Você está na página 1de 223

ERNANDO HENRIQUE CARDOSO

MODELO pOLíTICO
BRASILEIRO
..
.' . ~

CORPO E ALMA DO BRASIL

DIFUSÃO EUROPÉIA DO LIVRO


oMODELO
POLtTICO BRASILEIRO
OS ESTUDOS E ENSAIOS PUBLICADOS NESTE
LIVRO T2M EM COMUM A PREOCUPAÇAO PREDO-
MINANTE DE MOSTRAR OS ASPECTOS NOVOS DA
VIDA POLITICA E DA ECONOMIA NO BRASIL E NA
AM2RICA LATINA. SEM REPETIR CHAVõES E SEM
PREOCUPAR-SE COM A DEMONSTRAÇAO DO JÁ SA-
BIDO. O AUTOR PROCUROU ASSINALAR AS LINHAS
DE DESENVOLVIMENTO QUE V2M CARACTERIZAND9
A ECONOMIA NA úLTIMA D1:CADA E AS ALTERNA-
TIVAS POLlTICAS QUE SE ABREM.
POR OUTRO LADO. EM ALGUNS CAPITULOS SAO
DISCUTIDAS QUESTOES DE M1:TODO. A DISCUSSAO
1: FEITA FUGINDO DAS DISPUTAS EST1:REIS E RE-
T6RICAS EM TORNO DOS MODISMOS ACAD2MICOS.
POR TRÁS DO DEBATE - QUE SE FAZ A PARTIR
DA CONTRffiUIÇAO DE CIENTISTAS SOCIAIS PARA A
PRODUÇAO DE CONCEITOS E PARA A REVISAO DE
PERSPECTIVAS DE ANALISE - ESTA A PREOCUPA-
CAO GENUíNA COM A ELUCIDAÇAO DE PROBLEMAS
POSTOS COMO DESAFIO REAL PELA PRÁTICA SOCIAL
CONTEMPORANEA.
PROCURANDO ESCAPAR DE UMA CERTA TIMIDEZ
PROVINCIANA QUE AS VEZES REDUZ O ALCANCE
DA BffiLIOGRAFIA ACAD2MICA. OS TEMAS DEBATI-
DOS NO LIVRO ULTRAPASSAM OS LIMITES ESTREITOS
DE DISCIPLINAS CIENTIFICAS PARTICULARES. A
ANALISE DAS FORMAS DE AUTORITARISMO BURO-
CRÁTICO <MILITAR OU CIVIL>. O ESTUDO DOS MO-
DELOS DE DESENVOLVIMENTO DEPENDENTE-ASSO-
CIADO. O EQUACIONAMENTO DO PAPEL DO ESTADO.
DAS CLASSES E DOS PARTIDOS E OUTROS TEMAS
CORRELATOS SUPõEM UMA PERSPECTIVA DE ANALISE
GLOBALIZANTE. OBJETIVA MAS NAO NECESSARIA-
MENTE NEUTRA. A HONESTIDADE INTELECTUAL
E A PAIXAO PELO CONHECIMENTO SE AMPLIAM E
SAO ASSEGURADAS PELO RECONHECIMENTO EXPLI-
CITO NESTE LIVRO DE QUE O INCONFORMISMO DO
INTELECTUAL SOCIALMENTE RESPONSAVEL :f: O PON·
TO DE PARTIDA PARA A INDAGAÇAO CIENTIFICA
NAS CI2NCIAS SOCIAIS.
A EXPERI2NCIA PROFISSIONAL DO AUTOR E
SUA PARTICIPAÇAO NA VIDA CULTURAL NAO S6
BRASILEIRA COMO INTERNACIONAL. DAO-LHE OS
CR:f:DITOS PARA ASSUMIR AS RESPONSABILIDADES
DE UMA INDAGAÇAO INTELECTUAL QUE SE SITUA
NA FRONTEIRA ENTRE A OPÇAO POLlTICA E O TER-
RENO DO CONHECIMENTO PIONEIRO. NO QUAL A
ELABORAÇAO DE HIP6TESES E TENTATIVAS NOVAS
DE EXPLICAÇAO SAO NECESSÁRIAS.

Capa de TELMO PAMPLONA


----_.
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

Atualmente diretor do Centro Brasileiro de Aná-


lise e Planejamento (CEBRAP), exerceu as seguintes
funções:
Livre docente de Sociologia e professor catedrá-
tico de Ciência Política da Universidade de São
PAULO.·
Diretor-adjunto da Divisão Social do Instituto
Latinoamericano de Planejamento Econômico e
Social das Nações Unidas, na CEPAL, em San-
tiago, Chile.
Professor titular da Escola de Economia da Uni-
versidade do Chile.
Professor da Facultad Latinoamericana de Ciencias
Sociales (FLACSO), da UNESCO, em Santiago,
Chile.
Professor associado do Departamento de Sociologia
da Universidade de Paris - Nanterre.
Professor visitante do Instituto de Estudos Po-
líticos da Universidade de Stanford.

Livros publicados em Português


Cor e mobilidade social em Florianópolis: aspectos
das relações entre negros e brancos numa comu-
nidade do Brasil Meridional, em colaboração com
O. Ianni, São Paulo, Nacional, Coleção Brasiliana,
vol. 307, 1960 (esgotado).
Homem e sociedade: leituras básicas de sociologia
geral, 7.' edição - 1972, organização e introdu-
ção em colaboração com O. Ianni, São Paulo,
Nacional, 1961.
Capitalismo e escravidão no Brasil Meridional,
São Paulo, DIFEL, Coleção Corpo e Alma do
Brasil, vol. VIII, 1962.
Empresário industrial e desenvolvimento econô-
mico no Brasil, 2.' edição - 1972. São Paulo,
DIFEL, Coleção Corpo e Alma do Brasil, vol.
XIII, 1964.
Mudanças sociais na América Latina, São Paulo,
DIFEL, Coleção Corpo e Alma do Brasil, vol.
XXVII, 1969.
Dependência e desenvolvimento na América Latina,
ensaio de interpretação sociológica, em colaboração
com Enzo Faletto. Rio de Janeiro, Zahar, 1970
(esgotado) .
Política e desenvolvimento em sociedades depen-
dentes, Rio de Janeiro, Zahar, 1971.
O modelo político brasileiro e outros ensaios.
São Paulo, DIFEL, Coleção Corpo e Alma do
Brasil, vol. XXXV, 1972.
.330 . (\(J
OAlnbJV
OsopJe~ enblJuElH OpUeUJ8:1
SOIVSN'il smuno 'il
O~II3:~ISVRH O::)I.LJ~Od OTlGOW O
T, 7"\ ": o
t ))-bJO
CORPO E ALMA
DO BRASIL

Direção do
Prof. FERNANDO HENRIQUE
CARDOSO

xxxv
Setembro de 1972
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

o MODELO
pOLíTICO
BRASILEIRO
E Outros Ensaios

DIFUSÃO EUROPÉIA DO LIVRO


Rua Bento Freitas, 362 - 6.·
Rua Marquês de Itu, 79
SÃo PAULO
PREFÁe'IO

Este livro reúne alguns dos ensaios e artigos que escrevi


nos dois últimos anos. A maior parte deles foi escrita para o
público estrangeiro. Isto explica o tom geral de alguns capítu-
los e, a referência a fatos ou problemas que, embora sejam co-
mezinhos na discussão intelectual no Brasil, ps vezes são desco-
nhecidos pelo público de outras regiões.
. A unidade de uma coleção de ensaios é quase sempre dis-
cutível. Procurei selecionar os textos a partir de duas linhas de
preocupação, distintas mas complementares. A primeira delas
gira em torno dos problemas politicos. A outra aspira a discutir
algumas questões de método. Entre ambas existe a ponte da
preocupação sub;acente e dominante: com que critérios e como
caracterizar e explicar o resultado da fusão, num mesmo contexto
hist6rico-estrutural, do processo politico e do processo econômico
nos países dependentes?
O leitor verá qfle 11 preocupação predominante na maioria
dos capítulos está centrada sobre as novas formas de organi:r.ação
econômica e de "ida política que, no Brasil e em alguns outros
países da América Latinfil parecem ter-se instaurado a partir de
meados da década de 50, com a industrialização emergente. A
associação crescente entre empresas estrangeiras e empresas locais,
sem desmedro do impulso do setor estatal das economias, abriu
um con;unto de alternativas estruturais novo que precisa ser
melhor conhecido.
Entretanto, se estes problemas estão subjacentes à maioria
dos ensaios, o esforço em alguns deles orienta-se mais para mos-
trar que o processo político possui certa autonomia diante do
condicionamento estrutural. Assim, não se trata de, uma vez
caracterizada uma forma nova 'de dependência, estiolar o conhe-
cimento da vida políticll na repetição de chavões que, ao aludir
aos conceitos estruturais que eventualmente caracteri:r.am o tipo

1
de desenvolvimento prevalecente, dão a ilusão de explicar o
aqui e agora. Ao contrário, penso que a análise das con;unturas
políticas é nece-rsária para entender como na luta social (econô·
mica e política) são selecionadas alternativas pelos grupos, clas-
ses e individuos, que, de modo determinado, recriam a hist6ria.
Assim, as "con;unturas polJticas" e os fatos particulares devem
ser vistos como um processo de substantivação das condições es-
truturais nas quais ocorrem e, ao memo tempo, como um pro-
cesso de transformação dessas estruturas.
Alguns dos capitulos deste livro mostram quais são os re-
quisitos metodol6gicos para que se analise a relação entre con;un-
tura política e estrutura social evitando a separação estática que
privilegia ora um, ora outro destes dois planos da análise e sem
dissolver, ao mesmo tempo, um no outro. Entretanto, apenas
um capitulo....:- exatamente o que emprestou o titulo para o vo-
lume - se aproxima mais do estilo da análise que pode encami-
nhar, de forma menos esquemática, o relacionamento entre econo-
mia e política, e entre con;untura e estrutura. Nos demais capitu-
los, como no primeiro (que se dirigia a um público muito
especifico e que se ressente disso) existem anotações nesta dire-
ção, porém ainda num estilo muito geral de análise para que o
ob;etivo metodológico indicado acima possa ter sido alcançado.
Há dois problemas mais que convém apontar. A discussão
te6rico-metodológica se fez através da critica de trabalhos de
outros autores, mais do que em termos de uma contribuição
pr6pria direta. Esta critica quase sempre foi feita num diálogo
com autores latino-americanos. Com exceção da discussão com
Poulantzas, os demais textos, criticas ou polêmicas, têm inter-
locutores que estão preocupados com a temática teórico-metodo-
16gica que vem sendo produzida e questionada na América Latina.
O registro deste fato não se faz para expressar qualquer senti-
mento de "regioltalismo", mas para sublinhar que a discussão
teórico-metodol6gica - em geral tão estéril e imitativa dos mo-
dismos predominantes nos centrl.r mundiais de influência inte-
lectual - tem um sentido bem delimitado no livro: visa a
construir os conceitos e os procedimentos necessários para resol-
ver os problemas que a prática social propõe como desafio. Eu
penso que a única forma de evitar o debate estéril e pseudo-
-erudito entre os vários ismos é partir de problemas reais e tentar
produzir os conceitos e métodos pertinentes à sua resolução.
A outra questão· que requer uma palavra na introdução
refere-se à análise dos temas politicos. A geração a que pertenço

2
viveu no ImctO da maturidade um clima de grande liberdade
política e intelectual. Talvez por isso sempre olhou um pouco
por cima dos ombros os problemas da organização política, dos
direitos civis, da participação. Havia um leve odor de ranço em
todos estes temas, diante dos verdadeiros problemas: o desen-
volvimento, a miséria. '
Por certo, estes últimos são problemas decisivos. Mas a
prática política tem mostrado que a resolução ou o encaminha-
mento da solução dos problemas sociais e econômicos não leva
automaticamente a formas mais aceitáveis de organização e de
participação política, nem nas sociedades capitalistas nem nas
socialistas. É preciso, portanto, reivindicar com coragem a reto-
mada, noutro contexto político-intelectual, de algumas questões
que haviam sido jogadas na lata de lixo da história sob a rubrica
de "liberalismo burguês". Um dos mitos mais daninhos da atua-
lidade é a idéia de que bem-estar social e crescimento econômico
são, em qualquer regime, incompatíveis com participação popular,
livre informação e direitos civis. Para que estes mitos deixem
de' ter curso de moeda corrente é necessário, ainda que não
suficiente, continuar a expressar o pensamento inconformista.
Alguns detes ensaios são claramente, embora a sotto voce, uma
tentativa nesta direção.
Por fim, eu não teria tido possibilidade de escrever estes
trabalhos e de continuar a participar na vida intelectual do país,
depois que tive de deixar a convivência universitária, se um
grupo de companheiros de trabalho não tivesse decidido criar
o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP) onde
foi possível manter a discussão intelectual. Ao CEBRAP e a
estes colegas - que não têm, por certo, qualquer responsabi-
lidade quanto aos ensaios deste livro - meus agradecimentos.

J
CAPÍTULO I

ALTERNATIVAS POLíTICAS NA
AMÉRICA LATINA (*)

I. INTRODUÇÃO

A década de 70 começou sob o vaticínio do fim da demo-


cracia representativa na Améric.a Latina. O relatório Rockfeller
apareceu como epitáfio dessa forma de organização política.
Pior que isto, como noutros tempos e em outros regimes, cons-
tatou: o rei morreu, viva o rei. Só que agora, o novo rei se
inspira no autoritarismo. Ainda mais: quer ser conhecido, co-
mo reformista e esclarecido. Finalmente, tem como base social
um grupo funcional, mais que' uma classe: os militares. Será
certo o diagnóstico? E se o for, que capacidade preditiva
pode ter?
É difícil, naturalmente, pôr fim a um processo que não
chegou a existir: a democracia, como organização política, teve
uma vigência apenas ocasional e tendencial na América Latina.
Não é necessário apresentar muita informação para comprovar
que inexistiu na região o conjunto de condições políticas que
costuma ser atribuído à democracia representativa: partidos ca-
pazes de expressar o ponto de vista de classes ou setores de
classes; mecanismos institucionais que assegurem a contraposi-
ção de interesses, regulamentem a sucessão, facilitem a nego-
ciação e prevejam fórmulas para resolver os impasses; divisão e
harmonia entre os Poderes; garantias individuais básicas; e,
ainda por cima, legitimidade, ou seja, reconhecimento, pelas
partes em jogo, do fundamento (legal e racional, no caso das

(*) Trabalho apresentado para iniciar debates em Seminário do


Center for Inter-American Affairs, Nova York, maio de 1971.

5
sociedades modernas) sob que assenta o poder de coerção do
Estado e de seus componentes.
Seria difícil imaginar um sistema político tão complexo
como sendo a forma vigente de regulamentação do conflito e da
imposição social nas sociedades elitistas da América Latina.
Estas, em termos esquemáticos, se compõem, de um lado, por
amplos setores de massa rural vivendo em níveis baixíssimos
de existência, por populações urbanas ditas "marginais", quase
sempre como uma expressão eufêmica para significar "miserá-
veis": por outro lado, estão formadas por uma classe média
limitada e um setor dominante (seja ele urbano-capitalista ou
rural-latifundiário) relativamente restrito e, o que é mais im-
portante, distanciado, por sua renda e estilo de vida, do resto
da sociedade.
Na prática, o modelo democrático de organização política
não é tão coerente como a caracterização acima sugere, pois
envolve a dominação de classe. De qualquer modo, aspira,
como meta ideológica, aproximar-se dos objetivos mencionados
acima. Na América Latina tal tipo de regime pôde ser tentado
apenas nas regiões em que houve uma classe média urbana sigo
nificativa e nas quais a massa trabalhadora conseguiu educar-se
e organizar-se: Argentina, Uruguai e Chile, entre os exemplos
mais expressivos. Meslpo nestes países, entretanto, especial-
mente na Argentina, a vigência democrática, teve e tem suas
vicissitudes.
Assim, a novidade da situação atual não está no "fim da
liberal-democracia" (ou, como preferem alguns, do regime libe-
ral-burguês), como forma efetiva de organização política, posto
que esta teve existência apenas episódica em quase toda a região;
antes reside no 'fato - este sim novo - de que a ideQloi)a
democrática vem perdendo força. Mais ainda: documentos ofi·
ciosos dos E.U.A passaram a aceitar como legítima a existência
de valores distintos da liberal democracia para nortear a vida
política dos países de sua área de influência mais próxima.
É curioso notar que esta mudança ideológica se faz ainda
em nome do pluralismo: é preciso reconhecer os "vários cami-
nhos". Para onde? Para o desenvolvimento. Palavra mágica,
que pode significar muito ou nada: maior acumulação sem dis·
tribuição de renda? Maior penetração local das corporações
multinacionais? Capitalismo, pura e simplesmente? Segurança
hemisférica? Ou quase o oposto de tudo isto?

6
De qualquer forma, a organização política é vista instru-
mentalmente. Sendo assim (como de fato) é variável de país
para país, de fórmula para fórmula, e se justifica à condição
que ... produza o "desenvolvimento".
Na prática, esta pluralidade de "vias para o capitalismo",
tem servido na América Latina e, especialmente, nas relações
dos E.U.A. com América Latina, como Q versão contemporânea
da realpolitik} não mais aquela do bic stick} que se tornou des-
necessária porque atualmente se dispõe de bastões locais com
controle remoto. Estes, se não funcionam quanto a alguns as-
pectos, importantes é certo, da política econômica dos países, são
eficazes para a questão essencial da segurança hemisférica e são
especialmente úteis para lidar com a versão OAS - Canal do
Panamá (1) dos problemas de segurança: o inimigo interno.
Assim, o primeiro problema que. eu gostaria de ver analisa-
do nesta reunião é este: que efeitos presumíveis terão no atual
decênio o declínio da ideologia democrática e o reconhecimento
quase cúmplice dest~ tendência declinante por círculos oficiais e
oficiosos dos Estados Unidos? A que se deve essa inflexão?
Ela é apresentada, naturalmente, como mais uma manifestação
do espírito democrático norte-americano que reconhece, de fato
e de direito, outras formas políticas existentes na América La-
tina. Entretanto, se de fato, sempre houve governos não-demo-
cráticos na região, por que justificá-los agora? Por que perdeu
força a ideologia democrática na América Latina, ou por que
essa tendência coincide com um processo em marcha também
nos Estados Unidos?
Em outras palavras, o problema político básico no decênio,
será o da existência de países latino-americanos que estão se
desenvolvendo apesar de não serem democráticos (processo an-
tigo, que persiste)? ou o da ideologia da democracia política
proposta como modelo universal estar perdendo força também
nos Estados Unidos?

11. TOTALITARISMO E CRíTICA AO LIBERALISMO


As conseqüências do declínio da ideologia democrática são,
entretanto, desiguais. De qualquer forma há países que pos-

(1) Refiro-me à Organization de l' Armée Secrete c à ideologia


terrorista de direita desenvolvida pelos oficiais colonialistas do exército
francês.

7
suem uma tradição de liberdades públicas e individuais e outros
que não. Os países latino-americanos tendem para o segundo
caso) o que agrava .o problema.
Além disso, a perda de força da ideologia democrática
pode dar-se em benefício de diferentes tipos de ideologia. A
crítica socialista à democracia representativa (formal) sempre
foi a de que ela encobre uma imposição de classe e que, por-
tanto) seria necessário ampliá-la. Não é preciso ser nenhum gê-
nio político par,a perceber que no caso latino-americano em
quase todos os países inexistem condições para o funcionamento
regular de um regime de partidos, representativo e democrático,
e que, no mais das vezes, democracia-liberal é a expressão ideo-
16gica da dominação oligárquico-burguesa. Em nome disso, al-
guns críticos de erquerda e os pensadores políticos conservadores
ou direitistas se rejubilam com a inviabilidade do modelo de-
mocrático no Continente e exultam quando mostram as con-
tMdições entre os ideais políticos exportados dos E.V.A. e a
prática de suas relações econômicas com a América Latina.
Perfeito. Entretanto, hoje em dia substitui-se a obsoleta (porque
ligada à "oligarquia") liberal-democracia por um autoritarismo
que busc,a legitimar-se através da eficácia desenvolvimentista
e que, em regra, sustenta estilos de desenvolvimento que con-
centram exponencialmente a renda e propugnam por uma "par-
ticipação" simbólica, que nem chega a atingir a etapa da "par-
ticipação expressiva" (meetings partidos mobilizadores etc.)
J

por temor a toda forma de mobilização e atuação das massas.


Neste caso, a crítica da democracia se torna apenas uma justi-
ficação espúria para o surgimento de ideologias autoritárias,
quando não totalitárias. No léxico e na sintaxe política do
fascismo e do nazismo também se desqualificava a democracia
liberal e se dispunha que antes do povo vinha a Nação; que o
interesse de classe deveria subordinar-se ao do Estado, porque
este exprimia a Nação e que o conflito político entre partidos
(denotador da "perversão liberal-burguesa) minava a segurança
da Nação, vista esta como estritamente ligada à intangibilidade
do Estado.

lII. O DESENVOLVIMENTO POLíTICO


DA AMÉRICA LATINA
É óbvio que nessa defesa do que a experiência política
contemporânea conseguiu em termos de liberdade e garantias
civis não se deve confundir problemas e níveis de análise. As

8
grandes questões políticas da América Latina não se esgotam
com o problem.a da liberdade e das garantias individuais. Sub-
siste o problema dos modelos viáveis de organização do Estado
e de seu relacionamento com a sociedade e a vida econômica. E
é neste contexto, mais concreto, que se deve colocar a questão
anterior das liberdades fundamentais, porque em caso contrário
incorre-se efetivamente no erro que a crítica à liberal democra-
cia apanha corretamente: o de supor uma ordem política abstrata
e absoluta, que não toma em consideração as condições reais da
relação de forças prevalecente nas sociedades nem suas con-
tradições.
Neste sentido, o pensamento político sobre a América
Latina parece ter ficado aquém da realidade. Com efeito, nos
anos cinqüenta e mesmo sessenta, o modelo proposto pelos
observadores de fora da região, especialmente norte-americanos,
era, em regra, o do regime de partidos, eleições, voto livre e
secreto, garantias fundamentais aos direitos do homem etc. Isto
é, o ideário da liberal-democracia. O suporte social para este
programa via-se em termos da crescente "classe média", fruto
do progresso econômico. Não citarei autores, por desnecessário.
Cito apenas um exemplo conspícuo (2). Em contraposição Q
esse quadro ideal, criticavam-se as práticas dos regimes políticos
prevalecentes na região, as quais oscilav.am entre três tendências
básicas, combinadas muitas vezes em situações particulares:

1. A "democracia restrita", na qual os suportes do sistema


de poder democrático operavam como uma contrafacção:
no plano formal - na Constituição - e no plano simbó-
lico das declarações de princípio, o modelo se afirmava;
na prática política o controle oligárquico de grupos sociais
restritos (as classes economicamente predominantes e cír-
culos burocráticos ligados a elas) bloqueava qualquer au-
mento efetivo da participação política e impedia Q organi-
zação autônoma dos grupos e classes sociais subordinados
à dominação oligárquica.
2. O "caudilhismo", militar, mais freqüentemente; civil, às
vezes. Essa forma de dominação repousava sobre supor-

(2) LIPSET, S.M. - "Alguns reqUisItos sociais da democracia:


desenvolvimento econômico e legitimidade política". Belo Horizonte,
Revista Brasileira de Estudos Políticos, (13): jan. 1962 7-68 (escrito
originalmente em 1958).

9
tes tradicionais: o circulo de fâmulos e parentes e a elite
burocrática, especialmente militar. Estes grupos compar-
tiam uma visão política consensual advinda da experiência
de um padrão comum de vida. Em conjunto podiam sus-
tentar, num dado momento, um estilo de governo de cunho
pessoal na aparência, mas que na realidade tinha base con-
sensual no establishment tradicional de dominação (políti-
ca, econômica e cultural).
3. O "populismo" - também este, militar ou civil - que,
se na forma se assemelhava à chefia caudilhesca, de fato
introduzia no jogo político um elemento novo: surgiu, qua-
se sempre, quando o círculo limitado da democracia res-
trita ou da base consensual tradicional dos chefes organiza-
dos em tomo do caudilho, viu-se abalado por "pressões
de base~'. Uma "classe média" emergente, um setor ope-
rário em expansão ou mesmo (como em certos momentos
na Bolívia e, em aliança com outras classes no Peru) um
setór rural mais atuante, quase sempre estiveram por trás
das formas populistas de dominação. O populismo fazia
destarte a mediação entre um estilo tradicional de chefia
e o aumento do número de participantes do jogo político.
A liderança populista, embora raramente fosse a expressão
direta da presença ativa e organizada da base popular,
implementava políticas que rompiam o atendimento res-
trito·dos interesses oligárquicos, sem propor, contudo, uma
forma não tradicional (e não elitista) de participação no
Poder e de controle das decisões.

Escapavam deste esquema, as democracias chilena e uru-


guaia (mencionava-se, também, Costa Rica) e o "modelo mexi-
cano". Este último confundia amiúde os observadores: deriv.ara
de uma revolução social, mas se tornara institucional; funcio-
nava quase em moldes de partido único e, não obstante, repousa-
va numa base social ampliada: tornara-se civil e era "dinâmico",
isto é, mobilizava a massa e acelerava o desenvolvimento eco-
nômico, embora fosse politicamente rígido.
Diante deste quadro, até a década de sessenta o esquema
de análise mais completo do que hoje se chama "desenvolvi-
mento político" talvez tenha sido o de Germani: via-se as dife-
rentes situações políticas da América Latina como etapas numa
transição, que iria da democracia restrita à democracia ampliada,
com participação total.

10
o curso dos acontecimentos tornou desnecessári.a a crítica
analítica ao esquema: quando "amadureceram" algumas situa-
ções para dar-se a passagem para formas de democracia ampliada,
novamente surgiram regimes restritivos. Isto ocorreu mesmo
em países como a Argentina (onde a "democracia social" avan-
çara tanto sob o peronismo) ou o México (no qual a face
repressiva da esfinge política mexicana passou a primar sobre
seu lado mobilizador de massas).
Está claro que tanto na apresentação dos modelos políti·
cos da região quanto na crítica simplista a que faço referência
acima, podem existir enganos: até que ponto as "formas polí.
ticas" expressam ou encobrem processos sociais reais? Noutros
. termos, uma ditadura militar ou uma democracia parlamentar
implicam, por si mesmo maior ou menor "participação"? Re-
presentam, necessariamente interesses de grupos sociais distin·
tos? De que· grupos? O mesmo Germani distingue estes níveis
de análise e, mais que ele, J~guaribe propõe modelos descritivos
do desenvolvimento político latino-americano nos quais estão
vinculadas as formas políticas de organização dos regimes e as
políticas ("policies") que eles processam e, ipso-facto, os grupos
sociais que com eles se beneficiam. Jaguaribe distingue três
modelos básicos de desenvolvimento político, usando como cri·
térios de classificação o grupo social sobre o qual assenta o
regime e sua orientação com respeito às metas e modos de
desenvolvimento:

1. O "Nacional-Capitalismo", quando existe uma cl aliança en-


tre os setores progressistas da burguesia nacional, da classe
média e do proletariado, sob a liderança neobismarckiana
do chefe do governo, a formação de um partido nacional do
desenvolvimento, apto a conquistar a maioria eleitor.al e a
empreender, por forma mais consensual do que coercitiva,
um grande esforço de desenvolvimento nacional"(3).
2. O "Capitalismo de Estado..Jquando se tem a conquista do
poder pe,los setores progressistas das Forças Armadas e da
tecnocracia do Estado, através de um golpe de Estado,
do quál resulta a formação de um partido da revolução

(3) JAGUARIBE, Hélio - "Enfoques sobre a América Latina":


análise crítica de recentes relatórios, apresentado à reunião do
Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, Bariloche, novembro de
1970, p. 39.

11
nacional que remodela o aparelho do Estado para a pro-
moção do desenvolvimento nacional.
3. O "Socialismo Desenvolvimentista", que supõe a conquis.
ta do poder por uma contra-elite revolucionária e desenvol-
vimentista, que utilizará formas socialistas de acumulação
e de gestão para promover o desenvolvimento, mobilizando
as massas através de um partido revolucionário.

Entretanto, mesmo no caso de Jaguaribe, embora seu


pensamento seja arguto e sensível às múltiplas contradições
sobre as quais assenta a dinâmica política (4), existe, às vezes,
uma espécie de dialética r,acionalizadora que obedece mais aos
desdobramentos da Idéia do autor do que às vicissitudes e
meandros do processo político concreto. Assim, Jaguaribe assu-
me como inviável a liberal-democracia nas condições latino-ame-
ricanas (no que terá provavelmente razão) e passa a valorizar
o desenvolvimento econômico, como se este fosse, por um lado,
condição de sobrevivência política das elites de poder e, por
outro, como se ele fosse efetivamente assumido por elas como
substituto dos valores democráticos de participação e liberdade.
Corresponderá isto a uma prática efetiva dos grupos de poder?
Se o for (o que duvido), justificará tal presunção uma imagem
do processo político em termos da predominância quase abso-
luta da elite sobre a massa? Será possível, noutras palavras,
caracterizar o processo político latino-americano apenas ou pre-
dominantemente pela história das elites (quem são, como assu-
miram o poder, que pretendem fazer)?

IV. ELITES, NACIONALISMO E PADROES


DE DESENVOLVIMENTO

Sem presumir que se possa analisar todos os ângulos de


tão importantes questões, gostaria de indicar que, contraria-
mente ao que afirmam os que p.lrtem da perspectiva de que
existem na América Latina elites de poder nacionalistas e desen-

(4) Jaguaribe se preocupa, por exemplo, com o problema da


autonomia ou dependência das elites locais de poder; com a relação
elite-massa e suas conexões com o tema anterior; com a funcionalidade
e a congruência necessárias entre" "árias elites, a econômica, a polí-
tica e a cultural.

12
volvimentistas em ascensão, especialmente as elites militares,
parece-me que a tendência predominante nos países-chave da
região (Argentina, Brasil e México) é antes de mais nada "in-
ternacionalista", embora desenvolvimentista.
Entendamo-nos. O crescimento econômico e, especialmen-
te, a forma que ele adota nos países periféricos - onde o Es-
tado interfere crescentemente na regulamentação da economia
- dota os Poderes Públicos de meios crescentes de interven-
ção. Por outro lado, apesar das doutrinas da guerra fria e da
divisão do mundo em Blocos, a unidade de cada Bloco é posta
em causa freqüentemente pelas Nações que os compõem. Espe-
cialmente no caso do Bloco Ocidental (mas isto é verdade mes-
mo para o Bloco Soviético) a supradeterminação da Potência
Hegemônica só é aceita sem discussões em hipóteses extremas:
debilidade econômica, política e militar do país associado-do-
minado, ou quando se produzem conjunturas de alta tensão ou
de choque entre os grandes blocos rivais. Caso contrário, as
veleidades autonomistas no interior de cada Bloco falam forte
nas razões de Estado e, em especial, quando o Estado está sob
controle ou sob influência dos militares locais. Os analistas
que vêem uma nova vaga de nacionalismo na América Latina
valorizam este aspecto das relações entre os países dominados
e a Potência Hegemônica.
Entretanto, a forma adotada pelo desenvolvimento econô-
mico na Améric.a Latina é, basicamente, a da associação cres-
cente entre três setores: o setor econômico controlado direta-
mente pelo Estado, os capitalistas locais e as empresas multi-
-nacionais ou os trustes. É sobre este tripé que assenta o desen-
volvimento dos países industrial e economicamente mais avan-
çados da região. Nele, há dois parceiros privilegiados: o capi-
talismo internacional, porque aporta a tecnologia relativamente
avançada, as formas modernas de organização, o apoio finnceiro
internacional e as ligações mercantis em escala mundial; por
outro lado, o Estado, na medida em que tem capacidade de rea-
lizar e regulamentar a poupança e na proporção em que atua
como estabilizador e regulamentador do sistema político e
econômico local. Por certo, este Estado não é uma entidade
abstrata: responde a interesses das classes dominantes locais e
busca estabelecer, para a manutenção da ordem social e dos
objetivos nacionais (tais como são percebidos num dado mo-
mento pelas elites que estão no Poder), formas de equilíbrio
entre aquelas, as imposições objetivas do setor externo e o

13
"resto da sociedade". Pode, portanto, incentivar uma ideologia
de tipo nacionalista.
No período "nacional-populista" parte da massa, além de
setores da elite, pôde ser sensibilizada por ideais nacionalistas
induzidos do Estado. A aceitação ampla destes ideais baseou-se,
entretanto, em duas condições primordiais: a existência de regi-
mes mobilizadores (que romperam, portanto, pelo menos em
parte, a apatia das massas) e a possibilidade de fazer crer que,
de alguma forma, pertencer à Nação é uma categoria objetiva:
quem a ela pertence se beneficia com o progresso econômico
geral. No caso do nacional-populismo a parte do setor "resto
da sociedade" que sustentou o nacionalismo e a política de dis-
tribuição de renda foi a camada trabalhadora urbana e a classe
média ligada à industrialização e vinculada à própria expansão
da burocracia estatal, civil e militar.
Os regimes atualmente predominantes nos países mais de-
senvolvidos da América Latina, nem se sustentam por intermé-
dio de políticas de redistribuição de renda (mesmo que sim-
b6licas), nem necessitam mobilizar as massas para manter-se no
Poder. Ao contrário, são regimes desmobilizadores. A exceção
será, quiçá, outra vez o México. Neste país, entretanto, a
participação simb6lica da massa, organizada a partir do Estado,
é contrabalançada por mecanismos que contêm os possíveis im-
pulsos de ativação da sociedade que uma ideologia "nacional-par-
ticipante" provocaria. Por exemplo, assim como o regime mo-
biliza a massa quase ritualmente para as eleições, elimina com
determinação quaisquer pruridos de autonomia, ainda que par-
cial, dos grupos de baixo.
Dessa forma, o nacionalismo como instrumento de partici-
pação termina por limitar-se a círculos restritos das elites. Essas,
às vezes, fazem apelos a símbolos nacionais, mas quase nunca
populares. Este nacionalismo encontra apoio principalmente em
setores tecnocráticos e empresariais, ou em setores das novas
classes médias ligadas aos serviços modernos e à indústria. ~ o
nacionalismo da Pátria Grande, fnlto tardio na América Latina
da ideologia política direitista, mas que não encontra expressão
concreta em termos de uma política econômica conflitante com
os interesses do tripé do desenvolvimento-associado a que antes
fiz referência.
Parece, portanto, que carece de consistência a interpreta-
ção do desenvolvimento político da América Latina em função

14
da forma como as elites locais assumem os objetivos do desen-
volvimento nacional, sem antes fazer·se a análise de como o
desenvolvimento se dá estruturalmente.
Será, entretanto, que a forma política e a base social e
econômica que adota o desenvolvimento nos países mais avan-
çados da região pode generalizar-se? E, por outro lado, não con-
terá ela contradições que terminarão por tornar possível um
desenvolvimento nacional ou popular em oposição ao padrão
internacionalista e elitista de desenvolvimento associado?

V. AS VIAS DISTINTAS PARA O DESENVOLVIMENTO

Vejamos primeiro se o modelo político e o estilo de desen-


volvimento prevalecente nos países-cháve da região pode gene-
r.alízar-se.
Tomarei como critério de distinção não a "generalização
da participação política e suas formas" (GERMANI) ou a
"mobilização política para o desenvolvimento implementado por
uma elite de poder" (JAGUARIBE), mas questões simples
embora básicas, relativas ao padrão de desenvolvimento econô-
mico, à base social sobre que assenta o regime político e aos
objetivos das policies, vistos pelo ângulo concreto de verificar
quem são os beneficiários com os out-puts econômicos e políti-
cos dos sistemas vigentes. Só depois introduzirei considerações
relativas à ideologia, isto é, aos princípios de legitimação de
que os regimes lançam mão, e relativas aos regimes políticos
propriamente ditos.
Qualquer sistema econômico que queira crescer depende,
como é óbvio, da capacidade de acumulação de que disponha.
A redistribuição da renda, em si mesmo, não constitui o polo
de um gradiente que distingue padrões de desenvolvimento e
que teria no outro polo políticas econômicas concentradoras de
renda. Não. Em qualquer situação concreta que se tome, só
pode haver crescimento e desenvolvimento se houver acumula-
ção. Entretanto, esta acumulação pode fazer-se seja por meio
da empresa privada ou por meio da empresa pública (ou então
por intermério de combinações entre ambas). O decisivo, para
distinguir formas de acumulação é perguntar quem controla o
processo de acumulação Na América Latina tem-se tanto um

15
controle público praticamente total do processo de acumulação
(Cuba), como economias nas quais a acumulação repousa cres-
centemente (real ou programaticamente) em empresas públicas
(Chile, Peru), como economias "de livre empresa". Nesta
última hipótese, tanto existem casos em que realmente as tare-
fas básicas do crescimento econômico são deixadas às empresas
(por exemplo, no caso de países economicamente importantes,
a Argentina ou a Colômbia), como casos nos quais existe uma
espécie de divisão de área entre as empresas privadas (normal-
mente bastante vinculadas às corporações internacionais) e as
empresas públicas (por exemplo, México, Brasil e, até certo
ponto, Venezuela).
Entretanto, as forinas adotadas em cada uma destas situa-
ções para permitir a acumulação não são aleatórias com respeito
ao conflito entre as classes sociais e aos grupos de poder, nem,
muito menos, com respeito ao perfil possível e desejável (do
ponto de vista dos grupos dominantes) de repartição da renda.
É óbvio que uma política de crescimento econômico numa eco-
nomia de livre empresa tenderá a salvaguardar a "capacidade de
poupança" da camada empresarial e das classes de rendas altas
e médias altas. Noutro extremo, a mesma política numa econo-
mia socialista baseada em empresas públicas ou numa economia
parcialmente estatizada baseada em grande medida na acumula-
ção e reinvestimento de empresas estatais, tratará de taxar mais
ampla e equanimemente as várias classes sociais.
Tudo isto é quase um truísmo. Mas as implicações de
raciocínios tão simples quanto estes são consideráveis na avalia-
ção dos regimes políticos e de sua adequação às "tarefas do
desenvolvimento". Com efeito, um mesmo grupo funcional,
como os militares, ao controlar o Estado em situações sócio-polí-
ticas e econômicas distintas, como, por exemplo, a da Argentina,
do Brasil e do Peru, não terá o mesmo tipo de atuação. "Na-
cionalismo" ou "militarismo são características abstratas quando
não tomam em conta essas diferenças.
Assim, retomando a indagação anterior, é difícil generalizar
para a América Latina tanto o "padrão de deserivolvimento
associado" a que fiz referência, como a tendência a um "nacio-
nalismo militar", para conduzir o desenvolvimento. E, o que é
mais importante, do ângulo das classes sociais que "sustentam
estruturalmente" o processo de desenvolvimento e dele são "be-
neficiárias virtuais", a questão do militarismo, em si mesma, é

16
menos relevante (5). O que importa, deste ângulo, é verificar
a quem beneficiam as políticas postas em prática. Que seja um
civil no Chile, um general no Peru ou, quem sabe, na Bolívia,
ou outro civil em Cuba, não faz t.anta diferença como verificar
se, de fato, em qualquer destes casos existe uma tendência a
um mesmo "padrão de desenvolvimento", nos termos acima
indicados e, portanto, uma tendência comum no que respeita
à forma de taxação, poupança e distribuição de renda. Da mes-
ma maneira a comparação entre um militar no Peru e outro no
Paraguai ou na Argentina, s6 é significativa quando se faz a
distinção entre os respectivos "padrões de desenvolvimento".
O appeal que o peronismo ou o varguismo tiveram para as
massas residiu precisamente em que ambas formas de populismo,
embora fossem "não democráticas", "integraram socialmente"
(às vezes, é certo, de modo mais simbólico que efetivo) cama-
das sociais que não se beneficiavam com o anterior regime
oligárquico baseado nas economias de export.ação. O mesmo
pode vir a ocorrer com o "militarismo" peruano ou o "socia-
lismo-distributivista" (será isso mesmo?) chileno. Neste caso,
por trás do qualificativo "militarismo" (ou "capitalismo de
Estado", na linguagem de Jaguaribe) ou "socialismo" (terá
ou não, o caso chileno, tendências às características do "socia-
lismo desenvolvimentista"? é cedo para saber), existe uma
qualificação básica: são regimes que se apresentam como "p0-
pulares", isto é, que não querem favorecer primordialmente a
acumulação por intermédio da empresa privada e querem guar-
dar uma imagem (real ou ideológica) de "justiça social".
Talvez seja.este o núcleo oa diferenciação política dos regi-
mes atuais da América Latina: existem regimes que se apresen-
tam como favoráveis a um "desenvolvimento para a maioria"
(e que, para isso, favorecem estratégias de acumulação por

(5) Faço aqui referência às classes que "estruturalmente susten-


tam" ou "virtualmente" se beneficiam" com uma política ou um regi-
me, porque me parece simplista analisar um processo histórico em ter-
mos dos protagonistas imediatos da ação. Assim, por exemplo, foi um
caudilho militar populista, Per6n, quem implementou a política e foi porta-
-voz dos trabalhadores argentinos em certa fase. Por certo, estes, através
dos sindicatos, o apoiaram. Mas no caso brasileiro, foi Vargas, um "lati-
fundiário" e político tradicional, quem desempenhou papel semelhante,
e sequer se beneficiou, na mesma medida, com o apoio ativo dos traba-
lhadores. De igual modo, no Peru, são os militares, quase corporativa-
mente, que implementam políticas que visam a beneficiar a "massa",
em detrimento da "oligarquia".

17
intermédio de empresas públicas, embora não implementem
necessariamente formas socialistas de organização econômica e
política, e sustentam a possibilidade de um desenvolvimento
compatível com um perfil de distribuição de renda mais equi-
tativo ). Existem também regimes que insistem em que a ace-
leração do crescimento deverá dar-se por intermédio da utiliza-
ção racional dos mecanismos de acumulação da empresa privada
(especialmente estrangeira) e mesmo de empresas públicas,
funcionando todas, porém, num contexto político econômico-
-financeiro que vê na poupança das camadas empresariais (e
das classes possuidoras em geral) o meio básico para a acumu-
lação e aceitam como inevitável, portanto, a exploração de
classe e a desigualdade. Por isso tendem a desenvolver políti-
cas que resultam num perfil de distribuição de renda razoavel-
mente concentrador.
É óbvio que a base estrutural de uns e outros sistemas é
diferente, da mesma forma que são distintos os beneficiários
(imediatos, pelo menos) das políticas ?ostas em prática. Nuns
existe uma burguesia ativa (criada pela própria expansão ante-
rior da economia exportadora, ou então, "revolucionariamente",
como no México, a partir do próprio Estado). Noutros, a debi-
lidade das burguesias locais e a incapacidade das empresas es-
trangeiras, que operavam como enclaves na economia nacional,
para criar núcleos empresariais atuantes, facilitou a emergência
de outras fórmulas políticas para enfrentar os problemas na-
cionais.
Voltando à questão proposta: não se pode generalizar,
portanto, para a América Latina a tendência ao padrão de "de-
senvolvimento associado", baseado no tripé grande empresa
estrangeira, empresa nacional e Estado, nem, muito menos, a
visão oposta, de que existe um "nacionalismo emergente", espe-
cialmente na versão militarista.
Existe. isso sim, talvez, pela primeira vez na história
latino-americana, um confronto entre dois estilos de organização
econômica, com implicações polítkas claras: o modelo do "de-
senvolvimento associado", nos termos antes ditos, e o modelo
do "desenvolvimento popular". A imprecisão de ambos os qua-
lificativos não é gratuita. Talvez o primeiro tipo de desenvol-
vimento seja mais claro no seu contexto e mais conhecido: é a
forma possível para a aceleração do crescimento econômico em
"situações ele dependência" quando as economias industriais
locais se integram cada veJ. mais ao modo capitalista de produ-

18
ção. Quanto ao "desenvolvimento popular", o epíteto denota
em sua contradição e vagueza, qualidades do próprio processo
social no qual se dá este estilo. de governo e de política eco-
nômica. Com exceção de Cuba (onde o qualificativo de socia-
. lista seria claro e simples, embora não isento de problem,ls
quanto ao êxito político e econômico da experiência) os outros
regimes que tentam essa via, apesar de terem em comum a
intenção política de beneficiar "a maioria", não moldaram ainda
um tipo de organização econômica definida ( veja-se o caso
peruano, por exemplo) para saber-se no que vai assentar a
política de desenvolvimento, e menos ainda uma fórmula insti-
tucional para dar conteúdo à aspiração "popular" das políticas
que sustentam. Nem se sabe mesmo, no caso do Chile, se a
qualificação de governo favorável ao desenvolvimento - popu-
lar - é justa, posto que talvez as idéias-forças da experiência
chilena sejam antes distributivistas (e populares, é claro) do
que desenvolvimentistas, pelo menos na primeira etapa da expe-
riência de governo da "unidade popular".
Se tudo isto é certo, o que se impõe no que respeita às
"vias para o desenvolvimento" é deslocar o ângulo de análise
da preocupação predominante com as "elites de poder" ("go-
vernos militares", "elites nacional-desenvolvimentistas" etc., ou
não) ou com as formas de acesso ao Poder (eleições, golpes de
Estado, revoluções etc.) e os mecanismos do seu exercício (Par-
tido Único, aberto ou camuflado; pluripartidarismo; democracia
plebiscitária; as Fôrças Armadas como "partido burocrático"
etc. ), para questões de base, endereçadas a saber que grupos ou
classes sociais se beneficiam com as decisões que estão sendo
postas em marcha (ou, ao contrário, com as não-decisões que
sufragam o status anterior de dominação), que perfil de distri-
buição de renda é compatível (independentemente das declara-
ções dos governos) com o padrão do desenvolvimento que está
sendo implementado, e assim por diante.

VI. LIBERDADE E DESENVOLYIMENTO

Do ponto de vista das relações entre os E.V.A. e a Amé-


rica Latina, uma política baseada em valores pluralistas impli-
caria, não em endeusar os novos grupos de poder independente-
mente do estilo de política que estão pondo em execução, mas
em definir as pautas de compatibilidade entre as distintas vias

19
para o desenvolvimento (e por conseqüência, também a via não
capitalista) e os interesses dos Estados Unidos, incluindo os
limites em que se colocam as questões da segurança.
Mas isso não deveria implicar na atitude simplista e oposta
de afastar pura e simplesmente do horizonte de preocupações
a questão das liberdades democráticas. A experiência hist6rica
recente mostr,a dois processos que só na aparência são contra-
ditórios: que a democratização substantiva não depende da ~rga­
nização formal de um regime liberal-burguês mas que, por outro
lado, nem o padrão capitalista de desenvolvimento, nem o socia-
lista, ou 5uas f6rmulas intermediárias, são suficientes, por eles
mesmos, para garantir a referida democratização substantiva.
Carece de sentido político democrático, entretanto, aceitar
um "pluralismo" esdrúxulo, que se apressa em reconhecer "si-
tuações de fato" quando elas parecem garantir a ordem e o
desenvolvimento capitalista, mas que se põe numa posição rigi-
damente defensiva e estreita para avaliar situações nas quais,
embora possam estar sendo preservados v,alores fundamentais
de liberdade, a ordem social se vê alterada em benefício das
camadas menos poderosas e o desenvolvimento assume formas
não capitalistas, ou pelo menos não ortodoxas.
A experiência histórica já demonstrou que, dentro de limi-
tes, a democracia e o totalitarismo se adaptam tanto ao capita-
lismo quanto ao socialismo e que nesta matéria as crenças ingê-
nuas que faziam coincidir socialismo com liberdade e capitalismo
com opressão política não se sustêm. Mas demonstrou também
que as formas mais cruéis de totalitarismo modemo desenvolve-
ram-se em consonância com a expansão capitalista, como na
Alemanha nazista.
A questão política das liberdades quando não colocada de
maneira relativamente autônoma (embora condicionada, natu-
ralmente, em suas formas concretas de manifestação pelas pe-
culiaridades de cada tipo de organização social e econômica)
frente à "lógica do desenvolvimento" e às suas diferentes vias,
pode levar, seja em nome do "dt:senvolvimento mais rápido",
seja para evitar ameaças do "inimigo" intemo, seja em benefício
da previsão de um "cerco externo", à implantação de regimes
inspirados em ideologias totalitárias.
Parece-me que esta é uma questão crucial para a década
dos setenta: como vincular os objetivos ecónômicos do desen-
volvimento a práticas políticas não-autoritárias nem totalitárias?

