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RECENSÕES

Les Méthodes de Recherche en Science de l’Éducation

Gaston Mialaret (2004). Les Méthodes de Recherche en Science de l’Éducation. Paris:


PUF. 127 p.

Gaston Milaret afirma no início do capí- Saber (p. 18), Gaston Mialaret enceta um con-
tulo IV, intitulado «Généralités sur les métho- junto de recomendações que o situam no
des et techniques de recherche», que não é esforço de defender uma forma de fazer ciên-
porque estamos a falar de ciências humanas, cia, um método científico, quase universal
de um domínio onde se faz o encontro com onde o intuito é construir argumentações sóli-
indivíduos e grupos, onde a subjectividade se das sustentadas e validadas pelo acordo, pela
introduz sub-repticiamente, que leva a crer «lisibilité partagée» e pela triangulação.
que podemos fazer não importa o quê sob a Num primeiro momento deste livro, com-
denominação de «investigação científica» (p. 36). posto pelos três capítulos iniciais, o autor cla-
Educação, Sociedade & Culturas, nº 24, 2007, 209-213

Então, este livro, que no entender do rifica a sua noção de rigor investigativo, não
autor não é um manual, pretende oferecer existindo lugar para estilos mais literários ou
alguns utensílios de reflexão em torno da prá- imaginativos no estudo dos fenómenos educa-
tica da investigação científica. Considera-se tivos. Procura, então, referindo a argumenta-
um espaço onde se tratam questões gerais ção em torno das especificidades do campo
relativamente a métodos e técnicas de um tipo educativo, construir uma contra argumentação
de investigação que exige preparação, diligên- recusando que essas mesmas especificidades
cia, rigor e regras. dêem lugar a modos de fazer investigação
Acordado com a finalidade principal da menos rigorosos.
investigação científica, a de nos permitir Assim, no sentido de evitar correr o risco
melhor conhecer, melhor explicar, melhor de se cair em pesquisas selvagens, anarquistas
compreender o mundo no qual vivemos, e estéreis (p. 41), a definição da problemática
aumentar, enriquecer e/ou precisar o nosso e posterior definição de hipóteses para confir-

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mar ou infirmar são essenciais para uma cias duras», e aquilo que é uma mistura de
démarche rigorosa. opções pessoais ou posições sectárias. Alerta-
Simultaneamente a este esforço de se -se, então, para a necessidade de se produzi-
referirem passos certos e reconhecidos em rem previamente acordos a priori em torno de
investigação, alerta-se para a impossibilidade conceitos como investigação, educação, insti-
de numa investigação sobre fenómenos edu- tuição, processo, acção e ciências da educa-
cativos se poderem precisar certas dimensões, ção, enquanto conjunto de disciplinas que
nomeadamente a ideia ou o problema que estudam os fenómenos.
origina a investigação. A ideia de rigor que Mialaret enfatiza ao
Para Gaston Mialaret, a investigação vem longo do livro diz respeito (i) à definição de
sempre orientada por uma atitude científica critérios de julgamento, que devem constante-
rigorosa, defendendo que cada domínio exige mente ser questionados (ii), à escolha de uma
métodos distintos. Reconhecendo-se que o metodologia e da amostra (iii), à administração
domínio da educação é vasto e são vários os da prova ou à interpretação dos resultados. O
campos disciplinares que se interessam por dar intuito é não excluir ou privar as Ciências da
conta de determinadas situações educativas, o Educação de uma definição do seu domínio,
autor discute constantemente a fiabilidade de dos seus objectos de investigação e das suas
determinados métodos usados por certos tipos finalidades, à semelhança, afinal, de todas as
de investigações. Por isso, enceta a sua argu- outras ciências.
mentação e preocupação em torno do autenti- Considera, então, que as Ciências da Edu-
camente científico, afirmando sempre aquilo cação se interessam por três tipos de factos e
que considera serem os limites de confiança de domínios: factos e situações passadas e
nos resultados de uma investigação que se vale conhecíveis através de documentos – são os
de instrumentos e métodos que não possuem objectos estáveis; factos educativos que
todos os critérios de cientificidade. podem ser conhecidos por textos e observa-
O valor científico decorre de acções e ati- ções – são os factos relativamente estáveis; e,
tudes que devem estar presentes nos primei- finalmente, as situações de educação que exi-
ros passos e decisões da investigação, sejam gem do/a investigador/a uma decisão no que
as críticas preliminares a que deve estar diz respeito à sua exterioridade ou interiori-
sujeita uma análise dos documentos ou a defi- dade relativamente aos processos educativos.
nição de uma problemática. O autor acentua as especificidades das
Assim, para Gaston Mialaret, o facto de se situações educativas, nomeadamente a estru-
considerarem as Ciências da Educação como tura assimétrica das situações de educação, a
ciências moles não pode significar pouco rigor sua historicidade, mas igualmente a sua irre-
e negligência nas suas exigências científicas. petibilidade e imprevisibilidade (pp. 10-11).
Dada a natureza do domínio das Ciências da Assim, interessa não só ter em consideração
Educação, que é objecto de interesse de as condições de existência das situações edu-
várias disciplinas, surge a dificuldade em dis- cativas mas a sua complexidade na medida
tinguir aquilo que é o autenticamente cientí- em que toda a situação educativa é atraves-
fico, representado ou conseguido pelas «ciên- sada, por exemplo, por um sistema de valores

