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Uma mulher sem maquiagem1

Gabriela Grinbaum

Testemunho

“Como faz uma mulher para fazer o que tem de fazer


e ainda assim ser mulher?”2
Faço minhas essas palavras que roubo de Romina
Paula, uma escritora argentina que me encanta. Algo
assim, ou parecido, era o que me atormentava durante
minhas análises.
Minha primeira análise que acompanhou meus tempos
de universitária, aquela a que me dirigi com a
indeterminação, ser atriz ou continuar com a carreira de
psicologia, concluí com minha partida a Paris para estudar
psicanálise.
Aos 21 anos, comecei minha segunda análise com
uma mulher.
“Uma mulher que conhece o fantasma feminino”,
assim me foi apresentada por outra mulher que, para mim,
não era qualquer mulher.
Quando a escutei no Congresso de psicose e no
Teatro San Martín, a primeira coisa que me deteve foi: eu
gosto, veste-se horrivelmente e o penteado é qualquer
1 Testemunho apresentado durante a XXIII Jornada Anual da EOL, Bordas do Feminino:
Sexualidades, Maternidade, Mulheres de Hoje, 29 e 30 de novembro de 2014. Publicado na
Revista Lacaniana, n.º 19, EOL - Grama Ediciones, Buenos Aires, outubro de 2015.
2 PAULA, Romina. Fauna. Buenos Aires: Editorial Entropía, 2013. p. 43.
coisa, mas me agradou um mínimo e bobo detalhe: que
não estava maquiada.
Ser mulher sem os postiços das tolas, assim
acreditava eu, estimulava-me.
Aos 15 anos, o lugar para me arrumar para ir dançar
era minha casa. Eu havia inventado que as maquiagens me
davam alergia. Era perfeito para que ninguém me
questionasse, outra vez, por que não as usava. E com os
saltos altos era óbvio que não se podia dançar, assim, isso
era suficiente para minhas amigas.
Supus que ela, a analista, fosse alguém com a qual eu
compartilhava o desprezo pelas aparências universais do
feminino. Pensei que ela fosse inteligente. E sua voz...
entrecortada, porosa, com ar de fadiga...
A pergunta que me conduziu a minha segunda análise
foi em torno da busca por ser uma mulher diferente com o
selo de original.

Bordas de uma menina

Como já sabem, eu queria ser atriz.


Tudo em minha vida estava a serviço de satisfazer a
pulsão de me fazer ser vista, ser ouvida... enfim, que
reparassem em mim.
Há tantas maneiras para que isso ocorra. A minha
relacionava-se com pôr em cena permanente, incansável,
com a condição do teatral.
Desde muito pequena atuava todo o dia para as
câmeras, indo ao colégio, correndo na calçada com meus
irmãos, no banho... havia uma câmera à qual me dirigia o
tempo todo...
Nada era mais mortificante para meu irmão que
compartilhar as, tão esperadas por mim, “salas de espera”
médicas, odontológicas, todas.
Montava as cenas, sim, atuava, montava pequenas
obras, com um público cativo que sempre encontrava nas
salas de espera.
Nas duas últimas análises, as salas de espera, às
vezes surpreendentemente rápidas, outras, a maioria,
eternas, eram parte da análise. Contei-lhes a marca que
inscreveu a transferência com minha analista mulher:
quando cheguei uma vez, calculadamente tarde e a
analista me disse, diante de toda a sala de espera lotada:
“Vous êtes en retard”,3 onde escuto claramente: “Você é
retardada.” Sabem também de onde vem este assunto.
Entrei no primeiro grau adiantada com uma certidão de
nascimento falsificada por minha pediatra a pedido de
minha mãe. Voltamos à sala de espera, então, escuto:

