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Governação e

Integridade em
Moçambique
Problemas práticos e desafios reais
Maputo, Dezembro de 2013

CENTRO DE INTEGRIDADE PÚBLICA


MOÇAMBIQUE

CIP-Governacao-Intregridade.indb 1 10/28/2013 4:53:52 PM


FICHA TÉCNICA
Título: Governação e Integridade em Moçambique:
Problemas práticos e desafios reais
Editores: Adriano Nuvunga e Marc De Tollenaere
Autores: André Cristiano José, Baltazar Jorge Fael, Carlos
Manuel Serra, Eduardo Chiziane, Ericino de Salema
Gilles Cistac, João Carlos de Figueiredo Almeida,
José Jaime Macuane, Marc De Tollenaere, Nobre
Canhanga, Zefanias Matsimbe
Propriedade: Centro de Integridade Pública (CIP)
Design e Layout: Nelton Gemo
Fotografia: Carlos Calado
Impressão: MINITPRINT, Nelspruit, South Africa
Tiragem: 1000 exemplares
Maputo, Dezembro de 2013

CENTRO DE INTEGRIDADE PÚBLICA (CIP)


CENTER FOR PUBLIC INTEGRITY
Boa Governação - Transparência - Integridade
Good Governance - Transparency - Integrity

Rua Frente de Libertação de Moçambique, nº 354


Caixa Postal: 3266 - Maputo - Moçambique
Tel.: +258 21 492335, Cel.: +258 82 301 6391,
Fax: 258 21 492340 - E-mail: cip@cip.org.mz
Website: www.cip.org.mz

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Agradecimentos

O Centro de Integridade Pública agradece a todas as pessoas singulares e


colectivas que ajudaram directa ou indirectamente para que este relatório
ganhasse forma: os autores que produziram os textos, os consultores que
fizeram a revisão dos rascunhos, as pessoas e entidades estatais e não estatais
que disponibilizaram informação, a todos os que acederam ao convite do CIP
para partilharem as suas ideias sobre as variadas temáticas aqui tratadas.
As matérias constantes neste RGIM 2013 podem ser livremente reproduzidas, mas é
obrigatória a referência ao Centro de Integridade Pública como seu autor.

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Abreviaturas e Acrónimos

ACP África Caraíba e Pacífico


AGIR Programa de Acção para uma Governação Inclusiva e
Responsável
AGO Apoio Geral ao Orçamento
AOD Assistência Oficial ao Desenvolvimento
AP Administração Pública
APrv Autorização Provisória
AR Assembleia da República
CADHP Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos
CAF Cadastro de Agentes e Funcionários do Estado
CAPJ Centro de Assistência e Práticas Jurídicas
CAPPLCS Comissão da Administração Pública, Poder Local e
Comunicação social
CCSCI Conselho Coordenador do Subsistema de Controlo Interno
CDEs Comissões Distritais de Eleições
CECs Comissões Eleitorais Cidades
CEDSIF Centro de Desenvolvimento de Sistemas de Informação para as
Finanças
CGE Conta Geral do Estado
CIP Centro de Integridade Pública
CMH Companhia Moçambicana de Hidrocarbonetos
CNE Comissão Nacional de Eleições
CP Código Penal
CPEs Comissões Provinciais de Eleições
CPP Código de Processo Penal
CRM Constituição da República de Moçambique
CTV Centro Terra Viva
CUT Conta Única do Tesouro

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DFID Departamento de Desenvolvimento Internacional do Reino
Unido
DUAT Direito de Uso e Aproveitamento de Terra
DUDH Declaração Universal dos Direitos Humanos
EAC Estratégia Anticorrupção
e-CAF Aplicativo Eletrónico de Cadastro de Agentes e Funcionários
do Estado
EGFAE Estatuto Geral dos Funcionários e Agentes do Estado
EMAN Estratégia de Melhoria do Ambiente de Negócios
ENH Empresa Nacional de Hidrocarbonetos
EPs Empresas Públicas
ETPI Estatuto do Tribunal Penal Internacional
FCA Fundo de Compensação Autárquica
FDD Fundo Distrital de Desenvolvimento
FFM Fundo de Fomento Mineiro
FILL Fundo de Investimentos de Iniciativas Locais
GCCC Gabinete Central de Combate a Corrupção
GIFIM Gabinete de Informação Financeira de Moçambique
GIRBI Grupo Interministerial para a Remoção das Barreiras ao
Investimento
IFC International Financial Corporation
IGAE Inspecção-geral Administrativa do Estado
IGAE Inspetor-geral da Administração do Estado
IGF Inspecção-geral de Finanças
INCM Instituto de Comunicações de Moçambique
INP Instituto Nacional de Petróleos
IOF Informação de Orçamento Familiar
IPAJ Instituto do Patrocínio e assistência Jurídica
JUE Janela Única Electrónica
LDH Liga dos Direitos Humanos

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LEBOA Lei de Bases da Organização e Funcionamento da
Administração Pública
LOLE Lei sobre os Órgãos Locais do Estado
LOMP Lei Orgânica do Ministério Público
LPA Lei de Procedimento Administrativo
LPP Lei de Probidade Pública
LT Lei de Terras
MARP Mecanismo Africano de Revisão de Pares
MASC Mecanismo de Apoio à Sociedade Civil
ME Memorandum de Entendimento
MF Ministério das Finanças
MICOA Ministério para a Coordenação Ambiental
MINEC Ministério de Educação e Cultura
MIREM Ministério dos Recursos Minerais
MISA Instituto de Comunicação Social da África Austral
MP Ministério Público
MPD Ministério de Plano e Desenvolvimento
OAM Ordem dos Advogados de Moçambique
OCDE Organização para a Cooperação e Desenvolvimento
Económico
ODA Ajuda Pública ao Desenvolvimento
ODAMOZ Official Development Assistance to Mozambique Database
OGE Órgão de Gestão Eleitoral
OSC Organizações da Sociedade Civil
PAMAN Plano de Acção para Melhoria do Ambiente de Negócios
PARP Plano de Acção para a Redução da Pobreza
PARPA II Plano de Acção para a Redução da Pobreza Absoluta – Fase II
PCAs Presidentes dos Conselhos de Administração
PCI Política de Cooperação Internacional

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PED Política e Estratégias de Descentralização
PGR Procurador-Geral da República
PLAC Pacote Legislativo Anticorrupção
PNT Política Nacional de Terras
PPPs Parcerias Público-Privadas
PR Presidente da República
PRM Polícia da República de Moçambique
RGIM Relatório de Governação e Integridade de Moçambique
RLT Regulamento de Lei de Terras
RM Rádio Moçambique
SIDA Síndrome de Imunodeficiência Adquirida
SIGEDAP Sistema de Gestão de Desenvolvimento da Administração
Pública
SISA Imposto aplicável à Transações de Propriedade Imobiliárias
SISTAFE Sistema de Administração Financeira do Estado
SNAP Serviço Nacional de Alternativas Penais
SNJ Sindicato Nacional de Jornalistas
TA Tribunal Administrativo
TDM Telecomunicações de Moçambique
TPI Tribunal Penal Internacional
TVM Televisão de Moçambique
UE União Europeia
UEM Universidade Eduardo Mondlane
UFSA Unidade Funcional de Supervisão de Aquisições
UGEAS Unidades Gestoras Executoras de Aquisições
UNAC União Nacional dos Camponeses
UTRESP Unidade Técnica do Sector Público

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ÍNDICE
Agradecimentos 1
Abreviaturas e Acrónimos 2
Introdução 11

Capítulo 1 15
Os Três Poderes do Estado 15
Sobre as recomendações do relatório de 2008 15
A situação actual em relação aos três poderes 16
Os novos desafios que surgiram 19

Capítulo 2 22
Direitos Humanos e Liberdades Básicas 22
Sobre as recomendações do Relatório de 2008 22
Quadro legal e institucional: ponto de situação 23
Novos desafios 26
Novas Recomendações 28

Capítulo 3 29
Governação e Financiamento Eleitoral 29
Quadro Legal, Institucional e de Políticas Públicas 30
Problemas Práticos e Desafios Reais 33
Áreas Prioritárias de Intervenção e Reforma 35

Capítulo 4 37
Governação Local e Relações Intergovernamentais 37
Sobre as recomendações do RGIM 2008 37
Ponto de situação do quadro legal, institucional e de políticas 38
públicas

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Novos desafios e problemas práticos 40
Áreas prioritárias de intervenção e reforma 44

Capítulo 5 46
Oversight e Corrupção 46
Sobre as recomendações do RGIM 2008 46
Ponto de situação do quadro legal, institucional e de políticas 47
públicas
Problemas práticos e novos desafios 49
Áreas prioritárias de intervenção e reforma 51

Capítulo 6 53
Sociedade Civil, Informação Pública e Comunicação Social 53
Sobre as recomendações do RGIM 2008 53
Ponto de situação do quadro legal, institucional e de políticas 54
públicas
Problemas práticos e novos desafios 56
Áreas prioritárias de intervenção e reforma 58

Capítulo 7 60
Ajuda Internacional, Dependência Externa e Governação 60
Sobre as recomendações do RGIM 2008 60
Ponto de situação do quadro legal, institucional e de políticas 61
públicas
Problemas práticos e novos desafios 62
Áreas prioritárias de intervenção e reforma 66

Capítulo 8 67
A Governação da Terra: Políticas, Realidade e Desafios 67

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Quadro Legal, Institucional e de Políticas Públicas 67
Problemas práticos e desafios reais 73
Áreas prioritárias de intervenção e reforma 78

Capítulo 9 81
Governação Ambiental e Garimpo: Políticas, Realidade e 81
Desafios
Quadro Legal, Institucional e de Políticas Públicas 81
Problemas práticos e desafios reais 85
Áreas prioritárias de intervenção e reforma 87

Capítulo 10 91
Sector Público 91
Sobre as recomendações do RGIM 2008 91
Ponto de Situação do Quadro Legal, Institucional e de 92
Políticas Públicas
Problemas práticos e novos desafios 97
Áreas prioritárias de intervenção e reforma 105

Considerações Finais 109

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Introdução aos novos desafios que apareceram. A
periodicidade inicial do RGIM era de
dois anos mas considerou-se que dois
Adriano Nuvunga anos era pouco tempo, para uma efec-
tiva implementação de reformas, por
Em 2008, o Centro de Integridade um lado, e para a captação dos efei-
Pública (CIP) publicou a primeira tos dessas mesmas reformas, por ou-
edição do Relatório de Governa- tro lado. Por isso, a periodicidade do
ção e Integridade em Moçambique RGIM ficou fixada em quatro anos,
(RGIM) com o objectivo de fazer um embora esta segunda edição saia com
um atraso de 1 ano.
mapeamento do estado da governa-
ção e integridade em Moçambique, Como parte da metodologia do
e de identificar áreas prioritárias de RGIM 2013, o CIP realizou, em
intervenção e reformas que, ao longo 2012, um estudo interno com os
dos anos, pudessem ser monitoradas seguintes objectivos :
por actores da sociedade civil e pela ~~ Identificação dos eventos
comunicação social, em permanente mais importantes na área de
diálogo com o poder público. Nesta governação e integridade no
perspectiva, o RGIM é uma tentativa período 2008-2011;
de contribuir, de forma construtiva, ~~ Identificação de tendências
para o debate sobre a governação em gerais na área de governação
Moçambique, trazendo opiniões e e integridade no período 2008-
ideias que possam informar o perfil 2011;
de reformas tendentes ao aperfeiçoa-
~~ Identificação dos novos desa-
mento e consolidação da governação
fios que apareceram em torno
democrática em Moçambique.
dos conceitos de governação e
Cinco anos depois, o CIP publica a integridade;
segunda edição do Relatório de Go-
~~ Apresentação de temas de
vernação e Integridade em Moçam-
particular importância e rele-
bique (abreviadamente designado por
vância na área de governação
RGIM 2013) que avalia a evolução
e integridade e
da governação e integridade, desde
a publicação da primeira edição do ~~ Análise do grau de implemen-
RGIM, em 2008, prestando particu- tação das recomendações do
lar atenção à implementação, ou não, RGIM 2008.
das principais recomendações pelo A abordagem do RGIM 2013 reflecte
poder público, às tendências gerais os resultados apresentados por este
na área de governação e integridade e estudo interno. Primeiro, o estudo

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Governação e Integridade em Moçambique >> Problemas práticos e desafios reais

indicou quais recomendações foram O estudo realizado em 2012 e as várias


parcial e/ou integralmente imple- mesas redondas de reflexão havidas
mentadas pelo poder público e quais para a discussão da abordagem do
não o foram. Assim, com base nesta RGIM sugeriram que em cada edição
informação, os autores dos capítulos se abordasse com mais profundidade
tinham que reflectir sobre a evolução um dos temas tratados, em forma
havida (melhorias, retrocessos e/ de ‘tema de fundo’. O tema eleito
ou estagnação), ao mesmo tempo para esta edição é o ‘Sector Público’
que questionavam a actualidade das em torno do qual girou a Estratégia
recomendações. Segundo, o estudo Global da Reforma do Sector Público
identificou duas novas áreas que, pela (2001-2011), que serviu de raison d’etre
sua importância estratégica para a para se perguntar pelos resultados
área de governação, incluindo a sua desta reforma, numa altura em que
dimensão de modelo desenvolvimen- abundam evidências de células do
to económico, mereciam atenção partido Frelimo na Administração
por parte do RGIM 2013. Portanto, Pública. Portanto, o tema ‘Sector
para além da avaliação da evolução Público’ não só passa em revista a
da governação e integridade nas oito evolução que houve desde 2008, como
áreas abordadas na primeira edição, também amplia e aprofunda o debate
o RGIM 2013 traz duas novas áreas, da governação e integridade nesta
designadamente a ‘Governação da área. O RGIM 2013 traz, também,
Terra’ e a ‘Governação Ambiental e uma pequena conclusão que, sem
Garimpo’. entrar em questões de substância,
Em termos de organização, a vai, de edição em edição, captar
estrutura dos capítulos que vêm do os avanços, recuos e estagnações
RGIM 2008 começa com uma breve de reformas, tendo em conta a
avaliação da implementação das natureza das recomendações e o seu
recomendações do RGIM de 2008. atendimento, ou não.
A seguir dá-se o ponto de situação do Conceptualmente, o RGIM 2013 gira
quadro legal e institucional, para logo em torno dos mesmos conceitos es-
de seguida fazer-se uma avaliação dos truturantes do RGIM 2008, designa-
novos desafios e das recomendações. damente Governação e Integridade.
Os dois novos capítulos estão Resumidamente, Governação é rela-
estruturados em três partes principais, cionada com a forma como, com base
designadamente: (i) quadro legal, nas regras e nos processos através dos
institucional e de políticas públicas; quais os interesses se organizam, os
(ii) problemas práticos e desafios reais; recursos são geridos e o poder é cons-
e (iii) áreas prioritárias de intervenção tituído e exercido numa determinada
e reforma. sociedade. Por sua vez, a Integridade

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Introdução

tem a ver com a existência de regras e Direitos Humanos’, compensado


claras, nas instituições, de mecanis- pela melhoria na igualdade de género.
mos para garantir o respeito e, sobre- A pontuação para a categoria de ‘Se-
tudo, a observância dessas regras. A gurança e Estado de Direito’ também
integridade tem ainda a ver com a reduziu, tendo-se registado uma gran-
capacidade das instituições (públicas de redução no sub-índice de prestação
e privadas) de promover o ‘Estado de de contas.
Direito’, ou seja, com a existência e http://www.moibrahimfoundation.
o respeito de regras justas e transpa- org/iiag/
rentes, principalmente na gestão da
coisa pública, incluindo os recursos
económicos geridos pelo Estado. Índice de Democracia da
Em diferentes perspectivas, a gover- Freedom House (FH)
nação e integridade em Moçambique A pontuação de Moçambique man-
são regularmente aferidas por vários teve-se constante para as ‘Liberdades
índices comparativos internacionais. Civis’ durante o período 2008-2013
Para um melhor enquadramento das mas deteriorou-se para os ‘Direitos
reflexões avançadas pelo RGIM 2013, Políticos’ entre 2009 e 2010, devido à
apresenta-se abaixo a forma como “irregularidades significativas e à uma
Moçambique foi visto por estes índi- falta de transparência relativa ao re-
ces, ao longo dos últimos cinco anos. gisto de candidatos e ao apuramento
dos votos nas eleições presidenciais,
legislativas e provinciais de 2009”.
Índice Mo Ibrahim de
Governação Africana http://www.freedomhouse.org/
report-types/freedom-world
Entre 2008 e 2012, houve uma li-
geira melhoria na pontuação geral
de Moçambique, que aumentou de Índice de Democracia da
51,9 para 54,8. Os dados subjacentes Economist Intelligence Unit (EIU)
indicam melhorias na categoria de
‘Desenvolvimento Humano’, incluin- Entre 2008 e 2012, a pontuação de
do saúde e educação, e na categoria Moçambique reduziu de 5,49 para
de ‘Oportunidades Económicas Sus- 4,88, tendo descido do 92º para o 102º
tentáveis’, onde os principais ganhos lugar na classificação e mantendo-
verificam-se na política fiscal e nas se na categoria de ‘regime híbrido’.
infra-estruturas. Mas houve um agra- Embora a pontuação de Moçambique
vamento nos dois principais sub-ín- tenha agravado na maioria das catego-
dices na categoria de ‘Participação rias, grande parte deste agravamento

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Governação e Integridade em Moçambique >> Problemas práticos e desafios reais

registou-se nas categorias de ‘Proces- desempenho na categoria de ‘Demo-


sos eleitorais e pluralismo’ e ‘Funcio- cracia’ e uma melhoria na categoria
namento do governo’. de ‘Economia de Mercado’.
http://www.eiu.com/public/ http://www.bti-project.de/?&L=1
thankyou_download.aspx?activity=-
download&campaignid=Democra-
Em resumo, os indicadores de gover-
cyIndex12
nação mostram mudanças limitadas
durante o período de 2008 a 2012.
Índice de Percepção de As irregularidades no processo elei-
Corrupção toral de 2009 resultaram em alguns
Entre 2008 e 2012, a pontuação de retrocessos nos indicadores de FH e
Moçambique melhorou ligeiramente, EIU. De modo geral, os indicadores
tal como a sua classificação. Nenhuma parecem indicar que, embora a gover-
explicação foi apresentada. nação económica possa ter registado
algumas melhorias, os aspectos po-
http://www.transparency.org/
líticos da governação e integridade
cpi2012/results
ainda enfrentam desafios importan-
tes. É dentro deste contexto que o
Indicadores Mundiais de RGIM 2013 apresenta a perspectiva
Governação Moçambicana sobre a evolução de
Entre 2008 e 2012, as mudanças são governação e integridade entre 2008
insignificantes na maioria das áreas, e 2013.
embora a tendência indique um ligeiro
agravamento da situação, devido à di-
minuição nas ‘categorias de ‘controlo
da corrupção’, ‘eficiência do governo’
e ‘qualidade do marco regulatório’.
http://data.worldbank.org/data-ca-
talog/worldwide-governance-indica-
tors

Índice de Transformação
Bertelsmann
Entre 2008 e 2012, Moçambique re-
gistou um ligeiro agravamento do seu

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Capítulo 1 em particular, sobre a execução das
leis.
Apesar da dificuldade do exercício,
Os Três Poderes do Estado
uma oportunidade ímpar surgiu, em
2010, com o processo de revisão da
Professor Doutor Gilles Cistac Constituição que podia caminhar
para uma certa acomodação, pelo
Os três poderes do Estado compreende menos, da primeira recomendação.
uma análise em torno da Constituição Contudo, o projecto do proponente
como quadro estruturante do Estado não reflectia esta via e apenas optou
de direito, dos órgãos do poder pelo conceito de “revisão não pro-
executivo, legislativo e judicial, das funda”, ou seja, “revisão cosmética”.
suas inter-relações e suas relações com Esta opção (abandono do projecto
os cidadãos através de mecanismos inicial) é o resultado da oposição polí-
institucionais de captação e resposta tico-social à razão de ser da inicial re-
aos assuntos e problemas que afectam visão constitucional que era, de facto,
a população. a introdução de um terceiro mandato
consecutivo para o Presidente da Re-
pública.
Sobre as recomendações do Assim sendo, a revisão constitucional
relatório de 2008 perdeu o seu interesse e o atraso no seu
processamento mostra, claramente,
O Relatório sobre Governação e Inte-
que não é mais uma prioridade
gridade em Moçambique (RGIM) de
para o partido no poder que deve,
2008 traçou as relações entre os três
finalmente, gerir uma situação a
poderes do Estado e demonstrou os
contra corrente dos seus interesses
efeitos negativos do sistema presiden-
iniciais. Nestas circunstâncias, não se
cialista sobre o funcionamento dos
pode esperar muito da revisão actual.
três poderes do Estado. Com vista
Contudo, o ponto positivo desta
ao aprofundamento da governação
revisão constitucional “nebulosa”
democrática, o RGIM 2008 reco-
foi o papel da Sociedade Civil e dos
mendou a transição do actual regime
académicos que, desde o princípio do
presidencialista para um regime par-
processo, foram muito interventivos,
lamentar racionalizado e o reforço do
acompanhando e continuando a
papel do Parlamento, nomeadamen-
acompanhar este processo moribundo
te, através de um controlo acrescido
e sem sabor.
sobre as actividades do Executivo e,

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Governação e Integridade em Moçambique >> Problemas práticos e desafios reais

No que concerne ao reforço do pa- até atingir contornos preocupantes.


pel do Parlamento, esta via não foi Dentro de um mar de regressos na
funcionalmente explorada; a preocu- governação democrática (em particu-
pação dos deputados foi concentrada lar, devido, em parte, à manipulação
no melhoramento do seu estatuto e minoração do papel da sociedade
individual em detrimento das activi- civil), é o fenómeno da “captura” do
dades de fiscalização (real) do Poder Estado através do processo de parti-
Executivo. darização da Administração Pública
Assim, deve-se admitir que nenhuma que domina devido à sua amplitude
das recomendações estabelecidas no com consequências negativas sobre
primeiro relatório foi seguida. o próprio funcionamento da mesma
e do Estado no seu todo. Isto levanta
uma questão crucial: a da própria so-
A situação actual em relação berania do Estado moçambicano, por
um lado, e do afastamento dos requi-
aos três poderes
sitos constitucionalmente previstos
Na perspectiva do CIP, Governação (n° 1 do artigo 251 da Constituição)
está relacionada com a forma, com as como condições de acesso à Função
regras e os processos através dos quais Pública, por outro lado.
os interesses se organizam, os recur-
Um segundo aspecto, com ligação ao
sos são geridos e o poder é conquis-
primeiro, é a promiscuidade (negativa)
tado e exercido numa determinada
entre o mundo do negócio e alguns
sociedade. Enquanto Integridade tem
membros do partido no poder, que
a ver com a existência de regras claras
levanta o problema da manutenção
nas instituições, de mecanismos para
no poder para garantir o acesso aos
garantir o respeito e, sobretudo, a ob-
recursos lato sensu. A partidarização
servância/adesão a essas regras. A
das instituições públicas não é um
Integridade tem ainda a ver com a ca-
fenómeno novo, mas existe desde
pacidade de as instituições (públicas,
a independência do país. Devido à
privadas, etc.) promoverem o “Estado
cultura monopartidária, combinada
de Direito”, ou seja, com a existência
com a visão exclusivamente “super-
e o respeito de regras justas e trans-
estrutural” do Estado na gestão
parentes, principalmente na gestão da
das instituições públicas, o partido
coisa pública, incluindo os recursos
no poder tinha já estruturas bem
económicos geridos pelo Estado.
instaladas nos diferentes aparelhos
Na perspectiva da Governação e Inte- administrativos centrais e locais. Foi
gridade, a área dos três poderes piorou apenas necessário reactivá-las, o que

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Os Três Poderes do Estado

foi feito com disciplina e organização próprios de efectivação. No caso de


a partir do primeiro mandato do Moçambique, os mecanismos rela-
actual Presidente da República. cionam-se com a interdependência de
Tendo conseguido consolidar o poderes (artigo 134 da Constituição),
projecto de partidarização do regime a soberania do Povo (n.° 1 do artigo 2
presidencialista, os arquitectos deste da Constituição) e daqueles que têm
processo avançaram para outra legitimidade popular. Por exemplo,
etapa que consistiu na acentuação da o Conselho de Ministros responde
formalização da “captura” do Estado perante o Presidente da República,
pelo partido no poder. Este fenómeno eleito pelo Povo (artigo 207 da Cons-
choca com o próprio processo de tituição), ou os membros do Conse-
formação de um Estado de Direito lho de Ministros respondem perante
Democrático. A formalização da o Presidente da República (artigo 208
“captura” do Estado, está consagrada da Constituição).
no artigo 76 dos Estatutos da Frelimo1. A Constituição ignora a responsabi-
Curiosamente, até hoje, ninguém se lidade dos eleitos perante os partidos
preocupou com isso. Este preceito tem políticos porque a sua legitimidade
por objectivo responsabilizar os eleitos vem do povo, e não de uma determi-
e os executivos perante os órgãos do nada formação política, a sua respon-
partido do respectivo escalão. Nos sabilidade política é apenas perante o
moldes em que se encontra redigido, Povo ou aqueles que têm a legitimi-
este artigo 76 dos Estatutos da Frelimo, dade popular para isso e não os que
fere gravemente a Constituição. O apenas a têm por serem oriundos de
princípio democrático está a ser posto uma formação política.
em causa. A responsabilidade política não é
A responsabilidade política num Es- exclusiva. Existem outras formas de
tado Democrático tem mecanismos responsabilidades dos governantes,
mas, em todo caso, essas outras formas,
1
Artigo 76 dos Estatutos aprovados pelo X.° não se podem sobrepor e prevalecer
Congresso (o mesmo conteúdo encontra-se
sobre a responsabilidade política
em versões anteriores dos mesmos Estatutos):
Responsabilidade dos eleitos e dos executivos (1) Os como estabelece, formalmente, o
eleitos e os executivos coordenam a sua acção artigo 76 dos Estatutos da Frelimo,
com os órgãos do Partido do respectivo escalão fazendo prevalecer a responsabilidade
e são perante este pessoal e colectivamente
responsáveis pelo exercício de funções que partidária sobre a política. Constitui
desempenham nos órgãos do Estado ou uma negação à soberania do Povo,
autárquicos. (2) Quando se trata de cargos de inaceitável num Estado de Direito
âmbito nacional, os eleitos e os executivos serão
responsáveis perante a Comissão Política.
Democrático.

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Governação e Integridade em Moçambique >> Problemas práticos e desafios reais

Existe uma ligação estrutural entre o sentido que o poder do Estado, no


constitucionalismo e a ideia de res- plano interno, é absoluto.
ponsabilidade política. Com efeito, Assim, como é que um partido polí-
a responsabilidade política constitui tico, que é uma pessoa privada, pode
uma das conquistas maiores do sujeitar os órgãos do Estado soberano
constitucionalismo moderno. A con- às suas directivas e responsabilizar
sequência da sua prática culmina com os titulares dos órgãos de soberania?
a perda do exercício do poder político Uma vez mais, os Estatutos da Fre-
pela pessoa (por exemplo, ministro) limo, forjados em outros tempos,
ou grupo de pessoas (Conselho de não acompanharam as evoluções do
Ministros) quando não gozam mais constitucionalismo moderno. Resu-
da confiança dos dirigentes supremos mindo, os Estatutos da Frelimo não
da Nação (por exemplo, Presidente acompanharam as mudanças profun-
da República) e, consequentemente, das e os progressos na formação e
traça uma linha de separação entre construção de um Estado de Direito
ditadura e democracia. Nessas cir- Democrático e o último Congresso
cunstâncias, como é que a Comissão (X) desta formação política perdeu a
Política de um determinado partido oportunidade de sintonizar as normas
pode responsabilizar um ministro ou partidárias com a Lei Fundamental
o Presidente da República que é po- da República.
liticamente irresponsável de acordo
com a Lei Fundamental? A outra grande preocupação é a su-
jeição dos órgãos de Administração
Além disso, o artigo 76 dos Estatutos Pública ao partido no poder. O artigo
da Frelimo viola também o princípio 249 da Constituição estabelece clara-
da soberania do Estado, na medida mente que a Administração Pública
em que estabelece, formalmente, um serve o interesse público e os órgãos
controlo sobre os agentes do Estado da Administração Pública obedecem
e, consequentemente, põe os interes- à Constituição e à lei. Nesta perspecti-
ses do partido acima do Estado. A va, como os órgãos da Administração
soberania do Estado não se manifesta Pública podem obedecer a interesses
apenas no plano internacional (inde- exclusivamente partidários quando
pendência), mas, também, no plano devem defender o interesse público
interno. Nesta perspectiva, o Estado que pode ser diferente do interesse do
soberano tem o poder absoluto, isto partido? Este artigo viola o princípio
é, detém e exerce o poder de criar de igualdade e fomenta situações
livremente (sem controlo, o direito) e discriminatórias. Esta situação cria
de o impôr de forma coactiva. É neste e criará uma verdadeira confusão na

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Os Três Poderes do Estado

medida em que o servidor público os seus negócios. Depois disso, tentou


ficará sem saber se deve obediência à alterar a Constituição para o terceiro
Constituição ou ao Estatuto do parti- mandato e não conseguiu. Um outro
do Frelimo. presidente chegou ao poder – seu
Finalmente, o artigo 76 dos Estatutos próprio Vice-Presidente - e começou
da Frelimo estabelece caminhos para a promover um processo-crime contra
um sistema de pré-estado (regime o seu antecessor. Nessas averiguações,
neo-patrimonial onde o Estado descobriu-se que o Presidente Chiluba
passa a servir como instrumento ou tinha desviado cerca de 40 milhões
património do partido no poder) que de Euros durante o seu mandato
obstaculiza a construção de um Esta- presidencial. Infelizmente, Chiluba
do moderno e representa, consequen- morreu antes do desfecho do processo.
temente, um grande retrocesso na O império empresarial, que muitos
construção de um Estado de Direito dos nossos dirigentes têm, hoje ganha
Democrático. sustentabilidade por causa das suas
Noutra vertente, a outra figura que influências políticas. Se as figuras que
domina é a influência política para hoje dirigem grandes negócios perdem
a protecção de negócios particulares. influência política, os seus negócios
Muitas das figuras que hoje dominam ficam sem sustentabilidade e essas
a elite política estão envolvidas em elites não estão dispostas a passar
grandes interesses económicos. por essas situações e serem atingidas
São negócios que só ganham pelo “sindroma de Chiluba”. Nesta
alguma sustentabilidade enquanto perspectiva, não se pode afastar a
a influência política perdurar. Caso hipótese de ser do interesse de alguns
contrário, esses negócios deixam de membros do partido no poder não
ser viáveis e, consequentemente, há verem repetida a história de Chiluba.
necessidade da parte dessas elites de Por isso, vêem-se obrigados a
os proteger. Não se deve esquecer do dominar o jogo político para garantir
que se poderia baptizar ou chamar a sustentabilidade dos seus negócios.
de “sindroma de Chiluba”. Frederick
Chiluba, ora falecido, foi presidente
Os novos desafios que
da Zâmbia. Antes de chegar ao poder,
militou no sindicalismo e defendeu surgiram
a orientação socialista. Quando Para além, dos desafios que foram
chegou ao poder virou “capitalista”. expostos no Relatório sobre Gover-
No poder, começou a fazer negócios. nação e Integridade em Moçambique
Apoderou-se do Estado para viabilizar (RGIM) de 2008, desafios novos

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Governação e Integridade em Moçambique >> Problemas práticos e desafios reais

surgiram, podendo ser divididos em seu próprio Tribunal para acomodar


duas categorias: os que surgiram no os interesses de alguém? O desafio
plano regional e os que surgiram no para Moçambique é de solucionar
plano interno. este problema, jogando um papel
No plano regional, na Cimeira de decisivo na “reactivação” do Tribunal
Windhoek, em Agosto de 2010, o da SADC.
Presidente do Zimbabué defendeu No plano interno, a luta contra a
que a decisão do Tribunal da SADC2 partidarização da Administração
violava a soberania do Zimbabué e Pública constitui um dos maiores
esta “suspendeu” o Tribunal bem desafios para uma melhor
como decidiu lançar uma revisão do Governação e Integridade. A Lei da
Protocolo sobre o Tribunal da SADC. Probidade Pública (Lei n.° 16/2012
Na Cimeira de Maputo, em Maio de 14 de Agosto) proíbe, durante
de 2011, os referidos Chefes de Es- o horário de trabalho, actividades
tado e Governo voltaram a manter a partidárias e políticas e o uso de
“suspensão” do Tribunal por mais 12 bens e equipamentos públicos para
meses e, na última Cimeira de Mapu- assuntos distintos do trabalho oficial
to, a questão continua sem solução o (artigos 27 e 28). Estes dispositivos
que fez com que, hoje, a SADC esteja deveriam contribuir para atenuar a
sem mecanismos jurisdicionais de partidarização da Administração
resolução de conflitos envolvendo o Pública. Igualmente, o princípio
Direito Comunitário. Convém referir segundo o qual o titular ou membro
que a Cimeira dos Chefes de Estado de órgão público deve cumprir as
e Governo da SADC “suspendeu”, suas funções de modo a satisfazer o
sem nenhuma base legal para o fazer, interesse público (e não o interesse
o Tribunal da SADC por ter tomado de um partido político) e a realizar
uma decisão contra a República do o bem comum, (n.° 1 do artigo 30 e
Zimbabué. Qual é a imagem dada n.° 2 do artigo 13:“no exercício das suas
fora da SADC aos defensores dos prerrogativas, o interesse público prevalece
direitos humanos e aos investidores sempre sobre os interesses pessoais,
estrangeiros de uma organização políticos ou de qualquer natureza”)
regional que suspende ilegalmente o deveria orientar todos os servidores
públicos para o que é a sua razão de
ser. Como refere o n.° 2 do artigo 5 “O
2
Tribunal da SADC, Case n.° 2/2007, Mike
exercício da função pública deve orientar-
Campbell (Pvt) e outros Vs The Republic of
Zimbabwe – 28 de Novembro de 2008, disponível se para a satisfação do bem comum que é
em: http://www.sadc-tribunal.org/docs/ seu fim último e essencial”, e não para
case022007.pdf, Acesso em: 19-10-2012

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Os Três Poderes do Estado

a manutenção de uma determinada


formação política no poder. Sem o
cumprimento escrupuloso desses
princípios, qual é o grau de confiança
que inspirará o servidor público nos
cidadãos “para fortalecer a credibilidade
da instituição que serve e dos seus gestores”
(n.° 4 do artigo 5)?

