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ANO 11 / NÚMERO 128 R$ 14,90

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MEDICALIZAÇÃO DA VIDA UM EXÉRCITO SINGULAR THE POST
A EXPLOSÃO DOS CUBA, O PAÍS QUEM ESCOLHE
REMÉDIOS TARJA PRETA DO VERDE-OLIVA OS HERÓIS?
POR GÉRARD POMMIER POR RENAUD LAMBERT POR PIERRE RIMBERT

00128

LE MONDE 9 771981 752004

BRASIL
diplomatique
TRIBUNAIS DE EXCEÇÃO
2 Le Monde Diplomatique Brasil MARÇO 2018

NUNCA SE VAI DEPRESSA O BASTANTE

© Santiago
A ofensiva geral
POR SERGE HALIMI*

m ex-ministro da Economia so- lhos cordões dessa “doutrina de cho- dos atrasos, acidentes, péssimo estado concluir que, “para as gerações de 1951

U cialista que, mais tarde, fundou


um partido liberal à sua ima-
gem e semelhança explicou
certa vez a arte e o modo de criar uma
sociedade de mercado: “Não tentem
que”. Empresa Nacional das Ferrovias
Francesas (SNCF, na sigla em francês),
serviço público, hospital, escola, direi-
to trabalhista, fiscalização do capital,
imigração, TV pública: para onde
de conservação das linhas, preço exor-
bitante das passagens..., pois o minis-
tro dos Transportes quer “rapidez na
ação”. Quando surge a oportunidade,
“nunca se vai depressa o bastante”, co-
e seguintes”, isto é, 80% da população
francesa, “o tempo de vida como apo-
sentado deverá cair um pouco em
comparação com o da geração de
1950”.2 Ou seja, um progresso histórico
avançar passo a passo. Definam clara- olhar e como resistir quando, sob o mo insistia Douglas. acaba de se inverter. Esse tipo de infor-
mente seus objetivos e se aproximem pretexto de uma catástrofe que se O governo francês conta igual- mação não feriu nossos tímpanos. E
deles em saltos qualitativos, para que aproxima, uma dívida prestes a explo- mente com as notícias falsas das gran- Macron não nos avisou que era “ur-
os interesses de classe não tenham dir e a “vergonha da República”, a en- des mídias para disseminar “elemen- gente agir” nessa frente...
tempo de se mobilizar e atrapalhar vo- grenagem das “reformas” gira a todo tos de linguagem” favoráveis a seus
cês. A rapidez é essencial e nunca se vapor? As ferrovias? Um relatório con- projetos. A ideia – aceita imediata- *Serge Halimi é diretor do Le Monde
vai depressa o bastante. Iniciado o fiado a um compadre retomou o in- mente depois de divulgada – de que “a Diplomatique.
programa de reformas, não parem até ventário das preces liberais até então SNCF custa mil euros a cada francês,
vê-lo concluído: o fogo do inimigo per- não atendidas (fim do estatuto dos fer- mesmo àqueles que não tomam trem”,
de em precisão quando tem de atingir roviários, transformação da empresa lembra o famoso “cada francês pagará
um adversário sempre em movimen- em sociedade anônima, fechamento 735 euros para liquidar a dívida grega”
1 Ver Le grand bond en arrière. Comment l’ordre li-
to”. Emmanuel Macron? Não, Roger das linhas deficitárias). Cinco dias que, em 2015, contribuiu para o sufo- béral s’est imposé au monde [O grande salto para
Douglas, ministro das Finanças da após sua publicação, uma “negocia- camento financeiro de Atenas pela trás. Como a ordem liberal se impôs ao mundo],
Nova Zelândia entre 1984 e 1988, um ção” teve início para disfarçar a medi- União Europeia. Agone, Marselha, 2012 (1. ed.: 2004).
2 “L’âge moyen de départ à la retraite a augmenté de
ano após deixar o cargo. Ele dava en- da ditatorial que se queria impingir Às vezes, a verdade vem à tona, mas 1 an et 4 mois depuis 2010” [A idade média de
tão as receitas da contrarrevolução aos sindicatos. É necessário se apro- tarde demais. Inúmeras “reformas” da aposentadoria aumentou em 1 ano e 4 meses a
que seu país acabava de viver.1 veitar sem demora do clima de desmo- previdência foram justificadas pelo partir de 2010], Études et Résultats, n.1052, Direc-
tion de la Recherche, des Études, de l’Évaluation et
Cerca de trinta anos depois, o pre- bilização política, de divisão sindical, aumento geral da expectativa de vida. des Statistiques (Drees), Ministério da Saúde, Pa-
sidente francês manipula todos os ve- de exasperação dos usuários diante No entanto, um estudo oficial acaba de ris, fev. 2018.
MARÇO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 3

EDITORIAL

De mal a pior
POR SILVIO CACCIA BAVA

© Claudius

hega a ser desesperador. O Exe- condições de vida e trabalho. O au- provocam nas maiorias. Na verdade, Esse cenário nos leva a questionar

C cutivo, o Legislativo e o Judiciário


se alinharam com a oligarquia fi-
nanceira e estão destruindo o
Brasil e nossa democracia.
No plano econômico estão des-
mento nos preços dos serviços públi-
cos, numa lógica de mercado, faz cres-
cer a espoliação das maiorias.
No plano político, o governo gol-
pista endurece e elege, com oportunis-
não se importam com isso. Porém, em
ano eleitoral, essa é uma receita para
perder as eleições. Mesmo os partidos
de direita buscam se afastar desse go-
verno, rejeitado por mais de 70% da
se teremos mesmo eleições este ano. É
necessário abrir a discussão sobre essa
possibilidade para debatermos os ca-
minhos da resistência política demo-
crática, agora e também no caso de
truindo os instrumentos para uma po- mo eleitoral, o combate à violência co- população. Mas nem no grupo do go- não termos eleições.
lítica econômica soberana e, em suas mo prioridade. Sua resposta para a verno nem nos partidos de direita sur- A conjuntura nos mostra uma dis-
próprias palavras, essa verdadeira insatisfação social, para as manifesta- ge um candidato com possibilidades puta de visões e valores na sociedade
quadrilha, sem plano algum de gover- ções coletivas e para a violência gerada de vencer as eleições. Bolsonaro é o civil como nunca houve antes. A direita
no, declara: “Vamos privatizar tudo pelo desamparo é mobilizar o Exército único com apoio popular, em segun- se organizou com apoio internacional
que é público e seja privatizável”. Es- e cercar as favelas, isto é, cercar os po- do lugar nas preferências eleitorais, e hoje, segundo empresários brasilei-
quartejaram a Petrobras, entregaram bres e impor aí um estado de sítio. Na mas com tamanha fragilidade em sua ros, já conta com mais de cem entida-
o pré-sal para as multinacionais a pre- questão social, nem se fala – ignoram candidatura e projeto de governo que des e think tanks no Brasil que cotidia-
ço de banana, apequenaram o BNDES, por completo as causas da violência. não deve aguentar os primeiros deba- namente propagandeiam sua visão,
querem privatizar a Caixa, o Banco do Os mandatos coletivos de busca e tes eleitorais. seus valores e suas políticas em espa-
Brasil, a Eletrobras... Como se isso não apreensão, a licença para matar ao Ora, se as pesquisas dão 37% de vo- ços mais especializados de discussão e
bastasse, continuam distribuindo transferir para a justiça militar o julga- tos para Lula e dizem que, mesmo que para a população de maneira geral.
isenções tributárias para quem não mento dos “excessos” praticados pelo ele seja impedido de se candidatar, seu Quando Lula foi condenado, os dis-
precisa, como no caso das multinacio- Exército nas favelas ocupadas, o con- poder de transferência de votos levará cursos em protesto à decisão falavam
nais estrangeiras que compraram o trole militar do espaço público nas ci- para o segundo turno o candidato do de organizar a resistência, com comi-
pré-sal (isenções estimadas em R$ 40 dades, tudo isso mostra uma guinada PT, o cenário se complica para os gol- tês populares em defesa da democra-
bilhões/ano, apenas neste caso). mais do que brutal desse governo. As pistas. Se houver eleições, eles podem cia nos lugares de trabalho e moradia.
No plano social, a “PEC do fim do palavras de ordem para tratar as ques- perder. E isso é inadmissível para os Essa discussão precisa ser levada a sé-
mundo”, aquela que congela os gastos tões sociais são controle e repressão. governantes, até porque, caso se resta- rio, e precisamos olhar com atenção o
sociais por vinte anos, o fim da CLT, o Os direitos de cidadania hoje só são de- beleça a democracia, quando deixa- movimento organizado nos Estados
aumento do desemprego, o ataque à fendidos pelos movimentos sociais, re- rem o cargo estarão seriamente amea- Unidos pelos defensores da candida-
Previdência, os cortes em saúde e edu- presentações coletivas dos mais po- çados de ir para a cadeia. Isso vale para tura de Bernie Sanders. O Our Revolu-
cação, o estrangulamento das finanças bres e dos trabalhadores, e por algumas a maioria dos integrantes tanto do tion (https://ourrevolution.com) foi
dos municípios e estados, tudo leva ao entidades de profissionais de classe Executivo quanto do Legislativo. criado para manter mobilizados os jo-
colapso do sistema público (policiais e média. A Fiesp, a CNI e as representa- O ensaio de ocupação militar das vens que aderiram à sua plataforma
professores sem receber salários, por ções patronais, de maneira geral, dão áreas urbanas pobres, que após a fa- política, que previa, entre outras coi-
exemplo) e a uma crescente precariza- suporte ao golpe e a este começo de se das UPPs recrudesce agora no Rio sas, dobrar o salário mínimo. Eles fun-
ção das condições de vida em geral. É uma nova ditadura. A TV, liderada pela de Janeiro, pode se estender para ou- daram um movimento político, mas
bom que se diga com todas as letras Globo, cria o medo e a insegurança na tras cidades com os mesmos proble- não partidário, que em seu primeiro
que essas ações foram decisões políti- população para que ela se submeta ao mas. Os militares adquiriram expe- ano já conta com mais de seiscentos
cas, não são inevitáveis nem decorren- arbítrio e aceite a violência institucio- riência no Haiti sobre o controle de comitês locais, presentes em todos os
tes de uma crise herdada. A crise foi fa- nal, os assassinatos da polícia, como áreas urbanas. estados dos Estados Unidos.
bricada para que pudessem fazer o que única maneira de manter a ordem. Há indícios ainda de que no inte-
estão fazendo, transferindo para em- Os brasileiros estão sendo ataca- rior das Forças Armadas há uma dis-
presas privadas o patrimônio público e dos por um governo e uma classe pa- puta e uma ala que defende a interven- 1 Eduardo Militão, “Estudos apontam perda de R$ 1
tri em renúncia fiscal após leilão do pré-sal”, UOL,
a exploração de serviços e equipamen- tronal que não medem a violência e a ção militar em razão da falência das 31 out. 2017.
tos de interesse comum, rebaixando as exclusão que suas políticas públicas instituições. 2 Pesquisa do Instituto Ipsos, dez. 2017.
4 Le Monde Diplomatique Brasil MARÇO 2018

CAPA

Poder Judiciário:
a ponta de
lança da luta
de classes

© Alves
O papel do Judiciário na canalização
das disputas e a crença disseminada
de que os tribunais são capazes,
em algum grau, de aplicar a lei tal
como ela está formulada fazem nascer
uma sensação de abandono quando
deparamos com uma situação
de arbitrariedade judicial indisfarçada.
A quem vamos recorrer, quando até
a Justiça é injusta?
POR LUIS FELIPE MIGUEL*

golpe de 2016 representou um dade a que possam aspirar. No Brasil, ocorridas nas últimas décadas e sau- proteção a grupos oprimidos ou ao

O duríssimo revés na percepção


até então dominante de que a
democracia brasileira, mesmo
com todos os seus problemas e aos
trancos e barrancos, caminhava para
chama atenção o protagonismo assu-
mido pelo Poder Judiciário.
O papel do Judiciário na deflagra-
ção e convalidação do golpe político é
perceptível para qualquer observador.
dadas em geral como “avanços”.
Desde a promulgação da Constitui-
ção de 1988, observadores da política
brasileira têm falado do crescente pro-
tagonismo do Poder Judiciário. A Carta
meio ambiente. As decisões tomadas
no âmbito das cortes superiores po-
diam representar, por vezes, uma
usurpação do poder de legislar, mas se
mostravam mais avançadas do que
sua “consolidação”. Não foi apenas Mas a ação cotidiana de juízes de todas constitucional garantiu prerrogativas aquelas advindas de um parlamento
porque as classes dominantes aban- as instâncias também corrobora o viés estendidas e propiciou mudanças de notoriamente corrompido e no qual
donaram o respeito às regras do jogo e favorável aos grupos dominantes, co- comportamento dos agentes, levando era crescente a capacidade de chanta-
decidiram virar a mesa quando perce- mo mostram as sentenças diferencia- aos fenômenos paralelos da “judiciali- gem de grupos fundamentalistas.
beram que, novamente, eram incapa- das conforme a posição social dos acu- zação da política”, que faz as disputas O Tribunal Superior Eleitoral intro-
zes de impor seus preferidos por meio sados – por exemplo, a posse de uma passarem a ser resolvidas nos tribu- duziu regulações na disputa partidá-
da eleição popular. O impeachment pequena quantidade de droga ilegal nais, e do “ativismo judiciário”, pelo ria (a chamada “verticalização” das
ilegal da presidenta Dilma Rousseff e o pode levar a desenlaces completamen- qual o poder relativiza sua caracteriza- coligações, depois revogada em 2002),
acelerado retrocesso em direitos e li- te diferentes de acordo com a cor da ção tradicional como “inerte”, avoca a no exercício parlamentar (a perda de
berdades que se segue a ele mostram pele e a classe social do portador. Em si a iniciativa da ação e toma decisões mandato parlamentar por desfiliação,
que as instituições não só não cumpri- seu conjunto, o Poder Judiciário atua que seriam do Legislativo ou do Execu- em 2007) e no funcionamento das co-
ram seu papel de proteger a ordem como avalista da desigualdade e das tivo. Outra inovação da Constituição tas eleitorais para mulheres (com o en-
constitucional e a democracia, como relações vigentes de dominação – o que foi a enorme ampliação do âmbito de tendimento de que o descumprimento
também participaram ativamente de corresponde, aliás, à posição do direito atuação do Ministério Público, órgão da regra levaria à impugnação da lista
sua subversão. como “código da violência pública or- vinculado ao Poder Executivo, mas que partidária, em 2010) que se alinhavam
O que a onda global de desdemo- ganizada”, como escreveu Poulantzas. cumpre funções judiciárias. ao ideal normativo da competição de-
cratização e os golpes brandos ocorri- O que chama atenção do Brasil é No período de ascensão democrá- mocrática compartilhado por liberais
dos principalmente na América Latina que o Judiciário ocupa a posição de tica que se seguiu à promulgação da esclarecidos e por grande parte da es-
vêm revelando é que o ordenamento ponta de lança da luta de classes, cum- nova Constituição, esse alargamento querda brasileira. O Supremo Tribunal
político da democracia liberal pode ser prindo papel crucial na produção, dos poderes de juízes e procuradores Federal estabeleceu direitos de mino-
usado para impedir o progresso social, aplicação e, em particular, legitima- foi, em geral, visto de forma positiva rias sexuais (reconhecimento da união
bloquear as demandas por igualdade ção das medidas que implicam retro- pelas correntes mais progressistas. A civil homoafetiva, em 2011) e ampliou
e, embora mantendo uma aparência cessos para a classe trabalhadora e ou- defesa de interesses coletivos e difu- direitos reprodutivos (extensão do di-
de normalidade, despir os mecanis- tros grupos em posição subalterna. O sos, atribuída ao MP, prometia uma reito de aborto no caso de anencefalia
mos democráticos de qualquer efetivi- que permitiu isso foram mudanças ampliação – necessária e urgente – da fetal, em 2012), em sintonia com ban-
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deiras progressistas. Sem discutir o cano que ensina como coagir acusados dência da República. Por um lado, a in- quando da deposição de Dilma e ocor-
mérito das decisões, elas com certeza para que denunciem seus cúmplices.1 dicação de juristas abertamente com- rem agora com a condenação de Lula,
extrapolam o que era a intenção origi- Em vários momentos, sua atuação se prometidos com as causas populares cumprem muito mais um papel de de-
nal do legislador. Nenhuma delas teria mostrou claramente casada com o cro- seria encarada como rompimento do núncia, já que a corte demonstrou
passado no Poder Legislativo. nograma da derrubada da presidenta pacto que permitia a permanência do mais de uma vez seu desprezo pela le-
O desenvolvimento talvez mais Dilma, culminando na divulgação do PT no poder e a implantação de políti- galidade fraturada.
surpreendente foi a aprovação em áudio de uma escuta telefônica ilegal, cas tímidas (mas mesmo assim impor- É uma situação dramática porque,
2010, pelo próprio Congresso, de legis- com uma conversa entre ela e Lula. Em- tantes) de resgate da dívida social. A se a lei é um código da violência do Es-
lação que confere ao Judiciário um bora o juiz tenha sido obrigado a um atuação do Supremo como avalista tado, como diz a citação de Poulant-
poder de veto na seleção de candida- envergonhado pedido de desculpas e dos retrocessos é um indício, entre zas referida antes, ela também organi-
tos às eleições. A chamada Lei da Fi- ao reconhecimento de que a divulga- muitos outros, de que as condições de za, inibe e torna predizível essa
cha Limpa, apresentada como inicia- ção da conversa fora “equivocada”, ele manutenção desse pacto foram erodi- violência. Sua imparcialidade ostensi-
tiva popular, apoiada pela quase continuou chefiando a operação. das. Essa é a ficha que falta cair para va e os valores civilizatórios que ela
unanimidade dos parlamentares e Atualmente, como se sabe, Moro e o uma parcela da esquerda brasileira. tem de aparentar encarnar são con-
sancionada entusiasticamente pela tribunal de recursos ao qual sua vara cessões arrancadas pela luta dos gru-
Presidência da República, em meio a está vinculada, o TRF-4, são instru- pos dominados. Também podem ser
um verdadeiro clamor midiático, de- mentais no impedimento à candidatu- usados contra os dominantes e cons-
terminou a tutela do Judiciário sobre a ra presidencial do ex-presidente Lula, trangem o exercício arbitrário do po-
soberania popular. Ainda assim, pou- que é outro importante passo no esva-
Em seu conjunto, der. O império da lei não é a garantia
cas vozes se ergueram contra ela. ziamento do que restava de esperança o Poder Judiciário de uma sociedade justa, já que a lei re-
Diante das dificuldades para ele- de respeito ao princípio básico da de- atua como avalista flete a correlação de forças dentro des-
var a educação política média dos bra- mocracia liberal – a consulta ao povo da desigualdade sa sociedade. Mas a ruptura do siste-
sileiros, a Ficha Limpa parecia um para a escolha dos governantes. ma legal, que permite à dominação
atalho seguro para a “moralização” Como um juiz de primeira instân-
e das relações social se exibir em toda a sua nudez,
do Estado. Trata-se de um elemento cia foi capaz de acumular tamanho vigentes de retira dos mais frágeis as garantias
constante: o elogio da ação política do poder? A resposta se vincula tanto às dominação que eles foram capazes de obter.
Poder Judiciário, no momento em que peculiaridades da organização do Po- Quando a discricionariedade ex-
ela alavancava causas progressistas, é der Judiciário no Brasil a partir da tralegal do sistema judicial, que nunca
tingindo por uma percepção elitista Constituição de 1988 quanto à bem- Por outro lado, o campo jurídico deixou de operar em prejuízo das po-
(juristas capacitados podem decidir -sucedida ofensiva do juiz Sérgio Moro possui seus próprios filtros e mecanis- pulações mais pobres e periféricas,
com mais competência) e pelo desâ- junto à opinião pública, orquestrada mos internos para forçar a adaptação atinge o coração do sistema político, a
nimo quanto à possibilidade de pro- com os meios de comunicação hege- às posições mais conformistas, mor- democracia liberal entra em colapso.
duzir uma opinião popular mais en- mônicos. Moro se tornou o emblema mente quando se alcançam funções de Significa que a ordem instituída não
gajada e esclarecida. vivo do combate à corrupção e, por- mais prestígio, poder e visibilidade. permite mais sequer que suas próprias
Outra característica do Brasil é que tanto, intocável. As muitas arbitrarie- Como em outros campos (o jornalismo promessas sejam mobilizadas para
o ativismo judiciário não é privilégio dades que cometeu ao longo do pro- serve de exemplo), o conservadorismo conter sua violência. Significa que a
das cortes superiores. Até mesmo juí- cesso foram quase sempre abafadas transita como “imparcialidade”, mas pressão dos dominados, que era acei-
zes de primeira instância podem to- após exposição mínima, e denúncias visões críticas e comprometidas com a ta, desde que controlada, como parte
mar decisões de enorme repercussão de graves irregularidades que o cha- justiça social aparecem como sectá- do jogo, agora deve ser extirpada.
coletiva – os casos de bloqueio de apli- muscavam, como aquelas que trans- rias, dificultando, portanto, a ascensão O papel do Judiciário na canaliza-
cativos de smartphones com milhões parecem no depoimento do advogado na carreira. Certamente há juízes pro- ção das disputas e a crença dissemina-
de usuários servem de exemplo. Na cri- Rodrigo Tacla Duran, foram simples- gressistas, mas estão em situação pare- da de que os tribunais são capazes, em
se política brasileira, o juiz paranaense mente deixadas de lado. cida à de oficiais militares progressis- algum grau, de aplicar a lei tal como
Sérgio Moro ocupou posição central ao A pergunta mais importante, po- tas nos anos 1960. As iniciativas do ela está formulada fazem nascer uma
liderar a Operação Lava Jato. Embora a rém, é outra: por que as instâncias su- Conselho Nacional de Justiça com vis- sensação de abandono quando depa-
justificativa para o impeachment nada periores do Judiciário não intervieram tas à perseguição de dissidentes ainda ramos com uma situação de arbitra-
tivesse a ver com a operação, apoian- diante de abusos tão patentes nas in- têm encontrado resistência, mas mos- riedade judicial indisfarçada. A quem
do-se em operações de crédito junto a vestigações? Questão intrigante, sobre- tram que, na conjuntura aberta com o vamos recorrer, quando até a Justiça é
bancos estatais (as chamadas “pedala- tudo quando se lembra que, dos onze golpe, é possível que o Poder Judiciário injusta? É a realidade de um país que
das fiscais”), ela foi instrumental para ministros do Supremo Tribunal Fede- se torne ainda menos arejado. passou de uma democracia formal, li-
criar o clima de opinião que sustentou ral no período da derrubada de Dilma, No início deste ano, dois eventos mitada, para uma democracia menos
a derrubada do governo. Declarada- oito tinham sido nomeados por ela ou dissimilares apontaram para mudan- que formal, cujas instituições não se
mente inspirado na operação italiana por Lula. Qualquer explicação deve le- ças no cenário. Um deles foi a exposi- preocupam mais em disfarçar sua ten-
Mãos Limpas, Moro julga que é impor- var em conta que o STF não ficou imu- ção, pela mídia hegemônica, de vanta- denciosidade em favor dos poderosos.
tante dar grande visibilidade midiática ne ao clima de opinião formado a partir gens imorais auferidas por grande parte Como instituição política que é, o
e obter o “apoio da opinião pública” ao da Lava Jato – e a vulnerabilidade au- dos juízes, incluído aí o próprio Sérgio Poder Judiciário é sensível à correlação
combate à corrupção. mentada à pressão da “opinião públi- Moro, em particular um “auxílio-mora- de forças na sociedade. É a resistência
A Lava Jato revelou parte da cor- ca” e da mídia é uma das características dia” dado a quem evidentemente não contra os retrocessos, o aumento na
rupção sistêmica da política brasileira do Judiciário ativista. E também que os precisa dele. Ao que parece, setores da mobilização social, o protesto contra
por meio de operações espetaculares governos petistas não foram capazes coalizão golpista decidiram indicar ao as arbitrariedades e a desobediência
que, no entanto, atingiram de forma de apresentar indicações para o Supre- Judiciário que ele não é intocável. O ou- civil que podem restaurar o funciona-
muito desproporcional o PT e seus mo que estivessem à margem do esta- tro foi o anúncio, pelo ocupante da Pre- mento mínimo de uma justiça bur-
aliados. Seu modus operandi privile- blishment jurídico e político. Pelo con- sidência, da intervenção federal no Rio guesa que, ainda que sem perder o
giado, a “delação premiada”, dá gran- trário, optaram quase sempre por de Janeiro, que concede peso e visibili- qualificativo “burguesa”, possa aspi-
de margem a que o agente da lei orien- demonstrar moderação, preferindo ju- dade a um ator que, até agora, era man- rar ao nome de “justiça”.
te o curso da investigação. Muitas ristas conservadores e com trânsito nos tido à sombra: as Forças Armadas.
vezes, seus resultados dependem da partidos de direita. Também aqui a po- Quaisquer que sejam as mudanças *Luis Felipe Miguel é professor do Institu-
desobediência ao devido processo le- lítica de conciliação cobrou seu preço. a que levem as disputas internas entre to de Ciência Política da Universidade de
gal e de formas de intimidação contra É preciso ponderar, porém, que se os grupos que deram o golpe em 2016, Brasília.
testemunhas e suspeitos. trata de uma situação difícil, não algo é ilusório pensar que o Judiciário pode
Não custa lembrar que Moro é o tra- que se pudesse resolver por um mero ser um agente do retorno à democra- 1 Ver Stephen S. Trott, “O uso de um criminoso
dutor do artigo de um juiz norte-ameri- ato de vontade do ocupante da Presi- cia. Recursos ao STF, como ocorreram como testemunha”, Revista CEJ, n.37, 2007.
6 Le Monde Diplomatique Brasil MARÇO 2018

O PREÇO DE SE TORNAR UM ATOR POLÍTICO

A Justiça no centro da crise política


Mesmo composto por grupos distintos, instâncias e atribuições específicas, o Judiciário hoje é um ator tão conhecido
como completamente envolvido nas decisões políticas do Brasil. E, sim, isso muda o jogo. Sejam quais forem os rumos
que o país vai tomar nos próximos anos, essa conta também recairá sobre a Justiça
POR GRAZIELLE ALBUQUERQUE*
© Daniel Kondo

oje, praticamente todos os te- Em 2018, certamente a Justiça Elei- mos: como recorrer a uma instituição Latina, como a Argentina, que teve

H mas políticos debatidos no país


passam pelo Supremo Tribunal
Federal (STF). Efeito, entre ou-
tras questões, do que a academia cha-
ma de “judicialização da política”.1 O
toral ganhará destaque e, para com-
pletar a exposição, a cobertura sobre a
intervenção federal/militar no Rio de
Janeiro dá conta de uma nota de apoio
às Forças Armadas assinada por mem-
que já se posicionou? De todas as ques-
tões, aqui me concentro em uma: mes-
mo composto por grupos distintos,
instâncias e atribuições específicas, o
Judiciário hoje é um ator tão conhecido
uma Justiça de transição atuante, o
Brasil até hoje se esquiva de prestar
contas sobre a ditadura militar.
Com o Ato Institucional n. 2, o AI-2,
o general Castelo Branco transferiu os
fato é que a Constituição Federal de bros da magistratura e do Ministério como completamente envolvido nas processos políticos da Justiça comum
1988 desenhou um modelo de sistema Público integrantes do Movimento de decisões políticas do Brasil. E, sim, isso para a Justiça militar. O AI-2, baixado
de justiça com um protagonismo ím- Combate à Impunidade (MCI). A nota muda o jogo. Sejam quais forem os ru- em outubro de 1965, dava início à mu-
par. De todos os integrantes desse sis- não é um fato extraordinário ou isola- mos que o país vai tomar nos próximos dança que seria solidificada em 1967,
tema, que engloba, entre outros, Mi- do de um movimento desconhecido. anos, essa conta também recairá sobre com a entrada em vigor da nova Cons-
nistério Público e Defensoria Pública, Embora alguns ministros do Supremo a Justiça. tituição e, sobretudo, com a emissão
o Judiciário é sem dúvida um poder tenham dado declarações questio- do Ato Institucional n. 5, o AI-5, que
que deixou de orbitar à margem da to- nando a ação, o Judiciário está imbri- VISIBILIDADE TARDIA em dezembro de 1968 suspendeu até
mada de decisões para se instalar no cado nela, como se pode ver pela ad- Talvez seja difícil perceber a im- mesmo a apreciação de habeas corpus
centro da crise política brasileira. missão de dispositivos jurídicos como portância dessa observação em pri- de crimes políticos, crimes contra a se-
Só nos primeiros meses do ano, o os “mandados coletivos” de busca e meiro plano, mas um breve panorama gurança nacional, a ordem econômica
julgamento do ex-presidente Lula no apreensão, do ponto de vista jurispru- histórico ajudará nesse exercício. e social e a economia popular. É claro
Tribunal Regional Federal da 4a Região dencial, e pelo apoio institucional da- Grande parte dessa “descoberta” pú- que o Judiciário era parte da estrutura
(TRF4) e as pautas sobre o auxílio-mo- do à intervenção, verificado em reu- blica só ocorreu no final da década de do Estado e do próprio regime ditato-
radia demonstram como o antes “ilus- niões como a ocorrida no Palácio da 1990 (vide CPI do Judiciário, em 1999) rial, e isso merece um olhar acurado,
tre desconhecido” Judiciário não pode Guanabara, no dia 17 de fevereiro. Na e ao longo dos anos 2000 (vide Refor- mas, do ponto de vista de uma exposi-
mais ganhar essa denominação. Vol- ocasião, o presidente do Tribunal de ma do Judiciário, em 2004), não ape- ção mais ampla, a Justiça comum fica-
tando um pouco no calendário, na vi- Justiça do Rio de Janeiro, o desembar- nas pela demora em sentir os efeitos da va fora da “jogada”. Estava à margem e
rada de dezembro de 2017, foi o indulto gador Milton Fernandes de Souza, co- Constituição de 1988, mas também não tinha a visibilidade de agora.
de Natal que bateu à porta do Supre- locou o Judiciário estadual à disposi- porque, sem ser um poder eletivo e es- Esse e outros fantasmas pareceram
mo. As pautas são diversas e podemos ção do interventor. tando distante dos questionamentos ressuscitar diante da aprovação pelo
enumerá-las à exaustão. O foco atual Muitos pontos de análise podem relativos à democratização do país e Congresso Nacional, em outubro de
quase sempre recai sobre o STF e a ser levantados com base nesse quadro, dele próprio – enquanto instituição –, 2017, da Lei n. 13.491, que transfere da
Operação Lava Jato, mas seria uma in- em especial a velha tensão relativa ao o Judiciário passou ileso às faturas co- Justiça comum para a militar o julga-
verdade dizer que os holofotes se limi- pacto entre os três poderes e o papel do bradas no período de abertura. Ao mento de homicídios cometidos por
tam a ambos. Judiciário como árbitro. Em outros ter- contrário de outros países da América militares durante operações especiais
MARÇO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 7

de segurança pública em território na- de finalidade no ato da presidente Dil- go de toda a discussão sobre a legalida- Tube e, agora também, de quem vai
cional, e também com declarações co- ma Rousseff (PT) em nomear Lula (PT) de dos vazamentos, quando se cruza a acompanhar de perto as pautas da se-
mo a do comandante do Exército, ge- como ministro, por que não teria havi- fronteira do campo político, a questão gurança pública (do sistema carcerá-
neral Eduardo Villas Bôas, sobre a do na conversão, pelo presidente Mi- da opinião pública entra em cena. E os rio carcomido ao desenrolar da inter-
preocupação de que se instale uma no- chel Temer (MDB), de Moreira Franco vazamentos são um exemplo bem re- venção no Rio de Janeiro). A Justiça
va “Comissão da Verdade” após o fim (MDB) em ministro?”. presentativo dos diversos momentos brasileira está nas manchetes.
da intervenção. Voltando ao ponto da Deixo as perguntas no ar e desloco em que a Justiça passou a ter um papel Todo esse emaranhado talvez leve
exposição e do jogo de poder, nos anos o raciocínio do plano normativo e de- político na crise, tendo de se posicionar as instituições do sistema de justiça a
1960, 1970 e 1980, qualquer análise cisório para o da comunicação. Tam- publicamente sobre ela, ingressando perceber que essa não é uma função
midiática e política certamente in- bém do ponto de vista midiático, os re- em uma disputa midiática. acessória. Ao embarcar na agenda do
cluiria os militares numa relação dire- cados que o Supremo dá são diversos e Quem não se lembra das discus- Executivo e do Legislativo, ou mesmo
ta com Executivo e Legislativo. Agora, denotam, sim, um comportamento sões entre os ministros Cezar Peluso e de determinados grupos de interesse e
além da caserna, o Judiciário e Minis- político. Vejamos alguns exemplos: Eliana Calmon sobre os poderes de in- pressão, o Judiciário se acopla a eles. Is-
tério Público fazem, literalmente, par- 1. Em novembro de 2015, após a di- vestigação do Conselho Nacional de so acontece nos debates da cúpula, mas
te da rede. vulgação da gravação do ex-senador Justiça (CNJ)? Ou de quando o CNJ le- é bem provável que, com a questão da
Essa não é uma ironia, é mesmo Delcídio do Amaral (PT-MS), revelan- vantou a bandeira de combate ao ne- segurança nacional em pauta, as co-
uma avaliação técnica. O pesquisador do que era preciso “centrar fogo” no potismo? Cito esses exemplos por seu branças explodam também nas ques-
Fábio Malini2 fala que, se procurado- STF (o áudio citava os ministros Teori conteúdo ligado à atuação da própria tões mais cotidianas da sociedade.
res e juízes já brilharam no Twitter, Zavascki, Dias Toffoli, Edson Fachin e Justiça e para destacar que, ainda as- Em dezembro de 2015, em um arti-
chegou o momento em que militares Gilmar Mendes), o Supremo reagiu de sim, nem de longe esses casos estavam go aqui para o Le Monde Diplomatique
entraram no palco. Fazendo análise forma imediata, determinando a pri- restritos aos aspectos jurídicos. Aliás, Brasil,4 arrematei meu raciocínio afir-
de cartografia de redes políticas brasi- são de Delcídio. Na sessão que homo- nenhum dos exemplos levantados mando que “quem se expõe acaba
leiras desde 2012, Malini afirma que logou a prisão, a ministra Cármen Lú- aqui está. No fim das contas, é a ima- sempre tendo de responder”. É fato. O
nunca generais e o Exército aparece- cia foi enfática ao dizer que os gem da Justiça que aparece. que digo agora é que não se trata de
ram como atores relevantes em seus corruptos não passarão sobre os juí- mera exposição; ao assumir determi-
mapas. Agora, temos Executivo, Legis- zes. Além disso, tanto Toffoli como nada posição, a Justiça será cobrada
lativo, Judiciário e militares todos no Mendes se pronunciaram negando por ela. Na América Latina como um
mesmo “balaio”. qualquer interferência. Também do ponto todo, o empoderamento do Judiciário
Ainda que caibam diversas distin- 2. Em março de 2016, a escuta libe- de vista midiático, os foi uma aposta num sistema de garan-
ções, ratifico meu ponto: não impor- rada pelo juiz Sérgio Moro, em que o tias e direitos que se antagonizasse ao
tam as pautas, se das questões mais ex-presidente Lula chamava o Supre-
recados que o Supremo horror dos truculentos regimes mili-
classistas aos bastidores palacianos, mo de acovardado, teve seu conteúdo dá são diversos e tares. Agora, a Justiça está diante de
passando pela agenda de governo (que criticado no dia seguinte pelo ministro denotam, sim, um um duplo impasse: lidar com ques-
agora sai da Reforma da Previdência e Celso de Mello. O decano do STF se re- comportamento tões que traz de seu próprio passado e
se concentra na segurança pública), a feriu às declarações de Lula como uma com uma necessidade urgente de de-
Justiça brasileira está presente. Nesse ofensa grave à dignidade institucional
político mocratização interna, e lidar com po-
sentido, grosso modo, mesmo saben- do Judiciário, um insulto inaceitável e sicionamento político em relação aos
do de todas as tensões internas, pode- passível de repulsa. No dia seguinte, outros poderes e com a missão de
-se falar de uma imagem de Justiça em um evento em Manaus, o presiden- POSIÇÃO E COBRANÇA atuar nessa nova democracia. Há um
que aparece na ponta como “una”. Lá te do Tribunal, Ricardo Lewandowski, A gama de exemplos levantados é, imenso risco de a Justiça, que tanto
no final da linha, pode-se supor que a também criticou as declarações, afir- sem dúvida, extensa, mas sua ampli- tentou se colocar como heroica e apo-
opinião pública enxergue “uma Justi- mando que o Supremo jamais esteve tude é proposital. O que ela demonstra lítica, tomar o lugar inverso. A relação
ça” e só depois passe a lhe distinguir os acovardado. Contudo, em outro episó- é que em diversos planos o Judiciário com a opinião pública pode ser vista à
segmentos. Indo além, no centro dessa dio de natureza semelhante, ocorrido (e não apenas ele, o Ministério Público parte, mas o que ela talvez faça de
hipótese, por tudo já elencado aqui, é na sequência, pode-se ver uma postura também entra nessa conta, embora mais potente seja expor esse dilema e
pertinente admitir que o que surge distinta por parte dos ministros. com suas peculiaridades) passa a ser sua devida fatura. Um Judiciário polí-
dessa exposição é mesmo uma Justiça 3. Em maio de 2016 houve a divul- observado. Tecnicamente, ele foi agen- tico que escolhe um lado arcará com
que se comporta como ator político. E gação dos áudios de Romero Jucá (PM- dado. É parte da agenda midiática e as consequências dessa escolha.
isso tem um preço. DB-RR), Renan Calheiros (PMDB-AL) e pública. Mas não é apenas isso. Ele
José Sarney (PMDB-MA), todos fazen- também está ligado a um enquadra- *Grazielle Albuquerque é jornalista e dou-
RECADOS PÚBLICOS do menções diretas ao Supremo em mento, a um framing. Ou seja, mostra- toranda em Ciência Política pela Universida-
Se fizermos um recorte sobre a uma atitude de cumplicidade com o -se e o faz de determinada forma. Essa de Estadual de Campinas (Unicamp), e foi
atuação política da Justiça, talvez o fo- impeachment que se combinaria com forma é política e seletiva. Por que com visiting doctoral research no German Institute
co no STF nos dê a amostra mais ade- o arrefecimento da Lava Jato (a fala de uns e não com outros? Por que dessa of Global and Area Studies (Giga), em Ham-
quada. Muitas críticas públicas se vol- Jucá foi repetida à exaustão na impren- forma e não daquela? Por que veloz burgo. Seu trabalho se volta para a atuação
tam para o comportamento díspar do sa e nas redes sociais, referindo-se a nesse processo e devagar naquele? Es- do sistema de justiça, em especial para sua
Tribunal, julgando casos semelhantes uma “mudança” no governo federal sas são perguntas que começam a ser interface com a mídia.
de forma diversa. Em um artigo na Fo- que resultaria em um pacto para “es- feitas por uma opinião pública que
lha de S.Paulo (28 jan. 2018), Conrado tancar a sangria”, um acordo “com o passa não só a reconhecer a Justiça, 1 Segundo C. Neal Tate e Torbjörn Vallinder, a ex-
Hübner Mendes, professor de Direito Supremo, com tudo”). Mesmo diante mas também perceber sua maneira de pressão pode ser vista como uma maneira de en-
Constitucional da Universidade de São da repercussão das gravações, houve agir, seu comportamento. tender as causas e consequências da expansão do
poder judiciário no processo decisório das demo-
Paulo (USP), fala que o Supremo pas- apenas uma nota oficial do STF e uma Com isso, questões históricas sobre cracias contemporâneas. Mais detalhes podem
sou de poder moderador a poder ten- declaração de Luís Roberto Barroso a falta de democratização da Justiça ser vistos no trabalho de Koerner e Maciel, que fa-
sionador, agredindo a democracia bra- publicada no El País3 negando qual- aparecem. Contudo, deve-se ressaltar zem um balanço teórico da discussão sobre o
tema. Andrei Koerner e Débora Alves Maciel. Sen-
sileira. Seleciono algumas indagações: quer interferência. Nenhuma fala em que elas não surgem como algo passa- tidos da judicialização da política: duas análises.
“Se Delcídio [do] Amaral (PT-MS), plenário ou reação mais contundente. do, mas estão na conta do dia de quem Lua Nova, n.57, p.113-134, 2002. Disponível em:
Eduardo Cunha (MDB-RJ), Renan Ca- Os três episódios tiveram similari- segue os ministros do Supremo no <http://www.scielo.br/pdf/ln/n57/a06n57.pdf>.
2 “No Twitter, vampiro cola mais em Temer do que
lheiros (MDB-AL) e Aécio Neves (PS- dades, mas receberam respostas dis- Twitter, de quem vê a cobertura políti- intervenção”, Piauí, 24 fev. 2018.
DB-MG) detinham as mesmas prerro- tintas e, como o debate não se restringe ca (sim, o Judiciário hoje está comple- 3 Ver “Barroso: ‘Modelo do Brasil não é capitalismo,
gativas parlamentares, por que, diante ao campo jurídico, o STF vê-se diante tamente inserido nas editorias de polí- é socialismo para os ricos’”, El País, 24 maio 2016.
4 “Entre o espetáculo e o controle: a Justiça e
das evidências de crime, receberam do aprendizado de que a cobrança se tica), de quem assiste às sessões do seus holofotes”, Le Monde Diplomatique Brasil,
tratamento diverso? Se houve desvio dará também em outra ordem. Ao lar- Supremo na TV Justiça ou as vê no You- dez. 2015.
8 Le Monde Diplomatique Brasil MARÇO 2018