3 Tradução para o castelhano: “Usted llega tarde” (Você está atrasada).


“Você é retardada” quando a analista me disse: “Vous êtes
en retard.” Eu devia corrigir a retardada diante de todos ali,
com o que, inicialmente, para mim, nessas salas de espera
de tantos anos me portava extremamente bem, silenciosa,
com cara de concentrada, de angustiada, agia como
analisante consternada, imitando um pouco o resto.
Muitos, mas muitos anos depois do primeiro mal-
entendido “vous êtes en retard”, tomo coragem para dizê-lo
a analista. O convite a associar me leva à seguinte
recordação:
A solução encontrada pelos pais durante as férias de
verão muito longas era a colônia. As crianças odeiam a
colônia.
Em minha casa, era religioso. A colônia começava no
dia seguinte ao encerramento das aulas. O micro-ônibus
que nos buscava era o mesmo que nos trazia do colégio,
assim não parecia mudar muita coisa. A zeladora que
cuidava de nós me preferia, inventando a cada dia outro
nome para mim, “cascavel”, “bichinho de luz”... Durante a
primeira semana, produzia-se a grande exibição do
pequeno nadador, e diante dos olhos de todas as crianças
e todos os instrutores, cada um se lançava na água, e ao
chegar ao outro lado da piscina, uma espécie de jurado
indicava qual era seu nível. De “peixinho” a “tubarão”,
passando por “golfinho”, e não lembro mais o quê. Eu
acreditava que seria uma sensação apesar de minha pouca
idade. Convencida da excepcional qualidade de meu
desempenho. Para minha surpresa, um dos avaliadores
grita: “peixinho”. Chamou-me tanta atenção. Mas,
seguramente não havia reparado bem. Porém, no micro-
ônibus de volta, meu irmão não se privou de me dizer o
meu vergonhoso desempenho. Que todos riram dizendo
“que retardada essa criança que dá braçada de peito e
patada de crawl”.4 Que sentiu muita vergonha de ser meu
irmão...
Esse episódio foi tão traumático que eu não queria
voltar a pisar na colônia. Minha analista marcou o efeito de
castração do acontecimento. E me declara em francês, “Je
ne la considere pas du tout retardée”. O que traduzo
literalmente: “Não a considero de todo retardada.” A
tradução é “Não a considero para nada retardada”. Pas du
tout quer dizer “para nada”, mas literalmente seria “não de
todo”. Enfim...
Não havia maneira de atravessar essa transferência
na qual ali ficava localizada com a analista.
Durante a terceira análise, recordem que já era muito
familiar para mim essa sala de espera, conhecia bem.
4 Crawl – É o estilo mais conhecido, mais praticado e simples de natação. Normalmente, é
também o primeiro a ser ensinado às crianças. Nele, o nadador alterna movimentos para
cima e para baixo com os braços de forma a puxar a água à sua frente, enquanto os pés
estendidos se movimentam em golpes curtos. (N. T.).
Vinha por muito tempo controlando com ela. Devo dizer
que, ainda quando no ambiente pulsava um pouco de
terror, para mim, era uma festa. Sentia-me recebida de
maneira especial, ele se fazia de parceiro da adiantada,
jovem analista desperta e trabalhadora e de alguma
maneira, menos ruidoso e mais sofisticado, mas ali, algo
dessas salas de espera, que desde menina faziam padecer
meu irmão, ativou-se. Falava sem parar, sempre algo para
contar, sempre algo para animar o outro... e algo do que ali
acontecia era levado à análise, em especial acerca das
mulheres que passavam. Por que essa mulher sempre tem
cara triste? Essa menina é mais jovem que eu. O que tanto
escreve essa outra?
Produziam-me tanta curiosidade...

Amor ao pai

Lua de papel5 era meu filme, amava tanto esse filme.


No cinema da Rua 8 em La Plata. Chamava-se “O cine 8”.
Lá passavam esse filme todos os anos, e todos os anos ali,
sentada com meu pai, voltava a vê-lo. Trata-se da relação
de um pai, Ryan O’Neil,6 com sua filha Tatoom O’Neil,7 e
me maravilhava saber que eram pai e filha na vida real.

5 Filme estadunidense do gênero comédia dramática. A história se passa durante a Grande


Depressão no estado do Kansas. (N. T.)
6 Ryan O’Neil – ator e ex-boxeador norte-americano. (N. T.)
7 Tatoom O’Neil – atriz norte-americana. (N. T.)
Pequei emprestada essa história de amor entre pai e
filha, ela rebelde, que fumava cigarros de alface, ou assim
me disseram quando perguntei surpreendida se uma
menina tão pequena podia fumar.
Encantava-me desde muito criança dizer a viva-voz:
“Sou ateia.” Era engraçado que uma garota entendesse
isso.
Claro que era tão comemorado, em especial por
minha avó, essa que lhes contei, a polaca, ateia, judia e
fumante. Até que na análise entendi que era a mais crente
e religiosa, Deus era meu pai. Sem dúvida. Amado e
venerado por mim.
A marca dessa avó que me localizou na amada do
outro, com a frase, repetida tantas vezes, a receita do amor
que mais convém: “Você tem de amá-lo, mas ele tem de a
amar muito mais do que você o ama.” Inscrevendo o
imperativo da forma erotomaníaca do amor: que o outro me
ame, que o outro me ame mais...
Havia uma exceção, o amor fascinante ao pai.
Um pai silencioso a quem me dediquei a arrancar-lhe
as palavras até ficar sem voz para despertá-lo, fazê-lo falar,
vivificá-lo.
A lembrança desse filme que levei à análise escondia
outra, minha versão do Édipo freudiano. Esse filme me
havia congelado o sangue, escondia uma alegria que
ocultava. Tratava-se do conto de Perrault levado à tela por
Jacques Demy:8 Pele de asno.9 Em seu leito de morte, a
rainha faz o rei prometer que não voltaria a se casar até
que encontre uma mulher mais bela, boa e inteligente que
ela. Anos mais tarde, o rei encontra a perfeita substituta de
sua falecida esposa: a própria filha. Horror e satisfação.

