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A TEORIA DO CONHECIMENTO COMO FILOSOFIA PRIMEIRA NO

“PRIMEIRO” HUSSERL

INTRODUÇÃO

As preleções sobre lógica e teoria do conhecimento ministradas por


Husserl em Göttingen durante os semestres de inverno dos anos 1906/07 foram reunidas
e publicadas postumamente, em 1984, sob o título Einleitung in die Logik und
Erkenntnistheorie, Vorlesung, as quais compõem hoje o volume XXIV da Husserliana. A
“Introdução à Lógica e à Teoria do Conhecimento” (ILTC) constitui, junto com as Cinco
Lições da “Ideia da Fenomenologia”, de 1907, um valioso testemunho do pensamento de
Husserl daquela fase. Com efeito, é possível com o apoio dos dois cursos traçar um mapa
da evolução da fenomenologia a partir das “Investigações Lógicas”, de 1900, e apresentar
um panorama das tendências de pensamento então emergentes que irão culminar nas
“Ideias para uma Fenomenologia Pura e para uma Filosofia Fenomenológica”, de 1913.
Husserl dilucida em ILTC1 uma diversidade de questões que não foram
adequadamente compreendidas nas Investigações Lógicas e pelas quais o filósofo foi alvo
de equívocos e de diferentes objeções. O fato, por exemplo, de que as Investigações
fizeram passar a fenomenologia por uma psicologia descritiva, embora o interesse nelas
predominante fosse o interesse teórico-cognoscitivo. Desse mal-entendido seguiu-se a
objeção de que haveria uma contradição entre o livro I, Prolegômenos à Lógica Pura, e
o livro II, Investigações para a Fenomenologia e a Teoria do Conhecimento, das Logische
Untersuchungen. Os críticos de Husserl contestaram que o fundamento da teoria do
conhecimento pela psicologia, no primeiro volume, “é refutado em todos os aspectos, o
psicologismo é espancado até a morte com mil argumentos. Mas no segundo volume,
assim que a verdadeira investigação gnosiológica começa, ele revive alegremente”2.
Houve de fato uma recaída no psicologismo? Husserl considera essa crítica
grotesca, resultado de uma leitura desatenta, para não dizer ruim, da totalidade da obra.
Nos cursos que ministrou posteriormente, Husserl viu a necessidade de distinguir entre

1
Introdução à Lógica e à Teoria do Conhecimento.
2
Der erste Band der Logischen Untersuchungen ist ein wahres Brevier des Anti-Psychologismus, die
Begründung der Erkenntnistheorie durch Psychologie wird in jeder Weise widerlegt, der Psychologismus
wird mit tausend Argumenten totgeschlagen. Aber im zweiten Band, sowie die wirkliche
erkenntnistheoretische Untersuchung anhebt, lebt er fröhlich auf. (Hua XXIV, Einleitung in die Logik und
Erkenntnistheorie, Vorlesungen 1906/07, § 35, pp. 201-202).
fenomenologia e psicologia descritiva, e mostrar que o afazer da fenomenologia não é o
de uma psicologia empírica, e sim a tarefa de fundar desde sua base uma radical crítica
do conhecimento, que seja capaz de elucidar os nexos entre ser e conhecer, e investigar
em consideração geral e universal as correlações entre ato, significado e objeto.
Para Ullrich Melle, que escreveu uma introdução a ILTC, essa distinção é
a mais decisiva no curso, especialmente na sua segunda parte, em que Husserl se ocupa
da teoria do conhecimento. A exposição em ILTC é comandada por um interesse
predominantemente didático, em atenção à exigência de clareza quanto aos pontos que as
Investigações Lógicas deixaram repousar na obscuridade. No entanto, ILTC não é um
trabalho meramente pedagógico, ele representa um avanço considerável no projeto da
fenomenologia. Husserl em pessoa confessara em carta a Hans Cornelius ter feito um
progresso em relação aos resultados obtidos anteriormente:
Infelizmente, eu devo reiterar que minhas reflexões sobre o sentido do
fenômeno na introdução de Investigações Lógicas (e na quinta
Investigação) expressam de modo muito inapropriado o verdadeiro
sentido das Investigações e seu real método. Minha publicação das
preleções dadas desde 1902 sobre teoria do conhecimento será bem-
sucedida em reverter essa situação3.

Melle considera que ILTC “representa em larga medida um compêndio e


uma organização das pesquisas lógicas, teóricas, gnosiológicas e fenomenológicas que
Husserl havia realizado nos anos anteriores”4. Mesmo que o filósofo não tivesse de início
plena consciência do significado de suas exposições para o avanço do projeto
fenomenológico, e de sua abertura aos novos horizontes filosóficos que iriam ser
determinantes mais tarde, elas estavam destinadas a representar um “importante passo
para além da elucidação psicológico-descritiva da lógica pura” em direção “à
fenomenologia transcendental da consciência absoluta”, que seria desenvolvida em Ideias
I; além disso, observa Melle, foi em ILTC que “Husserl empregou pela primeira vez
explicitamente o método da epoché e da redução fenomenológica”, a fim de estabelecer

3
Leider muß ich es immer wieder beklagen, daß meine Reflexionen über den Sinn der Phänomene in der
“Einleitung” zu meinen Logischen Untersuchung (und V. Untersuchung) dem wahren Sinn der
Untersuchungen und ihrer Methode so wenig passanden Ausdruck geben. Meine Publikation der seit 1902
gehaltenen Vorlesungen über Erkenntnistheorie wird hier Abhilge schaffen. (idem, Beilage VIII, p. 442).
4
In großen Teilen ist sie eine Zusammenfassung und Vereinheitlichung von Husserls logisch-
wissenschafts-theoretischen, erkenntnistheoretischen und erkenntnisphänomenologischen Forschungen der
vorangegangen Jahre (idem, p. XIX)
uma teoria do conhecimento radical e autêntica, livre de quaisquer pressupostos, e capaz
de esclarecer os problemas fundamentais do conhecimento5.

1. A relação entre ILTC e A Ideia da Fenomenologia

É importante considerar em primeiro lugar sobre ILTC a sua relação com


as Cinco Lições da Ideia da Fenomenologia ministradas no mesmo período6. Não é difícil
enxergar entre essas Cinco Lições e a segunda parte de ILTC uma fundamental conexão.
As preleções não coincidem apenas cronologicamente, mas são dominadas por idêntica
problemática. Husserl nelas se ocupa da questão gnosiológica fundamental, e a
fenomenologia assume ali por isso a forma de uma radical teoria do conhecimento. A
questão fundamental que comanda essa teoria é formulada nos termos fenomenológicos
da correlação entre imanência e transcendência; ela pergunta, precisamente, como a
correlação entre subjetividade e objetividade é possível.
Em suma, são três os elementos que devem ser fenomenologicamente
esclarecidos pela Erkenntnistheorie: a (1) possibilidade, o (2) sentido e a (3) essência do
conhecimento objetivo por parte da subjetividade cognoscente. Husserl deixa isso claro
em diversos momentos. Na Ideia da Fenomenologia, por exemplo, consta:
Como pode o conhecimento estar seguro de sua correspondência com
as coisas que são em si mesmas, como pode as atingir?7 (...) a ideia de
teoria do conhecimento surge como a de uma ciência que resolve as
dificuldades aqui em discussão e nos fornece uma intelecção última,
clara, por conseguinte, auto-concordante, da essência do conhecimento
e da possibilidade da sua efetuação.8 (...) como pode o conhecimento ir
além de si mesmo, como pode ele atingir um ser que não se encontra no
âmbito da consciência?9 O que eu quero é claridade, quero compreender
a possibilidade deste apreender, isto é, se examino o seu sentido, quero

