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Angela Paiva Dionisio

(organização)

Série Experimentando Teorias


em Linguagens Diversas

Multimodalidades e Leituras
Funcionamento cognitivo, recursos semióticos,
convenções visuais
Angela Paiva Dionisio I Leila Janot de Vasconcelos I Maria Medianeira de Souza

Pipa Comunicação
Recife - 2014
O trabalho Série Experimentando Teorias em Linguagens Diversas de Angela Paiva Dionisio, Pibid Letras
UFPE e Pipa Comunicação foi licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-
SemDerivados 3.0 Não Adaptada.
Com base no trabalho disponível em http://www.pibidletras.com.br.
Podem estar disponíveis autorizações adicionais ao âmbito desta licença em http://www.pibidletras.com.br.

Imagem da Capa
Relicário 6. Série Relicários de Sebastião Pedrosa. 1998. Fotografia de Fred Jordão (Imago).
Gentilmente cedida para a Série Experimentando Teorias em Linguagens Diversas.

CaPa, Projeto Gráfico e DIAGRAMAçÃO


Karla Vidal e Augusto Noronha (Pipa Comunicação - www.pipacomunica.com.br)

EQUIPE PIBID LETRAS UFPE


Ágnes Christiane de Souza João Alberto Barbosa de Gusmão
Anne Caroline Araújo de Lima Juliana Serafim dos Santos
Andréa Silva Moraes Larissa Ribeiro Didier
Angela Paiva Dionisio Lucille Maia Batista
Bibiana Terra Soares Cavalcanti Leila Janot de Vasconcelos
Cássia Fernanda de Oliveira Costa Maria de Lourdes Cavalcante Chaves
Daniella Duarte Ferraz Maria Eduarda Souza Gonçalves
Débora Xavier Lavarene Sampaio Maria Medianeira de Souza
Elilson Gomes do Nascimento Mariana Bandeira Alves Ferreira
Felipe de Oliveira Bezerra Raquel Lima Nogueira
Getulio Ferreira dos Santos Renata Maria da Silva Fernandes
Hellayne Santiago de Azevedo Saulo Batista de Souza

Catalogação na publicação (CIP)


Ficha catalográfica produzida pelo editor executivo

D592

Dionisio, Angela Paiva.


Multimodalidades e leituras: funcionamento cognitivo, recursos semióticos, convenções
visuais / Angela Paiva Dionisio [org.]. - Recife: Pipa Comunicação, 2014.
80p. : Il.. (Série experimentando teorias em linguagens diversas)

Inclui bibliografia.
ISBN 978-85-66530-28-5

1. Língua Portuguesa. 2. Linguística. 3. Multimodalidade.


4. Leituras. I. Título.

410 CDD
81 CDU
c.pc:01/14ajns
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

REITORIA
Anísio Brasileiro de Freitas Dourado

PRÓ-REITORIA PARA ASSUNTOS ACADÊMICOS


Ana Maria Santos Cabral

COORDENAÇÃO INSTITUCIONAL DO PIBID - UFPE


Sérgio Ricardo Vieira Ramos

COORDENAÇÃO PEDAGÓGICA DO PIBID - UFPE


Eleta Freire

CHEFIA DO DEPARTAMENTO DE LETRAS


José Alberto Miranda Poza

COORDENAÇÃO DO SUBPROJETO PIBID LETRAS - UFPE


Angela Paiva Dionisio

GRADUANDOS PIBID LETRAS


Ágnes Christiane de Souza, Anne Caroline Araújo de Lima,
Bibiana Terra Soares Cavalcanti, Cássia Fernanda de Oliveira
Costa, Daniella Duarte Ferraz, Elilson Gomes do Nascimento,
Hellayne Santiago de Azevedo, Felipe de Oliveira Bezerra,
Getúlio Ferreira dos Santos, Juliana Serafim dos Santos, Larissa
Ribeiro Didier, Lucille Maia Batista, Maria Eduarda Souza
Gonçalves, Maria de Lourdes Cavalcante Chaves, Mariana
Bandeira Alves Ferreira, Raquel Lima Nogueira, Renata Maria da
Silva Fernandes

SUPERVISORES PIBID LETRAS


Débora Xavier Lavarene Sampaio (Escola Professor Leal de Barros)
Saulo Batista de Souza (Escola Senador Novaes Filho)

COLABORADORES PIBID LETRAS


Andréa Silva Moraes (Mestrado PG Letras-UFPE, NIG – UFPE)
Leila Janot de Vasconcelos (Neuropsicóloga, NIG – UFPE)
Maria Medianeira de Souza (Professora Departamento de
Letras, NIG – UFPE)
Volume 1

Multimodalidades e Leituras:
funcionamento cognitivo, recursos semióticos,
convenções visuais

Paris. ilustração de Karla Vidal


Sumário
09 APRESENTAÇÃO
Multimodalidades, leituras e três histórias que se
cruzam: uma apresentação

13 INTRODUÇÃO

19 Capítulo 1
Linguagens, Funcionamento Cognitivo e Leitura
23 Funcionamento neuropsicológico e aprendizagem
32 Linguagem, língua e leitura

41 Capítulo 2
Multimodalidade, Convenções Visuais e Leitura
43 Multimodalidades, multiletramentos: situando conceitos
50 Historiando (um pouco) os estudos multimodais
64 Convenções visuais e leitura

71 Considerações finais
Multimodalidades, leituras e
três histórias que se cruzam:
uma apresentação

Universidade Federal de Pernambuco, final dos


anos 1990, começo dos anos 2000. Apesar de frequen-
tarmos turmas diferentes, vivenciávamos uma realida-
de bastante parecida. Éramos três alunos recém-chega-
dos ao curso de Letras, cheios de planos e expectativas,
mas ainda sem muita noção concreta do que nos aguar-
dava. Será que iríamos aprofundar nossos conhecimen-
tos de análise sintática? Destrinchar ainda mais as clas-
ses morfológicas? Quem sabe praticar a conjugação de
verbos exóticos? Mal sabíamos naquela época o quão
distantes esses questionamentos estavam do percurso
que acabamos efetivamente trilhando em nossas vidas
acadêmicas.
A guinada para encontrarmos o caminho que de
fato desejávamos percorrer não se deu, é certo, de uma
hora para outra. Assim como tantos alunos – e mesmo
alguns professores – do curso de Letras, estávamos acos-
tumados a pensar o nosso objeto analítico como sendo
estritamente o texto verbal, a partir do qual seriam pro-
duzidos estudos fonéticos, lexicais, morfossintáticos
e, quando muito, semântico-pragmáticos. Ilustrações,
fotos e gráficos, aliados a recursos de composição e im-
pressão, como tipo de papel, cor, diagramação, etc. – to-
dos esses elementos essenciais à compreensão do texto
eram então tidos como meros adornos, passíveis só de
comentários pontuais e ‘a título de curiosidade’.

9
Apresentação

É claro que, naquele momento, não era sequer


discutida a noção de multimodalidade. Contudo, An-
gela Dionisio – na época, nossa professora de Língua
Portuguesa –, com sua postura inovadora e de impor-
tância fundamental para a referida ‘virada’ em nos-
so percurso acadêmico, já apresentava, em um livro
discutido em sala, questões como: “a leitura se realiza
a partir do diálogo do leitor com o objeto lido – seja
escrito, sonoro, seja um gesto, uma imagem, um acon-
tecimento” (Martins, 1997, p.33).
No cenário atual, já se pode observar um terreno
fértil para as discussões em torno desse tema, o que
vem motivando cada vez mais pesquisadores a enve-
redarem por essa seara e contribuírem para a reflexão
desse complexo processo de construção de sentidos
que é a leitura. É o caso de Medianeira de Souza, que,
da posição de orientanda de Angela, passou a também
orientar trabalhos nessa área, pontuando a importân-
cia da gramática sistêmico-funcional hallidayana para
os estudos multimodais.
Além disso, como não poderia deixar de ser, essa
nova agenda estimula a reflexão sobre o papel da es-
cola nesse processo, de como o ensino da leitura passa
a se configurar e de como se dá o processamento cog-
nitivo de textos salientemente multimodais. É nesse
sentido que o diálogo com áreas de conhecimento
afins se torna ainda mais necessário, sendo de grande
importância reflexões como as da neuropsicóloga Lei-
la Janot de Vasconcelos.
Por tudo isso, Multimodalidades e Leituras: Fun-
cionamento cognitivo, recursos semióticos, conven-
ções visuais, escrita por Angela Dionisio, Leila Janot

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Multimodalidades e Leituras

de Vasconcelos e Medianeira de Souza, mais do que


oportuna para os dias de hoje, é uma obra indispen-
sável para todos os linguistas, analistas do discurso,
professores e estudantes que lidam no seu cotidiano
com textos dos mais variados gêneros, apresentando
modos semióticos cada vez mais complexos, interati-
vos e sofisticados.
No Capítulo 1. Linguagens, Funcionamento
Cognitivo e Leitura, as autoras tomam como pon-
to de partida o filme À primeira vista, para discutir
a relação entre o funcionamento neuropsicológico e
a aprendizagem. As pesquisadoras defendem que o
professor, numa situação de aprendizagem, ao lan-
çar mão de recursos semióticos para a construção de
gêneros textuais em usos didáticos, tem que conside-
rar fatores como o funcionamento neuropsicológico
do aprendiz, bem como as funções neuropsicológicas
subjacentes e envolvidas nesse contexto específico. Ao
longo do capítulo, procura-se compreender então que
fatores são passíveis de serem concebidos como facili-
tadores do processo de construção de uma aprendiza-
gem significativa.
No Capítulo 2. Multimodalidade, Conven-
ções Visuais e Leitura, as estudiosas, dando con-
tinuidade à reflexão sobre leitura e aprendizagem,
salientam a importância do desenvolvimento de mul-
tiletramentos, dado o caráter multimodal dos textos.
Em razão disso, as autoras discutem essa intrínseca
relação entre multiletramentos e multimodalidade,
situando esses conceitos e apresentando um breve
percurso histórico dos estudos multimodais, o que é
realizado também por meio de análises de textos de

11
Apresentação

configurações diversas. É discutida, ainda, a impor-


tância das convenções visuais como elementos que
atuam diretamente na organização social das comuni-
dades e, consequentemente, dos gêneros textuais por
elas produzidos. O domínio desses códigos convencio-
nais é apresentado, portanto, como um dos aprendiza-
dos a serem desenvolvidos em contexto escolar, contri-
buindo para que os estudantes compreendam textos
produzidos a partir de múltiplas linguagens.
Dessa forma, Multimodalidades e Leituras tem o
mérito de discutir, de modo conciso e objetivo, alguns
dos principais temas relacionados às práticas de leitu-
ra de textos multissemióticos – um assunto que ainda
necessita ser bastante difundido, sobretudo entre o pú-
blico brasileiro.
Por fim, não podemos deixar de concluir a nossa
narrativa inicial acerca do nosso percurso acadêmico.
Bom, hoje nós três somos (quase) todos doutores –
Nadiana está em vias de conclusão do curso – e todos
trabalhamos com multimodalidade. O convite para
fazermos esta Apresentação, além de ser uma hon-
ra, celebra nossa caminhada por essa área, agora com
passos mais firmes de profissionais realizados, e anun-
cia novos meandros por percorrer, ainda como jovens
cheios de planos e expectativas.

Recife, dezembro/2013
Leonardo Mozdzenski,
Paloma Borba e Nadiana Lima

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
MARTINS, Maria Helena. O que é leitura. 3.ed. São Paulo, Bra-
siliense, 1997.

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Introdução


“Quando crianças, nossos primeiros livros tinham
muitas figuras e pouquíssimas palavras, por ser
‘mais fácil’ assim. À medida que crescemos, fo-
mos lendo livros com muito mais texto. Figuras,
só ocasionais... até que, finalmente, chegamos aos
livros ‘de verdade’... aqueles sem figura alguma.”
(McCloud, 2005:140, grifos do autor).

