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A Gota e o Oceano
MURILLO NUNES DE AZEVEDO
O gosto do Zen despertado no Ocidente é em parte, a sadia reação de
pessoas exasperadas com a herança de quatro séculos de cartesianismo: a
deificação de conceitos, a idolatria pela consciência refletiva a fuga da
realidade para ater-se ao verbalismo, à matemática e à racionalização.
Descartes fez do espelho em que o eu se encontra um fetiche. O Zen o
despedaça pondo-o em frangalhos.
Thomas Merton

NESTE instante milhões de seres nascem, milhões morrem. Caem as


folhas. As ondas chocam contra as rochas. Bilhões de acontecimentos
simultâneos. Efervescência. Mas as limitações dos veículos através dos quais
a consciência se expressa dá aos homens a impressão linear dos
acontecimentos. Cada um deles é único, instantâneo, e deixa da sua breve
passagem um traço como o registro de uma partícula atômica numa câmara de
gás. Essa trajetória é o resultado de uma série de encontros. Reflete a marca de
uma presença. Tudo está interpenetrado no Todo como gotas de um mesmo
Oceano.
No poema hindu Bhagavad Gltã, seu personagem central, Arjuna, suplica
a Krishna a emanação corporificada sob a forma humana do Absoluto
que lhe revele a verdadeira face da Realidade. E então viu:

"Assim como as chamas destruidoras do Tempo,


contemplo teus dentes poderosos,
eretos, alinhados nas mandíbulas escancaradas.
Ninguém encontrará abrigo ou misericórdia.
ó Senhor Supremo de todos os mundos!
Todos, amigos, inimigos, desconhecidos, nós mesmos,
a multidão que passa como um rio
vão sendo tragadas por tua imensa boca.

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A visão de Arjuna revela a Realidade tal como é. Nua, sem proteções
psicológicas e embelezamentos. É a forma Zen pondo em frangalhos o
espelho onde o "eu" se reflete.
Tailândia. Bangkok. Dia 10 de dezembro. 1968. 14 horas. Calor. Num
quarto um homem liga um ventilador. Choque? Colapso? Um corpo cai junto
com o ventilador. Lá fora, no rio, os barcos continuam a passar rumo ao
Mercado. Nas lojas, peixes coloridos dão voltas dentro dos aquários
aguardando os fregueses. Gaios de briga se engalfinham num ringue. A
multidão de apostadores grita. Ventilador trabalhando, cortando a carne do
homem morto caído no chão. Sangue jorrando.
No final da vida de Thomas Merton os acontecimentos chocam-se como
ondas conflitantes que se fragmentam em milhares de gotículas. Nos
mosteiros budistas monges recitam sutras. Outros meditam. Cochilam.
Alguém bate na porta do quarto. Ventilador trabalhando. Batidas. Ventilador
girando. Porta arrombada. Ventilador desligado. Polícia. Médicos. Padres
chegando. Corpo lavado. Corpo vestido. Hábito de monge. Recitação lenta do
rosário. O saltério. Murmúrio das preces. As cigarras cantando na tarde que
cai. Um caixão envernizado aguarda no aeroporto. Acontecimentos. Caixões
com soldados norte-americanos vindos do Vietnã. Misturado a eles um
monge ruma ao Leste. O Oceano Pacífico lá embaixo reflete a lua. Os pilotos
tomam café e contemplam os mostradores iluminados no painel de
instrumentos. Bocejos. Thomas Merton voltando a casa. Acontecimentos.
Simples acontecimentos. Oceano. Um novo dia começa a surgir.
As ondas voltando para trás. Há 2.600 anos um homem sentado sob uma
árvore atinge a plena iluminação: o Nirvana. Uma gota transforma-se em
Oceano. O Buda, o iluminado, o plenamente desperto, o Príncipe Sidarta
Gautama que tinha abandonado todos os reinos terrenos "via" a configuração
do Eterno. Paz. Paz suprema. Sente as limitações da palavra para transmitir
essa vivência de planos de consciência que o homem comum nem sonha.
Tem então a visão simultânea dos acontecimentos. Diante de si a existência é
como um lago onde se encontram bilhões de sementes de lótus, que na gran-
de maioria estão no fundo, mergulhadas na lama, apodrecendo
silenciosamente para que a vida possa nascer. Outras, começam a germinar e
procuram vencer a água escura em busca de algo que não vêem mas que
apesar disso as atraem. Poucas se aproximam da superfície das águas.
Pouquíssimas romperam a linha divisória e em pleno ar, expostas ao sol, co-
meçam a entreabrir as pétalas.

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Cada uma delas é um ser num estágio diferente de desenvolvimento.
Recebendo da luz do sol uma mensagem diferente, apropriada à sua natureza.
As ondas vão indo para frente. Há 2.000 anos um homem morre na Cruz.
Falava dos pobres de espírito, dos puros de coração. Dos simples, dos mansos.
Dos autênticos que verão em si o Senhor. O reino de Deus tem muitas
mansões. "Aprendei a parábola da figueira: quando já os seus ramos se
renovam e as folhas brotam sabeis que está próximo o verão." As suas
palavras foram registradas na letra fria dos textos. Foram repetidas por muitos.
Mas poucos as "compreendem". Pois compreender é viver em si a
experiência. E aquele que vive no verbalismo está escravo dele. É preciso
sentir as folhas brotando para termos a consciência do "verão" que se
aproxima.
Em todas as religiões encontra-se, mais ou menos mergulhado, um apelo
que chamaríamos Zen, para o abandono do superficial e a busca do
essencial.
Thomas Merton sentia-se atraído pelo Budismo e pelas religiões asiáticas
pois sentia a necessidade de um encontro com as raízes que estão além do
mero verbalismo. Essas religiões não se julgam exclusivas, nem detentoras da
Verdade. São acessíveis e tolerantes em seus conceitos demonstrando uma
abertura de consciência que se encontra no Cristianismo primitivo mas que
por força de injunções políticas e sociais foi sendo amortecida na
interpretação ao pé da letra dos textos bíblicos. Nada é pior do que a estrutura
burocrática, temporal, visando resultados concretos para asfixiar a verdadeira
espiritualidade. Merton era um místico e como tal falava uma linguagem que
está acima das limitações temporais. Profundamente lúcido tinha a convicção
que a maioria dos homens não vive. Movimenta-se apenas. Choca-se ao sabor
dos acontecimentos. Nas "Reflexões de um espectador culpado" afirma:
"A sociedade massificada se compõe em realidade de indivíduos que, se
entregues a si mesmos, sabem que são zero, e que ajuntados uns aos outros
numa multidão de zeros, têm a impressão de adquirir realidade e poder."

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A triste realidade é que poucos sentem o Absoluto, Deus, ou o nome que
queiram dar. A existência humana transformou-se numa simples rotina na
qual os acontecimentos nos impelem a pensar e agir mecanicamente. O
diálogo transformou-se em zumbido de máquinas cada qual girando no seu
eixo . o "eu", engrenado a outras máquinas visando o quê? Agitação.
Futilidade. Mediocridade. Imbecilização em massa. Docilidade para que
poucos tirem proveito de muitos. Thomas Merton era um crítico mordaz da
Civilização de desperdício que cultuamos como um moderno Deus. Assim
pensava sobre os padrões de vida norte-americanos:
"Desperdiçamos nossos recursos naturais, bem como os dos países
subdesenvolvidos, ferro, óleo, etc., de maneira a encher as cidades e estradas
com um tráfego congestionado que é, na realidade, em larga escala, inútil e
um sintoma da agitação inoperante e fútil de nossa mente."
O automóvel para ele era símbolo de um estado de espírito. Dizia:
"A meditação sobre o automóvel: qual o seu emprego, o que representa
o automóvel como arma, como autopro-paganda, como bordel, como meio
de suicídio, etc. poderia levar-nos ao próprio cerne de todos os problemas
americanos atuais: racismo, guerra, crise do matrimônio, fuga da realidade
para o mito e o fanatismo, crescente brutalidade e irracionalidade dos
costumes americanos."
A sua atração pelo Zen foi imediata, pois o Zen valoriza a natureza, a
humildade, a espontaneidade, a volta a uma autenticidade perdida. A poesia
foi fortemente influenciada por essa Escola no Japão. E Merton era um poeta.
O Haikai, poema sintético com 17 sílabas, dá em leves toques o âmago da ex-
periência do autor. É uma jóia de síntese. Merton, o autêntico, o homem que
procurou em toda sua vida ser aquilo que era em essência, em inúmeros
trechos da sua enorme bagagem literária revela o mesmo estilo direto de
descrição da realidade. Vejam como banais acontecimentos são
transfigurados por um tratamento Zen:
"Aurora escura. Debaixo de algumas nuvens altas, lastros de vermelho
matizado. Um desenho de roupas estendidas, de grampos para suspender
roupas no varal, de vultos nebulosos. Abstração. Não há como captá-lo.
Deixe ficar."

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Ou esta outra que é um verdadeiro Haikai em sua estrutura psicológica:
"Tarde tranqüila. Colinas azuladas. Lírios balançam ao vento. Este dia
jamais voltará."
Sintam o toque ligeiro, a pincelada do pintor Zen nesta descrição:
"Frias estrelas. Vapor que sobe da cozinha até a noite gelada (4 da
madrugada). Geada ao lado da pilha de carvão da parte de fora do
compartimento do fogão. Pão manchado, caído ao chão a espera dos
passarinhos. Ruído dos passos na escada, enregelada, de madeira, que leva à
cozinha da enfermaria. Flamingos na folhinha da Standard Oil na cozinha,
Chá quente."
O padre Luís, como Merton era chamado pelos trapistas, possuía a visão Zen
da realidade que nos cerca. Suas fotografias, seus desenhos, são uma
comprovação do mesmo ângulo estético que caracterizam a pintura chinesa e
japonesa influenciadas pelo Zen. A valorização do vazio, das coisas
insignificantes ao homem apressado que não olha os musgos, os velhos muros
descascados, os galhos secos, os objetos marcados pelo uso. A solidão de uma
floresta. A plenitude do deserto. Participação. É preciso a todos os momentos
cultivar o silêncio como planta tenra, para que possamos encontrar a solidão
no meio do mundo. Cada objeto, cada ser, cada instante é um mistério pleno
de significação. Debaixo da superfície das coisas está a base última onde elas
se encontram. Cada uma delas é um caminho aberto para o encontro com
aquele que as sustem em sua grandeza infinita. O encontro é um ato de
silêncio. Pois não há participação sem silêncio. Silêncio da fonte que brota no
deserto. Do lótus que desabrocha. Da lágrima que escorre. Tudo se resume,
então, segundo o Zen, na busca desse silêncio no meio de um universo de
ruídos. A atitude deve ser a da observação pura dos que se sentam e
contemplam sem procurar se envolver com os acontecimentos. O Zazen. que
é o sentar de acordo com certas regras, é em suma o Zen. Sem ele não é
possível atingir o que não se atinge quando vivemos mecanicamente. O
simples ato de sentar, que muitos vêem como uma força de meditação
budista, é de imenso valor para homens que nunca conseguiram parar no meio
dos acontecimentos e são envolvidos por eles. O sentar é a parada em pleno
movimento. A inação na ação. A leveza do gesto, o reflexo automático de um
lutador de judô, ou de um mestre de espada. A flexibilidade do bambu, a
agilidade de um gato. O toque ligeiro de um pintor numa tela de seda
deixando o registro de sua passagem para toda eternidade. É, em suma: plena
atenção. Viver o aqui e agora em plenitude.

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Há uma estorinha Zen de um lutador chamado O-nami que significa
Grandes Ondas que reflete totalmente o significado do imenso valor da
meditação. O-nami era possuidor de grande força e conhecia todos os
segredos do Judô. Quando treinava em particular era capaz de derrotar a todos
inclusive seu mestre. Mas em público, até mesmo um principiante o vencia.
Procurou então um mestre Zen para aconselhá-lo. O mestre morava num
pequeno templo nas vizinhanças. "Grandes Ondas é o teu nome", falou o
mestre. . "Permanece no templo esta noite. Medita sobre o teu nome.
Imagina o oceano." O-nami sentou-se em meditação tentando imaginar-se
como as ondas. Gradualmente começou a sentir-se mais e mais como elas. E
começou então a chocar-se com as rochas destruindo-as. Depois foi aos
poucos invadindo a terra e levando tudo de roldão com sua força. Destruiu o
próprio templo em que estava. O Buda no altar foi levado. No meio dos vasos
de flores. Antes da madrugada nada mais restava na consciência de O-nami a
não ser o ir e vir de um oceano imenso.
Quando o instrutor chegou pela manhã O-nami, imóvel, sorria. O mestre
despertou-o com um vigoroso toque no ombro e lhe disse: "Agora nada mais
pode te perturbar". Naquele mesmo dia O-nami se transformou no maior
lutador do Japão.
O mesmo ocorre conosco. É necessário despertar para a grandeza que
somos, ACORDAR! MAS COMO É DIFÍCIL. A existência humana transforma-se
numa simples rotina de fatos que nos impelem a pensar, agir mecanicamente.
Em todas épocas os textos de uma tradição verdadeiramente religiosa, que
está acima da pura religião maquinai da maioria dos ho-mens-máquinas,
chama a atenção da necessidade do homem despertar para a Realidade. No
Katha Upanishad está dito:
Este é o caminho. Esta é a mente suprema.
Ele está oculto em todas as pessoas.
Por esta razão não brilha!
Mas é visto pelos grandes videntes.
LEVANTA-TE! DESPERTA!
A senda é estreita como um fio de navalha.

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O Absoluto está oculto em todos. Se está oculto é porque
inconscientemente não permitimos que ele surja. O homem fechado, o egoísta
enrolado em torno de um "eu" ilusório é como um casulo que ainda não sonha
que poderá ser borboleta. E como casulo geralmente morrerá. Perdendo a
oportunidade da transfiguração.
A Regra dos Monges de São Bento é totalmente autêntica quando no
prólogo chama atenção para que:
"...abramos os olhos a luz deifica e, de ouvidos atentos, escutemos a
exortação que todos os dias, em altos brados, nos dirige a voz divina por estas
palavras: Se hoje ouvirdes a sua voz, não queiras endurecer vossos corações.
E ainda: Quem tiver ouvidos para ouvir, escute o que o Espírito diz às Igrejas.
E que lhes diz?: Vinde, filhos, e ouvi-me; ensinar-vos-ei o temor do Senhor;
correi enquanto tendes o lume da vida, não vos atalhem as trevas da morte."
A Luz existe. Ela não tem culpa se os homens continuam de olhos
fechados. A abertura dos mesmos depende do esforço de cada um. Façam um
exemplo real. Fechem os olhos. Sintam a escuridão. Imaginem o que será o
mundo de um cego de nascença que nunca tenha sentido a diversidade das
formas e cores. Abram os olhos e vejam como se estivessem vendo pela
primeira vez. O mesmo poderá ser feito com todos os outros sentidos. Todos
eles são portas de comunicação com o Absoluto. Depende somente do uso
que deles fazemos, mecânico ou desperto, para que tenhamos a consciência da
luz deifica da exortação que em "Altos brados" a voz divina nos apela. Sintam
a importância do Aqui e Agora, do instante mágico onde tempo e espaço se
fundem numa presença sensível na advertência: "correi enquanto tendes o
lume da vida..." A maioria dos homens infelizmente passam pela vida como
mortos." Thomas Merton sentia isso profundamente ao dizer:

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"O homem está pronto para se tornar um deus e, era vez disso, parece,
por vezes, ser um zumbi."
O Zen-budismo procura despertar o homem o mais rápido possível,
usando para isso métodos pouco convencionais, pois nada é mais urgente,
mais vital, do que esse despertar. É difícil dizer o que seja antes do
acontecimento. Tão difícil como transmitir em palavras a experiência da água
fresca escorrendo numa garganta sequiosa.
É a mesma razão que levou Merton em "A Vida Silenciosa" a exclamar:
"A realidade significada pelo conceito é um mistério. Pois,
concretamente, na terra ninguém sabe com precisão o que seja "buscar a
Deus" enquanto não tenha se colocado em marcha para achá-Lo".
Só aqueles que sentiram essa Realidade. não importa o nome
podem falar dela por experiência direta. Os outros são apenas seguidores,
copiadores, repetidores em bilionésima mão do que não sentem. São como as
rãs descritas num poema retirado dos Vedas da índia. Um texto com 5000
anos de idade segundo uns, e de idade imemorial de acordo com outras
tradições. As rãs assim se expressam:
"Partem para os céus os hinos em louvor dos homens
que viveram virtuosamente. Cânticos aos sacerdotes que honraram os
seus votos. Da mesma forma sobem aos céus os cânticos das rãs quando
em cachoeiras as chuvas caem sobre a terra. A música das rãs mistura-
se num concerto com a música das vacas acariciando seus novilhos."
O Zen busca a verdade por trás das formas, a luz por trás das sombras.
Não é uma religião fechada como Merton bem sente. É sim a Verdadeira
Religião que está presente em todos os caminhos que levam o homem ao
encontro consigo mesmo. Essa religião é o retorno simbólico do filho pródigo
ao lar paterno de onde nunca se afastou. É a consciência da inexistência de
qualquer problema na configuração de acontecimentos que nos envolvem. É
o peru preso no círculo de giz ganhando a consciência da dimensão da
liberdade. É a consciência da inexistência dos muros que antes nos isolavam
e que desapareceram por completo. Tudo se resume no desaparecimento do
problema. Analisemos a palavra problema.

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É um conjunto de sons que expressa um estado psicológico descrito em outros
idiomas por sons diversos. O som não nos interessa mas aquilo que representa.
Vivemos obcecados por essa palavra. Analisando-a friamente veremos como
ela existe no nosso cotidiano. Essa verdadeira fixação na existência de
problemas, a consideração de que tudo em si é um problema priva o homem
de sua liberdade inata de Ser. Um problema é uma configuração de
acontecimentos instantâneos. A cada instante a configuração muda pois novos
eventos são incluídos ou sobrepassados. Entretanto, a grande maioria das
pessoas não vê as configurações dentro de um contexto mais amplo no qual
estão harmoniosamente inseridas. Por exemplo, quando observamos uma
coisa do ponto de vista das partículas subatômicas que as compõem ela se
esvanece. Some-se como fumaça. O aspecto concreto da realidade transmuta-
se e resta somente uma "mancha", verdadeira nuvem de acontecimentos em
mutação constante. As "leis" que se aplicam são o princípio da indeterminação
de Heisenberg, a física de Einstein, as matemáticas não-eu-clidianas. Há uma
total modificação do "cotidiano". O mesmo ocorre, os "problemas" são outros,
quando a coisa é observada do nível molecular. À medida que mudamos de
escalas de observação criamos novos problemas e novas leis. Sente-se que o
"problema" cessa de existir quando é visto numa configuração acima da
anterior, então aparece unido numa estrutura maior e cessa de existir.
Compreendendo isso o Zen trata os problemas de uma forma direta. A
própria palavra Buda é um problema para muita gente que se rotula Budista.
Da mesma forma a palavra Cristo para os Cristãos. Ou a palavra Deus para os
teístas. Deixem de lado o rótulo que nos separa, que não diz nada, e
mergulhem na raiz que nos une. Certa vez um discípulo ardoroso perguntou a
seu mestre sobre o Buda e recebeu como resposta:
"Limpa primeiramente a tua boca desta palavra!" É preciso que limpemos
a boca e a mente de puros conceitos, sons sem significação para que possamos
encontrar aquilo que não se encontra nas palavras. Aquilo que tem levado os
homens a se debaterem uns contra os outros em discussões sem sentido.
Thomas Merton possuía raro senso de humor que é uma característica Zen.
Assim descrevia ele o choque entre intelectualismo e verbalismo:
"Pontífices! Pontífices! Somos todos os pontífices fazendo arengas uns para
os outros, agitando nossos báculos uns para os outros, dogmatizando e
ameaçando com anátemas!"

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O Zen é muitas vezes rude na sem-cerimônia com que trata as coisas
"sagradas". Um monge cansado de meditar em silêncio a fim de alcançar o
Buda procura o instrutor Ummon desesperado com seu fracasso. A resposta é
seca: "Ele está no estrume". É única forma para acabar as arengas. Para
muitos, falar desta forma "desrespeitosa" de um homem perfeito que alcançou
a suprema iluminação, de uma flor da raça humana, pode parecer uma
profanação. São entretanto recursos usados para despertar o homem. Para pro-
duzir a visão do que está além da forma verbal, enquanto o homem não se
liberar dessas "prisões" jamais poderá encontrar o que não se encontra quando
se procura. A própria idéia da meta, do alvo, já é um impedimento ao
encontro. A "procura" é um ato de plena humildade, de abertura, de libertação
de tensões acumuladas no consciente e inconsciente. Os conceitos mais
tradicionais têm de ser revistos sob uma luz da compreensão profunda.
Pecado, virtude, moral, castidade, bem, mal são muitas vezes gaiolas que
escravizam o homem. ''
Mestre Taisen Deshimaru escreveu um livro chamado Vrai Zen. Ê um
instrutor que vai direto ao ponto. Conta ele a seguinte história a respeito do
"problema" da castidade:
No tempo do Buda viviam dois monges, modelos de todas as regras.
Dois exemplos de virtude. Cabeças imaculadamente raspadas, mantos
sempre bem cuidados. Cumpriam todas as duzentas e tantas normas
prescritas pela disciplina. Certo dia quando um deles procurava a cidade para
esmolar vê-se diante de uma bela monja e não resiste a atração. 0 desejo
reprimido o inflama. A tranqüilidade da floresta, o calor do dia, o perfume
das flores falavam mais alto do que todas as regras. E o monge cedeu. Pela
força submete a jovem. O outro, que vinha logo atrás, a tudo presencia oculto
pela folhagem e sente-se tomado da mesma paixão. E procede exatamente
como o primeiro. Depois afastam-se juntos, constritos, olhando o chão, como
manda a regra, mas sentindo-se arrasados pela ação cometida. A jovem
desesperada procura a morte no rio. Os monges torturados pelo remorso vão
à presença do virtuoso Upali, encarregado pela Disciplina da Ordem
monástica.

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Fazem a plena confissão dos crimes e são expulsos da comunidade. Seguem
então pelos caminhos da floresta cada vez mais mergulhados em seus
problemas até que diante deles surge Vimalakirti, o discípulo iluminado do
Buda. É todo compaixão e sabedoria. Uma verdadeira estrela irradiando
serenidade por todos os quadrantes. Ouve a trágica notícia e aconselha-os: A
vossa falta é a de ainda pensar no fato passado. Não o façam reviver pensando
nele. Concentrai-vos no Presente e renascei a cada instante! Continuai no
caminho que escolhestes. Concentrai vossos esforços para que possais atingir
a Verdade. Os monges seguiram o conselho e dentro em pouco tornaram-se
seres perfeitos. Se nada tivesse ocorrido, se os "acontecimentos" momentanea-
mente formados não os tivessem levado à ação cometida, continuariam sem
dúvida presos às idéias das regras, da virtude, e permaneceriam adormecidos
no conceito da virtude. Na palavra. Pois a virtude é muitas vezes apenas um
conforto para não agir. O crime, o pecado fizeram com que atingissem pela
dor à Sabedoria. As cadeias de ouro ou de ferro são, em última análise, apenas
cadeias.
Thomas Merton, o autêntico, tinha a plena consciência da relatividade
dos padrões de julgamento. Sentia como ninguém as Aves de Rapina que
estão no título deste livro, e como vivemos nos alimentando da putrefação,
adorando a morte quando a vida eterna é nosso Ser, ocultando sob palavras de
Cristo, Buda, Tao, e tantas outras, o mistério vivo. Desesperava-se com o
pieguismo. É autêntico quando explode na sua revolta contra o formalismo:
"Em certos momentos vemos um raio do Zen no meio da Igreja!
Deveria, na realidade, haver muito mais. Mas nós o frustramos, raciocinando
demasiadamente sobre tudo que há."
Na sua vocação monástica viu no monge um homem desperto ao mundo,
mas ao mesmo tempo preservando o fogo vivo da vida interior. Sentiu o
perigo de uma Igreja voltada apenas para aspectos sociais, políticos,
econômicos. Constituído de monges homens comuns, cotidianos, impelidos
como a massa anônima da humanidade-manada. Também não admitia o
homem que se isolasse numa torre de marfim quando à sua

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volta o sofrimento e o ranger dos dentes cada vez mais se avolumam. Vai
além ao denunciar:
"Temos de ter a humildade para, em primeiro lugar, tomar consciência
de nós mesmos como parte da natureza. Negá-la resulta apenas em loucura e
crueldade. Pode-se, sem dúvida alguma, ser parte da natureza sem ser o
amante de Lady Chatterley". Como é imensamente difícil ser natural no-
vamente! Redescobrir a Verdade, a autenticidade que existe no centro do Ser.
Atingir o puro despojamento, a pobreza, a humildade, que nos permitem a
humanização. É um desaparecimento, um vazio-pleno. Uma vivência.
Um fato extraordinariamente significativo são as últimas palavras
proferidas por Thomas Merton numa conferência feita no encontro de
religiosos de Bangkok. Terminada a enunciação do tema "Monarquismo e
Marxismo" despediu-se dizendo: "And now I will disappcar". E agora
desaparecerei. O resto é conhecido. Calor. Num quarto um homem liga um
ventilador... Um choque? Colapso? Um corpo cai. Acontecimentos. Gotas.
Gotas. Gotas. Uma gota torna-se o Oceano.

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Nota do Autor

ONDE jaz uma carcaça, aves de rapina voam em círculo e descem. A vida
e a morte são duas coisas. Os vivos atacam os mortos; em proveito próprio. Os
mortos nada perdem com isso. Ganham até, desaparecendo. Ou parecem
ganhar, se é que devemos pensar em termos de perda e ganho. Será que
abordamos o estudo do ZEN com idéia de que existe algo a ganhar nisso? Essa
pergunta não pretende ser uma acusação implícita, É, no entanto, uma pergunta
séria. Onde se faz um espetáculo em torno de "espiritualidade", "iluminação",
ou simplesmente de "ligar", isso muitas vezes acontece porque abutres estão
esvoaçando em redor de um cadáver. Esse voltear, esse vôo em círculo, esse
descer, essa celebração de uma vitória não é o que significa o estudo do ZEN
embora possa ser um exercício altamente útil noutros contextos. E
enriquece as aves de rapina.
O Zen a ninguém enriquece. Não há ninguém para ser encontrado. As aves
podem vir e esvoaçar em círculo por algum tempo no lugar onde se pensa
estar o Zen. Mas, bem depressa, deslocam-

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se para outras paragens. Quando já se foram, o "nada", o "ninguém


que ali estava, de repente aparece. Isto é o Zen. Ali estava o tempo todo,
mas os abutres não o viram, pois não era seu tipo de presa.

Jogo de palavras do autor: no-body, isto é nobody,


ninguém. Mas body é corpo e no indica a negativa. (N. do T.)

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Zen
E as Aves de Rapina

Primeira Parte

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O Estudo do Zen

Melhor ver a face do que ouvir o nome.


Sentença Zen

NADA EXISTE" declara Lévi-Strauss, "que possa ser concebido ou


entendido sem a básica exigência de suas estruturas". Ele se refere aos sistemas
primitivos de parentesco e do papel-chave desempenhado pelos tios maternos. E
tenho de admitir logo de início que os tios nada têm a ver com o ZEN. Nem
pretendo provar que têm. A sentença, porém, é universal: "Não há nada que
possa ser compreendido sem as básicas exigências de sua estrutura". Isto le-
vanta uma curiosa questão: eu me pergunto se o Zen poderia de algum modo
ser encaixado nos moldes de uma antropologia estruturalista? E, em caso
positivo, poderia ser "entendido", "compreendido"? Logo de saída, vemos que
a questão pode, provavelmente, ser respondida por um "sim" e por um "não".
Na medida em que o Zen faz parte de um complexo social e religioso, na
medida em que parece estar relacionado com outros elementos de um sistema
cultural "sim". Na medida em que o Zen é Zen-budismo, "sim". Mas, nesse
caso, o que se encaixa no sistema é antes o budismo do que o Zen. Quanto
mais o Zen for considerado budista, tanto mais pode ser apreendido como
expressão do impulso cultural e religioso do homem. Nesse caso, pode o Zen ser
considerado como de tipo especial de estrutura com exigências básicas que são
exigências estruturais e, portanto, abertas à investigação científica e tanto
mais poderá parecer ter um caráter definido a ser apreendido e "entendido".

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Quando estudado desse modo, o Zen é visto no contexto da história da
China e do Japão. É visto como produto do encontro do budismo hindu
especulativo, com o tauísmo prático chinês e até com o confucionismo. É
visto à luz da cultura da dinastia Tang e dos ensinamentos de várias "casas". E
relacionado com outros movimentos culturais. E estudado em sua passagem
para o Japão e integração na civilização japonesa. E assim, grande número de
coisas relativas ao Zen chegam a parecer importantes, até essenciais. O Zendo
ou sala de meditação, o Zazen ou assentar-se. O estudo do koan. A veste. A
posição do lótus. As inclinações reverenciais. As visitas ao Roshi e a técnica
dos Roshis para decidir se já se atingiu ou não o Kensho ou Satori c para
ajudar alguém a atingi-lo.
Considerado sob essa luz, pode, então, o Zen ser posto em comparação
com outras estruturas religiosas por exemplo, a do catolicismo, com seus
sacramentos, sua liturgia, sua oração mental (agora não mais praticada por
muitos), suas devoções, leis, teologia e sua Bíblia. E ainda, suas catedrais e
conventos; seu sacerdócio e sua organização hierárquica; seus Concílios e
suas Encíclicas.
Pode-se examinar ambos e concluir que possuem algumas coisas em
comum. Ambos utilizam certas características religiosas. São "religiões" Uma
é asiática, a outra é ocidental e judeu-cristã. Uma delas oferece ao homem
uma iluminação metafísica, a outra uma salvação de base teológica. Ambas
podem ser olhadas como excentricidades, agradáveis sobrevivências do
passado que já não mais existe mas que, mesmo assim, podemos apreciar,
como se podem apreciar as peças teatrais de Noh, as esculturas de Chartres ou
a música de Monteverdi. Podem-se ainda apurar as investigações e imaginar
(bastante erradamente) que, por ser o Zen simples e austero, muito tem em
comum com o monaquismo cisterciense que também o é ou o foi. E
verdade que ambos demonstram o gosto pela simplicidade, e é possível que os
construtores das igrejas cistercienses borgonhesas e provençais do século XII
estivessem iluminados por uma espécie de visão instintiva do Zen, em seu
trabalho que possui realmente a luminosa pobreza e solidão, chamada Wabi
pelo Zen.
Contudo, estudadas como estruturas e sistemas, e como religiões, o Zen
e o catolicismo não se interpenetram, como também não se misturam o azeite
e a água. Pode-se supor que, tanto de um lado como do outro, desde o Zendo,
da Universidade, do Mosteiro ou da Cúria, as pessoas cheguem a se encontrar
para uma discussão polida e informativa.

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17
Todavia, suas diferenças permaneceriam invioladas. Retornariam às suas
diversas estruturas e se instalariam novamente em seus sistemas próprios,
havendo conseguido apenas o conhecimento suficiente para se reconhecerem
inteiramente alheios um ao outro. Tudo isso é verdade enquanto o Zen for
considerado como Zen budismo, como escola ou seita budista, como fazendo
parte do sistema religioso denominado "a religião budista".
Quando, porém, olhamos um pouco mais de perto, encontramos adeptos
muito sérios e responsáveis do Zen, negando, antes de mais nada, ser ele
"religião"; negando, em seguida, tratar-se de escola ou seita e, finalmente,
negando estar o Zen confinado ao budismo e suas "estruturas". Um dos
grandes Mestres do Zen, por exemplo, Dogen, fundador do Zen Soto, disse
categoricamente: "Quem considerasse o Zen como escola ou seita do budismo
e o denominasse Zen-shu, escola-zen, seria um demônio".
Definir o Zen em termos de estrutura ou de sistema religioso é, na
realidade, destruí-lo ou melhor, desentendê-lo completamente. Pois o que
não pode ser "construído" não pode tampouco ser destruído. O Zen não é algo
que possa ser apreendido quando colocado dentro de determinados limites ou
ao receber características bem definidas, ou ainda, marcas facilmente
reconhecíveis, de maneira que, ao vermos essas formas distintas e particulares,
exclamamos: "Ali está!" O Zen não é compreendido por ser posto à parte em
sua categoria própria, separado de tudo mais: "É isto e não aquilo". Pelo
contrário. Nas palavras de D. T. Suzuki, o Zen, ultrapassando "o mundo dos
opostos, um mundo construído pela distinção intelectual... é mundo espiritual
de não-distinção que supõe atingir um ponto de vista absoluto". Entretanto,
também isso poderia tornar-se uma armadilha se "distinguimos" o Absoluto do
não-absoluto de maneira ocidental platônica. Assim, Suzuki acrescenta
imediatamente: "o Absoluto de modo algum está distinto do mundo de
discriminação. O Absoluto está no mundo dos opostos e não dele apartado *
Vemos, por aí, que o Zen está fora de quaisquer estruturas e formas distintas,
e que a elas não se opõe nem deixa de opor-se. Não as nega nem afirma; não
as ama, nem odeia; não as deseja, nem rejeita. O Zen é conscientização não
estruturada por forma ou sistema particular.

* D. T. Suzuki. The Essence of Buddhism, Londres. 1946, p. 9.

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18
É conscientização transcultural, transreligiosa, transformada. É, portanto, um
senso do "vácuo". Pode, entretanto, cintilar através deste ou daquele sistema,
religioso ou irreligioso, assim como pode a luz brilhar através de um vidro
azul, verde, vermelho ou amarelo. Se o Zen tem alguma preferência, é pelo
vidro simples, sem cor, e que é "apenas vidro".
Em outras palavras, considerar o Zen meramente e exclusivamente Zen-
budismo é falsificá-lo e, sem dúvida, revelar que não se tem dele a menor
compreensão. Contudo, isto não significa que não possa haver "zen-budistas".
Mas estes certamente entenderão (precisamente porque são adeptos do zen) a
diferença entre o Zen e o budismo que praticam. Isso, mesmo enquanto
admitem que, para eles, o seu Zen é, de fato, a mais pura expressão do
budismo. A razão disso, porém, é que o próprio budismo (mais do que
qualquer "sistema religioso") está dirigido para além de qualquer "ismo"
teológico ou filosófico. O Zen pode não ser um sistema (enquanto, ao mesmo
tempo, como outras religiões, apresenta uma tentação peculiar aos
sistematizadores). O verdadeiro impulso do budismo está dirigido para uma
iluminação que é precisamente um desabrochar naquilo que está além do
sistema, ultrapassando as estruturas culturais e sociais, os ritos e as crenças
religiosas. (Isso, mesmo onde aceita muitas espécies de superestruturas
sistemáticas, religiosas e culturais: tibetano, birmanês, japonês etc.)
Ora, se refletirmos um instante, teremos consciência de que no cristianismo
também, assim como no islamismo, temos várias pessoas reconhecidamente
fora do comum que vêem além do aspecto "religioso" de sua fé. Karl Barth,
por exemplo na tradição do protestantismo protestou contra
denominarem o cristianismo de religião. Negou com veemência que a fé
cristã pudesse ser compreendida enquanto considerada como encaixada em
estruturas sociais e culturais. Essas estruturas, segundo ele, nada tinham a ver
com o Cristianismo, e eram, inclusive, uma deturpação do mesmo. Também
no Islã, os sufis buscavam o Fana, a extinção do ser social e cultural,
determinado pelas formas estruturais dos costumes religiosos. Essa extinção é
uma aproximação no rumo da liberdade mística, em que o ser se perde e se
reconstitui no Baqa algo semelhante ao Novo Homem do Cristianismo,
segundo os seus místicos (inclusive os Apóstolos). Dizia Paulo: Eu vivo,
mas neste momento não sou eu, e sim o Cristo que vive em mim.