WELFARE, WARFARE E LAWFARE

Quando os ilegalismos ultrapassam


as fronteiras dos espaços populares
O que há de comum entre Rafael Braga e Luiz Inácio Lula da Silva? É enorme a distância que separa essas pessoas,
personagens recentes da história de nosso país. Nada os aproxima em sua trajetória de vida nem nas escolhas cotidianas
que fizeram. Talvez então o que os ligue sejam os tempos em que vivemos, de exceção
POR MÁRCIA PEREIRA LEITE E JULIANA FARIAS*

que mudou na história recente despreparo ou desvio de conduta, mas dem: “A penalidade seria então uma Financeira] para operar na Organiza-

O do Brasil, quando a gestão dife-


rencial de ilegalismos que
transformou favelas e periferias
em espaços de indeterminação,1 onde
os direitos da população são sistemati-
como um modo – pensado, deliberado
– de governar os pobres. A face mais
visível da administração da exceção é
posta em prática pelas forças policiais
que ali operam, ora pelo uso da força
maneira de gerir as ilegalidades, de
dar terreno a alguns, de fazer pressão
sobre outros, de excluir uma parte, de
tornar útil a outra, de neutralizar es-
tes, de tirar proveito daqueles. [...] a pe-
ção para a Cooperação e o Desenvolvi-
mento Econômico (OCDE) e que for-
mará uma minuta de uma legislação
penal econômica para todos os países-
-membros da OCDE. A ideia seria tra-
camente violados, desborda as frontei- desmedida4 (para além da norma nalidade não ‘reprimiria’ pura e sim- balhar com o princípio da globalização
ras dos espaços populares e atinge a constitucional) contra criminosos e plesmente as ilegalidades; ela as econômica, o que exigiria, com o tem-
“cidade” formal e outros segmentos moradores (incluindo a prática de ho- ‘diferenciaria’, faria sua ‘economia ge- po, também a globalização de partes
populacionais? O que mudou quando micídios), ora pela permissividade ral’. E se podemos falar de uma justiça do Direito – não de todo ele, evidente-
os jogos de poder passaram a usar os com o crime, administrando “merca- não é só porque a própria lei ou a ma- mente. [...] A minuta foi adotada pelos
ilegalismos não apenas em relação aos dorias políticas”5 em seu benefício neira de aplicá-la servem aos interes- países-membros da OCDE e [...] alguns
“de baixo”? Muitos de nós só então co- privado. Mas peritos, gestores de polí- ses de uma classe, é porque toda a ges- [outros países], como é o caso do Bra-
meçaram a questionar nossa demo- ticas públicas, outros funcionários do tão diferencial das ilegalidades por sil, foram convidados a adotar essa le-
cracia e a alertar sobre estarmos vi- Estado e políticos também se situam intermédio da penalidade faz parte gislação em troca de uma série de van-
vendo um estado de exceção. As nesse campo, tratando os moradores desses mecanismos de dominação”.7 tagens, como acesso a mercados, novas
“fronteiras das leis como campo de não como cidadãos com direitos, mas É dessa perspectiva que lemos a en- tecnologias, linhas de financiamento
disputa”2 parecem não mais se referir como populações a controlar: ora os trevista de Eduardo Farias, professor com juros favorecidos...”.9
estritamente aos espaços populares e, reprimindo em seu cotidiano e suas da USP e da FGV, que sustenta “uma Afinal, quem (ou o que) nos gover-
por isso mesmo, despertam atenção e ações coletivas, ora autorizando im- mudança no conceito de prova, de na – nós, que acreditamos (ou acredi-
interesse dos que não se importavam plicitamente seu extermínio por meio processo e de delito” ao analisar as távamos) na democracia, nos procedi-
muito quando os ilegalismos estavam do dispositivo do auto de resistência, e tensões entre duas “arquiteturas jurí- mentos, na Justiça, na lei? A entrevista
restritos às favelas e periferias das sempre rebaixando suas reivindica- dicas” em choque no Brasil da Lava Ja- revela como estamos desajustados aos
grandes cidades. ções por políticas públicas e bens de to.8 Nela, muitas argumentações refe- tempos em que vivemos. A Constitui-
E o que há de comum entre Rafael cidadania.6 rentes às novas tecnologias de poder, ção de 1988 não conta mais nestes
Braga (negro e catador de materiais re- mas nenhuma referência aos nossos tempos em que o ajuste ao novo capi-
cicláveis) e Luiz Inácio Lula da Silva (lí- preceitos constitucionais: “[...] há aqui talismo selvagem se sobrepõe à pri-
der metalúrgico, fundador do Partido uma questão importante para verifi- mazia da lei e das garantias procedu-
dos Trabalhadores, deputado federal e
Afinal, quem (ou o que) carmos a mudança das gerações prin- rais? Pode-se mudar o conceito de
presidente do Brasil por dois manda- nos governa – nós, cipalmente no campo do Direito Penal prova porque assim o determina o Ga-
tos)? É enorme a distância que separa que acreditamos e no campo do Direito Econômico, fi? O ônus da prova não cabe mais ao
essas pessoas, personagens recentes (ou acreditávamos) mudança decorrente de uma atuação acusador? Bastam convicções, mesmo
da história de nosso país. Nada os cada vez mais sofisticada do crime or- sem provas, como na condenação de
aproxima em sua trajetória de vida
na democracia, nos ganizado e das organizações terroris- Lula no caso Petrobras-Guarujá?10 In-
nem nas escolhas cotidianas que fize- procedimentos, tas na Europa. Os países europeus que quéritos podem dispensar a oitiva de
ram. Talvez então o que os ligue sejam na Justiça, na lei? vinham estudando nos anos 1980 a testemunhas e acatar somente pala-
os tempos em que vivemos, de exce- possibilidade de formar uma União vras de policiais, como no caso Rafael
ção. Refletir sobre isso é a proposta Europeia, saindo da mera zona econô- Braga?11 Mesmo sem amparo constitu-
deste artigo. mica e constituindo uma comunidade cional, delação premiada torna-se pro-
Há alguns anos, cientistas sociais, Foucault, pensando no exercício integrada, perceberam que seria ne- va substantiva? A condução coercitiva
militantes de movimentos e defenso- do poder, forjou a noção de “gestão di- cessário dar um passo semelhante na e a prisão provisória visando acordos
res de direitos humanos discutem co- ferencial de ilegalismos” como uma área do Direito Penal, o qual deveria de delação podem ser acatadas pelos
mo, mesmo quando se pensava estar forma de “organizar a transgressão ser globalizado. Esse processo foi pen- tribunais superiores graças a essa lógi-
em uma normalidade democrática, das leis numa tática geral de sujei- sado a partir da premissa de que em ca da repressão ao crime financeiro e
favelas e periferias se transformaram ções”. Pondo em relevo as positivida- vez de reprimir o crime organizado do ajustamento às necessidades da
em espaços de exceção. Se é certo que des dos ilegalismos, compreendeu o nas suas consequências seria melhor globalização? A brecha legal para tudo
os grupos de traficantes de drogas ilí- Estado e as formas de governo não por asfixiá-lo financeiramente, – o mesmo isso parece estar, entre outros instru-
citas são um de seus operadores, pelo suas imperfeições ou lacunas na apli- valeu para o terrorismo”. mentos jurídicos, na Lei n. 13.260, que
despotismo que impõem aos que ali cação da lei, mas pelos agenciamentos Farias nos esclarece o sentido desse regulamenta o disposto no artigo 5o da
habitam,3 também é certo que, nesses realizados como ações possíveis na agenciamento: “Com esse propósito, Constituição Federal, reformulando o
espaços, a administração da exceção composição dos jogos de poder que em 1989 foi constituído em Paris um conceito de terrorismo, disposições
se faz por agentes do Estado, não por negociam os parâmetros da lei e da or- grupo chamado Gafi [Grupo de Ação investigatórias e processuais.12
MARÇO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 9

Para compreender essa mudança, meio de uma “gestão diferencial de ile- *Márcia Pereira Leite é professora associa-
vale examinar os argumentos de Hu- galismos”: a entrevista do ministro da da do Departamento de Ciências Sociais e
berman, em seu excelente artigo so- Justiça, Torquato Jardim, qualificando do Programa de Pós-Graduação em Ciên-
bre o lawfare.13 O autor considera law- a intervenção como guerra assimétri- cias Sociais da Universidade do Estado do
fare “uma forma de conflito na qual a ca: “Na guerra assimétrica, você não Rio de Janeiro (PPCIS/Uerj); Juliana Farias
lei é usada como arma de guerra [...]: o tem território, qualquer um pode ser é do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu, da
emprego de manobras jurídico-legais inimigo, não tem uniforme, não sabe Unicamp.
como substituto de força armada, vi- qual é a arma. Você está preparado
sando alcançar determinados objeti- contra tudo e contra todos, todo o tem-
vos de políticos”. No caso da condena- po. [...] se passar um guri de 15 anos de
1 Giorgio Agamben, Estado de exceção, Boitempo,
ção de Lula, como no dos petistas do idade, você vê a foto dele, já matou São Paulo, 2004.
caso Mensalão e no impeachment de quatro, entrou e saiu do centro de re- 2 Vera Telles, “Fronteiras da lei como campo de dis-
Dilma Rousseff, usou-se a teoria do cuperação, uma dúzia de vezes, e está puta: notas inconclusas a partir de um percurso de
pesquisa”. In: Patricia Birman et al. (orgs.), Disposi-
domínio de fato,14 cuja aplicação em ali com um fuzil exclusivo das Forças tivos urbanos e trama dos viventes: ordens e resis-
casos de corrupção passiva, ele sus- Armadas, você vai fazer o quê? Prende. tências, FGV, Rio de Janeiro, 2015.
tenta, é questionável. O guri vai lá e sai, na quarta ou quinta 3 Luiz Antonio Machado da Silva (org.), Vida sob cer-
co: violência e rotinas nas favelas do Rio de Janei-
“Segundo Alaor Leite [aluno de Ro- vez que você vê o fulano, vai fazer o ro, Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 2008.
xin], ‘a teoria do domínio do fato não quê? Você tem uma reação humana aí 4 Jean-Paul Brodeur, “Por uma sociologia da força
serve para fundamentar responsabili- que deve ser muito bem trabalhada pública: considerações sobre a força policial e mi-
litar”, Caderno CRH, v.XVII, n.42, 2004.
dade penal pela mera posição de desta- psicologicamente, emocionalmente, 5 Michel Misse, Crime e violência no Brasil contem-
que no interior de uma estrutura hie- no PM ou no soldado. Você está no porâneo, Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2006.
rárquica’. Ou seja, os juízes precisam posto, mirando a distância, na alça da 6 Juliana Farias, Governo de mortes: uma etnografia
da gestão de populações de favelas no Rio de Ja-
provar a relação, não apenas deduzi-la. mira aquele guri que já saiu quatro, neiro, tese de doutorado (Sociologia), UFRJ, 2014;
[Entretanto,] todos tiveram, em co- cinco vezes, está com a arma e já ma- e Marcia P. Leite, “State, market and administration
mum, entre as justificativas de suas tou uns quatro. E agora? Tem que espe- of territories in the city of Rio de Janeiro” [Estado,
mercado e administração de territórios na cidade
condenações, não exatamente provas rar ele pegar a arma para prender em do Rio de Janeiro], Vibrant, a sair.
legais, mas o ‘conjunto da obra’.”15 flagrante ou elimino a distância? Ele é 7 Michel Foucault, Vigiar e punir, Vozes, Petrópolis,
Acompanhando Huberman, mas um cidadão sob suspeita porque não 2004, p.226-227.
8 “‘Há uma mudança no conceito de prova, de pro-
retornando a Foucault, considera- está praticando o ato naquele momen- cesso e de delito’: Entrevista com José Eduardo
mos que o que se atualiza aqui é uma to ou é um combatente inimigo? Os Faria”, O Estado de S. Paulo, 6 fev. 2018.
nova tecnologia de poder, que opera EUA enfrentaram esse tema como um 9 Idem.
10 “Afinal, procurador da Lava Jato disse ‘não temos
pela “gestão diferencial dos ilegalis- inimigo combatente. É a noção de prova, temos convicção’?”, G1, 15 set. 2016.
mos”, exercendo a dominação por guerra assimétrica, estamos vivendo 11 “Por que o caso de Rafael Braga não choca o Bra-
meio do uso da lei e de sua aplicação uma guerra simétrica”.20 sil?”, Justificando, 26 abr. 2017.
12 Aprovada pelo Congresso Nacional, a lei antiterro-
diferenciada em relação aos defini- O ministro ainda defendeu altera- rismo foi sancionada pela presidenta Dilma, sob
dos como amigos ou inimigos do blo- ções jurídicas de proteção àqueles que pressão do Gafi, em 16 de março de 2016.
co no poder.16 cometerem crimes intencionais,21 13 “Estudiosos do direito já inventaram um nome para
isso: ‘lawfare’. Formada pela conjunção das pala-
Stephen Graham sustenta que vi- considerando insuficiente a Lei n. vras inglesas ‘law’ (‘lei’), e ‘warfare’ (guerra), o ter-
vemos em tempos em que a possibili- 13.491/2017, sancionada por Temer,22 a mo pode ser traduzido para algo como ‘guerra jurí-
dade de integração social dos cidadãos qual transfere para a Justiça Militar o dica’”. Bruno Huberman, “De Gaza a Porto Alegre,
a lei como arma de guerra”, Outras Palavras, 28
a um Estado de bem-estar (welfare) foi julgamento de militares que comete- jan. 2018.
substituída, perante as exigências do rem crimes contra civis nas “missões 14 “Criada pelo jurista alemão Claus Roxin nos anos
capitalismo financeiro, por uma for- de garantia da lei e da ordem”, como 1960 [para] lidar com os mandantes dos crimes
cometidos durante o período [nazista] [...], [susten-
ma de gestão de territórios e popula- no recente caso do cerco à Rocinha. ta que] quem ocupa posição dentro de um chama-
ções que envolve a militarização da vi- Para concluir, voltamos aos casos do aparato organizado de poder e dá o comando
da (warfare), apoiada na doutrina do de Rafael Braga e de Lula. O que eles para que se execute um delito, tem de responder
como autor e não só como partícipe”. Idem.
novo urbanismo militar: “[...] mani- nos ensinam? O primeiro desvenda 15 Idem.
festa no uso da guerra como metáfora que o Judiciário é peça fundamental 16 Ver o não indiciamento do senador Perrella pela
dominante para descrever a condição da engrenagem racista de Estado que Polícia Federal no caso do contrabando de co-
caína em helicóptero de sua propriedade, como
constante e irrestrita das sociedades vemos funcionar a pleno vapor no seria de esperar em termos dos procedimentos
urbanas – em guerra contra as drogas, Brasil de 2018. O segundo, a condena- legais usuais (https://veja.abril.com.br/brasil/o-
o crime, o terror, contra a própria inse- ção de Lula, evidentemente não inau- -helicoptero-de-perrella-e-as-acoes-controla-
das/) e os casos de corrupção tornados públicos
gurança urbana”.17 gura a seletividade penal no Brasil, e também não averiguados pela Lava Jato.
No Brasil dos últimos anos, transi- mas adiciona elementos importantes 17 Stephen Graham, Cidades sitiadas: o novo urba-
tamos do welfare (ao menos como pro- para o debate. Entre eles, que hoje os nismo militar, Boitempo, São Paulo, 2016, p.26.
18 Ver os casos de aplicação da Lei de Garantia da
messa) para o warfare (sobretudo nos jogos de poder podem e usam dos ile- Lei e Ordem (prevista no art. 142 da Constituição
espaços populares, mas também em galismos também em relação aos “de Federal, disciplinada pela Lei Complementar n.
relação a movimentos sociais e políti- cima”, dispondo de um extenso e 97/1999 e regulamentada pelo Decreto n.
3.897/2001) nos governos Dilma e Temer. “Dilma
cos tidos como ameaçadores da ordem crescentemente atualizado repertó- também acionou militares contra protestos, em
e da segurança interna).18 Nos dias que rio no campo do lawfare. Os conflitos 2013”, Valor, 24 maio 2017.
correm, o caminho para o lawfare pa- sociais são geridos e a guerra aos 19 Decreto n. 9.288, de 6 de fevereiro de 2018.
20 “‘Não há guerra que não seja letal’, diz Torquato Jar-
rece bem pavimentado. Vivemos no “inimigos” é realizada por meio de dim ao Correio”, Correio Braziliense, 20 fev. 2018.
Rio de Janeiro mais um agenciamento uma negociação dos parâmetros da 21 “Não temos legislação totalmente adequada. [...]
que aprofunda a exceção: a interven- lei e da ordem e de sua aplicação dife- Nesse pacote que está sendo discutido pelo depu-
tado Rodrigo Maia e pelo senador Eunício de Oli-
ção militar decretada por Temer.19 renciada em relação a territórios e veira, é provável que esses temas sejam enfrenta-
Não podemos nos deter no tema, segmentos específicos para permitir dos”. Idem. O mesmo sentido tem a reivindicação
mas assinalamos a existência de diver- a realização dos interesses excluden- de “anistia prévia” do general Eduardo Villas Boas,
comandante do Exército, que se queixa da “inse-
sos debates sobre o sentido, a eficácia e tes do bloco no poder. Se não enten- gurança jurídica” para agir no âmbito da interven-
© Daniel Kondo

a constitucionalidade da intervenção dermos isso e se não considerarmos e ção sem o risco de uma nova Comissão da Verda-
federal. E destacamos um dos elemen- agirmos pela democracia não só para de. “Autoanistia prévia na intervenção civil-militar
do Rio”, Filhos e Netos, 20 fev. 2018.
tos que embasam nosso argumento da os “de cima”, pouca esperança nos 22 “Lei que autoriza Justiça Militar julgar morte de civil
vigência do lawfare, atualizado por restará como nação. é sancionada”, Consultor Jurídico, 16 out. 2017.
10 Le Monde Diplomatique Brasil MARÇO 2018

CONJUNTURA

A contrarrevolução no Brasil
A oligarquia amedrontada associou-se com interesses internacionais contrários à nossa soberania que lhe permitiram
somar forças para uma contrarrevolução antidemocrática de natureza preventiva. Seu objetivo é evitar que as contradições
da desigualdade e da exclusão que ela própria gera continuem a se converter em força política adversa à sua continuidade
POR WOLFGANG LEO MAAR*

© Odyr

stá em curso no Brasil um movi- trabalhadores, seus partidos e organi- Pela visão oligárquica, colocaram- Essa situação, muito favorável à

E mento contrarrevolucionário,
contra a sociedade democrática.
Não é um movimento contra
uma “revolução”, mas um movimento
em moldes “revolucionários” – revolu-
zações, mas justamente aquelas clas-
ses presentes na oligarquia.
A violência da luta de classes no
Brasil instala-se por meio da classe do-
minante. A oligarquia do capitalismo
-se em risco os interesses do capitalis-
mo no país. Sob o manto de aparente
estabilidade nas práticas sociopolíti-
cas, econômicas e, sobretudo, culturais
da coligação de forças nacional e inter-
consolidação do neoliberalismo, evi-
dencia que o que se apresenta como ca-
pitalismo no Brasil é incompatível com
práticas democráticas, participativas e
públicas. Justamente essas práticas de-
ção não é necessariamente de esquer- brasileiro é muito perigosa, haja vista nacional que a sustenta, as oligarquias mocráticas constituem o alvo da con-
da! – que recorre à ruptura e não exclui que, por suas práticas, demonstradas têm muita resiliência, derivada de cos- trarrevolução para estancar comporta-
o uso da violência. agora sobejamente, faz mal à saúde, à tumes erguidos em raízes firmes desde mentos sociais que questionam as
A contrarrevolução é preventiva: educação, às eleições, ao emprego, à os primórdios deste país com o nome barreiras que mantêm o poder restrito
volta-se contra mudanças democráti- justiça, à soberania nacional, à nossa de commodities, estabelecido como à “panela” dos sócios oligárquicos.
cas, pacíficas e ordeiras, representadas integridade física, às nossas reservas colônia de exploração comercial e que Pela primeira e única vez em nossa
pelos governos eleitos do PT, que colo- naturais, ao nosso futuro... A classe ca- evoluiu com base na mais longeva or- história, nos governos do PT, houve
caram em xeque os interesses oligár- pitalista brasileira não vacila no recur- dem social escravocrata do planeta. uma – imperdoável, donde o ódio des-
quicos. É mais perene e danosa do que so à violência quando julga que seu O resultado é uma socialização capi- pertado e o golpe realizado – disputa
um golpe, por deixar em seu rastro a for- poder oligárquico é ameaçado por talista que se pode denominar “semisso- de poder real, em que se enfrentou o
mação de hábitos, de práticas consoli- práticas democráticas e pacíficas. ciedade”: um ordenamento econômico olhar oligárquico. As novas práticas
dadas na cultura do país. E como sem- Há pouco mais de uma década hou- válido para todos, chamado “mercado”, não são ideias ou projetos, conflitos ou
pre lembra o ex-presidente do Uruguai ve uma disputa eleitoral democrática que faz as vezes de uma sociedade dota- manifestações isoladas, mas práticas
José Mujica, muito mais difícil do que no Brasil. A eleição conduziu ao poder da de direitos e participação, mas só pa- que, por serem sociais, são também
mudar a realidade é mudar a cultura. novas práticas sociais que operaram ra uma restrita faixa da população. Ou políticas, econômicas, culturais, com
Ao contrário de um discurso pro- uma transformação na sociedade bra- seja, uma situação de enorme desigual- consequências no ethos, nos hábitos
pagado com frequência pela grande sileira e facultaram um progressivo dade econômica, social e política, apoia- que moldam o processo de reprodução
imprensa, mas também por institui- despertar da consciência nacional da em intolerância cultural e violência da sociedade brasileira. Essas práticas
ções, entre as quais alguns setores do acerca da desigualdade em largas ca- institucional repressiva, tudo junto e implicam a configuração de novos ne-
Judiciário e da polícia, as classes peri- madas da população, e assim possibili- misturado com um minguado senso pú- xos de coesão social, contraditórios
gosas e promotoras da desordem não taram um deslocamento das condições blico e de solidariedade a conviver num em relação aos laços tradicionais, que
são as dos contingentes populares e de de reprodução do poder oligárquico. extremado individualismo. pareciam estabilizados sob o poder
MARÇO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 11

dos interesses capitalistas, isto é, no perda da equidade na justiça. É um cal- contrarrevolução antidemocrática de se submeter a totalidade do contexto
seio da oligarquia nacional e suas ra- do de cultura política protofascista. natureza preventiva. Seu objetivo é social. A rigor, ao “judicializar” o pla-
mificações internacionais. Essas práticas antidemocráticas, evitar que as contradições da desi- no político, o Estado é adequado à di-
Não são, de um lado, as práticas utó- porém, não conseguem se impor dire- gualdade e da exclusão que ela própria reção necessária para a continuidade
picas de uma esquerda revoltada, des- tamente; exigem mediações. O melhor gera continuem a se converter em for- do poder nos moldes oligárquicos
provida de base para ameaçar o poder, exemplo é a equivocada condenação ça política adversa à sua continuida- existentes. A não política resultante
nem, de outro, as práticas de uma es- do ex-presidente Lula. Ela se insere em de. Para tanto necessita garantir a da “judicialização” é a política conge-
querda adaptada, que aceita o poder em uma semidemocracia que, erigida co- continuidade da cultura social e lada na situação em que se encontra e
vigor ao reivindicar a participação em mo “sociedade do espetáculo”, leva ao institucional. desfalcada de sua própria identidade.
sua gestão. Ambas dispensariam a oli- proscênio da opinião pública a “justi- Se até há pouco o Brasil se caracte- É muito nítido o trânsito de um
garquia do recurso à contrarrevolução. ça” de uma pretensa política de probi- rizou como um Estado de direito aber- “Estado de direito” democrático, em-
O que se tornou intolerável são dade anticorrupção, enquanto, longe to à democracia, hoje se volta a passos bora com uma oligarquia dominante,
práticas de esquerda que atingem o das vistas, a ordem do mercado conti- largos rumo a um Estado de direito oli- para um semidemocrático Estado de
âmbito macropolítico nacional, por nua em operação, com sua parcialida- gárquico. Não se trata de um jogo de “direito oligárquico”. Nessa recons-
meio de sua articulação com micro- de capitalista. palavras; há uma mudança profunda trução, a própria natureza do “social”
políticas. Estas são de inclusão pela A oligarquia, apesar de sua consoli- acerca do que é Estado, sociedade e ra- é submetida a uma mudança estrutu-
educação, de combate à miséria, de dada estrutura de dominação nas rela- cionalidade social. ral. Os “bens comuns públicos”, que a
cotas raciais e de gênero, de tolerância ções capital-trabalho, atentou ao risco rigor incluem participação e decisão
à diversidade, de ampliação da cober- de deixar de ser classe dirigente na so- do público, passam a ser bens comuns
tura da saúde, de cobertura de servi- ciedade, até porque nem sequer con- dotados de “publicidade”. Em substi-
ços públicos, de inserção habitacio- segue dirigir a produção nacional. Sua Não se trata de um tuição ao caráter público do social na
nal, de consultas com participação condução da política nacional seria jogo de palavras; sociedade, que reincide praticamente
popular na elaboração de políticas, de questionada pelas novas práticas de há uma mudança sobre esta, convertendo-a em forma-
valorização do salário mínimo, de re- uma “revolução pacífica”, democráti- ção viva, instala-se mediante a “publi-
forço da formalização das relações no ca e antioligárquica, inclusiva e parti-
profunda cidade” um sucedâneo dessa dimen-
mundo do trabalho etc. cipativa, dotada do efeito de reanimar acerca do que é são do que é público, agora reduzido à
Essas novas práticas, ao ampliarem a economia do país. Estado, sociedade e exposição pública do existente parti-
a concepção pública dos bens comuns Transformações sociais envolven- racionalidade social lhado passivamente. É o que ocorre
para contemplar a totalidade da popu- do grandes contingentes populares – nas redes sociais, que parecem substi-
lação, colocam em xeque os interesses entre um quarto e um quinto da popu- tuir o social, embora apenas o confir-
representados no Estado oligárquico. lação – geraram novos nexos de mem em seu formato vigente.
Os beneficiários deste, mediante suas reconhecimento mútuo e novos vín- No plano oligárquico, o centro do Mas o “horror thatcheriano”, a so-
práticas sociais seculares, formularam culos com as instituições e os proces- poder soberano e público, o Estado, li- ciedade, existe e é uma realidade práti-
sua própria concepção privada dos sos sociais. Aqui se inclui a crescente mita-se a ser detentor do monopólio ca, efetiva. Nela a diferença em relação
bens comuns nacionais, isto é, dos di- consciência de direitos sociais em re- da violência. A sociedade é “o merca- aos comportamentos derivados da ló-
reitos que os brasileiros mereceriam lação aos efeitos decorrentes da desi- do”, bastando para essa constatação gica de mercado está na ordem do dia
usufruir. Agora se encontram atemori- gualdade causada pela privatização de acompanhar o zelo com que a grande por incluir a democracia.
zados diante da existência, ainda que políticas ligadas à economia especula- mídia tradicional reconstrói diaria- A diversidade, por exemplo, impõe-
não consolidada e em construção, de tiva e predatória dominante. mente essa pretensa identidade entre -se por cima dos critérios mercantis;
práticas inclusivas e universalizáveis A democracia já não constitui só um ordem econômica e sociedade. Práti- de outra parte, a intolerância reinante
de bens comuns, apreendidos como ideal a ser conquistado, mas é construí- cas sociais, como eleições, inclusão no individualismo do mercado neoli-
públicos por parcela majoritária da po- da por práticas realizadas em políticas social, direitos humanos, debates pú- beral precisa ocultar permanente-
pulação pobre e trabalhadora. públicas diversificadas e abrangentes. blicos, são fatores de perturbação da mente sua afinidade com os privilé-
Essas novas práticas, de natureza Não foi somente a democracia que se lógica social mercantil. “Social” signi- gios econômicos. As interações no
democrática, denunciam que a parce- apresentou em sua idealidade à socie- fica aqui apenas um coletivo de indiví- “mundo digital”, que pareciam res-
la excluída por sua desigualdade de dade. Foi também a sociedade, em duos privados, e não uma concepção tringir-se inteiramente às relações no
condições não nasce desigual, mas é grandes contingentes, que se moveu de totalidade pública. Não seria outro plano de indivíduos e famílias, apenas
construída em sua desigualdade na or- em direção aos direitos, à ideia de de- o motivo da famosa proclamação de reforçando certas posições tomadas
dem do “mercado”, usurpador da so- mocracia. A democracia já não é só Margaret Thatcher, recentemente de antemão e obstruindo seu debate
ciedade dos iguais por ação do direito uma ideia fora do lugar, alheia e deslo- lembrada por Geraldo Alckmin: “Isso real na sociedade, mais e mais conver-
oligárquico. Agora esse controle oli- cada da vida real, como eram as ideias que chamamos sociedade não existe; tem-se em meios a serem usados nas
gárquico é ameaçado em sua conti- liberais na ordem escravista, conforme há somente famílias e indivíduos”. Te- interações efetivamente sociais.
nuidade pelas contradições sociais ge- expos Roberto Schwarz. Novas ligas de mem uma sociedade em que a direção Apenas em sociedade os seres hu-
radas pela produção da desigualdade. brasileiros, de natureza diversa e plu- do todo pode ser outra, diversa e con- manos conseguem se individualizar.
A contrarrevolução, posta em mo- ral, misturados nas universidades, nas trária àquela consolidada na socializa- Em uma ordem mercantil capitalista,
vimento para realizar os interesses redes sociais, nas manifestações cultu- ção capitalista em vigor. quando muito, são alçados à condição
da oligarquia capitalista, precisa rais, em ambientes de trabalho etc. vie- Se à mídia compete a construção de vendedores, compradores ou mer-
contrariar essas práticas democráti- ram para ficar, porque, graças a esses de uma noção de sociedade oligárqui- cadorias. Aprofundar a exposição e as
cas. Foi assim que a oligarquia parla- contextos, os direitos – e com eles a ca e de seus agentes, à justiça oligár- práticas públicas democráticas na so-
mentar impôs e a oligarquia jurídica ideia de democracia – conseguem ser quica cabe um papel decisivo na pro- ciedade, em suas instituições e organi-
chancelou o golpe, a contrarreforma praticados concretamente. No entan- dução do poder de direção social. zações, constitui o único antídoto à
trabalhista, a destruição das verbas to, como lembrava Antonio Candido, a Cabe a ela evitar que os direitos uni- contrarrevolução antidemocrática e
públicas para saúde, educação, ciên- democracia é muito trabalhosa. Além versais, praticados na sociedade igua- aos seus agentes no mercado, no par-
cia, habitação etc. de ser uma prática constante, deman- litária, contaminem o adequado fun- lamento, na grande imprensa e na jus-
No entanto, a contrarrevolução, da uma perseverante formação cultu- cionamento dos agentes do mercado tiça oligárquicos. Assim será possível
mediante o exercício cotidiano de con- ral para firmar sua própria concepção na produção da desigualdade. Está em resistir às suas imposições e ampliar
trapráticas antidemocráticas, propõe- de sociedade. A perda de terreno pode causa garantir a operacionalidade da as contradições que elas geram.
-se a converter estas últimas em hábitos ser rápida... socialização conforme a racionalidade
geradores de coesão social dirigida à A oligarquia amedrontada asso- imposta no sentido oligárquico. *Wolfgang Leo Maar é professor titular de
sustentação da oligarquia – contraprá- ciou-se com interesses internacionais A lei e a jurisprudência são, por si Ética e Filosofia Política da Universidade Fe-
ticas que não excluem o recurso à vio- contrários à nossa soberania, que lhe mesmas, uma concretização prática deral de São Carlos e pesquisador do Cene-
lência, seja ela material, simbólica ou de permitiram somar forças para uma da direção legal universal a que deve dic da FFLCH-USP.
12 Le Monde Diplomatique Brasil MARÇO 2018

ELEIÇÕES

Jair Bolsonaro:
o candidato da
(in)segurança pública
Em seu horizonte mental não há lugar para
uma sociedade menos violenta. Sua definição do
trabalhador policial como um “matador” profissional
e sua proposta de dobrar o número de mortos pela
polícia como forma de combater o crime denotam
que, de sua perspectiva, a violência não pode ser
reduzida, apenas canalizada para o extermínio
© Tiago Lacerda

de pessoas vistas como ameaça


POR LEANDRO GAVIÃO E ALEXANDRE VALADARES*

e todos os presidenciáveis para radical em relação a ele –, agora essa econômicas e sociais. Segundo Bolso- cia com mais violência3 e atuar como