Esta citação descreve uma postura tradicional que permeou, por


muito tempo, a prática de leitura em nossa sociedade (será que não
encontramos ainda em alguns contextos este julgamento?), ao mesmo
tempo em que deixa transparecer conceitos essenciais relacionados às
atividades de leitura como recursos semióticos, multimodalidade, desen-
volvimento cognitivo etc.
Na citação de McCloud, a relação palavra–figura atrela a formação
do hábito de ler ao desenvolvimento cognitivo. Se situássemos esta re-
lação numa linha do tempo de desenvolvimento escolar, teríamos como
ponto de partida, os alunos do ensino fundamental, nas séries iniciais,
ou seja, aqueles leitores para quem ‘as figurinhas’ devem se fazer presen-

13
Introdução

tes ao lado das palavras, ou devem até prevalecer na constituição dos tex-
tos, pois facilitam a leitura. Já na outra extremidade, local onde devem
estar os adultos, os graduandos na academia, a ausência ‘das figurinhas’ é
quase obrigatória nos textos, pois revela a “maturidade” do leitor. Livros
sem imagens são, então, ‘os livros de verdade’; consequentemente, leito-
res ‘de verdade’ são aqueles que são capazes de lê-los. Ora se tal crença
ainda norteasse nossa postura metodológica, se tal crença fosse verdade,
teríamos que, no mínimo, ao nos tornarmos adultos com a pretensão
de sermos aceitos como leitores proficientes, renunciarmos aos avanços
tecnológicos e aos textos produzidos pelas mídias tecnológicas.
Ainda seguindo nesta nossa linha do tempo, entre as duas extremi-
dades, que são livros para crianças (com imagens) e livros para adultos
(sem imagens), estariam os jovens, ou seja, os alunos regulares do ensino
médio. Como deveriam ser, então, os livros para eles? Qual seria a quan-
tidade ideal de palavras e imagens em textos para tais leitores? Como
aferir quantidade de palavras e imagens no processamento textual? Ali-
ás, isto é possível? Talvez a pergunta mais pertinente e adequada aqui
seja: quais as orientações para compor um texto em que haja palavras e
imagens? Não há uma resposta única, visto que a relação palavra–ima-
gem não é tão simples. Precisamos, inicialmente, decidir de que ângulo
iremos olhar para esta relação e com que finalidade.
Se estamos nos reportando às imagens em livros de literatura, temos
que avaliar, por exemplo, a relação da imagem com o gênero (é um livro
de narrativas? é um livro de poemas? é um livro de adivinhas?), qual a
função das imagens na construção do livro? Se o livro é de natureza didá-
tica, devemos ter uma noção clara das convenções das linguagens, dentre
elas a fotografia, o desenho, as linhas, para ciências como a Biologia, a
Matemática, a História, a Química etc. Observar a cumplicidade entre
gênero textual, linguagens e áreas do conhecimento é fundamental, visto
que gráficos, tabelas, mapas, desenhos anatômicos, por exemplo, apre-
sentam convenções que vão além das do sistema linguístico. São con-

14
Multimodalidades e Leituras

venções que, como vimos, compõem os gêneros, integrandos os aspectos


textuais, espaciais e gráficos em diferentes mídias.
McCloud (2005, p.194-195) ainda nos lembra de que

todas as mídias são um subproduto de nossa incapacidade de


comunicação mente a mente. Triste, é lógico, porque quase to-
dos os problemas da humanidade surgem dessa incapacidade.
Cada Meio de Comunicação serve apenas como uma ponte en-
tre as mentes. A mídia transforma pensamentos em formas que
podem atravessar o mundo físico, reconvertendo-os por um ou
mais sentidos de novo em pensamentos. Nos Quadrinhos, a
conversão segue da mente pra mão, pro papel, pro olho, pra
mente. (grifos do autor).

As linguagens empregadas neste processo vão depender dos suportes


dos textos, pois é, justamente, no texto onde os modos (imagem, escrita,
som, música, linhas, cores, tamanho, ângulos, entonação, ritmos, efeitos
visuais, melodia etc.) são realizados. “Num ambiente digital, os quadri-
nhos podem assumir praticamente qualquer tamanho e forma, conforme
o mapa temporal – seu DNA conceitual – crescer na nova placa.”, ressalta
McCloud (2005, p.223, grifos do autor). Se voltarmos o nosso olhar para
a leitura dos quadrinhos, lembramos das considerações de Ramos (2013,
p.107-108): “a medida que o leitor amadurece, é preciso registrar que há
obras voltadas a este público, prontas para serem descobertas.”
Importante que salientemos não apenas os recursos tecnológicos
envolvidos que entram no processo de significação, tudo está permeado
pelas emoções dos interlocutores, pois tudo como lembra o neurologista
Oliver Sacks, em Janela da Alma:

15
Introdução

Assista a cena: Janela da Alma: [00h42’37’’ a 00h44’24’’]


Para assistir: http://www.pibidletras.com.br/cine-letras/
trechos-em-video-serie-verbetes-enciclopedicos/

“Todos nós somos criaturas emocionais. E creio que todas as nossas


percepções, as nossas sensações e experiências são carregadas de
emoção, de emoção pessoal. Acredito que a emoção fique, por assim
dizer, codificada na imagem.”

Retomamos aqui a noção de materialidade dos modos que constituem


as nossas interações, assim como salientamos o fato de estarem
conectados com o nosso corpo e sentidos. Embora “a sensorialidade não
seja um ponto forte da maioria das pesquisas multimodais, o corpo e seus
sentidos definitivamente afastam a multimodalidade das abstrações das
teorias linguísticas do século XX e permitem consideração das respostas
corpóreas e da fisicalidade no domínio do significado.” (cf. fonte: http://
multimodalityglossary.wordpress.com/)
Os conteúdos que constituem este volume são apresentados em
dois capítulos: no primeiro, Linguagem, funcionamento cognitivo e lei-
tura, noções relativas a essas três importantes atividades são mostra-
das e comentadas, focando mais especificamente a relação intrínseca e
indissociável entre funcionamento neuropsicológico e aprendizagem, e

16
Multimodalidades e Leituras

entre linguagem, língua e leitura de modo a comprovar não só a interde-


pendência entre essas atividades humanas e sociais, como também sua
relevância para o ensino-aprendizagem, bem como para a vida de todos
nessa sociedade cada vez mais tecnológica e diversificada no que diz
respeito à leitura. No segundo capítulo, Multimodalidade, convenções vi-
suais e leitura, essas noções são abordadas centrando-se os conceitos de
multimodalidade e multiletramentos; na história dos estudos multimo-
dais; nas definições de convenções visuais e sua relação com a leitura e a
compreensão, tudo isso atrelada à noção de gêneros textuais. Esse painel
comentado de forma interligada oferece ao leitor uma percepção clara
do papel desses aspectos da significação nas diversas formas de interação
das quais tomamos parte cotidianamente.

17
Capítulo 1
Linguagens, Funcionamento
Cognitivo e Leitura

O filme À primeira vista (1999), baseado em Tempo de Despertar de


Oliver Sacks, conta a história de um rapaz que ficou cego na infância, mas
que não considera a sua cegueira como um problema. Ele vive muito bem
com essa condição, trabalha, mora sozinho e é auxiliado pelo seu cão guia.
Um dia, porém, ele se apaixona por Amy, uma jornalista que o convence
a fazer uma nova cirurgia, com um método, um tratamento especial. A
cirurgia é um sucesso e ele volta a ver, mas passa a enfrentar alguns pro-
blemas, tais como ter dificuldades com (i) a noção de espaço e distância
(ele esbarra nos móveis, em carros), com (ii) a noção de identificação dos
objetos e das pessoas pela visão, ele fazia pelo tato (cenas em que ele não
confunde os talheres, por exemplo), não identifica as pessoas (confusão
entre a namorada e a irmã), pois ele reconhecia as duas pela voz, pelo chei-
ro e não pelos rostos delas. Vejamos algumas cenas do filme:

À primeira vista: [55’48” - 56’46”]


Cena 1: Identificando objetos (uma lata de refrigerante Coca-cola)
logo após a cirurgia, no quarto do hospital.
http://www.pibidletras.com.br/cine-letras/trechos-em-
video-serie-verbetes-enciclopedicos/

19
Capítulo 1 Linguagens, Funcionamento Cognitivo e Leitura

Jen: Que podemos fazer?


Virgil: Ponha algo na minha mão.
(Amy pega uma lata de refrigerante e entrega para ele.)
Virgil: Certo.
Médico: Agora, use seu senso de tato, só associe. O que vê à sua
frente? Use seu tato.
Virgil: É a lata.
Médico: Certo, certo.
Jen: O que está acontecendo?
Médico: Ele está associando. Seus dedos dizem ao cérebro, o
cérebro diz aos olhos, e aí ele reconhece o que está à sua frente.

À primeira vista: [1:00:17 – 1:00:46]


Cena 2: Identificando a irmã (Jen), confunde-a com Amy (a
namorada)
http://www.pibidletras.com.br/cine-letras/trechos-em-
video-serie-verbetes-enciclopedicos/

Virgil: Amy?
Jen: Não, é a Jen.
Virgil: Então esta é você.
Jen: Esta sou eu.

20
Multimodalidades e Leituras

Após recuperar a visão, o personagem passou a viver num mundo


em que as suas noções de objetos, distâncias, foram alteradas. Ele precisa
reaprender a dar significado ao novo mundo, a exemplo de uma criança.
Porém com um agravante: em sua memória já existe o registro de uma for-
ma de ler, de interagir com o mundo. Já existem outras significações, outra
forma de enxergar o mundo. A imensa quantidade de imagens com a qual
ele passa a conviver de repente requer um processo árduo de adaptação.
Vejamos duas das cenas que representam essa adaptação:

À primeira vista: [1:09:01 – 1:10:20]


Cena 3: O médico mostra uma revista com a maçã e pergunta se é
uma imagem ou a própria fruta.
http://www.pibidletras.com.br/cine-letras/trechos-em-
video-serie-verbetes-enciclopedicos/

Médico 2: O que é isto?


Virgil: É... é uma maçã. Uma maçã.
Médico 2: Ótimo. Ótimo. Agora você ganhou o forno elétrico.
Certo... O que é isto?
Virgil: É uma maçã.
Médico 2: Certo, mas é uma maçã ou apenas uma foto de uma
maçã?
Virgil: Certo. Então, isto é uma piada, certo? O que está dizendo,
que meus olhos mentem?

21
Capítulo 1 Linguagens, Funcionamento Cognitivo e Leitura

Médico 2: Bem, sua visão pode e irá pregar peças em você. Não
importa o que eu possa ensiná-lo, não importa os exercícios que eu
possa lhe dar, eles ainda vão pregar peças em você. Precisa aprender a
confiar em seus instintos.
Virgil: Eu não tenho instinto... Meu instinto é fechar os olhos e
sentir como posso sair do seu consultório.
Médico 2: É o instinto de autopreservação... mas você tem outros.
Olha, Virgil, precisa aprender a ver da forma como aprendeu a falar.
Percepção, visão, vida, tudo é experiência, tudo é sair e explorar o
mundo por si mesmo. Não basta só ver... tem que olhar, também.

À primeira vista: [1:32:33 – 1:33:04]


Cena 4: Aprendendo perspectiva.
http://www.pibidletras.com.br/cine-letras/trechos-em-
video-serie-verbetes-enciclopedicos/

Amy: Virgil! Ei, Virgil! Virgil, cuidado! Cuidado!


(Um carro quase atropela Virgil, ele desvia rapidamente.)
Amy: Jesus, o que estava fazendo?! O que está fazendo?!
Virgil: Estava olhando o táxi enquanto chegava bem perto. Isso é
perspectiva.
Amy: É, mas vai acabar se matando se fizer isso no meio da rua.
Virgil: Não quis assustá-la. Sinto muito.

22
Multimodalidades e Leituras

A memória humana tem essa capacidade de guardar, armazenar, re-


cuperar informações etc. Numa situação de aprendizagem, o professor, ao
recorrer aos recursos semióticos na construção de gêneros textuais para
uso didático, deve levar em conta os diversos fatores envolvidos, dentre
eles, aqueles ligados ao funcionamento neuropsicológico do aprendiz, às
funções neuropsicológicas subjacentes e envolvidas na específica circuns-
tância de aprendizagem, além da própria qualidade do material utilizado,
uma vez que as práticas e intervenções associadas ao ser humano são, as-
sim como ele, extremamente complexas. O que buscamos é, como profis-
sionais envolvidos com a educação e com a linguagem, compreender os
fatores que podem ser considerados facilitadores do processo de aprendi-
zagem para que se possa utilizar os recursos disponíveis, a fim de construir
uma aprendizagem significativa.

Funcionamento Neuropsicológico e Aprendizagem

Conhecimento compartilhado

BUNZEN, Clecio e MENDONÇA, Márcia (orgs.). Múltiplas


linguagens para o ensino médio. São Paulo: Parábola, 2013.