20-
S óbvio que o encaminhamento dessa questão depende das so-
luções dadas à anterior interrogação: podem conviver vias dis·
tintas para o desenvolvimento (capitalistas e não capitalistas)
na América Latina? E essa questão, por sua vez, desdobra-se
em duas vertentes. Na primeira, talvez decisiva, está o pro-
blema de saber que papel os E.V.A. desempenharão na definição
de possíveis padrões de convivênda entre as vias capitalistas
e não capitalistas nas Américas: manterão o clima de guerra
fria e definirão o problema do ângulo estrito da "segurança
hemisférica"? Definirão as condições de convivência em ter-
mos do não alinhamento militar dos países latino-americanos
no bloco soviético, embora aceitando experiências políticas socia-
liz,antes? Terão força política (especialmente dentro dos pró-
prios E.V.A.) para impor uma "linha dura" intervencionista?
Na· segunda vertente da mesma questão está o problema
dos limites de tolerância possíveis para os regimes políticos
latino-americlll:los alinhados ideologicamente como "ocidentais":
terão condições para suportar os efeitos da convivência (om
países socialistas na América Latina (excluindo-se, obviamente,
a política cubana anterior, de apoio aberto às guerrilhas, cuja
aceitação por parte dos governos latino-americanos estava ex-
cluída de antemão)? Serão capazes de reelaborar formas demo-
cráticas de controle frente às repercussões internas das políticas
populares e anticapitalistas adotadas pelos países que escolherem
esta última via? Ou, tenderão ao "fechamento crescente" do
sistema político para evitar dissenções que firam os "interesses
da segurança nacional", isto é, dos regimes vigentes? O im-
pulso de crescimento econômico que o padrão de desenvolvi-
mento dependente-associado parece ter gerado nesta década
permitirá que os sistemas políticos "absorvam" o inconformis-
mo e o mimetismo internos?
Em termos mais gerais: será que os valores democráticos
fundamentais (direitos do homem, liberdade de informação, de
expressão do pensamento, de organização etc.) são compatíveis
com os objetivos do crescimento econômico acelerado (justifi-
cado ideologicamente em termos de assegurar "melhores condi-
ções de vida e de trabalho", ou seja, de "democracia social")
e com a convivência entre regimes distintos em países subdesen-
volvidos nos quais os canais de regulamentação de conflitos são
escassos e, geralmente, violentos?
Darei apenas algumas indicações sobre a questão. Em pri-
meiro lugar, pelo próprio encadeamento das perguntas, vê-se

21
que atribuo importância decisiva ao problema das relações in·
ternacionais para avaliar as possibilidades de maior liberdade
em cada país. Por dois motivos. Primeiro, porque quando
uma nação define seus objetivos nacionais partindo de uma con-
juntura percebida como sendo de "cerco externo", dificilmente
abrirá mão de exercer controles sobre o comportamento e a
vida de seus cidadãos. A lealdade nacional, entendida como
adesão ao regime, passa a ser vista como requisito básico para
a ·participação na vida política, social e econômica do país. O
elenco de opções entre soluções possíveis e as questões politi-
camente "abertas" diminuem na proporção do sentimento de isola-
mento nacional. Ora, as tendências à não admissão de expe-
riências alternativas de organização social no Continente tenderão
a acentuar (como no passado, em relação a Cuba), tanto os
impulsos defensivos no país ou nos países discriminados, como
poderão gerar mesmo entre países latino-americanos de desen·
volvimento capitalista (posto que aumenta o número dos que
se afastam dessa ortodoxia) a sensação de que "existe perigo
nas fronteiras". O renascimento de um espírito cruzado de
intolerância aumenta nestas circunstâncias e tende a definir
uma ótica de adesões totais. Daí a formas facistas de autorita-
rismo a distância é relativamente curta.
Em segundo lugar, porque na vida política atual, o "ini-
migo externo" tem sua concretização imediata no "inimigo in·
terno": à medida em que se definem regras de intolerância
internacional, o enrijecimento interno torna-se o complemento
necessário.
Entretanto, nem só da política externa - e em certas cir-
cunstâncias nem principalmente - dependem as possibilidades
de convivência entre liberdade e desenvolvimento. Para avaliar
essas possibilidades, são decisivas as condições de funcionamen-
to de cada regime político em particular e estas são, natural-
mente, variáveis de país para país, bem como variam em cada
um dos "padrões de desenvolvimento" considerados neste tra-
balho.
Comecemos por este último problema. Felizmente para a
América Latina, as duas experiências novas mais significativas
de desenvolvimento por vias não estritamente capitalistas, a
peruana e a chilena, não dependem, no momento, para funcionar
e ter êxito, de um enrijecimento político: o Chile faz uma
experiência quase única na história ao seguir a via eleitoral para
o socialismo em condições tais que mesmo as chamadas "liber-

22
dades burguesas" têm sido mantidas. Como deixei expresso
neste trabalho, não desejo confundir os problem.as da organiza-
ção social e econômica com os da liberdade. Ao contrário, a
esperança sustentada é a de que a década dos 70 talvez de-
monstre que no plano político mais geral a convivência entre
liberdade e sistemas econômicos venha a depender mais das
ideologias que sustentam a liberdade e da existência de forças
sociais com disposição de luta para permiti-la, do que foi possí-
vel imaginar até hoje. Assim, apesar das expropriações que
virão, talvez seja possível evitar que o Chile marche para
formas autoritárias, e mesmo totalitárias de poder. Noutro
extremo, no Peru, onde formalmente existe uma ditadura mili-
tar, também há um clima político suficientemente aberto para
permitir que os civil rights mantenham-se, apesar do enrijeci-
mento da estrutura política. Mesmo porque o regime embora
tenha eliminado momentaneamente os partidos não coibiu as
correntes de opinião e mantém uma intenção indefinida de m~
bilização social.
Talvez seja tanto ou mais crucial para os países que se lan-
çam às vias não ortodoxas de desenvolvimento que para os
demais discutir em termos de seus pr6prios ob;etivos nacionais
(econômicos, sociais e políticos) o lugar que darão à criativi-
dade, à crítica, à dignidade humana. Estes países podem tirar
lições de experiências recentes bastante perturbadoras: a crítica
dos cientistas soviéticos à falta de liberdade de criação e seus
efeitos sobre a produção intelectual e científica; a inv.asão da
Tchecoslováquia, o burocratismo desvitalizante de algumas eco-
nomias centralmente planificadas etc. Nada induz a que, no
extremo sul das Américas - sem o peso de circunstâncias geo-
gráficas que às vezes são decisivas para fazer aceitar certos
tipos de imposição - tenham que ser repetidas experiências
liberticidas frustrantes, sejam as inspiradas pelo modelo sovié-
tico, sejam as inspiradas pelo modelo nasserista. À condição,
naturalmente, de que aqueles países não se vejam obrigados a
definir uma política nacional orientada pelo temor do "cerco
externo".
Quanto aos países que seguem os padrões capitalistas de
desenvolvimento, é preciso, antes de mais nada, distinguir.
Há pelo menos três formas tendenciais de regimes políticos (6):

(6) A classificação que se segue não é exaustiva nem rigorosa,


é meramente ilustrativa. Convém notar que há certos países, como o

23
As ditaduras tradicionais caudilhescas (militares ou civis),
como a paraguaia ou a hartiana, já antigas, ou outras re-
centes, às vezes consagradas eleitoralmente, como a gua-
temalteca, que parecem repetir a história daquelas. :É pou-
co provável que se possa esperar mudanças significativ~s
geradas pela dinâmica interna deste tipo de regime e que
favoreçam seja o desenvolvimento, seja a liberdade. As
elites locais de poder não são desenvolvimentistas nem
substituem um credo liberal por outro "moderno" de jus-
tiça social. São regimes repressivos e pouco dinâmicos.
Neste caso, sequer se coloca a indagação que se fez nesta
parte do trabalho: simplesmente não há o que conciliar,
nem liberdade, nem desenvolvimento.
As "democracias representativas" nas quais, bem ou mal,
funciona o regime de partidos e se definem políticas de
desenvolvimento capitalista, com êxito maior ou menor:
Uruguai, Colômbia, Venezuela, Costa Rica, marcadamente.
Os regimes de "autocracia-burocrática" civis ou militares,
como os da Argentina, Brasil e mesmo México, onde, em
graus e sob formas variáveis, existe uma política repressiva
e liberticida, mas, ao mesmo tempo, são feitos esforços in-
gentes para garantir o atendimento de metas econômicas
de crescimento, e, às vezes, se sustentam .até políticas so·
cialmente integradoras. A forma política de controle do
Poder e as regras de sucessão, nestes casos, podem ade-
quar-se, como no México, a um jogo formal de partidos
ou podem, sendo de fato independentes deste jogo, coexis-
tir com ele, como no Brasil. Porém, o decisivo para sua
caracterização é que as questões políticas fundamentais (e
às vezes mesmo as secundárias) dependem de um meca-
nismo burocrático e autocrático. As dasses economica-
mente dominantes quando opinam fazem-no quase corpo-

Panamá, que talvez pudessem ser classificados no terceiro item; outros,


como o Equador, onde por .-ás de caudilhismo tradicional parecem
mover-Se forças sociais capazes' de dar outro sentido à ditadura, seja
aproximando-a do terceiro tipo de regime aqui mencionado, seja fazen.
do o país mudar de "padrão de desenvolvimento". O mesmo se dirá da
Bolívia que, talvez devesse ser considerado como um regime "não orto-
doxamente organizado em moldes empresariaia privados". E quanto
aos países da América Central não mencionados especificamente aqui,
com eleições ou sem eleições, estariam mais comodamente classificados
no segundo grupo.

24
rativamente por seu entrosamento direto com o aparelho
do Estado e este está controlado por um sistema burocrá-
tico (de predominância civil, no caso do México, ou mili-
tar, nos outros casos) baseado em conhecimentos técnicos,
movido por objetivos desenvolvimentistas, organizado hie-
rarquicamente e controlado autocraticamente não por um
líder, mas por setores funcionais da sociedade. No interior
deste sistema burocrático (que lembra formalmente o mo-
delo estalinista) digladiam-se, por certo, cliques e definem-
-se formas oligárquicas de mando, porém a imagem externa
do aparelho dominante tende a ser a de um grupo consen-
sual unido em prol da Pátria. O sistema se apresentará
tanto mais coeso, técnico e hierárquico quanto maior for
nele o peso da instituição armada. Sobra dizer que o
aparato de Estado assim constituído não é independente
da correlação de forças sociais e, portanto, das classes e
setores de classes que dominam~ Mas a forma que esta
dominação adota robustece os referidos grupos funcionais
deixando-lhes amplos limites de libetdade de decisão, sem·
pre e quando não ultrapassemos marcos subjacentes
impostos pelo "padrão de desenvolvimento adotado" e
principalmente pela forma consagrada de acumulação;

:É obvio que os regimes que se reclamam como democracias


partidárias (embora também neles, como é quiçá ainda m.ais
óbvio, se conheçam momentos repressivos) permitem maior
grau de coalescência entre as metas econômicas e a preservação
de áreas de crítica política e liberdade. Nos regimes burocrático-
-repressivos, o acento é nitidamente "economicista", em detri-
mento da liberdade.
O fundamento invocado para a ênfase desenvolvimentista
com diminuição da liberdade é duplo: por um lado, a disciplina
requerida pelo desenvolvimento econômico (isto é, políticas de
contenção salarial, mecanismos de concentração de renda, efi-
cácia na implementação das decisões, "militarização" quase, da
sociedade para alcançar altos níveis de crescimento do produto
nacional etc.). Por outro lado se invoca, novamente, o "inimigo
interno" que em clima de liberdade impediria ou dificultaria os
esforços de construção nacional.
A materialização da idéia do "inimigo interno" - que na
versão oficial expressa a ação política do "comunismo interna-
ciona!" se dá através das guerrilhas e do .t~rrorismo.

25
Entretanto, os países que enfrentaram com maior êxito
movimentos deste tipo (como a Venezuela, a Colômbia e mesmo
a Bolív~a) fizeram-no - dentro de limites, é certo, mantendo a
tendência do regime para situar-se como relativamente imune
ao totalitarismo. De qualquer forma, mesmo quando se afas-
·taram das formas democráticas não desenc~dearam políticas
repressivas indiscriminadas contra distintos níveis da sociedade,
como fazem (em certos momentos, pelo menos), quase todos
os regimes burocráticos repressivos. E existe o caso do Uruguai,
onde visivelmente o movimento contestador parece possuir am-
plo apoio de classe méd~a, pelo menos, e apesar disso (e por-
tanto de sua força) as instituições resistem às pressões de tipo
autocrático, oriundas, às vezes, do próprio Estado.
Não parece, portanto, ser condição necessária para enfren-
tar as ameaças políticas, .a transformação automática do regime
em um mecanismo integramente repressivo. É provável que o
caráter repressivo dos regimes burocráticos latino-americanos
derive da própria natureza de seu funcionamento e não de
"ameaças exter~s", corporifícadas na esquerda. Como ideolo·
gia, entretanto, eles sustentam, contraditoriamente, tanto um
"ideal democrático", como a crença de que o inimigo interno,
vinculado internacionalmente, é forte e só pode ser vencido
através de uma guerra sem quartel, que imobiliza todo o sistema
político, retira da discussão pública temas básicos para a vida
dos cidadãos e transforma uma série de decisões que regula.
mentam as relações e os conflitos entre as classes em "problemas
de segurança nacional". Claro está que, em cada regime em
particular, o grau e a intensidade em que isto ocorre é variável.
Como a ideologia desses regimes é contraditória, eles não que·
rem afir~r sua filiação totalitária. Esta tática, aliada à capa-
cidade de propaganda desses regimes convence boa parte da
sociedade, que passa a crer no perigo real do inimigo interno
(que, no mais das vezes, para o caso destes países é superava·
liado) e na necessidade de enrijecer os controles sociais e
políticos de toda a sociedade. Subrepticiamente a burguesia
"liberal", parte ponderável da d.a.)se média e mesmo do povo,
passam li aceitar, "transitoriamente", a necessidade da repressão.
E esta, pouco a pouco, deixa de ser localizada, par.a transfor·
mar-se em peça básica e geral na sustentação do regime.
Vê·se, portanto, uma vez mais, que as possibilidades (es-
cassas) de se obter um "abrandamento" desses regimes no
decênio em curso, dependerá da definição dos já referidos pa·

26
drões de "convivência internacional" de modo a diminuir a
credibilidade na "teoria do cerco externo" e o peso que· sua
expressão doméstica, o "inimigo interno", tem na ideologia de
Estado.
Isso não basta, entretanto, nem é possível pensar que a
dinâmica política dos regimes burocrático-autocráticos dependerá
de pressões externas. A persistência dos efeitos negativos desse
tipo de regime dependerá, principalmente, do conflito interno
entre as classes e os grupos de poder. Neste sentido, a própria
origem histórica dos regimes tão distinta, por exemplo, no Mé-
xico e no Brasil, dota-os de graus diferentes de flexibilidade e
de c,apacidade de persistência diante da pressão de novos gru-
pos sociais. A via mexicana, se resultou num sistema burocra-
tizado, foi mobilizadora em sua origem e encontra apoios amplos
na base social. Dispõe de alta capacid,ade de assimilação de
pressões e é capaz de elaborar políticas compatíveis com a base
social. No caso brasileiro existe efetivamente um regime de
'elite de poder" que mesmo quando se propõe metas sociais
(o que faz com freqüência) não mobiliza a base social, nem se
abre institucionalmente para formas de decisão política menos
limitadas pelo círculo burocrático-autoritário do Poder. As
pressões de baixo responde violentamente porque não dispõe
de mecanismos de integração política e regulamentação de con-
flitos, como a experiência dos anos 68 mostrou. Quando a
sociedade começa a mover-se, o regime dela se afasta temeroso
de sua ruptura e, apesar da disposição da cúpula para aceitar o
"diálogo", não encontra fórmulas adequadas para fazê-lo. Vê-se
"contestado" e reage intensificando as características autoritárias
e burocráticas, ao mesmo tempo que (para atender aos reclamos
da base social do país, que não é porém a base do regime)
trata de definir cada vez mais símbolos e objetivos nacional-
mente integradores, à' condição de que não quebrem a apatia
política da massa. Eficiência técnica e apatia política parecem
ser os requisitos e talvez mesmo os ideais do regime. Este
pensa poder, a longo prazo, construir "objetivamente" a uni·
dade nacional pelo desenvolvimento. Está claro que um regime
com características semelhantes, mas agindo numa sociedade na
qual as Classes são mais organizadas e onde o conflito entre
elas criou um nível alto de participação e compreensão política,
como na Argentina, tem chances mais escassas de persistência.
Vê-se, uma vez mais, portanto, que além dos regimes e das
elites dirigentes, é preciso considerar as forças sociais e a

27
história de sua at~ção política. As possibilidades de formas
mais democráticas de vida vão depender, em última análise,
dessas forças e da capacidade política que tiveram seus lideres
para defender com intransigência (sejll capitalista ou socialista
o regime econômico) ideais básicos de liberdade. Esta, entre-
tanto, não poderá ultrapassar os limites da ideologia se não
ho~ver por parte dos grupos sociais capacidade de organização
próprÍ;i e de definição de seus interesses.
A visão· elitista e vinculada ao Estado, tanto dos intelec-
tuais quanto dos políticos latino-americanos, tem dificultado o
equacionamento adequado dos problemas políticos da sociedade.
Pensa-se mais facilmente em soluções de cúpula do que nas
tarefas árduas, pacientes e demoradas de organização e prepara·
ção das camadas populares, dos grupos profissionais, da massa,
enfim, pllra a construção de sociedades mais equânimes e mais
livres.
Com isso, tanto as elites de poder como as oposições ter-
minam por minimizar problemas básicos para um estilo de
desenvolvimento realmente criador. Eu temo que neste mo-
mento esteja ocorrendo um processo deste tipo em alguns dos
países mais dinâmicos da América Latina. A estreiteza de visão
das elites (t,anto as opositoras como as de governo, porém a
responsabilidade decisiva cabe a estas últimas) está levando
alguns países a um beco que, se não é sem saída, tem um custo
de escape muito alto. Está se difundindo a crença de que não é
possível haver crescimento econômico acelerado com participa-
ção popular no processo político e com liberdade. Contra' o
bom senso elementar que obriga cautela neste tipo de generali-
zação entre desenvolvimento econômico e autoritarismo (como
se o exemplo dos próprios E.V.A. fosse irrelevante, para não
falar da Escandinávi.a ou de países subdesenvolvidos que con·
seguem altas taxas de desenvolvimento sem repressão) as elites
locais, menosprezando uma vez mais o significado que a massa
possui no desenvolvimento de um país, passam a definir "tec·
nicamente" as possibilidades e estratégias -de desenvolvimento.
Enrijecem o conjunto das estruturas de decisão, baixam o nível
de informação das camadas populares e da sociedade em geral,
para que o modelo de desenvolvimento escolhido apareça como
incontestado. Reprimem correntes discordantes de opinião e
garantem uma dose razoável de desinteresse naciofilll diante de
tudo que não seja propaganda e consumo.

28
Quando este modelo político de desenvolvimento ultrapas-
sa certos níveis (nos momentos em que se sente ameaçado) toca
limites altamente perigosos para o próprio estilo de desenvolvi-
mento, para não mencionar seus efeitos propriamente políticos.
E o certo é que já os tem tocado. Se as tendências autocráticas
inerentes aos regimes burocrático-desenvolvimentistas conseguem,
em função das lutas internas entre cliques, do temor do inimigo
interno, em nome da "teoria do cerco", ou por qualquer desslis
razões (reais ou imaginárias), implantar o terror de Estado
"para acelerar o desenvolvimento", as conseqüências disso, não
só para o regime ou para seu êxito econômico, mas para o con-
junto da vida nacional e para a sociedade, poderão ser altamente
negativas e duradouras.
A repressão indiscriminada termin,a por diminuir a capaci-
dade criadora nacional e por alentar o divórcio entre a elite po-
lítica e a elite cultural e entre ambas e as camadas populares.
Nenhum,a sociedade moderna pode desenvolver-se, a longo pra-
zo, em condições de apatia generalizada e de divórcio entre suas
elites. As modernas sociedades de massa têm que ser ativadas
para alcançar o tão almejado desenvolvimento, seja ele de estilo
capitalista ou socialista, e para funcionar de modo a que os
conflitos sejam historicamente construtivos. A força de uma
sociedade como li americana, por exemplo, não derivou somente
de seu índice do crescimento econômico ou de sua qualidade de
sociedade controlada pelos mass-media. Ao contrário, derivou
do fato de ser uma sociedade que, apesar disso, continuou sendo
ativa e criadora e foi capaz de ir aceitando desafios novos com
flexibilidade. Seus problemas começam a ser propostos de forma
preocupante quando diante da guerra do Vietnã ou do protesto
negro, as elites de poder parecem incapazes de d/lr respostas
distintas da escalada. PO,r sorte, entretanto, apesar de tudo, a
sociedade americana não estagnou nessa "saíd/l" arrasadora.
Continua discutindo, tendo conflitos e, quem sabe, conseguirá
encaminhar saídas menos contristadoras do que a pura violência
destruidora.
Os regimes burocráticos em sociedades de massa resolvem
os conflitos controlando e diminuindo o nível de informação
para aumentar a apatia do conjunto da população e reprimindo
as elites políticas e intelectuais. Ao mesmo tempo, substitut;tn
a flexibilidade institucional, cap,az de integrar as massas, por
mecanismos manipuladores que reduzem a mobilização social a
uma "participação simbólica". Com isso, esses regimes podem

29
alcançar - se não houver consciência por parte <las elites inte-
lectuais e políticas nacionais e disposição de resistência por parte
das massas, especialmente dos trabalhadores e das classes médi,as
- persistência e eficácia técnica.
Será este, talvez ao lado do problema da convivência entre
vias distintas p.ara o desenvolvimento, e em relação com ele,
o desafio maior do decênio atual: como evitar que, em nome do
desenvolvimento, se termine por construir em alguns dos países-
-chave da América Latina uma sociedade apática controlada por
regimes burocr~tizados e repressivos. Os acontecimentos em
países como a Argentina alentam a esperança de que, por mais
sólido que pareça a dominação burocrática, a pressão das forças
sociais de base e a persistênda de certos ideais de liberdade
podem talvez superar o impasse. Somente as experiências dos
países latino-americanos, onde, apesar de circunstâncias adversas
reais foi possível manter regimes "relativ,amente abertos" e as
tênues tentativas latino-americanas para uma experiência de
socialismo com liberdade, que não estão excluídas do horizonte
das possibilidades, contrabalançam as tendências a conclusões
marcadas por um compreensível ceticismo por parte daqueles
que em sua experiência mais imediata não encontram motivos
para o entusiasmo.

30
CAPÍTULO II

INDUSTRIALIZAÇÃO, DEPENDtNCIA
E PODER NA AMÉRICA LATINA (*)

As transformações por que passou a América Latina no


último decênio, colocaram em evidência certos erros de interpre-
tação sobre a natureza e a estrutura do poder nas sociedades
nacionais; por outro lado, elas revelaram certas tendências, que
antes podiam ser apenas vislumbradas. Com efeito, as duas
grandes linhas de interpretação do processo político latino-ame-
ric,ano - de um lado, a que conferia papel decisivo aos grupos
oligárquicos no controle do Estado e do processo político, e,
de outro, a que via na "burguesia nacional" o ator estratégico do
sistema de decisões políticas - não puderam subsistir ao con-
fronto com os fatos nem com o gênero de desenvolvimento
econômico verificado.
A teoria que afirma a predominância dos grupos oligár-
quicos n,as estruturas nacionais de poder, põe ênfase no atraso
da América Latina no que se refere ao crescimento econômico,
e sublinha o caráter tradicional das formas de dominação. Pa-
radoxalmente, este ponto de vista foi sustentado, na década do
após guerra, tanto pelos "experts" americanos e europeus -
que realçaram o contraste entre a situação latino-americana e a
do mundo desenvolvido - , como por setores da esquerda lati-
no-americana. Entre estes últimos, alguns grupos opunham à
falt,a de dinamismo do poder oligárquico as possibilidades de
uma recuperação nacional enérgica a ser obtida graças a políticas
de desenvolvimento propostas pelo Estado e por setores capita-
listas locais; posteriormente, na décad,a de 1960-70, grupos de
inspiração "castrista" (para dar um nome à esquerda revolucio-

(*) Trabalho preparado para ser publicado nos Annali della


FondiWone Luigi Einaudi. Vol. IV, 1970, Torino, 1971.

31
nária), desacreditando na mlssao regeneradora das burguesias
locais, critic,aram esta po~sibilidade de desenvolvimento, reafir-
mando o caráter oligárquico, e, portanto, imobilista dos grupos
que controlavam o Estado.
São bem conhecidos os traços pelos quais os autores favo-
ráveis a este gênero de interpretação caracterizaram a base eco-
nômic.a e social da política oligárquica. Do ponto de vista
econômico: predominância da economia agro-exportadora; con-
centração dos capitais e da renda; baixa cap~cidade de poupança.
Do ponto de vista social: estratificação social rígida, com possi-
bilidades restritas de mobilidade ascendente; apati,a das massas
diante do processo político; "marginalização" da maioria da
população frente ao processo de decisão política; limitações
no consumo dos bens produzidos pela sociedade. Este q~dro
supõe, naturalmente, a predominância da economia rural sobre
a economia industrial urbana, do campo sobre a cidade. Do
ponto de vista da estrutura de c~sses. a base das sociedades
atrasadas e tradicionais, às quais este esquema de interpretação
se refere, é constituída por uma burguesia rural com traços "feu-
dais" e pela mass~ de trabalhadores. Estes últimos, na medida
em que a situação global é concebida como estando marcada por
traços "feudais", dificilmente podem ser definidos como uma
classe, já que as relações capitalistas de produção aí se apresen-
tam contidas em formas "pré-capitalistas" de trabalho.
Por trás desta trama social, o suporte real da estrutur~
produtiva e dos processos de decisão política, segundo a maioria
dos analistas de esquerda, seria o imperialismo. Imperialismo
significa neste contexto a explor~ção das riquezas naturais e do
trabalho local, segundo modelos a que, popularmente, faz-se
alusão falando de "Banana Republics" ou de "Oil Republics".
Nesta perspectiva, o imperialismo é encarado como a form,a
através da qual as economias industriais avançadas garantem a
posse de m,.atérias-primas e a continuação da acumulação capi-
talista. Sob o aspecto político, ele aparece como a opressão
externa que encontra cumplicidade interna nos latifundiários e,
às vezes, nos militares, que são vistos freqüentemente como se
fossem o braço armado da oligarquia. A política local seri,a
principalmente "patrimonialista" e repressiva. O Estado ten·
deria a se organizar como se tivesse de contentar uma client~,
de modo a satisfazer as pressões dos grupos de poder. Estes
últimos pertenceriam a sistemas de parentela, que constituiriam
os liames sociais entre a economia latifundiário-exportadora de

32
um lado, e a política de outro. A outra face do Estado seria
dada pela opressão exercida sobre a maioria da população.
A simplicidade de um esquema deste gênero não pôde
subsistir, evidentemente, ao confronto com as análises concretas.
Mesmo que as interpretações que caracterizam nestes termos o
atraso da América Latina não sejam tão simplificadas como as
apresent,amos, fundam-se, em última instância, numa perspectiva
semelhante. O crescimento econômico de alguns países, a indus-
trialização de outros, a urbanização crescente da região, a pre-
sença da classe operária e de setores de uma classe média "mo-
derna", nascida como conseqüência da urbanização e da indus-
trialização, mostraram a fragilidade e a simplicidade de tal
esquema, que passou a ser criticado tanto pela esquerda, como
pela direita e pelo' pensamento acadêmico.
Com efeito, o pensamento conservador procurou mostrar
que existem mais fatores que intervêm na realidade, além dos
apontados pela esquerda em sua caracterização do atraso e da
falta de dinamismo da região. Contra a síntese vibrante da
crítica que se dirigia contra a oligarquia, o imperialismo e o
imobilismo, os conservadores propuseram uma imagem nuançada
da realidade, sempre acreditando que existem mais coisas entre
o céu e a terra do que a vã filosofia pode imaginar. .. O pen-
samento acadêmico elaborou de um modo mais sutil o mesmo
ponto de vista. Ele começou a fazer alusão à existência de,
pelo menos, dois setores nas sociedades latino-americanas, um
tradicional, ligado à economia rural, e o outro moderno, ligado
à economia urbana.
Deste modo, a interpretação unitária da América Latina,
concebida como uma região subdesenvolvida, dependente do
exterior e socialmente atrasada, foi progressiv,amente substituída
por 'outras interpretações mais nuançadas. Os economistas, os
sociólogos e os especialistas em ciências políticas fizeram então
apelo à ideologia do dualismo: o aspecto arcaico encontraria seu
complemento no aspecto moderno. Alguns chegaram a atribuir às
sociedades latino-americanas não somente dois (moderno e arcai-
co, urbano e rural etc.), mas inúmeros aspectos, cada um deles
tendo sua origem num ciclo histórico da expansão econômica.
Diante das transformações inegáveis por que passou a eco-
nomia latino-americ.ana do ap6s-guerra, essa visão da sociedade
como um puzzle, encontrou um princípio reunificador: a indus-
trialização e a expansão da urbanização recomporiam o quadro
um tanto caótico da sociedade dual e mesmo plural (embora

33
não pluralista), formando uma nova sociedade "moderna", com
setores "marginais". A sociedade moderna assim concebida
baseava-se na existência de duas grandes classes, um empresariado
dinâmico e uma classe trabalhadora. Tal concepção supunha
também a transformação ch.3 classes médias tradicionais em gru-
pos ajustados à dinâmica <la urbanização e da industrialização:
white collars, técnicos, funcionários de empresas, profissionais
liberais etc. Convivendo com estes setores modernos, e um
tanto à margem, estariam os grupos enraizados nas formas pré-
-urbanas e pré-industriais de vida: trabalhadores do campo,
latifundiários, rentistas de todo o tipo etc.
Variando de época para época em cada país - conforme
o grau de complexidade do sistema econômico e conforme a
intensidade do processo de diferenciação social - aereàitava-se
que a nova sociedade dava lugar a formas novas de controle
político. Assim, a oligarquia e o dientelismo tradicionais deve-
riam ceder lugar a regimes populistas ou a regimes representa-
tivos e ~rtidários (em casos limitados) que dariam uma feição
mais secularizada e moderna à vida política; ao mesmo tempo,
o peso das pressões políticas deslocar-se-ia lentamente do campo
para as cidades.
A crítica aos que interpret,aram as sociedades latino-ameri·
canas a partir da idéia do dualismo foi feita principalmente por
autores marxistas. Esta crítica - correta sob todos os pontos
de vista - não minimizou o fato de que era impossível con-
tinu,ar descrevendo as sociedades latino-americanas como atrasa-
das, se o qualificativo é tomado como sinônimo de estáticas. A
crítica mostrou, entretanto, que o dinamismo do setor moderno
da sociedade não pode ser explicado independentemente dos
processos que afetam o setor tradicional. Em vez de suporem
que o setor moderno se justapõe ao setor tradicional da socie-
dade, como o óleo na água, sem levar a WD4 redefinição intrín-
seca de cada um deles, os críticos do dualismo procuram mos-
trar que existe uma subordinação dos interesses dos setores
tradicionais aos modernos e que estes, se não surgem daqueles,
existem em estreita relação com eles. Assim, não haveria indus-
trialização, acumulação de capital, relativa redistribuição da
renda urbana etc., se não existisse exploração "semifeudal" no
campo; não existiriam áreas dinâmicas e modernas, na forma
atual de quase todas ~s sociedades capitalistas da América Latina
(que não fizeram revoluções agrárias antes da industrialização
e que mantiveram em grande parte os padrões prevalecentes de

34
exploração entre as classes do período anterior ao desenvolvi·
mento industrial), se não houvesse "colonialismo interno" etc.
A partir da crítica ao dualismo, surgiu uma divergência
acentuada na interpretação das transformações em curso nas
sociedades latino-americanas: por um lado, situam-se os que
apostam na possibilidade do setor moderno crescer, diversificar-
-se e exp,andir-se, por si ou com apoios externos, a tal ponto
que se torne capaz de modernizar os setores tradicionais; por
outro lado, os que crêem que a modernização (isto é, a expan-
são capitalista urbano-industrial) implica necessariamente em
formas de "colonialismo interno". Este último conceito, em-
prestado da teoria política da expansão nacional das burguesias
européias, é aplicado comumente em sentido próximo à situação
da qual provêm: a colônia interna é uma área geograficamente
definida dentro da Nação. O Nordeste brasileiro, o Sul do
México, o Norte da Argentina etc., etc.
Assim, embora discrepando fundamentalmente quanto às
condições necessárias para a modernização, praticamente todos
os analistas reconhecem que as sociedades latino-americanas, ao
contrário do que fazia crer a ideologia predominante nos anos
40 e mesmo 50, estão em processo de mudança, às vezes ace-
lerada.
Mudança em que direção?
Antes de responder, é conveniente retomar algumas indi-
cações precedentes. O reconhecimento da existência, em certos
países, de uma urbanização acelerada e de um importante pro-
cesso de industri,alização reduziu a dimensão da imagem anterior
que via a América Latina como uma região atrasada e rural.
A revisão conceitual empreendida levou à segunda polarização
ideológica: de um lado, alinharam-se os que sustentam o "fim
do imperialismo", e que, conseqüentemente, não se deveria
insistir neste fator, como elemento explicativo do processo po-
lítico e do gênero de desenvolvimento econômico da região;
de outro lado, agruparam-se os que insistem na persistência dos
condicionamentos clássicos do atraso da região, e realçam o
caráter superficial das mudanças verificadas.
O primeiro tipo de ideologia, que minimiza a pressão impe-
rialista e acentua os êxitos do c,apitalismo, dissimula o processo
já mencionado do colonialismo interno e da "marginalização";
geralmente, os autores que se orientam por esta ideologia exem-
plificam em suas análises com as situações nacionais da América

35
Latina que se caracterizam por um grau de industrialização
mais dinâmico. Entretanto, as interpretações favoráveis às
possibilidades do capit,alismo seriam pouco legítimas, se a aná-
lise se ocupasse dos países onde a economia de exportação do
tipo "enclave" prevalece, sob o controle de empresas interna-
cionais, ou se concentrasse a atenção nas regiões agrárias mais
pobres.
O segundo tipo de ideologia, que acentua o atraso relativo
da região, não leva em consideração, por sua vez, que há de
fato um importante processo de industrialização em certos países
(Argentina, Brasil, México, e numa escaia mais limitada, Chile,
Colômbia, Venezuela e Peru) e que neles as relações imperia-
listas assumem formas novas. Nos países da região que se
industrializam, a relação entre as potências imperialistas indus-
trializadas e os países produtores de matérias-primas e detento-
res de reservas de mão-de-obra, se subordina a relações mais
complexas. Com efeito, o investimento de capit,ais no setor
industrial e nos setores de serviços, embora possam persistir as
formas anteriores de exploração econÔmica, aumentou a impor-
tância dos .mercados internos locais para as empresas interna·
cion,ais. Em conseqüência, há toda uma série de novas políticas
que as empresas estrangeiras podem adotar em suas relações
com a burguesia locai, e mesmo com o Estado local (como,
por exemplo, no caso dos acordos sobre a indústria petroquf-
mica no Brasil, e em inúmeros casos no México). A partir da
etapa de abertura dos mercados internos às empresas industriais
internacionais, novas possibilidades de negociação se abriram
entre o Estado e as corporações intern,acionais, mesmo nos paí-
ses onde os enclaves de exportação ainda predominam e, por
conseqüência, onde o papel das burguesias locais é economica-
mente limitado. Estas negociações têm habitualmente por obje-
tivo o ,acesso a uma participação mais importante nos lucros
das empresas; mas, às vezes, elas objetivam também a obter
maior controle das decisões. econômicas (como se viu nas nego-
ciaçõesa propósito do cobre chileno durante o governo de Frei,
e nas transações entre o governo da Venezuela e o grupo petro-
lífero internacional; como atualmente entre o Peru e os inves·
tidores estrangeiros).
A partir desta nova forma de relações imperialistas, a de-
pendência dos Estados nacionais e das classes sociais, frente aos
p,a{ses industrializados e às corporações internacionais, assume
um caráter particular Que incide, como veremos mais tarde, tanto

36
sobre o gênero de desenvolvimento verificado, como em suas
limitações. Este processo é mais claro nos países onde se for-
mou uma base industrial moderna. Por esta razão, a seguir,
somente nos referiremos a eles.
Tendo em vist,a esta limitação, procuraremos caracterizar o
sentido das mudanças verificadas na América Latina.
Neste ponto surgem outra vez discrepâncias. Por um
lado alinham-se os que crêem numa espécie de filosofia do pro-
gresso e vêem no desenvolvimento o fio condutor da visão
edênica moderna: igualitarismo, participação, mobilidade são os
valores que se encontram na miragem do futuro deste tipo de
"progressista". Noutro lado estão os que insistem em que a
mudança que ocorre nos países subdesenvolvidos que se indus-
trializ'clm acarreta ao mesmo tempo o fortalecimento das desi·
gualdades, a concentração crescente do poder nas mãos de pou-
cos, a ilusão da mobilidade social mantida mais por intermédio
do apelo const,ante ao "consumo de massas" do que por uma
real ascensão na escala social.
Diante dessas duas ideologias, uma do progressismo euf6-
rico, outra do catastrofismo crônico, é preciso dizer que vistos
os fenômenos do ângulo de sua expressão mais imediata e men-
surável, houve mudanças sociais importantes. Em que con·
sistiram?
Os dados são claros a respeito: a urbanização acelerada das
cidades latino-americanas indica aparentemente uma melhoria na
qulidade da vida. Junto com a urbanização, ocortem processos
como a ampliação das oportunidades de educação, a diminuição
da taxa de mortalidade infantil, o aumento da esperança de
vida etc., que indicam uma tendência de melhoria das condi-
ções . de vida. É óbvio, por outro lado, que a urbanização
latino-americana é a expressão, no nível ecológico, da intensi-
ficação da industrialização e do crescimento dos serviÇOS urbanos
~m economias de mercado e capitalistas. Conseqüentemente, a
urbanização acarreta ao mesmo tempo uma série de problemas
sociais e culturais característicos do desenvolvimento capitalista.
É bem conhecido o fato de que a urb~ação foi acompa-
nhada por um outro processo, habitualmente denominado, sem
muito ·rigor, de "processo de marginalização da população urba-
na". Quando desvendamos sua máscara ideológica, esta expres-
são significa que há amplas camadas da população urbana que
vivem em condições precárias e que são exploradas, de uma

37

I _
forma ou de outra, pelas classes dominantes. A primeira vista,
esta população marginal é caracterizada a partir <la discriminação
ecológica e do baixo nível habitacional das favelas. Entretanto,
estes aspectos são .apenas reflexos do processo já mencionado
de exploração do trabalho e resultado da incapacidade do sis-
tema produtivo de oferecer empregos regulares à população em
idade de trabalhar, ou, pelo menos, de oferecer empregos com
níveis razoáveis de salários.
Os indicadores de margin.aIidade que não se limitam à ha-
bitação e à ecologia, mostram que entre as populações urbanas
- apesar da freqüência de rádios e talvez mesmo de televisões
nas zonas mais prósperas da América Latina - a participação
social (para não mencionar a política) é reduzida: continuam
sendo pouco numerOSas as associações civis e profissionais e,
mesmo quando existem, são pouco freqüent.adas. A família
e o círculo próximo de vizinhança, com a precariedade de
experiência cultural e associativa que o caracteriza, exercem
papel preponderante na socialização e no desenvolvimento da
experiênci,a urbana de vida de parte considerável da população
latino-americana (com exceção, naturalmente, de cidades como
Buenos Aires e Montevidéu que mesmo antes do atual surto
industrial eram mais urbanizadas e homogêneas).
O resultado imediato desta situação pode ser resumido
numa frase curta: cidades sem cidadãos.
Com efeito, a cidadania envolve aspectos mais amplos e
profundos que simplesmente viver em aglomerados: ela supõe
um estilo de vida e a consciência do valor deste estilo de vida.
Na Europa a cidade era o foro da liberdade e o cidadão (bur-
guês ou membro da plebe) teve um aprendizado secular para
tornar-se reivindicativo. Mesmo antes do predomínio burguês-
-industrial, em plena cidade dominada pela realeza ou pelo s~
nhorio local, a "turba" urbana era a expressão plebéia de um
embrião de comportamento político. Mais tarde, no século
dezenove, como Hobsbawn mostrou, a turba, geralmente legiti-
mista e favorável ao príncipe, embora reivindicativa, foi substi-
tuída pelo operariado urbano que começava a organizar-se. Suas
lutas tomavam a forma, às vezes, de uma comunidade de int~
resses da massa urbana contra os grupos que as exploravam.
Na América Latina o comportamento urbano de massas
apresenta apenas em limitados casos as características requeridas
pelo processo de cidadania: no voto urbano de protesto ou no

38
movimento operário, sendo que este último, às vezes, atua por
intermédio de formas turbulentas de ação que, na Europa,
ocorreram mais no comportamento das turbas pré-industriais do
que no movimento operário.
Quando se menciona a urbanização com marginalização e a
cid,ade sem cidadania tem-se implicitamente uma situação em
que, se existem massas na cidade, estas não passam pelo apren-
dizado das organizações profissionais e de classe e, ainda menos,
pela disciplina de partidos políticos. Tomam-se, portanto, pre-
sas fáceis do comportamento chamado de "consumo de massas",
mas não se beneficiam com o fato de que a produção em massa
também forma produtores com direitos específicos. Assim, o
nível reivindicat6rio urbano é baixo. O apregoado consumo de
massas é, por seu lado, limitado. As populações urbanas pobres
antes estão sujeitas às limitações pr6prias do "consumo de
massas" do que às vantagens da "sociedade industrial de mas-
sas". Com efeito, nesta, pelo menos em seu modelo ocidental,
existe maior bem-estar e o acesso aos meios de informação e
cultura é mais generalizado; ao mesmo tempo existem canais
informais e formais (como os sindicatos, o voto e os partidos)
para que a "pressão de baixo" se exerça. Nas sociedades de
massa da América Latina não s6 o bem-estar material é limitado
(pois os países são pobres), como os aspectos não materiais da
sociedade industrial têm menos vigência: o controle das infor-
mações, por exemplo, costuma ser mais estrito do que nas so-
ciedades de massa altamente industrializadas.
As vantagens culturais das sociedades de massa apresen-
tam-se mitigadas e deformadas na vida urbana da maioria das
cidades latino-americanas. Como resultado deste processo, os
indicadores que medem a expansão urbana e a posse de instru-
mentos de comunicação de massas, escondem no mais das vezes
uma baixa qualidade de vida, se este termo quiser significQ1'
uma efetiva participação na sociedade industrial moderna, com
o corolário da particip,ação em uma "cultura urbana".
Quando se passa da análise dos efeitos da industrialização
e da urbanização sobre a cultura urbana, para a discussão sobre
o padrão de desenvolvimento que está sendo seguido na Amé-
rica Latina, o quadro que se obtém, sem ser catastr6fico, não
deixa de ser sombrio. Com efeito, já vem se tornando um
lugar-comum dizer que Q modelo de desenvolvimento s6cio-eco-
nâmico vigente é excludente. Que quer dizer isto?

39
Quer dizer que o desenvolvimento capitalista de países
subdesenvolvidos permite altos níveis de concentração de renda
e cria um mercado de rendas médias e altas, que, se é reduzido
em comparação com o montante global da população, é, entre--
tanto, suficiente para assegurar o dinamismo econômico, isto
é, a acumulação de capitais e a expansão das empresas. Conse--
qüentemente, formam-se ilhas de desenvolvimento num con·
texto de pobreza.
Por certo, pode-se duvidar, outra vez, da visão pessimista
que nega o efeito multiplicador deste dinamismo para além das
fronteiras apertadas dos polos de desenvolvimento. Com efeito,
em quase todos os países existe consciência das conseqüências
negativas do modelo atual. De forma variada, propõem-se pro-
gramas e planos de integração nacional, de diminuição das desi·
gualdades regionais, de constituição de fundos sociais, de parti.
cipação na renda nacional etc., para corrigir as distorções que
ele propicia. Tudo isto não invalida, entretanto, a lei tenden·
cial: o modelo de desenvolvimento adotado é concentrador de
rendas e excludente.
Sobre esta questão colocam-se pelo menos duas indagações:
, até que ponto um modelo de desenvolvimento deste tipo pode
ser auto-sustentado? que grupos sociais o sustentam? por quê?
A imagem que representava a sociedade latino-americana
como se fosse composta por dois setores, um atrasado e rural
e outro moderno e urbano-industrial, completava-se, nas ideolo-
gias do desenvolvimento, pela crença de que a longo prazo o
crescimento industrial auto-sustentado dependia de dois requisi-
tos interligados: a liquidação dos interesses latifundiários-expor-
tadores e a formação de um mercado interno amplo que incor-
porasse as camadas que estavam à margem do consumo. O curso
hist6rico, entretanto, mostrou que em muitos países os interesses
urbano.industriais se impuseram, sem provocar mudanças drás-
ticas no campo: alteraram, quase sempre, o predomínio político
dos grupos tradicionais, mas sem produzir a incorporação ma-
ciça das populações rurais ao mercado. Assim, o Brasil, por
exemplo, não fez qualquer reforma agrária, o México manteve
em ritmo lento, se não reduziu, seu processo de reforma agrária,
a Colômbia segue o padrão brasileiro etc. Viu-se que, nas duras
leis da economia, o bem-estar social aparece como um subpro-
duto derivado do campo político, mas não como uma condição
necessária para o desenvolvimento. Redescobriu-se a verdade
elementar de que o mercado se compõe de consumidores (isto

40
é, dos que têm capacidade de compra) e não de "pessoas". Po-
pulação e mercado não são sinônimos no vocabulário da reali·
dade econômica.
Com isto, no plano social e político, a aliança que muitos
supunham natural e necessária entre os grupos empresariais e a
política de incorporação de massas, deixou de ter sentido esttu-
tur.al: o desenvolvimento capitalista pode dar-se sem que a
igualdade social se acentue. Todo o problema passa a ser o da
formação de um mercado sólido e não o da incorporação ao sis-
tema econômico das massas rurais e das camadas "marginaliza-
das". O que é, do ponto de vista capitalista, um mercado
sólido e quem o compõe? Um mercado sólido é aquele que é
capaz de sustentar a expansão da produção nas condições em
que ela se dá. Ora, a produção no caso latino-americano dá-se
em termos da tecnologia que foi de vanguarda, digamos, há 10
ou 20 anos nos centros industdalmente mais avançados da Eu-
ropa e dos E.U.A. Essa tecnologia permite a produção de equi-
pamentos de infra-estrutura, de máquinas, e a produção de
bens duráveis de consumo. Os consumidores são óbvios: a alta
e média classe média urbana e as "classes produtoras", para os
bens duráveis de consumo; as próprias empresas privadas e,
principalmente, as empresas públicas para os equipamentos de
base; os produtores em geral para as máquinas e insumos indus-
triais. Está claro que os setores de alimentação, vestuário,
utensílios domésticos básicos etc., continuam a existir e a expan-
dir-se, mas em termos econômicos têm uma posição de cauda-
tários no sistema produtivo.
Este sistema pode continuar expandindo-se dentro do cír-
culo de giz do chamado modelo de crescimento concentrador
de rendas, que requer um mercado restrito. Mais ainda, ele é
capaz de gerar um excedente para sustentar "políticas de inte-
gração", sempre que não se tome ao pé da letra a expressão.
As sobras limitadas do sistema podem manter as ilusões da
incorporação do conjunto da população à economia de bem-estar.
A e~pressão dramática desta tendência ressalta quando se com·
para emprego com população. O modelo de desenvolvimento
restritivo, utilizando tecnologia relativamente desenvolvida, cria
riqueza sem expandir na mesma proporção o número de em·
pregos'. O crescimento da população dá-se em descompasso com
o aumento das fontes de trabalho.
Ainda uma vez, para evitar conclusões apressadas, deve-se
tomar estas reflexões cum grana salis. O crescimento relativa-

41
mente pequeno do emprego no setor secundário é compensado,
em parte, pelo crescimento da faixa moderna de emprego no
setor terciário. Esta compensação será suficiente, possivelmente,
para, nos polos de crescimento como a região metropolitana de
São Paulo, minorar os efeitos negativos do atual padrão de de·
senvolvimento sobre o emprego. As informações disponíveis
sobre as taxas de fertilidade, mortalidade, bem como sobre as
tendências quanto ao número de filhos por família em regiões
mais industrializadas, como São Paulo, mostram que diminuiu
a taxa de crescimento da população mesmo sem a aplicação de
programas de controle da natalidade. Se a tendência for con-
firmada, mais uma vez se verificará um relativo equih'brio entre
população e emprego nos polos de crescimento, apesar das mi-
grações internas. Dificilmente, entretanto, contrab.alançará os
efeitos negativos da tendência nas áreas de menor desenvolvi-
mento relativo ou de estagnação.
Naturalmente, essas cautelas na interpretação não alteram
o quadro social sombrio que prevalece quando se pensa no con·
junto da população, especialmente a população rural.
Diante disso, por que e que grupos sociais sustentam um
modelo de desenvolvimento que não beneficia à maioria?
Deixando de lado a ingenuidade da pergunta quando en·
tendida a partir dos interesses particulares das classes e grupos
sociais (por que, com efeito, em termos de seus interesses ime-
diatos, preocupar-se-iam OS beneficiários do desenvolvimento
com o conjunto da Nação?), existem razões alicerçadas objeti-
vamente na estrutura social e na infra-estrutura econômica, para
entender-se as causas desse processo. Quanto às últimas, já se
fez menção a um fator que a muitos parece ser decisivo: o tipo
de tecnologia utilizada. Entretanto, a tecnologia não opera no
sistema econômico como variável independente. A escolha
da tecnologia faz-se sempre tomando em consideração pelo me-
nos dois outros fatores: o custo da produção e o controle social
do processo produtivo. Na análise dos clássicos e especial-
mente na de Marx havia uma separação nítida entre o desen-
volvimento tecnológico como invenção e a utilização das novaS
técnicas como uma decisão econômica. Nada indica que hoje
ocorra diferentemente. O problema, portanto, não deriva do
dinamismo da tecnologia de vanguarda, mas do fato de que se
aplica nos países subdesenvolvidos técnicas que se não são
as mais avançadas, pelo menos são suficientemente elaboradas
para poupar mãO<le-obra. Ora, no desenvolvimento dos países

42
hoje altamente industrializados - como a Inglaterra e os E.D.A.
- a disponibilidade técnica de um novo processo guardava
certa relação com a economicidade do sistema produtivo, con·
siderando-se nesta a existência de mão-de-obra disponível. Na
Europa não foi desprezível, por outro lado, o efeito das migra-
ções para aliviar a tensão social interna.
É outra vez o caráter de economias dependentes (*) que
explica, em boa parte, a autonomia relativa dos fatores técnicos
na dinâmica do crescimento industrial latino-americano. Comu-
mente, as inversões estrangeiras dirigem-se para o setor indus-
trial sob a forma de financiamento para a compra de equipa-
mentos produzidos nos países altamente industrializados. Além
disso, deixando um pouco à margem argumentos de tipo pura-
mente econômico, é preciso considerar que as sociedades latino-
-americanas que se industrializam são "abertas". O mesmo
adjetivo, nos países centrais, quer dizer "democráticas e com
forte mobilidade social". Na América Latina tem um sentido
prático diferente. Normalmente quer dizer: poucas restrições
alfandegárias, consumo alto para camadas restritas e liberdades
de escolha por parte do consumidor. Estas características, criam
um consumidor exigente que requer padrões de qualidade dos
produtos (isto é, tecnologia avànçada) independentemente das
considerações sociais sobre a possibilidade de uso de alternativas
tecnológicas que empreguem mais mão-de-obra. Criam-se estí-
mulos de consumo que obedecem aos padrões do mercado inter-
nacional, reforçando-se a tendência prevalecente para que a in-
dustrialização adote cada vez mais a forma de um processo inter-
nacionalizado: só empresas capazes de produzir segundo os pa-
drões de consumo da sociedade industrial atendem às pressões
do consumo local, dado o tipo de consumidores existente.
.O efeito disso (ou sua causa, pois os processos não são
mecanicamente condicionados) é duplo: a industrialização latino-
-americana cria e serve o seu merc;ado (isto é, um mercado com-
posto pela classe média alta e pelas classes de altas rendas) e
adota crescentemente a forma de uma industrialização baseada
na indústria estrangeira, ou na indústria nacional a ela ligada: o

(*) Note-se que economia dependente, neste contexto, significa


uma economia onde o processo de acumulação não se desenvolve inte-
gralmente: a inexistência de um setor de produção de bens de capital
- ou sua debilidade - tem como conseqüência que o esquema de
reprodução ampliada do capital s6 se completa nas economias centrais.