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e por uma heterogeneidade de interacções e É, então, em torno do pensamento de
sujeitos. Assim, e porque as investigações são Dilthey, que apela para uma pluri-referenciali-
muitas vezes suscitadas por problemas coloca- dade compreensiva, que Mialaret desenvolve
dos pela prática, o autor também considera a sua postura face a modos de fazer investiga-
importante que o/a investigador/a reflicta ção. Duvida da distinção radical que Dilthey
quer sobre as transformações que os estudos estabelece entre explicação e compreensão. A
podem originar, quer sobre o partido que primeira que Dilthey atribui como objectivo
podem tirar os/as profissionais de educação das ciências da natureza e a segunda que atri-
dos resultados obtidos. Alertando para as con- bui como objectivo às ciências sociais e
sequências perversas e perigosas que podem humanas. Critica então, o facto de Dilthey e
advir de uma investigação exige-se, então, seus seguidores oporem com demasiada facili-
uma avaliação constante. dade o quantitativo e o qualitativo. Mialaret
A complexidade dos fenómenos educati- procura neste ponto elucidar-nos sobre as
vos exige que se tenham em conta as condi- posições filosóficas que orientam as diferentes
ções de existência desses mesmos fenómenos, posturas sobre os fenómenos. Por um lado,
bem como uma conversa entre informações uma posição que procura conhecer as coisas
de tipo qualitativo e quantitativo. Reconhece- do seu interior onde a intuição joga um papel
-se que sobre uma determinada situação são fundamental para compreender e onde a sub-
várias as partes envolvidas, são vários os pon- jectividade está presente (p. 20) e outra postura,
tos de vista. Assim, a investigação tem que cartesiana, que procura estudar o objecto, a
procurar dar conta destes vários pontos de sua relação com outros fenómenos, provar as
vista que compõem, afinal, a situação educa- hipóteses e buscar a validação. No domínio
tiva. É, assim, por entre a discordância destes desta distinção, Mialaret afirma-se num
pontos de vista sobre as intenções das acções esforço de procurar a objectividade, chegar a
(p. 15) que a atenção de quem investiga se resultados obtidos de acordo com regras pre-
deve situar. Este trabalho situa-se no interior cisas, de propor um caminho que permita a
de uma postura qualitativa que é, contudo, do outros/as chegarem às mesmas interpretações
domínio do taxonómico em que o investiga- (p. 20). Aliás, como vai defendendo ao longo
dor deverá estabelecer um quadro de valores do livro, uma investigação só o é, de facto, se
classificados por categorias (p. 15). responder a critérios relativamente precisos e
Mialaret adverte para a impossibilidade aceites. Não se consideram, então, outras lei-
da ciência abordar as situações educativas turas ou abordagens dos fenómenos educati-
enquanto comunicação, aspecto fenomenoló- vos, não se considera um outro paradigma.
gico que releva do domínio da compreensão A démarche de investigação tem, assim,
no sentido que Dilthey no fim do século XIX que ser constantemente acompanhada de um
lhe atribui, e que constitui uma perturbação e exercício de justificação permanente das
não alguma coisa que pode enriquecer os opções e interpretações realizadas. Ou seja,
modos de compreender a realidade. A inter- não se coloca de lado ou não se nega a exis-
pretação é realizada sobre as condutas obser- tência da imaginação ou da criatividade, mas
vadas, não se tendo acesso à consciência. quem investiga deve saber reconhecer as