D as eleições de 2018, Jair Bolso-


naro é aquele que busca, de ma-
neira mais enfática, se apresen-
tar como o candidato capacitado a
solucionar o problema da violência
recusa implica a deslegitimação da es-
querda como interlocutora política em
qualquer sentido. Essa posição tem si-
do incorporada ao discurso dos jovens
que se politizam à direita e idealizam
naro, a atitude delinquente é sempre
redutível ao infrator, sendo explicada
por meio de sua índole ou caráter. De
fato, ao recusar qualquer consideração
das condições sociais da violência, o
grupos de extermínio4 parece atrair
um eleitorado que já está cansado de
lidar com o crime em seu cotidiano. Se,
por um lado, a violência é um fenôme-
no complexo que se explica por um
que assola o país. o clã Bolsonaro. que resta é uma concepção biológica e conjunto de condicionantes socioeco-
Na ausência de um programa, é Sobre a segurança pública, as falas moral da figura do delinquente. nômicos – e justamente por isso é pos-
possível recorrer ao farto material dis- do candidato caracterizam-se pela ne- O humanista católico inglês Tomás sível identificar seus padrões de ocor-
ponível na internet, de modo a anteci- gação reiterada de qualquer aspecto Morus, em sua magnum opus A utopia rência e definir contextos em que esses
par aquilo que provavelmente será sua social da criminalidade. Seu refrão (1516), já repreendia – com cinco sécu- atos são mais ou menos frequentes –,
proposta para a segurança pública. As preferido, nesse caso, é dizer que, para los de antecedência – a visão estreita seus efeitos são, por outro lado, perce-
declarações presentes em vídeos, re- a esquerda, o “bandido é vítima da so- do senso comum sobre a essência per- bidos como perdas e sofrimentos indi-
portagens e entrevistas ajudam a fazer ciedade”, como se ali residisse uma versa do criminoso. Seu comentário viduais ou familiares, capazes de atin-
uma leitura interessante desse perso- tentativa ingênua de isentá-lo de res- era eloquente: “Vocês deixam desviar- gir qualquer um em qualquer lugar.
nagem que, mesmo sem nunca ter ponsabilidade. Com efeito, trata-se de -se e deteriorar-se aos poucos o caráter Vale lembrar que 90% dos brasileiros
concorrido à Presidência, consegue ter uma distorção reducionista e desones- das pessoas desde a primeira infância, são favoráveis à redução da maioridade
mais seguidores no Facebook do que ta de uma perspectiva segundo a qual e punem adultos por crimes cuja pro- penal – cujo apoio é maior entre os es-
qualquer outro político brasileiro.1 a violência tem causas mais comple- messa garantida eles carregam desde tratos mais pobres,5 embora seja tam-
Nas entrevistas, a retórica de Jair xas do que a redução analítica aos atos os primeiros anos”.2 bém expressivo entre a classe média.
Bolsonaro caracteriza-se pelo uso de do agente que a comete. Ao carecer de uma abordagem de O discurso da guerra incondicional
frases feitas, pela repetição de respos- Toda abordagem que isole o indiví- viés holístico, que busque retotalizar à criminalidade tem forte apelo junto
tas prontas que supostamente dão cer- duo de seu meio econômico, social e o indivíduo ao inseri-lo num campo à classe média não só porque ela julga
to e pela impostação imperativa da cultural se mostrará incapaz de revelar de forças que vai agir na formação de que seus filhos jamais serão vítimas da
voz. Quando não concorda com os fenômenos cujas origens se encontram sua personalidade e em sua relação violência policial, mas também por-
pressupostos de uma pergunta, uma em dimensões mais amplas. Edgar com o meio onde vive, torna-se fácil que, como minoria relativamente fa-
de suas estratégias recorrentes é des- Morin diz que “um pensamento muti- acreditar em falsas conclusões. No vorecida numa sociedade desigual, ela
qualificá-la como algo procedente de lado leva a decisões erradas ou ilusó- âmbito da delinquência, sempre será tem sempre presente a fragilidade de
um campo político que ele considera rias”. É exatamente o que acontece mais simples lidar com a individuali- sua posição, cuja sensação contínua
ilegítimo em si mesmo. Nesse caso, é quando se atomiza a conduta do crimi- zação da culpa do que entender a de insegurança é um epifenômeno. De
suficiente enquadrar uma questão co- noso, separando-o do campo de forças complexidade das causas profundas outra parte, a exposição direta e coti-
mo “esquerdismo”, “direitos huma- das estruturas socioeconômicas. A dos processos sociais. diana das classes pobres à violência –
nos” ou “ideologia de gênero” para não consequência previsível e inevitável é a Não causa espanto, portanto, que o estatisticamente, os estratos sociais
precisar levá-la a sério. elaboração de argumentos frágeis, le- (não) programa de Bolsonaro seja tão mais baixos são as maiores vítimas de
Esse ponto é importante. Se antes vando a conclusões como a da suposta bem recebido pelo eleitorado médio. crimes como roubo e assassinato –,
de ganhar a visibilidade que tem hoje essência degenerada do agente. Em um país com vocação conservado- agravada pelas condições adversas de
Bolsonaro se recusava a debater com a Pouco importa, por exemplo, que ra e de longa tradição autoritária, uma moradia em bairros sem infraestrutu-
“pauta da esquerda” porque seu posi- indicadores de criminalidade citados plataforma política comprometida em ra e em uma dura luta pela sobrevivên-
cionamento ideológico era de con- em estudos de segurança pública rea- instituir, na prática, um regime de ex- cia em jornadas exaustivas de traba-
frontação total e irreconciliável com firmem padrões e tendências estatisti- ceção que permitiria aos agentes do lho, torna-as sensíveis ao discurso da
esse grupo – como o da esquerda mais camente correlacionados a variáveis aparato repressivo combater a violên- repressão policial.
MARÇO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 13

A rigor, se a violência se apresenta ponto de vista, esses direitos consti- em síntese, ele não tem um projeto de comemorar uma intervenção federal
como uma dinâmica geral de estrutu- tuem um problema porque “prote- segurança pública. Em primeiro lugar, militarizada no estado em que se ree-
ração das relações sociais, ela é, toda- gem” os bandidos. Sendo assim, nada porque seu foco se restringe à repres- legeu como o deputado federal mais
via, seletiva em seus efeitos. De acordo mais são do que obstáculos legais ao são dos crimes cometidos e, em segun- votado em 2014. Contudo, o tom crítico
com dados do Ministério da Justiça,6 exercício irrestrito da autoridade. do lugar, porque uma política de segu- e distanciado de seu posicionamento
três em cada quatro vítimas de homi- Os projetos de lei mais recentes da rança cuja proposta mais emblemática público a respeito do decreto12 denota
cídio no país são negras. Ademais, a atuação parlamentar de Bolsonaro re- é armar cidadãos particulares não po- que ele já percebeu a fumaça suspeita
taxa de jovens negros de 15 a 29 anos fletem sua visão sobre a criminalida- de ser dita pública. Afora os riscos im- que se adensa sob o foguetório midiá-
assassinados é três vezes superior à de. São iniciativas que pautam o au- previsíveis que acarreta – discussões tico: enunciada por um presidente im-
dos brancos (79,4 contra 26,6 a cada mento das penas de crimes contra a no trânsito, desavenças domésticas, popular que busca melhorar os índi-
100 mil habitantes). Essas proporções propriedade (PL 7.700/2017 e brigas em locais públicos e outros ti- ces de aprovação de seu governo e não
encontram correspondência nos da- 7.701/2017), a ampliação do direito de pos de conflitos que podem fazer víti- descarta se lançar como candidato
dos do sistema prisional: em 2014, dois porte de armas (PL 7.282/2014) e o mas fatais –, essa “coparticipação” de nas próximas eleições, a intervenção
terços da população carcerária do país alargamento das ressalvas legais aos cidadãos comuns na prerrogativa do federal no Rio de Janeiro parece ter
eram compostos por negros. atos praticados em legítima defesa e Estado de combater a violência pode motivações mais políticas que admi-
Diante de uma política de seguran- em defesa de terceiros (PL 7.105/2014). significar, numa sociedade dramati- nistrativas ou técnicas. Além de proje-
ça pública que, entre 2000 e 2014, fez O endurecimento penal e a tendência camente desigual como a nossa, a pri- tar os militares na cena política, ela
crescer 119% o índice de encarcera- a priorizar estratégias de combate ao vatização da segurança individual desarma o deputado federal de seu
mento no país7 – variação bem acima, crime que isolam e individualizam a num cenário de guerra hobbesiana. principal recurso ideológico: o discur-
por exemplo, da taxa de homicídios por conduta criminal reiteram a negação so de guerra contra o crime.
100 mil habitantes, que subiu 10,6% en- do caráter social – ou socialmente es- CONSEQUÊNCIAS DA INTERVENÇÃO FEDERAL
tre 2005 e 20158 –, Bolsonaro se exime truturado – da violência no país. Para além dos resultados sociais *Leandro Gavião é doutor em História Polí-
de demonstrar qualquer preocupação Esses elementos permitem supor que a militarização da segurança pú- tica (Uerj) e professor da Universidade Cató-
com as condições dos presídios do país. que, na hipótese de um governo Bolso- blica pode desencadear, o decreto de lica de Petrópolis (UCP-RJ); Alexandre Va-
Seu ponto de vista corrobora a realida- naro, as questões de fundo que geram a intervenção federal no estado do Rio ladares é doutor em Filosofia (UFRJ).
de: as prisões têm servido menos para violência permaneceriam intocadas. de Janeiro coloca de vez o tema da vio-
ressocializar os detentos que para reti- Se para ele a criminalidade é o resulta- lência e do enfrentamento à criminali-
rar da vida social indivíduos identifica- do agregado de milhares de decisões dade no centro dos debates políticos
dos como “potencialmente perigosos”. particulares de sujeitos propensos a de- pré-eleitorais. À primeira vista, essa
1 Até o fechamento desta edição, sua página conta-
Ao comemorar, por exemplo, os massa- linquir, Bolsonaro não verá, em princí- mudança no cenário favoreceria can-
va com mais de 5 milhões de seguidores, contra 3
cres ocorridos em presídios – como em pio, qualquer razão para propor uma didaturas cujo discurso tem reivindi- milhões de Lula.
Pedrinhas, no Maranhão, em 20149 –, política preventiva à violência – exceto, cado a necessidade de intensificar a 2 Tomás Morus, A utopia, L&PM, Porto Alegre,
2010.
Bolsonaro dá a entender que, para ele, a talvez, uma política que identifique in- repressão policial, de endurecer as pe-
3 “Para Bolsonaro, ‘violência, se for o caso, se com-
superlotação, as chacinas e as práticas divíduos “suscetíveis” a cometer cri- nalidades e de sacrificar direitos e ga- bate com violência’”, O Popular, 30 maio 2017.
cotidianas de maus-tratos e tortura mes e os persiga “preventivamente”. rantias individuais em nome da “paci- 4 “Bolsonaro: Vou combater a corrupção e a violên-
cia com radicalismo”, Valor, 14 dez. 2017.
que ocorrem no interior dos cárceres Em seu horizonte mental não há ficação” das ruas. Em tempos de crise
5 “Nove em cada dez apoiam redução da maioridade
não são problemas de segurança públi- lugar para uma sociedade menos vio- econômica e desemprego, com au- penal, diz Datafolha”, Jornal do Brasil, 22 jun. 2015.
ca, e sim soluções. lenta. Sua definição do trabalhador mento dos indicadores de violência e 6 Ver em: <www.justica.gov.br/sua-seguranca/se-
guranca-publica/analise-e-pesquisa/download/
Ao se recusar a reconhecer os con- policial como um “matador” profis- da sensação de insegurança, o popu-
estudos_diversos/1diagnostico-homicidios.pdf>.
denados como sujeitos de direitos e ao sional e sua proposta de dobrar o nú- lismo penal tem, de fato, se mostrado 7 Ministério da Justiça, “MJ divulga novo relatório so-
manifestar sua disposição a dar “carta mero de mortos pela polícia como for- uma estratégia retórica eficaz. bre população carcerária brasileira”, 24 jun. 2016.
8 “Taxa de homicídios no Brasil aumenta mais de
branca” para a polícia matar, Bolsona- ma de combater o crime10 denotam Insistindo em qualificar os confli-
10% de 2005 a 2015”, G1, 5 jun. 2017.
ro se coloca como o candidato que que, de sua perspectiva, a violência tos sociais como situações de “guerra”, 9 “A única coisa boa do Maranhão é o presídio de
cumpriria uma espécie de mandato não pode ser reduzida, apenas canali- essa doutrina da intolerância difunde Pedrinhas, diz Bolsonaro”, UOL, 11 fev. 2014.
10 “Policial que não mata não é policial”, HuffPostBra-
tácito outorgado pela maioria da so- zada para o extermínio de pessoas a crença de que é preciso adotar, com
sil, 27 nov. 2017.
ciedade, que se declara a favor do acir- vistas como ameaça. urgência e sem concessões humanitá- 11 Ver, por exemplo, os vídeos da palestra que o de-
ramento da repressão policial. Mais Por outro lado, a especial insistên- rias, soluções de força para derrotar os putado realizou no Clube Hebraica do Rio de Janei-
ro, em 3 de abril de 2017.
ainda, ele se faz porta-voz da ideologia cia com que Bolsonaro apregoa sua “inimigos internos” da ordem. Bolso-
12 Ver, por exemplo: “Apesar de crítica, Bolsonaro
punitivista que ataca os princípios bá- pretensão de garantir que todo cida- naro, encarnação mais celebrada do vota a favor de intervenção federal no Rio”, UOL,
sicos dos direitos humanos. De seu dão tenha uma arma11 demonstra que, gênero, teria, a princípio, razões para 20 fev. 2018.

A fábula das abelhas Autobiografia de Conversando com


Esta obra-prima britânica do século XVIII
desencadeou uma grande controvérsia ao rejeitar
Norberto Bobbio Gaspare Spatuzza
uma visão positiva da Um dos maiores intelectuais italianos conta Em seu testemunho direto e
natureza humana e sua vida e dá seu testemunho, em primeira pulsante, coletado pela jurista
argumentar pela pessoa, sobre os Alessandra Dino em local secreto,
necessidade do vício temas e angústias, as Spatuzza conta a história do jovem
como fundamento de contradições e os de Palermo atraído e cooptado pelo
uma economia sentidos que crime, e permite um mergulho nas
capitalista emergente. perpassam o século complexidades envolvidas em seu
Clássico de Bernard de XX. Organizado e percurso. O retrato resultante mostra
Mandeville considera comentado pelo Máfia e mafioso em cores ao mesmo
que a insensibilidade jornalista Alberto tempo esclarecedoras, esmerizantes,
geral é condizente com Papuzzi, traz trágicas e brutais.
o interesse supremo do documentos do
Produzir conteúdo
Estado e, acervo pessoal do
Compartilhar conhecimento.
consequentemente, da pensador ao lado de
Desde 1987.
ordem pública. escritos originais.
www.editoraunesp.com.br
14 Le Monde Diplomatique Brasil MARÇO 2018

CONFUSÃO ENTRE PATOLÓGICO E EXISTENCIAL

A medicalização da
experiência humana
Variação do humor ou momentos de tristeza e tensão são sempre sinais de doença? Por muito tempo, a psiquiatria
europeia soube avaliar a gravidade e definir uma prescrição apropriada, da droga ao tratamento psicanalítico. A indústria
farmacêutica incita, contudo, à transformação de dificuldades normais em patologias, às quais ela oferece uma solução
POR GÉRARD POMMIER*

iante da realidade do “sofri- vários países a fazer o mesmo. Seguiu- um luto de três anos após a morte do cos”, pois um psicótico libertado de

D mento psíquico” – uma das


mais importantes patologias
modernas –, entrou em ação, há
algumas décadas, uma maquinaria
diagnóstica nunca antes vista, cujo
-se uma inflação de patologias reper-
toriadas. Havia sessenta em 1952, mas
410 em 1994, no DSM-IV.

EXTINGUIR O VULCÃO
pai; hoje, se você continua triste de-
pois de quinze dias, está doente. Vão
lhe dar antidepressivos, que podem
temporariamente aliviar o problema,
mas não o resolverão. Entretanto, co-
seus delírios é frequentemente um
grande inventor (o matemático Georg
Cantor), um grande poeta (Friedrich
Hölderlin), um grande pintor (Vincent
van Gogh) ou um grande filósofo (Jean-
objetivo é explorar esse enorme mer- Negócio é negócio. O método DSM mo não convém interromper o trata- -Jacques Rousseau). Mas a Big Pharma
cado potencial. Para isso, foi neces- tem de ser simples: não se cogita bus- mento de repente, a prescrição dura pouco se importa com a liberdade
sário primeiro substituir a grande car a causa dos sintomas nem saber a às vezes a vida inteira. reencontrada pelo paciente, que no fim
psiquiatria europeia, que, graças a que estrutura psíquica eles corres- poria em causa sua empresa. Ela prefe-
observações clínicas múltiplas e coe- pondem. Basta encontrar o caso que re o ópio. E seus vapores se instalam
rentes, reunidas durante os dois últi- se conforme ao comportamento visí- com facilidade, porque o “transtorno”
mos séculos, havia repertoriado os vel do paciente. Essa prática esquece Enquanto a vida é associado às manifestações efetivas
sintomas, classificando-os em gran- que um sintoma não é jamais uma segue seu curso, do sofrimento psíquico.
des categorias: neuroses, psicoses e causa. A conversa com o psiquiatra Não bastasse isso, mais vale que o
perversões. Munido desses conheci- mal pode ser considerada necessária,
nós todos somos número de “transtornos” cresça e se
mentos, o especialista podia dar um pois serve apenas para repertoriar os normalmente multiplique. Entre os mais recentes, o
diagnóstico e distinguir os casos gra- “transtornos” superficiais: “transtor- “bipolares”, “transtorno bipolar” se beneficiou de
ves dos causados por circunstâncias nos” do comportamento, da alimenta- hoje alegres, uma ampla promoção midiática, em-
passageiras. Ele separava, então, o ção, do sono... enfim, “transtornos” de bora apenas patologize a doença uni-
que exigia o uso de medicamentos da- todos os tipos, até a recente invenção
amanhã tristes versal do desejo: este se atira, rindo,
quilo que poderia ser solucionado me- dos “transtornos” pós-atentados. A para o objeto de seu sonho, mas, quan-
lhor com a conversa. cada um corresponde – maravilha! – do o apanha, o sonho está mais longe
A psiquiatria clássica e a psicanálise um medicamento. Foi nessas águas O marketing do DSM é simples: ainda e o riso se transforma em lágri-
haviam chegado às mesmas conclu- perturbadas que naufragaram os an- basta inventar, a intervalos regulares, mas. Enquanto a vida segue seu curso,
sões. Essas duas abordagens tão distin- tigos diagnósticos. O lobby da Big novos transtornos que misturem a pa- nós todos somos normalmente “bipo-
tas se auxiliavam e se enriqueciam mu- Pharma conquistou também as facul- tologia e o existencial. Isso é muito fá- lares”, hoje alegres, amanhã tristes.
tuamente. O mercado de medicamentos dades de Medicina, onde só se ensina cil, já que a existência se apoia naquilo Acontece, porém, que nas psicoses
ainda guardava proporções razoáveis, o DSM. Mais: os próprios laboratórios que nos faz ir em frente. Aquilo que melancólicas o objeto de desejo é a
o que deve ter dado o que pensar à “Big transmitem os ensinamentos – nume- não funciona – em nossa vida – nos dá própria morte ou a explosão de um sur-
Pharma” – apelido conveniente para o rosos conflitos de interesses foram de- energia para evitá-lo. É necessário to maníaco. O diagnóstico de “bipola-
enorme poder dos laboratórios farma- nunciados. A grande cultura psiquiá- chorar antes de rir. Estamos à beira de ridade” se torna então criminoso, pois
cêuticos, que fazem uma corte assídua trica acabou esquecida, de sorte que, um vulcão: extingui-lo com medica- não faz distinção entre o ciclo manía-
tanto aos clínicos gerais quanto às mais diante de um paciente, o novo clínico mentos que não passam de drogas é co-depressivo das psicoses – com o ris-
altas instâncias do Estado e dos servi- made in DSM não sabe mais se está li- extinguir uma vida, porquanto viver é co de passagem ao ato grave justifican-
ços de saúde, com os quais sabem se dando com uma psicose, uma neuro- correr riscos o tempo todo. “O patoló- do a prescrição de neurolépticos – e a
mostrar bem generosos (oferecendo, se ou uma perversão. Ele não distin- gico só tem sentido para o improduti- euforia-depressão das neuroses. Essa
por exemplo, cruzeiros de “formação” gue um problema grave de um estado vo”, dizia o escritor Stefan Zweig.2 O distinção, riscada dos DSMs, provoca
aos jovens psiquiatras). circunstancial. E, na dúvida, receita nome de alguns medicamentos pare- inúmeras situações dramáticas.3
A jornada de conquista desse gran- psicotrópicos... ce corroborar essa ideia, mas em uma O “transtorno” mais comum e in-
de mercado começou nos Estados “Depressão”, por exemplo, é pala- acepção no mínimo discutível: em quietante, pois diz respeito às crian-
Unidos, com a Associação dos Psiquia- vra que faz parte do vocabulário cor- certas formas agudas de psicose, os ças, que sofrem sem saber o motivo e
tras Americanos (APA) e seu primeiro rente. O blues (tristeza) pode domi- psicotrópicos são imprescindíveis pa- não podem se queixar, é sem dúvida o
manual de diagnóstico e estatística nar qualquer pessoa, a qualquer ra acalmar as alucinações e os delírios. “transtorno do déficit de atenção com
dos problemas mentais, o Diagnostic momento da vida. Mas por que dar Tais medicamentos são chamados de ou sem hiperatividade” (TDAH). Essas
and Statistical Manual of Mental Disor- esse sentido ao conceito de “depres- antipsicóticos. Na cabeça do fabrican- dificuldades da infância vêm sendo
ders (Manual de Diagnóstico e Estatís- são”? Ela foi elevada à dignidade de te, essas moléculas estariam então enfrentadas há tempos por psiquiatras
tica dos Transtornos Mentais, ou uma doença à parte. Contudo, a tris- destinadas a acabar de vez com a pes- infantis e psicanalistas, pioneiros na
DSM), em 1952.1 Em 1994, a Organiza- teza pode ser um sintoma tanto de soa que sofre de psicose? O fabricante matéria. Mas, como se trata de proble-
ção Mundial da Saúde (OMS) adotou melancolia – acarretando risco eleva- esquece uma coisa: o “paciente” é sem- mas peculiares a cada criança, eles
no capítulo “Psiquiatria” da Classifica- do de suicídio – quanto de um estado pre maior que seu padecimento. Esses não ousaram rotulá-los sob um “trans-
ção Internacional das Doenças as no- passageiro e mesmo normal, como o remédios deviam chamar-se de prefe- torno” geral. Graças a isso, são hoje
menclaturas do DSM-IV, o que levou luto. Confúcio recomendava ao filho rência “pró-psicóticos” ou “filopsicóti- acusados de não propor medidas,
MARÇO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 15

do”. Trata-se de fazer crer que tudo se


resume a problemas de neurotrans-
missores e de mecânica, nos quais o
humano não entra. Seria necessário
esquecer que as mazelas deliciosas e
cotidianas das relações entre homens
e mulheres, as questões jamais resol-
vidas de filhos com pais, as relações
de forças angustiantes com a hierar-
quia e o poder deitam raízes nas pro-
fundezas da infância.
Por todos os lados, a infância está
na linha de frente, o que torna o caso
do TDAH ainda mais “perturbador”
que os outros. Em todos os tempos e
lugares, a criança é a primeira a ser
reprimida, espancada, formatada.
Quando um professor da velha escola
puxava as orelhas de um aluno agita-
do, isso era – por mais chocante que
pareça – quase mais humano do que
exigir-lhe um diagnóstico de defi-
ciência. Preservava-se uma relação
pessoal, que a pseudociência elimi-
na. Pela primeira vez na história, é
em nome de uma pretensa ciência
que as crianças são “espancadas”. To-
© Alpino

dos os anos o Papai Noel, esse mito de


múltiplas estratificações (como bem
mostrou o etnólogo Claude Lévi-S-
trauss),6 traz para as crianças presen-
principalmente pelas associações de Jerome Kagan, professor de Har- As crianças não são poupadas pe- tes a fim de consolá-las. Hoje, a Big
pais, algumas delas subvencionadas vard, declarou em uma entrevista de los transtornos da sociedade, que lhes Pharma pretende vestir o capuz do
por laboratórios farmacêuticos (por 2012: “O TDAH não é uma patologia, impõe o imperativo do sucesso rápido, Papai Noel. Mas não nos esquecere-
exemplo, a associação Hypersupers mas uma invenção. [...] Oitenta por da competitividade, da obediência a mos de que, sob a roupa vermelha,
TODA/H France, apoiada pelos labo- cento dos 5,4 milhões de crianças tra- normas que não se aplicam à sua ida- esconde-se uma sombra muito pare-
ratórios Mensia, Shire, HAC Pharma e tadas com Ritalina nos Estados Uni- de. As recalcitrantes são facilmente cida com o Açougueiro da Festa de
NLS Pharma). dos não apresentam nenhuma anor- consideradas hoje “deficitárias”. É, São Nicolau.7
A imprecisão desse pretenso diag- malidade metabólica”.4 Na França, portanto, inquietante ver surgir em
nóstico equivale a dizer, por exemplo, Patrick Landman mostrou em seu li- um site do Ministério da Educação Na- *Gérard Pommier é médico psiquiatra, psi-
que a tosse é uma doença. E o exemplo vro Tous hiperactifs? [Todos hiperati- cional da França uma mensagem en- canalista, professor universitário emérito e
vem de cima: em 29 de setembro de vos?] (Albin Michel, 2015) que o TDAH dereçada aos professores afirmando, diretor de pesquisa na Universidade Paris 7.
2017, houve na Universidade de Nan- não tem nenhuma causa biológica sem provas, que o TDAH é uma “doen- Autor, principalmente, de Comment les neu-
terre uma conferência em favor do identificável: seus sintomas não são ça neurológica” e fornecendo uma re- rosciences démontrent la psychanalyse [Co-
diagnóstico de TDAH sob o patrocínio específicos e não apresentam indica- ceita detalhada para o estabelecimen- mo as neurociências dão suporte à psicanáli-
do presidente francês, Emmanuel Ma- dores biológicos. Nenhuma hipótese to de diagnósticos prévios. Os “sinais se], Flammarion, Paris, 2010, e de Féminin,
cron, e da ministra da Saúde, Agnès neurobiológica foi validada. Leon Ei- indicativos” propostos poderiam se révolution sans fin [Feminino, revolução sem
Buzyn. Os psicanalistas inscritos para senberg, inventor da sigla “TDAH”, de- aplicar a quase todas as crianças. Sem- fim], Pauvert, Paris, 2016.
o colóquio se viram pura e simples- clarou em 2009, sete meses antes de pre a mesma mistura de problemas
mente impedidos de entrar pelos por- falecer: “O TDAH é o exemplo típico de normais e patologia...
teiros. O TDAH não existe nas classifi- uma doença inventada. A predisposi-
cações francesas, seja a Classificação ção genética para o TDAH é totalmen- A INFÂNCIA NA LINHA DE FRENTE 1 Ver “La bible américaine de la santé mentale” [A
bíblia americana da saúde mental], Le Monde Di-
Francesa dos Transtornos da Criança e te superestimada”.5 Todavia, com a Há tempos, Michel Foucault pôs plomatique, dez. 2011.
do Adolescente (CFTMEA), fiel à psi- ajuda do lobby, cerca de 11% das crian- em evidência a repressão, notada- 2 Stefan Zweig, Le Combat avec le démon: Kleist,
quiatria francesa, ou mesmo a Classi- ças com idade entre 4 e 17 anos (6,4 mente pelos Estados e as religiões, Hölderlin, Nietzsche [A luta com o demônio: Kleist,
Hölderlin, Nietzsche], Le Livre de Poche, Paris,
ficação Internacional das Moléstias milhões) receberam o diagnóstico de desse “mal-estar na cultura” que é a 2004 (1. ed.: 1925).
(CIM-10), que acolhe as opções do TDAH desde 2011 nos Estados Unidos, sexualidade. Hoje, a camisa de força 3 Eu mesmo acompanhei em Saint-Anne um pacien-
DSM. Elas descrevem apenas os pro- segundo os Centros de Prevenção e de um patriarcado de direito divino te melancólico a que um psiquiatra, ignorante de
tudo o que não está no DSM, deu alta. Ele se suici-
blemas de agitação. E agitação não é Controle das Doenças norte-america- está em via de marginalização. Como dou. Vi inúmeros casos semelhantes.
doença. Pode ter várias causas (pro- nos. Segue-se quase sempre uma pres- a repressão vai se organizar daqui 4 “What about tutoring instead of pills?” [Que tal mo-
blemas familiares, dificuldades na es- crição de Ritalina (metilfenidato), que por diante, supondo-se que o termo nitoramento em vez de pílulas?], Spiegel Online, 2
ago. 2012. Disponível em: <www.spiegel.de>.
cola etc.); exige primeiro que as crian- contém moléculas consideradas estu- “sexualidade” deva ser entendido em 5 “Schwermut ohne Scham” [Tristeza sem vergo-
ças e a família sejam ouvidas, e isso pefacientes nas classificações france- sentido amplo? A indústria farma- nha], Der Spiegel, Hamburgo, 9 fev. 2012.
muitas vezes basta para resolver tudo. sas. A prescrição dessa anfetamina em cêutica é que pretende tomar as ré- 6 Claude Lévi-Strauss, Le Père Noël supplicié [Pa-
pai Noel supliciado], Seuil, Paris, 1994.
Com o TDAH, o sintoma se transforma grande escala poderia provocar um deas da ciência. A mensagem é clara: 7 Na França, é bastante difundida a lenda de São
em doença e, mais grave ainda, atri- escândalo sanitário semelhante aos “Não vos inquieteis, ó vós que tendes Nicolau, precursor do Papai Noel. Durante o inver-
buem-lhe causas “neurodesenvolvi- do Mediator e do Levothyrox. Essas insônias, momentos de desconsolo, no, três crianças bateram à porta do açougueiro
Pierre Lenoir. Ele aceitou abrigá-las durante a noite.
mentistas”. Essa afirmação não repou- substâncias viciam, e não se exclui – excitação exagerada, ideias suicidas! Porém, assim que elas entraram, ele as matou. Em
sa sobre nenhuma base científica, ao possibilidade ainda em discussão – A culpa não é vossa, é de vossos ge- outra noite, São Nicolau passava pela região e bus-
passo que provas não faltam das difi- uma correlação entre as crianças que nes, de vossos hormônios; sofreis de cou abrigo na mesma casa. Enquanto dormia, ele
sonhou com o assassinato das crianças e rezou
culdades causadas por problemas no tomaram Ritalina e os adolescentes um déficit neurodesenvolvimentista, até que elas ressuscitassem, tornando-se assim
seio da família ou na escola... que se drogam. e nossa farmacopeia vai consertar tu- protetor das crianças.
16 Le Monde Diplomatique Brasil MARÇO 2018

UM BENEFÍCIO AO MESMO TEMPO COLETIVO E INDIVIDUAL

Por que consumir orgânicos?


A associação francesa Gerações Futuras divulgou, no dia 20 de fevereiro, um relatório sobre a presença de pesticidas nos
produtos agrícolas: 73% das frutas e 41% dos legumes analisados nos últimos cinco anos estavam contaminados. Motivo
para reforçar o interesse na agroecologia. Mas o que dizem os estudos sobre os benefícios desta para o meio ambiente?
POR CLAIRE LECOEUVRE*

agricultura orgânica remete às caiu pela metade de 1989 a 2013.5 Não é agricultura orgânica favorece a cober- de agricultura orgânica vai além do in-

A práticas que procuram favorecer


a preservação dos ecossistemas
e a equidade na classe dos agri-
cultores. É sobretudo a ausência de
pesticidas sintéticos que reduz consi-
fácil, é claro, determinar as causas
exatas da diminuição da biodiversida-
de. A difusão de doenças, o desapare-
cimento de hábitats e o emprego de
produtos fitossanitários são os princi-
tura dos solos, evitando a erosão. De
maneira geral, os solos das fazendas
agroecológicas têm quantidades
maiores de matéria orgânica, estima-
das em 37,4 toneladas de carbono or-
divíduo, sendo interessante conside-
rar o benefício para o conjunto da po-
pulação. Notemos, num primeiro
momento, que certos produtos da
agricultura orgânica contêm, parado-
deravelmente seu impacto no ambiente pais motivos aventados. Todavia, se- gânico por hectare, contra 26,7 na xalmente, traços de pesticidas sintéti-
e na saúde. Fabricadas em laboratório, gundo um artigo solidamente funda- agricultura convencional.7 As grandes cos: segundo um relatório de 2016,
as moléculas que compõem os produ- mentado, os pesticidas desempenham culturas orgânicas integram 64% de 45% dos produtos convencionais con-
tos fitossanitários acompanharam o um papel decisivo no declínio dos in- pradarias, contra 16% na agricultura têm pesticidas, mas também 12% dos
aumento da produção agrícola em todo setos polinizadores.6 convencional, mas também mais le- provenientes da agricultura orgâni-
o planeta. Mas, após algumas décadas, guminosas nas rotações e uma melhor ca.10 Isso se deve, sobretudo, à conta-
aprofundou-se a consciência dos efei- cobertura dos solos no inverno.8 O minação pelas glebas vizinhas e du-
tos do emprego intensivo dos produtos conjunto dessas práticas favorece o se- rante o beneficiamento.
químicos cada vez mais numerosos. A exposição direta questro do carbono, o que pode con- A exposição direta a diversos produ-
Exemplo: depois de vinte anos, re- a diversos produtos tribuir para a contenção do aqueci- tos fitossanitários causa inúmeros pro-
gistrou-se uma poluição generalizada fitossanitários mento climático. blemas de saúde (câncer, malforma-
das águas superficiais e subterrâneas Avaliar sistemas agrícolas implica ções etc.). Em 2013, num relatório
por nitratos e substâncias fitossanitá-
causa inúmeros levar em conta seus efeitos sociais. Por produzido por diversos especialistas do
rias. Segundo os últimos dados das problemas de exemplo, a diversificação dos produtos Instituto Nacional de Saúde e Pesquisa
agências responsáveis pelo controle saúde (câncer, e dos métodos de venda na agricultura Médica (Inserm, na sigla em francês),
das águas, em 2014 87% dos rios visto- malformações etc.) orgânica, com mais circuitos curtos, passou-se em revista a literatura cientí-
riados continham pelo menos um pes- exige mais assalariados. Um relatório fica referente aos efeitos dos pesticidas
ticida.1 As duas substâncias mais fre- sobre os elementos secundários da na saúde.11 “Observamos, em primeiro
quentemente encontradas são o agricultura orgânica revela que, em lugar, que os agricultores são menos su-
Ampa, um metabólito do glifosato, e o Em se tratando de hábitats, os agri- dois terços das plantações, ela gera jeitos que o resto da população aos cân-
próprio glifosato, o famoso herbicida cultores orgânicos favorecem as pra- muito mais empregos.9 Além disso, em ceres digestivos, do cólon e do reto, bem
classificado como provável canceríge- darias com a rotação de culturas, a diversas atividades que apresentam como aos ligados ao tabagismo, como o
no pela Organização Mundial da Saú- plantação de cercas-vivas e ainda as dificuldades financeiras aos agriculto- do pâncreas, da bexiga e das vias supe-
de. De 1994 a 2013, 39% das interrup- associações de plantas. “A diversifica- res, a passagem para a agricultura or- riores. Isso depende, contudo, da idade
ções de captações de água potável se ção é um elemento-chave da agroeco- gânica se torna uma alternativa viável, e do tipo de trabalhador”, afirma Pierre
deveram à poluição por nitratos e pes- logia”, confirma Natacha Sautereau, explicando por que, de 2005 a 2016, a Lebailly, professor da Universidade
ticidas.2 Essa poluição e seu tratamen- engenheira agrônoma e economista superfície agrícola orgânica passou de Caen-Normandia e pesquisador do
to custariam entre 640 milhões e 1,140 do Instituto Técnico de Agricultura 2% para 5,7% do total. Observamos is- Centro François Baclesse.
bilhão de euros por ano.3 “Sabemos Orgânica (Itab, na sigla em francês). so na produção de leite, frutas e legu- Em contrapartida, foram detecta-
que mais vale prevenir que remediar”, Essas práticas aumentam o número de mes. “De início, são as vicissitudes eco- das ligações entre o emprego de agen-
diz Patricia Blanc, diretora-geral da plantas, aracnídeos, minhocas, co- nômicas que provocam a mudança”, tes sintéticos e o aumento do risco de
agência de controle de águas Seine- leópteros, pássaros e até mamíferos. O explica Marc Benoît, economista e di- desenvolver mal de Parkinson, linfo-
-Normandie. “Há vinte anos, nossas aumento dos recursos alimentares retor adjunto do Comitê Interno de mas não Hodgkin (LNH, cânceres do
agências começaram a financiar pro- disponíveis favorece também algu- Agricultura Orgânica do Inra. “Está em sistema linfático), mielomas múltiplos
jetos de mudança das práticas agríco- mas espécies ditas auxiliares – morce- jogo aí a famosa compressão dos pre- (cânceres do sangue) ou mal de Al-
las, pois temos um verdadeiro proble- gos, ouriços, répteis, certos insetos e ços: o dos gêneros diminui, enquanto zheimer. As pessoas que aplicam os
ma de poluição das águas.” ácaros –, que minimizam a pressão aumenta o da energia, dos adubos e pesticidas e os empregados que os pro-
A agricultura convencional tam- dos depredadores. dos fitossanitários. No caso do leite, os duzem teriam de 12% a 28% de riscos
bém produz efeitos sobre a biodiversi- criadores percebem que o sistema or- suplementares de ter câncer de prósta-
dade. “Todas as atividades caminham IDENTIFICAR OS EFEITOS DOS PESTICIDAS gânico é melhor, mais rentável.” ta, sem que seja possível associá-lo
no mesmo sentido: a diminuição do Os solos são, com frequência, os Estranhamente, esses elementos mais precisamente a determinada
número de espécies de insetos”, resu- grandes esquecidos quando observa- são raramente destacados. Fala-se substância. No caso de mulheres ex-
me Axel Decourtye, diretor científico mos o impacto das atividades huma- mais nos que estão ligados à saúde. A postas durante a gravidez, os estudos
do Instituto Nacional de Pesquisa nas. No entanto, o emprego excessivo agricultura orgânica produz efeitos mostram a possibilidade de associa-
Agronômica (Inra, na sigla em fran- de pesticidas, de nitrogênio e de fósfo- nessa área? Para verificar, é necessário ção na presença, em crianças, de mal-
cês). Em outubro de 2017, um novo es- ro não os poupa. Muito adubo os acidi- levar em conta as exposições diretas e formações congênitas ou leucemia.
tudo revelou uma perda de 76% a 82% fica e provoca fenômenos de prolifera- indiretas aos produtos fitossanitários. Entre as substâncias pesquisadas, o
da biomassa dos insetos em vinte ção de algas, como as “marés verdes” Diferentemente dos agricultores e ri- lindano, o DDT e a malationa são fre-
anos, em diversas regiões da Alema- da Bretanha. Os pesticidas sintéticos beirinhos, os consumidores não ficam quentemente associados ao desenvol-
nha.4 Quanto aos pássaros, a quanti- contaminam os solos e destroem a vi- em contato direto com esses produtos. vimento de linfomas não Hodgkin. Ao
dade de espécies no ambiente agrícola da microbiana que ali se encontra. Já a No entanto, o efeito global do sistema término de uma longa batalha, o mal
MARÇO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 17