43
processo de acumulação para completar-se passa, necessaria-
mente, por centros externos à sociedade nacional.
Este processo, por outro lado, é concentrador de capital
e leva à adoção do "conglomerado" ou do "sistema integrado
de empresas", como seu fator básico. No passado recente os
"grupos econômicos" formavarn-se na América Latina porque
as empresas tradicionais perdiam eficiência ou não suportavam
mais a concorrência de novas empresas, especialmente estran-
geiras. Assim, mudavam a faixa do mercado em que operavam
buscando setores ainda com pouca concorrência. Cada grupo
econômico mantinha empresas ultrapassadas (agrícolas, têxteis,
de alimentação ou o que fosse) ao lado de empresas que opera-
vam em setores mais rentáveis, como, por exemplo, cimento.
Em regra, os grupos econômicos não só se despreocuparam com
a lucratividade de cada empresa que compunha o conjunto,
preocupando-se apenas com os resultados globais que se man-
tinham graças às empresas que operavam nos setores oligopá-
licos, como, com o tempo - e em parte por isto mesmo - ,
descapitalizaram-se. Atualmente, a estrutura do conglomerado
das economias dependentes é diferente: baseia-se na aliança das
indústrias lo~ais com empresas capazes de produzir a renovação
tecnológica e de facilitar os meios financeiros necessários à
expansão. São essas as razões, especialmente a última, que
tornam o padrão de associação com grupos internacionais a
forma por excelência da expansão dos "sistemas integrados de
empresas".
Fecha-se, portanto, o círculo da indagação que fizemos
sobre por que se adota o padrão de crescimento prevalecente
e sobre quem se beneficia com ele.
Convém esclarecer, entretanto, que o quadro esboçado está
incompleto. Com efeito, a ação empresarial do Estado e o
papel da burocracia pública, bem como da tecnocracia, não po-
dem ser minimizados na análise da "nova sociedade industrial".
O crescimento da empresa capitalista de Estado se dá, como é
sabido, principalmente nos setores de infra-estrutura (petróleo,
energia, transportes, melhoramentos urbanos). Mas ocorre tam-
bém, em alguns países como o Brasil e México, no setor credi-
tício e nos ramos considerados vitais para a segurança nacional,
como o setor de comunicações.
Os efeitos sociais desse processo estão longe de se reduzi-
rem à criação de uma base propícia para a economia da livre
empresa. Eles alcançaram aspectos bem mais complexos. Assim,

44
as sociedades latino-americanas, que tradicionalmente têm sido
concebidas como socialmente rarefeitas, isto é, dotadas de pou-
cos recursos organizatórios, parecem ter respondido a alguns dos
desafios da forma atual de desenvolvimento do capitalismo
das grandes corporações estrangeiras (basicamente, norte-ameri-
canas) criando corporações estatais. Como o Estado exerce
normalmente funções regulativas além das produtoras, cria-se
um countervailing power à internacionalização do mercado.
É um fato social e politicamente revelador desse processo
que a burocracia estatal e especialmente a tecnocracia, passam a
ser os pontos estratégicos de que podem dispor as classes médias
para fazer sentir sua presença e participar das decisões de de-
senvolvimento.
Dessa forma, em "cidades sem cidadãos" e num meio social
pobre de organizações civis (partidos, sindicados, associações
voluntárias etc.) as organizações públicas tornam-se, ao lado
das empresas modernas, formas fundamentais de organização
social e centros privilegiados para o controle das decisões que
afetam a toda a sociedade.
Está claro que os riscos do predomínio de uma concepção
corporativista de sociedade aumentam tremendamente neste
tipo de desenvolvimento. Especialmente quando se considera,
dentro do setor público, o comportamento cada vez mais atuante
das forças armadas. É, entretanto, um corporativismo sui ge-
11eris, pois em seus desdobramentos recentes tem dispensado a
mobilização de massas e, portanto, a formação de partidos.
Assim, parece que as elites se organizam corporativamente, mas
não alentam uma .legitimação popular, não desenvolvendo, por
isso, formas propriamente totalitárias de organização da socie-
dade. Antes se contentam com um autoritarismo imbuído do
"sentido de missão", que quer coexistir com a apatia das massas.
Sob a égide de uma tecnoburocracia pública e privada (das
corporações internacionais) o Estado e a sociedade mobilizam-se
para objetivos econômicos dados, ganham certa eficiência, mas
até agora se têm despreocupado com a arregimentação de massa.
Controlam a informação, sem deixar contudo de permitir que se
transmitam notícias e valores que sem afetar a apatia da massa
contribuam para manter certo dinamismo nas elites culturais e
técnicas, necessárias para o desenvolvimento.
Os limites entre este tipo de autoritarismo desenvolvimen-
tista e um regime completamente totalitário são fluidos na
América Latina. Nos países que mais avançaram industrial-

45
mente as características da primeira forma de controle estive-
ram presentes sempre, embora nem sempre tenham sido persis-
tentes. Isto leva a crer que o processo tem raízes estruturais,
algumas das quais esboçamos anteriormente. Que exista neces-
sidade de que o ciclo se complete, chegando .ao totalitarismo,
é mais duvidoso. Não resta dúvida, entretanto, que o padrão
de desenvolvimento concentrador de rendas e socialmente res-
tritivo, tenderá a alentar tendências nesta direção.
A forma de dominação constituída nos países mais indus-
trializados implica, portanto, uma simbiose entre os interesses
da grande empresa e os do Estado, ele mesmo um "empresário".
Não se trata, portanto, nem de uma espécie de aversão da
burguesia ao poder, nem do fortalecimento do Estado Nacional,
como havia sido previsto nas análises inspiradas pela ideologia
da esquerda não-revolucionária e pelas ideologias do populismo
latino-americano. Ao contrário, as linhas de redefinição do sis-
tema de poder são dadas pela corporação internacional e pelo
Estado, que passa a estimular nos grupos sociais um estilo de
participação política corporativo-profissional. Estes traços são
mais evidentes nos países onde .a modernização do aparelho do
Estado se efetivou permitindo o controle da burocracia civil
pela burocracia militar, num contexto de desenvolvimento de-
pendente estimulado pelas empresas internacionais, como no
Brasil e na Argentina. Neste caso, a política de tipo democrá-
tico-representativa através da qual se manifestava a ação da
burguesia e das classes médias (e também, em curtos períodos,
do próprio povo), cedeu lugar a um estilo de política autoritária
e de tipo burocrático, que muitas vezes é falsamente interpre.
tada como se o Estado, fortalecido, passasse a se opor à burgue-
sia. "Fals.amente" porque a opção autoritário-burocrática, se
bem que contrarie freqüentemente interesses privados, assegura
as condições da acumulação do capital e da apropriação privada
dos meios de produção. É bem conhecido o fato de que o
capitalismo europeu, em sua etapa mercantilista, se desenvolveu
no contexto de um Estado forte e intervencionista que chegou
a contrariar interesses privados mas que, em termos globais,
favoreceu e estimulou o capitalismo industrial.
Em outros países, como o México, a corporativização da
política deu-se no contexto de um regime civil e de partido
único. A participação dos grUpos privados na execução da p0-
lítica de desenvolvimento através da internacionalização do
mercado - e, portanto, da subordinação dos interesses coletivos

46
à lógica da expansão do sistema de empresas "multinacio-
nais" (*) - pôde se efetuar sem que o exército assumisse o
controle político da nova ordem industrial-dependente.
É evidente que um sistema deste gênero provoca dissen-
ções e contradições internas importantes. Sem as analisarmos,
mencionaremos duas tendências que resultam das condições es-
truturais da política nestes países. Essas tendências podem alte-
rar sensivelmente a natureza das reações e dos protestos na
América Latina. De um lado, o sistema político destes países
é restritivo. Conseqüentemente, existe um potencial de reações
nos grupos que estão em vias de ser marginalizados politica-
mente. Note-se que serão politicamente marginalizados não
somente os que se encontram "sem emprego estável", mas tam-
bém aqueles que não mais encontram meios de expressão polí-
tica e que antes tinham tido uma experiência de participação:
a classe média urbana não ligada às empresas modernas (do
Estado ou internacionalizadas), a intelectualidade (em parti-
cular os setores estudantis) e os setores tanto burgueses como
assalariados que não estão inseridos na dinâmica do desenvol-
vimento fundado sobre as grandes corporações.
A outra tendência a que queremos nos referir é que o
novo estilo de desenvolvimento e de participação fragmenta as
classes sociais. Uma parte delas solidariza-se com o setor mo-
derno e internacionalizado da sociedade (convém relembrar que
este processo pode incluir desde os operários até os empresá-
rios, passando pela intelectualidade, e principalmente pela tec-
nocracia). Outra parte, não conseguindo incorporar-se ao "setor
moderno" da sociedade, engrossa as fileiras dos que ressentirão
mais vivamente a falta de acesso à política.

(*) Uso a expressão empresas multinacionais entre aspas porque


o fenômeno, apesar do muito que se escreve a respeito, não é claro.
Trata-se de empresas controladas por capitais originários de vários paí-
ses ou de empresas controladas predominantemente por acionistas de
um mesmo país - e sob a proteção do Estado em sua ação interna-
cional - que opera economicamente em vários países? Em qualquer
Elos casos, o fenômeno é importante, mas seu alcance será diverso. No
segundo caso, "empresa multinacional" significará a continuidade do
processo de monopolização, que terá ganho novos contornos graças à
formação de "conglomerados". No primeiro caso, entretanto, a impor-
tância das formas atuais da burocracia empresarial internacional -
como que "enfeudando" num nível complexo as organizações econômi-
cas - poderá ser um freio à ação das burocracias estatais nacionais.

47
Estas tendências poderão (e aqui entramos no terreno da
pura especulação) suscitar momentos de crise nos quais os obje.
tivos "técnicos" e "racionalmente" definidos dos novos grupos de
poder poderão ser contestados violentamente pelos outsiders.
Reações como uma espécie de "wild-cat protest" poderão advir, a
exemplo do movimento de Córdoba na Argentina em 1968,
onde a reação espontânea das massas colocou momentaneamente
em xeque o sistema estabelecido. A criatividade ativa e relati-
vamente pouco organizada das violentas "turbas" modernas po-
derá se transformar numa ameaça imprevista ao sistema de
dominação, mais difícil de controlar do que o "foco guerrilhei-
ro" da política debreysta que constitui uma resposta também
"técnica" ao desafio da dominação tecnocrático-imperialista.
Evidentemente, movimentos desta natureza não destroem
a dominação tecnocrátka, ao menos enquanto não se acumulam
movimentos sociais originários de outros tipos de contradição,
como, por exemplo, esta espécie de "revolução das expectativas
diferidas" que às vezes se manifesta no interior do próprio setor
tecnocrático-moderno (como se viu em maio de 1968 em Paris,
quando "quadros" técnicos apoiaram o protesto estudantil) e
o confronto "clássico" entre as classes sociais. Este último
continua a existir, apesar de "despolitizado", nos próprios seto-
res de trabalho dominados pelas corporações internacionais e
pelas empresas do Estado. Cada uma dessas contradições, iso-
ladamente, encontra resposta mais ou menos eficaz por parte
do sistema de poder. Quando se apresentam conjunturas em
que se estabelecem correntes de comunicação entre elas - e
esta é a tarefa política por excelência - podem surgir situações
favoráveis à mudança política para as quais o establishment não
encontre respostas adequadas.
Desejamos deixar claro, portanto, que se bem exista atual-
mente, nos países que se industrializam graças à integração
crescente ao sistema de corporações internacionais (*), uma
conjuntura (que chega a englobar setores das próprias classes
populares) extremamente favorável à expressão imperialista-
-tecnocrática do poder, isto não significa a impossibilidade his-
tórica de uma alternativa política. Existe uma base social para

(*) Excluímos deliberadamente da análise os países em via de


industrialização a partir de uma poderosa economia de enclave como
o Chile, o Peru e a Venezuela. Nesses países, o processo político parte
de conjunturas bem diversas das examinadas neste artigo.

48
a reação à forma atual de dominação. Mostramos, sumaria-
mente, qual o outsider potencialmente mais capaz de reagir;
deveriam ter sido mencionados outros grupos como os trabalha-
dores agrícolas, quê apresentam uma certa virtualidade de ação.
A passagem desta base social à ação não é uma questão teórica:
ela é política, e depende de estratégias concretas e particulares
concernentes ao que deve ser feito. Entre os insiders há tam-
bém uma potencialidade de reação. Ela é crucial porque a ação
puramente espontânea e, até certo ponto, "anti-racionalizadora"
daqueles que não se encontram numa situação de trabalho e de
experiência cultural de vanguarda, dificilmente poderia ser bem
sucedida em países industrializados, sem contar com pontos de
apoio estratégicos em grupos social e culturalmente mais avan-
çados, integrados de uma forma ou de outra ao "setor moderno"
da sociedade.
As conjunturas de poder são historicamente fluidas. Não
há razão para pensar que a forma de dominação corporativa-
tecnocrática dependente e os regimes que ela suscita nos países
mais industrializados da América Latina escapem à regra se-
gundo a qual .a história é, essencialmente, movimento. Na fase
de formllção e ascensão de um novo tipo de controle econômico
e político os regimes e as conjunturas de poder aspiram a dar a
impressão de perpetuidade. A análise objetiva, escapando da
ideologia dominante, mostra, entretanto, que a dinâmica do sis-
tema soci1l1 produz forças discordantes e cria problemas novos
que fazem reaparecer, em outro nível, formas de conflito e
alternativas políticas que tornam inviável o valor maior de toda
ideologia dominante: a perpetuidade do presente.

49
CAPÍTULO III

o MODELO POLíTICO BRASILEIRO (*)

Quase todos, vencidos ou vencedores, se surpreenderam


com a forma como se deu a ruptura do sistema político brasi-
leiro em 1964 e com o tipo de regime que se implantou subse-
qüentemente. Não me refiro apenas à falta de resistência do
nacional-populismo e à rapidez de sua desagregação, mas à
natureza e expansão tanto da intervenção militar como de suas
conseqüências políticas.
Inicialmente a discussão sobre o caráter do movimento de
1964 limitou-se à disputa retórica em torno da questão "golpe
ou revolução"? Os que desfecharam o golpe alegavam a quali-
dade revolucionária da instauração do novo governo (embora
não se referissem de início a um novo regime) dizendo que a
base social do movimento militar fora ampla, como as passeatas
que antecederam a revolta militar demonstraram. Nelas se vira
uma impressionante mobilização da classe média acomodada e
dos setores politicamente ativos do empresariado e da oligarquia
agrária. Os perdedores não acreditavam na argumentação, ale-
gando que apesar da mobilização urbana em favor do golpe, ele
fora desfechado quando o apoio das massas ao presidente Gou-
lart estava aumentando. Portanto, as passeatas e a mobilização
política contra o governo tinham mais o caráter d~ uma contra-
-ofensiva política do que de um movimento revolucionário.
Em termos objetivos, pareceria especioso indagar se houve
um "golpe de Estado" ou uma "revolução". Formalmente, não
cabe dúvidas, houve uma intervenção dos militares que inter-
rompeu a vigência de um governo constitucionalmente estabe-

(*) Apresentado em seminário na Universidade de Yale em


23/4/1971.

50
lecido. Substantivamente esta intervenção se deu no momento
em que eram postas em prática pelo governo medidas políticas
de "mobilização de massas, demagógicas ou não - pouco
importa no momento - em torno de alguns dos objetivos do
regime nacional-populista: reforma agrária, ampliação da sindi-
calização, redistributivismo, regulamentação do capital estrangei...
ro, crescente estatização etc. A intervenção militar teve, neste
sentido, o caráter de um movimento de contenção. Economica-
mente parecia claro que o sistema estava progressivamente ca-
minhando para um impasse, com a inflação galopando, a taxa
de crescimento econômico decrescendo, dificuldades crescentes
com a balança de pagamento e assim por diante. Por estes mo-
tivos o movimento de 64 procurou legitimar-se como restaura-
dor da economia e como um movimento favorável à definição
de um padrão de desenvolvimento baseado na livre empresa,
contra o estatismo econômico que se atribuía ao governo de-
posto (*).
Essa caracterização do movimento de 64 não abrange, en-
tretanto, suas conseqüências políticas e sociais, nem permite
compreender a natureza do regime que com ele se implantou.
Um dos mais argutos observadores estrangeiros da história
política recente, Phillipe Schimitter, qualificou o golpe de 64
como um "movimento restaurador". Indubitavelmente, no pIa-
no social e no plano econômico ele teve inicialmente este caráter.
Terá sido assim também no plano político? Está claro que a
ninguém (e menos ainda àqueles que deram o golpe) ocorreria
pensar que 64 significou uma revolução, na acepção corrente

(*) Faço apenas alusões às raízes estruturais da crise política de


1964 porque o assunto é complexo e escapa aos objetivos precisos deste
artigo. Por trás da crise institucional está o fenômeno muitas vezes
designado como auge do processo de substituição de importações. De
fato tratava-se da necessidarle de recompor os mecanismos de acumu-
lação e de recolocar esta última num patamar mais alto capaz de aten-
der ao avanço verificado no desenvolvimento das forças produtivas. Esse
processo requereu, entre outras políticas, a de contenção salarial e des-
mantelamento das organizações sindicais e políticas que, no período
populista, haviam permitido que os assalariados lutassem e conseguissem
rliminuir os efeitos negativos que a acumulação inicial exerce sobre os
salários. Para análise do processo estrutural subjacente à crise política
de 1964 ver CARDOSO, F. H. - "Raízes estruturais da crise política
brasileira", in Mudanças sociais na América Latina, São Paulo, DIFEL,
1969. Publicado originariamente em Les Temps M odernes, Paris, oct.
1967.

51
da palavra, isto é, uma modificação nas bases do poder de tal
modo que camadas sociais e economicamente antes dominadas
tivessem passado, depois de 64, a dispor de maior poder de de·
cisão. Entretanto, essa ressalva não desqualifica a indagação
sobre ,a natureza política do movimento de 64. Quem teve seu
poder aumentado: a oligarquia agrária? a burguesia? que setor
dela? os militares enquanto "grupo funcional"? o conjunto das
Forças Armadas ou algum setor em particular? os representantes
do capital estrangeiro? quais? os americanos, especialmente,
dado o papel comparativamente importante das companhias e
do governo americanos nos dias decisivos de março e abril de
1964?
Por outro lado é preciso indagar, quaisquer que tenham
sido os grupos que prevaleceram depois do golpe, sobre a
natureza e o alcance do regime que se instaurou: a intervenção
das Forças Armadas terá sido (ou será) uma ação simplesmente
corretora do processo político? Os militares voltarão aos quar-
téis depois de "restaurada a democracia", deixando em funcio-
namento o jogo dos partidos, ou a intervenção militar acabará
por se constituir uma etapa de transição para formar um regime
autoritário estável que, embora venha a ser presidido por um
civil e exiba partidos em funcionamento não se apoiará neles?
Há quem veja na continuidade dos sete anos de controle
militar, na existência embrionária de uma doutrina política de
Estado e na prática da violência, bem como em outros traços
do mesmo tipo que ocorrem no regime atual, o renascimento do
fascismo. Outros, acreditam que tudo isso são episódios passa-
geiros e que a intenção democrática dos "revolucionários histó-
ricos" de 1964 prevalecerá. Neste caso, o ressurgimento da
democracia será uma questão de tempo.
A variabilidade das respostas comumente dadas a essas
questões deriva, de uma parte, de interesses muito concretos:
uns defendem, outros criticam o regime, seja porque fazem
opções políticas definidas, seja porque têm interesses em jogo.
Mas por outra pa:te, essa variabilidade deriva também da difi-
culdade em conceituar processos sociais de tipo novo.
Ao dizer isso, adianto algumas conclusões deste trabalho:
eu creio que o regime que terminou por se instaurar não teve
o caráter de uma volta ao passado, como pensam alguns analis-
tas que insistem na continuidade da história contemporânea
brasileira desde 1930, com o interregno de 1945-1964. Pelo
contrário, ele expressa uma rearticulação política que se baseia

52
em alterações no modelo social e econômico de desenvolvimento
. que prevalecia anteriormente. Neste sentido, não fosse para
evitar a confusão semântica e a manipulação política óbvia que
ela permite, seria mais correto dizer que o golpe de 64 acabou
por ter conseqüências "revolucionárias", no plano econômico.
Antes de mostrar que tipo de transformação foi essa, con·
vém esclarecer que apesar dos traços comuns que o movimento
de 64 e o regime militar atual têm com respeito a formas ante-
riores de autoritarismo havidos no Brasil (para não mencionar
as relações com outros tipos de regime forte da América Latina
e de outras regiões), não me parece que se possa explicar a
situação atual em termos de uma continuidade histórica. Por
certo, o regime e sua ideologia, na medida em que são autoritá-
rios e que vêem no Estado centralizador e na burocracia os
instrumentos básicos da "formação da nacionalidade", aproxi-
mam-se da organização política e das idéias que prevaleceram
durante o Estado Novo. Nisto têm razão historiadores como
Skidmore que vêem no período 1945-1964 o desvio de uma
tendência contínua. Entretanto, é mais importante sublinhar
que além dos elementos básicos da cultura política brasileira,
e do tipo de autoritarismo que lhe corresponde, existem dife-
renças importantes na caracterização atual do regime autoritário
do Brasil (1 ) .
Que mudanças foram estas?
Em termos gerais, houve uma alteração no próprio pa-
drão de desenvolvimento econômico e na correlação de forças
que o sustentava. Por certo, essa alteração deu-se antes de 1964
no que diz respeito ao estilo' de desenvolvimento econômico:
desde o governo Kubitschek perdera força o modelo de desen-
volvimento que, nascido no final dos anos 30 - com a side-
rurgia.de Volta Redonda, se se quiser dar um marco - ganhara
força durante a guerra e se transformara em orientação política
relativamente clara durante o segundo governo de Vargas

(1) Este capítulo já estava redigido quando tomei conhecimento


do livro de Alfred Steppan sobre as mudanças no padrão das interven-
ções militares no Brasil. Steppan mostra os efeitos das mudanças gerais
a que aludo sobre as instituições militares e sobre o tipo de interven-
ção política que elas exercem a~ualmente.
Existem pontos de coincidência, neste aspecto, entre este artigo
e os trabalhos de Steppan, Schimitter e Malan Pompermayer, na me·
dida em que também estes analistas apontam a emergência de novos
estilos de atuação política no Brasil.

53
(1950-54). Com efeito, naquela época o papel do Estado nos
investimentos para a construção da indústria de base e em seto-
res pioneiros da produção de bens de consumo durável era
decisivo. Mesmo que esse tipo de política econômica tenha
sido antes a conseqüência de contingências práticas do que de
uma ideologia nacionalista, seus efeitos sobre o estilo do desen-
volvimento econômico eram acentuados: Estado, capital nacio-
nal e investimento externo (principalmente através do finan-
ciamento às obras públicas), nesta ordem, constituíram as molas
para o desenvolvimento. Com a política econômica de Kubits-
chek, de rápida industrialização e de ampliação do consumo
industrial de massas (isto é, da classe média urbana), começou
a haver uma inflexão no que diz respeito aos grupos que atua·
vam nas decisões sobre a política econômica, na forma como se
dava o investimento e no seu controle. As bases sociais e polí-
ticas sob que assentava o regime populista (seja em sua etapa
autoritária, sob o Estado Novo, seja nos períodos democráticos,
de Kubitschek, Goulart ou mesmo Jânio Quadros) começavam
a deixar de corresponder, em forma variável, aos setores de
classe que controlavam as forças produtivas. Acresce a isso
que a organização econômica capitalista sofrera também, no
plano internacional, modificações acentuadas na última década.
Para resumir, as corporações internacionais passaram a diversifi-
car não só os ramos de atividade econômica sob seu controle,
mas a localização das fábricas, deslocando algumas delas para
áreas periféricas. Disso derivou maior interdependência na
esfera produtiva internacional - visto o sistema econômico
mundial do ângulo dos centros de decisão - e uma modificação
nas formas de dependência que condicionam os estilos de desen-
volvimento dos países que se integram na periferia do capita-
lismo internacional.
Por certo, a empresa pública, o Estado e os capitalistas
locais continuaram a existir e a atuar. Mas o eixo hegemônico
do sistema de poder e a base dinâmica do sistema produtivo
modificaram-se. Neste novo contexto, ganharam importância
os grupos sociais que expressam o capitalismo internacional,
sejam eles compostos por brasileiros ou por estrangeiros, por
empresas brasileiras que se associam às estrangeiras ou por estas
diretamente. Entretanto, também ganharam influência os seto-
res das Forças Armadas e da tecnocracia que - por serem
antipopulistas - estavam excluídos do sistema anterior, mas
que em função de suas afinidades ideológicas e programáticas

54
com o novo eixo de ordenação política e econômica constituí-
ram-se em peça importante do regime atual: assumiram tanto
funções repressivas no plano social, como modernízadoras, no
plano administrativo. Simultaneamente alterou-se a posição re-
lativa na estrutura de poder dos antigos setores dominantes.
Perderam prestígio e poder os setores agrários tradicionais que
não se redefiniram em função da forma como se dá a nova
expansão do mercado e a reorientação da política econômico-
-fin,anceira. Paralelamente, perderam prestígio e poder os se-
tores da classe média burocrática tradicional e os representantes
políticos das classes que sustentavam o antigo regime. Assim,
foram marginalizados os líderes sindicais que faziam a mediação
entre os trabalhadores e o Estado, bem como os "políticos pro-
fissionais" que expressaram no passado, ao nível político, as
a1i.anças de classe que, depois de terem servido de sustentação
para a República Velha (1889-1930), refizeram-se para dar
viabilidade ao "nacional-populismo".
A hipótese imediata para explicar esta mudança na posição
de força relativa dos atores políticos principais e para mostrar a
articulação entre as distintas forças sociais é que o estabeleci-
mento do processo de acumulação necessitava da prévia desar-
ticulação dos instrumentos de pressão e defesa das classes p0-
pulares, tarefa que o golpe de 64, no seu aspecto repressivo,
cumpriu imediatamente. A aceitação pela burguesia, no pri-
meiro momento, do aumento de interferência militar para lo-
grar aquele objetivo, custou, nos momentos seguintes, a impos-
sibilidade de retomada do controle civil do processo político.
Para conter a "pressão de baixo" foram tomadas medidas que
implicaram não apenas na liquidação do regime populista, mas
da própria expressão política direta da burguesia: o sistema de
partidos ficou à margem do sistema de decisões e as formas
de organização e pressão política da classe média e da burguesia,
que nunca foram sólidas, passaram a depender de contatos e
alianças com os grupos militares e tecnocráticos que ocupavam
o Estado. A burguesia perdeu por isso pontos de apoio e massa
de manobra para fazer valer seus interesses políticos imediatos.
Para caracterizar o modelo político instaurad~ depois de
1964 é preciso apontar, entretanto, não só as bases sociais e
econômicas de sua sustentação, mas o mecanismo de poder que
o torna· viável. Para isso é de pouca valia saber se os militares
são "de classe média" ou se a burguesia está "à margem do
mecanismo de decisões" porque este está nas mãos de um grupo

JJ
funcional, composto por militares e tecnocratas etc.(2). Bem
como constitui um falso problema insistir que os protagonis-
tas do golpe de 64 pertenciam à classe média e que o aparelho
do Estado está controlado por grupos e indivíduos da classe
média. Em que sociedade capitalista não é assim? Só por
exceção os cargos do Estado, mesmo os de cúpula, são preen-
chidos diretamente por empresários. A questão não está em
saber quem ocupa funções no Estado, mas que tipo de políticas
podem ser implementadas dentro de um quadro estrutural que
reflete a relação de forças das classes sociais. Esta relação de
forças se expressa, no plano mais geral, pelo que hoje se chama
de um "modelo de desenvolvimento".
Entretanto, não há motivos para crer que o modelo de
desenvolvimento econômico adotado subordina, de forma ime-
diata, o regime político, nem tampouco para acreditar, recíproca
e simetricamente, que dado um regime político seja ·possível
inferir de suas características as políticas econômicas que serão
postas em prática. É óbvio que existe uma relação entre eco-
nomia e sociedade, mas não é menos evidente que houve cami·
nhos políticos variáveis para chegar ao desenvolvimento capita-
lista, e para controlar politicamente sociedades baseadas em
economias capitalistas, desde a instauração do parlamento libe-
ral britânico ou a república federativa, burguesa e democrática
americana, até ,ao centralismo autocrático bismarkiano, ou, em
outra etapa, ao fascismo em distintos países, passando por múl-
tiplas formas de democracia burguesa, de absolutismo monár·
quico, de ditadura militar etc. Nem é diferente, por outro lado,
a história recente do socialismo e de suas múltiplas vias polí.
ticas: as tentativas de democracia plebiscitária unidas à autocra·
cia carismátic.a do modelo chinês, os intentos de democratização
do regime burocrático (quase todos frustrados) em algumas re-
públicas socialistas, a autocracia burocrática estalinista, as tenta-
tivas atuais de colegiado burocrático no regime soviético etc.
Não obstante, em algumas explicações do modelo político
brasileiro existe um resquício de visão linear nas relações entre
a economia e a política, na dupla forma em que essa relação
pode ser estabelecida. Por vezes o Estado é concebido quase

(2) Veja-se a crítica de F. Fernandes a essas concepções em


"The meaning of limitary dictatorship in present day in Latin Ame-
. rica". (In The Latin American in residence lecturers, Toronto, Univer-
sity of Toronto, 1970).

56
como o "comitê executivo" da burguesia; daí a SupOSlçao de
-que uma vez estabelecido por esta um estilo de desenvolvi-
mento dependente e associado, caiba ao Estado definir políticas
que supõem a passividade econômica do Poder Público e que,
por isto mesmo, correm o risco de levar o país à estagnação;
ao mesmo tempo, a cumplicidade dos interesses dominantes
com o capitalismo internacional, levaria, segundo alguns autores,
à implementação de formas de controle político cada vez mais
autoritárias para manter um estilo de desenvolvimento exclu-
dente no que respeita à forma de organização econômica.
No polo inverso da linearidade entre economia e política,
isto é, quando se privilegia o plano político, existem interpre-
tações que, também mecanicamente, tomam os "projetos políti-
cos" dos grupos no Poder como condicionante absoluto do
processo social, tanto no seu aspecto político quanto no seu
aspecto econômico.
Nas duas vertentes desta modalidade de interpretação a
explicação das mudanças ocorridas se faz por intermédio de uma
espécie de falácia metodológica que trata intenções subjetivas
como se fossem forças sociais reais.
No primeiro caso, diante do "peso das estruturas" explica-
-se a mudança fazendo intervir forças sociais que não são parte
integrante do modelo estrutural proposto. Este é caracterizado
como se nele não existissem contradições internas capazes de
constituir fontes de atrito e focos de mudança. Assim, suposta
a continuidade da ação da 'burguesia industrial, por exemplo,
depois que ela inaugura um estilo de desenvolvimento, ter-se-ia
a homogeneidade de seu comportamento e a conformidade qua-
se automática dos subsistemas políticos e institucionais aos
desígnios dos setores hegemônicos das classes dominante. Para
que ocorram mudanças, apela-se à intervenção de grupos sociais
distintos da burguesia, os quais, sem que o modelo proposto
diga por quê, passariam a .atuar em direção diversa dos inte-
resses dos empresários. É dessa forma que aparecem no hori-
zonte das possibilidades os grupos "de classe média" aos quais
se passa a atribuir a capacidade, não prevista na análise estru-
turaI, de mudar a orientação dos grupos de Poder.
É por este caminho que aIgumas análises políticas de fun-
damento estruturalista se tornam normativas. PaSsam a fazer
proposições com o intuito de reeducar os "donos do Poder"
para que eles percebam os "verdadeiros interesses da Nação".
Uma vez percebidos estes, seria possível, independentemente

57
do que a análise estrutural sugerira, encaminhar a ação política
para objetivos diferentes dos que estão sendo cumpridos pelas
forças social e economicamente dominantes. Daí também que
se procure, neste estilo de análise, mostrar que existe uma opo-
sição real entre os interesses particulares dos "cidadãos arma-
dos" enquanto patriotas e enquanto membros da classe média,
e os resultados das políticas que sob sua égide estão consoli-
dando os interesses do capitalismo internacionalizado. A cons-
ciência desta contradição levaria os detentores do poder a limi-
tar os interesses da base econômica do regime, em benefício dos
interesses da maioria.
No segundo caso, quando a interpretação do modelo polí.
tico já parte de uma concepção na qual os projetos de ação
política pairam indeterminados sobre a sociedade e a economia,
não existe diferença entre a análise e a ideologia proposta para
motivar o desenvolvimento político: a própria análise é volun-
tarista e ideológica.
Vejamos alguns estudos que, a despeito de sua inegável
contribuição para a análise do processo político brasileiro, pa-
decem, parcialmente, de algumas das limitações apontadas
acima.

ECONOMIA E POLíTICA

Celso Furtado (3), analisando o modelo político brasileiro,


viu com discernimento que havia uma peculiaridade naquilo que
chamou de Estado Militar: o caráter burocrático que essa forma
de dominação assumia no Brasil. Entretanto, pressupunha em
sua análise inicial que o Estado Militar buscaria a estabilização
social e que a preservação do status quo pagaria o preço de um
desenvolvimento mais ou menos lento. O modelo econômico
adequado a este projeto seria b da diminuição do ritmo de
investimento urbano-industrial em benefício da produção agrá.
ria. Com este tipo de "expansão horizontal da economia" seria
possível absorver mão·de-obra sem alterar as funções de pro-

(3) FURTADO, Celso - "De l'oligarchie à l':etat militaire".


Paris, Les Temps Modernes, (257): 278-601, out. 1967. Edi-
ção brasileira em Brasil: temp.os modernos, Rio de Janeiro, Paz e Terra,
1968, pp. 1-24.

58
dução, isto é, sem recurso à tecnologia moderna, e seria possível
ipso facto, conter as pressões sociais.
Furtado tomava em consideração uma tendência ideológica
existente: depois do golpe de 64 o liberalismo tradicional - ao
qual se costuma atribuir o caráter de ideologia do setor agrário
e da classe média tradicional - parece ter aspirado a este tipo
de política econômica. Entretanto, ainda segundo Celso Fur-
tado, não só o controle burocrático do Estado exercido pelo
exército seria pouco apto para atender às pressões de uma so-
ciedade que já atingira um estágio avançado de diferenciação
social e de mobilidade entre as classes, como, por esta razão,
as classes médias - ator privilegiado da cena política - desen-
volveriam três tipos possíveis de reação:
a) luta pela retomada da democracia formal;
b) tentativas, a partir principalmente da juventude, de mobi-
lização das massas especialmente as rurais, para contrapor-
se ao Estado Militar;
c) infiltração do estamento militar por ideologias favoráveis
ao desenvolvimento "autenticamente nacional", ideologias
estas que também encontram base em setores de classe
média.

A alternativa de restabelecer um desenvolvimento autenti-


camente nacional foi elaborada no livro "Um projeto para o
Brasil", sem, entretanto, ganhar apoio entre os setores mais pró-
ximos do Estado.
A expectativa de um modelo de "pastorização" parece estar
baseada implicitamente no estilo de raciocínio linear a que alu-
cli acima: o Estado Militar executa uma política em função
da base social sobre que assenta. No caso brasileiro, Furtado
considera implicitamente que esta base é oligárquica, por um
lado, dependente, por outro, pois os setores da burguesia que
prevaleceram com o golpe de 64 são favoráveis a um padrão de
desenvolvimento associado ao capitalismo internacional e a ela
subordinado. Por isso, a estabilidade social é valorizada e
encontra na ruralização seu ponto de equilíbrio. Assim, entre
as pressões do setor latifundiário, do capitalismo internacional,
dos empresários locais etc., o Estado Militar escolhe a linha de
menor resistência, aquela capaz de favorecer ao mesmo tempo
as pressões destes setores e a dinâmica estamental militar que
necessita preservar a ordem e, dentro dela, a posição hegemâ-

59
nica das forças armadas. Furtado viu com realismo as limita-
ções deste tipo de prognóstico pois percebeu que o grau de
diferenciação econômica e social do país daria maior probabili-
dade de êxito a modelos mais dinâmicos economicamente e mais
flexíveis politicamente. Passou a cogitar, então, das chances da
via de desenvolvimento autônomo e menos excludente politica-
mente. Daí a formulação do seu projeto de desenvolvimento
baseado, outra vez, na capacidade que teria o Estado para, sob
o impulso da classe média, conter os excessos do capitalismo
internacional e apoiar a via nacional de desenvolvimento. Volta-
va-se assim a um modelo anterior de desenvolvimento - o
nacionalista - com algumas modificações políticas: a nova cor-
relação de forças havia quebrado o outro termo da aliança
antiga, o populismo. A política proposta seria dessa forma,
nacionalista e racional, porém não mais populista. Sendo racio-
nal (tecnocrática) buscaria algum esquema de redistribuição de
renda que fortalecesse e ampliasse o consumo, sem acarretar
prejuízos para a acumulação.
O projeto parece ter-se dissipado no horizonte das possi-
bilidades pela falta de combatentes: setores da classe média
inseridos no Estado e os empresários nacionais trilharam outros
caminhos, como logo veremos, deixando à margem este tipo de
política. Este modelo continha mais uma proposição para a
ação do que uma análise da situação (embora, como indiquei,
estivesse baseado numa caracterização da estrutura social e eco-
nômica). Sua ineficácia política indica talvez o anacronismo da
versão da ideologia nacional-desenvolvimentista baseada na su-
posição da existência de uma classe média politicamente capaz
de sustentá-la. Nem por isso a análise de Furtado deixa de
apontar para uma temátic.a que, noutro contexto, continua pre-
sente. Que significa entretanto o nacionalismo na presente
situação brasileira?
Antes de tentar responder a essa indagação, convém apre-
sentar as idéias de outro analista político que tem uma contri-
buição importante neste campo e que, como Furtado, explorou
as possibilidades da via "autenticamente nacional" do desenvol-
vimento. Refiro-me a Hélio Jaguaribe (4). Para este autor

(4) Conforme JAGUARIBE, Hélio - "Etabilité sociale par le


"colonial-fascisme". Paris, Les Temps Modernes (257) : 602-623,
out. 1967. As citações adiante são feitas com base na edição brasileira:
"Brasil: estabilidade pelo colonial-fascismo?", Brasil: tempos modernos,
Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1968.

60
existem três alternativas políticas fundamentais para perDUt11'
um processo de desenvolvimento em condições ótimas e cada
uma delas será aplicável operacionalmente segundo as condições
específicas de cada país.
a) o "nacional capitalismo", que supõe uma aliança entre se·
tores progressistas da burguesia nacional, da classe média
e do proletariado, sob a liderança neobismarckista do chefe
do governo, para a formação de um partido nacional do
desenvolvimento;
b) o "capitalismo de Estado", que se efetiva no governo por
intermédio de um golpe que dá o controle do poder a
setores progressistas das classes armadas e da tecnocracia,
os quais formam uma espécie de "partido da revolução
nacional", utilizando como base para isso, o próprio apa·
relho do Estado;
c) o "socialismo desenvolvimentista", que supõe a conquista
do poder por uma elite revolucionária que mobilizará as
massas e utilizará formas socialistas de gestão e acumulação.

Programaticamente, parece que Jaguaribe postulava para o


Brasil de antes de 64, em face das condições sociais e políticas
aí prevalecentes, o modelo de desenvolvimento "nacional capi-
talista". Depois desta data, parece haver-se inclinado para o
modelo de "capitalismo de Estado", em razão das modificações
havidas.
Entretanto, na prática, o modelo político que Jaguaribe vê
fortalecer-se é o do "colonial-fascismo", Como Jaguaribe está
mais interessado em tornar inviável esta tendência do que em
fazer sua exegese, não elaborou analiticamente as probabilidades
e requerimentos a ela associados. Ainda assim descreveu algu-
mas de suas características no caso brasileiro (5). Entre elas,
assinala que o colonial-fascismo requer:

a) o fortalecimento do Estado, não mais para garantir maio-


res condições de interferência na vida econômica, mas para
preservar a estabilidade por intermédio da utilização da
máxima capacidade de coerção;

(5) JAGUARIBE, Hélio, op. cit., pp. 25-47.

61
b) estreita integração política e econômica do Brasil no sis-
tema ocidental, tal como os Estados Unidos o estão estru-
turando (satelitiz.ação);
c) restabelecimento, sob supervisão estatal, do livre mecanis-
mo de mercado, para assegurar às empresas privadas o
controle e a direção integrais da economia.

Com um modelo deste tipo ter-se-ia o desenvolvimento


econômico sem modificação da ordem social, assim como teria
ocorrido com o fascismo na Itália e na Alemanha. Entretanto,
dada a situação de dependência da economia brasileira, a bur·
guesia local, diferentemente da alemã ou da italiana, não teria
condições para imprimir o dinamismo requerido pela economia,
nem haveria uma relação entre o empresariado e um partido de
classe média para assegurar o modelo tipicamente fascista. Daí
o designativo de colonial para esta modalidade de fascismo.
No governo Castelo Branco, especialmente em função de
sua política econômica e da concentração do poder coercitivo
do Estado, Jaguaribe via tendências acentuadas na direção da
instauração de um modelo colonial-fascista. As condições bási·
cas de seu funcionamento estavam sendo expressamente pre-
paradas pela política do governo. Entretanto, Jaguaribe não
pensa que o modelo colonial fascista possa prevalecer no Brasil.
Primeiro porque "o modelo fascista colonial, após alguns anos,
agravaria de tal modo o desequilíbrio entre o crescimento da
população e a criação de novos empregos, em todos os níveis
de ocupação, que a nova classe dominante cedo seria obrigada a
adotar uma espécia de política de apartheid para impedir os
camponeses de emigrar para as cidades e lá formar explosivas
massas marginais" (6). Em segundo lugar porque a "economia
dominante precisa de matérias-primas da economia dependente
e não pode dar a esta, em troca, qualquer assistência ou pro-
vocar qualquer efeito dinâmico de crescimento se a economia
dependente, além do seu setor de exportação, não se desenvolve
com um mercado doméstico, uma economia autoconcentrada. O
modelo colonial fascista, entretanto, visa precisamente a impedir
as mudanças sociais que seriam exigidas para o desenvolvi-
mento de uma economia autônoma e endógena" (7).

(6) ]AGUARIBE, Hélio, op. cit., p. 43.


(7) ]AGUARIBE, Hélio, op. cit., p. 44.

62
Como conclusão, JagUaribe não acredita que o regime mio
litar brasileiro tenha probabilidade de manter-se enquanto pre-
valecer a orientação colonial fascista que o incapacita para
resolver os im~ses estruturais referidos acima. Assim, como
a longo prazo ó regime militar é incompatível com a comple-
xidade do setor urbano-industrial, uma vez diluídos os temores
que levaram a burgUesia e a classe média a aceitar a política
colonial fascista, haverá provavelmente alterações políticas e
s6cio-econômicas.. Neste caso, duas podem ser as alterações:
ou bem os militares restituem o poder às forças sociais margina-
l~das politicamente e aos partidos políticos, embora alguns
militares a eles se afiliem, ou então deverão modificar de ma-
neira essencial o significado do regime.
Inicialmente, em 1967, Jaguaribe acreditava que a pri-
meira hipótese teria mais chance. Atualmente parece inclinar-se
para a segunda alternativa como a mais provável (8).
Examinemos mais detidamente os dois esquemas propostos
até aqui. Ambos supõem que o modelo de desenvolvimento
econômico que está sendo implementado é pouco dinâmico. É
o que se pode inferir da tendência à "pastorização" e à estagna·
ção referidas por Celso Furtado e às qualidades que Jaguaríbe
atribui ao lado colonial do modelo fascista brasileiro, pois para
ele as relações atualmente existentes entre colônia e metrópole
segUem o padrão de uma economia exportadora de matérias-
-primas, sendo vistas, portanto, como impeditivas para o desen·
volvimento.
Essa avaliação da falta de dinamismo econômico permite
deduzir duas conseqüências. Primeiro, que os fiadores do regi.
me, os militares, adotam uma política de estabilização social que
pressupõe a estagnação econômica. A correspondência entre Q
base social do regime - a oligarquia agrária - e sua política
econômica levaria a isso, sendo os militares o instrumento desse
fiai, independentemente da sua política própria de grupo. Se-
gundo, que a alternativa para resolver o impasse é a volta a
um padrão de desenvolvimento autenticamente nacional, posto
que a falta de dinamismo do sistema deriva de seu caráter de·

(8) Conforme JAGUARIBE, Hélio - "Enfoques sobre a Amé·


rica Latina: análise crítica de recentes relatórios", apresentado na reu-
nião do Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales - CLACSO -
realizado em Bariloche em novembro de 1970.

63
pendente. Como a burguesia brasileira, ou seus setores hege-
mônicos, mostraram-se mais inclinaàos a um tipo de desenvolvi-
mento associado-dependente, a base social para o projeto de
desenvolvimento autônomo teria de ser buscada em outras
forças sociais. Dentre estas a classe média é o ator estratégico
e nela, alguns grupos funcionais, como setores das próprias
forças armadas ou a tecnocracia pública, pareceriam ser decisi-
vos. Nas condições brasileiras seriam estes os atores adequados
para levar adiante um processo de desenvolvimento autentica-
mente nacional.
Neste passo, pergunto: um esquema deste tipo está assen-
tado na análise de tendências efetivamente existentes, ou se
inspira ( ao mesmo tempo, ou principalmente) num modelo
normativo?
Com efeito, a análise mostraria outra tendência como de
resto os próprios autores citados acima reconhecem: o padrão
de desenvolvimento dependente-associado não é desprovido de
dinamismo, não está baseado na ruralização com prejuízo
da industrialização, nem leva à intensificação de uma simples
relação entre países exportadores de matérias-primas e impor-
tadores de produtos manufaturados.
Ao contrário, a característica da relação de dependência
que está sendo implantada em países como o Brasil, a Argen-
tina ou o México é o de que ela se baseia numa nova divisão
internacional do trabalho, pela qual parte do sistema industrial
dos países hegemônicos é transferida, sob controle das corpo-
rações intemacionais, para as economias periféricas que lograram
alcançar previamente certo avanço no desenvolvimento indus-
trial. Em outros trabalhos tenho me referido a este processo
como sendo de "internacionalização do mercado" (I), em con-
traposição à etapa anterior de uma industrialização substitutiva
de importações controlada em parte pela burguesia nacional e
pelo Estado. Está claro que tanto Celso Furtado como Jaguari-
be têm presente este processo e o analisam. Não tiraram, toda-
via, todas as conseqüências desse padrão de desenvolvimento
quando definiram os atores privilegiados pela cena política e as
políticas alternativas que estes poderiam implementar.

(9) Veja-se CARDOSO, F. H. e FALETTO, Enzo - D,p6n-


d6ncia y d6sarrollo en América Latina, México, Sigla XXI, 1969, esp.
capo V.

64
De fato, o modelo de desenvolvimento dependente que
está sendo posto em prática permite dinamismo, crescimento
econômico e mesmo mobilidade social, pelo menos no setor
urbeno-industrial da sociedade. É certo que ele provoca atrito
entre as classes, é provavelmente "marginalizador" e seus efei-
tos não impedem as desigualdades: concentra rendas e aumenta
a miséria relativa. Tudo isto leva água à crítica do sistema.
Mas esta crítica será específica a este sistema particular, que
tem uma expressão política burocrático-repressiva, como adiante
se verá, ou à forma capitalista de acumulação e desenvolvi.
mento? Por certo, haveria outras vias, c.apitalistas, para o desen-
volvimento (e é neste sentido que se fundamentam as políticas
propostas pelos autores a que fizemos referência). Elas provoca-
riam, em graus distintos, e atingindo a grupos sociais diversos,
efeitos conflitivos. Tecnicamente seria possível imaginar vias mais
igualitárias para o desenvolvimento e quiçá menos "marginali-
zadoras". Mas politicamente, nas condições atuais, que forças so-
ciais implementariam o modelo alternativo? A análise dos
autores aqui indicados mostra que suas esperanças, para implan-
tar um modelo de desenvolvimento autenticamente nacional,
deslocaram-se-da burguesia para a classe média, e em especial
para a ação des militares. Como se implementaria um modelo
capitalista sem os capitalistas, ou tendo-os à reboque de forças
nacionalistas que sabem, de antemão, que não podem contar
com a burguesia? Pela via de uma revolução da classe média?
Essas reflexões não visam a responder mecanicamente as
dúvidas que o processo histórico coloca para a intelectualidade
brasileira. Não penso que 1964 estivesse inscrito inexoravel-
mente na lógica econômica da história. Antes penso que o
processo polftico joga um papel ativo na definição do curso dos
acontecimentos. Ou seja: se é certo que a inflação, o acerba-
mento da luta de classes, a dificuldade de manter o ritmo de
expansão capitalista nas condições sócio-econômicas prevalecen-
tes durante o. governo Goulart radicalizaram as forças políticas
e moveram as bases institucionais do regime, o movimento
insurrecional foi uma das saídas possíveis e não a única, como
se interpretaria a partir de uma visão economicista da história.
Entretanto, depois que, politicamente, as alianças de classe se
deslocaram para implementar um dado modelo de desenvolvi·
. mento, as alternativas para ele têm que ser buscadas ao nível
das forças sociais existentes, as que defendem e as que real ou
potencialmente negam o status quo.

65
Neste sentido, e deixando de lado perguntas demasiada-
mente gerais, parece claro que, a partir da situação polftica
criada em 1964, as pressões dos grupos de classe média ~cima
referidos, antes de se dirigirem para a implantação de um "ca-
pitalismo sem capitalistas", têm ido noutro sentido. Suas ques-
tões práticas endereçam-se a s.aber se é possível um desenvolvi-
mento-associado, baseado no dinamismo da empresa privada,
tanto estrangeira como nacional, que divida áreas de atuação
com o Estado e permita a inserção dos setores mais qualificados
da classe média no sistema de decisões.
~ evidente que não foi este o ponto de partida de 1964.
O "projeto" do governo Castelo Branco era, com reservas,
polftica e economicamente "liberal", dentro das condições em
que o liberalismo opera nos países subdesenvolvidos: executivo
forte, representação partidária expurgada (para evitar riscos de
pressões à esquerda), economia de mercado com forte regula-
mentação estatal, fortalecimento da empresa privada, abertura
da economia nacional ao capitalismo internacional. Não estava
previsto no modelo nem a modernização burocrática do Estado,
nem o crescimento acentuado que teve o setor público da ec0-
nomia. Antes, esperava-se um aporte maciço de capitais estran-
geiros, que não ocorreu durante o governo Castelo Branco, e
politicamente havia apego tanto às formas democráticas restau-
radas, isto é, sem populismo (a famosa questão do respeito ao
Calendário Eleitoral, ainda que com riscos limitados para o re-
gime exemplifica isto), como se previa menor peso corporativo
do exército nas decisões polfticas, em benefício dos partidos, e
portanto dos setores da burguesia que a eles estavam acoplados.
Não foi um modelo deste tipo, entretanto, que as Forças
Armadas implementaram: assumiram, como objetivo político, é
certo, o reforçamento do executivo, previsto pelo projeto polf-
tico governamental, mas puseram-no sob seu controle direto,
modificando, por exemplo, o modo de funcionamento da Casa
Militar e da Casa Civil da Presidência da República, aumentan-
do o controle do Conselho de Segurança Nacional e, dentro
dele, da Secretaria Geral, criando o Serviço Nacional de Infor-
mações, estabelecendo setores de Segurança Nacional nos Minis-
térios e autarquias, em suma, ligando mais e mais os 6rgãos de
planejamento e controle do executivo aos das forças armadas e
especialmente ao Estado-Maior. Passaram também a sustentar
polfticas com objetivo de controlar certas áreas econômicas e de
manter o crescimento econômico. Com isto tornaram- possível

66
que a dinamização do modelo de desenvolvimento industrial-de-
pendente, definindo como suas - porque justificadas pela polí·
tica de segurança nacional - as metas de intensificar a centra·
lização administrativa e de paralisar o protesto social, ajudaram
a tornar o aparelho estatal mais eficaz administrativamente e,
ao mesmo tempo, mais repressor. O desmantelamento das orga-
nizações de classe dos assalariados e a "tranqüilidade política"
obtidas com a repressão facilitaram, naturalmente, a retomada
do desenvolvimento, isto é, a acumulação capitalista em escala
ampliada.
Estabilidade social com dinamismo econômico seria a ex·
pressão para resumir o estilo de política adotada. Ainda assim
é preciso qualificar melhor o que se entende, neste contexto,
por estabilidade: trata-se da manutenção de um padrão de orga-
nização social (a sociedade de classes) dentro do qual, entre-
tanto, a mobilidade não somente é possível como ideologica-
mente estimulada, à condição de que não exista um processo
político de mobilização que ponha em risco o sistema. Trata-se,
pois, de um conservantismo moderno, que, no plano ideológico,
quer manter socialmente aberta uma sociedade politicamente
fechada que se baseia no dinamismo da empresa capitalista, pú-
blica ou privada (10).
~ isto que explica, possivelmente, a relação entre os atores
políticos principais (os militares e em grau de subordinação a
burocracia tecnocrática), investidos de tanto poder para imple-
mentar, no fundo, uma política econômica que atende aos inte-
resses da burguesia internacionalizada deixando-a simultanea-
mente à margem do sistema político formal. Explica, ao mesmo
tempo, a apatia complacente das classes médias urbanas, para
não mencionar a quase euforia adesista dos setores desta que
vêem uma chance de incorporar-se, pela empresa privada, pela
empresa pública ou por intermédio do próprio Estado, no carro
desenvolvimentista. Houve uma base de acordo possível entre

(10) As dificuldades objetivas para que essa estratégia se man-


tenha com êxito não devem naturalmente, ser minimizadas, a começar
pelos limites existentes para a mobilidade social no contexto de um
padrão de desenvolvimento econômico que é marginalizador. Além
disso, se mesmo os regimes populistas mantinham seu equilíbrio instável
e garantiam o processo de acumulação econômica graças à exploração
ilimitada dos trabalhadores do campo e à sua marginalização política,
o regime burocrático-autoritário atual encontra limites ainda maiores,
neste aspecto, para implementar a estratégia acima.