Mulheres

Hoje posso ler como o esboço de meu programa de


gozo o trabalho de investigação que desenvolvi em Paris,
que resultou no meu diploma em Paris VIII.
Meu pai, um leitor incansável, gostava de comprar
livros por atacado na Av. de Maio. Seu gosto pela leitura
tinha a condição do gozo pela compra de livros a
baixíssimo custo. O circuito pulsional dessa satisfação do
meu pai se encerrava ao entrar em casa e ir entregando a
cada irmão o livro que supostamente iria interessar a cada
um, eram centenas por semana. E aqui não exagero. Em
oposição ao desprezo de todos pela oportunidade de ter
encontrado tal ou qual livro, eu, como podem imaginar, lhe
fazia festa. E em uma dessas cotidianas entregas, chegam
a minhas mãos os Diários de Anaïs Nin. Nem se imagina a
taquicardia que me produziu a leitura dessas histórias.

8 Diretor e roteirista do cinema francês (N. T.)


9 Conto de fadas em versos do escritor francês Charles Perrault publicado em 1694 (N. T.)
Então foi sobre Anaïs Nin e a homossexualidade que
escrevi o ensaio.
O amor ao pai, uma mulher original, transgressora e a
sedução de uma mulher a outra mulher se encontravam ali.
As mulheres do meu interesse sendo eu pequena
tinham uma condição, não eram mães, algumas eram
homossexuais. Eram elas que me fascinavam. Minha
professora do quinto ano, alguém que marcou meu gosto
pela escritura e para quem eu era decididamente uma
adiantada, não me perguntem por quê, eu sabia que ela
era homossexual. E eu gostava de seduzi-la.
Ela era amiga íntima de uma escritora de literatura
infantil, eu também sabia que ela, a escritora, era
homossexual. Interessava-me o laço entre elas. Li todos os
seus livros. Conheci-a. Trabalhei em uma de suas obras.
Ainda hoje posso recitar esses fragmentos.
Durante minha segunda análise, a busca por
encontrar uma resposta para a pergunta pelo ser da mulher
atravessou 14 anos de trabalho analítico. Porém, a maneira
de construir essa versão foi a via da mulher original –
casei-me com a exigência de um casamento original, um
vestido de noiva original e uma festa original – trabalhei
para ser original anos... como único caminho para
encontrar a diferença.
Mães

Durante minha segunda análise, chega a proposta do


meu marido de ter um filho.
Para mim, isso devia esperar... não sei... anos talvez.
Minha falta de desejo de ser mãe me levou a uma
recordação de um fragmento a mais de minha novela.
A chegada dos filhos na casa onde eu nasci não foi a
festa.
A gravidez de minha mãe ocorreu na noite de núpcias.
Os relatos sobre a lua de mel são de uma amargura e
desilusão incompreensíveis.
Ele a amava até a gravidez. Cuidava dela até a
chegada do menino. Essa história de encontro
decididamente amoroso se interrompe no preciso momento
em que a concepção se produz.
Não sei bem por quê, esta pequena peça da história
que me precede me foi contada demasiadamente cedo.
Repetida identicamente muitas vezes, durante muitos anos.
O gosto do meu pai em processar sua dor com a pequena
filha nunca cedeu. O estrago que meu pai exerceu sobre
minha mãe foi um resto de saber durante a análise.
Desde muito pequena, soube que Freud não estava
certo.
De nenhuma maneira um filho era a melhor das
soluções diante do penisneid10 na mulher.
Não me interessavam as brincadeiras de mamãe.
Nem os bebês. Nem sequer – apesar de meu gosto pelas
encenações – as roupas de minha mãe para me disfarçar.
Um dia – um pouco envergonhada – digo a minha
analista: Necessito que me autorize a ser mãe.
Só uma retardada pode solicitar igual autorização.
“Nem vou autorizar, nem vou não autorizar.” Foi sua
resposta.
Muito pouco tempo depois, comunico que estou
grávida...