de Parkinson e os linfomas não Hodg- Desde os anos 1980, estudos vêm antioxidantes nos produtos orgânicos por isso é menor. “Proibiram-se as que
kin passaram a ser reconhecidos tam- avaliando a qualidade dos alimentos amenizaria a síndrome metabólica. Por se mantinham por muito tempo nos
bém como doenças profissionais. produzidos pela agricultura orgânica. outro, as pessoas consideradas adeptas tecidos animais; as novas, porém, têm
Em seguida, outros estudos trouxe- “Eles mostram que os orgânicos con- de uma alimentação equilibrada con- afinidade com a água e se acumulam
ram novos elementos probatórios. O têm uma quantidade maior de carote- somem mais frutas e legumes; todavia, ainda mais nos solos”, explica Axel
grupo Agrican, que atua desde 2006, noides, ácidos graxos e vitamina E”, quando estes não são da agricultura Decourtye.
tem por objetivo avaliar a incidência de diz Denis Lairon, diretor emérito de orgânica, contêm numerosos produtos Sob pressão dos interesses finan-
câncer entre os agricultores num perío- pesquisas do Inserm, especializado fitossanitários. Ora, muitos estudos ceiros, a máquina administrativa e sa-
do de pelo menos dez anos. “Por en- em nutrição. Em outubro de 2017, um constataram um vínculo entre a expo- nitária que gerencia os riscos associa-
quanto, observamos um excesso de 5% deles sintetizou o conjunto dos pro- sição aos pesticidas e um aumento de dos aos pesticidas parece um pouco
a 30%, com relação ao resto da popula- gressos obtidos nessa área.13 “Nos re- obesidade e diabetes de tipo 2. enferrujada, ainda que o acúmulo de
ção, de linfomas não Hodgkin, de cân- sultados mais seguros, notamos uma Os problemas de saúde ligados aos dados científicos devesse conduzir a
cer de próstata e de câncer de pele, co- diferença com relação aos polifenóis, produtos fitofarmacêuticos já têm uma uma adoção bem mais rápida de mo-
mo o melanoma”, revela Pierre Lebailly. existentes em maior quantidade nas longa história. “As primeiras substân- dos de produção mais sustentáveis.
Vários estudos apontam para o insetici- frutas e nos legumes orgânicos, que cias químicas utilizadas na agricultura
da clorpirifós, que, em caso de exposi- além disso revelaram uma presença que suscitaram uma barulhenta con- *Claire Lecoeuvre é jornalista.
ção durante o período pré-natal, pode menor de cádmio [um metal tóxico]. trovérsia foram os arsenicais, lá pelo
acarretar problemas de desenvolvi- Entretanto, os resultados não apre- fim do século XX”, relata Nathalie Jas. O
mento cerebral. “O que é certo hoje é sentam uma diferença muito grande”, arsênico só foi suprimido definitiva-
que o DDT e o clorpirifós são perigosos contemporiza Axel Mie, um dos auto- mente em 2001, após inúmeras restri-
para o desenvolvimento do cérebro. En- res do artigo e pesquisador do Institu- ções de uso. Do mesmo modo, com o 1 “Surveillance des pesticides dans les eaux françai-
tretanto, mais de uma centena de pesti- to Karolinska, na Suécia. tempo, várias substâncias foram elimi- ses” [Supervisão dos pesticidas em águas france-
sas], Ministère de la Transition Écologique et Soli-
cidas poderiam afetar esse órgão. Preci- nadas. Entre as mais conhecidas, temos daire, Paris, 19 jun. 2017.
samos de mais provas para afirmá-lo. MENOS RISCO DE OBESIDADE a família dos organoclorados e alguns 2 “L’eau et les milieux aquatiques, chiffres-clés” [A
Existem já várias pesquisas, mas regis- Um ambicioso estudo epidemioló- organofosforados. Para muita gente, es- água e os meios aquáticos, números-chave], Com-
missariat Général au Développement Durable, Pa-
tramos com frequência exposições gico foi publicado na França em 2011 sas supressões provam o bom funcio- ris, fev. 2016.
mistas que complicam o isolamento de pelo grupo NutriNet-Santé. Segundo os namento do sistema de regulação dos 3 “Coûts des principales pollutions agricoles de
um pesticida”, insiste Philippe Grand- primeiros resultados, comer alimentos produtos sintéticos. Acontece, no en- l’eau” [Custo das principais poluições agrícolas da
água], Commissariat Général au Développement
jean, epidemiologista da Universidade orgânicos reduziria em 23% o risco de tanto, que isso às vezes vem tarde de- Durable, set. 2011.
do Sul da Dinamarca. Nathalie Jas, his- excesso de peso e em 30% o de obesida- mais e os produtos continuam produ- 4 Vários autores, “More than 75 percent decline over
toriadora do Inra, sustenta que a reali- de.14 “Notamos uma obesidade menor zindo efeitos bem depois de sua 27 years in total flying insect biomass in protected
areas” [Mais de 75% de declínio, em 27 anos, no
dade dos problemas de saúde ligados quando conseguimos separar os fatores interdição: por exemplo, a clordecona total da biomassa de insetos voadores, em áreas
aos produtos fitossanitários está mas- ligados ao modo de vida. Chegamos nas Antilhas e a atrazina, proibida pela protegidas], PLOS One, 18 out. 2017. Disponível
carada pela penúria de dados e por cau- mesmo a notar certa diferença entre União Europeia em 2003, mas que ain- em: <http://journals.plos.org/plosone>.
5 “Évolution de l’abondance des oiseaux communs”
sa da má visibilidade das afecções e da pessoas que consomem uma alimenta- da é encontrada na maior parte dos rios. [Evolução da abundância dos pássaros comuns],
dificuldade de associá-las a exposições ção equilibrada”, declara Emmanuelle Longe de ensejar a descoberta de Ministère de la Transition Écologique et Solidaire,
a doses fracas. Ela nota também, na Kesse-Guyot, epidemiologista do Inra outras soluções além dos pesticidas, 24 out. 2014.
6 Ben A. Woodcock, “Impacts of neonicotinoid use
França, um desinteresse de mais de encarregada desse estudo. Duas hipóte- cada proibição abre caminho para o on long-term population changes in wild bees in
trinta anos por esses problemas, consi- ses são aventadas para explicar o fenô- surgimento de novas substâncias England” [Impactos do uso de neonicotinoide em
derados “o preço a pagar pelos progres- meno. Por um lado, a quantidade maior apresentadas como menos perigosas. mudanças de longo prazo na população de abe-
lhas selvagens na Inglaterra], Nature Communica-
sos técnicos da agricultura”.12 de ácidos graxos do tipo ômega 3 e de A toxicidade pode mudar, mas nem tions, Londres, n.7, 16 ago. 2016.
7 Andreas Gattinger, “Enhanced top soil carbon
stocks under organic farming” [Mais carbono na
superfície do solo em agricultura orgânica], PNAS,
Washington, 30 out. 2012.
8 “Enquêtes pratiques culturales 2011” [Pesquisas
práticas de culturas 2011], Agreste Les Dossiers,
Ministère de l’Agriculture et de l’Alimentation, Pa-
ris, n.21, jul. 2014.
9 Natacha Sautereau, Marc Benoît e Isabelle Savini,
“Quantifier et chiffrer économiquement les externa-
lités de l’agriculture biologique?” [Quantificar e
avaliar economicamente os elementos secundá-
rios da agricultura orgânica?], Institut Technique de
l’Agriculture Biologique, Paris, nov. 2016.
10 “The 2013 European Union report on pesticide re-
sidues in food” [Relatório de 2013 da União Euro-
peia sobre resíduos de pesticidas nos alimentos],
EFSA Journal, Autorité Européenne de Sécurité
des Aliments, Parma, 12 mar. 2012.
11 “Pesticides: effects sur la santé. Synthèse et re-
commandations” [Pesticidas: efeitos sobre a saú-
de. Resumo e recomendações], Inserm, Paris, jun.
2013.
12 Nathalie Jas, “Pesticides et santé des travailleurs
agricoles en France. Questions anciennes, nou-
veaux enjeux” [Pesticidas e saúde dos trabalhado-
res agrícolas na França. Questões antigas, desa-
fios novos], Courier de l’Environnement de l’INRA,
Paris, n.59, out. 2010.
13 Vários autores, “Human health implications of or-
ganic food and organic agriculture: a comprehen-
sive review” [Implicações para a saúde humana de
alimentos orgânicos e agricultura orgânica: uma
análise abrangente], Environmental Health, 27
out. 2017.
14 Vários autores, “Contribution of organic food to the
© Daniel Kondo

diet in a large sample of French adults (the NutriNe-


t-Santé Cohort Study)” [Contribuição dos alimen-
tos orgânicos para a dieta em uma ampla amostra
de adultos franceses (o NutriNet-Santé Cohort
Study)], Nutrients, Basileia, 21 out. 2015.
18 Le Monde Diplomatique Brasil MARÇO 2018

NA ÁFRICA DO SUL, HERDEIRO DE MANDELA TEM SUA REVANCHE

Congresso Nacional Africano,


nas origens de um partido-Estado
Depois de longos meses de negociações e nove pedidos de impeachment pelo Parlamento, o presidente sul-africano, Jacob Zuma,
implicado em diversos escândalos de corrupção, acabou renunciando no dia 14 de fevereiro. O Congresso Nacional Africano,
verdadeiro partido-Estado, enfrenta graves tensões internas que fragilizam a hegemonia conquistada com o fim do apartheid, em 1991
POR SABINE CESSOU*

amoso por ter se tornado o pri- CNA, legalista e não violento em seu escolha teria assim regulado, resol- 1994 na vice-presidência do CNA – e do

F meiro bilionário negro da África


do Sul, Cyril Ramaphosa foi elei-
to, em 18 de dezembro de 2017,
presidente do Congresso Nacional
Africano (CNA). Provavelmente, ele
início, só passou à luta armada em
1961. Para muitos, isso resultou na
clandestinidade e no exílio. Sob a dire-
ção de Oliver Tambo, os exilados se or-
ganizaram em Lusaka, na Zâmbia, on-
vendo-a, a questão do equilíbrio entre
zulus e xhosas, os dois grupos domi-
nantes (cerca de 20% da população ca-
da um) – questão política delicada, le-
vando-se em conta a recusa do CNA de
país. Ramaphosa tinha então se dis-
tanciado da política e reciclado seu ta-
lento nos negócios, ao mesmo tempo
que se mantinha como um dos mem-
bros menos ruidosos, mas mais popu-
será o próximo presidente da Repúbli- de o partido estabeleceu sua sede. jogar com a carta racial, manipulada lares do Comitê Executivo Nacional – a
ca em 2019, depois do mandato interi- Outros militaram de dentro contra o amplamente pelo regime do apar- mais alta instância de decisão do CNA,
no que ocupa desde a demissão força- regime racista, como Ramaphosa e to- theid: para dividir a maioria negra, os que conta com 86 membros, dos quais
da de Jacob Zuma por corrupção, em da a “geração perdida”. Esta se lançou dirigentes exageravam as violências uma metade estatutária de mulheres.
14 de fevereiro de 2018. O percurso tu- na luta contra o apartheid sob a ban- entre os nacionalistas zulus do Partido Uma regra não escrita exige que
multuoso desse veterano da luta con- deira do CNA e de seu braço armado Inkatha da Liberdade (IFP) e os mili- um candidato à presidência suba os
tra o apartheid se explica amplamente junto às revoltas escolares de 16 de ju- tantes do CNA, que marcaram toda a degraus sucessivos: eleição pela base à
pelas engrenagens e cultura políticas nho de 1976 em Soweto, reprimidas transição (1990-1994). vice-presidência do CNA, seguida de
particulares do mais antigo partido com sangue. Esses militantes se reuni- uma nomeação automática à vice-pre-
político da África. De tendência social- ram em 1983 sob o estandarte da Fren- sidência da República, depois uma
-democrata e membro da Internacio- te Democrática Unificada (UDF), a fa- confirmação à presidência do partido
nal Socialista, o CNA é, como a Frente ce legal do CNA no interior do país, Com o fim do quando de seu congresso quinquenal,
de Libertação Nacional (FLN) na Argé- agregando as associações, as Igrejas e apartheid, em 1991, que, desde 1997, acontece dois anos
lia e a União Nacional Africana do os sindicatos não proibidos. As rela- o CNA, aureolado dos antes das eleições legislativas. O presi-
Zimbábue – Frente Patriótica (Zanu- ções entre a UDF e os exilados do CNA dente é em seguida eleito pelo Parla-
-PF, na sigla em inglês), um desses an- eram constantes e orgânicas, mas
anos de luta e gozando mento, no qual o CNA goza de uma
tigos movimentos de libertação nacio- marcadas por uma suspeita: os segun- do prestígio de maioria esmagadora desde 1994. Esse
nal que passaram pela luta armada dos queriam manter o controle e che- Mandela, se tornou dispositivo inaugurado por Mandela
antes de chegar ao poder. Apesar de gavam até a se perguntar se o próprio hegemônico oferece ao mesmo tempo visibilidade e
suas tensões internas, os escândalos Mandela não traíra a causa quando experiência ao candidato designado.2
dos últimos anos e o desmoronamento começou a negociar, sozinho, da pri- Em sua luta pelo poder, porém,
de seus resultados eleitorais desde são, a partir de 1986, com os naciona- Mbeki fez uma escolha com grandes
2014, essa máquina sofisticada, ligada listas africâneres. Ramaphosa ameaçava o que estava consequências. Ele legitimou Jacob
às suas regras de funcionamento de- Com o fim do apartheid, em 1991, o descrito nas entrelinhas, por detrás das Zuma, antigo chefe de informações do
mocráticas, continua provocando CNA, aureolado dos anos de luta e go- cortinas do CNA, como “Xhosa Nostra” braço armado do CNA, como seu vice-
chuva e sol na África do Sul.1 zando do prestígio de Mandela, pri- – ou seja, o controle dos xhosas, a etnia -presidente, em 1997, para afastar os
Fundado em 1912, sob a coloniza- meiro presidente negro eleito da nova de Mandela, de Tambo e de Walter Si- perfis de presidenciáveis de maior cre-
ção britânica, para contestar a espolia- África do Sul, se tornou hegemônico. sulu, sobre o aparelho do partido. His- dibilidade. Mais que isso, depois de
ção das terras ocupadas pela maioria Ele ganhou eleição atrás de eleição. O tórica, essa dominação se deve à pre- sua própria reeleição em 2004, para
negra, o CNA atravessou o século XX se “camarada” Mandela tinha confiado a sença da Universidade de Fort Hare no um segundo mandato presidencial, e
renovando constantemente. Ele deu ao íntimos sem nunca dizer abertamen- país Xhosa, antigo Transkei e atual pro- três anos antes de um congresso do
mundo não ocidental seu primeiro te: mais do que Thabo Mbeki, ele teria víncia do Cabo Oriental. A instituição partido previsto para o fim de 2007, ele
Prêmio Nobel da Paz bem antes de preferido que fosse Ramaphosa que britânica, que queria formar executivos abriu os “arquivos”. Um processo por
Desmond Tutu (1984) e Nelson Mande- lhe sucedesse ao final de seu primeiro negros, produziu, contra seu desejo, os corrupção foi tentado em 2005 contra
la (1993): em 1960, o presidente Albert e único mandato presidencial em heróis da independência da África aus- Zuma pelos subornos que ele teria re-
Lutuli, reverendo zulu pacifista, tinha 1999. Entre 1982 e 1992, esse jurista de tral, como Mandela, Kenneth Kaunda cebido quando da negociação de con-
sido coroado após o gigantesco massa- formação, filho de policial, que cres- (Zâmbia) e Robert Mugabe (Zimbá- sideráveis contratos de armamento
cre de Sharpeville. Sessenta e nove ceu em Soweto, transformou o Sindi- bue). Enquanto inzile, militante do in- em 1998. Um processo por estupro, so-
pessoas que faziam uma manifestação cato dos Mineradores (NUM) em uma terior que ficou na África do Sul para bre uma queixa feita em 2006 por uma
contra o pass (direito de passar) impos- organização de massa de mais de 200 lutar frontalmente contra o regime ra- moça, “amiga da família” Zuma, foi
to aos negros para circular na cidade mil filiados. Negociador sem par, ele cista, Ramaphosa desafiava também o classificado pelo acusado como outra
foram então assassinadas pela polícia. provou seu valor nas difíceis discus- campo com menos “exilados”. manobra política.
sões com o Partido Nacional de Frede- Preservando-se de qualquer tipo de Bastante tensa, a conferência do
RECUSA EM JOGAR A CARTA RACIAL rik de Klerk em torno da transição pós- autocracia, Mandela se contentou em CNA em Polokwane, em 2007, viu os
Proibido em consequência do mas- -apartheid. Aos olhos de Mandela, ele observar os jogos aos quais se entrega- campos Zuma e Mbeki se alfinetarem
sacre, ao mesmo tempo que o Con- apresentava também a vantagem de vam os candidatos à sua sucessão. sobre questões ao mesmo tempo pes-
gresso Pan-Africano (PAC) e o Partido pertencer a uma etnia minoritária do Rompido com os arcanos do partido e soais e políticas. Com seus cantos de
Comunista Sul-Africano (SACP), o norte da África do Sul, os Venda. Essa hábil manobrista, Mbeki se impôs em luta contra o apartheid, Zuma apre-
MARÇO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 19

sentou um registro populista para se


diferenciar de um Mbeki julgado poli-
ciado demais e distante das massas.
Ele também apostou nas frustrações
da ala esquerda do partido diante da
eclosão de uma burguesia negra ligada
ao poder e à gestão neoliberal do país
– sob fundo de crescimento econômi-
co, mas de desemprego (27% dos ati-
vos) e de pobreza (42% da população)
persistentes. A queda de braço se resol-
veu pela vitória de Zuma, levada por
um vasto movimento denominado “Os
amigos de JZ”. Este reunia todos os de-
cepcionados com a “Thabocracia”, a
ala esquerda do CNA, vinculada a um
ideal socialista de redistribuição das
riquezas, e dos eleitores seduzidos por
promessas firmes de criação de 500 mil
empregos. Esse compromisso não foi
mantido por causa da crise financeira
internacional, ao final de 2008, mas
também em função da gestão centrali-
zadora de Zuma e de uma corrupção
que se tornou endêmica. O único mer-
cado emergente do continente africa-
no foi desclassificado a partir de 2015

© GCIS/cc
pelas agências de classificação de risco
internacionais em razão de suas pers-
pectivas “negativas”. À depreciação
contínua do rand, moeda local, se Presidente Cyril Ramaphosa presta homenagem ao ex-presidente Jacob Zuma por sua contribuição ao desenvolvimento durante os nove
acrescentou uma recessão em 2017. anos em que ficou no comando da África do Sul
Em dezembro de 2017, o futuro da
África do Sul esteve novamente em jo- ao mesmo tempo uma garantia de es- mo só foi obtida após oito moções de poder, ameaça fundar um partido de
go no congresso do CNA – e em ne- tabilidade para uma das mais jovens desconfiança pelo Parlamento desde trabalhadores independente.
nhum outro lugar. Uma diferença de democracias da África e sua principal 2015. Sua preferência começou a decli- Impulsionado a presidente interi-
179 votos entre 4.708 se manifestou a fraqueza, em razão de sua hegemonia. nar, passando de 65,9% em 2009 para no após a demissão de Zuma, em 14 de
favor de Ramaphosa, contra Nkosaza- Seus dirigentes, que também são mi- 62,15% em 2014, depois a menos de fevereiro de 2018, Ramaphosa, antigo
na Dlamini Zuma, ex-mulher ainda nistros e governadores de província, 54% nas municipais de agosto de 2016. líder sindical e principal acionista do
próxima de Zuma, ex-ministra das Re- têm o controle sobre a nomeação de Assim o CNA perdeu três grandes cida- McDonald’s na África do Sul, deve orga-
lações Internacionais e ex-presidente todos os cargos importantes – até no des: Johannesburgo, Pretória e Port nizar-se em torno de um antigo slogan
da Comissão da União Africana. Ra- setor privado – e sobre os contratos pú- Elizabeth. A concorrência da oposição “Uma vida melhor para todos”, que soa
maphosa, cujo programa se resume blicos. Seus desvios, portanto, são ca- se tornou cada vez mais rude. No cen- um pouco falso. Ele não promete nada
em algumas palavras (“o retorno aos pazes de afetar todo o país. tro-direita, a Aliança Democrática menos que escola gratuita para as fa-
valores originais dos fundadores do Apesar dos escândalos e das muitas (22,23% dos votos em 2014 e 26,9% em mílias que recebem menos de 22,8 mil
CNA”), longe da corrupção, do clanis- reuniões ruidosas do comitê nacional 2016), formação majoritariamente euros por ano, redistribuição efetiva
mo e do populismo do regime Zuma, executivo, o chefe de Estado continua branca e mestiça em via de desraciali- das terras, criação de uma comissão
colocou fim às angústias dos sul-afri- apoiado pelo aparelho do partido, que zação, é dirigida por um jovem negro, de investigação sobre a corrupção, as-
canos sobre a impunidade previsível ele controla por dentro, principalmen- Mmusi Maimane. Ela agrega prome- sim como uma política econômica li-
do presidente que deixaria o cargo ca- te em seu local de origem, o Kwazulu- tendo fazer o que o CNA não conse- beral concebida para atrair os investi-
so sua ex-mulher ganhasse. Esses valo- -Natal. Na cultura política do CNA, a guiu: “lutar contra as desigualdades e dores e renovar com o crescimento. Na
res irrigam a Carta da Liberdade, ado- “organização”, como dizem seus mili- redistribuir as riquezas”, já que os la- medida em que o CNA não marcou
tada em 1955 por todos aqueles que o tantes, importa mais que os indiví- res negros ganham seis vezes menos uma ruptura clara com a década Zu-
país contava então como oponentes: 3 duos. O que era uma necessidade vital (6,6 mil euros por ano em média se- ma, o futuro permanece incerto. Ele
mil delegados, dos quais trezentos in- sob o apartheid, para resistir à repres- gundo a Statistics SA) que os brancos elegeu para sua vice-presidência o con-
dianos, duzentos mestiços e uma cen- são, permitiu ao partido sobreviver (36,5 mil euros). À esquerda, os Com- troverso David Mabuza, de 57 anos,
tena de brancos. O CNA era então ape- quaisquer que fossem seus chefes, pro- batentes pela Liberdade Econômica nomeado em 2009 governador da pro-
nas um de seus signatários, antes de duzindo sem cessar novos dirigentes (EFF), um partido fundado em 2013 víncia de Mpumalanga como recom-
fazer dela seu programa político. Esse através de seus “ramos” (o equivalente pelo dissidente do CNA Julius Malema pensa por seu apoio a Zuma – um per-
texto fundador carrega um ideal claro: aos núcleos dos partidos de esquerda). (6,35% dos votos em 2014 e 8,19% em curso a ser acompanhado, já que ele
o sufrágio universal, a igualdade de A cada congresso, as cartas são redis- 2016), reivindica a nacionalização das também é acusado de corrupção e, in-
oportunidades e a “democracia multir- tribuídas. A eleição justa de Ramapho- minas – 9% do PIB – e a expropriação clusive, suspeito de ter se envolvido
racial”, pela qual diversas gerações de sa à presidência do CNA pelos repre- de cerca de 50 mil fazendeiros brancos com assassinatos políticos.
sul-africanos fizeram sacrifícios de- sentantes de seus “ramos” pode ser (a agricultura representa 2,5% do PIB),
mais para esquecê-la tão rápido. interpretada, como explica o cientista com base no modelo do Zimbábue de *Sabine Cessou é jornalista.
Tendo se tornado um partido de político sul-africano William Gumede, Mugabe. O CNA está sendo, além dis-
massa ao final do apartheid em 1991, como um “sobressalto da base para so, atravessado por fortes tensões in- 1 Ler “L’Afrique du Sud lassée de ses libérateurs” [A
África do Sul cansada de seus libertadores], Le
hoje contando com 70 mil membros, o salvar o que ainda pode ser salvo”. ternas. O grande sindicato negro dos Monde Diplomatique, jun. 2017.
CNA continua sendo o caldeirão das metalúrgicos (Numsa), excluído em 2 Cf. Raphaël Porteilla, Judith Hayem, Marianne Sé-
dinâmicas políticas mais importantes CONCORRÊNCIA E DIVISÕES 2014 do Congresso dos Sindicatos Sul- verin e Pierre-Paul Dika (orgs.), Afrique du Sud. 20
ans de démocratie contrastée [África do Sul. 20
da África do Sul. Fortalecido por sua O partido saiu danificado das eras -Africanos (Cosatu, aliado histórico do anos de democracia em contraste], L’Harmattan,
legitimidade histórica, ele representa Mbeki e Zuma. A demissão deste últi- CNA) por suas críticas virulentas ao Paris, 2016.
20 Le Monde Diplomatique Brasil MARÇO 2018

PODER EGÍPCIO ESTÁ MAIS REPRESSOR DO QUE NUNCA

Praça Tahrir, sete anos depois


Os egípcios vão eleger seu presidente no dia 26 de março. A oposição denuncia um jogo de cartas marcadas, com todos os
candidatos de envergadura impedidos de enfrentar o atual presidente, Abdel Fattah al-Sissi. As esperanças que surgiram em
janeiro de 2011 evaporaram, enquanto a população enfrenta a degradação econômica e a mão de ferro do regime
POR PIERRE DAUM*

raça Tahrir, uma noite de de- entre os dois. Não morro de amor por

P zembro. No piso lustrado do


edifício Mogamma, um enor-
me prédio administrativo da
década de 1950 construído pela ex-
-URSS em um pesado estilo soviético,
Sissi, mas acho que ele herdou uma si-
tuação econômica catastrófica e faz o
que pode.” E a repressão, as pessoas
presas, isso não a assusta? “Sim, um
pouco. Mas entre eles há terroristas
um grupo de jovens anda de skate lan- também. Além disso, Sissi deve saber o
çando desafios, sob o olhar de dois po- que está fazendo. Quando as coisas
liciais indulgentes. Casais de todas as melhorarem, ele vai soltá-los.” De
idades, sentados nas muretas de pe- qualquer forma, Miran e seus amigos
dra dispostas aqui e ali, assistem ao não têm medo de falar de política nos
espetáculo. Todos parecem indiferen- cafés abertos para a rua, onde, apesar
tes ao ruído ensurdecedor dos carros e do constante barulho dos carros, qual-
à poeira, dois flagelos de Cairo que ne- quer estranho na mesa ao lado pode
nhuma revolução foi capaz de vencer. ouvir a conversa. “Até no Facebook eu
Parece distante o tempo em que cen- não tenho medo de criticar o governo,
tenas de milhares de egípcios, lado a nem mesmo o presidente! Nunca me
lado nesta enorme praça, derrubavam preocupei com isso.” Seu amigo Ah-
um regime moribundo aos gritos de med T. intervém: “De todo modo, o
“Mubarak, vá embora!” e “‘Aïch, Ho- que realmente interessa não é a liber-
ria, ‘Adala Edjtéma’ïa!” (“Pão, liberda- dade, é o dinheiro. E hoje todo mundo
de e justiça social!”). está sofrendo com a crise econômica!”
Dois anos e meio após a “revolução (ver boxe).
de janeiro”, como os egípcios a cha- Para além das reflexões dispersas
mam hoje – sem mencionar o dia de coletadas ao acaso nas conversas –
© Daniel Kondo

seu início (25) nem o ano em que ocor- cheias de opiniões tão divididas como
reu (2011) –, nesta Praça Tahrir que se as da família de Miran –, é difícil saber
tornou o lugar obrigatório da expres- o que os egípcios pensam do regime, o
são popular, um número tão grande qual se empenha em desencorajar
de egípcios quanto em janeiro de 2011, qualquer atitude contestatória. “Gen-
se não maior, exigia a saída do presi- te que não sabe nada sobre o que é um
dente democraticamente eleito em ju- beber uma cerveja, moças e rapazes nal publicou um relatório denuncian- Estado quer intervir e fazer declara-
nho de 2012, Mohamed Morsi, mem- misturados, se reúnem nos bares que do o clima político perigoso no Egito. ções. Isso é inaceitável”, declarou em
bro da Irmandade Muçulmana. Após ocupam os terraços dos edifícios ao “Advogados, jornalistas, adversários janeiro um ameaçador Sissi, lançando
um golpe de Estado desejado por par- redor. Pode-se ir ao cinema, assistir a políticos, ativistas, defensores dos di- um aviso a personalidades e partidos
te da população, o Exército assumiu o shows ou admirar o trabalho de artis- reitos humanos, nenhuma voz crítica de oposição que pediam boicote à
poder em 30 de junho de 2013.1 A resis- tas contemporâneos, por exemplo, na escapa à repressão maciça das autori- eleição presidencial, prevista para o
tência pró-Morsi tentou se organizar, Galeria Townhouse, soberbo local de dades egípcias, que continuam deten- fim de março. Esses opositores argu-
e foi reprimida com um banho de san- exposição instalado em uma antiga fá- do, perseguindo ou encarcerando pes- mentam que a eleição é um “teatro do
gue algumas semanas depois: foram brica de papel, a algumas centenas de soas pelo simples exercício pacífico de absurdo”, por causa da prisão, da reti-
mil mortos no dia 14 de agosto de 2013 metros da Praça Tahrir. Com um mag- seu direito à liberdade de expressão”, rada mais ou menos forçada ou do im-
na Praça Rabaa, no Cairo. Milhares de nífico estacionamento subterrâneo e denuncia a organização.3 pedimento de inúmeros adversários
pessoas foram presas. Um ano depois, uma imensa bandeira egípcia planta- Miran F., uma jovem que conhece- do presidente. “Garantimos estabili-
em junho de 2014, o marechal Abdel da na superfície, a própria praça pare- mos com seus amigos perto da Praça dade e segurança, senão é o caos”,
Fattah al-Sissi foi eleito para a presi- ce esforçar-se para esquecer que um Tahrir, não concorda. “Se eu me sinto continuou Sissi. “Eu não ameaço nin-
dência da República, com 97% dos vo- dia a população esteve ali pedindo a vivendo sob uma ditadura? Não, na guém. O que aconteceu no Egito há se-
tos. Desde então, o que se passa? Co- cabeça de dois presidentes.2 As aveni- verdade não!” Nascida há trinta anos te anos não se repetirá.”
mo se vive no Cairo? das à sua volta exalam ordem e limpe- em uma família da pequena burguesia O clima político também se carac-
za, e o Ministério do Interior, alvo da do Cairo – pai engenheiro, mãe dona teriza por um forte retorno dos milita-
TVs NAS MÃOS DO GOVERNO fúria revolucionária, foi prudente- de casa –, ela “obviamente” participou res a todos os lugares de poder, espe-
À primeira vista, não pior do que mente deslocado para um bairro dis- da revolução de 2011 e depois das ma- cialmente na economia. “O Exército
antes. Os cafés populares, onde as pes- tante. Salvo alguns agentes de trânsito nifestações populares de 2013. “Minha há muito tempo goza de uma imagem
soas fumam narguilé por horas en- com uniformes azuis e talão de multa mãe é Sissi roxa! Ela o adora! Meu pai é positiva”, lembra Tewfik Aclimandos,
quanto assistem ao futebol ou discu- em mãos, a presença policial parece mais crítico, acha que ele não sabe professor da Universidade do Cairo.
tem qualquer coisa com os amigos, inexistente. Apesar de tudo isso, em conduzir a economia, que desde que “Com razão ou não, ele é considerado
estão sempre cheios. Os que preferem outubro passado a Anistia Internacio- chegou tudo está muito caro. Eu fico menos corrupto que a polícia, mais
MARÇO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 21