67
o Estado e fi burguesia. Esta abriu mão momentaneamente de
parte dos controles políticos tradicionais (o sistema de putidos,
as eleições etc.) e dos instrumentos de definição de símbolos
e de difusão ideológica (a liberdade de imprensa, o habeas-cor-
pus, o pluralismo doutrinário, a educação liberal) que passaram
a responder mais diretamente às pressões do Estado e ao con-
trole militar. Além disso, a sociedade civil cedeu terreno ao
EStado na regulamentação da vida econômica. Por outro lado,
os militares assumiram implicitamente os interesses econômicos
do empresariado como se eles fossem os da Nação e definiram
áreas, de maior ou menor influência, que passaram a ser prefe-
renciais para a ação da empresa privada. O dinamismo econô-
mioo do sistema assim estruturado abriu perspectivas favoráveis
para a absorção dos grupos e camadas mais. modernos das classes
médias, que, por seus interesses ou propósitos, estivesem ligados
à burguesia.
Não fosse assim, de fato o Estado seria, sem rebuços, o
"comitê executivo da burguesia" (neste caso, do capitalismo
internacional) e os militares, o braço armado da oligarquia. Se
isso fosse verdade tornaria simples as análises políticas e trans-
formaria o processo social num contínuo não oontraditório, ou
pelo menos, no qual as contradições existentes reduzir-se-iam
apenas àquela que inclui, de um lado, as classes dominantes,
alinhadas harmonicamente sob a égide do Estado, e, de outro,
6s classes dominadas, excluídas do Estado e quase expulsas da
sociedade civil. Entretanto, o que permitiu a estabilidade rela-
tiva na aliança entre militares, burguesia e classes médias foi a
formulação de um modelo de desenvolvimento e um regime p0-
lítico que, sem eliminar as contradições entre estas diversas
facções que, claro está, não eram antagÔnicas, tornou-as oompa-
tíveis em face de inimigos maiores, estes sim, antagônicos, re-
presentados pela ameaça de uma política favorável às classes
populares.
Até que ponto se justifica, nestas condições, falar em
processo revolucionário ou em conseqüências revolucionárias do
golpe de 64? Não seria mais aplicável a expressão "contra-re-
volução" vitoriosa?
Não é 'simples a resposta, quando não se trata de pura
questão semântica. Efetivamente, o movimento de 64, em si
mesmo e nos seus desdobramentos, buscou e conseguiu consoli-
dar a ordem social por intermédio da repressão. Neste sentido
teve conseqüências claramente reacionárias. Terá sido integral-

68
mente contra-revolUcionário? Alguns dos seus protagonistas
crb que sim, na medida em que consideram o regime anterior
como tendo conotações revolucionárias. De fato, havia, espe-
cialmente entre 1963 e março de 1964, uma conjuntura que
poderia ser qualificada como de pré-revolucionária: o Estado se
decompunha parcialmente e a mobilização social e política talvez
superasse os mecanismos de integração de que a ordem política
dispunha. Dificilmente, entretanto, essa conjuntura poderia ter
resultado numa revolução pela falta dos instrumentos adequados
pera isso: metas claras, uma política não oportunista por parte
dos grupos de esquerda que predominavam na situação, em su-
ma, organizsções capazes de aproveitar para seus objetivos ..
decomposição do Estado. E, principalmente, a "aliança popu-
lista", para vincular as massas, os grupos de classe média e a
burguesia. base,ava-se em setores do próprio Estado que se 1iga-
vam, pela teia de relações políticas que mantinham e pelos inte-
resses que sustentavam, a uma base econômica não s6 intrinse-
camente não-revolucionária. posto que proprietMia, como atra-
sada. Tinha como um de seus suportes estruturais, além disso,
a não incorporação política e a superexploração econômica da
população rural, processo que permitia a sustentação do regime
por intermédio de alianças com os partidos conservadores clien-
telísticos. como o P.S.D.
a golpe de 64 deslocou o setor nacional-burguês e O· grupo
estatist,a-desenvolvimentista da posição hegemônica que manti-
nham, em proveito do setor mais internacionalizado da burgue-
sia, mais dinâmico e mais "moderno", porque parte integrante
do sistema produtivo do capitalismo internacional. A política
econômica e tanto quanto ela, a reforma da administração e do
aparelho do Estado potenciaram as forças produtivas do "capi-
talismo contemporâneo". A economia integrou-se mais profunda-
mente ao sistema capitalista internacional de produção, ou seja,
a relação entre os centros hegemônicos e a economia depen-
dente passou a dar-se dentro do contexto atual da economia
capitalista mundial que não exclui a possibilidade do desenvol-
vimento industrial e financeiro nas economias periféricas. A
acumulação urbano-industrial - que vinha crescendo desde o
período de Kubitschek - passou a preponderar no desenvolvi.
mento do capitalismo no Brasil.
Por certo, a exploração de matérias-primas ou de produtos
agrícolas continua desempenhando um papel economicamente
importante. Mesmo neste caso, entretanto, ocorrem modifica-

69
çães: passam a articular-se formas de exploração associada entre
os monopólios internacionais e as empresas locais. Neste es-
quema de associação não estão excluídas as empresas públicas,
como exemplificam os cons6rcios mineradores de ferro e man-
ganês. De igual modo, persistem outras características de subor-
dinação, como o endividamento externo e a dependência teeno-
16gica, além de intensificar-se o controle do setor industrial
privado por empresas estrangeiras. Não obstante, o papel do
mercado interno será importante para as pr6prias empresas
estrangeiras. Por outro lado, a política de exportações visando
diversificar a pauta de intercâmbio, diminuiu o peso relativo
dos produtos primários tradicionais (produzidos quase exclusi-
vamente por empresários locais) em benefício da produção
industrial ou de minérios semi-industrializados, que expressam
o novo tipo de associação.
Quanto às empresas públicas, passaram a funcionar cres-
centemente no novo modelo como S/A (corporations) , nos
mesmos moldes, com a mesma liberdade - por fim com os
mesmos resultados - das empresas privadas. O papel da PE·
TROBRAs na constituição da indústria petroquímica é indica-
tivo deste processo: funciona em associação com empresas inter-
nacionais e locais atuando como empresa líder no cons6rcio.
Com isso diminuiu a oposição entre empresas públicas e pri-
vadas e deu-se, politicamente, a aliança entre grupos funcionais,
"de classe média" - os militares, a tecnocracia, os burocratas
- ainda que d~ tendências nacionalistas, e os grupos que repre-
sentam ou constituem a burguesia internacional e a burguesia
nacional-internacionalizada.
Que sentido tem, diante deste quadro, reviver o ideal da
Nação baseado no pressuposto econômico de um setor empresa-
rial local ativo e de um Estado a ele ligado, que faça uma ponte
com a massa popular? Não terão ruído as bases econômicas (a
empresa estatal autônoma e a empresa privada naciopal inde-
pendente) de tal projeto? Não será um anacronismo continuar
pensando a Empresa Pública como germe daquele modelo?
Como poderão atuar os referidos setores nacionalistas da classe
média? Se não quiserem limitar-se a sustentar uma ideologia
que não aponta caminhos práticos para sua implementação, eles
serão obrigados a redefinir radicalmente o conteúdo do naciona-
lismo, ao ponto de não ser possível compreender à luz do voca-
bulário político anterior a 1964 o que se entende hoje por
nacionalismo.

70
~ neste sentido limitado de uma "revolução econ&nica
burguesa" que se pode pensar nas conseqüências revolucionhias
do movimento politicamente reacionário de 1964. Ele pôs a
burguesia nacional em compasso com o desenvolvimento do ca-
pitalismo internacional e subordinou a economia nacional a
formas mais modernas de dominação econÔmica. Neste sentido
modernizou a máquina estatal e lançou as bases pera a imple-
mentação de um setor público da economia, que passou a inte-
grar-se no contexto do capitalismo internacional.
Por certo, os que acreditam que a burguesia nacional dos
países dependentes pode realizar uma revolução burguesa nos
mesmos moldes da revolução &ancesa ou da revolução ameri-
cana mostrarão os "entraves estruturais" que permanecem e que
limitam o .ucance das transformações econÔmicas havidas no
Brasil. Eu não penso, entretanto, que a burguesia local, fruto
de um capitalismo dependente, possa realizar uma revolução
econômica no sentido forte do conceito. A sua "revolução"
consiste em integrar-se no capitalismo internacional como asso-
ciada e dependente. Lutando, naturalmente, para obter o má-
ximo de proveito possível. Mas. limitada por um processo obje-
tivo: a acumulação capitalista nas economias dependentes não se
completa. Ou seja, a "carência de tecnologia pr6pria" - tal
como este processo é percebido vulgarmente - e a utilização
de uma tecnologia importada (capital intens;fJe, com todas as
suas conseqüências disso) indicam apenas que o capitalismo
dependente é capenga: não desenvolveu um setor avançado de
produção de bens de capital. A acumulação, expansão e realiza·
ção do capital do setor produtivo local requer seu complemento
dinâmico e dele depende: a inserção no capitalismo internacional.
Este desenvolve efetivamente o setor de produção de bens de
produção que permite a expansão do setor de produção de bens
de consumo (ainda que duráveis) dos países dependentes.
Foi essa revolução limitada de uma economia capitalista
dependente que o golpe de 64 veio a facilitar, na medida em
que reprimiu as classes trabalhadoras, conteve os salários, amo
pliou os canais de acumulação e, ao mesmo tempo, pôs de lado
- mesmo que o processo não seja definitivo - os empecilhos
ideol6gicos e organizacionais que dificultavam a definição de
políticas de associação entre o Estado, as empresas nacionais e
os trustes internacionais.

71
REVOLUÇÃO E INSTlTUCIONALIZAÇAO:
AS QUESTOES POUTICAS

A existência de uma base econômica para um novo acordo


político entre ás classes não elimina, contudo, o atrito político
entre os grupos no poder, nem muito menos a existência de
fQrças de oposição.
Ainda uma vez, entretanto, as análises políticas mais am-
biciosas do regime vigente no Brasil pecaram por uma visão
linear dos acontecimentos. Quando não, os modelos políticos
construídos parecem estar tão rentes aos acontecimentos que
se desmancham com a mesma rapidez com que os ziguezagues
da política vão destruindo os projetos que os grupos de poder
elaboram. Estes ziguezagues, não obstante, dão margem à for-
mação de estruturas de poder que, se não foram previstas nem
desejadas pelos atores políticos, alguma relação devem guardar
com as forças políticas existentes.
Sendo assim, mais do que perguntar quais foram as estra-
tégias e os projetos dos governos, é necessário identificar as
forças políticas existentes, delimitar o marco em que operam e
avaliar o resultado de sua atuação. Antes de tentar indicar estas
tendências, farei, como na seção anterior, um sumário crítico
das interpretações contidas em artigos de Candido Mendes de
Almeida e Roberto Campos, autores cuja contribuição sobressai
na análise política recente.
Candido Mendes, sendo possivelmente quem mais elaborou
o problema dos modelos de desenvolvimento político vigente no
Brasil, viu-se na contingência de quase refazer seu esquema
explicativo a cada mudança de governo, talvez por ter tentado
captar através de interpretações ad hoc a variedade das mani-
festações políticas do regime.
Assim, sob o governo de Castelo Branco, Candido Mendes
viu o nascimento de um "modelo paradigmático" de elite de
poder (11). Esta elite, formada pela Escola Superior de Guerra
(que prepara tanto militares como civis), era homogênea, côns-
cia de sua responsabilidade histórica, e dispunha de uma ideo-
logia política eficaz, baseada na "Doutrina de Segurança Nacio-
nal". Elaborou e começou a implementar um projeto de desen-

(11) Veja-se MENDES, Candido - "Sistemas políticos e mode-


los de poder no Brasil". Rio de Janeiro, em Dados, v. I (1) 1966: 7-41;
e ainda o artigo citado na nota 12.

72
volvimento nacional que, nas condições de um regime autocrá-
tico mas modernizante, implicava em reformas sociais e ec0-
nômicas consistentes. O modelo de elite de poder, na versão
castelista, teria sido capaz,ainda, de evitar o desbordamento de
poder pessoal, na medida em que o presidente preservou a
margem máxima de poder coercitivo, mas utilizou-se antes como
um fator de ameaça potencial do que de ação afetiva. Com isso
foi possível evitar a formalização de uma ditadura.
Entre as características do regime de elite de poder no
governo Castelo Branco, segundo Candido Mendes, é preciso
destacar tanto sua negativa à aplicação do compromisso polftico
pela incorporação de novos grupos na aliança de poder, com o
propósito de evitar que se desfigurasse o caráter exemplar do
círculo restrito dos que tinham acesso ao mando, como a recusa
da busca de uma legitimação consensual, que poderia ser tentada
pela utilização de símbolos dotados dI: forte poder mobilizador.
Dessa forma, o governo Castelo Branco terá sido uma va-
riante do regime de elite de poder que pretendeu instituir um
governo democrático e tecnicamente reformado através de uma
estratégia de implantação de reformas econômicas e polfticas.
Para isto a elite militar se aliou à elite tecnocrática, o que, no
dizer de Candido Mendes, "permitiu ao castelismo situar o
grupo dirigente ( ... ) à margem de qualquer determinação obje-
tiva, de classe ou outro denominador social para seu acesso ao
nível de decisão nacional" (12).
Em trabalho anterior Candido Mendes havia caracterizado
talvez mais realisticamente o governo Castelo Branco, chamando
atenção para o fato de que, além da existência dessa elite de
poder tecnocrática-militar, o regime tinha como uma de suas
características a de que o exército, principalmente depois da
candidatura Costa e Silva, passara a atuar ostensivamente nas
decisões nacionais e que, por outra parte, o modelo político p0-
deria ser "caracterizado como uma "tecnocracia" na forma de

(12) MENDES, Candido - "O governo Castelo Branco: para·


digma e prognose", Rio de Janeiro, em Dadps, (23): 98, 1967. Note-se
que em trabalho mais recente ("Elite de poder, democracia e desen-
volvimento", Rio de Janeiro, em Dados (6): 57-90, 1969, Candido
Mendes volta a insistir que o governo Castelo Branco, não tendo re·
corrido a técnicas de "autenticação" - ou seja, à forma que a legi-
tImação assume nos governos da elite do poder - tornou-se vítima de
uma tentativa de validação política baseada quase exclusivamente num
projeto de desenvolvimento econômico dependente do exterior.

7J
wn novo Estado Autoritário, que forneceria as condiÇões insti·
tucionais para a realização do planejamento econômico do país,
estabelecido em bases de um centralismo extremo" (13).
O modelo de "elite de poder" sofreu percalços com a su-
bida do governo Costa e Silva. Candido Mendes reinterpretou-o.
Por certo, a eleição de Costa e Silva estava inscrita como "ine-
vitável, na lógica do sistema estabelecido no país" (14) e legiti.
mava a dinâmica natural do regime, na medida em que a cano
didatura Costa e Silva "se identificava com a conquista e a
consolidação do estrato militar da vida nacional como um esta·
mento restaurado e fortalecido, disposto a assumir uma função
competitiva e polar no exercício das compet!ncias de poder em
que se constituiu o atual Estado brasileiro" (111). Isto porque
"independendo de colocação programática e assumindo mesmo,
do ponto de vista técnico, o feitio populista pela representativi-
dade rigorosamente objetiva de um estrato dado da vida nacio-
nal, isto é, o Exército, esta candidatura não terá dificuldade
alguma em se colocar, formalmente, na seqüência anterior, neste
elemento formal. abrangendo, inclusive, o compromisso com a
continuação dos modelos econômicos do governo Castelo Bran-
co" (16).
Apesar das óbvias dificuldades para conciliar o governo
Costa e Silva com as características do modelo "elite de poder"
- evidenciadas pelas ambigüidades dos textos citados - o autor
insiste em que o controle da política pelo exército, atuando
como um "grupo de status" (estamento), garantiria as qualida-
des necessárias para manter incólume a tipologia. Mesmo par-
tindo de um modelo de elite de poder, o governo Costa e Silva
teria condições, segundo Candido Mendes, para permitir a tran-
sição pera uma chefia bonapartista. De dentro da dominação
estamental militar surgiria um caudilho. Esta transformação su-
poria, naturalmente, uma política de redistribuição de renda e
uma ampliação do pacto do poder (entrevista pela presença ati-
va, na época, da Frente Ampla). E ela teria como condição o
e:uidado de evitar a volta a um estilo de intervenção tutelar dos

(13) MENDES, Cllndido - "Sistema político e modelos de po-


der no Brasil", op. cit., p. 9.
(14) Idem, ibidem, p. 17.
(15) Idem, idem, p. 17.
(16) Idem, idem, p. 17.

74
militares na política, tal como II tendência "dutrista" (1') pode-
ria inspirar. Ao contrmo, a saída bonapartista teria de implicar
um maior comprometimento das forças armadas, que, aprovei-
tando-se da inclineção "managerial" de setores militares (por
exemplo, a atuação do General Albuquerque Lima à frente do
Ministério do Interior) bem poderia pôr em prática um estilo
político nasserista (18).
Ao que parece, deparamos outra vez com um tipo de aná-
lise que vai do modelo à racionalização de situeções ocorridas
e se aproxima de uma visão normativa. Nesta, o nacionalismo
militar ressurge como alternativa para o modelo de desenvolvi-
mento adotado. Entretanto, o autor chamara expressamente a
atenção para o caráter privativista da política econÔmica que
estava sendo posta em prática' (talvez mesmo exagerando a
tendência antiestatista do governo Castelo Branco), assim como
mostrara as condições de "vácuo de ,poder" (111) que levaram à
emergência dos regimes militares. Em que forças sociais, pois,
estaria apoiada essa tendência nacionalista?
O engano na caracterização do processo político se deveu,
neste caso, a que foram tomados muito a sério os projetos e a
ideologia dos atores políticos e, ao contrário do que ocorre com
os autores analisados na seção anterior deste artigo, que exage-
ram o condicionamento estrutural, chegou-se 8 penser que os g0-
vernos de "elite de poder" funcionam num vazio social, no qual
a tecnocracia, o poder presidencial e os grupos c,astrenses che-
gados à elite de mando, operam tecnicamente. Os analistas
mencionados ne seção anterior atribuíam um peso exagerado às
bases s6cio-econômicas da política (avaliando-as, às vezes equi-
vocadamente). Na interpretação de Candido Mendes, ao con·
trário, os atores políticos são personagens de um enredo que é
quase puramente ideológico e obedecem a uma lógioa política
alheia à base social e econÔmica.
O problema inicial na análise do governo "paradigmátioo"
de Castelo Branco não deveria ser o da coerência típico-ideal do

(17) Refere-se aqui ao estilo de tutela militar exercido pelo exér-


cito sob inspiração do Marechal Eurico Gaspar Dutra, ex-ministro da
Guerra de Vargas durante o Estado Novo e, posteriormente (1946-
-1950), presidente da República.
(18) Veja-se, a esse respeito, MENDES, Candido - "O governo
Castelo Branco: paradigma e prognose", op. cit., especialmente p. 110.
(19) Conforme MENDES, Candido - "Sistema político e mo-
delos de poder no Brasil", op. cit., especialmente p. 14 e 15.
seu projeto político, mas o de ,perguntar-se por que, na verdade,
tal projeto não pôde implantar-se inteiramente. É de todos
sabido que o Ato n.O 2 (outubro de 1965) seguiu-se às eleições
estaduais, nas quais o governo saiu parcialmente derrotado.
Houve um condicionante externo ao "núcleo de poder" que
levou ao Ato n.O 2. A tropa, contrária ao cumprimento do ca-
lendário eleitoral, impôs um ucase ao presidente. Este capitu-
l()u, e ampliou o "pacto de poder". Ampliou-o tanto que teve
que aceitar a imposição militar da candidatura Costa e Silva.
Por quê? Por que o sistema castelista se aferrava às eleições,
à legalidade? Que forças impeliam.no a isso, e quais se reve-
laram contra essas diretivas? A partir de questões deste tipo,
simples e diretas, talvez fosse possível reCUpeNr o nervo da
política, isto é, o conflito. .
Ao contrário da visão racionalizadora que vê no processo
político a realização do projeto de uma elite, um enfoque obje-
tivo veria, antes, oposições entre grupos dentro do sistema de
poder e entre estes e os que estão fora dele, tentando impor
suas diferentes normas.
Retenhamos, por agora, apenas uma contradição interna
e outra externa ao sistema de poder: no governo Castelo Br.anco
a tendência política inspirada pelo próprio chefe de Estado e
apoiada em setores ponderáveis dos partidos, se propunha à "ins·
titucionalização" da Revolução. Isto é, buscava alguma forma
de legitimidade que terminaria por estar consagrada num Es-
tado de Direito. Dentro do Exército, entretanto, havia grupos
- a "linha dura" - que queriam "radicalizar mais o processo",
ou seja, levar mais longe a luta anticomunista e anticorrupção,
para o que se fazia necessário o controle militar estrito do siso
tema de decisões. Estes grupos tinham, possivelmente, duas
vertentes, uma nacionalista e outra moralista, que podiam coin.
cidir ou não nas mesmas pessoas. Ambas correntes eram anti.
comunistas. Colocavam·se, em conjunto, à direita do governo e
desencll'deavam ações suficientemente vigorosas para, em ciro
cunstâncias de crise, pôr em xeque o governo. Fora do núcleo
de poder, atuava a "oposição". No fim do mandato de Castelo
Branco, essa se compunha, além do MDB, recém-criado (que
funcionava no jogo de partidos como oposição), dos remanes-
centes do antigo regime.
Com a eleição de Costa e Silva, manifesta-se mais clara-
mente a tendência apontada anteriormente: o exército começava
a atuar corporativamente e a ocupar um Estado que fora mo

76
dernizado pela administração anterior. O regime, sob Costa e
Silva, vai abrir-se para segmentos da outrora desafiante burgue-
sia nacional, através do prestígio que certos setores nacionalistas
(responsáveis em parte pelo movimento do qual resultou a
candidatura Costa e Silva) lograram obter no governo.
O significativo do período, entretanto, não será o paterna-
lismodo marechal-presidente ou seus impulsos populistas. A
política econômica continuará sendo, apesar da declaração oficial
em contrário, de "arrocho salarial"; não será significativo tam-
bém o tão ambicioso nasserismo, pois o representante dessa
corrente, o Ministro do Interior, perderá a posição num con-
fronto sobre a política econômica daro e direto com o Ministro
da Fazenda. Este representava a tendência oposta, de desenvol-
vimento .pelo fortalecimento da empresa (nacional, estrangeira e
pública, associadas). Antes, o que chama a atenção é que nova-
mente o presidente desencadeará uma estratégia de "abertura
democrática".
Tratará de reativar o jogo partidário, ampliará as liberda-
des políticas, fará apelos à união nacional. Quando cresce a
oposição (passeatas dos cem mil, primeiros atos guerrilheiros,
oposição franca do MDB ao regime, Frente Ampla etc.), nova-
mente, uma oposição interna põe em xeque o governo. Essa
oposição partia da "jovem oficialidade", dos setores nacionalis-
tas do exército e dos ultra. Como conseqüência edita-se o ATO
5, que praticamente transforma o presidente num ditador, sob
fiança das Forças Armadas, por pressão de grupos de fora e de
dentro do governo. Era o Exército, como instituição, que assu-
mia as pressões dos ultra.
A cena repete-se, ainda sob o governo Costa e Silva - sem
as manifestações públicas e populues de oposição - com as
tentativas de reconstitucionalização, que partem. de setores da
cúpula palaciana (supõe-se que apoiados pela "classe política",
pelos remanescentes dos partidos). A reconstitucionalização não
tem &ito, aparentemente por causa da doença e subseqüente
afastamento do presidente. De qualquer maneira, a oposição à
nova tentativa de institucionalização já havia crescido e mesmo
sem a doenÇa de Costa e Silva seria provável uma crise política.
Neste meio tempo, há dois fatores, um econômico, outro
político, que devem ser considerados. O primeiro diz respeito
à retomada do crescimento econômico. O segundo, se relacion~
com a emergência, especialmente a partir de fins de 1968 e
1969, da oposição armada.

'77
o quadro entretanto é o mesmo até o fim do período
Costa e Silva: o governo, apoiado em parte no exército, em
parte nos partidos, tentando "institucionalizar" a revolução. A
esquerda e à direita, desencadeiam-se ações, que passam a con-
dicionar-se reciprocamente, e que vetam, em circunstâncias ex-
tremas, as estratégias desencadeadas pelas lideranças governa-
mentais. Por trás deste jogo, as decisões de política econômica
seguem um curso relativamente autônomo e os grupos de inte·
resse unem-se em torno dos favores e da política governamen-
tal, dando um apoio equilibrador, se não ao presidente ou à
liderança, ao Regime.
Que Regime é este? A eleição do presidente Médici dei·
xou claro o modelo em jogo. Apesar das pressões nacionalistas
e do prestígio castrense atribuído ao líder dessa corrente, a
decisão fundamental, que afastou a candidatura Albuquerque
Lima à presidência, teve as seguintes características:
a) foi tomada pelo estrato superior da burocracia militar (os
generais de 4 estrelas);
b) obedeceu a critérios burocráticos de hierarquia e repre-
sentação corporativa;
c) impediu o risco maior para o Exército como burocracia
dominante: sua desagregação pela proliferação de tendên-
cias e facções, que o predomínio da tendência nacionalista
e a cristalização de uma oposição acarretariam;
d) implicou, portanto, numa conciliação entre correntes de
dentro do Exército.

E o que é mais significativo: em nome da hierarquia, da


disciplina e da coesão a decisão foi acatada pelos que perderam,
apesar de, possivelmente, serem majoritários dentro da tropa.
Com a Instituição Armada, como cor.poração, assumindo
em forma crescente o controle do Estado (isto é, de outra buro-
cracia, também esta modernizada pelas administrações anterio-
res ), implantava-se um modelo relativamente estável de domi·
nação burocrática. .
Dentro deste modelo os riscos de rigidez burocrática são
compensados pelo fato, já apontado, de que a economia (inclu-
sive pública) tomou forma nitidamente empresarial, e porque o
conteúdo tecnocrático da Administração é acentuado. O Regi.
me baseado neste modelo de dominação burocrático-militar não
deixa de implementar, naturalmente, políticas que interessam à

78
sua base social: com elas se beneficia a burguesia internacionali-
zada, o pr6prio grupo militar, as classes médias ascendentes,
especialmente os segmentos profissionais e tecnocráticos e, en·
quanto houver crescimento econÔmico, alguns setores das cama·
das populares, sempre e quando o governo sustente polIticas
redistributivistas.
. O objetivo primordial das Forças Armadas fora definido
como sendo o de fortalecer o Estado e garantir a segurança na-
cional: não existe choque direto entre essa concepção e o estilo
de desenvolvimento econÔmico adotado. Dentro deste esquema
cabem, inclusive, pressões nacionalistas. À condição de que se
mantenha o caráter "associado" do desenvolvimento e que den-
tro dele caiba um Estado forte.
O modelo é, portanto, de domina~ão autocrática, sob con-
trole burocrático-militar e. está assentado em bases economica·
mente dinâmicas.

AUTORITARISMO E DEMOCRACIA
A partir deste quadro começou a difundir-se a crença de
que existe uma relação estreita entre desenvolvimento econÔmico
e autoritarismo e de que este é condição para aquele. Não
importa, neste momento, discutir os fundamentos da suposição
(mesmo no caso atual, a retomada desenvolvimentista é anterior
ao Ato 5 e sofreu percalços em 1969, depois dele). Esta crença
encontrou adeptos entusiastas, como era de prever-se, dentro do
próprio estamento militar, de setores empresariais, de segmen-
tos das classes médias tecnocráticas e das classes médias ascen·
dentes. Por seu turno, dada a orientação nacionalista de alguns
grupos ultra, pretende-se, às vezes, validar o autoritarismo com
argumentos pseudonasseristas. A essa ideologia se opõem, grosso
modo, os remanescentes do castelismo e a oposição de fora do
regime (parte da esquerda e da intelectualidade, a Igreja etc.).
A defesa mais candente da compatibilidade entre a demo-
cracia e o modelo de desenvolvimento associado, que está sendo
posto em prática - e portanto de crítica ao nacional-autorita-
rismo veio de um antigo ministro de Castelo. Roberto Cam-
pos (20) alinhou os argumentos centNÍs da tese, tomando de

(20) Veja-se a série de artigos publicados em O Estado d, S.


Paulo sobre o "Modelo brasileiro de desenvolvimento", nos dias 7 a
24 de julho e 1.0 e 8 de agosto de 1970.

79
empréstimo aos cientistas políticos americanos (Apter, Almond
e Verba) a linguagem, o modelo e a intenção: "A opção política
que nos convém - e que é na realidade a opção consagrada
pela Revolução de 1964 - é a de democracia participante com
um Executivo Forte. O modelo apropriado é o da reconci·
liação, pois que nossa sociedade, pelo menos em algumas regiões,
já transitou da fase de modernização para a de industrializa-
ção" (21).
Para isso, se requer um executivo forte, o funcionamento
do sistema partidário e um mecanismo de "reconciliação popu-
lar", baseado na informação e na comunicação entre elite e
massa. Este modelo evitaria os riscos dos sistemas mobiliza-
dores e autocráticos e permitiria a substituição da coação pela
informação, sem incorrer nos equívocos e riscos do "populismo
distributivista" e da "excitação nacionalista". A base do regime
consensual estaria dada pelo pluralismo econômico, como con-
dição para o pluralismo político e pela manutenção de uma
sociedade aberta, graças ao aperfeiçoamento de canais de mobi-
lidade social, como a educação.
Novamente, está-se diante de uma análise que condicionou
estritamente o político ao econômico (dado um sistema econô-
mico pluralista ter-se-á provavelmente pluralismo político), bem
como de uma visão normativa.
Os fatos estão indicando mais coação e menos informação,
apesar do pluralismo econômico.
Isto quer dizer que o regime militar, sobre ser burocrático
é totalitário? Existem tendências neste sentido, mas ainda não
são hegemônicas no Estado. Falta uma doutrina radonalizadora
(a doutrina do Estado ainda é "democrática") e um partido mo-
bilizador. Por enquanto existe uma autocraci,a militar-burocrá-
.tica, economicamente desenvolvimentista. O regime dará o
salto?
A resposta não pode, outra vez, ser buscada no nível ideo-
lógico. A tual correlação de forças políticas mostra que ao
redor do eixo estabilizador da burocracia estatal-militar reagru-
pam-se, em tomo dos partidos consentidos, os antigos interesses
políticos. Estão, naturalmente, submetidos ao crivo centraliza-
dor e estabilizador do Regime, como a escolha prévia dos go-

(21) Citação extraída do artigo publicado no dia 17/6/1970,


O Estado de S. Paul.o, p. 5.

80
vel1ladores pelo presidente demonstrou. As Assembléias Esta-
duais r~petiram a função ritual do Congresso Nacional· que
elege presidentes previamente indicados. Por outro lado, as de-
ci~ de política econômica parecem manter-se numa esfera
relativamente autônoma do círculo político, delas participando os
grupos empresariais quase corporativamente.
Este sistema, simultaneamente centralizado, burocrático e
empresarial, tem sido capaz de gerar políticas, propor objetivos,
e de mobilizar simbolicamente a. população por intermédio de
ideais de fortalecimento da Pátria. Ele procura legitimar-se
(melhor diria, como Candido Mendes, autenticar-se) graças aos
êxitos econômicos. As críticas à repressão são respondidas com
cifras sobre o desenvolvimento, na mesma perspectiva dos ana-
listas que crêem que economia e política têm uma correspon-
dência direta.
Entretanto, o sistema tem dois desestabilizadores, um no
seu interior, outro alheio e oposto a ele: a repressão incontro-
lada e a ação armada de esquerda. Além disso,. por não conse·
guirinstitucionalizar-se, encontra em cada período de sucessão
um momento de crise.
Ao poder de veto dos grupos ultra, que condicionam o pro-
cesso político brasileiro desde o governo Castelo Branco, veio
somar-se o do aparelho repressivo e dos grupos armados de
esquerda. Nenhum dos dois extremos parece, neste momento,
estar em condições de gerar objetivos políticos e implementá-los.
Mas ambos, reciprocamente, condicionaram o Regime e podem
frear políticas oriundas dele. Além disso, na medida em que
impedem maior permissividade política, diminui a capacidade
do regime absorver grupos opositores e de gerar polfticas capa·
zes de passar pelo crivo da "participação crítica" dos que a ele
se opõem mas não querem perder influência política no Estado.
As probabilidades de que se agravem as condições de coa-
çãoem detrimento da informação (para dizê-lo de maneira
eufêmica) dependerão da capacidade que tenham os setores g0-
vernamentais do Regime ou as forças que se opõem a seus
aspectos mais repressivos (como a Igreja), para frear a corrida
da violência política. Não creio, novamente, que exista uma
inevitabilidade favorável ao totalitarismo (22). Mas não acre-

(22) Essa afirmação não significa que a alternativa do totalita~


rismo seja uma "abertura democrática". Refiro-me apenas à estabiliza-

81
dito que sem uma reação vigorosa de dentro e de fora do Regi-
me se possa evitar o fortalecimento dessa tendência. O curso
atual do processo político levou o regime a um impasse. Apes:u
do êxito econômico e da disposição de parte de setores que o
apóiam para criar um "sistema de reconciliação", as forças
contrárias a isso estão estrategicamente colocadas dentro e fora
do sistema. A oposição, armada ou verbal, não tem forças, por
outro lado, para provocar uma derrocada do Regime.
Ao contrário, este está se beneficiando dos efeitos favorá·
veis do desenvolvimento e a conjuntura é antes "de consolida·
ção burguesa", dentro de um regime de estilo burocrático-de·
senvolvimentista. O paradoxo político reside precisamente
_ nisso: a escalada repressiva e ,a ação terrorista desenvolvem-se
num contexto que, abstratamente, pareceria torná-las, neste
momento, inecessárias ou inúteis. Com isso se cria a possibili-
dade da degenerescência "tchequista" da dominação burocrática,
sem que a ação armada da esquerda chegue a constituir um
elemento mobilizador. É possível que a sociedade assista, para-
lisada, ao confronto "técnico" entre dois contendores violentos.
Por trás desta situação está, naturalmente, o fato de que
as "elites de poder", e com elas a "intelectualidade", foram
incapazes de propor alternativas para resolver a questão de base:
o desenvolvimento econômico mobilizou socialmente a "massa",
mas não preencheu o vazio histórico de uma sociedade e uma
cultura que jamais lograram organizar esta massa, educá-la, tor-
ná-la capaz, enfim, de reivindicar tanto pão, como liberdades.

ção de um regime autoritário, nos moldes que o caracterizei. Por outro


lado, mesmo os que propugnam pela transformação do regime na dire-
ção de uma "abertura democrática" concebem-na em termos da amo
pliação da participação da burguesia e das c1anes média~ e não da
reconstituição das organizações representativas das classes populares.
Este último processo, a curto prazo, parece estar excluído do horizonte
de possibilidades.

82
CAPiTULO IV

ASPECTOS POLtTICOS DO
PLANEJAM'ENTO NO BRASIL (*)

Alguns dos autores que discutiram o planejamento no Bra-


sil - e talvez se pudesse generalizar para os países subdesen-
volvidos - afirmaram que o planejamento não s6 está condi-
cionado politicamente, como é 6bvio, mas tem alcançado "re-
sultados políticos" pelo menos em igual proporção que os "resul·
tados econômicos", quando não tem sido principalmente uma
"manobra política". A leitura dos capítulos precedentes deste
livro mostra o exagero dessas afirmações. A avaliação dos planos
nacionais, regionais e setoriais indica que, em maior ou menor
grau, algumas metas econômicas, manifestamente propostas nos
planos ou aceitas consensualmente como o resultado desejável
de uma performance r,azoável do sistema econômico, foram
atingidas.
Isso, entretanto, não reduz a importância da análise dos
aspectos políticos do planejamento. Para começar, no plano
te6rico mais geral as noções de "política" e "planejamento",
tal como foram formuladas pelos autores clássicos, pareciam ser
antinômicas. Com efeito, haveria decisão política toda vez que,
enfrentando alternativas, a opção pudesse criar algo novo, por
mais .geral que fosse a caracterização desse "algo": desde um
novo instrumento de pressão até a proposição de uma solução
não institucionalizada ou, quando institucionalizada, que não
estivesse necessariamente contida na situação de interesses ano
teriormente dada. Se a decisão pudesse decorrer da experiência

(*) Capitulo conclusivo da coletlnea organizada por Betty MIN·


DLIN, O Plan,jamtnto no Brasil, 1970, São Paulo, Penpectiva.

83
anterior, estivesse ela codificada em leis e regulamentos, ou
simplesmente consentida pelos participantes do jogo político em
função de uma prática rotinizada pela tradição e pelos costumes,
estaríamos no campo da "administração". Essa, naturalmente,
se supunha subordinada às opções políticas já configuradas no
passado. Seria, o substrato cristalizado dos meios adequados
para implementar as políticas e a política mais geral, dos atores
(grupos, classes, indivíduos) que, numa dada sociedade, grupo
ou instituição, tivessem conseguido definir as regras do jogo
e as metas a serem atingidas.
Neste contexto, o planejamento seria .a "administração ra·
cional", isto é, o processo de distribuição dos recursos e dos
meios tendo em vista objetivos dados. Mas, a fixação dos obje.
tivos cairia no campo da decisão política e essa, por ser emi.
nentemente criativa e por decorrer da imposição (embora legi.
timada) da vontade de uns grupos sobre os outros, de umas
classes sobre as outras, estaria ligada à esfera não racionalizada
da vida social, à terra de ninguém do campo de luta entre os
grupos sociais, onde a zona de incerteza invade freqüentemente
a área das decisões tomadas racionalmente, segundo critérios
previamente estabelecidos. Decisão "racional", ou "planeja-
mento", e política se oporiam, portanto, em princípio. No má·
ximo seria possível racionalizar a partir de opções dadas, sele·
cionadas por critérios distintos do metro da razão. Conseqüen.
temente, o planejamento deveria circunscrever-se diretamente
à área da administração.
Assim, rigorosamente, supunha-se que o planejamento
central (especi~1mente, mas não de forma exclusiva, o planeja-
mento econômico) seria viável apenas nas sociedades socialistas:
nestas, segundo a visão utópica do jovem Marx, a política teria
sido substituída pela administração, posto que não haveria, mais
dominação de umas classes por outras, nem Estado como instru-
mento desta dominação, não havendo, portanto, 6bice maior
para que as "decisões racionais", equilibrando os fins 6timos
socialmente desejáveis e os meios adequados e disponíveis, se
consubstanciassem em planos bem concatenados.
A hist6ria demonstrou que a incompatibilidade "de prin-
cípios" era redutível a uma prática diferente. As economias
socialistas, especialmente na URSS, utilizaram técnicas de pla-
nejamento muito antes da fusão consensual do interesse de cada
grupo no anseio coletivo de uma comunidade universal dos ho-

84
mens. Fortalecimento do Estado, repressão, segmentação de
interesses, pugna política aguda entre grupos, coexistiram .com
a definição e implementação de planos qüinqüenais. E a teoria
antecipou :1 possibilidade do planejamento nas sociedades plura-
listas, de economia capitalista.
Terá sido Mannheim, talvez, o primeiro teórico a sistema-
tizar os problemas novos que surgiram com a "planificação de-
mocrática": como conciliar a liberdade individual, a representa-
tividade legítima dos grupos de interesse, a multiplicidade dos
objetivos, com a planificação? Nesta linha produziu-se a revo-
lução copernicana do pensamento político com respeito ao pIa-
nej~I!lento: começou a desfazer-se a oposição entre política e
admiQistração; entre, por um lado, a "liberdade" - concebida
como'· ,!povimento irracional de um sujeito indeterminado - e,
por outro, a àntecip.ação racional (planejada) do curso das ações
e opçõeS" As linhas de transformação do pensamento sobre o
problema 'do planejamento multiplicaram-se e entrecruzaram-se.
De uma parte, aceitou-se implicitamente a crítica marxista da
idéia de liberdade herdada do pensamento ilustrado: o sujeito
dessa liberdade não poderia ser o indivíduo como um ser inde-
terminado e geral. Ao contrário, a possibilidade do exercício
efetivo da liberdade depende cada vez mais da situação con-
creta, na qual grupos organizados tem asseguradas as informa-
ções para a definição de seus interesses, conhecem suas necessi·
dades e dispõem dos meios de organização para lutar por seus
objetivos. Por outro lado, ficou claro que independentemente
do julgamento ideológico sobre o significado abstrato do plane-
jamento como técnica de liberdade ou de compulsão, o próprio
desenvolvimento tecnológico, especialmente a revolução nos
meios de comunicação, a urbanização acelerada do mundo con-
temporâneo e a "crise política" generalizada (numa palavra, a
formação de "sociedades de massas") puseram em xeque as
concepções teóricas que tomavam conceitos antinômicos política
e administração, liberdade e planejamento. A "racionalidade
crescente" passou a ser vista, na linguagem de Mannheim, como
expressão do novo movimento da história, que impelia também
à "democratização fundamental". A liberdade para preserv:ar-se
como algo mais que uma idéia geral teria de apoiar.se na defi-
nição e, portanto, na antecipação, das regras do jogo vigentes
nas várias esferas da vida ~ocia}; nas quais o plano se impõe
como recurso não só para' a c;xpansão econômica mas para a
sobrevivência da própria "sociedde política", e nas áreas onde

85
o jogo político assegura aos indivíduos a sua liberdade como
pessoa e como cidadão.
*
* *
Convém esmiuçar um pouco o processo político subjacente
a essas transformações. O pano de fundo que empresta sentido
a essas mudanças, é a formação do que alguns autores chama·
ram de cidadania. Esse processo implicou na separação entre
ordens institucionais que no período anterior ao advento do
capitalismo industrial encontravam·se sobrepostas. Família, pro-
priedade e Estado passaram a ter existência autônoma, como
instituições interligadas, mas específicas, dentro dos estados na·
cionais, que se organizaram tendo como base a sociedade indus·
trial. A esfera política, a esfera econômica e a esfera privada
da vida organizaram·se em instituições específicas e complemen.
tares. Na visão liberal do mundo, o centro de cada uma dessas
ordens institucionais era o indivíduo: a política deveria ser regu·
lamentada de modo a permitir a expressão da vontade de cada
um, no jogo da democracia representativa, que constituía elegi.
timava o Estado; a economia harmonizava no mercado o inte-
resse dos indivíduos, proprietários isolados de sua força de
trabalho ou de empresas; a família era a célula onde as "relações
naturais" do homem encontravam sua defesa. A representação
que se formou sobre o funcionamento de cada uma dessas oro
dens, dependia, por sua vez, da criação de conjuntos de direitos
e deveres civis, políticos e sociais, que estivessem institucional·
mente organizados através de leis e tribunais que assegurassem
a todos as liberdades básicas, o acesso ao Poder, a garantia do
benefício das condições sociais necessárias para seu exercicio,
como a educação. De posse desses requisitos, que deveriam ser
iguais para todos e universais, ter·se·ia o cidadão, sujeito. ver·
dadeiro do processo histórico.
Por certo a formação da cidadania mesmo na Europa, deu·
·se por partes. Mas, a ideologia liberal percebia essa tendência
como um processo irreversível e de expansão crescente. A crí-
tica marxista, como todos sabem, incidiu sobre este ponto, prin·
cipalmente: o pensamento político do liberalismo generalizava
uma situação que é parcial num duplo sentido, porque ocorreu
num dado momento da história e nada ,assegura que deva ser
sempre assim e porque de fato alcança apenas uma parcela da
sociedade, uma classe. Só os proprietários, com efeito, teriam

86
as condições substantivas para beneficiarem-se dos direitos dos
cidadãos. Este tioo de crítica não se dirigia, portanto, à aspi-
ração de liberdade individual ou à necessidade de limitar a
intervenção do Estado. Ao contrário, postulavam-se novas· con·
dições não "burguesas", a partir das quais isso seria possível.
Nã.o se quebrava, portanto, o elo da tradição liberal de valori-
zação da liberdade. Mudava-se seu sujeito e as condições de
sua exequibilidade.
A história dos séculos XIX e XX mostrou que, não obs-
tante a permanência da "sociedade burguesa", houve certa gene-
ralização da cidadania. Entretanto, a complexidade da economia
industrial e o crescimento da massa de cidadãos produziram um
resultado que, embora entrevisto pelos pensadores clássicos do
liberalismo, superou suas expectativas: o funcionamento das
instituições, que deveriam garantir a "sociedade democrática",
a empresa, o Estado, as instituições civis e sociais (como os
tribunais, as escolas etc.), requeria a ampliação crescente de um
quadro de funcionários especializados. Crescia, assim, a mo-
derna burocracia.
Terá sido Weber, mais que qualquer outro, quem tirou as
conseqüências teóricas mais importantes desse fenômeno. A
organização burocrática da vida econômica, política e social era
vista, por um lado, como a expressão da racionalidade crescente.
A decisão, no mundo complexo da civilização ocidental, requer
direitos e códigos. Estes precisam dos especialistas que os
leiam, interpretem e apliquem. Sem eles, não há como funda-
mentar "racionalmente", isto é, escolhendo adequadamente os
meios que levem aos fins desejados. Entretanto, o formalismo
rácional da burocracia não é uma simples decorrência da "com-
plexidade do mundo industrial": a burocracia, como forma típica
de organização, serve ao capitalismo e ao socialismo mas é mais
geral que eles. Existiu em outros tipos de sociedade (embora
não como burocracia moderna) e existe em ordens institucionais
distintas da empresa e do mercado. É antes de mais nada o
instrumento pelo qual se pode compatibilizar, no plano político,
a igualdade formal requerida pela cidadania: como fundamento
de um tipo de dominação ela permite nivelar interesses e garante
a impessoalidade formalista, que se requer para garantia das
oportunidades iguais. Numa palavra, faz parte integrante da
organização democrática.
Além disso, o funcionário burocrático, em termos típicos.
-ideais, não só é "livre" como é selecionado teoricamente em

87
função de sua competencia profissional, quanto possível, através
de concursos. E o cargo que ele exerce define-se legalmente
também em bases técnicas: limita esferas de competência e asse·
gura ao seu titular direitos específicos que o garantem contra
as "pressões políticas".
Por outro lado, entretanto, Weber percebeu os limites que
a burocratização colocava para as liberdades democráticas e
equacionou claramente a questão central da teoria política da
burocracia: quem garante que essa "racionalidade formal" "cres·
cente não seja antinômica com a "racionalidade substantiva"?
Noutras palavras, a enorme c,apacidade que as sociedades con·
temporâneas possuem (sejam elas capitalistas ou socialistas) de
organizar burocraticamente e decidir tecnicamente, a partir
de critérios estabelecidos - capacidade esta que cresce expo-
nencialmente com a revolução tecno16gica das informações e
comunicações - não assegura por si mesmo que os objetivos
visados sejam os melhores, nem sequer que hajam sido escolhi·
dos por critérios racionais. A questão básica, para Weber, con·
tinuava sendo: "quem domina o quadro burocrático existente"?
E todos sabem que Weber na resposta a questões deste tipo
recolocou a discussão sobre a natureza da política. Essa, "em
última instância", se é verdade que encontra na violência a ga·
rantia de seu exercicio, implica nUIIl4 vontade e numa ética,
portanto implica em valores, cuja escolha não está tecnicamente
condicionada. Nos quadros estreitos de uma dominação buro-
crática e da burocratização crescente das sociedades modernas
Weber via fundamentalmente duas clareiras que poderiam miti·
gar os efeitos negativos de crescente racionalli.ação puramente
formeI em desmedro da racionalizaçio substantiva:
a) o ,empresário capitalista, porque dentro do círculo de seus
interesses, é superior em saber à burocracia;
b) o político, quando lidimamente auiado por uma vocação,
capaz de impor seus desígnios em contraposição às asso-
ciações (aos partidos), inclusive às associações de massa,
que estão irremediavelmente condenadas a submeter·se ao
império das burocracias.

Esta visio da burocratização do mundo, da planificaçio


também crescente e do perigo de que se acentue a antinomia
entre racionalização substantiva (isto é, escolha não s6 de
"meios adeq~ados" mas, tam~m, de fins desejáveis socialmente

88
e racionalmente selecionados) e racionalização formal nasceu do
. contexto hist6rico da experiência cultural e política da Europa
Continental. É neste contexto que a reação liberal a estes riscos
deixa entrever toda sua significação: o Estado Absolutista criou
uma burocracia civil poderosa que, aliada aos exércitos - for-'
ma~ de orgenização nas quais a burocracia logo se assentou e
desenvolveu - constituíam os estamentos básicos com os quais
se enfrentava a sociedade civil, isto é, a burguesia ascendente.
Para contrabalançá-las, a teoria política de democracia burguesa
desde Rousseau e Montesquieu punha toda ênfase no desenvol-
vimento do sistema representativo, na divisão entre poderes e
no primado da vontade política, expressa pelo voto, sobre
a vontade do Estado, consubstanciada na decisão burocrática.
Weber foi mais longe na análise da burocrada e percebeu que
o desenvolvimento tecnol6gico e o crescimento da organização
econÔmica moderna haviam aberto as portas à burocratização
dos partidos e das organizações de massa, isto é, da pr6pria
"sociedade civil". Para contrapor-se ao "ethos" burocrático,
Dio via senão a vocação do político e do estadista, guiados por
uma ética de responsabilidade, na qual a instrumentalização da
ação justifiear-se-ia sempre que em nome de um cálculo das
conseqüências de seus atos e escolhas, a que todo o político deve
estar obrigado. Assim, na prática, a justificativa da ação poU-
tica em nome de "fins últimos", de uma ética de valores abso-
lutos pode mesclar.se l~gitimamente, para Weber, com formas
de seleção dos meios a serem empregados que, se nem sempre
são os mlhores, podem assegurar pelo menos alguma certeza
quanto as suas conseqüências, em comparação com outras alter-
nativas.
Colocada neste nível de generalidade, a solução weberisna
Dio responde à complexidade da situação presente, quanto aos
dilemas de poUtica e administração racional, "livre iniciativa"
e planejamento. Mas, ilustra as contorsões do espírito liberal
para salvar, diante da quase inevitável marcha do mundo para
a massificação e a burocratização, uma região de opçio livre e
criadora, capaz de responder às "exigências da situação". Man·
nheim repôs a indagação weberiana num contexto mais atual.
Entretanto, embora menos influenciado pelo espúito libe1'a1,
não chegou ao fundo da questão tal como o desafio do p~te
a coloca: continuou, assustado com o crescimento da esfera das
decisões racionalizadss da vida moderna, a preocupar-se com a
questio liberal: "~plane;' os planejadores?". Ou seja, onde

. 89
colocar a região de liberdade capaz de contrabalançar a ameaça
do Estado Planejador?
O desenvolvimento das sociedades de massa e das econo-
mias industriais, especialmente, como se indicou, a tremenda
revolução nos meios de informação e comunicação, ao lado da
forma que a decisão e o controle assumiram na empresa mo-
derna, recolocaram essas questões em· termos diferentes e sob
certos aspectos mais desafiantes. Tomando o último problema
indicado. parece claro que o empresário deixou de estar imune
2Q e/hos burocrático, e mesmo que na grande corporação em-
presarial, os comitês de direção e administração substituem
p.aulatinamente aquele tipo de empresário "superior em saber,
no círculo de seus interesses" à burocracia, acentuando um pro-
cesso de separação entre propriedade e controle que o pr6prio
Marx antecipara no século. XIX como tendência do capitalismo.
Entretanto, esta tendência à administração planejada, baseada
no que Galbraith chama de tecnoburocracia, contém em si mes-
ma um corretivo importante à escalada avassaladora da "racio-
nalidade formal": expansão do "mundo contemporâneo", nas
suas várias esferas (econômica, política, militar, civil) depende
de modo crescente da inovação tecnol6gica', da criatividade orga-
nizativa e da continuidade inventiva nos meios de informação e
comunicação. Isto (que é verdade também para as sociedades
socialistas, embora com aspectos diferentes) faz com que a pr6-
pria atividade planejadora dependa do élan criador e contenha
em si instrumentos que assegurem a liberdade para a criação.
Por certo essa tendência não elimina os problemas relativos
a liberq.ade política,como já indicaremos. Mas dissolve, como
problema inerente à pr6pria expansão da sociedade industrial de
massas, a oposi~o formal entre liberdade e planejamento, bu-
'rocracia e política. Estes problemas continuam a existir, mas
situados concretamente em termos hist6ricos e não como 'uma
oposição de princípios, como uma contradição peculiar à pa-
tureza da sociedade industrial e à massificação da política. A
ninguélD ocorreria, diante dos fatos conhecidos, nega!', por
exemplo, importância polítiCa às conseqüências da revolução
que ocorreu nos meios de informação e comunicação, que ao
mesmo tempo em que facilitou a "mobilização" de novas cama-
das da sociedade para as decisões políticas das quais se encon-
travam marginalizadas antes dó crescimento industrial e urbano,
.deixou~s a mercê dos fluxos de informação centralmente con·
trolados por pequenos .grupos, às vezes "burocráticos" como nos

90
países socialistas ou então por grupos de "altas rendas" como nO\
países capitalistas.' Mas não é a partír deste tipO de proble~as
que o planejamento assume sua significação te6rica geral como
questão política. ~ antes no contexto novo de uma sociedade
que para sobreviver e expandir-se tem que planeiar, mesmo no
caso das economias capitalistas, que o planejamento se apresenta
como um tipo definido e variável de resposta política e técnica
para o desafio das sociedades ~ndustriais de massas.
Não cabe, aqui digressões sobre as diferenças en~re o pla-
nejamento central e os planos indicativos, nem sequer cabe
mostrar como a resposta política do planejamento quanto às
suas implicações na definição das metas' e no assegurar a parti-
cipação entre os distintos grupos da população no controle dessa
definição e nà implementa~ão dos plapos, varia de uÍn para outro
tipo de organização social e política. Mas cabe discutir como
se. apresenta essa problemática na situação brasileira.