5
Auch wenn Husserl selbst die Vorlesung nicht im Bewußtsein eines Durchbruchs und Aufbruchs zu neuen
philosophischen Ufern gehalten hat, so stellt sie dennoch einen wichtigen Schritt auf dem Weg von der
deskriptiv-psychologischen Aufklärung der reinen Logik in den Logischen Untersuchungen zur
transzendentalen Phänomenologie des absolute Bewußtsein und der sich in seinen Akten konstituierenden
gegenständlichen Korrelate in den Ideen I dar. In ihr hat Husserl zum erstenmal explizit die Methode der
Epoché und phänomenologischen Reduktion zur Etablierung einer Radikal vorurteilslosen und alle
Erkenntnis letztaufklärenden Erkenntnistheorie und Phänomenologie angewendet (idem, p. XIX).
6
Die Idee der Phänomenologie. Fünf Vorlesungen: estas preleções foram pronunciadas em 1907 e
compõem o volume II da Husserliana.
7
Wie kann Erkenntnis ihrer Übereinstimmung mit den an sich seienden Sachen gewiß werden, sie
„treffen”? (Hua II: Die Idee der Phänomenologie, Haag, M. Nijhoff, 1973, Einleitung, p. 1).
8
Jedenfalls erwächst die Idee einer Erkenntnistheorie als einer Wissenschaft, welche die hier
vorliegenden Schwierigkeiten löst, uns letzte, klare, also in sich einstimmige Einsicht in das Wesen
der Erkenntnis und die Möglichkeit ihrer Leistung gibt. (idem, p. 3).
9
wie kann Erkenntnis über sich hinaus, wie kann sie ein Sein treffen, das im Rahmen des Bewußtseins
nicht zu finden ist? (idem, p. 5).
ter diante dos meus olhos a essência da possibilidade de tal apreender,
quero transformá-lo intuitivamente em dado.10 (Nossos grifos).

Na segunda parte de ILTC, por sua vez, encontra-se idêntica formulação.


Husserl distingue entre o filósofo e o cientista natural, e assinala que a tarefa do filósofo
é pôr-se a “refletir sobre as fontes subjetivas e as questões últimas sobre o sentido e a
possibilidade de objetos constituídos subjetivamente”11. O que ele quer saber é “o que
significa a relação de conhecimento com uma objetidade e como essa relação é
possível”12. E Husserl insiste no caráter problemático da existência da natureza, “na
medida em que o ser em si é uma natureza que é, seja ele conhecido na subjetividade ou
não, o problema está no sentido e na possibilidade”13. A teoria do conhecimento é uma
ciência dos princípios últimos, ela não opera nenhuma intervenção nos campos da ciência
já estabelecidos, mas “diz respeito à sua ‘crítica’, ao esclarecimento do seu sentido (...)
ela concerne, em princípio, a todas as etapas metódicas e a todos os atos de pensamento
que reivindicam legitimidade conforme a essência de sua operação”14. (Todos os grifos
são nossos).
A teoria do conhecimento, por conseguinte, define-se pela tomada de
posição radical diante dos problemas da possibilidade do conhecimento, da essência e do
sentido do conhecimento. Para Husserl, o pensamento filosófico é diferente do
pensamento natural que não se preocupa com tais problemas e vive na ingenuidade, sem
experimentar qualquer perplexidade em relação a eles. O pensamento filosófico pode ser
chamado de antemão uma teoria do conhecimento, pois toma essa perplexidade como

10
Was ich will ist Klarheit, verstehen will ich die Möglichkeit dieses Treffens, d.h. aber, wenn wir den
Sinn davon erwägen: das Wesen der Möglichkeit dieses Treffens will ich zu Gesicht bekommen,
es schauend zur Gegebenheit bringen. (idem, p. 6).
11
(…) den subjektiven Quellen und den letzten Fragen nach Sinn und Möglichkeit einer subjektiv sich
konstituierenden Objektivität nach. Das zu tun, ist die Aufgabe des Philosophen. (Hua XXIV, Einleitung
in die Logik und Erkenntnistheorie, Vorlesungen 1906/07 § 31, p. 163).
12
Ich will wissen, was die Beziehung der Erkenntnis auf eine Gegenständlichkeit meint und wie eine solche
Beziehung auf eine Gegenständlichkeit möglich ist. (idem, § 35, p. 212).
13
Die Existenz der Natur ist problematisch, sofern eben das An-sich-Sein einer Natur, die ist, was sie ist,
ob sie in der Subjektivität erkannt wird oder nicht, Problem ist nach Sinn und Möglichkeit. (idem, § 34, p.
198).
14
Sie ist Wissenschaft von der Prinzipien, nämlich Wissenschaft der letzten Aufklärung, der letzten
Erledigung, all das im Sinn prinzipieller Allgemeinheit verstanden. Sie greift nirgends hinein und doch
betrifft ihre “Kritik”, ihre Sinnesklärung, alles und jedes, denn es betrifft im Prinzip alle Fundamente, alle
methodischen Schritte, alle Rechtsansprüche erhenbenden Denkakte nach dem Wesen ihrer Leistung.
(idem, § 31, p. 166).
ponto de partida, tenta posicionar-se cientificamente diante dos problemas gnosiológicos
e convertê-los em enigmas a serem decifrados cientificamente15.
É com esta última definição que Husserl abre as Cinco Lições. Ela assinala
uma diferença fundamental entre filosofia e ciência. A diferença está na atitude tomada
em relação ao conhecimento. Não obstante, Husserl destaca que a Erkenntnistheorie é
também uma ciência, que deve operar com absoluto rigor na colocação dos seus
problemas e na tentativa de solução dos mesmos. Isso deve ser entendido numa dupla
acepção: a teoria do conhecimento, em primeiro lugar, é uma ciência porque é uma crítica
(Erkenntniskritik); em segundo lugar, porque o método dessa crítica é o
fenomenológico16.
Na formulação de Husserl em ILTC, a teoria do conhecimento é definida
como uma disciplina científica cujo objetivo é auxiliar as ciências a fazer uma avaliação17
final de seu conteúdo teórico, e fazê-las chegar por meio de tal avaliação a uma
fundamentação e a uma conclusão definitivas quanto à base filosófica do saber
científico18. Para Husserl é claro que a crítica gnosiológica, exercida com suficiente
radicalidade, deve fechar o círculo das disciplinas que pertencem essencialmente à ideia
de uma teoria da ciência19. Nesse fechamento, ela surge como a chave de conclusão última
do conhecimento científico (letzten Abschluß der wissenschaftlichen Erkenntnis).
Essa chave que fecha o círculo científico se perfaz como uma crítica da
razão, que corresponde nesses termos a uma crítica da razão lógica, prática e valorativa
em geral, cuja tarefa eminente é clarificar em traços gerais o sentido, a essência, os
métodos, os pontos de vista capitais de uma teoria da ciência, superando os tormentos da
obscuridade que repousam sobre eles.