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Segundo os ensinamentos do Zen, a descoberta da face original antes do
nascimento é a descoberta não de que se vê Buda, mas que se ê Buda. Este não
é como as imagens dos templos sugerem: pois já não existem imagens, e,
portanto, nada se vê, ninguém vê, e existe um Vácuo em que as imagens não são
concebíveis. A verdadeira visão disse Shen Hui ocorre quando não
há visão.
Isto significa, portanto, que o Zen não comporta qualquer estrutura ou
forma. Podemos lançar mão de determinados aspectos externos do monasticismo
Zen-budista, juntamente com as pinturas, poemas, citações profundas apesar
de concisas dos artistas ligados ao Zen, que nos auxiliam na compreensão da
doutrina. A qualidade característica da arte chinesa e japonesa influenciada pelo
Zen consiste na possibilidade de sugerir aquilo que não pode ser dito e, através
da utilização de uma forma simples e reduzida, nos alerte para a ausência de
forma. A pintura Zen nos diz apenas o suficiente para nos chamar a atenção ao
que não se vê, mas que, ao mesmo tempo, está presente. A caligrafia Zen,
através de sua flexibilidade, dinamismo, abandono, desprezo pela beleza e
estilo formal, revela a liberdade que não é transcendente em determinados
sentidos abstratos e intelectuais, mas que emprega um mínimo de forma, sem
se ligar a ela, sendo, portanto, livre. A consciência do Zen é comparável a um
espelho. Assim escreveu um moderno escritor Zen:

"O espelho é totalmente despersonalizado e desprovido de razão. Se


surge diante dele uma flor, ele a reflete; se é um pássaro, ele também o
reflete. O belo diante dele é belo, o feio nos aparece como feio. Tudo ele
revela como de fato o é. Não possui poder de discriminação, nem
consciência própria. Se alguma coisa se aproxima, ele a reflete; quando
se afasta, ele se limita a deixar que o objeto se afaste... sem que fique um
só vestígio. Essa total indiferença, essa ausência mental, ou a livre
existência do espelho, pode ser aqui comparada à pura e lúcida sabedoria
de Buda"*.

* Zenkei Schibayma, On Zazen Wasan, Kyoto, 1967, p. 28.

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20
O texto acima significa que a consciência do Zen não distingue nem
caracteriza em categorias o que vê, em termos de padrões sociais e culturais.
Não procura encaixar as coisas em estruturas preconcebidas de um modo
artificial. Não julga o que é belo ou feio, segundo as normas do gosto pessoal
embora possua o seu próprio gosto. Se parece julgar e distinguir, é apenas
na medida em que isso é necessário para orientar sobre a maneira de
ultrapassar o julgamento, atingindo o puro vácuo. Não determina seu
julgamento como sendo final. Não constrói seu julgamento, fazendo-o uma
estrutura a ser defendida contra todos os que se aproximam.
Agora podemos refletir no sentido profundo das palavras de Jesus: "Não
julgueis e não sereis julgados". Além das implicações morais conhecidas de
todos, existe uma dimensão do Zen na sentença do Evangelho. Somente
quando essa dimensão for apreendida, poderá o sentido moral tornar-se
perfeitamente claro!
Quanto à noção de "Mente do Buda" não é algo esotérico a ser
laboriosamente adquirido, algo que "não está ali", que tem de ser colocado ali
(onde?) pela assídua martelação, mental e física, de roshis, koans e tudo o
mais. "O Buda é sua atitude mental diária".
O problema é que, enquanto se tem o hábito de distinguir, julgar,
categorizar e classificar ou mesmo contemplar está-se sobrepondo algo
à pureza do espelho. Estamos filtrando a luz através de um sistema como se
estivéssemos convencidos de que isso tornaria mais clara a luz.
As estruturas e formas culturais ali estão, não há dúvida. Não há possibilidade
de alguém dispensá-las ou tratá-las como se não existissem. Porém, chega
afinal o tempo de ver, como Moisés, que a sarça das formas culturais e
religiosas, de repente, pegou fogo, e somos convidados a nos aproximar sem
sapatos provavelmente, também, sem pés. Será o fogo outra coisa que não
a sarça? Mais do que a sarça? Ou será mais a sarça do que a própria sarça? A
sarça ardente, de que fala o livro do Êxodo, lembra-nos de maneira estranha a
Sutra prajnaparamiía: "A forma é vazio, o vazio é, ele mesmo, forma: a
forma não difere do vazio (o vácuo), o vazio não difere da forma; tudo o que é
forma é vazio, tudo o que é vazio é forma..." Assim também as palavras
vindas da sarça ardente: "Sou o que sou". Essas palavras ultrapassam a
oposição e a negação. Na realidade, não se sabe exatamente o que significam
em hebraico. Os estudiosos fazem suas suposições de acordo com a
mentalidade da época; ora essencialista ("Puro-Ser auto-subsistente em-ato"),
ora existencialista ("Não-lhe-direi-portanto-cuide-de-sua-própria-vida-que-não-
consiste-em-saber-mas-sim-em-fazer-o-que-fizeres-a-próxima-vez-que-eu-estiver-
por-aí" ) .

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Em outras palavras, começamos a adivinhar que o Zen se acha não só para
além das formulações do budismo, mas está igualmente, de certo modo, "além"
da (e é mesmo apontado pela) mensagem do Cristianismo. Quer isso dizer
que, quando chegamos a romper os limites da religião ou da irreligião
cultural e estruturada, há probabilidade de acabarmos num "renascimento no
Espírito", ou apenas numa conscientização intelectual, num simples vácuo, onde
tudo é liberdade porque tudo é ação inativa, que os chineses denominam Wu-wei
e o Novo Testamento "a liberdade dos filhos de Deus". Não que sejam
teologicamente a mesma coisa. Têm, contudo, a mesma espécie de dimensão
ilimitada, a mesma ausência de inibição, a mesma plenitude psíquica de
criatividade que marcam a plena e integrada maturidade do "eu iluminado". A
"mente do Cristo", como é descrita por São Paulo aos filipenses, capítulo 2,
pode, do ponto de vista teológico, estar imensamente distante da "mente do
Buda" o que não estou preparado para discutir. Mas o total "auto-esva-
ziamento" do Cristo e o auto-esvaziamento que faz o discípulo ser um com
ele em Sua quênose ("Kenosis") pode ser compreendido, e o tem sido, num
sentido muito semelhante ao Zen no que se relaciona com a psicologia e
experiência.
Assim, com a devida e total deferência para com as vastas diferenças
existentes entre budismo e cristianismo, e preservando intacto todo o respeito
pelas reivindicações das diferentes religiões e de modo algum confundindo
a "visão mística de Deus", do cristianismo, com a "iluminação" budista,
podemos, entretanto, dizer que ambas possuem em comum essa "ilimitação"
psíquica. E tendem, ambas, a descrevê-la numa linguagem quase igual. Ora é
"vazio", ora "noite escura", ora "perfeita liberdade", ora "não operação da
mente", ora "pobreza" no sentido empregado por Eckhart e pelo Dr. D. T.
Suzuki mais adiante neste livro (ver pág. 103) .
A esta altura aproveito a oportunidade para dizer claramente que, em meu
diálogo com o Dr. Suzuki, a minha escolha da "pureza de coração" de Cassiano,
como sendo a expressão cristã da "conscientização" (no original, "consciousness")
foi um exemplo infeliz. Sem dúvida, há em Cassiano, em Evagrio do Ponto e em
outros contemplativos do deserto egípcio, certos trechos que sugerem alguma
tendência ao "esvaziamento" como é visto pelo Zen. Contudo, a idéia de
Cassiano em relação à pureza de coração, com suas implicações platônicas,
enquanto pode ser ou não mística, não é o Zen, pois ainda estabelece que a
suprema conscientização reside num coração distinguível que é puro e que
está, portanto, pronto e mesmo digno de receber a visão de Deus.

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Ora, este "esvaziamento" estaria ainda muito apto a ter a percepção de
uma autoconscientização* "pura", distinta e separada. Temos, porém, uma
expressão mais plena e verdadeira do Zen na experiência cristã em Mestre
Eckhart. Eckhart admite que: "para ser uma conveniente morada de Deus e
apto a corresponder à atuação de Deus em nós, deve o homem ser também
livre em todas as suas ações, tanto interiores como exteriores". Aqui temos,
pois, a "pureza de coração" de Cassiano. Corresponde igualmente à idéia da
"virgindade espiritual" em alguns místicos cristãos. Eckhart, entretanto,
continua afirmando haver muito mais: "Deveria o homem ser tão pobre que
não possuísse nem mesmo um lugar onde Deus pudesse atuar. Reservar um
lugar seria manter distinções". O homem deveria ser de tal modo
desinteressado e desobstaculado, que nem soubesse o que Deus nele opera.

Pois, prossegue Eckhart:

"Se por acaso alguém estiver esvaziado de todas as coisas:


criaturas, ele próprio e deus, e se deus pudesse ainda encontrar um
lugar nele para agir essa pessoa não é pobre da mais íntima pobreza.
Porque Deus não pretende que o homem tenha um lugar reservado onde
Ele possa operar, uma vez que a verdadeira pobreza requer que o
homem esteja despojado de Deus e de todas as suas obras, de maneira
que, se aprouver a Deus operar na alma, Ele próprio deve ser o lugar no
qual Ele opera". . . (Deus então toma a responsabilidade) por sua
própria ação e (é) Ele próprio o cenário da ação, pois Deus age dentro
de si próprio"**.

* No original «self-consciousness». (N. do T.)


** R. B. Blakney, Meister Eckhart, n Modern Translation, Sermão «Ben aventurados
os pobres», New York, 1941, p. 231.

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Por causa dos problemas especiais que este difícil trecho apresenta à
ortodoxia cristã, o editor da versão inglesa (Blakney) imprimiu a palavra Deus
(God), ora com g minúsculo ora com G maiúsculo. É talvez um escrúpulo
desnecessário. Seja como for, esse trecho reflete a dimensão que, em Eckhart,
se assemelha ao Zen, ao considerar Deus como abismo infinito e alicerce, com
o verdadeiro ser do eu alicerçado nEle (cf. Sunyata). Daí vem o fato de Eckhart
pensar que: somente quando não resta mais nenhum vestígio do eu como
"lugar" no qual Deus age, somente quando Deus age puramente em si mesmo,
nós, enfim, recobramos nosso "verdadeiro eu" (que nos termos do Zen é "não-
eu, não-ser").
"É aí, nessa pobreza, que o homem reencontra o ser eterno que ele uma
vez foi, agora é e, para sempre, será". £ fácil ver porque aqueles que
interpretavam essa passagem em termos de sistema teológico da época (em lugar
de interpretar em termos da experiência semelhante à do Zen, que era o que
pretendia expressar) acharam-na inaceitável.
Entretanto, a mesma idéia expressa em palavras ligeiramente diferentes por
Eckhart presta-se a uma interpretação perfeitamente ortodoxa. Eckhart fala de
"perfeita pobreza" na qual o homem se acha mesmo "sem Deus" e "não possui
em si nem mesmo um lugar onde Deus possa operar" (isto é, ultrapassando a
pureza do coração).
"A renúncia em grau mais elevado ocorre quando, por amor a Deus, o
homem se despede de deus. São Paulo separou-se de deus, por amor de
Deus e deixou tudo o que poderia ter recebido de deus, assim como tudo o
que poderia dar juntamente com qualquer idéia sobre deus, e Deus
permaneceu nele como Deus em sua própria natureza não como é
concebido por alguém ou "representado" nem tampouco como algo a
ser ainda atingido, mas antes como um "ser de fato"* como Deus é
realmente. Então, o homem e Deus se tornam um todo que é pura
unidade. Assim, o homem se transforma na pessoa real para quem não pode
haver nenhum sofrimento, como de modo algum o pode haver na essência
divina"**.

* No original: «an is-ncss». (N. do T.) *» Blakney. Meister


Eckhart, pp. 204-5.

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Numa pobreza tão perfeita, diz Eckhart, ainda se pode ter idéias e
experiências. Contudo, já se está livre de sua dependência.

"Não as considero como sendo minhas de modo a guardá-las ou


deixá-las, tanto no passado como no futuro... Estou livre e vazio em
relação a elas agora, neste momento mesmo.. ."*

Para além do pensar, refletir, querer e amar do eu, e mesmo para além da
"centelha" mística na mais profunda base do ser, encontra-se o mais elevado
agente, "ao mesmo tempo puro e livre como Deus o é e, como Ele, perfeita
unidade." Pois "existe algo na alma tão estreitamente próximo de Deus que já
é uno com Ele, não precisando jamais unir-se a Ele". Eckhart continua
desenvolvendo esta idéia da união dinâmica, numa maravilhosa imagem niti-
damente ocidental e, no entanto, possuindo uma qualidade profundamente
próxima do Zen. Essa semelhança divina em nós, que é o cerne do nosso ser, e
está "em Deus" ainda mais do que "em nós", é o foco da inexaurível alegria
criadora de Deus.

"Nessa semelhança ou identidade, Deus encontra tanta alegria, que


nela derrama toda a sua natureza e todo o seu ser. Seu prazer é tão
grande quanto (para tomarmos um exemplo analógico) o de um cavalo
solto, num prado verdejante onde o solo é plano e macio, para galopar à
vontade, como gosta de fazer um cavalo, a toda velocidade sobre a relva
pois este é o prazer de um cavalo, conforme à sua natureza. Assim é
com Deus, é prazer seu e enlevo, descobrir uma identidade porque pode,
sempre, nela se abismar colocando nela toda a sua identidade pois ele
mesmo é essa identidade"**.

Do ponto de vista da lógica, essa exposição poética simplesmente não tem


sentido; no entanto, como expressão da inexprimível intuição ou visão interior
do próprio cerne da vida, é algo de incomparável. Mostra, aliás, como Eckhart
compreendia a doutrina cristã da criação. Ele admite a separação da criatura e
do Criador, pois esse algo está separado e é estranho a toda criação. Contudo,
a distinção entre Criador e criatura não altera o fato de que existe também uma
unidade básica dentro de nós, no ápice de nosso ser onde somos "um com
Deus".

* Blakney. op. cit, p. 207. ** Blakney, Meister Eckhart,


p. 205.

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25
Se pudéssemos nos identificar pura e simplesmente com esse ápice,
seríamos outros, diversos daquilo que experimentamos ser, bem mais
autenticamente nós mesmos, do que de fato somos. Assim, diz Eckhart: "Se
fôssemos inteiramente esse "Algo" ou "unidade", seríamos ao mesmo tempo
incriados e em nada semelhantes a qualquer criatura... Se eu me encontrasse
nessa essência, mesmo por um momento, consideraria meu ser terreno sem
maior importância do que um verme de esterco"*. Devemos, todavia, imedia-
tamente acrescentar que é somente nessa mais elevada união que descobrimos
finalmente a dignidade e importância de nosso "ser terreno". A tragédia está em
que nossa consciência se acha inteiramente alienada deste mais profundo
alicerce** de nossa identidade. E, na tradição mística cristã, essa dicotomia
interna e alienação é o que dá o verdadeiro sentido do "pecado original".
Tudo isso está muito próximo das expressões que, por toda parte,
encontramos nos Mestres do Zen. Mas a intenção é que tudo seja também
puramente cristão, pois, como diz Eckhart, é precisamente nessa tão pura
pobreza, quando não somos mais um "eu", que reencontramos nossa verdadeira
identidade em Deus. Essa identidade verdadeira é o "nascimento do Cristo em
nós". Interessante, pois, notar que, para Eckhart, é justamente quando perdemos
nossa identidade especial, cultural e religiosa, separada o "eu" ou a
"persona", que é o sujeito das virtudes como das visões, que se aperfeiçoa pelas
boas obras, progride no exercício da piedade é que Cristo, finalmente, no
mais elevado sentido, nasce em nós. (Eckhart não nega a doutrina sacramentai
do nascimento de Cristo" em nós pelo batismo, mas está interessado em algo
mais plenamente desenvolvido).

* Blakney, op. cit., p. 205. ** No original «ground». solo. chão. (N. do T.)

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26
Evidentemente, esses ensinamentos de Eckhart foram considerados muito
perturbadores. Seu gosto pelo paradoxo, o emprego deliberado de expressões
que enfureciam suscetibilidades religiosas convencionais, de modo a despertar
seus ouvintes para uma nova dimensão de experiência, deixaram-no exposto
aos ataques de seus inimigos. Algumas de suas teses foram oficialmente
condenadas pela Igreja e muitas dessas teses estão sendo reinterpretadas
hoje em dia pelos estudiosos, num sentido plenamente ortodoxo. Não é isso,
no entanto, o que ora nos interessa. Eckhart pode ser melhor compreendido e
apreciado naquilo que nele há de melhor: e isso não é algo que possa ser
descoberto dentro das estruturas de um sistema teológico, mas sim fora dele.
Em tudo que tentou dizer, seja em linguagem familiar, seja empregando
termos surpreendentes, Eckhart estava se esforçando por dirigir a atenção para
algo que não pode ser estruturado, nem contido dentro dos limites de nenhum
sistema. Não estava tentando construir uma nova teologia dogmática.
Esforçava-se por dar expressão à grande renovação criadora da consciência
mística que, em seu tempo, borbulhava na Renânia e nos Países Baixos.
Se os escritos de Eckhart forem estudados dentro dos moldes de uma
estrutura religiosa e cultural, indubitavelmente ficaremos intrigados; entretanto,
devemos tomar cuidado para não deixar escapar o sentido do que Eckhart está
transmitindo, perdendo-se em questões laterais. Considerado em relação aos
Mestres do Zen, do outro lado do planeta, que, como ele, empregavam
deliberadamente expressões extremamente paradoxais, podemos detectar no
Mestre renano a mesma espécie de conscientização que eles apresentam. Seja
o que for o Zen, seja como for definido, está, de qualquer modo, em Eckhart.
Mas a maneira de vê-lo não consiste em primeiro definir o Zen e depois
aplicar a definição tanto a Eckhart como aos Mestres japoneses do Zen. O
verdadeiro modo de estudar o Zen é penetrar pela casca (exterior) e provar o
cerne (interior) que não pode ser definido. Temos, então, consciência em nós
da realidade de que se está falando. Diz Eckhart:

"É preciso quebrar a casca se quisermos extrair o que contém. Pois se


você quer o cerne, é preciso romper o invólucro. Assim, se você quer
descobrir a nudez da natureza, é necessário destruir seus símbolos e
quanto mais você penetrar "dentro", tanto mais próximo estará da
essência: Quando chegar ao Uno, que reúne e concentra em si todas as
coisas, aí você deve permanecer"*.

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27
O Mondo Zen resume com perfeição tudo isso:

Disse um Mestre do Zen a seu discípulo: "Vá buscar meu leque feito
de chifre de rinoceronte".
O discípulo: "Desculpe-me, Mestre, está quebrado".
O Mestre: "Muito bem, traga-me, então, o rinoceronte"**.

* Blackney, Meister Eckhart, op. cit., p. 148.


** Este ensaio foi publicado pela primeira vez na Cimarron Review
(Universidade de Oklahoma) Junho de 1968. (N. do T.)

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A Nova Conscientização *

GOSTARÍAMOS de abrir essa discussão com uma declaração simples e


tranqüilizadora, dizendo sem ambigüidade nem hesitação: a renovação cristã
nos diz que os cristãos estão agora de portas escancaradas para as religiões
asiáticas, prontos, nas palavras do Vaticano II, a "reconhecer, preservar e
promover os bens espirituais e morais" que nelas se encontram. A coisa não é
assim "são simples.
Sob alguns aspectos, nunca estiveram os cristãos menos dispostos a essa
abertura.
É verdade que aprovam todas as formas de comunicação, em princípio, e de
diálogo inter-religioso. Mas o novo cristianismo secular "pós-cristão", que é
ativista, antimístico, social e revolucionário, tem tendência a aceitar como
evidentes muitas das afirmações marxistas em relação à religião como ópio
do povo. De fato, esses movimentos aspiram a uma espécie de
"arrependimento" cristão sobre este ponto e procuram com o maior fervor
provar que não há nenhum ópio em nós\ Porém, pouco ou nada conhecendo
das religiões asiáticas e associando a Ásia, de qualquer forma, ao ópio (Es-
quecendo-se convenientemente de que foi o Ocidente que forçou a entrada do
ópio na China por meio de uma guerra!), sentem-se ainda satisfeitos com os
velhos clichês sobre "o budismo que renuncia à vida", "a egoística
contemplação do umbigo" e o Nirvana como uma espécie de transe obtido por
meio de drogas.

* Trechos do Ensaio inicialmente intitulado: «O eu do homem moderno e a. nova consciência


cristã», publicado pela Newsletter Review da R. M. Bucke Memorial Society (Montreal) vol.
II, n' 1, abril 1967 (Copyright).

44

29
A finalidade deste livro não é fazer apologia. Mas, se o fosse, sentir-me-ia
obrigado a argumentar em favor do budismo contra esses preconceitos
absurdos e intocados. Gostaria de sugerir, por exemplo, que uma religião que
proíbe a supressão de qualquer vida, a não ser que haja absoluta necessidade,
não pode ser considerada como "negação da vida" (Ver Apêndice p. 88). E de
acrescentar estranheza ante o fato dessa acusação vir da parte de pessoas que
algumas, certamente invocando o nome do Cristo, estão depredando um
pequeno país asiático pelo emprego de napalm e dinamite, e fazendo todo o
possível para reduzir áreas inteiras a regiões sem vida. Repito, contudo, que
este livro não é apologético.
É claro que há numerosos cristãos muito conscientes de que existe algo a
ser aprendido no hinduísmo, no budismo, no confucionismo e especialmente
no ioga e no Zen. Entre esses, há o grupo de jesuítas ocidentais, no Japão, que
teve a coragem de praticar o Zen em Mosteiros do Zen. Temos também os
cistercienses japoneses que se estão interessando, em seus próprios mosteiros,
pelo Zen. Existem ainda monges beneditinos na Europa e nos Estados Unidos
que demonstram um interesse não apenas acadêmico pelas religiões asiáticas.
Entretanto, há problemas. Tanto os cristãos progressistas como os
conservadores têm tendência a suspeitar das religiões da Ásia. Isto por várias
razões. Os conservadores, porque pensam que todo pensamento asiático é
panteísta e, portanto, incompatível com a fé cristã num Deus criador. Os
progressistas, por pensarem que toda religião asiática é pura e simplesmente
negação do mundo, evasão por meio de transes, repúdio sistemático da matéria,
do corpo, dos sentidos e assim por diante. O resultado disso é a passividade, o
quietismo, a estagnação. Esse estado de coisas faz parte do mito generalizado no
Ocidente em relação ao Oriente misterioso que, assim pensam, há muito
sucumbiu tranqüilamente à morte psíquica, sem esperança alguma de salvação
a não ser por parte do Ocidente dinâmico, criador, progressista, com atitude de
afirmação face à vida.

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30
Ora, é verdade que as civilizações da Índia e da China e também de
outras partes da Ásia não conseguiram suportar o colonialismo ocidental
sem recorrer a alguns dos métodos do Ocidente. E é verdade que o mundo
inteiro está em plena revolução cultural e social, sendo o centro mais ativo a
Ásia.
Finalmente, a revolução cultural chinesa é, em si, um dos mais radicais e
violentos repúdios da antiga herança espiritual da Ásia. Todos esses fatos bem
conhecidos dão ainda mais peso às idéias que prevalecem no Ocidente em
relação ao "misticismo asiático" que seria, quando muito, uma espécie de
suicídio moral e intelectual sistemático.
A moda um tanto desconcertante, em voga no Ocidente, de explorar a
experiência religiosa asiática não convence os cristãos progressistas de que há
grandes riquezas nisso. Os beats, os hippies e outros tipos no gênero, podem
conseguir certo respeito, concedido de má vontade por alguns cristãos, como
sendo seitas quase escatológicas mas o pendor místico deles não é o que o
cristão progressista neles admira. A influência de Barth e a Nova Ortodoxia
(no protestantismo), juntamente com a generalizada renovação bíblica é,
provavelmente, de grande importância nesta linha antimística.
Ao mesmo tempo, não é fácil generalizar. Um teólogo da "Morte-de-
Deus", como Altizer, está não só bem informado sobre o budismo, mas parece
mesmo ter certa atração por ele.
Portanto, nada de bem definido pode ser dito sobre a atitude dos nossos
pensadores cristãos em relação ao hinduísmo, o budismo ou o Zen sendo
que este último é considerado, talvez, uma forma "extrema" da negação
asiática face ao mundo. A atitude generalizada de suspeita e negação está
baseada na ignorância.
Este ensaio estará menos preocupado com o Zen do que com a própria
conscientização cristã e com o novo desenvolvimento que faz com que o
cristianismo de hoje seja francamente ativista, secular e antimístico. Será essa
nova conscientização realmente uma volta ao espírito cristão primitivo? Em que
difere da conscientização que permaneceu mais ou menos imutável de
Agostinho a Maritain, no catolicismo ocidental?
Supunha-se até bem recentemente que a experiência dos primeiros cristãos
ainda era possível de ser atingida por cristãos fervo rosos de nossa época, em
toda a sua pureza, contanto que cenas condições fossem fielmente preenchidas. A
conscientização do cristão moderno era, pensava-se, essencialmente a mesma do
cristão da época apostólica. Se havia alguma diferença, ocorria apenas em coisas
acidentais relativas à cultura, devido à expansão da Igreja no tempo e no
espaço.

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31
A pesquisa contemporânea questionou rigorosamente a suposição.
Levantou o problema de certa descontinuidade radical entre a experiência dos
primeiros cristãos e a de gerações ulteriores. A experiência dos primeiros cristãos
era a de pessoas "dos fins dos tempos", criadas novamente em Cristo como
membros de seu novo reino, na expectativa de sua volta iminente. Eram homens
inteiramente libertos do "antigo aeon" e todas as suas preocupações.
Experimentavam nova vida, de libertação "no Espírito", e a perfeita liberdade
de pessoas que tudo recebiam de Deus, como puro dom, em Cristo, sem
qualquer responsabilidade face a "este mundo", senão a de anunciar a boa
nova da iminente "restauração de tudo em Cristo". Em uma palavra, estavam
preparados para ingressar no reino e na nova criação, já durante a vida terrena.
"Venha a graça", exclama a Didascáüa, "e que passe este mundo!"
Evidentemente, tais elementos permaneceram presentes na teologia cristã.
Mas o desenvolvimento de nova dimensão histórica da Cristandade modificou
radicalmente a perspectiva e, conseqüentemente, também a experiência na qual
essas verdades da fé eram apreendidas pelos cristãos como indivíduos e como
comunidade. Com a ajuda de conceitos da filosofia helênica, as idéias
escatológicas receberam dimensão metafísica. Verdades da fé cristã eram,
então, experiência "estática" e não "dinâmica". E, ainda mais, por serem
intuição metafísica tornaram-se experiências místicas.
Quando se descobriu que a Parusia (a vinda do Cristo) fora adiada para o
futuro, então o martírio foi considerado como o caminho para a entrada no
reino de Cristo, aqui e agora. A experiência do martírio era, de fato, para
muitos mártires, também uma experiência mística de união com Cristo em Sua
crucificação e ressurreição. (Veja-se, por exemplo, Santo Inácio de Antióquia).
Depois da idade dos mártires, os ascetas e os monges procuraram a união com
Deus em vida de solidão e auto-renúncia. Procuravam justificar tal tipo de
vida. também filosófica e teologicamente, recorrendo às idéias helênicas e
orientais. Assim, argumenta-se, o sentido existencial do encontro cristão com
Deus, em Cristo e na Igreja, como aconteci mento* (marcado pela liberdade
divina e puro dom), tornou-se cada vez mais experiência estabilizada em ser:
a conscientização cristã não estava centrada num acontecimento, mas na
aquisição de um novo status ontológico e uma "nova natureza". A graça veio
a ser experimentada não como ato de Deus, mas como participação na
natureza de Deus pela "filiação divina" e consumada em "divinização".

47

32
Assim, chegou-se a desenvolver a idéia das núpcias místicas com Cristo
ou, em termos de misticismo ontológico {Wesensmystik), da absorção na
divindade através da Palavra, pela ação do Espírito.
Não há aqui espaço para desenvolver essa análise crítico-his-tórica ou
avaliá-la. O que importa é a questão por ela levantada: de mudança de posição
radical na conscientização cristã e, conseqüentemente, na experiência do cristão
sobre si mesmo em relação ao Cristo e à Igreja. Essa questão está sendo
discutida sob vários pontos de vista nos círculos católicos, desde o Vaticano
II. Está implícita nos novos caminhos explorados em relação à natureza da fé,
nos novos estudos de eclesiologia e de cristologia, na nova liturgia e por toda
parte. Os católicos conservadores consideram perturbador o questionamento
das categorias aceitas. Os progressistas tendem a reagir vigorosamente contra
uma tomada de consciência metafísica, ou mesmo mística, como sendo "não-
cristã".
A estabilidade metafísica da ótica antiga que, durante séculos, tornou-se
tradicional, era algo de confortador e seguro. Além do mais, era inseparável
do conceito estável e autoritário da estrutura hierárquica da Igreja. A volta ao
cristianismo mais dinâmico e carismático proclamado como sendo o dos
primeiros cristãos caracterizou o ataque dos protestantes às antigas
estruturas que se baseavam numa visão estática e metafísica. Católicos de
índole mais radical compreendem o fato hoje em dia e empregam talvez, com
prazer, certa terminologia fluida, imprecisa, calculada para produzir o máximo
de ansiedade e confusão em mentalidades menos afeitas ao espírito de
aventura.
Esse dinamismo questiona tudo o que é estático e aceito e ocasionalmente
serve de material jornalístico interessante; no entanto, nem sempre os
resultados devem ser tomados muito a sério.

* Happening. (N. do T.)

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33
Seja como for, toda a questão do misticismo, especialmente o misticismo
católico, é afetada por essa posição. Se o misticismo é sumariamente identificado
com a experiência cristã "helênica" ou "medieval", é, cada vez mais, rejeitado
como sendo não cristão. O novo catolicismo radical tende a fazer a definição.
E, assim, o cristão é convidado a repudiar toda aspiração à união pessoal,
contemplativa, com Deus, à experiência mística profunda, pois isso é
considerado infidelidade à verdadeira revelação cristã. Vêem nisso substituição
à palavra salvadora de Deus, evasão paga, fuga individualista em relação à co-
munidade. Sob este ponto de vista, o diálogo cristão com as religiões
orientais, com o hinduísmo e, especialmente, com o Zen, é considerado um
tanto suspeito, embora, uma vez que o diálogo é algo "progressista", não deva
ser atacado abertamente.
Talvez seja, no entanto, pertinente fazer notar, neste passo, que o termo
"ecumenismo" não é tido como aplicável ao diálogo com os não-cristãos. Existe
uma diferença essencial, dizem esses católicos progressistas, entre o diálogo de
católicos com outros cristãos e o diálogo de católicos com hindus ou budistas.
Enquanto se aceita o fato de que católicos e protestantes possam aprender uns
com os outros e que, juntos, possam progredir em direção a uma nova
compreensão mútua cristã, muitos católicos progressistas não estariam prontos a
consentir nesse diálogo com os não-cristãos. Mais uma vez, a suposição é de que,
sendo o hinduísmo e o budismo "metafísicos" e "estáticos", ou mesmo místicos,
deixaram de ter qualquer relevância em nossa época. Somente os católicos
convencidos da importância do misticismo cristão estão conscientes de que há
muito a aprender com o estudo das técnicas e da experiência das religiões
orientais. Esses católicos, porém, em dados momentos são considerados
suspeitos e até com algum desprezo, tanto pelos progressistas como pelos
conservadores.
Cabe, então, a pergunta: qual dos dois pontos de vista mais se aproxima da
experiência cristã primitiva? Será a ótica supostamente "estática" e metafísica
realmente uma ruptura e uma contradição, violando a pureza da conscientização
cristã original? Será esta abordagem dinâmica e existencial uma volta à visão
primitiva? Teremos de optar por uma ou por outra?
Será a longa tradição do misticismo cristão, desde a idade pós-apostólica, os
Padres capadócios e alexandrinos, até Eckhart, Tauler, os místicos espanhóis e os
modernos místicos, simplesmente um desvio? Quando pessoas, que não
conseguem entregar-se à Igreja tal como ela se apresenta atualmente, se
voltam, contudo, com interesse e simpatia para os escritos dos místicos, devem
ser reprovadas pelos cristãos e admoestadas para que procurem experiência
pouco mais limitada numa base mais comum de fraternidade com crentes pro-
gressistas, aceitando os postulados destes?

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Será esse o único meio verdadeiro de compreender a experiência cristã?
Existe realmente problema e, se existe, em que consiste precisamente?
Supondo que a única experiência cristã autêntica seja a dos primeiros cristãos,
pode ela ser reencontrada e reconstruída de qualquer maneira? E, se assim for,
deverá ser na linha "mística" ou "profética"? E, afinal, o que é, em que
consiste? As notas aqui redigidas não podem ter a esperança de responder a
tais perguntas. Proponho-me unicamente a considerar o conflito que hoje
existe na consciência cristã, e dar um ou outro palpite que possa talvez orien-
tar para novas pistas a serem exploradas.
Antes de mais nada, a "consciência cristã" do homem moderno jamais
poderá ser, pura e simplesmente, a consciência de um cidadão do império
romano no século primeiro. Tem de ser a consciência de uma pessoa
moderna.
Em nossa avaliação da consciência moderna, temos de levar em conta a
importância ainda imensa do cogito cartesiano. O homem moderno, na
medida em que ainda é cartesiano (vai, é claro, muito além de Descartes em
muitos aspectos), é um sujeito para quem a consciência do seu próprio eu,
como um "eu" que pensa, observa, mede e calcula, é absolutamente primordial.
É para ele a única indubitável "realidade" e todas as verdades têm aí início.
Quanto mais for capaz de desenvolver sua consciência, como um sujeito
acima e em confronto com objetos, tanto mais poderá entender as coisas em
relação a si próprio e entre si; tanto mais poderá manipular esses objetos em
favor de seus próprios interesses. Mas, ao mesmo tempo, mais tende a isolar-
se em sua prisão subjetiva, para tornar-se um observador solitário, separado
de tudo mais, numa espécie de bolha de sabão transparente, alienada, que
contém toda a realidade na forma de uma experiência puramente subjetiva. A
consciência moderna, então, ou a conscientização, tende a criar essa bolha
solipsís-tica de "estar ciente" um auto-ego encarcerado em sua própria
consciência, isolado e sem contato com outros seres iguais a ele na medida em
que são todos "coisas" em lugar de pessoas.
Foi essa espécie de conscientização, exacerbada ao extremo, que tornou
inevitável a assim chamada "Morte de Deus".

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O pensamento cartesiano começou pela tentativa de alcançar Deus como objeto,
partindo do eu pensante. Mas, quando Deus se torna objeto, mais do ou mais
tarde "morre", pois Deus como objeto é, afinal, coisa impensável. Deus como
objeto não é apenas mero conceito abstrato, as conceito que contém tantas
contradições internas que se torna tão negociável", exceto quando é
transformado, enrijecido em um ídolo mantido na existência apenas por forte
ato de vontade. Por muito tempo o homem continuou a ser capaz de exercer
esse ato: vontade; agora, porém, o esforço tornou-se exaustivo e muitos
cristãos compreendem a sua inutilidade. Relaxando o esforço, abri-m mão do
"Deus-objeto" que seus pais e avós esperavam ainda manejar para seus
próprios fins. O cansaço desses cristãos explica elemento de ressentimento que
fez disso um "assassinato" consciente da divindade. Libertada da tensão de
querer manter voluntariamente na existência o Deus-objeto, a consciência*
cartesiana permanece ainda assim aprisionada em si mesma. Daí a
necessidade: sair de si para estar com "o outro" no "encontro", na "abertura", i
"fraternidade", na "comunhão".
No entanto, o grande problema está no fato de que, para o cartesiano
conscientizado, o "outro" é também um objeto. Não é preso aqui nos
alongarmos sobre o esforço moderno, de grande importância para restaurar no
homem a consciência do "outro", irmão u, dando-lhe o status do "eu-tu". Será
possível uma autêntica relação "eu-tu", de fato, em se tratando de um sujeito
puramente cartesiano?
Lembremos-nos, entretanto, de que outra conscientização metafísica ainda
está ao alcance do homem moderno. Tem início não no sujeito pensante e
autoconsciente mas no Ser visto como estando ontologicamente para além e antes
da divisão sujeito-objeto. Subjacente experiência do ser individual, há a
experiência imediata do Ser. Só é totalmente diverso da experiência
autoconsciente. £ completamente não objetiva. Nada tem da divisão e da
alienação que ocorrem quando o sujeito se torna consciente de si como quase-
objeto. A conscientização do Ser (seja que o consideremos positiva ou
negatimente e apofaticamente, como no budismo é experiência imediata que
vai além da tomada de consciência refletida.

«Consciousness». (N. do T.)