*
* *
o essencial sobre o significado do planejamento nos qua-
dros da teoria política contemporânea foi dito no capítulo· 11,
deste livro (*). A decisão de planejar é política, no~entido de
que por intermédio da definição. 'dós planos se alocain'''vâlore~''~
e objetivos junto com os "rerotsos" e se redefinem às formas
pelas quais estes valores e objetivos são propost()S e~ldistiibqí­
dos. . Assim, passa~se de um' modo "tradicional" de; defióição
de prioridades e distribUição de recursos, baseado, .por exemplo;
nas esferas de influência entre os Estados. os Partidos e a Aàtni-
nistração e na continuidade do sistema político através do sis-
tema eleitoral, para um modo "racional" de proceder, graças aO
qual se diagnosticam as carências,' se escolhem os objetivos e se
definem os meios a serem empregados, segundo regras.' e proce"
dimentos ~ceitoscoml>- razoáveis por um conjunto de técnicos
(embora, sirvam, obviamente, para a reorganização do sistema
do poder em benefício de uns partidos, grupos e líderes contra.
outros). Por outro lado, a implementaçãO do plano implica em
"políticas", isto é, na escolha de alguns recursos que o sistema
político fornece em detrimento de outros çom o fim de, uma vez
alcançados os resultados "econômicos" do plano, reforçar políti-

~.) Referência ao capItulo de Celso Lafer, in MINDLIN, Bet~


ty, Oplan6jarn6nto no Brasil, .op. cito

91
camente o grupo que o apoiou (o Presidente, seus ministros, os
técnicos e os "partidos"). E, por fim, a própria "decisão admi-
nistrativa", neste caso, longe de opor-se à "decisão polític.a"
como um polo antinômico, "abre-se" ou dirige-se para a decisão
política: quando a persistência das normas organizacionais é
incapaz de resolver os problemas ou de .atender "demandas polí-
ticas" de uma dada situação, esta dá lugar a um novo critério,
induzido de fora da administração, capaz de solucionar o impasse
criado.
Obviamente, a validade desta análise assenta em premissas
distintas das que haviam sido colocadas pelo desenvolvimento
político europeu: a flexibilidade relativa do quadro administra-
tivo mostra que o estamento burocrático existente é pouco sedi-
mentado e incapaz de responder às pressões do sistema político
por seus próprios recursos; a decisão goveJ;namental de "mo-
dernizar" os procedimentos de distribuir recursos e definir obje.
tivos, indica que as pressões inovadoras da "sociedade civil"
(no caso brasileiro expressas pela mobilização política populista
e pelo nacionalismo econômico) se fazem sentir ao nível do
próprio Estado; e, por fim, o "consenso político" é suficiente-
mente pouco consistente (o que implica em que o nível e
alcance' das informações sejam baixos) para permitir que grupos
que conseguiram o Poder por intermédio e graças ao apoio de
setores beneficiados pelo sistema político tradicional (como foram
todos os que propuseram planos até 1964) se disponham e até
certo ponto, consigam pelo menos embrionária e formalmente
"mudar as regras do jogo" no que diz respeito às decisões ec0-
nômicas básicas, com todas as implicações políticas deste processo.
Com efeito, quando se compara a implantação do sistema
brasileiro de planejamento, com as condições e modos de implan·
tação do planejamento, por exemplo, na URSS ou na França,
tem-se que, no caso deste último país, o consenso foi sendo.
gradualmente obtido com a participação crescente dos diversos
grupos na definição das metas e na formulação do plano, ou
então foi obtido revolucionariamente na parte da sociedade que
venceu, no caso da URSS. No Brasil, no entanto, os planos
foram definidos por grupos restritos de técnicos e políticos e
foram aprovados pelo sistema político tradicional, embora sua
justificativa mais geral tenha sido apresentada, quase sempre,
em nome dos que não estão participando do progresso econô-
mico e dele devem vir a beneficiar-se por imperativos étiro-po-
Iíticos e para assegurar o crescimento nacional. Tudo isso ocor-

92
reu dentro de um quadro geral de baixa informação politica e de
consenso limitado quanto às soluções politicas e econ8micas con-
cretas, embora com a aceitação generali%ada, no plano iàeol6gico,
quanto à necessidade do fortalecimento áa Nação.
Esta modalidade de .açãw política, em que se combinam
modernização a partir da cúpula governamental e tradicionalis-
mo, toma-se viável graças a uma das peculiaridades estruturais
de países subdesenvolvido~. Nestes, o sistema polftico reflete
i

uma estrutura social pouco 4iferenciada no interior de cada um


dos grandes setores em que se divide a população: ao lado da
"massa de trabalhadores" (sem discutir aqui seus subsetores,
agrário, urbano e "marginal" f existe um conjunto pouco orga·
nizado formado pelas classes intermediárias e outro composto
pelas classes proprietárias, que atuam inclusive mais como "mas-
sa", isto é, como um conjunto de pessoas que se bem possuem
interesses que podem ser identificados como similares .. partir
de algum critério estrutural, não dispõem dos meios para agir
coerentemente nem das informações necessárias para formar uma
idéia dos seus interesses comuns. Com estas expressões impre.
cisas e possivelmente improprias queremos ressaltar a inexistên-
cia ou a fragilidade das "organizações intermediárias" que dão
às classes sua forma estrutural definida: partidos, sindicatos,
associações voluntárias etc. Por certo, os proprietários se orga-
nizam mais facilmente e mais firmemente do que os não pro-
, prietários, mas mesmo suas "organizações de classe" são fluidas
e politicamente fracas, isto é, não estão ligadas ao conjunto da
classe ou a setores significativos de classe por uma corrente
contínua e reversível de informações, capaz de permitir a defi-
nição e redifinição de seus interesses e propósitos, nem assentam
em formas estávéis de reconhecimento de sua legitimidade pelo
conjunto da classe. Com mais forte razão a massa trabalhadora,
quando não está excluída do jogo político (como os trabalha-
dores do campo), participa dele _através de organizações com
características semelhantes. Neste quadro, caracterizado, seguin.
do a linguagem que se adotou em partes anteriores deste capí-
tulo, por uma "sociedade civil" politicamente amorfa, o Estado,
visto como Governo, e a Burocracia, especialmente a militar,
exercem funções catalisadoras de primeira ordem.
Aparentemente, portanto, estar·se-ia pr6ximo da situação
que deu margem aos temores do liberalismo europeu quanto aos
fantasmas do Totalitarismo, encarado como o controle crescente
(embora racional) da sociedade civil pelo Estado, e neste do

93
legislativo pelo executivo. Entretanto, naquela situação o Estado
era imediatamente percebido como a expressão de uma classe
ou de um estamento e sua ação não só correspondia mais imedia-
tamente aos interesses dos grupos que o controlavam, como,
por sua vez, ele era suportado pela organização das classes do-
minantes. O jogo político dava-se pela luta entre a organização
de distintas classes ou de alianças de classe. Neste contexto a
b'.lrocracia ao mesmo tempo representava o risco do formalismo
sem virtu e assegurava a possibilidade formal da democracia;
podia minar na empresa as bases da inovação empresarial, mas
permitia o planejamento racional, e quando este se instituciona-
lizou passou a ser criticado e suportado não só pela tecnocracia,
mas pelos órgãos de classe, nas democracias capitalistas, ou pelo
Partido da classe, no modelo soviético.
No caso brasilei'ro, desde os primórdios da ação planeja-
dora, no governo Dutra e, especialmente, no segundo governo
de Vargas, o plano ,surgiu como o resultado, de um diagnóstico
de carências formulado por técnicos, guiados por valores de "for-
talecimento nacional", mas num quadro de apatia da "sociedade
civil" e, especialmente, dos políticos profissionais. A própria
Administração, comportou-se diante dessa inovação tecnológica
em termos das expectativas do sistema político tradicional: nela
situavam-se os grupos de pressão favoráveis ao planejamento e
nela desembocava ao mesmo tempo o clientelismo político, mas
como nem a esfera econômica existente, nem a esfera política
recebiam informações adequadas ou redefiniam suas expecta-
tivas em função de fenômenos novos (como o plano e a decisão
de planejar), modernização e rotina coexistiram desconhecendo-se.
No sistema político brasileiro tradicional a permeabilidade
do governo sempre foi maior que a da Burocracia: exatamente
porque as classes não sedimentam estruturas intermediárias de
participação política suficientemente diferenciadas e interferentes
ao nível do Estado, a "inovação técnica" que parte de indivíduos
pode, eventualmente, chegar aos níveis mais altos de decisão,
sem encontrar resistências organizadas. Num sistema deste tipo,
a grande alavanca com que tanto as classes dominantes como a
Administração incrustada no sistema do poder contam para
defender seus interesses tradicionais é precisamente o colchão
de algodão da não comunicação entre as diferentes organizações
do Estado e destas com a sociedade.
E óbvio que os planos propostos por essa via tem escassa
possibilidade de transformar·se em processos de planejamento

94
efetivo. O primeiro corte significativo nessa situação terá sido
dado com o Plano de Metas, no nível nacional, e com a SUDE-
NE, e o primeiro Plano de Ação do Governo de São Paulo, no
nível regional. O Plano de Metas, contou politicamente porque,
além do referido processo de penetração da cúpula governa-
mental pela influência de um setor de técnicos e intelectuais,
implicou num esforço de coordenação de planos, metas e meios
que haviam sido propostos para diversos setores da economia
nacional. Significou também o início da formação de uma trova
burocracia e além disso nele foram incluídos objetivos (que es-
tavam explícitos politicamente pelo menos no segundo governo
de Vargas) que implicavam na mobilização de novas camadas da
população a partir do Estado. Não é necessário repetir o que
já se analisou em capítulos anteriores: a estratégia política
adotada levou à coexistência entre o sistema político clientelístico
tradicional, e a mobilização direta das massas, desde que essa
estivesse limitada e suportada pelo dinamismo político e eco-
nômico gerado pelo próprio Estado-Desenvolvimentista; levou
à convivência da Administração tradicional com a Tecnocracia;
e, por fim permeou a definição programada de objetivos econô-
micos por toda sorte de concessões às pressões dos interesses
particularistas enraizados na vida econômica e política.
Mais consistente como técnica de planejamento global e
como forma de ruptura do sistema tradicional de decisões foi a
SUDENE, na medida em que sua Superintendência e seu Con-
selho, para poder implementar as políticas adotadas a partir de
critérios técnicos e da já referida concepção de "desenvolvi-
mento nacional", tiveram que interferir diretamente em áreas
de decisão privativas dos governadores e na política dos parti-
dos de clientela, bem como tiveram que constituir, em pouco
tempo, um corpo de burocratas recrutados com objetivos técni-
cos. Os êxitos na implementação do órgão de planejamento,
apesar das dilações já referidas neste livro, quanto a aspectos
tão importantes como o regime de propriedades da terra, não
se poderiam dar se não em função da relação entre Estado Na-
cional e Governos Estaduais: a linha de fortalecimento do Es-
tado Nacional apresentava-se, com menos clareza que hoje, mas
já aparecia como condição necessária para viabilizar a persis-
tência do sistema político nacional. Os governos estaduais das
regiões pobres não dispõem dos recursos (em sentido amplo,
econômicos, mas também políticos, técnicos e culturais) para
responder a demandas novas e crescentes. A "integração na-

95
donal" requer a diminuição das desigualdades regionais e, con-
seqüentemente, favorece a intervenção e o fortalecimento do
Executivo Central, em detrimento do Poder Estadual.
Já o Plano de Ação do governo Carvalho Pinto em São
Paulo teve um significado mais restrito, aproximando-se da
idéia de racionalização administrativa e de planejamento do in-
vestimento público, sem afetar o setor privado, tal como ocorre
com o planejamento em países mais desenvolvidos. Essa poli-
tica "gradualista" reforçou o Executivo Estadual, a partir da
cúpula da Administração, em detrimento do Legislativo e da
Burocracia tradicional, mas não implantou um sistema de plane-
jamento, nem definiu metas capazes de mobilizar politicamente
camadas novas da população.
A análise da primeira tentativa de formulação de um plano
global de desenvolvimento e da criação de um órgão adminis-
trativo - um Ministério - que cuidasse de sua implantaçãO,
como foi o caso do Plano Trienal, revela, entretanto, que as
condições politicas prevalecentes no Brasil o já referido meca-
nismo de "inovação interna" a partir do próprio governo, graças
ao impulso de um pensamento racionalizador que contamina a
cúpula do Estado pela ação de pessoas, líderes e grupos restritos
de tecnocratas, é insuficiente para gerar um "processo de pla-
nejamento", isto é, para transformar as metas e meios teorica-
mente selecionados no Plano, em mecanismos constantes e per-
sistentes, capazes de levar os distintos grupos e camadas da p0-
pulação desde o Governo até os empresários privados, a com-
portarem-se de acordo com as linhas gereis do Plano. Com
efeito, o Plano Trienal pode, de acordo com a técnica prevale-
cente nos meios especializados de então, fazer um "diagnóstico"
da situação, ressaltar as principais "barreiras" ao desenvolvi-
mento, e indicar os modos e meios· para superá-las. Tratou de
definir metas "rentes à realidade", pelo conhecido processo
de verificar o rendimento máximo obtido em distintos setores da
economia e dela em conjunto nos anos precedentes e aceitar
como objetivo imediato a recuperação não a um nível ótimo
absoluto, mas ao melhor nível já alcançado. Mas teve que reco
nhecer que em campos vitais para o conflito social, como a p0-
lítica de salários, o gasto público, a taxa de poupança e inves-
timentos e a inflação, haveria que fazer algumas inflexões
importantes na linha da politica econômica prevalecente no po-
pulismo para garantir a continuidade do crescimento do siste-
ma econômico. Mesmo sem que se considere outros aspectos

96
abrangidos pelo Plano Trienal, com as reformas administrativas,
fiscal, banária e agrma, que, necessariamente produziriam rea-
ções, as resistências encontradas no pr6prio governo à conse·
cução das políticas propostas minaram a eficácia do Plano, não
apenas como instrumento geral de planejamento efetivo, mas
até mesmo como guia da política econômica geral.
A pugna entre as classes e o já referido processo de mobi·
lização de massas encontravam-se então, em 1962.63, num ponto
de máxima. Pelo mesmo mecanismo da maior permeabilidade do
Governo às reivindicações diretas de pequenos grupos organi-
zados e pele dinimic.a política geral que contrapunha um estilo
de democracia plebiscitária de massas à democracia representa-
tiva dos velhos partidos clientelísticos, Goulart havia recuperado
força, a partir da reação legalista de Brizola, com o ziguezague
da concessão parlamentarista, mas com a consagração do Plebis-
cito. O Plano - como grande idéia salvadora - serviu, numa
primeira fase, como catalisador político: o Governo tinha recur-
sos, esses recursos eram conspícuos e "modernos". No mo-
mento seguinte, consolidado o Presidencialismo graças ao apoio
de massas, como cumprir um Plano que, a curto prazo, limitava
os salários, a começar pelo dos pr6prios funcionários públicos?
Como saldar, por outro lado, na amalgama entre a política de
massas e o clientelismo tradicional (PTB-PSD), que constituíam
os fundament~ do poder janguista, os "compromissos políti-
cos" que se traduziam em vantagens econômicas, se a linha da
polftica econômica fosse de austeridade?
Vê·se, neste quadro, que o êxito inicial do Plano, mais do
que do planejamento foi o de seu formulador que soube com-
preender que na situação prevalecente o "plano" é também um
mobilizador político, e foi capaz de convencer politicamente,
setores estratégicos da opinião e sensíveis para a necessidade de
planejar, embora, confessadamente, tivesse obtido reduzido êxito
junto aos empresários. Por outro lado, o Plano cumpriu uma
função política latente: permitiu ao governo uma via nova de
obtenção de lealdades e. de reconhecimento de sua respeitabili-
dade. Atingidos estes objetivos, os interesses políticos de sus-
tentação de um Poder presidencial discutido passaram a preva-
lecer sobre o planejamento.
Seria equivocado a nosso ver, entretanto, sustentar que
estas funções supletivas dos Planos, diversionist.as mesmo se-
gundo alguns, são inúteis para a implantação de um processo
de planejamento. Na situação política brasileira, já caracterizada

97
sumariamente, a crist6lização de alguns núcleos SOClalS onde a
idéia do Plano e o reconhecimento da necessidade de planejar
sirvam como valores de aglutinação, tem uma enorme impor.
tância estratégica: dada a pouca organização prevalecente, com
a conseqüente ausência de estruturas intermediárias eficazes
entre o Estado e as classes, a criação e difusão de "circulos de
inte;essados", mormente quando este interesse estriba em uma
competência definida para a manipulação de certas técnicas
sociais, tem um enorme efeito potenciaL Neste sentido, a valo-
rização do Plano Trienal, a quase mística da SUDENE, o pr6-
prio Plano de Ação e a enorme tarefa de difusão das técnicas de
planejamento e da necessidade de planejar através dos cursos
da CEPAL e do ILPES, foram criando os referidos "circulos de
interessados" no planejamento, que penetraram amiúde, pelo
mesmo processo de cooptação e contaminação da cúpula admi-
nistrativa, nos órgãos estaduais, regionais e nacionais de decisão
econômica, de ação econômica direta e de administração, for-
mando o que. Hirschman chamou de "ilhas de r.acionalidade".
Assim, tão importante, embora menos espetaculosos, quan·
to os Planos de Desenvolvimento e o Ministério de Planeja-
mento, foram os inumeráveis grupos de ação e planejamento,
que começaram a existir desde o governo Vargas, mas que se
generalizaram a partir do governo Juscelino Kubitschek. A for·
mação de um "segundo escalão" de planejadores, durante o
período dos incompletos e às vezes inaplicaqos Planos Nacionais
do período nacional-populista da política brasileira foi decisiva
para permitir a passagem de uma etapa em que eram concebidos
como diagnósticos ou como "idéias salvadoras" para outra etapa
em que o planejamento passou a ser visto como um processo
social.
Por certo, estas "ilhas de racionalidade" ficavam muitas
vezes contidas entre dois fogos inter-relacionados: os interesses
do diente1ismo político e a inércia burocrática. Esta última,
especialmente, merece destaque, por sua repercussão sobre as
possibilidades de planejar. Daland resume bem as principais
características da burocracia brasileira:
"As funções da burocracia brasileira são: (1) - prover
um canal de mobilidade ascendente para a classe média educada;
( 2) - prover rendas permanentes para aquela parte da classe
média que serve de apoio ao regime; (3) - prover um baixo
nívc1 de certos serviços; e (4) - dar a oportunidade de ini-
ciativas privadas baseadas. nos poderes inerentes a certos grupos.

98
Estas funções são essencialmente políticas por natureza. Em
termos gerais, a qualidade da burocracia é prover favores, man·
tendo um certo nível mínimo de serviços. No entanto, seria
um erro considerar a burocracia como dependente da elite ~
lítica em determinada ocasião. A burocracia tem conseguido
isolar-se das mudanças na direção política, exceto as mais drás-
ticas" (*).
Assim, a "inércia burocrática" é, antes de mais nada, um
mecanismo político pelo qual implicitamente se define que a
Administração é supletiva aos interesses privatistas e estes
fluem, em suas relações com o Estado, através de teias de cum-
plicidades pessoais. Note-se que, tipicamente, não se trata de
lobies} se entendermos por estes um tipo específico de grupo
de interesses que suponham alto grau de organização dos grupos
interessados numa decisão e racionalidade na definição de obje-
tivos e meios. Em suma, os lobies são instrumentos de pres-
são típicos de uma sociedade desenvolvida onde os interesses
de grupo vão buscar influir nas decisões de um Estado bem
organizado e que conta com uma burocracia moderna. No
caso do Brasil no período nacional-populista, apenas se insinua-
vam organizações deste tipo, para pressionar as decisões nos' se-
tores mais dinâmicos da economia, justamente onde as "ilhas
de racionalidade" de uma tecnocracia planejadora começavam a
formar-se. Em geral, entretanto, a teia de cumplicidades era
mais difusa, mais orientada para relações e lealdades pessoais
.que tornavam cúmplices desde o vereador, o deputado, o fun-
cionário de uma repartição fiscal, o industrial, comerciante ou
banqueiro, até o ministro, quando não o próprio presidente. A
partir deste "sistema" as decisões eram tomadas e implementa-
das. A "burocracia" funcionava, portanto, como parte de um
sistema mais amplo e segmentado: não existindo eficazmente
como vimos, partidos de classes, sindicatos e associações de gru-
pos e classes, os interesses organizavam-se em círculos múltiplos,
em anéis, que cortavam perpendicularmente e de forma multi-
facética a pirâmide social, ligando em vários subsistemas de
interesse e cumplicidade segmentos do governo, da burocracia,

(*) DALAND, Robert T. - Estratégia e estilo dp planejamento


brasileiro, Rio de Janeiro, Lidador, 1969, p. 201. O livro de Daland,
inspirado na teoria de Fred Riggs sobre o planejamento em "socieda-
des prismáticas", constitui uma tentativa de. análise sistemática sobre
o planejamento no Brasil. Embora não concordemos com todas as
interpretações propostas, é útil como um ponto de partida para uma
discussão ordenada sobre o planejamento no Brasil.

99
das empresas, dos sindicatos etc. Isso explica o que Da1and
pensa ser o isolamento e a independência da burocracia diante
da elite política: enquanto prevaleceu o sistema político com as
características acima, de uma colcha de retalhos da qual apenas
os limites gerais eram estabelecidos pelos centros de decisões
políticas e, em última análise, pelo próprio presidente, a buro-
cracia atravessou todas as crises da cúpula com a mesma capa-
cidade de persistência do conjunto do sistema político subja-
cente a um regime onde só aparentemente o presidente e as
decisões centrais eram muito fortes. De fato, como bem per-
cebeu o mesmo Daland, o presidente para garantir sua função
de aglutinador do sistema, tinha que barganhar permanente-
mente com os chefes dos "anéis" de interesses coligados.
É fácil perceber, portanto, que o planejamento central,
nos moldes do Plano Trienal teria que "ajustar.se" ao sistema,
descaracterizando-se, ou, para ser viável, dependeria de uma
redefinição completa do jogo político. As esferas de planeja-
mento local ou setorial eram mais flexíveis: poderiam constituir-
-se elas próprias em outros tantos anéis de resistência e defi-
nição de interesses próprios orientados pelos valores do plane-
jamento (como, em certos períodos o BNDE), podiam somar
interesses políticos centralizadores contra alguns dos subsiste-
mas de poder local, como no caso da SUDENE, ou, em certas
circunstâncias, podiam ser captadas por círculos de interesse que,
embora enraizados no sistema tradicional de decisões, aceitavam
como econômica ou politicamente vantajoso incluir em seus
subsistemas de poder algum órgão ou comissão específica de
planejamento.
O grande corte diferenciador do planejamento no Brasil
teria que ser, portanto, como foi, político. Implicou numa
reorganização do sistema de Poder, que atingiu desde algumas
de suas bases até ao modo de sua institucionalização. Com
efeito, o PAEG, enquanto plano em si, não difere fundamen-
talmente do Plano Trienal. Mas a política do governo que o
adotou e suas bases de poder são obviamente, bem distintos.
Por um lado, quebrou-se a "política de massas", e deixou de
existir a preocupação com a participação popular no jogo polí-
tico, como fator de acrescentamento do Poder dos grupos he-
gemônicos. Por outro, novos atores sociais passaram a operar
no sistema político. Na expressão de um analista americano:
"Os militares se tornaram participantes permanentes, com tem-
po integral, durante os últimos dois anos. O significado do

100
PAEG é precisamente que é o programa da Revolução. Esta é
justificada devido à importância do programa econômico do
regime. O .papel do planejamento foi invertido. Isto é, o pla-
nejamento foi outrora um dos instrumentos políticos de uma
administração, por mais sinceros que os pr6prios planejadores,
como técnicos, possam ter sido. Sob a Revolução, a atividade
política do regime foi voltada a serviço do plano" (*). Apesar
da ingenuidade da suposição final, a fase indica quão profunda
foram as conseqüências da mudança política para o êxito do
planejamento.
A partir de 64, além da já referida quebra do populismo
como instrumento de mobilização e sustentação política, come-
çou a dar-se a quebra - que em si mesmo não decorreria da
eliminação da participação de massas - do sistema de anéis
cimentados pela definição tradicional de interesses e lealdades.
Num primeiro momento, no governo Castelo Branco, a ten-
dência era imprecisa. Ao mesmo tempo em que se criava o
Ministério do Planejamento, o CONSPLAN etc., no terreno
doutrinário se assumia uma posição que sustentava um "libe-
ralismo moderno", logo traduzido, na linguagem política, co-
mo "entreguismo", a partir do suposto de que sem a inter-
venção do Estado, o livre jogo das forças econômicas no mer-
cado favoreceria as empresas estrangeiras. E, no terreno estri·
tamente político a tendência parecia ser a de revitalizar uma
espécie de política de governadores, bem como de aceitar os
sistemas locais de poder, como instrumento da luta antipopu-
lista (como apareceu mais claramente no caso de Pernambuco).
A pr6pria. criação da ARENA como "o partido da Revolução"
se dera menos na "sociedade civil" que no Estado: a partici.
pação crescente e constante das forças armadas no Poder era
um indicador desse processo. Se o impulso político de 64
tivesse ficado restrito aos setores políticos, ou tivesse subor-
dinado o setor militar a alvos políticos definidos pela "socie-
dade civil", talvez não houvesse incompatibilidade entre "a
Revolução" e a volta ao sistema dos círculos de interesses
organizados em anéis: o velho sistema de poder readaptar-se-ia,
entrecruzando no interior de seus múltiplos anéis, segmentos
mais numerosos e influentes do setor militar. Não foi isso o
que prevaleceu, embora tivesse começado a ocorrer, por exem-

(*) DALAND, op. cit., pp. 190·191. A edição americana é de


1967.

101
pIo, em São Paulo, com Adhemar e Kruel e mesmo no Rio
Grande do Sul, com Alves Bastos. Antes, a hegemonia do
novo sistema de decisões políticas passou a ser exercido pelas
Forças Armadas como corporação. Ora, como corporação
as Forças Armadas constituem uma burocracia de base técnica,
que requer planos como condição para sua sobrevivência.
Não se conhece, nos pormenores, o processo de burocra·
tização, no sentido weberiano, das Forças Armadas no Brasü.
Mas os efeitos dessa mentalidade racionalizadora fizeram·se seno
tir nos rumos dos governos posteriores a 1964 e mesmo, de
forma mais limitada, antes dessa data. Se é certo que alguns
setores militares, bem como drculos empresariais que controlaram
em determinados momentos a Confederação Nacional das Indús.
trias, criticaram o PAEG e viram suspeitosamente o Plano De-
cenal, a crítica dirigia·se mais à política econômica, desnaciona·
lizadora, do que à atividade de planejamento. Esta, em si mesmo
passou a ser valorizada e aceita como parte integrante do processo
de modernização do país e como instrumento necessário para a
consecução de uma das metas mais caras ao espírito militar:
a integração territorial e a ocupação do espaço econômico como
fundamentos para a política da segurança nacional.
Neste sentido, os próprios ministérios que preexistiram ao
Ministério do Planejamento, e muito especialmente o Ministério
do Interior, começaram a mover a máquina administrativa, bus·
cando coordenação entre as diversas agências do governo que
planejam e executam. Simultaneamente foi dada ênfase à cria·
ção de outros órgãos regionais, à imagem da SUDENE, para
permitir a recuperação do atraso das regiões mais pobres do
pãís.
Seguindo o percurso agitado das crises político-institucio-
nais que marcaram a história recente desde o AC n.O 2, a ten·
dência predominante parece ser a do fortalecimento da autorida·
de central em prejuízo dos Estados e a substituição dos critérios
democrático-representativos do sistema político anterior, não por
outros ditos mais aperfeiçoados, mas por critérios autocráticos
e tecnocráticos de tomada de decisões. Neste contexto, ainda
quando o Plano Decenal tenha ficado nas gavetas, logo substi-
tuído pelo Plano Estratégico de Desenvolvimento e quando este,
especialmente no que se refere ao setor industrial, discrepe às
vezes da política econômica efetivamente posta em prática, a
tendência à planificação é crescente.

102
Os riscos, agora, já não são os de que a prática política
impeça, como no caso do Plano Trienal, a consecução dos obje-
tivos propostos ou a implementação de organismos de planifica-
ção. Mas, ao contrário, de que os organismos de planificação e
o estilo de decisão autoritária-tecnocrática impeçam a vida p0-
lítica da "sociedade civil". No plano estritamente econômico,
o contrapeso a esse risco vem sendo o estabelecimento de cedro
culos de interesses conspícuos", dos quais se isolam os políticos
profissionais e que, quando encontram flexibilidade por parte dos
Ministérios Executores, especialmente o da Fazenda, reajustam
ad hoc as decisões que tenham sido tomadas sem considerar
porventura o interesse dos grupos empresariais. No plano mais
geral, quando se encara o Planejamento como um mecanismo
de propor alvos nacionais de desenvolvimento e realização po-
lítica, entretanto, as novas condições de auto.itarismo tecno-
crático podem induzir a uma situação em que os velhos temas
de liberdade e do totalitarismo ao modo como foram colocados
pelos europeus, ganhem sentido outra vez: mobilização popular
ou arregimentação? Qual a eficácia de sistemas de decisões. des-
vinculados de práticas de participação política em sociedades
industriais e de massa para levar adiante o processo de desen-
volvimento? O êxito da racionalidade formal, e mesmo, de
eventuais acertos substantivos mas que não contam com a ade-
são dos principais grupos envolvidos na atividade econômica e
social de um país em desenvolvimento, é razão suficiente para
minimizar os controles sociais, baseados na crítica livre, na
imprensa livremente atuante e no fluxo não controlado de infor-
mações, que são condições necessárias para a formação de uma
opinião pública participante?
Nada disso, evidentemente, deriva da "natureza do plane-
jamento" como pensavam os liberais de antes da Segunda
Grande Guerra. Mas são questões políticas que marcam as con-
dições de êxito e os limites do planejamento, em situações his-
t6ricas concretas. Para sua solução, os planejadores, como ca-
tegoria social, pouco podem contribuir. Seu equacionamento
adequado dependerá sempre das forças sociais subjacentes ao
processo de planejamento e da dinâmica política mais ampla
que circunscreye as condições nas quais se dá o planejamento
brasileiro. Mas, como intelectual e cidadão, o planejador não
pode eximir-se de colocá-Ias e mostrar que a falácia do tecno-
cratismo, quando as desqualifica por não serem "questões téc-
nicas", não faz mais que encobrir os problemas políticos subja-
centes a qualquer planejamento.

103
CAPiTULO V

ALTHUSSERIANISMO OU MARXISMO?
A PROPÓSITO DO CONCEITO DE
CLASSES EM POULANTZAS

Comunica.ção feita no Seminário organizado pe·


la Universidade Nacional Autônoma de México
sobre Classes Sociais na América Latina (Mé-
rida. dez/1971) para comentar o trabalho de
N. Poulantzas - "Las Classes Sociales", apre·
sentado na mesma reunllo. .

o trabalho de Poulantzas permite duas leituras distintas e,


até certo ponto, opostas. Não digo isso simplesmente para co-
quetear com a moda atual que procura ler nas entrelinhas o
que o autor nega expressamente nas linhas. Ao contrário,
penso que as duas interpretações decorrem diretamente do texto.
Entretanto, não se trata de mero defeito expositivo. Antes
penso que existe uma contradição entre o modo pelo qual Pou-
lantzas faz análises de processos históricos e a forma pela qual
trata de elaborar as categorias e os procedimentos que atribui
à interpretação marxista das diversas "teorias regionais" em que
se dividiria o materialismo histórico. Esta contradição -
que não é simples diferença quanto ao grau de generalização -
indica, de resto, a dificuldade metodológica em que se debatem
os marxistas que partem da interpretação que Althusser em·
prestou à diferença entre materialismo histórico e materialismo
dialético.
Com efeito, nas conclusões do. artigo Poulantzas reafirma
que a análise das classes feita pelo marxismo difere das inter·
pretações feitas por outras conentes do pensamento ( *) prin-

(*) Reproduzo a distinção entre o marxismo e "todas as outras


correntes" com o mesmo grau de generalidade que se encontra no texto
de Poulantzas.

104
eipalmente porque para Marx a concepção da luta de classes
como "motor da história" é fundamental. Isto quer dizer que
"as classes não existem senão na luta de classes", o que agrega
um elemento histórico e dinâmico à sua análise:
"A constituição, e portanto a própria definição, das
classes, das frações, das camadas, das categorias, do pode
fazer-se mais do que tomando-se em consideração o fator
dinAmico da luta de classes ( ... ) A delimitação das clas-
ses nAo se reduz assim jamais a um simples estudo "esta-
tlstlco" das estatlsticas : depende do processo histórico"
(pp. 43-44).

Fiel a este aspecto de sua compreensão do método mar·


xista, Poulantzas mantém todo o tempo um diálogo com alguns
analistas da política francesa atual, nomeadamente com os au-
tores do Traité d'économie marxiste, e com as forças políticas
que se servem do tipo de interpretação contida naquele livro
para definir a política de alianças que corresponderia aos inte-
resses da classe operária na etapa atual de desenvolvimento do
"capitalismo monopolista de Estado". Opõe-se à concepção
do tipo de aliança proposta, mostrando que os enganos na carac~
terização da situação concreta da classe operária e das demais
classes sociais no c,apitalismo monopolístico levam a erros na
prática política que impedem uma prática revolucionária.'
Entretanto, no conjunto do texto, Poulantzas dilui o pro-
blema real que está enfrentando. No discurso te6rico que faz
sobre as classes, desaparece a concepção fundamental de concei-
to de classe como uma relação determinada que se explícita na
constituição de uma "totalidade concreta". A retórica forma-
lista que privilegia definições, como se estas fossem a substan-
tivação de contradições reais, encobre o problema te6rico e prá-
tico - simultaneamente - que preocupa Poulantzas.
Por certo, nos exemplos expostos e nas linhas de interpre-
tação sugeridas por Poulantzas para a compreensão do gaulismo,
por exemplo, ou para que se entendam os interesses específicos
da burocracia, como categoria social, numa situação em que a
burguesia monopolista se torna fração dominante de classe, ou
ainda quando indica as diferenças entre classes dominantes e
"classes reinantes", a inspiração metodológica que guia o autor
é a primeira e mai,s correta a que aludi acima.
Entretanto, o caráter de relação antagônica entre conjuntos
sociais, decorrente de contradições que se dão simultânea e ciro

10.5
cularmente em vários níveis (econÔmico "determinantemente",
político, ideológico) da realidade, que caracteriza a análise con·
creta que Poulantzas faz das classes, dá lugar a um discurso
formal nos textos teóricos.
O formalismo quase c1assificatório das definições não ocor-
re no texto por motivos aleatórios que têm a ver com a estru-
tura literária do artigo. Ao contrário, existe, segundo creio,
u~ modo de análise formal que decorre do ponto de partida
teórico de Poulantzas e que, se não impede ocasionalmente que
o autor mostre a força criadora de suas análises concretas, deso-
rienta os que se aproximam de seus textos em busca de uma
"inspiração metodológica" para utilizar a dialética marxista.
A crítica mais geral que gostaria de formular quanto a este
aspecto diz respeito à distinção, aceita por Poulantzas, entre
"objeto de pensamento" e "objeto real", que fundamenta a
distinção althusseriana entre "prática teórica", a Teoria com T
maiúsculo, por um lado, e processo real por outro (* ). Antes,
portanto, de tentar mostrar os efeitos negativos dessa concepção
na análise apresentada por Poulantzas, tratarei de explicitar a crí-
tica que faço ao ponto de partida da compreensão do nwxismo
aceita por Poulantzas.
*
• •
O horror à problemática do sujeito contida no historicismo
e a crítica ao economismo e ao empirismo têm levado os adep-
tos do althusserianismo a beirar, por um lado, o estruturalismo,
evitando a história, e, por outro, o formalismo idealista: seus
catecismos marxistas terminam por pregar a busca da Revolução
Teórica encarnada no Conceito, visto este último como o resul-
tado de uma praxis teórica que fundamenta uma metateoria.
Assim, o "materialismo dialético", por exemplo, passa a ser a
teoria geral, "teoricamente produzida" - isto é, decorrente da
"praxis teórica" - de todos os modos de produção, cabendo-
-lhe ainda a especificação das "instâncias regionais", ou seja,
da teoria econômica, da teoria da ideologias (?) e da teoria
política, nos diversos modos de produção. O "materialismo

(*) Poulantzas repete e aceita os argumentos de Althusser de


Lire le Capital. Ver POULANTZAS, Nicos, "Breves remarques sur
l'objet du Capital". (In FAY, Victor, En partant du "Capital", Paris,
Anthropos, 1968, pp. 235-247).

106
histórico", por sua vez, vem a ser a ciência que explica a cons-
tituição 'e transformação das formações sociais concretas.
Não me parece que esta separação arbitrária entre o nível
teórico e o processo histórico tenha fundamento explícito nas
obras de Marx ou possa ser recuperado nos trabalhos de inves-
tigação influenciados pelo marxismo. Ao contrário, a critica da
economia política contida em O Capital tem como um de seus
objetivos recusar todo tipo de separação entre teorias gerais
e instâncias particulares e o isolamento dessas instâncias parti-
culares entre si. Por outro lado, o marxismo como ciência da
história - se não se confunde com o empirismo histórico -
significa precisamente um esforço de reconstrução de "totali-
dades concretas". Estas implicam tanto na elaboração dos con-
ceitos que explicam as relações historicamente constituídas co-
mo na compreensão destes mesmos conceitos como expressão
de relações reais (*). Essas relações são postas e repostas con-
tinuamente nos modos de produção que articulam tanto as prá-
ticas das diferentes classes, como as categorias que poderão ex-
plicá-las. Não cabe, para Marx, portanto, qualquer tentativa
de elaboração de uma metateoria fundamentada numa praxis
abstrata que paire sobre os diferentes modos de produção, como
se fosse a Razão debruçando-se sobre o real.
Essa interpretação não contém qualquer forma implícita
de historicismo ou empirismo. Por história se entende nela o
movimento que deriva da tensão entre forças que objetivamente
se contrapõem. O movimento (a "história") é, dessa forma,
inseparável da estrutura: o próprio relacionamento entre as par-
tes que mantém a unidade da diversidade (o todo), é uma re·
lação dialética, ou seja, de negação que se abre para uma supera-
ção (negação da negação).
Ao dizer isso recoloco a questão do universal-conereto ( ** ),
que os althusserianos recusam, temerosos da vólta a Hegel.

(*) "Pode-se dizer, a este respeito, que a categoria mais sim-


ples pode expressar tão bem as relações essenciais de um conjunto ainda
pouco desenvolvido como as relações secundárias de um conjunto muito
desenvolvido; estas relações já existiam historicamente antes que o con-
junto se tivesse desenvolvido no nível da categoria mais concreta. A
marcha do pensamento abstrato, que se eleva do simples ao concreto,
reflete assim o processo histórico real". MARX, Grundrisse, Paris, An-
thropos, 1967, p. 32.
( .. ) Esta análise reproduz os árgumentos contra Althusser de
José Artur Giannotti no brilhante prefácio à edição francesa de seu

107
Com efeito, a separação entre "objeto de conhecimento"
e "objeto real", que ~ o ponto de partida da análise althusse-
riana, ~ tam~ seu ponto mais débil. Recusando a interpreta-
ção de que o método marxista ao construir suas categorias
retém teoricamente o movimento que vai do abstrato ao concre-
to reproduzindo um processo de abstração real - isto é, que
ocorre na prática social como um universal (uma abstração)
cqncreta (que se dá na hist6ria) - Althusser rejeita não s6 li
influência da 16gica de Hegel sobre Marx (a negação da nega-
ção ), mas rejeita, além disso, o materialismo da doutrina mar-
xista. A partir daí, posto que Althusser não aceita que a ordem
16gica contém uma dimensão ontol6gica - quer dizer, produ-
zida objetivamente pelas relações entre os homens e por eles
incessantemente reproduzidas, negadas e transformadas - ter·
mina por valorizar a "prática te6rica", como recurso para ga-
rantir a objetividade do processo do conhecimento. Entretanto,
exemplo deste universal que se coloca abstratamente no nível
da pr6pria prática humana se encontra, entre outras análises, no
estudo do fetichismo, no livro primeiro do Capital: relações pré-
vias entre os homens são projetadas para as coisas que passam
Q relacionar-se formalmente (*).

Minimizando-se o papel dos universais concretos, "confe-


re-se à teoria uma espessura que ela não possui, de nenhum
modo, salvo no seio do positivismo. Apoiando-se sobre o fato
hist6rico de que a ciência inaugura sempre seu trabalho com o

livro Origines de la dialectique du travail, Paris, Aubier, 1971. La edi.


ção, em português, São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1966.
(.) Não quero citar demasiadamente. Indico, entretanto, dois
textos: o das pp. 80-81, Tomo 1, vol. I do Capital: "O caráter miste-
rioso da (orma mercadoria baseia-se, portanto, pura e simplesmente,
em que projeta ante os homens o caráter social do trabalho destes,
como se (osse um caráter material dos pr6prios produtos de seu traba·
lho, um dom natural social destes objetos e como se, portanto, a relação
social que medeia entre os produtores e o trabalho coletivo da socieda-
de fosse uma relação social estabelecida entre os proprios objetos, à
margem de seus produtores ( •.. )" etc., e o da p. 84: "Mas esta forma
acabada - a forma dinheiro - do mundo das mercadorias, longe
de revelar o caráter social dos trabalhos privados e, portanto, as rela-
ções sociais entre os produtores privados, o que (az é encobri-las'"
( ... ) "Estas (ormas são precisamente as que constituem as categorias
da economia burguesa. São formas mentais aceitas pela sociedade e
portanto objetivas, em que se expressam as condições de produção
deste regime social de produção historicamente dada, que é a produção
de mercadorias".

108
auxílio de instrumentos elaborados por doutrinas anteriores,
Althusser desenha uma epistemologia onde a ciência "não tra-
balha" sobre um dado puramente objetivo, que seria o dos "fa·
tos" puros e absolutos. Seu trabalho peculiar consiste, ao con-
trário, em elaborar seus próprios fatos científicos por intermé-
dio de uma crítica dos "fatos ideológicos elaborados pela prática
te6rica ideológica anterior" (Pour Marx, p. 187). Ora, isto
leva a conferir à teoria a opacidade do fato, retomando a tra-
dição comtiana que pretendia construir sua lógica a partir da
·consideração de "todas as teorias científicas como outros tantos
grandes fatos lógicos". O paralelismo dos textos é imediato, um
e outro implicam na substantivação do discurso científico e na
transformação das doutrinas em material original para a inves-
tigação" (*).
Eu penso, como Giannotti, que o método de Marx, ao
contrário do que diz Althusser, se é verdade que não confundia
o "objeto de pensamento" e o "objeto real", ressaltava que
aquele reproduz "uma síntese essencial situada fora da prática
teórica" (**). Althusser acredita que formulações deste tipo
levam ao empirismo na medida que a abstração é vista como
um processo produzido pelo real e que a essência (os conceitos)
passa a ser um momento da própria realidade. Entretanto, não
é esta a acepção que os defensores de uma leitura ontológica
do Capital sustentam. Recorro outra vez a Giannotti para expor
sinteticamente o argumento: "Assim entendido (como um pro-
cesso transcendental de fundação) o conceito ou a essência,
cessa de habitar o real como um de seus pedaços para tornaJ;'
um elemento que o vem animar, de maneira mais inteira e sutil,
apesar de que entre o singular e o universal fundado se tece
toda uma trama de articulações que convém pesquisar. A mes-
ma .coisa pode dar-se com a categoria marxista, desde que se
descubra um processo de abstração real que opera além da
investigação científica"( *** ).
Existe, portanto, no marxismo uma espécie de "reflexão
objetiva", que não supõe a separação metafísica entre teoria
e prática soeisl, entre "objeto de pensamento" e "objeto real" e
que, por outro lado, evita a separação, também própria da me:

(.) GIANNOTTI, José Arthur, ofl. cit., pp. 24-25.


(•• ) Id.m, ibitl.m, p. 14.
(••• ) GIANNOTTI, José Arthur, ofl. cit., p. 15.

109
tafísica idealista, entre sujeito e objeto. Certamente, o pensa-
mento se dá, concretamente, no cérebro de pessoas particulares.
Estas, entretanto, são - e com elas o pensamento que pro-
duzem - reais e não se opõem, como "consciência", à "maté-
ria", como crê o idealismo ingênuo, nem é possível, a partir
daí, fundamentar as distinções entre "sujeito empírico", "su-
jeito de conhecimento", "objeto empírico" e "objeto de conhe-
cimento". Isso não passa de um jogo formal baseado em dis-
tinções da metafísica idealista.
Os textos de Marx neste sentido são inúmeros. Vou limi-
tar-me a reproduzir um, no qual Marx trata da passagem da
relação de identidade à relação de igualdade, na constituição
do conceito de valor, lançando mão de um terceiro termo,
abstrato e geral, no caso o trabalho humano abstrato: "A disso-
lução de todas as mercadorias em tempo de trabalho não é uma
abstração maior nem ao mesmo tempo menos real que a disso-
lução em ar de todos os corpos orgânicos. O trabalho que,
assim, é medido pelo tempo não aparece pois como trabalho
de sujeitos distintos, mas os diferentes indivíduos que trabalham
aparecem antes como simples órgão do trabalho. Ou ainda, o
trabalho, tal como se apresenta nos valores de troca, pode expri-
mir-se como trabalho humano geral. Esta abstração do trabalho
humano geral existe no trabalho médio que todo indivíduo mé-
dio de uma sociedade humana dada pode executar, é um gasto
produtivo determinado de músculo, nervo, cérebro etc., hu-
manos" ( * ).
Por outro lado, essa "reflexão objetiva" ( **) não se con-
funde com o idealismo hegeliano. Se é certo que o conceito
faz parte de um momento do concreto, este, por outro lado, não
se constitui historicamente como um conjunto de muitas deter-
minações parciais. Tanto assim que cabem no método marxista

(.) MARX, Karl - Zur kritik der politische õkonomie. Berlim,


Dietz, 1958, p. 23. Texto traduzido por J. A. Giannotti.
(.. ) "No que diz respeito às ciências hiat6ricas e sociais, é preciso
reter que o sujeito - no caso, a sociedade burguesa moderna - é
dado ao mesmo tempo na realidade e no espírito. As categorias ~pri.
mem, portanto, formas e modos de existência,e freqüentemente simples
aspectos desta sociedade, deste sujeito: do ponto de vista científico,
sua existência é anterior ao momento no qual se começa a falar dela
enquanto tal (isto é verdade também quanto às categorias econ8micas).
:e uma regra a reter, pois ela nos oferece elementos essenciais para o
plano de nosso estudo". Marx, Grundrisse, p. 36).

110
as análises de situações particulares e a história do processo de
. desenvolvimento dos modos de produção, as quais seguem,
na expressão de Marx, em geral, um caminho oposto ao da
reflexão sobre a gênese categorial:
"A reflexão sobre as formas da vida humana, incluin-
do portanto a análise cientifica desta, segue em geral um
caminho oposto ao curso real das coisas. Começa post les-
tum e parte, portanto, dos resultados já alcançados pelo
processo histórico" (p. 84).

o processo histórico e a gênese de seu entendimento tal


como são propostos pela prática social, no entanto estão imersos
no "fetichismo das coisas" (veja-se os textos da segunda nota da
página 108), que encobrem relações sociais de exploração.
A explicação científica do processo histórico-estrutural, 8
constituição das "totalidades concretas explicativas" só se com-
pleta quando se determinam, na análise, os conceitos cuja pro-
posição se dá na história: quando os universais-concretos são
reproduzidos no pensamento científico e se tomam elementos
fundamentais para a explicação das totalidades (*).
Não existe, portanto, a falácia empirista da identidade
entre o "objeto de conhecimento" e o "objeto real", mas tam-
pouco existe a separação radical da metafísica aIthusseriana,
entre a Razão que conhece e a História que atua, que leva ao
idealismo e ao formalismo.

*
* *
A conseqüência metodol6gica imediata da aceitação por
Poulantzas da diferença radical entre "objeto te6rico" e "objeto
real" é o da elaboração das "teorias particulares" das várias
"instâncias regionais" em que se diversificam a realidade e o
pensamento. Essa preocupação com uma coupure formal
(isto é, que contém necessariamente uma concepção estática do
processo social) entre o econômico, o político, o ideol6gico etc.
inspira persistentemente a problemática de PouIantzas, neste
texto como, mais ainda, em Pouvoir Politique et Classes Sociales.

( • ) Sobre este procedimento os textos clássicos encontram-se no


estudo sobre "O método da economia política". Ver, especialmente
MARX, Crundrisse, op. cit., pp. 30-31.

111
Assim, logo no início de sua comunicação, Poulantzas de-
fine as classes sociais para a teoria marxista como se fossem.
"grupos de agentes sociais, de homens, definidos principalmente.
mas não exclusivamente, por seu lugar no processo de produção.
quer dizer, na esfera econômica"(p. 1). Deixando de lado o
descuido da afirmação de que as classes são "grupos de homens"
(pois, aqui sim, existe uma concepção empirista do marxismo).
ressalta o problema, falso a meu ver, da separação, autonomia
ou autonomia relativa do econômico frente ao político. Para
Marx, não se tratava de campos distintos de práticas humanas
e de áreas teóricas diversas, mas de níveis de complexidade do
real que se articulavam em totalidades complexas de pensa-
mento. Não quero reproduzir outra vez textos, de resto arqui·
conhecidos, sobre o método marxista e especialmente o famoso
texto, já referido, do postfácio da Crítica da Economia Polltica.
Expressamente, ao critiear o método da economia política, Marx
critica também a idéia de uma economia (nem é por acaso que
o Capital se subintitulava, no sentido forte da palavra, "crítica
da economia política") como algo à parte do social e do polí-
tico. Relembro, entre os inumeráveis textos, Q crítica feita ao
mercantilismo porque ele era incapaz de ver a moeda como
expressão de uma relação entre os homens. De resto (tenho
quase pudor de dizer essas trivialidades) para Marx. o capital
é uma relação social e um processo de reprodução das condições
sociais que asseguram sua existência (expropriação dos meios
de produção, mercantilização da força de trabalho etc.). Que
sentido tem, diante dessa concepção, tentar estabelecer especi-
ficidades, no sentido da ciência positiva (isto é, um "objeto
próprio" e as ilações teóricas que o explicitam) entre o econÔ-
mico e o político? Não se estará caindo. em sentido oposto.
na mesma armadilha do "economismo"? Para afirmar que
Marx não fazia análises economicistas e não dissolvia as relações
políticas e ideológicas na "órbita da produção". basta mostrar
como Marx pensava o processo de produção ( *). ~ 6bvio que.
para ele, forças produtivas e relações de produção não são con-
ceitos que se referem Q dois campos do real com cuja "soma"
ou "combinatória" se vai construir o todo que explica. São
conceitos que se referem a relações abstratas (no sentido expU-

(.) De resto, Poulantzas conhece tudo iuo. Tanto asaim que


escreve: "Produção nestas sociedades significa ao mesmo tempo, e num
mesmo movimento, divisão em classes, exploração e luta de claaes"
(pp. 5 e 6).

112
- - ----------------~

cado anteriormente) que devem ser articulados em esquemas


significativos mais ricos e que quanto mais determinados, isto é,
quanto mais especificados em suas relações com outras tantas
relações abstratas, mais se aproximam da reconstrução te6-
rica de uma totalidade concreta.
Por isto, apesar de que alcançar o ponto de chegada para
MarX implicava, no exemplo clássico, em elevar.se até o con·
creto (o Estado, a troca entre as nações, o mercado mundial, a
população) , para chegar lá é preciso determinar as relações
parciais e os conceitos que as expressam e explicam: por exem-
plo, cingindo-me ao texto das Grundrisse, ver as classes sociais
de que se compõe a população. analisar o trabalho assalariado
e o capital, sem os quais "as classes sociais são vazias de sen-
tido" (p. 29) etc. A elaboração destes conceitos constitui
momentos do processo de passagem do abstrato para o concreto
e não "prática te6rica da elaboração das instAndas específicas
de teorias regionais" (*).
Transformar o andamento metodológico da dialética mar-
xista num .esforço pera determinar teoricamente (no caso quer
dizer, sistematicamente) os conceitos explicativos possíveis em
cada "instância regional" implica na formalização do marxismo.
Evidentemente, como mostram os textos citados freqüentemente
por POWantzas e pelos althusserianos, Marx não elaborou con·
ceitos em O Capital para explicar outros modos de produção.
Quem quiser explicá-los dever' percorrer o árduo caminho per-
corrido por Marx. Mas não foi por acaso que Marx tanto evitou
escrever um cCManual" das regras de aplicação do método ma-
terialista dialético, como fazer apreciações sistem'ticas sobre,

(.) Convm chamar outra vez a atenção para o 6bvio: o per·


cuno do abstrato para o concreto é ,tUlicalm,nf, distinto do percuno
do particular para o geral. Se é certo que na teoria marxista uma "re-
lação abstrata" significa uma "relação parcial" e. portnto, indetermina·
da, sua detenninaçáo ("totalização") e concreticidade depende de umll
sfnl,se te6rica. A noção de sintese se afasta da idéia de indução. O
conceito totalizante para o marxismo não equivale ao conceito geral,
do positivismo e do empirismo. que retm e abrevia os elementos c0-
muna d~ muitas lituaçóes distintas, nem i identificação das partes, de
cuja enumeraçio ou resumo (em termos. neste caso, de probabilidades)
ftIU1tart o conhecimento 1{en1: as leis empiricas ou as tendenci..
eltatUticaa. Por certo a análise marxista pode apropriar-se de conheci.
mentos assim produzidos. mas ter' de redefini-Ios. em termos de sua
peculiar forma de construção dos conceitos e de encadeamento das
explicações.