O feminino

Durante minha terceira análise, um lapso, esses


lapsos que podem repetir-se sem que o sujeito perceba,
digo porque na mesma sessão o disse várias vezes sem
que movesse um cabelo até que minha analista me
assinala: a transmissão “de filha à mãe”. Como se
transmite algo do feminino, e insisto “da filha à mãe”.
Desde muito cedo, fiquei localizada como o sujeito
suposto saber reparar o que cotidianamente não
caminhava entre meus pais. Devia dizer a minha mãe o

10 Inveja do pênis (N. T.).


que fazer para reparar a raiva arbitrária de meu pai, fazia
tudo para orientá-la a fazerem as pazes. Incessantemente.
Mas claro, se me passei com essa delirante tentativa,
convencida de que era possível orientar, ensinar, transmitir
a minha mãe como fazer, como ser com meu pai.
Ser a que sabe do laço nas parcerias, fazendo
consistir a relação sexual. Que lugar ali para a mulher?
Fixa uma posição de gozo no fantasma que tarda muitos
anos de análise em comover-se.
O que se havia transmitido em mim do feminino? Que
transmissão pode fazer uma mãe, do feminino, à sua filha?
Que máscara convém à mulher? Essas perguntas
preenchiam animadamente minha análise.
Eu tinha uma convicção, há muito tempo. Tinha a
convicção, por meio do falo, de saber o que há para saber
sobre os homens. E que botão apertar para fazer-se amar,
o que contar para não deixar que durmam, e o que fazer
para repará-los. E o que mostrar para que reparem em
mim.
A curiosidade era a respeito do laço de uma mulher
com outra mulher.
Como tantas vezes me encontro na sessão relatando
situações de mulheres, de amigas, a comédia das
meninas... coloco-me como a que ensina às outras como
fazer, dizer, em relação aos homens... não me dava conta,
para nada. A analista interrompe “Goza de ser a Outra”.
Ser a Outra das mulheres. A que detém o saber com os
homens. Mas claro, se isso vem de longe... se os disse,
para minha mãe, eu detinha o saber sobre o laço entre um
homem e uma mulher.
Essa interpretação me revela um obstáculo em minha
prática.
Também ali, não cessava de filtrar-se esse saber
possível de transmitir às analisantes mulheres, tentando
reparar sua falta, de parceiro, de trabalho, de desejo.
Devo voltar àquela interpretação inesquecível que já
lhes contei em meu primeiro testemunho: o sonho sexual
onde sou um jovenzinho. Minha identificação viril não era
nenhuma novidade. Digo em análise que sempre me
reconheci na história freudiana do Homem dos lobos – que
dou na faculdade há anos – quando disse que ele deveria
ter sido a menina e sua irmã o menino (varão). Aludindo em
meu caso a que essa identificação respondia ao feminino
de meu irmão um ano maior que eu e, eu tomava
relevância.
O analista interpreta: “Você é o agente da
propagação.”
Como viram, há um tempo, venho falando dela, mas
nunca a havia mencionado na análise. Insisto, foi um
significante que o analista introduziu que não me recordo
ter mencionado jamais em meus 28 anos de análise.
Porém, desde que o analista o nomeou, cobrou uma
evidência absoluta.
Durante o procedimento do passe tenho um sonho:

Vou ver minha analista para lhe contar que estou


fazendo o passe, mas me dou conta de que não
tenho uma solução para tudo o que foi minha
intensa curiosidade sobre a homossexualidade
feminina, disse-me ‘nem tudo tem solução’ e se
alegra de eu estar fazendo o passe.

Foi suficiente contar esse sonho às passadoras para


encerrar o assunto. Porém, volta-me a inquietude ao
preparar o testemunho de hoje. Vou a Lacan e leio em “O
aturdito”: “Chamamos heterossexual, por definição, o que
ama as mulheres, qualquer que seja seu próprio sexo.
Assim está mais claro.”11
A adiantada-retardada foi aquilo que marcava os
modos de falhar em torno do falo.
A adiantada-retardada vinha em lugar da desordem
que enquanto mulher sempre perturbava o ser em relação
ao falo.
A falha do feminino que durante a segunda análise
prevaleceu do lado da desfalicização ressonando na
retardada enquanto não no auge do falo.