51

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Não é "consciência de" mas "pura conscientização" em que o sujeito como tal
"desaparece".
Posteriormente a essa experiência imediata, de uma base* que transcende a
experiência, emerge o sujeito com sua autoconsciência. Porém, como as
religiões orientais e o misticismo cristão o têm sublinhado, esse sujeito
autoconsciente não é algo de finalizado ou absoluto; é uma autoconstrução
provisória, que existe por motivos práticos, apenas numa esfera de
relatividade. Sua existência tem sentido na medida em que não ocorre a
fixação ou a centralização sobre si mesmo, como fim, e aprende a funcionar
não como seu próprio centro mas como "de Deus" e "para os outros". O
termo cristão "de Deus" implica aquilo que as filosofias religiosas não teístas
concebem como um Único Centro hipotético de todos os seres. E o que T. S.
Eliot denominava "o ponto imóvel do mundo que gira", mas que o budismo,
por exemplo, vê não como um "ponto", mas como um "vazio". (E,
evidentemente, o vazio não é visto de modo algum).
Em resumo, essa forma de conscientização assume uma espécie de
autopercepção totalmente diferente da do eu pensante cartesiano, que tem em
si mesmo sua própria justificação. Aqui, o indivíduo tem consciência de si
como um eu-a-ser-dissolvido no dar-se, no amor, na "entrega", no êxtase, em
Deus há muitas maneiras de expressá-lo.
O eu não é o seu próprio centro e não gravita em torno de si; está
centrado em Deus, o único centro de todos, que está "em toda parte e em
nenhum lugar", em quem todos se encontram, de quem todos procedem.
Assim, logo de início essa conscientização está disposta a encontrar "o outro"
com quem já está unido, de qualquer forma, "em Deus".
A intuição metafísica do Ser é uma intuição sobre uma base de abertura, de fato,
uma espécie de abertura ontológica e uma infinita generosidade que se
comunica a tudo que existe. "O bem é difusivo de si próprio", ou "Deus é
Amor". A abertura não é algo a ser adquirido. É, sim, dom radical que foi
perdido e tem de ser reencontrado (embora, em princípio, ainda esteja "ali",
nas raízes de nosso ser criado). Essa linguagem é mais ou menos metafísica,
mas há também um modo não-metafísico de declará-lo. Não considera Deus
como Imanente ou como Transcendente e sim como graça e presença.
Portanto, nem como "Centro" imaginado em algum lugar "ali fora", nem,
tampouco, "dentro de nós". Encontra-o, não como Ser, mas como Liberdade e
Amor. Eu diria desde o início que o importante não consiste em opor esse
conceito gracioso e profético à idéia metafísica e mística de união com Deus, e
sim em demonstrar onde as duas idéias procuram realmente expressar a mesma
espécie de conscientização, ou, pelo menos, dela aproximar-se por maneiras
variadas.

* Alicerce, solo. fundamento. (N. do T.)

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37
O marxista Roger Garaudy declarou que a experiência religiosa de Santa
Teresa de Ávila é algo que lhe parece interessante e que vale a pena estudar no
cristianismo. Isso talvez tenha causado embaraço a alguns desses cristãos mais
preocupados com o diálogo com marxistas. Não há dúvida de que os místicos
cristãos, embora repudiados por alguns cristãos, permanecem como sinais
misteriosos e desafios àqueles que, enquanto se mantêm fora da Igreja e são
"incrédulos" convictos, procuram, entretanto, uma dimensão de conscientização
mais profunda do que a de um movimento horizontal através da superfície da
vida aquilo que Max Picard chamava "a fuga" (de Deus). Sentem-se
atraídos pela conscientização mística mas, ao mesmo tempo, repele-os a
instituição triunfalista da Igreja e o espalhafato ativista e agressivo de alguns
progressistas.
Santa Teresa é um exemplo clássico de experiência cristã. Embora
possuindo seu carisma próprio de mística, desde há muito tem sido aceito,
pelo menos por cristãos tradicionais, que a conscientização mística que possuía
a tornava de fato consciente das realidades espirituais comuns, ainda que
ocultas aos cristãos em geral. Aquilo em que os outros acreditavam ela
experimentava na sua pessoa.
A conscientização mística de Santa Teresa implica numa certa atitude
básica em relação ao ser. O ser pensante que tem sentimento e vontade não é o
ponto de partida de toda realidade verificável e de toda experiência. A verdade
inicial, a base de todo ser e de toda verdade está em Deus, o Criador de todas
as coisas, O ponto de partida de toda fé e de toda experiência cristã (nesse
contexto) é a realidade primeira de Deus como Pura Realidade. A "existência
de Deus" não é algo que possa ser considerado como deduzível de nossa
tomada de consciência em relação à nossa própria existência. Pelo contrário, a
experiência dos místicos, considerados clássicos no cristianismo, está enraizada
na metafísica do ser, em que se tem a intuição de Deus como "Aquele que é";
como realidade suprema, puro Ser.

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38
A consciência autocentrada do ego é, evidentemente, uma realidade
psicológica pragmática. Uma vez, porém, que houve iluminação interior da
pura realidade, tomada de consciência do Divino, o ser empírico é, por
comparação, visto como sendo puro "nada". Isto é, contingente, evanescente,
relativamente irreal, real unicamente em relação à sua fonte e seu fim em
Deus. Este ser empírico é então considerado, não como um objeto, mas como
fonte ontológica de nossa própria existência e subjetividade. Para
compreender a atitude, temos de nos lembrar que, assim consideradas as
coisas, o Ser não é idéia abstrata, objetiva, mas intuição concreta fundamental,
apreendida diretamente numa experiência pessoal incontrovertível e
inexprimível.

A nova consciência, ou conscientização cristã, que tende a rejeitar o Ser


de Deus como irrelevante (ou mesmo a aceitar como perfeitamente óbvia a
"morte de Deus"), tem de ser considerada como assunto inteiramente diverso.
Não há aqui nenhuma intuição metafísica do Ser. Ora, assim sendo, o "ser" é
reduzido a conceito abstrato, cifra com a qual se conta, entidade lógica,
certamente nada a ser concretamente experimentado. O que é experimentado
como principal não é o "ser" ou a "seidade"*, mas sim a conscientização
individual, a tomada de consciência auto-refletida.
Esta distinção é, de fato, muito importante, pois se o ponto de partida
inicial da experiência e o teste final de toda verdade é, simplesmente, a
tomada de consciência, em relação a si mesmo, do sujeito consciente,
verificando o que é óbvio à sua própria consciência, essa tomada de
consciência relativa ao sujeito pareceria levantar uma barreira e inibir
qualquer intuição real do ser. Pela natureza do caso, o ser, nessa nova
situação, se apresenta, não como um dado imediato (ponto de partida) da
consciência intuitiva, mas como um objeto de observação empírica que,
aliás, não pode de modo algum ser. Tem isso várias conseqüências
importantes. Para uma conscientização assim, uma intuição não objetiva,
metafísica ou mística torna-se, na prática, incompreensível. A própria noção
do Ser é não viável, irrelevante e até absurda.

* «Isness». (N. do T.)

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39
Por exemplo, quando o místico (do tipo clássico) declara permanecer
absorto numa simples intuição da presença e do amor de Deus, sem "ver" ou
"compreender" nenhum objeto, a conscientização reflexiva (que por
conveniência estou denominando cartesiana) interpreta esse fato de maneira
peculiar seja como uma fixação teimosa sobre um objeto imaginário, sobre
"algo ali", ou, ainda, como repouso narcisista da própria conscientização em
relação a si mesma. É verdade que o falso misticismo pode assumir certas
aparências desse gênero. A única solução ao problema é admitir que, muito pro-
vavelmente, não existe nenhum modo de esse tipo de conscientização
"cartesiana" apreender com clareza aquilo a que os místicos do tipo clássico
estão se referindo.
(Daí a surpreendente mistura de autêntico e inautêntico num livro como
Varieties of Religious Experience, de James*.)
O mesmo é provavelmente exato em relação à conscientização
fenomenológica. Para ambas deve ser encontrado um caminho totalmente
diferente que leve à plena realização pessoal e cristã.
A nova consciência (ou conscientização, ou tomada de consciência) se
abre, é evidente, para desembocar na história, no acontecimento, no
movimento, no progresso, e procura a própria identidade e realização na ação
dirigida aos bens históricos, políticos ou críticos. Na proporção em que é
também bíblica e escatológica, aproxima-se da consciência cristã primitiva.
Entretanto, desde já, podemos também ver que o pensamento "bíblico e
escatológico" não se põe de acordo comodamente com essa espécie particular de
conscientização. E já existem sinais de que em breve terá ela de declarar-se
completamente pós-bíblica assim como pós-cristã.
Enquanto isso, apareceram as drogas como um deus ex machina para dar à
consciência cartesiana autoconsciente a oportunidade de estender sua
percepção a si própria, enquanto parece sair de si. Em outras palavras, as
drogas forneceram ao eu autoconsciente um substituto para a
autotranscendência metafísica e mística. Talvez, também, um substituto para o
amor? Não sei.
Seja como for, a nova consciência pareceria ser o produto de uma espécie
de fenomenologia que, cada vez mais, questiona e repudia qualquer coisa que
lhe apareça como "metafísico" ou "helênico" e, sobretudo, "místico".

* William James, As variedades da experiência religiosa. (N. do T.)

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Essa consciência ocupa-se cada vez menos com Deus como presente no ser
(em sua criação) e sempre mais com a palavra de Deus, como chamada para a
ação. Deus está presente, não como a presença transcendente apreendida na
experiência de que é "inteiramente Outro" e reduz tudo o mais à
insignificância, mas sua presença manifesta-se numa palavra imperscrutável
convocando à comunidade com outros homens. Mas que comunidade e que
outros homens? A Igreja, em suas tradicionais estruturas autoritárias, é
severamente criticada o que não é forçosamente coisa má! Mas a idéia um
tanto mais fluida, em relação à comunidade que se toma um "acontecimento"
quando as pessoas são reunidas pela palavra de Deus, pode talvez permanecer
algo de muito vago e, em si, subjetivo. Em teoria, isso é entusiasmantemente
carismático; na prática é, por vezes, estranhamente caprichoso. Pode
facilmente degenerar em mera convivialidade ou acordo temporário de
membros de partidos políticos, ou ainda nas inofensivas confabulações de
hippies clericais.
Evidentemente, não é este o lugar de examinar uma nova e inteiramente
fluida concepção que ainda não tomou forma definitiva. Porém, podemos
dizer ao menos o seguinte: a consciência cristã em processo de
desenvolvimento é ativista, antimística, antimetafísica, evita formas bem
definidas e concretas e tende a identificar-se com movimentos ativos,
progressistas e até revolucionários que se estão manifestando sem, todavia,
terem alcançado qualquer espécie de definição clara.
Nesse contexto, então, o conceito do eu, como um centro muito concreto de
decisão, tem considerável importância. Importa muito o que pensamos,
dizemos, fazemos, decidimos, aqui e agora. Importa muito quais são nossos
compromissos correntes, com quem estamos, contra quem somos, para onde
pretendemos ir, que espécie de distintivos usamos, em quem votamos tudo
isso é importante. Evidentemente, isso é próprio de homens de ação que
sentem haver velhas estruturas a serem destruídas e novas a erguer. Mas de
homens como esses não devemos ainda esperar que tenham paciência com o
misticismo, nem que o compreendam. De antemão estarão fadados, pelo
próprio tipo de sua conscientização, a rejeitá-lo como irrelevante e mesmo
anticristão. Entretanto, podemos nos perguntar se o que nesses homens está-se
desenvolvendo não é simplesmente uma nova, mais fluida, menos doutrinai
espécie de conformismo!

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Por outro lado, deve existir resposta melhor para esses que buscam, do
que a mera reafirmação das antigas posições estáticas e clássicas. É bem
possível que a formulação e os pontos de vista da opinião clássica estejam
fora do alcance de muitos homens modernos. E muito plausível asseverar que
as antigas categorias helênicas estão, de fato, gastas, e que o pensamento
platonizante, mesmo revivificado quando lhe injetam doses de ioga e de Zen,
não pode satisfazer convenientemente o mundo moderno. Que fazer então?
Haverá alguma nova possibilidade, alguma outra abertura para a consciência
cristã de hoje?
Se houver, terá sem dúvida que preencher as seguintes grandes
necessidades do homem:
Primeiro: Sua necessidade de comunidade, de um relacionamento de
autêntico amor com outros homens seus irmãos. Isso implicará numa
profunda, e de fato radical, seriedade ao abordar os problemas críticos que
ameaçam a própria sobrevivência do homem como espécie humana neste
planeta: guerra, conflito racial, fome, injustiça econômica e política, etc. É
verdade que as clássicas e antigas posições com suas equivalentes no
Oriente têm, com demasiada freqüência, favorecido uma indiferença um
tanto quietista em relação a esses problemas.
Segundo: A necessidade que o homem tem de adequada compreensão de
seu próprio eu, na vida que leva normalmente dia a dia. Não há mais lugar
para a categoria filosófica idealista que transporta toda realidade para os
reinos celestiais e torna a existência temporal desprovida de sentido. A antiga
visão metafísica não era essa. Mas, na medida em que era idealista, tendia a
depreciar em lugar de valorizar o concreto. O homem precisa encontrar, aqui
e agora, nas tarefas comuns, ordinárias e humildes, nos problemas humanos de
cada dia, o sentido último de sua existência.
Terceiro: A necessidade do homem de ter experiência completa e integral
de seu próprio ser em todo os seus níveis corporal, imaginativo, emocional,
intelectual, espiritual. Não há lugar para a cultura e o desenvolvimento de
apenas uma parte da consciência humana, um aspecto da experiência
humana, à custa das outras partes, mesmo sob o pretexto de que o que é
cultivado é sagrado e tudo o mais é profano. Uma dicotomia "sagrada" ou
"supernaruralista" (sic) pode fazer de alguém um aleijão.
Lembremos-nos de que a consciência moderna se interessa cada vez mais
pelos sinais do que pelas coisas. A razão disso é serem os sinais necessários
para simplificar o caminho da conscientização, entulhado por objetos. Os fatos
reais e crus da vida moderna tornam isso inevitável. Entretanto, é também, e
muito, causa de divisão do ser e impede crescimento harmônico.

57

42
Todavia, é um erro supor que essas grandes necessidades exigem a
hipertrofia da autoconscientização e o elefantismo da vontade própria, sem o
que o homem moderno tende a duvidar da própria realidade de seu ser. Pelo
contrário, poderíamos sugerir uma quarta necessidade do homem
contemporâneo: é a libertação, precisamente, da desordenada autoconsciência
que tem de si e da monumental atenção ao seu eu, da obsessão com a auto-
afirmação. Só assim poderá o homem saborear a liberdade, conseqüência da
despreocupação que acompanha o fato de ser ele simplesmente o que é,
aceitando as coisas como são, de maneira a colaborar com elas, do melhor
modo que lhe for possível.
Em relação a todas as necessidades, mas especialmente à última, o cristão
fará bem em voltar às simples lições do Evangelho, procurando entendê-las, se
possível, não em termos de uma segunda vinda iminente, mas certamente em
uma nova e liberta criação "no Espírito", Poderá então ser libertado das
obsessões de uma cultura que se alimenta na exploração e excitação de
desejos egocêntricos.
Contudo, será bom também para o cristão, talvez, procurar conhecer as
religiões asiáticas, a fim de adquirir uma compreensão mais correta de sua
atitude de afastamento ou melhor de superação do mundo. Será o
ensino básico do budismo (sobre a ignorância, a libertação, a iluminação),
realmente negação da vida? Ou será, antes, a mesma espécie de afirmação da
vida e libertação que encontramos na Boa Nova da Redenção, o Dom do
Espírito e a Nova Criação?
Os ensaios que se seguem neste volume não serão uma tentativa de
desenvolver uma tese sistemática sobre este ponto. Focalizarão vários
aspectos do Zen, sempre de um ponto de vista ocidental e cristão, e também
com a crença de que nem o Zen nem o budismo podem, na realidade, ser tidos
como totalmente estranhos a esse ponto de vista. Pelo contrário. Creio que o
Zen muito tem a dizer não somente ao cristão, mas também ao homem
moderno. É algo de não doutrinai, é concreto, direto, existencial e procura,
acima de tudo, enfrentar a vida no próprio âmago não com idéias sobre a
vida e, ainda menos, com plataformas políticas, religiosas, científicas ou
qualquer outra coisa no gênero.

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43
Um Cristão Olha Para o Zen*

O DR. JOHN C. H. WU desfruta de posição incomparavelmente favorável


para interpretar o Zen para os leitores ocidentais. Tem dado seus cursos sobre
o Zen em universidades chinesas e norte-americanas. Jurista eminente e
diplomata, chinês convertido ao catolicismo, erudito, é, ao mesmo tempo,
homem de simplicidade profundamente humorística e liberdade espiritual.
Pode escrever sobre o budismo, não apenas por ter ouvido falar no assunto, mas
por conhecê-lo "por dentro". Não tem medo de admitir que trouxe consigo
para o cristianismo, o Zen, o taoísmo e o confucionismo, ao ingressar na Igreja.
De fato, em sua já bem conhecida tradução do Novo Testamento, começa o
evangelho de S. João com as palavras "No princípio era o Tao".
Nunca se sente obrigado a simular que o Zen lhe dá acessos de tontura ou
palpitações cardíacas... Nem tenta empreender a tarefa complexa e cheia de
frustração de conciliar as intuições do Zen com a doutrina cristã.

Este ensaio foi publicado pela primeira vez como Prefácio ao livro de John C. H. Wu The Golden
Age of Zen, Committee on Compilation
of the Chinese Library.

59

44
O Dr. Wu apodera-se simplesmente do Zen e o apresenta sem comentário.
Qualquer pessoa familiarizada com o Zen há de admitir, sem demora, ser esse
o único modo de tratar o assunto. Abordá-lo sob pressuposto intelectual ou
teológico seria apenas arriscar-se a causar confusão. A verdade é que não se
pode colocar o cristianismo e o Zen lado a lado, comparando-os. Seria como
querer comparar matemática e tênis. E se estivermos escrevendo um livro
sobre tênis, que poderia normalmente ser lido por matemáticos, pouco
interessa nele discutir assuntos de matemática. Melhor é ater-se ao tênis. O
Dr. Wu fez isso em relação ao Zen.
Por outro lado, o Zen é deliberamente crítico e desconcertante. Parece
dizer as coisas mais impossíveis sobre a vida do espírito. Verdadeiros
desacatos. Parece dar um solavanco até na mentalidade budista, arrancando-a
de seu modo familiar de pensar, de suas rotinas e devotas imaginações. O Zen
pode, por vezes, soar aos nossos ouvidos como franca e declaradamente
irreligioso. E o é, no sentido em que ataca diretamente o formalismo e o mito
e considera a religiosidade formalista como impedimento ao desenvolvimento
espiritual maduro. Por outro lado, em que sentido é o Zen, como tal,
"religioso" mesmo? E onde jamais encontramos "o puro Zen" dissociado de
matriz religiosa e cultural de qualquer espécie? Alguns de seus mestres foram
iconoclastas. Mas a vida do templo Zen comum está cheio de piedade budista
e de ritual. E alguma literatura Zen tem abundância de conceitos budistas
convencionais repletos de devocionismo.
O Zen do Dr. D. T. Suzuki, no entanto, está inteiramente livre de tudo
isso. Pode, porém, ser considerado "típico". Uma das vantagens de o Dr. Wu
tratar do assunto sob ângulo cristão, está em que também ele é capaz de olhá-
lo destacado desse quadro acidental. É como olhar para a doutrina mística de
São João da Cruz fora do contexto um tanto irrelevante do barroco espanhol.
Entretanto, todo o problema do estudo do Zen pode fervilhar de questões
como essas, quando o interlocutor de boa vontade recebe resposta às suas
perguntas; então, centenas de outras perguntas surgem para suceder às duas
ou três já "respondidas".
Embora muito se tenha falado, escrito e publicado sobre o Zen no Ocidente, o
leitor comum nem por isso está bem informado sobre o assunto. E se ele não
tem idéia do que seja, poderá sentir-se algo mistificado com a leitura do livro
do Dr. Wu, cheio de material clássico do Zen: anedotas ou estórias curiosas,
estranhos acontecimentos, declarações obscuras, explosões de "humour"
ilógico; sem falar nas contradições, inconsistências, comportamento
excêntrico e até absurdo. E para que tudo isso? Para algum fim aparentemente
esotérico, jamais suficientemente esclarecido para satisfazer a mente lógica do
ocidental.

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Ora, o leitor de raízes mais ou menos judeu-cristãs e quem no ocidente
não tem essas raízes? estará naturalmente predisposto a mal interpretar o
Zen porque instintivamente tomará a posição de alguém que confronta um
"sistema rival de pensamento", ou uma "ideologia competitiva", ou "uma
alienada visão do mundo" ou, mais simplesmente "uma falsa religião".
Quem adota esta posição torna impossível qualquer compreensão, pois
supõe de antemão o Zen, como algo que se recusa expressamente a ser o que é.
O Zen não é uma explicação sistemática da vida. Não é ideologia. Não é visão
do mundo, nem teologia da revelação e da salvação. Não é mística, nem
caminho de perfeição ascética. Não é misticismo, como este é entendido no
ocidente. Em realidade, ele não se enquadra em nenhuma conveniente
categoria que tenhamos. Por isso todas as nossas tentativas para rotular o Zen
e catalogá-lo como "panteísmo", "quietismo", "iluminismo", "pelagianismo",
resultam em completa incongruência e procedem da ingênua suposição de que
ele pretende justificar os caminhos de Deus em relação ao homem e o faz
falsamente. O Zen não está preocupado com Deus, da mesma maneira que o
cristianismo o está, embora se possa descobrir analogias sofisticadas entre a
sua experiência e a do "Vazio" (sunyata), e a experiência de Deus no
misticismo cristão apofático do "não conhecimento". Contudo, o Zen não pode
ser julgado apropriadamente como mera doutrina, pois ainda que nele se
encontrem elementos implicitamente doutrinais, são inteiramente secundários
em relação à sua inexprimível experiência.
É verdade que não podemos realmente compreender o Zen chinês se não
entendemos a metafísica implícita do budismo que, por assim dizer, ele
manifesta. Mas a própria metafísica budista não pode ser plenamente
considerada doutrinai, no sentido que conhecemos, de uma construção filosófica
e teológica complexa. A filosofia budista é uma interpretação da experiência
humana comum interpretação, porém, não revelada por Deus, nem
descoberta num acesso de inspiração, ou vista à luz do misticismo. A metafísica
budista é, basicamente, uma elaboração muito simples e natural das implica-
ções na própria experiência de Buda sobre a iluminação. O budismo não
procura, em primeiro lugar, compreender ou "acreditar" na iluminação de
Buda, como solução para todos os problemas humanos.

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Procura, sim, participação existencial e empírica na experiência da iluminação,
É possível a alguém receber a "iluminação" sem estar consciente de quaisquer
implicações filosóficas discursivas. Essas implicações não são consideradas
como possuindo qualquer significado teológico e destacam apenas a condição
ordinária, natural, do homem. É verdade que chegam a formular certas
deduções fundamentais que, no curso dos tempos, foram elaboradas,
tornando-se sistemas religiosos e filosóficos complexos. Mas a principal
característica do Zen é rejeitar toda elaboração sistemática para retornar, tanto
quanto possível, à base inexprimível e inexplicável da experiência direta.
Experiência direta de quê? Da própria vida. Que significa o fato de eu viver:
quem é esse "eu" que existe e vive? Qual a diferença entre conscientização
autêntica e ilusória do ser (do "eu") que existe e vive? Quais os fatos básicos
e os que não o são da existência?
Quando nós, no Ocidente, falamos em "fatos básicos da existência",
tendemos imediatamente a conceber tais fatos como redutíveis a certas
proposições austeras e rigorosamente sérias declarações lógicas às quais se
garante um sentido porque são empiricamente verificáveis. São os que
Bertrand Russell chamava de "fatos atômicos" . Ora, no Zen é inconcebível
que se possa declarar, por meio de qualquer proposição, por mais atômica que
seja, os fatos básicos da existência. Para o Zen, o fato é falsificado do
momento em que é transferido para o plano do pronunciamento. Cessa o
apreender da realidade nua da experiência, para, em seu lugar, surgir o apre-
ender de uma forma de palavras. A verificação procurada pelo Zen não pode
ser encontrada numa transação dialética, que inclui a redução do fato a uma
declaração lógica e a verificação refletida da declaração ou do
pronunciamento pelo próprio fato.
Poder-se-ia dizer que, muito antes de ter Bertrand Russell falado nos
"fatos atômicos", já havia o Zen partido o átomo e feito sua própria espécie de
declaração na explosão da lógica em Satori (iluminação). Todo o escopo do
Zen não está em fazer pronunciamentos irrefutáveis sobre a experiência, mas
em chegar a "agarrar" a realidade sem a mediação da verbalização lógica
sobre os fatos.
Mas que é a realidade? Há certamente, no Zen, uma dialética viva e não
verbal entre a experiência cotidiana, ordinária, dos sentidos (que de modo
algum é repudiada arbitrariamente) e a experiência da iluminação.

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O Zen não é uma rejeição idealista dos sentidos e da matéria, de modo a
atingir uma realidade supostamente invisível que seria a única realidade. A
experiência do Zen é apreensão direta da unidade do invisível e do visível, do
numerai e do fenomenal, ou, se preferem, é uma conscientização experiencial de
que qualquer divisão tem de ser pura imaginação.
D. T. Suzuki diz o seguinte: "Provar, ver, experimentar, viver todas
essas coisas demonstram haver algo de comum entre ilumi-nação-experiência e
sensação-experiência. Uma se passa no mais íntimo de nosso ser; a outra, na
periferia de nossa consciência. A experiência pessoal parece, assim, a base da
filosofia budista. Nesse sentido, o budismo é empirismo radical ou
experiencialismo, seja qual for a dialética que mais tarde se possa ter
desenvolvido para examinar o sentido da experiência da iluminação"*.
Ora, o grande obstáculo à compreensão mútua entre cristianismo e
budismo está na tendência ocidental de focalizar, não a experiência budista, que
é essencial, mas a explicação, que é acidental, a qual, de fato, o Zen
freqüentemente considera como inteiramente trivial e até causa de engano e
ilusão.
A meditação budista, sobretudo a do Zen, não procura explicar, mas sim
prestar atenção, conscientizar-se, manter-se vigilante, em outras palavras:
desenvolver certo tipo de conscientização que está acima e além da ilusão
produzida por fórmulas verbais ou pela excitação emocional. Ilusão em
relação a quê? Ilusão quanto à apreensão do que é a meditação em si mesma.
Ilusão devido à diversão e à distração no que concerne àquilo que se encontra
ali mesmo: a própria conscientização.
O Zen, portanto, visa a uma espécie de certeza. Não é a certeza lógica da
prova filosófica, ainda menos a certeza religiosa, que resulta da aceitação da
palavra de Deus pela obediência da fé. É, antes, a certeza que acompanha uma
autêntica intuição metafísica, que também é existencial e empírica. O escopo de
todo budismo é purificar a consciência até que esta qualidade de intuição de
visão interior seja atingida, e as implicações religiosas desta intuição (visão
interior) sejam "trabalhadas" de diferentes maneiras e aplicadas à vida nas
diferentes tradições budistas.

D. T. Suzuki, Mysticism: Christian and Buddhist, New York, 1957, p. 48.

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48
Na tradição Mahayana, que inclui o Zen, a principal implicação desta
intuição, no que concerne à condição humana, é Karuna, ou compaixão, que
leva a um "inverso" paradoxal em relação ao que a própria intuição pode
parecer implicar. Em lugar de regozijar-se por ter escapado do mundo
fenomenal do sofrimento, o bodhisattva escolhe nele permanecer, nele
encontrando seu nirvana, em razão não somente da metafísica, que identifica o
fenomenal e o numenal, mas também em razão do amor compassivo que
identifica todos os que sofrem no ciclo do nascer e do morrer, em união com
o Buda, de cuja iluminação participam potencialmente.
Embora haja para os budistas um céu e um inferno, não são definitivos; e
seria de fato ambíguo presumir que o Buda é considerado um Salvador, que
conduz seus fiéis discípulos ao Nirvana como a uma espécie de céu negativo.
(Entretanto, o budismo amidista é claramente uma religião de salvação).
Não se pode repeti-lo demasiadamente: procurando compreender o
budismo, seria grande erro concentrar-se na "doutrina", a filosofia da vida em
fórmulas; e negligenciar a experiência que é absolutamente essencial, o
verdadeiro cerne do budismo. Ora, isso é, em certo sentido, exatamente o
oposto do cristianismo. Pois o cristianismo tem por base a revelação. Seria
engano classificar tal revelação simplesmente como "doutrina" e "explicação"
(é muito mais do que isto: trata-se da revelação do próprio Deus no mistério
do Cristo); no entanto, a revelação nos é comunicada em palavras, em
pronunciamentos, e tudo depende do fato do crente aceitar a verdade dos
pronunciamentos.
Assim, o cristianismo sempre se mostrou profundamente preocupado com
esses pronunciamentos: com a transmissão correta, provinda das fontes
originais, com a compreensão precisa do sentido exato, com a eliminação e
mesmo a condenação de falsas interpretações. Em certas épocas, essa
preocupação tornou-se exagerada, a ponto de ser uma obsessão, acompanhada
de insistência arbitrária e fanática nas distinções minuciosas e nos detalhes
mais meticulosos que se possa imaginar em matéria de teologia.
A obsessão quanto a fórmulas doutrinais, ordem jurídica e exatidão
ritualística, fez com que muitas vezes as pessoas se esquecessem de que o
cerne do catolicismo é também uma experiência vivencial, de unidade em
Cristo, que transcende de muito todas as formulações conceituais. Em
conseqüência disso, tem sido esquecido, com demasiada freqüência, que o
catolicismo é o sabor e a experiência da vida que não acaba.

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"Nós vos anunciamos a vida eterna, que estava no Pai e manifestou-se-nos. O
que vimos e ouvimos, vo-lo anunciamos para que também possais ter
comunhão conosco e que nossa comunhão seja com o Pai e com seu Filho
Jesus Cristo" (I, João I, 2-3) - Sim, com demasiada freqüência tem o católico
imaginado estar obrigado a limitar-se a uma crença correta, externa, expressa
por um comportamento moral bom, em lugar de entrar em cheio na vida de
esperança e de amor, consumada pela união com o Deus invisível "em Cristo
e no Espírito", compartilhando, assim, plenamente da natureza divina. (São
Paulo aos cristãos de Êfeso 2, 18; São Pedro Ia. epístola, 4; São Paulo, aos
Colossenses, 1, 9-17; Ia. carta de São João 4, 12).
O Concilio Vaticano II (nós o esperamos) pôs felizmente fim a essa
tendência obsessiva da teologia católica à investigação. Porém, permanece o
fato de que, para o cristianismo, uma religião da Palavra, a compreensão dos
pronunciamentos que encarnam a revelação que Deus fez de si mesmo,
revestem-se de uma importância de primeira ordem e preocupação. A
experiência cristã é fruto dessa compreensão, seu desenvolvimento e
aprofundamento.
Ao mesmo tempo, a própria experiência cristã será profundamente afetada
pela idéia de revelação nutrida pelo cristão. Por exemplo, se a revelação é
considerada simplesmente como um sistema de verdade sobre Deus; uma
explicação para o começo do universo e sobre o que eventualmente lhe
sucederá; sobre qual o escopo da vida cristã, quais suas normas morais; as
recompensas das pessoas virtuosas; e assim por diante, o cristianismo é, de
fato, reduzido a simples ótica "mundana". Por vezes, isso pode ser apenas
filosofia religiosa ou pouco mais, impondo uma Lei, sustentada num culto
mais ou menos vistoso, numa disciplina moral e num código rígido. Num tal
quadro teológico, a "experiência" do sentido interior da revelação cristã
sofrerá forçosamente distorção e será diminuída. Qual será essa experiência?
Não tanto uma experiência teologal vivenciada da presença de Deus, no
mundo e na humanidade, através do mistério cristão, mas antes uma sensação
de segurança em relação à nossa própria atitude "correta". A pessoa
experimentará sentimento de confiança de estar salva, confiança baseada na
"consciência reflexa" que a pessoa tem de que sua ótica está correta em
relação à criação e à finalidade do mundo e ao próprio comportamento como
capaz de receber a recompensa na outra vida.

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Pode também acontecer, uma vez que poucos são os que atingem tal grau
de auto-segurança, tornar-se a experiência uma esperança angustiada uma
luta com ocasionais dúvidas sobre as "respostas certas". Será, então, doloroso
e constante esforço para estar à altura das severas exigências da moral e da lei,
e recurso algo desesperado aos sacramentos, que ali estão para ajudar os fracos
que necessitam constantemente cair e reerguer-se.
Aí temos, é claro, visão tristemente deficiente da verdadeira experiência
cristã, baseada em distorção do verdadeiro impacto e conteúdo da revelação
cristã. No entanto, é a impressão que têm freqüentemente os não-cristãos do
cristianismo visto de fora. E, quando comparamos, digamos, a experiência
Zen, em sua pureza, com este tipo diminuído e deformado de "experiência
cristã", a comparação fica sem sentido e é enganadora, como o é também a
comparação da filosofia e da teologia cristãs, em seu nível mais elevado e
sofisticado, com os mitos de um budismo popular e decadente.
Quando colocamos o cristianismo e o budismo lado a lado, devemos
tentar encontrar os pontos em que realmente existe base comum autêntica
entre ambos. No presente momento, não é empresa fácil. De fato, é
praticamente impossível, como acima sugerido, encontrar-se aí qualquer base
comum, a não ser de maneira muito esquematizada e artificial. Afinal, o que
queremos significar por cristianismo e por budismo? Será o cristianismo
teologia cristã? Ética? Misticismo? Culto? Deverá nossa idéia do cristianismo
ser aceita, sem mais explicação, como sendo simplesmente a Igreja Católica
Romana? Ou inclui o cristianismo protestante? O protestantismo de Lutero ou
o de Bonhoeffer? O protestantismo da escola da morte de Deus? O
Catolicismo de Santo Tomás de Aquino? De Santo Agostinho e dos Padres da
Igreja Ocidental? Um cristianismo presumidamente "puro" baseado no
Evangelho? Um cristianismo desmitizado? Um "Evangelho Social"? E que
queremos significar por budismo? O budismo theravada do Ceilão ou da
Birmânia? O budismo tibetano? Budismo tântrico? Budismo especulativo e
escolástico hindu da Idade Média? Ou budismo Zen? Ou o budismo do
amidismo, enfim?
A imensa variedade de formas adotadas pelo pensamento, a experiência, o
culto, a prática da moral, tanto no budismo como no cristianismo, tornam toda
comparação inexata. E, afinal, quando alguém como o Dr. Suzuki promete um
estudo sobre "Misticismo: cristão e budista", acaba sendo afinal,
praticamente, uma comparação entre Meister Eckhart e o Zen.

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Estreitar o campo de visão deste modo é, ao menos, relevante, embora tomar
Meister Eckhart como representativo do misticismo cristão seja algo muito
arriscado. É preciso notar, ao mesmo tempo, que o Dr. Suzuki estava
demasiadamente convencido da importância incomum de Eckhart em seu
tempo e de que seus pronunciamentos deviam ter chocado a maioria de seus
contemporâneos. A condenação de Eckhart deveu-se, em realidade, em certa
medida, à rivalidade então existente entre dominicanos e franciscanos. A
doutrina de Eckhart, audaciosa e, em alguns pontos, inevitavelmente exposta à
condenação, fundamentava-se, no entanto, em grande parte, em Santo Tomás e
pertencia a uma tradição mística muito viva, sendo, de fato, a força religiosa
mais vital no catolicismo do seu tempo.
Entretanto, seria completamente ilusório identificar o cristianismo com
Eckhart. Não foi o que Suzuki pretendeu. Não comparou a Teologia mística
de Eckhart com a filosofia budista dos Mestres do Zen, mas sim a experiência
de Eckhart, ontológica e psicologicamente, com a experiência dos Mestres do
Zen. Empreendimento razoável, oferecendo alguma esperança de resultados
válidos e interessantes.
Todavia, pode-se destilar da experiência religiosa ou mística certos
elementos puros, comuns em toda parte a todas as religiões? Ou será a
compreensão básica da natureza e do sentido da experiência tão delimitada
pela variedade de doutrinas, a ponto de fazer com que uma comparação de
experiências nos mergulhe inevitavelmente numa comparação de experiências
metafísicas ou religiosas? Não é essa tampouco uma questão que encontre
fácil resposta.
Se um místico cristão tem experiência que pode ser fenomenologicamente
comparada com a experiência Zen, importa, por acaso, que o cristão creia
estar pessoalmente unido a Deus e o discípulo do Zen interprete sua
experiência como sendo sunyata ou o Vazio consciente de si? Em que sentido
podem ser denominadas "místicas" ambas as experiências? Suponhamos que os
mestres do Zen repudiem vigorosamente qualquer tentativa por parte dos
cristãos de agraciá-los com o título de "místicos"?
E certamente preciso agora dizer que, hoje em dia, certo tipo de
pensamento acomodado põe, com demasiada facilidade, como dogma básico,
o fato de que "os místicos", em todas as religiões, estão experimentando a
mesma coisa e são todos iguais em sua libertação face às várias doutrinas,
explanações e credos de seus correligionários menos afortunados.