15
(...) philosophisches Denken, bestimmt durch die Stellung zu den Problemen der
Erkenntnismöglichkeit (...) Schon diesen Versuch einer wissenschaftlichen Stellungnahme zu diesen
Problemen kann man Erkenntnistheorie nennen. (Hua II: Die Idee der Phänomenologie, Haag, M. Nijhoff,
1973, Einleitung, p. 1).
16
Die Methode der Erkenntniskritik (ist) die phänomenologische (...).(idem, p. 1).
17
Aqui cabe uma observação. Husserl emprega na determinação desse objetivo a palavra Auswertung, para
avaliação. O termo pode ser traduzido também por interpretação ou análise. Para nós, porém, o melhor
correspondente em português é avaliação, que vem dentro desse contexto revestido do sentido específico
da análise fenomenológica dos atos de conhecimento, feita em regime intuicionista, de modo a apreender
o seu valor (Wert) de conhecimento, valor de verdade, de evidência, etc.
18
Die Erkenntnistheorie ist diejenige Disziplin, die aller wissenschaftlichen Erkenntnis zur letzten
Auswertung ihres endgültigen Erkenntnisgehalts, aller wissenschaftlichen Erkenntnis zur letzten
Grundlegung und zu letztem Abschluß verhelfen will. (Hua XXIV, Einleitung in die Logik und
Erkenntnistheorie, Vorlesungen 1906/07 § 31, p. 157 ).
19
Ein aber ist klar, daß erst die Erkenntniskritik den Kreis der zu Idee einer Wissenschaftlehre wesentlich
gehörigen Disziplinen abschließt. (idem, § 31 p. 158).
No entanto, ILTC não traz apenas em seu conteúdo o caminho de transição
que vai de Logische Untersuchungen a Ideen I, com os embriões do quadro terminológico
que será desenvolvido neste último para descrever as estruturas da consciência
transcendental pura. No quinto capítulo do curso, intitulado “A teoria do conhecimento
como Filosofia Primeira”, Husserl elabora a ideia de uma filosofia do começo autêntico,
que merecerá o título de “primeira”, de proté philosophia, retomando o conceito da
tradição. É nesta quinta parte que Husserl tece a série de reflexões principais sobre a teoria
do conhecimento, posta como tema central do capítulo, e a expressão Filosofia Primeira
parece a ele no momento o conceito apropriado para determinar o estatuto dessa disciplina
em face da lógica e das ciências naturais20.
A expressão “Filosofia Primeira”, numa consideração global da obra de
Husserl, é geralmente evocada para indicar o desenvolvimento tardio do projeto
fenomenológico, quando são postas em discussão as questões da história da filosofia
(história crítica das ideias), e Husserl reflete sobre a historicidade do conhecimento
filosófico e o papel histórico-teleológico da fenomenologia no curso de desenvolvimento
da filosofia europeia. Entre intérpretes, discute-se essa fase como aquela em que a
fenomenologia volta para si mesma sua reflexão, e esforça-se por constituir uma
“fenomenologia da fenomenologia”. Entretanto, o conceito de “Filosofia Primeira”, como
vê-se em ILCT, surge na reflexão fenomenológica com antecedência de mais de uma
década em relação àquela fase posterior. Nessa reflexão, ele irá designar expressamente
a teoria do conhecimento.
Arion Kelkel, que traduziu para o francês e prefaciou um curso de 1923/24
de Husserl intitulado justamente “Filosofia Primeira: história crítica das ideias, volume I,
e teoria da redução fenomenológica, volume II”, traça um mapa das ocorrências da
expressão na primeira fase da fenomenologia. Ele destaca que Husserl (Kelkel não
menciona ILTC) esteve inclinado a empregá-la nas célebres Cinco Lições da Ideia da
Fenomenologia, pois consta na capa do manuscrito uma nota de próprio punho do filósofo
na qual se lê “Fenomenologia como Filosofia Primeira”.
Para Kelkel, a expressão Filosofia Primeira não foi escolhida
ocasionalmente, nem se trata de uma formulação acidental. Há bons motivos para se supor
que Husserl tenha se inspirado em texto de Paul Natorp para decidir sobre o uso do termo.
Natorp, com efeito, faz menção a uma proté philosophia no seu estudo crítico das

20
O título original é: Erkenntnistheorie als Erste Philosophie. Ele começa no § 31 intitulado: Die Stellung
der Erkenntnistheorie zu den logischen Disziplinen und zu den natürlichen Wissenschaften.
Investigações Lógicas, no qual compara a proposta kantiana (de resolver a ontologia
tradicional numa analítica do intelecto puro) com a proposta da nova crítica da razão de
Husserl, que tende à mesma resolução, e que merece em atenção a isso o nome que ela
reivindica de uma proté philosophia. Husserl parece ter acolhido a ideia de Natorp como
uma verdadeira sugestão, pois reconhece em seguida que ele havia caracterizado
magistralmente a situação da fenomenologia iniciante. Portanto, como observa Kelkel (p.
XIX), não é fora de propósito supor que Husserl tivesse em mente aquela sugestão ao
procurar o termo mais adequado para definir sua teoria transcendental do conhecimento.
Em 1913 a ideia de Erste Philosophie volta a aparecer na obra husserliana,
numa rápida e discreta alusão feita ao conceito na introdução de Ideias I. Husserl traça
nesta introdução o plano para a trilogia das Ideias para uma Fenomenologia Pura e para
uma Filosofia Fenomenológica. Vejamos o que ele diz a respeito do último volume, que
seria escrito posteriormente:
Um terceiro e conclusivo livro será dedicado à ideia da filosofia. Ele
deverá despertar a evidência de que a filosofia autêntica, cuja ideia
consiste em realizar a ideia do conhecimento absoluto, está enraizada
na fenomenologia pura, e em um sentido tão sério que o fundamento e
a execução sistematicamente rigorosos desta primeira de todas as
filosofias são a condição prévia indispensável para toda metafísica e
qualquer outra filosofia – “que poderá se apresentar como ciência”21
(Grifo nosso).