Na perspectiva na Neuropsicologia, aprender envolve,


necessariamente, o funcionamento cerebral. É uma construção,
um processo pessoal e intransferível. Há um refinado sincronismo
entre como o cérebro se desenvolve, o que modela seu crescimento
e maturação e a sua capacidade cognitiva. As estruturas e as
conexões do cérebro são esculpidas por numerosas influências
ambientais e biológicas. Como o centro do pensamento, emoção,

23
Capítulo 1 Linguagens, Funcionamento Cognitivo e Leitura

planejamento e autorregulação, o cérebro passa por um longo


processo de crescimento e de refinamento que tem continuidade
ao longo da vida. Este desenvolvimento é mais intenso na infância,
passando pela adolescência e pelo adulto jovem e, continuando,
através de diferentes fases de desenvolvimento e mudanças, por toda
a vida adulta. O sistema é adaptativo. Em sua evolução constante,
o cérebro muda as características das interconexões (número e
intensidade), em função da experiência adquirida pela interação
com o ambiente. A maneira como usamos nosso complexo sistema
cerebral torna-se um fator crítico para o refinamento das funções
neuropsicológicas e da personalidade, à medida que crescemos e
nos desenvolvemos. Isto significa, portanto, que todas as nossas
interações sociais possibilitam mudanças, podem promover
desenvolvimento, refinamento em relação à forma de responder à
demanda da vida cotidiana.
Assim, os seres humanos se diferenciam por terem uma es-
trutura distinta, fruto das interdependentes e contínuas interações
sociais, mas são iguais em sua forma de organização. Ou seja, to-
dos nós temos, por exemplo, cérebro, mas cada um de nós tem
uma estrutura cerebral distinta, um funcionamento peculiar. Por
outro lado, os processos biológicos de organização, desenvolvi-
mento e maturação cerebral são semelhantes aos diversos indiví-
duos. É, justamente, esta concepção de estrutura distinta que per-
mite pensar sobre a história de vida de um ser humano em parti-
cular. Pensar sua história, compreender seu processo de desenvol-
vimento, identificar sua forma de funcionamento, discernir formas
de intervenção, vislumbrar possibilidades de crescimento, permite,
portanto, hipotetizar uma condição variada em termos de maior
ou menor capacidade de atendimento às demandas sociais.
A capacidade de aprendizagem engloba, segundo a Neuro-
psicologia, o processamento de informações – codificação, orga-

24
Multimodalidades e Leituras

nização, armazenagem e evocação – e este processamento depen-


de da estrutura e funcionamento cerebral, este último resultante
do nível operacional das funções neuropsicológicas, tais como
atenção, memória, percepção, linguagem, funções executivas e in-
teligência. A Neuropsicologia, campo de conhecimento que visa
relacionar cognição e comportamento com atividades do sistema
nervoso, em condições normais e patológicas, por meio do estu-
do de redes neuronais, utiliza-se de conhecimentos de anatomia,
fisiologia, psicologia, psiquiatria e neurologia, entre outras áreas
(cf. Nitrini, 1996, apud Lopes, 2006: 9). Esta ciência objetiva estu-
dar como os indivíduos adquirem, transformam e usam as infor-
mações sensoriais por meio de manipulação de símbolos ou ima-
gens mentais e como a capacidade resultante influencia a conduta
e as possibilidades de desenvolvimento e aprendizagem.
A cognição humana compreende os processos e produtos
mentais (consciência, inteligência, pensamento, imaginação, cria-
tividade, elaboração de planos e estratégias, resolução de proble-
mas, inferência, conceitualização e simbolização etc.), através dos
quais percebemos, conhecemos, concebemos e transformamos o
mundo. Um dos pontos de conexão entre esta noção de cognição
e os estudos de gênero, na perspectiva dos Estudos Retóricos do
Gênero (ERG), que pode ser vislumbrado, recai no fato de o gênero
se construir através das nossas interações sociais em situações es-
pecíficas, possibilitando, assim, atribuir sentido ao meio social. Ou
seja, o gênero constitui atividade humana à medida que, por suas
próprias convenções ideológicas e retóricas, a organiza, a regula,
a estrutura (cf. Bawarshi e Reiff, 2010; Bazerman, 2005, 2006,
2007; Artemeva, 2008). Ao elaborarmos um texto, como um arti-
go científico ou um capítulo de livro, como este, fatores de diver-
sas naturezas estão imbricados, como: o convite para escrevê-lo; o
tempo disponível das autoras e a data prescrita pelos organizado-

25
Capítulo 1 Linguagens, Funcionamento Cognitivo e Leitura

res; como nos identificamos como autoras (as circunstâncias são


motivadoras? estamos felizes com o processo? quais argumentos
vamos construir no texto e como vamos orquestrá-los? para quem
escrevemos? etc.); as pesquisas e anotações, as escolhas linguís-
tico-discursivas1 (além do estilo de cada autora e das especifici-
dades de linguagem das áreas – Neuropsicologia e Linguística); a
manutenção ou não da estrutura formulaica ‘capítulo de livro aca-
dêmico’ e a responsabilidade pelas escolhas feitas; a busca por um
interlocutor para discutir nossos problemas de escrita; “a história
social da multivocalidade” (Bazerman, 2007, p.61) das autoras;
as experiências pessoais de escrita de cada autora; o planejamento
da estrutura do texto; as consequências sociais do ato de tornar o
texto público; etc.
A complexa atividade mental, na produção de um gênero,
abarca aspectos do contexto externo, assim como é por eles auxi-
liada. Durante a entrevista “Gêneros Textuais”, com Carolyn Miller
e Charles Bazerman (2011), o pesquisador salienta a necessidade
de se investigar a interação entre cognição e gênero, e acrescenta:

“A pesquisa sobre o cérebro sugere sua plasticidade e seu cresci-


mento ao longo da vida. Além disso, em cada evento, o cérebro se
configura diferentemente em torno do evento e em torno do con-
texto percebido. Portanto, penso que chegou o momento certo de
refletirmos sobre como a tipificação de gêneros e outras maneiras
ordenadas de responder ao nosso ambiente social, material e his-
tórico influenciam a cognição. O gênero é um conceito importan-
te a ser levantado nessa arena.” (www.nigufpe.com.br)

1. “As formas linguísticas são tipificações sociais de que dependemos para moldar nossos significados
em formas socialmente transmissíveis. Ao usar a linguagem comum, realizamos nossos pensamentos em
termos compartilhados. Na medida em que trabalhamos para usar os significados que requerem formas
menos comuns ou para usar configurações de formas incomuns, damos mais trabalho aos leitores para seu
reconhecimento e interpretação do incomum.” (Bazerman, 2007, p.49).

26
Multimodalidades e Leituras

Diante de tal observação, podemos questionar se não estaria


a noção de tipificação dos gêneros textuais para a noção de percepção de
categorias de Goldberg. Para o autor,

“a percepção de categorias, a capacidade de identificar exempla-


res únicos como membros de categorias genéricas, é uma capaci-
dade cognitiva fundamental, sem a qual teríamos sido incapazes
de lidar com o mundo à nossa volta” (Goldberg, 2002: 89).

A organização genérica que fazemos nos contextos sociais


em que nos inserimos não seria resultado desta nossa capacidade?
O nosso letramento não demandaria do exercício desta nossa ca-
pacidade cognitiva? Ao compreendermos gêneros como “fenôme-
nos de reconhecimento psicossocial que são parte de processos de
atividades socialmente organizadas” (Bazerman, 2005:32) não es-
taríamos identificando os exemplares textuais específicos, únicos,
a desempenharem determinada função social? A inadequação do
uso de um gênero textual pode acarretar danos sociais, como por
exemplo, a apresentação de um IPVA vencido a um policial de trân-
sito gera uma penalidade ao motorista ou a sua substituição por
um IPTU atualizado também é inadequada. Portanto, a nossa fa-
miliaridade com os gêneros textuais no processo de aprendizagem
não faria parte desse processo de (re)categorizações contínuas. E,
desse modo, não poderia tal tipo de conhecimento ser um gran-
de aliado do professor? Isso porque fazemos projeções cognitivas
constantemente com base em padrões regulares, recorrentes em
situações sociais, e isto é um aspecto essencial na aprendizagem.
Ao longo da nossa vida, em situações de aprendizagem –
através do uso de gêneros textuais, motivação, estado emocional,
vida escolar, interações com o meio ambiente, condição orgânica,
estado de saúde – vamos moldando e refinando o nosso próprio
funcionamento neuropsicológico, construindo um específico apa-

27
Capítulo 1 Linguagens, Funcionamento Cognitivo e Leitura

Figura 01 - Funcionamento neuropsicológico

rato cognitivo. Aprender é um processo inerente ao ser humano,


mas cada indivíduo aprende de uma determinada maneira, depen-
dendo do seu estilo cognitivo, do seu funcionamento neuropsico-
lógico e de cada uma das funções neuropsicológicas envolvidas.
A Figura 1 – Funcionamento Neuropsicológico – demonstra as funções
neuropsicológica

O funcionamento neuropsicológico como um todo resulta da


atuação das várias funções neuropsicológicas. Cada função tem
que ser vista na sua especificidade e na sua contribuição no fun-
cionamento como um todo. No momento em que um aluno está
assistindo a uma aula, na qual o professor está usando recursos
semióticos com fins específicos, alguns fatores neuropsicológicos
subjacentes e necessários à aprendizagem estão em processo. A
adequação do conteúdo, material, metodologia não garante que

28
Multimodalidades e Leituras

todos os alunos irão aprender da mesma maneira, conseguirão


entender e armazenar as informações. A codificação, compreen-
são e retenção dependem da condição neuropsicológica de cada
pessoa: isto é, funcionamento neuropsicológico diferente, apren-
dizagem diferenciada.
De acordo com a configuração do funcionamento neurop-
sicológico, teremos capacidades de aprendizagem diferenciadas
e, paralelamente, de acordo com a estratégia de ensino utilizada,
conseguiremos armazenar mais ou menos informações ou conse-
guiremos reter mais informações de uma maneira mais fácil, mais
rápida e mais prazerosa. O objetivo do ensino seria, portanto, criar
estratégias eficientes que possam atingir um grande leque de esti-
los cognitivos, possibilitando experiências significativas de apren-
dizagem, que permitam quer a ampliação de conhecimentos, quer
o desenvolvimento de níveis de funcionamento cognitivo mais efi-
cientes em relação à demanda da vida cotidiana. O processo de
aprendizagem envolve a compreensão, a significação do conteú-
do, assim como a retenção das informações entendidas, para que
possam ser utilizadas em outras ocasiões e em outros contextos”
(Vasconcelos e Dionisio, 2013, p.47-52).

Vasconcelos e Dionisio (2013, p.47-52) exemplificam as funções neu-


ropsicológicas no processamento da leitura, tomando por base em uma
questão apresentada no ENEM 2010. Vejamos:

29
Capítulo 1 Linguagens, Funcionamento Cognitivo e Leitura

Figura 02 - questão do ENEM 2010. Disponível em http://down-


load.inep.gov.br/educacao_basica/enem/provas/2010/AZUL_Do-
mingo_GAB.pdf. Acesso em 26 mar. 2012.

Segundo pesquisas recentes, é irrelevante a diferença entre os sexos


para se avaliar a inteligência. Com relação às tendências para áreas
do conhecimento, por sexo, levando em conta a matrícula em cursos
universitários brasileiros, as informações do gráfico asseguram que:

a) os homens estão matriculados em menor proporção em


cursos de Matemática que em Medicina por lidarem melhor com
pessoas.
b) as mulheres estão matriculadas em maior percentual em cursos
que exigem capacidade de compreensão dos seres humanos.
c) as mulheres estão matriculadas em percentual maior em
Física que em Mineração por tenderem a trabalhar melhor com
abstrações.

30
Multimodalidades e Leituras

d) os homens e as mulheres estão matriculados na mesma


proporção em cursos que exigem habilidades semelhantes na
mesma área.
e) as mulheres estão matriculadas em menor número em
Psicologia por sua habilidade de lidarem melhor com coisas que
com sujeitos.

As autoras fazem os seguintes comentários sobre a proposta da


questão:

“o enunciado do problema é constituído por texto escrito,


apresentação da situação problema e alternativas de respostas,
e um gráfico, extraído da revista Superinteressante. A estrutura da
questão exige familiaridade, por parte do estudante, com estes
dois gêneros textuais específicos, que são o tipo de questão de
compreensão e o gráfico. Para responder ao comando dado
no enunciado, o aluno deve primeiro compreender as relações
entre texto verbal e os dados gráficos fornecidos no gráfico (Os
textos colocados à direita – Eles tendem a usar a cabeça para lidar
com coisas inanimadas e abstrações. Por isso são maioria nos cursos de
exatas e à esquerda – E elas têm mais habilidade em compreender as
pessoas e emoções. Então dominam as carreiras que têm a ver com isso são
dispensáveis ao processo de resolução). Observamos, portanto,
que o processo de resolução do problema envolve: (i) linguagem:
ler (identificar, compreender e relacionar os dados do enunciado),
(ii) atenção: focalizar e manter a atenção nos dados e na tarefa a
executar, (iii) memória de trabalho: manter os dados, distribuídos
no enunciado, na mente enquanto relaciona estes mesmos dados
para chegar às conclusões necessárias, (iv) memória de longo prazo:
utilizar a aprendizagem e conhecimento anterior em relação à
leitura de um gráfico e formas de relacionar os dados dos dois

31
Capítulo 1 Linguagens, Funcionamento Cognitivo e Leitura

eixos de informação, (v) habilidades visuo-perceptivas: trabalhar com


os dados do enunciado, considerando-os em termos de percepção
e organização espacial – eixo direito e esquerdo, linha divisória com
as informações abaixo e acima da mesma, (vi) funções executivas:
iniciar a atividade, identificar o raciocínio necessário à resolução,
formular um plano de ação e estabelecer os passos a serem
seguidos, manter a atenção e raciocínio até a conclusão da tarefa,
flexibilidade mental para levantar outra hipótese de trabalho caso
a primeira não atenda à demanda da proposta, monitoramento
da própria atividade para assegurar que todas as etapas estejam
atendidas, verificação entre o resultado obtido e a solicitação do
problema.”