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Assim, todas as religiões se encontram "em cima", e suas diferentes teologias e
filosofias tornam-se irrelevantes quando vemos que eram apenas meios para
chegar ao mesmo fim e que todos os meios têm igual eficácia. Isso jamais foi
demonstrado com qualquer espécie de rigor. E, embora de maneira persuasiva,
tenha sido avançado por pensadores talentosos e experientes, devemos dizer
que são precisos muitos, e prolongados, estudos e pesquisa, antes que se possa
adiantar muita coisa sobre esta questão complexa que, mais uma vez, parece
implicar a visão puramente formalista das doutrinas teológicas e filosóficas,
como se crença fundamental fosse algo que o místico pudesse rejeitar como
uma veste da qual nos despimos, e como se sua própria experiência não fosse,
de algum modo, modificada pelo fato de que ele possui essa crença.
Ao mesmo tempo, uma vez que a experiência pessoal do místico
permanece para nós inacessível e só pode ser avaliada indiretamente, através
dos textos e outros testemunhos talvez escritos e dados por outros nunca
é fácil afirmar, com alguma segurança, que a experiência por que passou um
cristão, um sufi* e um Mestre do Zen é realmente "a mesma coisa". Que
significa, na verdade, tal afirmação? Pode até mesmo ser feita sem implicar (de
modo inteiramente falso) que essas experiências mais elevadas são "experiên-
cias de alguma coisa"? Assim, permanece um problema muito sério distinguir,
em todas essas formas mais elevadas de conscientização religiosa e metafísica,
o que é "experiência pura" e o que é, em certa medida, determinado pela
linguagem, o símbolo, ou mesmo pela "graça de um sacramento". Nem
chegamos ainda, por assim dizer, ao ponto em que conhecemos suficientemente
esses estados de conscientização e suas implicações metafísicas para poder, com
exatidão, compará-las pormenorizadamente. Mas existem, não obstante, certas
analogias e correspondência, evidentes desde já, que podem talvez indicar o
caminho para uma melhor compreensão mútua. Não vamos afoitamente tomá-
las por "provas", mas apenas como pistas importantes.
Será, portanto, possível dizer que tanto os cristãos como os budistas podem,
com igual êxito, praticar o Zen? Sim, se tomamos o Zen como significando
precisamente a procura da experiência pura e direta, de nível metafísico,
liberada de fórmulas verbais e pré-concepções lingüísticas. No nível
teológico, a questão torna-se mais complexa. Voltaremos a esse ponto no fim
deste ensaio.

Sufi: mestre e místico muçulmano. (N. do T.)

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O melhor que se pode dizer é que em certas religiões, no budismo, por
exemplo, a estrutura filosófica ou religiosa é de molde a poder ser posta de
lado mais facilmente, porque tem em si um já preparado "aparelho de
rejeição", por assim dizer. A certa altura, o que medita é lançado para fora da
bagagem conceituai e atirado ao Vazio. É possível a um mestre do Zen dizer
fleumaticamente a seu discípulo: "Se encontrares o Buda, mata-o!" Mas, no
misticismo cristão, a questão de saber se o místico pode ou não progredir sem
a "forma" humana (Gestalt), ou a santa humanidade do Cristo, é um assunto
debatido ainda com muito calor. A opinião da maioria mantém nitidamente a
necessidade do Cristo, no qual temos fé, estar presente como um ícone no
centro da contemplação cristã. Aqui, a questão se torna ainda confusa por não
se distinguir entre a teologia objetiva da experiência cristã e os fatos
psicológicos do misticismo cristão. E é preciso então indagar: em que ponto
as exigências abstratas da teoria têm precedência em relação aos fatos
psicológicos da experiência? Ou, em que medida a teologia de um teólogo
sem experiência garante interpretar corretamente a "teologia experimentada"
do místico que não é capaz, talvez, de expressar o sentido de sua experiência
de modo satisfatório?
Voltamos repetidamente à questão única central, sob duas formas: a
relação da doutrina objetiva para com a experiência mística (ou metafísica)
subjetiva e a diferença existente nesse relacionamento entre cristianismo e
Zen. No cristianismo, a doutrina objetiva retém a prioridade tanto em relação
ao tempo como à eminência. No Zen, a experiência é sempre prioritária, não
quanto ao tempo, mas quanto à importância. Isso acontece porque o
cristianismo se baseia na revelação sobrenatural e o Zen, rejeitando toda idéia
de qualquer revelação e mesmo adotando visão muito independente da
sagrada tradição (pelo menos escrita), procura penetrar o fundamento
ontológico natural do ser. O cristianismo é uma religião da graça e do dom
divino. Daí sua total dependência para com Deus. O Zen não pode ser
facilmente classificado como "uma religião" (é, de fato, facilmente separável
de qualquer matriz religiosa e pode, assim se supõe florescer tanto no solo
das religiões não-budistas como no de nenhuma religião sequer). E, de
qualquer modo, o Zen se esforça, como o budismo, por tornar o homem
inteiramente livre e independente, mesmo em seu esforço pela salvação e
iluminação. Independente de quê?

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Dos apoios e das autoridades, meramente externos, que lhe impedem o acesso
e o emprego dos profundos recursos de sua própria natureza e psique. (Notem
que tanto o Zen chinês como o japonês floresceram em culturas extremamente
disciplinadas e autoritárias. Daí a ênfase dada à "autonomia" significar, em
realidade, um último e humilde esforço para descobrir a liberdade interior,
depois de se haverem esgotado todas as possibilidades de uma formação
autoritária, extremamente severa e austera como os métodos dos Mestres
do Zen o mostram com tanta clareza!)
Por outro lado, repetimos aqui o que já foi dito: não podemos
negligenciar a grande importância da experiência no cristianismo. Mas a
experiência cristã tem sempre modalidade especial pelo fato de ser
inseparável do mistério do Cristo e da vida coletiva da Igreja Corpo de
Cristo.
Experimentar o mistério do Cristo misticamente, ou de outro modo, á
sempre transcender o nível meramente individual psicológico e "experimentar
teologicamente com a Igreja" (Sentire cum Eccle-sia). Em outras palavras, a
experiência deve sempre, de algum modo, ser reduzível a uma forma
teológica capaz de ser partilhada com toda a Igreja ou que demonstre
tratar-se de uma participação nas experiências de toda a Igreja. Existe,
portanto, nos relatos das experiências cristãs, uma tendência natural para
relatá-las em linguagem e símbolos facilmente acessíveis a outros cristãos.
Isso, por vezes, pode significar inconsciente tradução do inexprimível em
símbolos que nos são familiares, sempre à mão para emprego imediato.
O Zen, ao contrário, resiste resolutamente a qualquer tentação para ser
facilmente comunicável, e uma grande parte do paradoxo e da violência dos
ensinamentos e da prática do Zen visa fazer explodir os fundamentos da
explicação imediata e do simbolismo confortador que está por baixo da
suposta "experiência" do discípulo. A experiência cristã é aceitável na medida
em que concorda com a teologia estabelecida e o quadro simbólico. A
experiência Zen só é aceitável na base de sua absoluta singularidade e,
entretanto, deve ser de algum modo comunicável. Como?
Não podemos compreender nem de longe como a experiência Zen se
manifesta e é comunicada entre mestre e discípulo, se não entendemos o que é
comunicado. Se não sabemos o que é que deve ser comunicado, o estranho
método de comunicação há de desconcertar e deixar-nos completamente no
escuro.

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Ora, no Zen o que é comunicado não é a mensagem. Não é simplesmente a
"palavra", embora possa ser a "palavra do Senhor". Não é um "quê". Não traz
"notícias" ainda desconhecidas de quem as recebe, sobre algo que o informado
ainda não sabia. O Zen comunica uma tomada de consciência que,
potencialmente, já está presente, sem, contudo, ter consciência disso. O Zen,
então, não é kerigma mas realização. Não é revelação, mas conscientização.
Não é notícia do Pai que envia o Filho a este mundo, mas tomada de
consciência do fundamento ontológico de nosso ser, aqui e agora, bem no
meio do mundo. Veremos adiante como o kerigma sobrenatural e a intuição
metafísica dos fundamentos do ser estão longe de ser incompatíveis. Pode-se
dizer que um prepara o terreno para o outro. Bem podem completar-se
mutuamente e, por essa razão, o Zen é perfeitamente compatível com a fé
cristã e, mesmo, com o misticismo cristão (se compreendemos o Zen em seu
estado puro e sua intuição metafísica).
Se isso é verdade, devemos então aceitar ser perfeitamente lógico admitir,
com os Mestres do Zen, que "o Zen nada ensina". Um dos maiores mestres do
Zen chinês, o Patriarca Hui Neng (sétimo século), foi interrogado por um
discípulo sobre questão importante: "Quem herdou o espírito do quinto
Patriarca?" (isto é, quem é, agora, o Patriarca?).

Hui Neng respondeu:


"Aquele que compreende o budismo".
O monge insistiu:
"Então, a herdaste?"
Hui Neng disse:
"Não".
"Por que não?"
"Porque não entendo o budismo".

A estória tem o intuito de ilustrar o fato de que Hui Neng tinha


herdado a tarefa do Patriarca ou o carisma de ensinar o puro Zen. Estava
qualificado para transmitir a iluminação do próprio Buda a seus discípulos. Se
Hui Neng tivesse proclamado possuir ensinamento autoritativo que tornasse
essa iluminação compreensível aos que a não possuíam, estaria então
ensinando algo diferente, isto é, uma doutrina sobre a iluminação. Estaria
disseminando a mensagem de sua própria compreensão do Zen e, nesse caso,
não despertaria os outros para o Zen dentro deles.

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Estaria imprimindo nele o selo de seu próprio conhecimento e doutrina. O Zen
não tolera isso, uma vez que seria incompatível com o verdadeiro propósito do
Zen: despertar profunda conscientização ontológica, intuição sabedoria
(Prajna) nos fundamentos do ser de quem é assim despertado. E, de fato, a
simples tomada de consciência de prajna não seria pura, nem imediata, se
fosse a consciência de que estamos entendendo prajna.
A linguagem utilizada pelo Zen é, portanto, em certo sentido, uma
antilinguagem. E a "lógica" do Zen é o inverso radical da lógica filosófica. O
dilema humano da comunicação está no fato de que não podemos nos
comunicar ordinariamente sem palavras e sinais, mas, mesmo a experiência
ordinária tende a ser falsificada pelos hábitos de verbalização e
racionalização. Os instrumentos convenientes da linguagem nos permitem
decidir de antemão o que pensamos que as coisas significam, e constituem
uma tentativa para vermos as coisas apenas de um modo que se enquadre em
nossos preconceitos lógicos e fórmulas verbais. Em lugar de ver as coisas e os
jatos como realmente são, nós os vemos como reflexos e verificações de
sentenças que previamente construímos em nossas mentes. Esquecemos com
muita rapidez como simplesmente ver as coisas, substituindo nossas palavras
e fórmulas de maneira a vermos somente o que se enquadra convenientemente
em nossos preconceitos. O Zen utiliza a linguagem contra a própria
linguagem, para fazer estourar tais preconceitos e destruir a enganadora
"realidade" existente em nossas mentes, para que possamos ver diretamente.
O Zen diz, como Wittgenstein dizia, "Não pense: olhe!"
Uma vez que a intuição Zen procura despertar uma consciência
metafísica para além do ego empírico, que reflete, conhece, fala, essa
conscientização deve estar imediatamente presente a si mesma e não sofrer a
mediação do conhecimento conceitual, reflexo ou imaginativo. E, no entanto,
longe de ser mera negação, o Zen é também inteiramente positivo. Ouçamos
sobre este assunto o Dr. D. T. Suzuki:

"O Zen sempre tem em mira apreender o fato central da vida, que nunca
pode ser colocado sobre a mesa da dissecação do intelecto. Para
apreender o fato central da vida, o Zen se vê forçado a propor uma série
de negações. Entretanto, a simples negação não é o espírito do Zen..."
(Daí, diz o Dr. Suzuki, os Mestres do Zen não afirmarem nem negarem;
agem ou falam simplesmente, de maneira tal que o ato ou a palavra é um
fato concreto regurgitando de Zen...) Continua Suzuki: "Quando o
espírito do Zen é apreendido em toda a sua pureza, poder-se-á ver que
coisa real é aquilo (no caso o ato de dar um tapa). Pois aqui não há
negação nem afirmação, mas um simples fato, uma pura experiência, o
próprio fundamento de nosso ser e de nosso pensamento. Toda a tran-
qüilidade e todo o vazio que se poderia desejar no meio da mais ativa
meditação aí se encontra. Não se deixa levar por coisa alguma exterior ou
convencional. O Zen tem de ser agarrado com as mãos nuas, sem luvas"*.

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É nesse sentido que "o Zen nada ensina; apenas nos possibilita um
despertar-nos e tornar-nos conscientes. Não ensina, aponta"**. Os atos e gestos
de um Mestre do Zen não são "declarações", como não o é o toque de um
relógio despertador.
Todas as palavras e todos os atos dos Mestres do Zen e de seus discípulos
devem ser entendidos nesse contexto. Geralmente, o Mestre está apenas
"produzindo fatos", que o discípulo pode ou não ver.
Muitas das estórias Zen que, em termos racionais, são quase sempre
incompreensíveis, constituem simplesmente o toque de um relógio despertador
e a reação de quem dorme. Geralmente, o adormecido atordoado responde ao
chamado com um gesto que silencia o despertador e lhe permite pegar de novo
no sono. Por vezes lhe acontece saltar da cama com um grito de surpresa por
ser hora tão tardia. Outras vezes dorme apenas, sem nem mesmo ouvir o des-
pertador!
Na medida em que o discípulo vê no fato um sinal de outra coisa, é por ele
enganado. Pode o Mestre (por meio de outro fato qualquer) tentar conscientizá-
lo a esse respeito. Com freqüência, é precisamente quando o discípulo percebe
estar totalmente enganado que ele toma consciência de tudo o mais;
principalmente, é claro, de que nada havia para ser tomado em conta senão o
próprio fato. Que fato? Se sabemos a resposta, estamos acordados. Ouvimos
o despertador!

* D. T. Suzuki, Introduction to Zen Buddhism, London, 1960, p. 51. (Publicado no Brasil, por
esta mesma Editora, sob o título: Introdução ao Zen-Budismo N. do T.) ** D. T. Suzuki,
op. cit., p. 38.

73

58
Mas nós, no Ocidente, vivendo numa tradição de duro egoísmo, centrado
no que é prático e dirigido inteiramente para a utilização e manipulação de
tudo, passamos sempre de uma coisa à outra, da causa ao efeito, do primeiro
ao seguinte, e ao último, voltando novamente ao primeiro. Tudo sempre traz
uma indicação para outra coisa e, assim, nunca paramos, pois não o podemos;
logo que paramos, o carro atinge o fim da viagem e temos de descer para pro-
curar um outro. A coisa alguma é permitido simplesmente ser e significar o
que é em si mesmo; tudo tem de, misteriosamente, significar outra coisa. O
Zen tem a especial finalidade de causar frustração à mente que pensa em tais
termos. O "fato" do Zen, seja qual for, sempre acaba por atravessar nosso
caminho como árvore caída, que não nos permite seguir adiante.
Nem faltam ao Cristianismo fatos assim: a Cruz, por exemplo. Do mesmo
modo que o "Sermão do Fogo" de Buda transforma radicalmente a
conscientização budista em relação a tudo o que o cerca, assim também a
"palavra da cruz", de maneira muito semelhante, dá ao cristão uma tomada de
consciência radicalmente nova quanto ao sentido de sua vida e de seu
relacionamento com os outros e com o mundo que o cerca.
Em ambos os casos, os "fatos" não são apenas impessoais e objetivos; são
fatos de experiência pessoal. Tanto o budismo como o cristianismo se
assemelham, ao utilizarem a trama ordinária do cotidiano da existência
humana como material para transformação radical da consciência. Uma vez
que a existência humana ordinária, cotidiana, está cheia de confusão e
sofrimento, é óbvio que serão utilizadas essas duas coisas para a
transformação de nossa conscientização e nosso entender, passando para além
de ambos a fim de atingir a "sabedoria" no amor. Seria grave erro supor que o
budismo e o cristianismo oferecem apenas várias explicações em relação ao
sofrimento ou, pior, justificações e mistificações construídas sobre esse fato
inelutável. Pelo contrário. Ambos demonstram como o sofrimento permanece
inexplicável, sobretudo para aquele que tenta explicá-lo a fim de evadir-se
dele, ou que pensa que a própria explicação seja uma fuga. O sofrimento não é
um "problema" como, por exemplo, algo que pudéssemos controlar de fora. O
sofrimento é considerado tanto pelo cristianismo como pelo budismo, cada um
a seu modo, como fazendo parte da nossa própria identidade-ego e de nossa
existência empírica. E a única coisa a fazer em relação a isso, é mergulhar de
cheio em plena contradição e confusão, de maneira a ser transformado pelo que
Zen denomina "a Grande Morte" e o cristianismo declara ser "morte e
ressurreição em Cristo".

74

59
Voltemos agora aos obscuros e fascinantes fatos específicos do Zen. Na
relação entre o Mestre Zen e o discípulo, o "fato" mais comumente
encontrado é a frustração do discípulo, sua incapacidade de chegar onde
deseja pelo emprego de sua própria vontade e raciocínio. A maior parte das
"palavras" dos mestres do Zen tratam dessa situação e procuram fazer com
que o discípulo compreenda que ele tem uma experiência fundamentalmente
enganadora em relação a si e às suas capacidades.
"Quando o carro pára", pergunta Huai-Iang, o Mestre de Ma-Tsu, "você
chicoteia o carro ou o boi?" E acrescenta: "Se alguém vê o Tao do ponto de
vista do fazer e do desfazer, do recolher e do dispersar, em realidade, não vê o
Tao".
Se o comentário em torno de chicotear o carro ou o boi é obscuro, outro
mondo (pergunta e resposta) poderá sugerir o mesmo fato de maneira diversa.
Um monge pergunta a Pai-Chang: "Quem é o
Buda?" Pai-Chang responde: "Quem é você?"
Um monge quer saber o que é prajna (a intuição sabedoria metafísica
Zen). E não só isto, mas Mahaprajna, a Grande ou a Absoluta Sabedoria. Isto
é, todo o conteúdo.

Responde o Mestre despreocupadamente:


"A neve está caindo rápida e tudo está envolto em nevoeiro".
O monge permanece silencioso.
Pergunta o Mestre: "Você compreende?"
"Não, Mestre, não entendo".
O Mestre, então, compõe um verso para o discípulo:
Mahaprajna
É nem entender nem desistir.
Se não compreendemos,
O vento está frio, a neve está caindo*.

75

60
O monge está "tentando compreender" quando, em realidade, deveria
tentar olhar. As "palavras" Zen, aparentemente misteriosas e obscuras,
tornam-se muito mais simples quando as vemos no contexto completo da
"conscientização" ou do "despertar" budista que, em sua forma mais
elementar, consiste naquela atenção pura e simples que apenas vê o que está
bem ali, sem acrescentar comentário algum, nenhuma interpretação, nenhum
julgamento, nenhuma conclusão. Simplesmente vê. Aprender a ver desta
maneira é o exercício básico e fundamental da meditação budista (Ver
Nyanaponika The-ro-Colombo, The Heart of Buddhht Meditation, Ceilão
1956).
Se alguém atinge o ponto onde a compreensão acaba, isso não é uma
tragédia: é apenas um lembrete para parar de pensar e começar a olhar.
Talvez, afinal, não haja nada para ser refletido; talvez o de que precisamos é
apenas despertar.
Disse um monge: "Onde não compreendes, aí está o ponto para a rua
compreensão."
"Como pode o entendimento ser possível, quando é impossível?"
Respondeu o Mestre: "A vaca dá à luz um elefantezinho; nuvens de
poeira se erguem sobre o oceano"**.
Numa linguagem mais técnica, e por isso, talvez, para nós mais
compreensível, diz o Dr. Suzuki: "Prajna é puro ato, pura experiência. . .
possui uma qualidade distintamente epistemológica. . . mas não é racionalista.
.. é caracterizada pelo imediato. . . não deve ser identificado com a intuição
ordinária... pois no caso da intuição prajna não há nenhum objeto definível
para ser alvo da intuição. . . Na intuição prajna, o objeto da intuição nunca é
um conceito postulado por um processo complicado do raciocínio.

* D. T. Suzuki, Introduction to Zen Buddhism, pp. 99-100. ** D T. Suzuki, op.


cit., p. 116.

76

61
Nunca é "isso" ou "aquilo". Não pretende prender-se a um objeto em
particular"*.
Por essa razão, Suzuki conclui que a intuição prajna é diferente da
"espécie de intuição que temos geralmente no discursar religioso e
filosófico", em que Deus, ou o Absoluto, são objetos da intuição e "o ato da
intuição é considerado completo quando um estado de identificação se realiza
entre o objeto e o sujeito"**.
Não é este o lugar de discutir a complexa e interessantíssima questão aqui
levantada. Diremos apenas não ser absolutamente certo que a intuição religiosa,
ou pelo menos mística, sempre veja a Deus "como objeto". E, de fato, veremos
que Suzuki qualifica essa opinião de modo radical, quando admite que a
intuição mística de Eckhart é o mesmo que prajna.
Deixando de lado essa questão, é preciso dizer agora que, se alguém
tentasse explicar uma interpretação filosófica e doutrinai das palavras Zen, como
as que citamos acima, estaria enganado. Se argumenta que Pai Chang, quando
aponta para a neve caindo (como resposta à pergunta sobre o Absoluto), quer
dizer que o fato (a neve caindo) se identifica com o Absoluto em outras
palavras, que essa intuição é tomada de consciência refletida, panteísta, do
Absoluto como objeto visto na neve caindo é sinal de que não compreendeu
de modo algum o Zen. Imaginar que o Zen "ensina o panteísmo", é imaginar
que tenta explicar algo. Repetimos: o Zen nada explica. Apenas vê. Vê o quê?
Não um Objeto Absoluto, mas um Ver Absoluto.
Embora isso possa parecer muito afastado do cristianismo, que é nitidamente
uma mensagem, devemos, no entanto, nos lembrar da importância atribuída à
experiência direta na Bíblia. Todas as formas do "conhecimento",
especialmente na esfera religiosa, e de modo particular no que se relaciona
com Deus, são válidas na proporção em que constituem matéria de experiência
e contato íntimo. Todos estamos familiarizados com a expressão bíblica
"conhecer", no sentido de possuir, no ato do amor. Não é aqui o lugar de exa-
minar as possíveis analogias com o Zen, nas experiências dos profetas do
Antigo Testamento. Certamente foram tão factuais, tão existenciais e
desconcertantes quanto qualquer "fato" do Zen! Nem podemos senão indicar
brevemente, aqui, a bem conhecida importância da experiência direta no Novo
Testamento. Isso deve, evidentemente, ser procurado, sobretudo, na revelação
do Espírito Santo, o Dom misterioso em que Deus se torna um no crente para
conhecer-se e amar-se naquele que crê.

* D. T. Suzuki, Studies in Zen, London. 1967, pp. 87-9. ** D. T. Suzuki, op. cit , p.
89.

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62
Nos dois primeiros capítulos da primeira epístola aos Coríntios, São
Paulo faz a distinção entre duas espécies de sabedoria: a que consiste no
conhecimento de palavras e declarações, é sabedoria racional, dialética. E
outra que é ao mesmo tempo paradoxo e experiência e vai além do alcance da
razão. Para alcançar tal sabedoria espiritual, é preciso antes libertar-se da
dependência servil em relação "à sabedoria da linguagem" (I, Cor. 1, 17). Essa
libertação se efetua pela "palavra da Cruz", que não tem sentido para aqueles
que se agarram ao seu próprio modo de ver, e a seus hábitos de pensar, e é um
meio pelo qual Deus "destrói a sabedoria dos sábios" (I, Cor. 1, 18, 23). A
Palavra da Cruz é, de fato, completamente desconcertante e tanto para os
gregos, com sua filosofia, como para os judeus, com sua bem interpretada lei.
Porém quando formos libertados da dependência às fórmulas verbais e
estruturas conceituais, a cruz tornar-se-á uma "força". Força que emana da
"estultície de Deus" e também faz de nós "instrumentos estultos" (os
Apóstolos), (I, Cor. 1,27, sgs.). Por outro lado, aquele que é capaz de aceitar
essa "estultície" paradoxal experimenta em si uma força secreta e misteriosa
que é a força do Cristo que vive nele, como fundamento de uma vida
inteiramente nova e um ser novo (I, Cor. 2, 1-4 cf. Efésios, 1, 18-23, Gal. 6,
14-16).
É essencial lembrar que, para o cristão, "a palavra da Cruz" não é nada de
teórico, mas sim uma experiência crua e existencial de união com Cristo em
sua morte, de modo a participar de sua ressurreição. "Ouvir" plenamente e
"receber" a palavra da Cruz significa muito mais do que simples assentimento
à proposição dogmática de que Cristo morreu por nossos pecados. Significa
"estar pregado na Cruz com Cristo", de modo que o eu egoísta não é mais o
princípio que regula nosso agir mais profundo, que agora emana do Cristo
vivendo em nós. "Vivo, não mais eu, é Cristo que vive em mim" (Gal. 2, 19-
20. Ver também Romanos, 8, 5-17). Receber a palavra da cruz significa
aceitar um total esvaziamento, a quênose em união com o esvaziamento do
Cristo "obediente até a morte". (Fil. 2, 5-11). É essencial ao verdadeiro
cristianismo que essa experiência da Cruz e do total esvaziamento esteja no
próprio centro da vida do cristão. Só assim poderá ele receber em plenitude o
Espírito Santo e conhecer (novamente por experiência) todas as riquezas de
Deus em Cristo e por Cristo (João 14, 16-17, 26; 15, 26-27; 16, 7-15).

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63
Quando Gabriel Mareei declara: "Há mais de um limiar, em nossa vida,
que o pensamento, apenas entregue a si mesmo, jamais nos permitirá transpor.
Requer-se uma experiência uma experiência de pobreza e de
enfermidade. . . " * Marcel enuncia uma simples verdade cristã em termos
familiares ao Zen.
Jamais nos devemos esquecer de que o cristianismo é muito mais do que
aceitação intelectual de uma mensagem religiosa, por parte de uma fé cega e
submissa, que nunca entende o que significa a mensagem, a não ser em termos
de interpretações autoritaristas transmitidas externamente por especialistas, em
nome da Igreja. Pelo contrário, a fé é a porta que se abre à vida interior plena
da Igreja. É vida que inclui não somente o direito a um ensinamento baseado
na autoridade, mas sobretudo o ingresso numa experiência profunda e pessoal,
ao mesmo tempo singular e, entretanto, partilhada com todo o Corpo Místico
de Cristo no Espírito de Cristo. São Paulo compara esse conhecimento de
Deus no Espírito ao conhecimento subjetivo que o homem tem de si próprio.
Assim como ninguém pode conhecer o meu interior, a não ser o meu próprio
"espírito", assim também não pode alguém conhecer a Deus se não no Espírito
de Deus. Contudo esse Espírito Santo nos é dado de modo a que Deus se
conheça a si mesmo em nós. E essa experiência é totalmente real, embora não
possa ser comunicada em termos compreensíveis àqueles que dela não
participam. (Ver I, Cor. 2, 7-15). Conseqüentemente São Paulo conclui:
"Temos o espírito (a mente) do Cristo". (I, Cor. 2, 16).
Ora, quando vemos que, para o budismo, prajna é descrita como "ter o
espírito (a mente) de Buda", compreendemos que, sem dúvida, deva haver
possibilidade de encontrar em qualquer parte uma analogia entre a experiência
budista e a cristã, embora estejamos agora falando mais em termos de doutrina
do que de pura experiência. No entanto, a doutrina é sobre a experiência.

* Citado por A. Gelin. Les Pauvres de Yahvé, Paris, 1954, p. 75.

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64
Não podemos aprofundar agora nossa pesquisa. Ê, porém, significativo o
fato de Suzuki, ao ler as seguintes linhas de Eckhart (que são perfeitamente
ortodoxas e tradicionais na teologia católica) considerá-las "o mesmo que a
intuição prajna"*:
"Deus, ao dar-nos seu amor, deu-nos seu Espírito Santo para que o
possamos amar com o mesmo amor com que Ele se ama". O Filho que em
nós ama o Pai, no Espírito, é assim traduzido por Suzuki em termos Zen: "um
espelho refletindo outro, sem sombra alguma entre os dois"**.
Suzuki também cita freqüentemente uma declaração de Eckhart: "O olhar
com que vejo a Deus é o mesmo olhar com que Deus me vê" ***, como
sendo a expressão exata do que o Zen quer significar pela prajna.
Se a interpretação de Suzuki desse texto, em termos de Zen, está
teologicamente perfeita em todos os sentidos, resta ser examinada. O fato é
que, à primeira vista, não parece haver razão para não ser inteiramente
aceitável. O importante para nós aqui é que a interpretação c altamente
sugestiva e interessante cm si, refletindo uma espécie de afinidade intuitiva
com o misticismo cristão. Além disso, é bastante significativo o fato de um
pensador japonês, formado no Zen, mostrar-se tão aberto ao que é,
basicamente, o mais obscuro e difícil mistério da teologia cristã: o dogma da
Trindade e a missão das Pessoas divinas em relação ao cristão e à Igreja. Isso
pareceria indicar que o verdadeiro campo de pesquisa para as analogias e as
correspondências entre o Cristianismo e o Zen poderia, afinal, ser o da
teologia, de preferência à psicologia ou ao ascetismo. Pelo menos, a teologia
não está excluída. Tem, no entanto, de ser teologia da experiência cristã, e não
a teologia especulativa dos manuais e das discussões.
De modo algum as poucas palavras escritas nesta Introdução e as breves
sugestões esboçadas pretendem ser uma "comparação" adequada entre a
experiência cristã e a experiência Zen. Evidentemente, fizemos pouco mais
do que expressar uma piedosa esperança de que se possa um dia encontrar um
terreno comum.

* D. T. Suzuki, Mysticism: East and West, p. 4o. A citação é da tradução de Eckhart por C. de
B. Evans, Londres, 1924, p. 747.
** D. T. Suzuki, op. cit., p. 41.
*** D. T. Suzuki, op. cit., p. 50.

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65
Mas isso deveria ao menos levar o leitor ocidental e cristão a maior disposição
para percorrer este livro com o espírito aberto. Talvez o que aqui foi exposto
possa ajudá-lo a suspender o julgamento durante algum tempo, sem logo
decidir que o Zen é coisa tão esotérica e "estrangeira" que não tem para nós
interesse nem importância. Pelo contrário. O Zen muito tem a ensinar ao
Ocidente. Recentemente Dom Aelred Graham, OSB, num livro que se tornou
merecidamente "popular"* indicou haver no Zen não pouco conteúdo
pertinente à nossa prática ascética e religiosa. É bem possível adaptar o Zen e
empregá-lo para clarear a atmosfera das irrelevâncias ascéticas, para ajudar-nos a
retomar um sadio equilíbrio natural em nossa compreensão da vida espiritual.
Mas o Zen tem de ser apreendido em sua simples realidade, e não deve ser
racionalizado ou imaginado em termos de alguma fantástica e esotérica
interpretação da existência humana.
Embora poucos ocidentais cheguem efetivamente a uma verdadeira
compreensão do Zen, ainda valerá a pena, para eles, exporem-se à sua
atmosfera revigorante e forte.

* Graham, Zen Cathoiicism, New York, 1963.

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D. T. Suzuki:
O Homem e Seu Trabalho*

«On peut se sentir fier d'être contemporain d'un certain nombre


d'hommes de ce temps...»
Albert Camus
VIVEMOS em época fora do comum. Por isso, não é de admirar que tenhamos
tido homens fora do comum em nossos tempos. Embora menos
universalmente conhecido do que Einstein, talvez, e Gandhi (que se tornaram
símbolos de nossa época) nem por isso Daisetz Suzuki deixou de ser homem
menos notável. E, conquanto seu trabalho possa não ter tido efeito de tanta
ressonância entre o público, contribuiu não pouco para a revolução espiritual
e intelectual de nosso tempo. Com o impacto do Zen sobre o Ocidente, re-
presentado com toda a força, logo após a Segunda Guerra Mundial, em plena
comoção existencialista, no início da era atômica e cibernética, com a religião
e a filosofia em estado de crise e com a consciência do homem ameaçada pela
mais profunda alienação, o trabalho deu prova de ser tanto oportuno como
frutuoso muito mais frutuoso do que talvez tenhamos já começado a
entender. Não falo aqui do entusiasmo ocidental, em certa medida superficial,
em relação às aparências externas e à "espuma" do Zen. (O próprio Dr. Suzuki
sabia avaliá-lo com tolerância, mas com objetividade). Falo do fermento ativo
da intuição Zen que ele introduziu no já ebuliente fermento do pensamento
ocidental em seus contatos com a psicanálise, a filosofia e o pensamento
religioso, como o de Paul Tillich.

* Este artigo foi publicado pela primeira vez em The Eastern Buddhist (New Series) Vol. II, n' I
(Universidade de Otarri, Kioto, Japão), agosto de 1967.

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67
Não há dúvida de que o Dr. Suzuki trouxe à era do diálogo um dom seu,
todo especial: a capacidade de apreender e ocupar os pontos precisos em que se
espera que a comunhão seja mais eficaz. Pôde o Mestre realizar o difícil
encargo mais eficazmente quanto se podia sentir estar ele inteiramente livre dos
ditames dos pensamentos-pa-drão do partidarismo e do ritualismo acadêmico.
Não estava obrigado a lançar-se ao jogo em busca de vantagens no mundo
intelectual. Assim, evidentemente, achou-se ele com toda naturalidade e sem
dificuldade numa posição de destaque. Falava com autoridade. A autoridade
do homem simples, clarividente, consciente das limitações humanas e não
inclinado a melhorá-las impondo-lhes enormes estruturas artificiais privadas de
real sentido. Não precisava colocar outra cabeça em cima da sua, como diz
uma sentença Zen. Isso é claramente uma vantagem em qualquer diálogo, pois,
quando os homens tentam dialogar uns com os outros, é bom que falem com
vozes distintas e pessoais para não causarem confusão, em relação às suas
identidades, falando ao mesmo tempo através de várias máscaras oficiais.
Tive a chance de encontrar-me com o Dr. Suzuki e de poder conversar
em espaço de tempo demasiadamente curto por duas vezes. Essa
experiência foi não somente proveitosa mas, diria eu, inesquecível. Foi, na
minha vida, um acontecimento bem extraordinário, uma vez que, devido às
circunstâncias em que vivo, não me encontro com todos aqueles com quem me
encontraria de maneira profissional se estivesse, vamos dizer, ensinando numa
universidade. Já conhecia, havia muito tempo, o trabalho do Mestre, e com ele
me correspondia. Tivéramos até um curto diálogo, que foi publicado, em que
discutíamos a "Sabedoria do Esvaziamento" como a encontramos
comparativamente no Zen e no cristianismo, nos padres do deserto do Egito
(ver neste volume p. 117, "Sabedoria e Vazio"). Por ocasião de sua última
visita aos Estados Unidos, tive o grande privilégio de encontrá-lo. Era preciso
avistar-se com este homem para poder apreciá-lo devidamente. Parecia-me que
ele encarnava todas as qualidades indefiníveis do "Homem Superior" das
antigas tradições asiáticas: taoísta, confucionista, budista. Ou melhor, ao
encontrá-lo, tinha-se a impressão de uma entrevista com aquele "Verdadeiro
Homem Sem Título", de que falam Chuang Tzu e os Mestres do Zen.