113
por exemplo, "o papel do político em geral", ou sobre "a po-
lítica nos diversos modos de produção". Esta pretensão não se
coaduna com a visão científica de Marx: obrigaria o autor a
negar, ao fazê-lo, os fundamentos de seu método, a saber: que
a "totalidade concreta", se se constitui como um "concreto
pensado" é também uma maneira de se apropriar do concreto
real. Ou seja, supõe a análise do processo histórico que produz
tanto as relações a serem explicadas como os conceitos que as
explicam. Não será, portanto, "raciocinando" sobre as condi·
ções de possibilidade do poHtico, ou sobre as matrizes de com·
binações entre elementos sociais, que se reproduzirá o real
como concreto. Antes, será pela descoberta e pela análise das
categorias abstratas e por sua articulação e determinação que se
reproduz o movimento do real como um concreto pensado.
Para isso, é preciso refazer todo o percurso, isto é, mostrar de
que modo a população, em tal ou qual situação, se articula em
classes - que elementos econômicos as compõem - , como se
dá a apropriação do excedente, de que forma intervém o Esta-
do, que papel joga a ideologia etc. Mas este percurso não é
feito "em geral" ou numa reflexão geral, isto é, que considera
as "variações" formais de um para outro modo de produção, de
uma para outra formação sodal (tal como faz a sociologia com·
parada ou a ciência· política contemporânea quando estuda o
"desenvolvimento poHtico" , para ver as invariâncias e as dife-
renças específicas) e sim num dado modo de produção, num
dado tipo de sociedade. A referência às formas gerais só ganha
sentido quando articuladas num todo em que as redefine em
suas relações com as determinações particulares de cada modo
de produção ou de cada formação social.
Por ter-se afastado deste modo de análise, Poulantzas,
mesmo em trabalho como este que estou coment.ando (onde,
repito, transparece, ao mesmo tempo, uma preocupação subs-
tantiva ), termina por fazer afirmações formais: discutindo as
"nacionalizações" (p. 4) está, obviamente preocupado com a
propriedade estatal nos países socialistas. Entretanto, com
o vezo teorizante e generalizante que o formalismo dá ao mar-
xismo, faz uma referência duplaJ;llente indeterminada. A partir
da separação entre propriedade econômica e propriedade jurídica
(que, obviamente, ao mesmo tempo que se distinguem, se rela-
cionam e se integram) conclui que "as nacionalizações retornam
ao poder do Estado com o qual, sendo este burguês, as nacio-
nalizações se juntam aos interesses da burguesia". Assim, se

114
afirmam duas teses distintas que estão por demonstrar: que
em todas as sociedades burguesas (independentemente, portan-
to, da análise concreta da situação das classes e da luta política)
as nacionalizações reforçam a burguesia ou se o texto, como
indica o <.ontexto, se referir aos países ditos socialistas, que
nestes predominam os interesses da burguesia.
Em Pouvoir Politique et Classes Socialesa formalização da
análise é mais direta. Defende, por exemplo, a existência do
econômico em geral, concepção contra a qual existem inumerá-
veis textos de Marx e que contraria, a meu ver, a própria base
da dialética marxista. Não obstante, Poulantzas escreve: "o
econômico em geral é constituído por certos elementos - inva-
riantes - que não existem de fato a não ser em sua combinação
- variável" (*). É difícil sustentar a existência de invariantes
que somente existem em termos de suas combinações variáveis.
Aqui, sim, nos aproximamos ou do idealismo à outrance ou da
contradição formal: a essência - os invariantes - se realiza
na multiplicidade de combinações variáveis. Entretanto, não é
esta obviamente a intenção de Poulantzas. Mas para escapar
à crítica de uma interpretação essencialista e idealista, cai no
empirismo:
"Estes elementos invariantes do econômico em geral são
os seguintes:
1. O trabalhador - "produtor direto" - quer dizer, a for-
ça de trabalho;
2. Os meios de produção, quer dizer, o objeto e os meios de
trabalho;
3. O não-trabalhador que se apropria do sobretrabalho, quer
dizer, o produto" (**).

Com efeito, que pensar diante da confusão entre força de


tNbalho e trabalhador? Todo o esforço de Marx de categorizar
força de trabalho independentemente de trabalho para permitir
resolver o problema complicado da venda da força de trabalho
pelo seu valor e ao mesmo tempo o da apropriação da mais-
-valia produzida pela força de trabalho, cai por terra. Pior, é
o homem, o "trabalhador", que joga, para Poulantzas, o papel

( ... ) POULANTZAS, Pouvoir p,olitique et classes sociales, pp. 22-23.


(.. ) Idem, ibidem.

115
de invariante, fazendo-o assumir, neste caso, não só os riscos do
que ele próprio designa como uma "antropologia fundante",
mas de uma antropologia conservadora por definição: existem
sempre homens que trabalham, meios de produção que não lhes
pertencem e "apropriadores do sobre-trabalho". Isto é, existem
sempre as condições dadas historicamente apenas na produção
mercantil. Isto para não mencionar a categoria (?) confusa de
"não-trabalhador em geral" que se apropria dos produtos. Na
verdade, nenhuma antropologia subscreveria estas afirmações
que roçam o empirismo ingênuo de um materialismo estático.
Por certo, o fundamento destas interpretações se encontra
em Balibar (*). Apesar de que a ginástica intelectual de Ba-
libar é mais rigorosa, leva igualmente ao formalismo:
"Podemos definir esta análise (a relação entre os
meios, o modo de trabalho e o trabalhador) como a deter·
minação diferencial de formas, e definir um "modo" como
um sistema de formas que representa um estado da 'Varia.
ção do conjunto de elementos que entram necessariamente
no processo considerado" (Balibar, op. cit., p. 204) ( ... )
"Esta combinação, quase uma combinatória, que constitui
a essência atual de um modo de produção determinado,
onde os elementos (sempre os mesmos) não são senão ele-
mentos virtuais fora de seu relacionamento segundo um
modo de produção determinado ( ... )" (p. 205) "Pela com-
binação variada destes elementos entre eles segundo as duas
relações (relação de propriedade e relação de apropriação
real) que pertencem à estrutura de todo modo de produção,
nós podemos reconstituir os diversos modos de produção.
Quer dizer, nós podemos enunciar os "pressupostos" de
seu conhecimento teórico, que são apenas e simplesmente
os conceitos de suas condições de existência histórica" ( ... )
"Chegt;.r-se-ia, finalmente, a uma tábua comparativa das
formas dos diferentes modos de produção que, todos eles,
combinam os mesmos fatores" (p. 211).

Digo que o exercício formal de Balíbar é mais rigoroso


porque ele explícita que Marx chamava de "combinação" a arti-
culação entre partes numa totalidade complexa, isto é, que rela-
ciona níveis distintos (econômico, político etc.), diversos, mas
unidos (p. 209), o que é obviamente distinto da interpretação
formalista de'"Balíbar. " E também porque ao referir-se ao

(*) BALIBAR, ttienne - "Sur les concepts fondamentaux du


materialisme historique". In ALTHUSSER, Louis et alii, Lire ie Ca-
pital, Paris, Maspero, 1967, tomo 11, pp. 187-332.

116
"não-trabalhador, que se apropria do sobretrabalho". Balibar
. acrescenta que Marx o designa como representante da "classe
proprietária" e se refere ao capitalista. Evidentemente, sendo
mais fiel aos textos de Marx, este autor mostra também, im-
plicitamente ... , o infundado de suas interpretações, que em
última análise padecem dos mesmos equívocos das interpreta-
ções de Poulantzas. Mais grave ainda, tadaa montagem para
sustentar a idéia de invariantes que se combinam numa quase
combinatória (sem permutações, por certo ... ) supõe uma "se-
gunda leitura" que interprete contra o sentido explícito os tex·
tos famosos doposfáciodil Crítica da Economia Política.
O resultado niO:pode eser outro senão a confusão entre a
construção das fltotálid~$ concretas" como um pr~esso. de
passagem do abstrato p~ra P' concreto - caminho de Marx -
com o da particularizaÇão ,e .i~neralização vistos como uma "d~
terminação nova dos mesmos .elementos pela. variação de seu
relacionamento" (p. 331'). .Transforma-se assim a dialética
marxista num quebra-cabeça de possibilidades finitas:' São sem-
pre os mesmos termos quç,~,.cpmbinam diferentemente. como
num caleidoscópio. Daí, para Balibar, ser possível "recuperar"
as combinações que nunca (sedétam de forma independente' na
história e aquelas que pOderi6vir a ocorrer no futuro. como
por exemplo no modo de prpdução socialista, o que natural-
mente contraria a posição de Mln'Jr que se recusava a "teorizar"
sobre o futuro. A negatividãdê. da prática social, a luta de
classes, o movimento da histórià e4:,., são implícita, quando não
explicitamente postos de lado, pai' incorrer em vícios "histori-
cistas" em benefício de uma análise diacrônica e de uma análise
o
sincrônica dada, que não diferem muito do que faz funciona-
lismo n,a sociologia e, com mais rigor, porque não aspirando a
nenhuma dialética, o estruturalismo 'na antropologia.
Marx manifestamente. como 'Se evidencia nos mesmos tex-
tos usados por Balibar, referia-se ao geral no sentido indicado
pôr mim: "a produção em geral é uma abstração, mas uma abs-
tração razoável, pelo fato de que põe em relevo e fixa o caráter
comum, poupando-nos, portanto, as repetições. Este caráter
geral, entretanto, ou este elemento comum, discriminado pela
comparação, está organizado de maneira complexa e diverge em
diversas determinações" (*).

(*) Cito a partir da tradução de F. Fernandes da Contribllição li


Critica da Economia Polttica, São Paulo, Editora Flama; 1946. Ba-

117
E, no msmo livro, diz Marx explicitamente:
"Em resumo: todos os graus de produção possuem em
comum certas determinações que o pensamento generaliza;
mas, as chamadas condiçóes gerais de toda produção não
são outra coisa senão esses momentos abstratos, os quais
não explicam nenhum grau histórico real da produção"
(p. 207).

Creio que não é preciso acrescentar mais nada para de-


monstrar o equívoco e o infundado destas interpretações que
estão na moda.
Voltemos ao que nos interessa substantivamente. Poulant·
zas, na caracterização que faz das classes sociais, guiado ainda
pela inspiração althusseriana, propõe uma distinção entre rela-
ções de produção e relações sociais de produção que, a meu ver,
tão pouco encontra cabida na metodologia marxista.
A idéia básica de Poulantzas, a este respeito, é a de que as
classes sociais na teoria marxista devem ser pensadas como o
resultado dos efeitos pertinentes das três instâncias regionais
fundamentais, a economia, a do político e a ideol6gica sobre os
agentes que constituem o suporte das estruturas corresponden-
tes àquelas três instâncias:
"Mais exatamente, a classe social é um conceito que
indica os efeitos do conjunto das estruturas, da matriz de
um modo de produção ou de uma formação social sobre os
agentes que constituem seus suportes: este conceito indica,
portanto, os efeitos da estrutura global no domínio das re-
lações sociais" (Pouvoir PoZitique et OlaSlfeS BociaZes, p. 69).

A linguagem complicada da definição deriva da necessidade


teórica que Poulantzas sente de ressaltar que o conceito de
classe não tem no marxismo o mesmo estatuto teórico dos con-
ceitos que se referem às estruturas regionais ou parciais da
estrutura global, a saber, a econômica, a política e 6 ideol6gica.
Não permite fundamentar, por conseqüência, a sociologia como
disciplina regional autônoma. E, por outro lado, o conceito de
classe refere-se a "relações sociais" e não a estruturas, no senti-
do forte e teórico da expressão:

Iibar traduziu a parte final dizendo: "este caráter geral, ou estes tra·
ços comuns, que a comparação permite destacar, formam, eles próprios,
um conjunto muito complexo do qual os elementos divergem por re-
vestir determinações muito diferentes". Lire le Capital, II, p. 326.

118
"entre o conceito de classe, denotando relações SOC18J.S, e
os conceitos que denotam éstruturas, não existe homogenei-
dade teórica" (p. 70).

E ainda:
"a classe social não pode ser apreendida teoricamente co-
mo uma estrutura regional ou parcial da estrutura global,
nos mesmos termos por exemplo em que as relações de
produção, o Estado ou a ideologia. constituem efetivamente
estruturas regionais" (p. 69).

As classes passariam a ser, portanto o efeito dessas várias


estruturas sobre os agentes sociais. Denotariam processos e
relações, ou, para usar a linguagem de certo tipo de sociologia
em que finalmente essa caracterização corre o risco de cair: são
interações.
Novamente aqui transparece a concepção do real e do
objeto de pensamento composto por várias camadas estrutu-
radas, relativamente independentes entre si e que produzem
"efeitos", "conseqüências" sobre o comportamento social. Não
vou repetir a crítica metodológica já feita para mostrar que não
é este o procedimento que Marx usa para conceptualizar e para
explicar. Está dito expressamente por Marx no texto do post-fa-
cio da Crítica da Economia Política que, do ponto de vista con-
ceptual, as classes são relações cuja determinação se enriquece
através de outras tantas determinações como capital, trabalho
assalariado etc. É a síntese dessas determinações que permite a
reconstituição das totalidades concretas. Não há diferenças de
status teórico-metodológico, neste sentido, entre os conceitos
"econôJJ).icos", os conceitos "ideológicos", os "políticos" e o
conceito de classe. Mesmo porque Marx não pens,ava em ter-
mos de "instâncias regionais". Entretanto, as totalidades con·
eretas para Marx (como de resto também para Althusser) não
são indeterminadas. E Poulantzas criou um conceito de classe
que é indeterminado na medida em que as classes podem ser
"efeitos pertinentes" tanto das estruturas econômicas como de
estruturas políticas e ideológicas.
Para justificar isso e as diferenças que estabeleceu Pou-
lantzas "releu" os textos de Marx, estabelecendo uma distinção
que o autor não fazia entre "relações de produção" (relativas
à estrutura econômica) e "relações sociais de produçãO" (rela-
tivas aos efeitos das outras estruturas sobre a estrutura social,
concebida esta última como uma categoria·efeito). Poulantzas

119
diz explicitamente, o que é certo, que esta distinção não era
feita por Marx. Sem ela (et por cause . .. ) não seria possível
pensar o domínio dos "efeitos de classe" como uma instAneia à
parte, embora subordinada às estruturas do econômico, do po-
lítico e do ideológico. Por isso Poulantzas se vê obrigado a
criar uma distinção que não só não existia em Marx como
é contrária a seu método, na medida em que este não supõe
este tipo de recorte abstrato da realidade.
A discussão apresentada por Poulantzas para criticar o
"economismo" e o "historicismo" - que quase se transformam.
em duas enteléquias - é feita em bases equivocadas. A "uni-
dade do método" marxista, seu procedimento sintetizador de
passagem do abstrato para o concreto, permitem a critica àquelas
tendências de uma forma direta e simples, sem que se incorra,
por outro lado, no risco do "politicismo" ou do "ideologismo")
do qual os textos de Poulantzas nem sempre escapam.
Por fim, é preciso reafirmar que para Marx as totalidades
concretas são determinàdas. Nesta determinação, no caso das
classes sociais, conceitos que, no dizer de Marx, se referem a
situações que existem "em fases históricas determinadas do
desenvolvimento da producão" (carta de 5/3/1852 a Wevde-
meyer), as relações de produção jogam um papel decisivo. Nem
foi outra, jamais, a compreensão de todos os autores marxistas
que escreveram sobre o assunto. E nisso não vai qualquer
"economismo". A organização da sociedade em classes, em
oposição a outras categorias de estruturação social, quer dizer
simultaneamente o primado do modo de produção ~apitalista,
no qual o econômico, em última instância. determina etc., etc.:
para que repetir o padre-nosso ao vigário?
Justamente porque' o marxismo não elabora cat~orias ge-
rais (o econômico em geral, o político em geral, as classes em
geral etc.) não exist~ o fantasma do economicismo na compreen-
são das classes sociais como categorias economicamente deter·
minad!ls: elas, como conceito, só se aplicam a situações nas
quais a distribuição social dos homens na producão é o critério
fundamental - desta situação ou modo de produção particula,
- para a estruturação das camadas da população. .
*
* *
No trabalho sobre Las Clases Sociales Poulantzas, quando
se refere às. categorias sociais, como a burocracia ou os intelec-

120
tuais, bem como quando se refere às frações de classe, utillia
. o método marxista tomando as precauções que 'issinalei acima.
Ou seja, não se esquecendo que para a determinação da posição
de classe as relações de produção constituem base fundamental.
Entretanto, resquícios de sua interpretação inicial contida em
Pouvoir Politique et Classes Sociales permanecem presentes em
algumas formulações. Por exemplo:
"Pertencer ou não à classe operária para este grupo
social (técnicos e assalariados vinculados organicamente à
empresa) cujo desenvolvimento no seio das empresas se
acha vinculado à produção moderna, depende dos critérios
pollticos e ideológicos, especialmente: qual é sua consciên-
cia de classe? e qual é sua posição polltica concreta no
seio da empresa? ( ... ) A questão decisiva que se suscita
assim, quanto à sua atribuição de classe, é a de saber se
essa "autoridade" na organiZação capitalista "despótica" de
trabalho é que tem primazia na prática politica efetiva, ou
entl.o se é sua solidariedade com a classe operária" (pp.
14-15).

A análise da posição política dos grupos na luta de classes


é, efetivamente, requisito indispensável para a caracterização
concreta das classes sociais. Neste sentido, não tenho qualquer
reparo a fazer à interpretação de Poulantzas, seja com respeito
aos grupos referidos na citação 'icima, seja, por exemplo, quando
analisa as oposições entre "burguesia nacional" e "burguesia
entregada" (p. 24). Entretanto, não se trata de critérios ideo-
16gicos e políticos, em oposição a critérios econômicos. Poulant-
zas utillia este tipo de metodologia, para escapar da distinção
entre "classe em si" e "classe para si", dada sua posição me·
todológica geral. Mas, outra vez, a crítica que tenho a fazer
é a de que a preocupação cl'!ssificat6ria induz o leitor a enga-
nos: seria conveniente ressaltar que, neste tipo de análise, o
fato de pertencer ou não a uma classe não pode ser visto sepa·
radamente do conjunto de relações que estruturam a situação
de classe. A classe não é um atributo que se define por critérios,
por mais sutis que eles sejam, ainda que incorporem "dimen-
sões" políticas e ideol6gicas. Ao contrário, como expressa·
mente diz Poulantzas, em outros textos de seu trabalho, é pre-
ciso compreender as classes por seu lugar na divisão social do
trabalho. Esta resulta, por sua vez, do processo social de pro·
dução que, nas sociedades capitalistas "significa ao mesmo tem·
po e num mesmo movimento, divisão em classes, exploração e
luta de classes" (p. 6, grifos meus).

121
Em suma, parece-me que existe no trabalho comentado
(Las clases sociales) uma revisão das interpretações de Pouvoir
Politique et Classes Sociales. Esta revisão, se levada adiante,
conduz efetivamente à compreensão do método marxista para
a análise das classes sociais. Nele, as classes são concebidas
como dependentes do "processo histórico" (p. 44) e do pro-
cesso dinâmico da luta de classes, vistos um e outro como a
expressão de contradições estruturadas e determinadas. Entre-
tanto, para que a nova postura teórico-metodológica de Pou-
Iantzas se complete é preciso que a ruptura com o formalismo
da interpretação althusseriana do marxismo seja explícita, que
ultrapasse o âmbito das análises de situações, e que leve à
redefinição de sua análise da metodologia marxista.

122
CAPÍTULO VI

"TEORIA DA DEPENDtNCIA" OU
ANÁLISES CONCRETAS DE
SITUAÇÕES DE DEPENDtNCIA? (*)

Nos últimos anos a insistência com que se tem falado na


América Latina sobre a dependência e as confusões em tomo
do tema são tantas que a primeira reação de quem, de qualquer
forma, tem alguma parte de responsabilidade na proposição do
tema é a de fazer o mea culpa. Por outro lado, parece quase
inútil entrar numa discussão quando ela já assumiu uma cono-
tação ideo16gica tão forte que se toma difícil analisar os textos
e as idéias em que se apóia.
O mea culpa a que me refiro não deriva do reconheci-
mento de um equívoco intelectual quanto ao ponto de partida,
mas decorre de que poderia ter sido previsto o efeito de um
movimento crítico que partia de idéias que roçam a ideologia
e que, por isto mesmo, provavelmente terminaria mergulhado
nela.
Nos trabalhos que escrevi sobre dependência existe uma
dupla intenção crítica. Por um lado - e este aspecto da crí-
ticaparece-me que ficou claro, e foi menos combatido - criticam-
-se as análises do desenvolvimento que abstraem os condiciona-
mentos sociais e políticos do processo econômico e criticam-se as
concepções evolucionistas (das etapas) e funcionalistas (espe-

(*) Texto apresentado no 2.° Seminário Latino-americano para


el DesarroUo (promovido pela FLACSO. sob o patrocício da UNES-
CO em novembro de 1970, Santiago, Chile) para comentar a comu-
nicação de F. C. Weffort. "Notas sobre a teoria da dependSncia:
teoria de claue ou ideologia nacional ?"

12J
cialmente a teoria da modernização) do desenvolvimento. A
crítica se faz mostrando-se que o desenvolvimento que ocorre
é capitalista e que não pode desligar-se do processo de expansão
do sistema capitalista internacional e das condições políticas em
que este opera. Por outro lado, a crítica se orienta para mos-
trar - o que é óbvio, mas nas análises fica muitas vezes relega-
do a segundo plano - que a análise "estrutural" dos processos
de formação do sistema capitalista só tem sentido quando refe-
rida historicamente. Que quer dizer isto?
Quer dizer, basicamente, que as estruturas condicionantes
são o resultado da relação de forças entre classes sociais que se
enfrentam de forma específica em função de modos determinados
de produção. Trata-se, portanto, de valorizar um estilo de aná-
lise que apanha os processos sociais num nível concreto.
Ora, a partir deste momento, a crítica não se orienta ape-
nas contra "a direita", mas também contra setores, em geral
preponderantes, da esquerda intelectual. Teoricamente é insa-
tisfat6rio substituir as análises inspiradas na "teoria do desen-
volvimento" por outras tantas que insistem, de forma geral e
indeterminada, em que o processo do desenvolvimento capita-
lista se dá em proveito da burguesia e de que nas condições da
América Latina e do desenvolvimento do capitalismo interna-
cional ele é uma expressão do imperalismo.
Daí a idéia, simples e, parece-me, dara, de que a utilização
da noção de dependência s6 ganha sentido e é de proveito
quando põe em evidência que:
"el concepto de dependencia ( ... ) pretende otorgar signifi-
cado a una serie de hechos y sltuiLclones que aparecen con-
juntamente en un momento dado y Se busca establecer por
su intermedio las relaciones que hacen lnteligibles las situa-
clones empfricas en funclón deI modo de conexión entre los
componentes estructurales internos y externos. Pero lo ex-
terno, en esa perspectiva, se expresa también como un mo-
do particular de relación entre grupos y clases sociales en
el ambito de las naclones subdesarrolladas" (l) •.

Páginas adiante no mesmo livro se explicita mais ainda


que o conceito de dependência será utilizado como "um tipo de
concepto "casual-significante" - implicaciones determinadas

(1) CARDOSO, F.H. e FALETTO, E. - D,/J,ndeneill , d,-


SII"I>llo ,n ÁmI,iclJ úljnll, Máico, Sigl0 XXI, 1969. pp. 19-20.

124
por un modo de relación historicamente dado - y no como
concepto meramente mecánico-causal, que subraya Ia determina.
ción externa, anterior, para luego producir consecuencias inter·
nas"(l ).
Com o conceito de dependência, buscava-se revalorizar,
portanto, dois aspectos de significação metodológica precisa:

a) as análises do processo histórico de constituição da perife·


ria da ordem capitalista internacional devem explicar a di-
nâmica da relação entre as classes sociais no nível interno
das nações (no caso das situações de dependência mantidas
a partir da existência de Estados Nacionais);
b) os condicionantes externos, isto é, o modo de produção
capitalista internacional, "o Imperialismo", o mercado ex-
terno etc. (ou seja, tanto os aspectos econômicos como os
políticos do capitalismo), reaparecem inscritos estrutural·
mente tanto na articulação da economia, das classes e do
Estado com as economias centrais e com as potências do-
minantes, como na articulação dessas mesmas classes e no
tipo de organização econômica e política que prevalece
no interior de cada situação de dependência.

Assim, a noção de dependência (2) é apresentada para por


ênfase em um tipo de análise que recupera a significação polí.
tica dos processos econômicos e que contra a vagueza das aná-
lises pseudomarxistas que vêem no imperialismo uma enteléquia
que condiciona apenas do exterior o processo histórico dos países
dependentes, insiste na possibilidade de explicar os processos
sociais, políticos e econômicos a partir das situações concretas
e particulares em que eles se dão nas situações de dependência.

(1) Idem - op. cit., p. 20.


(2) Por iltO, não se postula, como adiante se reafirmará, o con-
ceito de dependência ceimo "totalizante": "Sin embargo, no leria su-
ficiente ni correcto proponear la subltituci6n de 101 conceptos de de-
sarrollo y subdesarrollo por los de economía central y economía peri-
férica o - como le fuesen una síntesis de ambos - por los de eco-
nomias aut6nomas y economias dependientes. De hecho, lon distintas
tanto las dimensiones a que eltos conceptoa le refieren como su signi-
ficaci6n te6rica. La noci6n de dependencia alude directamente a las
condiciones de existencia y funcionamiento deI sistema econômico y
deI sistema político, mostrando las vinculaciones entre ambos, tanto
en lo que se refiere aI plano interno de los paísel como aI externo".
- (CARDOSO, F.H. y FALETTO, E. - 01' cit., p. 24).

125
Evidentemente, não há qualquer proveito, a partir daí,
em substituir simplesmente "o Imperialismo" por outra entelé-
quia, "a Dependência". Não foi isso que se fez no ensaio refe-
rido acima, nem em trabalho posterior que escrevi sobre a
ideologia da burguesia industrial em países dependentes.
A utilidade e a significação teórica da noção de dependên-
cia, tal como a concebemos, reside precisamente no contrário:
na recuperação a nível concreto, isto é, permeado pelas media-
ções políticas (inclusive o Estado Nacional) e sociais (de acordo
com a formação histórica das classes sociais em cada situação
de dependência), da pugna de interesses por intermédio da qual
se vai impondo o capitalismo ou a ele se vão opondo forças
sociais por ele mesmo criadas.
Está claro que o suposto teórico mais geral que torna
possível este enfoque é o de que não existe a distinção metafí-
sica entre os condicionantes externos e os internos. Noutros
termos: a dinâmica interna dos países dependentes é um aspecto
particular da dinâmica mais geral do mundo capitalista. Porém,
essa "dinâmica geral", não é um fator abstrato que produz
efeitos concretos; ela existe por intermédio tanto dos modos
singularizados de sua expressão na "periferia do sistema", como
pela maneira como o capitalismo internacional se articula. Essa
"unidade dialética" é que leva a recusar a distinção metafísica
(isto é, que supõe uma separação estática) entre fatores exter-
nos e efeitos internos, e por conseqüência leva a recusar todo
tipo de análise da dependência que se baseia nesta perspectiva.
Quer isto dizer que não existem "fatores externos", ou
que, por exemplo, a forma que a produção capitalista adota nos
centros industrializados não "afeta" a periferia? Obviamente
não. Quer dizer, simplesmente, que as mudanças ocorridas "no
centro" são concomitantes, estão relacionadas e encontram, ex-
pressão concreta em outras tantas mudanças na periferia. Assim,
por exemplo, se o "conglomer,ado multinacional" passa a pre-
valecer como forma de organização da produção, ele prov~ca
uma reorganização da divisão internacional do trabalho e leva
à rearticulação das economias periféricas e do sistema de alian·
ças e de antagonismos entre as classes nos dois níveis, interno e
externo. Entretanto, a "expressão concreta" que o modo capi.'
talista de produção vai encontrar nas áreas dependentes não é
",automática": dependerá dos interesses locais, das classes, do
Estado, dos recursos naturais etc. e da forma como eles se
foram constituindo e articulando historicamente. ..

126
Nisto reside talvez a vantagem fundamental da utilização
. da perspectiva da dependência nas análises: desloca-se a expli.
cação de um plano simplista do condicionante externo sobre o
interno para uma concepção mais integrada do relacionamento
das partes que compõem o sistema capitalista internacional.
Substitui-se um estilo de análise baseado em determinações ge-
rais e abstratas (que insistem no imperialismo, na luta de classes,
na burguesia e na revolução como conceitos gerais ou, no me-
lhór dos casos, como contradições indeterminadas) por outro
que procura situar concretamente cada momento significativo de
modificação da produção capitalista internacional, mostrando
como se dá a rearticulação das classes sociais, da economia e do
Estado em situações particulares. Ao deslocar dessa forma o
núcleo das explicações do processo histórico, assegura-se, ao
mesmo tempo, a possibilidade de encontrar vias distintas de
rearticulação de uma situação de dependência para outra, de um
período para outro. Em resumo, aceita-se que existe uma "his-
tória" - e portanto, uma dinâmica, própria de cada situação
de dependência.
Está claro que seria ingênuo pretender transformar a no-
ção de dependência num conceito totalizante. A referência
feita por Weffort seria correta se correspondesse a autores dis-
tintos dos que alude:
"em dadas condições SOCiaiS e pol1ticas internas (que só
podem ser resolvidas por uma análise de classe), os grupos
que detêm a hegemonia, ou seja, que dão conteúdo à idéia
de Nação, podem usar a autonomia politica para a integra-
ção econômica. Noutras palavras, não creio que estejamos
autorizados, por uma referência à Nação, a precisar a de-
pendência como conceito totalizante que nos daria o prin-
cipio do entendimento da sociedade como conjunto" (WEF-
FORT, F. C. - Notas sobre a "Teoria da dependência: teo-
ria de classes ou ideologia nacional?", p. 10 (.) ( •• ).

Eu, tampouco, creio nisso.

(.) Em versão posterior, Weffort modificou a redação, sem alte-


rar, contudo, o fundamental. Substituiu a frase final pela seguinte:
"Em realidade, não creio que a referência ao Estado-Nação seja pre-
missa segura para a caracterização de um conceito que nos daria o
principio do entendimento da sociedade como conjunto". Estudos 1,
CEBRAP, S. Paulo, 1971, pág. 9.
(.. ) Ao longo deste trabalho, as citações liberais e as páginas
às quais remeto o leitor se referem ao texto original de Weffort, apre-
sentado ao Seminário da FLACSO.

127
A noção de dependência, teoricamente, não pode fazer
mais do que assinalei nas páginas anteriores. Até por entendi-
mento semântico, quem depende, depende de algo; está condi-
cionado, não é condicionante. Pretender elevar a noção de de-
pendência à categoria de conceito totalizante é um non senso E,
rigorosamente não é possível pensar numa "teoria de dependên.
cia". Pode haver uma teoria do capitalismo e das classes, mas
a dependência, tal como a caracterizamos, não é mais do que a
expressão política, na periferia, do modo de produção capitalista
quando este é levado à expansão internacional.
Entretanto, Weffort em sua crítica - apesar de haver
chamado a atenção para implicações teóricas importantes das
análises de dependência - caiu numa espécie de armadilha:
voltou atrás, do mesmo modo como Kautsky deu um passo
atrás nas análises do social-liberal Hobson sobre o imperialismo,
como disse Lênine. Assim, voltou a conceber estaticamente a
relação interno-externo e a recorrer a uma dialética abstrata de
contradições gerais e indeterminadas.
No âmago da crítica está a idéia de que a ambigüidade do
conceito de dependência, que ora se refere à "dependência ex-
terna", ora à relação estrutural externo-interno, decorre em
qualquer das duas acepções de que:
"ela oscila, irremediavelmente do ponto de vista teórico,
entre um approach nacional e um approach de classe. No
primeiro, o conceito de nação opera como uma premissa de
toda a análise posterior das classes e relações de produção;
ou seja, a atribuição de um caráter nacional (real, possivel
e desejável) à economia e à estrutura de classes joga um
papel decisivo na análise. No segundo, pretende-se que a
dinâmica das relações de Wodução e das relações de classe
determine, em última instância, o caráter (real) do pro-
blema nacional" (Weffort, F. C. - op. cit., p. 7).

Weffort atribui o primeiro approach aos "teóricos do de-


senvolvimento" e o segundo aos "teóricos da dependência".
Mas acrescenta que estes "tendem para o segundo approach mas
partem do primeiro e tratam de criticá·lo".
Weffort crê que o advérbio de sua frase sobre o conceito
de dependência, que oscila irremediavelmente entre a classe e a
nação, revela uma disjuntiva teórica da qual não escapamos,
Faletto e eu:
"A pergunta que se poderia colocar para os autores é
a seguinte: trata-se de uma contradição real ou de am),i-

128
gUidade do conceito que pretende definir uma perspectiva
totalizante a partir da' idéia de nação? Concordo em que a
existência de palses (nações) economicamente dependentes
e politicamente independentes constitui uma "problemática
sociológica" importante. Mas tenho minhas dúvidas de que
a reprodução do problema no plano do conceito ajude a
resolvê-lo" (Weffort, F. C. - op. cit., p. 9).

Minha resposta é: trata-se de uma contradição real, e em


ne'nhuma hipótese, da definição de uma perspectiva teórica
totalizante.
Em nossas análises quisemos evitar essa espécie de dialé-
tica formal, que vê na história o desdobramento de contradições
unívocas. Substituímos este tipo de dialética pelo que, na lin-
guagem da moda, se diria uma concepção das contradições como
"complexamente - estruturalmente - desigualmente determi-
nadas" ou "sobredeterminadas". Por isto, insistimos em que a
contradição entre as classes nas situações de dependência inclui
contradições específicas entre a nação (o Estado), e o imperia-
lismo e entre os interesses locais das classes dominantes e seu
caráter internacionalizante.
Não se reproduz um problema no conceito, mas se consti-
tui o conceito de dependência saturado historicamente das con·
tradições particulares que lhe dão sentido, em sua relação com
as contradições gerais (isto é, com as que derivam da expan-
são do modo de produção capitalista internacional) numa com-
binação determinada, concreta. Este procedimento é simples-
mente ortodoxo, sempre e quando não se caia no equívoco de
pensar que o conceito de dependência é totalizante (como o de
mais-valia ou de modo de produção) ou que está definido no
campo teórico como parte categorial do modo de produção.
Teoricamente, o conceito de dependência é "reflexo", isto é,
decorre da instauração de um modo de produção que supõe
a acumulação por meio de monopólios e da repartição do mundo
entre nações imperialistas, como diria Lênine. Será explicado
por conceitos que constituem a teoria do capitalismo na fase
imperialista, não explicará - obviamente - o imperialismo.
Quando, entretanto, o conceito de dependência se refere às
formações sociais - como no caso de nosso ensaio - o proce-
dimento adequado para constituí·lo teoricamente é o de reter
conceptualmente as contradições que ele quer expressar.
Noutros termos, com a noção de dependência, não se pode
(nem se desejou) substituir a análise de classes pela Je nações,

129
mas a disjuntiva. não é correta porque alude a conceit!Js cujo
estatuto teórico é desigual. Precisamente o que se pretendeu
foi mostrar que concretamente, isto é, sem apelar para as con-
tradições gerais e indeterminadas das idéias abstratas de classe,
nação, Estado ou imperialismo, a contradição entre as classes,
nos países dependentes, passa por uma contradição nacional e
se insere no contexto mais geral de uma contradição de classes
no plano internacional e pelas contradições que derivam da exis-
tência de Estados nacionais.
A solução que Weffort apresenta para o problema da
oposição classe-nação ( *) não se sustenta porque parte de vários
enganos: nem a nação foi por nós concebida como princípio
teórico explicativo, nem se colocou qualquer questão nacional
ou de dependência em geral. Por outro lado, a referência a
uma "perspectiva de classe", de modo indeterminado como faz
Weffort, é insuficiente para uma análise social concreta.
Ao contrário, no ensaio criticado, aceitou-se como contra-
dição sobredeterminante a produção capitalista internacional.
Apesar disso, se algum progresso houve na análise da dependên-
cia foi a de se haver particularizado situações de dependência,
constituídas sempre considerando-se simultaneamente a relação
interno-externo: economias de enclave, produtores e exportado-
res nacionais, internacionalização do mercado, por um lado, e,
por outro, capitalismo competitivo, capitalismo monop6tico. En-
tretanto, outra vez aqui essas determinações não foram tomadas
sob forma geral, mas, ao contrário, segundo o modo como se
foram constituindo em cada país. Assim, mesmo a idéia de "ca-
pitalismo monop6lico" não foi tomada como um "abre-.!e Sésa-
mo", mas foi redefinida segundo o modo como ele se 6rganizou
nos países hegemônicos (Inglaterra, EUA) e segundo o tipo
particular de organização capitalista (predomínio financeiro, in-
dustrial, industrial-financeiro). Não se deixou de considerar,
inclusive as mudanças ocasionadas no nível puramente organiza-
tório das empresas, como, por exemplo, formação dos conglo-
merados.

(*) "Na minha oplmao, a ambigüidade Classe-Nação presente


na "teoria da dependência" deverá resolver-se em termos de uma pers-
pectiva de classe, para a qual nem existe uma "questão nacional" em
geral (ou a dependência em geral) no sistema capitalista, nem a na-
ção é concebida como um princípio te6rico explicativo" (WEFFORT,
F. C., op. cit., p. 8).

130
Tanto a nação não foi concebida como um princípio expli-
cativo, que na terceira situação fundamental de .dependência
aludida no ensaio criticado, o traço característico é o de interna-
cionalização. Entretanto, isto foi erroneamente visto por Wef-
fort em termos de que "os autores estiveram no limite de aban-
donar a idéia de nação como premissa teórica e passar, de forma
radical, a uma perspectiva informada, sem ambigüidade, nas re-
lações de produção e nas relações de classe". Não seria possível
abandonar o que não se assumira. Como o que nos interessava
era a caracterização de situações concretas de dependência, in-
sistiu-se em que a nação e o Estado nacional, de lato, como
objeto de estudo e não como perspectiva de análise, perderam
o significado anterior. Como conceito, entretanto, a dependên-
cia, mesmo na situação de internacionalização do mercado, na
medida em que busca caracterizar as relações entre classes con-
cretamente situadas, precisa captar o tipo de contradição que
subsiste entre o modo de produção prevalecente, as classes so-
ciais e a organização política, inclusive a nação e o Estado
nacional.
E foi isso que se fez, brevemente, nas últimas paglnas do
livro. Em termos teórico-metodológicos seria uma volta atrás,
num ensaio que caracteriza situações de dependência, insistir
apenas nas contradições gerais entre relações de produção e rela-
ções de classe, como pretende Weffort, sem mostrar que elas se
articulam, ainda hoje, através do Estado e da nação. Não se iria
além de petições de princípio e de uma dialética ao nível da
oposição abstrata entre conceitos, se deixássemos de caracterizar
precisamente a "ambigüidade" da situação, sempre e quando se
entenda, como o fizemos, que neste caso essa ambigüidade nada
mais é do que a forma como a contradição aparece, ao nível da
percepção dos agentes. Uma análise dialética que não marcasse
as ambigüidades e que passasse sem mediações das relações de
produção às relações de classe não seria uma análise concreta
de movimentos sociais estrutural-historicamente condicionados,
que foi o que pretendemos fazer.
Nessa mesma ordem de idéias, tão-pouco tem sentido con-
trapor as análises das situações de dependência com a análise
de Marx sobre o modo capitalista de produção, De um lado
porque aquelas se referem a formações sociais e Marx, ao ana-
lisar situações concretas, obviamente não descurou de coosi-
de'ar os Estados e as nações. Por outro lado, o problema não
está em que Marx tenha escolhido a Inglaterra como exemplo

131
para a investigação teórica "das leis gerais do sistema capita-
lista, concebido como universal" (sic), como escreveu Weffort,
mas sim em que no modo de produção capitalista analisado por
Marx, o suposto era o da livre concorrência e não a produção
monopólica e menos ainda o da expansão imperialista. Seria
incrível supor hoje que a análise não devesse considerar os mo-
nopólios, o imperialismo e, como decorrência, a dependência ...
Quanto às teorias da transição política, e os equivocos na
consideração dos modelos clássicos, francamente não conheço
quem, inspirado em análises de dependência tenha pensado em
transformar a burguesia nacional no "ator privilegiado". Pare-
ce-me, pelo contrário, que foram os autores que sustentaram a
importância da análise da dependência os que mais criticaram
essas analogias e os que mais insistiram na internacionalização
das burguesias nos países dependentes. Ainda uma vez, a crí-
tica aqui se endereça a uma idéia que Weffort atribui aos ana-
listas da dependência - a de que para eles a Nação é o verda-
deiro conceito explicativo - mas que não encontra apoio no
pensamento e no contexto da obra desses autores. Antes parece
ser uma preocupação - legítima como problema - do próprio
Weffort, que percebe a importância da Nação como instância
mediadoN.
Tanto é assim que estou de' acordo com Weffort quando
afirma que:
"li: ao nivel geral, supranacional, ao nivel das relações
de produção, que a questão das possibilidades de desenvol-
vimento do capitalismo na América Latina deve ser colo-
cada, do mesmo modo que é a este nivel que seria possivel
tentar encontrar algum lugar teórico definido para uma
"teoria de dependência". Ou seja, é a este nivel que a "teo-
ria de dependência" pode aparecer como teoria explicativa
e onde também se pode obter alguma sugestão para enten-
der sua incapacidade de ir além das premissas nacionais.
Por mais que se fale em jdependência interna é inevitável
voltar à questão de dependência externa. Em outras' pala-
vras, a "teoria da dependência" parece girar em torno de
algum tipo de teoria do imperialismo; a questão é de saber
de que tipo de teoria" (Weffort, F.C. - op. cit., p. 15 (*).

(*) Cito baseando-me na versão original. A que se apresenta


em Estudos 1 (cf. p. 14) altera apenas uma referência: a de que é
no nível das relações de produção que se deve encontrar o lugar teó'
rico para o "problema nacional". Parece-me, novamente, uma simpli-
ficação de quem pensa numa dialética sem mediações, urdida na teia

132
- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -......

Entretanto, à questão não é saber a que teoria do imperia-


lismo se liga a idéia de dependência, mas sim a de reelaborar a
teoria do imperialismo, de modo a mostrar como se dá a acumu-
lação de capitais quando se industrializa a periferia do sistema
capitalista internacional. Eu concordo com Weffort nas críticas
a Baran e à noção de excedente. Não concordo, todavia, com a
maneira simplista como resolve o confronto entre a "teoria da
dependência" e a teoria do imperialismo. Por várias razões.
A primeira é a de que não existe uma teoria da dependência
independentemente da teoria do imperialismo. O confronto é
artificioso. As situações de dependência decorrem da existência
de algum tipo de expansão de capitalismo. Isto foi enfatizado
sempre pelos autores citados por Weffort. A segunda é que
Lênine, como indica Weffort, estava interess.ado na elaboração
de uma explicação econômica (pois, como afirma no pr610go às
edições francesa e alemã de 1920, a censura tzarista o obrigou
a concentrar-se na análise econômica e a referir de modo menos
direto às implicações políticas do tema), ligada a problemas re-
ferentes aos países imperialistas (Weffort, F. c., op. cit.) p. 19).
Mas aqui é preciso notar que Lênine não estava preocupado
apenas com as duas questões referidas por Weffort - a da
aristocracia operária e a da inevitabilidade da guerra - mas,
principalmente, com o novo papel do capital financeiro e com a
repartição do mundo entre as associações de capitalistas e entre
as grandes potências, literalmente.
Assim, como o foco de Lênine era a análise das potências
imperialistas, e das economias monopolistas, não teria que se
referir, continuamente, aos países dependentes, mas aos países
imperialistas. Como sublinhou o próprio Weffort (contraria·
mente à sua argumentação), os países - e os Estados nacionais
- constituem neste tipo de enfoque unidade de análise indis-
pensável e, de fato, o foram no texto de Lênine. Seu problema
era o de mostrar que "eI paso deI capitalismo a la fase de capi-
talismo monopolista, aI capital financiero, se halla relacionado
can la exacerbaci6n de las luchas por eI reparto deI mundo"(4)

de con~radições indeterminadas. A outra diferença entre as duas ver-


sões é que na atual se faz referência a uma teoria socialista e a outra
"pequeno-burguesa radical". Não acredito que a adjetivação substitua
o rigor e o vigor da demonstração.
(4) LtNINE, V. I. - EI imperialismo: fase su/erior dei capi-
talismo. Buenos Aires, Lautaro, 1946, p. 103.

133
e que estas eram lutas entre Estados nacionais, entre potências
imperialistas.
Entretanto, Lênine se refere também à constituição de si-
tuações de dependência, em termos que não diferem dos susten-
tados por Faletto e por mim (5):
"Puesto que hablamos de Ia politica colonial de Ia épo-
ca deI imperialismo capitalista, es necesario hacer notar
que el capital financiero y Ia politica internacional corres-
pondiente, la cual se reduce a la lucha de las grandes po-
tencias por eI reparto econ6mico y politico deI mundo, crean
una serie de formas de transición de dependencia nacional.
Para esta época son tipicos no s610 los dos grupos funda-
mentales de paises que poseen colonias, y as colonias, sino
también Ias formas variadas de Estados dependientes, po-
liticamente independentes, desde un punto de visto formal,
pero, en realidad, envu~ltos por la red de Ia dependencia
diplomática y financiera. Una de estas formas, Ia semicolo-
nia, Ia hemos indicado ya antes. Como modelo de Ia segunda
citaremos, por ejemplo, Ia Argentina.
"La América deI Sur, pero sobre todo Ia Argentina -
dice Schulze-Gaevernitz en sua obra sobre el imperialismo
británico - , Se halIa en una situaci6n tal de dependência
financiera con respecto a Londres, que Se Ia puede casi
calificar de colonia comercial inglesa".
Según Schilder, los capitales invertidos por Inglaterra
en la Argentina, de acuerdo con los datos suministrados por
el c6nsul austrohúngaro en Buenos Aires, fueron, en 1909,
de 8,75 mil millones de francos. No es dificil imaginarse
qué fuerte lazo se establece entre el capital financiero (y
su fiel "amigo", la diplomacia) de Inglaterra y la burgue-
sia argentina y los sectores dirigentes de toda su vida
econ6mica y poUtica" (Lênine, V.!. - op. cit., p. 113).

(5) Note-se que em outras obras Lênine e Trotsky, enfren-


taram o problema de caracterizar a situação da Rússia em que ha-
veria, ao mesmo tempo, uma dependência, principalmente com rela-
ção à França, e o desenvolvimento de uma base industrial-capitaIÍsta.
Mas mesmo no estudo sobre o Imperialismo, fase superior do capitalis-
mo, Lênine caracteriza, a partir do ângulo oposto (isto é, do pro-
cesso visto a partir "do centro"), a relação externa/interna de modo
semelhante a que se fez: "los grupos monopolistas capitalistas - car-
tels, sindicatos, trusts - se reparten entre sí, en primer lugar, el mer-
cado interior, apoderandose de un modo más o menos completo, de la
producci6n deI país. Pero bajo el capitalismo, el mercado interior está
inevitablemente enlazado com el exterior. El capitalismo ha creado desde
hace ya mucho tiempo el mercado mundial" (LtNINE, V. I. - op.
cit., p. 89).

134
É, portanto, superficial a caracterização do pensamento de
Lênine feita por Weffort:
"O imperialismo não se define (para Unine) a partir
de uma premissa politica (a Nação) mas como uma fase
particular do desenvolvimento capitalista, ou seja, a partir
das relações de produção, com o aparecimento dos monopó-
lios e a fusão do capital bancário com o industrial" (Wef-
fort, F. C. - op. cit., p. 19).

Não. Lênine não tinha um pensamento economicista, nem


deixava de ver as mediações poüticas como parte inseparável
do "todo" estruturado que ele queria explicar. Ligava sempre
a fase particular da acumulação capitalista na etapa financeiro-
-monopolista com a repartição do mundo entre potências impe-
rialistas e com os efeitos dessa sobre os países coloniais e os
dependentes. Cito, ainda uma vez, dentre os muitos textos
disponíveis, em abono do que afirmo:
"Si fuera necesario dar una definición lo más breve
posible dei imperialismo, deberia decirse que el imperialis-
mo es Ia base monopolista dei capitalismo. Una definición
tal compreenderia lo principal, pues, por una parte, el ca-
pital financiero es el capital bancario de algunos grandes
bancos monopolistas fundido con el capital de los grupos
monopolistas de industriales y, por outra, el reparto dei
mundo es el tránsito de la politica colonial, que se expandia
sin obstáculos en las regiones todavia no apropiadas por
ninguna potencia capitalista, a la poIltica colonial de do-
minación monopolista de los territórios dei globo, entera-
mente repartido" (Lênine, V. I. - op. cit., p. 111).

Por fim, nesta "confrontação" entre a teoria leninista do


imperialismo e as análises da dependência, um último debate.
Weffort afirma que a noção de dependência tem sido concebida
como "superinclusiva" e que Lênine se refere ao imperialismo
como uma etapa particular, historicamente situada, do capitalismo.
É certo que em alguns textos de autores que trataram do
tema existe essa referência abrangente e a - histórica, ao con-
ceito de dependência. Eu não as subscrevo. Não é correto, en-
tretanto, afirmar que no ensaio de Faletto e meu, ocorra isso.
Como já disse, se alguma vantagem teórico-metodológica existe
na análise que fizemos das situações de dependência, essa pare-
ce-me ter sido a de caminhar no sentido de maior concreticidade.
Não falamos da dependência em geral, mas de situações de de-
pendência. Dependência na fase de constituição do Estado na-
cional e de formação de uma burguesia exportadora, dependên.

135
cia na situação de enc1ave e dependênci.a na et6pa de interna-
cionalização do mercado na fase de formação de economias
industriais periféricas. Subdividimos ainda mais estas "fases",
mostrando que não constituem etapas, mas formações sociais
específicas que supõem, às vezes, arranjos particulares que con·
têm a existência das três situações, embora sempre estruturadas
de forma sobredeterminada.
É certo que nos referimos à dependência num período an-
terior à plena constituição do sistema monop6lico-imperialista,
quando falamos da primeira das três situações de dependência
aqui mencionadas. A razão para isto é curial e se encontra no
pr6prio Lênine. Cito extensamente ainda uma vez:
"Lo que caracterizaba al viejo capitalismo, en el cual
dominaba plenamente la libre concurrencia era a la expor-
tación de mercancias. Lo que caracteriza al capitalismo mo-
derno, en el que impera el monopolio, es la exportación de
capital. EI capitalismo es la producción de mercancias en el
grado más elevado de sua desarrollo, cuando incluso la
mano de obra se convierte en mercancia. El incremento deI
cambio tanto en el interior deI país como, muy particular-
mente, en el terreno internacional, es el rasgo distintivo
caracteristico deI capitalismo. EI desaITollo desigual, a
saltos, de las distintas empresas y ramas de la industria,
en los distintos paises, es inevitable bajo el capitalismo.
Inglaterra se convirtió en país capitalista antes que otros,
y hacia mediados deI siglo XIX, aI introducir la libertad
de comercio, pretendió ser el "taller de todo el mundo", eI
abastecedor de articulos manufacturados para todos los. pai-
ses, los cuales debian suministrarle, a cambio de ello, ma-
terias primas. Pero este monopolio de Inglaterra se vió que-
brantado ya en el último cuarto deI siglo XIX, pues otros
varios paises defendiêndo-se por medio de aranceles "pro-
teccionistas", se habian convertido en Estados capitalistas
independientes. En el umbral deI siglo XX asistimos a la
formación de monopolios de otro gênero: primero, uniones
monopolistas de capitalistas en todos los paises de capita-
lismo desarrollado; segundo, preponderancia monopolista de
algunos paises ricos, en los cuales la acumulación de capjtal
habia alcanzado proporciones gigantescas. Surgió un enor-
me "excesso de capital" en los países avanzados" (Unine,
V. I. - 01'. cit., pp. 81-82).