eficaz que as administrações civis, e -Khamissi, autor de uma famosa cole- jornalista literária da revista semanal democracia de Morsi, depois de Sissi. E
parece uma emanação do povo. No ção de contos, Taxi (2007), e do roman- Akhbar Al-Adab e autora de um delica- hoje a situação é pior do que era com
Egito, todo mundo tem um parente ou ce A arca de Noé (2009).6 “Ou que um do romance sobre a necessidade de es- Mubarak. Às vezes eu acho que não há
conhecido no Exército.” Quanto a sa- complô norte-americano-sionista quer crever, Jabal al-zomorrod [O monte es- esperança, que Sissi ficará para sem-
ber o que as pessoas acham do presi- dar parte do Sinai para os palestinos. meralda] (2014).8 Sentada no Chesa, pre. Mas, se eu parar de militar, me
dente, “é proibido, de qualquer forma, Mas que, felizmente, o presidente Sissi “café suíço” (está escrito na frente) da sentirei traindo todos os que estão
fazer verdadeiras pesquisas de opi- conseguiu frustrar essas conspirações Rua Adly, não muito longe da Praça mortos ou na prisão”.
nião sobre ele”, diz o acadêmico. “Te- e salvar o Egito!” E funciona. Basta co- Tahrir e de seu jornal, ela continua: Apesar de sua aparente onipotên-
mos de nos contentar com sinais de meçar a tirar fotos pela janela de um “Eu sobrevivi lendo, escrevendo e me cia – com a mídia sob controle e uma
otimismo. A partir daí, parece quase ônibus para que, em alguns instantes, concentrando nas pequenas coisas da oposição aniquilada –, o regime en-
certo que o entusiasmo que levou o um passageiro mande parar “imedia- vida. Com meu marido e meus filhos, carnado por Sissi parece ter um medo
presidente Sissi ao poder em 2013-2014 tamente!”. Por quê? “É uma questão de mudamos para New Cairo, um bairro profundo do povo. “Como que pressio-
caiu muito, especialmente após o ata- segurança nacional!” longe daqui. Lá, tenho a impressão de nado pelo medo obsessivo de uma ‘no-
que ao avião russo, em 2015.4 Mas ele viver em outro lugar, longe de Tahrir”. va Tahrir’, o regime faz de tudo para
ainda tem uma base sólida.” IRMANDADE MUÇULMANA APAGADA conter eventuais impulsos da socieda-
Para manter uma taxa suficiente de Nesse contexto, os espaços de dis- de”, analisa Karima H., cientista políti-
opiniões favoráveis, o regime conta com sidência reduzem-se ao extremo. As co francês residente de longa data no
uma ferramenta muito poderosa: o organizações egípcias de direitos hu-
Conseguimos Cairo, que prefere ficar anônimo,
controle da mídia, principalmente a manos falam em “60 mil presos políti- conversar livremente, “pois, nos dias de hoje, é melhor ter
mais consumida delas, a televisão.5 Sob cos”, esclarecendo que é impossível mas muitos dos cuidado”. Qualquer manifestação ou
a presidência de Hosni Mubarak e de- obter números confiáveis. Muitas pes- entrevistados disseram: reunião um pouco maior é estrita-
pois nos anos após a revolução, surgi- soas são presas e depois liberadas sob mente proibida. Sob o pretexto do “pe-
ram canais privados, com programas fiança. A maioria está ligada à Irman-
“Não escreva rigo terrorista”, foram construídas pa-
de entrevistas muito populares, que dade Muçulmana ou simplesmente é isso, senão eu redes de concreto curvas de 4 metros
traziam verdadeiros debates. Tudo isso suspeita de simpatia a Morsi. A elas se vou preso!” de altura em torno de cada ministério,
desapareceu. Hoje, todos os canais es- somam militantes do campo revolu- bem como do Banco Central, e solda-
tão nas mãos do regime e de seus ami- cionário. A Comissão Egípcia por Di- dos armados protegem suas entradas.
gos. O mesmo ocorre com a mídia im- reitos e Liberdades (ECRF, na sigla em Toda sexta-feira, dia de descanso em
pressa, com exceção do jornal Al-Masri inglês) fala em quarenta desapareci- REUNIÕES IMPORTANTES PROIBIDAS que normalmente acontecem as gran-
Al-Youm, um diário com tiragem de 120 mentos forçados por mês. A Irmanda- Alguns ex-revolucionários prolon- des manifestações, policiais de capa-
mil exemplares – para uma população de Muçulmana, que durante décadas gam seu engajamento em ONGs de de- cete e bota posicionam-se nas sete ar-
de quase 100 milhões. “Somos indepen- foi a única força de oposição, foi lite- fesa dos direitos humanos. É o caso de térias que levam à Praça Tahrir,
dentes”, comenta Doaa Eladl, famosa ralmente eliminada da paisagem polí- Malek Adly, chefe da rede de advoga- enquanto caminhões antimotim se
cartunista do jornal. “Mas existem li- tica, tanto pela repressão quanto por dos Egyptian Center for Economic and organizam ao seu redor, prontos para
nhas vermelhas – mal definidas, por si- causa dos profundos conflitos inter- Social Rights (ECESR), que passou intervir. Nos últimos dois anos, ocor-
nal, o que complica ainda mais meu tra- nos. Milhares de membros se refugia- quatro meses na prisão em 2016: “So- reram apenas duas manifestações, em
balho. Qualquer assunto pode irritar o ram na Turquia. “E os que ficaram no mos assediados pela polícia, a maioria outras partes da cidade: uma contra a
regime. Eu tento não me autocensurar, Egito, se não estão presos, vivem como de nós está proibida de sair do país, te- transferência para a Arábia Saudita de
mas sei o que faço.” É inimaginável, por fantasmas”, diz a pesquisadora Fatiha mos julgamentos suspensos por rece- duas pequenas ilhas desabitadas do
exemplo, desenhar o presidente. Em Amal Abbassi, autora de uma tese em ber fundos estrangeiros ou por ‘atentar Mar Vermelho, Tiran e Sanafir, em
compensação, em novembro de 2017 ela fase de conclusão sobre a Irmandade. contra a segurança do Estado’, corre- abril de 2016; 9 e outra contra a decisão
conseguiu publicar um cartum mos- “Mudaram suas roupas, sua maneira mos o risco de passar décadas na pri- de Donald Trump de reconhecer Jeru-
trando jovens egípcios presos, no mo- de falar, e a usra, reunião semanal da são, mas continuamos! E continuare- salém como capital de Israel, no início
mento em que o presidente Sissi abria o qual os membros tinham de partici- mos até a morte, se for preciso!”. A de dezembro de 2017 – decisão critica-
Fórum Mundial da Juventude em par, foi suspensa. Também há muitos proibição de receber financiamento da por todos os egípcios, ainda muito
Sharm el Sheikh. “Tenho um problema que, em completo desacordo com seus externo, que as autoridades justificam sensíveis à Questão Palestina. No final
mais sério”, continua. “Se o assunto for líderes, se distanciaram da organiza- pela necessidade de lutar contra a da manifestação, alguns gritaram:
muito delicado, nenhum jornal, nem o ção.” Alguns provavelmente se uniram “mão estrangeira”, é uma verdadeira “Pão! Liberdade! Abaixo o regime!”. Os
nosso, fala sobre ele.” a organizações terroristas, mas não é máquina de destruir organizações mi- instigadores foram imediatamente jo-
possível investigar esse fenômeno, litantes. E também afeta muitos espa- gados na prisão. No início de fevereiro,
descaradamente instrumentalizado ços culturais. Uma vez que o Ministé- dezessete pessoas foram condenadas
pelas autoridades, para as quais qual- rio da Cultura não oferece nenhum à prisão perpétua por terem se mani-
A Irmandade quer oponente é “terrorista”. tipo de subsídio, essas estruturas pas- festado, em 2014, contra a candidatura
Muçulmana, Quanto aos militantes de 2011, saram, há anos, a funcionar graças à de Sissi à presidência.
que durante décadas aqueles que foram o motor da revolu- ajuda ocidental. Agora precisam en-
ção – “um grupo de alguns milhares contrar outras formas de financiamen- MUITOS TABUS FORAM QUEBRADOS
foi a única força de de pessoas, no início”, de acordo com o to, ou fechar as portas. Em maio de Em locais públicos, é possível dis-
oposição, foi literalmente cientista político franco-egípcio Yous- 2017, foi promulgada uma nova lei so- cutir política com os amigos, como faz
eliminada da sef el Chazli, “em torno do qual se so- bre as ONGs, que deve eliminar as últi- Miran F. Para esta reportagem, muitas
paisagem política maram dezenas de milhares de sim- mas que ainda estão em atividade: entrevistas foram realizadas sem ne-
patizantes, sem jamais, no entanto, além da proibição de receber fundos nhum problema. Mas há um limite
chegarem a constituir uma organiza- estrangeiros, todas terão de apresentar que não pode ser cruzado: abordar es-
ção ou um partido” –, a maioria deles um pedido de renovação do registro a tranhos e levá-los a criticar o regime.
Essa censura permitiu ao governo cessou toda a atividade política. Al- uma comissão formada por militares. Conversamos com Mahmoud S. perto
incutir em muitos espíritos o fantasma guns estão presos; outros decidiram Esraa Abdel Fattah, conhecida na de sua casa, em Ain Shams, um dos
paranoico da espionagem estrangeira. morar no exterior; muitos passaram época da revolução como “The Face- tantos bairros arrasados pela miséria
“Nos programas de TV, nos jornais, por um período de depressão.7 “É mui- book Girl”, exibe o mesmo desencanto: na tentacular Cairo de 20 milhões de
sempre há um capanga do regime to doloroso ter participado de algo tão “Eu vivi os dezoito dias de 2011 [de 25 habitantes, a mais de uma hora de táxi
pronto a explicar que os Estados Uni- grande como a revolução, ter realmen- de janeiro a 11 de fevereiro, dia da re- da Praça Tahrir. “Não consigo deixar
dos e seus aliados europeus apoiaram te sonhado em mudar a cara de seu núncia de Mubarak] como uma mag- de falar, de discutir nos cafés do meu
a sociedade civil egípcia para derrubar país e virar testemunha da própria nífica utopia. Mas fomos idiotas. Idio- bairro”, explica o desempregado de 30
Mubarak”, diz o escritor Khaled al- derrota”, lamenta Mansoura Ez-Eldin, tas em acreditar nas promessas de anos, que esteve nas manifestações de
22 Le Monde Diplomatique Brasil MARÇO 2018

2011. “A situação é verdadeiramente Apesar de seu profundo desânimo aterroriza todos os edifícios, perdeu 1 Ler Alain Gresh, “A revolução egípcia à sombra
dos militares”, Le Monde Diplomatique Brasil,
terrível. Todo mundo está morrendo diante de uma situação de opressão que um pouco de seu poder”. Antes de ago. 2013.
de fome, não há liberdade. Mas, há três consideram por unanimidade “pior do 2011, acrescenta Sarah Mohamed, 2 Após vários julgamentos, Mubarak foi libertado em
dias, uns amigos me disseram que po- que era com Mubarak”, todos os vetera- militante da primeira hora, “quando março de 2017. Morsi, que chegou a ser ameaça-
do com a pena capital, cumpre sentença de 45
liciais à paisana vieram fazer pergun- nos da “revolução de janeiro” admitem, as pessoas viam uma mulher fuman- anos de prisão.
tas sobre mim. Isso aconteceu com um contudo, que ela “deixou marcas positi- do em um café, automaticamente a 3 “Égypte: les voix critiques réduites au silence” [Egi-
amigo meu, e ele está preso. É um avi- vas indeléveis” na sociedade. consideravam uma vagabunda. Hoje to: vozes críticas reduzidas ao silêncio], Anistia In-
ternacional, Paris, 21 out. 2017.
so, não falo mais com ninguém.” já não é assim”. Na rua, ou em uma 4 Em 31 de outubro de 2015, a explosão de um avião
Manter a população em liberdade “AS PESSOAS SE SENTEM MENOS SUBMETIDAS” repartição pública, pessoas vítimas russo no Sinai, pouco depois de decolar da cidade
vigiada com avisos desse tipo é a tática Para Ghada Abdel Aal, de 38 anos, da arbitrariedade de um funcionário balneária de Sharm el Sheikh, fez 224 vítimas. Pri-
meiro de uma longa série, o atentado foi reivindica-
para conter qualquer indício de rebe- que em 2008 publicou o famoso livro A ou de um policial hoje se atrevem a do por um grupo islâmico afiliado à Organização
lião. Conseguimos conversar livremen- ronda dos pretendentes,12 “a revolução dizer “não” e exigir que seus direitos do Estado Islâmico.
te, mas muitos dos entrevistados disse- permitiu quebrar muitos tabus no de- sejam respeitados. “Antes, isso era 5 Ler Aziz El Massassi, “La presse égyptienne mise
au pas” [Imprensa egípcia sob controle], Le Mon-
ram: “Não escreva isso, senão eu vou bate público e nas conversas nas redes impensável!” de Diplomatique, nov. 2015.
preso!”. No meio universitário, o aviso sociais. Hoje, podemos falar de rela- Para além da política e das discus- 6 Ambos em francês pela Actes Sud, Arles, res-
foi a morte, em condições obscuras, em ções sexuais antes do casamento, de sões sobre o bloqueio da eleição presi- pectivamente 2009 e 2012. Sem tradução para o
português.
janeiro de 2016, do pesquisador italiano homossexualidade, de agressão se- dencial, os egípcios estão empolgados 7 Ver o filme de Pauline Beugnies Rester vivants
Giulio Regeni, após seu rapto em plena xual, e questionar alguns princípios com um assunto muito mais mobiliza- [Continuar vivendo] (2017, 110 min), documentário
rua. Segundo a Reuters, o jovem teria si- religiosos, até a própria crença em dor: após 28 anos fora da competição, que faz o retrato de quatro manifestantes da Praça
Tahrir, com percursos muito diferentes.
do detido por policiais à paisana e Deus. O governo, que permanece mui- o Egito se classificou para a Copa do 8 Em francês pela Actes Sud, 2017. Sem versão em
transferido para uma delegacia da ca- to conservador nessas questões, conti- Mundo de Futebol, que acontecerá em português.
pital, antes de desaparecer e ser encon- nua punindo. Mas, na sociedade, o de- junho, na Rússia. Se o regime sabe que 9 “Le pouvoir égyptien dans l’imbroglio de l’affaire
des îles Tiran et Sanafir” [Governo egípcio no im-
trado morto, com o corpo torturado e bate existe”. Há três anos, ela mesma isso desviará a atenção da população bróglio do caso das ilhas Tiran e Sanafir], Orien-
mutilado.10 As autoridades egípcias se permitiu uma ação que tornou pú- durante algumas semanas, ele tam- tXXI.info, 25 jan. 2017 (tradução de um artigo em
apresentaram diversas vias de investi- blica em sua página do Facebook, com bém não ignora que uma classificação árabe do Mada Masr, Cairo, 17 jan. 2017).
10 “Exclusive: Egyptian police detained Italian stu-
gação, inclusive a de sequestro malsu- 180 mil seguidores: tirou o hijab que para a segunda fase ou, ao contrário, dent before his murder” [Exclusivo: polícia egípcia
cedido e a de crime sexual, que não era forçada a usar desde a infância, uma derrota humilhante bastariam deteve estudante italiano antes de ele ser assassi-
convenceram ninguém.11 “Se foi um er- “por mero código social”. para encher a Praça Tahrir novamen- nado], Reuters, 21 abr. 2016.
11 Hélène Sallon e Philippe Ridet, “L’Italie doute de
ro ou um crime encomendado, o fato é Segundo Georges Seif, médico vo- te. Com tudo que isso implica em ter- la version égyptienne de la mort de l’étudiant Giu-
que todos estamos muito cautelosos”, luntário na Praça Tahrir em 2011, “as mos de possíveis transbordamentos e lio Regeni” [Itália duvida da versão egípcia da
confessa um pesquisador francês, obri- pessoas se sentem menos submeti- protestos de caráter político. morte do estudante Giulio Regeni], Le Monde,
26 mar. 2016.
gado a realizar “clandestinamente” das ao olhar alheio. Mesmo o bawab, 12 La ronde des prétendants, Éditions de l’Aube, Avig-
suas pesquisas junto à população. uma espécie de porteiro-espião que *Pierre Daum é jornalista. non, 2013. Sem tradução para o português.

UMA VIDA MUITO CARA

S eja um vendedor de rua em um bairro informal do


Cairo,1 um funcionário em uma repartição pública ou
um escritor famoso em um belo apartamento em Wust
torna-se o alimento básico. Então ele precisa ser com-
prado a um preço alto: 20 libras (R$ 3,65) a cada vinte
pães. Para os outros alimentos básicos, um cartão com
terrível” e que ele “faz o que pode”. O Exército, já presente
em muitos setores (turismo, construção, indústria) e que,
desde a queda de Hosni Mubarak, tem se inserido maci-
el-Balad (nome árabe do centro da cidade, em torno da chip substituiu o carnê, recebendo uma provisão mensal çamente em todos os setores da economia, sob o pretex-
Praça Tahrir), em resposta à pergunta “O que mudou de- de 200 libras (R$ 36,50) para uma família de quatro to de que “sem [ele] nada funciona”, parece querer servir
pois de 2011?”, todos os nossos interlocutores exclamam pessoas. Embora o número de titulares de cartões seja de amortecedor, ao mesmo tempo que cultiva sua ima-
imediatamente: “A vida está muito cara, está terrível!”. Es- aproximadamente o mesmo de detentores do antigo car- gem de instituição próxima do povo. “Em uma manhã
sa alta dos preços começou a ser sentida em 2014, logo nê, o preço dos produtos subsidiados aumentou muito. qualquer, podemos ver caminhões do Exército chegando
após as eleições presidenciais, quando o governo do ma- Entre 2014 e 2017, “o quilo de açúcar passou de 4,5 para a um bairro pobre cheios de carne para ser vendida a um
rechal Abdel Fattah al-Sissi iniciou “reformas estruturais” 10 libras [R$ 0,82 para R$ 1,83]; o litro de óleo, de 6,5 preço muito inferior ao do mercado”, conta Vannetzel.
impostas pelo FMI, em troca de uma ajuda anual de US$ para 14 libras [R$ 1,19 para R$ 2,56] etc.”, detalha Marie Nesses mesmos bairros, mães de família obrigadas a ali-
12 bilhões a US$ 15 bilhões. “Trata-se de passar gra- Vannetzel – isso em um país onde um médico de um hos- mentar seus dez filhos e netos, todos os dias, com “ape-
dualmente de um sistema de subvenção generalizado pital ganha 1.300 libras por mês (R$ 238); um diretor da nas pão e batata”, dizem com a voz embargada: “Se isso
dos bens de consumo para uma ajuda financeira especí- administração pública, 4.500 libras (R$ 822); e um tra- continuar, as pessoas vão para a rua! O Exército pode
fica voltada às pessoas com rendimentos muito baixos”, balhador é considerado “bem pago” quando recebe atirar na gente, não vamos ligar!”. Como explica o cientista
explica Marie Vannetzel, pesquisadora do Centro Nacio- 1.200 libras (R$ 219). Para as pessoas mais pobres – 9 político Karima H., o presidente Sissi “parece determinado
nal de Pesquisa Científica (CNRS, na sigla em francês), milhões, de acordo com os critérios em vigor –, concede- a realizar as reformas que seus predecessores Sadat e
atualmente no Cairo para estudar o tema. -se um benefício mensal extra de cerca de 700 libras Mubarak tentaram e foram obrigados a desistir por causa
No antigo sistema, produtos essenciais, como pão, (R$ 128) por família. da ira popular”. Há risco de grandes manifestações, com-
açúcar, óleo, feijão etc., além de gasolina, gás e eletrici- O governo também reduziu bruscamente o subsídio da paráveis às que foram realizadas em 1977, sob o governo
dade, eram fortemente subsidiados. Antes da reforma, energia, que beneficiava todos os egípcios. Em três anos, de Anwar el-Sadat? O acadêmico não acredita nisso.
por exemplo, o pãozinho redondo e oco, item fundamen- o preço da gasolina e do gás triplicou, e o da eletricidade “Motins esporádicos, talvez, mas não mais que isso.” Em
tal da dieta egípcia, custava 5 libras (R$ 0,90) em uma ficou quatro ou cinco vezes mais caro. Não é de admirar, março de 2017, os egípcios protestaram contra o aumen-
padaria subsidiada, contra 36 libras no mercado livre. To- então, que a taxa da população abaixo da linha de pobre- to do preço do pão, mas o movimento não chegou à esfe-
dos tinham direito a ele, e em quantidade ilimitada. Bas- za nacional tenha aumentado, de acordo com o Banco ra política. Entre uma mídia submissa, uma oposição des-
tava se dispor a enfrentar as filas às vezes intermináveis Mundial, de 25% em 2010 para quase 28% em 2015 – truída e um contexto regional usado como elemento de
das padarias. Para outros produtos alimentícios, era ne- hoje provavelmente já ultrapassou a marca de 30%. Ain- contraste – guerras civis na Líbia, Síria e Iraque –, o regi-
cessário ter um carnê, no qual o vendedor anotava a da mais porque, com a queda brutal da libra em novem- me parece manter o povo sob controle. (P.D.)
compra, limitada a uma cota mensal. Esses carnês, teori- bro de 2016, todos os preços aumentaram, enquanto os
camente atribuídos por critérios sociais, eram na verdade salários evoluíram muito pouco. 1 Megalópole caótica de 20 milhões de habitantes, o Cairo é forma-
detidos por 85% da população. Hoje, o número de pães Esse sofrimento econômico sentido pelos egípcios, em do por uma miríade de bairros, a maioria deles construída sem a
é limitado a vinte por família por dia. Esses vinte custam todas as classes sociais, provocou, principalmente no in- intervenção das autoridades públicas. Mesmo quando é de alvena-
ria, a habitação nesses “bairros informais” é quase sempre muito
1 libra egípcia (R$ 0,18). Mas raramente eles são sufi- terior, alguns movimentos sociais rapidamente reprimi- precária.
cientes para as famílias, frequentemente grandes. Ainda dos.2 Muitos ainda acreditam que, “quando chegou ao po- 2 Ler Mustafa Bassiouni, “Nada detém os operários egípcios”, Le
mais quando, em tempos de pobreza crescente, o pão der, Sissi encontrou os cofres do Estado em uma situação Monde Diplomatique Brasil, ago. 2014.
MARÇO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 23

INTERVENÇÃO NA SÍRIA, PRESSÃO NO LÍBANO, GUERRA NO IÊMEN

O impasse saudita
no Oriente Médio
A Arábia Saudita tenta impedir a eclosão de um movimento democrático na região e conter a influência de seu
rival iraniano. O novo poder multiplica as iniciativas, mas a maioria fracassa. Incapaz de favorecer a derrota do regime
de Bashar al-Assad, Riad afunda-se no conflito no Iêmen e não consegue enquadrar o Catar
POR GILBERT ACHCAR*

chave para a especificidade do

A Oriente Médio não é o islã, mas


o petróleo. A riqueza da região
do Golfo Pérsico levou o Impé-
rio Britânico a criar ou consolidar no
flanco árabe entidades artificiais em
diferentes graus. Os Estados-membros
do Conselho de Cooperação do Golfo
(CCG) apresentam a particularidade
de ter estrangeiros constituindo a
maior parte da força de trabalho. Na
maioria desses Estados (Arábia Saudi-
ta, Omã, Kuwait, Bahrein, Emirados
Árabes Unidos e Catar), eles represen-
tam a maior parte da população. Che-
gam a 90% dela, no Catar e nos Emira-
dos Árabes Unidos!
A riqueza petrolífera da região do
Golfo levou o Império Britânico a con-
solidar ou instaurar os sistemas mo-
nárquicos mais arcaicos do mundo
contemporâneo. Explorando e revi-

© Reuters / Khaled Abdullah


vendo sucessões tribais, transformou
grupos de clãs em “famílias reinan-
tes”, estabelecendo poderes absolutis-
tas de tipo patrimonial, com a espe-
rança de que elas se mantivessem
como poder tutelar até seus recursos
de hidrocarbonetos estarem esgota-
dos. Essa riqueza levou os Estados
Unidos a agir da mesma forma com Mulheres participam de manifestação para apoiar o movimento houthi em Sanaa, no Iêmen
seu mais antigo protetorado de fato na
região: o reino saudita. O líder do sua propriedade privada, menos esse mantido com mão de ferro por uma fa- 1979. A revolução iraniana apavorou as
“mundo livre” apoia o Estado mais an- círculo obedece a restrições estruturais mília reinante que reproduzia os ví- monarquias árabes vizinhas, ainda
tidemocrático, misógino e fundamen- e mais sua margem de manobra se alar- cios das monarquias absolutistas – até mais com os Estados Unidos no ponto
talista do planeta, o único em que o ga. Em tais circunstâncias, suas deci- sua derrubada, em 2003, após a inva- mais baixo de seu declínio pós-vietna-
Corão e a Sunnah (tradição) assumem sões podem sofrer mudanças bruscas, são liderada pelos Estados Unidos. mita e paralisados diante dos muitos
o lugar da Constituição. que parecem erráticas e caprichosas. No Irã, isso levou ao surgimento do desafios daquele ano: revolução na Ni-
A autonomia extrema do Estado, Lá onde as grandes máquinas estatais, único Estado estritamente teocrático carágua, invasão soviética no Afeganis-
possibilitada pela renda obtida com o como os navios, movem-se lentamente, (com exceção do Vaticano). Ao contrá- tão. A ofensiva do Iraque contra o Irã
petróleo e o gás, permitiu que se perpe- os poderes estatais ultraconcentrados rio de seus vizinhos do Golfo, o Irã é em 1980 permitiu que os Estados Uni-
tuassem esses sistemas arcaicos, en- estão sujeitos a viradas abruptas, como governado por instituições e leis, e não dos e seus aliados regionais se restabe-
cravados em instituições estatais e eco- um bote a motor. por uma família, embora o Líder Su- lecessem: eles facilitaram a destruição
nomias capitalistas contemporâneas. Dois Estados da zona do Golfo es- premo goze de um poder exorbitante.1 mútua dos dois Estados em luta.
Ali, o poder obedece tanto menos à ra- caparam da configuração sociopolíti- Consequentemente, é o único Estado A guerra terminou “empatada”,
cionalidade socioeconômica habitual – ca compartilhada pelos outros, por- da região que atua com base em uma após oito anos de um massacre absur-
a dos sistemas políticos em que os inte- que abrigavam civilizações urbanas estratégia coerente, facilmente identi- do (quase 1 milhão de mortos, segun-
resses de uma classe capitalista ou de muito antigas e herdaram populações ficável: o expansionismo da Guarda do a estimativa mais comum). Sem
uma camada burocrática delimitam as mais numerosas e sociedades mais de- Revolucionária e a exacerbação da conseguir livrar-se das dívidas contraí-
escolhas possíveis – quanto mais con- senvolvidas: o Irã e o Iraque. Eles são tensão regional que o país produz re- das junto a seus financiadores monár-
centrado ele é: quanto mais restrito é o os dois únicos países da região onde a forçam a legitimidade de seu poder.2 quicos, Saddam Hussein decidiu resol-
círculo dirigente, ao mesmo tempo dis- monarquia foi derrubada. No Iraque, O quadro da atual dinâmica geopo- ver a situação invadindo e anexando o
pondo de um tesouro natural para fi- isso acabou levando à constituição de lítica do Golfo foi determinado pelo ad- Kuwait, em agosto de 1990. Assim, pro-
nanciar um Estado que ele trata como um regime patrimonial “republicano”, vento da República Islâmica do Irã, em porcionou aos Estados Unidos uma ex-
24 Le Monde Diplomatique Brasil MARÇO 2018

celente oportunidade de matar dois ira do grande irmão saudita, o emir in- O governo de Barack Obama osci- tribais árabes sunitas. Em vez disso,
coelhos com uma cajadada só: retor- troduziu uma política rentista de “co- lou entre as duas opções. Ele concor- os Estados Unidos apoiaram-se, em
nar com força ao Golfo pela primeira bertura de risco”, “diversificando seus dou com a repressão do levante no sua intervenção no Iraque, nas forças
vez desde 1962 – data da evacuação da ativos”, ou seja, tecendo vínculos com Bahrein, mas apoiou o acordo no Iê- armadas regulares e irregulares do-
base norte-americana em Dhahran, na toda a gama de forças importantes na men. Nos países onde a revolta foi minadas pelos xiitas e infiltradas no
região petrolífera do reino saudita, sob região. Assim, realizou a façanha de muito impetuosa, ele jogou a carta da Irã, em graus diversos, para grande
a pressão do Egito de Nasser – e confir- construir, à sua própria custa, em se- recuperação, confiando na coopera- desgosto da Arábia Saudita. E na Síria,
mar para seus aliados, rivais e inimi- gredo, uma base aérea para os Estados ção da Irmandade Muçulmana – como nas forças nacionalistas curdas, para
gos planetários a supremacia (“indis- Unidos (Al Udeid, perto de Doha) e es- foi o caso no Egito, antes mesmo de es- grande desgosto da Turquia.
pensável” ou inevitável) dos Estados tabelecer relações comerciais com Is- ta vencer as eleições presidenciais de A atitude de Obama era coerente
Unidos na era pós-Guerra Fria, quando rael, ao mesmo tempo exibindo boas maio-junho de 2012.4 Na Líbia, os Esta- com sua política de apaziguamento
o bloco soviético desabava. relações com o Irã e apoiando o Hez- dos Unidos se deixaram levar por seus em relação ao Irã, apostando na fração
Ao destruir o Iraque baathista, seu bollah libanês e o Hamas palestino! aliados europeus – principalmente moderada, chamada de reformista, do
grande inimigo, a intervenção de 1991 No entanto, a invasão do Iraque em franceses e britânicos – para bombar- regime iraniano – política da qual o
suscitou sentimentos mais dóceis en- 2003 mudou o jogo em toda a região. dear as forças de Muamar Kadafi. O acordo sobre a questão nuclear consti-
tre os líderes iranianos. Mas esse golpe Do ponto de vista estratégico, ela foi Catar participou ativamente da inter- tuía uma pedra angular. O presidente
de força fortaleceu a família real saudi- certamente o fracasso mais grave na venção, enquanto os sauditas se recu- dos Estados Unidos fez desse acordo
ta, que passou a sentir-se ao abrigo de história da política imperialista dos saram a se unir a ela. Sabemos o resul- sua prioridade, conseguindo fechá-lo
uma ação iraniana em seu território. Estados Unidos: eles tiveram de sair tado: o caos líbio dissuadiu Obama de em julho de 2015, após longas negocia-
Riad fez da atitude em relação à guerra do Iraque em 2011, sem conseguir ne- voltar a colaborar com a derrubada de ções envolvendo a Rússia, a China, a
entre Estados Unidos e Iraque a pedra nhum de seus objetivos centrais. Pior: um Estado na região. Na Síria, portan- Alemanha e a França. Ele tomou essa
de toque de suas relações regionais. Ele deixaram o país já dominado por seu to, o presidente dos Estados Unidos via apesar da expansão regional do
puniu todos aqueles que saudaram a grande inimigo regional iraniano. negou à oposição os meios para neu- Irã, que, depois de se estabelecer fir-
invasão do Kuwait e se declararam tralizar a grande vantagem militar do memente no comando do Estado ira-
hostis à intervenção norte-americana: regime, que é a posse exclusiva de quiano, passou a intervir de maneira
o Iêmen, expulsando quase 1 milhão meios aéreos: ele não apenas se recu- crescente na Síria, com seus contin-
de trabalhadores migrantes dali oriun- Embora afirme o sou a reiterar a “zona de exclusão aé- gentes regionais, a partir de 2013. A in-
dos; a Organização pela Libertação da contrário, o governo rea” imposta acima da Líbia, mas, so- diferença dos Estados Unidos irritou
Palestina (OLP) de Yasser Arafat, cor- Trump poderia bretudo, impediu qualquer entrega de os dois principais inimigos do Irã na
tando o abastecimento de suprimen- armas antiaéreas à oposição. Desse região: Israel e o reino saudita.
tos; e a Irmandade Muçulmana, rom-
conviver com a modo, o regime de Bashar al-Assad ga- A apreensão dos sauditas atingiu
pendo os laços com o grupo. manutenção de rantiu o controle do espaço aéreo, in- seu clímax quando, em setembro de
Até aquele momento, o reino saudi- Al-Assad no poder sob clusive para o lançamento, com heli- 2014, a capital iemenita, Sanaa, foi to-
ta era o principal apoio da Irmandade, a tutela da Rússia cópteros, das mortais bombas de mada pelos houthis, amigos do Irã, de
desde sua fundação, no Egito, em 1928. barril. Ao mesmo tempo, Obama dele- cujas orientações ideológicas eles
Com os Estados Unidos, ela havia gou a seus aliados do Golfo e à Turquia compartilham, e aliados do ex-presi-
combatido o regime nacionalista de a tarefa de patrocinar a oposição síria. dente Ali Abdullah Saleh.5 Foi nesse
Gamal Abdel Nasser (1954-1970), No mesmo ano, os Estados Unidos Os sauditas não podiam defender contexto muito alarmante para os lí-
apoiado pela Rússia, que a reprimiu testemunharam a explosão de muitos Al-Assad por causa de sua aliança com deres sauditas que Salman bin Abdu-
duramente. Mas a organização não dos Estados nos quais se baseava sua o Irã. Mas, como o Catar, não saberiam laziz al-Saud sucedeu a seu meio-ir-
poderia alinhar-se com a Arábia Sau- hegemonia regional. Diante da Prima- conviver com uma revolução democrá- mão, morto em 23 de janeiro de 2015.
dita durante a Guerra do Golfo sem vera Árabe, surgiram duas opções con- tica e laica em sua vizinhança. Então Com 80 anos de idade no momento
perder muitos de seus membros. Pri- trarrevolucionárias concorrentes, am- decidiram remodelar a oposição síria em que subiu ao trono, o rei Salman
vando-a de apoio logístico e financei- bas ancoradas no bastião reacionário para torná-la compatível com a natu- estabeleceu como objetivo prioritário
ro, a Arábia Saudita queria que a Ir- do CCG:3 uma apoiada pelo reino sau- reza reacionária de seu próprio regime. preparar a sucessão de seu filho favori-
mandade, assim como a OLP, fosse dita e a outra, pelo emirado do Catar. Assim, iniciaram uma feroz concor- to, Mohammed, que ainda não tinha
obrigada a se dobrar. Tradicionalmente ultraconserva- rência com o eixo Catar-Turquia para 30 anos. Começou confiando-lhe o
A situação não demorou a mudar, dores, os sauditas eram partidários da financiar grupos armados sírios com Ministério da Defesa; dois anos de-
com a tomada de poder, no Catar, de defesa dos regimes em vigor, fosse es- perfil fundamentalista islâmico (sala- pois, em junho de 2017, Mohammed
Hamad bin Khalifa al-Thani, que de- magando as revoltas – como ajudaram fista-jihadista) e sunita. A revolução sí- bin Salman (MBS, como costumam
pôs seu próprio pai em 1995. O novo a fazer, em março de 2011, em Mana- ria de 2011 virou pó, pega entre o mar- designá-lo) tornou-se o príncipe her-
emir provavelmente não havia lido a ma, capital do Bahrein –, fosse nego- telo e a bigorna: de um lado, o regime, deiro.6 O novo rei e seu jovem filho op-
fábula de La Fontaine “A rã que queria ciando acordos nos países onde man- as milícias fundamentalistas xiitas taram por uma reação enérgica à
ser maior que o boi”. Querendo brincar tinham boas relações com a oposição controladas pelo Irã e, depois, a partir ameaça iraniana: decidiram realizar
junto com os grandes da política regio- oficial, como no Iêmen. O Catar, por de 2015, a aviação e os mísseis da Rús- uma intervenção direta no Iêmen,
nal, ele decidiu financiar a Irmandade sua vez, erigiu-se em principal apoia- sia; do outro, grupos armados funda- bem como adotar uma política de
Muçulmana mais ou menos da mesma dor do levante regional, fazendo valer mentalistas apoiados pela Turquia, pe- frente sunita regional única, que pas-
forma que outros magnatas compram sua capacidade de influenciá-lo graças lo Catar e pela Arábia Saudita. sava por melhorar as relações com o
equipes de futebol. E também adqui- à sua ascendência decisiva sobre a Ir- Nem o surgimento da Organização Catar e flexibilizar a atitude em rela-
riu, pagando caro, um canal de televi- mandade Muçulmana. Esta aprovei- do Estado Islâmico, a tomada de Mos- ção à Irmandade Muçulmana.
são por satélite, a Al Jazeera, que tinha tou as circunstâncias para assumir sul, no Iraque, e a proclamação do ca- A intervenção militar no Iêmen li-
a Irmandade como base de sustenta- um papel de liderança, com o apoio fi- lifado bastaram para levar Obama a derada pela Arábia Saudita em março
ção e logo conseguiu uma audiência nanceiro e televisivo de seu patrocina- apoiar-se em forças armadas árabes de 2015, sob a supervisão de MBS, mo-
excepcional, dando voz às oposições dor. A melhor ilustração do contraste sunitas confiáveis nos dois países, co- bilizou uma coalizão que incluía o Ca-
do mundo árabe – com exceção daque- entre as duas opções pode ser buscada mo muitos o incitavam a fazer. O ar- tar. Ela apoiou um governo iemenita
las do vizinho saudita e do próprio Ca- no país onde tudo começou: a Tunísia. gumento era de que isso permitiria “legítimo”, que representava uma coa-
tar, onde o crime de lesa-majestade po- O emirado acompanhou o levante po- sufocar de maneira durável a Organi- lizão da qual participava a Irmandade
de ser punido com a prisão perpétua. pular apoiando o parceiro tunisiano zação do Estado Islâmico, da mesma Muçulmana local. Esta é um compo-
da Irmandade Muçulmana, o Ennah- forma que a ocupação dos Estados nente fundamental do partido Al-Is-
DUAS OPÇÕES CONTRARREVOLUCIONÁRIAS da, enquanto o reino wahabita ofere- Unidos só conseguiu vencer sua ver- lah, com o qual o novo reinado saudita
Armado com esses dois instru- ceu asilo ao ditador deposto, Zine al-A- são anterior, o Estado Islâmico no Ira- restabeleceu relações, após o reinado
mentos políticos e confrontado com a bidine ben Ali. que, armando e financiando milícias anterior tê-lo excomungado. No en-
MARÇO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 25

tanto, a nova linha da Arábia Saudita a tutela da Rússia, desde que esta ajude que o “partido de Deus” fazia parte do por parte deste último, de Jerusalém
criou tensões com o Egito do marechal a expulsar as forças iranianas e suas governo presidido por Hariri... como capital do Estado de Israel os en-
Abdel Fatah al-Sissi, partidário da li- aliadas do país. As duas orientações Toda essa operação foi novamente vergonhou, especialmente porque, de
nha dura contra a Irmandade, que ele foram seguidas pela Arábia Saudita um fiasco: retirado da Arábia Saudita acordo com seu desejo, eles haviam
destruiu em seu país. Nessa posição desde a visita do presidente norte-a- pelo presidente francês Emmanuel começado a pressionar a Autoridade
inflexível, o Egito voltou-se para os mericano. No início de outubro de Macron, Hariri voltou atrás em sua re- Palestina de Mahmoud Abbas para
Emirados Árabes Unidos, onde o prín- 2017, o rei Salman realizou a primeira núncia. A coalizão do governo liba- aceitar os termos israelenses – eles ti-
cipe herdeiro de Abu Dhabi e homem visita de um soberano saudita à capital nês, no entanto, continua muito frágil veram de voltar atrás. E o isolamento
forte da federação, Mohammed bin russa. A operação de sedução – a julgar e exposta a crises recorrentes. Aliás, do presidente dos Estados Unidos na
Zayed (conhecido como MBZ), profes- pela delegação de alto escalão que há sinais de tensão entre a Rússia e a cena internacional sobre a questão
sa uma veemente hostilidade contra a acompanhou o monarca e pelos con- Arábia Saudita sobre a Síria: depois de iraniana só pode agravar sua amargu-
Irmandade Muçulmana.7 tratos negociados – tinha o objetivo de parecer apoiar os movimentos russos ra. A dança do sabre de Trump com
A eleição de Donald Trump para a convencer o presidente Vladimir Putin para promover um diálogo entre o re- seus convidados sauditas em maio
presidência dos Estados Unidos veio a mudar sua atitude em relação ao Irã. gime e a oposição, a Arábia Saudita passado já parece bem longe...
bagunçar tudo outra vez. O novo pre- Um mês depois, Trump e Putin, pre- parece ter endurecido sua posição, a
sidente logo se cercou de conselheiros sentes na cúpula da Cooperação Eco- ponto de encorajar a oposição síria a *Gilbert Achcar é professor da Escola de
islamofóbicos que defendiam uma ati- nômica Ásia-Pacífico (Apec) em Da recusar-se a jogar o jogo da Rússia. No Estudos Orientais e Africanos (Soas) da Uni-
tude dura contra a Irmandade Muçul- Nang, no Vietnã, assinaram uma de- fim das contas, o destino da Síria de- versidade de Londres. Autor do livro Les Ara-
mana, recomendando até classificá-la claração conjunta sobre a Síria: apoio penderá da evolução das relações en- bes et la Shoah. La guerre israélo-arabe des
como organização “terrorista”. Eles fo- ao processo internacional da Confe- tre norte-americanos e russos. Por en- récits [Os árabes e o Holocausto. A guerra de
ram encorajados nisso pelos Emirados rência de Genebra e aval implícito pa- quanto, a atitude dos Estados Unidos narrativas entre árabes e israelenses], Sin-
e seu ativo embaixador em Washing- ra a manutenção de Al-Assad no poder em relação à Rússia endureceu consi- dbad-Actes Sud, 2009.
ton, pedindo que se obrigasse o Catar a até a adoção de uma nova Constitui- deravelmente: campanha contra o
tirar o apoio à Irmandade. ção e a organização de eleições. “Russiagate”, novas sanções, entrega
Recebido com grande pompa pelo Nesse meio-tempo, a Arábia Saudi- de armas à Ucrânia etc. Tudo contra a
reino saudita em maio de 2017, em sua ta convocou o primeiro-ministro liba- vontade de um Donald Trump visivel- 1 Ver Philippe Descamps e Cécile Marin, “Une mol-
primeira visita presidencial no exte- nês, Saad Hariri, de família estreita- mente irritado. lahrchie constitutionnelle” [Uma mularquia consti-
tucional], Le Monde Diplomatique, maio 2016.
rior, Trump pressionou seus anfitriões mente dependente dos sauditas,8 para Diante do inédito caos da política 2 Ler Bernard Hourcade, “O Irã se reinventa como
a forçar o Catar a romper com a Irman- obrigá-lo a fazer uma declaração de norte-americana, os sauditas se veem potência regional”, Le Monde Diplomatique Brasil,
dade e não mais deixar a Al Jazeera à renúncia que, de maneira bastante em uma bela confusão, especialmente fev. 2018.
3 Fundado em 1980, o CCG reúne o reino da Arábia
sua disposição. Menos de quinze dias absurda, ele foi forçado a ler no pró- porque sua ofensiva no Iêmen atolou, Saudita, o reino do Bahrein, a federação dos Emi-
após a visita, o reino saudita, os Emira- prio reino saudita, em 4 de novembro provocando um dos piores desastres rados Árabes Unidos, o emirado do Kuwait, o sulta-
dos e o Bahrein, seguidos pelo Egito e de 2017. Atacando ferozmente o Irã e humanitários contemporâneos, até nato de Omã e o emirado do Catar. Desde a ruptu-
ra das relações diplomáticas entre o Catar e os
alguns governos vassalos, romperam seu auxiliar libanês, o Hezbollah, com mais grave que a tragédia síria. Sua es- vizinhos Arábia Saudita e Bahrein, o funcionamen-
as relações diplomáticas com o Catar. o qual Hariri havia, no entanto, for- perança de reverter a situação trazen- to do CCG está paralisado de fato.
Os três membros do CCG chegaram a mado um governo de unidade nacio- do de volta Saleh – que já não estava 4 Ler “Tudo dentro da ordem”, Le Monde Diplomati-
que Brasil, mar. 2011.
interromper o transporte e o comércio nal em dezembro de 2016, a declara- mais ao alcance da mão – evaporou-se 5 Ler Laurent Bonnefoy, “Enlisement saoudien au
com o colega. O caso, que fez muito ção pôs fim a qualquer cooperação em dezembro, com seu assassinato Yémen” [Sauditas atolam no Iêmen], Le Monde
barulho, foi um fiasco. Expulso da com o partido xiita. A operação fez pelos aliados que ele havia traído. A is- Diplomatique, dez. 2017.
6 Ler Nabil Mouline, “Petits arrangements avec le
coalizão que intervinha no Iêmen, o tanto sentido quanto as observações so se soma, desde então, um conflito wahhabisme” [Pequenos arranjos com o wahabis-
Catar recusou-se a seguir as ordens. de Trump no gramado da Casa Bran- aberto entre as forças iemenitas da mo], Le Monde Diplomatique, jan. 2018.
Ele usou seus enormes recursos finan- ca, com Hariri a seu lado durante visi- coalizão liderada pela Arábia Saudita, 7 Nascido em 1961, MBZ, que se tornou chefe dos
serviços de segurança dos Emirados Árabes Uni-
ceiros para se adaptar à situação, com ta a Washington, em julho: o presi- ainda mais incômodo pelo fato de que dos na década de 1990, teria sido treinado por
a ajuda comercial e militar da Turquia, dente dos Estados Unidos atacou algumas facções passaram a ser apoia- oficiais egípcios expatriados, cujo principal alvo em
aliada e copatrocinadora da Irmanda- longamente o Hezbollah, chamando- das pelos Emirados Árabes Unidos e seu país de origem tinha sido a Irmandade Muçul-
mana. Acusando a organização de conspirar pela
de Muçulmana desde o início da Pri- -o de “ameaça para o Estado libanês, o outras pela Arábia Saudita. Catar, Lí- tomada do poder, MBZ liderou a repressão de
mavera Árabe. povo libanês e toda a região” e colo- bano, Síria, Rússia: todas as manobras seus membros e simpatizantes nos Emirados.
Embora afirme o contrário, o go- cando-o no mesmo saco que a Orga- empreendidas pelos líderes sauditas 8 O pai de Saad Hariri, o ex-primeiro-ministro libanês
Rafik Hariri, assassinado em fevereiro de 2005, fez
verno Trump poderia conviver com a nização do Estado Islâmico e a Al- instigados por Trump falharam. Para fortuna na Arábia Saudita, sob a proteção do rei
manutenção de Al-Assad no poder sob -Qaeda, sem se importar com o fato de piorar as coisas, o reconhecimento, Fahd bin Abdulaziz al-Saud.
26 Le Monde Diplomatique Brasil MARÇO 2018

