para lhe contar o que descobrira.
A minha pesquisa tinha levado mais tempo do que esperava — e
cheguei ao hotel meia hora mais tarde do que havia prometido. Rick estava
rabugento e tentava arduamente não demonstrar, mas conhecia o seu sorriso
demasiado bem para não ser enganada por uma imitação indulgente. Beijei
seu rosto e acariciei seus cabelos. Eram os primeiros gestos espontâneos de
afeição que eu exibira em semanas. "Você pode acabar com essa carranca",
eu disse. "Tudo vai ficar bem. Eu já sei o que está errado comigo e isso se
chama estado misturado". Expliquei tudo a ele do melhor jeito que
consegui, expliquei que era por isso que eu estava agindo de forma
engraçada. Era como se eu estivesse deprimida, exceto que eu estava
maníaca também, então, ele poderia entender que...
Ele me interrompeu. "Você não está deprimida. Você está apenas
esgotada por tudo o que tem acontecido ultimamente. Por que não
relaxamos esta noite? Deixe-me lhe preparar um drinque".
"Eu não quero um drinque, eu quero conversar sobre isso."
158 Terri Cheney
"Agora não", disse Rick. "Você está muito cansada. Você não
devia ter desmarcado a hora com a massagista e ter gastado todo seu
tempo numa livraria."
Eu podia sentir minhas mãos se fechando, as unhas pressionando
a minha carne. A dor me fazia me sentir bem. Eu pressionei as mãos
com mais força, tentando me distrair da raiva que vinha
progressivamente crescendo dentro de mim.
Rick confundiu meu silêncio com consentimento. Pegou o
telefone e disse: "Eu sei exatamente do que você precisa, um delicioso
bife com purê de batatas e talvez creme de espinafre. O que você
prefere?"
"Eu prefiro que você desligue o telefone e ouça o que eu
estou tentando dizer."
"Eu ouvi muito bem, estou tentando resolver."
Cruzei a sala e tirei o telefone de sua mão. Minha voz saiu curta e
estrangulada, meia oitava acima do normal.
"Algumas vezes eu não posso ser consertada, Rick. Isto é uma
doença. Pelo menos uma vez, deixe de tentar fazer o melhor e me deixe
ser como eu sou. Basta me perguntar onde está doendo."
Nós nos olhamos, a tensão crescendo entre nós, como um calor.
Eu podia sentir na minha pele uma onda de medo e irritação. E podia
ver a tensão refletida nos olhos tempestuosos de Rick: era o momento
que tanto evitávamos há anos.
"Admita isso, Rick, algumas vezes não é possível ser
consertada, nem mesmo por você."
Rick veio por trás de mim e pegou o telefone. Seus olhos ainda
estavam desafiantes, mas sua voz estava mortalmente calma. "Você
prefere purê de batata ou creme de espinafre?"
E foi então que eu o atingi. Voltei muitos anos atrás em busca da
raiva e do ressentimento, anos de fingimento de estar bem, estar melhor
porque o melhor era o que Rick havia comprado e pago, porque ele era
o "consertador" e eu era alguém a ser consertada — e estar melhor era
parte do negócio. Eu o atingi com toda a força que eu tinha bem na
ponta do queixo. Não era uma
bofetada de cinema. Foi um soco tão forte, que ele foi para trás e teria
caído ao chão se o sofá não o tivesse escorado, um soco tão forte que
esfolei a pele das articulações.
O soco foi tão forte que, por um momento — mas o suficiente —,
a história entre nós foi atingida. E ficamos nos encarando como dois
estranhos em completo silêncio. Então o remorso veio, explodi em
lágrimas e tentei me jogar em seus braços, mas ele se recusou a me
abraçar. Recusou-se até mesmo a olhar para mim. Ficou sentado,
imóvel, olhando para o teto enquanto eu chorava.
"Não fui eu", implorei. "É este maldito estado misturado. Durante
toda a semana, eu estava com uma vontade desesperada de quebrar
alguma coisa. Era esmagador, não posso explicar. Mas eu nunca tive
vontade de bater em você. Por favor, diga-me que compreende."