Linguagem, língua e leitura

Estamos nos centrando em situações de aprendizagem


em que os alunos sejam leitores fluentes, isto é, leitores que
reconheçam os signos, palavras ou não, com facilidade e
rapidez, uma vez que a familiaridade com o lido mantém uma
relação com o processo de compreensão. Por isso, precisamos
rever as orientações metodológicas, visto que os dados do IDEB
revelam que, apesar dos esforços governamentais despendidos,
nossos alunos do ensino médio continuam a apresentar baixo
desempenho nas avaliações nacionais e internacionais, em relação
à compreensão de enunciados2. Para intervir adequadamente
no sentido de aprimorar a formação do leitor na escola básica,
é necessário compreender alguns aspectos teóricos do próprio

2. Não cabe neste capítulo, nem é o nosso propósito uma discussão sobre a natureza de tais avaliações.
Para aprofundar tal discussão, indicamos a leitura de Bonamino, Coscarelli e Franco (2002) e Marcuschi
(2006).

32
Multimodalidades e Leituras

processo de compreensão, como as noções de linguagem e língua.


Tais conceitos subsidiam o processo de compreensão, entendido
aqui no contexto de aprendizagem, guiado por princípios da
Linguística, mais especificamente os estudos dos gêneros textuais,
e da Neuropsicologia. Como sabemos, linguagem e língua não
são sinônimos. A linguagem humana é a capacidade que temos de
transformar ideias em signos que possibilitam a interação com o
outro. Esta capacidade humana envolve, como já ressaltamos, o
uso de todos os sistemas de signos convencionados e percebidos
pelos sentidos, não apenas o linguístico. Para Gil (2010: 2-3),

“se o ser humano pode conhecer o mundo e nele agir, é graças a um


funcionamento coordenado dos recursos cognitivos e às múltiplas
conexões que o cérebro tece, não só entre os dois hemisférios3,
mas também no interior de cada hemisfério, desenhando uma
rede complexa, articulada de uma ponta à outra da neuraxe.
Inúmeros vínculos são tecidos entre a cognição, a afetividade, a
sensitividade e a motricidade”.

O conhecimento que construímos, lembra Goldberg


(2002:89),

“acerca do mundo exterior é multimídia por natureza. Podemos


evocar a imagem visual da copa verde de uma árvore, o som de suas
folhas movidas pelo vento, o aroma de suas flores desabrochadas
e a sensação de aspereza da casca em nossos dedos.’’

Continua o autor afirmando que, apesar das representações


de coisas e eventos terem “múltiplas modalidades sensoriais”,
algumas são “mais dependentes de certas modalidades sensoriais
do que de outras” (2002:90).

3. Esta noção será desenvolvida no item Linguagem neste capítulo.

33
Capítulo 1 Linguagens, Funcionamento Cognitivo e Leitura

Um exemplo pode ser demonstrado com os verbos “visualizar”


e “mentalizar”, os quais remetem para o processo de conceber, sem
ver, uma imagem mental de algo. Segundo Goldberg (2002: 90),
se pedirmos a alguém para descrever um objeto, a probabilidade é
de que a descrição se restrinja à aparência do objeto, e só depois,
se insistirmos, “ele falará do som, do cheiro ou do tato. (...)
Ao mesmo tempo, as representações mentais de ações físicas –
andar, correr, bater – são menos visuais e mais motoras e táteis/
proprioceptivas por natureza.”.
Consequentemente, agimos na sociedade através do uso
de diversas linguagens. No entanto, todos nós agimos mais
especificamente através de um sistema linguístico adquirido na
rede social com a qual interagimos. Ao falarmos, colocamos em
conexão indivíduos, linguagens, cultura e sociedade, isto porque,
cada vez que falamos, informamos muito ao nosso interlocutor
sobre nós mesmos: tanto sobre a individualidade como sobre
os grupos (étnico, nacional, social) a que julgamos pertencer.
Bortoni-Ricardo (2004: 48) acrescenta que,

“além da rede social com que o indivíduo efetivamente interage,


devemos considerar também o seu grupo de referência, pessoas com
quem esse indivíduo não interage fisicamente ou por meio de
recursos como Internet, telefone, etc., mas tem como modelo para
sua conduta. Geralmente esse grupo de referência é escolhido pela
experiência vicária, isto é, a experiência que o indivíduo adquire
assistindo novelas de televisão, filmes, ou ouvindo relatos”.

É, pois, através da língua, atividade cognitiva, sócio-interativa


e sócio-histórica, que manifestamos nossos pensamentos, nossos
sentimentos, nossa identidade, nossos desejos etc. “A língua se
manifesta no seu funcionamento na vida diária, seja em textos triviais
do cotidiano ou prestigiosos e canônicos que persistem na tradição
cultural” (Marcuschi, 2008:65), isto é, em gêneros textuais. Quando

34
Multimodalidades e Leituras

pensamos em investigar a linguagem humana, devemos nos atentar


a campos cognitivos diversos, como o biológico (a linguagem tem
sua predisposição biológica), o perceptual (as diversas capacidades
sensoriais) e o conhecimento de práticas sociais (a linguagem
relaciona-se com os aspectos históricos e sociais). Aqui, estamos
tomando o termo linguagem como um sistema semiótico cujas
formas de representação se constituem em modos semióticos. Ao
focarmos os estudos do sistema linguístico, não devemos perder
este enfoque funcional, que prioriza o domínio cognitivo que envolve
os usos culturais, históricos, ideológicos dos signos. (Vasconcelos e
Dionisio, 2013, p.44-47).
Como já afirmamos, a linguagem humana4 pode ser
entendida, de forma ampla, como uma herança social, uma
prática cultural, que permite aos seres humanos (re)elaborar uma
vasta quantidade de conceitos e princípios e a possibilidade de
um contínuo crescimento e desenvolvimento cognitivo. Estudos,
pesquisas e avaliações neuropsicológicas, em se tratando
da linguagem e aprendizagem, trabalham, principalmente,
investigando o funcionamento do processo de compreensão.
Isto é, o ato de compreender um texto e de expressar o que
compreendeu são inter-relacionados e constituem uma condição
essencial de uma situação de aprendizagem. Atividades como
interpretar um texto multimodal, entender um enunciado de um
problema, localizar/ identificar os dados relevantes de uma tabela,
refletem uma atividade cognitiva onde está presente, além de
outras funções neuropsicológicas, o uso da linguagem, aqui visto
em sua concepção ampla.

4. Existem inúmeras questões ligadas à linguagem que poderíamos apresentar e discutir neste capítulo, mas
não é este o nosso propósito. Interessa-nos ponderar sobre alguns conceitos e relações com outras funções
neuropsicológicas, que nos pareçam relevantes, como indicado neste item do capítulo.

35
Capítulo 1 Linguagens, Funcionamento Cognitivo e Leitura

O conceito de atividade inclui tanto o comportamento


observável quanto a competência e o processamento interno.
Os modelos atuais da atividade linguística integram três ou mais
dimensões que a dividem em forma, conteúdo e uso. As alterações
que podem limitar a atividade linguística são agrupadas em três
dimensões: as alterações físicas e sensoriais (podem afetar tanto o
canal de produção – vocal/motor – como o de recepção – visual/
auditivo), as cognitivas (funções – atenção, memória, funções
executivas, percepção) e as emocionais e motivacionais.
De acordo com as bases biológicas da linguagem estabelecidas
por Damásio e Damásio (2004), o cérebro processa a linguagem
através de três grupos de estrutura:

1) Um amplo conjunto de sistemas neuronais, situados em


ambos os hemisférios cerebrais, que permitem as interações não-
linguísticas entre o corpo e seu entorno (sistemas sensoriais e
motores).
2) Um número menor de sistemas neuronais, localizados em
geral no hemisfério cerebral esquerdo, que permitem a geração
de fonemas, as combinações fonéticas e as regras sintáticas para
combinar palavras.
3) Um conjunto de estruturas, em boa parte, situadas também
no hemisfério esquerdo, que agem como intermediárias entre
os dois primeiros. Podem receber um conceito e estimular a
produção verbal ou receber palavras e fazer com que os conceitos
correspondentes sejam evocados.

Ao associarmos Neuropsicologia e a Linguística, na análise


do processo de compreensão no contexto escolar, sugerimos que,
com a explicitação dos processos cognitivos envolvidos na leitura
de um texto, ressaltamos a concepção de que entender um texto
é produzir sentidos; compreender é um processo cognitivo, ou

36
Multimodalidades e Leituras

seja, entra em jogo toda a complexidade humana. O texto precisa


ser visto como um produto, algo que é um resultado, que possui
estrutura, mas que também, na terminologia de Beaugrande
(1977:10 apud Marcuschi, 2008:80) é evento comunicativo para
o qual convergem ações linguísticas, cognitivas e sociais.” Se
tomássemos, por exemplo, os textos “Mizael Barbeiro” e “Antonio
Porqueiro”, o que poderíamos dizer sobre eles? Obviamente
algumas possibilidades de leitura podem ser construídas, mas, à
medida que situamos os contextos de suas ocorrências, passamos
a ter mais direcionamentos de leitura, observando as funções
sociais das escolhas semântico-morfológicas exercidas pelos
termos “Barbeiro” e “Porqueiro”.
Originalmente, estes nomes foram utilizados em
propagandas políticas em muros, no interior da Paraíba e de
Pernambuco. Jessier Quirino as coletou e as publicou no livro
“Política de Pé de Muro: o comitê do povão”, submetendo-as a um
novo contexto e a um novo suporte. Em outras palavras, o gênero
textual original (propaganda política) no suporte textual original
(muro), fotografado e retextualizado por Jessier Quirino, associado
com uma técnica de representação textual (intertextualidade –
citação de provérbios/frases feitas) ganham um outro suporte
(livro Figura 03 e Figura 04).

37
Capítulo 1 Linguagens, Funcionamento Cognitivo e Leitura

Figura 03

Figura 04

38
Multimodalidades e Leituras

Em “Mizael Barbeiro”, o termo “Barbeiro” é um substantivo


formado a partir de verbo que designa o ser que exerce a atividade
de barbear alguém. Mas, ao ser posto junto ao nome próprio,
passa a predicar sobre ele, caracterizando-o pela atividade
profissional. Já em “Antonio Porqueiro”, o termo derivado
“porqueiro” sinaliza o tipo de animal que Antonio vende: porco.
Então, “Barbeiro” e “Porqueiro” são substantivos especificadores
de outros substantivos que identificam os candidatos e não
correspondem aos seus sobrenomes oficiais. Porém, ao serem
“transportadas” para um novo contexto discursivo (o livro de Jessier
Quirino), e ao serem inseridos novos arranjos textuais (VOTE NUM
CANDIDATO... + “Tem que fazer barba, cabelo e bigode...” e “Tem que
ser dono dos porcos...”), as propagandas possibilitam novas leituras;
agora “recheadas de humor, de ironia”.
Para ser vereador, “Mizael Barbeiro” tem que fazer de tudo
(barba, cabelo e bigode), pois este é o sentido do provérbio;
para ser vereador é preciso ser o melhor, o poderoso, ou seja, o
dono dos porcos, como “Antonio Porqueiro”. A localização das
legendas acima das fotos das “pichações políticas” e o uso das
reticências são recursos semióticos, empregados no processo
de retextualização, permitem a leitura do texto como um bloco
contínuo, possibilitando uma progressão temática, ao mesmo
tempo em que sinalizam a diversidade de autoria e de contextos
das produções de escrita. (Vasconcelos e Dionisio, 2013, p.57-60).

BUNZEN, Clecio e MENDONÇA, Márcia (orgs.). Múltiplas


linguagens para o ensino médio. São Paulo: Parábola, 2013.

Neste capítulo, discutimos a intrínseca e, portanto, natural inter-rela-


ção que envolve inteligência, memória, capacidade de aprendizagem, lin-
guagem, língua, leitura, atividade linguística e diversos modos de leitura,

39
Capítulo 1 Linguagens, Funcionamento Cognitivo e Leitura

ao exemplificarmos com gêneros multissistêmicos a que estamos expostos


em situações de ensino-aprendizagem ou na vida diária, os quais exigem a
ativação instantânea dessas habilidades, ou capacidades, para a adequada
compreensão e utilização desses gêneros e, consequente atuação em so-
ciedade. O objetivo do capítulo foi demonstrar que a devida apropriação
dessas noções tornará alunos e professores mais competentes para as per-
formances linguísticas, por assim dizer, requeridas cotidianamente.