EXÉRCITO, UMA INSTITUIÇÃO SINGULAR

Cuba, o país do verde-oliva


O presidente cubano Raúl Castro deixará o cargo em abril. Pela primeira vez em sua história, a ilha será provavelmente
governada por uma pessoa nascida após a queda do ditador Fulgencio Batista, em 1959. Essa reviravolta suscita numerosas
perguntas. Mas uma coisa é certa: o Exército desempenhará um papel decisivo na fase que se avizinha
POR RENAUD LAMBERT*

“Raúl havia lançado as bases de uma


forma de governo não apenas para suas
tropas, mas também para a população:
com uma espécie de ministérios da
Guerra, da Justiça, da Propaganda, da
Saúde, da Economia, das Obras Públi-
cas, das Comunicações, da Educação,
além de departamentos encarregados
dos problemas agrários e trabalhistas”.2
A instituição militar que hoje os
cubanos conhecem, oficialmente
inaugurada em 2 de dezembro de
1961, emergiu, portanto, do caldeirão
da guerrilha, daí seu nome: Forças Ar-
madas Revolucionárias (FAR). Não foi
concebida para defender o país, mas
para libertar o povo da ditadura – uma
vocação política que não a deixou
mais, mesmo quando o projeto inicial
mudou, passando do nacionalismo à
construção de um socialismo “à cuba-
na”. As FAR gozam, pois, de uma aura
considerável junto àqueles que vive-
ram a queda do ditador Fulgencio Ba-
tista. Para eles, os militares são os an-
tigos guerrilheiros, aos quais devem
© Cau Gomez

com muita frequência seus primeiros


sapatos, seus primeiros livros, sua pri-
meira vitória. O internacionalismo
das FAR contribui para seu prestígio
no seio de uma população mais politi-
zada que em qualquer outra parte e
lguns meses depois de assumir Washington. Satisfação quando der- uma zona afastada, a leste do país. A que vivenciou as tribulações da resis-

A a presidência, Donald Trump


decidiu anular o “acordo total-
mente desigual assinado com
Cuba” por seu predecessor Barack
Obama, em 16 de junho de 2016. O pre-
rubaram o presidente Manuel Zelaya,
em Honduras (2009); entusiasmo
quando bombardearam o Palácio de la
Moneda, no Chile (1973); indignação
quando ostentam uma boina verme-
região, posta sob as ordens do irmão
mais novo, seria batizada de “segun-
da frente oriental Frank País”, do no-
me de um líder estudantil revolucio-
nário. “Enquanto, em sua zona, Fidel
tência aos ataques de Washington:
elas participaram de guerrilhas lati-
no-americanas, de ações na Argélia,
na Etiópia e sobretudo em Angola, on-
de dezenas de milhares de soldados
sidente democrata havia considerado lha na Venezuela ou um charuto em falava muito – de suas ambições, de cubanos lutaram contra as tropas do
ineficaz a estratégia norte-americana Cuba. Nesses últimos cenários, a Casa suas grandes ideias –, Raúl organiza- regime de apartheid sul-africano.
de estrangulamento – agressão mili- Branca lembra com gosto que a espada va a dele”, explica o jornalista Fer- Além disso, a lei exige que pelo menos
tar, embargo, rompimento das rela- nem sempre se entende com a cédula nando Ravsberg. “Criou, por exem- metade dos jovens recrutas da acade-
ções diplomáticas. Melhor seria, se- eleitoral e que canhões destinados a plo, um serviço de sapataria para que mia militar sejam filhos de operários
gundo ele, normalizar as relações manter o adversário em respeito se seus homens dispusessem de calça- ou camponeses, mais pobres (e, por-
entre Washington e Havana, de modo voltam, às vezes, contra as popula- dos dignos desse nome.” Percorrendo tanto, quase sempre negros) que o res-
a acelerar a “abertura” do país caribe- ções. E em Cuba? Aqui, o Exército tem o território oriental para orquestrar o to da população.3
nho.1 Nada disso, replicou o republica- a imagem de um homem discreto, mas recrutamento e o aprovisionamento No entanto, a imagem das FAR jun-
no: o fluxo de turistas norte-america- rígido, pragmático e determinado: de suas tropas, Raúl Castro decretou to ao povo se construiu também por
nos, que a mansuetude de Obama Raúl Castro, presidente desde 2008 e... uma reforma agrária, abriu escolas e ocasião de um outro episódio mais re-
contribuiu para estimular, “agravaria general de Exército. Indestrutível mi- hospitais – financiados com a criação cente da história cubana: o chamado
a repressão” ao consolidar a posição nistro da Defesa entre 1959 e sua as- de um imposto. período “especial”, que começou logo
das Forças Armadas. Depois da “dita- censão ao poder supremo, ele moldou depois do esfacelamento do bloco so-
dura comunista”, Cuba iria cair sob o a instituição à própria imagem e seme- O FEIJÃO É MAIS IMPORTANTE QUE O CANHÃO viético. De 1991 a 1994, o PIB caiu cerca
jugo de uma junta militar! Não havia lhança, tomando por base a experiên- Em setembro de 1958, o jovem (en- de 35%. A violência do choque ine-
oito generais na cúpula do poder, entre cia que viveu na Sierra Maestra. tão com 27 anos) convocou um con- briou os anticastristas. Andrés Oppe-
os dezessete membros do gabinete po- Após o desembarque dos “barbu- gresso camponês durante o qual os ha- nheimer, um dos editorialistas preferi-
lítico do Partido Comunista cubano? dos” na ilha, em 1956, Fidel Castro bitantes de sua região foram convidados dos da imprensa sediada em Miami,
As tramas latino-americanas des- pediu a seu irmão que comandasse a apresentar queixas. “No fim do ano”, publicou um livro intitulado A hora fi-
pertam reações desencontradas em uma coluna de rebeldes armados em resume o pesquisador Hal Klepak, nal de Castro.4
MARÇO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 27

“De repente, Fidel disse a Raúl: ‘Não trodução de remuneração com base na Cimex – cadeia de lojas, aluguel de car-
tenho mais dinheiro para você. É preci- produtividade.8 A ruptura parece às ve- ros... – teria, por sua vez, obtido um lu-
so que o Exército se vire sozinho’”, con- zes considerável: Fidel Castro preferia cro de US$ 1,3 bilhão no mesmo ano.
ta Ravsberg. Em menos de um ano, o que nenhum cubano gozasse das in- Especializada no comércio popular (de
irmão mais novo “amputou as Forças fraestruturas hoteleiras caso só os ricos sabão a eletrodomésticos, passando
Armadas pela metade, enquanto seu pudessem ter acesso a elas? Pois seu ir- por produtos destinados aos turistas),
orçamento se derretia como neve ao sol mão, que denuncia os desvios do “igua- a TRD parece ter alcançado, em 2016, O olhar da cidadania
(de 1.149 milhões a 736 milhões de pe- litarismo”, decidiu, ao contrário, abri- um volume de negócios em torno de
sos cubanos, moeda cujo próprio valor -las a todos e deixar o mercado operar. US$ 440 milhões. Isso dá um total de
já desabara)”, lembra Klepak. Num Descobriu-se então que alguns cuba- cerca de US$ 3,4 bilhões para a GAE SA,
contexto em que o Estado cubano pare- nos guardavam somas consideráveis o equivalente a 20% das entradas de di-
cia petrificado pela crise econômica – debaixo do colchão. Gastando-as nos visas no país e a 4% do PIB de 2015.
com Fidel Castro teimando em prome-
ter dignidade, orgulho e honra às
hotéis (das FAR...), liberam os quartos
nas pensões familiares com que até en-
Com um detalhe que não escapou a
Trump: as receitas das empresas diri- Na luta
barrigas vazias que o escutavam –, as tão tinham de se contentar e cujos pre- gidas pelas FAR flutuam de acordo com
FAR se destacaram por sua capacidade ços caem a olhos vistos. as rendas do setor turístico.
de adaptação. Em uma reportagem a
elas consagrada em 1995, o New York
Nessas condições, não é nada ab-
surdo sugerir que normalizar as rela- pela
Times apresentou-as como “a única ções com Havana equivale a facilitar a
coisa que ainda funciona” na ilha.5 O capitalismo vida dos militares. Mas daí a sugerir
Os militares não tinham mais di- e suas receitas causam que a operação “agrava a repressão”...
nheiro, combustível e peças de repo-
sição – que antes vinham de Moscou.
menos preocupação Cada passagem de um furacão pelo
Caribe leva os observadores interna-
construção
“Nossa missão é a defesa do país, mas nas casernas que cionais a perguntar: por que Cuba se
a defesa em sentido lato”, declarou, na sede do sai melhor nisso que os outros países?
ainda assim, Raúl Castro. “Por ora, is-
so implica fornecer alimento ao nos-
Partido Comunista Para os habitantes da ilha, a resposta é
dupla: devido à solidariedade, que in-
de uma
so povo. [...] O feijão é mais impor-
Cubano duz os mais preservados a abrir as por-
tante que o canhão.”6 Os militares tas para os mais expostos, mas tam-
trocaram então seus fuzis por enxa-
das... e coqueteleiras. Abandono do projeto socialista?
bém graças à organização logística das
FAR, que comandam a defesa civil.
sociedade
A partir de 1980, as FAR começaram Ainda que cada discurso do irmão Estas, contudo, ignoram o fenôme-
a trabalhar no setor de turismo, por in- mais moço prometa a continuidade da no da corrupção, que gangrena parte
termédio da empresa Gaviota, que ge-
renciava os centros de lazer destinados
“visão” do mais velho, ele se afasta da
concepção utópica segundo a qual
das instituições da ilha? De modo al-
gum – embora o prestígio das FAR no
mais justa,
aos soviéticos. Abriram então uma ca- apenas as ideias podem mover as mas- seio da população seja até maior que o
deia de lojas para visitantes estrangei- sas. Numerosos observadores julga- da polícia. O maná recolhido pela GAE
ros, a fim de recolher os dólares em cir-
culação no país. Muitos militares
ram paradoxal uma situação em que
Raúl, membro das juventudes comu-
SA poderia espicaçar a tentação de re-
correr às mil e uma acrobacias que faci- solidária e
deixaram a farda no guarda-roupa e nistas, enquanto seu irmão não o era, litam o enriquecimento pessoal: outros
vestiram a guayabera, um tipo de ca- tornou-se o “coveiro” sóbrio do projeto países (como o Vietnã) conheceram es-
misa transformado em traje formal em
Cuba. Alguns foram ao estrangeiro pa-
havia muito acariciado por Fidel. O
atual presidente se mostra talvez mais
se tipo de evolução. Mas, por enquanto,
não é raro ver um coronel pedindo ca- sustentável.
ra fazer cursos de administração; ou- sensível ao fato de que uma análise do rona à beira da estrada. Em outras par-
tros assumiram a gerência de hotéis. ambiente concreto é proveitosa aos tes do mundo, ele passaria voando em
Pilotos de caça tornaram-se pilotos de combates políticos. Ora, os contextos um sedã com ar-condicionado.
linhas aéreas, e almirantes da Marinha econômico e geopolítico não são de
de Guerra passaram a comandar iates. modo algum propícios à emergência *Renaud Lambert é jornalista do Le Monde
Estima-se que, em meados dos anos do socialismo “em uma única ilha”.9 Diplomatique.
1990, as FAR produziram entre um ter- Ao que tudo indica, o capitalismo e Quartas, às 17h,
ço e metade dos alimentos consumidos suas receitas causam menos preocu- Rádio USP (São Paulo: 93,7 FM
pela população. Os orçamentos desti- pação nas casernas que na sede do 1 Ver Patrick Howlett-Martin, “EUA-Cuba, degelo
sob os trópicos?”, Le Monde Diplomatique Brasil, Ribeirão Preto: 107,9 FM)
nados à saúde e à educação aumenta- Partido Comunista Cubano (PCC). nov. 2014.
ram, enquanto os da defesa continua- Embora nenhum número oficial es- 2 Hal Klepak, Raúl Castro and Cuba. A Military
ram a diminuir, obrigando os militares teja disponível, calcula-se que os efeti- Story [Raúl Castro e Cuba. Uma história militar],
Palgrave Macmillan, Nova York, 2012.
Quartas, à meia-noite
à autonomia financeira. “Durante todo vos das FAR se estabilizaram em torno 3 O serviço militar de dois anos é obrigatório para os TV Aberta SP, canais 9 da NET, 8 da
esse tempo, as escolas de balé mantive- de 80 mil homens e mulheres, contra homens. As mulheres também podem fazê-lo
como voluntárias. Vivo Fibra e 186 da Vivo.
ram suas portas abertas”, recorda Ravs- 200 mil nos anos 1980. As empresas
4 Andrés Oppenheimer, Castro’s Final Hour [A hora
berg, que então já morava na ilha.7 Num que elas controlam – como Gaviota, Ci- final de Castro], Touchstone, Nova York, 1992.
contexto em que os Estados Unidos de- mex e TRD – se uniram na holding Gru- 5 Larry Rother, “In Cuba, army takes on party jobs,
cidiram agravar as sanções contra o po de Administración Empresarial and may be only thing that works” [Em Cuba, o
Exército faz bicos e pode ser a única coisa que
país, as FAR mostraram mesmo – à sua (GAE SA), dirigida pelo ex-genro de funciona], The New York Times, 8 jun. 1995.
maneira – que continuavam garantin- Raúl Castro, Luis Alberto Rodríguez 6 Citado por Larry Rother, op. cit.
do a proteção do território. Quatro anos López-Callejas. A primeira controla 7 “Quién paga la salud y la educación en Cuba?”
[Quem paga a saúde e a educação em Cuba?], observatorio3setor
depois da publicação do livro de Oppe- 40% dos quartos do setor hoteleiro. Em Cartasdecuba.com, 30 mar. 2017.
nheimer, Raúl Castro presidiu um des- um artigo pormenorizado, escrito para 8 Ver “Cuba quer o mercado, mas sem capitalismo”,
file militar em que seus soldados exi- rebater os números fantasiosos forne- Le Monde Diplomatique Brasil, out. 2017.
biam mísseis terra-ar sofisticados, cidos pela imprensa de Miami, o uni-
9 Ver “Les enfants ont vieilli” [As crianças envelhece- observatorio3setor
ram], “Cuba, ouragan sur le siècle” [Cuba, furacão
puxados por bicicletas... As FAR consti- versitário norte-americano William do século], Manière de Voir, n.155, out.-nov. 2017.
tuem, pois, o laboratório das reformas LeoGrande – pouco suspeito de simpa- 10 “Cuánto de la economía cubana controlan las em-
presas militares?” [Quanto da economia cubana www. observatorio3setor.org.br
que Fidel tentou colocar em prática tias castristas – estima as receitas da as empresas militares controlam?], Resumen Lati-
desde sua chegada ao poder, como a in- Gaviota em US$ 1,7 bilhão em 2016.10 A noamericano, Buenos Aires, 30 jun. 2017.
28 Le Monde Diplomatique Brasil MARÇO 2018

AMÉRICA LATINA

Em busca da Pachamama
Muitas organizações procuram consolar os ocidentais inquietos com a crise ecológica. Longe de suas frenéticas metrópoles, na
América Latina, os indígenas teriam conservado sua proximidade com a natureza, erigida à categoria de divindade: a Mãe Terra,
ou Pachamama. No trabalho de campo, procurar por essas comunidades protegidas pode trazer algumas decepções
POR MAËLLE MARIETTE*

– O que é Pachamama, Luis? – a


questão traz uma lembrança dolorosa
para Luis Tuytuy, um dos líderes da
nação Sápara, no coração da Amazô-
nia equatoriana.
– Pachamama? Bem, é uma funda-
ção equatoriana que apoiava as comu-
nidades indígenas na luta em defesa
da natureza. Ela não existe mais.
– Ah, claro. Mas eu estava falando
sobre a divindade, sabe, a Mãe Terra?
Aliás, como se diz Mãe Terra na língua
sápara?
– Ah... Espera um pouco... Sinto
© Carlos Rodríguez / Agencia Andes cc

muito, na verdade eu não sei.

“TAMBÉM TEMOS MENUS VEGETARIANOS”


Quando fizemos essa pergunta, a
maioria das reações foi semelhante à
de Tuytuy. Nos (raros) casos em que o
termo evocava algo, era uma terra que
precisa ser defendida como território
ancestral: um espaço vital constituti-
vo de uma identidade. Conversamos
com os Achuar das comunidades de
Festa do Inti Raymi, que marca o equinócio de verão, em Otavalo
Wisui, Chumpi e Cotapaza, localiza-
das às margens do Rio Pastaza – às
os últimos meses de 2017, atra- veem as coisas dessa maneira, afinal as crianças quando saem de casa... De- quais se chega somente depois de ho-

N vessamos o Atlântico para che-


gar ao Equador, em busca da
Pachamama.1 Em nome dessa
divindade ameríndia, indígenas, ati-
vistas ambientais, dirigentes políticos
de contas, eles foram submetidos a
quinhentos anos de colonização, e ela
ainda não acabou. O mundo indígena
não é poupado pelas lógicas do capita-
lismo, do individualismo, do consu-
vemos concluir que os Quíchua esque-
ceram sua cultura? Não em Otavalo,
onde funciona, o ano inteiro, um dos
maiores mercados artesanais da Amé-
rica Latina. Aqui, tudo é feito para pro-
ras de ônibus, canoa e trilhas na flo-
resta partindo da cidade de Puyo, ao
pé da Amazônia –, e com os Quíchua
das comunidades da região de Cura-
ray – separadas de Puyo por três horas
e intelectuais empenham-se em “frear mismo e do produtivismo. Mas ainda mover a identidade quíchua. Essa ati- de ônibus em estrada de terra e mais
as agressões do capitalismo”,2 princi- há comunidades que organizam sua tude acabou levando à “indigenização” de oito horas de canoa no Rio Curaray,
palmente as que envolvem a extração vida social, política, econômica e cul- de algumas festas que antes não fa- quando seu nível permite. As aspira-
de matérias-primas. tural em torno de noções como Pacha- ziam nenhuma referência à cultura ções dos moradores locais estão me-
“A Pachamama é uma realidade no mama e Sumak Kawsay [bem viver].” quíchua. É o caso da festa do equinócio nos relacionadas ao meio ambiente do
mundo indígena”, explica Alberto No Equador, mais que em qualquer de verão, que se tornou o Inti Raymi, e que à melhoria das condições de vida:
Acosta, com quem falamos logo que outro lugar, a influência do conceito de do Carnaval, celebrado em todo o país, acesso aos centros de saúde – as pica-
chegamos a Quito. Ele foi ministro de Mãe Terra ultrapassou o círculo das mas aqui rebatizado como Pawkar das de cobras, por exemplo, represen-
Energia e Minas em 2007 e presidente comunidades indígenas “protegidas”. Raymi. As festividades ocorrem na co- tam quase 10% das causas de morte na
da Assembleia Constituinte que, em “Eu não coloco botas em meus filhos munidade de Peguche, a poucos quilô- Amazônia equatoriana –, à educação,
2008, sob a liderança do presidente Ra- quando vão ao quintal, para que sin- metros do centro de Otavalo, em uma às redes rodoviárias, especialmente
fael Correa, reconheceu a Pachamama tam a terra, para que sintam o contato curiosa mistura: uma procissão em para vender sua produção na cidade, e
como um sujeito de direito – algo iné- com a Pachamama”, explica Rocío G., torno de um xamã é acompanhada por aos meios de comunicação a distância
dito no mundo. Agora hostil ao ex-che- diretora e produtora de programas re- um show de reggae, um torneio espor- (rádios de onda curta e internet) “para
fe de Estado, a quem acusa de traição e lacionados ao mundo indígena, que tivo, uma missa católica, a eleição de entrar em contato com o exterior em
perpetuamento da exploração dos re- mora em um bairro residencial da ca- uma rainha da beleza quíchua e uma caso de emergência”, explica o ancião
cursos naturais do país, Acosta encar- pital. Antes de lamentar: “Mas minha gigantesca batalha de água, farinha, da comunidade Cotapaza. E depois
na uma corrente ambientalista que irmã, para quem nada disso tem im- ovos e tinta. Edwin T., filho de artesãos acrescenta: “Diesel para o barco é
conta com grande atenção no exterior. portância, calça os filhos sempre que e músicos da comunidade vizinha, que bom. Antes, só com o remo, era muito
“Para os povos autóctones, a Pacha- eles saem”. atualmente estuda em Paris, explica mais difícil vencer a corrente”.
mama não é uma simples metáfora, ao Estranha aos olhos da cineasta, a sorrindo que a maioria dos líderes lo- No entanto, eles também se inquie-
contrário do que ocorre no mundo oci- decisão de sua irmã é a mesma dos in- cais não fala quíchua. A seu ver, essa tam com o impacto da modernidade
dental. Os indígenas identificam a Ter- dígenas quíchuas dos altos platôs com reindigenização “baseia-se essencial- sobre as práticas culturais. Alguns se
ra como uma mãe. Eles têm um rela- quem falamos alguns dias depois: para mente em uma reinterpretação incerta preocupam com a educação; outros,
cionamento muito estreito com ela. que seus filhos não peguem friagem ou de tradições relatadas em livros de an- com o acesso à rede rodoviária, mas
Claro que nem todos os indígenas se machuquem, eles também calçam tropólogos ou intelectuais brancos”.3 todos temem que os jovens esqueçam
MARÇO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 29

suas raízes. Assim, uma tensão estru- militante aos projetos petrolíferos, em projetos de mineração e extração de A despolitização da Pachamama –
tura a forma como a população local nome da defesa da Pachamama – uma petróleo e, de maneira mais geral, à que possibilitou sua repolitização con-
vê os projetos de mineração ou extra- luta à qual se dedica totalmente o Toxi política “capitalista, ‘ecocida’ e ‘etno- servadora – teve início, segundo Ramí-
ção de petróleo colocados em prática Tour da associação dirigida por Dio- cida’”. Como globalizar a resistência? rez, quando as lutas políticas indígenas
pelo governo: por um lado, a ameaça cles Zambrano, nas proximidades de “Globalizando a Pachamama, as cos- ganharam grande visibilidade, na dé-
do desaparecimento da cultura dos Coca, cidade amazônica localizada movisões, as cosmoexperiências”, ex- cada de 1990: “Na época, eu tinha cole-
antepassados e do modo de vida a eles perto de poços petrolíferos. A visita plica Pérez. Ou melhor, “Yaku” Pérez, gas na universidade que eram marxis-
associada, com o sentimento de aban- tem o objetivo de ilustrar “o horror da já que ele recentemente decidiu indi- tas ou freudianos e se indigenizaram.
dono por parte de um governo que só exploração petrolífera”, em parceria genizar seu nome. Começaram a usar trança, chapéu,
se interessa pela terra por causa da “ri- com a ONG Acción Ecológica. Com se- Aqueles que, como os Sápara, esco- poncho. Iam falar sobre a Pachamama
queza do [seu] solo”; por outro lado, o de em Quito, a organização tem Acosta lhem outra via para satisfazer suas ne- na TV. Houve um processo impressio-
fato de que esses projetos, embora po- entre seus mais eminentes apoiado- cessidades básicas observam que não nante de reindigenização, acompanha-
luidores, poderiam melhorar condi- res. Resultado? Ela se tornou obrigató- apenas as ONGs frequentemente desis- do do surgimento de serviços espiri-
ções de vida hoje miseráveis. ria para os jornalistas que queiram in- tem de ajudar as comunidades que op- tuais étnicos: xamãs, rituais de
Essa ambivalência nem sempre é vestigar a questão ambiental no taram por “colaborar” com o Estado, ayahuasca, igrejas etc. Muita gente do
expressa por aqueles que falam em no- Equador. Bastante profissional, a Ac- mas que a própria Conaie os marginali- meu círculo, gente urbana de Quito,
me dos povos indígenas no Equador, a ción Ecológica dá tudo mastigado, for- za. Essa situação não surpreende Anto- mergulhou nessa onda, sobretudo a
exemplo de um dos líderes da forma- necendo todos os contatos úteis. nio Vargas, ex-presidente da confedera- pequena e a grande burguesia. Agora
ção indígena Pachakutik, Salvador Para Acosta, bem como para movi- ção: à medida que a organização se é a ioga. Aliás, essa visão pachama-
Quishpe, atual governador da provín- mentos ambientais próximos à Acción envolveu no jogo das alianças políticas, mista do mundo lembra um pouco al-
cia de Zamora-Chinchipe, que apoiou Ecológica, como os Yasunido,5 e mui- ela “se separou de sua base”, avalia.7 gumas formas de ioga: os problemas
o riquíssimo banqueiro Guillermo Las- tos dos atuais líderes da Confederação Se alguns dos atuais líderes da Co- estão no interior. É uma forma de per-
so, candidato da direita às eleições pre- de Nacionalidades Indígenas do Equa- naie aprovaram a decisão de apoiar o sonalizar a questão da transformação
sidenciais de 2017. Equipado com dois dor (Conaie), ecologia, antiextrativis- banqueiro Guillermo Lasso em 2017, das coisas e de abandonar as lutas po-
smartphones, o tempo todo atraves- mo e indigenismo se tornaram insepa- talvez seja porque os militantes histó- líticas fundamentais”.
sando o país de avião, Quishpe expõe ráveis. Assim, as reivindicações sociais, ricos de orientação marxista – como A redução da Pachamama à sua di-
seu credo: quando os povos indígenas territoriais e culturais tradicionais são Humberto Cholango, Ricardo Ulcuan- mensão espiritualizante e ecologizante
usam sua pobreza como argumento feitas em nome da Pachamama. É a go, Pedro de la Cruz e Miguel Lluco –, assegura a Acosta certo sucesso no exte-
em defesa da mineração, ele os convida mesma lógica para alguns líderes polí- para os quais a luta indígena é entendi- rior. “Estou sempre viajando para a Eu-
a rejeitar o “estilo de vida ocidental”. ticos, indígenas ou não, para os quais a da em termos de luta de classes, decidi- ropa, especialmente para a Alemanha,
Lembra-lhes que a “floresta magnífica” divindade seria um vetor da luta contra ram apoiar Correa durante toda a sua a Áustria, a Espanha e a Itália”, explica
que os cerca, com suas cascatas, é a o aquecimento global e o capitalismo. presidência. O fenômeno deixou o por Skype, por causa de suas viagens
única “riqueza verdadeira” e explica A situação não é exclusiva do Equa- campo aberto para outros líderes, co- constantes. “Mas também para muitos
que o desenvolvimento econômico dor. A antropóloga Sarah Quilleré pes- mo Quishpe e Pérez, partidários de países da América Latina. Sou convida-
provocado pelas grandes operações de quisa as lutas do povo Wayuu na Co- uma forma de essencialismo indígena. do pelas universidades e pelos movi-
mineração ameaça “corrompê-los” e lômbia. Segundo ela, “a retórica “As questões dos direitos da natu- mentos sociais. Por exemplo, hoje vou
“destruir sua cultura”. indigenista e a ecologização do dis- reza ou do Sumak Kawsay não faziam para a Alemanha – onde vou receber
A consciência ambiental dos indí- curso dos líderes wayuus são certa- parte das reivindicações indígenas na um prêmio – para falar sobre direitos da
genas não tem muito impacto. Quan- mente o elemento mais marcante” em década de 1990”, explica o cientista po- natureza e sobre todas as transforma-
do viajamos pela região andina e seu movimento “contra a destruição e lítico Franklin Ramírez. “Foi no início ções civilizacionais que permitem sair
amazônica, onde essas populações a espoliação do território”. O fenôme- da Revolução Cidadã [após a eleição de de um mundo antropocêntrico para
estão particularmente representadas, no responderia “à crescente preocu- Correa] e principalmente com a As- um mundo biocêntrico.”
vemos estradas cheias de painéis ins- pação ecológica nos países mais in- sembleia Constituinte de 2008 – sob a
talados pelo Estado com recomenda- dustrializados”. A tendência dos liderança de Acosta – que esses temas *Maëlle Mariette é jornalista.
ções: “Cuide do meio ambiente”, “Cui- pensadores “nos quais se inspiram realmente entraram no cenário políti-
de da natureza, você depende dela”, amplamente as organizações indíge- co e ganharam grande visibilidade.
“Natureza é vida”, “A Terra merece res- nas e as ONGs é dizer que devemos Muita gente pensa que o movimento 1 Nossa reportagem incluiu 39 horas de entrevistas
peito, cuide dela”. Para Carlos Freire, procurar nas tradições pré-coloniais indígena sempre usou a retórica ecolo- com 74 pessoas em trinta comunidades, sendo 21
no entanto, a Pachamama é bem real: as lógicas alternativas ao modelo ra- gista, mas não é o caso.” delas indígenas, percorrendo mais de 4 mil quilô-
metros em todo o Equador.
“Ela é sagrada, é nossa mãe. Devemos cional europeu. Essas novas correntes Depois de mergulhar nos docu- 2 Roberto Ojeda, “Pachamama contra el capitalis-
respeitá-la”. Mestiço e habitante de de pensamento propõem reabilitar os mentos programáticos da Conaie dos mo” [Pachamama contra o capitalismo], Erosión.
Puyo, ele dirige a agência Hayawaska valores tradicionais como único meio anos 1990, Ramírez observa que as rei- Revista de Pensamiento Anarquista, Santiago do
Chile, n.2, 2013.
Tour, que oferece passeios turísticos de emancipação e sobrevivência autô- vindicações indígenas da época gira- 3 Ler Renaud Lambert, “Le spectre du pachamamis-
na Amazônia. “Organizamos o pro- noma das populações”.6 vam em torno da plurinacionalidade, me” [O fantasma do pachamamismo], Le Monde
grama de nossos passeios de acordo da terra, da representação no Estado e Diplomatique, fev. 2011.
4 Ler Jean-Loup Amselle, “Febre xamânica na Ama-
com o que os turistas querem ver e em MARX E FREUD, PONCHO E IOGA da promoção de uma forma de autoges- zônia peruana”, Le Monde Diplomatique Brasil,
seguida os apresentamos às comuni- No Equador, ninguém encarna tão, de democracia comunitária. “Nes- jan. 2014.
dades. Em nosso Full Day Tour [pas- melhor o fenômeno da “pachamami- se quadro entrava, de maneira colateral 5 Grupo militante que se opõe à decisão do governo
de explorar parte do parque natural Yasuní, consti-
seio de um dia], oferecemos oficinas zação” da política – uma forma de eco- e periférica, a questão da natureza e dos tuído após o fracasso da iniciativa Yasuní-ITT. Ler
com essas populações. Mas o mais pe- logização indigenizante, ou de indige- recursos naturais. Para os movimentos Aurélien Bernier, “A biodiversidade do Equador
dido é o Ayahuaska Tour. Trabalha- nização ecologizante – do que Carlos indígenas dessa época, a resposta para nas mãos da solidariedade internacional”, Le Mon-
de Diplomatique Brasil, jun. 2012.
mos com xamãs que sabem fazer o Pérez, presidente da Ecuarunari, que o problema da proteção do meio am- 6 Sarah Quilleré, “Écologisation et standardisation
bom uso da ayahuasca [bebida aluci- representa os indígenas da região biente, da natureza, era a autonomia in- des mythes traditionnels, reconfiguration des con-
nógena].4 É um momento especial em montanhosa. Muito respeitado pela dígena e a aquisição do poder territorial naissances locales et nouveaux concepts. Les
Wayuu en lutte pour la sauvegarde du territoire”
que as pessoas podem viver coisas esquerda ambientalista internacional sobre os recursos.” Ramírez concorda [Ecologização e padronização dos mitos tradicio-
profundas em perfeita conexão com a e radicalmente oposto ao ex-presiden- com Floresmilo Simbaña, líder e inte- nais, reconfiguração dos conhecimentos locais e
natureza. No dia seguinte, elas se le- te Correa, Pérez explica que, não ten- lectual da Conaie, em dizer que a deci- novos conceitos. Os Wayuu lutam em defesa do
território], Revue d’Anthropologie des Connais-
vantam e comem um caldo de frango do sido contaminados pelo Ocidente, são de levantar a bandeira do Sumak sances, Paris, v.10, n.4, 2016.
puro, sem produtos químicos. Tam- os indígenas detêm uma “verdade an- Kawsay e da Pachamama foi uma for- 7 “Bases indígenas desde Santo Domingo exigen
bém temos menus vegetarianos.” cestral” sobre o mundo “que pode sal- ma de Correa neutralizar a delicada ‘diálogo directo con el gobierno’ sin Conaie” [Ba-
ses indígenas em Santo Domingo exigem “diálogo
A promoção de circuitos neo-New var a humanidade”. A internet daria os questão da plurinacionalidade, colo- direto com o governo” sem a Conaie], El Telégrafo,
Age de Freire passa por uma oposição meios de “globalizar a resistência” aos cando-a em segundo plano. Guayaquil, 23 fev. 2015.
30 Le Monde Diplomatique Brasil MARÇO 2018