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fronteiras. Assim, entende a vantagem da coo- dade de se saber antecipadamente o que é
peração entre uma fina intuição e um grande pertinente.
rigor na investigação o que faz com que cada Assim, apresenta-nos i) o estudo de docu-
investigação seja única, mas não impossibilite mentos, ao qual se exige um rigor que
que o seu caminho possa ser seguido e decorre da elaboração de uma crítica interna e
«reproduzido» por outras investigações. Esta externa; ii) a análise de conteúdo, enquanto
possibilidade decorre da exigência de que em técnica, que se define como uma grelha de
investigação tudo deve ser verificado, contro- leitura, fiável e fiel que permita a todos/as
lado e recalculado (p. 25). É o dar conta que chegarem aos mesmos resultados. As catego-
afinal se exige: a justificação à comunidade rias a aplicar ao documento, pertinentes,
científica. Assim, a produção científica deve dar exaustivas e objectivas, deverão permitir ao/à
origem a um acordo numa determinada época investigador/a transformar o documento em
sobre a interpretação de um dado fenómeno. partes que serão reagrupadas, classificadas,
Postas todas estas considerações, onde se comparadas, avaliadas e calculadas; iii) a
relança e evidencia uma ideia reificada de ciên- entrevista, onde se reconhece a importância
cia ao mesmo tempo que, e ainda que de um das condições da realização da mesma, e se
modo tensional, se procura enquadrar a inves- alerta para a vigilância triangulada a que têm
tigação em Ciências da Educação nessa forma que ser sujeitos os dados obtidos; iv) a obser-
de produção de conhecimento, Mialaret, no vação simples, que não sendo um decalque da
segundo momento do livro, composto pelos realidade, não deve ser anárquica, selvagem
restantes seis capítulos, coloca em relevo os ou anedótica. Reconhece-se a influência da
métodos e as técnicas de investigação. Define, personalidade de quem observa, não se
então, o método como um conjunto de démar- devendo cair nem numa objectividade estéril
ches que procuram descobrir e demonstrar a e desconhecedora, nem no campo das resso-
verdade. O método socorre-se de um conjunto nâncias íntimas provocadas pela percepção da
de técnicas que devem ser precisas e que per- realidade; v) a observação dita armada, que
mitam a validade e a fiabilidade das interpreta- deve ter como base grelhas de observação fiá-
ções e que possibilitem aquilo que Mialaret veis e utilizar outras técnicas auxiliares, como
enuncia como a «lisibilité partagée», a qual o questionário, com qualidades metrológicas,
decorre de um constante dar conta das opções e construídos a partir das pertinências; vi) a
e posturas por parte de quem faz investigação. experimentação, que se distingue de expe-
É a possibilidade de produzir acordos sobre as riência, mas em que se faz variar um ou
interpretações e de suscitar a adesão racional a vários factores de uma situação para estudar
um resultado científico (p. 26). os efeitos de modo comparativo.
Organiza, então, os métodos e técnicas de Em todas as técnicas apresentadas o rigor
investigação em cinco grupos, aos quais não e o acordo estão presentes como orientação e
recusa a partilha e nem as fronteiras permeá- objectivo, de tal modo que a inexistência de
veis. Pertinência, objectividade são alguns dos espaços vazios faz os fenómenos parecerem
requisitos orientadores da recolha de informa- simples, porque só assim, na sua simplicidade
ções. Salvaguarda-se, contudo, a impossibili- ou simplificação, é que poderiam ser estuda-