"Tudo bem, eu entendo", disse ele, ainda olhando para o teto.
"Então você me perdoa?", perguntei.
"Eu perdôo."
"Então, está tudo bem?"
Ele finalmente olhou para mim. "Como você mesma disse,
algumas vezes as coisas não podem ser consertadas". Então ele se
levantou, caminhou até o quarto e começou a fazer as malas.
Eu não sabia, mas aquela foi a nossa última conversa. Fiel a seu
costume, Rick tomou todas as medidas para que eu voltasse para casa
em segurança, mas, quando cheguei, era uma casa vazia com um
telefone silencioso.
Demorou dez dias para a pele das minhas articulações curar.
Naquela altura, o estado misturado já tinha passado e eu estava de volta
à minha simples e antiga depressão. Toda vez que eu olhava para o
machucado em meus dedos era esmagada pela vergonha. Eu não podia
entender como eu — a grande pacifista — podia ter feito aquilo,
especialmente com Rick, o grande amor da minha vida. Durante meses,
fiquei olhando para aqueles pequenos lembretes,
160 Terri Cheney
Faz muito tempo que eu comi meu último sanduíche — para falar
a verdade, minha última refeição. Não há uma única razão para explicar
não sei por quê. Depois de ter sofrido tantos abusos, meu corpo
finalmente decidiu-se — bem no início dos meus quarenta anos —, para
assim reagir tão espetacularmente. Basta dizer que meu corpo trata os
alimentos como invasores e só pequenas quantidades conseguem
adentrar nele antes que o organismo inteiro se organize para o ataque.
Uma mordida já é o suficiente e meu estômago incha com uma
gigantesca circunferência, tão grande que alguém de repente possa
achar que já está na hora de o bebê nascer. E, então, as dores começam:
picadas tão agudas em meu abdômen, de forma tão intensa que me
fazem tremer de modo incontrolável e gritar por ajuda, em agonia.
Mas não há ajuda possível, e agora sei disso. Já me consultei com
todos os médicos, fiz todos os testes, engoli todos os comprimidos e
ouvi a todos eles, mas desisti. O cólon intestinal, me parece, é um ser
enigmático e poderoso: facilmente insultável, mas arduamente
apaziguável, totalmente diferente dos antigos deuses tribais. E, depois
de tudo, isso parece fazer sentido, porque estamos lidando aqui com a
maldição mais primitiva da depressão maníaca.
Embora possa me lembrar de notáveis mudanças de meu estado
de espírito, quando criança eu só fui ter minha primeira crise de
depressão suicida aos dezesseis anos. Durante pelo menos três meses,
eu dormia quase vinte horas por dia. Tinha sonhos espasmódicos que
apenas me deixavam ainda mais exausta. E quando finalmente
acordava, eu comia — e isso era tudo o que eu fazia. Eu não ia à escola;
não conversava com parentes ou amigos; nem mesmo lia, o que era uma
pena. Mas não me importava. Nada mais importava, a não ser o
frenético consumo de alimentos.
Nunca parei para me perguntar por que eu vivia tão faminta. A
única coisa compreensível era que, no momento em que me engajava no
processo de mastigar e engolir, nada mais tinha importância. Não
pensava em mais nada, as sensações haviam substituído as emoções.
Não conseguia pensar em outra coisa
senão nos alimentos salgados ou doces, macios ou crocantes. E não
dava bola para outra coisa, a não ser na mordida seguinte.
Também não me preocupava sobre o que estava colocando na
boca. No começo, a comida era normal, embora aumentasse
gradualmente nas quantidades ingeridas: purê de batatas, costelas, bolos
e macarrão - o que houvesse na geladeira de noite e que fosse fácil de
preparar. Mas logo fiquei esfomeada demais para esperar que a comida
fosse aquecida. Entrei no estágio dos alimentos crus, comendo todas as
frutas e vegetais em estado natural. Os cereais eram mais fáceis de
comer sem leite. Arroz e macarrão também eram mais fáceis e rápidos
de comer sem água.