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68
E, está claro, é este o homem que se quer realmente encontrar. Quem mais
haveria? Ao reunir-me com o Dr. Suzuki, bebendo com ele uma xícara de chá,
senti haver encontrado esse homem único. Foi como se chegássemos, enfim, à
nossa própria casa. Uma experiência muito feliz, para dizer o mínimo. Não há
muita coisa a registrar a respeito. Pois discorrer longamente sobre isso atrairia
a atenção para os pormenores que, afinal, são irrelevantes. Quando se está de
fato com a pessoa, os múltiplos pormenores encaixam-se naturalmente na
unidade que é vista sem ser expressa. Quando se fala nisso em segunda mão,
vêem-se apenas os múltiplos pormenores. Assim, o Verdadeiro Homem, já
desapareceu; foi tratar de seus negócios alhures.
Até aqui falei apenas como um ser humano. Devo, porém, falar também
como católico; como um homem formado por certa tradição religiosa
ocidental mas, espero, com uma legítima curiosidade em relação à abertura
para com outras tradições. Alguém assim, só com certa hesitação, pode
arriscar pronunciamentos sobre o budismo, uma vez que não está certo de
possuir intuição segura em relação aos valores espirituais de uma tradição
com a qual não se familiarizou realmente. Falando em meu próprio nome,
posso adiantar que, no Dr. Suzuki, o budismo tornou-se finalmente para mim
inteiramente compreensível, enquanto antes fora algo de muito misterioso, um
confuso emaranhado de palavras, imagens, doutrinas, lendas, rituais, edifícios,
e assim por diante. Parecia-me que a grande e espantosa exuberância cultural
que tem revestido várias formas de budismo, em diferentes partes da Ásia, é o
belo vestuário lançado sobre algo de muito simples.
De fato, as maiores religiões são todas muito simples. Todas retêm
diferenças essenciais muito importantes, sem dúvida. Porém, em sua realidade
interior, o cristianismo, o budismo, o islamismo e o judaísmo são
extremamente simples (embora, como já disse, capazes de uma exuberante
riqueza que nos atordoa). E todas se resumem na coisa mais simples e
espantosa: confrontação direta com o Ser Absoluto, o Amor Absoluto, a
Misericórdia Absoluta ou o Vazio Absoluto, por meio de um engajamento
imediato e plenamente consciente na vivência do cotidiano. No cristianismo, a
confrontação é teológica e afetiva através da palavra e do amor. No Zen é algo
de metafísico e intelectual, através da intuição e do vazio.

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No entanto, o cristianismo possui uma tradição de contemplação apofática do co-
nhecimento no "não-conhecimento", enquanto as últimas palavras que o Dr.
Suzuki pronunciou, bem me lembro, ao nos despedirmos (antes dos usuais
adeuses) foram estas: "A coisa mais importante é o Amor!" Devo dizer que,
como cristão, fiquei profundamente comovido. Verdadeiramente prajna e
Karuna são uma só coisa (como diz o budista), ou caritas (amor) é a mais alta
sabedoria.
Vi o Dr. Suzuki apenas em duas rápidas visitas e não senti que devesse
perder tempo explorando explicações abstratas, doutrinais, a respeito de sua
tradição. Mas senti, sim, que falava a alguém que, numa tradição
completamente diferente da minha, havia amadurecido, tinha-se tornado
completo e encontrado o seu caminho. Não podemos compreender o budismo
enquanto não o encontramos dessa maneira existencial, numa pessoa que o
vive. Não há mais, então, o problema de compreender doutrinas que não
podem deixar de ser um pouco exóticas ao ocidental; há apenas a questão de
apreciar um valor que é por si mesmo evidente. Estou certo de que nenhum oci-
dental consciente e inteligente jamais se encontrou com o Dr. Suzuki sem reter
algo da mesma experiência.
A mesma qualidade existencial mostra-se evidente de outra maneira no
vasto trabalho já publicado do Dr. Suzuki. Trabalhador enérgico, original e
produtivo, que recebeu o dom de uma longa vida e um entusiasmo incansável
por sua especialidade, deixou-nos uma biblioteca inteira sobre o Zen em inglês.
Infelizmente, não estou familiarizado com sua obra em japonês, nem sou capaz
de avaliar o seu conteúdo. Mas o que temos em inglês é, sem dúvida alguma, a
apresentação mais completa e autêntica da tradição e da experiência asiáticas por
um único autor em termos acessíveis ao Ocidente. O que torna singular a obra
do Dr. Suzuki é o estilo direto em que um pensador asiático conseguiu
comunicar sua própria experiência acerca de uma tradição antiga e profunda,
em língua ocidental, o que é algo muito diferente das traduções, mais ou
menos fiéis, de textos orientais, por estudiosos ocidentais sem nenhuma
experiência dos valores espirituais asiáticos ou mesmo com a experiência
asiática adquirida por alguns ocidentais.
Uma das razões da especial eficácia da comunicação do Zen ao Ocidente
pelo Dr. Suzuki está no fato de que ele possuía uma capacidade bastante
notável de transpor o Zen para os termos autênticos das tradições místicas do
Ocidente que mais se lhe assemelhavam.

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Não sei até que ponto o Dr. Suzuki tinha profundo conhecimento dos místicos
ocidentais; havia lido Meister Eckhart de modo bem completo. (Mencionaria
eu aqui, entre parênteses, que concordo com o Dr. Suzuki em sua posição
final em relação ao Zen e ao misticismo, na qual ele optou por dizer que o
Zen "não é misticismo", para assim evitar certas ambigüidades desastrosas.
Essa questão, porém, exige mais estudo).
Embora o Dr. Suzuki aceitasse a idéia corrente ocidental um tanto
superficial sobre Eckhart, como sendo um fenômeno singular e completamente
herético, devemos admitir, com as conclusões mais recentes dos estudiosos, que
Eckhart representa, de fato, uma corrente ocidental vasta, e em boa proporção
ortodoxa, no pensamento religioso do ocidente: é a corrente que remonta a
Plotino e ao pseudo Dionásio e penetra no ocidente através de Scoto Erigena e
a escola medieval de São Vitor. Mas também afetou profundamente o Mestre
de Eckhart, Santo Tomás de Aquino. Havendo contactado essa tradição
relativamente pouco conhecida, Suzuki achou-a "congênere" e pôde utilizá-la.
Notei, por exemplo, que em nosso diálogo (pág. 93) ele pôde empregar a
linguagem mística, em que a queda do homem é descrita na Bíblia, e pelos
Padres da Igreja, com evidente vantagem, tanto psicológica como espiritual.
Suzuki falava das implicações da "queda" com naturalidade e facilidade, em
termos da alienação do homem em relação a si mesmo, e o fazia da mesma
maneira simples e natural como o fizeram os Padres da Igreja, como Santo
Agostinho ou São Gregório de Nissa. Para dizer a verdade, há muito em
comum, na intuição psicológica e espiritual dos Padres da Igreja e no
pensamento existencial cristão, com a inclinação psicanalítica de homens como
Tillich ele próprio mais influenciado do que muitos o percebem pela
tradição agostiniana.
O Dr. Suzuki estava perfeitamente à vontade nessa atmosfera e era
perfeitamente capaz de manejar esses símbolos tradicionais. Muito mais à
vontade, mesmo, nesse ambiente, do que muitos teólogos ocidentais.
Compreendia e apreciava melhor e mais diretamente a linguagem simbólica
da Bíblia e dos Padres da Igreja do que muitos de nossos contemporâneos,
incluindo católicos para os quais tudo isso é pouco mais do que motivo de
embaraços. Toda a realidade da "queda" do homem está inscrita em nossa
natureza, no que Jung denominava arquétipos simbólicos, e os Padres da
Igreja (assim como também os escritores da Bíblia, sem dúvida) estavam
muito mais preocupados com essa importância arquetípica do que com a
queda como "acontecimento histórico".

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Outros, além do Dr. Suzuki, sem serem cristãos, têm apreendido
instintivamente a importância deste símbolo. Dois nomes nos vêm à mente:
Erich Fromm, o psicanalista, e aquele notável e não bastante conhecido poeta
Edwin Muir, o tradutor para o inglês de Franz Kafka. Não creio que o Dr.
Suzuki fosse o tipo de pessoa que perde tempo preocupando-se em saber se é
ou não suficientemente "moderno". O Verdadeiro Homem Sem Nenhum
Título não se preocupa com esses rótulos, uma vez que não conhece outro
tempo a não ser o presente, e sabe que não pode apreender nem o passado nem
o futuro senão no presente.
Poder-se-ia dizer que todos os livros do Dr. Suzuki tratam do mesmo
assunto. De vez em quando, tomará certa distância para olhar o Zen do ponto
de vista da cultura ou da psicanálise, ou, tomando como ponto de partida o
misticismo cristão (em Eckhart). Porém, mesmo assim, não se afasta
realmente do Zen para penetrar em alguma outra área, ou até para adotar visão
inteiramente nova de Zen. Diz, de fato, quase as mesmas coisas; conta as
mesmas maravilhosas estórias Zen, talvez em palavras ligeiramente diferentes;
e termina com a mesma conclusão: o zero é igual ao infinito. Entretanto, não
há monotonia nas obras de Suzuki e não sentimos que ele se repita porque, na
verdade, cada livro é inteiramente novo. Cada livro é nova e completa
experiência. Aqueles dentre nós que escreveram muito, podem admirar essa
qualidade na obra do Dr. Suzuki: sua admirável consistência e unidade.
Diz o pseudo-Dionísio que a sabedoria do contemplativo se move num
motus orbiculares movimento circular em que se "plana", como o vôo da
águia, por cima de alguma invisível presa, ou como o girar de um planeta em
torno de um sol invisível. A obra do Dr. Suzuki dá testemunho da silenciosa
orbitação da prajna que é (na linguagem da mesma tradição ocidental do
pseudo-areopagita e do Erigena), um "círculo cuja circunferência não está em
lugar nenhum e cujo centro está em toda parte". Quanto a nós outros, viajamos
em vôo linear. Vamos longe, assumimos posições distantes, abandonamo-las,
participamos de combates e, depois nos admiramos perguntando-nos o motivo
que nos provocou tanta excitação. Construímos sistemas que em seguida
rejeitamos e perambulamos através de continentes procurando algo de novo. O
Dr. Suzuki permaneceu ali, onde se achava, em seu Zen, e o encontrou sempre
inexaurivelmente novo em cada novo livro. Certamente isso é indício de dom
especial, uma qualidade especial de gênio espiritual.
De qualquer modo, a obra do Dr. Suzuki permanece conosco como um grande
dom, como uma das realizações singulares espirituais e intelectuais de
nosso tempo. É-nos sobretudo preciosa pela maneira como tornou mais
próximos o Oriente e o Ocidente, ensejando um acordo entre o Japão e os
Estados Unidos, em nível muito profundo, quando tudo parece conspirar para
gerar conflitos, divisões, incompreensões, confusão e guerra. Nossa época nem
sempre se tem feito notar pelas obras de paz. Podemos orgulhar-nos de um
contemporâneo que dedicou sua vida a essas obras e o fez com tanto êxito.

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Nishida: Um Filósofo do Zen

O EMINENTE filósofo japonês Kitaro Nishida (1870-1945), contribuiu para


o Zen-budista de maneira análoga à contribuição de Jacques Maritain em favor
da filosofia católica. Construiu, dentro de sua própria tradição mística e na
base das suas intuições tradicionais e espirituais, filosofia que fala ao mesmo
tempo ao homem moderno inclusive o do Ocidente e permanece aberta à
mais elevada sabedoria que procura em Deus. O Dr. Daisetz Suzuki disse com
razão que é difícil compreender Nishida se não se tem algum conhecimento do
Zen. Por outro lado, certas noções de fenomenologia existencialista poderão
servir como preparação para compreender o único livro de Nishida até agora
traduzido para o inglês sua primeira obra A Study of Good*.
Como Merleau-Ponty, Nishida se preocupa com a estrutura primária da
consciência e procura preservar a unidade existente entre o consciente e o
mundo externo nele refletido. O ponto de partida para Nishida é a "experiência
pura", "experiência direta" de unidade indiferenciada que, de fato, é o oposto
do ponto de partida de Descartes em seu cogito.

* Tradução de V. H. Viglielmo, Printing Bureau, Japanese Government, Japanese National


Commission for UNESCO, 1960.

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Descartes acha sua intuição básica na autoconsciência refletida do sujeito
individual pensante, mantendo-se, por assim dizer, fora e separada de outros
objetos de conhecimento. Do ponto de partida do pensamento refletido, o
sujeito toma os conceitos abstratos de si e de seu ser como objetos cogito
ergo sum. Para Nishida (como, noutro contexto, para Maritain) o que vem em
primeiro lugar é a intuição unificante da unidade básica do sujeito e do objeto
no ser ou uma profunda "apreensão da vida" em sua existencialidade
concreta "na base do consciente". Essa unidade básica não é um conceito
abstrato mas é o próprio ser carregado de dinamismo do espírito de amor.
Nesse sentido, poderíamos adiantar que o ponto de partida de Nishida é sum
ergo cogito. Contudo, isso deve ser tomado como o tentador grão de sal do
Zen: "Eu sou", mas quem é esse "eu" ? A realidade fundamental não é nem
externa nem interna, nem objetiva, nem subjetiva. Antecipa toda diferenciação
e contradição. O Zen o denomina vazio (Sunyata). A madura apreensão do
vazio primordial em que todas as coisas são uma só é prajna ou sabedoria.
Essa sabedoria é a experiência direta não do "Uno" e do "Absoluto" em
abstrato, mas "do Ser" ou da "natureza do Buda". Para essa consciência
unitiva, que Nishida vê como uma união de amor, ele emprega o termo
"Espírito".
Nishida é um bom membro do Zen e, assim, não reduziria tudo
simplesmente a uma unidade abstrata original e deixando-a em seguida
dissolver-se. Seria, como ele o declara repetidamente, uma traição à realidade e
à vida. Da unidade original indiferenciada da ex
periência pura devem surgir contradições. E, através das contradições e dos
conflitos, a mente e a vontade do homem têm de abrir
caminho arduamente para chegar a uma unidade mais elevada, em
que a "experiência direta" e primitiva se manifesta num nível superior. Aqui
as contradições e os conflitos são resolvidos numa unida
de transcendente que é, de fato, uma experiência religiosa. Nishida
emprega o termo "místico" para descrevê-lo. Outros escritores Zen
evitaram esse termo particular por considerá-lo como podendo levar
a enganos.
Talvez o personalismo de Nishida seja o aspecto mais revolucionário de
seu pensamento, pelo menos do ponto de vista budista.

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A conclusão de A Study of Good é que, de fato, o bem mais elevado é o
bem da pessoa. Isso pode, à primeira vista, ser uma contradição direta dos
postulados básicos da religião budista. Buda ensinou que todo mal está
enraizado na "ignorância", que nos faz tomar nosso ego individual como sendo
nosso verdadeiro ser. Nishida, porém, não confunde a "pessoa" com o ser
individual externo. Nem é a "pessoa", para ele simplesmente o "sujeito"
relacionado a vários objetos, ou mesmo a Deus num relacionamento eu-Tu. A
raiz da personalidade deve ser procurada no "eu verdadeiro" que se manifesta
na unificação básica do consciente, onde o objeto e o sujeito são um só.
Assim, o bem mais elevado é "a fusão do eu com a mais elevada realidade". A
personalidade humana é considerada como a força que efetua essa fusão. As
esperanças e os desejos do eu externo se opõem a essa unidade mais elevada.
Estão centrados na afirmação do indivíduo. Somente quando as esperanças e
os temores do ser individual são eliminados e esquecidos é "que a verdadeira
personalidade humana aparece". Em uma palavra, a realização da
personalidade humana em seu sentido mais elevado, espiritual, é para nós o
bem para o qual toda vida deve ser orientada. £ mesmo o "bem absoluto", na
medida em que a personalidade humana é, para Nishida, íntima e
provavelmente, até de modo essencial, relacionada à personalidade de Deus.
É outra tese bastante revolucionária face ao budismo. Nishida declara, com
clareza e de modo decisivo, que "a mais profunda exigência do coração
humano", ou "a exigência religiosa", é a procura de um Deus pessoal. Tal
exigência não leva à suprema satisfação de aspirações individuais. Pelo
contrário, requer o sacrifício e a morte. O eu individual deve renunciar à
tendência a afirmar-se como "centro de unificação" e de conscientização.
Deus, o próprio Deus pessoal, é o mais profundo centro de conscientização e
unificação (lembremos-nos do emprego dessa expressão por São João da Cruz).
Compreender plenamente isso, não por um aniquilamento e uma imersão
quietistas, mas pelo amor consciente e criativo, constitui nosso bem mais
elevado.
Para o filósofo cristão, surge um problema do fato de que, enquanto, para
Nishida, Deus é explicitamente pessoal, ele é também explicitamente
panteísta, e se torna o Espírito da unidade e da verdade no centro do
universo, uma espécie de anima mundi. Mas, para alguém familiarizado com
o pensamento oriental, estará claro que como aquilo que para nós constitui
uma confusão filosófica vem da incursão do pensamento puramente religioso
e místico no terreno da estrutura filosófica se torna, então, extrapolação de
uma profunda experiência mística.

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O pensador cristão certamente não perderá de vista as perspectivas e
distinções que se foram desenvolvendo na sua própria tradição, mas que
nunca se fizeram sentir como necessárias no Oriente. O advento do
pensamento técnico filosófico, no sentido ocidental, é algo de totalmente
novo no Japão. Tradicionalmente, as filosofias orientais tendem a combinar o
pensamento filosófico religioso com expressões concretas de experiência
espiritual. O importante é que, em termos de metafísica panteísta, Nishida
Kitaro expressa intuições religiosas de grande pureza e profundidade, que se
assemelham às de alguns grandes pensadores místicos da nossa própria
tradição. As linhas finais do livro podem servir para lembrar-nos desse fato.
"Deus não é alguém a ser conhecido por meio de análises e raciocínios. Se
considerarmos que a essência da realidade é algo de pessoal, Deus é aquilo
que é mais pessoal. Nosso conhecimento de Deus só é possível através da
intuição do amor ou da fé. Portanto, aqueles que dizem não conhecer a Deus,
mas somente amá-lo e nele crer, são os mais aptos a conhecê-lo".
Deixaríamos inteiramente de conhecer o pensamento de Nishida se não
apreendêssemos seu espírito profundamente religioso e "místico". Suas
conclusões em relação ao bem mais elevado já se acham resumidas na frase
de diário mais antigo: "Se meu coração puder tornar-se puro e simples como
o de uma criança, creio que não pode haver maior felicidade do que isso".

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Experiência Transcendente *

QUEM É QUE TEM UMA EXPERIÊNCIA TRANSCENDENTE?

A FINALIDADE desta nota é levantar uma questão importante. É, de fato,


lançar uma séria dúvida sobre suposições que, tomadas simplesmente como
normais, tornam toda discussão sobre a experiência transcendente,
especialmente a experiência "mística", completamente ambígua. Essa
ambigüidade está fadada a tornar estéril e frustrar as disciplinas ou outros
meios empregados para "atingir" a experiência transcendente.
Em primeiro lugar, que significa experiência transcendente? O termo não
é satisfatório, mas pretende sintetizar o assunto. Experiência transcendente é
algo mais nítido do que "experiência culminante". S uma experiência de
autotranscendência metafísica ou mística e, ao mesmo tempo, uma experiência
do "Transcendente", ou do"Absoluto", ou de "Deus", não tanto como objeto
mas como Sujeito.

Este ensaio foi publicado pela primeira vez (com copyright) pelo R. M. Bucke Memorial Society em sua
revista Newsletter-Review, Vol I, n* 2, Setembro de 1966 (Montreal).

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77
O fundamento Absoluto do Ser (e, para além disso, a Divindade como
"Urgrund", isto é, como liberdade infinita não circunscrita) se realiza por
assim dizer "por dentro" realizada por dentro "Dele próprio" e por
dentro de "mim próprio", embora o "eu" esteja agora perdido e "encontrado"
"Nele". Todas essas expressões metafóricas apontam para o problema que
temos em mente: o problema de um "eu" que é um "não-eu", mas de modo
algum é um "eu alienado". É, pelo contrário, um Eu transcendente que para
torná-lo mais claro em termos cristãos, é metafisicamente distinto do Ser
de Deus e, contudo, está perfeitamente identificado com este Ser pelo amor e a
liberdade, de maneira que parece haver apenas um Ser. A experiência
correspondente é o que aqui denominamos "experiência transcendente" ou a
iluminação da sabedoria (sapienlia, So-phia, Prajna). Atingir essa experiência
é penetrar a realidade de tudo, é apreender o sentido da própria existência,
encontrar nosso lugar próprio nas estruturas e planos, e relacionar-se
perfeitamente com tudo que está numa relação de identidade e amor.

O que isso não é:


Não é imersão regressiva na natureza, no cosmos ou no "puro ser", em
tranqüilidade narcista, uma feliz perda de identidade num gostoso, regressivo,
escuro, oceânico desmaio! Não é precisamente identificável, por exemplo, com
experiências eróticas extremas, mesmo quando são autenticamente pessoais em
vez de simbióticas (no sentido de FROMM) - É mais do que transcendência
estética, embora possa com ela combinar e elevá-la a um ponto mais alto de
intuição metafísica, (como na pintura Zen). É também, mais do que
transcendência moral, a experiência daquela heróica generosidade no dar de
si, que nos leva além e acima de nossos próprios limites. Evidentemente, pode
também combinar com o (ou mesmo brotar do) heroísmo moral, elevando-o
ao plano de um sacrifício místico de si e dar de si.
Está, finalmente, situado além do nível comum da experiência religiosa ou
espiritual (experiência autêntica, é claro) em que a inteligência e o "coração"
(um termo tradicional e técnico geralmente no sufismo, no hesicasmo e no
misticismo cristão) são iluminados, recebendo uma intuição ou visão
interior em relação ao sentido da revelação, ou do ser, ou da vida. Todas
essas experiências estão situadas num nível em que o sujeito autoconsciente
permanece mais ou menos consciente de si como sujeito e, de fato, sua
percepção dessa subjetividade é aumentada, ao mesmo tempo que purificada.
Na experiência transcendente, porém, há uma mudança radical e
revolucionária no sujeito. Essa transformação não deve ser confundida com a
regressão psicológica. Embora, por vezes, possa acontecer que o impacto na
psique e no organismo seja tal que, "cego por luz excessiva", vê-se afligido e
obrigado a retroceder para uma espécie de escuridão regressiva, em preparação
para o salto na pura transcendência, liberdade, luz, amor e graça.

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Quem é que tem essa experiência?
Com freqüência, as descrições e discussões dessa experiência parecem achar
óbvio que o seu único sujeito seja o ego, a pessoa individual. Presumimos que
esse eu empírico, que é capaz de ter consciência de si e de afirmar-se como "Eu
sou" (até mesmo, "Eu tenho experiências, portanto, eu sou") é, ao mesmo tempo,
o sujeito e o beneficiário das experiências transcendentes. Estas se tornam o
coroamento glorioso do ser-ego e da auto-realização. Sem dúvida, admitimos
que, ao transcender-se, o ego passa de fato "além" de si próprio, mas, por fim,
essa prova de elasticidade espiritual confere-lhe honra e mérito... . Quanto
mais puder ser esticado sem estourar, tanto mais será considerado um melhor
e mais respeitável ego. Sim, o ego, de fato, se exercita a ser tão
completamente elástico que chega a poder esticar-se até quase desaparecer, e
ainda conseguir voltar e marcar mais uma experiência no quadro dos recordes.
No entanto, nesse caso não há nenhuma verdadeira autotranscendência. A
"viagem" * empreendida é, em último caso, uma relaxação e intensificação da
autoconscientização.
São necessárias, talvez, algumas observações para explicar essa maneira de
descrever a experiência transcendente:
1) Pode ela ser satisfatória se o que se quer é apenas descrever uma
experiência no nível estético ou mesmo moral. Mas logo que essa espécie de
linguagem é empregada para expressar uma experiência transcendente
religiosa ou metafísica, tal como o êxtase místico, o Satori Zen, e assim por
diante, isso não só corre o risco de enganar, mas enreda nosso pensamento em
irreconciliáveis contradições.

* LSD (N. do T.)

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2) Por essa mesma razão, é básico no misticismo tanto do Zen, como do
Sufismo e do Cristianismo (para mencionar apenas aquelas abordagens das
experiências transcendentes com as quais o autor está familiarizado)
questionar radical e incondicionalmente o ego, que parece ser o sujeito da
experiência transcendente, e assim, é claro, questionar radicalmente a própria
natureza da experiência precisamente como "experiência". Poderemos ainda
falar de experiência quando o sujeito da experiência não é um sujeito
limitado, bem definido, empírico? Ou, em outras palavras, podemos falar em
"conscientização" quando o sujeito consciente não é mais capaz de ter
percepção de si como sendo algo de separado e singular? Então, se o ego
empírico estiver, ainda que de modo mínimo, consciente, estará consciente de
si como transcendente, irrelevante, ilusório, relegado e, de fato, raiz de toda a
ignorância (Avidaya) ?
3) Uma vez feita esta declaração, vemos que clarifica os termos com que
se pode falar de uma experiência transcendente, dessas a que me refiro, como
regressiva.
Mesmo que se fale de "regressão a serviço do ego", parece ter pouco ou
nada a ver com a experiência autenticamente transcendente, que é questão de
superconsciência, em vez de um lapso que faz cair no pré-consciente ou no
inconsciente. (O "inconsciente" do Zen é antes metafísico do que
psicológico). O termo tradicional no misticismo cristão, raptus ou "enlevo",
implica, não a maneira de ser "arrebatado", que pertence mais propriamente à
experiência estética ou erótica (embora o simbolismo erótico seja empregado
para descrevê-lo em certos tipos de misticismo cristão), mas de ser
ontologicamente elevado "acima de si próprio" {supra se). Na tradição cristã,
a focalização dessa "experiência" se encontra, não no próprio indivíduo como
ego separado, limitado, temporal, mas em Cristo, ou no Espírito Santo "no
íntimo" do ser. No Zen, é este o ser com S maiúsculo: isto significa
precisamente não tratar-se do eu-ego. Esse Ser é o Vácuo.
É verdade que pronunciamentos sobre o total aniquilamento do eu devem
sempre ser tomados com sérias reservas e, ao que parece, são de natureza a
serem assim recebidos, especialmente pelos místicos cristãos. E, contudo, é
evidente que essa identidade, ou a pessoa, que é o sujeito dessa
conscientização transcendente, não é o ego isolado e contingente, mas a
pessoa "encontrada" e "atualizada", "realizada", na união com Cristo. Em
outras palavras, na tradição mística cristã a identidade do místico nunca é pura
e simplesmente mero ego empírico e ainda menos o eu neurótico e
narcisista mas a "pessoa" identificada ao Cristo. "Vivo, não eu, agora, mas
o Cristo que vive em mim". (Gal. 2, 20).

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Na tradição cristã, encontramos essa transcendência pessoal referida
como sendo "ter a mente do Cristo", ou como conhecer e ver "no Espírito do
Cristo". Espírito, aqui tomado no sentido estritamente pessoal, não apenas
uma vaga referência a um certo clima emocional interno. Esse Espírito que
"sonda todas as coisas, mesmo as profundezas de Deus" e "compreende os
pensamentos de Deus" tão bem como o homem compreende seu próprio
coração, "nos é dado" em Cristo como uma superconsciência transcendente de
Deus e "do Pai" (Ver I Cor. 2; Rom. 8, etc).
De maneira mais específica, toda experiência transcendente é, para o
cristão, uma participação na "Mente do Cristo". "Tende em vós os
sentimentos que estavam no Cristo Jesus... que se aniquilou a si mesmo...
obediente até a morte... Por isto Deus o exaltou e lhe deu o nome que está
acima de todos os nomes". (Fil. 2, 5-10).
Essa dinâmica de esvaziamento e transcendência define com agudeza a
transformação da consciência cristã em Cristo. É uma transformação
quenótica, um esvaziamento de todo o conteúdo da consciência do eu, a fim
de tornar-se um vácuo em que a luz de Deus, ou a glória de Deus, a plena
irradiação da infinita realidade de seu Ser e de seu Amor se manifestam.
Diz Eckhart em termos perfeitamente ortodoxos e tradicionalmente
cristãos que: "Ao dar-nos seu amor, deu-nos Deus seu Espírito Santo para que
o possamos amar com o mesmo amor com que Ele se ama, a percepção disso
nos deifica". O Dr. D. T. Suzuki cita essas palavras com aprovação, fazendo a
comparação com a sabedoria prajna do Zen*.
Notem que, no budismo também, o mais elevado grau do de-
senvolvimento da consciência é aquele em que o ego individual é totalmente
esvaziado e se identifica com o Buda iluminado, ou melhor, torna-se, em
realidade, a mente iluminada de Buda. O Nirvana não é a consciência de um
ego consciente de si próprio como havendo atravessado "para a outra margem"
(estar "noutra margem" é o mesmo que não ter atravessado para o outro lado),
mas é a consciência fundamental absoluta do Vácuo, onde não há margens
nem praias. Assim, o budista penetra no auto-esvaziamento e na iluminação
do Buda como o cristão penetra no auto-esvaziamento (a crucificação) e a
glorificação (ressurreição e ascensão) do Cristo. A principal diferença entre
ambos é ser o primeiro existencial e ontológico, e o segundo teológico e
pessoal. Mas a "pessoa" aqui deve ser distinguida do "ego individual
empírico".

* D. T. Suzuki. Mysticism: East and West, p. 40

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81
4) Isso explica por que, em todas essas mais elevadas tradições
religiosas, o caminho para a realização transcendente é um caminho de auto-
esvaziamento e do "nada" em relação a si, do negar-se. De modo algum é um
caminho de auto-afirmação, auto-realização e "êxito perfeito". Por isso é que
essas tradições consideram necessário expressar-se em fortes termos
negativos em relação ao que sucede ao sujei to-ego que, em vez de se
"realizar" dentro de seu próprio eu limitado, é apresentado como
simplesmente desaparecendo, de modo total, do panorama. A razão disso não
é que a pessoa perca seu status metafísico ou mesmo físico, ou regresse à
não-identidade, mas antes o fato de que seu verdadeiro status é inteiramente
outro, diverso do que nos aparece como sendo empiricamente o seu status.
Assim, torna-se fabulosamente importante para nós desapegar-mo-nos de
nossa concepção ordinária como sendo sujeitos potencialmente aptos para
receber experiências singulares, ou candidatos à realização, ao êxito, à
plenitude. Em outras palavras, significa que um orientador espiritual, digno
de seu nome, há de empreender uma severa campanha contra todas as formas
de ilusão que brotem da ambição espiritual, e da autocomplacência que visam
estabelecer o ego na glória espiritual. Por isso é que São João da Cruz
mostra-se tão hostil às visões, aos êxtases e a todas as formas de
"experiências especiais". E é por isso que os Mestres do Zen declaram: "Se
encontrares o Buda, mata-o".
Temos, aqui, de ser muito circunspectos. O "Objeto Sagrado" deve ser
destruído na medida em que é um ídolo encarnando os desejos secretos, as
aspirações ocultas e os poderes do ego narcisista. Por outro lado, é inútil, e
mesmo bárbaro, querer simplesmente varrer todos os outros ídolos, de
maneira a confirmar, como absoluto e supremo, o ídolo de um ego narcisista
supostamente revestido de suprema autonomia e livre para seguir os próprios
e onipotentes caprichos espirituais. Isso não seria liberdade espiritual, mas
total narcisismo.

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Existe, portanto, um lugar bem marcado para disciplinas baseadas numa
relação eu-Tu entre o discípulo e o mestre, entre o crente e seu Deus. É
precisamente na familiaridade com o culto litúrgico e a disciplina moral que o
neófito encontra a sua identidade; adquire certa segurança, resultante da
prática da vida espiritual, e aprende a acreditar que a vida espiritual tem um
escopo possível de ser alcançado. Mas aquele que progride no caminho deve
também aprender a relaxar sua presa, isto é, a concepção que tem do que seja
o escopo e "quem é" que o vai atingir. Apegar-se com demasiada tenacidade
ao "eu" e à auto-realização seria a garantia de não existir nenhuma realização.
Quanto ao estudo de todo esse problema do "eu-ser" e de "pessoa"
questão de importância crucial para o diálogo entre a religião do Ocidente e
do Oriente deve ser feito no plano da metafísica e o ego, como hipótese
atuante na psicologia, não deve ser confundido com a pessoa metafísica que,
ela somente, é capaz de união transcendente com o fundamento do Ser. A
pessoa, de fato, está enraizada nessa base, nesse fundamento Absoluto, e não
na contingência fenomenal do eu-ser. Assim, se a pessoa tentasse "sair" desse
fundamento metafísico, dessa base, de maneira a ter a experiência de si como
sendo ou agindo, ou se se pusesse a observar-se como um objeto funcionando
entre outros objetos, a experiência da sabedoria unitiva tornar-se-ia impossível,
pois a pessoa estaria dividida em dois daí o paradoxo de que logo que há
"alguém aí", para ter uma experiência transcendente, "a experiência" é
falsificada e torna-se, de fato, impossível.

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Nirvana *

A intuição metafísica, no budismo, é de tamanha importância que


substitui a teologia e faria do budismo uma filosofia religiosa em lugar de
"uma religião" se não fosse a dificuldade de acertar com uma boa
definição. A expressão "filosofia religiosa" não daria uma idéia da profundeza
da experiência budista para a qual, nem "religiosa" nem "filosoficamente",
pareceria a nós ser um bom epíteto.
Embora tenha havido muita especulação filosófica entre várias escolas
budistas, a intuição básica do budismo vai além da especulação e a ela
renuncia. O próprio Sakyamuni (Buda) recusou-se a responder a perguntas
especulativas e não permitia discussões filosóficas abstratas. Sua doutrina não
era uma doutrina mas um caminho, um modo de ser no mundo. Não era sua
religião uma série de crenças e de convicções, ou de ritos e sacramentos, mas
uma abertura ao amor. Sua filosofia não constituía visão do mundo, mas
significativo silêncio no qual a fratura, representada pelo conhecimento
conceituai, poderia ser curada e a realidade apareceria novamente em sua mis-
teriosa "suchness", ou "talidade"*.

Este ensaio foi primeiramente publicado como palavra introdutória a: «Marcel and
Buddha: A Metaphysics of Enlightenment» por Sallyp Do-nelly, em Journal of
Religious Thought, (Howard Universiry), vol. XXIV, n I, 1967-1968.

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No entanto, as intuições básicas do budismo são filosóficas e metafísicas;
procuram penetrar o fundamento do Ser e do conhecimento, não pelo
raciocínio em relação a princípios abstratos e axiomas, e sim pela purificação
e expansão da consciência moral e religiosa, até que ela atinja o estado de
realização superconsciente ou metaconsciente, em que o sujeito e o objeto são
uma só coisa. Essa realização ou iluminação chama-se nirvana.
Evidentemente, a melhor maneira de iniciar-se um diálogo entre o
pensamento cristão e o budista será discutir algo da natureza da iluminação
budista, para ver se é possível encontrar alguma analogia no pensamento
cristão.
Três principais abordagens se nos oferecem como sendo mais ou menos
evidentes: 1º) No plano do misticismo e da experiência mística. Este poderia,
à primeira vista, parecer o mais proveitoso, entretanto, é complicado por
problemas teológicos do lado cristão e, do lado budista, por uma ausência de
conteúdo teológico que oferecesse material para comparação. 2º) Há também
o plano ético: a compaixão budista é comparada à caridade cristã. Mas sendo
a caridade cristã uma virtude teologal, surge de novo aqui o mesmo problema
a discussão se faz em dois planos que não se encontram. 3') Finalmente
temos o plano da metafísica, onde um encontro pareceria possível. O ensaio
de Sally Donnelly estimula essa esperança muito particular e podemos
agradecer-lhe por mostrar-nos algumas analogias muito interessantes entre as
doutrinas de base do budismo e o existencialismo cristão de Gabriel Marcel.
(Estou ciente de que Marcel repudiou esse rótulo na ocasião da Humani
Generis. quando todo existencialismo tinha a má reputação de ser irreligioso.)
Do ponto de vista metafísico, Sally Donnelly mostra-nos diversas
maneiras pelas quais se pode observar como as intuições filosóficas budistas e
cristãs se correspondem. Na base dessa correspondência, podemos olhar um
pouco mais além e encarar outras possibilidades ainda, de correspondência,
na compreensão religiosa da existência humana e a conduta prática da vida.