11LACAN, Jacques. El atolondradicho. En: LACAN, Jacques. Otros escritos. Buenos Aires:
Paidós, 2012. p. 491.
Diante da analista inteligente, do lado do sujeito, a
retardada. Presa em um embaraço sem saída.
O terceiro analista sabia localizar-se no lugar que mais
convinha, jogando o jogo na transferência do parceiro da
jovem adiantada, recuperando o lugar do falo do Outro,
reativando a menina audaz e original do pai. Só daí foi
possível a queda do pai idealizado. Realocando o parceiro,
mais além do conselho da avó da neurose infantil,
construindo as pontes para um verdadeiro encontro com o
homem da minha vida.
Seguindo Jacques-Alain Miller em Donc, encontro que
o rechaço inconsciente à maternidade estava enlaçado na
identificação viril. Não pela via do imaginário, digo, longe de
se tratar do rechaço ao corpo da mulher grávida. O ponto
estava ligado a uma contraidentificação com a mãe, para
dizê-lo simplesmente, é o rechaço a ser semelhante à mãe.
E, em consonância, o desamor do homem quando a fez
mãe. Tornar-se a Outra Mulher foi a maneira encontrada
para sustentar o desejo do homem, sua escolhida e
favorita. Disse Miller: “Querer ser a Outra mulher é uma
solução que se propõe ao desejo feminino.”12 Se meu
debate circulava entre ser a Outra Mulher ou a mãe, os
artifícios e manobras construídas na análise permitiram ser
uma e a outra para o mesmo homem.

12 Miller, Jacques-Alain. Donc. Buenos Aires: Paidós, 2011. p. 267.


Resta a reparação. Reparar sabendo que ainda assim
o buraco espreita. Sempre restará essa fenda impossível
de reparar, mas que já não angustia.
O apagamento do sentido que no último tempo de
análise repetia a meu analista com extremo pesar, ainda
quando sempre apareceu, em toda minha vida, mas que no
instante era reparado por um ativismo incansável, um não
deixar dormir o outro, em particular meu marido, pondo em
risco um laço de amor que vale a pena.
Agradeço a Angélica Marchesini por me entregar este
compromisso que, de alguma maneira atualiza, mas com
outra reviravolta, um assunto do semblante.
O senhor Primeau dizia a Lacan, na sala da
apresentação dos enfermos, que buscava um traço de
beleza, uma personalidade que o atraísse na sala, “aquela
senhora de olhos azuis e cachecol vermelho”, aponta para
ela e termina: “Pena que usa maquiagem.”
No primeiro testemunho, o que apresentei na EOL,
relatei a vocês o final.
Porém, não foi esse o último encontro com o analista.
Meses depois, fui ao Congresso da AMP em Buenos Aires.
Estou na fila quando minha analista pronuncia sua
conferência inaugural.
Essa longa fila, onde pediam horários, assinatura nos
livros e agora até selfies pediam a ela... tinham-me ali...
outra vez... não sabia bem para quê. A princípio ia dar-lhe o
último número da Revista Registros... Chegou minha vez,
olha-me e diz: “Uma vez?” Sim, uma vez...
Chego ao encontro no mesmo instante que um colega
da EOL.
Sentada no piso do corredor do hotel, ensaiando uma
improvisada sala de espera. O colega aguarda ali parado.
O analista abre a porta. Digo ao colega que ele passe
primeiro. Meu analista entra com o colega e sai carregando
uma pesada cadeira de seu quarto. Fazendo o gesto de um
cavaleiro medieval, convida-me a sentar ali.
Já é minha vez. Entro e lhe digo: “Isso não vai mudar,
encanta-me que me ofereça a cadeira, mas estou melhor
sentada no chão.” Ele sorri para mim.
Digo-lhe que em minha fantasia ele me queria mais
feminina, digo, mais amiga dos semblantes universais do
feminino. Mas, isso não; é algo a mais do que não muda.
No entanto, acrescento, sou mulher e meu gozo, presumo,
é singular. O ativismo em meu vínculo com o parceiro não
impede de forma alguma que em nível do gozo se trate de
uma identificação com o objeto. Há a condição do feminino
em um homem para que o traço primário de perversão
funcione. Que o parceiro seja o amante, que o amor do
homem, como acontece cada vez que um homem ama, o
feminiliza. A identificação viril sustentada no agente da
reparação não implica nem um complexo de masculinidade
nem um querer próprio dos atributos viris. Implica saber aí,
saber ser a Outra.
Ser original era a maneira de evitar o risco da loucura
materna. Depois de lhe contar algumas coisas sobre meu
caso, algo do que lhes conto aqui, e algo mais que eu não
lhes conto. Antes de se despedir, pergunta-me o que vou
fazer; com toda certeza, respondo, o passe.
Tive uma imensa satisfação, algo que as estreias me
davam quando fazia teatro e algo de outra coisa que não
sei bem e é nova.
Obrigada.

GRINBAUM, Gabriela. Una mujer sin maquillaje. Buenos


Aires: Grama, 2019.

Tradução Nossa.

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