A concepção de “primeira de todas as filosofias” é aqui mencionada en


passant. Ela está implícita na ideia de uma filosofia autêntica que teria como alvo a
realização do saber absoluto. Todavia, o terceiro volume de Ideias não saiu conforme
aquele plano original22. Além disso, na etapa posterior do projeto fenomenológico, que
se prolonga até os anos 20, Husserl faz silêncio quanto à concepção de Filosofia Primeira
e parece não levar adiante aquela tendência inicial de caracterizar a fenomenologia a partir
de tal. Kelkel observa, contudo, que a omissão é justificável, levando-se em conta que
nenhuma nova reflexão digna de nota é feita pelo filósofo na década seguinte sobre o
sentido e as metas do projeto fenomenológico. Husserl publica ao longo desse período

21
Ein drittes und abschließendes Buch ist der Idee der Philosophie gewirdmet. Es wird die Einsicht erwerckt
werden, daß echte Philosophie, deren Idee es ist, die Idee absoluter Erkenntnis zu verwirklichen, in der
reinen Phänomenologie wurzelt, und dies in so ernstem Sinne, daß die systematisch strenge Begründung
und Ausführung dieser ersten aller Philosophien die unabläßliche Vorbedingung ist für jede Metaphysik
und sonstige Philosophie - „die als Wissenschaft wird auftreten können” (Hua III. Ideen zu einer reinen
Phänomenologie und phänomenologischer Philosophie, Erstes Buch, Haag, M. Nijhoff, 1950, p. 5).
22
Ideias III foi dedicado por fim ao tema “ A Fenomenologia e os fundamentos das ciências”.
apenas alguns artigos em revistas estrangeiras. Assim, o hiato explicaria em parte o
suposto abandono da ideia de Filosofia Primeira.
No entanto, o silêncio sobre o tema é quebrado abruptamente, como vimos
acima, logo no início dos anos 20, numa radical retomada do conceito. Husserl publica
em 1921 um artigo em que define a Filosofia Primeira como “Ciência do método em
geral, do conhecimento em geral e de possíveis metas do conhecimento (...) como
mathesis universalissima sobre todas as ciências (...) como uma matemática das
operações cognoscitivas”23. Pouco tempo depois, ele ministra uma série de preleções que
se estendem por duas temporadas de inverno e que recebem em conjunto o título
inesperado de Filosofia Primeira.
Essas preleções vieram atender à necessidade, vista por Husserl no
contexto dos anos 20, de fazer uma introdução histórica da fenomenologia e designá-la,
conforme seu sentido histórico, como uma filosofia do começo absoluto, portanto, como
uma filosofia primeira. Infelizmente, nosso espaço neste artigo não é suficiente para
entrar nos resultados dessa introdução, e deixaremos o assunto para um artigo futuro. O
que importa salientar, enfim, no contexto específico de ILTC e A Ideia da
Fenomenologia, é que a consideração destes dados em conjunto (o emprego da expressão
no primeiro curso e seu quase-emprego no segundo) permite estimar quanto a ideia de
uma ligação fundamental entre fenomenologia, teoria do conhecimento e filosofia
primeira estava presente no espírito do filósofo, ao redigir e ministrar os dois cursos.

2. Distinção entre ciência objetiva e ciência subjetiva

A questão das ciências ocupa na obra de Husserl dois lugares


proeminentes. De acordo com Sacrini (2018, p.15), “a cientificidade se deixa entender
tanto como um tema privilegiado das análises fenomenológicas quanto como uma
característica dessas análises”. Pelo lado do tema, significa que a fenomenologia
tematiza as ciências como seu objeto, do ponto de vista da determinação e da demarcação

23
Wissenschaft von der Methode überhaupt, von der Erkenntnis überhaupt und möglichen Erkenntniszielen
überhaupt (..) Über allen Wissenschaften steht eine Mathesis universalissima (...) als eine Mathematik von
Erkenntnisleistungen. Retiramos esse fragmento de Ludwig Landgrebe (LANDGREBE, Ludwig. Husserls
Abschied vom Cartesianismus. Philosophische Rundschau, Vol. 9, Nº 2/3 (1961) 133-177, p. 137). O
sumário das preleções foi compilado por Landgrebe, que diz sobre História Crítica das Ideias que o volume
alcançou uma grande unidade interna.
daquilo que atribui cientificidade a elas; pelo lado da característica, significa que a
fenomenologia opera como uma ciência de rigor nas suas investigações, tendo a
cientificidade como um de seus elementos constituintes.
Husserl, desse modo, insiste “em afirmar que uma das tarefas distintivas
da fenomenologia é propiciar um tipo especial de fundamentação das ciências”
(SACRINI, 2018, p. 16). Que isso, porém, não nos induza em engano quanto ao teor da
justificação fenomenológica. Deve-se entender por “especial” que se trata aqui de um tipo
de fundamentação que somente a filosofia na atitude fenomenológica pode oferecer,
diferente da fundamentação de caráter epistemológico que o método científico é capaz de
providenciar por si mesmo24.
Como vimos, Husserl diz em ILTC que a teoria do conhecimento “fecha”
o círculo das ciências, ela é uma espécie de chave universal de conclusão do saber
científico. Essa alegação parece problemática; sobretudo, se pensarmos que a ciência é
uma atividade neutra e independente, que delimita de maneira autônoma o seu campo de
estudo e desenvolve seus procedimentos metodológicos conforme a natureza do objeto
em particular pertencente a esse campo. Paradigmas, teorias, instrumentos, objetivos,
método, são definidos conforme a índole do recorte objetivo feito por esta ou por aquela
ciência. A ciência, com efeito, parece não ser condicionada por nada exterior a ela. Poder-
se-ia perguntar, então: o que significa fechar o círculo das ciências? Com que legitimidade
a teoria crítica pode ser chamada uma chave de conclusão do pensamento científico? Que
tipo de avaliação (Auswertung) está em jogo, se o papel da Erkenntniskritik é, de fato,
auxiliar as ciências a avaliar o conhecimento por elas produzido?
Para entender o significado daquela expressão husserliana, é preciso ter
em consideração que avaliar comporta o sentido de explicitar. Conforme nossa
interpretação, explicitar o valor (Wert) de evidência, de conhecimento, que reside no
interior daquilo que é avaliado. A tarefa avaliadora da fenomenologia seria assim a
explicitação dos fundamentos do saber científico. A ação de explicitar, por sua vez,
pressupõe a existência de algo implícito, algo que repousa na obscuridade e que precisa
ser elucidado, isto é, ser trazido à luz, à evidência.
Exatamente “o quê” precisa ser explicitado nas ciências? Para entendê-lo,
chamamos a atenção para um detalhe importante assinalado por Melle: o curso de

24
A fim de distinguir entre fundamentação científica e fundamentação fenomenológica, iremos usar
epistemológica, no caso de uma, e gnosiológica, no caso de outra. A justificativa desse uso será esclarecida
adiante.
Introdução à Lógica e à Teoria do Conhecimento é composto de duas partes
complementares. Na primeira delas, dedicada à lógica, Husserl trata do lado objetivo das
ciências como um sistema de proposições relacionado a estados de coisas. Mas na
segunda parte, dedicada à teoria do conhecimento, Husserl esclarece que as ciências têm
também um lado subjetivo, referente aos atos cognoscitivos do cientista. As teorias
científicas, objetivamente, são operatórias, elas funcionam no sentido de que produzem
satisfatoriamente suas explicações (causa e efeito), suas previsões (determinação do
comportamento possível dos objetos) e seus resultados (técnicas e solução de problemas).
As teorias científicas, subjetivamente, dependem da atividade teórica do cientista, os atos
específicos de conhecer, só que o cientista não sente a necessidade de explicitar esse lado
subjetivo delas. É aí então que entra a fenomenologia, enquanto ciência da avaliação
(Auswertung) explicitadora da subjetividade constituinte.
Encontramos a seguinte definição nos Prolegômenos a uma Lógica Pura,
onde Husserl fala de certas condições ou restrições que são indispensáveis à formulação
das teorias científicas:
Pode-se falar de condições de possibilidade evidentes das teorias em
geral (...) Trata-se de condições a priori das quais dependem a
possibilidade de um conhecimento mediato ou imediato, e, na
sequência, a possibilidade de justificação racional de toda teoria. A
teoria, enquanto fundação do conhecimento, é ela mesma um
conhecimento, e depende, quanto à sua possibilidade, de certas
condições que são fundamentadas, de maneira puramente conceitual,
no conhecimento e na sua relação com o sujeito cognoscente25.