Minha mãe fazia as compras no mercado uma vez por semana,
usualmente aos domingos, mas já às sextas nós estávamos praticamente
sem alimentos. Consigo lembrar claramente daquelas infindáveis noites
de sexta-feira, quando não havia mais nada nos armários e a depressão
roía buracos em meu estômago. Eu precisava comer alguma coisa,
qualquer coisa que fosse. Perto do final da depressão, eu acabava
comendo de tudo: sacos de farinha, pó de café, aniz, tomilho, erva-
doce... Claro que meu corpo se rebelava contra essa dieta exótica e eu
vomitava pelo menos metade do que tinha ingerido. Eu só parava esse
frenesi quando dormia de exaustão, minhas mãos ainda segurando
aquilo que eu estivesse comendo.
Meu pai finalmente me encontrou estatelada no sofá da sala,
doente demais para me mover. Tinha consumido um pacote inteiro de
bicarbonato de sódio e estava lá, tentando juntar forças para me levantar
e vomitar no banheiro. "Ouvi um barulho...", meu pai disse, foi então
que ele viu o pó branco em meu rosto e a caixa va2Ía de bicarbonato de
sódio sobre o travesseiro: "Que diabos!!!", ele disse, e o som de sua voz
me fez encolher de vergonha. "Querida, olhe para mim", ele pediu.
Talvez a palavra "querida" ou a ternura de sua voz, não sei, logo fez
meu copo reagir e, quando voltei a mim, junto vieram todos os
sentimentos que eu havia tão arduamente tentado suprimir.
164 Terri Cheney
Agarrei as mãos de meu pai e olhei para ele através de um súbito jorro
de lágrimas. "Papai, perdi o controle", sussurrei. Foi a primeira vez em minha
vida que eu admiti aquilo para alguém, especialmente para mim mesma. Contei
a ele sobre a comida, sobre a fome avassaladora e sobre aquilo que eu mais
temia: o fato de eu, mordida atrás de mordida, vir devorando minha própria
sanidade.
Meu pai tinha deixado de fumar há pouco tempo, então ele sabia um
pouco sobre os demônios interiores do apetite. Apertou minha mão e
tranqüilizou-me; se ele podia parar de fumar, eu certamente poderia parar de
comer. Mas ele iria buscar ajuda externa e sabia o local onde obtê-la.
Papai tinha conseguido acabar com o desejo de fumar com ajuda de uma
organização chamada Schott Center, que era a novidade da década de 1970.
Havia muita controvérsia sobre eles, mas eu não sabia a razão. Havia lido nas
brochuras que era um programa que modificava o comportamento, utilizado
para o tratamento de tabagismo e de obesidade — mas eu não entendia do que
se tratava. Papai nunca fora uma pessoa falante, então ele não me contou sobre
a sua própria experiência. Para ele, as ações eram mais importantes do que
palavras.
As 9h da manhã do dia seguinte, papai já havia me matriculado no
programa de obesidade. Ele insistiu em me levar pessoalmente. Eu estava
muito grata pelo apoio moral, mas na terceira vez eu sucumbi a uma mudança
total.
"Isto é completamente idiota", disse eu. "Vamos voltar para casa."
Meu pai continuou a assobiar a música You are my sunshine através do
espaço entre seus dois dentes da frente.
Eu argumentava que não era obesa - o que era verdade. Eu havia
herdado de minha mãe a compleição pequena e o metabolismo acelerado. E não
era nem muito magra, nem muito gorda, apesar de toda a comilança dos
últimos meses ter aumentado um pouco meu peso; mas não era nada tão assim
para que pudessem me chamar de obesa.
"Isso não tem nada a ver com seu peso", meu pai replicou. "Tem a ver
com controle". Saímos da avenida e paramos em frente a um pequeno prédio
cinza. "Chegamos, estarei esperando por você aqui".
"Você não vai entrar comigo?"
"Eu acho que isso é uma coisa que você precisa fazer sozinha", ele me
disse, dando um beijo em meu rosto. Fiquei esperando pelas palavras mágicas,
nosso grito de batalha secreto, e não me decepcionei. "Mostre a eles, menina",
meu pai disse.