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Governação e Integridade em Moçambique >> Problemas práticos e desafios reais

Capítulo 2 Formas de Discriminação contra


as Mulheres. O Governo aprovou
o Pacto Internacional dos Direitos
Direitos Humanos e Económicos, Sociais e Culturais e o
Protocolo Adicional à Convenção
Liberdades Básicas
contra a Tortura e outros Tratamentos
ou Penas Cruéis em 2011, mas não se
André Cristiano José avançou para a assinatura e ratifica-
ção dos mesmos. Da lista recomen-
Direitos Humanos e Liberdades Bá- dada, só o Protocolo Facultativo da
sicas compreendem uma análise em Convenção sobre a Eliminação de
torno da definição dos mecanismos Todas as Formas de Discriminação
de garantia das liberdades básicas, do contra as Mulheres foi ratificado
papel da polícia e dos tribunais, e da (2008). Além dos instrumentos suge-
legislação e adopção de convenções ridos no RGIM anterior, deve-se no-
internacionais sobre direitos huma- tar a adesão de Moçambique a duas
nos. outras convenções internacionais:
a Convenção das Nações Unidas
sobre os Direitos das Pessoas com
Sobre as recomendações do Deficiência (e o Protocolo Opcional)
Relatório de 2008 em 2012 e a Convenção relativa aos
O RGIM 2008 fez recomendações ao Trabalhadores Migrantes (também
nível legal e ao nível institucional. No em 2012).
âmbito das prioridades na reforma O Estatuto do Tribunal Penal Inter-
legal sugeriu-se que o país aderisse e nacional (ETPI) não foi ratificado.
ratificasse os pactos e protocolos adi- Várias organizações têm pressionado
cionais ou facultativos relativos aos a Assembleia da República para a
direitos humanos, nomeadamente ratificação do ETPI (entre outras a
o Pacto Internacional dos Direitos Ordem dos Advogados de Moçambi-
Económicos, Sociais e Culturais, que e a Liga dos Direitos Humanos).
o Protocolo Facultativo do Pacto Apesar dessa pressão, a Presidente
Internacional sobre os Direitos Civis da Assembleia da República, Dra
e Políticos, o Protocolo Adicional à Verónica Macamo, defendeu que
Convenção contra a Tortura e outros Moçambique não vai ratificar a
Tratamentos ou Penas Cruéis e o adesão ao TPI enquanto não forem
Protocolo Facultativo da Convenção acomodados certos aspectos legais1.
sobre a Eliminação de Todas as
1
Jornal O País de 09/08/2011.

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CIP-Governacao-Intregridade.indb 22 10/28/2013 4:53:56 PM


Direitos Humanos e Liberdades Básicas

Em relação à adopção de uma políti- se pretendia prestar assistência a


ca de valorização e ampliação das pe- imigrantes ilegais detidos.
nas alternativas à prisão, o Governo A institucionalização de mecanismos
submeteu à Assembleia da República de cooperação entre o Estado (par-
uma proposta de alteração do Código ticularmente o IPAJ), a Ordem dos
Penal que contempla “penas alter- Advogados de Moçambique (OAM)
nativas à prisão”, sendo medidas e e as organizações de defesa dos di-
penas não privativas de liberdade, tais reitos humanos é uma recomendação
como as medidas sócio-educativas e que foi parcialmente implementada,
socialmente úteis. pois, foi assinado um Memorandum
A nível institucional, recomendou-se de Entendimento (ME) entre o IPAJ
a adopção de medidas legislativas a LDH e a Faculdade de Direito da
que permitam o acesso de entidades UEM que, dentre várias coisas, visa
independentes (OSC) aos estabele- a formação conjunta de para-legais,
cimentos prisionais e às esquadras que iram assistir os casos relaciona-
da polícia, de modo a monitorarem dos com os direitos humanos. Falta a
a situação dos cidadãos privados de integração do OAM neste ME.
liberdade. Nenhuma medida legis-
lativa foi tomada. Contudo, existem
Quadro legal e institucional:
algumas medidas administrativas.
ponto de situação
Segundo a Dra. Augusta Eduardo,
da LDH, “no início o acesso das Não obstante a diversidade concep-
OSC aos estabelecimentos prisionais tual em torno da “Boa Governação”
e esquadras era difícil. Havia pouca e “Integridade” a nível internacional,
abertura dos gestores prisionais e de é consensual a ideia de que aquelas
esquadras. Durante algum tempo deverão estar ancoradas à necessida-
funcionou-se com base na credencial. de de promoção do desenvolvimento
A partir de 2009, com a assinatura de e dos direitos humanos e liberdades
um Memorandum de Entendimento básicas. Este é também o posiciona-
entre o Ministério da Justiça e a LDH, mento do Governo de Moçambique
hoje o acesso às prisões melhorou, nalguns dos principais instrumentos
mas continua difícil nas esquadras. políticos, nomeadamente, o Progra-
Os pedidos formulados às esquadras, ma Quinquenal do Governo (2010-
regra geral, são indeferidos”. Por 2014) e o Plano de Acção para a
exemplo, a LDH teve o seu pedido Redução da Pobreza (PARP). 2
indeferido para aceder à esquadra 2
O PARP foi aprovado na 15ª Sessão do
de Bela Vista, em Maputo, onde Conselho de Ministros, realizada no dia 03 de

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Governação e Integridade em Moçambique >> Problemas práticos e desafios reais

No relatório anterior, elegemos duas Não obstante os protocolos assinados


formas complementares de análise entre o Ministério da Justiça e as or-
das condições ou processos de efec- ganizações da sociedade civil (como,
tivação dos direitos humanos e liber- por exemplo, a Liga Moçambicana
dades, a saber: i) o quadro normativo dos Direitos Humanos), o acesso aos
e institucional; e ii) os problemas estabelecimentos prisionais continua
práticos que deles decorrem. dependente da vontade (ou sensibili-
No que respeita ao quadro legal e dade) de quem os dirige. O mais pro-
institucional, não houve mudanças blemático continua o acesso às esqua-
significativas. Por um lado, o Estado dras da polícia, dado o característico
continua a dar primazia aos direitos fechamento do Ministério do Interior.
civis e políticos e aos direitos colec- Espera-se que a recente nomeação do
tivos e difusos, descurando os direi- Provedor de Justiça e dos membros
tos económicos e sociais. Por outro da Comissão Nacional dos Direitos
lado, permanece a lógica ou estraté- Humanos3 ajude a melhorar a moni-
gia de selectividade na adesão aos toria dos estabelecimentos prisionais
instrumentos normativos internacio- e centros de detenção.
nais, não se vinculando àqueles que Reconhecendo a importância das ex-
implicariam uma responsabilização periências de apoio jurídico aos cida-
directa do Estado e/ou do Governo dãos e a necessidade de maximizá-las
perante as instituições internacionais, em benefício do acesso à justiça, o
em caso de violação dos direitos hu- IPAJ assinou acordos de cooperação,
manos. com o Centro de Assistência e Práti-
O Ministério Público, enquanto de- cas Jurídicas (CAPJ) da Universidade
fensor da legalidade, não tem recursos Apolitécnica, o Centro de Práticas
humanos e condições de trabalho su- Jurídicas da Faculdade de Direito da
ficientes para acautelar ou reagir con- Universidade Eduardo Mondlane e
tra todos os casos de violação de di- a LDH. Esta iniciativa constitui um
reitos humanos que ocorrem no país. avanço importante no sentido de am-
Uma limitação adicional importante pliar as possibilidades de promoção
residia no facto de os magistrados do do acesso ao direito e à justiça.
Ministério Público, por vezes, serem Em 2012, o Governo submeteu
impedidos de cumprir as suas fun- à Assembleia da República uma
ções, particularmente nas esquadras e
nos estabelecimentos prisionais. 3
A Comissão Nacional dos Direitos Humanos
foi criada pelo Decreto n.º 33/2009, de 22 de
Dezembro. Os membros da Comissão tomaram
Maio de 2011. posse perante o Presidente da República em 2012.

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CIP-Governacao-Intregridade.indb 24 10/28/2013 4:53:56 PM


Direitos Humanos e Liberdades Básicas

proposta de alteração do Código que permanecem, reiteradamente


Penal que contempla um regime reconhecidos, tanto pelas instituições
de penas alternativas à prisão que, estatais, como pelas organizações
ultrapassando a tradicional pena da sociedade civil.4 Não obstante a
de multa, inclui determinadas Constituição da República reconhe-
medidas sócio-educativas. É certo cer-lhe a “função de garantia da lei e
que a questão das prisões e das ordem, salvaguarda da segurança de
penas alternativas tem sido encarada pessoas e bens, respeito pelo estado
como uma das prioridades do de direito democrático e observância
sistema de administração da justiça, dos direitos e liberdades fundamen-
sendo um dos principais vectores de tais dos cidadãos”, a PRM continua,
concretização da política prisional. paradoxalmente, a ser associada a
No entanto, o Código Penal, embora violações de direitos humanos.
importante, não esgota as medidas Do mesmo modo, nas prisões
legislativas necessárias para efectivar continuam a chegar ao público relatos
o regime das penas alternativas. Já de violações de direitos humanos
a Lei Contra a Violência Doméstica nos estabelecimentos prisionais. O
(Lei n.º 29/2009, de 29 de Setembro) caso recente e que foi mediatizado
prevê a aplicação do trabalho a favor foi a tortura de um prisioneiro até à
da comunidade como pena principal morte na cadeia distrital de Macanga,
ou como pena de substituição, mas, facto confirmado e repudiado pelo
nem por isso essas medidas são Ministério da Justiça em comunicado
aplicadas. oficial.5
As evidências indicam que houve No caso da polícia, o quadro torna-se
estagnação quanto à situação dos di- ainda mais alarmante quando ao ní-
reitos humanos e liberdades básicas. vel do Comandante-Geral da PRM se
Por serem as recomendações desa- afirma, sem que daí resultem quais-
tendidas ou parcialmente cumpri- quer responsabilidades, que “[nós
das, propicia-se a multiplicação dos
problemas práticos identificados no 4
Ver Informe Anual do Procurador-Geral
RGIM 2008, ainda que alguns reves- da República à Assembleia da República de
tidos de novos condimentos. 2010. Ver também a reportagem da visita do
Procurador-Geral da República à cadeia de
As detenções ilegais, o uso abusivo da máxima segurança da Machava, publicada
força e de armas de fogo por parte da no Jornal Notícias de 22 de Setembro de
2012.; e, ainda, o Relatório Anual Sobre
polícia (nalguns casos resultando em
Direitos Humanos 2009, publicado pela Liga
mortes) e as condições das cadeias Moçambicana dos Direitos Humanos.
são alguns dos principais problemas 5
Ver Jornal O País de 15 de Fevereiro de 2013.

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CIP-Governacao-Intregridade.indb 25 10/28/2013 4:53:57 PM


Governação e Integridade em Moçambique >> Problemas práticos e desafios reais

polícias] não obedecemos a nenhum contrariem os mais nobres valores


juiz, mas ao nosso regulamento”.6 humanos de solidariedade, igualdade
Com estas palavras, o Comandante- e amor ao próximo” (PARP, 2011-
Geral não pretende apenas afirmar 2014).
a autoridade da corporação, mas Em relação aos protocolos de coo-
também delimitar ou “instituir” uma peração, insistimos na ideia de que a
zona de excepção e de não-interven- adopção de medidas legislativas não
ção do poder judiciário, contribuindo, regule só o acesso aos estabelecimen-
deste modo, para a disseminação tos prisionais e centros de detenção
de uma cultura de não-aplicação da por parte de organizações da socieda-
Constituição e demais leis do Estado. de civil credenciadas. O desafio reside
Os próprios membros da corporação em prever também sanções para os
acabam por ser vítimas de violações casos de recusa infundada do acesso,
de direitos humanos, como aconte- assim contribuindo para o alargamen-
ceu com o caso mediatizado de um to do serviço público de denúncia e
polícia agredido fisicamente pelos encaminhamento das violações de
colegas na 1ª Esquadra da PRM da direitos humanos.
cidade de Nampula, alegadamente
porque pediu dispensa para levar o Um outro desafio é a necessidade de
filho ao hospital.7 alargar os protocolos para outras insti-
tuições, incluindo as organizações da
sociedade civil que actuam em áreas
Novos desafios específicas, como a defesa dos direitos
colectivos e difusos (recursos natu-
O próprio Governo, ao identificar os
rais, ambiente, planeamento urbano,
principais desafios da área da gover-
património cultural, consumo, etc.).
nação, afirma que “o respeito e pro-
Isto parece-nos importante sobretudo
tecção dos direitos humanos requer
no actual contexto da corrida aos
do Estado e da sociedade civil maior
recursos naturais e minerais em que
acutilância na consolidação dos me-
o reassentamento das comunidades
canismos institucionais e informais,
nem sempre acautela os respectivos
visando desencorajar actos de violên-
direitos económicos e sociais, como
cia de qualquer natureza, tráfico de
revela o caso de Cateme (Moatize,
seres humanos e todas as práticas que
Tete).
6
Declarações feitas a propósito do chamado
Em relação às penas alternativas à
“caso das armas de Nacala”. Sobre este caso, ver prisão, é necessária a introdução de
Jornal O País de 01 de Maio de 2012. medidas legislativas e sócio-organiza-
7
Jornal O País de 21 de Agosto de 2012.

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Direitos Humanos e Liberdades Básicas

tivas complementares para que sejam determinados valores e bens


aplicadas de forma eficaz e com êxi- jurídicos, de modo a ampliar
to. Entre os desafios destacamos: as possibilidades de se en-
~~ A regulamentação e dotação contrarem soluções de tutela
de condições de funciona- jurídica fora do sistema penal;
mento ao Serviço Nacional de ~~ A valorização das instâncias
Alternativas Penais (SNAP); comunitárias de resolução de
~~ A necessidade de assegurar conflitos, actuando e regula-
a articulação do SNAP com mentado a Lei dos Tribunais
as demais instituições e ini- Comunitários (Lei n.º 4/92,
ciativas de implementação de de 6 de Maio), em especial no
políticas públicas nacionais, que respeita às competências,
especialmente nas áreas do selecção, remuneração e for-
trabalho, educação, formação mação dos juízes, prestação de
profissional, saúde e seguran- contas e apetrechamento, até
ça social; porque na proposta de revisão
do Código Penal propõe-se
~~ A necessidade de criar con- que se lhes reconheça compe-
sensos sólidos e alargados na tência para aplicar medidas
sociedade sobre os valores que sócio-educativas;
não são dignos de reprovação
penal, dando substância práti- ~~ A introdução de uma cultura
ca à doutrina do direito mínimo judiciária através das acções
segundo a qual o direito penal de formação dos magistrados e
intervirem exclusivamente outros actores judiciários que,
para a protecção de bens ju- orientando-se pela primazia
rídicos essenciais necessários da dignidade humana, explore
para a livre realização da todas as possibilidades para
personalidade de cada um e assegurar a re-socialização dos
para o desenvolvimento das delinquentes e a promoção da
sociedades, devendo aplicar- paz;
se apenas nos casos em que ~~ O alargamento da educação
outros instrumentos de tutela jurídica dos cidadãos, de modo
jurídica se revelem insuficien- a incluir questões relaciona-
tes ou inadequados; das com a importância das
~~ A reconceptualização da medidas alternativas à prisão,
(in)disponibilidade de e o papel das comunidades

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Governação e Integridade em Moçambique >> Problemas práticos e desafios reais

na prevenção e combate ao iv) Assinatura de protocolos de


crime, contribuindo, assim, cooperação entre o IPAJ e
para a apropriação popular do organizações da sociedade
programa. civil que lutam pela defesa de
direitos colectivos e difusos;
v) Instituição de um regime de
Novas Recomendações
“arquivo aberto”, contendo
Dado que os avanços em relação às informação relevante sobre
condições ou pressupostos necessá- a estatística da actividade da
rios para fortalecer a protecção dos polícia (volume, tipologia e
direitos humanos e liberdades básicas destino dos casos) e dos ór-
são bastante limitados, não só reafir- gãos judiciários.
mamos as recomendações avançadas
no RGIM 2008, como acrescentamos
cinco áreas prioritárias de interven-
ção:
i) Colocação de magistrados do
ministério público e de juízes
da instrução (em regime de
turnos, durante todo o dia)
junto das esquadras de polícia
e outros centros de detenção
de modo a evitar arbitrárias
privações de liberdade, assim
como para reduzir o tempo
que separa a detenção da li-
berdade provisória;
ii) Formação continuada dos
agentes policiais em matéria
relativa aos direitos humanos
e liberdades básicas;
iii) Incorporação de matérias re-
lativas aos direitos humanos,
liberdades básicas e penas
alternativas à prisão na forma-
ção de magistrados e outros
actores judiciários;

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CIP-Governacao-Intregridade.indb 28 10/28/2013 4:53:57 PM


Capítulo 3 i) Designação dos membros da
sociedade civil para a Comissão
Nacional de Eleições (CNE)
Governação e feita por uma comissão criada
Financiamento Eleitoral pela Assembleia da República
(AR);
Zefanias Matsimbe ii) Revogação do artigo 186 (1) da
Lei 7/2007 sobre as condições
Em democracias multipartidárias, a de nulidade de votação;
integridade, a transparência e a im- iii) Promoção de amplo debate so-
parcialidade são alguns dos princípios bre o processo de apuramento
basilares em processos eleitorais para dos resultados eleitorais (re-
líderes e representantes. Sem querer dução de etapas e garantias
minimizar o papel dos outros inter- de transparência em todas as
venientes em processos eleitorais, há fases);
que destacar o papel dos órgãos de
iv) Introdução de um dispositivo
gestão eleitoral (OGE) na condução
legal que permita a reconta-
dos processos. Daí ser importante que
gem de votos em caso de ne-
mereçam a maior confiança para que
cessidade;
produzam resultados mais credíveis e
v) Revisão do artigo 35 (1) da Lei
menos conflituosos.
7/2007 sobre proibição ou li-
O relatório de 2008 analisou a “go- mites de contribuição de cida-
vernação e financiamento eleitoral” dãos estrangeiros e de ONGs
com enfoque em três áreas-chave que estrangeiras a partidos políti-
podem definir a legitimidade dos pro- cos concorrentes e candidatos
cessos eleitorais, nomeadamente i) o presidenciais;
quadro legal e institucional que regula
vi) Implementação rigorosa da
a institucionalização dos OGE, mais
obrigatoriedade de publicação
particularmente a sua composição
de fontes de doações (tipo e
e funcionamento; ii) o processo de
montante) dos partidos políti-
apuramento dos resultados eleitorais;
cos e criação de um organismo
e iii) o financiamento eleitoral.
estatal específico para moni-
Da análise dos problemas práticos torar actividades dos partidos,
e desafios reais constatados nas três incluindo o financiamento po-
áreas de governação eleitoral, o re- lítico.
latório identificou as seguintes áreas
prioritárias de intervenção:

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CIP-Governacao-Intregridade.indb 29 10/28/2013 4:53:58 PM


Governação e Integridade em Moçambique >> Problemas práticos e desafios reais

Como forma de dar continuidade ao ou comissões eleitorais de cidades


trabalho iniciado na edição anterior, (CECs) era por cooptação pelos
o presente capítulo analisa até que membros designados pelos partidos
ponto estas recomendações foram políticos, a nova lei fixa que as pro-
seriamente tomadas em conta, e postas de candidaturas de membros
quais os novos problemas práticos e da sociedade civil para (CPEs) são
desafios reais que surgiram a seguir apresentadas à CNE e para as CDEs
ao primeiro relatório. ou CECs à respectiva CPE. Portanto,
houve algum avançou neste aspecto
institucional.
Quadro Legal, Institucional e
Aspecto preocupante é que a presença
de Políticas Públicas
da sociedade civil na CNE reduziu de
O cumprimento das recomendações 8 para 3 representantes. Se, no relató-
feitas no relatório de 2008 apresenta rio anterior, dissemos que o facto de a
um quadro misto nas três áreas de CNE ser constituída maioritariamen-
governação eleitoral em análise. te por membros provenientes da socie-
Numa nota positiva, a Assembleia da dade aumentava a confiabilidade dos
República (AR) acolheu a recomen- OGE perante a sociedade moçambi-
dação da necessidade de mudanças cana, este ganho não foi capitalizado.
no mecanismo de designação dos A persistente desconfiança entre os
representantes da sociedade civil para principais contendores políticos levou
os OGEs. Como fizemos referência a este retrocesso. A CNE volta a ser
no relatório de 2008, a legislação claramente dominada por represen-
anterior era omissa em relação ao me- tantes de partidos políticos, sendo 5
canismo de designação dos membros da FRELIMO, 2 da RENAMO e 1
provenientes da sociedade civil. À luz do MDM. A grande novidade é a re-
da nova Lei Nº 6/2013, recentemente presentação do Conselho Superior da
aprovada, o processo de selecção dos Magistratura Judicial por 1 Juiz, e do
representantes da sociedade civil para Conselho Superior da Magistratura
a CNE é conduzido por uma comis- do Ministério Público por 1 Procura-
são ad hoc criada pela Assembleia dor, o que totaliza 13 vogais da CNE.
da República. Mais ainda, contraria- Apesar de a lei ter sido aprovada, ela
mente à lei anterior que estabelecia constitui objecto de conflito entre a
que a indicação dos representantes FRELIMO e a RENAMO, com esta
da sociedade civil para as comissões última força a exigir paridade na
provinciais de eleições (CPEs) e co- designação dos membros dos dois
missões distritais de eleições (CDEs) partidos políticos. Dada esta falta de

30

CIP-Governacao-Intregridade.indb 30 10/28/2013 4:53:58 PM


Governação e Financiamento Eleitoral

acordo, a RENAMO ainda não indi- Um outro ganho resultante das


cou os seus membros para integrarem recomendações do relatório anterior
a CNE que já está em funcionamento, é a eliminação do controverso artigo
apesar de incompleta. 85 da Lei 7/2007 que estabelecia
que, em caso de discrepância entre o
número de boletins de voto existentes
Apuramento Eleitoral nas urnas e o número de votantes,
No concernente ao apuramento eleito- valia, para efeitos de apuramento, o
ral, o relatório de 2008 apontava que, número de boletins de voto existentes
nas urnas, se não fosse maior que o
desde as primeiras eleições multiparti-
número de eleitores inscritos.
dárias, a questão de transparência no
apuramento foi sempre problemática, Sobre as excessivas etapas no apura-
o que levava os concorrentes a duvi- mento dos resultados (apuramento
darem dos resultados oficiais. Prin- parcial, apuramento distrital ou de
cidade, apuramento provincial e apu-
cipais problemas incluem (i) falta de
ramento geral) esta recomendação foi
transparência no funcionamento dos
praticamente ignorada. O mecanismo
OGEs, particularmente a CNE; (ii) de apuramento continua pesado.
tomada de decisões públicas (como é Apenas um dado novo trazido é que
o caso da “correcção” de editais) sem as CDEs ou CECs já não decidem
fundamentos técnicos; (iii) burocracia sobre os boletins de voto em relação
excessiva no processo de apuramento; aos quais tenha havido reclamação ou
(iv) excessivos passos de apuramento protesto, nem verificam e reapreciam
(do apuramento parcial até ao geral); os boletins considerados nulos, ca-
(v) falta de disponibilização de infor- bendo esta responsabilidade à CNE.
mação sobre resultados parciais nas Os votos nulos foram uma questão
várias fases de apuramento eleitoral; disputada em eleições anteriores pelo
facto de serem subsequentemente
(vi) princípios conflituosos sobre a
requalificados nos apuramentos pro-
nulidade da votação; e (vii) falta de
vincial e nacional, com potencial para
um articulado legal que preveja a re- alterar os resultados finais.
contagem de votos em casos de perda
Uma outra melhoria em relação aos
e/ou dúvidas sobre a originalidade
problemas levantados no primeiro
dos editais.
relatório, no concernente ao quadro
Em seguimento às recomendações legal, é a abertura do processo de
do relatório anterior, a AR retirou apuramento aos observadores, jorna-
o controverso artigo 186 (1) da Lei listas e mandatários dos partidos ou
7/2007 sobre as condições de nulidade coligações concorrentes e candidatos.
de votação. Isto abre espaço para a Segundo a nova legislação, estes
minimização de conflitos eleitorais. intervenientes podem assistir aos

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Governação e Integridade em Moçambique >> Problemas práticos e desafios reais

trabalhos de apuramentos parcial, eleitoral era permissivo. Desafios


distrital ou de cidade, provincial e ge- apontados incluíam (i) o não estabele-
ral. Inclusive, estes podem apresentar cimento pela lei de limites de montan-
reclamações, protestos ou contra pro- tes que os partidos podem receber de
testos sobre os quais a CDE ou CEC, doações; (ii) a não declaração efectiva
CPE e CNE deliberam. Esta abertura pelos doadores e pelos recipientes do
à observação inclui a fase de requalifi-
tipo e montante das doações recebi-
cação, pela CNE, dos boletins de voto
das ou feitas; (iii) a falta de uma ins-
reclamados ou protestados, algo que
era antes feito a portas fechadas. tituição estatal específica para moni-
torar o financiamento político; e (iv)
Comparativamente ao relatório an-
o fraco mecanismo de prestação de
terior, pelo menos no papel, houve
contas do financiamento pelos parti-
grandes mudanças com vista a garan-
tir maior transparência nos processos dos concorrentes e candidatos.
eleitorais. A nova legislação eleitoral Do último relatório até hoje pouco ou
já obriga a CNE a publicar, no seu quase nada mudou. A nova legislação
sítio de Internet, os dados da sua eleitoral continua ainda silenciosa
actividade, deliberações, resoluções, em vários dos problemas levantados.
estudos, dados do recenseamento e A nova legislação deixa ainda quase
votação e outros que devam ser do
desregulado o financiamento privado,
conhecimento público1. No relatório
uma vez que abre espaço para cidadãos
anterior, referimos que, em outras
democracias, os resultados parciais nacionais e estrangeiros financiarem
eram disponibilizados pela Internet, campanhas de partidos políticos,
como forma de garantir maior trans- sem nenhum limite de montantes.
parência e aumentar os níveis de Os partidos políticos também podem
confiança no processo eleitoral. usar todos os recursos ao seu dispor
Sobre a terceira recomendação nesta para fazerem campanha eleitoral sem
área, atinente à necessidade de esta- nenhum limite. Esta lacuna é grave
belecimento de um dispositivo legal porque, num país com mecanismos
que abra espaço para a recontagem de de controlo e prestação de contas
votos em casos de perda e/ou dúvi- pouco eficientes, abre espaço para
das sobre a originalidade dos editais, financiamentos eleitorais de fontes
nada foi feito. ilegais e até criminosas. E mais, ao
deixar que cada partido gaste tudo
Financiamento Eleitoral o que pode, cria um desequilíbrio
O relatório de 2008 referia que o na competição entre os partidos e
quadro legal sobre o financiamento candidatos que têm mais e os que têm
menos.
1
Artigo 68 da Lei 6/2013.