* Such = tal; suchness = talidade ou tal qual é; maneira de ser. (N. do T.)

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85
O valor especial do estudo de Sally Donnelly acha-se na ênfase dada à
presença no mundo, comum ao budismo e ao cristianismo. As idéias budistas
de Dharma (palavra quase intraduzível, algo que se aproxima de logos) e de
Tatatha ("talidade", "isto, tu o és, tu mesmo") implicam a consciência de uma
presença e negação. O sentido da vida se encontra na abertura para o ser e ao
"ser presente" em plena consciência.
A iluminação budista ou Nirvana, o mais alto objetivo do homem, tem
sido completamente incompreendido no Ocidente. A razão disso é, talvez,
que o conceito de Nirvana primeiro chegou ao Ocidente através das traduções
de textos ascéticos do Pequeno Veículo. Estes enfatizavam a extinção do
desejo e o aspecto negativo da iluminação budista. Ora, isso foi desenvolvido
por pessimistas românticos, como Schopenhauer, e o resultado é que o
budismo estereotipado do Ocidente aparece como a religião por excelência da
negação do mundo. Para essa religião, o ideal é passar a existência terrestre
num transe, de maneira a que, depois da morte, desapareça o homem,
reduzido a puro nada. De acordo com essa ótica, todo valor positivo na
existência humana é simplesmente negado. Difícil é conceber como um tal e
suposto culto da inércia e da morte pôde inspirar manifestações tão evidentes
de vitalidade e alegria, como se encontram na arte, na literatura e cultura
budistas, de modo geral, por toda parte no Oriente.
Em realidade, a distorção é um tanto semelhante à que sofreu a
espiritualidade de místicos cristãos, como São João da Cruz considerado
asceta negador da vida e odiando o mundo. Ora, na verdade, no misticismo
de São João da Cruz há superabundância de amor, vitalidade e alegria. A
realidade é que existe certa espécie de mentalidade que não suporta ver
questionado o mundano e temporal, sob qualquer forma, seja qual for. Toda
tentativa para dizer que esses valores permanecem relativos e contingentes é
rejeitada como maniqueísmo e como o denegrir a terra encantada.
Mas se os valores terrenos e temporais são tratados, de fato, como
absolutos, quem poderá gozá-los? Tornam-se irreais, sofrem distorção e a
pessoa que os vê através dessa ilusão é incapaz de apreender o verdadeiro
valor que contêm. A tragédia de uma vida concentrada em "coisas", em
agarrar e manipular objetos, está no fato de que esse tipo de vida fecha o ego
sobre si próprio, lançando-o na luta sem esperança com outros egos. também
perversos e hostis, competindo juntos pela posse de coisas que lhes darão
poder e satisfação. Em vez de serem "abertas ao mundo", tais mentalidades
estão, em realidade, fechadas ao mundo. Seus esforços tirânicos para construir
um mundo de acordo com seus próprios desejos estão condenados ao fracasso,
no fim, pela ambigüidade c pelos elementos destrutivos que contêm. Parecem
ser luz, mas combatem juntos numa impenetrável treva moral.

102

86
O budismo e o cristianismo bíblico concordam em sua visão da condição
presente do homem. Ambos estão conscientes de que o homem, de algum
modo, não se acha em sua verdadeira relação com o mundo; ou, para ser mais
exato: vêem que o homem traz em si uma misteriosa tendência para falsificar
essa relação e para empregar grande dose de energia em justificar sua falsa
visão do mundo e do seu lugar nele. Essa falsificação é o que Buda denomina
Avidya. A avidya, geralmente traduzida pela palavra "ignorância", é a raiz de
todo mal e de todo sofrimento, porque coloca o homem numa posição
equívoca e, de fato, impossível. É um erro invencível concernente à própria
natureza da realidade e do homem. E uma disposição para tratar o ego como
realidade absoluta e central e a tudo referir a ele como objeto de desejo ou de
repulsa. O cristianismo atribui essa visão do homem e da realidade ao
"pecado original". Gabriel Marcel expressa o verdadeiro sentido dessa
cegueira quando diz que o ego cria sua própria obscuridade ao colocar-se
entre o Eu e o outro (que são, em realidade, uma unidade inter-subjetiva). A
narração da queda do homem nos conta, em linguagem mística, que o "peca-
do original" não é apenas um estigma que faz os prazeres bons parecerem
culpáveis, mas é inautenticidade básica, uma espécie de predisposição à má
fé em nossa compreensão de nós mesmos e do mundo. Representa uma
determinação voluntária de tentar fazer que as coisas sejam diferentes do que
são para podermos, então, torná-las, em qualquer momento, subservientes
para com nosso desejo individual em relação ao prazer e ao poder. Entretanto,
uma vez que as coisas não obedecem aos nossos impulsos arbitrários e não
podendo fazer com que o mundo corresponda à imagem que dele fabricamos,
de acordo com nossas necessidades e ilusões, nem confirmá-la, nossa
voluntariedade é inseparável do erro e do sofrimento. Daí, declara o budismo,
sendo a vida assim uma ilusão, está em estado de Dukka, e todo movimento
de desejo tende a produzir, afinal, frutos na dor, em lugar de alegria duradora,
no ódio e não no amor, na destruição e não na criação. (Notemos de
passagem, quando as habilidades tecnológicas parecerem, com efeito, dar ao
homem poder absoluto na manipulação do mundo, que esse fato de modo
algum modifica sua condição original de "fratura" e erro. Pelo contrário, isso
a torna ainda mais evidente. Nós, que vivemos na era da bomba H e dos cam-
pos de extermínio, temos motivos para refletir sobre isso, embora tal tipo de
reflexão goze de certa impopularidade).

103

87
Enquanto continua essa "fratura" da existência, não há saída em relação
às contradições internas que ela nos impõe. Se um homem tem uma perna
quebrada e continua a tentar andar, todo movimento de desejo de andar é um
movimento de dor, inevitavelmente... Mas até o desejo de acabar com a dor
do desejo é um movimento e, portanto, causa dor. O desejo de permanecer
imóvel é um movimento.
O desejo de fuga é um movimento. O desejo de Nirvana é um
movimento. O desejo de extinção é um movimento. Entretanto, não há meio,
para nós, de ficarmos imóveis "impondo imobilidade" a nossos desejos. Em
uma palavra, o desejo não pode impedir-se de desejar; tem de continuar a
mover-se e, conseqüentemente, a causar dor quando procura a libertação de si
e deseja sua própria extinção.
A suprema resposta cristã encontra-se tipicamente descrita por São
Paulo: "Desejando fazer o bem, constato esta lei: é o mal que faço. Concordo
de coração com a lei de Deus no meu ser íntimo; encontro, porém, outra lei
em meus membros que contradiz a lei da minha razão e me faz prisioneiro do
pecado (Falta de verdade, "fratura", ilusão voluntária, distorção culpável de
valores)... Infeliz que sou! Quem me libertará dessa morte viva? Deus, pela
sua graça em Cristo Jesus Nosso Senhor". (Rom. 7, 21-25) .
Isso significa, é claro, a Cruz morte e ressurreição em Cristo uma
vida de amor "no espírito".
A resposta budista encontra-se em quatro nobres verdades pelas quais,
seguindo o ensinamento e a experiência de Buda, o homem procura apreender
a verdadeira natureza de sua existência e redescobrir pacientemente suas
verdadeiras raízes no verdadeiro fundamento de todo ser. Quando o homem
está alicerçado na verdade e no amor autênticos, as raízes do desejo
murcham, a "fratura" está curada e a verdade é encontrada na simplicidade e
na plenitude do Nirvana: perfeita conscientização e perfeita compaixão.
Nirvana é a sabedoria do perfeito amor alicerçado em si próprio e brilhando
através de tudo, sem encontrar oposição em coisa alguma. O cerne da
"fratura" aparece então tal qual era: uma ilusão. Mas afirmando-se persistente
e invencível ilusão do "ego-ser" isolado em oposição ao amor, exigindo que
seu desejo seja aceito como a lei do universo, e daí sofrendo do fato de que,
por seu desejo, vê-se fraturado e separado da sabedoria amorosa na qual
deveria estar alicerçado.

104

88
Numa palavra, "desejo", ou "sede" (Tanba) incluindo a sede por uma
existência individual contínua ou pela não-existência que experimentamos
enquanto nos agarramos tenazmente ao nosso ego individual isolado
constitui-se em oposição ao ser. Esses dois são, finalmente, o mesmo: o
grande "vazio" do Sunyata, descrito como vazio unicamente porque, achando-
se inteiramente sem nenhum limite de particularidade, é também perfeita
plenitude. Quando dizemos "plenitude" inevitavelmente tendemos a imaginar
um "conteúdo" com um limite que o define e encerra. Assim, o budismo
prefere falar em "vazio", não porque conceba o fim supremo como mero
"nada" e vazio, mas porque está ciente da não-limitação e da não-definição do
infinito. Nirvana não é, portanto, um "conteúdo de conscientização"
apreendido. Daí os conceitos metafísicos do Puro Ser na filosofia cristã e
budista o "mistério do Ser" de Gabriel Marcel tenderem a uma
aproximação muito maior do que até aqui tem sido realizado. Quando a
pureza dessa metafísica budista for devidamente apreciada poderá haver base
para sérias discussões com budistas sobre a idéia de Deus quando a
Realidade Absoluta é também Pessoa Absoluta (nunca, porém, objeto).
O desejo de ter a experiência do Nirvana é, como foi dito acima, fonte de
sofrimento, porque mantém o estado de "fratura" que separa o objeto do
fundamento de seu próprio ser em Sunyata. Isso é importante. O budismo se
esforça por excluir todo e qualquer truque possível, todo engenho pelos quais
o desejo do ego possa satisfazer sua vontade e salvar-se por seu próprio poder
do domínio da ilusão e da dor.
O budismo recusa-se a tolerar qualquer autocultivo ou beatificação da
alma. Desmascara sem piedade qualquer desejo de iluminação ou de salvação
que procure apenas a glorificação do ego e a satisfação de seus desejos num
domínio transcendente. Não é que isso seja "errado" ou "imoral". É
simplesmente impossível. O desejo do ego jamais poderá culminar em
felicidade, plenitude, paz, porque é uma "fratura" que quebra o homem e o
separa do fundamento da realidade em que a verdade e a paz se encontram.
Enquanto o ego procura "agarrar" ou "conter" esse fundamento ou alicerce
como um conteúdo objetivo de conscientização, será frustrado.
Quando Sally Donnelly, em seu ensaio, denomina o Nirvana "uma
experiência de amor", temos de ter muito cuidado para não interpretar mal
essa expressão. Se uma experiência é algo que se possa "ter", e "agarrar", e
"possuir", se pode ser o objeto de um desejo, um conteúdo de
conscientização, não é então Nirvana. Em certo sentido, Nirvana está situado
além da experiência. No entanto, é também, "a mais elevada experiência" se o
considerarmos como a libertação de limitações meramente psicológicas.

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As palavras "experiência de amor" não devem ser entendidas em termos de
plenitude emocional, de desejo e de posse, e sim de total realização, total des-
pertar uma realização completa do amor, não apenas como uma emoção
de um sujeito que sente, mas como larga abertura do próprio Ser, a
compreensão de que o Puro Ser é dom infinito, ou que o Vazio Absoluto é
Compaixão Absoluta. Essa compreensão não é intelectual, não é abstrata,
mas concreta. É, nas palavras de Cristo, "Espírito e Vida". Não é, então,
simplesmente a consciência de um sujeito amante que tem seu amor em si
mesmo, mas a consciência do Espírito de Amor como fonte de tudo o que é e
de todo amor.
Um tal amor está situado além do desejo e além de todas as restrições de
um ego autoconcentrado. encerrado em seus desejos. Um tal amor tem
começo somente quando o ego renuncia a seus direitos à absoluta autonomia
e deixa de viver em um pequeno reino de desejos no qual é ele mesmo seu
próprio fim e razão de existir. A caridade cristã procura realizar a unidade
com o outro "em Cristo". A compaixão budista procura curar a "fratura" da
divisão e da ilusão e encontrar a restauração não num "um" metafísico
abstrato ou mesmo num imanentismo panteísta, mas no Nirvana o vazio
que é Realidade Absoluta e Amor Absoluto. Em ambos os casos, a mais
elevada iluminação do amor é uma explosão do poder da evidência do Amor,
no qual toda limitação psicológica de um sujeito "que experimenta" é
dissolvida e o que permanece é a transcendente claridade do próprio Amor,
realizado no sujeito desprovido de ego, num mistério que ultrapassa a
compreensão mas não o consentimento.
Não pode haver e não há nenhuma plenitude e nenhuma salvação. A
única salvação, como Cristo o disse, se encontra em perder-se a si próprio
isto é, no abrir-se ao outro como a um outro "eu". Não se chega ao Nirvana
pela meditação paciente e sutil, pela execução de Koans do Zen, pela
interminável postura de "sentar-se", pela extorsão de alguma resposta secreta
de algum especialista de espiritualidade, pelo fato de se domar o corpo nos
vários modos da Tantra. Nirvana é a extinção do desejo e o pleno despertar
que resulta dessa extinção. Não é simplesmente a dissolução dos limites do
ego, uma quase infinita expansão do ego para dentro de um oceano de auto-
satisfação e aniquilamento. Esta é a última e pior ilusão do asceta que, tendo
"atravessado para o outro lado da praia", diz a si próprio: "Atravessei, enfim,
para o outro lado da praia." Ele, é claro, não atravessou coisa alguma. Está
onde estava. Está "fraturado" como antes. Está na treva da Avidya. Apenas
conseguiu encontrar uma pílula que produz uma luz espúria e anestesia um
pouco a dor.

106

90
A iluminação não é questão de brincar com a factibilidade da vida
ordinária, fazendo-a desaparecer misteriosamente. Como dizem os budistas, o
Nirvana é encontrado no meio do mundo que nos cerca e a verdade não se
acha em algum outro lugar. Estar aqui e agora, em nossa "talidade"*, é estar no
Nirvana. Mas, infelizmente, enquanto temos "sede" ou Tanba, falsificamos
nossa situação e não podemos entendê-la como sendo Nirvana. Enquanto
formos inautênticos, enquanto obstruirmos e obscurecermos a presença daquilo
que realmente é, estaremos na ilusão e na dor.
Se, por um momento, fôssemos capazes de uma perfeita autenticidade, de
abertura total, veríamos logo que o Nirvana e o Samsara são o mesmo. Isso
implica, não em fuga do mundo, denegrir o mundo, repudiar o mundo, mas
numa verdadeira compreensão do valor que o mundo encerra. Contudo, uma
tal compreensão é impossível enquanto se deseja aquilo pelo qual o mundo
anseia e se aceita a Avidya do mundo como fonte das supremas respostas.

* Suchness: talidade, como ji foi dito. maneira de ser. que indica au-
tenticidade. (N. do T.)

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91
Zen na Arte Japonesa

A ARTE tem sido, tradicionalmente, uma das mais íntimas expressões da


espiritualidade japonesa, xintoístas, confuciana e budista. De modo particular
as pinturas mais contemplativas, os desenhos em nanquim, as caligrafias e a
célebre "arte do chá" foram todas profundamente impregnadas pelo espírito
do Zen e floresceram sobretudo nos mosteiros do Zen.
Um estudo do Zen na Arte japonesa* como o que devemos à pena de
Toshimitsu Hasumi haverá, portanto, de concentrar-se não somente nas
implicações religiosas do assunto, mas especialmente na arte como "meio de
experiência espiritual" no Japão.
Em outras palavras, as formas mais contemplativas de arte do Japão são
tradicionalmente consideradas não apenas manifestações ou representações
simbólicas da crença religiosa apropriadamente em pregadas no culto
comunitário. Estão, acima de tudo, intimamente associadas à intuição
contemplativa de uma verdade fundamental, numa experiência basicamente
religiosa e, mesmo em certo sentido, "mística".

* «Zen in japanese Art», de Toshimitsu Hasurni, traduzido do alemão por John


Petric; Londres, Routledge and Kegan Paul, 1962; New York, Philosophical
Library, 1962.
Este ensaio foi publicado pela primeira vez como crítica de livros, no The
Catholic Worker, julho-agosto, 1967.

108

92
Mas esse livro de Toshimitsu Hasumi é especialmente interessante pelo
fato de transmitir-nos algumas das idéias estéticas fundamentais do filósofo
Kitaro Nishida, cujas obras sobre a estética não se encontram ainda nas
línguas ocidentais.
Existem, entretanto, algumas diferenças entre o discípulo e o mestre.
Hasumi, por exemplo, não aceita a idéia de Nishida sobre um Deus pessoal.
Todavia, sua visão de Deus, como fundamento básico de todo ser e de toda
experiência, um fundamento, um alicerce apofático denominado "Nada" ou
"Vazio", é idêntico ao de Nishida e mesmo ao da tradição budista. Esse Nada
nos é bem explicado pelo autor.
Hasumi faz ver nitidamente que essa maneira de expressar-se não é de
modo algum negativa ou pessimista. Em outras palavras, não tem nenhuma
relação com o "néant" de Sartre. E "exatamente, o oposto do pessimismo
niilista que nega o mundo". E é, absolutamente, uma afirmação da vida, uma
vez que o Zen e a arte Zen consideram o ser como o autodesenvolvimento do
Nada não-formado.
De modo particular, é função do belo ser, digamos, uma epifania do
Vazio Absoluto e informe que é Deus. È uma encarnação do Absoluto
transmitido através da personalidade do artista ou, talvez melhor, seu
"espírito" e sua experiência contemplativa.
A contribuição da arte Zen é, portanto, uma dimensão espiritual profunda e
transforma a arte em uma experiência essencialmente contemplativa na qual ela
desperta a "primitiva consciência oculta dentro de nós e que torna possível
qualquer atividade espiritual".
Nessa tradicional concepção da arte, não encontramos nenhum divórcio
entre arte e vida, ou arte e espiritualidade. Pelo contrário, sob o poder
unificador da disciplina e da intuição Zen, a arte, a vida e a experiência
espiritual se vêem todas reunidas e inseparavelmente fundidas. Em lugar algum
é isso manifestado com mais nitidez e beleza do que "na arte de tomar chá".
As páginas dedicadas pelo autor a esse assunto são de interesse superlativo
para os monges de qualquer lugar. Descrevem um estilo de vida contemplativo e
monástico em que a arte, a experiência espiritual e comunitária, as relações
pessoais, se reúnem para dar expressão a Deus em seu mundo. Longe de ser uma
formalidade social artificial, como alguns observadores ocidentais talvez o
tenham imaginado, a "cerimônia do chá"

109

93
é, em realidade, uma expressão profundamente espiritual; poderíamos ter a
tentação de dizer "litúrgica", de arte e de fé. Na cerimônia do chá, tudo tem
importância, tudo é orientado por regras tradicionais; entretanto, dentro desse
quadro tradicional, há também lugar para a originalidade, a espontaneidade e
a liberdade espiritual. O espírito que orienta a cerimônia do chá encontra-se
nas normas fundamentais que a regem: Harmonia, Respeito, Pureza (de cora-
ção), Quietude (no sentido de quies e hesychia). Porém, para tornar esse
espírito mais evidente, podemos dizer que é ele o mesmo que se manifesta na
arquitetura cisterciense do século doze em Fontenay e Le Thoronet: uma
alegria interior de pobreza e simplicidade descrita pela palavra japonesa
intraduzível Wabi. Hasumi a define numa frase surpreendente como sendo
"uma pobreza estética que ecoa interiormente". Sem dúvida alguma, esse é
um conceito da maior importância para nós, que lutamos para reencontrar
algo do conceito contemplativo e espiritual de simplicidade e pobreza,
essenciais ao tipo de vida cisterciense. A "Quietude", e o "escutar" com que
"reverenciamos a pobreza do homem, a harmonia do mundo e o que há de
incompleto na natureza" se abre numa profunda percepção "do eterno
presente em que todos os ideais fluem juntamente para o "Nada".
Essa expressão da experiência contemplativa poderá talvez desconcertar
o leitor cristão que não está familiarizado com a tradição apofática em seu
próprio patrimônio espiritual. Não é de modo algum mero quietismo ou
vacuidade inerte. Nem é tampouco negação ou rejeição da realidade humana.
Pelo contrário, "as almas do hóspede e do anfitrião abandonam seu eu pessoal
e unem-se uma à outra. Na realidade dessa esfera em que se movem, a
antinomia entre alma e corpo é abolida e desabrocha em unidade harmoniosa.
O próprio homem tornou-se agora uma alma sob a forma de arte. Já não há a
separação da existência e do ser. A alma é libertada do corpo e o homem
sente-se um ser solitário pleno de sentido e próximo à essência das coisas".
Essa descrição, que é mais impressionista e poética do que científica e exata,
deve servir para dar alguma idéia do que é a "arte do chá" como força
espiritual de profunda influência na tradição japonesa.
Concluindo, podemos observar que o autor está consciente dos
contrastes e das semelhanças existentes entre as tradições budista e cristã. Faz
uma declaração que poderia ser esclarecedora aos que estão começando a se
interessar num possível diálogo entre as duas religiões.

110

94
"O cristianismo é a manifestação da Encarnação de Deus, enquanto o Zen
é uma iluminação interior, intensa, do ser divino que os japoneses apreendem
como o Nada e que deve receber um suplemento, ser elevada e completada por
meio da manifestação da Encarnação". Sem dúvida temos aqui uma
enunciação muito generosa e perceptiva daquilo que o budista poderia esperar
de seus irmãos cristãos.

111

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Apêndice:
O Budismo é Negação Diante da Vida?

SEM entrarmos em argumentos pormenorizados, citarei simplesmente


alguns textos com um mínimo de comentários necessários.
Geralmente é habitual pensar, no Ocidente, que um budista é alguém que
vira as costas ao mundo e aos outros como sendo coisas "irreais" e cultiva a
meditação, de maneira a entrar em transe e, finalmente, num estado
completamente negativo de Nirvana. Mas a "concentração", a "atenção", a
"conscientização" budista, longe de desprezar o mundo, mostra-se
extremamente solícita por tudo quanto é vida. Tem dois aspectos: um é a
penetração do sentido e da realidade do sofrimento, por meio da meditação; o
outro é a proteção de todos os seres contra o sofrimento, por meio da não-
violência e da compaixão.
A seguinte citação do Samyutta Nikaya mostra que tanto a meditação
como a não-violência estão orientadas para a proteção da vida na própria
pessoa e nos outros, enquanto une, ao mesmo tempo, compaixão, desapego,
intuição e pena, dó. A intuição alcançada por meio da meditação não
despreza a vida, respeita-a em alto grau. Sem essa intuição, não pode haver
verdadeiro respeito pela vida.

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96
Sem intuição é fácil multiplicar as belas palavras sobre ser "afirma-dor da
vida" e amar aos outros e apesar de tudo os destruímos.
"Eu me protegerei", assim os fundamentos da atenção da mente têm
de ser cultivados. "Protegerei os outros", assim os fundamentos da
atenção da mente têm de ser cultivados. Pro-tegendo-nos, protegemos
os outros; protegendo os outros estamos protegendo a nós mesmos.
E como pode alguém, ao proteger-se, proteger a outros? Pela prática
continuamente repetida, pela cultura meditativa da mente e pela
ocupação freqüente com as coisas do espírito.
E como pode alguém, pelo fato de proteger os outros, proteger-se a
si próprio? Pela paciência, por uma vida de não-violência, pela bondade
cheia de amor e compaixão*.
Mas, não será a meditação budista sobre o sofrimento destinada a
conseguir a libertação do estado de ignorância, e o "ciclo do nascer e do
morrer" algo de mórbido e masoquista? Não chega a instilar um desprezo
pela própria vida? Declara Suzuki:
"O valor da vida humana está no fato de sofrer, pois onde não há
sofrimento, nem consciência do cativeiro do karma, não haverá o poder
de atingir a experiência espiritual e, por esse meio, alcançar o campo da
não-distinção. Se não consentirmos em sofrer, não poderemos ser
libertados do sofrimento"**.
Contrastemos essa declaração com a trivialidade e futilidade de um
otimismo superficial de "afirmação da vida", que procura ape-
nas fugir ao sofrimento mergulhando naquilo que Pascal
chama "diversão", ou "distração" uma tentativa de evitar encarar o sofri-
mento como uma realidade inseparável da própria vida!
Procura o budismo apenas fugir à vida? Lama Angarika Go-vinda diz o
seguinte:

"(O caminho da Mahayana) não é um caminho que leva à fuga do


mundo, mas sim a superá-lo pelo crescimento no conhecimento
(Prajna) através do amor ativo (Maitri) para com os outros. Isso por
meio da participação nas alegrias e so frimentos dos nossos semelhantes
{Karuna, Mudita) e pela equanimidade (Upeksa) em relação aos nossos
próprios dissabores"*.

* Nyanaponika Thera. The Heart of Buddhist Meditation, Colombo.


1956. p. 57. ** Essence of Buddhism, p. 13.

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Prega o budismo apenas um desprezo negativo pelo mundo? O mesmo
autor explica a posição budista da seguinte maneira:
"(O Mundo) não está condenado em sua totalidade nem dilacerado
por irreconciliáveis opostos. Existe uma ponte que leva do mundo
ordinário, temporal, dos sentidos e da percepção, ao reino do
conhecimento intemporal é um caminho que conduz para além do
mundo, não pelo desprezo ou pela negação, mas pela purificação e
sublimação das condições e das qualidades de nossa presente
existência"**.
A meditação budista renega completamente o corpo e procura transpor-se a
uma região de abstração puramente espiritual? Exatamente o contrário. O
corpo tem papel da maior importância na meditação budista. De fato, em
nenhuma outra disciplina da meditação é o corpo de tanta importância como
nessa. Em vez de eliminar, ou tentar eliminar toda percepção em relação ao
corpo, a meditação budista procura antes de mais nada dominar o corpo. "Se
o corpo não for controlado (pela meditação) a mente permanecerá indomada.
Se o corpo for domado, a mente estará controlada".
"Uma vez que os processos mentais só tornarão claros a quem já
apreendeu o corporal com plena nitidez, qualquer tentativa para apreender os
processos mentais deve ser feita somente pela apreensão do corporal e não de
outro modo"***.

* Govinda. Foundation of Tibetan Mysticism, p. 40. **


Govinda, op. cit., p. 108. *** Nyanaponika Thera. The Heart, p.
78.

114

98
Segunda Parte

99
Sabedoria e Vazio

UM DIÁLOGO ENTRE DAISETZ T. SUZUKI E THOMAS MERTON

Nota Preliminar:

Na primavera de 1959, terminado o texto de algumas traduções das Verba


Seniorum, publicadas por New Directions com o título de The Wisdom of the
Desert, foi decidido enviar o texto dessa mesma tradução a Daisetz Suzuki, um
dos mais proeminentes Mestres estudiosos e contemplativos de nossa época, no
Oriente. Sentia-se que as Verba, em sua simplicidade austera, tinham uma
notável semelhança com algumas das estórias contadas sobre os mestres ja-
poneses do Zen, e que o Dr. Suzuki, por isso mesmo, ficaria interessado. De
fato, recebeu com prazer a sugestão de encetar um diálogo sobre a "sabedoria"
dos Padres do Deserto e a dos Mestres do Zen.
Sentiu-se que uma troca de idéias e pontos de vista traria alguma
contribuição à compreensão mútua entre o Oriente e o Ocidente. E também que
poderia ser muito elucidativo confrontar os monges cristãos do Egito, no
século quarto, com os monges chineses e japoneses de uma época ligeiramente
posterior. (O Zen* teve início na China, mais ou menos no fim da grande
época dos Padres do deserto).

* Publicado pela primeira vez em New Directions 17. Copyright 196l. New Directions Publishing
Corporation. Reproduzido com autorização do Editor.

117

100
O budismo Zen é objeto de interesse considerável no Ocidente
contemporâneo, em larga medida por causa de sua simplicidade paradoxal e
altamente existencial, que se coloca como uma espécie de desafio em relação
às ideologias complicadas e verbalísticas que se tornaram substitutos da
religião, da filosofia e da espiritualidade, no Ocidente.
Há inúmeras estórias Zen que reproduzem quase que exatamente as
Verba Seniorum. São incidentes normalmente ocorridos onde os homens
procuram e conseguem viver o mesmo tipo de pobreza, de solidão, de
esvaziamento. Por exemplo, há sempre o problema do ladrão e a solução
do monge humilde que não só permite ao ladrão tirar-lhe tudo, mas até corre
atrás dele para entregar-lhe o objeto por distração não levado.
Como o Dr. Suzuki demonstra com nitidez, em sua análise da
"inocência", isso é algo que se situa realmente para além do nível "problema-
e-solução". Quando o monge age com a inocência e o vazio primitivo, que os
discípulos do Zen denominam suchness, "talidade"**, e o cristão designa
como "pureza de coração", "caridade perfeita", então, nem sequer existe
problema. Como diz S. Paulo, "contra esses, não existe lei". Ele bem poderia
ter dito: para esses não há lei. Funciona de ambos os lados a lei não tem
para eles nem vantagens nem desvantagens. Nem apelam para ela em defesa
própria, nem sofrem seus efeitos. Estão situados para "além da lei".
Esta idéia, porém, é freqüentemente incompreendida e, com maior
freqüência ainda, mal aplicada. Seja onde for que nos encontremos frente a
uma espiritualidade simples e mística, as mesmas dificuldades sempre vêm
afligir o estudante comum que observa "por fora". As mesmas questões
clamam por uma resposta, as mesmas acusações exigem ser refutadas. Há
sempre os que confundem "a liberdade dos filhos de Deus" com a licença dos
escravos da ilusão e da própria vontade egoísta.

* Zen é o termo japonês que traduz a palavra chinesa Ch'an, originária do sânscrito
Dhyana. Para maior conveniência, emprego a palavra «Zen» quando me refiro a Ch'an. **
Sobre «talidade», ver notas anteriores. (N. do T.)

118

101
Tanto no Oriente como no Ocidente, os contemplativos são alvo de críticas
por serem "ociosos", quietistas, misantropos, escapistas e por mais cem
pecados no gênero. E, de modo geral, são acusados de desprezar os caminhos
comuns da disciplina ética e ascética, descartando-se completamente da moral e
da política. A censura de antinomismo é freqüentemente feita ao discípulo do
Zen, pois ele tem um jeito de ser extremamente paradoxal e até chocante,
como o "estulto por amor ao Cristo" tão comum, outrora, no cristianismo
russo.
Ora, o fato é que o Zen está muito na moda atualmente na América do
Norte entre aqueles que em nada se preocupam com a disciplina moral. O Zen
tornou-se, em realidade, para os norte-americanos, um símbolo de revolta moral.
É verdade que o desprezo do discípulo do Zen pelos costumes convencionais e
formalísticos da sociedade é um fenômeno sadio. Porém, só é sadio porque
pressupõe uma liberdade espiritual baseada na libertação da paixão do
egoísmo, da auto-ilusão. Uma atitude de pseudo-Zen, que procura justificar o
colapso total da moral com algumas racionalizações baseadas nos Mestres do
Zen, é apenas uma outra forma de autotapeação burguesa. Não é expressão de
sadia revolta, mas apenas outro aspecto do mesmo convencionalismo sem vida e
inerte, contra o qual parece estar protestando.
Se o Dr. Suzuki estuda o aspecto ético do Zen, não é motivado por algo
relacionado com os Padres do deserto. O motivo é, antes, que um outro
interlocutor, anônimo, introduziu-se no diálogo. No verão de 1959, o Dr.
Suzuki participou da conferência de filósofos Oriente-Ocidente em Havaí e teve
de enfrentar essa objeção ética em relação ao Zen. Fez da sua resposta o ponto
de partida de seu ensaio sobre os Padres do deserto. Assim, não se afastou do
assunto, mas penetrou diretamente em seu âmago. E pôde, desse modo,
apresentar algumas observações muito finas e pertinentes sobre a espiritua-
lidade do deserto, com seus imprevistos e limitações.
O tema aqui sublinhado pelo Dr. Suzuki não é de todo desconhecido do
Ocidente contemporâneo. É a questão da "ciência e da sabedoria", que tem sido
com freqüência discutida por tomistas, como Maritain e Gilson, embora num
contexto mais técnico e na linha da escolástica.
£ um tema antigo e tradicional na teologia patrística, e que teve papel
central na espiritualidade de Santo Agostinho e seus seguidores, assim como
nos escritos dos Padres Gregos. Foi, em realidade, tema de grande
importância para os escritores da escola alexandrina, que forneceram a base
intelectual à espiritualidade do deserto.

119

102
No entanto, o mais fascinante neste ensaio é que os conceitos Zen de
"vazio" e "discriminação", etc, são avaliados em termos da narração bíblica da
queda de Adão. O Dr. Suzuki apresenta uma reflexão em que "conhecimento e
ignorância" se equivalem, bem como a verdadeira Sabedoria e a Inocência, o
vazio ou a "talidade" (suchness). Ora, é este precisamente o mesmo tipo de
abordagem efetuado pelos Padres da Igreja da Antigüidade. Existem, é claro,
diferenças importantes; todavia, as semelhanças são muito maiores do que as
diferenças. E para fazer notar isso é que acrescentei meu ensaio "Recuperação do
Paraíso", significando reencontro daquela "pureza" ou daquele "vazio" que,
para os Padres da Antigüidade, era união com a luz divina considerada, não
como "objeto" ou "coisa", mas como a "divina pobreza" que nos enriquece e
transforma, dan-do-nos sua própria inocência. A Recuperação do Paraíso é a
descoberta do "reino de Deus dentro de nós", conforme a expressão do Evan-
gelho, no sentido em que sempre foi empregada pelos místicos cristãos. É a
recuperação da semelhança do homem com Deus, em pura e indivisa
simplicidade.
Espera-se, assim, que este ensaio fará sobressair ainda mais o
extraordinário significado do estudo do Dr. Suzuki, sem dúvida, um dos mais
convincentes de seus recentes trabalhos, pelo menos para o leitor cristão. É
certamente impressionante o fato de que este escritor oriental, ao empreender
uma discussão sobre os padres do deserto, escolhesse como tema principal o
contraste entre a "inocência" de Adão no Paraíso (com sua correlativa
"sabedoria" sapienlia Prajna) e o "conhecimento" do bem e do mal, a
scientia que resultou da queda. E, em certo sentido, a constituiu,É certamente
motivo de grandíssimo significado que o Dr. Suzuki tenha escolhido como a
melhor base e, evidentemente, o terreno mais comum para um diálogo entre o
Oriente e o Ocidente, não a superfície exterior da espiritualidade do deserto
(com suas práticas e solidão meditativa) e sim o fato mais arquetípico de toda
a espiritualidade judeu-cristã: a narrativa da criação e da queda do homem no
livro do Gênese.

120

103
CONHECIMENTO E INOCÊNCIA

DAISETZ T. SUZUKI

Quando falo do Zen a um auditório ocidental, formado geralmente na


tradição cristã, a primeira pergunta habitualmente enunciada é: "Qual é o
conceito moral do Zen? Se o Zen se declara acima de todos os valores morais,
que pode ensinar a nós, pobre mortais?"
Se compreendo corretamente o cristianismo, sua autoridade moral vem de
Deus, do qual recebeu o Decálogo, e é-nos ensinado que, se o violarmos de
qualquer maneira, seremos castigados e lançados no fogo eterno, É por esta
razão que os ateus são considerados perigosos, pois para eles, não há Deus e
não respeitam os códigos da moral. O discípulo do Zen, não possuindo um
Deus que corresponda ao Deus analógico do cristão, mas que fala de
ultrapassar o dualismo do bem e do mal, da vida e da morte, da verdade e da
falsidade, será também, muito provavelmente, objeto de suspeita. A idéia dos
valores sociais, profundamente enraizada nas mentes ocidentais, está intima-
mente ligada à religião, de maneira que chegam a pensar que religião é o
mesmo que ética, e que religião não pode dar-se ao luxo de relegar a ética à
posição de importância secundária. O Zen, no entanto, parece fazê-lo. Daí a
pergunta*, que respondi da seguinte maneira: "Dr. Suzuki escreve: "Todos os
valores morais e os costumes sociais brotam desta vida de Suchness (talidade),
que é estar esvaziado." Se assim é, então o "bem" e o "mal" são diferenciações
secundárias. O que é que os diferencia? E como sei o que é o "bem" e não
o"mal"? Em outras palavras, posso eu, e se posso, como posso, haurir uma
ética na ontologia do budismo Zen?"