Foi exatamente como pensava: eu era única pessoa magra na sala de
espera. Dei meu nome à recepcionista e me enterrei numa brochura promocional,
tentando arduamente não notar os olhares curiosos e hostis que vinham em minha
direção. Felizmente não precisei esperar muito tempo, até que um jovem vestido
de branco veio buscar-me.
"Sou Joe, seu conselheiro por hoje". Ele me levou para uma pequena sala,
com duas cadeiras, uma pia e uma mesa. Em cima da mesa havia alimentos
sortidos, variando de batata frita para pães com salame e mais uma variedade de
sobremesas, algumas das quais pareciam muito saborosas.
Joe acenou em direção à mesa e me pediu que escolhesse minha
comida favorita, aquela a que eu não poderia resistir.
Não havia discussão. Eu já estava salivando só de olhar para biscoitos de
aveia com passas, e Joe percebeu onde meus olhos tinham parado. "Então são
estes biscoitos, certo?", ele perguntou. "Isso é excelente". Então ele colocou
cinco biscoitos num pequeno prato de papel, entregou-os a mim e me fez sentar
em frente à pia.
"Eu quero que você feche seus olhos, dê uma grande mordida nos
biscoitos e mastigue-os", Joe ordenou. Fiz o que ele mandou, pelo menos tentei,
mas no momento em que mordi o primeiro biscoito eu me senti atingida por um
relâmpago. Abri meus olhos e vi Joe sorrindo para mim, com uma longa vareta
de metal em sua mão.
"É o mesmo princípio das varetas eletrificadas para conduzir
166 Terri Cheney
gado", ele disse, agitando a varinha no ar. "A diferença é que não deixa
marcas. Agora dê outra mordida e mastigue, mas não engula".
Eu mordi, mastiguei e...zap!, tomei outro choque. "Agora
cuspa tudo dentro da pia", disse Joe. Estava envergonhada, mas
cuspi um chumaço de biscoitos meio mastigados.
"Olhe para isso. Toque. O que isso lhe lembra?". Tudo o que me
veio à mente eram biscoitos mastigados.
"Não, olhe para isso de verdade", ordenou Joe. "Enfie seus
dedos profundamente. Cheire. Lamba. Gire essa massa em sua língua.
Você sabe o que me faz lembrar? Cocô nas fraldas. Merda de bebê.
Era com isso que você estava se enchendo durante todo esse tempo.
Merda de bebê". Então ele me deu vários choques de uma só vez.
Agora eu entendia a vaga referência na brochura sobre "Terapia
de Aversão". O único problema é que eu não estava desenvolvendo
nenhum tipo de aversão para biscoitos de aveia com passas. Ao
contrário, eu estava desenvolvendo uma enorme aversão quanto àquela
instituição: contra aquele cubículo, contra a pia de aço inoxidável, e,
especialmente, contra aquele idiota sorridente do Joe, com seu discurso
escatológico e a vareta eletrificada.
Sobre o restante daquela tarde passei um borrão. Mastiguei e
cuspi mais quatro biscoitos e fui forçada a engolir vários punhados
daquela porcaria regurgitada. Fazia tudo o que Joe mandava, esperando
evitar ou minorar os choques. Mas quanto mais eu me tornava dócil,
mais choques recebia. Não havia qualquer lógica naquilo. Eu, que
sempre tinha ido tão bem em todos os testes, não conseguia agradar
àquele professor. Até o momento em que saí, eu estava lutando contra
as lágrimas.
Aquele foi o fim da minha experiência com o Schott Center, mas
não o fim de meus problemas com alimentos. Felizmente, a depressão
que devastara o meu décimo sexto ano de vida não durou para sempre.