40
Capítulo 2
Multimodalidade, Convenções
Visuais e Leitura
A nossa história de indivíduo multiletrado começa com a nossa inser-
ção neste universo em que o sistema linguístico é apenas um dos modos de
constituição dos textos que materializam as nossas ações sociais. Um texto
é um “evento construído numa orientação multissistemas, ou seja, envolve
tanto aspectos linguísticos como não-linguísticos no seu processamento”
(Marcuschi, 2008, p.80). Trazer para o espaço escolar uma diversidade de
gêneros textuais em que ocorra uma combinação de recursos semióticos
significa promover o desenvolvimento cognitivo de nossos aprendizes.
(Significa também um enorme desafio, quando levamos em consideração
a nossa formação docente, a rapidez dos avanços tecnológicos e a fami-
liaridade dos nossos alunos com as mídias digitais em seu cotidiano fora
da escola). Multiletrar é, portanto, buscar desenvolver cognitivamente
nossos alunos, uma vez que a nossa competência genérica se constrói e se
atualiza através das linguagens que permeiam nossas formas de produzir
textos. Assim, as práticas de multiletramentos devem ser entendidas como
processos sociais que se interpõem em nossas rotinas diárias. Multiletrar
é preciso! Multiletrar deve ocorrer, no processo de aprendizagem dos con-
teúdos de qualquer disciplina, através de atividades que permitam a com-
preensão de um simples fato: “Nosso alfabeto expandiu-se.” (Jean-Claude
Carrière, 2010, p.19). Nosso alfabeto não é mais formado apenas de letras,
sem vida, sem cor e sem movimento. Assim como os gêneros não são ape-
nas forma, são modos de ser, são formas de vida (cf. Bazerman, 2006), as
nossas práticas de leitura e de escrita sinalizam nossa forma de viver as
linguagens, de conviver com as multissemioses da nossa sociedade multi-
letrada. Se o professor guiar as atividades de forma a dar cor, movimento,
textura e perfume aos textos, certamente estará fomentando estratégias

41
Capítulo2 Multimodalidade, Convenções Visuais e Leitura

cognitivas que possibilitam aos aprendizes perceberem a vida dos gêneros


textuais, favorecendo assim a construção do conhecimento (cf. Dionisio,
2011, s/p).
O processo de compreensão textual pelo qual procuramos nortear
nossa prática docente se orienta pela perspectiva de que a multimodali-
dade é um traço constitutivo dos gêneros. Portanto, é no texto, materiali-
dade dos gêneros, onde os modos (imagem, escrita, som, música, linhas,
cores, tamanho, ângulos, entonação, ritmos, efeitos visuais, melodia etc.)
são realizados. O que faz com que um modo seja multimodal são as com-
binações com outros modos para criar sentidos. Ou seja, o que faz com que
um signo seja multimodal são as escolhas e as possibilidades de arranjos
estabelecidas com outros signos que fazemos para criar sentidos, com os
mesmos, quais as articulações criadas por eles em suas produções textuais.
Importante salientar que os “signos fornecem um modo material de com-
preender como as pessoas trocam significados, independentemente dos
meios pelos quais elas o fazem: linhas de um desenho, sons de uma fala
ou movimentos de gesto, e assim por diante” (http://multimodalityglos-
sary.wordpress.com/). Nesta correlação entre gêneros, textos e modos, o
conceito de materialidade assume uma grande importância, visto que

“uma premissa subjacente para (a maioria) das abordagens mul-


timodais é que todos os modos disponíveis em uma cultura são
usados para gerar significado; e esses modos são selecionados em
conjuntos delineados para gerar significado que melhor se ajustem
a necessidades específicas. Todos os modos, tanto em função de
sua materialidade e do trabalho que as sociedades realizam com
aquele material – com o som se tornando fala, ou música; com mo-
vimentos de mãos e falas feitos contra o torso superior se tornan-
do gestos – oferecem potenciais específicos para gerar significado e
trazem consigo limitações.” (Fonte: http://multimodalityglossary.
wordpress.com/).

42
Multimodalidades e Leituras

Multimodalidades, multiletramentos: situando conceitos

Compartilhamos os argumentos de Bezerra (2010, p. 293-294), ao res-


saltar que a formação de um professor de língua, materna ou estrangeira,
“incluirá, necessariamente, o estudo da língua como objeto heterogêneo,
dos gêneros e textos como multifacetados e flexíveis e das estruturas lin-
guísticas como formas adequadas aos gêneros textuais produzidos social-
mente.”
Nesta perspectiva, situamos o conceito de multiletramentos em seus
dois sentidos apontados por Rojo (2012, p.13): multiplicidade de culturas e
multiplicidade de linguagens.

“No que se refere à multiplicidade de culturas, é preciso notar: como


assinala Gracia Canclini (2008[1989]308-309), o que hoje vemos à
nossa volta são produções culturais letradas em efetiva circulação
social, como um conjunto de textos híbridos de diferentes letra-
mentos (vernaculares e dominantes), de diferentes campos (ditos
‘populares/de massa/erudito’), desde sempre híbridos, caracteriza-
dos por um processo de escolha pessoal e política e de hibridização
de produções de diferentes ‘coleções’”.

Já o conceito de multiplicidade de linguagens se refere aos modos ou


semioses nas produções dos textos, sejam impressos, sejam em mídias au-
diovisuais. Ou seja, “multimodalidade ou multissemiose dos textos con-
temporâneos, que exigem multiletramentos” (cf. Rojo, 2012, p.19).
Dionisio (2010, p.164-165) já chamava a atenção para o fato de que:

“As alterações físicas no processo de construção dos gêneros provo-


cam, consequentemente, uma mudança também na forma de ler os
textos. O dinamismo da imagem do filme passou para a charge vir-
tual, para o pôster interativo, a disposição do texto na página oscila
entre os moldes ocidentais e orientais de escrita; estes são apenas
alguns exemplos que deixam transparecer a necessidade de revisão

43
Capítulo2 Multimodalidade, Convenções Visuais e Leitura

do conceito de leitura e de suas estratégias que utilizamos em nos-


sas aulas. Consequentemente, se os gêneros se materializam em
formas de representação multimodal (linguagem alfabética, dispo-
sição gráfica na página ou na tela, cores, figuras geométricas etc.)
que se integram na construção do sentido, o conceito de letramen-
to também precisa ir além do meramente alfabético. Precisamos
falar em multiletramento!”

Em “Cenários futuros para as escolas”, um dos artigos do volume 3 –


Multiletramentos – da Coleção Educação no Século XXI da Fundação Tele-
fônica, Rojo (2013, p.21) define multiletramentos como

“práticas de trato com os textos multimodais ou multissemióticos


contemporâneos – majoritariamente digitais, mas também digitais
impressos – que incluem procedimentos (como gestos para ler, por
exemplo) e capacidades de leitura e produção que vão muito além
da compreensão e produção de textos escritos, pois incorporem a
leitura e (re)produção de imagens e fotos, diagramas, gráficos e in-
fográficos, vídeos, áudio etc.”

Concordamos, plenamente, que a abordagem de um texto extrapo-


la os recursos linguísticos escritos estáticos, ou seja, as escolhas linguís-
tico-discursivas. No entanto, não a concebemos como restrita aos tex-
tos contemporâneos nem majoritariamente digitais. Se tomarmos como
ilustração uma das pesquisas realizadas por O’Halloran (2004, p.96), ao
apresentar um breve histórico da multimodalidade na escrita matemática,
constatamos, no início da Renascença, que o desenho de “corpo huma-
no, experiência sensual e aspectos circunstanciais propiciavam o contexto
para a formação de conceitos matemáticos”. Não eram meros desenhos ou
ilustrações, eram ilustrações que visavam ao desenvolvimento das teorias
em si, como podemos comprovar nas figuras a seguir:

44
Multimodalidades e Leituras

Gostaríamos de revisitar uma análise de Dionisio (2005), ao abordar


os recursos semióticos de uma fotografia:

Cena na Disneilândia, Califórnia, 2004


Fonte: acervo Angela Dionisio

45
Capítulo2 Multimodalidade, Convenções Visuais e Leitura

Ao comentar esta fotografia, a autora a descreve como um ato de cor-


tejo, de reverência, em que o personagem Pateta, no cenário de um parque
da Disney, cumprimenta uma jovem senhorita com um beijo na mão: a po-
sição elevada do braço e da mão da menina, a postura levemente recuada
do corpo sinalizam a aceitação do ato com reserva, ou timidez; a posição
inclinada da cabeça do Pateta, a posição das mãos e a forma como segura
a mão da menina condizem com a formalidade do ato, marcando o envol-
vimento de ambos os personagens no ato comunicativo que desenrola no
instante em que a câmera fotográfica capta a interação. Em 2005, Dionisio
não considerou este evento como multimodal, mas hoje o consideramos
sem a menor dúvida.
Neste sentido, os nossos atos de fala, sugere van Leeuwen (2004), de-
vem “ser entendidos como microeventos multimodais, nos quais todos os
signos apresentados se combinam para determinar a intenção comunica-
tiva” (van Leeuwen, 2004, p.8). De acordo com o verbete Signo, do Multi-
modality Glossary, destacamos que

“um aspecto diferenciador da semiótica social (intrinsecamente


relacionado à noção de Peirce) é a perspectiva dos signos como re-
novados constantemente (e.g. Kress, 1997). (...) Signos fornecem
um modo material de compreender como as pessoas trocam sig-
nificados, independentemente dos meios pelos quais elas o fazem:
linhas de um desenho, sons de uma fala ou movimentos de gesto, e
assim por diante. Ao abranger todos os modelos de representação e
comunicação, teorias do signo (ou semiótica) são coerentes com a
metodologia multimodal.” Fonte: http://multimodalityglossary.
wordpress.com/ Acessado em 24/09/2012.

Theo van Leeuwen utiliza um pôster de recrutamento Kitchener para


mostrar como três modos de representação se integram estilisticamen-
te: desenho, palavra e tipografia. A imagem do dedo indicador apontan-
do para o leitor do cartaz, o olhar sério dirigido ao leitor, o uniforme e o
bigode militares simbolizam autoridade; o uso da segunda (you) e a ter-

46
Multimodalidades e Leituras

ceira (your country) pessoas do discurso, a lexicalização do requerimento


(need) e do sujeito requeredor (country) e a impressão tipográfica da pa-
lavra YOU mais forte e mais densa em relação às demais palavras realizam
um ato comunicativo multimodal. “Tipografia e caligrafia não são apenas
veículos para o significado linguístico, mas modos semióticos em si mes-
mos”, salienta van Leeuwen (2004, p.14).

Fonte: www.gguerras.wordpress.com

A tarefa do linguista, ou do semioticista social, reside, portanto, em


revelar estes sistemas de escolhas e possibilidades. Para van Leeuwen
(2005, p.3), nós não deveríamos perguntar o que é a Semiótica, mas sim
que tipo de atividades é a Semiótica, ou ainda, o que faz um semioticista.
O próprio autor elenca três respostas: (i) coletar, colecionar e catalogar sis-
tematicamente, inclusive com suas histórias, os recursos semióticos; (ii)

47
Capítulo2 Multimodalidade, Convenções Visuais e Leitura

investigar como os recursos semióticos são usados em contextos institu-


cionais, históricos, culturais específicos e como as pessoas falam sobre os
recursos nestes contextos (ou seja, como planejam, ensinam, justificam,
criticam etc) e (iii) contribuir para descobrir e desenvolver novos recursos
semióticos e novos usos dos recursos existentes. Para van Leeuwen, por-
tanto, o foco da Semiótica Social “não é apenas na imagem como represen-
tação, mas também a imagem como (inter)ação.” (van Leeuwen, 2003, p.19
apud Fei 2004, p. 55).
Enfim, uma das maiores pesquisadores em estudos multimodalidade
e ensino, Carey Jewitt apresenta assim o verbete MULTIMODALIDADE:

Multimodalidade é uma abordagem interdisciplinar que entende


a comunicação e a representação como envolvendo mais que a
língua. Os estudos nesse campo têm se desenvolvido nas últimas
décadas de modo a tratar sistematicamente de questões muito
discutidas sobre as mudanças na sociedade, por exemplo, em
relação às novas mídias e tecnologias. Abordagens multimodais
têm proposto conceitos, métodos e perspectivas de trabalho para
a coleção e análise de aspectos visuais, auditivos, corporificados
e espaciais da interação e dos ambientes, bem como da relação
entre os mesmos.

Três pressupostos teóricos interconectados estão subjacentes à


multimodalidade.

Primeiro, a multimodalidade pressupõe que a representação e


a comunicação sempre se baseiam em uma multiplicidade de
modos, todos contribuindo para o significado. Ela se concentra
na análise e descrição do repertório completo de recursos gera-
dores de sentido usados pelas pessoas (recursos visuais, falados,
gestuais, escritos, tridimensionais, entre outros, dependendo do
domínio da representação) em diferentes contextos, e no desen-
volvimento de meios que mostram como esses são organizados
para gerar sentido.