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dos no interior de uma abordagem que Concordando ou não com Mialaret, reco-
parece quase imperturbável. nhecemos que o livro faz viver as polémicas
que sempre existiram em torno das Ciências da
Neste livro, Gaston Mialaret deambula Educação e da sua cientificidade ou de uma
entre aquilo que é o estabelecimento de cientificidade já construída previamente; faz
démarches comuns a várias ciências e a sua reavivar um debate que estimula o pensamento
aplicabilidade à investigação realizada em crítico e o alerta sobre aquilo que fazemos em
Ciências da Educação, cujas especificidades investigação e sobre o modo como o fazemos.
assinaladas não impedem e até obrigam a for- Defendendo que o/a investigador/a não
mas rigorosas de fazer investigação. se improvisa e está em constante formação,
Fica a certeza da especificidade dos fenó- diversas vezes nos chama a atenção para as
menos educativos, apesar do reconhecimento desvantagens das investigações solitárias e
de que é a ideia dessa especificidade que para os benefícios do trabalho em equipa plu-
impede a ideia de rigor. O esforço é acabar ridisciplinar da qual beneficia o reconheci-
com a ideia mítica em torno dessa especifici- mento da complexidade das situações de edu-
dade que dá azo a formas de conhecimento cação. Por isso, igualmente, destaca a impor-
mais caprichosas. Mialaret defende sobretudo tância de publicar, de dar conta dos resulta-
a coerência, o que nos leva a indagar sobre as dos que devem ser submetidos à discussão.
razões desta necessidade de afirmar as coe- «On ne s’improvise pas chercheur, même
rências das formas que enformam uma en sciences de l’éducation» (p. 122). Gaston
suposta ideia de cientificidade. Mialaret, um dos pais das Ciências da Educa-
Arriscamos em considerar que Mialaret ção em França, finaliza assim um livro que se
não deixa de revelar a própria complexidade esforça por refazer encontros entre as Ciên-
dos fenómenos educativos ao mesmo tempo cias da Educação e uma ideia de rigor cientí-
que defende um tipo de rigor que, por vezes, fico que pode estar a «paredes-meias» com a
esquece essa mesma complexidade, tão forte- destruição do sentido dos textos educativos e
mente vai em busca de enunciados e da da sua decomposição.
prova. Busca talvez um ideal, não sem um Gaston Mialaret apresenta neste livro a
perigo eminente de exclusão de outras formas reificação da Ciência, como processo de pro-
de saber, de conhecimento. Parece mais pró- dução de conhecimento, parecendo perpetuar
ximo daquilo que é uma validade e fiabilidade ou procurar restaurar uma ideia de Ciência
fornecidas por abordagens quantitativas, onde que se julga em perigo, uma certa ideia de
o objectivo é conhecer para prever. Aliás, o modelo científico único.
vazio existe porque o vivido também parece Na capa do livro, no título, podemos ler a
ausente, tal como as «fragilidades» que lhes designação Ciência da Educação, que faz o
estão inerentes, nomeadamente na ausência contraste com as referências no interior do
de uma exploração rigorosa da relação entre livro a Ciências da Educação, o plural a que
investigador e sujeitos de investigação e da nos habituámos. Sendo propositado ou não,
implicação de quem faz investigação. ficamos a pensar no singular proposto...

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