Quando ela se foi, seguiu junto minha fome
anormal, pelo menos durante algum tempo. Elas retornaram com força total
na minha próxima crise de depressão, mas, naquela altura, minha vida tinha
mudado. Eu não estava mais em casa, com uma bem abastecida despensa à
minha disposição a qualquer hora. Daquela vez estava na faculdade, numa
pequena cidade, onde o jantar era servido no intervalo das 18h às 21 h e
ponto final. Só havia uma alternativa em todo o campus: a pizzaria do
Ângelo, que fazia entregas até a meia noite. Mas eles só entregavam na
portaria do prédio dos dormitórios, não nos quartos. Se você quisesse pegar
sua pizza, você tinha que descer até a sala comum, que estava sempre cheia,
onde outros estudantes jogavam pôquer ou assistiam tv. Quando a próxima
crise de depressão me atingiu, estávamos no meio do inverno.
Eu estava no primeiro semestre de meu primeiro ano. Como uma
nativa de Los Angeles, não conhecia o inverno da Nova Inglaterra, e achava
que aquilo fosse o fim do mundo. Meu corpo doía com a letargia e mal
podia mudar de posição na cama. A hipersonolência retornara com força
total: agora eu dormia vários dias seguidos. Quando acordava, aquela fome
familiar voltava. A implacável vontade de morder, mastigar e engolir.
A sala de jantar do campus era algo totalmente fora de questão.
Eu me sentia incapaz de tomar uma chuveirada ou de lavar meus
cabelos e até mesmo de escovar os dentes. Jamais permitiria que
alguém me visse daquele jeito. O que excluía as pizzas também. Eu
não podia correr o risco de ser vista na sala comum. Então, ficava
trancada em meu quarto, de onde saía apenas no meio da noite para ir
ao banheiro.
Houve uma vez que fiquei sete dias seguidos sem comer nada. No
oitavo dia, as pontadas do meu estômago estavam tão intensas que eu não
podia mais ignorá-las. Bem tarde naquela noite, quando todo mundo estava
dormindo, perambulei pelos salões vazios procurando comida. E isso logo
se tornou minha rotina noturna. Eu ia de lixeira em lixeira, vasculhando
seus conteúdos o mais rápido que eu podia, e, de vez em quando, acertava:
uma caixa
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você poderia pensar que meu corpo seguisse o mesmo caminho. Mas
depois de tudo isso, eu não consiga me lembrar da última vez que comi
em excesso. Com a depressão detida atrás de uma cerca, eu não tenho
mais sentido essa necessidade de comer. Meu organismo, porém, não
parece se importar com minha sanidade. Aparentemente, ele tem uma
mente própria e os alimentos ainda são seus inimigos.
Para afastar a dor, eu venho comendo menos a cada dia. Como
resultado, escolho. Enquanto a obesidade pode ser uma epidemia
nacional, você não vê pessoas indo até um estranho para dizer que ele
está gordo demais. Mas me parece que há um consenso de que a
magreza é de domínio público. Raramente passo uma semana sem que
alguém faça algum comentário sobre meu corpo, dizendo-me que eu
preciso "colocar carne sobre meus ossos".
Faço o possível para evitar todas as superfícies que tenham
reflexos — espelhos, vitrines, colheres brilhantes e coisas do gênero. Eu
digo a mim mesma, como num mantra, que a beleza genuína é mais do
que uma coisa superficial. Mas é impossível sentir-se remotamente
bonita quando pessoas estranhas apontam suas falhas. Será que eles
acham que eu não sei como estou? Com certeza, eles assumem que
estou anoréxica e que não consigo ver o que está à frente de meu
próprio nariz. Mas eles não poderiam estar mais enganados. Lamento
meus peitos murchos, meu quadril ossudo, a falta da antiga suavidade
dos meus braços. Sinto falta das minhas nádegas apertadas num jeans
justo, o atrito carnudo entre as minhas coxas. Eu rezo por algum tipo de
almofada que me proteja de minhas arestas.
Mas, mais do que tudo, anseio por energia substancial' — um
sentimento de plenitude, ausência de dor. É uma fome primitiva, que
vai além do alimento: o que eu realmente anseio é por normalidade. Eu
quero sentar para jantar com um outro ser humano e fazer mais do que
apenas empurrar a refeição em torno do prato. Quero ir ao cinema e
comer pipoca, eu quero ir a um
jogo de futebol e devorar um cachorro-quente. Eu quero ir com os amigos
comer camarão frito e apimentado. E quero finalmente dizer sim para um
biscoito de aveia com passas.