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Governação e Financiamento Eleitoral

Nada mudou para responder à reco- Problemas Práticos e Desafios


mendação do relatório anterior sobre Reais
a necessidade de publicação de fontes
de receitas e doações. Esta fragilidade Engenharia Institucional
significa que o perigo de interligações
Embora comparativamente aos
promíscuas entre partidos e candida-
resultados do primeiro relatório, o
tos presidenciais e interesses empre-
novo quadro legal e institucional
sariais, incluindo empresas públicas,
apresente algumas melhorias, ainda
mantém-se. O problema aqui não é
persistem fragilidades reportadas no
a falta de legislação, mas sim a sua
primeiro relatório que ainda têm o
deficiente implementação.
potencial de afectar a credibilidade e
Do relatório anterior para cá, também integridade da governação eleitoral.
nenhuma instituição estatal foi criada
A máquina eleitoral continua bas-
para monitorar o financiamento po-
tante pesada e onerosa. O legislador
lítico, incluindo a fiscalização para a
ignorou a proposta avançada pela so-
correcta utilização do financiamento
ciedade civil de eliminação das CPEs
público, e a utilização indevida dos
e de CDEs ou CECs e a sua substi-
recursos públicos. A CNE, órgão
tuição por Delegados ou Comissários
encarregue de velar pela prestação de
provinciais e distritais da CNE. As
contas dos partidos e candidatos, tem
CPEs e CDEs ou CECs ainda coexis-
se mostrado permissiva. A recomen-
tem com o STAE a nível provincial,
dação colocada no relatório anterior
distrital ou de cidade, o que não se
para se criar uma instituição vocacio-
justifica. O problema agrava-se ainda
nada para a fiscalização financeira foi
pela falta de clareza sobre as funções
completamente ignorada pelo legisla-
das CPES e de CDES ou CEC e os
dor.
STAE Provincial e de distrito ou cida-
Um único aspecto que indica alguma de. Este é o problema prático que exi-
melhoria no financiamento eleitoral é ge contínua reflexão, principalmente
o facto de a nova lei já fixar o prazo pelo legislador.
para o desembolso do financiamento
A nova lei da CNE, a Lei 6/2013, em
eleitoral. O prazo é de 21 dias antes
grande parte representa um retrocesso
do início da campanha eleitoral, o que
aos alcances que organizações da so-
permite melhor gestão deste financia-
ciedade civil nacional, comunidade in-
mento pelos receptores. Nas eleições
ternacional e observação eleitoral ha-
anteriores, por vezes, os fundos eram
viam conseguido anteriormente para
disponibilizados mesmo depois de a
que a CNE fosse maioritariamente
campanha eleitoral ter iniciado.

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Governação e Integridade em Moçambique >> Problemas práticos e desafios reais

composta por membros provenientes sociedade civil. Acreditemos que, de


da sociedade civil. No figurino actual facto, regredimos 20 anos para OGEs
dos 13 membros, apenas 3 serão partidarizadas. Este é um problema
provenientes da sociedade civil. Isto prático que certamente vai afectar os
tem implicações práticas muito im- próximos pleitos eleitorais.
portantes. Todo o clima de confiança A nova lei mantém o artigo sobre
que se havia criado à volta dos OGEs a necessidade de recrutamento de
ficará comprometido e o nível de que- elementos tecnicamente habilitados
relas internas nos OGEs a todos os (principalmente em períodos de re-
níveis vai agudizar-se. O Parlamento censeamento e eleições), com base
ignorou não só a proposta de despar- em concurso público de avaliação
tidarização da CNE, mas também a curricular. Mas a preocupação reflec-
redução do seu tamanho. O Instituto tida no relatório anterior prevalece:
Eleitoral para Democracia Eleitoral até que ponto esta obrigação legal
em África (EISA), por exemplo, será efectivamente cumprida para
propunha a redução de membros da maior credibilidade e transparência
CNE de 13 para 5 a 7. dos OGEs?
Comparativamente à realidade de-
tectada no relatório transacto, a nova
legislação minimiza os problemas Apuramento Eleitoral
que caracterizavam o processo de Do relatório transacto para cá são
designação dos membros da socie- visíveis as mudanças operadas para
dade civil para as CPES e CDEs por melhorar a transparência e credibili-
cooptação partidária, mas não retira dade dos processos eleitorais e evitar
por completo a possível interferência fraude ou desconfianças. O problema
dos partidos políticos, uma vez que prático que se pode antever aqui é a
a CNE e as CPEs são compostas deficiente implementação das medi-
maioritariamente por membros pro- das tomadas.
venientes de partidos políticos. Per- Em alguns aspectos, a nova legislação
siste ainda o espectro de os partidos ainda apresenta lacunas. Por exem-
políticos se infiltrarem na sociedade plo, a Lei 6/2013 impele a CNE a pu-
civil para depois se candidatarem aos blicar toda a informação, mas deixa
OGEs, como a situação exposta na alguma ambiguidade ao dar à CNE
edição anterior em que antigos parla- o poder de decisão na definição de
mentares e outras personalidades, que informação pública. A implementa-
já haviam ocupados cargos político ção efectiva desta medida está presa
-partidários clamavam representar a à vontade da CNE. Esta lacuna abre
espaço para o habitual secretismo que

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Governação e Financiamento Eleitoral

caracterizou as anteriores CNEs. E Áreas Prioritárias de


mais ainda, não há nada na lei que Intervenção e Reforma
exija que a publicação de informação
considerada pública seja em tempo Quadro Legal
útil.
A nova legislação suprime aspectos
preocupantes apresentados no pri-
Financiamento Eleitoral meiro relatório, como, por exemplo,
a contrariedade sobre a nulidade de
Como já foi anteriormente referido,
votação e a requalificação dos votos.
esta parte do relatório é a que pouco
Contudo, ainda deixa lacunas e vários
registou progressos. Todos os proble-
desafios, incluindo a questão da com-
mas levantados no relatório anterior
posição da CNE e do financiamento
continuam prevalecentes.
dos partidos políticos. Por isso, nesta
Queremos enfatizar aqui três proble- edição repisamos as seguintes reco-
mas práticos que não foram levanta- mendações:
dos no primeiro relatório: i) o facto de
~~ A introdução no figurino
a CNE ser a entidade responsável pela
institucional eleitoral de um
definição de critérios de distribuição
mecanismo que permita a re-
de financiamento eleitoral público,
contagem de votos em caso de
e muito particularmente, ii) o facto
necessidade, por exemplo, em
de a CNE ser a entidade responsável
casos de perda de editais;
pela prestação de contas pelos parti-
dos concorrentes e candidatos. Este ~~ O financiamento privado deve
é ainda um grande problema que vai merecer maior atenção. Os
afectar os processos eleitorais porque recipientes de financiamento
a CNE já se mostrou pouco efectiva. privado para fins eleitorais
Para além de não ser uma instituição devem ser efectivamente com-
com vocação para a gestão financei- pelidos a declarar publicamen-
ra, a CNE está mais preocupada com te as fontes e montantes de
resultados eleitorais e menos com a financiamento recebido, para
transparência e prestação de contas os desencorajar a usar fontes
do fundo do Estado alocado aos par- ilegais que possam perigar
tidos políticos e candidatos para fins uma competição democrática
eleitorais. saudável.
Novas recomendações incluem:
~~ A introdução de dispositivos
legais para obrigar os partidos

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Governação e Integridade em Moçambique >> Problemas práticos e desafios reais

políticos a submeterem rela- CPEs, CDEs e CECs devem


tórios regulares de funciona- ser substituídas por individua-
mento e contas elaboradas lidades designadas pela CNE
por auditores independentes as quais fariam a supervisão
especializados; do trabalho do STAE a cada
~~ O estabelecimento de limites nível, podendo, em caso de
de montantes que os partidos impedimento, delegar a res-
concorrentes e candidatos ponsabilidade ao representan-
podem gastar em campanhas te do STAE local (provincial,
eleitorais; distrital ou cidade).

~~ A clara definição da informa-


ção que a CNE deve publicar,
principalmente durante o apu-
ramento, e também o período
em que essa informação deve
ser publicada.
Sobre o figurino institucional, real-
çamos a recomendação levantada no
relatório anterior para a necessidade
de criar um organismo permanente
para a monitoria e fiscalização do
financiamento político que liberte a
CNE das responsabilidades de regu-
lamentação e distribuição dos fundos
públicos e controle de prestação de
contas pelos partidos políticos.
Novas recomendações incluem:
~~ A redução do tamanho da
CNE para 7 vogais, seleccio-
nados através de um concurso
público, tendo como critério
as qualificações e experiência
profissional;
~~ A redução do tamanho da má-
quina dos OGEs. Para isso as

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Capítulo 4 económica, associada à limitada ca-
pacidade tributária, assim como ao re-
duzido índice de transferências fiscais
Governação do Estado para as autarquias locais. A
Local e Relações grande preocupação prendia-se com
a modificação das leis que regiam as
Intergovernamentais
transferências do governo central que,
Nobre Canhanga inicialmente, situava as transferências
num intervalo entre 1,5% a 3% para
um parâmetro de 1,5.
Governação local e relações inter-
governamentais compreende uma O relatório recomendou o aprofun-
análise em torno da organização do damento, a celeridade e a promoção
Estado a nível local, dos recursos e ca- da descentralização fiscal. Reco-
pacidades existentes, das oportunida- mendou a transferência de fundos
des para a participação comunitária e dos sectores agrícola, das estradas,
dos mecanismos de articulação com o água, infra-estruturas educação,
governo central, incluindo um exame saúde, para os escalões provincial,
das relações com o governo central distrital e autárquico. Instou-se que
e/ou provincial. Em Moçambique, deveriam ser transferidas funções e
o complexo cenário institucional recursos para os governos locais, e
dos governos locais é influenciado que deveria haver harmonização dos
pelo processo histórico, estrutural e impostos nacionais e das autarquias
constitucional e garante preferência locais, assim como a necessidade da
política pelo controlo excessivo dos capacitação das autarquias locais nas
níveis locais. áreas de arrecadação e administração
tributária. Para isto, era necessário
mobilizar recursos locais, alargando
Sobre as recomendações do
a base tributária e, ao mesmo tempo,
RGIM 2008 elevar as transferências fiscais do nível
Em 2008 mencionou-se a impor- central para o local, transformando os
tância da partilha de recursos como distritos em unidades orçamentais, o
factor essencial para o fortalecimento que daria ímpeto ao processo de des-
da governação local e melhoria do centralização.
equilíbrio das relações intergover- Em que medida as recomendações
namentais. Na altura, as autarquias foram seguidas? Ao nível dos ór-
locais apresentavam uma situação gãos do poder local houve recuos e
financeira débil, devido à fraca base progressos. Os dados reveladores de

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Governação e Integridade em Moçambique >> Problemas práticos e desafios reais

que o Governo transfere para as au- Locais (CCL). Entretanto, estes fora
tarquias locais um máximo anual de não se tornaram representativos e
0,9%, e não 1,5% como previsto na participativos. A lógica e as estruturas
lei, são indicadores de que existem que perpetuam a centralização e a
recuos no processo. Ainda se verifica exclusão mantêm-se sempre presentes
o descompasso entre a transferência no seu funcionamento.
de recursos e competências dos níveis As recomendações formuladas em
central para o local. O descompasso 2008 não foram atendidas. Uma pro-
é interpretado como inobservância posta de Política e Estratégia de Des-
do princípio estabelecido na teoria da centralização (PED) foi preparada e
descentralização fiscal no qual a des- aprovada pelo Governo. Entretanto, a
centralização de finanças só pode ser PED não trouxe aspectos inovadores
consolidada quando acompanhada e catalisadores da promoção de uma
da descentralização de funções. cultura de governação inclusiva e co-
O RIGM 2008 recomendou a promo- laborativa entre os vários níveis admi-
ção, aceleração e aprofundamento da nistrativos.
descentralização fiscal, aumentando
o nível de transferências fiscais para
os governos locais, assim como Ponto de situação do quadro
apoiando-os no aumento da sua capa- legal, institucional e de
cidade de arrecadação de receitas. A políticas públicas
este propósito, nota-se que o Governo
A Lei 9/1996 institucionalizou o Po-
prosseguiu com (i) a transferência
der Local, e reafirmou a importância
para os municípios da consignação e
dos princípios da descentralização
da responsabilidade de cobrança do
e desconcentração, no contexto da
Imposto sobre os Veículos (vulgo Ma-
reorganização do Estado. A Lei
nifesto) e (ii) a previsão legal das re-
2/1997 definiu o quadro jurídico para
ceitas municipais do Imposto Pessoal
a implementação da descentralização
Autárquico e sua actual cobrança.
política. A Lei 8/2003 aperfeiçoou as
Também se recomendou o aperfeiçoa- bases institucionais para a materiali-
mento das reformas de representação zação da desconcentração. Nelas, são
política e dos sistemas e procedimen- estabelecidos princípios e normas de
tos eleitorais. Na área de planificação organização, competências e funcio-
e participação comunitária, regista- namento dos Órgãos de Poder Local
ram-se progressos no que diz respeito e dos Órgãos Locais do Estado (Pro-
ao estabelecimento e instituciona- víncia, Distrito, Posto Administrativo
lização dos Conselhos Consultivos e Localidade).

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Governação Local e Relações Intergovernamentais

Num período de 15 anos (1998- Com prazos muito apertados que de-
2013), o país teve 43 autarquias locais viam ser alcançados em 12 meses, o
circunscritas às capitais provinciais, processo de transferência de compe-
cidades e vilas. Das 68 vilas, somente tências não ficou concluído. O Gover-
10 alardeiam o estatuto de autarquias no prorrogou o período de vigência
locais. A transformação dos Postos do Decreto 33/2006 para um prazo
Administrativos em autarquias locais indeterminado (Decreto 58/2009).
é muito mais lenta. Estima-se o A Lei 1/2008 aperfeiçoa o sistema
surgimento de novas autarquias locais tributário autárquico, transferindo
a partir das vilas, no quinquénio 2010- novos impostos para a gestão
2014. Até ao momento, nenhum posto autárquica: imposto autárquico de
administrativo transitou à categoria veículos, imposto autárquico de
de Autarquia Local. Seguindo este SISA, assim como sobre as tarifas e
ritmo lento, o país necessitará de taxas pela prestação de serviços ao
quase meio século para transformar nível local. Esta lei reduz o limite das
as vilas e postos administrativos transferências do governo central para
em Autarquias Locais. A Política e as autarquias locais, passando de um
Estratégia de Descentralização não máximo de 3% anuais (anteriormente
estabelece as metas para a conclusão estabelecidos na Lei 11/1997), para
da autarcização em Moçambique, o um limite máximo de 1,5% das receitas
que deixa um vazio na busca de metas fiscais (actualmente estabelecido na
para o processo. Lei 1/2008). No quadro da provisão
Através do Decreto 46/2003, o Go- de serviços públicos, as autarquias
verno definiu os procedimentos de serviram-se do Decreto 54/2005 que
transferência de funções e compe- depois de revogado, deu lugar ao
tências dos Órgãos do Estado para Decreto 15/2010 que regulamenta
as Autarquias Locais, no âmbito das o processo de Contratação de
atribuições enumeradas no artigo 6 da Empreitada de Obras Públicas,
Lei 2/97. O Decreto 33/2006, por seu Fornecimento de Bens e Prestação de
turno, estabelece o quadro de transfe- Serviços ao Estado.
rência de funções e competências dos A Lei 5/2007 estabelece o regime ju-
Órgãos do Estado para as Autarquias rídico-legal para a implementação das
Locais, no âmbito das atribuições1. Assembleias Provinciais, cujas elei-
ções se realizaram em Dezembro de
1
Através deste instrumento, foi estabelecido
que é da competência dos órgãos autárquicos comunicações, ii) estradas; iii) educação, cultura e
o planeamento, a gestão e realização de acção social; iv) saúde, v) ambiente e saneamento
investimentos nos domínios dos: i) transportes e básico; e vi) indústria e comércio.

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Governação e Integridade em Moçambique >> Problemas práticos e desafios reais

2009 e a sua institucionalização ocor- que aprovaram os estatutos orgânicos


reu nos princípios de 2010. Na tela das secretarias provinciais, distritais e
das relações de poder institucional, as as dos gabinetes do governador e do
Assembleias Provinciais são órgãos administrador. Entretanto, apesar dos
de representação democrática, cujo avanços, existem enormes retrocessos
poder deriva de um processo eleitoral e desafios com os quais o processo
baseado no princípio de representa- de governação local e as relações in-
ção proporcional, e com um mandato tergovernamentais terão de lidar nos
de cinco anos2. Deste processo, pro- próximos anos.
vém a legitimidade democrática, que
a habilita a abençoar o orçamento e
programa do governo provincial e Novos desafios e problemas
vigiar as actividades desenvolvidas práticos
pelos respectivos governos provin-
ciais. Entretanto, em termos efectivos, Politica e Estratégia de
estas competências são anuladas no Descentralização
contexto de uma frágil separação de A Lei 8/2003 (LOLE) e o Decreto
poderes e excessiva partidarização 11/2005 que aprova o Regulamen-
das instituições públicas e do Estado. to da Lei dos Órgãos Locais do Es-
Para além dos instrumentos norma- tado, a Lei 1/2008, que aperfeiçoa o
tivos que configuraram as metamor- sistema tributário autárquico, e de-
foses legais e da governação local mais políticas e estratégias demons-
e relações intergovernamentais em tram progressos no quadro legal que
Moçambique, no âmbito da opera- orienta a descentralização. Entretan-
cionalização dos Órgãos Locais do to, aqueles instrumentos normativos,
Estado, avanços foram verificados não tocam com profundeza os secto-
com a aprovação do Decreto 6/2006 res fundamentais (emprego, transpor-
(que define a estrutura tipo da orgâni- te, vias de acesso, assistência social,
ca do governo distrital e seu estatuto mudanças climáticas e muitos outros
orgânico) e o Decreto 5/2006 (que serviços importantes) que preocupam
atribui aos governadores provinciais a vida dos residentes nas sub-unida-
e aos administradores distritais com- des territoriais do país. Esta acanhada
petências no âmbito da gestão de capacidade de resposta na provisão
recursos humanos). Progressos foram de bens e serviços básicos estimula
dados também com as Resoluções efeitos adversos na organização dos
3/2006, 4/2006, 5/2006 e 6/2006 governos locais e excita a ocorrência
de movimentos de contestação nos
2
Cf: CRM, artigo 142 e artigo 1 da Lei 5/2005.

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Governação Local e Relações Intergovernamentais

centros urbanos do país. As manifes- que lhes estiverem cometidas. Estes


tações de 05 Fevereiro de 2008, de critérios abstractos requerem maior
01 e 02 Setembro de 2010 e de 15 de profissionalização e uma maior base
Novembro de 2012, devem ser anali- científica, que o Governo não tem
sadas dentro do paradigma das rela- melhorado nos últimos anos.
ções entre o espaço urbano e o rural Já em 2008, a falta de uma Política e
e do crescente desequilíbrio entre a Estratégia de Descentralização (PED)
demanda agregada de bens e serviços e, portanto, a não clarificação do pro-
públicos e uma carente capacidade cesso evolutivo da descentralização
de os governos locais responderem à em Moçambique, foi identificada
procura dos mesmos. como um dos maiores desafios da
A Lei 3/2008 garantiu que dez descentralização. Por isso, alimenta-
novas autarquias fossem instituídas ram-se incertezas quanto à intenção
em 2008, totalizando-se, assim, 43 do Governo de prosseguir com a des-
autarquias. O Plano Quinquenal do centralização de forma progressiva e
Governo (2009-2014) antevê uma estruturada. Por isso, reconhecia-se a
terceira geração de Autarquias Lo- importância da vontade política para
cais, durante o mandato corrente. O a elaboração da PED, instrumento
Ministério da Administração Estatal, que ajudaria a definir uma visão e
com apoio financeiro dos parceiros de missão de desenvolvimento dos go-
desenvolvimento, conduziu estudos. vernos locais e aperfeiçoar as relações
Uma proposta para 10 novas autar- intergovernamentais nas suas diversas
quias foi submetida e aprovada na dimensões (política, administrativa,
Assembleia da República. Entretanto, fiscal, económica e social). O primei-
não existem metodologias profissio- ro e importante passo foi dado com a
nalmente elaboradas e cientificamen- aprovação da Política e Estratégia de
te validadas para identificar novas Descentralização pelo Governo, em
autarquias. O artigo 5 da Lei 2/1997, Dezembro de 2012. No entanto, para
apresenta quatro factores para a indi- além da indefinição do instrumental
cação e criação de novas autarquias, e das abordagens metodológicas para
entre eles: a) factores geográficos, a sua implementação, a PED foi
demográficos, económicos, sociais, elaborada sob forte pressão político
culturais e administrativos; b) inte- -partidária e, em termos de conteúdo,
resses de ordem nacional ou local; c) não respondeu às recomendações
razões de ordem histórica e cultural; e específicas de 2008.
d) avaliação da capacidade financeira Nota-se na PED um défice no tra-
para a prossecução das atribuições tamento das questões relacionadas

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Governação e Integridade em Moçambique >> Problemas práticos e desafios reais

com a problemática da mobilidade Apesar de todos os investimentos


urbana e a provisão de bens e serviços aprovados para o reforço dos governos
sociais (saúde, educação, saneamen- locais, existem incertezas sobre a ca-
to, transportes urbanos). O conceito pacidade técnica, humana, financeira
de pobreza urbana (que os dados do e estratégica de os governos locais
IOF ajudaram a colocar no glossário aumentarem a qualidade dos serviços
político e económico nacional) não públicos locais, no contexto em que
foi acolhido com precisão na PED. se debatem com a escassez de recur-
Questões como assistência social e sos e um deficiente controlo interno.
mudanças climáticas, que afectam de Agrava este desafio a fragilidade das
forma transversal todos os esforços instituições locais em consolidarem
de consolidação da governação local a democracia num Estado onde o
e que agravam a vulnerabilidade dos governo central trata de forma dife-
grupos sociais ao nível local, não são renciada e sufoca as sub-unidades na-
consideradas na PED. À descentrali- cionais geridas por partidos políticos
zação de recursos sectoriais para os da oposição. Esta configuração, que
níveis locais e a articulação dos servi- não mudou nos últimos anos, deve ser
ços sociais básicos através de um pro- corrigida para optimizar a estrutura
cesso de descentralização participati- das relações político-institucionais
va, que reforçariam a consolidação da erguidas num contexto da diferencia-
democratização, da transparência e ção e da necessidade de construção
da accountability ao nível dos governos e consolidação dos governos locais e
locais, não encontram uma resposta das relações intergovernamentais.
estruturada na PED. Estes aspectos
alimentam a incerteza sobre a capa-
cidade de os municípios e distritos Descentralização Fiscal
aumentarem a qualidade dos bens e A base tributária própria das autar-
serviços públicos locais, no contexto quias continua inexpressiva, varian-
em que se debatem com a escassez do entre 50 e 200 meticais per capita,
de recursos humanos, financeiros e nomeadamente no que diz respeito
um deficiente controlo interno. Este à receita proveniente da tributação
desafio institucional confirma um de prédios e transacções de imóveis.
descompasso entre os pressupostos Em média, nos anos 2005-09, as au-
teleológicos da descentralização e tarquias locais usaram aproximada-
desconcentração e as relações inter- mente 25% do seu próprio potencial
governamentais em Moçambique. tributário. As despesas correntes con-
somem, em média, 65% das despesas

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Governação Local e Relações Intergovernamentais

totais, enquanto menos de 35% são capital provincial (mais Nacala Porto
alocados para despesas de capital (in- e Maxixe - Decreto 52/2006) criavam
vestimento, serviços)3. A capacidade uma situação de coabitação territorial
dos municípios de planificarem estra- e institucional.
tegicamente, adoptarem metodolo- Uma análise global das relações inter-
gias para alargarem a base tributária governamentais confronta-nos com
(principalmente as receitas próprias), vários retrocessos associados a uma
aumentarem a capacidade de mobi- forte politização dos governos locais.
lização de recursos ou controlarem As autarquias locais ressentem-se de
a gestão das receitas e despesas, não uma forte influência político-partidá-
melhorou. O excessivo controlo do ria que esvazia o pressuposto legal e
governo central sobre os níveis locais teórico da autonomia que elas devem,
continua. Por exemplo: o imposto legalmente, gozar. Um caso inédito
autárquico de veículo automóvel e o na administração moçambicana e que
imposto do SISA foram transferidos constitui um desafio aos pressupostos
para os municípios, mas continuam teóricos da tutela administrativa e da
sendo parcialmente cobrados pelo autonomia das autarquias, verificou-
governo central. Além disso, as trans- se quando, em 2011, três presidentes
ferências do governo central (FCA, de conselhos municipais (Quelimane,
FIIL) constituem o grosso das recei- Pemba e Cuamba) viram-se forçados
tas das autarquias (aproximadamente pelos seus partidos políticos, a renun-
60% das receitas totais). ciarem à posição que ocupavam. As
dinâmicas que anteciparam aquelas
Tutela Administrativa renúncias revelaram existir na tute-
la administrativa moçambicana um
O relatório de 2008 denunciava que a
nível de controlo hierárquico muito
tutela administrativa foi confundida
elevado e alguma interferência do
com a noção de controlo hierárquico
governo central (Ministério da Admi-
e interferência dos níveis centrais so-
nistração Estatal), do Governo Pro-
bre o governo local. A introdução da
vincial e do partido no poder sobre
figura do administrador distrital e re-
os governos locais. A interferência e
presentante do Estado nas autarquias
o controlo do governo provincial nas
locais cujas circunscrições territoriais
assembleias municipais e as dificulda-
coincidem com os limites de cidade
des que os municípios da Beira e Que-
limane (ambos sob gestão e liderança
3
Bernhard Weimer (Ed.), 2012, Moçambique: do MDM) têm na aprovação dos seus
Descentralizar o Centralismo. Economia Política, planos de actividades e orçamentos
Recursos e Resultados.

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Governação e Integridade em Moçambique >> Problemas práticos e desafios reais

pelas respectivas assembleias muni- a descentralização fiscal comprometa


cipais, anunciam baixos níveis de de- as metas do combate à pobreza no
mocracia e uma cultura institucional país.
frágil apresso da tutela administrativa Para melhor consolidar e alcançar os
moçambicana. propósitos da descentralização fiscal,
é necessário não reproduzir modelos
centralizados nos níveis locais. Tam-
Áreas prioritárias de
bém é necessário fragilizar a concen-
intervenção e reforma tração de poderes e recursos ao nível de
Política de descentralização Maputo, assim como tomar conta da
burocracia na forma de organização e
Recomenda-se a necessidade de ex- tramitação dos processos administra-
plorar melhores formas de articular tivos e financeiros. Por isso, esforços
os conteúdos da PED com os demais devem ser feitos para incentivar as
instrumentos do nível macro no qual reformas políticas e administrativas.
o Governo orienta as suas lógicas de É necessário reduzir o descompasso
actuação. entre a transferência de recursos e
competências, dos níveis central para
o local e manter o princípio teórico
Descentralização Fiscal
e prático de que a descentralização
Recomenda-se a necessidade de um de finanças só pode ser consolidada
maior compromisso do Governo quando acompanhada de melhorias
para com as finanças locais. Um tal no volume das receitas próprias atra-
compromisso passa pelo reforço da vés da cobrança dos impostos, e mais
autonomia local, alargamento da transferências de recursos do nível
base tributária, quer nos distritos, central para os distritos e municípios,
quer nos municípios. Recomenda- e reforçar a autonomia dos governos
se a correcção das distorções do locais.
princípio estabelecido na teoria da
descentralização fiscal no qual a
descentralização de finanças deve ser Tutela Administrativa
consolidada quando acompanhada É necessário assegurar uma melhor
de descentralização de funções4. compreensão teórica e conceptual da
A exclusão política e económica, noção de tutela administrativa e não
a politização dos processos devem confundi-la com a noção de contro-
merecer mais atenção, evitando que lo hierárquico e interferência do ní-
vel central sobre o governo local. É
4
Weimer, 2012.

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Governação Local e Relações Intergovernamentais

importante consolidar uma cultura


governativa com maior colaboração e
articulação institucional, minimizan-
do conflitos desnecessários que pos-
sam pôr em causa a noção de autono-
mia que se deve conferir aos governos
locais. É necessário acompanhar os
desafios da tutela administrativa no
contexto do surgimento de novas
oportunidades de desenvolvimento.

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Capítulo 5 execução orçamental, descurando as
de performance. Apenas uma auditoria
de performance foi realizada durante o
Oversight e Corrupção período (livro escolar de distribuição
gratuita referente ao ano de 2010).
Baltazar Jorge Fael
Em termos de cobertura, em 2008 o
Oversight e Corrupção compreende TA realizou 350 auditorias e em 2010
uma análise em torno do papel e das evoluiu para 600. O TA está num pro-
capacidades dos órgãos de “oversight” cesso de redução de tal número des-
e controlo da corrupção, como as de 2011, para cerca de 500 auditorias
comissões parlamentares, o Tribunal anuais, o que afasta esta instituição
Administrativo, a Inspecção-Geral do volume de auditorias recomenda-
de Finanças e o Gabinete Central de das internacionalmente para serem
Combate à Corrupção. realizadas durante um ano, que situa
em 75% do total das instituições au-
ditáveis. O TA justifica a verificação
Sobre as recomendações do de apenas 25% das contas do Estado
RGIM 2008 com o argumento de que realiza a
fiscalização prévia, através do Visto,
As mudanças operadas durante o
e que faz a supervisão permanente
período em análise, vêm, em parte,
da execução orçamental, através do
responder às recomendações da 1ª
acesso ao SISTAFE. Contudo, o TA
edição e as pressões da sociedade
privilegia uma amostra qualitativa e
civil que se seguiram no sentido de se
representativa de auditorias.
avançar com reformas profundas no
quadro legal e institucional até então Em relação à recomendação de me-
vigente, visando tornar o combate à lhorar a articulação entre a 3ª Secção
do Tribunal Administrativo (TA) e
corrupção mais eficaz.
o Ministério Público (MP), isto veio
a acontecer com a aprovação da Lei
Oversight 26/2009 e a consequente revogação
das leis 13/97, 14/97 e 16/97.
O RGIM 2008 recomendou alargar
o grau de cobertura das auditorias
do Tribunal Administrativo (TA) e Anti-Corrupção
introduzir auditorias de performance.
Ao nível do combate à corrupção,
O TA continua a privilegiar as audi-
o Gabinete Central de Combate à
torias que têm como finalidade a ve-
Corrupção (GCCC) teve as suas
rificação da legalidade dos actos de

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Oversight e Corrupção

competências acrescidas com a revi- desenvolvimento económico do país,


são da Lei Orgânica do Ministério onde se destaca o sector dos recursos
Público e Estatuto dos Magistrados naturais e indústria extractiva. Como
do Ministério Público (LOMP), atra- corolário desta realidade, foram exigi-
vés da Lei 14/2012, em linha com a das pela sociedade civil e implementa-
recomendação do primeiro relatório. das pelo Governo, medidas arrojadas,
O Pacote Legislativo Anti-Corrupção circunscritas ao reforço do quadro
(PLAC), por seu turno, inclui também legal e institucional do combate à
normas sobre a declaração de bens corrupção e que culminaram com a
que dão um papel-chave à GCCC na produção do “Pacote Legislativo An-
monitoria da mesma. ti-Corrupção - PLAC”.