E Husserl (pp. 110-111) esclarece em seguida que essas condições a priori


dividem-se em dois tipos: objetivas e subjetivas:
Condições de início do ponto de vista subjetivo, que são condições
ideais que fincam raiz na forma da subjetividade em geral e na relação
desta aqui com o conhecimento. Nós as chamaremos condições
noéticas. Do ponto de vista objetivo, a expressão de condições de
possibilidade de uma teoria não concerne à teoria enquanto unidade
subjetiva de conhecimento, mas enquanto unidade objetiva, constituída
pelos encadeamentos de causa e efeito, de verdades e de proposições26.

25
In doppelter Hinsicht kann man hier von evidenten “Bedingungen der Möglichkeit” jeder Theorie
überhaupt sprechen. Hier handelt es sich um die apriorischen Bedingungen, von denen die Möglichkeit der
unmittelbaren und mittelbaren Erkenntnis und somit die Möglichkeit der vernünftigen Rechtfertigung jeder
Theorie abhängig ist. Die Theorie als Erkenntnisbegründung ist selbst eine Erkenntnis und hängt ihrer
Möglichkeit nach von gewissen Bedingungen ab, die rein begrifflich in der Erkenntnis und ihrem Verhältnis
zum erkennenden Subjekt gründen. (Hua XVIII, Logische Untersuchungen - Prolegomena zur reinen
Logik, Tübingen, Max Niemeyer, 1968 § 32, pp. 110-111).
26
Fürs erste in subjektiver Hinsicht (…) ideale Bedingungen, die in der Form der Subjektivität überhaupt
und in deren Beziehung zur Erkenntnis wurzeln. Zur Unterscheidung wollen wir von ihnen als von
noetischen Bedingungen sprechen. In objektiver Hinsicht betrifft die Rede von Bedingungen der
Essas condições podem ser entendidas como restrições ou pressupostos,
elas condicionam a produção do saber científico. Por isso mesmo, a tarefa de
fundamentação última da ciência não pode se esgotar no lado objetivo da lógica pura, mas
exige a explicitação sistemática das condições subjetivas do conhecimento teórico, e disso
se ocupará a filosofia fenomenológica. Sacrini (2018, p. 18) salienta a respeito:
Os pressupostos objetivos se referem a restrições formais para a
formulação de teorias significativas e portadoras de teses verdadeiras
acerca de quaisquer domínios temáticos. Eles devem ser sistematizados
por meio de métodos lógico-matemáticos, o que levará ao
desenvolvimento de uma ciência formal fundante de todas as demais
disciplinas científicas, a saber, a lógica pura. Por sua vez, os
pressupostos subjetivos referem-se às restrições de apreensão e
atestação evidente dos conteúdos teóricos pela subjetividade
cognoscente. A descrição das estruturas subjetivas responsáveis pela
atestação do conhecimento (qualquer que seja o seu conteúdo) exige
uma disciplina especial, uma vez que nenhuma ciência, nem mesmo a
lógica pura, preocupa-se em aclarar as condições cognoscentes a priori
pelas quais elas mesmas se exercem. Desde então, Husserl propõe a
fenomenologia como a doutrina filosófica que complementará a lógica
pura na tarefa global de oferecer fundamentação para todo saber
científico.

Vamos fazer agora uma consideração quanto ao vocabulário. É possível


ver na primeira dessas passagens que as condições subjetivas são chamadas de noéticas
nos Prolegômenos. Husserl introduz no capítulo quatro de ILTC, intitulado “Noética
como teoria de justificação do conhecimento”27, o nome da disciplina científica
especificamente designada para o estudo de tais condições: a Noética. No § 27, ele chama
as condições noéticas de tomadas de posição intelectivas (intellektiven Stellungnahmen).
Husserl aponta a necessidade de existir uma nova disciplina que se ocupe da explicitação
fenomenológica dessas tomadas de posição. Essa disciplina se concentrará em todas as
ciências igualmente, investigará todos os atos cognoscitivos que exigem justificação.
A Noética, que deve compor uma parte central do projeto fenomenológico,
é a ciência subjetiva da fundamentação, ao passo que a lógica pura é a ciência objetiva da
justificação epistemológica, que opera numa consideração formal universal e que merece
por isso o título de Mathesis Universalis. Husserl compara as duas ciências, inclusive, a
partir da terminologia legada pela tradição. Assim como o termo “lógica” é o mais

Möglichkeit jeder Theorie nicht die Theorie als subjektive Einheit von Erkenntnissen, sondern Theorie als
eine objektive, durch Verhältnisse von Grund und Folge verknüpfte Einheit von Wahrheiten bzw. Sätzen.
(idem, § 32, pp. 110-111)
27
Die Noetik als Rechtslehre der Erkenntnis.
adequado para designar aquela Mathesis, na medida em que significa a teoria dos λόγoις,
a saber, a teoria dos significados em universalidade formal, assim Husserl deseja se referir
à nova disciplina como “teoria das normas do conhecimento ou, melhor ainda, como
Noética (...) como ciência que investiga os atos cognoscitivos (ou seja, as posições
intelectivas por essência, que reivindicam sua legitimidade) 28.
Um pouco antes, Husserl deixa claro qual é a ocasião precisa em que a
Noética deve entrar em cena, cumprindo a função de complementar a lógica a partir da
evidenciação dos atos: nos processos lógicos de combinar, ordenar, tirar conclusões
válidas de premissas dadas, quando “o mero sentido e a evidência vívida de seu
tratamento lógico-formal não são suficientes, a atenção deve ser constantemente chamada
para os diversos atos subjetivos”29.
Aqui deve ser assinalado algo importante. Com os termos em destaque,
Husserl estava a caminho de estabelecer o quadro conceitual que ele iria empregar na
descrição das estruturas da consciência pura, feita em Ideias I: a estrutura noético-
noemática. Outra coisa que é importante notar é o pé que o filósofo mantém nos conceitos
tradicionais, valendo-se de seu significado histórico. Noética remete ao étimo grego Noûs
(νοῦς), que costuma ser traduzido em língua moderna como inteligência, intuição, ou seja,
a parte da mente voltada para o conhecimento imediato dos princípios. Podemos extrair
daí duas conclusões. Em primeiro lugar, que o estudo das condições noéticas é feito em
regime intuitivo, com o objetivo de apreender imediatamente a forma essencial da
subjetividade (suas operações cognoscitivas estruturadas a priori), e submetê-la a uma
descrição eidética, isto é, baseada na sua essência. Em segundo lugar, que
Erkenntniskritik sai melhor traduzido em português como crítica gnosiológica, e não
crítica epistemológica, visto que gnosiológico remete ao verbo gignosko (γιγνώσκω),
conhecer, que está ligado etimologicamente ao Noûs, e refere-se ao conhecimento
imediato, intuitivo.