Portanto, amanhã, às 1 Oh vou me consultar com mais
especialistas. Vou permitir que eles me toquem com dedos de borracha e
frios instrumentos de metal. Vou engolir a vergonha e lhes contar a minha
história. "Por que você demorou tanto para procurar tratamento?", o
especialista irá perguntar. Porque eu nunca pensei que a vida poderia ser
diferente. Eu pensava que sempre teria uma doença mental, que a
depressão me possuía de corpo e alma. Nunca tive um claro vislumbre de
céu azul por tempo suficiente para acreditar que existia outra coisa além
do mau tempo. E agora? É simples. Estou com fome de novo.
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uma mulher com seus quarenta anos, bem ajustada e calma, matando o
estava correta. Eu estava esperando; não fazia outra coisa senão esperar.
E a parte de matar o tempo também estava correta — exceto que não era
o tempo que eu queria matar, mas, sim, aquela jovem babá tagarela com
relação à vida. No fim das contas, exceto por uma doença mental
Que droga ele ser tão inteligente, mas não o suficiente para
perceber isso. Fechei os olhos e deixei a raiva irradiar-se pela ponta dos
dedos. A depressão me enfraquecera por tanto tempo que eu me
esquecera o que era sentir uma emoção pura e inalterada. Fiquei
preocupada. Estava pegando fogo, furiosa, estava viva. Alan tinha dado
a resposta, afinal das contas, embora suas palavras tenham tido um
impacto muito diferente do que ele provavelmente pretendia. Em vez de
me dar esperança, elas inflamaram uma raiva tão grande que eu jurei
ficar viva, só para provar a ele que estava errado.
Quando finalmente fui capaz de voltar ao trabalho, descobri que
Alan tinha deixado a empresa por uma lucrativa posição em um dos
grandes estúdios. Senti-me esmagada. Não porque o perdera, a raiva
tinha me curado disso, mas porque Alan ainda era o sal nas minhas
feridas. Eu precisava de suas agulhadas para me lembrar que eu tinha
sobrevivido.
Com o passar do tempo e com uma nova medicação, a raiva
diminuiu e os meus sentimentos por Alan ficaram desbotados. Esqueci
o dia de seu aniversário, esqueci seu filme favorito. Esqueci
praticamente tudo sobre ele, exceto o som de sua voz, dizendo: "Se você
não fosse maníaco-depressiva..."
Ele tinha razão em parte, evidentemente. Alan estava sempre
certo, ao menos em parte. Todos os domingos eu me sento sempre no
mesmo banco do parque e olho meu mundo interior passar por mim. Se
não fosse pela depressão maníaca... Mas não, eu me recuso a ouvir.
Existem muitas outras vozes por aqui e que merecem ser ouvidas. Do
outro lado do parque, uma jovem babá leva uma criança no colo.
Mesmo de tão longe, eu consigo ouvir o riso da criança.
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contou o que uma dama deveria fazer com sua coceira. Reprimi-la,
suponho. Isso é o que as damas fazem com suas urgências naturais: elas
coxa esquerda, para frente e para trás, para cima e para baixo, até a
coceira finalmente diminuir. Quando Greg desligou o telefone, eu
voltara a ser uma dama, ambas as mãos cuidadosamente colocadas em
cima da mesa, com um sorriso educado em meus lábios. Se você olhasse
para mim, você nunca iria adivinhar que, logo abaixo do meu colar de
pérolas, meu coração palpitava como uma britadeira. Você nunca
sentiria o odor de meu suor. Eu estava sempre muito perfumada.