Ponto de situação do quadro Oversight


legal, institucional e de O Tribunal Administrativo (TA) ficou
políticas públicas reforçado com a aprovação da Lei
26/2009, referente ao regime jurídico
O fenómeno da corrupção em
relativo à organização, funcionamen-
Moçambique tem vindo a conhecer
to e processo da 3ª Secção e que cria
desenvolvimentos que mostram que
os tribunais administrativos de nível
o mesmo não está a ser eficazmente
provincial. Com a entrada em vigor
controlado. Se, por um lado, se
da nova lei, o TA tem a obrigação
procura conferir maior robustez,
de enviar os relatórios concluídos e
qualidade e eficácia ao quadro legal
produzidos durante a preparação do
e institucional atinente a esta matéria,
relatório e do parecer sobre a Conta
por outro e em termos práticos, os
Geral do Estado, e que evidenciam
resultados não têm sido dos melhores
factos constitutivos de responsabili-
nos últimos quatro anos (2008 –
dade financeira para a apreciação do
2012).
Ministério Público (MP) e o devido
As reformas encetadas, designada- tratamento legal (e criminal, no caso
mente com a Estratégia Global da Re- de se detectarem indícios criminais).
forma do Sector Público na vertente
Esta medida vem colmatar uma lacu-
do combate à corrupção, não foram
na que existia no quadro do relacio-
suficientes para travar a percepção
namento entre o TA e o MP, em que
pública de que a corrupção está em
muitas situações suspeitas de configu-
crescendo, com destaque para casos
rarem ilícitos de natureza financeira
de tráfico de influências e conflitos
detectadas pelo TA não chegavam
de interesses em novas áreas do

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Governação e Integridade em Moçambique >> Problemas práticos e desafios reais

ao conhecimento do MP por inércia informações respeitantes a operações


dos respectivos magistrados junto económico-financeiras susceptíveis
do TA. Muitos desses casos apenas de consubstanciar actos de branquea-
terminavam com a responsabilização mento de capitais e outros crimes
financeira dos gestores públicos1. conexos”.
No que diz respeito à articulação com O GIFIM, no exercício das suas fun-
o SISTAFE, até finais de 2007, o TA ções, detectando indícios suficientes
não possuía terminais electrónicos da prática de actos de branqueamento
deste serviço. A partir de 2008, o TA de capitais ou de crimes conexos,
passou a ter acesso às dotações orça- deve propor ao MP a suspensão de
mentais de qualquer instituição públi- tais operações e o exercício da com-
ca e pode acompanhar a realização petente acção penal. É importante ter
das diversas operações financeiras. em conta que o GIFiM não exerce
Alem disso, realce vai para a entrada acção penal, apenas contribui para
em funcionamento do Gabinete de que o MP dê o respectivo impulso
Informação Financeira de Moçam- processual.
bique (GIFiM), amparado pela Lei A IGAE2, por outro lado, tem o
14/2007, e da Inspecção Geral Admi- objectivo de controlar a legalidade
nistrativa do Estado (IGAE) através dos actos administrativos praticados
do Decreto 12/2009, instituições que por órgãos e instituições públicas.
vêm auxiliar no controlo da corrup- O IGAE relaciona-se com a IGF e
ção. o Gabinete Central de Combate à
O GIFIM é uma unidade de inteli- corrupção (GCCC), sendo que, na
gência financeira que, tendo sido cria- sua actividade, detectando indícios da
da em 2007, apenas iniciou funções prática de actos de corrupção comu-
em Julho de 2011. A finalidade do nica ao GCCC e, sendo de natureza
GIFIM é combater actos ligados ao financeira, à IGF.
branqueamento de capitais e crimes
conexos, com as seguintes competên- Anti-Corrupção
cias: “...recolher, centralizar, analisar
No processo de reformas, que na
e difundir às entidades competentes as
sua maioria inicia em finais de 2007
e princípio de 2008, destaque maior
1
Vide Advocacia, Consultoria e Serviços, Lda
(2009). PARPA II – Relatório de Avaliação
de Impacto – Pesquisa sobre o Combate a 2
O IGAE tem as suas competências estabelecidas
Corrupção elaborado para o Ministério da à luz do Decreto n.º 60/2007, de 17 de
Planificação e Desenvolvimento (MPD), pp. Dezembro, como estrutura do Ministério da
31-33. Função Pública.

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Oversight e Corrupção

deve ser conferido à produção e e crimes conexos8. Há também que


submissão pelo Governo à AR, em destacar a LPP que estabelece regras
2010, do PLAC, que tem vindo a ser para a gestão de situações ligadas aos
paulatinamente aprovado. O pacote é conflitos de interesses, proibições e
constituído pelos seguintes projectos uma melhor regulamentação do ins-
de revisão: Decreto sobre o Procure- tituto jurídico da declaração de bens.
ment Público3; LOMP4; Código Penal
(CP) e Código de Processo Penal
Problemas práticos e novos
(CPP). Noutra vertente foram criadas
e aprovadas duas novas leis, designa- desafios
damente: de Protecção das Vítimas, Oversight
Denunciantes, Testemunhas, Decla-
No que se relaciona com o controle
rantes ou Peritos em Processo Penal5;
do legislativo aos actos de gestão dos
e a Lei de Probidade Pública (LPP)6.
fundos públicos, foi produzida a Lei
Com a revisão da LOMP, o GCCC 5/2007, de 9 de Fevereiro, que criou
passou a ter os seus poderes reforçados, as assembleias provinciais (só entra-
podendo acusar os crimes que inves- ram em funcionamento em 2010),
tiga7, como sejam: o enriquecimento com algumas das seguintes compe-
ilícito, tráfico de influências, peculato tências: fiscalização e controlo do
cumprimento do programa quinque-
nal do governo provincial; emissão de
3
Revisão aprovada pelo Decreto n.º 15/2010, de recomendações aos governos provin-
24 de Maio – Regulamento de Contratação de ciais; apreciação de informação dos
Empreitadas de Obras Públicas, Fornecimento governos provinciais acerca do estado
de Bens e Prestação de Serviços para o Estado
(que veio alterar o Decreto n.º 54/2005, 13 de
da execução do plano e orçamento
Dezembro). provinciais e fiscalização da execu-
4
Lei n.º 14/2012, de 8 de Fevereiro (veio alterar ção do plano e orçamento provincial
a Lei n.º 22/2007, de 1 de Agosto atinente à e apreciação do respectivo relatório –
mesma matéria).
balanço.
5
Lei n.º 15/2012, de 14 de Agosto - também cria o
Gabinete de Protecção à Vítima. No entanto, em nenhum momento, a
6
Lei n.º 16/2012, de 14 de Agosto – “Estabelece lei define as formas concretas de arti-
as bases e o regime jurídico relativo à moralidade
culação dos tribunais administrativos
pública e ao respeito pelo património público, por
parte do servidor público” – Lei de Probidade com as assembleias provinciais, no
Pública.
7
Ao abrigo do n.° 1 da Lei n.° 6/2004, de 17
de – Lei Anti-Corrupção – o GCCC só tinha 8
Para a punição dos comportamentos a que se
competências para acusar os crimes de corrupção faz referência, aguarda-se a aprovação da revisão
e de Participação Económica Ilícita do Código Penal.

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Governação e Integridade em Moçambique >> Problemas práticos e desafios reais

sentido de os tribunais administrati- se este não cumprisse com as reco-


vos, na sua actividade de controlo e mendações emanadas pelo TA, por
fiscalização, produzirem relatórios meio de uma moção de censura apro-
e pareceres sobre a execução orça- vada por maioria absoluta dos depu-
mental dos governos provinciais e tados em efectividade de funções.
das assembleias provinciais, no ano Como foi constatado no RGIM em
seguinte à produção das respectivas 2008, a IGF e o GCCC continuam
recomendações, instarem os executi- a encontrar barreiras no seu relacio-
vos provinciais a cumprirem com as namento, sendo a mais problemática
mesmas. ligada ao controlo político sobre os
Sobre o não cumprimento sistemático relatórios produzidos pela IGF. Isto
(pelo Governo) das recomendações é, os relatórios em causa só podem
produzidas pelo TA à CGE constata- ser submetidos ao MP ou ao GCCC
se que continua sem existir a neces- após sancionamento do Ministro das
sária articulação entre a AR e o Go- Finanças que poderá fazer juízos de
verno nesta matéria. Tratando-se de oportunidade, quando na posse dos
dois órgãos de soberania, a AR não mesmos, para o envio ou não.
tem a prerrogativa de obrigar o Go-
verno a cumprir com as recomenda-
Anti-Corrupção
ções produzidas. Contudo, dentro dos
deveres de colaboração institucional, A fraqueza do quadro legal anti-cor-
o Governo é obrigado a cumprir com rupção em Moçambique foi um dos
as recomendações que lhe são dirigi- aspectos destacados no 1° RGIM,
das, sob pena de perda de confiança, no sentido de que enfraquecia o
o que noutros contextos implicaria a combate aos actos de corrupção,
apresentação de moções de censura principalmente na vertente do tráfico
contra a sua actuação e que culmina- de influências, enriquecimento ilícito,
riam com a sua demissão, uma vez desvio de fundos e branqueamento
aprovadas. dos proventos da corrupção. Com a
submissão do PLAC à AR, o mesmo
No actual contexto constitucional, a
veio a servir de mote ao processo de
AR pode ser dissolvida se não aprovar
reformas profundas do quadro - legal
o programa do Governo em duas oca-
anti-corrupção. Há que destacar neste
siões. Face às situações recorrentes de
processo, o projecto de revisão do CP
incumprimento das recomendações
que prevê a criminalização e punição
do TA, dever-se-ia estabelecer um dis-
do enriquecimento ilícito, tráfico
positivo constitucional em que a AR
de influências, corrupção no sector
poderia provocar a queda do Governo

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Oversight e Corrupção

privado e a nova modalidade de cri- a estratégia comportava, o que tornou


minalização do peculato ou desvio de difícil mensurar o progresso na sua
fundos e bens do Estado. implementação10.
No que tange à definição de corrupção,
esta não sofreu qualquer alteração na Áreas prioritárias de
sua essência, sendo que a sua base intervenção e reforma
permanece na esteira do previsto no
CP em revisão. Pretende-se manter Oversight
os mesmos elementos estruturantes Uma das constatações retiradas
no que concerne ao entendimento aquando da produção do 1° RGIM
do que é corrupção no ordenamento foi a de que o TA vinha realizando a
jurídico moçambicano. sua actividade satisfatoriamente. No
No que se refere à EAC (2006 – entanto, nos últimos anos começa a
2010), no periódo coberto por este surgir uma percepção pública contrá-
2° RGIM, a mesma chegou ao fim ria, no sentido de que o desempenho
da sua vigência, sem que resultados deste órgão tem vindo a decrescer.
satisfatórios tenham sido alcançados. Continua ainda como preocupação o
Segundo a avaliação de meio-termo fraco nível de cobertura no que tange
da implementação do seu Plano de à realização de auditorias às contas
Acção iniciado em 2007 (um ano públicas. Portanto, esta é uma área
depois da aprovação da EAC), me- que deverá ser priorizada, no sentido
tade das actividades nele constantes de continuamente se caminhar para
não tinham sido realizadas e, no que o aumento do nível de cobertura
respeita às outras, mostrava-se difícil aconselhado, no sentido de abrange-
aferir o seu nível de execução9. Uma rem e com a regularidade necessária,
avaliação final da implementação da mais governos distritais, provinciais,
EAC nunca foi tornada pública pelo autarquias locais, empresas públicas
Governo e não se conhece a sua rea- ou onde o Estado tenha participação,
lização. É de realçar que não foi pro- o que convida a que os recentemente
duzido um plano de monitoria claro, criados tribunais administrativos
onde constasse uma linha de base criem capacidade para o efeito.
bem definida para os indicadores que Foi também recomendação produzi-
da no 1° RGIM, que o TA devia pri-
9
Vide Advocacia, Consultoria e Serviços, vilegiar continuamente a realização
Lda (2009). Avaliação da Implementação da de auditorias de performance, mesmo
Estratégia Anti-Corrupção (2006 – 2010):
Elaborado para a Unidade Técnica da Reforma
do Sector Público (UTRESP), pp. 35, Maputo. 10
Idem, p.p 51 e 53

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Governação e Integridade em Moçambique >> Problemas práticos e desafios reais

que selectivamente numa 1ª fase. No independência é apenas formal, se


entanto, o TA continuou a privilegiar tomarmos em atenção que o Director
as auditorias relacionadas com a ve- deste Gabinete é nomeado pelo PGR
rificação da legalidade dos actos de que, por sua vez, é nomeado pelo
execução orçamental, o que não con- Presidente da República (PR), que o
fere qualquer possibilidade da análise pode destituir do cargo sem necessi-
da qualidade dessa mesma execução dade da intervenção de outro órgão
nos aspectos da racionalidade econó- e, assim, indirectamente, pode o PR
mica, eficiência e eficácia, devendo condicionar a actuação do GCCC,
esta ser uma área que esta instância quando certos interesses estiverem
deve passar a prestar maior atenção. em causa.

Anti-Corrupção
Com o início da aprovação dos pro-
jectos de lei constantes do PLAC, em
2012, o desafio que se coloca é o da
implementação da referida legislação.
Por um lado, será o de verificar se os
órgãos do judiciário são suficiente-
mente equidistantes para aplicar a lei
sem olhar para os agentes que estejam
em causa e, por outro, se conseguem
resistir a pressões vindas de fora dos
órgãos para agirem num ou noutro
sentido. É que a reforma da legislação
em curso visa combater a grande
corrupção na vertente dos conflitos
de interesses, tráfico de influências,
enriquecimento ilícito, peculato e ma-
térias ligadas às declarações de bens,
em que os maiores prevaricadores
têm sido figuras ligadas à elite políti-
co – empresarial moçambicana.
Para tanto, o GCCC deve ser um
órgão verdadeiramente indepen-
dente. No actual quadro legal, esta

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CIP-Governacao-Intregridade.indb 52 10/28/2013 4:54:01 PM


Capítulo 6 Civil, de práticas transpa-
rentes de governação interna
(Manual de Procedimentos,
Sociedade Civil, Regulamento de Gestão de
Informação Pública e Conflitos de Interesses, etc);
iii) Descriminalização da difa-
Comunicação Social mação, para que seja possível
ampliar, sem muitos riscos, o
Ericino de Salema potencial poder fiscalizador
dos meios de comunicação
Sociedade Civil, Informação Pública social;
e Comunicação Social compreende iv) Aprovação de uma Lei do
uma análise em torno da legislação Direito à Informação, uma
vigente sobre regulação das activida- vez que, sem ela, o usufruto
des das ONGs e dos órgãos de comu- desse direito, constitucional-
nicação social, mecanismos de garan- mente consagrado, continua-
tia do acesso à informação pública rá uma miragem;
por parte dos cidadãos e outros me- v) Alteração dos mecanismos
canismos de participação popular na de designação dos Presi-
governação. dentes dos Conselhos de
Administração das estações
públicas de rádio e televisão,
Sobre as recomendações do
designadamente a Rádio Mo-
RGIM 2008 çambique (RM) e a Televisão
A primeira edição (2008) do Rela- de Moçambique (TVM), no
tório de Governação e Integridade sentido de se tornar manda-
em Moçambique avançou com cinco tório um concurso público de
recomendações, designadamente: avaliação curricular.
i) Urgência do estabelecimento Subsumindo as recomendações de
em Moçambique de um Có- 2008 ao que sucedeu nos últimos cin-
digo de Conduta que sirva de co anos, chega-se à conclusão de que,
“guia comportamental” para em termos rigorosos, quase todas elas
as Organizações da Socieda- foram desatendidas por quem de di-
de Civil; reito, havendo, num único caso (des-
criminalização da difamação), alguns
ii) Promoção e expansão, pelas
sinais da suavização, ainda que num
Organizações da Sociedade
contexto de inconsistência legislativa.

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Governação e Integridade em Moçambique >> Problemas práticos e desafios reais

Ponto de situação do quadro e (ii) persistem problemas de acesso à


legal, institucional e de informação aos membros, o que faz
com que relatórios de actividade,
políticas públicas
planos anuais e relatórios financeiros
Em relação à governação interna das lhes cheguem no exacto momento em
organizações da sociedade civil, nota- que são chamados a sobre eles se pro-
se que, sobretudo as OSC que man- nunciarem, para posterior aprovação.
tém parceria com o Mecanismo de Embora em número cada vez mais
Apoio à Sociedade Civil (MASC) e reduzido, ainda persistem, nalgumas
com o Programa de Acções para uma organizações da sociedade civil, casos
Governação Inclusiva e Responsável de não segregação de funções, o que
(AGIR), já são possuidoras de instru- leva a dúbias situações de “árbitros-
mentos de governação interna (Ma- jogadores”, sendo justo referir que,
nual de Procedimentos, Política Anti- nalguns desses casos, tal tem que ver
Corrupção, Política de Procurement, com o reduzido número de colabora-
etc). Mas a questão que ainda carece dores que algumas delas têm.
de melhorias é a aplicação consistente
No que respeita à descriminalização
e sistemática destes instrumentos. O
da difamação, são notórios alguns
atropelo que algumas organizações
sinais de que é possível ampliar, sem
fazem, amiúde, aos seus próprios
muitos riscos, o potencial poder fis-
instrumentos, tem levado à qualifica-
calizador dos meios de comunicação
ção dos seus relatórios de auditoria e,
social, apesar de tal estar a ser feito
nalguns casos, ao término prematuro
num contexto marcado por alguma
dalgumas parcerias financeiras.
inconsistência legislativa. A proposta
Quase todas as organizações da de revisão do Código Penal limita os
sociedade civil moçambicana já casos em que a difamação é tipificada
realizam regularmente (uma vez ao como crime e a versão consensuali-
ano, em termos ordinários), as suas zada da proposta de revisão da Lei
assembleias gerais, que constituem de Imprensa sugere o abrandamento
(ou deveriam constituir) momentos da responsabilidade dos directores
privilegiados para os membros parti- editoriais dos órgãos de comunicação
ciparem activamente da vida dessas social, que são tidos como autores
organizações. Mas dois problemas de artigos não assinados. Com isso,
persistem: (i) nalguns casos, elas (as eles passarão a ser responsabilizados
assembleias gerais) não são regular- como cúmplices e não como autores,
mente convocadas (anúncio na im- o que se funda no facto de a autoria
prensa e observando o prazo mínimo); pressupor uma atitude consciente.

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CIP-Governacao-Intregridade.indb 54 10/28/2013 4:54:01 PM


Sociedade Civil, Informação Pública e Comunicação Social

Estranhamente, as propostas acima funcionário público1?; (ii) por outro


referidas estão a ser efectivadas num lado, a Lei de Probidade Pública
contexto de extrema inconsistência passará a dar, a entes estranhos às re-
legislativa, conforme o denota a Lei dacções dos órgãos de comunicação
nº 16/2012, de 14 de Agosto (Lei de social, poder legal de censurarem os
Probidade Pública), concretamente o conteúdos editoriais, o que se traduz
seu artigo 69, sobre a confidencialida- numa clara afronta ao princípio
de da declaração de património, cujo fundamental da independência do
número 2 refere que “a difusão, divul- jornalista no geral, incluindo os que
gação ou publicação, no todo ou em desenvolvem o seu labor nas firmas
parte, do conteúdo [da declaração] públicas do sector da comunicação
(…) faz incorrer o infractor na pena social, conforme se extrai do número
de três dias a seis meses de prisão, 5 do artigo 48 da CRM.
sem prejuízo da indemnização a que Ainda não existe, no país, uma Lei do
houver lugar”. Diferentemente do que Direito à Informação, bem jurídico
sucede com a Lei de Imprensa (Lei (direito à informação) este que possui,
número 18/91, de 10 de Agosto), que no ordenamento jurídico moçambica-
apenas responsabilizaría solidariamen- no, o estatuto de direito fundamental
te o director editorial, a Lei de Probi- (número 1 do artigo 48 da CRM). Mas
dade Pública passa a responsabilizar há a registar, positivamente, o facto de
também o Presidente do Conselho de a Assembleia da República, através
Administração, conforme se extrai da sua Comissão de Administração
do número 3 do mesmo artigo (69): Pública, Poder Local e Comunicação
“no caso de se desconhecer o respon- Social (CAPPLCS), ter iniciado, em
sável directo pela publicação referida
no número anterior [2], responde 1
Estariam em colisão, nesse caso, dois direitos
pessoalmente, nos termos do mesmo fundamentais, nomeadamente o direito à
número, o director ou o Presidente do informação e o direito à reserva sobre a
Conselho de Administração do órgão intimidade da vida privada. Nesse caso, a solução
passa pela ponderação de interesses, termos em
de comunicação social”. que a doutrina jurídica aconselha a cedência
Esta situação apresenta dois proble- da reserva da intimidade da vida privada ao
direito à informação, tendo em conta o número
mas de fundo: (i) que dizer das situa- indeterminado e indeterminável dos que seriam
ções em que o jornalista, que não é afectados se o direito à informação fosse
guardião da declaração, a usa para renegado. É, de resto, nesse contexto que um
Tribunal de Lisboa decidiu arquivar, na primeira
expor, por exemplo, o enriquecimen-
semana de Fevereiro de 2013, o processo que
to ilícito de um certo governante ou um grupo de generais angolanos movia contra o
jornalista Rafael Marques, por os ter exposto em
livro (Diamantes de Sangue).

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CIP-Governacao-Intregridade.indb 55 10/28/2013 4:54:01 PM


Governação e Integridade em Moçambique >> Problemas práticos e desafios reais

Junho de 20122, o debate público da artigo 7, que a Administração Pública


proposta de ante-projecto, submetida deve colaborar com o cidadão sempre
a 30 de Novembro de 2005 pela so- que este solicite informação, e a Lei
ciedade civil, com o MISA-Moçam- número 14/2011 introduz, nos seus
bique à cabeça. A 06 de Fevereiro artigos 9 e 15, os princípios da cola-
de 2013, a Comissão Permanente da boração com os administrados, e da
AR fez saber3 que aquela proposta de transparência, respectivamente.
ante-projecto consta das matérias a No tocante à gestão das empresas pú-
serem alvo de discussão na sessão a blicas de comunicação social a situação
decorrer de Março a Maio. Entretan- mantém-se nitidamente inalterada.
to, existem sérias dúvidas sobre se tal Os mecanismos de designação dos
passará disso ou não (mera discussão, Presidentes do Conselho de Adminis-
sem aprovação), tendo em conta tração da RM e da TVM continuam
as declarações recentes de Alfredo processos fechados e sem transpa-
Gamito, presidente da Comissão da rência, em desrespeito aos princípios
Administração Pública, Poder Local internacionalmente plasmados.
e Comunicação Social (CAPPLCS),
segundo o qual “esta lei [de Direito
à Informação] depende também da Problemas práticos e novos
revisão da Lei de Imprensa4. E a nível
desafios
do Governo a revisão da Lei de Im-
prensa ainda não está concluída”5. Nos últimos anos, emergiram novos
desafios para as áreas cobertas neste
Mesmo não havendo uma Lei do Di-
capítulo, cuja superação irá contribuir
reito à Informação, existem algumas
para que a sua relevância no contexto
cláusulas favoráveis a esse direito
da boa governação e da promoção da
fundamental. Por exemplo, o decreto
integridade seja cada vez mais cres-
número 30/2001 preconiza, no seu
cente.
As organizações da sociedade civil devem
2
O processo contou com a facilitação da
continuar a preocupar-se com a con-
sociedade civil, jornalistas e académicos, a
convite da Assembleia da República. solidação da boa governação interna,
3
Assunto reportado pelos jornais Notícias e O País no quadro do que a forma como os
de 07 de Fevereiro de 2013. principais órgãos sociais (conselho
4
O Grupo de Trabalho constituído para proceder directivo, conselho fiscal e mesa da
à revisão da Lei de Imprensa terminou o seu
assembleia geral) são eleitos deve ser
trabalho em Junho de 2009.
5
Alfredo Gamito concedeu uma entrevista
democratizada. No lugar de as listas
à edição número 5 do Plataforma AGIR de apresentadas à candidatura preverem
Outubro de 2012.

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CIP-Governacao-Intregridade.indb 56 10/28/2013 4:54:01 PM


Sociedade Civil, Informação Pública e Comunicação Social

todos os órgãos sociais, poderia haver 2 do artigo 245 da CRM], para efeitos
uma lista para cada órgão social, o de solicitação de apreciação de in-
que permitiria que os membros ele- constitucionalidade da norma contida
gessem o grupo que se apresentasse no número 6 do artigo 48 da CRM,
com o melhor perfil para cada tarefa que defere, para uma lei ordinária, o
social. Os integrantes dos conselhos usufruto deste direito fundamental, o
fiscais, funcionando eles como uma que, em boa verdade, esvazia a própria
espécie de auditores internos, devem CRM, uma vez que esta estabelece o
ter alguma capacidade técnica para imediatismo da aplicação das normas
avaliar as contas da organização, para sobre direitos fundamentais (número
que não se limitem a assinar o que, 1 do artigo 56), o que deve ser obri-
não poucas vezes, eles próprios não gatoriamente feito em harmonia com
percebem. a Declaração Universal dos Direitos
No âmbito do decorrente processo de Humanos (DUDH) e da Carta Afri-
revisão da Constituição da República, cana dos Direitos do Homem e dos
acha-se oportuno que a norma refe- Povos (CADHP), conforme reza o
rente ao direito à informação (artigo 48) artigo 43 da lei suprema.
seja revista por forma a tornar possível No que respeita à comunicação social,
o usufruto deste direito fundamental a “migração digital”, com Junho de
a partir da própria Constituição, sem 2015 como prazo mandatório para a
se depender da existência de uma lei televisão, existe um grande risco de os
ordinária, arquitectura que, de resto, órgãos de comunicação desse sector
tem contribuído para o adiamento do serem afectados pelo apagão, uma
usufruto de muitos direitos humanos vez que a “[chamada] ‘Estratégia’ ora
(por exemplo: direito à informação, em estudo não mostra como é que
direito à greve na função pública, di- o Governo está a preparar-se para
reito à réplica política, etc). Enquan- alcançar o que se pressupõe e como
to os que têm iniciativa de lei não o irá fazer”6, com o que o direito à
avançarem em prol da efectivação informação (na dimensão de acesso
do direito à informação, os próprios a conteúdos televisivos) do próprio
interessados no direito à informação cidadão será afectado.
(sociedade civil, académicos, jor-
nalistas, pesquisadores, etc) devem 6
Informação extraída do Relatório da
avançar proactivamente, recorrendo, Pesquisa sobre o Impacto da Migração Digital
da Radiodifusão no Acesso à Informação
por exemplo, ao Conselho Constitu- em Moçambique (Setembro de 2012),
cional, reunindo, para o efeito, duas comissionado pelo FORCOM e CEC, no âmbito
mil assinaturas [alínea g) do número da Componente “Acesso à Informação” do
Programa AGIR.

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CIP-Governacao-Intregridade.indb 57 10/28/2013 4:54:01 PM


Governação e Integridade em Moçambique >> Problemas práticos e desafios reais

Além disso, o Sindicato Nacional de e/ou revisão do artigo 69 da


Jornalistas (SNJ) aprovou, em Agosto Lei número 16/2012, de 14
de 2012, o Código de Ética e Deon- de Agosto (Lei de Probidade
tologia do Jornalista Moçambicano, Pública), para que se preveja,
instrumento de auto-regulação que neste ou noutro, a não respon-
servirá de base para a melhoria dos sabilização do jornalista e do
padrões éticos dos profissionais desta Presidente do Conselho de
área, mas o mesmo ainda não é do co- Administração do órgão de
nhecimento massivo da classe. Urge, comunicação social nos casos
assim, que o SNJ trate de disseminá em que a declaração de pa-
-lo e de monitorar a sua implemen- trimónio haja sido publicada a
tação, através da sua Comissão de bem do interesse público;
Ética e Deontologia Profissional, cujo ~~ Que o financiamento dos
histórico de efectividade é desconhe- órgãos públicos de comuni-
cido. Ou, alternativamente, por via do cação social seja feito através
estabelecimento de um Observatório do Parlamento e não por via
de Imprensa que seja corporizado por de contratos-programa com
quadros com competência técnica o Governo (como sucede
para efectuar monitoria mediática7. actualmente), por forma a se
salvaguardar a independência
editorial dos seus jornalistas
Áreas prioritárias de
perante o Governo, bem como
intervenção e reforma para efeitos de redução dos
Dado o fraco grau de adopção das níveis de imprevisibilidade nos
recomendações do RGIM 2008, as fluxos financeiros;
mesmas mantêm-se válidas. Pelo aci- ~~ Que o Governo proceda, com
ma exposto e em prol da promoção a máxima urgência, à apre-
da governação e integridade, reco- sentação de uma Estratégia e
mendamos, adicionalmente: Plano concretos, realísticos e
~~ Que se proceda à revogação exequíveis de Migração Di-
gital, indicando, claramente,
7
Nas eleições autárquicas de 2008 e como se lidará com questões
gerais (presidenciais, parlamentares e das como financiamento, regula-
assembleias provinciais) de 2009 algo similar
foi conjuntamente empreendido pelo MISA- ção, provisão de conteúdos e
Moçambique e SNJ, tendo os relatórios garantia da migração do pró-
produzidos sido aprovados por consenso por prio cidadão às plataformas
todos os media nacionais, no âmbito do na altura
adoptado mecanismo de “pressão de pares”.
digitais;

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CIP-Governacao-Intregridade.indb 58 10/28/2013 4:54:01 PM


Sociedade Civil, Informação Pública e Comunicação Social

~~ Que se revoguem todas as leis


anti-democráticas e atentató-
rias à liberdade de expressão,
liberdade de imprensa e direito
à informação, nomeadamente
a lei número 12/79 (Lei de
Segredo de Estado) e a lei
número 19/91 (que considera
crime contra a segurança do
Estado a difamação do Presi-
dente da República, ministros,
secretários gerais de partidos
políticos, etc).