48
Multimodalidades e Leituras

Em segundo lugar, a multimodalidade pressupõe que os recursos


são socialmente modelados através do tempo para se tornarem
geradores de sentido, os quais articulam os significados (sociais,
individuais/afetivos) exigidos pelos requerimentos de diversas co-
munidades. Esses grupos organizados de recursos semióticos para
geração de sentido são chamados de modos, os quais realizam ta-
refas comunicativas de modos diferentes – o que torna a escolha de
modo um aspecto central da interação e do significado. À medida
que grupos de recursos são usados na vida social de uma dada co-
munidade, mais completa e finamente articulados eles se torna-
rão. Para que algo “seja um modo” há necessidade de um senso
cultural compartilhado em uma comunidade de recursos e como
esses podem ser organizados para realizar significados.

Finalmente, a multimodalidade pressupõe pessoas orquestran-


do o sentido através de uma seleção e configuração particular de
modos, enfatizando a importância da interação entre modos.
Portanto, todo ato comunicativo é modelado pelas normas e re-
gras operando no momento de produção do signo, influenciado
pelas motivações e interesses das pessoas em contextos sociais
específicos.

A pesquisa multimodal até o presente pode ser classificada de


acordo com quatro principais pontos de concentração:

1) A descrição sistemática de modos e seus recursos semi-


óticos.

2) A investigação multimodal da interpretação e interação


com ambientes digitais específicos.

3) A identificação e desenvolvimento de novos recursos se-


mióticos digitais e novos usos de recursos já existentes nos
ambientes digitais; e

49
Capítulo2 Multimodalidade, Convenções Visuais e Leitura

4) A contribuição para pesquisa de métodos para a coleta


e análise de dados digitais e ambientes dentro da pesquisa
social.

Há um debate considerável quanto à multimodalidade ser con-


siderada uma teoria, de fato, ou se é mais apropriado vê-la como
um método. Comparada à etnografia, é possível defender que a
multimodalidade pode atuar como uma teoria, perspectiva ou
método, e que esses diferentes graus de comprometimento com
a multimodalidade ajudam a fazer sentido daquilo que pode ser
visto como multimodal.

Historiando (um pouco) os estudos multimodais

Gunter Kress, Theo van Leeuwen e Robert Hodge são os autores dos
dois livros considerados marcos iniciais para os estudos multimodais. Em
1996 foi publicado Reading Image: The Grammar to Visual Design de Kress
e van Leeuwen e, em 1998, Social Semiotics, de Hodge e Kress. O pionei-
rismo destes autores se deve ao fato de proporem o desenvolvimento das
principais noções da Linguística Sistêmico-Funcional (modo, transitivi-
dade1, dado/novo etc), originalmente voltadas para o sistema linguístico,
para outros modos de comunicação.
Desta forma, verificamos que as perspectivas de estudos multimodais
com viés social encontram respaldo, ou melhor dizendo, um nascedou-
ro na teoria linguística desenvolvida pelo linguista britânico M. Halliday.
Este estudioso desenvolveu uma perspectiva de análise da linguagem, co-
nhecida como Linguística Sistêmico-Funcional, que defende o postulado
de que as nossas escolhas, ao fazermos uso da língua, são sempre em fun-

1. Sobre o tema Transitividade e sobre a Linguística Sistêmico-Funcional, sugerimos o livro “Transitividade e seus
contextos de uso”, de Maria Angélica Furtado da Cunha e Maria Medianeira de Souza, Editora Cortez,
2011.

50
Multimodalidades e Leituras

ção de um contexto social. Sem se remeter a esse contexto, não há como


se descrever e interpretar adequadamente as diversas práticas que realiza-
mos com a linguagem, bem como compreender os sistemas que compõem
as línguas. Para o autor, a linguagem é um potencial semiótico ao qual re-
corremos para significar, e os usos recorrentes consolidam as significações
contidas nesse potencial. Halliday (1985, 2004) compreendia a linguagem
como um modo semiótico, que cumpre propósitos sociais, na qual iden-
tificou a existência de três tipos de trabalho semiótico e os denominou de
metafunções: ideacional, interpessoal e textual.
A metafunção ideacional representa ou constrói os significados de
nossa experiência do mundo exterior ou interior por meio do sistema de
transitividade (significados representacionais). A interpessoal expressa as
interações e os papéis assumidos pelos usuários, revelando as atitudes des-
ses usuários para com o interlocutor e para com o tema abordado por meio
do sistema de modo e modalidade (significados interacionais). A meta-
função textual está ligada ao fluxo de informação e organiza a textualiza-
ção por meio do sistema de tema e de coesão (significados textuais). As
duas primeiras metafunções são as manifestações, no sistema linguístico,
dos dois propósitos mais gerais que fundamentam os usos da linguagem:
entender o ambiente e influir sobre os outros, a que se associa um terceiro,
o textual, que codifica esses propósitos.
Nessas três metafunções, a oração é a realização simultânea de três
significados: uma representação (significado no sentido de conteúdo);
uma troca (significado como forma de ação); e uma mensagem (significa-
do como relevância para o contexto). Dessa forma, cada elemento de uma
língua é explicado por referência a sua função no sistema linguístico total.
Uma gramática funcional é, assim, aquela que constrói todas as unidades
de uma língua como configurações de funções e tem cada parte interpre-
tada como funcional em relação ao todo. Nela, uma língua é interpretada
como um sistema semântico, entendendo como semântico todo o sistema
de significados da língua.

51
Capítulo2 Multimodalidade, Convenções Visuais e Leitura

No livro seminal Gramática do design visual, infelizmente ainda não


traduzido para língua portuguesa, Kress & van Leeuwen (1996, 2006) ree-
laboraram as metafunções propostas por Halliday e as desenvolveram para
descrição e compreensão do potencial semiótico dos elementos visuais,
sonoros, gráficos etc que podem compor um texto. As tabelas abaixo, ex-
traídas de Fernandes e Almeida (2008:12) nos permitem visualizar de for-
ma resumida as relações estabelecidas pelos autores:

Halliday Kress & van Leeuwen

Responsável pelas estruturas que


constroem visualmente a natureza
dos eventos, objetos e participantes
envolvidos, e as circunstâncias em que
ocorrem. Indica, em outras palavras,
IDEACIONAL REPRESENTACIONAL
o que nos está sendo mostrado, o que
se supõe que esteja “ali”, o que está
acontecendo, ou quais relações estão
sendo construídas entre os elementos
apresentados.

Responsável pela relação entre os


participantes, é analisada dentro da
função denominada de função interativa
INTERPESSOAL INTERATIVA
(Kress e van Leeuwen, 2006), onde
recursos visuais constroem “a natureza
das relações de quem vê e o que é visto”

Responsável pela estrutura e formato


do texto, é realizada na função
composicional na proposição para análise
de imagens de Kress & van Leeuwen, e se
TEXTUAL Composicional
refere aos significados obtidos através
da “distribuição do valor da informação
ou ênfase relativa entre os elementos da
imagem”

Tabela 1: As metafunções (Fernandes e Alameida, 2008, p. 12)

52
Multimodalidades e Leituras

Tabela 2: A Gramática Visual (Fernandes e Alameida, 2008, p. 12)

Segundo Halliday (1985), diferentes redes sistêmicas codificam dife-


rentes tipos de significado, ligando-se, pois, às metafunções da linguagem
supramencionadas. Assim, o sistema de transitividade, especificando os
papéis dos elementos da oração como ator, meta etc, codifica a experi-
ência do mundo, e liga-se, portanto, à metafunção ideacional. O sistema
de modo, especificando metafunções como sujeito, predicador, comple-
mento etc, diz respeito aos papéis da fala, e liga-se com a função interpes-

53
Capítulo2 Multimodalidade, Convenções Visuais e Leitura

soal. O sistema de tema e informação, especificando as relações dentro


do próprio enunciado, ou entre o enunciado e a situação, diz respeito à
metafunção textual. Em outras palavras, pode-se dizer que a metafunção
ideacional é realizada pela categoria léxico-gramatical da transitividade;
a interpessoal se realiza pelo modo e a modalidade; e a textual pelas es-
truturas temáticas. Como assegura van Leeuwen (2004, p.16) “muitos dos
conceitos desenvolvidos nos estudos da gramática e do texto não são es-
pecíficos para a língua”.
Esse princípio será aplicado por Kress & van Leeuwen (1996, 2006)
à análise visual, levando-se em conta as diferenças entre esses três po-
tenciais semióticos. Esses autores defendem ser possível uma gramática
para a análise das imagens, uma sintaxe visual, pois, para esses autores,
imagens não são veículos neutros desprovidos de um contexto social. As-
sim como a linguagem verbal, o social e o cultural são influenciadores dos
significados potenciais que a imagem pode encapsular. Assim, os autores
postulam que a linguagem visual é dotada de uma sintaxe específica na
qual “os elementos se organizam em estruturas visuais para comunicar
um todo coerente, até então associados exclusivamente à análise crítica
de textos verbais” (ALMEIDA, 2008, p.10), bem como argumentam que
as imagens, em seu uso comunicativo, preenchem as mesmas funções. O
infográfico a seguir orienta sua sintaxe, seu modo de leitura, através dos
números em marcadores negritados e das setas que codificam os proces-
sos de produção e distribuição do produto.

54
Multimodalidades e Leituras

Infográfico “Toddynho sobre suspeita”


Fonte: site UOL, In: NASCIMENTO, R. G. Do verbal ao visual: uma análise multimo-
dal de infográficos sob a ótica sistêmico-funcional, In: SOUZA, M. et al (Orgs.). Sinta-
xe em foco. Recife: PPGL/UFPE, Coleção Letras, edição eletrônica, 2012, p.409-437

Analisando esse infográfico, Nascimento (2012, p. 425) afirma que:

“a leitura do gênero não pode ser realizada conforme os moldes


tradicionais, visto que mescla diversos modos de representação
na construção do sentido, a saber: números, cores, imagens, texto
verbal e setas. Para que a leitura fosse realizada adequadamente, o
leitor deveria seguir as ordens do simbolismo matemático e acom-
panhar as setas. A linguagem verbal conjugada às outras semioses
permite o conhecimento da causa do fenômeno: “Falha no processo
de produção na fábrica de Guarulhos causou problema”, bem como
a elucidação das etapas que causaram a falha no processo de fabri-
cação do Toddynho. A imbricação desses vários modos semióticos
compõe um novo discurso no qual a imagem se funde com o ver-
bal e constrói novos sentidos discursivos, denominados de práticas
textuais multimodais ou multissemióticas”.

55
Capítulo2 Multimodalidade, Convenções Visuais e Leitura

Outra razão apontada por van Leeuwen (2004, p. 11) para atentarmos
na análise de gêneros em relação às imagens consiste em observar que “os
limites entre os elementos ou estágios de ambos os gêneros são sempre si-
nalizados visualmente”. Vamos tomar um estudo preliminar, realizado em
2010, por Dionisio e Vasconcelos, quando analisaram a explicação de fra-
ções equivalentes, em um livro didático de Matemática, destinado ao ensi-
no fundamental, para observarmos as demarcações visuais entre os modos
semióticos, entre outros aspectos. Transcrevemos, com adaptações, um
fragmento da análise feita pelas referidas autoras. Vejamos, inicialmente,
o fragmento do livro didático de Matemática:

Fonte: LEZZI, G.; DOLCE, O.; e MACHADO, A. Matemática e Realidade, 6


ano. São Paulo: Atual, 2009, p. 167)

56
Multimodalidades e Leituras

Nesse trecho, o conceito de frações equivalentes envolve três sistemas


semióticos para demonstração do referido conceito, que são sistema lin-
guístico, simbolismo matemático e representação visuais de noções ma-
temáticas. No primeiro parágrafo, o problema é apresentado por meio de
sentenças linguísticas, nas quais a indicação das divisões do todo (deno-
minador) e da quantidade das partes tomadas (numerador) se dá pelo uso
do numeral cardinal e não por uma lexia. Em seguida, são propostos o pro-
blema a ser resolvido “Quem comeu mais chocolate?” e a solução “Obser-
vamos que os dois comeram quantidades iguais”. Esta descrição linguística
poderá favorecer a criação de uma imagem mental.
A continuidade da explicação do conceito se dá pela retextualização,
ou seja, retomam-se os dados do problema pela representação visual dos
dados (Luiz dividiu seu chocolate em 6 partes iguais e comeu 4 delas. Otá-
vio preferiu dividir o seu em 3 partes e comeu 2 partes), através das repre-
sentações das barras de chocolate, e pelo simbolismo matemático ( 4/6 e
2/3). A retextualização, ou transdução, na terminologia de Kress, é anun-
ciada pela dêixis textual, seguida de dois pontos “Vejamos:”. As operações
envolvidas demonstram uma organização visual de contiguidade espacial
entre as representações das barras de chocolate, dividas de acordo com as
informações dadas no texto escrito, e as sentenças linguísticas que as re-
presentam (Luiz comeu 4/6 do chocolate; Otávio comeu 2/3 do chocolate).
Essa organização é um aspecto que poderá cognitivamente favorecer um
melhor processamento pela memória de trabalho. A inserção do simbolis-
mo matemático, como núcleo do sintagma nominal da sentença, ocorre
exatamente neste momento da reescrita do conceito, em que a represen-
tação visual da fração se dá por uma metáfora de uma forma geométrica.
Em outras palavras, verificamos a integração, na unidade sintagmática, do
verbal e do simbolismo matemático, associada à representação visual.