Mas naquela tarde, quando me vestia para aquele encontro, fiquei
tão nervosa que quase deixei de funcionar. Os botões se recusavam a
obedecer meus dedos trêmulos. Minha maquiagem borrou, fiquei
lambuzada de batom. Isso era uma tortura. Ironicamente, era o que eu
tinha esperado por toda a minha vida: ser normal. Durante quase um
ano, estive tomando uma medicação que equilibrara os exagerados
picos e vales de minha depressão maníaca, e quase fiquei saudável,
como nunca tinha estado antes. Foi o mais longo trecho de sanidade que
conheci em vinte anos. Talvez fosse por isso que me atrapalhei com os
dedos. É difícil aplicar maquiagem quando você não se reconhece no
espelho.
Nunca tivera dificuldades para me vestir quando estava maníaca.
Eu apenas pegava o jeans mais sexy e o sapato de salto mais alto que
tivesse no guarda-roupa. Quando estava deprimida, nada ficava bem em
mim, então, usava o pretinho básico, o que melhor se adaptava à minha
palidez e estado de espírito. Mas como eu deveria me vestir estando
normal? Que mensagem deveria passar? Eu não era mais aquela megera
maníaca, nem uma assombração. Mas as duas, porém, ainda eram
fantasmas dentro de mim — e escolheram o guarda-roupas para agir.
Por isso decidi jogar fora tudo o que fosse muito exuberante ou
reprimido demais, porque eu já não era uma criatura de extremos. Isso
me deixou com tão pouca escolha que me sentei na cama, cercada pelas
pilhas de roupas rejeitadas, e chorei. Quem poderia imaginar que,
depois de todos aqueles anos ansiando pela normalidade, a normalidade
gerava sentimentos que não eram necessariamente bons?
Fui ao banheiro lavar meu rosto. Seriam aqueles os lábios que
haviam beijado tantos homens? Eles pareciam boca de criança, de um
rosa pálido, e ainda inchada de tanto chorar. Olhei para baixo, para
meus pulsos e três longas cicatrizes cruzavam as veias, relíquias de uma
gilete desesperada. Parecia que meu corpo se lembrava de todos os
meus extravagantes estados de espírito, sem dar bola para os esforços
que minha mente fazia para esquecê-los. Mas a normalidade vivia em
meus olhos. Eles brilhavam com os resquícios de algumas lágrimas
extraviadas, mas não queimavam como fogo descontrolado, nem
estavam inertes como carvão encharcado. Eles eram apenas olhos,
olhando para mim e querendo saber o que viria a seguir... Como se eu
soubesse.
Ouvi a voz suave de minha mãe: "você pode identificar uma
dama pelas pérolas que usa". Avaliei meu rosto, meus olhos normais,
meus lábios experientes, sim, eu podia passar por uma dama. Precisava
desempenhar um papel, sentia-me nua sem um papel, mas não serviriam
nem a mania, muito menos a depressão. Então, agradeci a Deus por ter
ido a Vassar: lá, descobrira como uma verdadeira dama deve agir e qual
seria sua aparência. Sabia o que fazer com as mãos (devem ficar
dobradas e quietas) e como dobrar as pernas (primeiro o tornozelo,
depois ligeiramente inclinadas para a esquerda). E sabia o que usar:
pérolas no pescoço e um vestido preto simples, mas bem cortado. Meu
guarda-roupas da época da depressão estava repleto de vestidos pretos,
então escolhi o menos soturno e experimentei-o com as pérolas.
Finalmente, uma roupa que me servia bem.
Fiquei extasiada com a transformação: não apenas meus olhos
pareciam mais à vontade, mas meu corpo também se sentia bem. Então,
resgatei a lembrança do salão de chá de Vassar: as graciosas mulheres
com suas luvas brancas e comentários espirituosos. Eu fora uma delas,
por um tempo, e talvez pudesse voltar a sê-lo.
Mas o salão de chá, com sua calma elegância, parecia muito
distante do restaurante movimentado onde Greg me levara. O
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Blahnik?"
colocar meus pés na calçada molhada. Pensei que ele talvez estivesse
esperando por uma gorjeta. Mas não se devem dar gorjetas em festas
sorriso mais sexy que eu tinha. Ele pareceu satisfeito, abandonando seu
posto para escoltar-me pelo caminho escorregadio até a porta. Fiquei
muito grata pela ajuda, apenas por ter um homem, qualquer homem
andando a meu lado, enquanto me aproximava da fervilhante multidão.