28
Der Name Logk paßt dabei mehr für diese Mathesis. Denn er besagt die Lehre von den λόγoις, also von
den Bedeutungen (da die Wortlaute natürliche außerwesentlich sind). Die Lehre von den Bedeutung in
formaler Allgemeinheit und den da erwashsenden formal-mathematischen Disziplinen ist aber jene
Mathesis (…) die neue Disziplin aber als Normenlehre der Erkenntnis, oder auch besser noch als Noetik
bezeichnen (…) als eine Wissenschaft, die aus rein wissenschaftlichen Interesse die Erkenntnisakte, d.i.,
die ihrer Natur nach Rechtanspruch erhebenden intellektiven Stellungnahmen, der Reihe nach erforscht.
(Hua XXIV, Einleitung in die Logik und Erkenntnistheorie, Vorlesungen 1906/07 § 27, pp. 133-134).
29
In diesem Verfahren aber, wo nicht der bloße Sinn und die in seiner formallogischen Behandlung
lebendige Evidenz genügt, muß beständig auf die mannigfaltigen subjektiven Akte geachtet werden.( idem,
§ 27, pp. 129)
É por ser uma gnosiologia que a fenomenologia, enquanto teoria do
conhecimento, distingue-se das ciências que só operam objetivamente. A fundamentação
que estas últimas ciências fornecem a si mesmas é epistemológica, efetuada através da
lógica, dos processos de verificação, experimentação, etc. A fundamentação que a
fenomenologia oferece, por sua vez, é baseada na redução do objetivo ao absolutamente
subjetivo e na descrição noético-eidética dos atos cognoscitivos que respondem pela
atestação evidente do conhecimento na esfera imanente da subjetividade.

3. A teoria do conhecimento como Filosofia Primeira

O capítulo cinco de ILTC, em que a teoria do conhecimento é designada


uma “Filosofia Primeira”, inclui os parágrafos 31 até 35. Husserl se ocupa no § 31 do
estatuto da teoria do conhecimento em face das disciplinas lógicas e das ciências naturais.
O capítulo se desdobra na questão da necessidade de uma avaliação crítico-gnosiológica
da matemática, na distinção entre lógica matemática e lógica filosófica, e entre ciência
natural e filosofia.
Husserl ilustra a diferença entre fundamentação fenomenológica e
científica ao tratar da avaliação crítico-gnosiológica da matemática. Esta avaliação não
tem de prestar contas ao conhecimento matemático considerado enquanto tal, no seu
conteúdo objetivo. Ela se volta para o lado subjetivo desse conteúdo. Por que essa
avaliação é necessária? Husserl recorda que o matemático é um exímio construtor de
teorias dedutivas e domina a técnica da demonstração científica como ninguém. Isso faz
com que a matemática se desenvolva de modo tão rigoroso que ela se torna um arquétipo
ou exemplar para todas as outras ciências. Mas no que diz respeito aos fundamentos
noéticos dessa ciência, os matemáticos pouco têm a dizer, e o que dizem o mais das vezes
é ambíguo e obscuro.
Os conceitos matemáticos encontram-se por isso num estado de
imperfeição e de insuficiente claridade. Em outras palavras, a clareza que o matemático
tem de seus conceitos e métodos é uma obviedade (Selbsverständlichkeit), uma clareza
suficiente para alcançar os resultados esperados e satisfazer os interesses técnicos que ele
engajou em seus cálculos e operações. Mas, do ponto de vista filosófico, que pergunta
pelo fundamento último, e que exige evidência e não uma mera obviedade, essa clareza
não satisfaz. A matemática acha-se numa situação semelhante às ciências naturais, ela
carece de claridade final (letzte Klarheit) porque se mostra uma ciência mais técnica do
que filosófica, quer dizer: os matemáticos operam como técnicos ou projetistas que
constroem suas máquinas, e “o grau de sua inteligibilidade, estabilidade e
determinabilidade depende dos respectivos interesses técnico-matemáticos”30.
É claro que o matemático, quando opera em seu elemento teórico, sabe
muito bem o que significa o número, a adição, a subtração, etc. Mas para Husserl esse
saber não é perfeitamente claro, é uma quase-claridade:
Essa quase-claridade é certa o bastante para o estabelecimento de
axiomas e teorias, mas não é suficiente para os propósitos de uma
avaliação final da matemática em relação às suas operações de
conhecimento. Assim que voltamos nosso interesse para o conteúdo e
para a origem do conceito de número, e (perguntamos) pelo sentido da
objetividade numérica, isto que torna a aritmética inteligível, achamo-
nos bem em dificuldades31.

Para levar esse “quase” à perfeição da evidência, que consiste no


esclarecimento fenomenológico da obviedade natural, compete à Noética explicitar
aquelas operações de conhecimento numa análise pura de essência. Aqui Husserl volta a
um tema já expressamente discutido nas Investigações Lógicas, no § 4, em que ele fala
da imperfeição teórica das ciências particulares (Die theoretische Unvollkommenheit der
Einzelwissenschaften):
Mesmo o matemático, o físico e o astrônomo não necessitam, para
conduzir suas operações científicas mais significativas, da visão
evidente [Einsicht] dos últimos fundamentos de sua atividade, e embora
os resultados obtidos possuam para eles e para outros a força de um
convencimento racional, eles não podem pretender ter provado no geral
as premissas últimas de suas conclusões e dos princípios sobre os quais
repousa a validade de seus métodos. A isso se refere o estado de
imperfeição de todas as ciências. Não mencionamos aqui a mera
incompletude nas quais elas investigam as verdades de seu domínio,
mas a falta de clareza interna e racionalidade, que se deve exigir
independentemente da expansão da ciência32.