* Esta pergunta me foi formulada por um dos participantes da Terceira Conferência de


Filósofos Orientais e Ocidentais, na Universidade do Havaí, em junho-julho de 1959.
Baseou-se no documento que elaborei como contribuição para a mesma. Minha resposta,
acima dada, exige maiores detalhes, o que não pode ser feito nesta obra. Compreende o meu
conceito sobre o relato da criação judaico-cristã.

121

104
Todos nós somos seres sociais e a ética é nossa preocupação com a vida
em sociedade. O discípulo do Zen tampouco pode viver fora da sociedade.
Não pode ignorar os valores da ética. Porém, o que ele quer é ter o coração
inteiramente purificado de todas as impurezas que brotam do
"Conhecimento"* que adquirimos ao comer o fruto da árvore proibida.
Quando voltamos ao estado de "inocência", tudo o que fazemos é bom, é o
bem. Diz Santo Agostinho: "Ama a Deus e faze o que queres". A idéia budista
de Anabhoga--Carya** correponde a Inocência. Quando o conhecimento foi
despertando no Éden, onde prevalecia a inocência, a diferenciação entre o bem e
o mal ocorreu. Do mesmo modo, do vazio da mente surge misteriosamente um
pensamento e temos o mundo das multiplicidades***.
A idéia judeu-cristã da Inocência é a interpretação moral da doutrina
budista do vazio, que é metafísico, enquanto a idéia judeu-cristã do
conhecimento corresponde epistemologicamente à noção budista da ignorância
embora, superficialmente, a ignorância seja o oposto do conhecimento.
A filosofia budista considera a discriminação, seja ela qual for moral ou
metafísica , o produto da ignorância que obscurece a luz original da
"talidade" (suchness) que é esvaziamento. Mas não quer isso dizer que o
mundo inteiro deva ser suprimido pelo fato de ser o resultado da ignorância.
Dá-se o mesmo com o conhecimento, pois o conhecimento é o resultado de
nossa perda da inocência por termos comido o fruto proibido. Contudo,
nenhum cristão ou judeu, tanto quanto eu o saiba, jamais tentou livrar-se do
conhecimento, de maneira a recobrar o Paraíso, onde poderia desfrutar a
atitude da inocência em sua plena medida, como originaria mente aconteceu.

* Em todo este ensaio o termo «Inocência» deve ser entendido como o estado de espírito em
que viviam os habitantes do Jardim do Éden, em torno da árvore da vida, com os olhos
fechados, inteiramente nus. sem se envergonharem, sem nenhum conhecimento do bem e
do mal; ao passo que «Conhecimento» significa tudo que se opõe à «Inocência»,
especialmente os olhos abertos, capazes de distinguir o bem e o mal.
** Ver D. T. Suzuki (traduzido) Lankavatara Sutra (Londres, Rou-tledge and Kegan
Paul, 1957, pp. 32, 43, 89, etc; onde o fprmo significa um ato «sem-esforço» ou
«sem luta». *** D. T. Suzuki (tradução) Asvaghosa's Awakening of Faith (Chicago, Open
Court Publishing Co.) 1900 pp. 78-9.

122

105
O que temos de compreender, portanto, é o sentido do "conhecimento" e da
"inocência", isto é, devemos ter uma visão interior profundamente penetrante
sobre o relacionamento entre os dois conceitos opostos: Inocência e a Luz
Original de um lado, e Conhecimento e Ignorância do outro. Em certo sentido,
parecem ser irredutivelmente contraditórios, porém, noutro sentido, são
complementares. No que toca à nossa maneira humana de pensar, não podemos
tê-las ambas, ao mesmo tempo. Mas, nossa vida concreta consiste em uma
sustentar a outra, ou melhor, no fato de que ambas cooperam inseparavelmente.
A chamada oposição entre a Inocência e o Conhecimento ou entre a
Ignorância e a Luz Original não é a espécie de oposição que vemos entre o
preto e o branco, o bem e o mal, o bom e o errado, o ser e o não ser, o ter e o
não ter. A oposição está, por assim dizer, entre o conteúdo e o recipiente, entre
o pano de fundo e o palco, entre o campo e os jogadores que nele se movem.
O bem e o mal se empenham numa luta que se desenrola num campo que
permanece neutro e indiferente, "aberto" ou "vazio". Ê como a chuva que cai
sobre justos e injustos. É como o sol que brilha sobre os bons e os maus e
ilumina nossos amigos e inimigos. De certo modo, o sol é inocente e perfeito,
e também a chuva. Porém o homem, que perdeu a inocência e adquiriu o
conhecimento, diferencia o justo do injusto, o bem do mal, o certo do errado,
inimigo de amigos. Assim, ele não é mais inocente e perfeito; é, em alto grau,
"moralmente" consciente. Ser "moral", ao que parece, significa a perda da
inocência e a aquisição do conhecimento; do ponto de vista religioso, nem
sempre concorre para a nossa felicidade interior ou para as bênçãos divinas. O
resultado da responsabilidade "moral" pode, às vezes, levar à violação de leis
civis. 0 resultado da bondade interior do "grande eremita", ao soltar os ladrões
que estavam encarcerados (Cf. Wisdom of the Desert, p. 37)*, pode não ser de
modo algum desejável.

* Havia um eremita nas montanhas. Foi atacado por ladrões. Seus gritos alertaram outros eremitas.
Reunidos, capturaram os ladrões. Enviaram-nos escoltados por guardas à cidade o juiz meteu-os no cár-
cere. Os irmãos, porém, (isto é, os eremitas) sentiram grande vergonha e tristeza, pois, por sua causa, os
ladrões foram entregues ao juiz. Foram procurar o Abade Poemen e tudo lhe contaram. O Abade
escreveu ao eremita dizendo-lhe: «Lembra-te de quem atuou na pri-

123

106
A inocência e o conhecimento têm de ser bem equilibrados. Para conseguir
isso, o conhecimento tem de ser disciplinado e, ao mesmo tempo, é preciso
que o valor da inocência seja apreciado em sua devida relação com o
conhecimento.

No Dhammapada (verso 183) lemos o seguinte:

Não faças nada que é mau,


Faças tudo o que é bom,
Para purificar inteiramente o coração:
É esse o ensinamento dos budas.

As duas primeiras linhas se referem ao conhecimento, enquanto a terceira


é o estado de inocência. "Purificar" significa "purgar", "esvaziar" tudo aquilo
que polui a mente. A poluição vem da consciência egocêntrica e é a
ignorância, ou o conhecimento, que distingue o bem do mal, o ego do não-
ego. Falando do ponto de vista metafísico, é a mente que apreende a verdade
contida no esvaziamento, e quando isso se realiza, sabe a mente que não exis-
te o eu, o ego, o Atman que a possa poluir quando se acha na estaca zero. É
desse zero que todo o bem é realizado e o mal evitado. O zero de que falo não
é um símbolo matemático. £ o infinito o armazém, ou a matriz (Garbba)
de todos os valores possíveis do bem.

zero = infinidade e infinidade = zero

A dupla equação deve ser entendida não apenas de maneira estática, mas
sim dinâmica. Ocorre entre o ser e o devir. Pois não

meira traição e aprenderás a razão que deu lugar à segunda. Se não tivesses
primeiro sido traído por teus próprios pensamentos interiores, jamais terias
acabado entregando aqueles homens ao juiz.» O eremita, comovido por
essas palavras, levantou-se imediatamente, foi à cidade, arrombou a porta
do cárcere e libertou os ladrões, livrando-os da tortura. The Wisdom of
the Desert, XXXVII.

124

107
são idéias que se contradizem. O vazio não é apenas mero vazio, ou
passividade, ou inocência. É e, ao mesmo tempo, não é. É SER e DEVIR. E
conhecimento e inocência. O conhecimento em relação ao bem a realizar e ao
mal a não efetuar não basta; tem de brotar da inocência, onde a inocência é
conhecimento e o conhecimento, inocência.
O "grande eremita" é culpado por não entender o esvaziamento, isto é, a
inocência, e o Abade Poemen comete um erro ao aplicar a inocência sem o
conhecimento dos negócios deste mundo. Os ladrões devem ser postos na
prisão, pois a comunidade não pode sofrer dano. Enquanto forem pessoas
"fora da lei", têm de ser privados da sua liberdade essa é a maneira do
mundo em que desempenhamos nossa tarefa de ganhar o pão por um trabalho
duro e honesto. Nossa tarefa só é possível se vivermos no mundo do
conhecimento, pois onde prevalece a inocência não há necessidade de nosso
trabalho: "Tudo de que necessitamos para nossa existência nos é dado
gratuitamente por Deus". Enquanto vivermos uma vida comunitária, toda
espécie de lei tem de ser observada. Somos pecadores, isto é, somos
conhecedores, não apenas individualmente, mas como coletividade,
comunitária e socialmente. Os ladrões devem ser encarcerados. Como seres
espirituais, temos de lutar por conseguir a inocência, o esvaziamento, a
iluminação e uma vida em que haja oração. O "grande eremita" deve levar
vida de penitência e oração, mas sem interferir nas leis civis que regulam
nossa vida secular. Onde há vida secular predomina o conhecimento, e o
trabalho duro e honesto é uma necessidade absoluta. Mais, cada indivíduo
tem direto ao fruto do seu trabalho. O "grande eremita" não tem o direito de
libertar os ladrões, ameaçando a paz de seus concidadãos que respeitam as
leis.
Quando o conhecimento não é devidamente posto em prática, ocorrem
fenômenos estranhos, irracionais. O eremita é, sem dúvida, um bom membro
da sociedade e não tenciona mal algum a nenhum de seus concidadãos. Os
ladrões pretendem perturbar a paz da comunidade. O eremita merece ser
encarcerado por ter violado a lei libertando elementos anti-sociais. O homem
bom é punido, enquanto os homens maus vagueiam desembaraçadamente,
incomodando os cidadãos amantes da paz. Isto, estou certo, está longe das
aspirações do eremita.

125

108
II

O conceito metafísico de esvaziamento pode ser traduzido, em termos de


economia, para a palavra pobreza, ser pobre. Nada possuir. "Bem-aventurados
os que são pobres em espírito". Eckhart o define: "E um pobre que nada
deseja, nada sabe, nada possui". Isso é possível quando alguém está vazio "de
si e de todas as coisas", quando a mente está inteiramente purificada em
relação ao conhecimento ou à ignorância, que é nossa herança, depois que
perdemos a inocência. Em outras palavras, recuperar a inocência é ser pobre.
O que nos aparece como um tanto estranho é o fato de Eckhart representar um
homem pobre como nada conhecendo. Essa é uma declaração cheia de
significado. O início do conhecimento se dá quando a mente está repleta de
toda espécie de pensamentos que a mancham, inclusive o pior de todos: o de
si próprio. Pois todos os males e todas as impurezas começam com o nosso
apego ao eu. Como diriam os budistas, a realização do esvaziamento é nada
mais, nada menos, do que o olhar que penetra na não-existência de uma coisa
que é ego-substância. Essa é a maior pedra de tropeço em nossa disciplina es-
piritual que, na realidade, consiste não em libertar-se do eu mas em
conscientizar-se do fato de que, desde o início, não há essa existência.
É essa conscientização que significa ser "pobre" em espírito. "Ser pobre"
não quer dizer "tornar-se pobre". "Ser pobre" significa, desde o início, não
estar de posse de coisa alguma e não dar aquilo que temos. Nada a ganhar,
nada a perder; nada para dar, nada a receber. Ser simplesmente assim e, no
entanto, ser rico de inesgotáveis possibilidades é isso ser "pobre" no
sentido mais apropriado e característico da palavra. É isso que todas as
experiências religiosas nos dizem. Ser absolutamente nada é ser tudo. Quando
alguém possui alguma coisa, isso impedirá todas as outras coisas de vir.
A esse respeito, Eckhart tinha maravilhosa intuição em relação à natureza do
que ele denomina die eigentlichste Armut. Geralmente, temos tendência a
imaginar, quando a mente ou o coração estão vazios de "si mesmo e de todas
as coisas", que há um lugar para Deus entrar e ocupar. É um grande erro. O
simples pensamento, mesmo o mais ínfimo, de dar lugar para alguma coisa,
atrapalha; é um obstáculo de proporções gigantescas, tal como uma montanha.
Um monge veio procurar Ummon, o grande Mestre Zen (falecido em 949) e
disse: "Quando alguém não tem nenhum pensamento que ocupe a sua
consciência, que falta tem ele?" Ummon berrou: "O Monte Sumeru!" Outro Mestre
Zen, Kyogen Chikan (discípulo de Isan Reiyu, 770-8:53) compôs esta canção
sobre a pobreza:

A pobreza do ano passado ainda não foi perfeita


A pobreza deste ano é absoluta.
Na pobreza do ano passado havia lugar para a cabeça de uma verruma;
A pobreza deste ano fez com que a própria verruma desaparecesse.

126

109
O que Eckhart tem a dizer correspondendo ao pensamento de Kyogen é o
seguinte, e é tipicamente cristão:

"Se for o caso de estar alguém vazio de coisas, criaturas, dele próprio
e de Deus, e se Deus pudesse ainda encontrar nele um lugar onde agir,
então declaramos: enquanto esse lugar existir, essa pessoa não é pobre, da
mais íntima pobreza (eigentlicbste Armut). Pois não é intenção de Deus
que o homem tenha um lugar reservado onde ele possa atuar, uma vez
que a verdadeira pobreza de espírito requer que o homem esteja vazio de
Deus e de todas as suas obras, de maneira que se Deus quer agir na alma,
Ele mesmo seja o lugar onde age isso lhe agradaria fazer. Pois se
alguma vez Deus encontrasse uma pessoa assim tão pobre, tomaria a
responsabilidade de sua própria ação e seria Ele o lugar da operação,
porque Deus age em Si mesmo. É aqui, nessa pobreza, que o homem
recupera o ser eterno que um dia ele foi, é agora e será para sempre".

Conforme minha interpretação de Eckhart, Deus é, ao mesmo tempo, o


lugar onde Ele age e a própria ação. O lugar é zero, ou o "vazio como sendo o
Ser", enquanto a ação efetuada no lugar zero é a infinidade, ou "o vazio como
o devir". Quando a dupla equação zero=infinito e infinito=zero é realizada,
tornamo-nos eigentlicbste Armut, ou a essência da pobreza. Ser é devir e devir
é ser. Quando se separa um do outro, temos uma pobreza retorcida e manca. A
pobreza perfeita só é recuperada quando o perfeito vazio é plenitude perfeita.

127

110
Quando um monge* tem algo a emprestar e sente-se ansioso por tê-lo de
volta, não é pobre, não está ainda completamente vazio. Há alguns anos atrás,
quando eu lia estórias sobre budistas piedosos, lembrei-me de uma em relação
a pequeno agricultor. Certa vez, à noitinha, ouviu um ruído no jardim.
Percebeu um jovem trepado numa árvore roubando suas frutas. Foi
discretamente a um alpendre onde guardava a escada, apanhou-a, colocando-a
debaixo da árvore para que o invasor pudesse descer sem perigo. Voltou para
cama sem ter sido observado. O coração do agricultor, vazio de si e de toda
posse não podia pensar senão no perigo que corria o jovem delinqüente da
aldeia, de cair da árvore.

III

Existe o que se pode chamar uma série de virtudes morais fundamentais de


perfeição, no budismo Mahayana, denominadas as Seis Paramita. Os
discípulos da Mahayana devem esforçar-se por praticar essas virtudes na vida
cotidiana. São elas: 1) Dana, "dar"; 2) Sila, "observar os preceitos"; 3) Virya,
"espírito viril; 4) Ksan-ti, "humildade"; ou paciência; 5) Dhyana,
"meditação"; e 6) Prajna, "sabedoria transcendental", que é uma intuição da
mais elevada categoria.
Não vou explicar aqui cada uma dessas seis virtudes. O que tentarei é
chamar a atenção dos leitores para a ordem em que são colocadas. Em
primeiro lugar vem dana, dar, e em último está prajna que é uma espécie de
visão interior em relação à verdade do esvaziamento. A vida do budista
começa com "dar" e termina em prajna. Mas, em realidade, o fim é o início e
o início, o fim.

Certo irmão perguntou a um ancião: «Se um irmão me deve pequena quantia de dinheiro,
acha que devo pedir-lhe que me reembolse? Respondeu-lhe o ancião: Peça uma vez e com
humildade. Disse o irmão: Suponhamos que eu lhe peça uma vez e ele nada me dê; que
farei? Então lhe respondeu o ancião: Não lhe peças mais. O irmão interrogou-o novamente:
Mas que posso fazer, não consigo libertar-me de minha ansiedade em relação a isso. Ao que
o ancião retrucou: Esquece tuas ansiedades. O que importa é não entristecer teu irmão, pois
és um monge.» The Wisdom of the Desert, XVCVIII.

128

111
A série dos Paramita move-se em círculo sem início nem fim. O "dar" só é
possível quando há vazio e o vazio só é atingível quando o dar é realizado
incondicionalmente o que é die eigentlkhsíe Armut de Eckhart.
Como prajna tem sido freqüentemente objeto de discussão, li-mitar-me-ei à
exposição de dana, dar. Não significa apenas dar algo de material que
possuímos para fazer "caridade", como geralmente se pensa. Significa
qualquer coisa como sair de si mesmo, disseminando conhecimento, ajuda a
pessoas em dificuldades de toda espécie, criar artes, promover a indústria, a
beneficência social, sacrificar a própria vida por uma causa digna, e assim por
diante. Isso, porém, ainda que muito nobre, não é suficiente, diriam os fi-
lósofos budistas, enquanto alguém afaga a idéia de dar num ou noutro sentido.
O autêntico dar consiste em não comprazer-se com qualquer pensamento de
que algo sai de nossas mãos e é recebido por outro. Isto é, ao dar não deve
haver pensamento em relação a um doador e a alguém que recebe, ou a objeto
que passe por essa transação. Quando o dar se efetua assim no vazio, é o gesto
de dana, a primeira Paramita fluindo diretamente de prajna, o paramita final.
Conforme a definição de Eckhart acima citada, isso é pobreza no seu sentido
autêntico. Noutra passagem, ele é mais concreto referindo-se a exemplos:
"Disse São Pedro: "Tudo deixamos". São Tiago disse: "Renunciamos
a tudo". São João disse: "Nada nos resta". Pergunta Eckhart: "Quando
deixamos tudo? Quando abandonamos tudo que se possa conceber, tudo
que se possa expressar, tudo que se possa ouvir, tudo que é visível,
então, e só então, tudo abandonamos, somos iluminados, resplandecemos
e brilhamos com Deus".

Kyogen, o Mestre Zen, diz: "A pobreza deste ano fez com que a própria
cabeça da verruma desaparecesse". Isso é simbólico. De fato, significa estar
alguém morto para si. Corresponde ao:

Visankharagatam cittam.

A mente chegou à dissolução

129

112
Tanhanam khayam ajjhaga
Os desejos ansiosos terminaram
Essas palavras fazem parte do verso atribuído a Buda ao atingir a
suprema iluminação, É conhecido como "o Hino da Vitória". A cabeça de
verruma está "dissolvida", o corpo está "dissolvido", a mente está
"dissolvida", tudo se acha "dissolvido" não é isso o vazio? Em outras
palavras, é o perfeito estado de pobreza. Eckhart cita São Gregório:
"Ninguém recebe tanto de Deus como aquele que está completamente
morto". Não sei exatamente em que sentido São Gregório emprega a palavra
"morto". Mas a palavra tem grande significado se entendida em referência ao
poema de Bunan Zenji**:

Enquanto vivo, sê morto Inteiramente


morto Tudo então é bom Seja o que
for que faças.
Vazio, pobreza, morte ou dissolução tudo isso se realiza quando se
atravessa a experiência do "breaking-througb", que nada mais é do que
"iluminação" (Sambodbi). Citemos um pouco mais Eckhart:
"Nessa passagem libertadora (breaking-througb')... transcendo
todas as criaturas e não sou nem Deus, nem criatura: sou o que era e
permanecerei agora e sempre. Recebo então um impulso (Aufschwung)
que me transporta acima de todos os anjos. Nesse impulso, concebo tais
riquezas que não me contento com Deus como sendo Deus, como
sendo todas as suas divinas obras; pois nesse breaking-througb, nessa
passagem libertadora, descubro que Deus e eu somos a mesma coisa..."
Não sei como meus leitores cristãos haveriam de receber essas
declarações; entretanto, do ponto de vista do budismo, é preciso expressar
uma reserva, que é a seguinte: Por mais transcendental e acima de todas as
formas de condicionamento que possa ser essa experiência em si (do
breaking-through), estamos sujeitos a formular uma interpretação inexata da
experiência.

* Dhammapada, verso 154. *« Viveu em


1603-76.
'130

113
O Mestre Zen nos dirá, portanto, que devemos transcender ou "lançar fora"
esta experiência. Dirá que deveremos despojar-nos completamente e
ultrapassar o fato de receber "um impulso" de qualquer natureza, para sermos
perfeitamente livres em relação a toda e qualquer reminiscência dos adornos
com que nos revestimos, desde a aquisição do conhecimento essa é a meta a
que visa a formação Zen. Então, e somente então, nos encontramos novamente
na situação de sermos os comuns "Joões-Ninguém" que sempre fomos. Foi
Joshu, um dos maiores mestres do Tang, que confessou algo assim: "Levanto-
me de manhã cedo e olho para mim mesmo como estou mal e pobremente
vestido! Minha veste superior está quase em trapos, minha blusa conserva,
mais ou menos, sua forma. Minha cabeça está coberta de sujeira e cinzas.
Quando iniciei o estudo do Zen, sonhei tornar-me um magnífico e imponente
"sacerdote". Mas nunca imaginei que estaria vivendo neste barraco esburacado,
com refeições escassas. Afinal, sou um pobre monge mendigo".
Um monge veio procurar este Joshu e perguntou-lhe: "Se alguém vem
falar-lhe livre de toda e qualquer possível posse, poderia isso servir?" Joshu
respondeu: "Joga isso fora!"
Veio ainda um outro e indagou: "Quem é Buda?" Respondeu-lhe Joshu
instantaneamente: "Quem é você?"
Uma anciã visitou Joshu dizendo-lhe: "Sou uma mulher que, conforme o
budismo, vive sob cinco obstáculos*; como posso superá-los?" Joshu a
aconselhou: "Reza para que todos os seres possam nascer no Paraíso. Mas
quanto a mim, deixa-me para sempre permanecer neste oceano de tribulações."
Podemos enumerar certas virtudes a serem exercidas por monges budistas ou
cristãos tais como pobreza, discrição, obediência, humildade, não julgar os
outros, meditação, silêncio, simplicidade e algumas outras qualidades;
entretanto, a meu ver, fundamental é a pobreza. A pobreza corresponde
ontologicamente ao vazio e psicologicamente ao esquecimento de si, ou à
inocência. A vida de que fruíamos no Éden simboliza a inocência. Como
recuperar (ou talvez melhor, como reconhecer que já a possuímos) essa
mentalidade primitiva em meio à industrialização e à propaganda universal de
"uma vida fácil", é a grave questão que se apresenta a nós, homens modernos,
para uma bem-sucedida solução. Como atualizar a sabedoria transcendental de
prajna num mundo em que o desenvolvimento do conhecimento é, por toda
parte, encorajado de mil e uma maneiras? Uma solução é imperativamente
exigida de nós, de modo pungente. A época dos padres do deserto passou para
sempre e estamos à espera de um novo sol que desponte acima do horizonte
do egoísmo e da sordidez em todos os sentidos.

* Uma mulher é considerada não estar qualificada para ser: 1) Maha-braham «espírito
supremo», 2) Sakrenda, «Rei dos Céus»; 3) Mara, «o malvado», 4) Cakravartin,
«grande Senhor» e 5) Buda.

131

114
A RECUPERAÇÃO DO PARAÍSO

THOMAS MERTON

Um dos "santos" de Dostoievski, o Staretz Zosima, que fala como uma


típica testemunha da tradição das Igrejas grega e russa, faz uma espantosa
declaração. Diz ele: "Não compreendemos que a vida é um paraíso, pois é
suficiente apenas desejar compreendê-lo, e logo o paraíso aparecerá diante de
nós em sua beleza". Tomado no contexto de Os Irmãos Karamazov, com o
pano de fundo de violência, blasfêmia e assassínio de que está cheio o livro, é
de fato uma declaração surpreendente. Estaria Zosima realmente sério? Ou
seria apenas um idiota iludido, sonhador de sonhos fantásticos inspirados
pelo "ópio do povo" ?
Seja qual for a opinião do leitor moderno sobre essa declaração, era ela
certamente algo de básico para o cristianismo primitivo. Estudos
contemporâneos sobre os padres da Antigüidade têm revelado, sem a
menor dúvida, que um dos motivos principais que impeliram os homens a
abraçar a "vida angélica" (bios angelikos) de solidão e pobreza no deserto, foi
precisamente a esperança de que, ao fazê-lo, poderiam voltar ao paraíso.

132

115
.
Ora, esse conceito deve ser compreendido de maneira correta. O paraíso
não é "o céu". O paraíso é um estado, ou mesmo um lugar na terra. O paraíso
pertence mais propriamente à vida presente, não à futura. Em certo sentido
pertence a ambas. E o estado em que o homem foi originariamente "criado"
para viver na terra. E também concebido como uma espécie de antecâmara do
céu depois da morte como, por exemplo, no fim do Purgatório de Dante.
Cristo, morrendo na cruz, disse ao bom ladrão a seu lado: "Hoje mesmo
estarás comigo no paraíso". £ claro que isso não significava, não podia
significar o céu.
Não devemos imaginar o paraíso como um lugar onde se está à vontade,
onde existe o prazer sensual. £, sem dúvida alguma, um lugar de paz e
descanso. Porém, o que os padres do deserto procuravam, quando acreditavam
poder encontrar o "paraíso" no deserto, era a inocência perdida, o vazio e a
pureza de coração de que fruíam Adão e Eva no Éden. Evidentemente, não
podiam pretender encontrar belas árvores e jardins num deserto sem água,
queimado pelo sol. E óbvio que não esperavam descobrir um lugar por entre
as pedras escaldantes e as cavernas, onde pudessem reclinar confortavelmente
em recantos cheios de sombra à beira da água corrente. O que buscavam era o
paraíso dentro de si, ou melhor, acima e além de si próprios. Procuravam o
paraíso na recuperação daquela "unidade" que havia sido destroçada pelo
"conhecimento do bem e do mal".
No início, Adão era "um homem". A queda o dividiu, tornando-o "uma
multidão". Cristo restaurou, n'Ele, a unidade do homem. O Cristo Mítico era o
Novo Adão", e, n'Ele, todos os homens poderiam voltar à unidade, à
inocência, à pureza e se tornarem "um só homem". Omnes in Christo umm.
Isso significava, é claro, viver não apenas egoisticamente, fazendo a própria
vontade, obedecendo ao ego cheio de limitações, e sim ser "um só espírito com
Cristo." "Os que estão unidos ao Senhor", diz São Paulo, "são um só
espírito". União com Cristo significa unidade em Cristo, de maneira que cada
um dos que estão unidos ao Cristo pode dizer com Paulo: "Não sou eu que
vivo, agora Cristo é que vive em mim". E o mesmo Cristo que vive em todos.
O eu individual "morreu", com Cristo, ao seu "homem velho", a seu eu
exterior egoísta; e, "ressuscitou" em Cristo ao homem novo, um ser divino
desapropriado de si, sem egoísmo, que é o Cristo único, o mesmo que é "tudo
em todos."

133

116
A grande diferença entre o Cristianismo e o Budismo surge nessa
conjuntura. Do ponto de vista metafísico, o budismo parece considerar o
"vazio" como uma negação total de toda a personalidade, enquanto o
cristianismo encontra na pureza de coração e na "unidade do espírito" a
suprema e transcendente realização da personalidade. Temos aqui um assunto
extremamente complexo e difícil. Não estou preparado para discuti-lo. Parece-
me, no entanto, que a maioria das discussões sobre essa questão, até agora,
tem sido inteiramente objeto de equívocos. Muitas vezes, do lado cristão,
identificamos "personalidade" com o ego ilusório, o eu exterior que,
certamente, não é a verdadeira "pessoa" cristã. Do lado budista, parece não
haver nenhuma idéia positiva de personalidade: é um valor que parece
totalmente ausente do pensamento budista. Entretanto, não está de modo
algum ausente da prática do budismo, como é evidente pelo comentário do Dr.
Suzuki, que, no final da formação Zen, quando alguém se tornou
"absolutamente despojado e nu", descobre que é o "João-ninguém" que
sempre foi. Isso parece-me corresponder na prática à idéia do cristão que se
despoja do "homem velho" para encontrar "no Cristo" seu eu verdadeiro. A
diferença principal está no fato da linguagem budista ser muito mais radical,
austera e severa e onde o discípulo do Zen diz "vazio" não permite ele lugar
para qualquer imagem ou conceito que traga confusão para o verdadeiro
objetivo em vista. O tratamento cristão desse assunto emprega expressões
ricamente metafóricas feitas de imagens concretas, mas devemos cuidar de
penetrar além da' superfície externa, para alcançar as profundezas interiores.
Em todo caso, "a morte do homem velho" não é a destruição da
personalidade. É a dissolução de uma ilusão, e a descoberta do homem novo é
a realização, a conscientização daquilo que sempre existiu ali, pelo menos
como possibilidade radical em razão do fato de ser o homem a imagem de
Deus.
Esses temas cristãos de "vida em Cristo" e "unidade em Cristo" são
bastante familiares. Sente-se, porém, que, na época atual, não são
compreendidos em toda a sua profundeza espiritual. As implicações místicas
dessas realidades são raramente exploradas.

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117
Detemo-nos com interesse muito maior em suas implicações sociais,
econômicas e éticas. Eu me pergunto se o que o Dr. Suzuki disse do "vazio"
não deveria ajudar-nos a aprofundar-nos mais do que habitualmente fazemos
nessa doutrina de nossa unidade mística e nossa pureza em Cristo. Quem já
leu São João da Cruz e o que ele diz sobre a "noite" estará inclinado a fazer a
mesma pergunta. Se temos de morrer a nós mesmos para viver "em Cristo",
não quer isso dizer que, de qualquer modo, temos de estar "mortos" e "vazios"
em relação ao nosso velho ego? Se em tudo devemos ser movidos pela graça
do Cristo, não deveríamos, em certo sentido, ter consciência disso como uma
ação surgida do vazio, brotada do mistério da pura liberdade que é o "amor
divino", e não como algo produzido em nosso ser exterior, e com ele brotando
de nossos desejos e referindo-se ao nosso próprio interesse espiritual?
São João da Cruz compara o homem a uma janela através da qual brilha a
luz de Deus. Se a vidraça está limpa, sem mancha nenhuma, estará
completamente transparente, não vemos a vidraça, a janela estará "vazia",
aparece apenas a luz. Mas se alguém traz em si as manchas do egoísmo
espiritual e a preocupação com seu eu ilusório e exterior, mesmo em relação a
"coisas boas", então a vidraça torna-se bem visível em razão das manchas que
traz.
Assim, quando o homem pode libertar-se das manchas e da poeira nela
produzidas por sua fixação sobre o que é bom e mau em referência a si
mesmo, será transformado em Deus e será "um com Deus". Nos termos de
São João da Cruz:

"Quando a alma dá lugar (que é apartar de si toda névoa e mancha


de criatura, tendo a vontade perfeitamente unida à de Deus porque
amar é trabalhar em despojar-se e desnudar-se por Deus de tudo o que
não é Ele), logo fica esclarecida e transformada em Deus, e o Senhor
comunica-lhe o seu ser sobrenatural de tal maneira que parece ser o
próprio Deus e, de fato, é Deus por participação"*.
Isto é, como veremos adiante, o que os Padres do deserto denominam "pureza
de coração". Corresponde a uma recuperação da inocência de Adão no
paraíso. As muitas estórias dos Padres do deserto, em que se lê o
extraordinário domínio que exerciam sobre os animais selvagens, eram
originariamente entendidas no sentido de manifestação dessa recuperação da
inocência paradisíaca. Um dos primitivos padres, Paulo, o Eremita, declarou:
"Se alguém adquire a pureza, tudo a ele se submeterá, como sucedeu a Adão
no paraíso, antes da queda"*.

* São João da Cruz. Subida do Monte Carmelo, Livro II, cap. V, p. 7.

135

118
Se admitimos a declaração do Staretz Zosima de que o paraíso é algo de
atingível, pois afinal estará presente em nós e basta-nos saber descobri-lo aí,
podemos assim mesmo refletir e indagar sobre uma parte dessa afirmação:
"basta desejar compreendê-lo e imediatamente o paraíso aparecerá diante de
nós em toda a sua beleza". Isso parece ser demasiadamente fácil. Requer-se
muito mais do que simples veleidade. Qualquer um pode formular um desejo.
Mas o "desejo" a que Zosima se refere aqui é algo que vai muito além do
"sonhar acordado". Significa, é claro, uma total reviravolta e a transformação
de toda a vida. £ preciso "desejar" a realização desse acontecimento,
unicamente, e renunciar a desejar qualquer outra coisa. É preciso esquecer-se
da procura de qualquer outro "bem". É preciso dedicar-se de todo o coração e
com toda a alma à recuperação da "inocência" perdida. E, no entanto, como o
Dr. Suzuki tão bem fez notar, e como a doutrina cristã da graça nos ensina em
outros termos, não pode isso ser a obra de nosso próprio "eu". É inútil o "eu"
tentar "purificar o eu", ou o "eu" tentar "construir um lugar para si" em Deus.
A inocência e a pureza de coração que pertencem ao paraíso são o vazio
completo de si próprio, em que tudo é obra de Deus, a expressão livre e
imprevisível do seu amor, obra da graça. Na pureza da inocência original, tudo
é realizado em nós, mas sem nós in nobis et sine nobis. Antes, porém, de
atingirmos este nível, precisamos também aprender a operar no outro plano do
"conhecimento" scientia onde a graça age em nós mas "não sem nós"
in nobis sed non sine nobis.
O Dr. Suzuki demonstrou, com muita aptidão, em seus próprios termos,
que seria um grave erro crer que alguém poderia por sua própria força e
habilidade recolocar-se no estado de inocência e prosseguir alegremente sem
mais nenhuma preocupação pela vida presente. A inocência não expulsa
nem destrói o conhecimento.

* Citado por Dom Anselmo Stolz, em Théologie de Ia Mystique, Che


vetogne, 1947, p. 31.

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119
Ambos andam juntos. É aí que muitas pessoas espirituais parecem ter
falhado. Algumas eram tão inocentes que perderam todo contato com a
realidade cotidiana num conflituoso e complexo mundo dos homens. Mas sua
inocência não era verdadeira. Era fictícia; uma perversão e frustração da
verdadeira vida espiritual. Era o vazio do quietista, um vazio que era apenas
um espaço vago e tolo: uma ausência de conhecimento sem a presença da
sabedoria. Era a ignorância narcisista do bebê, não o vazio do santo que é
movido, sem reflexão ou autoconsciência, pela graça de Deus.
A essa altura, entretanto, gostaria de interrogar o Dr. Suzuki sobre sua
interpretação do "grande eremita" que fez prender os ladrões. Estou tentado a
me perguntar se não haverá, na reação do Dr. Suzuki, um pouco do que poder-
se-ia denominar "super-compensação". Há, de fato, bastante do Zen na estória
dos ladrões e do "grande eremita". Em todo caso, é o gênero de estória a que
um leitor ocidental poderia ser tentado a atribuir, imediatamente, afinidades
com o espírito do Zen. E talvez o Dr. Suzuki esteja demasiadamente prevenido
contra uma tal interpretação que haveria, é claro, de tender à velha acusação
de antinomismo. Certamente, o "grande eremita" não parecia ter muito
respeito pelas leis, o xadrez e a polícia.
Mas, se olharmos um pouco mais de perto para essa estória, vemos que o
ponto em questão é algo de inteiramente diferente. Ninguém está dizendo que
os ladrões não devem ser metidos no xadrez. O que se está fazendo notar é
que os eremitas não têm que enviá-los para lá. O ladrão deve, é certo,
respeitar os direitos de propriedade; mas o eremita consagrado a uma vida de
pobreza e "vazio" despojou-se de seu direito de se preocupar com posses, com
propriedades ou com segurança material. Pelo contrário, se ele for o que deve
ser, fará o que fez o agricultor do Dr. Suzuki e ajudará os ladrões (levando-
lhes uma escada). Mas não. Esses monges mostram-se espiritualmente
enfermos. Longe de estarem vazios de si próprios, encolerizam-se quando
tocam em seus interesses egoístas ou mesmo estes se vêem ameaçados.
Vingam o mal que lhes é feito porque estão enredados no "eu" que pode enfu-
recer-se e sentir-se injustiçado. Nas palavras do "Caminho da Virtude"
{Dhammapada):
Não e realmente anacoreta quem oprime os outros; Não é asceta quem
causa desgosto a outrem.