A dependência compatível com a formação de produtores


nacionais, é portanto, anterior ao desenvolvimento do imperia-
lismo monopolista exportador de capitais. E foi nestes precisos
termos que a caracterizamos para o caso da América Latina.
Como o "traço distintivo característico do capitalismo" (note-se,

136
- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - --

não de sua fase imperialista, apenas) é o incremento do comércio


interno e externo (coisa arquiconhecida), quando essas relações
de troca se fazem no âmbito de um comércio entre nações, elas
levam a um tipo particular de dependência, como foi o caso da
América Latina no século XIX, até ao período da "endavização".
Este último, sem "abolir" as contradições próprias da forma
anterior de dependência, agregou novos e particular~s tràços
distintivos, agora sim, da fase imperialista.
Por fim, convém deixar claro que a teoria leninista do
imperialismo é insuficiente para explicar o que ocorre nas situa"
ções contemporâneas de dependência que se dão em países cuja
industrialização se faz sob controle do capital financeiro inter-
nacional.
Deixando de lado a discussão talmúdica (6) a que fomos
levados para evitar incompreensões, convém sublinhar que ao
analisar o novo caráter da dependência (e neste ponto as contri~
buições de Teotônio dos Santos e de seu grupo são significati-
vas ), o que fizemos foi mostrar que a divisão do mundo já não
se realiza mais, como na época de Lênine, por uma anexação de
territ6rios e pelo controle político-econômico de áreas, para
garantir o domínio sobre as fontes de matérias-primas apenas.
Em Lênine, esta era a idéia predominante, que se repet~ sem-
pre. Na caracterização final sobre os quatro aspectos principais
típicos do período de que se ocupava, Lênine faz referências
diretas em duas delas, a essa característica essencial do imperia-
lismo. O primeiro aspecto do imperialismo é, naturalmente, o
da monopolização como conseqüência da concentração da pro-
~dução. Mas o segundo é que:

"los monopolios han detel"minado una tendencia cada dia


más acentuada a apoderarse de las más importantes fuentes
de materias primas, particulal"mente para la industria fun-
damental y más cartelizada de la socledad capitalista: lei
hullera y la Biderúrgtca" (Lênine, V. I. - op. cit., p. 163).

A terceira característica é a de que os monop6lios surgiram


dos bancos; já a quarta, outra vez, é a de que os monop6lios

(6) 'Sem deixar, naturalmente, 'de fazer refereneiaa criticas a


alguns erros de LSnine, como por exemplo lua consideração sobre
que "todo monopolio, engedra inevitablemente une tendeneia aI estan-
camiento y a la descomposiei6n" (LtNINE, V. I. - op. cit., p. 131).
Neste passo, Schumpeter e Galbraith enlinam mais do que U-
nine.

137·
nascem da política colonial, mas que ó capital financeiro., na
luta pela repartição do mundo, "ha afiadido la lucha por las
fuentes de materias-primas, por la exportación de capital, por
aIs "esferas de influencia", esto es, las esferas apropriadas para
realizar transaciones lucrativas, concesiones, beneficios monopo-
listas etc., finalmente, por el territorio económico en general"
(Lênine, V. L, 0po cit.) pp. 153-164).
A época histórica que vivemos é outra. Procurou-se carac-
terizar os efeitos da forma atual de organização e de controle
econômico imperialista sobre os países dependentes por inter-
médio da idéia de internacionalização do mercado interno e de
uma economia industrial controlada pelo capital financeiro mo-
nopólico nas situações em que as economias industriais depen-
dentes encontram seu mercado nos próprios países dependentes.
Para isto, a "teoria do imperialismo", tal como se encontra for-
mulada por Lênine, não é suficiente. As alianças políticas, a
estrutura das classes, as contradições particulares e sua ex.acer-
bação (7), assumem outras formas. É preciso ter imaginação
para suscitar as dúvidas pertinentes a esta nova situação e força
teórica para explicá-las como uma situação particular de depen-
dência, ligada sempre à forma que a acumulação e a exportação
de capitais adotam na economia capitalista internacional.
Foi o que se tentou fazer, correndo naturalmente os riscos
da incompreensão e do erro. Não se quis, porém, fazer uma
"teoria da dependência" apelando a uma noção totalizadora de
dependência.
Em qualquer caso, entretanto, não seria correto substituir
o que se fez, ou seja, a análise dialética de situações concretos
de dependência por uma teoria formal das classes que não as
situe num contexto no qual o imperialismo e a dependência que
lhe corresponde (isto é, a existência de potências dominantes
e nações dominadas) são referência obrigatória para a análise
das classes. Pensar que com esta substituição se agrega algo a
"uma teoria socialista da revolução na América Latina" (Wef-
fort, F. c., op. cito) p. 20 (*)) quando, como no caso, a inten-

( 7) Lênine tinha sempre presente a "correlação entre o impe-


rialismo e a intensificação da opressão nacional", e o fato de que o
"imperialismo conduz às anexações, à intensificação da opressão nacio-
nal, e, por coneguinte, também à exacerbação das contradições" (Lt-
NINE, V. lo - op. cit.) pp. 160-161).
(*) Frase suprimida por Weffort nâ última versão de sua co-
municação.

138
- - - -------------------

ção não é demagógica, constitui um equívoco que se origina


de uma interpretação formalista do que seja a dialética marxista.
Para dar passos à frente o que é necessário é ir mais longe
na análise das situações de dependência no sentido de ver, em
situações concretas, como se movem as forças sociais que podem
negar, isto é, superar a condição atual da dependência. Neste
sentido, o ensaio criticado deixa muito a desejar, pois, apesar
de sua intenção, pouco acrescentou - além de uma perspectiva
e de algumas indicações de cunho estrutural - ao conhecimento
de situações particulares capazes de revelar os limites da "re-
produção" da situação de dominação de classe em países de·
pendentes.
É nesta direção, creio, que se encontra a crítica mais legí·
tima ao .esforço feito e para ela deve caminhar quem estiver
interessado, não em fazer uma "teoria socialista" da revolução,
mas em elaborar uma teoria que permita orientar a prática, se
for o caso, de uma revolução socialista, ou que permita mostrar
as situações nas quais tal tipo de revolução se transforma mais
num anseio enraizado em ideologias do que num caminho so-
cialmente viável.

139
CAPÍTULO VII

COMENTÁRIO SOBRE OS CONCEITOS DE


SUPERPOPULAÇÃO RELATIVA E
MARGINALIDADE (*)

1 - Essas notas visam a esclarecer e debater o quadro


de referência teórica apresentado por]. Nun em "Superpobla-
cion relativa, ejército industrial de reserva y masa marginal" na
Revista Latinoamericana de Sociología, 1969/2.
2 - O ponto de partida da análise de Nun é, por um lado,
a existência de um "corte epistemológico" no pensamento de
Marx, que se consubstancia na época da redação dos Grun-
drisse (1856-1857) e por outro o enfoque (althusseriano) que
vê no Capital a "teoria particular do modo de produção capi-
talista em sua fase competitiva" (p. 180); ademais, acredita
que essa elaboração teórica é parcial, pois o que se expõe no
Capital é a "teoria regional da instância econômica desse modo
de produção nesta fase" (p. 180). Ao lado dessa teoria regional,
o materialismo histórico permitiria ainda propor uma teoria
geral dos elementos invariantes e das determinações comuns a
todos os modos de produção e várias teorias regionais que espe-
cificassem cada modo especial de produção etc.
3 - O ponto ao qual Nun almeja chegar é a estruturação
da noção da "massa marginal", Q partir da crítica da assimilação

( • ) Estas notas foram preparadas para um seminário realizado


no CEBRAP em abril de 1970. Os textos de Marx, quando não foram
reproduzidos a partir do artigo de Nun, foram extraídos das seguintes
edições:
1 - El Capital, critica de la economia poUtica, trad. castelhana de
Wenceslao Roces, México, Fondo de Cultura Económica, 1946.
2 - Fondements de la critique de l'economi, politique (Grundris.
se), trad. Roger Dangeville, Paris, Anthropos, 1967.

140
que comumente se faz entre "superpopulação relativa" e "exér·
cito industrial de reserva".
4 - Para isto, começa afirmando que "esta assimilación
resulta, sin embargo, incorreta: no solo se trata de categorias
distintas sino que se situan a diferentes niveles de generalidad.
Mientras el concepto de ejército industrial de reserva corresponde
a las teorias particulares deI modo de producción capitalista,
los conceptos complementários de "problación .adecuada" y de
"superpoblación relativa" pertenecen a la teoría general del ma·
terialismo histórico" (p. 180).
. 5 - Nun fundamenta estas distinções em um texto de O
Capital, que é o seguinte:
"en realidad, todo régimen histórico concreto de producción
tiene sus leyes de población própias, leyas que regen de
modo históricamente concreto. Leyes abstratas de probla-
ción sólo existen para los animales y las plantas, mientras
el hombre no interviene históricamente en estos reinos"
(Marx, I, p. 509 e também nos Grundrisse, voI. 11, pp. 105-
-113) •

Baseado nestes textos, Nun faz um resumo no qual insiste


em que:
a) trabalhadores e meios de produção constituem fatores
fundamentais de todas .as formas sociais de produção;
b) enquanto permanecem separados, estes elementos cons-
tituem apenas virtualmente fatores (cita texto: "para cualquer
producción, es preciso que se combinen - la manera especial
en que se opera esta combinación es la que distingue las dife-
rentes épocas econ6micas por las cuales ha pasado la estructura
social" (Marx, 1968, 11, p. 107);
c) a forma específica dessa combinação estabelece em cada
caso o "tamafio de la población que puede considerar-se ade-
cuada" (Nun, p. 181). E cita Marx para corroborar: "sus li-
mites, dependen de la elasticidad de la forma de producción
determinada; varíam, se contraen o se dilatan de acuerdo con
esas condiciones" (Marx, 1968, 11, p. 107).
d) a parte da população que excede tais limites permanece
no estado de "mero factor virt~al pues no consigue vincularse
ni a los medios de su reproducción ni a los productos: es IO
que se denomina una superpoblaci6n" (diz Nun - atribuindo
a Marx, na página 181). E cita Marx num texto em que não

141
se fala de "fatores virtuais", mas sim de que são <>s meios de
emprego e não os de subsistência que fazem o trabalhador
ingressar na superpopulação ( * );
e) com estas achegas Nun conclui, em resumo, que: "a)
los limites de la poblaci6n adecuada fijan, a la vez, los de la
superpoblaci6n, ya que la base que los determina es la misma;
b) e1 excedente de población es siempre relativo, pera no a los
medios de subsistencia en general sino aI modo vigente para su
producci6n ( ... ), y c) las condiciones de producci6n dominan-
tes deciden tanto el carácter como los efectos de la superpobla-
ción" (Nun, p. 192).
6 - Depois destas distinções Nun volta à proposição
inicial: HEI concepto de superpoblación relativa coresponde Q
la teoría general deI materialismo histórico y Marx (1968, 11,
p. 106) 10 indica de manera expressa: "Cada modo de produc-
ci6n tiene sus pr6pias leyes de crescimiento de la poblaci6n y de
la superpoblaci6n, sin6nimo esta última de pauperismo" (Nun,
p. 182).

TEORIA DA POPULAÇÃO E ACUMULAÇÃO

1 - Ainda quando se admita que houve um segundo


"corte epistemológico" no pensamento de Marx (fazendo uma
concessão à moda atual que sucede à anterior, de valorização do
"jovem Marx") e que este tenha começado nos Grundrisse (escri-
tos em 1856-1857), é inequívoco que a revisão epistemo16gica
se completa em O Capital. Os Grundrisse são notas, jamais pu-
blicadas pelo autor, às vezes confusas, e que são retomadas em
trabalhos posteriores: especialmente na Contribuição à Crítica
da Economia Política (1859) e no próprio Capital (1.0 vaI.,
1867 ). É portanto, no Capital e não nos Grundrisse onde o
pensamento de Marx aparece de forma mais articulada e onde
as diversas categorias se determinam no contexto do "modo de
produção capitalista".
2 - Digo isto porque a interpretação de Nun faz crer
que, nos Grundrisse, Marx esclarece a relação entre "teoria ge-

(*) Note-se que neste texto, Grundrisse, vol. 11, p. 109, Marx
polemizava com Malthus e por isso enfatizava que a categoria de
superpopulação é histórica e depende do capital e não dos meios
de subsistência etc.

142
ral da população", papel das superpopulações e das populações
adequadas, insistindo em que a idéia de exército de reserva, que
havia sido usada nos seus escritos juvenis deveria também sofrer
as conseqüências do já referido "corte epistemo16gico". redefi-
nindo-se. Ora, é precisamente no capítulo de O Capital sobre
"La ley general de la acumulación capitalista" (cap. :XXIII),
na seção 3 (' 'Producción progresiva de una superpoblación rela-
tiva o ejército de reserva") e na seção 4 ("Diversas modalidades
de la superpoblación relativa. Ley general de la acumulaci6n
capitalista") que Marx desenvolve a idéia de que, no modo de
produção capitalista, exército de reserva e superpopulação rela.
tiva se equivalem. Entretanto, convém lembrar que mesmo nos
Grundrisse Marx havia insistido (e Nun reproduz o texto) em
que "chaque mode de production ases propes lois de l'accrois-
sement de la population et de la superpopulation cette der.
niere étant synonyme de paupérisme" (1968, 106).
RetQrnarei ao problema adiante.
3 - Sendo assim, especialmente numa leitura "sympto.
mâle" dos textos de Marx, buscando responder a questões que
o próprio autor não se colocou, com a ajuda de textos que ti-
nham outros propósitos para o autor, se impõe um cuidado
grande antes de inovar (ou confundir) as interpretações. Espe-
cialmente quando se toma textos que são anotações do autor.
para, valendo-se deles, ampliar a perspectiva de análise de textos
acabados. Ora, a diferença entre uma "teoria geral das popu-
lações" - teoria essa que teria sido estabelecida ou, pelo me-
nos, esboçada nos Grundrisse - e a "Lei de população especí-
fica do modo de produção capitalista", não encontra apoio nos
textos de Marx e sim na interpretação de Althusser sobre o
método de Marx. Antes de demonstrar essa afirmação, repro-
duzo outro texto de Nun em que essa visão de uma "teoria
geral" e das "teorias de instâncias particulares" aparece cla-
ramente:
"Es recién en ese punto" (quando Marx comenta no
capo XXIII a lei da população do modo capitalista de pro-
dução "que va a ocurrir un desplazamiento deI centro de
análisis. El estudio deI proceso de acumulación capitalista
le ha permitido estabelecer cómo se particulariza en este
régimen la teoria general de población y de que manera se
origina una superpoblación relativa" (Nun, p. 195).

Isto é, s6 então se veria como se forma o exército de reser-


va. Com o mesmo ânimo de "lecture symptomâle", Nun insiste

143
em que, em contraposição à categoria de "exército de reserva"
- forma especlfial de superpopulação do MPC (*) - , o
"concepto de superpoblaci6n relativa coresponde a la teoria ge-
neral deI materialismo hist6rico" (Nun, p. 182), citando para
corroborar, o texto dos Grundrisse, já reproduzido acima, em
que Marx afirma que "cada modo de producci6n tiene sus pro-
pias leyes de creseimiento de la poblaci6n y de la superpobla-
dón, sin6nimo esta última de pauperismo" (Grundrisse, p.
106). Tudo isto para tirar a conseqüência metodol6gica de que:
"se ha tendido a confundir dos problemas: e1 de la génesis
estructural de una población excedente y el de los efectos
que su exlstencia provoca en el sistema. Aquellos prlncipios
generales guian el análists teórlco de los movimientos de
población propios de cada modo de producción, pero es sólo
el estudio de la estructura particular de éste e1 que per-
mite detectar las consecuencias que tiene para él la eventual
aparlción de una superpoblación relativa" (Non, p. 182).

Isto fundamentaria uma análise de função da superpopula-


ção, encarada aquela como conceito metate6rico, quer dizer, que
ordena para o observador, como linguagem, as relações de fun-
cionalidade, afuncionalidade e desfuncionalidade da relação entre'
um elemento e um conjunto. Marx, para Nun, ao estabelecer
sua lei específica da população no MPC, "nada nos dice todavía
acerca de la funcionaIídad, de la disfuncionalidad o de la aífun-
cionalidad de las relaciones que se establecen entre esa super-
población y el sistema en su conjunto" (Nun p. 191).
4 - Entretanto, o resumo feito por Nun do pensamento
de Marx nos Grundrisse contém um equívoco, a partir do qual
fundamenta Q distinção entre, por um lado, teoria geral da
população e dos excedentes e, por outro, exército de reserva: é
que os textos de Marx nos quais está baseada a interpretação
referem-se exclusivamente aos modos de produção anteriores ao
capitalismo. Este equívoco deriva metodologicamente da distin-
ção da metafísica althusseriana, entre as condições universais
de realização de todas as combit"!ações possíveis entre meios de
produção e trabalhadores (objeto da Teoria com T maiúsculo
do materialismo histórico ) e cada tipo particular de combinação,
isto é, cada modo de produção concreto. Guiado por essa inspi-
ração, Nun procurou ver no texto dos Grundrisse uma brecha

(.) Modo de produção capitalista.

144
para .a formulação da "teoria geral da população" com os con-
ceitos complementares de "população adequada" e "superpo-
pulação relativa" como componentes básicos da "teoria geral do
materialismo histórico". A estes, opôs o conceito especifico
da teoria regional do MPC, isto é, o conceito de exército de
reserva. A justificativa dessa interpretação foi feita, entretanto,
a partir de um erro de leitura, devido talvez a deficiências da
tradução francesa: Marx se referia, nos textos apontados por
Nun como relativos às condições gerais das populações adequa-
das (p. 107 dos Grundrisse), apenas às "formas antigas de pro-
dução". Isto está dito na tradução francesa, mas com uma se-
paração' de parágrafos que facilita uma interpretação menos
correta:
"Dans toutes les formes de produetion aneiennes, rap-
propriation ne reposait pas sur ,le développement des forces
produetives, mais sur un eertairirapport des individus avec
les conditions de production (formes de propriété). oelles-ci
représentaient autant d'entraves préalabZes aux forces pro-
duetives, car on se contentait de -reproduire les eonditions
existantes.
En conséqlience, l'aceroissement de la popuIation, .qui
résume à lui tout seul le développement de toutes les forces
productives, devait être vivement ressenti comme un obs-
tacZe exté1ieur, et done contrecarré. Les conditions de la
communauté n'étaient compatibles qu~avec une massct dé-
terminêe de population. -
Les limites de la population dépendent de l'élastleité
de la forme de production déterminée; elles varient, se con-
tractent ou se dUatent, selon ces conditions. C'est porquoi
la surpopulation des peuples chasseurs est toute différente
de celle des Athéniens, et cette dernlêre de celle des Ger-
mai~.
Les taux d'accroissement absolu de la population se
modifie eli conséquence, ainsi que le taux de surpopulation
et de la population. La base produetive détermine à cha-
que fois la surpopulation, aussi bien que la population
opUmale. La population, c'est donc à la. fois la surpopu-
lation et la population qu'une base productive donnée peut
eréer. Les limites de la population adéquate indiquent aussi
celles de la surpopulation, - ou mieux, leur base est identi-
que. De même, le travail nécessaire et le surtravail réunis
forment le travail sur une base donnêe". (Marx - li'onde-
menta de la critique de l'économie politique" voI. n, pp.
106-107).

5 - Note-se que no Capital} (vaI. I, 1, pp. 395·7), Marx


tece alguns comentários sobre a divisão social do trabalho nos

145
quais reaparece a idéia de que existe uma "população .adequada"
para o "modo de produção asiátko" (embora não fale em aáe·
quada ). Mas isso em oposição dara à divisão social de trab.alho
das manufaturas:
"En la sociedad deI régimen capitalista de producción,
la anarquia de la división social deI trabajo y eI despotismo
de la división deI trabato en marrufactura se condicionan
reciprocamente; en cambIo, otras formas má.s antiguas de
sociedad, en que la especialización de las indústrias Se de-
sarrolIa de un modo elementaI, para cristalizar Iuego y.
consolídar-se aI fin legalmente, presentan, de una parte,
la imagem de una ori"anización deI trabajo social sujeto a
un plano y a una autoriciad ( ... ) (Capital, I, I, p. 395).

E mais adiante:
"Aquellas antiguissimas y pequenas comunidades indias,
por ejemplo, que en parte todavia subsisten, se basaban en
la posesión colectiva deI suelo, en una combinación directa
de agricultura y trabajo manual y en una división fija deI
trabajo, que aI crear nuevas comunidades servia de plano
y de plano De este modo, se crean unidades de producción
aptos para satisfacer todos sus necesidades ( ... )" (Capital,
I, I, p. 396).

Depois de descrever os tipos de comunidade e a divisão do


trabalho entre as famílias, Marx faz referência à relação entre
crescimento da população e forma de trabalho:
"AI aumentar eI censo de población, se crea comunidad
nueva y se asienta, calcada sobre la antigua, en tierras sin
explotar" (Capital, I, I, p. 397) ( ... ) "La. Iey que
regula la division deI trabajo en la comunidad actúa aqui
con la fuerza inexorable de una lei natural ( ... ) La. sen-
cillez deI organismo de estas comunidades que, bastándose
a si mismas, se reproducen constantemente en la misma
forma y que aI desaparecer fortuitamente, vuelven a ins-
taurarse en eI mismo sitio y com eI mismo. nombre, nos da
la clave para explicarnos ese misterio de la imutabilidad
de las sociedades asiáticas, que contrasta de un modo tan
sorpreendente com la constante disolución y transformación
de los Estados de Ásia y con su incesante cambio de
dinastias" (Capital, I, 1, p. 397).

6 - Em resumo, o "resumo" que Nun faz das idéias de


Marx comete um erro de tipo semelhante ao que Marx atribuía
a Malthus na análise dos textos históricos que este utilizou
para fundamentar a teoria de superpopulação como um dado

146
uniforme da história. As invariantes da população, que segundo
Nun seriam objeto do materialismo histórico jamais foram con·
sideradas dessa forma por Marx: superpopulação, no MPC, para
Marx é equivalente de exército de reserva e guarda relação
direta com o pauperismo; "população adequada" ou "superpo·
pulação relativa" podem existir como lei de outro modo de
produção concreto, mas neste caso devem ser especificados.
As determinações gerais, abstratas, como a "lei de população",
são repostas no MPC pela relação renovada entre trabalho assa-
lariado e apropriação privada dos meios de produção, em uma
situação estrutural diferente dos outros modos de produção. E,
em nenhuma hipótese, a forma específica que assume a combi-
nação entre trabalhadores e meios de produção estabelece em
cada caso o tamanho da população adequada: o texto citado por
Nun para comprovar que Marx assim pensava ("sus limites
[da população F. H.] dependen de la elasticidad de la forma de
producción determinada; varian, se contraen o se dilatan de
acuerdo con estas condiciones") não só não fundamenta qual-
quer teoria geral, como, no caso, refere-se especificamente às
sociedades' anteriores .ao capitalismo. Menos ainda se pode
aceitar que para Marx "los limites de Ia población adecuada
fijan, a la vez, los de Ia superpoblación, ya que Ia base que los
determina es la misma" (Nun, p. 182), não só porque isso não
é uma lei geral da população - que inexiste no pensamento de
Marx - como porque há uma óbvia falta de clareza: do fato
de a população adequada e a superpopulação serem determina-
das pelo MPC, não deriva logicamente a idéia de que uma fixe
a outra. Além disso o raciocínio de Nun implica uma forma de
passagem do geral para o particular que não encontra apoio
na metodologia marxista.
Assim, as interpretações que restringem o conceito de su-
perpopulação, para Marx, a certos e determinados modos de
produção não são indevidas, como pensa Nun (p. 182).

EXÉRCITO DE RESERVA

1 - Isto não quer dizer que o conjunto da crítica de Nun


a Lange e Sweezy seja inadequado. Ao contrário, tem razão
na interpretação dos textos de Marx sobre o exército de reserva
no MPC, quando descarta a teoria da "concorrência entre os
trabalhadores" e a conseqüente baixa de salários, como condição
básica para a 3cumulação. Não vou repetir aqui os argumentos

147
de Nun, de resto calcados diretamente de O Capital, resumi·
dos na seguinte oração:
"Por una parte, es cierto que eI capital no tiende a
aumentar la produetividad de manera absoluta sino cuando
elIo Ie pennite reaIlzar una economia sobre la fracción
pagada deI trabajo superior aI costo de agregar trabajo
pasado: en este sentido, es válido afirmar que la com-
petencia entre capital y trab8jo actúa como motor deI
progreso técnico. Pero obran en la m1sma dirección eI
aumento de la demanda en eI mercado de productos; la
. competencla entre los propios capitalistas, que deben "rea-
lizar la plusvalIa en condiciones económicas en que la can-
tidad de trabajo socialmente neces&r1o para producir una
mercancia se revela sólo a posteriori y es desconocida a
priori" (MandeI, 1967, p. 93); Ia concentración y la centra-
lizasión de los capitales; la relación entre los costos micro
y macro-econórnlcos (Landes, 1966, pp. 561-2); Y la re-
ducción de la tasa de interés (cf. Sylos Labl.ni, 1966, pp.
153-154) (Nun, pp. 193·194).

1 - Em suma, é necessário não limitar o pensamento de


Marx ao de Ricardo ("quando os salários sobem, baixam os
lucros") e convém não esquecer que para Marx é na acumula-
ção, na forma que ela reveste, em seus movimentos e leis, que
se deve buscar a relação predominante e não nos salários (no-
te-se que o capo XXIII do Capital está inserido na seção sobre
a acumulação).
2 - Já me parece mais discutível a interpretação que Nun
apresenta sobre o alcance da categoria do exército de reserva
no pensamento de Marx:
"En sintesis, en su fase competitiva eI modo de pro-
ducción capitalista genera una superpoblaclón relativa -
cuyas distintas formas examina Marx (1956, I, pp. 516-8)
- que establece relaciones predominantemente funcionales
con eI sistema. lnteresado en mantenerla, éste arbitra di-
versos recursos, que van desde las instituciones de ayuda
hasta las ideologias de la "esperanza" (Bendix, 1956, p. 17>,
robustecidas periódicamente por las ondas expansivas. Es
esta básica funcionalidad de la superpoblación la que ca·
tegoriza eI concepto de ejército industrial de reserva" (Nun,
pp. 198-199).

Em outras palavras: a categoria de exército de reserva,


para Nun, se aplica à superpopulação relativa na fase competi·
tiva do capitalismo em que existe uma funcíonalidade entre o
excedente da população e o "sistema".

148
3 - Vejamos mais pormenorizadamente o pensamento do
Marx a respeito:

A) A lei geral da acumulação capitalista


"Cuanto mayor e8 la riqueza 8ocial, e1 capital en fun-
ciones, la. extensión y la intensidad de su desarrollo y
mayores, por tanto, la magnitud absolutll del proletariado
y la fuerza productiva de 8U trabajo, mayores también el
ejército industrial de reserva.. La fuerza del trabajo àiB-
ponible se des&rrolla por las miBmasCaUBaB que la fuerm
expansiva del capital. La. magnitud deI ejército industrial
de reserva cresce, por tanto, conforme crescen las potencias
de la riqueza. Pero cuanto mayor es esto ejército de re-
serva en comparación con el ejército obrero em activo,
mayor es la maSa de problación consolidada cuya miséria
está en razon inversa a su tormento de trabajo. Y final-
mente, cuando más crescen la miséria dentro de la clase
obrera. y el ejército industrial de reserva, más cresce tam-
bién el pauperismo oficial. Talvez es la Zey general, abso-
luta, de la aeumulaci6n capitalista. Una ley que como todas
las demás, es modificada en su aplicación por una serie
de circunstâncias que no interesa analizar aqui"" (Marx,
El Capital, vol. II, p. 727).

A idéia é dara, no texto: riqueza social --- magnitude


absoluta do proletariado - aumento da força produtiva do
trabalho = maior exército industrial de reserva.
Por quê?
"EI régimen especificamente capitalista de producción,
el desa.rrollo a él inherente de la fuerza. productiva deI
trabajo, y los cambios que este desarrollo determina en
cuanto a la composición orgánica deI capital, no solo avan·
zan a medida que progresa la acumulación o cresce la
riqueza social, sino que avanzan con rapidez mcompara-
blemente mayor, pues la simpie acumulación o el aumento
absoluto deI capital global de la sociedad va acompai'lado
por la centralizaci6n de sus elementos individuales, y da
transformación técnica deI capital adicional por la trans-
formaci6n técnica dei capital primitivo. Asi, pues, ai pro-
gresar la acumulación, cambia la proporci6n entre el capital
constante y el variable; si originariamente era de 1:1, ahora
se convierte en 2:1, 3:1, 4:1, 5:1, 7:1 etc., por donde,
como el capital cresce, en vez de invertirse en fuerza de
trabajo 1/2 de su valor total s610 se van invertiendo, pro-
gresivamente, 1/3, 1/4, 1/5, 1/6, 1/8 etc, invertiendose
en cambio 2/3, 3/4, 4/5, 5/6, 7/8 etc en medios de pro-
ducci6n. Y como la demanàa de trabajo no depende deI
volumen deI capital total, sino solamente deI capital varia-

149
ble, disminu1/e progresslvamente a medlda que aumenta eZ
capUal total, en vez de crecer en· proporclon a 6ste, como
antes suponlâmos. Decresce en proporclÓD a la magnltud
deI capital total y en proporcion acelerada, confonne au-
menta esta magnltud" (EZ Oapital, lI, pp. 710-11).

Entretanto, é preciso acentuar e distinguir dois aspectos


deste processo:
a) o crescimento absoluto do capital total implica num
crescimento do capital variável e, portanto, da força de trabalho
absorvida por ele (p. 711); "pero en una proporción constan-
temente decrescente" (p. 711);
b) o crescimento do capital se faz simultaneamente com
a renovação da base técnica sobre a qual assenta a produção
capitalista, o que diminui, por sua vez o número de trabalha-
dores requerido para a expansão do capital, embora possa au-
mentar a quantidade de trabalho consumido dos trabalhadores
(cf. p. 717).
"Los intervalos durante los cuales la acumulación se
traduce en un simple aumento de la producción sobre la
base técnica existente, van siendo cada vez más cortos.
Ahora, para absorver un determinado número adicionaI de
obreros y aun para conservar en sus puestos, dada la me-
tamorfosis constante deI capital primitivo, a lOS que ya
trabajan, se requiere una acumulación cada vez más ace-
lerada del capital total" (El Oapltal, p. 711).

Marx pensava que essa acumulação acelerada provocaria


- pela alteração da taxa de composição orgânica do capital -
nova diminuição do capital variável, resultando disso que:
"Este descenso relativo deI capital variable, descenso
acelerado con el incremento deI capital total y que avanza
com mayor rapidez que éste, se revela, de otra parte, in-
vírtiendose los términos, como un crescimiento absoluto
constante de la población obrera, más rápido que el del
capital variable o el de los medios de ocupación que éste
suministra" (El Oapltal, p 711).

E acrescentava que este crescimento não é absoluto (isto


é, não obedece a uma lei natural de população) mas é relativo
(isto é, varia conforme o avanço da acumulação:
"la acumulación capitalista produce constantemente, en pro-
porción a su intensidad y a sua extensión, una problación

1.50
obT6Ta para las ft6ceatd<ulea media.a de explotación del ca-
pital, ea decir una pobZación obrera excessiva para las ft6-
cesidadea medias de explotación deZ capital, es decir. una
poblaci6n obrera remanente o sobrante" (El Capital, p.
711).

Note-se que Marx se referia à acumulação em um modo


de produção assentado na constante modificação de sua base
técnica, onde, ademais, havia concentração e centralização de
capitais crescentes, sem insistir no caráter competitivo desse
modo de produção. E,por outra parte, ao distinguir cresci-
mento relativo e absoluto, não estava pensando na quantidade
de trabalhadores engajados, mas na oposição entre um cresci-
mento natural da população operária e um crescimento relacio-
nado com os meios de produção.

B) População e exército de reserva


A idéia central que está por trás desta distinção, e que
permite ver claramente a relação entre acumulação, exército de
reserva e crescimento da população, bem como permite criticar
a Malthus e a todos aqueles que confundem a historicidade dos
modos de produção com o problema - de outra natureza -
do crescimento demográfico e da incapacidade do sistema capi-
talistapara absorver trabalhadores, é a de que o capitalismo cria
seu próprio "excedente necessário" independentemente do cres-
cimento absoluto da população. Isto se dá apenas no capita-
lismo maduro":
"Este censo peculiar de la industria moderna, que no
se conoce en ninguna de las épocas anteriores de la hu-
manidad, no hubiera sido concebible tampoco en los aftos
de infancia de la producci6n capitalista. La composici6n
deI capital fue transformándose lentamente. Por eso su
acumulación hacia crecer, en general, la demanda de tra-
bajo. Lentamente, como los progresos de su acumulación,
comparados con los de la época moderna, iba tropezando
con las barreras naturales de la poblaci6n obrera explotable
( ... ). La expansi6n súbita e intermitente de la escala de
producción es la premisa de su súbita contracci6n; ésta
provoca, a su vez, una nueva expansi6n, que no puede
prosperar sin material humano disponible, sin un aumento
deZ censo obrero, independiente deI crescimento absoluto
de la población. Esto se consigue mediante un simples
proceso, consistente en dejar "disponibles" a una parte de
los obreros, con ajuda de métodos que disminuyen la cifra.
de obreros que trabajan en proporci6n con la nueva pro-

151
ducción incrementada. Toda la dinâmica de la industria
moderna brota, por tanto. de la constante transformación
de una parte deI censo obrero en brazos parados o ocupa-
dos sólo a medias" (El Oapital, pp. 714-15).

Fica claro, no te.&to e no contexto, que para Marx o im-


portante é a relação entre as necessidades geradas pela acumu-
lação e o "censo obrero". Este se divide em duas partes, grosso
",odo, uma a do "exército ativo" de trabalhadores, outra, a do
"exército de reserva". E a relação entre a superpopulação de
trabalhadores ou exército de reserva, e a acumulação é anotada
por Marx nos seguintes termos:
"Ahora bien, si la existencia de una superpoblación
obrera es producto necesario de la acumulación o deI in-
cremento de la riqueza dentro deI régimen capitalista, esta
su~rpoblación se convierte a sua vez en palanca de la
acumulación de capital, más aun, en una de las COndici<meB
de 'Vida del régimen capitaliBta de producción. Constituye
un ejército industrial de reserva, un contingente disponible,
que pertenece aI capital de un modo tan absoluto como
si se criase y mantuviese a sus expensas" (Marx, El Oa-
pital, pp. 713-4; os dois primeiros grifos são meus).

A criação deste exército de reserva de trabalhadores é


precisamente o que libera o capitalismo do crescimento natural
da população e das barreiras sociais (como os vínculos do tra·
balhador à terra ou sua inserção em corporações de trabalho)
que caracterizaram outros modos de produção:
"A la producción capitalista no le basta, ni mucho
menos, la cantidad de fuerza de trabajo disponible que le
suministra el crecimiento naturaJ de la población. Necessita,
para poder desenvolverse desembarazadamente, un ejército
industrial de reserva, libre de esta barreira natural" (El
Capital, p. 717).

C) Volume do exército de reserva


Desde logo, Marx estabelece uma distinção entre o cresci-
mento do capital variável e o problema do número de traba-
lhadores empregados. A frase que sintetiza seu pensamento
diz o seguinte:
"Por tanto, de una parte, conforme progresa la acu-
mulación, a mayor capital variable se pone en juego más
trabajo sin necesidad de adquirir más obreros; de otra par-

152
te, el mÍBmo volumen de capital variable hace que la misma
fuerza de trabajo despliegue mayor trabalho y finalmente,
movilize una cantldad mayor de fuerzas de trabajo inferio-
res, eliminando las mis perfectas" (El Oapital, p. 717).

Acreditava, portanto, que quanto maior a riqueza social,


quanto mais acelerada a acumulação, maior seria o exército
industrial de reserva:
"Gracias a esto (ao que vem indicado na citação an-
terior), la formación de una 81'perpoblación relativa o la
desmoviZización de obreros avanza todavia com mayor ra-
pidez que la transformación técnica deI processo de produc-
c1ón, acelerada ya de 81'yO con los progresos de la aeumu-
lación y el corespondiente descenso proporcionaI deI capital
variable respecto aI constante (o .• ) El excesso de tra-
bajo de los obreros en actlva engrosa las filas de sua
reserva, aI passo que la presión reforzada que esta ejerce
sobre aquéllos, por el peso de la concurencia, obliga a los
obreros que trabajan a trabajar todavia mãs y a someterse
a las imposiciones deI capital. La existencia de un sector
de la clase obrera condenado a la ociosidad forzosa por
el exceso de trabajo impuesto a la outra parte, se convierte
en fuente de riqueza deI capitalista individUal y acelera al
mi8mo tiempo la formación del ejército industrial de reser-
va, en una escala proporcionada a los progresos de la
aeumuZación social" (Marx, El Oapital, I, p. 718).

Não é preciso repetir aqui, mais uma vez, a distinção que


Marx faz entre a distribu:ção da população nas diferentes órbi-
tas da produção e a relação entre a classe trabalhadora e o
capital global da sociedade (p. 720). De igual modo, Marx
indicou que a quantidade de trabalhadores empregados variava
no tempo:
"EI crecimiento deI capital variable, y por tanto el
de la cifra de obreros en actlvo, va unido en. todas las
esferas de producción a violentas fluctuaciones y a la
formación transitoria de una problación sobrante, ya revis-
ta esta la forma ostensible de repulsión de obreros que
trabajan o la forma menos patente pera no por ell0 menos
eficaz, que consiste en hacer más difícil la absorción de
la problación obrera sobrante por los canales de desagUe
acostumbrados" (El çapUaZ, r, p. 712).

Para Marx, estas variações obedecem à dinâmica da acumu-


lação, que provoca mudanças peri6dicas ou reparte, simultanea-
mente, o capital em distintas órbitas de produção: 1) às vezes
a acumulação se dá por simples concentração - sem afetar a

15)
composição do capital, nem, portanto, o emprego; 2) ,outras
vezes o aumento do capital vai unido à diminuição absoluta do
capital variável ou da força de trabalho absorvida por ele; 3)
outras, ainda, o capital cresce sobre a mesma base t6cnica ante-
rior, ocupando força de trabalho sobrante, em proporção ao seu
crescimento; 4) outras vezes, por fim, existe uma mudança na
composição orgAnica, que faz com que o capital variável se
contraia. Apesar dessas variações - que, repito, nada têm
que ver com o tamanho da população - a tendência para Marx
era nítida: qU,anto mais "maduro" o capitalismo, mais repulsão
de trabalhadores. Por isto, escreveu:
"Con la magnitud deI capital social ya en funciones
y el grado de su crec1Jniento, con la. extensi6n de .la. escala.
de produccl6n y la. massa de obreros en activo, con el de-
sarroUo de la fuerza productiva de su trabajo, com el
fluxo mayor y más plet6rico de todos los manancla.les de
riqueza, aumenta. también la escala en que la mayor atra-
cion de obreros por el capital va unida a una m83"0r repul-
si6n de los mismos, aumenta la celeridad de 108 ca.mbiOl!l
operados en la. composici6n orgânica dei capital y de au
forma técnica y agranda el cerco de las 6rblta.s de pro-
duccl6n afectadas simultánea o sucessivamente por estOl!l
cambios. Por tanto, aI producir la acumulaci6n dei capital,
la pob1a.cl6n obrera produce taJnbién, en proporciones cada
vez mayores, los medjos paTa 8U próprio excesso relativo"
(El Capital, r, pp. 712-3).

Dos textos citados se depreende:


1.°) que a superpopulação é relativa aos meios de produção e
não à população operária no momento anterior, tão-pouco
se compara a superpopulação operária com o resto da po-
pulação;
2.0} que esta superpopulação, o exército de reserva, é composta
de trabalhadores ( desempregados, ex·desempregados ou
consolidados na condição de desempregados e, portanto
paupers) , e não do conjunto da população que não está
empregada pelo capital;
3.°) que a magnitude do exército de reserva cresce em propor-
ção com os progressos da acumulação social, apesar das
variações t6picas desta tendência.

Sendo assim, a que se reduz a pretendida "funcionalidade"


do exército de reserva no capitalismo competitivo? Ou se

15.4
trata de "necessidade" do processo de acumuleção ou de um
tipo de análise que não encontra acolhida no enfoque dialético
de Marx, pois este não estava preocupado, et pour cause, com a
"proporção da população" adequada ao modo de produção, nem
aos meios de emprego, mas precisamente com o ângulo oposto:
com os requerimentos de expansão do capital que, a partir do
"capitalismo avançado" (em oposição às situações em que bar·
reiras naturais ou sociais impediam a mercantilização da força
de trabalho), cria o excedente necessário de trabalhadores. ~
6bvio que, se o modo de produção não fosse capitalista (isto é,
se não estivesse orientado pela expansão e acumulação contínua
docapitaI), a mesma base técnica permitiria empregar mais
gente:
"Los recursos técnicos de que dispone este pais (a
Inglaterra) para "ahorrar" trabajos son gigantescos. Y
no obstante, si ma1ian& se redujese el trabajo, con cariter
getaeral, a un tipo racional, graduándose con arreglo alu
distintas capas de la clase obrem, según sexo y edad, se
veria que 1& poblaci6n obrera existente no but&ba, ni
mucho menos, para mantener 1& producción nacional en su
nivel actual. La gran mayorta de los obreros hoy "im-
productivos" se convertirán forzosamente en "productivos"
(RI Oapital, I, p. 718).

D) Modalidades do exército de reserva


Precindindo das flutuações no volume da ocupação, que
se devem aos ciclos peri6dicos, Marx distingue três formas
constantes de superpopulação relativa, além do pauperismo pro-
priamente dito:
La FORMA: "flutuante"
a indústria moderna, ao expandir-se, tanto atrai como re-
pele trabalhadores, "por donde el número de obreros en
aetivo aumenta en términos gen~es, aunque siempre en
proporci6n decreciente a escala de producd6n. Aqui la
superpoblaci6n existe en forma /lotante" (El Capital, I,
723). Ex.: a .indústria necessita mais jovens que homens
maduros, por isso despede-os ao chegar a idade madura,
(parte deles emigra, parte prefere ficar na empresa, os'
demais passam a constituir a parte flutuante do exérdtp
de reserva).

155
2. a FORMA: "latente"
quando a produção capitalista se apropria da agricultura,
forma um proletariado rural submetido às mesmas leis de
repulsão, sem que exista maior efeito de atração por parte
da indústria agrícola. Resulta disso que flutua constante-
mente uma superpopulação relativa, que flui para a cidade.
Essa possibilidade demonstra que no campo existe uma
superpopulação latente constante. "Todo esto hace que el
obrero agrícola se vea constantemente reducido aI salário
mínimo y viva siempre con un pie en e! pantano de! paupe-
rismo" (EI Capital, l, 725).

3. a FORMA: "intermitente"
esta porção da superpopulação relativa faz parte do exér-
dto operário em atividade, mas com uma base de trabalho
muito irregular. Seu nível de vida situa-se abaixo do nível
normal médio da classe operária. "Sus características son:
máxima jornada de trabajo y salário mínimo. Bajo el epí-
grafe deI trabajo domiciliário, n<;>s hemos enfrentado ya
con su manifestación fundamental" (l, 725). Para Marx,
este grupo da classe operária se reproduz a si mesmo e se
eterniza, "entrando en proporción relativamente mayor
que los demás elementos en el crecimiento total de aquella
(da classe operária)" (EI Capital, l, 725-6) e isto se deve
à maior procriação da pobreza: "esta ley de la sociedad
capitalista sonaria a disparatado entre salvajes, e incluso
entre los habitantes civilisados de las colonias. Es una ley
que recuerda la reproducción en masa de especies animales
individualmente débiles y perseguidas" (El Capital, l, 726).

Além disso, o pauperismo (quase em sua definíção legal)


constitui a órbita em que se refugiam os "últimos despojos de
la superpoblación relativa". Deixando de lado o lumpen-prole-
tariado, o pauperismo engloba:
a) pessoas capacitadas para o trabalho, que estão sem tra-
balho e não tr.abalham;
b) órfãos e filhos de pobres, que são "candidatos aI ejér-
cito industrial de reserva", que se alistam no exército ativo nas
épocas de grande expansão;
c) degredados, despojos e incapazes para o trabalho.

156
"EI pauperismo eS el asilo de inválidos dei ejército
obrero en activo y peso muerto dei ejército industrial de
reserva. Sua existencia va implicita en la existencia de ]a
superpoblación relativa, su necessidad en su necesidad, y
con eIla constituye una de las condiciones de vida de la
pl'Oducción capitalista y de] desarrollo de ]a riqueza. Fi-
gura entre los faux frais de la producción capitalista, aun-
que el capital Se las arregle, en gran parte, para sacudirIos
de sus hombros y echarlos sobre las espaldas de ]a clase
obrera y de ]a pequefia cIase media" (Marx, El Capital,
I, pp. 726-7).

E) Função e contradição
Em resumo, Marx não só estava fazendo uma análise, como
é arquiconhecido, de um modo particular de produção que
criava um tipo de superpopulação relativa à acumulação do ca-
pital, como via as relações entre acumulação e superpopulação
de um ângulo dialético, isto é, como contradição, e não se preo-
cupava com as funções da superpopulação se não deste mesmo
ângulo. Não categorizava o exército de reserva conforme a fun-
cionalidade da superpopulação, mas conforme as contradições
entre acumulação e miséria:
"Finalmente, ]a ]ey que mantiene siempre la superpo-
blaci6n relativa o e;ército tndustrial de reserva en equilíbrio
con el volumen y la intensidad de la acumulaciÓft tiene a]
obrero encadenado ai capital con ataduras más firmes que
las cufias de Vulcano con que Promete0 estaba clavado a
]a roca. Esta ley determina una acumulaci6n de miseria
equivalente a la acumulàci6n de capital. Por eso ]0 que
en un polo es acumulación de riqueza es, en el polo con-
trario, es decir. em la clase que cria sua proprio producto
como capital,acumulación de miseria, de tormentos de
trabajo, de esclavitud, de despotismo y de ignorancia y
degradación mora].
"Este carlicter antagónico de la acumulación capitalista
ha sido puesto de relieve por los economistas bajo diversas
formas, aunque a veces mezclando y confundiendo con éstos
otroa fenómenos de sistemas precapitalistas de producci6n,
que, aunque análogos, son, sin embargo, substancialmente
distintos" (El Capital, I, pp. 728·8).

E acreditava, como as citações precedentes indicaram -


e as análises empíricas que fez sobre a Inglaterra confirmavam
- que, desde que o capital se acumulava exponencialmente, a
miséria cresceria proporcionalmente à acumulação, bem como
que o número de operários em atividade diminuiria relativa-

157
mente, dado o aumento da taxa organica de compoSlçao do ca-
pital, aumentando, em conseqüência, a superpopulação relativa
de trabalhadores.
Mas isto não quer dizer, em nenhuma hipótese, que todo
o excedente da população constitmsse o exército de reserva,
mesmo se aceitarmos para facilitar a discussão, que Marx pen-
. sava que categoria de superpopulação relativa seria equivalente
ao exército industrial de reserva apenas para o capitalismo com·
petitivo. A classe operária continha para Marx dois grandes
setores, um que constituía um exército de trabalhadores em
atividade, outro, um exército de trabalhadores na reserva, sendo
que do ângulo dos trabalhadores havia mobilidade constante de
diversos tipos, de um para outro contingente, assim como exis-
tiam aqueles que estacionavam na miséria ou no pauperismo.
Mas o "resto da população" - quando não incluído na classe
operária - não constituía obviamente parte do exército de re-
serva. Não passa de confusão, provocada pelo equívoco dos que
pensam em termos da "teoria marxista da população", afirmar
que na fase monopolística o que
"no tiene sentido es seguir tratando a todo el excedente
de población como si constituyera un ejército industrial de
reserva desde que, en su mayoria, no transcederá el estado
de mero faetor virtual respecto a la organización productiva
dominante" (Nun, p. 200).

Nem na fase monopolística, nem na competItlVa, o "exce-


dente da população", isto é, as partes da população que não
constituem a "classe operária" poderiam ser, rigorosamente,
consideradas como parte do exército de reserva.

CAPITALISMO COMPETITIVO E MONOPÓLIO

1 - Como Nun acredita que a categoria do exército de


reserva se define pela funcionalidade do excedente de população
para com o sistema, é natural que coloque a questão subse-
qüente: o que ocorre quando, cada vez mais a expansão do sis-
tema requer menos "trabalho vivo" e mais produção automati-
zada; quando os salários são cada vez mais "administrados" -
em função dos interesses, da organização produtiva da empresa
- e, ao mesmo tempo, diminui a quantidade de "trabalho ne-
cessário" e aumenta o nível de vida dos trabalhadores?

158
A resposta é óbvia: Nun cré que aumenta a massa de
.pessoas (digo pessoas, não trabalhadores) que ficam à margem
do sistema, quer dizer, que não guardam uma relação de fun-
cionalidade com a acumulação, mas de afuncionalidade ou des-
funcionalidade.
O problema pode ser real, e, de qualquer modo aponta um
fenômeno empírico visível na superfície da vida social, mor-
mente nos países dependentes e simultaneamente industrializa-
dos sob forma monopolística. Entretanto, como Nun reclama
filiação às idéias de Marx para colocar este problema, sua reso-
lução requer demonstrações teóricas deveras complicadas, e não
pode limitar-se ao reconhecimento do fenômeno.
2 - Em primeiro lugar, parece-me discutível a interpreta-
ção dada aos textos dos Grundrisse em que Marx "había .atis-
bado genialmente la direción deI processo" (Nun, p. 199) que
ocorreria com o desenvolvimento tecnológico e com a monopo-
lização crescente dos capitais. Não que o capítulo de Marx
(realmente quase premonitório) deixe de surpreender pela ante-
cipação do que ocorreria com a "indústria moderna". Mas para
Marx a conseqüência desse processo seria Q agudização do caráter
antagônico da produção capitalista, e não a instauração de um
capitalismo em nova etapa, que requeriria uma redefinição da
categoria de exército industrial de reserva.
Vejamos. Marx afirmava, e reproduzo as mesmas citações
de Nun (das páginas 199 e 200 de seu artigo) que:
"a medida que la gran industria se desarrola, la creación
de las riquezas depende menos y menos deI tiempo de trabajo
y de la cantidad de trabajo utilizado, y más de la potencia
de los agentes mecânicos que son puestos en movimiento
durante la jornada de trabajo. La enorme eficiencia de
estos agentes no guarda, a su vez, ninguna relación con
el tiempo de trabajo inmediato que cuesta su producción.
Depende mucho más deI nivel general de la ciencia y deI
progreso de la tecnologia, o de la aplicación de esta ciencia
a la producción. ( ... ) EI robo &lI tiempo de trabajo ajeno
sobre el que reposa la riqueza actual, resulta una base mi-
serable en relación a la nueva base, creada y desarrollada
por la gran industria misma. ( ... ) Desde que el trabajo,
bajo su forma inmediata, ha cesado de ser la fuente prin-
cipal de la riqueza, el tiempo de trabajo cesa y debe cesar
de ser su medida, y el valor de éambio cesa entonces tam-
bién de ser la ~dida deI valor de uso. ( ... ) EI capital
es una contradicción en proceso: por una parte, empuja

159
a redueir el tiempo de trabajo a un mínimo y, por la otra,
plantea aI tiempo de trabajo como la única fuente y la
única medida de la riqueza".

Mas tudo isto no contexto da análise intitulada pelos tra·


dutores franceses de: "Contradiction entre le principe de base
(mesure de la valeur) de la production bourgeoise et le déve-
loppemem de celle-ci. Machines etc.".
Nesta análise - que, repito, são anotações - Marx passa
das condições capitalistas de produção, que aceleram o antago-
nismo de base entre forças produtivas, relações de produção e
forma privada de apropriação, para as novas condições de pro-
dução, não capitalistas:
"Dês que le travail, sous sa fonne immédiate, a cessé
d'être la source principale de la richesse, le temps de travail
cesse et doit cesser d'être sa mesure, et la valeur d'échange
cesse donc aussi d'être mesure de la valeur d'usage. Le
surtravail des grandes masses a cessé d'être la condition
du développement de la richesse générale, tout comme le
non-travaiZ de queZques-uns a cessé d'être la condition du
développement des forces générales du cerveau humain.
"La production basée sur la valeur d'échange a'effon-
dre de ce fait, et le procés de production matériel immédiat
se voit lui-même dépouillé de Sa fonne mesquine, misérable
et antagonique. ( ... )" ( Gundri8se, lI, p. 222).

3 - Os textos não podem servir de base, portanto, para


a fundamentação de novas relações entre a superpopulação rela-
tiva e o "novo sistema", concebido este como a etapa monopo-
lística do capitalismo. Não obstante, é assim que Nun 09
interpreta:
"Un siglo después, la vigencia de este diagnóstico (de
Marx, nos Gundri8se) parece indiscutible. Qué caracter
asumen, entonces, las relaciones de la superpoblación re-
lativa con el nuevo sistema?" (Nun, p. 200).

