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O oculto
(Das Verborgene)
O que acontecia com Heidegger, nos dias em que sua pátria e sua gente
eram esmagados, em 1945, com tropas e bombardeios dos aliados?
Pela idade o Reich o poupara de ser incorporado e ele continuava seu
trabalho na universidade e na pesquisa – escritura dos textos novos e revisão
dos manuscritos – em Messkirch ou Todtnauberg. São do começo dos anos 40
as duas obras mais notáveis da época: Parmênides e Heráclito. Eram o fim da
grande filosofia de Heidegger, no fim da sua atividade acadêmica e no fim da
pátria que desencadeara a hecatombe com a destruição, o desespero humano e
a morte. Temos, nas cartas notáveis de Heidegger para Elfride, editadas pela
neta Gertrud Heidegger, o documento mais impressionante das suas
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“Mein liebes Seelchen”, Briefe Martin Heideggers an seine Frau Elfride, 1915-1970, editado e comentado
por Gertrud Heidegger, Editora DVA, Munique, 2005.
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“Dia e noite estou junto com meus manscritos, isto é, ocupado em salvar o todo num estado mais ou menos
com sentido. Caso contrário não consigo mais “trabalhar”. Mas o caminho e os trabalhos que dele fazem parte
desde “Ser e tempo” até 1932 consegui agora apresentar e apontei as orientações e contextos. Agora vem
ainda o tempo de 1934 até hoje. Mais difíceis, mais amplos e contudo na essência mais claros e mais simples.
Às vezes desespero de conseguir fazer tudo, porque é necessária a revisão de muita coisa. Os colegas da
universidade não tem nada disto para deixar, e, por isso, podem ter outras preocupações e pensam que hoje
ainda se pode salvar a “universidade” depois que já há muito se fracassou.” (Carta de 8 de janeiro de 1945).
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“Não queria até agora escrever-te sobre isso, porque pensava que era apenas um esgotamento passageiro.
Mas a falta de sono continua, bem como leves desmaios e dores de cabeça e depressões. (Carta de 2 de
fevereiro de 1945).
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“No último ano de guerra foram liberados 500 dos mais importantes cientistas e artistas, de qualquer tipo de
serviço de guerra. Eu não fazia parte dos liberados, ao contrário, fui mandado, no verão de 1944, para os
trabalhos de trincheira, lá no Reno, no Kaiserstuhl.”(Heidegger, 1966, em entrevista à revista Spiegel).
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II
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“Kant, com 56 anos, em condições mais tranqüilas para ele, escreveu a Crítica da Razão Pura.Tenho a clara
certeza que eu estou justamente no limiar para o dizer mais vívido e simples. O “depois da guerra” não
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Temos, então, um filósofo que não simplesmente cuida de sua obra. Ele
quer preservá-la para as novas gerações. O filósofo tem uma tarefa, uma
espécie de missão, que o impele a salvar o que está escrito e a pensar e
escrever para que o novo apareça, num tempo que levou a Europa, o Ocidente
à destruição pelo destino da técnica e pela vontade de dominação. É como se
tudo tivesse acontecido porque não se pensou o que não passa, o essencial, o
simples.
Da guerra pouco fala o filósofo e como se arriscaria a fazê-lo por
escrito, diretamente. É espantosa a contenção das palavras, de um lado, como
descobrimos, de outro lado, até a desmedida, a pretensão do pensador que se
consome, numa agitação sobrehumana, por algo que persegue como tarefa,
destino e missão.
Uma estranha manifestação é a transformação do filósofo, que queria
refazer o pensamento ocidental e que agora vê, na sua obra, algo enigmático e
real que está oculto, mas terá que aparecer para que a humanidade se salve,
no fim da guerra. Talvez tudo isso se expresse, na carta de 15 de março de
1946, a Elfride, escrita em Badenweiler, no sanatório onde se recupera do
absoluto esgotamento, ao qual o levou o que vimos até aqui. Não ouçamos o
que segue, primeiro como patológico, por mais que possa levar a pensarmos
em delírio ou paranóia.
existirá na forma de agora. Caso ainda reste um espaço para o pensar. Que achas, será que a aflição mais
íntima da História e do Ocidente consome e perturba de modo bem diverso a gente que as indigências sociais
e o sofrimento humano que, de modo algum, desconsidero em sua importância?” (Carta de 8 de janeiro de
1945).
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Essa passagem revela aspectos que certamente não se esgotam no contexto das intenções de nosso trabalho.
A junção de outros eventos, por mais dolorosos que sejam, com uma obra que se pensa ter que realizar, que se
presume com destino, revela uma lógica do delírio da paranóia.
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III
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Também esta passagem da carta liga, sem vínculo lógico algum, a condição futura da humanidade com um
modo do pensar que o filósofo resume na nova grafia da palavra Sein substituída por Seyn.
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“Em toda a escuridão e confusão do caminho, se oculta um desígno. O destino da pátria, indevassável para
o pensamento e seu futuro que ainda o espera é aquilo para que estamos preparados na silenciosa oficina,
estimulados renovadamente por um crescente saber” (Carta de 8 de abril de 1946, em Cartas 2005 p. 248).
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Ao leitor atento da obra de Heidegger, não passa desapercebido o deslocamento das análises formais de
caráter epistêmico para realidades concretas, sugeridas muitas vezes como sendo enigmáticas exigindo, por
isso, condições particulares não universalizáveis para qualquer um.
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Para conmpreender melhor esta atitude, ver o livro de Matussek, P. – Analytische Psychosentherapie, vol.2,
Berlin, Springer-Velag.