30
Der Grad ihrer Eindeutigkeit, Festigkeit und Bestimmtheit hängt vom technisch-mathematischen
Interesse ab. (idem, p. 158).
31
Jene quasi-Klarheit reicht hin für die Installierung der Axiome und Theorien, nicht reicht sie aber hin zu
Zwecken einer endgültigen Wertung der Mathematik hinsichtlich ihrer Erkenntnisleistung. Sowie wir unser
Interesse auf den Inhalt und Ursprung des Zahlbegriffs richten und nach dem letzten Sinn der Objektivität
(fragen), die die Arithmetik durch ihn erkenntnismäßig beherrscht, geraten wir in Schwierigkeiten (idem,
p. 159).
32
Selbst der Mathematiker,Physiker und Astronom bedarf zur Durchführung auch der bedeutendsten
wissenschaftlichen Leistungen nicht der Einsicht in die letzten Gründe seines Tuns, und obschon die
gewonnenen Ergebnisse für ihn und andere die Kraft vernünftiger Überzeugung besitzen, so kann er doch
nicht den Anspruch erheben, überall die letzten Prämissen seiner Schlüsse nachgewiesen und die
Prinzipien, auf denen die Triftigkeit seiner Methoden beruht, erforscht zu haben. Damit aber hängt der
unvollkommene Zustand aller Wissenschaften zusammen. Wir meinen hier nicht die bloße
Unvollständigkeit, mit der sie die Wahrheiten ihres Gebietes erforschen, sondern den Mangel an innerer
Klarheit und Rationalität, die wir unabhängig von der Ausbreitung der Wissenschaft fordern müssen. (Hua
Husserl acrescenta a isso no § 71 que a função do filósofo é menos
construir teorias do que questionar qual é a essência da teoria, o que torna possível a teoria
em geral. Se os cientistas trabalham como técnicos engenhosos, montadores de sistemas
dedutivos, sem precisarem de possuir nessa construção uma visão evidente última da
essência do teórico em geral, o filósofo se incumbe de completar a ciência explicitando o
elemento que falta para que a fundamentação do conhecimento científico seja evidente e
absolutamente firme.
Voltando a ILTC, no mesmo § 31, Husserl estabelece nos termos acima
descritos a diferença entre lógica matemática e lógica filosófica, entre filosofia e ciências
da natureza, e mostra como a filosofia se estabelece acima de todas as demais ciências33.
Ela o faz, sob a condição de não tomar nenhum conhecimento como dado, como
pressuposto, e através de uma orientação de pensamento completamente antinatural, que
lhe é proporcionada pela redução fenomenológica.
E depois que a tarefa filosófica é determinada assim em sua pureza, emerge
a Filosofia Primeira no sentido autêntico, que quer dizer o mesmo que crítica da razão
teórica, ou “Teoria do Conhecimento”.
A Filosofia Primeira está igualmente relacionada a todos os campos do
conhecimento e a todas as teorias e ciências naturais a serem aí
estabelecidas. Ela é a ciência dos princípios, nomeadamente, a ciência
do esclarecimento último, da conclusão última, todos entendidos no
sentido da universalidade principial. Ela não intervém em campo algum
do conhecimento, mas mesmo assim diz respeito à sua “crítica”, ao
esclarecimento do seu sentido (...) não prova individualmente os
conceitos básicos, princípios e teorias presentes na ciência atual, ela não
executa in concreto, por assim dizer, o passo a passo do necessário
esclarecimento e da determinação final do sentido. Mas, em exaustiva
universalidade, ela fornece tudo o que torna essa realização possível. E
ela ganha essa universalidade exaustiva com base em uma exposição
completa e em um esclarecimento crítico-gnosiológico de todas as
“formas de pensamento” (...)34.

XVIII, Logische Untersuchungen - Prolegomena zur reinen Logik, Tübingen, Max Niemeyer, 1968 § 4, p.
10).
33
Über allen natürlichen Wissenschaften baut sich nun die Philosophie (Hua XXIV, Einleitung in die Logik
und Erkenntnistheorie, Vorlesungen 1906/07, § 31, pp. 164-165).
34
Erste Philosophie, in gleicher Weise auf alle Erkenntnisgebiete und alle in ihnen zu etablierenden
natürlichen Theorien und Wissenschaften bezogen ist. Sie ist Wissenschaft von der Prinzipien, nämlich
Wissenschaft der letzten Aufklärung, der letzten Erledigung, all das im Sinn prinzipieller Allgemeinheit
verstanden. Sie greift nirgends hinein und doch betrifft ihre "Kritik", ihre Sinnesklärung (…) prüft nicht
einzelweise die in den aktuellen Wissenschaft vorliegenden Grundbegriffe, Grundsätze, Theorien, und übt
an ihnen sozusagen in concreto Schritt für Schritt die notwendige Aufklärung und letzlerledigenge
Sinnesbestimmung. Aber sie gibt in erschöpfender Allgemeinheit alles an die Hand, was diese Leistung
O § 32, por sua vez, é dedicado ao problema da relação entre Teoria do
Conhecimento e Psicologia. Como vimos, Melle considera esse problema o mais decisivo
para a teoria do conhecimento. O capítulo se desdobra nos seguintes problemas: o
conhecimento como um fato subjetivo; a exigência de clareza reflexiva final sobre a
relação entre idealidade e objetividade e subjetividade; e a possibilidade de uma teoria do
conhecimento não-psicológica.
Husserl busca mostrar que a fenomenologia não fala de modo algum em
estados dos seres animais; que quando ela fala de percepções, juízos, sentimentos, etc., o
faz em pura consideração de essência, e toma percepções e juízos como tais, na sua
estrutura eidética, daquilo que lhes convém a priori, numa generalidade incondicional,
baseada na intuição das essências. A fenomenologia procede de maneira totalmente
análoga à aritmética pura e à geometria pura, que, fundamentando-se na intuição, tratam
respectivamente dos números e das figuras espaciais numa generalidade ideativa.
Portanto, não é a psicologia, mas sim a fenomenologia que é o fundamento das
elucidações lógicas puras (bem como de todas as elucidações da crítica da razão). E, nesse
sentido, convém acrescentar que a própria psicologia recebe seu fundamento da teoria do
conhecimento fenomenológica.
Mas é o parágrafo § 33, em que Husserl se ocupa do ceticismo
gnosiológico, o fragmento de ILTC que mais aproxima a ideia de Filosofia Primeira como
Teoria do Conhecimento com a ideia de Filosofia Primeira desenvolvida mais tarde, como
história crítica das ideias. Husserl irá nesse parágrafo falar de um sentido histórico do
ceticismo e de sua função teleológica na história da filosofia. Primeiro, ele mostra que há
diferentes tipos de ceticismo. A primeira forma de ceticismo que surge na história é o
dogmático, que aparece com os sofistas. Este é descrito como expressão da falta de
clareza sobre o sentido e a possibilidade da ciência objetiva. A crítica cética surge assim
como tomada de posição crítico-gnosiológica.
O que foi propriamente expresso na forma de tais teorias, o que
propriamente estava escondido por trás delas, não foi tanto a séria
negação do conhecimento em geral ou as sérias dúvidas sobre a
validade do conhecimento em geral, mas a falta de clareza sobre o

jeweils ermöglicht. Und sie gewinnt diese erschöpfende Allgemeinheit auf Grund einer vollständigen
Herausstellung und erkenntniskritischen Klärung aller “Denkformen” (…). (idem, § 31, p. 166).
sentido e a possibilidade do conhecimento em relação à sua validade
objetiva e à sua realização35.