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CIP-Governacao-Intregridade.indb 59 10/28/2013 4:54:01 PM


Capítulo 7 Ministério de Negócios Estrangeiros e
Cooperação, Banco de Moçambique,
etc). Enquanto o MINEC coordena a
Ajuda Internacional, cooperação, o MPD coordena os par-
Dependência Externa e ceiros de apoio programático (G19)
e rubrica acordos de financiamento.
Governação O FMI trabalha principalmente com
o MF e o BM, o Banco Mundial es-
Marc De Tollenaere
sencialmente com o MPD, a União
Europeia com o MINEC, etc. O
Ajuda internacional, dependência MINEC lidera o diálogo político no
externa e governação compreende âmbito do acordo de Cotonou e o
uma análise em torno dos níveis de MPD o diálogo político no âmbito do
dependência da ajuda, as políticas Memorando de Entendimento (MdE)
de cooperação, os mecanismos de sobre o Apoio Geral ao Orçamento
coordenação das actividades dos (AGO). A PCI não influenciou estas
doadores e a influência destes factores práticas no sentido de racionalizar e
na governação nacional. clarificar os mandatos de coordena-
ção. Consta que outros componentes
Sobre as recomendações do do quadro institucional da ajuda
RGIM 2008 externa, mudanças nas preferências
sobre instrumentos para o desen-
A primeira recomendação do relató- volvimento, no seio dos doadores, e
rio anterior foi a formulação de uma motivações políticas dos doadores
Política de Cooperação Internacional mantiveram uma maior influência
(PCI - Resolução 34/2010) para sobre a gestão do apoio internacional
melhor coordenar a ajuda externa e que a PCI.
alinhar esta ajuda com as políticas do
Governo. A PCI, adoptada em 2010, Em relação à necessidade de rever
ainda não foi sujeita a uma avaliação, e melhorar o processo de diálogo
mas não parece ter tido um impacto político, concluiu-se um novo Me-
notável na gestão estratégica e coor- morando de Entendimento (MdE)
denação da ajuda externa. A PCI sobre o Apoio Geral ao Orçamento
também não parece ter melhorado a (AGO). Enquanto o AGO representa
coerência e complementaridade na cerca de um quarto da Assistência
intervenção das várias instituições en- Oficial ao Desenvolvimento (AOD),
volvidas (Ministério de Finanças, Mi- o arranjo domina o diálogo entre go-
nistério de Plano e Desenvolvimento, verno e doadores através de múltiplos

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CIP-Governacao-Intregridade.indb 60 10/28/2013 4:54:01 PM


Ajuda Externa

grupos técnicos e o diálogo político. numa redução do número de indica-


Mas o MdE não tem, por si próprio, dores para medir o progresso.
força para determinar a qualidade
do diálogo político. Um bom MdE
pode influenciar positivamente o Ponto de situação do quadro
diálogo, criando procedimentos e legal, institucional e de
outros aspectos formais transparentes
políticas públicas
e mutuamente aceites, mas a quali-
dade do diálogo depende ainda mais A Política de Cooperação Interna-
dos participantes, personalidades e cional e a sua estratégia de imple-
dos assuntos colocados na mesa. As mentação (PCI, 2010) estabelece os
dificuldades que caracterizaram o princípios que regem a cooperação
diálogo político no período em revi- internacional, incluindo a coorde-
são não eram sanáveis por um MdE. nação da ajuda externa. O objectivo
O diálogo político tornou-se cada fundamental da PCI é “garantir a rea-
vez mais um palco de confrontação lização das prioridades do Governo,
entre a dimensão técnica (gestão das consubstanciadas na redução dos ní-
finanças públicas; redução de pobre- veis de pobreza através da promoção
za, prestação de serviços básicos) e a do desenvolvimento social, económi-
dimensão política da ajuda externa co, rápido, sustentável e abrangente”.
(paz, processos políticos democráti- Um dos objectivos específicos da po-
cos, independência da justiça, probi- lítica é “pugnar pela redução gradual
dade na vida pública, etc). Os últimos da dependência externa”.
anos foram, sem dúvida, caracteriza- A PCI distingue várias áreas de acção
dos por uma tensão crescente entre o da cooperação internacional: coope-
compromisso para o financiamento ração económica, técnica, científica
da redução de pobreza, a promoção e cultural, assistência humanitária e
de valores e princípios éticos e a defe- de emergência e “ajuda pública ao
sa ou promoção de diversos interesses desenvolvimento” (conhecida pela
políticos. sigla ODA). Na última área, a PCI
A recomendação para avaliar a esclarece que o Governo:
eficácia dos projectos de apoio à ~~ incentiva o fluxo de donativos
governação não foi implementada. via orçamento de Estado e a
Nota-se que o pilar de governação do inclusão, pelos parceiros, dos
PARPA II foi sujeito a uma avaliação. valores relativos aos encargos
No entanto, a avaliação não resultou fiscais nos seus projectos;
em mudanças de abordagem, mas sim

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CIP-Governacao-Intregridade.indb 61 10/28/2013 4:54:01 PM


Governação e Integridade em Moçambique >> Problemas práticos e desafios reais

~~ esforça-se por manter a sus- pelos direitos humanos, estado de


tentabilidade da dívida através direito, princípios democráticos), cuja
da contratação de créditos pú- violação pode conduzir à suspensão
blicos concessionais, podendo da ajuda. O diálogo político propor-
recorrer a outras formas de ciona às partes a possibilidade da dis-
crédito não concessionais cussão dos temas de interesse comum
para financiar projectos de ou preocupação particular.
rápido retorno e em situações Outro instrumento de carácter abran-
extraordinárias; gente é o Memorando de Entendi-
~~ envida esforços para atrair mento (MdE) sobre a concessão do
maior número de parceiros e Apoio Geral ao Orçamento1. O MdE
maiores volumes de recursos estabelece os princípios e termos
para o apoio directo ao orça- para a parceria entre o Governo e os
mento de estado e ao apoio parceiros e abrange os procedimentos
programático aos sectores; comuns relativos à consulta e tomada
~~ mobiliza financiamentos para de decisão, desembolsos, monitoria e
projectos de impacto na redu- prestação de contas, revisão, avalia-
ção da pobreza e no desenvol- ção e auditoria.
vimento sustentável do país. Para além dos instrumentos abran-
O Ministério de Negócios Estran- gentes, a relação entre o Governo e
geiros e Cooperação é encarregado cada parceiro (bilateral e multilateral)
da implementação, em coordenação é baseada num acordo específico.
com os ministérios de Plano e Desen-
volvimento e Finanças. Na prática,
Problemas práticos e novos
no dia-a-dia da cooperação, estes
últimos dois ministérios são mais in- desafios
fluentes do que o MINEC, Ministério
Dependência da ajuda externa
encarregue de implementar a PCI.
Particularmente depois de 2010, a
Existem vários outros instrumentos
dependência do orçamento do estado
que fazem parte do quadro institucio-
da ajuda externa diminuiu conside-
nal da ajuda internacional. O Acordo
ravelmente. O rácio ajuda/despesas
de Parceria ACP-UE (Acordo de
oscilou à volta de 50% entre 2002 e
Cotonou, 2000) constitui um acordo
global em matéria de ajuda e comér-
cio. A parceria abarca “elementos es- 1
O segundo MdE (com validade de 5 anos) foi
senciais” para a cooperação (respeito assinado entre o Governo e 19 parceiros em
Março de 2009.

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CIP-Governacao-Intregridade.indb 62 10/28/2013 4:54:01 PM


Ajuda Externa

2010. Para 2012, a previsão é de uma para este efeito, a créditos não con-
redução até 39,5% e para 2013 até cessionais.
32,8%, representando uma redução O país entra numa fase de transição
drástica da dependência do orçamen- com níveis de ajuda que vão diminuir,
to da ajuda externa nos últimos 2 e receitas de exploração dos recursos
anos. A ajuda externa ficou à volta de minerais que, a curto e médio prazos,
13% do PIB entre 2002 e 2010, mas continuarão a ser virtuais. Observa-se
o FMI prevê uma descida ate 5,7% que os indícios de redução da de-
em 2018. A OCDE relata níveis de pendência da ajuda externa criaram
apoio oficial (AOD) em relação ao um sentimento de alívio e quase de
Rendimento Nacional Bruto e nota a uma segunda independência. Mas
mesma estabilidade entre 2000 e 2010 a ajuda externa foi principalmente
(por volta de 22%), mas uma descida dirigida para os sectores sociais e
forte em 2011 para 16% (mantendo o serviços básicos e as novas fontes de
valor nominal de 2 biliões de Dólares financiamento externo são exclusiva-
Americanos). mente destinadas a infra-estruturas
As razões são várias. Mesmo sem que devem permitir a exploração das
reduzir os níveis de apoio em termos riquezas do país. Apresenta-se então
absolutos (só ligeiramente a partir de um desafio em manter e mesmo au-
2013), o Governo fez avanços consi- mentar o financiamento dos sectores
deráveis na arrecadação de receitas sociais e serviços básicos com menos
internas (um aumento de 13,5% do apoio, por um lado, e pressão para
PIB em 2008 para 23,5% em 2012). investir em infra-estruturas dispendio-
Em segundo lugar, a descoberta de sas, por outro 2.
gás na bacia de Rovuma e o início da
exploração de carvão em Tete, muda-
Desintegração da dependência
ram completamente as perspectivas.
mútua
Não só se projectam elevados ren-
dimentos de exportação de recursos Mesmo ficando sistematicamente
naturais, como se catapulta o Inves- abaixo dos resultados esperados do
timento Directo Estrangeiro a níveis apoio externo (visível nas avaliações
que ultrapassam o volume de ajuda anuais do quadro de desempenho do
(pela primeira vez em 2011). Alem apoio programático e nas múltiplas
disso, o país necessita de investir em
infra-estruturas (na maior parte em
parceria com grandes investidores 2
A alocação para os sectores de educação e saúde
estrangeiros) e, desde 2012, recorre, baixou de 34,8% do orçamento em 2006 para
25,8% em 2012.

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CIP-Governacao-Intregridade.indb 63 10/28/2013 4:54:02 PM


Governação e Integridade em Moçambique >> Problemas práticos e desafios reais

avaliações de programas e projectos)3, no qual o volume nominal da ajuda


e apesar das preocupações permanen- oficial (AOD) vai diminuir ligeira-
tes sobre problemas de governação, o mente. O apoio geral ao orçamento
volume de ajuda tem vindo a aumen- começa a baixar em 2010 (em termos
tar até 2012. Os factores que criaram relativos) e mais apoio está a ser cana-
esta tendência são múltiplos e com- lizado através de projectos, também
plexos, mas um factor determinante exprimindo o desejo dos doadores de
é certamente a dependência mútua. melhor controlarem a produção de
Os doadores precisam de manter a resultados das intervenções.
história de sucesso e o Governo, por Numa reflexão interna, em 20114, o
estratégia ou por hábito, pretende mesmo Governo que aprovou a PCI
maximizar o volume de apoio e o de 2010 que afirma o objectivo de
número de parceiros. reduzir a dependência da ajuda, con-
Isto resulta em várias contradições. cluiu que “há necessidade de se inten-
Os doadores criticam o Governo em sificar os contactos políticos com os
Maputo, mas defendem o Governo parceiros para assegurar, por um lado,
contra críticas externas. O Governo a manutenção do nível de relações, e,
detesta as interferências e imposi- por outro, a conservação do nível de
ções dos doadores, mas vê em cada ajuda”5. Isto indica que, apesar da
aumento de ajuda ou cada nova alegria da redução da dependência
parceria uma aprovação (“voto de da ajuda externa, existe a consciência
confiança”) das suas políticas e do seu de que tal ajuda não vai perder a sua
desempenho. Os dois lados ficaram relevância tão já.
e continuam presos aos seus mitos,
contentando-se com um equilíbrio de
desconforto e insatisfação dos dois Dependência e governação
lados. Apesar das frustrações sobre A hipótese subjacente a este capítulo é
o difícil diálogo com o Governo e o que um nível elevado de dependência
desapontamento com os resultados e de ajuda externa tem um efeito nega-
o impacto da ajuda, os parceiros têm tivo na qualidade da governação do
feito tudo por tudo para manter ou país recipiente, principalmente porque
mesmo aumentar o volume de ajuda. (i) a prestação de contas concentra-se
De facto, 2013 vai ser o primeiro ano no eixo governo-doadores em vez de

3
Admite-se que os objectivos e metas de muitos
4
MINEC, Setembro 2011, Reflexão sobre
projectos não são realísticos, mas o quadro de as motivações de redução ou retirada de
desempenho do AGO é de consenso e cada vez financiamento dos parceiros de cooperação.
mais baseado nas propostas do governo. 5
MINEC, 2011, op. cit., p.21.

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CIP-Governacao-Intregridade.indb 64 10/28/2013 4:54:02 PM


Ajuda Externa

promover a prestação de contas entre melhorias na governação. Enquanto


governo e instituições nacionais e os donativos diminuem, a dívida vai
cidadãos, e (ii) os doadores, mais do subindo (de 33,4% do PIB em 2011
que as forças nacionais, influenciam para 45% em 2015). Aqui está o novo
as políticas de desenvolvimento. Esta desafio fundamental: a redução da
dinâmica é real e não contestada, mas dependência da ajuda externa é indu-
merece ser relativizada. bitável, mas é muito difícil estabelecer
Em primeiro lugar, a influência da uma relação causal entre esta ten-
ajuda externa na boa governação não dência e as melhorias na governação
pode ser considerada exclusivamente no contexto actual moçambicano. A
negativa. Existe uma relação causal dependência da ajuda será gradual-
directa entre o apoio programático e mente substituída por rendimentos da
as melhorias objectivas na gestão das indústria extractiva que depende de
finanças públicas (ex. e-SISTAFE), mercados notoriamente imprevisíveis
no quadro institucional e na qualida- e flutuantes, o que põe sérios desafios
de e quantidade de informação publi- à governação do país.
camente (parcialmente pelo menos) Outro possível efeito negativo na
disponível (ex. o orçamento). O facto governação de níveis decrescentes
de esta informação ser produzida sob de ajuda externa é que o incentivo
pressão da ajuda externa e não por para ambos, os doadores e o governo,
virtude própria pode ser negativo para investirem tempo e energia na harmo-
um sistema de governação, mas o fac- nização e alinhamento decresce gra-
to de esta informação existir, demons- dualmente, resultando numa maior
tra que de facto não o é, porque não fragmentação e dispersão da ajuda
vai cessar de ser publicada quando a externa.
dependência da ajuda baixar. Se acei- Nos últimos 5 anos iniciou-se uma
tamos que a ajuda externa tem uma revolução no financiamento ao desen-
influência negativa na governação em volvimento. A dependência da ajuda
Moçambique, isto é uma conclusão vai, sem dúvida, continuar a baixar
que resulta da soma entre factores nos próximos anos, mas a dependên-
positivos e negativos. cia de créditos (e, portanto, a dívida)
Em segundo lugar, não se pode inver- para financiar infra-estruturas para
ter o argumento. Se assumimos que explorar efectivamente os recursos
mais ajuda externa tem uma influên- minerais em grande escala vai aumen-
cia negativa na governação, poder- tar. Anunciam-se aumentos enormes
se-ia presumir que uma redução da nos investimentos externos, em parti-
dependência externa resultasse em cular relacionados com a exploração

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CIP-Governacao-Intregridade.indb 65 10/28/2013 4:54:02 PM


Governação e Integridade em Moçambique >> Problemas práticos e desafios reais

dos recursos minerais. Mas créditos ~~ minimizar a dívida cara (cré-


concessionais da China ou da Índia, ditos concessionais);
e grandes investimentos na indústria ~~ melhorar a capacidade de
extractiva não são financiamentos análise, de participação e de
que forjam um contrato social entre o monitoria da sociedade civil.
Governo e os cidadãos.

Áreas prioritárias de
intervenção e reforma
A abrangência e robustez deste con-
trato social determina a influência que
o financiamento do desenvolvimento
tem na qualidade da governação. As
intervenções prioritárias, também
envolvendo a sociedade civil, devem
então visar reforçar as bases para o tal
contrato social. Possíveis pontos de
entrada são:
~~ melhorar as receitas internas
(i) evitando, monitorando e
denunciando a presença de
privilégios fiscais para grandes
investimentos e/ou membros
da elite local, e (ii) evitando,
monitorando e denunciando
possíveis fugas ilícitas de capi-
tal;
~~ melhorar o uso de fundos
do erário público através da
planificação participativa e
da monitoria sistemática dos
resultados das despesas;
~~ melhorar a capacidade de
gestão, em particular em tudo
o que tem a ver com a indústria
extractiva;

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CIP-Governacao-Intregridade.indb 66 10/28/2013 4:54:02 PM


Capítulo 8 em volume de produção como
em índices de produtividade,
sem que lhes falte o seu recur-
A Governação da Terra: so principal: a terra;
Políticas, Realidade e ~~ Promover o investimento pri-
Desafios vado, utilizando de uma forma
sustentável e rentável a terra e
Eduardo Chiziane outros recursos naturais, sem
prejudicar os interesses locais;
A governação da terra compreen- ~~ Conservar as áreas de
de uma análise em torno do papel interesse ecológico e gerir
da Administração Pública na gestão os recursos naturais de uma
da terra e pretende contribuir para a forma sustentável, de forma a
compreensão da dimensão legal dos garantir a qualidade de vida da
problemas de gestão da terra. Além presente e futuras gerações;
da análise, pretende-se propor algu- ~~ Actualizar e aperfeiçoar um
mas soluções para reforçar a boa go- sistema tributário baseado na
vernação e integridade na gestão pú- ocupação e no uso de terra que
blica da terra. possa apoiar os orçamentos
públicos nos diversos níveis.
Quadro Legal, Institucional e A PNT é baseada nos seguintes prin-
cípios fundamentais:
de Políticas Públicas
~~ a manutenção da terra como
Politica Nacional de Terras1 propriedade do Estado, princí-
A Política Nacional de Terras (PNT) pio consagrado na Constitui-
estabelece os seguintes objectivos ção da República;
prioritários: ~~ a garantia de acesso e uso da
~~ Recuperar a produção de ali- terra à população, bem como
mentos e garantir a segurança aos investidores. Neste contex-
alimentar; to, reconhecem-se os direitos
costumeiros de acesso e gestão
~~ Criar condições para que a
das terras das populações ru-
agricultura do sector familiar
rais residentes, promovendo a
se desenvolva e cresça, tanto
justiça social e económica no
1
Resolução do Conselho de Ministros10/95. Ver campo;
também Maria Conceição Quadros, Manual de
Terra, CFJJ, 2004, pp. 6-10

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Governação e Integridade em Moçambique >> Problemas práticos e desafios reais

~~ a garantia do direito de acesso a terra e outros recursos naturais,


e uso da terra pela mulher; assim como promover o investimento
~~ a promoção do investimento e o uso sustentável e equitativo destes
privado nacional e estrangeiro, recursos”.
sem prejudicar a população A PNT toma em conta os principais
residente e assegurando bene- usos da terra, incluindo o uso agrário,
fícios para esta e para o erário urbano, mineiro, turístico e para infra
público nacional; -estruturas produtivas e sociais, tendo
~~ a participação activa dos na- em conta a protecção ambiental. A
cionais com parceiros em em- base da PNT é consensual e estabe-
preendimentos privados; lece os mecanismos pelos quais os re-
~~ a definição e regulamentação cursos naturais podem ser explorados
de princípios básicos orienta- duma maneira equitativa e sustentá-
dores para a transferência dos vel.
direitos de uso e aproveita- Alguns princípios fixados na PNT fo-
mento da terra, entre cidadãos ram relativamente concretizados tais
ou empresas nacionais, sem- como a manutenção da terra como
pre que tiverem sido feitos in- propriedade do Estado, o acesso e
vestimentos no terreno; uso da terra pela população, a pro-
~~ o uso sustentável dos recursos moção do investimento nacional (ex:
naturais de forma a garantir exploração dos recursos naturais), a
a qualidade de vida para as promoção do direito de acesso e uso
presentes e futuras gerações, da terra pela mulher, e a redução de
assegurando que as zonas de conflitos sobre a terra nas zonas ru-
protecção total e parcial man- rais e urbanas2. A forma como estes
tenham a qualidade ambiental aspectos de sucesso na implementa-
e os fins especiais para que fo- ção da legislação sobre terras se tem
ram constituídas. Incluem-se manifestado, ainda deve ser medida
aqui zonas costeiras, zonas de através de um estudo multidisciplinar
alta biodiversidade e faixas de profundo e critico.
terreno ao longo das águas in-
teriores.
2
Não significa que não haja potenciais
Os princípios norteadores e os conflitos de terra, em resultado do processo de
objectivos da Política Nacional de desenvolvimento do país e da concorrência pelos
Terras (PNT) são resumidos na melhores recursos. Para mais desenvolvimento
ver Christopher TANNER As bases sociológicas
seguinte declaração: “Assegurar os
e políticas da Lei de Terras de Moçambique, FAO e
direitos do povo moçambicano sobre CFJJ, 2004, p. 1.

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Terra - políticas, realidade e desafios

Legislação sobre terra3 Agrárias; a Resolução 10/95, que


aprova a Política Nacional de Terras;
A “legislação sobre terras” ou Direito
o Diploma Ministerial (do Ministé-
da Terra visa operacionalizar a PNT
rio da Agricultura e Pescas) 76/99,
e é constituído por múltiplos instru-
que aprova a distribuição de receitas
mentos legais. Com vista a avaliar o
consignadas resultantes da cobrança
grau de implementação da legislação
de taxas; o Decreto do Conselho de
sobre terras e as necessidades de refor-
Ministros 77/99, que aprova taxas
ma, só os diplomas que se relacionam
diferenciadas segundo as actividades;
com os aspectos centrais da governa-
o Decreto do Conselho de Ministros
ção da terra serão objecto de análise:
01/2003 sobre a compatibilização dos
~~ Lei 19/97, aprova a Lei de procedimentos entre o Cadastro Na-
Terras (LT); cional de Terras e o Registo Predial;
~~ Decreto 66/98, aprova o o Decreto do Conselho de Ministros
Regulamento da Lei de Terras 50/ 2007, que aprova a alteração do
(RLT) e revoga o Decreto artigo 30 do Regulamento da Lei de
16/87; Terras; e outros.
~~ Diploma Ministerial (do O artigo 22 da Lei 19/97, Lei de
Ministério da Agricultura Terras, oferece a disciplina legal so-
e Pescas) 29-A/2000, bre a repartição de competências em
aprova o Anexo Técnico matéria de autorização de pedidos de
ao Regulamento da Lei de acesso à terra nas áreas rurais entre
Terras; o nível central e o nível provincial.
Assim, temos no nível provincial os
~~ Decreto 60/2006, aprova
governadores provinciais que têm
o Regulamento do Solo
competência para autorizar pedidos
Urbano.
de terra de áreas até ao limite máximo
Existem instrumentos legais comple- de 1000 hectares.
mentares tais como os Decretos 7/89 No nível central, o Ministro de Agri-
e 8/89, que aprovam respectivamente, cultura tem competência para auto-
os Estatutos - tipo das Cooperativas rizar pedidos de terra de áreas entre
Agrária e das Uniões de Cooperativas 1000 e 10000 hectares. O Conselho
de Ministros tem competência para
3
Seguimos de perto o artigo: « Implicações autorizar pedidos de terra de áreas
Jurídicas do Debate sobre a Implementação da que ultrapassem a competência do
Legislação sobre Terras ». http:/www.fd.ul.pt/ Ministro da Agricultura, desde que o
portals/o/Docs/Institutos/ICJ/IusCommune/
EduardoChiziane.pdf
pedido seja inserido num plano de uso

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Governação e Integridade em Moçambique >> Problemas práticos e desafios reais

da terra ou cujo enquadramento seja definem os seguintes poderes e prer-


possível num mapa de uso da terra. rogativas:
O regime de repartição de competên- i. usar a terra cuja posse foi re-
cias estabelecido pela Lei de Terras conhecida ou concedida ao
não atribui ao nível distrital (ao Ad- sujeito do DUAT;
ministrador Distrital) o poder de au- ii. ter acesso à parcela e dela se
torizar pedidos sobre o acesso à terra servir para o acesso a outros
nas áreas rurais4. Esta situação con- recursos existentes no terreno
traria a filosofia dos artigos 139 e 250 ou em áreas circunvizinhas,
(relativos à descentralização) ambos como o caso dos recursos hí-
da Constituição de 2004, e do artigo dricos públicos, e isto através
12, n°1 da Lei sobre os Órgãos Locais da instituição de servidões;
do Estado (LOLE ou Lei 8/2003).
iii. defender-se contra interesses
O Direito de Uso e Aproveitamento de terceiros;
de Terra (DUAT) tem a natureza de
posse, porque o titular do DUAT pode iv. transmitir, por via da herança,
usar a terra, mas o artigo 109, n°2, da a posse da terra e os direitos e
Constituição de 2004 impõe aos titu- ela ligados;
lares do DUAT a proibição de venda v. transmitir a posse da terra e
e de oferecer a terra como garantia: os direitos a ela ligados pela
“a terra não deve ser vendida, ou por transmissão de prédios urba-
qualquer outra forma alienada, nem nos implantados na terra em
hipotecada ou penhorada”. causa;
O conteúdo do DUAT analisa-se vi. transmitir as benfeitorias im-
pelos poderes legais e prerrogativas plantadas nos terrenos sobre
jurídicas conferidos aos sujeitos desse os quais tenha um DUAT;
direito em relação ao uso da terra. A
vii. constituir hipoteca sobre os
Lei de Terras e o seu Regulamento
bens imóveis e benfeitorias
quando devidamente autoriza-
4
Não se deve confundir com as competências
atribuídas ao Administrador no âmbito do
do; e
licenciamento simplificado, por exemplo,
viii. utilizar o título ou a Certidão
no domínio de actividades agrárias, Decreto
n°02/2008, de 12 de Março. Uma coisa é o de Autorização Provisória
poder de autorizar pedidos que recaem sobre a para fundamentar pedidos de
terra em si, e a outra, bem diferente, é o poder de empréstimos junto de institui-
autorizar as actividades que se realizam na terra,
que podem ser várias, desde a actividade agrária,
ções de crédito.
mineração, turismo, etc.

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CIP-Governacao-Intregridade.indb 70 10/28/2013 4:54:02 PM


Terra - políticas, realidade e desafios

A atribuição dos poderes e prerroga- v. manter os marcos de fronteiras


tivas aos titulares do DUAT implica de triangulação, de demar-
a imposição de deveres aos mesmos cação cadastral e outros que
titulares. Para as zonas rurais5, os sirvam de pontos de referencia
deveres são: ou apoio situados na sua res-
i. utilizar a terra, respeitando pectiva área; e
os princípios estabelecidos vi. colaborar com os Serviços
na Constituição e demais de Cadastro, agrimensores
legislação em vigor, no caso ajuramentados e agentes de
do exercício de actividade fiscalização sectorial.
económica, em conformidade Nas áreas urbanas os deveres dos titu-
com o plano de exploração e lares do DUAT são os seguintes:
de acordo com o definido na
legislação relativa ao exercício i. materializar as construções e
da respectiva actividade; iniciar a actividade para que o
terreno se destina, nos prazos
ii. dar acesso, através da sua estabelecidos;
parcela, aos vizinhos que não
ii. não alterar a finalidade do uso
tenham comunicação com a
do terreno sem a devida auto-
via pública ou com os recur-
rização;
sos hídricos de uso público,
constituíndo para o efeito as iii. respeitar a legislação pertinen-
necessárias servidões; te sobre o DUAT, sobre a cons-
trução e sobre a actividade que
iii. respeitar as servidões e os di- se propõe exercer no terreno;
reitos de acesso ou utilização
iv. manter os marcos de demar-
pública com elas relacionados;
cação cadastral e elementos
iv. permitir a execução de ope- de infra-estruturas públicas
rações e/ou a instalação de existentes no terreno;
acessórios e equipamentos v. colaborar com os Órgãos Lo-
conduzidos ao abrigo de licen- cais do Estado e Autárquicos
ça de prospecção e pesquisa e outras entidades públicas ou
mineira, concessão mineira ou do Estado, prestando o auxilio
certificado mineiro, mediante necessário ao desempenho das
justa indemnização; suas funções.
O Sistema Nacional de Adminis-
5
O artigo 14 do RLT -1998 e o artigo 34 do
Regulamento do Solo Urbano de 2006 (RSU
tração da Terra baseia-se em cinco
-2006). responsabilidades essenciais, a saber:

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CIP-Governacao-Intregridade.indb 71 10/28/2013 4:54:02 PM


Governação e Integridade em Moçambique >> Problemas práticos e desafios reais

~~ a função jurídica garante Em muitos países, a receita


os direitos inerentes a uma relacionada com a terra é uma
categoria de posse particular, importante fonte de rendimen-
claramente definidos na lei to para o governo local, espe-
(principalmente a Constitui- cialmente em áreas urbanas;
ção da República e Lei de ~~ a responsabilidade cadastral
Terras 19/97) e, na prática, os da administração da terra re-
recursos são disponibilizados gista quem detém ou controla
para a alocação de direitos de a terra, onde está localizada,
terra, adjudicação, demarca- o seu uso e, eventualmente, o
ção, registo e manutenção de seu valor. Em Moçambique,
registos - todos essenciais para é também importante para o
garantir a segurança da posse Governo identificar os limites
do titular; das terras de domínio públi-
~~ a função reguladora diz respei- co, quer seja no contexto do
to à execução e manutenção Estado (por exemplo Parques
de padrões, por exemplo: Nacionais), municípios (edifí-
supervisão de profissionais da cios públicos, estradas, outros
terra (agrimensores, cartógra- espaços nas cidades), e comu-
fos, e registadores) necessária nidades (áreas de uso comum,
para salvaguardar terras e bens tais como florestas e algumas
imóveis, e assegurar que os pastagens, bens sociais e espa-
interesses dos proprietários de ços), conforme a Constituição
terras sejam salvaguardados; da República;
~~ a responsabilidade fiscal do ~~ a resolução de disputas refe-
serviço de administração da re-se à responsabilidade do
terra reconhece o valor finan- serviço de administração de
ceiro das propriedades, tanto terras de assegurar o gozo
para o proprietário como para pacífico, pelos proprietários de
o Estado como uma fonte de terra, dos seus direitos de uso
receita na forma de impostos e ocupação da terra e recursos
sobre a terra, rendas, direitos naturais.
de transmissão, etc. As recei-
tas geradas pela administração
eficiente da terra podem pagar
uma parte significativa das
despesas do governo no sector.

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CIP-Governacao-Intregridade.indb 72 10/28/2013 4:54:02 PM


Terra - políticas, realidade e desafios

Problemas práticos e desafios estabelecida pelo Diploma


reais Ministerial n.158/2011, de 15
de Junho, não estabelecem re-
Neste ponto, julgamos valioso iden- gras sobre os modos de desig-
tificar as principais lacunas, insufi- nação dos representantes da
ciências e contradições que resultam comunidade, nem os mecanis-
da aplicação prática da referida legis- mos de controlo dos represen-
lação. As matérias e os inconvenien- tantes da comunidade pelos
tes comummente levantados pelos membros da comunidade lo-
stakeholders (interessados) em várias cal. Como determina a Lei de
entrevistas, pesquisas e inquéritos Terras, o sistema de represen-
podem ser resumidos nos seguintes tação das comunidades locais
pontos: para efeitos do DUAT deveria
~~ falta de critérios claros sobre ser previsto por Lei, de modo
a representação das comuni- a garantir a segurança da pos-
dades locais e transparência6 se da terra e o estabelecimento
dos processos de consulta co- de parcerias económicas pelas
munitária no âmbito da atri- comunidades.
buição do DUAT. Os novos ~~ a deficiente contribuição da le-
procedimentos relativos à con- gislação sobre terras para pro-
sulta às comunidades locais no mover o investimento privado
âmbito da titulação do DUAT estrangeiro, e assegurar benefí-
cios para a população e para o
6
Transparência é a democratização do acesso erário público nacional7;
às informações, em contraposição ao sigilo das
mesmas. A transparência da Administração ~~ o uso insustentável dos recur-
Pública implica a publicidade da actividade sos naturais de forma a garan-
administrativa. Os órgãos e agentes do Estado
exercem a actividade administrativa em nome do tir qualidade de vida para as
interesse público. Portanto, essa actividade deve presentes e futuras gerações8;
ser de domínio público, os seus destinatários. A
publicidade é um princípio basilar do Direito,
uma condição de eficácia jurídica dos actos
jurídicos. Com efeito, segundo o artigo.15 da
7
As dificuldades que se manifestam no processo
Lei n°14/2011, o princípio da transparência de consulta às comunidades locais no âmbito
significa a obrigatoriedade de dar publicidade da atribuição do DUAT, têm estado a afectar
à actividade administrativa. Vários diplomas consideravelmente a entrada do investimento
legais consagram o princípio da transparência: estrangeiro no país. Este aspecto merece, contudo,
o Decreto n°30/2001, de 15/10, no Art. 7, a Lei melhores estudos e demonstração estatística.
n°8/2008, de 19/05 (LOLE), no Art. 5, o Decreto 8
Vide Christopher TANNER e Sergio Baleira,
n°15/2010, de 24/05 (Procurement), no Art. 4/1 e Conflito no acesso e gestão dos recursos naturais em
a Lei n°7/2012, 08/02, nos Artigos 18/k) e 29. Moçambique’, CFJJ e FAO, 2004.