Dois guardas uniformizados estavam um de cada lado da porta.
Eu tinha sido convidada apenas na noite anterior e meu convite ainda
não havia sido entregue, e meu nome certamente não estaria na lista.
Dependia apenas de mim e de meus sapatos atrevidos convencer os
guardas, os outros convidados, e, acima de tudo, a mim mesma de que
eu fazia parte daquilo.
Se eu tivesse um namorado ao meu lado...
O guarda-chuva se tornou desnecessário, assim que chegamos ao
alpendre coberto, e o manobrista também, infelizmente. Eu o agradeci
do modo mais doce que eu podia, tentando compensar a não existência
de gorjeta com um sorriso brilhante e estúpido. Vendo-o ir embora com
aquelas calças alugadas e confortáveis, senti um breve e violento
impulso de me atirar em seus braços e implorar sua misericórdia. Mas
eu já estava presa no meio da multidão que se movia em direção à porta,
onde um guarda esperava com as mãos estendidas.
"Convite", disse o guarda.
"Desculpe, mas eu não tenho. Veja que..."
"Nome?"
Disse meu nome e ele procurou na lista. A multidão atrás de mim
estava ficando impaciente. Podia perceber sua irritação. O guarda olhou
para mim e falou para o ar acima da minha cabeça.
"Não está na lista. Próximo."
Se você estiver usando saltos altos por horas, sabe que eles
podem deixar qualquer uma terrivelmente irritada. Então, não foi
inteiramente culpa minha quando minha voz adotou um tom
decididamente impertinente quando me lembrei da minha formação.
"Olhe aqui", eu disse. "Estou com o anfitrião, sou advogada.
Eu sou sua advogada e ele estava me esperando há uma hora. Sei que ele
não ficará feliz se você me mantiver aqui fora."
"Mas você não está na...", ele começou a protestar. Eu o
interrompi na hora.
"Claro que não estou na lista. Isso é negócio, não prazer". Abri
minha bolsa e comecei a procurar. "Tenho certeza de que você já ouviu
falar de...", falei listando o nome de várias empresas conhecidas. "Tenho
o meu cartão em algum lugar".
"Mas seu nome..."
Fechei minha bolsa. A abordagem da advocacia não estava
funcionando. Era tempo de mudar — e rapidamente. "Dá um tempo,
está bem? Meus sapatos estão me matando".
Levantei meu pé esquerdo e friccionei lentamente o tornozelo. Ele
sorriu e me colocou para dentro. Bem na hora, porque a verdade é que
eu não tinha nenhum cartão em minha bolsa. Já que, tecnicamente,
aquela não era exatamente uma visita de negócios, era um encontro, e eu
tinha assumido que um batom, uma escova e balas de menta seriam mais
úteis do que o meu cartão de visitas. Mas esqueci de uma das regras
mais importantes de Hollywood: não confunda beleza com
credibilidade.
Eu costumava ser mortalmente crível. Revelava em minhas
rápidas mudanças de expressão o que meu cartão evocava. Desde
surpresa até respeito, passando por um tom de medo, dependendo da
experiência anterior que a pessoa tivesse tido com advogados. Mas
sempre, sem dúvida, o cartão fazia diferença. Eu poderia não ser a
garota mais bonita da festa, mas as pessoas — e sobretudo os homens —
me levariam a sério.
Então, que diabos eu poderia fazer agora apenas com um batom
cor de ameixa, se alguém perguntasse algo sobre mim? Olhei ao redor
da sala. Estava rodeada, em todas as direções, por mulheres
incrivelmente belas. Olhei meu vestido: uma relíquia do passado, mas
ainda confiável. Minha aparência era clássica, talvez até chique sob a
luz correta, enquanto meu zíper permanecesse fechado. Mas meu
vestido não falaria por mim, se eu ficasse, teria
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sua casca. Meu café com leite já está sem espuma, mas não me importo.
reescrevendo.
gordas), procurando pela palavra certa, pelo melhor ritmo, por tudo o