Mas Husserl recorda que há absurdos e contrassensos insuperáveis na


argumentação dos sofistas. Em primeiro lugar, uma contradição existencial, pois os
sofistas agem racionalmente na vida prática, distinguindo entre verdade e erro, e
assumindo desse modo as mesmas crenças que negam em sua argumentação. Em segundo
lugar, uma contradição lógica, pois o sofista cético
(...) tenta contestar e provar como sendo impossível o que ele próprio
pressupõe teoricamente; ou, pelo menos, ele comete o absurdo de negar
precisamente as condições essenciais de possibilidade das teorias com
as quais ele mesmo forma suas argumentações céticas36.

O segundo modo de ceticismo é o gnosiológico, que se desenvolve


teleologicamente a partir do dogmático. Esse ceticismo aparece como pré-requisito
metodológico para uma teoria do conhecimento autêntico, que consiste numa filosofia do
começo. Husserl esclarece que o momento crítico estava desde o início em embrião no
dogmatismo cético, e que só esperava ser trazido à luz pelo desenvolvimento posterior da
filosofia:
Nós percebemos a função teleológica desse ceticismo dogmático na
história da filosofia como preparação para o ceticismo crítico, ou seja,
o ceticismo que constitui o necessário começo da teoria do
conhecimento e que determina seu fundamento. Em todo ceticismo
dogmático, o momento crítico está implícito (isso é dizer muito), mas
trata-se de um momento que não chegou ainda à pureza do
esclarecimento. Em contraste com o ceticismo dogmático, o crítico não
é uma teoria, mas uma tomada de posição e um método37.

E essa mesma reflexão sobre a teleologia das ideias filosóficas é levada


por Husserl até a consideração cartesiana fundamental, na modernidade, que encontra no

35
Was in Form solcher Theorien eigentlich zum Ausdruck kam, was sich hinter diesen Theorien eigentlich
versteckte, war nicht so sehr die ernstliche Negation von Erkenntnis überhaupt oder der ernstliche Zweifel
an der Erkenntnisgeltung überhaupt, sondern die Unklarheit über Sinn und Möglichkeit der Erkenntnis
hinsichtlich ihrer objektiven geltung und Leistung. (idem, § 33, p. 180).
36
daß sie im Inhalt ihrer Theorien das zu bestreiten und als unmöglich zu erweisen suchen, was sie selbst
als Theorien voraussetzen; oder mindestens dies: Sie begehen den Widersinn, wesentliche Bedingungen
der Möglichkeit gerade solcher Theorien zu bestreiten, als welche sie sich selbst skeptisch argumentierend
ausbilden. (idem, § 33, p. 183).
37
Die teleologische Funktion dieser dogmatischen Skepsis in der Geschichte der Philosophie sehen wir
aber darin, die kritische Skepsis, d. h. diejenige, die den notwendigen Anfang der Erkenntnistheorie
ausmacht und ihren Boden bestimmt, vorzubereiten. In aller dogmatischen Skepsis ist die kritische ein
impliziertes (das ist zu viel gesagt), aber sich nicht zur Reinheit abklärendes Moment. Im Gegensatz zur
dogmatischen Skepsis ist die kritische keine Theorie, sondern eine Stellungnahme und eine Methode.
(idem, § 33, p. 180).
ceticismo gnosiológico o método fundamental da teoria do conhecimento. Husserl ocupa-
se dessa questão nos § 34 e 35.
No § 34, a redução fenomenológica é apresentada como eliminação de toda
percepção empírica e toda crença na transcendência. Husserl distingue ainda entre
psicologia e fenomenologia, e o capítulo é comandado pela questão sobre como a teoria
do conhecimento pode se desenvolver como disciplina científica em uma série de
descobertas progressivas, sem cair no desaprovado psicologismo. Husserl considera que
o núcleo da consideração cartesiana da dúvida pode ajudá-lo nisso, e busca mostrar que
a evidência da cogitatio não é a evidência de um fato natural.
No § 35, por sua vez, ele ainda trata da questão do método. Após apresentar
a epoché como eliminação de todos pressupostos de conhecimento, Husserl pergunta se
a teoria do conhecimento é ainda possível após a epoché ter sido efetuada. Ele busca
mostrar que a teoria do conhecimento não opera no vazio, ela não cai no círculo vicioso
em que se vê enredado o ceticismo dogmático. Se a teoria do conhecimento dependesse
de outra teoria do conhecimento para ser constituída, ela incidiria numa regressão ad
infinitum, sem nunca ter de onde começar, e ver-se-ia presa do absurdo cético.
Mas a crítica do conhecimento deve encontrar na consideração cartesiana
fundamental sobre o ego a possibilidade de uma absoluta autorreferencialidade no eu que
pensa, e que põe ele mesmo o conhecimento em questão através da epoché. Ele descobre
assim que o mundo dos fenômenos é uma esfera absoluta de dados indubitáveis. O ego
que descobre nessa consideração que não pode duvidar de si mesmo, e que torna sem
sentido duvidar de si mesmo, surge como o alicerce firme e estável sobre o qual pode ser
estabelecida uma teoria do conhecimento que opera na pura imanência e na evidência das
cogitationes que pertencem a esse ego e que se revestem igualmente de sua
indubitabilidade.
Assim, a visão fundamental cartesiana fornece o campo indubitável dos
fenômenos (Die Cartesianische Fundamentalbetrachtung gibt das zweifellose Gebiet:
das der Phänomene), e a investigação passa a se mover na esfera da subjetividade, na
esfera na esfera da intuição que a torna evidente, da consciência intuitiva (Die ganze
Untersuchung bewegt sich also in der Sphäre der Subjektivität, in der Sphäre
evidentmachender Anschauung, des Intuitiven Bewußtsein). Aqui reside o verdadeiro
ponto arquimediano da filosofia (Aber hier liegt der wahrhaft archimedische Punkt der
Philosophie). Na consideração fundamental cartesiana, o πρότερος πρός ἡμας (primeiro
em relação a nós) é a consciência natural. Mas a teoria do conhecimento deve, e ela é a
primeira para isso, nos elevar dessa consciência natural até a consciência filosófica, da
consciência empírica até a fenomenológica38.

Referências:

HUSSERL, E. Die Idee der Phänomenologie, Haag, M. Nijhoff, Husserliana, Bd. II,
1973.

___________. Einleitung in die Logik und Erkenntnistheorie. Vorlesungen. Haag, M.


Nijhoff, Husserliana, Bd. XXIV, 1984.

____________. Erste Philosophie, Erster Teil, Haag, M. Nijhoff, Husserliana, Bd. VII,
1956.

____________. Ideen zu einer reinen Phänomenologie und phänomenologischer


Philosophie, Erstes Buch, Haag, M. Nijhoff, Husserliana, Bd. III, 1950.

____________. Logische Untersuchungen - Prolegomena zur reinen Logik, Tübingen,


Max Niemeyer, 1968.

SACRINI, Marcus. A cientificidade na Fenomenologia de Husserl. São Paulo: Edições


Loyola, 2018.

38
Das πρότερος πρός ἡμας ist das natürliche Bewußtsein. Vom natürlichen Bewußtsein muß uns die
Erkenntnistheorie, und das ist ihr erstes, zum philosophischen Bewußtsein, vom empirischen zum
phänomenologischen erheben. (idem, § 35, p. 212).

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