QUANDO NEM TODAS AS VÍTIMAS DE ATENTADO TÊM O MESMO VALOR

Longe dos olhos,


longe do coração
Como custa caro e gera menos audiência que as fofocas
sobre a vida dos famosos, a informação internacional não é
prioridade para as direções editoriais. Alguns países geográfica
e culturalmente próximos beneficiam-se, contudo, de uma
cobertura melhor. O tratamento dado aos atentados ilustra
essa dinâmica de forma bastante clara
POR TÉO CAZENAVES*

o dia 2 de novembro de 2017, os mortífero da história africana, com Será que é preciso aceitar como ex- sa diária, o Le Monde conta com dois

N ouvintes da programação ma-


tutina da France Inter puderam
viver um momento radiofônico
singular. Em sua crônica semanal, Ni-
cole Ferroni queixou-se que tinha sido
512 mortos,1 não teve direito a mais
que breves 21 segundos no jornal das 8
da principal emissora de rádio públi-
ca, ou seja, dezoito vezes menos. Entre
18 e 24 de agosto de 2017, os ataques de
plicação a curta distância que separa
Barcelona da sede das redações pari-
sienses, o que se chama em algumas
escolas de jornalismo de “jornalismo
de proximidade” ou de “morte quilo-
correspondentes permanentes, que
enviam notícias respectivamente de
Johannesburgo e Túnis; o Le Figaro
não dispõe mais de nenhum jornalista
mensalista na África. Somente a RFI se
convidada a modificar sua interven- Barcelona e de Cambrils – reivindica- métrica”? O simples critério da proxi- distingue, uma vez que a rede pública
ção – destinada originalmente ao as- dos pela organização Estado Islâmico, midade geográfica cai quando se com- – que tem como slogan “As vozes do
sédio sexual – em vista dos eventos com dezesseis mortos, tinham sido para o tratamento dado pela TF1 aos mundo” – conta com quatro corres-
ocorridos no dia 31 de outubro em No- noticiados nos mesmos jornais duran- atentados de Nova York e de Mogadís- pondentes a postos em Dacar, Abidjan,
va York: o motorista de um veículo te 24 minutos e 50 segundos, ou seja, cio, cidades situadas, respectivamente, Kinshasa e Nairóbi. O tratamento que
atropelou intencionalmente vários pe- 71 vezes mais que o de Mogadíscio. Es- a 5.845 km e a 6.625 km de Paris. Entre deu aos três atentados é muito menos
destres, causando a morte de oito e ses três atentados, que ocorreram em 1º e 7 de novembro, os acontecimentos desequilibrado do que todos os outros
deixando doze feridos. Visivelmente um curto lapso de tempo em pontos de Nova York foram lembrados três ve- meios de comunicação juntos.
incomodado, Nicolas Demorand rea- diversos do mundo, fornecem um bom zes, ao todo durante 21 minutos e 15 “Evitemos a overdose midiática
giu: “Você descobriu, minha cara Ni- exemplo da importância muito variá- segundos, ou seja, quinze vezes mais após os atentados” foi o título de um
cole, que o real às vezes nos atinge”. vel atribuída pelos jornalistas a esse ti- que o tempo de difusão reservado aos artigo publicado pelo Le Monde em 25
Deu-se um silêncio atordoante. “É me- po de acontecimento. mortos na Somália. de agosto de 2017. No que diz respeito
lhor não falar sobre isso...; é essa, se Com notável exceção da Radio Entre os fatores que determinam a aos mortos em Mogadíscio, aos quais o
entendi bem, a moral da crônica?”, ele France Internationale (RFI), todos os intensidade da cobertura dada à Áfri- diário vespertino consagrou oito vezes
continuou. A cronista explicou que meios de comunicação analisados re- ca, poderiam figurar o envolvimento menos caracteres que aos de Barcelo-
questionava “a importância do fato de servaram aos atentados catalães um do Exército francês ou a presença de na e de Cambrils, a overdose sem dúvi-
se falar disso com tanta frequência”. O tratamento quantitativo visivelmente franceses entre as vítimas. A presença da foi evitada.
apresentador do segundo programa superior ao que deram ao massacre de de jornalistas na área também parece
matutino mais escutado da França Mogadíscio. Assim, a Télévision Fran- crucial: nenhuma das três rádios – *Téo Cazenaves é jornalista.
concluiu com estas palavras: “Obriga- çaise 1 (TF1) abriu seis vezes seu jornal France Inter, RTL, Europe 1 –, que con-
do. Infelizmente há atentados com das 20 horas com chamadas sobre es- tam com as maiores audiências mati-
tanta frequência, e falamos deles ten- ses acontecimentos, aos quais o canal nais, dispõem de correspondentes
tando refletir também”. de TV consagrou 1 hora, 1 minuto e 17 permanentes na África. A France 2
1 “Le bilan de l’attentat en Somalie en octobre bondit
Naquela semana, os jornais das 8 segundos entre os dias 17 e 23 de agos- mantém um em Dacar, apesar do fe- à 512 morts” [O balanço do atentado na Somália
horas da France Inter dedicaram 6 mi- to. Mas, entre 14 e 20 de outubro, ela chamento de sua agência especializa- em outubro subiu para 512 mortos], LeMonde.fr, 2
nutos e 26 segundos ao atentado em dedicou apenas 1 minuto e 40 segun- da em 2014,2 enquanto a TF1 só traba- dez. 2017.
2 Léa Ticlette, “AITV victime de l’évolution des objec-
Manhattan. Duas semanas antes, o de dos ao ataque de Mogadíscio, ou seja, lha desde então com jornalistas tifs de France TV” [AITV, vítima da evolução dos
Mogadíscio, o ataque terrorista mais uma relação de 1 para 44. freelancers no continente. Na impren- objetivos da France TV], RFI.fr, 9 dez. 2014.
MARÇO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 31

REINÍCIO DA GUERRA FRIA

Quando a TV quer sangrar a Rússia


A anexação da Crimeia, a guerra na Ucrânia e a difusão de notícias falsas transformaram Moscou em alvo regular,
por vezes obsessivo, da mídia ocidental. Uma emissora pública voltada ao conhecimento e à cultura poderia ter resistido
a isso. Porém, por meio de séries e documentários, o canal francês Arte parece obstinado a fazer a escolha inversa
POR SERGE HALIMI*

inte episódios da série noruegue- gargalhadas de Hillary Clinton, então

© President Russia
sa Occupied já foram exibidos pe- secretária de Estado, pontuadas por
lo canal público franco-alemão um famoso “Viemos, vimos, está mor-
Arte. Ficção ou advertência? Mos- to”. Putin, cujas meditações não com-
cou ocupa a Noruega (com a anuência portam nenhum mistério para a Arte,
da União Europeia) para garantir a en- se pergunta sem cessar desde então:
trega de gás e petróleo desse país. A “Será que isso poderia acontecer co-
União Europeia não tem um bom pa- migo? Não somente perder um cargo
pel na série, mas é a Rússia que inva- que eu aprecio, mas também minha
de, manipula, ameaça, mata. Não se liberdade, minha vida?”.
trata, no entanto, nos dizem, de Daí vem seu desejo de vingança...
“designar um vilão”. A embaixada A ocasião apareceu na eleição em 2016
russa em Oslo inclusive foi informa- nos Estados Unidos, quando “a Rússia
da do projeto. de Putin vai atingir a democracia nor-
É duvidoso que o resultado lhe te-americana em pleno coração”. Pe-
agrade. A série é angustiante, o parale- na, Moscou só enfrentou então ma-
lo entre russos e nazistas (que, eles chos dominados que, assim como
sim, ocuparam a Noruega) é forte- Obama, temiam a Rússia a ponto de
mente sugerido, já que o primeiro-mi- recusarem entregar armas para a
nistro norueguês, que colabora com Ucrânia. Ficou a cargo de John Bren-
Moscou, é comparado a Vidkun Quis- nan, antigo diretor da CIA, tirar lições
ling e a Philippe Pétain (que governa- Vladimir Putin durante celebração do Dia de Reis de toda essa história: “Eu repensei
ram noruegueses e franceses sob ocu- meus anos de juventude nos cursos da
pação nazista). Quando a segunda escola em New Jersey. Sempre havia
temporada, que acabou de ser difun- que deve apagar os enfrentamentos de nopolizado a mídia, fraudado as urnas os pequenos valentões que queriam
dida, foi concebida, a anexação da Cri- toda uma vida”. Uma “luta épica” acon- e apelado para conselheiros norte-a- nos intimidar, e eles não paravam en-
meia tinha acabado de acontecer. “Es- teceu então “entre o dirigente russo e a mericanos. Todas essas façanhas de- quanto a gente não fizesse o nariz de-
távamos em paralelo com a realidade”, democracia norte-americana”. O canal mocráticas o tornaram muito popular les sangrar. Eu me disse que uma pe-
triunfavam as produtoras. público russo RT foi reprovado por seu em Washington, Berlim e Paris, mas quena hemorragia das fossas nasais
A Arte também poderia ter desen- maniqueísmo e sua tendência à mani- um pouco menos em seu próprio país. faria bem a Putin. Ele recuaria, pois,
volvido um “paralelo com a realidade” pulação. Mas nessa noite, sobre esses Foi então que Putin se impôs, sobre como a maioria dos brutamontes, ele
colocando em cena a China e uma ilha dois planos, a Arte ganhou da RT... quem o documentário estampa um re- teria entendido que não poderia mais
do Pacífico, os Estados Unidos e Cuba, “Nossa história começa em 31 de trato sem nuances: “Um oficial de con- bancar o fortão”.
a França e a República Centro-Africa- dezembro de 1999”, dia em que Boris traespionagem [da KGB] é alguém que Em 18 de abril de 1985, cinco sema-
na, Israel e a Palestina. Mas os tempos Iéltsin transmitiu seus poderes a Pu- se banha nas teorias do complô, para nas depois da chegada ao poder de
que correm, de uma nova guerra fria tin, “seu obscuro primeiro-ministro, quem o inimigo está em toda parte e Mikhail Gorbachev, a rede pública
entre Washington e Moscou, sugerem um antigo oficial da KGB”. As coisas se deve ser eliminado”. Desde junho de francesa FR3 exibiu um documento de
que isso seria menos cômodo e que a degeneraram bem rápido entre o “an- 2000, quando recebeu o presidente Bill ficção política, La guerre en face [A
Rússia constitui o culpado ideal para tigo espião” e o “homem político pro- Clinton em Moscou, “Putin quis mos- guerra em frente], que anunciava a in-
esse tipo de divertimento. gressista que tenta instaurar a demo- trar que era o macho dominante na sa- vasão da Europa ocidental pelo Exérci-
Uma suspeita confirmada pela edi- cracia na Rússia”: a imprensa ficou de la, sentado com as pernas abertas, to Vermelho.1 Na época, a Noruega não
ção do programa Thema de 16 de janei- fora; os oponentes, na prisão; o Oci- bem afundado na sua poltrona”. A teria sido o suficiente. Trinta e três
ro de 2018. E não na ficção, mas na his- dente voltou a ser o inimigo. “Pouco imagem de arquivo confirma que Pu- anos se passaram; a maioria dos anti-
tória recente e flamejante. Um ano antes de sua morte, Iéltsin disse a seus tin está de fato com as pernas abertas, gos Estados do Pacto de Varsóvia pen-
depois da eleição de Donald Trump, a próximos que cometera um grave erro mas somente um pouco mais que deu para o campo norte-americano; a
Arte exibiu um documentário norte-a- ao escolher Putin como sucessor.” Clinton, que por sua vez tem a reputa- União Soviética se deslocou; a renda
mericano intitulado, em francês, Pou- ção de não controlar sua libido... nacional anual da Rússia caiu para
tine contre les USA [Putin contra os OMISSÕES CHOCANTES menos que a da Itália. O orçamento
EUA] (nos Estados Unidos, ele se cha- Ousemos aqui alguns pequenos re- PUTIN, UM VALENTÃO DE ESCOLA militar russo representa um décimo
mava A vingança de Putin). Ele daria toques. O essencial do desmantela- “Revoluções de cor” na Geórgia e daquele dos Estados Unidos. Mas, co-
“pela primeira vez a palavra a antigos mento da economia soviética foi im- na Ucrânia, revoltas árabes: “Putin mo a Arte nos lembra, quando temos
membros da equipe de Barack Obama, posto por decreto presidencial, não entende que, de um momento para o um inimigo, é para a vida inteira.
a membros da CIA”, conforme anun- pelos deputados eleitos pelo povo rus- outro, vai chegar sua vez. Virão para
ciado triunfalmente pela apresentado- so. Quando eles se opuseram à “tera- tirá-lo do poder também. Esta angús- *Serge Halimi é diretor do Le Monde
ra da Arte, encantada com tal esforço pia de choque” de Iéltsin, este dispa- tia se torna a força motriz de seu regi- Diplomatique.
de equilíbrio e exaustividade. A trama rou um canhão sobre o Parlamento. me”. O presidente russo, inclusive,
se resumia a uma ideia. Em 2016, no Ele modificou em seguida a Constitui- não deixaria de rever as imagens do 1 Ler Paul-Marie de la Gorce, “‘La guerre en face’:
fantasmes et manipulations” [“A guerra em frente”:
momento da eleição norte-americana, ção por meio de um plebiscito (mani- linchamento de seu “aliado” Muamar fantasias e manipulações], Le Monde Diplomati-
“Putin teve finalmente sua vingança, pulado) e foi reeleito depois de ter mo- Kadafi. As mesmas que provocaram que, maio 1985.
32 Le Monde Diplomatique Brasil MARÇO 2018

BASTAM IDEIAS PARA MUDAR O MUNDO?

O que as “batalhas culturais” não são


Nos anos 1980 e 1990, a ideia de que não existia alternativa às democracias de mercado resultou em uma forma
de fatalismo. No entanto, a reascensão dos protestos nos últimos vinte anos recolocou os enfrentamentos ideológicos
em primeiro plano, a ponto, muitas vezes, de se atribuir à batalha das ideias um papel e um poder que ela não possui
POR RAZMIG KEUCHEYAN*
© Tulipa Ruiz

m um artigo publicado em ja- dois grupos: um, o 1%, são os mais ri- rio e a “visão de mundo” sobre as quais um país se mede menos por seu hard

E neiro de 2018, Najat Vallaud-


-Belkacem, ex-ministra da Edu-
cação da França, repetiu, depois
de muitos outros, que o Partido Socia-
lista perdeu a “batalha cultural” – ex-
cos, que açambarcam quase todos os
benefícios do crescimento; o outro, os
99%, sofre de desigualdades cada vez
mais gritantes. O argumento se mos-
trou eficaz por algum tempo, suscitan-
ela se apoia sejam impostos ao maior
número de pessoas. Não é que os go-
vernos não apliquem seu programa
porque lhes falta coragem e ambição
ou porque se recusam a defender os in-
power, isto é, seu poderio militar, do
que por sua capacidade de influenciar
a esfera pública global, dando uma
imagem positiva de si mesmo.
O governo chinês organiza assim a
pressão que aparece quatro vezes no do mobilizações em diversos países. teresses daqueles que os elegeram: atuação dos netizens (contração de net
texto.1 Quando François Hollande ven- Mas um problema logo surgiu: os 99% eles não o fazem porque o “clima” po- e citizens, “internet” e “cidadãos”), pes-
ceu a eleição presidencial de 2012, o formam um conjunto extremamente lítico se opõe à sua aplicação. Seria, as- soas que entram na rede para defender
Partido Socialista detinha, no entanto, díspar. Essa categoria inclui tanto os sim, necessário modificar a atmosfera os interesses de seu país.3 Como suge-
todas as rédeas do poder: o Palácio do habitantes das favelas de Nova Déli e para tornar concebível essa política. riu o presidente Xi Jinping em discurso
Eliseu, Matignon (residência do pri- do Rio de Janeiro quanto os prósperos Na era do Facebook e do Twitter, é ao 19º Congresso do Partido Comunis-
meiro-ministro), a Assembleia Nacio- residentes de Neuilly-sur-Seine e de fácil entender o apelo desse argumen- ta Chinês em outubro de 2017, o impor-
nal, o Senado e 21 regiões em 22. Nada Manhattan que não são ricos o sufi- to. Subscrevendo-o, podemos fazer tante é “contar a história da China e
parecia impedir a aplicação da política ciente para integrar o 1%. É difícil ima- política confortavelmente em casa, construir seu soft power” difundindo
de esquerda que Vallaud-Belkacem, no ginar que os interesses dessas popula- diante da tela do computador. Deixar na rede uma “energia positiva”. Sim,
governo durante toda a duração do ções sejam os mesmos ou que elas um comentário num site ou escrever mas... por trás dos batalhões de neti-
quinquênio (2012-2017), defendeu re- venham a constituir, no futuro, um um tuíte odiento são agora atos políti- zens chineses está uma das grandes
trospectivamente. O motivo? Ventos grupo político coerente. cos por excelência. É o mesmo que pu- potências mundiais. A China não ocu-
contrários sopravam, ao que parece O argumento da batalha cultural blicar petições ou libelos vingativos pa seu posto nas relações internacio-
com muita força. A batalha cultural, sofre de um defeito análogo. Não é a nas colunas dos jornais já quase sem nais por causa do soft power ou de uma
esse gênio misterioso que refreia o ar- bem dizer falso, mas aponta para uma leitores, alimentando a esperança de batalha cultural, e sim em razão da for-
dor de sucessivos governos de esquer- estratégia política problemática. En- que “caiam na net”. ça econômica, que o dirigente preten-
da, estava perdida. contramo-lo frequentemente na es- de transformar em força militar.
No seio da esquerda – de todos os querda, do Partido Socialista à França IDENTIFICAR OS VETORES DA MUDANÇA A expressão “batalha cultural” deve
matizes –, circulam agora ideias que Insubmissa [France Insoumise], mas A batalha cultural tem, sem dúvi- parte de seu sucesso à hipótese segun-
parecem politicamente adequadas, também na direita, sobretudo nas cor- da, sua importância. A China, por do a qual, no curso das últimas déca-
mas se revelam perigosas. Uma delas é rentes que se dizem herdeiras da “no- exemplo, leva hoje muito a sério o de- das, a direita teria imposto suas ideias,
o argumento dos “99%”.2 Apoiando-se va direita”. O argumento vem de uma safio de seu soft power. Trata-se de um dando nascença à mistura de neolibe-
em estatísticas estabelecidas pelos leitura apressada de Antonio Gramsci conceito elaborado pelo cientista polí- ralismo econômico e conservadorismo
economistas Emmanuel Saez e Tho- e seu conceito de hegemonia. A ideia é tico norte-americano Joseph Nye, que moral em que estamos desde então.
mas Piketty, o movimento Occupy simples: a política repousa, em última foi consultor de várias administrações No entanto, para começar, a direita
Wall Street disseminou em 2011 a no- instância, na cultura. Aplicar uma po- democratas desde Jimmy Carter. Se- não precisou realmente vencer a bata-
ção de que a humanidade se divide em lítica supõe, primeiro, que o vocabulá- gundo Nye, no século XXI o poder de lha cultural, pois suas categorias fun-
MARÇO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 33

dadoras, como a propriedade privada ser influenciado num sentido ou em cultural ao lado das frentes puramente deixar de limpar uma estação periféri-
dos meios de produção e a economia outro por meio de discursos. As teorias econômicas e políticas”.7 Articular ca em Seine-Saint-Denis...?
de mercado, não são seriamente con- de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, uma “frente cultural” com as frentes Contudo, à força de perseverança,
testadas desde meados dos anos 1970. fontes de inspiração do Podemos5 e da econômica e política já existentes: eis os grevistas e seus delegados sindicais
Mesmo a impressão de que 1968 repre- França Insubmissa, são exemplos des- sua grande ideia. Isso não supõe, em levaram a melhor. As transformações
sentou uma “idade de ouro” para a es- sa concepção. nenhum caso, uma preeminência da estruturais do capitalismo, desde os
querda, isto é, de que suas ideias eram Os adeptos do movimento dirigido “frente cultural” sobre as outras. Nem anos 1970, mudaram a classe operária.
então hegemônicas, não passa, em por Jean-Luc Mélenchon criaram no que essa frente se torne apanágio de Ela não desapareceu, é claro, mas se
grande parte, de uma ilusão retros- início do ano um canal de TV batizado militantes que operam na esfera das tornou mais diversificada social, étni-
pectiva: na França, a direita ocupou o de Le Média e fundaram uma escola de ideias. Para Gramsci, o sindicalismo ca e espacialmente. Travar a “batalha
poder sem descontinuidade durante formação. No dizer de seus apresenta- quase sempre se antepõe à “frente cul- das ideias” consiste em politizar essas
todo o período. As políticas redistribu- dores, esses dispositivos visam travar a tural”. Nas lutas que ele organiza, per- novas classes populares por meio de
tivas e de reconhecimento dos direitos batalha cultural, preparando o terreno mite que evoluam as relações de forças lutas semelhantes à empreendida pe-
das mulheres que ela concedeu foram para outras políticas.6 Desse modo, a e deixa entrever, assim, a possibilidade los empregados da Onet. Sua vitória
introduzidas menos em consequência França Insubmissa se inspira, atuali- de um outro mundo. “Cultura”, para mostra que o improvável continua
de uma “batalha de ideias” do que da zando-as, em instituições social-de- Gramsci, é coisa bem diferente daquilo possível. A “frente cultural”, articulada
pressão do Bloco do Leste e de vigoro- mocratas e comunistas: o jornal operá- que em geral designamos com esse ter- às frentes econômica e política, é exa-
sos movimentos sociais. rio e a escola de formação de quadros, mo. A noção de “hegemonia cultural” tamente isso. Talvez sem saber, os gre-
Nem mesmo se pode dizer que o ra- que permitiriam a difusão, entre os não designa a peroração sem fim de in- vistas da Onet sejam os legítimos her-
cismo, cuja recrudescência é às vezes militantes e no seio de sua base social, telectuais ou dirigentes contestadores deiros de Gramsci.
apresentada como sintoma de uma “di- de uma visão coerente do mundo. nas mídias dominantes, mas a capaci-
reitização” da sociedade atual, se agra- Falta, porém, um elemento essen- dade de um partido de forjar e condu- *Razmig Keucheyan é professor de Socio-
vou, embora tenha mudado de forma. A cial: quais classes sociais ou coalizões zir um bloco social amplificado, para logia da Universidade de Bordeaux, França.
sociedade francesa dos anos 1960 e de classes serão os vetores da mudan- despertar a consciência de classe.
1970 não era decerto menos racista que ça? A quem se dirigem prioritariamente Exemplos não faltam, nem em sua épo-
a atual.4 A partir da década de 1970, o o Le Média e a escola de formação? Os ca nem hoje.
capitalismo sofreu profundas transfor- comunistas tinham por ponto de apoio Em dezembro de 2017, os emprega- 1 Najat Vallaud-Belkacem, “Éloge de l’imperfection
en politique” [Elogio da imperfeição em política],
mações: financeirização, desmorona- a classe operária e as classes aliadas (o dos da firma de limpeza Onet, na área Le Nouveau Magazine Littéraire, Paris, jan. 2018.
mento do Bloco do Leste e sua integra- campesinato e frações dominadas das de Paris, obtiveram uma vitória im- 2 Ver Serge Halimi, “A falácia dos 99%”, Le Monde
ção à economia mundial, virada classes médias, principalmente). O portante.8 Esses terceirizados da So- Diplomatique Brasil, ago. 2017.
3 Cf. Yuan Yang, “China’s Communist party raises
capitalista da China, desindustrializa- “bloco social” visado pelo jornal operá- ciété Nationale des Chemins de Fer army of nationalist trolls” [Partido Comunista da
ção dos antigos centros, crise do movi- rio e a escola de quadros era esse. Mas e (SNCF) [Empresa Nacional das Ferro- China mobiliza um exército de trolls nacionalistas],
mento operário, construção neoliberal no caso da França Insubmissa? Uma vias] encarregados da faxina das esta- Financial Times, Londres, 29 dez. 2017.
4 Cf., por exemplo, Yvan Gastaut, “La flambée racis-
da Europa... No contexto de crise e rees- “visão de mundo” só se torna politica- ções reivindicavam sua entrada para a te de 1973 en France” [A escalada racista de 1973
truturação do sistema, a direita se man- mente eficaz quando é a de uma coali- convenção coletiva da manutenção na França], Revue Européenne des Migrations In-
tinha alerta para aproveitar todas as zão de classes que se opõem a outras ferroviária da SNCF, a retirada de uma ternationales, Poitiers, v.9, n.2, 1993. Ver igualmen-
te Benoît Bréville, “Integração, a grande obses-
oportunidades. E ela o fez, enviando ao classes. Resta, pois, imaginar os contor- cláusula de mobilidade que os obriga- são”, Le Monde Diplomatique Brasil, fev. 2018.
debate público ideias coerentes na esfe- nos de um “bloco social” futuro. va a fazer longos deslocamentos, o au- 5 Ver Razmig Keucheyan e Renaud Lambert, “Ernes-
ra política e econômica. Entretanto, a Contrariamente ao que alguns in- mento do auxílio-alimentação e a re- to Laclau, inspirador do Podemos”, Le Monde Di-
plomatique Brasil, set. 2015.
nova hegemonia neoliberal só emergiu térpretes lhe atribuem, Gramsci ja- gularização dos colegas sem carteira 6 Cf. Laure Beaudonnet, “Aude Lancelin, auteure de
após abalos estruturais que enfraque- mais pretendeu fazer da batalha cul- assinada. Ao fim de uma greve de 45 ‘La Pensée en otage’: ‘Tout le circuit de l’informa-
ceram objetivamente as forças progres- tural o cerne da luta de classes. Citando dias, tiveram suas principais reivindi- tion est pollué’” [Aude Lancelin, autora de O pen-
samento refém: “O circuito inteiro da informação
sistas. Esperar que vencer a “batalha a evolução do marxismo em sua épo- cações atendidas. Essa luta parecia está poluído”], 20 Minutes, Paris, 10 jan. 2018.
das ideias” basta para modificar o siste- ca, ele afirma que “a fase mais recente improvável pelo fato de ser dirigida 7 Cf. Antonio Gramsci, Guerre de mouvement et
ma é se expor a desilusões. de seu desenvolvimento consiste jus- por imigrantes recentes, no seio de guerre de position [Guerra de movimento e guerra
de posição], textos escolhidos e apresentados por
O argumento dos 99% e o da bata- tamente na reivindicação do momen- uma empresa subcontratada e num Razmig Keucheyan, La Fabrique, Paris, 2012.
lha cultural provêm de uma mesma to da hegemonia como dado essencial setor em que a interrupção do traba- 8 Cf. Cécile Manchette, “Onet. Victoire éclatante
concepção do mundo social: a que de sua concepção de Estado e na ‘valo- lho não tem grande impacto sobre o des grévistes du nettoyage des gares francilien-
nes” [Onet. Vitória estrondosa dos grevistas da
considera a sociedade um corpo ho- rização’ do fato cultural, da atividade andamento da vida social. Paralisar limpeza das estações de trem da região de Paris],
mogêneo, um espaço “fluido” capaz de cultural, da necessidade de uma frente uma refinaria é paralisar o país; mas Révolution Permanente, 15 dez. 2017.
34 Le Monde Diplomatique Brasil MARÇO 2018

THE POST, UM FILME DE STEVEN SPIELBERG

A escolha
dos heróis
POR PIERRE RIMBERT*

© Patricio Bisso
m 22 de janeiro de 2018, os Re- grande número para admirar a inter- e Cooperação na Europa (OSCE). Por do atual governo incitou você a fazer

E pórteres sem Fronteiras e a Uni-


versal Pictures International le-
varam convidados ao cinema
Publicis Drugstore, na Avenida Champ-
s-Élysées, em Paris. Iam assistir ao lan-
pretação de Meryl Streep no papel de
Katharine Graham, a dona do Post, e
a de Tom Hanks, que faz o redator-
-chefe. Sensível às batalhas feminis-
tas atuais, o diretor concentrou seu
uma questão de delicadeza, ninguém
mencionou que em 2013, quando Dé-
sir era primeiro-secretário do Partido
Socialista, então no poder na França,
Paris, como várias outras capitais eu-
esse filme”, disse a Steven Spielberg
um jornalista da BBC. “Mas, se anali-
sar os números, você verá que o gover-
no de Barack Obama intentou mais
processos em virtude da lei de espio-
çamento de um filme que “ausculta as relato em uma mulher, e não nos pro- ropeias, havia recusado o asilo político nagem do que qualquer outro. Ainda
noções de verdade e investigação, colo- tagonistas que, de fato, assumiram os pedido por Edward Snowden, respon- assim, em Hollywood ninguém se
cando o jornalismo no centro da intri- maiores riscos e desempenharam os sável pelos vazamentos sobre a vigi- apressou a dizer ou fazer qualquer coi-
ga”: The Post, de Steven Spielberg, pro- principais papéis: Ellsberg, o denun- lância em massa exercida na internet sa” (17 dez. 2017). “A meu ver, são coi-
jetado nas salas francesas com o título ciante, processado por “espionagem” pelos Estados Unidos. Como naquela sas diferentes”, balbuciou Spielberg,
de Pentagon Papers (no Brasil, o título é em virtude de uma lei de 1917 e passí- noite se tratava de celebrar Katharine ardoroso defensor dos democratas. Já
The Post: a guerra secreta). vel de prisão perpétua; e a equipe do Graham, e não Daniel Ellsberg, a che- Ellsberg reconhece seus herdeiros:
A intriga, inspirada em fatos reais, New York Times, que começou tudo. fona da imprensa, e não o rebelde, se- “Chelsea Manning2 e Edward Snow-
se desenrola nos Estados Unidos, em Essa escolha cinematograficamente ria inútil estragar o prazer dos espec- den são meus heróis. Identifico-me
1971. Daniel Ellsberg, analista de think correta irritou o redator-chefe inter- tadores com ruminações morosas mais com eles do que com quaisquer
tank do Pentágono, assume todos os nacional do Times, encarregado de sobre o destino dos denunciantes outras pessoas” (Democracy Now!, 6
riscos para fotocopiar um documento, supervisionar a publicação dos docu- atuais. Um deles, Julian Assange, fun- dez. 2017). Mais do que com Katharine
rotulado como “confidencial”, que mentos em junho de 1971. “É inteira- dador do WikiLeaks, está enclausura- Graham, sem dúvida, cuja decisão de
prova que John Kennedy e Lyndon mente falso!”, fulminou ao ler o rotei- do há mais de cinco anos na embaixa- publicar os Pentagon Papers, malgra-
Johnson tinham mentido ao Congres- ro. “Esse filme é uma fraude.”1 Sim, da do Equador em Londres; o outro, do a proibição, em 18 de junho de 1971,
so e ao público sobre a Guerra do Viet- mas também um sucesso: perto de 1 Snowden, continua refugiado na Rús- encantou os profissionais da informa-
nã, que eles sabiam ser impossível de milhão de ingressos vendidos em três sia... sem que Nyssen, a Europa ou o ção reunidos para o lançamento pari-
vencer. O New York Times publica um semanas de exibição na França. Partido Socialista se preocupem mui- siense. Certa de seu heroísmo cotidia-
resumo, mas uma decisão judicial o Na sala cheia do Publicis Drugsto- to com isso. no, a sala aplaudiu calorosamente e
proíbe de continuar. Modesto cotidia- re, anunciou-se a presença de Françoi- Do outro lado do Atlântico, os de- depois se dispersou para jantar.
no regional, o Washington Post substi- se Nyssen, ministra da Cultura, e de mocratas também não brilham pela Pouco depois, a mídia saudou uma
tuirá seu prestigioso colega? Harlem Désir, representante da liber- defesa de uma liberdade de expressão “obra-prima” com a qual “Spielberg
Naquela segunda-feira à noite em dade dos meios de comunicação no que, no entanto, julgam sagrada quan- ancora a democracia nas impressoras”
Paris, os jornalistas apareceram em seio da Organização para a Segurança do Donald Trump a desafia. “A atitude (Le Monde, 24 jan. 2018); “um apelo
MARÇO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 35

bem contemporâneo em favor de um tela dos donos, defender o poder caso com o ministro do Interior na (The Washington Post, 12 dez. 2006); ou
contrapoder independente e forte, soberano da redação.” A superprodu- época, Nicolas Sarkozy. O encontro en- que presenteou patrocinadores priva-
mais necessário que nunca em nossos ção hollywoodiana comoveu Plenel tre os pretensos pilares do contrapoder dos, por US$ 25 mil o couvert, com o
dias” (Télérama, 23 jan. 2018); “uma por dois motivos. Primeiro, porque e o ministro da Polícia, cujo objetivo acesso a jantares que reuniam jorna-
magnífica lição de coragem e demo- “quase não se encontra um grande fil- era contrabalançar as “audácias solitá- listas da casa e personalidades in-
cracia” (Le Journal du Dimanche, 21 me francês que entronize o jornalismo rias” de uma dupla de repórteres inde- fluentes, antes de reconhecer um “va-
jan. 2018)... como cavaleiro da democracia”, um pendentes, forneceria uma boa trama cilo ético de proporções monumentais”
Compreendemos a felicidade pro- escândalo tanto mais revoltante quan- a um filme realista sobre a imprensa (The Washington Post, 12 jul. 2009); ou
porcionada por uma profissão pintada to – acompanhem o raciocínio – “a francesa. Um elemento do roteiro foi, que se vendeu em 2013 por US$ 250
pelo menos uma vez com uma luz fa- curta história do Mediapart, que feste- de resto, confirmado pelo próprio Ple- milhões ao fundador da Amazon, Jef-
vorável, mas essa recepção barulhenta jará seus dez anos em março próximo” nel em uma carta ao semanário Ma- frey Bezos; ou que proibiu seus jorna-
repousa sobre um imenso mal-enten- e aguarda apenas um diretor intrépido rianne (18 mar. 2006): “Num dia de listas, a partir de maio de 2017, de “pre-
dido. A heroína de Spielberg não é re- para pôr em cena sua epopeia. 2003, Jean-Marie Colombani me levou judicar clientes, anunciantes,
pórter, mas proprietária do Washing- a um encontro que ele havia marcado assinantes, vendedores, fornecedores
ton Post, o qual herdou do marido. Na com Nicolas Sarkozy. [...] Convencido ou sócios” nas redes sociais (Washing-
primavera de 1971, a vimos exprimir de que os ataques ao Le Monde eram tonian, 27 jun. 2017); ou que conclama
todo o seu amor pela independência “Esse filme é uma em parte inspirados pelo grupo de Jac- a uma intervenção norte-americana
editorial... colocando seu jornal na fraude.” Sim, mas ques Chirac, Jean-Marie Colombani maior na Síria e a uma guerra no Irã
Bolsa de Valores. Íntima de Robert Mc- também um sucesso: buscava junto a Sarkozy informações (The Washington Post, 22 jan. 2018); ou
Namara, ministro da Defesa dos go- capazes de amparar essa hipótese”. que sua obsessão anti-Rússia o levou a
vernos Kennedy e Johnson, tinha ami-
perto de 1 milhão de Organizar o esquecimento e refor- publicar histórias falsas em série (The
zade também com Henry Kissinger, ingressos vendidos em matar a memória coletiva valorizando Intercept, 4 jan. 2017). Certo, mas isso
consultor de Richard Nixon. O suspen- três semanas de exibição a conduta corajosa que esconde cem não daria um bom filme.
se todo do filme – e a sorte da liberdade na França pequenas fraquezas e compromissos, Recordando suas aventuras em
de imprensa – repousa, pois, na deci- tal é a operação de absolvição coletiva uma longa entrevista à revista Rolling
são econômica de uma dona de em- realizada por The Post. Quem dizia Stone, Daniel Ellsberg concluiu, há 35
presa: irá ela censurar ou não a publi- Washington Post pensava na investiga- anos: “Isso confirma o que sei dos pro-
cação de um artigo que põe em perigo Mais fundamentalmente, Plenel ção sobre o escândalo Watergate (1972- fissionais de mídia; muitos deles aspi-
o valor em Bolsa de sua sociedade e de atribui a ausência, na França, de um 1974), levado à tela por Alan Pakula em ram a fazer parte do poder, em vez de
seus amigos mundanos? Aqui, a magia “imaginário democrático” tal qual 1976 no filme Todos os homens do pre- encarnar um quarto poder indepen-
do cinema e a miséria de uma profis- cultivado por Spielberg ao “iliberalis- sidente; agora, nos lembraremos tam- dente” (8 nov. 1973). Depois, como to-
são convergem para erigir em ato de mo francês, esse privilégio concedido bém de outro momento de coragem de dos sabem, tudo mudou...
resistência épica aquilo que deveria ao poder, notadamente sob sua forma Katharine Graham. E resmungaremos
constituir uma norma: a ausência de estatal, e não ao indivíduo e suas audá- de impaciência quando um desman- *Pierre Rimbert é jornalista do Le Monde
pressão econômica ou política nas de- cias solitárias”. Vigiado pelos serviços cha-prazeres lembrar que, em 1987, Diplomatique.
cisões editoriais. A regra teve de virar de François Mitterrand nos anos 1980, uma investigação de Robert Parry so-
exceção para que se fizesse, do respei- ele conhece bem os limites à liberdade bre o financiamento, pela CIA, da
to a ela, um acontecimento histórico... de informar impostos pelo Estado. To- guerrilha de extrema direita na Nica-
No entanto, não foi dos industriais, davia, sua queixa omite que ele mes- rágua foi amenizada para agradar à
dos publicitários ou da Bolsa que veio mo, em outras circunstâncias, mante- proprietária, que no fim de semana se- 1 Citado por Thomas Vinciguerra, “Hell hath no fury
uma das reações mais entusiastas ao ve relações de maior cumplicidade guinte recebeu em sua casa Henry Kis- like The New York Times scorned by Hollywood”
[Nem no inferno há tanta fúria quanto no The New
filme de Spielberg. No dia de seu lan- com o poder. singer;3 ou que o jornal apoiou com to- York Times humilhado por Hollywood], Columbia
çamento (23 de janeiro de 2018), o site Desestabilizados pela pesquisa de da a sua força o desencadeamento da Journalism Review, 1º maio 2017. Disponível em:
Mediapart consagrou-lhe toda a sua Pierre Péan e Philippe Cohen, La Face Guerra do Iraque, em 2003; ou que ele <www.cjr.org>.
2 Chelsea Manning (nascida Bradley Manning) é
página inicial. “Em The Post”, escreveu cachée du monde [A face oculta do preferia a Fidel Castro ditadores de di- uma analista do Exército norte-americano condena-
seu diretor, Edwy Plenel, “a questão da mundo] (Fayard), surgida em 2003, reita como Augusto Pinochet, “afinal da em 2013 por passar ao WikiLeaks documentos
independência é que está no âmago da Plenel, então diretor de redação do Le de contas menos nocivos que os diri- militares sigilosos. Foi libertada em maio de 2017.
3 Norman Solomon, “The real story behind Katharine
história: saber resistir às pressões, ou- Monde, e Jean-Marie Colombani, dire- gentes comunistas, sobretudo porque Graham and ‘The Post’” [A verdadeira história por
sar publicar o que os poderes gosta- tor de publicação, foram num dia de seus regimes eram mais suscetíveis de trás de Katharine Graham e The Post], HuffPost,
riam de esconder, emancipar-se da tu- março à Praça Beauvau para discutir o abrir caminho a democracias liberais” 20 dez. 2017.