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120
Isso é quase idêntico a uma das declarações do Abade Pastor:
"Quem é brigão não é monge; quem devolve o mal pelo mal não é
monge; quem se encoleriza não é monge"*.
Assim, os monges furiosos são muito mais culpados do que os ladrões,
pois são justamente pessoas assim que fazem com que os homens se tomem
ladrões. São os que adquirem, para si, posses excessivas e as defendem contra
os outros, que tomam necessário aos outros roubar para viver. Esta é, pelo
menos, a idéia do Abade Poemen. E ao dizer ao "grande eremita" que fizesse
sair do cárcere os ladrões, não estava sendo nem anti-social nem sentimental.
Estava apenas dando a seus monges uma lição de pobreza. Não queriam eles
conhecer o paraíso que tinham dentro de si pelo desapego e a pureza de
coração. Preferiam manter-se na escuridão e na impureza, pelo amor
desordenado a suas posses e seu conforto. Não queriam a "sabedoria" que
"saboreia" a presença do Senhor na liberdade e no vazio; queriam o
"conhecimento" do "meu" e do "teu" e dos direitos violados "vingados" pelo
recurso à polícia e à tortura.

II

Os Padres da Igreja interpretam a criação do homem à "imagem de


Deus" como prova de que ele é capaz de inocência paradisíaca e
contemplação e que aí está, em realidade, o porquê de sua criação. O
homem foi feito para que, em seu vazio e na pureza de seu coração, pudesse
refletir a pureza e a liberdade do Deus invisível e unir-se assim perfeitamente
com Ele. Mas a reaquisição deste paraíso sempre oculto dentro de nós, ao
menos como uma possibilidade, é algo que apresenta grande dificuldade
prática. O Gênese nos conta como no caminho de volta ao paraíso há um anjo
com uma espada chamejante "voltada para todos os lados", que nos impede o
acesso. Entretanto, não significa isso que a volta seja algo de absolutamente
impossível. Diz Santo Ambrósio: "Todos os que desejam voltar ao paraíso
têm de ser provados pelo

The Wisdom of the Desert, XLIX.

138

121
fogo". (Oportet omnes per ignem probari quicumque ad paradisum redire
desiderant. In Psalmum 118, XX, 12. Citado por Stolz, pg. 32) . O caminho do
conhecimento à inocência ou pureza do coração é um caminho de tentação e
luta. É uma questão de pelejar contra dificuldades máximas e vencer
obstáculos que parecem, e em realidade são, superiores à força humana.
Dr. Suzuki não mencionou um dos principais atores no drama da queda: o
demônio. O budismo possui certamente um conceito bem definido desse
personagem (Mara o tentador) . E se alguma vez houve uma
espiritualidade mais preocupada com o demônio do que a do deserto do Egito
nos primórdios do cristianismo, esta é o budismo do Tibet. No Zen, contudo, o
demônio pouco aparece. Vê-mo-lo ocasionalmente nas "Declarações dos Pais".
Mas sua presença se faz notar por toda parte no deserto que, em realidade, é
seu refúgio. O primeiro e maior eremita, Santo Antão, é o tipo clássico do
lutador que enfrenta o demônio. Os padres do deserto invadiram o território
próprio e exclusivo do demônio para, vencendo-o num combate a sós,
reconquistar o paraíso.
Sem tentar a delicada tarefa de identificar plenamente esse espírito
ubiqüitário e mau, lembremo-nos que, nas primeiras páginas da Bíblia, ele
aparece como oferecendo ao homem o "conhecimento do bem e do mal", como
algo "melhor", superior e mais "semelhante a Deus" do que o estado de
inocência e de vazio. E nas últimas páginas da Bíblia, o demônio é, enfim,
"expulso" quando o homem vê restaurada sua unidade com Deus. O ponto
significativo é que nesses versos do livro da Revelação (Apocalipse, 12, 10), o
demônio tem o título de "acusador de nossos irmãos... que acusou diante de
Deus dia e noite". No livro de Jó, o demônio é, não só aquele que causa os
sofrimentos de Jó, mas entende-se que ele atua também como "tentador",
através das palavras moralizantes dos amigos de Jó.
Os amigos de Jó entram em cena como conselheiros e "consoladores",
oferecendo a Jó os frutos de sua scientia moral. Jó, porém insiste em que seus
padecimentos não têm explicação. E que ele não consegue descobrir-lhes a
razão através da ética convencional. É então que seus amigos tornam-se seus
acusadores e lançam-lhe uma maldição como pecador. Assim, em lugar de
pecadores transformam-se em torturadores, em virtude de sua própria
moralidade. E, assim, enquanto se declarando advogados de Deus, agem
como instrumentos do demônio.

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122
Em outras palavras, o domínio do conhecimento ou da scientia é um
domínio onde o homem está sujeito à influência do demônio. Isso em nada
contribui para alterar o fato de que o conhecimento é um bem e necessário.
Contudo, mesmo quando nossa "ciência" não nos falha, tende, mesmo assim,
a iludir-nos. Suas perspectivas não são as de nossa natureza mais interior e
espiritual. E, ao mesmo tempo, estamos sendo constantemente enganados pela
paixão, o apego a nós próprios, e pelas "artimanhas do demônio". O domínio
do conhecimento é, portanto, um domínio de alienação e perigo, onde não
somos realmente nós próprios e onde há probabilidade de nos tornarmos
completamente escravos do poder da ilusão. E isso é verdade não apenas
quando caímos no pecado, mas também, até certo ponto, quando o evitamos.
Os padres do deserto compreenderam que a mais perigosa atividade do
demônio entrava em cena contra o monge somente quando este era moral-
mente perfeito, isto é, presumidamente "puro" e bastante virtuoso para ser
capaz de tornar-se vítima do orgulho espiritual. Aí tinha início o combate com
o último e mais sutil dos apegos: o apego à nossa própria excelência
espiritual; o amor do nosso "eu" espiritualizado, purificado, "vazio"; o
narcisismo dos perfeitos, do pseudo-santo e do falso místico.
O único meio de escapar, como ensinava Santo Antão, era a humildade.
E o conceito de humildade dos padres do deserto corresponde muito de perto
à pobreza espiritual que o Dr. Suzuki acaba de nos descrever. É preciso nada
possuir e nada reter, absolutamente. Nem mesmo um "eu" no qual se possa
receber visitas angélicas e nem mesmo um despojamento de si que possa ser
motivo de orgulho.
A verdadeira santidade não é obra do homem que se purifica, é o próprio
Deus presente em sua luz transcendente que para nós é vazio.

III

Vejamos mais de perto dois trechos patrísticos sobre a ciência (scientia) ou o


conhecimento, como ocorreu na queda de Adão. Diz Santo Agostinho:
"Essa ciência é descrita como o conhecimento do bem e do mal porque a alma
deve abrir-se ao que se situa para além dela, isto é: Deus. E deve esquecer-se do
que está abaixo dela, ou seja, o prazer do corpo. Mas se a alma, abandonando a
Deus, volta-se sobre si mesma e deseja gozar o poder espiritual que lhe é próprio
como se fora Deus, incha-se ela de orgulho que é o princípio de todo pecado. E,
quando, punida por seu pecado, aprende por experiência qual a distância que
separa o bem de que desertou do mal em que caiu. E isso, portanto, o que
significa haver provado do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal"*.

140

123
E ainda noutro lugar:
"Quando a alma abandona a sabedoria (sapienlia) do amor, que é
sempre imutável e una, e deseja a ciência (ou o conhecimento, scientia)
pela experiência das coisas temporais e mutáveis, torna-se inchada em
lugar de edificada. E assim vergada, a alma separa-se da felicidade do
bem como que movida por seu próprio peso"**.

Algumas breves palavras de comentário poderão clarificar esse conceito de


"conhecimento" e seus efeitos.
Em primeiro lugar, o estado em que o homem é criado é um estado de
não-autoconsciência que se "abre" ao que é metafisicamente mais elevado que
ele e, contudo, intimamente presente ao seu ser íntimo, de maneira que ele
próprio está escondido em Deus e unido a ele. É isso que, para Santo
Agostinho, corresponde à inocência do paraíso e ao "vazio". O conhecimento
do bem e do mal começa com a fruição das coisas sensíveis e temporais
queridas por elas mesmas. É esse ato que torna a alma consciente de si própria
e a centra em seu próprio prazer. Isso desperta a alma para o que nela é bom e
mau "por si mesmo". Logo que isso ocorre, opera-se uma completa mudança
de perspectiva e, deixando a unidade e a sabedoria (identificadas ao vazio e à
pureza), a alma cai num estado de dualismo. Fica, então, consciente tanto de
si própria como de Deus como seres separados. A alma vê, agora, Deus como
objeto de desejo ou de temor e não mais se perde n'Ele como num sujeito
transcendente.

* De Genesi Contra Manichaeos, IX. Migne, P. L., vol. 34, col. 203. ** De Trinitate XII,
II Migne, P. L., vol. 42, col. 1007.

141

124
Além disso, está consciente de Deus como ser antagonista e hostil. E,
contudo, a alma sente-se atraída ao Senhor como a seu mais elevado bem.
Mas a experiência que tem de si mesma torna-se um "peso" que a faz gravitar
para longe de Deus. Cada ato de auto-afirmação aumenta a tensão dualista
entre o eu e Deus. Lembremo-nos da palavra de Santo Agostinho: "jtmor meus,
pondus meum." "Meu amor é um peso, uma força de gravidade". Na medida
em que se ama as coisas temporais, adquire-se uma substancialidade ilusória e
uma personalidade que gravita "para baixo". Isto é, adquire-se uma
necessidade para coisas mais baixas na escala do ser do que a própria pessoa.
Depende-se dessas coisas para a própria auto-afirmação. Finalmente, essa
atração gravitacional torna-se uma escravidão a preocupações materiais e
temporais, e acaba em pecado.
Entretanto, este próprio "peso" é uma ilusão. É um resultado da
"inchação" do orgulho, mero peso oco, sem realidade. O eu que aparenta estar
sendo atraído para baixo pelo peso do seu amor e enredado pelas coisas
materiais é, de fato, algo de irreal. No entanto, retém uma existência empírica
que lhe é própria; é aquilo no qual pensamos ser. E esta existência empírica é
fortalecida por cada ato de desejo egoísta ou de medo. Não é o eu verdadeiro,
a pessoa cristã, a imagem de Deus marcada pela semelhança do Cristo. É o
falso eu, a imagem desfigurada, a caricatura, o vazio que inchou e está cheio
de si mesmo, de maneira a criar para si uma substancialidade fictícia. Assim é
que Santo Agostinho comenta a frase de São Paulo: scientia inflat. "O saber
incha".
Esses dois trechos tirados de Santo Agostinho são comentários
suficientemente paralelos ao que se processa na sentença descrita pelo Dr.
Suzuki: "Do vazio da mente surge de modo misterioso um pensamento e
temos então o mundo das multiplicidades". Evidentemente, não estou
procurando insistir no fato de que Santo Agostinho nos ensina o Zen. Longe
disso! Existem profundas e significativas divergências que não precisamos
estudar aqui. Seja suficiente termos dito haver também certas semelhanças
importantes, devidas, em grande parte, ao platonismo de Santo Agostinho.
Desde que nos encontramos no estado do "conhecimento do bem e do
mal", temos de aceitar o fato e compreender nossa posição. Temos de vê-la em
relação à inocência para a qual fomos criados, que perdemos e que podemos
recuperar. Entretanto, trata-se de considerar o conhecimento e a inocência
como realidades complementares.
142

125
Foi esse o mais delicado problema que os padres do deserto tiveram que
enfrentar e para muitos deles foi desastroso. Reconheceram a diferença entre o
"conhecimento do bem e do mal" de um lado e entre inocência e o vazio, do
outro. Mas, como o Dr. Suzuki sabiamente observou: correram o risco de
soluções demasiadamente simplificadas e abstratas. Foram muitos os que
quiseram contentar-se com a inocência, deixando de lado o conhecimento. Em
nossas "sentenças", João, o Anão, é um exemplo a focalizar. Quer atingir um
estado em que não existe a tentação, nenhum sinal da menor paixão*. Pois
tudo isso nada mais é do que um requinte de "conhecimento". Ora, em vez de
levar à inocência, leva à mais pura quinta-essência do amor de si próprio.
Leva à criação de um pseudo-vazio, um ser requintadamente purificado que é
tão perfeito que pode descansar em si mesmo sem nenhum vestígio de grosseira
reflexão. Isso, porém, não é vazio: permanece um "eu" que é o sujeito da
pureza e o possuidor do vazio. E isto, como o vira os padres do deserto, é o
triunfo final do sutil tentador. Deixa o homem enraizado e aprisionado em seu
ser apenas, um espírito descobridor do bem e do mal, do eu e do não-eu, da
pureza e da impureza do coração. Mas não é inocente. É um mestre do saber
espiritual. E, como tal, está ainda sujeito à acusação do demônio. Uma vez que
ele é perfeito está sujeito à maior de todas as ilusões. Se fosse inocente, estaria
livre da ilusão.
O homem que encontrou realmente sua nudez espiritual, que
compreendeu que está vazio, não é um "eu" que adquiriu o vazio ou tornou-se
vazio. Está simplesmente "vazio desde o início", como observou o Dr. Suzuki.
Ou, para empregar os termos mais afetivos de Santo Agostinho e de São
Bernardo, este homem "ama com um amor puro". Quer isso dizer que ele
ama com uma pureza e uma liberdade que brotam espontânea e diretamente do
fato de que ele recuperou plenamente a semelhança divina e é agora, plena-
mente, seu verdadeiro ser, pois está perdido em Deus. É um com Deus e está
com Ele identificado e, assim, nada sabe de um ego dentro de si. Tudo o que
sabe é amor. Como diz São Bernardo: "Quem ama assim, ama simplesmente,
e nada mais sabe do que o amor". Oui amat, amat et aliud novit nihil.

* «Disse o Abade Pastor que o Abade João, o Anão, havia rezado pedindo ao Senhor retirar-
lhe todas as paixões. Tornou-se, assim, impassível. Nessas condições foi procurar um dos
anciãos e disse-lhe: Vês diante de ti um homem inteiramente tranqüilo que não sofre mais
paixão alguma. Respondeu-lhe o ancião: Vai, e roga ao Senhor para que ordene que em ti
suceda alguma luta, pois a alma somente nos combates é amadurecida. E, quando
recomeçaram as tentações, João, o Anão, disse, apenas, sem orar, para que lhe fossem
retiradas as paixões: «Senhor, dá-me forças para chegar ao fim da luta». The Wisdom of the
Desert, XCI.

143

126
Tivessem ou não facilidade em expressar plenamente essa espécie de
vazio, o certo é que os padres do deserto se esforçavam por consegui-lo. E seu
instrumento para abrir as sutis fechaduras da ilusão espiritual era a virtude da
discretio. A mais importante de todas as virtudes, ensinava Santo Antão, era a
discretio. a discrição. A discrição lhe ensinara o valor de um trabalho manual
simples. A discrição ensinou aos padres do deserto que a pureza de coração
não consistia simplesmente no jejum e na automaceração. A discrição,
chamada também o discernimento dos espíritos, está, de fato, muito próxima
do conhecimento, uma vez que sabe distinguir entre o bem e o mal. Exerce,
porém, suas funções à luz da inocência e em referência ao vazio. Não julga a
discrição em termos de normas abstratas, mas, de, preferência, em termos da
pureza interior do coração. A discrição pronuncia julgamentos e indica
opções, mas o juízo e a opção sempre orientam para a direção do vazio, ou
pureza de coração. A discrição é uma função da humildade; é, portanto, um
ramo do saber que se situa para além do alcance da perversão ou da
interferência do demônio (Cf. Cassiano, Conferência II, De Discretione,
Migne, P. L. : vol. 49, c. 523 ss.).

IV
João Cassiano, em suas narrações sobre as "conferências", que ouviu
quando visitou os padres do deserto do Egito, estabelece a lei fundamental da
espiritualidade do deserto. Qual é o propósito e o fim da vida monástica?
Este é o tema da primeira conferência.
A resposta é que a vida monástica tem dois propósitos: deve levar o monge
em primeiro lugar a um intermediário e, em seguida, ao fim último de
plenitude e completação. O fim intermediário ou scopos, escopo, é o que
temos comentado como pureza de coração. Isso corresponde, de modo geral,
ao termo "vazio" empregado pelo Dr. Suzuki. O coração puro é aquele que é
perfectum ao mnndissi-mum (perfeito e puríssimo) . Isto é, inteiramente
livre de pensa mentos e desejos inúteis. O conceito, na prática, corresponde
antes à apatheia dos estóicos do que ao suchness ("talidade") do Zen. Mas, em
todo caso, existe entre esses termos grande afinidade. Trata-se do quies, ou
repouso da contemplação o estado do ser libertado de qualquer imagem e
quaisquer conceitos que perturbem e ocupem a alma. É o clima favorável à
theologia, a mais alta contemplação, que exclui até as idéias mais puras e
espirituais e não admite qualquer conceito.

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127
Nesse estado, conhece-se a Deus, não por conceitos ou visões, mas só
pelo "não-conhecimento". Essa é a linguagem empregada por Evágrio
Pôntico, rigorosamente intelectual, fato que o aproxima mais do Zen do que os
teólogos, mais afetivos, da oração, como São Máximo e São Gregório de
Nissa.
O próprio Cassiano, embora se aproximando de Evagrio e com ele
simpatizando, dá um equilíbrio afetivo caracteristicamente cristão ao conceito
de pureza de coração, e insiste em que deva ser definida simplesmente como
"caridade perfeita" ou um amor de Deus unificado, sem mistura nem olhar
voltado para si. Essa qualificação poderia concebivelmente constituir uma
importante diferença entre a "pureza de coração" cristã e o "vazio" do Zen.
Entretanto, as relações entre os dois conceitos devem ser aprofundadas num
estudo mais acurado.
Resta a dizer e isto é o mais importante uma coisa ainda. É que a
pureza de coração não é o fim último do esforço do monge no deserto, É
apenas um passo para esse fim. Dissemos acima que o paraíso ainda não é o
céu. O paraíso não é a meta final da vida espiritual, É, em realidade, apenas
uma volta ao início. É "começar de novo", uma nova chance. O monge que
conseguiu atingir a pureza de coração e recuperou, em certa medida, a
inocência perdida por Adão, ainda não terminou sua viagem. Está apenas
pronto para iniciá-la. Está pronto para um novo trabalho "que o olho não viu,
o ouvido não ouviu, nem o coração do homem pôde conceber". A pureza de
coração, diz Cassiano, é o fim intermédio da vida espiritual. O fim último,
porém, é o reino de Deus. Esta é uma dimensão que não entra no domínio do
Zen.
Poder-se-ia argumentar que isso desmancha tudo o que foi dito sobre o
vazio e nos coloca de novo num estado de dualismo e, portanto, de
"conhecimento do bem e do mal", dualismo entre Deus e o homem, etc. Tal
não é, de modo algum, o caso. A pureza de coração estabelece o homem num
estado de unidade e vazio em que ele se torna um com Deus. Mas essa é a
necessária preparação, não para uma continuada luta entre o bem e o mal,
mas para a verdadeira atuação de Deus revelada na Bíblia: a obra da nova
criação, a ressurreição dos mortos, a restauração de todas as coisas em Cristo.

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128
Aí está a verdadeira dimensão do cristianismo, a dimensão escatológica que
lhe é peculiar e que não existe no budismo. O mundo foi criado sem o
homem; a nova criação, porém, que é o reino de Deus, será o trabalho de Deus
no homem e através do homem. Será a grande, misteriosa obra teândrica do
Cristo Místico, o novo Adão em que todos os homens como "uma só Pessoa",
ou um "Filho de Deus", transfigurarão o Cosmo, oferecendo-o resplandecente
ao Pai. Aí, nessa transfiguração, se realizarão as núpcias apocalípticas entre
Deus e Sua criação, a perfeita e final consumação com a qual nenhum
misticismo mortal é capaz de sonhar e que é apenas de leve prefigurado nos
símbolos e nas imagens das últimas páginas do livro da Revelação
(Apocalipse).
Aqui, estamos, naturalmente, de novo no domínio do conceito e da
imagem. Pensar nessas coisas, especular sobre elas é, talvez, afastar-se do
"vazio". Mas é uma atividade de fé que pertence ao nosso domínio de
conhecimento e nos condiciona a uma inocência superior e mais vigilante: a
inocência das virgens prudentes que vigiam com lâmpadas acesas, num vazio
iluminado pela glória da Palavra divina e inflamado pela presença do Espírito
Santo. Essa glória e essa presença não são objetos que "penetram dentro" do
vazio para "enchê-lo". Nada mais são do que o suchness ("talidade") do
próprio Deus.

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COMENTÁRIOS FINAIS DE SUZUKI E MERTON

Daisetz T. Suzuki

Não estou muito familiarizado com toda a literatura cristã produzida pelos
sábios, talentosos teólogos de mentalidade lógica que têm tentado clarificar
suas experiências, e, portanto, os comentários que faço referentes ao
cristianismo, suas doutrinas e tradições, podem estar inteiramente errados.
Gostaria de dizer que há dois tipos de mentalidade que diferem
fundamentalmente um do outro: 1) afetiva, pessoal, dualista; 2) não-afetiva,
não-pessoal e não-dua-lista. O Zen pertence à segunda e o cristianismo,
evidentemente, à primeira. A diferença fundamental pode ser ilustrada pelo
conceito de "vazio".
O vazio descrito pelo Padre Merton, quando ele emprega esse termo, não
tem, parece-me, um sentido bastante vasto e profundo. Não sei quem teria
feito pela primeira vez a distinção entre a Divindade e o Deus Criador. Essa
distinção é impressionantemente ilustrativa. O vazio do Padre Merton acha-se
ainda no plano de Deus como criador e não se eleva até a divindade. O mesmo
sucede a João Cassiano. Este considera, segundo nos diz o Padre Merton, "a
própria "talidade" de Deus" como fim último da vida do monge. A meu ver
esta maneira de interpretar a "talidade" é o vazio de Deus como Criador e não
como Divindade. O vazio do Zen não é o vazio do "nada", e sim o vazio da
plenitude no qual "não há nem ganho nem perda, nem aumento, nem diminui-
ção", em que essa equação se situe: zero = infinito. A Divindade é essa
equação. Em outras palavras, quando Deus como criador emergiu da
Divindade, não deixou ele a Divindade de lado. Possui a divindade todo o
tempo enquanto atuando na obra da criação. A criação é contínua, prossegue
até o fim dos tempos que, em realidade, não têm fim e, portanto, não têm
início. Pois a criação surge do nada inesgotável.
O paraíso jamais foi perdido e, portanto, nunca é recuperado. Como declarou
o Staretz Zosima, conforme o Padre Merton nos relata, logo que desejamos o
paraíso, isto é, assim que me torno consciente do fato, o paraíso acha-se
imediatamente comigo e a experiência é a base sobre a qual o reino dos céus
está edificado. A escatologia é algo de jamais conscientizável e, no entanto,
conscientizada a cada instante da vida. Vemo-la sempre adiante de nós, con-
quanto estejamos sempre nela imersos. Essa é a ilusão que estamos
condicionados a ter, como seres no tempo, ou melhor, como seres de "devir"
no tempo. A ilusão deixa de sê-lo no próprio momento em que experimentamos
tudo isso. É o Grande Mistério, intelectualmente falando. Em termos cristãos, é
a Sabedoria Divina. O estranho, porém, é o seguinte: quando o
experimentamos, cessamos de fazer perguntas sobre isso. Aceitamos o fato,
vivemo-lo simplesmente. Os teólogos, existencialistas e dialéticos, podem
continuar a discutir o assunto, mas o homem comum, incluindo todos nós "de
fora", vivemos "o mistério". Um Mestre Zen perguntou certa vez:

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P. Que é o Tao? (podemos considerar o Tao como significando a verdade
última ou suprema realidade).
R. É a mente diária de cada um.
P. Que é a mente diária de cada um ?
R. Quando fatigados, dormimos; quando temos fome, comemos.

Thomas Alertou
As questões levantadas pelo Dr. Suzuki são da maior importância. Em
primeiro lugar, é claro que o tom fortemente personalista do misticismo
cristão, mesmo quando "apofático", parece de modo geral não permitir plena
equação à experiência Zen. Contornando cautelosamente a distinção entre
"Deus e a Divindade", estou apenas evitando um espinhoso problema
teológico. Essa distinção de caráter nitidamente dualístico foi tecnicamente
condenada pela Igreja. O que o Dr. Suzuki deseja expressar (em seu compe-
tente pronunciamento, seguindo Eckhart e os místicos da Renânia) tem de ser
explanado em outros termos. Os teólogos da Igreja oriental procuram explaná-
lo pela distinção que fazem entre as "energias divinas" (nas quais e pelas quais
Deus "opera" extra se) e a "substância divina" que ultrapassa todo
conhecimento e experiência. João Ruysbroeck o resolve chegando até à
distinção entre a Trindade das Pessoas e a Unidade das Naturezas. Se isto é
satisfatório, não posso aqui discutir. O clímax do misticismo de Ruysbroeck
parece significar um modo qualificado de ser, que pode ser intelectualmente
apreendido e concebido. Conhecemos "Deus", em nossos conceitos sobre sua
essência e atributos, mas "para além de toda maneira" (e, portanto, além de
todo conceito) em sua transcendente, inefável realidade que, para o Dr.
Suzuki, é a "Divindade" ou suchness.
Se é isso que o Dr. Suzuki significa, parece-me que seu ponto de vista é
inteiramente aceitável e concordo com ele fortemente.

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Diz Ruysbroeck: "Pois a impenetrável ausência de maneira de ser em Deus é
tão obscura e sem maneira que contém em si todas as maneiras Divinas... e no
abismo da inominabilidade de Deus, produz um divino deleite. Há nisso um
"passar além" deleitoso e um "desfazer-se" e "afundar-se" na nudez essencial,
com todos os nomes Divinos, e todas as maneiras, e toda razão viva que tem
sua imagem no espelho da verdade divina: tudo isso se desfaz nessa simples
nudez sem maneira e sem razão".
Essa "nudez essencial", corresponde, penso eu, ao que o Dr. Suzuki
considera o vazio da "Divindade" e com mais clareza do que a citação que fiz
de Cassiano. Mas certamente Ruysbroeck adiantou-se mais no caminho do
Zen do que os padres do deserto e Cassiano jamais fizeram. Ruysbroeck é um
discípulo de Eckhart que. para o Dr. Suzuki, parece ser o místico cristão mais
próximo do Zen.
Se em minha exposição não falei tanto no "afundar-se na nudez essencial"
de Deus, não é porque insisti na percepção do homem em relação a Deus
como Criador, mas antes, pelo menos implicitamente, insisti na dependência
do homem frente a Deus, como Salvador e doador da graça. Porém, é
evidente, ao falar de um "doador", de um "dom", de alguém "que recebe", falo
mais em termos do conhecimento do que da sabedoria. E isso é inevitável,
assim como, para o Dr. Suzuki, estamos inevitavelmente envoltos numa
preocupação ética em nossa atual condição. Mas o ético não é o fim último.
Além de toda consideração do bem e do mal, há a simplicidade, a pureza, o
vazio ou o "suchness ("talidade") para os quais não existe nem pode existir
nenhum erro, porque não pode coexistir com a desordem moral. Onde há
pecado, há logo o "eu" que afirma o seu próprio egocentrismo e destrói a pu-
reza da verdadeira liberdade. Ao mesmo tempo, parece-me que, do ponto de
vista cristão, a máxima pureza, liberdade, "suchness", ainda têm o caráter de
um livre dom do amor. E talvez seja essa liberdade, esse dar sem motivo, sem
limite, sem cálculo autoconsciente, o verdadeiro segredo de Deus que "é
amor" ,
Não posso aqui desenvolver esse pensamento; contudo, parece-me que, em
realidade, o mais puro equivalente da fórmula do Dr. Suzuki, zero = infinito,
deve ser procurado precisamente na intuição basicamente cristã da
misericórdia divina. Não se trata da graça como de uma substância rarificada
que nos é concedida por Deus, de fora, mas graça precisamente como vazio,
como liberdade, como liberalidade, como dom. Gostaria de acrescentar que
o Dr. Suzuki abordou o assunto deste mesmo ponto de vista em seu ensaio
extremamente interessante sobre o Netnbutsu *. Isto não é mais Zen e está
muito mais perto do cristianismo do que do Zen. É na medida em que o
"vazio" e a "nudez" são um puro dom que, em termos cristãos, equivalem à
plenitude. Porém, para que a idéia de dom não seja interpretada num sentido
"dualista", que divide, lembremo-nos que Deus é seu próprio dom, que o dom
do Espírito é o dom da liberdade e do vazio. Seu dar emerge da sua
divindade. E, como diz Ruysbroeck, é através do espírito que mergulhamos
de novo na nudez essencial da divindade, onde "as próprias profundezas
permanecem incompreendidas... Esse é o silêncio envolto em treva no qual
todos os amantes se perdem."

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Assim, concordo certamente com o Dr. Suzuki ao rejeitar um vazio que é
apenas vazio e mera contrapartida de alguma plenitude imaginada que a recobre
num isolamento metafísico. Não, quando estamos vazios nos tornamos
capazes de uma plenitude (que jamais esteve ausente de nós). Perdemos o
paraíso na medida em que nos deixamos envolver na complexidade e nos
enredamos em nós próprios de maneira a nos alienarmos de nossa liberdade e
simplicidade. O paraíso só nos pode ser aberto por um dom gratuito da
misericórdia divina. Contudo, é exato dizer que o paraíso está sempre
presente em nós, uma vez que o próprio Deus está presente, embora talvez
inacessível.
Creio que a intuição do Dr. Suzuki sobre a natureza escatológica da
realidade é vivida e profunda, e impressiona-me como sendo cristã, de maneira
muito mais profunda do que ele, talvez, o imagine. Aqui também, teria eu
tendência a ver essa realidade do ponto de vista da liberdade e do "dom".
Estamos na "plenitude dos tempos", e tudo nos é "dado" e colocado em nossas
mãos. Imaginamos estar viajando em direção a um fim que vai chegar. Em
certo sentido, é verdade. O cristianismo se move numa dimensão
essencialmente histórica, para a "restauração de todas as coisas em Cristo".
Entretanto, com a vitória do Cristo sobre a morte e a missão do Espírito
Santo, esta restauração já foi realizada. O que resta ainda é tornar-se ela
manifesta. Temos, no entanto, de nos lembrar sempre, como o faziam os
padres do deserto, de que "agora é o julgamento do mundo". Para alguém que
não percebe a realidade atrás do conceito, isso permanece uma ilusão. Para
quem o percebeu, o que há de mais óbvio a fazer é o que sugere o Dr. Suzuki:
viver sua vida cotidiana, ordinária. Nas palavras dos primeiros cristãos:
louvar a Deus e tomar suas refeições "com simplicidade de coração".

* Por exemplo, «Passivity in the Buddhist Life» em Essays in Zen Buddhism: Series
II, London, 1958 e «Pure Land Buddhism».

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A simplicidade indicada aqui é a total ausência de toda preocupação legalista em
relação aos alimentos certos ou errados, maneiras certas ou erradas de comer,
maneiras certas ou erradas de viver. "Quando cansados, dormimos, quando
temos fome, comemos". Para o budista, a vida é uma plenitude estática e
ontológica. Para o cristão, é um dom dinâmico, uma plenitude de amor. Há
muitas diferenças nas doutrinas das duas religiões, mas estou profundamente
satisfeito e grato por esse diálogo com o Dr. Suzuki, pois graças às suas
penetrantes intuições em relação ao pensamento místico ocidental, podemos
tão fácil e agradavelmente nos comunicar no plano mais profundo e importante.
Sinto que, dialogando com o Dr. Suzuki, estou falando a um "conterrâneo",
a alguém que, ainda que difiram suas crenças em muitos pontos das minhas,
participa de um clima espiritual comum. Essa unidade de visão e de propósito
é de suprema importância.

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Posfácio

ESTE livro está realmente às avessas. O início acha-se no fim. O ensaio


mais recente é o que vem publicado em primeiro lugar. A maior parte do
material pertence aos últimos três ou quatro anos. O diálogo com o Dr. Suzuki
é mais antigo uns dez anos. Tive a tentação de suprimir meus "comentários
finais" neste diálogo, por serem matéria que se presta a confusão. Não é que
estejam "errados" no sentido de "falsos" ou "errôneos", mas o fato é que
qualquer tentativa para tratar do Zen em linguagem teológica está fadada a
fracassar. Se deixo estes comentários aqui, é como um exemplo de como não
se deve abordar o Zen.
Por outro lado, inverter a ordem e colocar cada artigo em sua posição
cronológica própria estaria também fora de propósito. Se o leitor não se sentir
à vontade com essas últimas poucas páginas, volte ao início e leia a "Nota do
Autor". Poderia clarificar e desanuviar a atmosfera. Se o leitor começou o
livro lendo o posfácio, como poderá suceder a alguns, compreenderá então
que está livre para ler o livro todo na ordem que melhor lhe aprouver.
Ainda um comentário. A citação tirada de Wittgenstein ("Não pense,
olhe") não deve ser mal interpretada. A intuição Zen, que vê a realidade na
vida cotidiana, comum, ordinária, está, na verdade, no pólo oposto da
canonização da "linguagem comum" pela análise lingüística. Ambas rejeitam,
não há dúvida, as mistificações e as superestruturas ideológicas que, tentando
explicar o que está diante de nós, são-lhe obstáculo. Mas, quanto a mim,
concordo inteiramente com Herbert Marcuse em sua análise do "pensamento
unidimensional" em que a própria racionalidade e exatidão da sociedade
tecnológica e suas várias justificativas resultam, afinal, em mais uma total
mistificação. É possível que algumas pessoas entendam o Zen numa espécie
de sentido positivo (e seu repúdio ao "misticismo" é então, apenas,
"quadrado").

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Mas o Zen não pode ser apreendido enquanto ficarmos passivamente
conformados a quaisquer imperativos culturais ou sociais, sejam eles
ideológicos, sociológicos, etc. Zen não é unidimensional e seu repúdio ao
pensamento dualista não significa a aceitação de uma cultura totalitária
(conquanto uma fatal incompreensão do Zen pudesse de fato determinar um
ajuste ao fascismo e, em verdade, o fez em alguns casos) . O Zen implica
simplesmente uma abertura, uma libertação explosiva do conformismo
unidimensional, uma recuperação da unidade que não é supressão dos opostos,
e sim uma simplicidade para além dos opostos.
Existir e funcionar num mundo feito de opostos, enquanto se tem a
experiência desse gênero de mundo em termos de simplicidade primeva,
implica, senão um sistema de metafísica formal, pelo menos uma base de
intuição metafísica. Isso significa uma perspectiva totalmente diversa da que
domina nossa sociedade e a torna capaz de nos dominar.
Daí essa declaração Zen: "antes que eu penetrasse no Zen, as montanhas
nada mais eram senão montanhas e os rios nada a não ser rios. Quando aderi
ao Zen, as montanhas não eram mais montanhas nem os rios eram rios. Mas,
quando compreendi o Zen, as montanhas eram só montanhas e os rios, só
rios".
A questão em foco é que os fatos não são apenas fatos concretos. Há uma
dimensão em que o mundo dos fatos e do comum e ordinário se esvazia. A
cultura industrial do ocidente está na estranha posição de ter alcançado
simultaneamente o clímax de uma organização inteira racionalizada
totalitariamente e do completo absurdo e autocontradição.
Os existencialistas e alguns outros notaram esse absurdo. A maioria,
porém, persiste em ver somente a máquina racional, contra a qual nenhum
protesto surte efeito. Pois, afinal, é "racional" e é "um fato". E também o é a
contradição interna.
O que ocorre com o Zen é que leva as contradições ao seu último limite,
onde é preciso optar entre a loucura e a inocência. E o Zen sugere que
podemos estar nos dirigindo para um ou para o outro em escala cósmica.
Dirigindo-nos para ali porque, de um ou de outro modo, como loucos ou
inocentes, já lá estamos.
Talvez fosse bom abrirmos os olhos para ver.

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