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CIP-Governacao-Intregridade.indb 73 10/28/2013 4:54:02 PM


Governação e Integridade em Moçambique >> Problemas práticos e desafios reais

~~ o deficiente conhecimento e na gestão de terras (órgãos locais do


aplicação da legislação sobre estado e órgãos municipais).
terras pela Administração Na aquisição de direitos sobre a terra
Pública (AP), que se traduz ou do DUAT, coloca-se a complexi-
na ocorrência de conflitos de dade dos procedimentos administra-
terras ocasionados pela AP tivos para a atribuição de DUATs, a
nos momentos da atribuição necessidade de reformar o Cadastro
ou revogação de direitos sobre Nacional de Terras e os Cadastros
a terra. Vejam-se os casos de Municipais e a carência de reformas
Cateme em Tete e de Mulotane na matéria relativa ao ordenamento
na província de Maputo. do território.
Olhando para as dinâmicas de A necessidade de simplificar
Administração Pública da terra, o uso e clarificar os procedimentos
da terra no meio urbano e rural e a administrativos atinentes à atribuição
implementação geral da legislação so- ou reconhecimento é considerada
bre terras, notamos que os principais uma questão crucial, para promover
problemas de governação e integrida- e estimular o investimento no campo
de que afectam a terra relacionam-se e o uso da terra. O despacho de
com (i) a gestão pública da terra, (ii) autorização ou reconhecimento de
a aquisição de direitos sobre a terra DUAT é o ponto de partida que vai
ou do DUAT, (iii) as modificações de preceder as operações de titulação e
direitos sobre a terra ou transmissão registo de DUAT. Significa com isto
do DUAT e (iv) a extinção de direitos que, se o procedimento de autorização
sobre a terra ou do DUAT. ou reconhecimento é mal realizado,
Vários estudos identificaram os este facto terá implicações na validade
principais problemas que afectam a do título e do registo do DUAT.
governação da terra. No âmbito da A legislação actual distingue três
gestão pública da terra destaca-se a processos administrativos relativos à
necessidade de uma melhor repartição autorização ou reconhecimento de
de competências para a autorização DUAT:
de pedidos sobre a terra nas áreas
rurais, a ausência de fiscalização, ~~ o processo relativo ao DUAT
a fraca capacidade de cobrança de adquirido ao abrigo de uma
receitas pelo Estado e a falta de autorização (artigos 24 a 33);
uma política de desconcentração e ~~ o processo relativo ao DUAT
descentralização de competências adquirido por ocupação de
boa-fé (art. 34); e

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Terra - políticas, realidade e desafios

~~ o processo relativo ao DUAT Outros problemas surgem no


adquirido por ocupação pelas processo administrativo de aquisição
comunidades locais (art. 35). do direito de uso e aproveitamento
Em cada um dos 3 tipos de PA acima da terra (DUAT) por ocupação pelas
expostos ocorrem vulnerabilidades e comunidades locais, segundo as
lacunas específicas. normas e práticas costumeiras no
que não contrarie a Constituição.
No processo relativo ao DUAT adqui- O processo de titulação do direito
rido ao abrigo de uma autorização, o de terra comunitária implicava
aspecto que tem merecido atenção é inicialmente o cumprimento dos
a questão de se saber se a fase da au- seguintes passos: denominação da
torização provisória (APrv) deve ser comunidade, demarcação, parecer
mantida ou não. A sua manutenção do administrador, despacho do
ou não depende sobretudo da ava- governador da província e pagamento
liação rigorosa da função e utilidade das despesas com o processo9.
desta fase. Parece que com a APrv
Este regime permitia às comunidades
pretende-se acautelar ou verificar o
locais adquirirem o DUAT por ocu-
grau do cumprimento do plano de
pação, segundo as normas e práticas
exploração, o grau de cumprimen- costumeiras, com relativa facilidade
to da finalidade para que se pediu a burocrática, pois o processo era tra-
terra. Durante esta fase, o particular mitado totalmente a nível local com a
tem um direito “precário”, e o Esta- emissão do parecer do administrador
do goza de amplos poderes, caso se e despacho final de reconhecimento
verifique o incumprimento do plano do governador provincial.
de exploração, sem motivos justifi- Entretanto, o regime apresentado
cados, depois de findo o prazo de acima foi alterado radicalmente com
APrv. Assim, o Estado pode revogar a aprovação do Decreto 50/200710.
a APrv sem direito a indemnização
pelos investimentos não removíveis,
9
Artigo 35 do Decreto do Conselho de Ministros
mas entretanto realizados (artigo 27
n° 68/98, de 08 de Dezembro. Publicado no
da LT-1997). A fase de APrv parece Boletim da República, n° 48, I Série, 3° Suplemento
desempenhar uma função importante de 08 de Dezembro de 2008.
na gestão da terra, no geral, e no con- 10
Aprova a alteração do artigo 35 do
trolo do cumprimento dos propósitos Regulamento da Lei de Terras, aprovado pelo
Decreto 68/98, de 08 de Dezembro, publicado
da atribuição da terra pelos requeren- no Boletim da República, I Série, no 41, 8°
tes, em particular, mas também pode Suplemento, de 16 de Outubro de 2007. A
prejudicar investimentos. validade jurídica deste decreto foi amplamente
posta em causa durante a Conferência
Comemorativa dos 10 anos da Lei de Terras, co-

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CIP-Governacao-Intregridade.indb 75 10/28/2013 4:54:03 PM


Governação e Integridade em Moçambique >> Problemas práticos e desafios reais

Este Decreto no seu artigo único, al- Com efeito, a nova regra trazida pelo
tera o artigo 35, alínea d) do Regula- Decreto 50/2007 parece contrariar o
mento da Lei de Terras de 1998, es- artigo 250, n°1 da Constituição, que
tabelecendo que o processo relativo à estabelece o princípio da desconcen-
titulação do DUAT conterá “decisão tração, e viola os princípios da des-
burocratização e desconcentração
da entidade competente em função da
estabelecidos na Lei sobre os Órgãos
área, conforme definido na alínea a)
Locais do Estado (acima aflorados)13.
do n°1, alínea a) do n° 2 e alínea a) do
n° 3 do artigo 22 da Lei 19/97”. Desde que se aprovou o Decreto
50/2007, a titulação das áreas comu-
A regra do parágrafo precedente é,
nitárias que já era difícil, estagnou.
pois, recente. Com efeito, no Regu-
lamento da Lei de Terras, apenas se Na verdade, não há conhecimento de
impunha o Despacho do Governador terras comunitárias reconhecidas a
no reconhecimento ou titulação do partir dessa altura.
DUAT a favor das comunidades, não Um problema comum aos três proces-
interessando a dimensão da área11. sos administrativos é a ausência de um
No entanto, a disciplina actual, tra-
prazo formal que deve correr desde o
zida pelo novo decreto, estatui que a
início do procedimento até à tomada
decisão da entidade competente será
em função da área, o que levanta uma de decisão pela autoridade competen-
preocupação sobre a conformidade te. Existem práticas dos serviços de
ou não desta nova medida à Lei de cadastros que estabeleciam 90 dias, e
Terras de 199712. mais tarde 60 dias até à tomada de de-
cisão. A Lei 14/2011, em matéria de
prazos para a conclusão de um pro-
organizado pelo Centro de Formação Jurídica e
Judiciária do Ministério da Justiça, a Faculdade cesso administrativo, estabelece que o
de Direito da UEM, e a União Nacional dos procedimento deve ser concluído no
Camponeses (UNAC), de 17-19 de Outubro prazo de 25 dias, a menos que outro
de 2007, em Maputo. Ver síntese Final da
Conferência ( não publicado).
prazo decorra da lei ou seja imposto
11
Para a aquisição do DUAT via pedido, a Lei por circunstâncias excepcionais, e os
de Terras 19/97, no seu artigo 22, distribui as interessados devem ser informados da
competências em função da dimensão da área justificação pelo órgão da conclusão
requerida, assim: n° 1, alínea a) o Governador
Provincial autoriza pedidos de DUAT de áreas
do procedimento nos prazos legais e,
até 1000 hectares, ...n° 2, alínea a) o Ministro da sendo previsível, da data em que a re-
Agricultura autoriza pedidos de DUAT de áreas solução definitiva é tomada.
entre 1000 e 10000 hectares....e n° 3, alínea a) o
Conselho de Ministros autoriza pedidos em áreas
que ultrapassam o limite maximo do Ministro de 13
Chiziane, E. O retorno à concentração e
Agricultura.... centralização do Poder Administrativo em
12
Chiziane, E. op. cit., p. 42. Moçambique, CIEDIMA, 2011, p. 41.

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Terra - políticas, realidade e desafios

Esta disciplina dos prazos da Lei nos locais onde não existam órgãos
n°14/2011 parece impor-se aos pro- municipais, autorizar pedidos de uso
cessos administrativos ligados à atri- e aproveitamento da terra nas áreas
buição ou reconhecimento de DUAT cobertas por planos de urbanização
nas áreas rurais. Assim, entendemos e desde que tenham serviços públicos
que se devem estruturar os diferentes de cadastro” (art. 23).
actos e formalidades que antecedem Assim, notamos que o legislador esta-
a decisão, dentro do prazo de 25 dias. beleceu duas condições prévias para a
A dupla atribuição de DUAT repre- atribuição com validade de um DUAT
senta outro grave problema ao nível nas vilas e cidades/municípios: a exis-
da gestão pública da terra no país. Vá- tência de um Plano de Urbanização
rios órgãos de informação referem-se e de um Serviço de Cadastro. A atri-
de uma forma sistemática a este pro- buição de DUAT em conflito com o
blema. Por exemplo, o Diário de Mo- artigo 23 acima referido torna o acto
çambique de 17 de Outubro de 2012, jurídico em questão invalidado.
página 3, intitula um dos seus artigos Hoje a administração da terra é con-
“Zona turística da praia de Xai-Xai: frontada com a multiplicidade de
Dupla atribuição de terra inviabiliza organismos públicos que têm atri-
construção de casas para magistra- buições e competências na gestão da
dos”. E, na sequência disso, o gover- terra, por exemplo: o Ministério da
nador Raimundo Diomba cancela Agricultura, Ministério do Ambien-
lançamento da primeira pedra. te, Ministério dos Recursos Minerais,
Regra geral, a dupla ou múltipla atri- Governador Provincial, Adminis-
buição da terra resulta da acção da trador Distrital, Presidente do Con-
autoridade administrativa, situação selho Municipal, etc. Esta situação
que resulta da fraca capacidade do gera conflitos positivos e negativos de
Estado de gerir convenientemente a competências entre os referidos orga-
terra. A dupla atribuição da terra ori- nismos.
gina conflitos que vão opor os sujeitos Tomemos, como exemplo, a confron-
que adquiriram o DUAT entre si, e tação das funções de coordenação
aquelas e a autoridade administrativa do “ordenamento do territorial”, do
que atribui a terra. “planeamento territorial” e do “sis-
Com efeito, a Lei de Terras dispõe tema de gestão territorial”, por um
que “Compete aos Presidentes dos lado; e a função de “atribuição da pe-
Conselhos Municipais e de Povoação didos sobre a terra”, por outro. Ora,
e aos Administradores de Distritos, a Lei do Ordenamento do Território

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Governação e Integridade em Moçambique >> Problemas práticos e desafios reais

(19/2007), responsabiliza o Ministé- A PNT salientou a necessidade de ter


rio para a Coordenação Ambiental uma lei flexível, que não especificasse
(MICOA) pela coordenação das ta- o que fazer em cada situação cultural
refas. A Lei de Terras entrega a res- diferente, mas admitisse o princípio
ponsabilidade de atribuição ao Minis- de que em cada região pudesse fun-
tério de Agricultura e outros órgãos cionar o respectivo sistema de direi-
do Estado (Presidente do Conselho tos consuetudinários, de acordo com
Municipal, Administrador Distrital, a realidade local. Esta flexibilidade
Governador Provincial e Conselho deveria permitir igualmente a sua ac-
de Ministros). Muitas vezes, ocorre tualização ao longo do tempo, sem
que as decisões tomadas no âmbito recorrer a revisões periódicas, princi-
do atendimento de pedido de DUAT palmente no que respeita ao cadastro
entram em contradição com os instru- do sector familiar.
mentos de ordenamento do território, Os princípios e objectivos fixados na
geridos pelo MICOA. PNT continuam válidos passados 15
anos. Contudo, tendo em conta as
Áreas prioritárias de transformações económicas, sociais
intervenção e reforma e políticas, nomeadamente, a consti-
tuição da zona regional do Comércio
Segundo a Política Nacional de Terras, Livre, é preciso avaliar a possibilida-
os sistemas costumeiros são um de de introdução de uma nova linha
recurso inquestionável e oferecem um de orientação para o acesso e uso da
serviço “público” a custo quase zero terra, designadamente a institucio-
para o Orçamento Geral do Estado, nalização do “ mercado de títulos de
na administração e gestão de terras terra”15.
nas zonas rurais. Por exemplo, estes
sistemas funcionam eficazmente na de Terra, CFJJ, 2004, pp. 6-10.
reintegração da população deslocada 15
Professor José NEGRÃO, “Que politicas de
no interior do país e dos regressados Terras para Moçambique?” Conferência Nacional
de Terras, Núcleo de Estudos da Terra, 1996,
dos países vizinhos. Tal como a PNT p. 6: “...existe uma distinção entre mercados de
recomenda, estes sistemas práticos terras e mercados de títulos de terra, enquanto
que já se aplicam na vasta maioria no primeiro se negoceia a transferência da
propriedade, no segundo transferem-se os títulos
dos casos de ocupação e uso da
de uso e aproveitamento, permanecendo o Estado
terra, deveriam ser considerados na sempre como o proprietário dos recursos, embora
legislação sobre terras14. os direitos de uso possam ser negociados entre
terceiros...”. É verdade que existe argumento
contrário àquela pretensão que defende que
Resolução do Conselho de Ministros 10/95.
14
as comunidades facilmente seriam enganadas
Ver também Maria Conceição Quadros, Manual e mesmo forçadas a venderem as suas terras

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Terra - políticas, realidade e desafios

Em relação à legislação sobre terras, Em termos da administração de


perante a diversidade de textos terras, uma primeira recomendação
normativos incidindo sobre a terra e é a modificação do actual regime
questões rurais, deveríamos começar de demarcação que coloca toda a
a reflectir sobre a pertinência ou responsabilidade no particular. A
não da criação de um Código Rural iniciativa de demarcar é do particular.
ou Agrário. A França, por exemplo, Na verdade, o dever e o impulso
possui um Código Rural e Cuba para demarcar a terra deveria ser
estuda a possibilidade de codificação do Estado. Com efeito, a terra é do
do Direito Agrário. Estado, e é quem melhor a conhece e
Outra reforma legal recomendada é tem meios para a demarcar. O que se
sobre o papel do administrador distri- deveria fazer é impor ao particular o
tal. Se o distrito é a base da planifi- pagamento de taxas que cumprissem
cação do desenvolvimento, seria lógi- os custos para a demarcação.
co atribuir ao administrador distrital Também é preciso criar um diagrama
competência para autorizar pedidos que mostra claramente a sequência
sobre a terra nas áreas rurais da sua dos actos e formalidades que correm
área de jurisdição. Claro que este desde a entrada do requerimento do
poder seria circunscrito a determina- pedido da terra até à tomada de deci-
dos limites de terra. Por exemplo, o são, dada a relativa complexidade do
administrador poderia autorizar pe- Regulamento da Lei de Terras.
didos de terra de áreas até ao limite No âmbito da titulação do DUAT das
de 100ha. Do exposto, depreende-se a comunidades, o poder decisório deve-
necessidade de promover uma melhor ria ser mantido ao nível do governa-
repartição de competências na auto- dor, dada a reconhecida proximidade
rização administrativa de pedidos so- desta figura às comunidades locais, e
bre terras nas zonas rurais, incluindo não impor a eventualidade da inter-
o administrador distrital nas faculda- venção do Conselho de Ministros.
des de atribuição da terra. Isto impli- No fundo, a existência de diferentes
ca a alteração do artigo 22 da Lei de autoridades na atribuição do DUAT,
em função da dimensão da área re-
Terras.
querida, faz sentido para as situações
de pedido de DUAT. No entanto, no
caso em análise, estamos a falar do
por uma ninharia, o que iria pôr em causa
a segurança alimentar de grande número de
mero reconhecimento de um direito.
camponeses. O Estado tem, pois, a obrigação de No interesse de uma boa gestão da
proteger os seus cidadãos, não podendo, portanto,
permitir a total liberalização do mercado de terra pelas comunidades, julgamos
títulos de terra. que o Decreto 50/2007 deveria ser

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Governação e Integridade em Moçambique >> Problemas práticos e desafios reais

objecto de revogação e recomenda- conflitos) deve ser reforçada e a peno-


se a restauração do regime anterior, sidade de manter um sistema em que
onde o governador provincial seria a vários organismos intervém na gestão
autoridade competente a título exclu- da terra justifica a criação de um orga-
sivo na emissão do despacho final de nismo público autónomo, quer dizer
titulação do DUAT a favor das comu- de uma pessoa jurídica com autono-
nidades. mia administrativa, financeira e patri-
No que respeita aos processos admi- monial, para que aqueles propósitos
nistrativos de DUAT, justifica-se que possam ser alcançados. Esta solução
os Serviços Centrais do Cadastro: pri- não é nova no nosso sistema adminis-
meiro, ajustem o processo administra- trativo. Veja-se o caso da Autoridade
tivo aos 25 dias e, segundo, produzam Tributária. Esse organismo público
uma circular informativa aos sectores autónomo pode ser uma Autoridade
que lidam com a administração da Nacional da Administração da Terra
terra. Também se impõe a simplifica- criada pelo Conselho de Ministros.
ção dos procedimentos administrati-
vos relativos à atribuição e reconheci-
mento de DUAT.
O reforço da boa governação e da in-
tegridade, tendo em conta a supera-
ção dos problemas das duplas ou múl-
tiplas atribuições de DUAT, implica a
aprovação prévia de planos de urba-
nização e a criação ou melhoramento
dos serviços de cadastro. Enquanto
aquelas duas condições não são cria-
das, recomenda-se a suspensão dos
processos de atribuição de terra ou a
não atribuição do DUAT até que se
aprove o plano de urbanização, como
aliás, o Município da Cidade de Ma-
puto adoptou no passado.
Por fim, a capacidade do Estado para
executar as funções de administra-
ção de terras (jurídico, regulamenta-
ção, fiscal, cadastral e resolução de

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Capítulo 9 conhecida por garimpo, está definida
na lei como o trabalho individual, de
quem utiliza instrumentos rudimenta-
Governação Ambiental res, aparelhos manuais ou máquinas
e Garimpo: Políticas, simples e portáteis, para extracção de
minerais metálicos ou não metálicos,
Realidade e Desafios de pedras preciosas, semipreciosas,
em depósitos de aluvião ou aluvião,
Carlos Manuel Serra e João Carlos de
Figueiredo Almeida
nos cursos de água ou nas margens
dos rios e lagos2.
O capítulo sobre a governação am-
biental compreende uma análise da
Quadro Legal, Institucional e
exploração artesanal de recursos
naturais e o seu impacto no meio am- de Políticas Públicas
biente. Além da análise, pretende-se Moçambique atravessa um momento
propor algumas soluções para refor- único na sua história, verificando-se
çar a boa governação e integridade na um impulso enorme do sector da in-
gestão ambiental. dústria extractiva, com destaque para
Governação ambiental abarca o a entrada em cena dos primeiros gran-
“sistema de liderança assente num des projectos de mineração (carvão
modelo institucional responsável e mineral, areias pesadas, gás natural),
responsivo, que integra os cidadãos mas também da corrida à exploração,
no processo de tomada de decisões por via da pequena exploração de re-
nas questões de ambiente e recursos cursos minerais feita por milhares de
naturais, que assegure a precaução de garimpeiros nacionais e estrangeiros
impactos susceptíveis de causar danos (com enfoque na extracção de ouro e
ambientais e sociais, que privilegie a de pedras preciosas e semi-preciosas).
feitura e correspondente implementa- Assiste-se a um verdadeiro cresci-
ção plena de um quadro jurídico-legal mento do sector mineiro, que nem
bom, adequado, justo e eficaz, dirigi- sempre tem conseguido realizar-se
do a garantir a gestão sustentável dos da forma mais regrada e sustentável,
recursos naturais, e o acesso à justiça e
à equidade na partilha dos benefícios Boa Governação na Gestão Ambiental e dos Recursos
decorrentes do uso de tais recursos Naturais em Moçambique 2010 - 2011 (coordenação
naturais”1. A mineração artesanal, de Alda Salomão e Carlos Serra), Maputo,
Centro Terra Viva, 2012.
2
In. Glossário da Lei de Minas, Lei n.º 14/2002,
1
SERRA, Carlos Manuel et al, 1.º Relatório de de 26 de Junho.

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Governação e Integridade em Moçambique >> Problemas práticos e desafios reais

particularmente na pequena mineira. A primeira missão atribuída ao Estado


Chegam notícias de abertura de novos face à protecção do ambiente, decorre
campos de garimpo nos mais diversos da Constituição, onde está adstrito ao
cantos do país, com as províncias Estado, preservar e restaurar todos os
de Manica, Sofala, Nampula, Tete e processos ecológicos essenciais e pro-
Cabo Delgado como destinos prefe- mover o maneio ecológico das demais
ridos para as actividades de garimpo. espécies e dos ecossistemas. Esta obri-
Várias pesquisas e estudos têm vin- gatoriedade deriva do princípio da
do a mostrar que, do exercício da protecção à vida5, uma vez que esta
actividade mineira3, há registos cada depende directamente da protecção e
vez maiores de um crescente des- preservação do meio ambiente.
matamento, da poluição do sistema Ao se pretender dar corpo ao texto
hídrico, da destruição de habitats, da constitucional, em 1997, foi aprovada
fragmentação e degradação de flo- a Lei do Ambiente, que veio definir as
restas, do assoreamento dos rios, e bases legais para a utilização e gestão
da poluição das águas interiores e da correctas do ambiente e suas compo-
costa marítima. nentes, com vista à materialização de
O direito a um ambiente ecologica- um sistema de desenvolvimento sus-
mente equilibrado pode ser caracteri- tentável no país6. A Lei do Ambiente
zado como direito fundamental, visto fixa um quadro institucional básico
que decorre do princípio fundamental de protecção do ambiente, elegendo
da dignidade da pessoa humana4, de normas gerais de proibição de todas
tal modo que é impossível assegurar as actividades que causem a degrada-
a própria vida humana, sem um am- ção ambiental para além dos limites
biente propício para o seu desenvolvi- legalmente definidos, destacando-se,
mento. Existe, por conseguinte, uma neste caso, a poluição7, normas espe-
conexão entre o direito fundamental ciais de protecção da biodiversidade8,
ao meio ambiente ecologicamente e a previsão de um conjunto de ins-
equilibrado e o princípio fundamental trumentos de prevenção ambiental,
da dignidade da pessoa humana. como o licenciamento ambiental, o
processo de avaliação do impacto am-
biental e a auditoria ambiental9. Este
3
Definida na lei como conjunto de operações que 5
Artigo 40 n° 1 da C.R.M de 2004.
consistem no desenvolvimento, de forma conjunta 6
Artigo 2 da Lei n° 20/97 (Lei do Ambiente).
ou isolada de acções como o reconhecimento,
prospecção, pesquisa, mineração, processamento
7
Cfr. Artigos 9 e 10 da Lei do Ambiente.
e tratamento. In. Glossário da Lei de Minas. 8
Cfr. Artigos 12 a 14 da Lei do Ambiente.
4
Artigo 3 da C.R.M de 2004. 9
Cfr. Artigos 15 a 18 da Lei do Ambiente.

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Ambiente

instrumento estabelece ainda um con- ambiental, as avaliações de impactos


junto de direitos (informação, educa- ambientais e as auditorias ambientais.
ção e acesso a justiça)10, bem como Nesse sentido, foi aprovado o Regula-
deveres (obrigações de participação mento sobre o Processo de Avaliação
de infracções e utilização responsável do Impacto Ambiental (por via do
dos recursos naturais)11. Decreto 45/2004, com as alterações
Relativamente à proibição geral da introduzidas pelo Decreto 42/2008),
poluição do ambiente, abre-se espaço a Directiva dos Estudos de Impacto
para a sua densificação por via de Ambiental (Diploma Ministerial
Regulamentos e, no caso particular, 129/2006), contando também a Di-
para a minimização dos impactos rectiva Geral de Participação Pública
ambientais decorrentes da minera- no Processo de Avaliação de Impac-
ção, destaca-se o Regulamento sobre to Ambiental (Diploma Ministerial
Padrões de Qualidade Ambiental e de 13/2006) e o Regulamento relativo
Emissão de Efluentes (aprovado pelo ao Processo de Auditoria Ambiental
Decreto 18/2004,), o Regulamento (Decreto 25/2011).
sobre a Gestão de Resíduos (aprova- Uma outra parte fundamental do
do pelo Decreto 13/2006) e o Regula- quadro legal é a Lei de Minas (Lei
mento sobre a Prevenção da Poluição 14/2002)12. Os objectivos fundamen-
e Protecção do Ambiente Marinho e tais expressos nesta lei incluem o
Costeiro (aprovado pelo Decreto n.º exercício da actividade mineira em
45/2006). harmonia com as melhores e mais
No capítulo da prevenção de danos seguras práticas mineiras, com ob-
ambientais, definiram-se mecanis- servância dos padrões de qualidade
mos de prevenção, de cumprimento ambiental legalmente estabelecidos,
obrigatório, onde o objectivo fun- e sem perder de vista, o alcance do
damental é prevenir a ocorrência de desenvolvimento sustentável. Para
impactos irreversíveis ao ambiente, melhor interpretação desta Lei, o
que advêm do desenvolvimento de Regulamento da Lei de Minas (De-
actividades susceptíveis de causar creto 26/2004), fixa como objecto,
impactos ambientais sérios e irre- o estabelecimento de normas para
versíveis (incluindo as extractivas), prevenir, controlar, mitigar, reabilitar
nomeadamente: o licenciamento e compensar os efeitos adversos que
a actividade mineira possa ter sobre
o ambiente, com vista ao desenvol-
10
Cfr. Artigos 19, 20 e 21 da Lei do Ambiente.
vimento sustentável. O exercício da
11
Cfr. Artigos 23 e 24 da Lei do Ambiente.
12
Artigo 2, da Lei 14/2002.

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Governação e Integridade em Moçambique >> Problemas práticos e desafios reais

actividade mineira, incluindo todas flora e a fauna, e nem atentem contra


as operações que consistem no de- a saúde humana”16.
senvolvimento, de forma conjunta ou O quadro institucional em Moçambi-
isolada, de acções como o reconheci- que assenta nos papéis do Ministério
mento, prospecção e pesquisa, mine- para a Coordenação da Acção Am-
ração, processamento e tratamento de biental (MICOA) e o Ministério dos
produtos mineiros, deve ser precedido Recursos Minerais (MIREM). Ao
de autorização concedida pela entida- MICOA foram conferidas importan-
de competente13. tes atribuições e competências, entre
No que diz respeito ao garimpo, veja- as quais, a de garantir os mecanismos
se o regime da senha mineira, aplicá- de ligação e coordenação entre os
vel às operações mineiras de pequena vários sectores no âmbito da gestão
escala levadas a cabo por indivíduos ambiental, e a fiscalização ambiental
ou cooperativas, bem como às activi- através da denominada Inspecção –
dades de reconhecimento, prospecção Geral.
e pesquisa que não envolvam métodos O MIREM é responsável por dirigir
mecanizados14, mas cujas actividades e executar as políticas no âmbito da
serão realizadas com observância das investigação geológica, inventariação
normas básicas de gestão ambiental15. e exploração dos recursos minerais,
As tais Normas Básicas de Gestão incluindo o carvão e os hidrocarbo-
Ambiental para a Actividade Mineira, netos17. O MIREM tutela o Fundo
foram fixadas no Diploma Ministerial de Fomento Mineiro (FFM) que tem
189/2006. Este instrumento prevê como atribuições o apoio e assistên-
regras dirigidas à minimização dos cia financeira de acções que visem o
danos ambientais e dos impactos só- incremento da exploração mineira
cio-económicos negativos resultantes de pequena escala e artesanal e do
das actividades mineiras de pequena aproveitamento e valorização dos res-
escala, bem como “garantir que estas pectivos produtos, bem como a pro-
actividades sejam conduzidas com moção de formas de associação para
uso de métodos simples que evitem a o desenvolvimento do sector mineiro
poluição do ar, do solo e das águas, de pequena escala artesanal18.
que não afectem significativamente a
16
Cfr. Artigo 1 do Diploma Ministerial n.º
189/2006.
13
Cfr. Artigo 5, n.º 2, da Lei de Minas. 17
Cfr. Artigo 1 do Estatuto Orgânico do MIREM,
Artigos 73 a 89, do Regulamento da Lei de
14
aprovado pela Resolução n.º 13/2010 de11 de
Minas, aprovado pelo Decreto n.º 62/2006. Novembro.
15
Artigo 38, n.º 1, a) da Lei de Minas. 18
Cfr. Artigo 3 do Decreto n.º 17/2005, de 24 de

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Ambiente

Problemas práticos e desafios mitigação dos impactos negativos que


reais esta actividade mineira provoca ao
ambiente. No entanto, optou-se pela
O quadro legal e institucional aci- respectiva vinculação a regras básicas
ma exposto permite constatar que de boa gestão ambiental, cujo grau
a actividade mineira encontra-se, de aplicabilidade é baixo ou pratica-
no que diz respeito ao garimpo, em mente inexistente em muitas áreas de
desconformidade com as bases gerais garimpo. Em consequência, o garim-
definidas na Lei do Ambiente, care- po é licenciado e realizado de forma
cendo de um reforço geral dos aspec- claramente contrária a qualquer
tos de sustentabilidade na gestão dos cuidado de precaução de impactos no
recursos minerais, quer na vertente do ambiente e na saúde pública.
licenciamento, quer da organização
da actividade propriamente dita. O O modelo legislativo descura por
grande desafio é de, efectivamente, completo a realidade no terreno, onde
passar da definição de meras normas a actividade de garimpo é realizada,
de gestão ambiental para um escalão em muitos casos, por dezenas ou cen-
mais rigoroso de protecção e conser- tenas de titulares de senha mineira,
vação ambiental no exercício da acti- com recurso aos mais diversos ins-
vidade mineira artesanal, o que pode trumentos e equipamentos de explo-
ser feito no exercício de revisão da ração e processamento, e que juntos,
Lei de Minas, actualmente em vigor. exercem um impacto ambiental de
Está, portanto, em causa a qualidade grandes proporções, causando danos
do quadro legal. ambientais sérios e significativos.