57
Capítulo2 Multimodalidade, Convenções Visuais e Leitura

Nas representações das barras de chocolate, linhas e cores permitem


a visualização de que, apesar da representação numérica ser diferente, ex-
pressa quantidades iguais. Logo, ambos os meninos comeram quantida-
des iguais. A ausência da cor e o pontilhado enfatizam essa quantidade.
A cor marrom, por sua vez, sinaliza o quanto ainda resta das barras de
chocolate, ou seja, favorece a imagem de um mesmo inteiro, condição para
que existam frações equivalentes. Seguindo O’Halloram (2004, p. 112), o
entrosamento dos sistemas de construção de sentido através dos recursos
semióticos garantem o sucesso na construção do texto matemático.
Já em relação ao desenho em que os dois meninos também mostram
suas barras de chocolate divididas de acordo com as informações do texto
escrito, acreditamos ser menos informativo visualmente, por apresenta-
rem apenas a divisão do inteiro e não indicação das quantias consumidas.

58
Multimodalidades e Leituras

Em síntese, essa análise metafuncional das imagens baseia-se em três


pressupostos estabelecidos por esses estudiosos por compreenderem a re-
levância e a força dos textos imagéticos na sociedade hodierna. Vale sa-
lientar que, em nenhum momento, os estudiosos defendem a supremacia
da imagem sobre a linguagem verbal. Nessa perspectiva, postulam que os
modos de representam verbal e visual (i) não são equivalentes nem veicu-
lam os mesmos significados, (ii) não meramente coexistem e (iii) a imbri-
cação entre eles pode afetar a forma e a leitura da mensagem veiculada.
Atentemos para isso, observando os diálogos das cenas 1 e 2, transcritas a
seguir, do filme Entre os muros da escola:

(i) os modos de representam verbal e visual não são equivalentes


nem veiculam os mesmos significados

Entre os Muros da Escola: (00:51:21 – 00:51:50)


Cena 1: O aluno Souleymane lê seu autorretrato, que só teve 1 linha
http://www.pibidletras.com.br/cine-letras/trechos-em-
video-serie-verbetes-enciclopedicos

Souleymane: “Eu me chamo Souleymanee não tenho nada a dizer


porque ninguém me conhece a não ser eu.”
Alguns alunos aplaudem.
Prof.: Chega, chega. Ficou muito bom, um pouco longo, mas
muito bom. Os outros se esforçaram para escrever 10 linhas e você
escreve uma só?
Souleymane: Não sou a fim de contar a minha vida.
Prof.: E porque os outros se...
Souleymane: Se são a fim, problema deles. Eu não conto nada da
minha vida.

59
Capítulo2 Multimodalidade, Convenções Visuais e Leitura

Entre os Muros da Escola: (01:02:46 – 01:03:00)


Cena 2: Souleymane traz em seu celular algumas fotos de sua
família e mostra aos amigos.
http://www.pibidletras.com.br/cine-letras/trechos-em-
video-serie-verbetes-enciclopedicos

Prof.: Vamos entrar.


Aluno: Senhor, senhor. O Souleymane trouxe fotos pra o
autorretrato.
Souleymane: É nada. As fotos estão uma porcaria.
Prof.: Boa ideia.
Aluno: Mostra aí.
Souleymane: Compre um celular.
Prof.: Os pintores fazem autorretratos e fotógrafos também.
Souleymane: Não sou pintor.
Prof.: Isso eu sei, venham, andem.

Na leitura dos diálogos transcritos das cenas, podemos perceber a di-


ferença entre os significados gerados pelo modo verbal (diálogos) e pela in-
tegração linguagem e outros recursos semióticos (filme); ao se “ler” as duas
cenas, temos uma descrição do que se passou em sala de aula no momento
da apresentação do autorretrato de Souleymane e do momento posterior
em que se anuncia que ele, Souleymane, dessa vez, trouxe o autorretrato
em fotos, mas “perdemos” a riqueza semiótica dos gestos, tom de voz, ex-
pressões faciais, alinhamentos corporais dos envolvidos etc. Somente com
a leitura dos diálogos, sem vermos as imagens, a significação é de natureza

60
Multimodalidades e Leituras

predominantemente informativa, diferentemente da significação multimo-


dalmente construída nas cenas quando vistas na história. Quando lemos,
por exemplo, a fala de Souleymane: “não sou a fim de contar minha vida”,
na cena 1 e “Não sou pintor”, na cena 2, só podemos imaginar sua expressão,
mas o jeito de sentar, sua roupa, seu olhar, os quais compõem sua personali-
dade e juntos constroem a significação das cenas não se revelam apenas pela
linguagem verbal.

(ii) os modos de representação verbal e visual não meramente coexistem

O verbal e o visual não meramente coexistem: os autores ressaltam,


nesse momento, a linguagem visual como núcleo de informação mais im-
portante em alguns casos; a integração fotografia e legenda, tão cara ao
fotojornalismo, é uma evidência dessa afirmação, através da qual podemos
comprovar na cena 3, também do filme Entre os Muros da Escola, a força
da imagem,mas com o apoio do texto escrito, no caso, a legenda:

Entre os Muros da Escola: (00:04:57 – 01:06:03)


Cena 3: O professor explica a Souleymane como se faz uma legenda.
http://www.pibidletras.com.br/cine-letras/trechos-em-
video-serie-verbetes-enciclopedicos

Aluno: Agora ficou melhor, está melhor.


Prof.: Essa foto está boa mesmo. Pode colocar uma legenda nela.
Souleymane: Legenda como?
Aluno: Como nas histórias em quadrinhos.
Prof.: Não é esse tipo. É como aquele texto que vem nas fotos dos
jornais.
Souleymane: Como no Le Parisien?

61
Capítulo2 Multimodalidade, Convenções Visuais e Leitura

Prof.: Como, por exemplo, no Le Parisien. O que pode escrever,


quem é esta mulher?
Souleymane: Minha velha.
Prof.: Como assim?
Souleymane: Minha mãe.
Prof.: Pronto, pode dizer que é a sua mãe. Depois pode explicar
que ela está fazendo esse gesto para evitar ser fotografada.
Aluno: Ele e o irmão ficaram irritando ela.
Souleymane: Não vou escrever isso, cara.
Prof.: Por que ela fez esse gesto?
Souleymane: Ela não gosta de fotos.
Prof.: Escreva isso, “minha mãe não gosta que tirem foto dela”
Pronto, você fez uma legenda. Viu? Se fizer isso em todas as fotos
vai ficar ótimo.

Nessa cena, os diálogos acontecidos entre o professor e o aluno Sou-


leymane sobre como se fazer legendas, mostram a importância do apoio
da linguagem verbal em momentos em que as imagens têm um papel cen-
tralizador, como nesse caso das fotografias no autorretrato; embora, nesse
exemplo, a visualidade concentre, por assim dizer, o núcleo informativo,
a imbricação com a escrita (legenda) potencializa os efeitos significati-
vos e amplia, expande essa significação para o contexto de produção das
fotografias. Assim, na interpretação do gênero autorretrato aqui tratado e
de outros onde se faz presente, a legenda possibilita um acréscimo de co-
nhecimentos que a imagem por si só não consegue realizar. A coexistência
dos dois modos, portanto, está mais do que justificada.

62
Multimodalidades e Leituras

(iii) a imbricação entre as semioses pode afetar a forma e a leitura


da mensagem veiculada

Narradores de Javé [00:12:44 – 00:13:26]


http://www.pibidletras.com.br/cine-letras/trechos-em-video-serie-
verbetes-enciclopedicos/

Descrição do fragmento retirada do roteiro final do filme


Narradores de Javé:

Imagem de escritos riscados em todas as paredes da pequena casa


de chão de terra: são frases, fragmentos de poemas e pensamentos
dispersos, porém cuidadosamente “diagramados” junto aos poucos
objetos pendurados e aos batentes de janelas e portas.

Nessa espécie de poesia visual, temos um forte entrelaçamento dos


modos verbal e visual, uma vez que se trata de textos dispersos. O que os
une é exatamente a forma, a composição, ou seja, o modo visual, a forma
cilíndrica em que o autor dispôs os fragmentos escritos e que materializam
uma significação que não é possível sem a conjugação dos dois modos,
ou que seria distinta sem tal união. Nesse caso, a leitura, a compreensão
dos pequenos textos é bastante diferente da que seria dos textos isolados

63
Capítulo2 Multimodalidade, Convenções Visuais e Leitura

ou dispostos em linhas horizontais como é o comum para a escrita. Uma


amostra poética das diferentes possibilidades de nos comunicarmos, de
dizermos mais.

Convenções Visuais e Leitura

A capacidade de compartilharmos convenções está diretamente re-


lacionada com a organização social das comunidades e, em decorrência,
com a organização dos gêneros textuais. Basta lembrarmos, por exemplo,
as pinturas das cavernas, onde os homens registravam a história de sua
comunidade. Certamente, os membros daquele grupo podiam ler os de-
senhos ali registrados. As grandes catedrais da Europa Medieval simbo-
lizavam verdadeiros livros didáticos sobre a teologia cristã, como ainda
hoje se observa no interior de algumas igrejas; consiste numa forma de
acesso à religião. Na sociedade contemporânea, a diversidade de arranjos
retóricos na escrita, às vezes, não-padrões, ou seja, exigindo modos de ler
semelhantes à leitura oriental, resulta da influência da mídia, do desenvol-
vimento tecnológico. Já é senso comum que nossos hábitos de leitura estão
sendo reelaborados constantemente. Desta forma, os materiais didáticos
e, por decorrência, a postura do professor e as formas de avaliação também
devem ser.
Kostelnik & Hasset (2003:24) defendem que “as convenções prestam
um serviço inestimável aos usuários”, ao se tornarem hábitos da mente.
A aprendizagem destas convenções, às vezes, requer uma situação for-
mal como uma situação escolar em que há um treinamento formal para a
aquisição do simbolismo científico, para a notação musical, diagramas de
circuitos, por exemplo. Ou seja, para um processamento cognitivo ade-
quado da informação apresentada em cada lição, em cada novo conteúdo,
o aprendiz precisa ir também se tornando um leitor visualmente fluente
naquela disciplina. Outro fator de dificuldade que o professor precisa fi-
car atento consiste na composição mosaica dos gêneros, isto é, geralmen-

64
Multimodalidades e Leituras

te os gêneros comportam convenções que “são selecionadas e reagrupa-


das como os padrões de deslocamento de um caleidoscópio” (Kostelnik e
Hasset 2003:32). Muitas vezes, em situação de avaliação, são oferecidos
aos alunos, gráficos, tabelas produzidas por profissionais do design grá-
fico que rompem inclusive com os atos de convenções, uma vez que a in-
venção faz parte da construção da informação retórica. O entrave está em
saber se a comunidade leitora está preparada, treinada formalmente, en-
culturada naquela “novidade visual”, e se possui conhecimentos prévios
para processar a leitura e ainda devolver de forma correta a informação
que lhe foi solicitada. A transposição de convenções e dos gêneros que
elas constituem dos seus contextos de produção não é questão tão sim-
ples; especialmente quando se trata do processo de construção do conhe-
cimento e da checagem deste conhecimento.
Gráficos, tabelas, desenhos anatômicos, infográficos, mapas e linhas
do tempo, por exemplo, veiculados na mídia impressa e digital, simboli-
zam alguns dos gêneros textuais que migraram para o domínio educacio-
nal, tanto para serem usados em situações de aprendizagem de conteúdos
específicos como em situações de avaliações. Muitos destes gêneros são
originalmente produzidos em outros domínios discursivos e estão inseri-
dos em outros gêneros, tais como relatórios do IBGE, da ONU, da UNES-
CO, do INMETRO; atlas do IBGE, do INPE entre outros. Por um lado, este
processo migratório dos gêneros representa integração entre sociedade
e escola; representa construção da cidadania via aquisição de conheci-
mentos como fatos e concepções científicos, acontecimentos históricos.
Por outro lado, a compreensão destes gêneros exige de seus leitores fami-
liaridade com a tessitura entre as linguagens utilizadas, com as conven-
ções apresentadas, ou seja, as convenções do design. Esta competência se
constrói (e também se revela) com base em nossas experiências sociais
mediadas por textos, pelas nossas práticas de letramento. Estas práticas
estabelecem a linguagem como

65
Capítulo2 Multimodalidade, Convenções Visuais e Leitura

“uma herança social, uma ‘realidade primeira’, que, uma vez assi-
milada, envolve os indivíduos e faz com que as estruturas mentais,
emocionais e perceptivas sejam reguladas pelo seu simbolismo. (...)
A linguagem permeia o conhecimento e as formas de conhecer, o
pensamento e as formas de pensar, a comunicação e os modos de
comunicar, a ação e os modos de agir. Ela é a roda inventada, que
movimenta o homem e é movimentada pelo homem. Produto e
produção cultural, nascida por força das práticas sociais, a lingua-
gem é humana e, tal como o homem, destaca-se pelo seu caráter
criativo, contraditório, pluridimensional, múltiplo e singular, a um
só tempo” (Brasil, 2000, p. 125).