ATÉ ONDE VOCÊ CHEGARIA


PARA CONSEGUIR O QUE SAN SEBASTIÁN
2017
MAIS DESEJA? MELHOR ROTEIRO

CHICAGO
2017
MELHOR FILME

8 DE MARÇO
NOS CINEMAS
Verifique a classificação
indicativa do filme
36 Le Monde Diplomatique Brasil MARÇO 2018

MISCELÂNEA

livro filme internet


NO INTENSO AGORA GRANDES REPORTAGENS,
João Moreira Salles FORMATOS INOVADORES
A forma de apresentar grandes histórias tem se
VOZES À MARGEM:
PERIFERIAS, ESTÉTICA
E mbora de produção rarefeita, o cine-
ma documentário de João Moreira
Salles é de relevância inquestionável no
modificado nos últimos anos, especialmente no
ambiente digital, incluindo aí a web.
E POLÍTICA
cenário nacional. Destaca-se inicialmen-
Giordano Barbin Bertelli
te pelos temas abordados: o crime orga- MULHERES NO JORNALISMO
e Gabriel Feltran (orgs.),
nizado no Rio de Janeiro em Notícias de “Você vai falar com fulano? Coloca uma saia
EdUFSCar
uma guerra particular (1999); a ascen- curta, um decote. Aproveita que você tem isso
são de Lula à Presidência da República, e usa a seu favor”, disse uma chefe mulher para

O livro mostra a existência de vida coletiva pulsante


em diferentes sentidos, em espaços e circunstân-
cias comumente associados ao vazio e/ou “ansiosos”
apreendida na passagem entre os dois
turnos eleitorais em Entreatos (2004).
Em seguida, pela reflexão formal, como
uma jornalista. Um estudo produzido pela As-
sociação Brasileira de Jornalismo Investigativo
(Abraji) e pela agência de conteúdo Gênero e
por revitalização. De um lado, essa impressão se confir- em Santiago (2006), retomada autocrí- Número, com o apoio do Google News Lab,
ma pela qualidade da equipe de pesquisadores univer- tica de um projeto documental abortado, mostra que 86% das jornalistas entrevistadas já
sitários integrada e organizada, realizando um trabalho no qual a autoridade do realizador sobre passaram por discriminação no trabalho por se-
colaborativo muito articulado internamente. De outro, o objeto se entrecruza com o poder de rem mulheres. Assédio, piadas machistas, salá-
pelos textos, que evidenciam distintos mundos e modos classe do patrão sobre o mordomo. Seu rios baixos e demissões são casos contados no
de abordar a ideia de periferia, investigando diferentes novo filme, No intenso agora (2017), estudo, em formato multimídia, recheado de da-
temporalidades, distintas produções culturais (música, segue nessa linha que almeja lançar dos e recomendações. Uma delas, bem simples
cinema, artes de maneira geral), espaços de sociabili- mão de uma reflexão política não ape- e que praticamente metade das empresas ainda
dade (casas de prostituição, bairros periféricos, disputas nas pela eleição do conteúdo, mas tam- não tem: um canal de comunicação interno para
pelos centros urbanos, cidades interioranas e suas peri- bém pela problematização constante da que vítimas possam fazer a denúncia formal.
ferias, o mundo digital) e a reconstrução memorialística, forma. Procura filiar-se a uma tradição <www.mulheresnojornalismo.org.br>
tanto pela fala de quem vivenciou esses mundos perifé- de cineastas que se serviram do docu-
ricos na própria experiência quanto pela reconstrução mentário como instrumento de análise DESMATAMENTO NA VENEZUELA
metodológica da memória coletiva. das imagens, buscando perscrutar seus Nos limites da Amazônia venezuelana, um me-
As periferias, no livro, ultrapassam a dimensão da sentidos segundos, perceptíveis à re- gaprojeto de mineração de Nicolás Maduro se
questão política (relações com “centro” e os poderes velia das intenções que as produziram. apresenta como a saída para a crise econômi-
instituídos nele) e econômica (debate importante so- Nessa linhagem, ganha proeminência a ca do país, depois que a queda dos preços do
bre precariedade, pobreza, vulnerabilidade). Vão além retomada de material de arquivo. O filme petróleo agravou a inflação e o desemprego. O
do discurso da “ausência”, da “falta”, do sofrimento e do de João Moreira Salles tenta entrelaçar “Arco Mineiro do Orinoco” pode destruir até 110
precário ou da condenação sobre os “pobres periféri- duas ordens de arquivos – históricos e mil quilômetros quadrados de florestas, que são
cos” em razão de sua pobreza e condição periférica, que pessoais. Sai em busca de imagens das ocupados por diversos povos indígenas e estão
pode redundar na igualmente pouco proveitosa conde- convulsões sociais do ano de 1968, no- sendo desmatados para dar espaço à minera-
nação, em função disso, de suas visões de mundo e op- tadamente em Paris e Praga, ao mes- ção ilegal que abastece de ouro os cofres do
ções políticas. Chama atenção o esforço dos pesquisa- mo tempo que revisita antigos registros Banco Central do país. No meio disso tudo, a
dores em tornar concreto esse movimento de rotação de família, com grande destaque para maior epidemia de malária das últimas décadas
de perspectivas, de tentar complexificar a percepção aqueles feitos pela mãe em viagem à e a invasão de ex-guerrilheiros das Farc e do
periférica no centro da observação e da narrativa. China, em 1966. ELN deixam centenas de vítimas.
Há dois aspectos ainda para mencionar: primeiro, a A empreitada é digna de nota, mas <https://arcominero.infoamazonia.org>
disputa pela ideia de cidade é um grande personagem seu sucesso é incerto. A dificuldade de
do livro. Mirada por ângulos que se encontram nas fran- entrelaçar essas duas ordens de mate- HIPER-REALIDADE
jas, ela é enfocada pelo princípio de que de suas perife- riais, que não guardam de saída uma re- O designer e diretor de filmes Keiichi Matsuda
rias se entendem melhor suas centralidades. O segundo lação objetiva, fica patente na imposição produziu uma série de vídeos sobre uma distopia
aspecto que se ressalta no livro é o apreço pela me- de um discurso subjetivo oscilante, cujo em que a realidade aumentada é tomada pela
mória, individual e coletiva, como recurso analítico e de modo de construção de relações resulta publicidade e torna a vida praticamente inviável
investigação da realidade, sempre como reconstrução problemático. A força mestra do filme nas cidades. O vídeo é um exercício de futurolo-
da realidade social, condicionada por sujeitos inscritos não é outra que não o trabalho de luto gia, em que as realidades física e virtual conver-
em grupos e classes sociais, clivados por gênero, etnias, do autor sobre a perda da mãe. A busca gem por meio da mídia – e do livre-mercado. Em
relações com o mundo do trabalho, posição no ambien- pessoal acaba, porém, sobredetermi- 2017 ele foi convidado a apresentar seu filme
te familiar etc. nando a leitura do material histórico, em em Davos, no Fórum Econômico Mundial. Ficou
Nos dias correntes, de tanto descrédito em termos claro prejuízo para as insurreições de tão perturbado com o discurso sobre ética que
de potência das ideias e prática de povo, coletivida- 1968. Resta, ao fim, um esvaziamento ouviu das corporações que abandonou o evento
de, universidade, a publicação de um volume como da potência política, a força da revolta se destruindo um televisor em que seu próprio tra-
esse é absolutamente encorajador e fresco, tanto no dobrando sob o peso do luto. balho era exibido.
terreno das ideias como no do interesse pelas práti- <http://hyper-reality.co>
cas do vasto mundo social, investigado no âmbito da [Gabriel Ferreira Zacarias] Professor
universidade pública. do Departamento de História da Univer- [Andre Deak] Diretor do Liquid Media Lab,
sidade Estadual de Campinas. Confira professor de Jornalismo da ESPM, mestre em
[Mário Augusto Medeiros da Silva] Professor do Ins- em nosso site versão ampliada dessa Teoria da Comunicação pela ECA-USP e dou-
tituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp. resenha. torando em Design na FAU-USP.
MARÇO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 37

CANAL DIRETO SUMÁRIO


LE MONDE
BRASIL

Universidades públicas abandonadas diplomatique


Sou professor da Estadual da Bahia (Uneb) e reite- Ano 11 – Número 128 – Março 2018
ro que as estaduais também têm sofrido muito! www.diplomatique.org.br

Thadeu Borges Souza Santos


DIRETORIA
Diretor da edição brasileira e editor-chefe
Adoramos a edição e nos parece que os atuais re- NUNCA SE VAI DEPRESSA O BASTANTE Silvio Caccia Bava

trocessos no financiamento educacional da nossa


2 A ofensiva geral
Diretores
Anna Luiza Salles Souto, Maria Elizabeth Grimberg e
região se apresentam como um tema fundamental Por Serge Halimi Rubens Naves

para abordar e discutir! Muito obrigado ao Le Editor


EDITORIAL
Monde Diplomatique Brasil por informar a esse 3 De mal a pior
Luís Brasilino

respeito e impulsionar esse diálogo e reflexão! Por Silvio Caccia Bava Editor-web
Campaña Latinoamericana por el Derecho a la Cristiano Navarro

Educación (Clade) CAPA


4 Poder Judiciário: a ponta de lança da luta de classes
Editores de Arte
Adriana Fernandes e Daniel Kondo
Por Luis Felipe Miguel
Revisão
A Justiça no centro da crise política Lara Milani e Maitê Ribeiro
O dramático panorama do
Por Grazielle Albuquerque
financiamento do ensino Quando os ilegalismos ultrapassam as fronteiras dos Gestão Administrativa e Financeira
Muito esclarecedor. Obrigado, José Marcelino. Fi- espaços populares
Arlete Martins

co preocupado com tantas exigências no sistema Por Márcia Pereira Leite e Juliana Farias Assinaturas
público, como adentrar as atividades de extensão Viviane Alves

universitária se a política pública no Brasil engessa CONJUNTURA


10 A contrarrevolução no Brasil
Tradutores desta edição
o desenvolvimento educacional e a gestão de pes- Carolina M. de Paula, Frank de Oliveira,
Por Wolfgang Leo Maar Lívia Chede Almendary, Rita Grillo e Wanda Brant
quisa. 2018 pode ser a morte desse tripé?
Jose Ricardo Miras Mermudes ELEIÇÕES
Conselho Editorial
12 Jair Bolsonaro: o candidato da (in)segurança pública
Adauto Novaes, Amâncio Friaça, Anna Luiza Salles
Souto, Ariovaldo Ramos, Betty Mindlin, Claudius
Por Leandro Gavião e Alexandre Valadares Ceccon, Eduardo Fagnani, Heródoto Barbeiro, Igor
Fuser, Ivan Giannini, Jacques Pena, Jorge Eduardo S.
Sobre o caráter da burguesia brasileira Durão, Jorge Romano, José Luis Goldfarb, Ladislau
CONFUSÃO ENTRE PATOLÓGICO E EXISTENCIAL
O cosmopolitismo da nossa burguesia limita-se a 14 A medicalização da experiência humana
Dowbor, Maria Elizabeth Grimberg, Nabil Bonduki,
Raquel Rolnik, Ricardo Musse, Rubens Naves, Sebastião
Miami e Orlando. Salgado, Tania Bacelar de Araújo e Vera da Silva Telles.
Por Gérard Pommier
Ana Claudia Cruz
Apoiadores da campanha de financiamento coletivo
UM BENEFÍCIO AO MESMO TEMPO Henrique Botelho Frota, Pedro Luiz Gonçalves Fuschino,
Burguesia cosmopolita, não. É uma burguesia que 16 COLETIVO E INDIVIDUAL Rita Claudia Jacintho e Vinícius D. Cantarelli Fogliarini

se acredita cosmopolita, mas que na verdade é jeca Por que consumir orgânicos? Assessoria Jurídica
até a medula. São vira-latas associados à burgue- Por Claire Lecoeuvre Rubens Naves, Santos Jr. Advogados

sia, esta sim cosmopolita, dos países de capitalis- Escritório Comercial Brasília
NA ÁFRICA DO SUL, HERDEIRO DE MANDELA
mo central. 18 TEM SUA REVANCHE
Marketing 10:José Hevaldo Rabello Mendes Junior
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Mário Salerno Congresso Nacional Africano,
Le Monde Diplomatique Brasil é uma publicação
nas origens de um partido-Estado da associação Palavra Livre, em parceria com o
Por Sabine Cessou Instituto Pólis.
Fevereiro
PODER EGÍPCIO ESTÁ MAIS REPRESSOR Rua Araújo, 124 2º andar – Vila Buarque
Neste momento estou lendo a última edição de vo- 20 DO QUE NUNCA
São Paulo/SP – 01220-020 – Brasil
cês e senti a necessidade de vir aqui e dizer que está Tel.: 55 11 2174-2005
Praça Tahrir, sete anos depois diplomatique@diplomatique.org.br
simplesmente espetacular! Vocês são impecáveis. Por Pierre Daum www.diplomatique.org.br
Juliana Roza
Assinaturas
INTERVENÇÃO NA SÍRIA, PRESSÃO NO LÍBANO,
23 GUERRA NO IÊMEN
assinaturas@diplomatique.org.br
Tel.: 55 11 2174-2015
E agora? O impasse saudita no Oriente Médio Impressão
O gigante não acordou, ainda dorme, mesmo não Por Gilbert Achcar Plural Indústria Gráfica Ltda.
sendo em berço esplêndido! Av. Marcos Penteado de Ulhôa
EXÉRCITO, UMA INSTITUIÇÃO SINGULAR Rodrigues, 700 – Santana de Parnaíba/SP – 06543-001
Antonio Teixeira de Araujo 26 Cuba, o país do verde-oliva Distribuição nacional
Por Renaud Lambert DINAP – Distribuidora Nacional de Publicações Ltda.
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Precisamos falar da fé de Leonardo Osasco/SP – 06045-390 – Tel .: 11. 3789-1624
AMÉRICA LATINA
O acolhimento social dos evangélicos é muito impor- 28 Em busca da Pachamama
tante para aqueles que são excluídos socialmente. Por Maëlle Mariette LE MONDE DIPLOMATIQUE (FRANÇA)
Regina Maria Libonati de Albuquerque
Fundador
QUANDO NEM TODAS AS VÍTIMAS DE ATENTADO
30 TÊM O MESMO VALOR
Hubert BEUVE-MÉRY

Longe dos olhos, longe do coração Presidente, Diretor da Publicação


Serge HALIMI
Por Téo Cazenaves
Redator-Chefe
REINÍCIO DA GUERRA FRIA Philippe DESCAMPS
31 Quando a TV quer sangrar a Rússia Diretora de Relações e das
Por Serge Halimi Edições Internacionais
Anne-Cécile ROBERT
BASTAM IDEIAS PARA MUDAR O MUNDO?
Participe de Le Monde Diplomatique Brasil: envie suas 32 O que as “batalhas culturais” não são
Le Monde diplomatique
1 avenue Stephen-Pichon, 75013 Paris, France
críticas e sugestões para diplomatique@diplomatique.org.br Por Razmig Keucheyan secretariat@monde-diplomatique.fr
As cartas são publicadas por ordem de recebimento e, www.monde-diplomatique.fr
se necessário, resumidas para a publicação.
THE POST, UM FILME DE STEVEN SPIELBERG
Os artigos assinados refletem o ponto de vista de seus 34 A escolha dos heróis Em julho de 2015, o Le Monde diplomatique contava com 37
autores. E não, necessariamente, a opinião da coordenação Por Pierre Rimbert edições internacionais em 20 línguas: 32 edições impressas
do periódico. e 5 eletrônicas.

MISCELÂNEA
Capa: © Vitor Flynn
36 ISSN: 1981-7525
ARONY MARTINS, GRAZIELLE, LUIS CARLOS DA SILVA, DANIELA ARCANJO RODRIGUES, RAFAEL DE OLIVEIRA PAIVA, RENATO LIMA, RICARDO DEL GUERCIO BUENO, LUCAS DUARTE, FILIPE DE FIGUEIREDO OLIVEIRA,
RODRIGO MACHADO MAIA, RICARDO DEL GUERCIO BUENO, PAMELA CARLA PEREIRA DE ASSIS, EDUARDO ARMOND CORTES DE ARAUJO, PEDRO FRANCISCO CAMPOS NETO, VICTORIA FRANCO, JORGE LIMA LOPES
LÔBO, ANA CAROLINA DUTRA, ADOLFO CIFUENTES, FERNANDO BRITO RUFINO, NILVA LÚCIA LOMBARDI SALES, SEBASTIÃO PEREIRA DE FARIA JR., PALOMA ASSIS DA MATTA MACHADO, GABRIEL MARTINEZ GISBERT,
RODRIGO CAMPANELLA, CALISTRATO LOPES DE MUROS, HUGO ANSELMO, LUIZA DINIZ LARAIA, BRUNO PAVAN ALMEIDA, BRUNO CARDOSO SILVA, ANA PAULA PIERINI, LUCAS MEDEIROS, NATALIA SALAN MARPICA,
DIEGO BORIN REEBERG, LUIZ EDUARDO DE CARVALHO SILVA, EDUARDO KLEIN FICHTNER, VICO MELO, GABRIEL GUERRA CÂMARA, LUCIANO GUEDES LE, AGEU ANTUNES FILHO, FLÁVIO NASCIMENTO, SURYARA
BERNARDI, EDUARDO OLIVEIRA, CLAYTON RODRIGO DA FONSÊCA MARINHO, VIRGILIO CARLO DE MENEZES VASCONCELOS, FERNANDA SALVADOR ALVES, NIVALDO LÚCIOP SPEZIALI, MARIA CAROLINA ACCIOLY,
ALEXANDRE APARECIDO DE SOUZA OLIVEIRA, LOURENÇO PIUMA SOARES, PAULA RETTL, PEDRO TELLES, WAGNER GUIMARÃES DA SILVA, MATHEUS MAGALHÃES DA SILVA, RAFA AGENA, RODRIGO OLIVEIRA,
FRANCISCO BELMIRO WERNECK MAGALHÃES, MANOEL CARLOS GUIMARÃES MORAES, VITORIO MASAAKI URASHIMA, TIAGO FELIPE VIEGAS CARNEIEO, NATASHA MINCOFF MENEGON, JOAO CARLOS DE CAMPOS
LEME, LUIZ CEZAR DOS SANTOS MIRANDA, GUILHERME ROSA DE ALMEIDA, DIEGO FREITAS FURTADO, ANDRÉ DA COSTA, MAURÍCIO LACERDA MACCARINI, INSTITUTO PÓLIS, JESSICA SIVIERO VICENTE, BRUNO
ABNNER LOURENZATTO SILVEIRA, CAROLINA MASSUIA DE PAULA, ASW E.V., DAISY, KYOKO TAMASHIRO, FERNANDA PINTO MIRANDA, ROSANA MIGUEL, PEDRO CARDOSO, MATEUS SILVA, JOSÉ CARLOS BIZINOTTO
DE MIRANDA, BÁRBARA NOVAQ, FERNANDO CESAR ROSA DE ARAUJO, GENECI COUTO DA SILVA FILHO, RAFAEL SALDANHA, DAYSON ROBERTO WALDSCHMIDT, FLAVIA AUGUSTA DE CATRO E CASTRO, ANTONIO
MANSUR NETO, IVÃ GURGEL, MÔNICA FAGUNDES DANTAS, PEDRO MELONI DE OLIVEIRA, MATHEUS CHRISTIANO MARTINS, THIAGO MAIA, CAROLINE MARTINS DOS SANTOS, DANI KLINTOWITZ, LIGIA APARECIDA
FORTUNA MARRACH, VÉRONIQUE MARIE BRAUN DAHELT, TOBIAS TÖPFER, ELVIS DA SILVA ALMEIDA, FRANCISCO DONIZETTI VENTURA, FRANCISCO JOSÉ SANTAELLA GALVÃO, TADEU ANTUNES CATINI, FLORENCE
POZNANSKI, ANDRÉ PASTORE SOLNIK, MÁRCIA HELENA CARVALHO LOPES, ISADORA GARCIA, PEDRO BENJAMIM CARVALHO E SILVA GARCIA, ROSSANA TAVARES, MARCELO SOARES DE CARVALHO, LIGIA SCARPA
BENSADON, FATIMA PORTILHO, ANA MARIA TRAVASSOS TELLES, FELIPE PRAGMACIO TRAVASSOS TELLES, HAROLDO DE GODOY BUENO, ADRIANO GUEDES, MARINA CALÇAVARA, MARIA CASSIA JACITNHO MENDES
CORREA, DAVID RAMOS DA SILVA, CAROLINA GAUDENCIO, PATRÍCIA ARAÚJO BELLONI NOGUEI-
MANABE PASETTI, FELIPPE TRAVAGLIA RA, EDUARDO A. JUNQUEIRA REIS, MARIA
MAGNAGO, FERNANDA CUNHA PINHEIRO DA ARINDELITA NEVES DE ARRUDA, MARCELUS DIAS
SILVA, MARCELO ARTUR RAUBER, JEFERSON PERES, JOÃO B. M. PEREIRA, NAZARENO STANIS-
BOLDRINI DA SILVA, DANTE PAGNONCELLI,
MAURICIO GUIMARÃES BERGERMAN, ARTHUR
MARTINS ALVES, ESTELA HIRATA, ROBERTA
SEU APOIO FOI LAU AFFONSO, JOICE BARBARESCO, DIOGO LUÍS
CAMPANHÃ, RAUL DALANEZE, WALFRIDO
NUNES, LIZANDRA SERAFIM, CARLOS RODRIGO
TRASPADINI, MARIA DE FÁTIMA NEVES DA
SILVA, FELIPE SCHORN, FELIPE CAMARA
GONÇALVES BRANDES DE AZEVEDO, BRUNO
FUNDAMENTAL COSTA, LUCAS PRETTI, PAULO EDUARDO BERNI,
JULIO CESAR MENDONÇA, JOSÉ JULIANO D E
CARVALHO-FIHO, ELIANA OLIVEIRA TEIXEIRA,
MATTOS, FERNANDO OBERDIEK, WALDELI
PATRICIA MELLEIRO, PALOMA NERY CORONEL,
PARA MANTER UMA TERCIO ZENATTI DE BARROS, REMI GOTARDO
CASAGRANDE, SÉRGIO OKI, IVANA DEL GUERCIO
ITAMAR TATUHY SARDINHA PINTO, JOÃO
LIGUORI SERRÃO, GERMANO WEIRICH,
STEFANIE MAZZA RIBEIRO, GUILHERME SCHAU-
IMPRENSA LIVRE, BUENO, ANTONIO TEIXEIRA DE ARAUJO, RICARDO
DEL GUERCIO BUENO, ALACIR FERREIRA COSTA,
GIOVANNI PELÁGIO, PAULA MONTAGNER,
RICH DA SILVA, ALVARO BANDUCCI JUNIOR,
JOSÉ HELINTON, MARWAN GLOCK MALTACA, INDEPENDENTE MARGARETH MATIKO UEMURA, CLAUDIA
REJANE DE LIMA, NELSON DE LUCA PRETTO,

E CRÍTICA.
BRUNA STEPHANIE MIRANDA DOS SANTOS, LETICIA DE FARIA FERREIRA, LUCIANA ARDENGHI
DIONISIO SCHMIDT, HUMBERTO PEREIRA FUSINATTO, THAYSE ZAMBON BARBOSA
FIGUEIRA, LUIZ CARLOS JAFELICE, MARIA ARAGÃO, ANDRÉ LUCAS SALVADOR, CLAUDIO
AUXILIADORA ALVES DA SILVA, ADRIANO LE MONDE VALDIVINO E SILVA, ELIANA MARIA DE ALMEIDA
B R A S I L MONTEIRO DA SILVA, BRENO DE SOUZA JUZ,
SAMPAIO, SERGIO KLAR VELAZQUEZ, PATRICK
ANJOS, ELINES SANTOS, RAPHAEL DA SILVA
SANTOS, GEOVANA ZOCCAL GOMES, THAÍS
diplomatique GABRIELA VIEIRA CAPOBIANGO, CARLOS
ANTONIO MORALES, MARITA BEATRIZ KONZEN,
ISADORA FLORES, BERNADETE DE LOURDES SILVA, OSMAR BARBALHO FERREIRA, LUIZ SÉRGIO PIRES GUIMARÃES, ALAN PIRES FERREIRA, MARTA COSTA, CARLOS LOPES, CÁSSIA DAIANE MACEDO DA SILVEIRA,
FLÁVIO JOACHIM WYRWA GUILHERME, EDUARDO AGUIAR SORICE, EVELINA DAGNINO, FRANCISCO ALVES SOARES, BRUNO BRANCO, ANUAR CORRÊA DE MELLO, MICHELLY, ALONSO COELHO LUZ, CAMILA FERREIRA
GUIMARÃES, ANA MONIQUE MOURA, PHILLIP CAPALBO SVERCL, DELFINO VIEIRA COELHO, LIANE DE SOUZA WEBER, ALINE TITON, THALITA FONSECA ALVES, MARIA BEATRIZ MONTEIRO, DANIELLA HICHE, LILIAN
FERREIRA DE SOUSA, SANDRO BRUNO DA CONCEIÇÃO, LAURICIO DINIZ VAZ, EMMERSON KRAN, THIAGO CONSIGLIO CRUZ, MARINA COIMBRA, EDIPO FERREIRA RIBEIRO, KIANE VALAU JAHN BRUNO DA SILVA
BORGES, ERICO FADEL, ADRIAN MENGAY, ELIO ALENCAR, MARCELO MAIA, MARINA CAIAFFA BARDI, THALITA TOMAZI, JONNATHAN DA SILVA OLIVEIRA, FREDERICO MA, NILSANA ROCHA MICHILES, IVO PAULEK
JUNIOR, TOMÁS NEVES, TAINARA CAROZZI DE CARVALHO, AMADEU DE CARVALHO JÚNIOR, AYRTON LUNGUINHO, DANIEL CÉSAR MAIOCHI, DANIELA SALOMÉ DE ANDRADE , GABRIEL MAGALHÃES BELTRÃO, CAROLI-
NA GUERRA, GREICE KLEM, ANTONIO JOAQUIM SCHELLENBERGER FERNANDES, TACIANA NETTO RIBEIRO, MÁRIO MARTINS, NADJA MARA BARBOSA, ANDERSON LUIZ DE MOURA FREIRE, AMANDA NACHARD,
GUIDYON AUGUSTO, VINICIUS MARQUES PIMENTA, GRACIELLA WATANABE, DANIEL CALAZANS PIERRI, FERNANDA ZAMBONINI, ANA, ANTONIO CARLOS FILGUEIRA GALVÃO, JORGE MÁXIMO DE SOUZA, DAPHNE
RATTNER - REHUNA - REDE PELA HUMANIZAÇÃO DO PARTO E NASCIMENTO, ISABEL ALBUQUERQUE DE ALMEIDA LINS, TARSE CABELLO, DEIVIDY WILIAN PINTO CORREA, MATHEUS FIORI, DIMITRI SANTANA MARIN-
HO, THOMAS BELTRAME, KARLA NAYRA, TALES JOSÉ DA SILVA, RICARDO SOUSA DINIZ, MATEUS AUGUSTO COSTA NOGUEIRA, MAITÊ ALEGRE GONZALEZ, LEONARDO HALSZUK LUIZ DE MOURA, ADRIANA RICCI,
ALBERTO IACOMUCCI, BEATRIZ DE PAULA MACHADONADIR NADIR, WILLY ROCHA JÚLIO, ADRIANA RIBEIRO DE MACEDO, ISAK GONZAGA, GUSTAVO FONSECA MORITA, RAFAEL TADASHI MIYASHIRO, FELIP BARBOSA,
DANIELA BLANCO, CARLOS EDUARDO NICOLETTE, EMILIANA RIBEIRO, IREMA RIBEIRO DO NASCIMENTO , MIRIAM GOES SHIBATA, ELAINE APARECIDA, VITOR MASSATO YAMAMOTO, MARCELO DE OLIVEIRA SOUZA,
MARCOS LINS, PAULA MARTIN SENTIS, SIDNEIA MIATO, LUCIA MARIA FELIPE ALVES, ADRIANE SHIBATA SANTOS, GIOVANNI ORSO, MONALIZA DE SOUZA FERREIRA, LUCIUS DE OLIVEIRA, LEONARDO GONÇALVES DA
COSTA, RENATO MAURO VIEIRA SOUZA, RODRIGO FEYTH DE NEGREIROS, CIDNEY DE OLIVEIRA INACIO, FELIPE GUSTAVO MATEOS SILVA, VITOR GOMES DA SILVA, DIOGO FERRAZ, DANIEL IZIDORO CAETANO, AUGUSTO
GOMES, VINICIUS REIS GALDINO XAVIER, RAFAEL DE VASCONCELLOS, FRANCISCO BICUDO, ADRIANO JOSÉ MELLO COSTA, LUIZ MAURICIO BENTIM DA ROCHA MENEZES, VERA LUCIA BAZZO, JULIANA BERGMANN,
EDUARDO KLEIN FICHTNER, EDUARDO ARMOND CORTES DE ARAUJO, RODRIGO RABELO CARNEIRO DA, ANDRÉ LUIZ DE CARVALHO, WHANER ENDO, RAFAEL PRADO DE OLIVEIRA, ANTONIO DE LA PENA GARCIA,
DENIZIO DANTAS DE ALMEIDA, GIOVANI HOBOLD, MARCELO RAMOS DUARTE , DENIS COSTA, SÉRGIO MIGUEL DO N. BUARQUE, JORGE LUIZ LORDÊLO DE SALES RIBEIRO, TEOFILO JOAQUIM DA SILVA JR, VINÍCIUS D.
CANTARELLI FOGLIARINI, CLEMENTE GANZ LUCIO, JOSE PEREIRA LOPES LEAL, ANDREA FREITAS DE VASCONCELOS, BRUNO OGATA, ANA MARIA D. DE OLIVEIRA, JANAINA PARDI MOREIRA, LINCOLN SECCO, HUMBER-
TO PEREIRA FIGUEIRA, PAULO SERGIO ROCHA NONATO, MARIA LUIZA COSTA NERY, ROLF RAINER, JULIANNA BRANDÃO, VALMIR DE SOUZA, WELLINGTON TISCHER, CÉLIA MARIA CASTEX ALY, JORGE LUIZ GOUVEIA
AMARAL, DIEGO MENDONÇA, RAPHAEL CALDEIRA, EVERSON PEREIRA, LUISA IZUNO DINIZ, MARIA CAROLINA ACCIOLY, THALES AMORIM, INTERVOZES, IMOVISION, TOMAS RIGOLETTO PERNIAS, AMANDA SZARGIKI,
RAFAEL FONSECA, PAULA MONTAGNER, JOSÉ CARLOS DE SOUZA, NEIRIMAR K CORADINI, GONÇALO MARQUES, WAGNER BASTOS FERREIRA, JACQUE OLIVEIRA, CARMEM HOFSTETTER, MARIA INÊS SUGAI, SELVA
RIBAS BEJARANO, DANIEL SENOS, ANDRÉ RICARDO SOUZA, ANNY RODRIGUES FIGUEIREDO, LEA PINHEIRO PAIXAO, DIOGO MATHIAS BRUM, MARCELO ILIESCU, DÁLETE FERNANDES, MAICON DOURADO BRAVO,
RENATO SERGIO JAMIL MALUF, MARIANY OLIVEIRA, LUIZ ARMANDO CAPRA FILHO, LUIZ BATISTA G S PEREIRA, MARIA LUCIA BARBOSA, LEO PINHEIRO, BRENO AYRES CHAVES RODRIGUES, RAUL ALBINO PACHECO
FILHO, JOÃO LEAL MEDEIROS HAKME, PABLO BORGES, DORIVAL DA COSTA DOS SANTOS, VIVIANE RIBEIRO, MÜLLER MAIA, JULIO CESAR CALDAS ALVIM DE OLIVEIRA, LUIS AUGUSTO GONÇALVES GOMES DA SILVA,
MATHEUS MENDES, ROBERTA MOURAO, INÁCIO PEREIRA, FELIPE CARUSO, MARCOS FRANCISCO SILVEIRA DE SOUSA, PAULA SANTORO, PATRÍCIA MARQUES, ANDRÉ PEREIRA DE CARVALHOGABRIEL RATTO
DOMICIANO, PAULO AUGUSTO ANDRÉ BALTHAZAR, BRUNA LOPES ÁVILA, PRISCILA FREIRE, FERNANDO PEREIRA BRETAS, EDUARDO ARCOVERDE DE MATTOS, VERA TELLES, GUSTAVO COUTINHO BACELLAR, PAULO
SÉRGIO DE ANDRADE CONCEIÇÃO, ANA PAULA BORTOLETTO MARTINS, LUCIANA VALE, PHILIPP ANDRAE, BRUNO DANIEL SEQUEIRA DE ALMEIDA E CASTRO, OSWALDO MALATESTA, MARCEL FANTIN, JUHEINA LACER-
DA, RIBEIRO VIANA, AMANDA CUNHA, MÔNICA SODRÉ, AMANDA CARDOZO, MATHEUS PINTO SOUZA, JOSIMAR GOMES SANTOS, REGIANE LIMA, HECLAIR RODRIGUES PIMENTEL FILHO, BONFILM PRODUÇÃO E
DISTRIBUIÇÃO AUDIOVISUAL LTDA., ADRIANO BORGES COSTA, MAICCO FERREIRA, FRANK OLIVEIRA, JOSÉ DE CASSIA LOPES, FRANCISCO CARDOZO OLIVEIRA, MAURI CRUZ, RUBENS CAVALCANTI FREIRE DA SILVA,
RICARDO ROLIM XAVIER, RUBENS KON, YURI LIMA, RITA CLAUDIA JACINTHO, LEOVI CARISIO, MANOEL CARLOS GUIMARÃES MORAES, BRUNO LAZARINI DA SILVA, JORGE PANTOJA, TAMARA ZÁZERA REZENDE,
NATHAN GARCIA, MÔNICA PAULO DE SOUZA, LEO BALTHAR, SANDRO ÂNGELO DE A. O. E V. VILA NOVA, LEONARDO CRUZ, PEDRO PORTELA, IVANA DEL GUERCIO BUENO, EDSON WILLIAN FERREIRA ALVES, RAFAEL
HIME FUNARI, PEDRO LUIZ GONÇALVES FUSCHINO, RAFAEL PELEGRINI, PAULA KAPP AMORIM, SORAYA FERNANDES MARTINS, ANITA SIMIS, JULIANA FEITOSA, LUCAS CONDÉ, HENRIQUE BOTELHO FROTA, MARIANA
RODRIGUES, PAULO FERNANDO SCHWARZ, MARIAMA MORENA, DANIEL VINÍCIUS COLETTI, LUIZ CARLOS CICALA, HENRIQUE DE OLIVERIA REZENDE, PAULA CAMARGO, BRUNO CHAVES COSTA, MÁRIO PIZZI, BRUNO
TENAN, MARCO AURÉLIO BANIONIS, BERNARD LOURENÇO COSTA, LUCIANA MACHADO DA COSTA, JOÃO BENTES COROA, MARIANE STER CORGOZINHO MEDEIROS, GUILHERME BOTELHO DINIZ JUNQUEIRA, JEFERSON
SILVA BARBOSA, BRUNO GRISOTTO VELLO, CELSO VICENZI, DIVINO ALVES CAETANO NETO, ALAN RAMOS COMEÇANHA, BRUNO MARANGONI MARTINELLI, MARTHA PABLOS, TAIS RAMOS, LEANDRO GAVIÃO, LUCIENE
LESZCZYNSKI NUNES, AUDISIO DE ALENCAR JUNIOR, AÉCIO ALVES DE OLIVEIRA, RUBENS NAVES SANTOS JÚNIOR ADVOGADOS, EDEGAR F OLIVEIRA, ANDRÉ PASTI, VICTOR FLUSSER.

OBRIGADO A TODAS E TODOS QUE APOIARAM.

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