À mineração artesanal não se esten- Em relação às instituições, a realida-


dem os procedimentos de prevenção de mostra que ainda se verifica uma
ambiental aplicáveis às actividades gritante incapacidade de controlo,
que supostamente acarretam maiores supervisão e fiscalização. A quase
impactos ambientais, como é o caso total falta de fiscalização da obser-
da grande indústria extractiva do vância das normas básicas de gestão
carvão mineral, das areias pesadas ambiental conduziu ao actual cenário
e do gás natural. As actividades de de descontrolo total que se verifica
garimpo não são condicionadas à nas áreas territoriais onde são pratica-
observância de um plano de gestão das actividades de garimpo. Embora
ambiental, acompanhadas por me- tenha algum impacto que se pode
didas de monitoramento com vista à considerar positivo do ponto de vista
económico, na medida em que contri-
Junho.
bui, até certo ponto, para a melhoria

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Governação e Integridade em Moçambique >> Problemas práticos e desafios reais

das condições de vida de alguns mem- Vários aspectos estão em causa,


bros da comunidade, o garimpo traz designadamente: a baixa previsão
consigo vários problemas ambientais, orçamental para as actividades fisca-
sociais e económicos. A título de lizadoras; a não alocação directa à
exemplo, refere-se as crianças que, fiscalização de uma percentagem das
aliciadas pelo rendimento imediato, taxas provenientes do licenciamento
abandonam as aulas para se dedica- e das multas aplicadas aos prevari-
rem àquela actividade, às mortes por cadores; o próprio défice no modelo
soterramento e aos casos de contami- de fiscalização adoptado, centrado na
nação com produtos químicos usados previsão de unidades de fiscalização
no processo de lavagem dos minérios, em cada sector do Estado, funcionan-
sem quaisquer medidas de protecção, do de forma isolada ou fragmentada,
à erosão dos solos por causa de esca- e sem os necessários recursos patri-
vações e não tapamento dos buracos moniais, financeiros e humanos20.
depois de esgotado o minério, aos As opções de desenvolvimento em
problemas de saúde pública causados Moçambique, relacionadas com a
pelo assoreamento dos rios, contami- indústria extractiva e o seu enqua-
nação com mercúrio e turvação das dramento na economia nacional, na
águas. Além disso, notam-se proble- gestão correcta das componentes am-
mas económicos com as escavações bientais, têm mostrado que, em pri-
que impedem a agricultura e a criação meiro lugar, para os gestores públicos,
de gado, afectando a subsistência da do topo e com ramificações a baixo,
população e o não cumprimento das o Estado é uma fonte de rendimento
obrigações fiscais. dos seus interesses individuais, o que
Verificamos que quer o MICOA, quer dificulta o grau de tradução prática e
o MIREM integraram, nos respec- de aplicação da legislação ambiental,
tivos quadros orgânicos, a vertente de florestas e de terras.
fiscalizadora. Contudo, conforme Segundo um jurista ambiental, “há
ficou vincado no Relatório de Moni- um descontrole grosseiro das normas
toria da Boa Governação Ambiental existentes, sendo muitas vezes usada a
2010 – 2011, publicado pelo CTV, há justificação do aparente conflito entre
um grande caminho ainda a percorrer o ambiente e o desenvolvimento, o
para tornar as instituições compe-
tentes capazes de intervir de forma
Boa Governação na Gestão Ambiental e dos Recursos
eficaz e bem-sucedida no controlo da Naturais em Moçambique 2010 - 2011 (coordenação
exploração dos recursos naturais19. de Alda Salomão e Carlos Serra), Maputo,
Centro Terra Viva, 2012, pp. 43 – 162.
19
SERRA, Carlos Manuel et al, 1.º Relatório de 20
Idem, pp. 320 – 312.

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Ambiente

que na verdade é um paradoxo, se Para avançar com esta agenda, fazem-


considerarmos que o país assume se recomendações concretas no sen-
claramente a protecção do ambiente tido de assegurar que as actividades
como prioridade […] Veja-se o de mineração artesanal se realizem
problema do controle das florestas duma maneira equitativa, garantin-
e fauna, que são exploradas de do benefícios económicos e sociais
forma ilegal e danosa, por falta de a todos intervenientes (rendimento
meios materiais, recursos humanos adicional para muitas famílias, e uma
suficientes e também a corrupção. Por alternativa de emprego para a juven-
vezes, a apatia por parte dos órgãos tude), bem como às comunidades
de tutela, e deixam que as situações das áreas de extracção e, ao mesmo
referidas aconteçam sem nada tempo, minimizando os danos am-
fazerem21... A responsabilidade para bientais23.
colmatar os problemas recai sobre o Primeiro, importa retratar algumas
governo, porque o povo os elegeu e recomendações pertinentes feitas em
eles é que são os responsáveis. Além estudos recentes. O “1º Relatório
do mais, quando o governo quiser que de Boa Governação na Gestão Am-
o garimpo termine vai terminar. Parar biental e dos Recursos Naturais em
com o garimpo é mexer com vários Moçambique 2010 – 2011” destaque
interesses”22. a necessidade de o garimpo passar a
merecer um tratamento mais sério,
Áreas prioritárias de tendo presente que todas as acções
intervenção e reforma até ao momento realizadas, incluindo
a intervenção policial, o treinamento
O problema do garimpo pode ser lido dos garimpeiros e o incentivo ao
e analisado à luz dos princípios da boa associativismo, poucos ou nenhuns
governação, tendo presente que nos resultados têm produzido, passando
conduz a promover o fortalecimento a solução pela aposta em estratégias
do quadro legal, a fortalecer a eficácia alternativas de desenvolvimento
do Governo, o Estado de Direito, bem sócio-económico. De seguida, o Go-
como a justiça e equidade. verno deveria legislar, regulamentar e
controlar o uso do mercúrio na mine-
ração artesanal no país, com destaque
21
Gildo Espada, Jurista ambiental e docente no
para o reforço do papel do FFM. Em
Instituto Superior de Ciências e Tecnologias de terceiro lugar, recomenda-se que se
Moçambique.
22
Dr.Augusto Serôdio Rututo-entrevista
concedida na Procuradoria Provincial de Manica. 23
Idem, pp. 22 – 23/

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Governação e Integridade em Moçambique >> Problemas práticos e desafios reais

trabalhasse na instalação de refinarias Mas as reformas necessárias devem ir


de ouro em Manica e noutros pontos além das recomendações levantadas
do país como boa solução para travar em estudos anteriores. No que res-
o garimpo ilegal e respectivos impac- peita o quadro institucional, deve-se
tos ambientais24. O “Estudo sobre a fazer o planeamento prévio de forma
Mineração Artesanal, Associativismo a direccionar o desenvolvimento
e Tecnologias para o seu Aprovei- regional. Caso contrário, as popula-
tamento Sustentável em Moçambi- ções locais e rurais continuarão a ser
que”25 recomenda: exploradas pelas grandes empresas.
~~ o início do processo de criação Acima de tudo o Estado deve pautar
e/ou potenciação de associa- pela exigência suprema de aproximar
ções de mineiros artesanais; a economia e a preservação do meio
ambiente, visto serem estes os requisi-
~~ a eliminação de senhas mi- tos essenciais para o desenvolvimento
neiras para a exploração do de qualquer sociedade moderna.
ouro no distrito de Manica, de
modo a permitir que esta seja É urgente a criação de capacidade
feita sob medidas de grande técnica, ao nível do Governo, para as-
responsabilidade ambiental segurar a realização de estudos. Isso
(por exemplo, planos de gestão permitiria a monitoria e fiscalização
ambiental); do sector extractivo, em especial das
operações das empresas, a monitoria
~~ o fortalecimento das medidas e análise dos rendimentos ganhos ver-
de controlo e punitivas aos sus o pacote que seria estipulado para
garimpeiros ilegais; e a mitigação dos impactos negativos
~~ a definição de uma percenta- criados ao ambiente em resultado
gem no imposto de produção da actividade desenvolvida26 e, deste
para alocação às comunidades modo, se materializaria o princípio
das regiões de extracção, com “poluidor/pagador”. Este princípio
vista a encorajá-las a desempe- tem como fundamento a internacio-
nhar um papel no desenvolvi- nalização dos custos sociais da activi-
mento sustentável local. dade produtiva. De acordo com este
princípio, arca o causador da polui-
ção ou contaminação, com os custos
necessários à diminuição, eliminação
24
Idem, p. 37.
25
GEOIDE CONSULTORIA LIMITADA,
Estudo sobre a Mineração Artesanal, Associativismo e 26
CANOTILHO, Gomes, citado por, SERRA,
Tecnologias para o seu Aproveitamento Sustentável em Carlos/ Cunha, Fernando, Manual de Direito do
Moçambique, ITC, 2010 Ambiente, p.59.

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Ambiente

ou neutralização dos danos por si que não seja acompanhado pela cor-
causados. respondente capacidade de controlo e
A actividade de extracção ilegal do de fiscalização põe em causa a própria
ouro deve ser estancada e estritamente continuidade dos recursos naturais,
controlada, por via do poder coercivo com graves prejuízos económicos,
estatal, na medida em que, como ficou sociais e ambientais. Isto é, sem um
demonstrado anteriormente, quando sistema de fiscalização eficiente,
desenvolvida sem que estejam asse- dinâmico, abrangente, motivado e
gurados os mecanismos de prevenção preventivo, toda a sustentabilidade
dos impactos negativos ao ambiente, fica comprometida, pondo em risco
as consequências que dai advêm são, a continuidade dos recursos naturais.
em muitos casos, irreversíveis. Tais Para o efeito, importa criar melhores
são os casos dos inúmeros danos que condições para que a fiscalização seja
o mercúrio causa à saúde das pessoas, efectiva, o que passa necessariamen-
e ao sistema hídrico público, tendo te pela afectação de mais recursos
sempre em linha de atenção que o ser humanos bem capacitados, recursos
humano é componente importantís- materiais e financeiros.
sima do ambiente, não descurando Se é verdade que o modelo legislativo
que se deve ter em linha de conta que em vigor, que rege o garimpo, não é
o ambiente deve ser sempre visto de perfeito, sobretudo quando compa-
maneira integrada. rado com o disposto na legislação
Uma última recomendação ao nível ambiental, é igualmente verdade que,
institucional é a necessidade de ga- se fosse plenamente observado, ga-
rantir a participação inclusiva para se rantindo-se a devida fiscalização per-
aferir os indicadores de boa governa- manente, traduzir-se-ia num cenário
ção e desenvolvimento sustentável do totalmente diferente do actual – no
país, com realce para os locais onde se qual o garimpo está a ser realizado à
desenvolvem as actividades ou onde custa de uma grave degradação am-
se encontra o empreendimento, pois biental, da produção de danos contra
nada adianta um país possuir um PIB a saúde pública e de enormes prejuí-
altíssimo se as pessoas e a sociedade zos na economia nacional resultantes
que compõem esse país sofrem várias da perda de receitas significativa nas
formas de exclusão social, nomeada- modalidades de taxas de licenciamen-
mente, a pobreza. to/comercialização e de impostos
sobre a actividade mineira.
Em termos legais, é preciso realçar
que o licenciamento de actividades Ademais, o licenciamento não deve-
rá ser feito, portanto, sem que haja

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Governação e Integridade em Moçambique >> Problemas práticos e desafios reais

prévia capacidade de fiscalização, ferramentas apropriadas. O Governo


sob o risco de avultados danos de na- deve auto avaliar-se de forma a envol-
tureza económica (perda de riqueza ver os cidadãos no processo de for-
resultante da exploração e exportação mulação de políticas, na medida em
ilegal), social (afectando as bases de que estas políticas são voltadas para
sustento das comunidades), ambien- a colectividade e no interesse dessa
tal (sabendo que a exploração ilegal é mesma colectividade.
feita sempre com desrespeito à legis-
lação ambiental e à custa de avultados
danos ambientais), aplicando-se crité-
rios à mineração de pequena escala,
para que estas actividades estejam
também em consonância com os
princípios ambientais plasmados no
artigo 4 da Lei do Ambiente.
A actividade da mineração de ouro
é hoje feita maioritariamente em
regime de senha mineira, atribuída a
operadores artesanais, que actuam,
grande parte, fora do controlo das
instituições competentes, bem como
dos padrões básicos da boa gestão am-
biental, e da sustentabilidade econó-
mica e social. Urge eliminar o regime
de senha mineira, fortalecendo, em
alternativa, a dimensão ambiental do
regime de certificado mineiro, através
da melhoria do leque de normas de
gestão ambiental.
O Governo de Moçambique deve
investir tempo e recursos, e, acima
de tudo, deve pautar por desempe-
nhar a sua função, nomeadamente,
a gestão da coisa pública, assumin-
do o compromisso no processo de
construção de políticas institucionais
bem estruturadas, desenvolvendo as

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Capítulo 10 tomadas pelo sector público relacio-
nadas com estas recomendações.

Sector Público Em 2012 foi aprovada a Lei de Probi-


dade Pública - LPP (Lei 16/2012 de 14
José Jaime Macuane de Agosto), que introduz a obrigato-
riedade dae declaração de património
Este capítulo compreende uma análi- público dos gestores de áreas sensíveis
se em torno da definição, organização como Autoridade Tributária, gestores
e funcionamento do sector público, e responsáveis da Administração
das capacidades existentes, da quali- Central e Local do Estado, mas não
dade da gestão financeira, incluindo o especifica de que gestores particular-
procurement, da prestação dos serviços mente se trata e, em termos norma-
públicos, da gestão dos recursos hu- tivos, continua a omissão quanto à
manos e do quadro geral de políticas necessidade de controlo do patrimó-
públicas que influenciam o funciona- nio de funcionários directamente liga-
mento e governação do sector público dos à área de finanças e procurement
e a prestação de serviços. público, pelas oportunidades que as
mesmas representam de apropriação
ilícita de bens públicos. Quanto ao
Sobre as recomendações do património público, estranhamente,
RGIM 2008 apenas se contempla a obrigatorieda-
de de declaração de bens dos gestores
O RGIM 2008 recomendou a apro- de património público afectos às
vação da Carta da Função Pública, a Forças Armadas e à Polícia, deixando
aprovação da Política Salarial e da Es- de explicitar um leque muito vasto
tratégia de HIV/SIDA, a publicação de gestores de património público,
dos relatórios da Inspecção Geral das remetendo o seu enquadramento à
Finanças (IGF), a regulamentação do interpretação subjectiva do que se
conflito de interesses, o controlo e ve- entende por gestores e responsáveis.
rificação da situação patrimonial dos A difusão e divulgação do conteúdo
funcionários que lidam com o procu- das declarações do património e ren-
rement e a regulamentação de um pe- dimento ainda é proibido, mas abre-
ríodo de quarentena no envolvimento se a possibilidade do seu acesso por
de funcionários seniores em negócios indivíduos, desde que justificado e
privados que envolvem as instituições sujeito à aprovação da instituição de-
das quais cessaram funções. Abaixo positária (Procuradoria ou Tribunal
são apresentadas algumas medidas Administrativo).

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CIP-Governacao-Intregridade.indb 91 10/28/2013 4:54:04 PM


Governação e Integridade em Moçambique >> Problemas práticos e desafios reais

A LPP também colmata a falta de de habitação e subsídio de funeral.


regulamentação sobre o período de Em 2009, foram também aprovadas
quarentena dos servidores públicos Estratégias de Género da Função
nas suas relações com as suas antigas Pública, combate ao HIV/SIDA e
instituições, ao indicar a proibição de da Pessoa Portadora de Deficiência
o servidor público obter benefícios da Física.
sua antiga instituição por um período
de 2 anos após cessar o vínculo com
a mesma, e de uso estratégico da in- Ponto de Situação do Quadro
formação da antiga instituição para Legal, Institucional e de
benefício próprio. Políticas Públicas
A Assembleia da República, através No âmbito da organização e gover-
da Resolução 67/2012 de 28 de De- nação do sector público, destaca-se
zembro, ratificou a Carta Africana a criação da Inspecção Geral Ad-
Sobre os Valores e Princípios da Fun- ministrativa do Estado (IGAE) e a
ção e Administração Públicas, cuja aprovação do Decreto 12/2009 que
operacionalização está a cargo do Go- Regulamenta as Actividades de Fis-
verno. Em Abril de 2013, o governo calização e Inspecção Administrativa
aprovou o Guião para a Elaboração do Estado; a aprovação da Lei de Ba-
da Carta de Serviços Públicos, que ses da Organização e Funcionamento
fixa elementos de desempenho nos da Administração Pública - LEBOA
serviços específicos, através dos quais (Lei 7/2012 de 8 de Fevereiro), e a lei
os cidadãos podem aferir a qualidade que regula a Actuação e Formação da
do serviço e, eventualmente, apresen- Vontade da Administração Pública e
tar reclamações. Estabelece as Normas de Defesa dos
Em Setembro de 2008, o Governo Direitos e Interesses dos Particulares
aprovou a nova política salarial de (Lei 14/2011 de 10 de Agosto, tam-
médio prazo. Dentre os destaques bém chamada Lei do Procedimento
da nova política salarial está (i) a Administrativo - LPA).
introdução de incentivos para os A LEBOA define a natureza e o
trabalhadores que estão no nível de escopo da administração directa
base/local, com o pagamento de um e indirecta do Estado, as formas
subsídio de localização aos funcioná- de organização e funcionamento
rios afectos em regiões distantes das dessas entidades, sua representação
suas zonas de origem, e (ii) subsídios no estrangeiro, a descentralização
não remuneratórios como assistência e o conceito de serviço público. De
médica e medicamentosa, condições forma estruturante, apresenta uma

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Sector Público

definição do sector público que vai até 90 dias após a sua nomeação,
para além da Administração Pública que constitui a base para a avaliação
central e descentralizada e inclui do seu desempenho. As EPs
entidades autónomas como o Banco também estão sujeitas à análise da
de Moçambique, institutos públicos e sua sustentabilidade económica e
o sector empresarial do Estado, este financeira, assim como da eficiência,
também objecto de um dispositivo eficácia e economicidade da sua
legal recente a ser descrito adiante. gestão. As EPs passam a ter uma
A LPA traz uma visão mais ampla dupla tutela, sectorial e financeira.
da gestão pública que responde ao A sectorial, dentre outros aspectos,
contexto actual de desmonopolização aprova os estatutos, enquanto à
da gestão pública pelo Estado, em que financeira, exercida pelo Ministério
existem entidades estatais que não fa- das Finanças, cabe a participação na
zem parte da Administração Pública aprovação dos contratos programa,
directa, mas que estão a prestar algum dar parecer sobre mudanças ou
serviço público, como os concessioná- encerramento de delegações e
rios e instituições particulares. Dentre representações e dos estatutos das
os aspectos de destaque que a LPA EPs.
apresenta está o direito de participa- Além destes aspectos, na governação
ção dos cidadãos e as formas da sua das EPs foi introduzida a obrigatorie-
efectivação na Administração Públi- dade de o Conselho Fiscal se pronun-
ca, a cooperação entre a Administra- ciar sobre as contas de gerência, a exis-
ção Pública e os cidadãos e os direitos tência de órgãos de auditoria interna
de estes participarem e contribuírem e a realização regular de controlo
na formação da vontade daquela. externo por auditores independentes,
Ainda no âmbito da organização e seleccionados por via de um concur-
governação do sector público, foi so público e numa base rotativa, e a
aprovada a lei das empresas públicas possibilidade de o Tribunal Admi-
(EPs; Lei 6/2012 de 8 de Fevereiro), nistrativo (TA) auditar as contas das
cuja concepção traz de forma mais EPs. Estas passam ainda a submeter o
incisiva as preocupações com os relatório das suas contas de gerência
mecanismos de funcionamento ao TA, que sobre elas passa a exercer
e governação interna destas a fiscalização sucessiva. Ademais, o
organizações. Ao abrigo da nova desempenho económico-financeiro
lei, os Presidentes dos Conselhos das EPs passa a ser incluído na Conta
de Administração (PCAs) devem Geral do Estado e, por esta via, pode
apresentar um contrato-programa ser fiscalizado pela Assembleia da

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Governação e Integridade em Moçambique >> Problemas práticos e desafios reais

República. Em suma, há um avanço, e proibição de promoção de activida-


no campo legal, no sentido de intro- des partidárias, políticas e religiosas
dução de mecanismos de governação durante o horário de trabalho. Para a
que combinam um sistema de contro- operacionalização da LPP, foi criada
lo mercantil (incentivos económicos) a Comissão Central da Ética Pública.
e políticos (de prestação de contas Na área de prestação de serviços, no
aos órgãos de representação política âmbito da Estratégia para a Melhoria
e da sociedade)1. Às EPs existentes do Ambiente de Negócios, em respos-
foi dado um prazo de 6 meses para se ta ao desempenho do país no “Doing
adequarem à nova legislação. Business” foi introduzido o licencia-
Foram introduzidas mudanças nor- mento simplificado através do Decre-
mativas com a Lei da Probidade Pú- to 2/2008 de 12 de Março, aplicável
blica – LPP (Lei 16/2012), que define às actividades que, pela sua natureza,
normas sobre os deveres, responsabi- não acarretam impactos negativos
lidades e obrigações dos servidores para o ambiente, a saúde pública,
públicos, com vista a assegurar a a segurança e para a economia em
moralidade, transparência, imparcia- geral. Também foi criado um Grupo
lidade e probidade públicas. Esta lei Interministerial para a Remoção das
é aplicável aos servidores públicos Barreiras ao Investimento (GIRBI),
da administração directa, indirecta e responsável pelo diálogo entre os
autónoma do Estado, assim como a sectores público e privado a nível
gestores e trabalhadores das empresas nacional e provincial, e, a nível local,
privadas investidas de funções pú- os Grupos Intersectoriais Provinciais,
blicas mediante concessão, licença, sob liderança do Governador e inte-
contrato ou outros tipos de vínculos grando todas as direcções provinciais.
contratuais. Dentre alguns aspectos No período em análise cresceu o re-
relevantes para a integridade pública curso à provisão dos serviços públicos
estão a escusa de participação em si- através das parcerias público-privadas
tuações que envolvam conflito de in- (PPPs), que eram reguladas pelo
teresses, a declaração do património Decreto 15/2010 de 24 de Maio, que
público, restrições quanto à múltipla aprova o Regulamento de Contrata-
remuneração em entidades públicas ção de Empreitada de Obras Públicas,
e posteriormente se adoptou um dis-
1
Pires, Valdir (2007). “Controlo Social da
Administração Pública”. In Alvaro Guedes & positivo próprio, a Lei nº 15/2011 de
Francisco Fonseca (Orgs.). Controlo Social da 10 de Agosto, regulamentada através
Administração Pública: cenários, avanços e dilemas do Decreto do Conselho de Ministros
no Brasil. São Paulo: Oficina Municipal Cultura
Académica Editora; Rio de Janeiro: FGV.
nº 16/2012 de 4 de Junho. O quadro

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Sector Público

legal mais recente é aprovado enquan- No que concerne à gestão de finanças


to PPPs de áreas sensíveis de presta- públicas, de acordo com o artigo 1
ção de serviços públicos já estão em da Lei 9/2002, de 13 de Fevereiro,
curso, como as parcerias com firmas que cria o Sistema de Administração
privadas para a emissão do bilhete de Financeira do Estado (SISTAFE) e o
identidade, do passaporte e da carta artigo 6 do respectivo regulamento, o
de condução. A concessão para a ges- Decreto 23/2004 de 20 de Agosto, o
tão da inspecção não intrusiva (vulgo SISTAFE é constituído pelos seguin-
scanners) para uma entidade privada tes cinco subsistemas: de Orçamento
e a Janela Única Electrónica (JUE), do Estado, de Contabilidade Pública,
voltada para o comércio internacio- do Tesouro Público, do Património do
nal, são outros exemplos de PPPs na Estado e do Controlo Interno. Estes
prestação de serviços públicos. subsistemas são ainda complemen-
Esta nova modalidade de prestação de tados pelo controlo externo exercido
serviços visa introduzir uma provisão pelo TA, além da função fiscalizadora
de serviços ou bens públicos mais da AR. Nesta área continuou a imple-
eficientes, visando complementar os mentação do Sistema de Administra-
recursos públicos e agregar mais valor ção Financeira do Estado (SISTAFE)
económico aos bens patrimoniais e e a implantação do e-SISTAFE nos
outros recursos nacionais envolvidos sectores e a nível local. A cobertura
no empreendimento. A lei das PPPs dos distritos ainda não foi completa-
(artigo 5) define que a protecção dos da, devido aos constrangimentos de
interesses dos utentes e a manutenção infra-estruturas. Também foi produ-
e sustentabilidade serão assegurados zida a “Visão das Finanças Públicas
pela entidade reguladora competente. 2011-2025”.2 Segundo o documento
Este dispositivo também chama a da “Visão das Finanças Públicas”, a
atenção para a necessidade de se introdução e expansão do e-SISTAFE
evitar a ocorrência de certos riscos, tem melhorado progressivamente a
dentre os quais os que podem perigar abrangência, transparência e quali-
a sustentabilidade e também os de dade da elaboração e execução or-
conflito de interesses entre a função çamentais.3 Por exemplo, Terminais
reguladora e prestadora de serviços do e-SISTAFE foram instalados no
ou a condição de concessionário. Tribunal Administrativo (TA) e na
A mitigação dos riscos está sob 2
Ministério das Finanças (2012). Visão das
a responsabilidade do governo e Finanças Públicas 2011-2025. República de
dos seus parceiros privados nos Moçambique, Ministério das Finanças, Junho de
empreendimentos. 2012.
3
nMinistério das Finanças, 2012, página 28.

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CIP-Governacao-Intregridade.indb 95 10/28/2013 4:54:06 PM


Governação e Integridade em Moçambique >> Problemas práticos e desafios reais

Inspecção Geral das Finanças (IGF) matéria de controlo interno e funcio-


para poderem controlar a execução do na junto ao Ministério das Finanças,
orçamento em tempo real, no âmbito presidido pelo Inspector-Geral de
das suas funções de controlo interno Finanças, com a função de asse-
e externo. Os relatórios do IGF ainda gurar a observância dos princípios
não são de acesso público. orientadores das actividades de
A reforma do regulamento de aquisi- controlo e garantir o funciona-
ções e contratação de serviços e em- mento deste Subsistema. Além do
preitadas, com a alteração do Decreto Inspector-Geral das Finanças, o
54/2005, de 13 de Dezembro e a sua CCSCI integra o Inspector-Geral da
substituição pelo Decreto 15/2010, Administração do Estado (IGAE),
de 24 de Maio, é, aparentemente, na qualidade de responsável pela
uma resposta às reclamações sobre inspecção da Administração Pública,
o decreto anterior que, dentre outras os Inspectores-Gerais Sectoriais e
fraquezas, não contribuía para a os demais representantes sectoriais
promoção das empresas nacionais, e das Unidades de Supervisão do
principalmente as pequenas e médias Subsistema do Controlo Interno (ar-
e que ainda apresentava fraquezas na tigos 28 e 29). O Controlo Interno
garantia de transparência e competi- está em processo de estruturação e
tividade. A legislação de procurement capacitação, sob coordenação do
também determina a criação de um CCSI, mais precisamente a Inspecção
quadro institucional de gestão deste Geral das Finanças (IGF). Um mode-
subsistema, que é constituído a nível lo conceptual está a ser desenvolvido,
central pela Unidade Funcional de sob coordenação da IGF e do Centro
Supervisão de Aquisições (UFSA) e de Desenvolvimento de Sistemas
a nível dos sectores e local pelas Uni- de Informação para as Finanças
dades Gestoras Executoras de Aqui- (CEDSIF).
sições (UGEAs). Além da função de No que concerne ao controlo externo,
supervisão, a UFSA tem a responsa- além da análise atempada da Conta
bilidade de coordenar a capacitação Geral do Estado e envio do respectivo
das UGEAs e gerir a informação do relatório à Assembleia da República
subsistema. nos prazos previstos, durante o perío-
O Regulamento da Lei do SISTAFE do em análise o volume de auditorias
determina a criação do Conselho do Tribunal Administrativo (TA) tem
Coordenador do Subsistema de sido considerável, embora oscilatório.
Controlo Interno (CCSCI), que é um Deste modo, de 2008 a 2012 foram
órgão de coordenação e consulta em anualmente realizadas: 357, 491, 600,

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Sector Público

502, 450 auditorias, respectivamente, agentes do Estado, tendo sido publi-


e até 30 de Março de 2013 haviam cados até agora três números (2008,
sido feitas 69 auditorias. No período 2009, e 2010-2011). Em 2009 foi in-
também se intensificou o julgamento troduzido o Sistema de Gestão de De-
das auditorias.4 Porém, o grosso dos sempenho da Administração Pública
julgamentos tem sido na área de con- (SIGEDAP), um sistema que visa
tencioso sobre pessoal e outras acções ligar o desempenho dos funcionários
da despesa pública, como os contra- públicos à visão estratégica dos pro-
tos. Em suma, nas áreas susceptíveis gramas de governo, aos programas e
de serem controladas pela própria ad- planos sectoriais, que se desdobram
ministração pública. Foram também até às responsabilidades individuais
criados os Tribunais Administrativos dos funcionários. A eficácia deste
Provinciais (de 1ª Instância), em res- instrumento ainda é desconhecida,
posta às críticas sobre a centralização porque ainda não houve uma avalia-
do TA, com efeitos negativos na ce- ção da sua implementação.
leridade de alguns actos administrati-
vos, principalmente aqueles sujeitos à
Problemas práticos e novos
fiscalização prévia, que eram analisa-
dos todos em Maputo. desafios
Na área dos recursos humanos, foi O Relatório de Revisão do País do
aprovado o novo Estatuto Geral dos Mecanismo Africano de Revisão de
Funcionários e Agentes do Estado Pares (MARP) em 2009 destaca, no
– EGFAE através da Lei 14/2009, e âmbito da organização e governação
o respectivo regulamento (Decreto do sector público, a existência de par-
62/2009). Nesta área também houve tidarização da administração pública
uma melhoria substancial dos siste- como um elemento crítico de gover-
mas de gestão de informação, com a nação. A LPP, no seu artigo 27, traz
realização do Censo dos Funcioná- uma base ténue de limitação de acti-
rios e Agentes do Estado em 2008, vidades partidárias durante as horas
a criação do Cadastro dos Agentes normais de expediente que não resol-
e Funcionários do Estado (CAF), ve o cerne da questão apresentada, se
inclusive o seu aplicativo electrónico não for devidamente regulamentada.
(e-CAF) e o início da publicação do Além deste instrumento legal, não
anuário estatístico dos funcionários e há registo de passos substanciais que
tenham sido dados para reverter a
situação, e células do partido Frelimo
4
Relatórios de Actividades do Tribunal
Administrativo 2008 a 2012 e primeiro trimestre continuam a existir dentro da Função
de 2013.