Optar por gêneros como estes significa reconhecer em suas consti-


tuições convenções visuais que vão além daquelas do sistema linguístico,
tais como simbolismos de áreas como a matemática, a química, a histó-
ria, a biologia etc. São convenções que se combinam nos aspectos textual
(legenda para exibição de dados, rótulos no eixo x e y etc.), espacial (subs-
crito para equação, eixo x-y para gráfico e circular para gráfico-pizza etc.)
e gráfico (marcadores para itens em listas, linhas tracejadas para mostrar
figuras debaixo de superfícies etc.) (cf. KOSTELNICK e HASSETT, 2003).
As convenções visuais e verbais (especializadas das áreas científicas), nos
mais diversificados domínios discursivos, combinam-se, recombinam-se
e se integram, e, ao nos apropriarmos delas, podem favorecer o processo
de aprendizagem. No entanto, esta aprendizagem, às vezes, requer uma
situação formal como uma situação escolar, em que há um treinamento
sistemático para aquisição do simbolismo científico, para notação musi-
cal, para diagramas de circuitos, para desenho anatômico, por exemplo.
Isto significa que para um processamento cognitivo adequado da infor-
mação apresentada em cada lição, em cada novo conteúdo, o aprendiz
precisa ir, também, se tornando multiletrado visualmente em cada disci-
plina. Conhecimento científico requer, portanto, multiletramentos.
Em uma breve análise das questões de português da Prova Brasil
2009, constatamos que das 22 questões para o 5° ano, 13 gêneros diferen-

66
Multimodalidades e Leituras

tes foram utilizados, sendo que em 6 deles havia uma hibridização de


linguagens. Importante destacar ainda que dois deles exigiam também
a articulação com o simbolismo matemático. Tomemos duas questões
para ilustração. Na primeira questão (anúncio da bicicleta), o que é exi-
gido do aluno é uma transferência do simbolismo matemático (3X) para
a expressão lexicalizada “três vezes”.

1. Prova Brasil, 2009, 5° ano – TB_006547

A bicicleta pode ser paga em:


(A) três vezes.
(B) seis vezes.
(C) dezoito vezes.
(D) vinte e seis vezes.

67
Capítulo2 Multimodalidade, Convenções Visuais e Leitura

2. Prova Brasil, 2009, 5° ano – TB_006538

RIMM. A escolha de uma


esposa. In: MATOS, Magna
Diniz; ASSUMPÇÃO, Solange
Bonomo. Na trilha do
texto:alfabetização: novo. São
Paulo: Quinteto Editorial, 2001,
p.28-29.

03 IT_024706
A terceira moça foi a escolhida
pelo rapaz porque ela
(A) demonstrou que era
cuidadosa e paciente.
(B) era mais rápida que as
outras.
(C) provou que os últimos serão
os primeiros.
(D) agradou a senhora da
história.

04 IT_025948
No texto, a primeira moça era
(A) bondosa.
(B) esperta.
(C) gulosa.
(D) inteligente.

68
Multimodalidades e Leituras

Nesta segunda questão, verificamos tratar-se de uma fábula apresen-


tada no formato de carta enigmática. Aqui estão em jogo vários fatores
para a compreensão do texto e, consequentemente, melhor desempenho
nas respostas. Primeiro, a familiaridade com as convenções do gênero car-
ta enigmática, pois há uma intersemiose entre os gêneros. Segundo, uma
leitura das imagens dos personagens (pastor, as três irmãs e uma senhora)
que remeta aos personagens de contos de fada (outro gênero, portanto, é
requerido). Terceiro, a familiaridade com as convenções matemáticas re-
ferentes aos numerais ordinais e cardinais, à noção de fração e os símbolos
indicadores das operações de adição e subtração.
Intercambiando conceitos e exemplos, neste capítulo apresentamos
um painel histórico-teórico analítico de aspectos: multimodalidade, mul-
tiletramento, convenções visuais e leitura, aspectos esses fundamentais
para exercício efetivo das nossas habilidades de uso das diversas lingua-
gens enquanto potenciais significativos. Discutir e comentar essas noções
demonstrando-as em gêneros diversificados envolvendo diversos modos
semióticos foi o modo de possibilitar ao leitor uma compreensão mais am-
pla desses recursos seja na interpretação, momento leitor; seja na produ-
ção, momento autor, sempre que esses papéis nos forem exigidos.

69
Multimodalidades e Leituras

Considerações Finais
O professor que não reconhece as novas mídias como fato consoli-
dado em nossa sociedade, que não concebe o dinamismo das linguagens,
também parece ignorar a língua como um fenômeno heterogêneo, social,
histórico. Consequentemente, tende a ter mais dificuldade para lidar com
a diversidade de gêneros textuais, seus suportes, suas linguagens em sala
de aula. Precisamos ter cuidado para não nos tornarmos um Montag1 das
formas contemporâneas de interação pessoais mediadas pelas novas tec-
nologias.

Apple Destroyed Products by Michael Tompert & Paul Fairchild


Fonte: http://www.pipocadebits.com/2010/11/destruindo-produtos-da-
apple-pela-arte.html

1. Montag é um bombeiro cuja função capital é incinerar livros, personagem principal de Fahrenheit 451”,
levada ao cinema em 1966, com direção de François Truffaut.

71
Considerações finais

Top 10 Reasons to Use Technology in Education: iPad, Tablet,


Computer, Listening Centers
http://www.youtube.com/watch?feature=endscreen&v=mzi2R
It8_nk&NR=1

Miller (2012) apresenta uma reflexão sobre o desenvolvimento tecno-


lógico, estabelecendo um paralelo com a retórica que parece ser bastante
útil para nós, enquanto usuários comuns e professores a interagirmos com
alunos também usuários das demandas tecnológicas. Vejamos:

A tecnologia, assim como a retórica, pode tanto nos empurrar


quanto nos puxar. Não só “os artefatos possuem política”, como
afirmou Landgon Winner (1980), mas eles também possuem re-
tórica. Por um lado, a tecnologia nos “empurra” ou nos manipula
ao requerer que façamos certas coisas e de certas maneiras. Nossas
tecnologias comunicativas nos “empurram”, nos impelem a man-
dar mensagens SMS com não mais que 160 caracteres ou ainda a
acessar linearmente, em uma única direção, um ponto do texto na
tela do computador ou de uma fita magnética. Um catálogo de fi-
chas da biblioteca (lembra-se deles?) requer que procuremos uma
informação usando uma única estratégia de busca por vez. Por ou-

72
Multimodalidades e Leituras

tro lado, a tecnologia nos “puxa”, ou nos auxilia a satisfazer nossas


demandas, ao reconfirmar e reforçar nossas inclinações e propen-
sões (...). (Miller, 2012, p. 17)

Após tudo o que apresentamos e discutimos ao longo do livro sobre


aprendizagem, leitura, recursos cognitivos, multimodalidade, conven-
ções visuais etc, achamos por bem encerrá-lo com esse diálogo entre
os estudiosos Angela Dionisio e Luiz António Marcuschi sobre o modo
como uma criança operacionaliza ou orquestra várias semioses para com-
por um texto de demonstração de carinho e afeto pela sua professora e,
desse modo, põe em jogo, competentemente, o potencial significativo da
língua e das convenções visuais.

Assista a cena: Fala e Escrita (Parte2): [00:06’28’’ a 00h03’13’’]


http://youtu.be/6y9xK-9bbcw?t=6m28s

Marcuschi: Uma criança quando faz uma redação pode pôr lá


o nome da professora e dizer “gosto muito de você”, mas ela pode
desenhar um coração e botar o nome dentro do coração e parece que
gosta muito mais.

73
Considerações finais

Angela Dionisio: Olha, tem um texto interessante que foi produzido


pelas crianças para celebrar o dia dos professores e tem um cartão
aqui, em que está escrito “eu ♥ você” (eu amo você). Há a simbologia
do coração e dentro do coração está escrito “a amizade é o começo de
tudo”. Temos ainda cores, marcas linguísticas de endereçamento “para”,
“de”. A criança mescla várias informações de gêneros escritos na capa
desse cartão e o cartão continua, há mais informação escrita no verso.

Um traço interessante é que houve um reforço para mostrar o quanto


a criança gosta da professora. Olha, Marcuschi, o que acontece: a
criança escreveu, na parte interna do cartão, a palavra P-A-I-X-Ã-O e
abriu umas janelinhas na frente do cartão. Assim ao abrir as “abas/
janelinhas”, a palavra “P-A-I-X-A-O” vai se formando. Então, a ideia do
amor, do carinho, a criança criou, na escrita, não só pelo desenho do
coração, mas pelo uso, mesmo, da palavra “P-A-I-X-Ã-O”, pela expressão
“a amizade é o começo de tudo”, e também pelo reforço visual. Isso que
você estava falando, o reforço argumentativo da repetição na escrita
pelos recursos diferentes, pela criação da palavra nesta perspectiva
vertical, que não é um traço característico da nossa escrita escrever de
cima para baixo. Muito interessante essa produção.

74
Multimodalidades e Leituras

Essa orquestração competente por parte de nossos professores e alu-


nos nas atividades de ensino-aprendizagem em qualquer disciplina do
ensino fundamental e médio é o que almejamos que todos obtenham
num futuro próximo e para isso acreditamos que esse livro e todos os da
série Experimentando Teorias em Linguagens Diversas possam contri-
buir para essa conquista.

Referências:

BAZERMAN, C. Gêneros Textuais, Tipificação e Interação. São Paulo: Cortez, 2005.


BAZERMAN, C. Gênero, Agência e Escrita. São Paulo: Cortez, 2006
BUNZEN, Clecio & MENDONÇA, Márcia (orgs.). Múltiplas linguagens para o ensino
médio. São Paulo: Parábola, 2013.
DIONISIO, A. & VASCONCELOS, L. Genres and Multimedia Learning: some theoretical
and methodological reflections on pedagogical application. Manuscrito. Recife, 2010.
Manuscrito.
DIONISIO, Angela. Gêneros textuais e multimodalidade. In: KARWOSKI, Acir, GAYDECKZA,
Beatriz & BRITO, Karim (org.) Gêneros Textuais: reflexões e ensino. São Paulo: Parábola, 2011.
DIONISIO. Angela. A multimodalidade discursiva na atividade oral e escrita. IN:
MARCUSHI, Luiz. A e DIONISIO. Angela. (orgs.). Fala e Escrita. Belo Horizonte, Autêntica.
Disponível em http://www.ceelufpe.com.br/e-books/Fala_Escrita_Livro.pdf, 2005.
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visual nos cartazes de guerra. In: ALMEIDA, D. L. B. Perspectivas em análise visual: do
fotojornalismo ao blog. João Pessoa: Editora da UFPB, 2008, p. 11-31.
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Oxford University Press, 1985.
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JEWITT, Carey. & KRESS, Gunther. (ed). Multimodal Literacy. New York, Peter Lang,
2003.

75
Considerações finais

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KALTENBACKER, Martin. Multimodality in language teaching CD-ROMs. In: VENTOLA,
Eija. CHARLES, Cassily e KALTENBACHER, Martin. (org.) Perspectives in Multimodality.
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76
Multimodalidades e Leituras

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(ed.) What Writing Does and How It Does It: An Introduction to Analyzing Texts and
Textual Practices. New York: Lawrence Erlbaum Associates, pp. 123-163.

77
Prefixo Editorial: 66530

Comissão Editorial

Editores Executivos
Augusto Noronha e Karla Vidal

Conselho Editorial
Angela Paiva Dionisio
Antonio Carlos Xavier
Carmi Ferraz Santos
Cláudio Clécio Vidal Eufrausino
Clecio dos Santos Bunzen Júnior
Leonardo Pinheiro Mozdzenski
Pedro Francisco Guedes do Nascimento
Regina Lúcia Péret Dell’Isola
Ubirajara de Lucena Pereira
Wagner Rodrigues Silva

INFORMAÇÕES GRÁFICAS

FORMATO: 210 x 297 mm


TIPOLOGIA: Constantia / Myriad Pro

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