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Governação e Integridade em Moçambique >> Problemas práticos e desafios reais

Pública, num contexto em que outros também a estar envolvido na sua


partidos têm limitações para criação exploração através da Empresa Na-
de unidades similares no mesmo cional de Hidrocarbonetos (ENH)
sector, seja porque os seus membros e da Companhia Moçambicana de
temem represálias, assim como pelo Hidrocarbonetos (CMH), ao mesmo
quadro institucional e político desfa- tempo que também reforçou a acção
vorável à garantia de igualdade nos regulatória do sector, com a institu-
direito de se organizarem e exercerem cionalização e capacitação do Institu-
as suas actividades como o partido to Nacional de Petróleos (INP). Este
governamental o faz. duplo papel de empresário e regulador
No período em análise, cresceu a coloca desafios de conciliação entre
importância da acção das agências o interesse empresarial e o interesse
reguladoras e a atenção pública sobre público, principalmente numa área
as mesmas, devido às mudanças no com um forte impacto económico e
quadro institucional da organiza- social e problemas históricos de falta
ção do sector público, as mudanças de transparência fiscal.
económicas e mesmo alguns factos Ademais, a proliferação das PPPs
políticos de grande proeminência. implicou o crescente envolvimento
Assim, no âmbito político, após as do sector público e de outros actores
manifestações de 1 e 2 de Setembro de não-estatais na provisão de serviços
2010, em que o serviço de mensagens públicos. Esta expansão do “sector
da telefonia móvel foi usado para a público” para além do sector estatal
mobilização dos manifestantes, a ac- demanda uma melhor regulação e
tuação reactiva da agência reguladora formas de controlo da sociedade mais
da área de comunicações, o Instituto eficazes, principalmente numa situa-
Nacional de Comunicações de Mo- ção em que entidades privadas pres-
çambique (INCM), obrigando ao re- tam serviços básicos, algumas vezes
gisto de milhões de utentes do serviço a preços de mercado, num modelo de
de telefonia móvel em apenas 60 dias recuperação de custos, como os casos
foi fortemente contestada, tanto pelas dos passaportes, bilhetes de identida-
operadoras do ramo como pelo públi- de e cartas de condução. O principal
co em geral, pelo seu irrealismo e pela desafio que se apresenta neste “novo
evidente pressão política por detrás de sector público” e os riscos sob o ponto
uma medida com viabilidade técnica de vista de integridade pública são as
duvidosa. fronteiras que se estabelecem entre
Com o crescimento da indústria dos a entidade reguladora e a entidade
hidrocarbonetos, o Estado passou regulada, numa situação em que há

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Sector Público

potencial possibilidade de captura das pela decisão sobre o serviço de licen-


agências reguladoras por interesses ciamento para unidades autónomas
lesivos à sociedade, a alocação de de prestação de serviços. Isso torna
investimento público nas PPPs com estas formas inovadoras de prestação
um benefício desproporcional para os de serviços públicos, involuntaria-
parceiros não-estatais e o aumento dos mente, mais um passo na burocracia
custos no acesso aos serviços públicos do sector público. A integração hori-
pelos cidadãos e agentes económicos. zontal entre os sectores é ainda fraca,
Exemplo disso são as reclamações destacando-se, dentre outras coisas, a
feitas em torno do custo da inspecção fraca interoperabilidade entre as bases
não intrusiva (vulgo scanners) e da Ja- de dados dos diferentes intervenientes
nela Única Electrónica, que têm sido que contribuem para a eficiente pres-
apontados como a causa de aban- tação de um certo serviço.
dono dos portos moçambicanos por De uma forma geral, o desempenho
parte de alguns agentes económicos, a dos serviços ligados ao ambiente de
favor de outros portos regionais com negócios não teve um impacto con-
menor custo. Também é importante siderável na melhoria da posição do
notar que nas PPPs o estado é parcei- país no índice “Doing Business” desde
ro nos empreendimentos e ao mesmo 2008 e, no geral, a posição do país tem
tempo exerce a função reguladora. decrescido. Volvidos 5 anos de imple-
Esta configuração coloca ao Estado mentação da Estratégia de Melhoria
o desafio de conciliar um papel duplo do Ambiente de Negócios (EMAN)
que potencialmente envolve conflito 2008-20125, Moçambique encontra-
de interesses, cujas consequências se a 12 posições da que se encontrava
poderão ser negativas para a defesa aquando da sua aprovação. O último
dos interesses da sociedade. relatório “Doing Business 2013” colo-
Na área de prestação de serviços, a ca o país na 146ª posição, a pior desde
modernização dos Balcões Únicos que Moçambique integra o ranking.6
prosseguiu com a introdução de
quiosques electrónicos de avaliação
5
A estratégia para a melhoria do ambiente de
da prestação de serviços públicos e a negócios aprovado pela Resolução 3/2008, de 29
expansão de serviços oferecidos. No de Maio, surge no contexto da melhoria do clima
entanto, nestes serviços ainda não se de investimento e de negócios no país.
verificou o salto qualitativo dos Bal- 6
Banco Mundial/International Financial
Corporation – IFC (2013). Doing Business 2013:
cões Únicos, de meros receptáculos
Regulamentos Inteligentes para Pequenas e Médias
de expediente que depois é encami- Empresas. Comparando Regulamentos Aplicáveis a
nhado para os sectores responsáveis Empresas Locais em 185 Economias. Washington:
Banco Mundial.

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Governação e Integridade em Moçambique >> Problemas práticos e desafios reais

Neste ponto, há outros aspectos que os pagamentos. O outro problema é


contribuíram para este decréscimo, o dos doadores que ainda financiam
como a demora da aprovação da em off-budgets, ainda há discrepâncias
legislação sobre Insolvências e Recu- nos valores orçamentais entre os va-
peração de Empresários Comerciais e lores declarados e os executados. O
a sua regulamentação (cujo regime ju- problema dos fundos fora da Conta
rídico foi aprovado em Maio de 2013 Única do Tesouro (CUT), os off-CUT,
pelo Governo), o acesso ao crédito, minimiza a eficácia das reformas na
em parte dependente da criação de gestão financeira. Expandir o sistema
uma central de risco privado, dentre e integrar todos, em suma, é o desafio
outros. As medidas para reverter este da implementação do e-SISTAFE.8
cenário estão enquadradas no Plano O Aide Mémoire da Revisão Anual de
de Acção para Melhoria do Ambiente Maio de 2013 aponta ainda a neces-
de Negócios (PAMAN)7, aprovado sidade de maior controlo da folha de
pelo Governo em finais de 2012. salário e a ligação do e-SISTAFE com
Em relação à gestão das finanças outros sistemas, como o aplicativo
públicas, até 31 de Dezembro de electrónico do Cadastro dos Agentes
2012 havia 920 instituições elegíveis e Funcionários do Estado (e-CAF).
ao SISTAFE. Destas, 620 estão inte- Apesar da melhoria dos sistemas
gradas ao e-SISTAFE, 300 ainda não de gestão financeira, a capacitação
estão, das quais 120 já em condições do sistema de aquisições, o
de ser integradas e 121 ainda não têm fortalecimento do controlo interno
condições para entrar, porque não têm e da actividade do controlo externo
segregação de funções ou por falta de com um TA mais actuante, as práticas
infra-estruturas como energia ou sinal de má gestão e desvio dos fundos do
de TDM para a transmissão de dados. Estado não parecem estar a abrandar.
A ideia é que cerca de 70% das orga- Os casos recentes mais emblemáticos
nizações do sector público elegíveis são a descoberta do esquema de desvio
estarão integradas até o próximo ano de fundos no sector da educação
e todas elas até 2015. Nos casos da- (envolvendo funcionários do sector de
quelas que em 2015 ainda estiverem Contabilidade Pública do Ministério
fora do sistema, ou vão executar as das Finanças)9 e os casos de uso
operações na agência bancária mais abusivo e apropriação individual
próxima ou a instituição de tutela fará
8
Entrevista com Director do CEDSIF,
7
Governo de Moçambique/Parceiros de Apoio 12/04/2013.
Programático (2013). Aide Memoire Revisão Anual 9
Vide Jornal o Pais, edição do dia 9 de Julho de
2013 – Anexo IV. Maio de 2013.. 2013.

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Sector Público

e indevida do património público esse argumento possa ter a sua


por parte de alguns funcionários10, plausibilidade, o mesmo negligencia
que levou à uma remodelação da a seriedade da existência de falhas
Direcção do Património do Estado no sistema, que muito mais do que
pelo Ministro das Finanças. Os deixar as ilicitudes ocorrerem, deveria
relatórios da Conta Geral do Estado preveni-las.
(CGE) produzidos pelo TA mostram Uma das causas está, certamente, na
a recorrência de problemas de má fraqueza dos mecanismos de controlo
gestão e uso indevido de fundos interno no sector público, que pouco
públicos e os informes Anuais do têm contribuído para o seguimento
Procurador-Geral da República das recomendações do TA e para o
(PGR) à Assembleia da República baixo sancionamento dos infractores.
(AR) reportam a continuação de Também tem a ver com a arquitectura
uso ilícito dos fundos públicos.11 institucional, que sobrecarrega o TA
Estudos também mostram que, com funções de fiscalização prévia
apesar do aumento do julgamento que poderiam ser desempenhadas
das contas públicas, o efeito inibidor pela administração pública, com
nas práticas ilícitas nesta área ainda sistemas mais robustos de controlo
não é visível.12 Uma explicação que interno, combinados com uma efecti-
tem sido apresentada é de que a va responsabilização. Essa discussão
detecção de muitos casos de mau uso que já foi iniciada em 2004, quando
e desvio de fundos públicos mostra a Unidade Técnica do Sector Público
a robustez dos sistemas, porque (UTRESP) realizou um estudo sobre
estas práticas não podem mais ser o Visto do Tribunal Administrativo14
ocultadas indefinidamente.13 Embora e, dentre outras recomendações feitas,
constava a atribuição de mais com-
10
Vide Jornal Domingo, http://www.
jornaldomingo.co.mz/index.php/politica/1150-
petências aos sectores e, consequen-
manuel-chang-confirma-corrupcao-no- temente, maiores responsabilidades
patrimonio-de-estado, acedido no dia 09 de Julho e responsabilização. Esta mudança
de 2013.
depende, certamente, da revisão da
11
Procuradoria-Geral da República (2012).
Informação Anual de 2012 do Procurador-
legislação e da aceleração do pro-
Geral da República à Assembleia da República. cesso em curso de fortalecimento do
Maputo: Maio de 2012. controlo interno, combinado com a
12
Lisboa, Ivan (2012). A Ética na Gestão Pública:
Estudo do Caso dos Tribunais Administrativos. 14
Unidade Técnica da Reforma do Sector
Dissertação de Mestrado, Mestrado em Público/UTRESP (2004). Estudo do Impacto da Lei
Governação e Administração Pública, Nº 13/97, de 10 de Julho Sobre o Regime Jurídico da
Universidade Eduardo Mondlane. Fiscalização Prévia das Despesas Públicas. Relatório
13
Entrevista com um funcionário público sénior. Final, Versão Setembro de 2004. Maputo: UTRESP.

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Governação e Integridade em Moçambique >> Problemas práticos e desafios reais

maior eficácia na responsabilização comunicação e com evidências das


dos prevaricadores. organizações da sociedade civil que
Um estudo encomendado pelo DFID lidam com a monitoria das políticas
(Departamento de Desenvolvimento públicas e do orçamento. Na XI
Internacional do Reino Unido) sobre Sessão do Observatório de Desen-
o procurement em 201115 refere que há volvimento (16 de Março de 2012),
indícios de que o incipiente empre- a sociedade civil apresentou imagens
sariado moçambicano não aproveita de obras mal executadas, o que não
as vantagens do quadro legal, o que foi recebido de forma pacífica pelo
abre espaço para que empresas es- governo. Estudos de rastreamento da
trangeiras, com maior capacidade despesa pública do CIP também têm
técnica e financeira, tirem mais mostrado deficiências nesta área, que
proveito. De forma geral, apesar do se repercute na qualidade de execução
crescimento considerável do número de infra-estruturas públicas e mesmo
das Unidades Gestoras Executoras de na prestação de serviços públicos.
Aquisições (UGEAs), responsáveis Iniciativas de participação da socie-
pela gestão do procurement público dade civil nesta área têm um grande
nas unidades orçamentais, a todos os potencial de melhorar a prestação
níveis, o sistema de procurement pú- de contas, mas ainda não são devi-
blico e sua eficácia como mecanismo damente aproveitadas. Uma dessas
de execução eficiente e transparente iniciativas, o Fórum de Monitoria
da despesa pública ainda é questio- do Orçamento, tem uma parceria
nável. O estudo aponta ainda que a estratégica com a Comissão do Plano
fraca capacidade das UGEAs abre e Orçamento mais por causa da ini-
espaço para práticas corruptas, com ciativa do seu presidente do que ne-
implicações para a baixa qualidade cessariamente por uma sensibilidade
dos serviços públicos. Exemplo disso institucional para tirar proveito dessas
é a recorrência de reclamações da iniciativas. Evidência disso é o vasto
baixa qualidade de obras públicas manancial de relatórios de monitoria
principalmente nos distritos, dentre da despesa pública produzidos em
as quais escolas e unidades de saúde, vários distritos numa parceria entre
largamente noticiadas nos meios de o CIP e organizações da sociedade
civil local, que nem sempre têm o
15
DFID (2011). O Processo de Aquisições seguimento desejável das instâncias
(Procurement) em Moçambique: Economia,
deliberativas nacionais e locais, como
instituições, reforma e desafios. Maputo: Estudo
Comissionado pelo Departamento para o a AR e as iniciantes Assembleias
Desenvolvimento Internacional do Reino Unido Provinciais.
(DFID)..

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Sector Público

No que diz respeito à gestão dos diversas carreiras e sua classificação,


recursos humanos, a política salarial com base nas quais se poderá adoptar
ainda não é um instrumento eficaz e uma política salarial consistente. A
transparente de gestão pública, sendo actual política de gestão de recursos
exemplo a existência de pacotes de humanos é ainda inconsistente, e não
remuneração diferenciados e com tem fundamentos claros que tornem
salários mais altos em relação a ou- justificável, por exemplo, que um ma-
tras carreiras que exigem o mesmo gistrado judicial ou um funcionário
(ou até mais alto) grau académico, da área tributária tenha uma remu-
com destaque para os magistrados neração superior à a de um médico
judicias e do ministério público e ou a de um professor universitário,
pessoas do sector das finanças e da mesmo no topo da carreira (como os
administração tributária, no geral. A catedráticos).
recente greve dos médicos e o acordo Além disso, ainda persistem os
alcançado com este grupo profissio- obstáculos que potencialmente po-
nal, posteriormente denunciado pelos dem ameaçar a integridade pública,
mesmos pelo não cumprimento por nomeadamente a baixa competiti-
parte do governo nos termos em que vidade em relação a outros sectores.
foi definido quando se anunciou um A situação poderá tornar-se mais
aumento salarial de 15% em Maio de crítica devido a duas situações: uma
2013, demonstra as inconsistências crescente busca por quadros qualifi-
desta política salarial, que se mantém cados pela indústria extractiva, que se
ainda reactiva, opaca e permeável à contrapõe a uma maior necessidade
patronagem política, devido à forma de capacidade do sector público para
segmentada e diferenciada como tem criar as condições necessárias para o
respondido às reivindicações dos desenvolvimento económico no seu
diferentes grupos da função pública, papel facilitador, conforme definido
em detrimento de uma solução mais na própria visão do Estado subjacente
sustentável. à reforma do sector público. O outro
A título ilustrativo, em resposta à desafio tem a ver com a LPP, que im-
reivindicação dos médicos, o Go- põe limites à acumulação de remune-
verno adoptou aumentos salariais ração do Estado em mais do que uma
diferenciados, na expectativa de que, entidade. Embora este elemento tenha
ao longo do tempo, as discrepâncias sido historicamente usado de forma
serão eliminadas. Ora, esta estratégia pouco transparente e até abusiva,
não garante a solução do problema, se alguns funcionários públicos de topo,
não for feita uma análise profunda das como os directores nacionais, vinham

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Governação e Integridade em Moçambique >> Problemas práticos e desafios reais

complementando os seus salários aprovação da lei da sindicalização da


com a participação em Conselhos de função pública, já submetida à AR,
Administração de empresas públicas o que poderia contribuir para uma
e isso era uma forma encontrada para melhor articulação de interesses e ne-
a retenção desse pessoal qualificado gociação do funcionalismo público.
e experiente no sector público. Com A despeito do seu conceito assim o
as restrições que advêm da LPP, este sugerir, o SIGEDAP não tem uma
bónus ao seu salário deixará de ser ligação clara e directa entre desem-
legal, e há que encontrar alternativas penho e remuneração, cingindo-se à
para a retenção de pessoal qualificado progressão, promoção e mesmo con-
em posições chave do sector público. tinuidade do contrato do funcionário
Ademais, a forma como a reivindi- público. Esta falta de ligação, embora
cação dos médicos foi tratada, com conceptualmente possa estar ligada
uma definição ambígua e enviesada ao modelo de gestão de recursos hu-
do exercício do direito de greve, manos do país, baseado num sistema
combinada com retaliações que vão de carreiras e remuneração, retira um
sendo denunciadas pelo presidente da dos principais incentivos ao desempe-
Associação Médica de Moçambique e nho que é a remuneração. Neste âm-
pelos meios de comunicação social,16 bito, é importante que a avaliação do
revela a existência de um sistema de SIGEDAP leve em conta os elementos
gestão de recursos humanos com con- que podem estimular o desempenho
tornos autoritários e potencialmente dos funcionários públicos de forma
violador de direitos constitucionais. mais flexível, dentre os quais a remu-
A repetição da greve após o anúncio neração, não necessariamente ligada
das taxas de aumentos salariais e a à progressão e promoção (como está
negociação salarial paralela feita por actualmente concebido), continuida-
este grupo profissional, que normal- de da relação contratual, mas numa
mente é feita anualmente em sede de perspectiva de produtividade.
Concertação Social envolvendo sin- Além disso, a concepção de desem-
dicatos, o governo e os empresários, penho ainda não está devidamente
também revela que os mecanismos ligada ao funcionamento dos outros
actuais de deliberação sobre as ques- sistemas de gestão, como o das fi-
tões salariais não são suficientemente nanças públicas. Neste contexto, a
representativos. Aqui também há que funcionários de alguns distritos sem
se referir o problema da demora na bancos são pagos salários pela via
bancária. Isso faz com que, em alguns
16
Vide Jornal Savana, Edição do dia 12 de Julho
de 2013.
casos, funcionários públicos tenham

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Sector Público

que se deslocar centenas de quilóme- da informação da Revisão Anual nos


tros para o distrito mais próximo com moldes retro mencionados.
agências bancárias para levantarem o
seu salário, com os riscos que isso traz
à sua segurança e também o impacto Áreas prioritárias de
que tem na produtividade, devido ao intervenção e reforma
abandono do seu local de trabalho.
Em relação à organização e gover-
Finalmente, há que assinalar que des- nação do sector público: urge regu-
de o último relatório, o acesso à infor- lamentar o exercício de actividades
mação sobre a Revisão Anual do Go- político-partidárias dentro do Estado,
verno e dos parceiros de cooperação devendo-se criar condições para que
piorou. Houve mudanças na página as liberdades individuais de opção po-
dos parceiros programáticos e agora a lítica não sejam cerceadas ou que ape-
única informação disponibilizada ao nas sejam garantidas para membros
público restringe-se ao Aide Mémoire de um único partido. Um bom ponto
publicado na página do Ministério de de partida pode ser a regulamentação
Planificação e Desenvolvimento, com do artigo 27 da LPP.
anexos que possuem informação me-
O grande fluxo de investimento di-
nos detalhada, em contraste com os
recto estrangeiro e o crescimento da
relatórios dos grupos de trabalho que,
indústria extractiva e de toda uma
anteriormente, eram de acesso públi-
economia que poderá florescer em
co, e continham muita informação
torno dela, combinados com o au-
sobre as políticas públicas do governo
mento do recurso às PPPs, exigem do
e dos vários sectores. A isto se combi-
estado uma maior capacidade regu-
na a baixa fiabilidade da informação
ladora e fiscalizadora. No país, não
disponibilizada na página ODAMOZ
existe um quadro normativo sobre as
sobre o volume e destino dos recursos
agências reguladoras. Neste âmbito,
da ajuda ao desenvolvimento aloca-
é importante pensar em mecanismos
dos ao país. Um retrocesso assina-
de meta-regulamentação (regulamen-
lável no acesso à informação sobre
tação sobre a regulamentação), de
a governação do sector público. Na
forma a prover o país de um quadro
última Revisão Anual concluída em
institucional mais sólido para a
Maio de 2013, há uma recomendação
criação de instituições reguladoras e
para que os parceiros de desenvolvi-
mecanismos efectivos de garantia de
mento melhorem a qualidade de in-
cumprimento do quadro regulador,
formação na página ODAMOZ, mas
incluindo a fiscalização dos actores
nada é referido sobre a divulgação
que actuam neste domínio.

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CIP-Governacao-Intregridade.indb 105 10/28/2013 4:54:08 PM


Governação e Integridade em Moçambique >> Problemas práticos e desafios reais

Também é preciso promover e ava- os clientes-cidadãos não sejam lesa-


liar as formas de participação dos dos. Neste aspecto, será importante
cidadãos na administração pública ligar a implementação e fiscalização
na óptica da nova legislação (como da Lei da Probidade Pública à im-
a LPA e a LEBOA), com enfoque plementação deste instrumento, uma
para a monitoria da Carta de Serviços vez que há um alto risco de algumas
Públicos e a domesticação e imple- PPPs envolverem potenciais conflitos
mentação da Carta Africana Sobre de interesses, o que pode tornar pou-
os Valores e Princípios da Função e co transparentes os processos de sua
Administração Públicas. concessão, assim como a garantia de
Finalmente, é importante monitorar que o interesse da sociedade seja pre-
a adequação das EPs ao novo quadro servado. Adicionalmente, é preciso
legal e a sua materialização, no que adoptar formas mais transparentes de
concerne à efectividade, eficiência, avaliação das PPPs, com participação
economicidade e prossecução dos dos cidadãos.
interesses da sociedade no geral. No âmbito da gestão das finanças
Na área de serviços públicos, há que públicas, é crucial a aceleração da
se prestar mais atenção à fiscalização operacionalização das funcionalida-
das PPPs e à sua adequação e eficá- des do e-SISTAFE e a monitoria dos
cia, no que concerne à resposta aos seus efeitos na melhoria da gestão dos
interesses da sociedade. Em algumas recursos públicos, medidos a partir da
áreas sensíveis e importantes como a evolução no número de casos de vio-
identificação civil e o comércio inter- lação de regras de gestão financeira
nacional, as formas de actuação deste e desvios de fundos detectados. Isto
tipo de empreendimento baseadas deve ser acompanhado por melhorias
num modelo de recuperação de custos, na institucionalização dos mecanis-
no qual se espera que o utente pague mos de controlo interno no sector
pelos serviços um preço que permite público e sua eficácia na melhoria da
a compensação dos custos incorridos gestão, transparência e prestação de
e proporcione uma margem de lucro, contas e o seu efeito redutor nos casos
sem mecanismos eficientes de fiscali- de violação das normas de gestão
zação são permeáveis a abusos econó- financeira. O reforço da componente
micos, podendo os utentes arcar com de controlo interno poderá contribuir
custos muito elevados, às vezes acima para a redução da necessidade de
das suas capacidades. Para tal, é im- fiscalização prévia, a bem de uma
portante que a entidade fiscalizadora maior eficiência na gestão pública.
tenha a devida equidistância para que Desta forma, é importante que este

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Sector Público

exercício seja pensado de forma e as várias categorias profissionais


integrada, visando a criação de um existentes no sector público para se
sistema de gestão financeira eficiente, encontrarem compromissos duradou-
transparente, eficaz e responsável, em ros e uma política salarial mais trans-
que as diversas formas de controlo se parente e com um alcance de longo
complementem e contribuam para o prazo. A política salarial deve incluir
alcance dos resultados positivos aqui a redução de mecanismos informais e
indicados. Também é importante re- pouco transparentes de remuneração
tomar o debate sobre a necessidade de dos altos quadros do Estado e prever
publicidade dos relatórios da IGF, no mecanismos de negociação salarial
âmbito da promoção da transparência que sejam aplicáveis à toda a Função
e responsabilização nesta área. Pública, de modo a evitar uma acção
A melhoria dos processos de presta- sistematicamente reactiva do governo,
ção de contas não pode ser dissociada em função da reivindicação de grupos
de um aumento qualitativo do lado particulares, com todos os problemas
da demanda, principalmente pela que isso traz, dentre as quais a injus-
via das iniciativas de monitoria do tiça do tratamento desigual e pouco
orçamento levadas a cabo pela socie- fundamentado dos diferentes grupos,
dade civil, incluindo no que concerne além da insustentabilidade fiscal.
ao rastreamento da despesa pública. A questão central na adopção de
Deste modo, é também importante uma política salarial consonante com
promover e reforçar as ligações entre uma administração pública voltada
as instituições de controlo e de repre- para resultados, como a adopção do
sentação (como a AR, as Assembleias SIGEDAP sugere, leva à necessidade
municipais e provinciais) e as iniciati- de criar condições para a atracção
vas existentes na sociedade civil. e retenção de pessoal qualificado
Em relação à gestão dos recursos no sector público, combinada com
humanos, a aprovação da Lei da a criação de incentivos para o seu
Sindicalização da Função Pública é desempenho. Isso não pode ser feito
importante para reforçar os meca- apenas com uma noção subjectiva
nismos de diálogo com o Governo, de igualitarismo, mesmo entre
de definição de políticas de recursos profissionais de categorias estratégicas
humanos mais inclusivas, assim como os médicos e magistrados, mas
como para a defesa dos direitos dos sim com uma abordagem mais ampla
funcionários públicos. Isto poderia das carreiras existentes, baseada num
criar as bases para uma negociação estudo exaustivo das mesmas e do
com o Sindicato da Função Pública seu papel no desempenho do sector

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Governação e Integridade em Moçambique >> Problemas práticos e desafios reais

público. Em suma, é importante


criar forma de consolidação da
remuneração e de classificação
de postos de trabalho e níveis de
remuneração, para que se adopte
uma política salarial mais consistente
no país e estimuladora de um melhor
desempenho do sector público

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Considerações Finais Isso seria uma grande simplificação
de processos complexos, reduzindo
Este segundo Relatório de Governa- processos qualitativos para um
ção e Integridade em Moçambique simples cálculo de pontos positivos
(RGIM) tem como objectivo traçar e negativos. O Relatório pretende
as dinâmicas e tendências em várias informar substancialmente sobre os
áreas que são cruciais para a qualida- progressos e desafios.
de da governação do país. O leque é Apesar de não se poder dar um vere-
mais amplo do que no 1o RGIM de dicto global, é bem possível e mesmo
2008 com o acréscimo de duas áreas necessário, formular algumas conclu-
que se impuseram como incontor- sões. Em primeiro lugar, nota-se uma
náveis para apreciar a governação e evolução gradual, mas indubitável, no
integridade no Moçambique actual: a tipo de recomendações. No relatório
terra e a indústria extractiva. de 2008 distinguiam-se dois tipos. O
O RGIM de 2008 descreveu para cada primeiro tipo de recomendações tinha
área o quadro legal e institucional, os como objectivo preencher lacunas le-
problemas e desafios reais e recomen- gais e de políticas para, assim, melho-
dou reformas prioritárias. O RGIM rar o quadro institucional. O segundo
de 2013 manteve a mesma estrutura, tipo de recomendações surgiu da
mas para as áreas cobertas em 2008 observação de que, em várias áreas,
acrescentou uma apreciação do que a existência de leis e regulamentos
se passou com as reformas prioritárias não foi suficiente para garantir o
sugeridas em 2008. Assim, fez-se um bom funcionamento das instituições.
relato mais dinâmico da governação O primeiro tipo de recomendações
e integridade em Moçambique, nos constituiu a maioria no RGIM 2008.
últimos 5 anos. No actual Relatório, mantêm-se os
A ideia básica continua não só a de dois tipos de recomendações, mas evi-
promover um debate mais profundo dencia-se uma evolução clara para o
e informado sobre questões ligadas segundo tipo de recomendações. Em
à governação, mas também de vários capítulos, continua a sugerir a
verificar com intervalos regulares, se necessidade (i) de nova legislação (por
registaram mudanças no sentido de exemplo, a carência de um quadro
melhorar a governação e integridade normativo para a função reguladora
em Moçambique. O RGIM não do estado), ou (ii) de reformar o qua-
pretende tirar uma conclusão geral dro legal e institucional existente (em
se a governação e integridade particular em áreas onde existem con-
melhorou ou não nos últimos anos. flitos ou zonas cinzentas entre vários

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Governação e Integridade em Moçambique >> Problemas práticos e desafios reais

instrumento legais, como na terra e na públicas-privadas e empresas públicas


descentralização). Em outros casos parecem servir interesses privados em
(Constituição, eleições) lamenta-se vez de ou acima do interesse público,
o mau aproveitamento de processos assim como casos onde a Função
de reforma. Portanto, não restam Pública parece misturar o interesse
dúvidas de que reformas no quadro público com interesses partidários.
institucional e legal continuam a ser Este trabalho, implementado por
pertinentes para melhorar a governa- vários pesquisadores de forma inde-
ção e a integridade em Moçambique. pendente, também expôs de novo, e
Não obstante, o período em revisão com validade para todas as áreas, o
(2008-2013) revela claramente que as velho calcanhar de Aquiles do difí-
leis não só devem existir, mas também cil acesso à informação. Numa era
carecem de uma aplicação coerente digitalizada como a do século XXI,
e completa. Assim, existem casos continua a ser difícil o acesso à legis-
onde o quadro legal é simplesmente lação e aos regulamentos. Cada vez
ignorado como, por exemplo, a Lei mais instituições criam sites no web,
16/2012 que proíbe actividades parti- mas não existe nenhum site de acesso
dárias nas instituições do estado, mas público com políticas do governo e le-
tal actividade persiste abertamente e gislação sistematizada e actualizada.
sem constrangimentos. Outro desní- Para quem se pode permitir, existe
vel entre a letra da lei e a prática re- um serviço comercial. Há também
fere-se a conceitos de independência grandes dificuldades em encontrar e
(por exemplo, no caso do GCCC) e validar dados estatísticos e quantitati-
de participação comunitária. Não é vos. Tornou-se quase normal obter-se
suficiente decretar para tornar estes informação através do circuito infor-
conceitos, que são cruciais para a pro- mal (família, colegas, amigos). Esta
moção da governação e integridade, realidade, confirmada por todos os
uma realidade. pesquisadores, constitui um grande
Em certos casos, a deficiente aplica- obstáculo para uma investigação e
ção de leis resulta de fracas capaci- monitoria séria sobre o que, de facto,
dades (fiscalização do garimpo, por são assuntos públicos.
exemplo) e/ou falta de recursos, mas Finalmente, é preciso realçar que a
frequentemente, os pesquisadores evolução da governação e integridade
identificaram também problemas de no país não é um processo linear com
práticas e de visão sobre o que cons- todas as áreas progredindo gradual-
titui uma boa governação. Exemplos mente. Há progressos e retrocessos
disso são os casos onde as parcerias entre as várias áreas e mesmo dentro

110

CIP-Governacao-Intregridade.indb 110 10/28/2013 4:54:08 PM


Considerações Finais

de certas áreas. Em casos raros nota-


se que as melhorias são ganhas defi-
nitivamente, assim como não existem
áreas onde os progressos estão defi-
nitivamente excluídos. Esta evolução
não-linear torna a monitoria regular
das áreas cruciais de governação do
país um imperativo.

111

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O centro de Integridade Pública (CIP) é uma organização da sociedade
civil moçambicana estabelecida em 2005 com o objectivo de contribuir
para a promoção da transparência, boa governação e integridade em
Moçambique. O CIP actua na área da governação através de watch-
dog, pesquisa, monitoria, rastreio da despesa pública, advocacia e
consciencialização pública. O CIP actua nas áreas de indústria extractiva e
recursos naturais, parcerias público-privadas, eleitoral, finanças públicas e
despesa pública, oversight e anticorrupção, algumas das quais abordadas
no RGIM 2013.

Este relatório foi elaborado com o apoio das seguintes entidades de cooperação internacional:

DFID Department for


International
Development

CIP-Governacao-Intregridade.indb 112 10/28/2013 4:54:10 PM

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