E O mais curioso é que Nun não só acredita poder funda-


mentar, do ponto de vista marxista, a necessidade de uma nova
categoria - distinta da de exército de reserva - para qualificar
o excedente de população do capitalismo monopólico (*), como

(.) "Creo, por eso, congruente con su modelo (com o modelo


de MARX) introdueir a esta altura una categoria que sirva para de-
signar las manifestaciones no funeionales deI excedente de poblaci6n",
p. 201.

160
mantém a idéia de que o "excedente excessivo" da população
.(a massa marginal) é gerado pela mesma lei que produzia, na
etapa anterior, o exército de reserva:
"Retornamos, con esta cita (de Seligman, quem crê
que a massa dos deslocados do sistema de emprego pelas
modernas técnicas e máquinas será cada vez mais inapro-
veitável e inútil para a produção), aI tema de la funcio-
nalidad de la superpoblación relativa. Nótese que la ley
que la genera sigue siendo la misma; pero en este nuevo
estadio de la acumulación resulta insuficiente conceptuaii-
zarla sólo como un ejército industrial de reserva, si se
toma por eje de la reflexión ai sector monopolistico hege-
mónico" (Nun, p. 199). -

4 - Para ultrapassar as dificuldades que se colocam para


quem aceita um ponto de vista dialético de análise, entre um
sistema que produz regular e incessantemente um resultado
inútil para seu funcionamento, Nun apela para a distinção entre
gênese e função. Geneticamente, é a lei da acumulação que
produz os excedentes; funcionalmente, estes excedentes podem'
ser afuncionais ou desfuncionais, ficando a determinação dessa
funcionalidade rebatida para o plano metateórico das relações
entre população e produção nos vários modos de produção.
Entretanto, mesmo que se aceitasse essa saída metateórÍca,
não se pode evitar o problema correlato: o modo de produção
que contém o monopólio como forma básica de apropriação
continua sendo, para Nun, capitalista. Está sujeito, portanto,
à lei do valor e à idéia de que, em última análise, a acumulação
crescente se liga à exploração do trabalho e que mesmo que o
"trabalho necessário" diminua relativamente, a miséria cres-
cente será o polo oposto, antagônico e necessário, deste pro-
cesso, conforme viu-se pelos textos de Marx já citados.
A .não observância desse resultado implica numa revisão
fundamental do pensamento de Marx e não pode ser resolvida
com textos do próprio Marx que teriam antecipado os traços do
capitalismo monopólico que o tornariam compatível com UD1Â
renovação permanente da base técnica de produção: menor
número relativo de trabalhadores engajados e, ao mesmo tempo,
melhor nível de vida crescente dos trabalhadores (Nun, pp.
200-201).

161
MASSA MARGINAL

1 - A crença que o capitalismo monopólico cria esses


excedentes não funcionais leva Nun ao conceito de massa mar-
ginal:
"Llamaré "masa marginal" a esa parte afuncional o
disfuncional de la superpoblación relativa. Por lo tanto,
este concepto - lo mismo que el de ejército industrial de
reserva - se sitúa a nivel de las relaciones que se esta-
blecen entre la población sobrante y el sector productivo
hegemónico. La categoria implica asi una doble referen-
cia aI sistema que por un lado, genera este excedente y,
por el otro, no precisa de él para seguir funcionando"
(Nun, p. 201).

o conceito de "massa marginal" se refere ao "tipo domi-


nante de organización productiva, o sea, el sector de las grandes
corporaciones monopolísticas" (Nun, 202). E o esclarecimento
é importante, porque, para Nun, o tipo dominante, como é
óbvio, não é o único: coexiste com a organização de pequenas e
médias empresas que operam em forma competitiva.
Sendo assim, o conceito de exército de reserva se refere
ao excedente da população do setor competitivo, enquanto o .
conceito de massa marginal se refere ao setor monopolístico.
"Pero además, la mano de obra sobrante en relaci6n a este
último no necesariamente carece de empleo ya que puede estar
ocupada en el otro sector" (Nun, p. 202).
2 - A subjetivização da análise categorial, a partir daí
torna-se necessária:
"Es decir que una baja tasa de desocupación resulta
compatible con la existencia de una superpoblación relativa
a la gran industria, categorizable como ejército de reserva
y/o como masa marginal" (Nun, p. 202).

Com mais forte razão, quando se passa do plano das cate-


gorias para o plano das situações concretas, como na América
Latina, rege o "ponto de vista do observador":
"En otras palabras, este concepto (massa marginal)
puede usarse en un sentido amplio o restringido. En eI
primer supuesto constituye su criterio de referencia el mar·
cado de trabajo deI capital industrial monopolistico. En el
segundo, en cambio, eI eje deI análisis será eI mercado de
trabajo deI capital industrial tout court" (Nun, p. 224).

162
Isto porque a massa marginal do mercado monopolístico
.estaria composta de:
"a) una parte de la mano de obra ocupada por el
capital industrial competitivo; b) la mayorla de los tra..
bajadores que se "refugIan" en actividades terciárias de
bajos ingresos; c) la mayoria de los desocupados; e d)
la totalidad de la fuerza de trabajo mediata o inmediata-
mente "fijada" por el capital comercial" (Nun, p. 224).

A outra parcela dos grupos a), b) e c) continua exercendo


as funções de exército de reserva.
Mas, diz Nun:
"Si éste es el meollo de nuestro asunto en el contexto
latinoamericano, no cabe duda que una proporci6n de esa
masa marginal - correspondiente a los grupos b), c) Y
d) - es, a la vez conceptualizable como un ejército de
reserva respecto aI mercado de trabajo deI capital indus-
trial competitivo" (p. 224).

Assim, se bem que seja mais útil, pensaNun, utilizar o


conceito em seu aspecto mais amplo, bem pode também ser
utilizado na acepção restrita: "la opci6n depende tanto de las
características deI contexto como de los intereses deI observa·
dor" (Nun, p. 224).

COMENTÁRIOS CRíTICOS FINAIS

Mesmo sem entrar na discussão da aplicação do conceito


à América Latina, restringindo a análise ao plano puramente
te6rico, fica evidente que:
1.0 - metodologicamente o conceito de "massa marginal" não
se insere no mesmo universo de discurso do conceito de
exército de reserva: refere-se a uma teoria da funciona-
lidade das populações com respeito aos sistemas de pro-
dução e não à teoria da acumulação. Assume, além
disso, no plano epistemol6gico, a conotação de um con·
ceito heurístico e operacional e não a de uma contradi·
ção necessária;
2.° - este procedimento poderia, entretanto, justificar-se ope·
racionalmente sem maiores pretensões, como meio para

163
indicar uma situação onde não há emprego para todos
mesmo com a expansão do sistema econômico. Este
ponto de vista, do "escândalo de uma situação social",
tem sido assumido por governos, órgãos internacionais e
sociólogos. A "teoria da marginalidade" sói partir dele
e insistir nos aspectos sociais da questão. Mas, no caso
de Nun, o conceito deixa de ser operacional e de permi.
tir seja a descrição de uma "situação de consumo", seja
a previsão de uma forma de comportamento (maior ou
menor integração social ou política, p. ex.), pois são
marginais tanto os empregados como os desempregados,
estejam estavelmente nesta condição ou não, desde que
o observador fixe sua atenção no setor monopólico e
lance o olhar, a partir daí, para os outros setores;
3.° - por fim, Nun aceita, sem maiores críticas, aquilo que
deveria ser o ponto de partida da crítica:
a) existe mesmo uma "massa" crescente sem ocupação?
b) se existe, o crescimento dela é realmente incompatí-
vel com a visão de Marx? (isto é, Nun apresenta a
a idéia da funcionalidade como fato necessário, o que
não está de acordo com os textos de Marx que trans·
crevemos).
c) se o for, por que não dizer claramente que a teoria
marxista não dá conta desta situação e propor outra
explicação para a acumulação?
4.° em conseqüência, Nun acaba por endossar afirmações
que, com mais cuidado, ele próprio rechaçaria: p. ex.,
que as interpretações que fez sobre a crescente falta de
dinamismo do emprego industrial na América Latina,
devem ser lidas "en el contexto de la tendencia aI estan·
camiento que exhibe la economia de la región en las dos
últimas décadas" (Nun, 219), porque isto não corres-
ponde aos fatos, mas à visão de um "desenvolvimentis-
mo perdido".
5.° - a crença na falta de dinamismo do capitalismo monopó-
lico - vista do ângulo da criação de emprego - cote-
jada com o "problema da população" leva Nun, apesar
da declaração em contrário, a uma visão necessariamente
catastrófica, que dificilmente se apóia nos fatos. Não
que inexista um excedente superexpIorado: parte consi·

164
derável dos negros americanos, dos porto-riquenhos,
"braceros", mexicanos etc., são exemplos óbvios. Mas
isto não deveria escandahzar a quem parte do esquema
marxista de explicação da acumulação, onde a contradi-
ção entre riqueza e miséria é fundamental. Não é multo
diferente - se não para pior - a constatação de Marx
quanto aos efeitos do capitalismo na Inglaterra do séc.
XIX.
J:i é muito mais discutível a crença no crescimento
desmesurado deste setor no capitalismo monopolístico.
Os dados impressionísticos apresentados são insuficien-
tes para indicar a tendência. A relação entre o setor
secundário e o terciário - mesmo na América Latina,
para não falar dos EUA - indica um dinamismo acen-
tuado do capitalismo monopólico para criar empregos.
Mesmo considerando-se apenas o setor secundário, a
distinção de Paulo Singer entre os efeitos das mudanças
tecnológicas no setor "mudanças de processo" e "criação
de produtos novos", mostra que, no capitalismo mono-
pólico os efeitos de diminuição do emprego oriundos
da primeira tendência são contrabalançados pela criação
de empregos devidos à segunda tendência.
6.0 - por fim, o mais curioso é que, se fossem verdadeiras as
tendências catastróficas do capitalismo monop6lico na
criação de empregos, elas antes indicariam que existe
uma relação direta entre acumulação e superpopulação
relativa, sem que houvesse necessidade da proposição
do conceito de "massa marginal". Este conceito só se
justificaria operacionalmente se fosse empiricamente pre-
ciso. Sua validade teórica requereria, ademais, que se
pudesse definir no plano estrutural a relação entre a
massa marginal e a forma de acumulação existente,
o que não foi feito. Como Nun criou um conceito ines-
pecífico, isto é, que abrange indivíduos que se relacio-
nam de forma heterogênea com o processo produtivo e
socialmente se colocam em níveis distintos (empregados,
desempregados, inempregáveis etc.), deixa de justificar-
-se mesmo operacionalmente, a distinção entre exército
de reserva e massa marginal.

165
CAPÍTULO VIII

PARTICIPAÇÃO E MARGINALIDADE:
NOTAS PARA UMA DISCUSSÃO TEÓRICA (*)

A medida em que diminuiu o prestígio acadêmico, e incluo


sive o fascínio, do tema do desenvolvimento na América Latina,
começou a ganhar importância o tema da participação social e
política e, por conseqüência a questão da "marginalidade". Os
efeitos do desenvolvimento começaram a ser considerados em
função do caráter do sistema econômico vigente, que limita os
resultados esperados da industrialização, porque, entre outras
conseqüências negativas, não proporciona uma redistribuição ra-
zoável da renda. Mesmo autores que salientam os êxitos do
avanço econômico, ineludíveis em alguns países, consideram que
o desenvolvimento, por si mesmo, não assegura a integração da
maioria da população ao mercado e à cidadania. Igualmente
se insiste, com freqüência, que a própria classe operária, que por
definição está economicamente integrada, não necessariamente
participa ou - pelo menos - não participa no grau desejado,
nas decisões de política nacional, na direção da empresa, na vida
sindical etc.
A partir da verificação da carência de participação a lite-
ratura sociológica e política e, às vezes, também a literatura
econômica, passaram a ocupar-se dos modos e meios para ativar
a participação social. Inclusive os departamentos especializados
das Nações Unidas mudaram a lingugem e Q ênfase na dis·
cussão das políticas necessárias para assegurar êxito à segunda

(*) Trabalho apresentado ao "Simp6sio sobre a Participação So-


cial na América Latina" realizado no México entre 14 e 16 de outubro
de 1969 sob os auspicios do Instituto Internacional de Estudos de Re-
lações do Trabalho da OIT.

166
"década do desenvolvimento" (1970-1980). Passaram a con-
siderar como prioritários os efeitos sociais do crescimento eco·
. nômico, especialmente no que se refere ao desemprego e à
redistribuição da renda.
Pareceria que .acelerar a participação e enfrentar o pro-
blema da "marginalidade" seria condições necessárias para su-
perar os efeitos negativos do curso atual do desenvolvimento
nos países capitalistas subdesenvolvidos. Diversos for.am os
nomes dados às políticas ensaiadas para conseguir o cumpri.
mento dessas condições: "desenvolvimento da comunidade",
"animação popular", "participação na direção" etc. Apesar da
diversidade de rótulos tais políticas se inspiram nos mesmos
objetivos e marcos de referência: só a participação é capaz de
transformar o desenvolvimento em um processo gerador de be-
nefícios para todos.
Apesar do significado positivo que essa abordagem possa
ter, na medida em que implicitamente critica o alcance limitado
da !forma atual de desenvolvimento p.ara generalizar o bem-estar
material e cultural, haveria que pensar um pouco mais detida-
mente sobre suas limitações, seu alcance e sua validade.
Sem fazer maiores referências, no momento, à conotação
ideológica que caracteriza a referida perspectiva, é necessário
esclarecer, pelo menos, o significado subjacente ao par de con-
ceitos que se apresentam como antitéticos marginalidade-partici.
pação e aos problemas - teóricos e práticos - que eles
encobrem.
De fato, ambos os conceitos, bem como as políticas orien·
tadas pelos valores implícitos neles, são bastante ambíguos.
Comecemos com o significado concreto do problema da margi-
nalidade. Existem pelo menos duas análises consistentes DA
América Latina sobre o alcance teórico da idéia de marginali-
dade. A primeira, de Anibal Quijano, "Notas sobre el concepto
de margiJialided social" (1966) e a segunda de José Nun e seus
colaboradores J. C. Marin e M. Murmis, "Planteo general de la
marginalidad en America Latina" (1967) (*).

(.) Para fazer comentários e citações utilizei os textos mimeo-


grafados e datilografados tal como circularam na CEPAL e ILPES,
em Santiago. Os livros de Gonzalez Casanova: Democracia en MJxico
e Sociologia de la explotación também consideram os efeitos do capi.
talismo dependente na América Latina que levam à marginalização de
amplas camadas da população. O autor adota, entretanto, mais uma

167
Através destes estudos começa a se constituir uma proble-
mática teórica da marginalidade. Em ambos fica implícita uma
perspectiva de análise teórico-metodológica que visa a transfor-
mar o tema da marginalidade de uma simples proposição ideo-
lógica em um problema de conhecimento. Para consegui-lo,
Quijano aborda o problema fundamental: quais são os passos
necessários para transformar o conceito de marginalidade de um
simples instrumento descritivo, que alude a uma situação pura-
mente negativa - de carência de participação - em conceito
explicativo diretamente relacionado à análise das estruturas
sociais?
No balanço crítico sobre os modos de utilização do con-
ceito de marginalidade, Quijano conclui que: "Se se comparam
as definições propostas pode-se ver que, exceto os aspectos espe-
cíficos, nos quais cada uma delas insiste particularmente, todos
eles apontam fundamentalmente a um único problema: a falta
de integração" (pág. 16). Além disso, salienta que se empre-
gam correntemente duas abordagens alternativas para enfrentar
os problemas práticos relacionados com a existência de uma
situação de marginalidade, conforme a concepção que se tenha
da natureza do fenômeno. Por um lado estão os que o consi-
deram como "resultado da natureza básica de integração da
sociedade e que, em conseqüência, é a modificação do próprio
caráter da estrutura integrada da sociedade que está em causa
para a eliminação da marginalidade" (página 17). Por outro
lado, estão os que acreditam ser possível reduzir ou e1imin'.u a
marginalidade sem provocar mudanças estruturais, utilizando-se
medidas que acelerem a integração dos grupos marginais à
sociedade global, medidas estas que poderiam ser impulsionadas,
na maioria das vezes, pelos próprios setores marginais.
Teoricamente, a crítica fundamental feita por QuijanQ às
abordagens correntes é que, ao tomar a marginalidade como
unidade isolada de análise, seus autores deslocam ou deixam em
segundo plano o foco que permite a compreensão adequada do
fenômeno: as condições de integração operantes na sociedade ...
global. Dessa crítica decorre sua proposição no sentido de que
se deve partir, num primeiro nível de aproximação, "de uma
noção geral de marginalidade social, como uma situação social.

perspectiva crítica na anAlise do sistema social como um todo do que o


ponto de vista que privilegia o enfoque específico e direto da margi-
nalidade.

168
caracterizada basicamente por problemas de integração de seus
elementos com os demais elementos de uma determinada estru-
tura global da sociedade" (pág. 18), o que supõe, antes de
mais nada, a análise dos modos de integração que prevalecem
na sociedade como um todo.
Com relação a esta última abordagem globalizante, Quijano
salienta, de passagem, que haveria dois modos distintos de con-
~ebê-Ia. Um, inspirado na teoria estrutural-funcionalista, que
sublinha mais diretamente os aspectos de consenso e estabili-
dade, necessários para o funcionamento dos sistemas sociais (os
requisitos adaptativos e integrativos dos sistemas globais); o
outro, hist6rico-estrutural, insiste no caráter conflitivo das par-
tes que compõem o "todo estruturado" e na mudança que
deriva desse conflito.
Na análise da marginalidade, a primeira abordagem seria
gradualista, por definição, e acentuaria as carcterísticas de dis-
funcionalidade das situações marginais com relação aos padrões
de integração prevalecentes na sociedade global. A inadaptação
das populações marginais às normas da sociedade constituiria
as situações marginais, por si mesmas, em "problemas sociais",
independentemente do modo de funcionamento, ou seja, das
"leis de estrutura", da sociedade global. Por outro lado, a
abordagem hist6rico-estrutural assinala que "a existência margi-
nal de um determinado elemento ou conjunto de elementos
pode ser o resultado da pr6pria natureza da estrutura vigente
da sociedade, de padrões e tendências fundamentais que regem
a existência e seu desenvolvimento". O caráter das oposições
entre os elementos marginais e os padrões estruturais globais
pode ser, entretanto, de dois tipos: ou se trata de um conflito
radical que questiona a própria natureza da sociedade, ou esse
conflito se dá em um nível setorial e superficial dessa estru-
tura (pág. 21).
Assim sendo, o marco histórico-estrutural de análise pode
englobar a abordagem funcionalista, visto que esta se limita à
consideração de desajustes setoriais e superficiais da sociedade.
O funcionalismo encara a marginalidade como um "problema
social", cuja análise pode ser feita sem referência obrigat6ria
aos modos de integração da sociedade global, a não ser em
termos de uma comparação que mostre as discrepâncias exis-
tentes com relação ao padrão "normal" de integração. Além
disso, a abordagem funcionalista não provou sua aptidão para
explicar uma situação de marginalidade como a que prevalece

169
na América Latina, onde até mesmo os autores funcionalistas
têm sido levados a chamar a atenção para os aspectos de des-
continuidade, desigualdade e combinação de elementos opostos
nas sociedades, criadas pelo desenvolvimento e pela muçlança
social. Mais ainda, os setores marginais costumam aumentar
mais que proporcionalmente com Q desenvolvimento e a dife-
renciar-se, radicalmente, dos setores integrados da sociedade.
Esta tendência limita ainda mais o alcance da compreensão da
marginalidade apenas em termos de desajustes setoriais ou su-
perficiais no marco de uma sociedade integrada.
Conseqüentemente, Quijano descarta a utilização da abor-
dagem estrutural-funcional na análise da marginalidade, consi-
derando-a inadequada, e sustenta o ponto de vista histórico-es-
trutural como o método capaz de explicar a marginalidade como
uma forma particular de integração numa estrutura mais ampla,
que a qetermina.
Até esse ponto da análise, concordo com Quijano, ainda
que me pareça necessário discutir com mais detalhes a possi-
bilidade de englobar na interpretação dialética a análise funcio-
nalista da marginalidade setorial ou superficial. Isso não signi-
fica que, em princípio, me oponha a essa possibilidade, mas
acredito que a diferença entre os enfoques não é, principal-
mente, de "grau de amplitude" - (é necessário dizer, a bem
da precisão, que Quijano não se limita a esse ponto). Onde
tenho mais dúvidas para seguir o raciocínio de Quijano é quan-
do ele elabora teoricamente as condições de validade do con-
ceito de marginalidade segundo o método histórico-estrutural.
De fato, Quijano começa assinalando, com razão, que esta abor-
dagem supõe "a concepção da sociedade como um "campo de
interações" integrado por diversos setores estruturados de insti·
tuições, que estão entre si em uma permanente relação de
interdependência, conflitiva e descontínua, constituindo em seu
conjunto um complexo global" (pág. 24). No meu modo de
entender, o que é decisivo para estar de acordo com o método
histórico-estrutural de Marx, é reconhecer que a estruturação
deste campo de interesses se faz por intermédio de seus ele·
mentos essenciais (Quijano diz básicos), os quais se expressam
por intermédio de relações de dominação. Em outras palavras,
o todo é hierarquizado e esta ordenação se faz pela superpo-
sição e dominação de uns grupos sobre outros. É precisamente
o modo de conceber a estruturação do todo que distingue a
abordagem funcionalista: não se trata de um sistema, à maneira

170
dos sistemas naturais (ou dos sistemas) em geral), mas de uma
.estrutura cujas leis de coexistência são, ao mesmo tempo, as leis
de mudança, na medida em que sua estruturação se forma,
historicamente, segundo o modo como, em condições dadas
(isto é, segundo um determinado modo de produção), uns gru-
pos (isto é, classes) dominam os outros. O processo de domi-
nação assim concebido implica por um lado que a hierarquização
entre as classes existe na medida em que se renov,am as condi-
ções sociais de imposição que a torna possível. Por outro lado,
isso significa que a dominação implica, necessariamente, em
luta e, portanto, na possibilidade de mudança.
Depois de mostrar que é necessário distinguir entre os ele·
mentos básicos e secundários, Quijano parece mudar de pers-
pectiva metodológica ao considerar os elementos secundários
de uma estrutura como instrumentos para "dar forma concreta
aos anteriores (os básicos) em cada momento histórico de sua
existência" (pág. 24). Além disso, considera também a exis-
tência de elementos que já não correspondem a "nenhuma ne·
cessidade histórka no contexto de uma sociedade concreta"
(pág. 24), isto é, que são anacrônicos ou superviventes. Ainda
que estes últimos possam efetivamente existir, é óbvio que são
irrelevantes para as "leis de estrutura" e sua persistência não
pode justificar a ponte entre a análise dialética e a idéia de
"marginalidade setorial", que é pertinente na análise funciona·
lista, mas não na abordagem marxista.
É menos compreensível, ainda, a referência aos elementos
secundários de uma estrutura como se fossem a substantivação
histórica de relações essenciais. De duas uma: ou se está sus-
tentando, a meu modo de ver equivocadamente, que há uma
diferença entre os elementos essenciais (que existiriam apenas
ao nível de categorias) e os elementos concretos, consideran-
do-se a estes como resultados históricos do modo de funciona-
mento de uma estrutura (o que suporia uma ruptura metafísica
entre essência e fenômeno, alheia à dialética histórica), ou então
a diferença entre elementos básicos e secundários consiste em
que os primeiros exercem uma função determinante na estru·
tura do todo, enquanto os segundos, sem ser "simples fenôme-
nos", são determinados por aqueles. Esta última idéia é mais
próxima da concepção marxista de dialética, porém requer escla·
recimentos que não se encontram no texto discutido.
A partir desse ponto, o andamento metodológico de Qui-
jano, que se aproxima do problema fundamental para caracte-

171
rizar o significado estrutural da marginalidade, dá volta atrás
e passa a discutir as formas gerais de integração social, como se
essas fossem pre-requisitos para a categorização da margiOOida.
de. Nesse sentido, distingue a integração da sociedade e a inte·
gração na sociedade, distinções analíticas importantes para a
análise funcionalista, na medida em que permitem separar os
níveis da integração (desde o plano individual até ao plano
global, passando pela integração setorial) mas que não tem
importância metodológica equivalente quando o método utiliza·
do é histórico-estrutural. Antes, o fato de haver selecionado
esse caminho para recuperar o sentido positivo da idéia de
marginalidade, levou Quijano a digressões que contradizem seus
pontos de vista fundamentais.
De fato, depois de distinguir a integração social geral em
suas diversas formas, o autor tratou também de conceituar a
marginalidade no plano geral. Para isso, transformou a idéia
de marginalidade em um conceito que se refere, tanto a estru·
tura da sociedade, como ao nível da integração dos indivíduos à
sociedade, além de ser possível distinguir formas de marginali.
dade, segundo os diferentes setores da sociedade. Em qualquer
dos casos - e aí radica sua contribuição positiva a esse passo
da análise - mostrou que a marginalidade não pode ser con·
cebida como um "não-pertencer", mas sim como um modo
específico de integração: "A marginalidade, fundamentalmente,
é um modo não básico de pertencer e de participar de um con·
junto de elementos na estrutura geral da sociedade e, no mesmo
sentido, de seus membros" (pág. 28). A partir dessa altura
da análise, entretanto, Quijano passa a considerar que do
ponto de vista dos indivíduos a marginalidade pode ser conce-
bida tanto com relação a algumas instituições sociais em par·
ticular com<> com relação ao conjunto das instituições. Este
tipo de diferenciação entre marginalidade global e parcial, vista
do ângulo dos indivíduos que vivem graus distintos de margi-
nalidade não é pertinente à concepção da marginalidade como
processo estrutural. Ainda não é esta, entretanto, minha maior
objeção. O duvidoso do caminho escolhido para conceituar a
marginalidade está em que, a partir de considerações analíticas
deste tipo, em nível abstrato de generalidade, Quijano se vê
obrigado a reconhecer, contra sua posição fundamental, que
não há uma determinação clara entre marginalidade e dominação,
pois a "descontinuidade da integração da estrutura geral da so-
ciedade permite sempre a possibilidade de que os membros

172
possam estar incorporados à estrutura básica ou secundária em
um setor institucional, em qualquer de seus níveis, dominante
ou dominado, e entretanto, estar incorporados apenas margi-
nalmente em outros setores institucionais" (pág. 30); apesar
disso, continua, deve-se esperar alguma conseqüência entre os
diferentes níveis institucionais (o que diminuirá o caráter alea-
tório da relação formal, anteriormente suposta, entre margina-
. lidade e dominação).
Na realidade, os passos anteriores da análise de Quijano
lhe permitiriam chegar a conclusões mais concretas sobre a sig-
nificação da marginalidade, deixando-o livre para desfazer-se de
preocupações com análises sistemáticas das diversas "formas
gerais" da integração e da marginalidade, alheias no meu en·
tender à metodologia histórico-estrutural. A caracterização da
marginalidade como processo estrutural teria permitido passar
do conceito de marginalidade como um "estar-iora-de", pura-
mente negativo, a um conceito capaz de caracterizar uma forma
determinada de vinculação estrutural.
Vejamos. Quijano afirma que se devem distinguir inicial-
mente três situações ou elementos institucionais: "os que cor·
respondem à estrutura básica da sociedade, porque definem seu
caráter fundamental; os que correspondem às estruturas secun-
dárias da sociedade, e que sem definir a natureza básica da
sociedade, são importantes na medida em que contribuem para
dar forma concreta à estrutura básica. Os que correspondem,
finalmente, a estruturas cuja existência não deriva das tendên-
cias que movem a estrutura básica da sociedade, porém que
ressaltam suas limitações em cada momento histórico e, por isto,
evidenciam as incongruências da integração da sociedade. Estes
elementos e estruturas podem ser chamados "marginais"." (pág.
26, grifo meu - FHC). O problema da categorização a um
nível histórico-estruturaI foi apresentado mas não solucionado:
que tipo de estrutura é esta que produz resultados estruturais
(pois trata-se, como se viu, de estruturas marginais) que não
derivam das tendências que a movem? Isso é possível? Que
estatuto teórico deve ser atribuído a f':Sse tipo sui generis de
estrutura que é ao mesmo tempo derivada e não responde às leis
das estruturas que a originam?
Quijano tenta aprofundar a análise para responder a algu-
mas destas interrogações. Mostra que a marginalidade só existe
na sociedade e em função de um tipo determinado de socie-

173
dade. "O problema é que não faz parte dos padrões e tendên-
cias que regulam suas estruturas dominantes, porém existe como
dependente delas. Isto é, a marginalidade se instaura como um
modo particular de pertencer e de participar na estrutura geral
da sociedade ( ... )" (pág. 34). A definição positiva de margi-
nalidade poderia estabelecer-se, então, nos seguintes termos:
"a marginalidade social consistiria em um modo limitado e in-
consistentemente estruturado de pertencer e participar da estru·
tura·geral da sociedade, seja por parte de certas áreas dentro de
suas estruturas dominantes ou básicas, seja por parte do conjun-
to destas em todos ou em partes de seus setores institucionais"
(pág. 34). Em qualquer hipótese, entretanto, "a situação mar-
ginal não gera seus próprios padrões de estruturação, nem no
que se refere a si mesma, nem em suas relações com o resto
da sociedade" (págs. 34-35), o que equivale a dizer que a mar-
ginalidade supõe sempre dependência de outras estruturas do-
minantes.
Convém reter, antes de prosseguir, alguns pontos básicos
da análise de Quijano. A marginalidade é, em um sentido
positivo, uma forma de integração que se caracteriza por sua
relativa inestruturação e por sua heteronomia. Deve ter movi-
mentos próprios, como estrutura - 'pois se distingue das estru-
turas dominantes - porém, ao mesmo tempo, é resultado de
leis estruturais que não lhe são próprias. Há, conseqüentemente,
necessidade de pesquisar mais fundo para determinar o caráter
específico dessa contradição complexa.
Esse, ao que parece, é determinado por Quijano quando
discute a natureza da sociedade que gera a marginalidade social
como uma estrutura regular, numa iforma histórica de sociedade
- verbi gratia, a sociedade latino-americana - que "não ape-
nas é reduzida em sua capacidade para incorporar a generalidade
de sua população, como também existe, precisamente com oca·
ráter que tem, sobre a base da existência de uma ampla popu-
lação afetada por situações de marginalidade" (pág. 40). Nesse
caso, ocorre um modo de marginalidade "que é o resultado da
própria natureza da estrutura global da sociedade e que não é
um problema de ajustamento ou adaptação-desadaptação a uma
determinada estrutura, mas sim um conflito radical entre ambas
formas de existência" (pág. 41). A natureza do conflito é tal
que não pode ser alterada senão pela modificação do próprio
caráter do sistema global de dominação (pág. 42). Na discussão
das relações entre a natureza das sociedades e os modos de mar-

174
ginalidade, Quijano passa a atribuir maior peso à marginalidade
derivada "do fato de que um campo de integração esteja con·
figurado por elementos institucionais que não estão incorpora-
dos às estruturas dominantes da sociedade" (pág. 43), ou seja,
a marginalidade propriamente estrutural com relação aos setores
dominantes da sociedade, à qual chama marginalidade radical.
Nesse caso, considera a possibilidade de que "a estrutura de
dominação social inclua entre seus setores de interesse funda·
mental os setores marginais. Isto é, que tal sistema de domi-
nação ou estrutura de poder dentro da estrutura geral da socie-
dade não pode existir e desenvolver-se, sem que exista dentro
dela e se desenvolva um setor de interesse marginal" (pág. 46).
"Em outras palavras, que os grupos sociais que dispõem dos
recursos de poder geral na sociedade, ou seja, que participam
de maneira dominante no sistema de dominação social, não po-
dem ocupar esta posição senão sobre a base da existência de
um setor de marginalidade social" (pág. 47).
Este último caso seria para Quijano, o das sociedades la-
tino-americanas. Nelas ocorre um duplo padrão estrutural, que
não é, entretanto, o de uma dualidade de estruturas - uma
marginal e outra integrada - pois se "uma existe é porque existe
a outra e ambas não podem desenvolver-se senão conflitivamente,
porque implicam interesses sociais radicalmente conflitivos"
(pág. 47).
Quijano atribui inclusive o caráter de necessidade à margi-
nalidade existente em tais tipos de sociedade; necessidade esta
que deriva da própria estrutura dominante e básica da sociedade
global. Especula, além disso, se a marginalidade, neste tipo de
sociedade concreta, não seria - de fato - um elemento essen-
cial da totalidade social (pág. 48).
Interrompamos aqui a exposição das idéias de Quijano
reconhecendo, entretanto, que nas considerações finais também
há contribuições positivas para a caracterização da marginalidade
social. Creio que os textos reproduzidos colocam o problema
que me interessa discutir: quando se passa do nível sistemático-
·formal de caracterização da marginalidade, para o nível histó-
rico estrutural, a relação entre uma estrutura básica e outra,
chamada marginal, que sem estar limitada pelas leis daquela
condiciona o funcionamento das estruturas básicas, parece rede-
finir-se. Se não fosse assim, seria clifícil compreender as afir-
mações sobre a necessidade do fenômeno da marginalidade nas

175
sociedades latino-americanas e mais difícil ainda aceitar que as
duas partes dessas sociedades (que não constituem uma "dua-
lidade estrutural") formem uma totalidade na qual um dos se-
tores é, ao mesmo tempo "marginal" e se opõe radicalmente por
seus interesses ao setor integrado (o que equivale a dizer -
segundo o método histórico-estrutural - que é portador de uma
possibilidade histórica de mudança).
Em verdade, metodologicamente, a indagação deveria par.
tir deste ponto para sublinhar o caráter concreto das contradi.
ções que estruturam as sociedades nas quais vigoram p.adrões
que, sem ser duais, produzem as chamadas situações de "mar-
ginalidade". Em outras palavras, haveria que questionar a
própria idéia de "marginalidade" e não fazer sua casuística,
como Quijano fez em boa parte do trabalho.
Com efeito, que sentido tem dizer-se que as situações mar·
ginais não obedecem às leis da estrutura dominante na sociedade
e, em seguida, caracterizar a existência de uma marginalidade
radical nas sociedades latino-americanas que se opõe por seus
interesses, às estruturas dominantes e que, além disso, têm o
caráter de fenômenos necessários? Se as últimas afirmações são
verdadeiras, é preciso cavar mais fundo na teia de relações eco-
nômicas e no processo histórico de formação das sociedades
latino-americanas para entender melhor o caráter complexo dessa
contradição, aparentemente incompreensível, que leva um modo
de produção dado a gerar efeitos persistentes (a marginalidade),
que seriam, simultaneamente, necessários e independentes, em
sua existência social, das relações que os criaram e das leis que
regem o todo do qual derivam.
J. Nun e seus colaboradores tomaram a contribuição posi-
tiva de Quijano aos que o precederam no tratamento da margi-
nalidade e colocaram como questão inicial o seguinte problema:
qual é o sentido da noção de marginalidade em uma situação
na qual se reconhece, simultaneamente, fi existência de um
amplo setor da população desempregado e o caráter predomi-
nantemente capitalista do setor que ordena o conjunto da
sociedade?
O aspecto de "maioria oprimida" ficava claro nos estudos
disponíveis sobre urbanização, pauperismo, falta de participação
etc. De onde partir para transformar a noção analítica de mar-
ginalidade em uma "categoria concreta" para a interpretação?
No "Planteo Gener~l1" os autores assinalam (pág. 11) que pre-

176
tendem elaborar a categoria de marginalidade a partir de três
noções: a de exército de reserva, a de pobreza e a de classes
sociais: "é em diálogo com essas três perspectivas que, por
contraste e semelhança, nos propomos a situar a marginalidade"
(pág. 11).
Usando o procedimento de contraste e semelhança (diga-se
de passagem que esse método, rigorosamente, tampouco é mar-
xista) Nun e seus colaboradores começam comparando a for-
mação do proletariado na Europa com o que ocorre na América
Latina. Assim, constroem dois modelos de mercado. Um, ope-
rante na Europa, em que as necessidades da demanda capitalista
da força de trabalho atuavam num contexto em que historica-
mente as classes empresariais criavam condições para dispor de
uma população operária excessiva para as necessidades médias
do capital, de tal modo que houvesse uma pressão constante,
por parte da oferta, capaz de baixar o preço da força de tra-
balho. Este se aproximava do custo médio da subsistência.
Assim, formava-se uma classe operária composta de ocupados
e desocupados; os últimos (desocupados) constituíam, num sen-
tido exato, um "exército de reserva". Este exército de reserva
ultrapassava a capacidade de absorção de trabalhadores, mas
isto se coadunava com a natureza do sistema capitalista indus-
trial, que supõe, normalmente, uma certa quantidade de deso-
cupados. O equilíbrio relativo e imperfeito entre oferta de tra-
balhadores e sua demanda se mantinha porque o sistema era,
num sentido exato, autônomo: a tecnologia, autoctone, guardava
certa relação com a disponibilidade de mão-de-obra existente; a
expansão imperialista ampliou o mercado de trabalho nas me-
trópoles e para os trabalhadores metropolitanos nas colônias;
houve imigrações etc.
O modelo que prevalece nos países latino-americanos é, ao
contrário, dependente: "nele predominam decisões baseadas na
ponderação de fatores que o transcendem e cujos resultados po-
dem, portanto, coincidir, ou não, com o que seria o "ótimo" em
lermos desse sistema" (pág. 20). Assim, tanto a tecnologia,
importada, como a fixação de salários, se fazem, algumas vezes
e em certas situações, atendendo a critérios que independem do
mercado local. Além disso, o Estado e os Sindicatos intervêm
na determinação da política salarial mais do que ocorria no
modelo Europeu de desenvolvimento capitalista.
Conseqüentemente, "no caso polar de modelo de mercado
dependente pode-se supor que, por um lado, a correspondência

177
entre a pauta de ocupações oferecidas e a pauta de trabalhadores
disponíveis seja mínima e, por outro, os salários nem sequer se
fixam segundo as condições desse mercado" (pág. 22). Some-
-se a isso que graças à "tendência crônica à estagnação" e à
impossibilidade de exportar mão-de-obra, "se configura uma si·
tuação em que as taxas de desemprego e subemprego podem ser
altíssimas e não conjunturais ( ... )" (pág. 22). Sem mencio-
nar. que, segundo os autores, o estado de desemprego generali-
zado "pode ser uma conseqüência diretamente desejada pela
estratégia dos empresários ( ... )".
Considerando esses e outros fatores, os autores acreditam
que "o iÍuncionamento deste mercado de trabalho dependente
geraria uma população operária tão excessiva "para as necessi·
dades médias de exploração do capital" que ultrapassaria a
lógica do próprio conceito de exército de reserva, pensando nas
condições de um mercado de trabalhador autônomo" (pág. 23).
Tendo em vista o exposto, Nun e seus colaboradores intro-
duzem a idéia de um exército de reserva "exce'ssivo", pois a
oferta ultrapassa os limites mínimos necessários para fazer va·
riar o salário em tomo do nível de subsistência: "É a partir
dessa idéia de um exército de reserva "excessivo" como função
de um mercado de trabalho dependente que nos parece possível
fundar o conceito de marginalidade ao nível das relações eco-
nômicas" (pág. 24). Entretanto, esse exército de reserva exces·
sivo não é capitalisticamente inútil ou supérfluo, pois: "se essa
massa de trabalhadores marginais é excessiva para manter a taxa
de exploração - e nesse sentido seria inútil - é, ao mesmo
tempo, o correlato da própria existência do sistema e, como tal,'
útil e necessária. É esta, exatamente, a ambigüidade que o
adjetivo marginal coloca em evidência: a mão-de-obra é marginal
na medida em que é recusada pelo próprio sistema que a cria.
E a especificidade do conceito se liga à situação de dependência
do mercado, que altera as condições da análise da desocupação"
(pág. 25).
Pareceria, portanto, que se está no polo oposto das consi-
derações iniciais de Quijano. Não se parte da existência de
populações marginais ou de estruturas marginais. Ao contrário,
assume-se que se trata de populações de desocupados, portanto,
que formam parte da força de trabalho; e só se chega ao con·
ceito de "exército de reserva excessivo" e se concebe o uso do
adjetivo marginal depois de fazer-se a comparação entre dois

178
modelos que - apesar de suas diferenças - guardam uma
relação básica: ambos são capitalistas e portanto requerem ex-
ploração de mais-valia e acumulação, isto é, requerem mão-de-
-obra sobrante para que os salários se fixem, em seus mínimos,
pr6ximos do nível de subsistência. Conseqüentemente, esse
exército excessivo não é supérfluo. Que quer dizer, então,
excessivo? Ou, em outras palavras, como explicar as diferenças
entre o montante de população sobrante na Europa e na Amé-
rica Latina? Se as diferenças fossem conjunturais não apresen-
tariam problemas; porém, ao que parece, são estruturais. É
neste ponto que intervém o conceito de dependência.
Eu seria dos últimos a recusar que a situação de dependên-
cia redefine o funcionamento do sistema econômico. Entre-
tanto, o argumento, tal como apresentado, aparece indetermina-
do porque:

1. Se afirma que a validade do conceito de exército de reser-


va excessivo radica em sua utilidade e necessidade - não
para a definição do nível de salários - mas para a existên-
cia do sistema. O conceito de marginalidade, portanto,
não se funda ao nível das relações econômicas, mas ao
nível de um.a necessidade global inespecífica de funciona-
mento de uma enteléquia chamada sistema.
2. Esse sistema recusa, ao mesmo tempo, a mão-de-obra que
cria, sem que se especifique como e por quê.
3. E se afirma que o conceito é específico porque o sistema
dependente redefine as condições de funcionamento do
mercado de trabalho. Porém, como .as redefine: criando
uma quantidade supér:flua de oferta de trabalho que é, por
sua vez, repelida pelo sistema? Por quê? Qual é a natureza
desse sistema? Não se está, de outro modo, reintroduzindo
a idéia de marginalidade, isto é, de um produto contínuo e
independente dos fatores que o geram, necessário e inútil,
simultaneamente, como se fosse uma categorização baseada
numa contradição formal e não dialética? Não se estará
repetindo o equívoco assinalado por Quijano, de supor
uma situação de simples negação sem que se entenda a
relação entre ela e o conjunto do sistema?

Antes de retomar algumas dessas questões (e deixando de


lado a discussão sobre a pobreza), convém deixar claro que os

179
autores retomam o tema da categorização da marginalidade no
contexto da teoria de classes. Aqui, novamente partem, no meu
modo de entender, da pergunta pertinente a partir da perspec-
tiva adotada: dado um proletariado latin~americano em forma-
ção, os marginais fazem parte dele ou existem linhas de ruptura
entre os dois grupos?
É claro que a nível te6rico a resposta a esta pergunta de-
. pende diretamente da elucidação das questões anteriores, pois
se a massa composta pelos trabalhadores e pelos desocupados
(mesmo que "excessivos") é a mesma - isto é, pode ser con-
ceituada economicamente como massa proletária - podem ocor-
rer diferenças nas formas de solidariedade, de organização e de
mobilização entre os diferentes grupos concretos (de opei."ários
ou de desocupados, subempregados etc.), porém, estas diferen-
ças ocorrerão sempre no contexto de uma "situação comum de
interesses". As possíveis diferenças serão, principalmente, de
dois tipos: devidas à variação entre graus de consciência de clas-
se (da consciência dos interesses comuns) ou devidas a distintos
graus de organização dos setores da classe trabalhadora, conside-
rando-se os marginais como parte integrante dela. Porém, em
qualquer dos casos, se é verdadeira a identidade que se supõe
na caracterização do "exército de reserva excessivo" entre os
dois setores da classe operária, a dinâmica política destes dois
setores da dasse operária estará subordinada - como assinala-
ram corre~amente Nun e seus colaboradores - à capacidade
que tenha algum setor da classe de exercer hegemonicamente o
papel de unificador político do conjunto. Neste caso, mesmo os
setores mais debilmente vinculados ao mercado de trabalho po-
deriam, teoricamente, unir-se sob o controle dos setores que
expressassem os objetivos da c/asse. Caso contrário, haveria
que voltar a algumas das interrogações propostas por Quija.
no, que considera possível um conflito entre os interesses dos
grupos marginais e dos grupos integrados.
Por isto, as distinções propostas nesta parte do trabalho
de Nun devem ser consideradas analíticas. Dizem respeito,
além disso, a formações sociais concretas, e não ao modo de
funcionamento do sistema, apesar de que esta diferença não
fica dara no texto. Mais ainda, o próprio caráter indeterminado
da construção do conceito de marginalidade, poderá ter levado
os autores a falar de novo sobre a marginalidade num sentido
mais próximo da idéia de grupos "à margem" do sistema, do
que de grupos que são produzidos pelo próprio sistema.

180
Convém precisar a natureza e o alcance da. critica feita.
Ela é mais metodológica que substantiva: não será através de
comparações entre semelhanças e diferenças que se conseguirá
determinar de modo concreto, histórico-estruturelmente, o sig-
nificado de uma situação em que parece existir um exército de
reserva excessivo. Por esse caminho pode-se chegar a reconhe·
cer evidências empíricas, porém o significado delas estará debil·
mente vinculado no plano te6rico. É verdade que há a especi.
ficidade assinalada pelos autores quanto ao mercado de trabalho.
Assim como, no meu modo de ver, o conceito de dependência
permite redefinir as categorias analisadas. Porém, é necessário
salientar na discussão, tanto o modo de produção dependente
em sua totalidade - isto é, vinculado pelas relações de domi·
nação imperialistas ao capitalismo internacional - como as con-
dições de sua formação.
No "Planteo General" os dois aspectos são discutidos, mas
o andamento metodológico se apresenta invertido; passa-se do
conceito de exército de reserva (que em Marx se determina com
referência Q um!! forma de dominação e um modo de produção)
aos efeitos de um mercado de trabalho dependente, sem mostrar
como se foram constituindo, historicamente, as situações de
dependência que podem ter possibilitado, ao mesmo tempo, a
existência de setores capitalistas tout court ao lado de camadas
sociais e de setores produtivos que foram efetivamente postos à
margem pelas novas formas de produção, mas que simultanea-
mente continuaram subordinadas a essas. Se, efetivamente, os
autores tivessem reconstruído as formas de dependência e
os tipos de desenvolvimento combinados e desiguais que produ·
ziram a "excesso" de mão-de-obra, teriam podido mostrar como
e por que existem estruturas J:llQrginais que dependem das estru·
turas que as marginaram, formando com elas uma totalidade
hierarquizada, bem como poderiam mostrar que as noções ela-
boradas para explicar o funcionamento do sistema capitalista
continuam válidas. Para isso não é necessário falar de um
"exército de reserva excessivo" - noção excessiva - senão
que é necessário demonstrar que existe efetivamente uma re·
lação entre oferta de trabalho sobrante e as necessidades médias
de exploração do capital e que essa relação incide na determi-
nação dos salários (ou, em caso contrário, será necessário refa.:
zer a análise marxista neste ponto). Por outro lado, é possível
mostrar que na situação de dependência da América Latina,
efetivamente, o desenvolvimento do capitalismo margina certas

181
camadas da população. Estas, ainda que possam desenvolver
estilos de vida' e exercer funções economicamente diferentes dos
desocupados (do exército de reserva) não deixam, por isso, de
estar subordinadas - no plano da totalidade concreta de um
sistema dependente - às classes que conformam os traços
essenciais do sistema capitalista, nem são irrelevantes para o
processo capitalista de acumulação. Os graus de subordinação
ciellSas camadas às demais classes sociais, assim como suas possi-
bilidades de mobilização sob a liderança da classe operária, são
problemas que dizem respeíto às formações sociais particulares
(como mostra Nun quando considera as diferentes situações
de marginalidade) e não devem ofuscar a nitidez da categori-
zação teórica.
É possível, pois, falar tanto de dependência, como de exér·
cito de reserva e de setores sociais colocados à margem do mero
cado capitalista, com a condição de que estejam articulados em
um todo diferenciado e hierarquizado por intermédio de relações
de exploração econômica e de dominação de classes, cuja his-
tória e cujas leis de desenvolvimento devem ser evidenciadas
por pesquisas concretas. Se isso fosse feito, a oposição entre ..
abordagem de Quijano e a de Nun não apareceria como tão
radical; Nun insiste na existência efetiva de grupos que tecni-
camente não são "desocupados" e que rigorosamente não per-
tencem à força de trabalho do mercado principal, mas sim que
têm ocupações de baixa produtividade, ou que estão localizados
em sistemas produtivos à margem do núcleo capitalista-indus-
trial; Quijano chama a atenção para o .fato - de fundamental
significação teórica - de que, de qualquer modo, estes dois
"setores" não são isolados, pois potencialmente, os ocupados
marginalmente ou subocupados pressionam a oferta de trabalho
~o mercado e, principalmente, sua marginação é o resultado do
~~o como se instaura o capitalismo em regiões dependentes.
.\ Existem situações\ históricas que ilustram bem o significado
que teria uma abordagem complexa, que incorporasse cada uma
das abordagens particulares, para explicar como e por que a pró-
pria dinâmica da expansão capitalista gerou excedentes de p0-
pulação que ficaram à margem do modo predominante de pro-
dução e, ao mesmo tempo condicionaram seu desenvolvimento.
Assim, por exemplo, a abolição da escravatura no Brasil liberou
um enorme contingente de mão-de-obra escrava que no modo
colonial de produção capitalista funcionava no próprio centro

182
do sistema.. Este contingente integrou-se apenas parcialmente na
nova fase do desenvolvimento do capitalismo agrário, baseado,
depois da abolição, na instalação de relações capitalistas de pro-
dução no próprio mercado de tr.abalho; os escravos foram subs-
tituídos por trabalhadores livres, imigrantes, e não encontraram
colocação regular no mercado de trabalho, passando, pois, a
existir à sua margem, porém em conseqüência mesma do desen-
volvimento capitalista e não como preexistente a ele; entretanto,
a massa disponível de ex-escravos e libertos pesou fortemente
na determinação dos salários dos trabalhadores livres, forçan-
do-os para baixo, apesar da melhor qualificação e da relativa
escassez de trabalhadores livres imigrantes.
Está claro que se necessitam esforços teóricos e mais pes-
quisas para entender a situação presente; o "capitalismo depen- .
dente" da América Latina depende agora de um capitalismo
monopolista diferente, nos seus traços fundamentais, do capi-
talismo competitivo. Que papel desempenha nele o "exército
de reserva"? Que função pode ser atribuída à classe operária
nessa nova fase do capitalismo? Como interfere tudo isto nas
sociedades dependentes? Embora essas questões fiquem colo-
cadas e sem respostas precisas, o esforço teórico prévio, como o
dos autores que comento neste trabalho, permite, desde que
criticado e redefinido, maior precisão sobre o que é a margina-
lidade e, quase por oposição, permite compreender melhor o
alcance da idéia de participação.
A própria natureza das sociedades subdesenvolvidas, onde
Se determinam contradições específicas entre classes e grupos,
impede pensar em participação como uma espécie de resultado
da livre interação entre grupos e pessoas com o propósito de
distribuir os resultados (econômicos, sociais e políticos) do de-
senvolvimento. Este modelo teórico da participação como
"consenso" é, basicamente, ideológico e sem significação cienti-
fica. Para ultrapassar essas limitações se faz necessário conceber
a "participação" no contexto da dominação. A discussão teórica
da marginalidade em termos do conceito de classe mostra que
em sentido histórico-cultural a "participação" não se dá por
intermédio de um conjunto indefinido de pessoas - uma cama-
da da população - que se beneficia de parte dos frutos da
sociedade, senão que se dá sob um modelo distinto. Neste, se
aceitamos o que assinalaram os autores aqui mencionados e o
que eu próprio penso, a participação não pode ser concebida
como se fosse um estado, oposto ao de marginalidade, em que

183
todos os atributos são, etn prióclpio, definidos poSitiVamente
para toda uma classe ou um grupo: mais salário, mais poder,
mais liberdade, mais autonomia. Ao contrário, para que a idéia
de participação não se limite a uma vaga afirmação valorativa,
deve indicar que grupos, setores ou classes são capazes, num
momento dado, de mobilizar e organizar os setores socialmente
dominados para que estes tratem de obter seus objetivos sociais.
Nã,o se passa de um estado de marginalidade a outro de partici·
pação, como se fossem dois polos de um contínuo não contradi-
tório. ~ neste sentido que a discussão teórica sobre o significa.
do concreto da idéia de marginalidade aponta para as formas
socialmente viáveis de participação: serão distintas as possibili-
dades de luta e de imposição de camadas sociais que são irrele-
vantes para a acumulação capitalista - se realmente o forem -
daquelas que se abrem às classes sobre as quais repousa a explo-
ração social e a acumulação econômica. As formas e os cami·
nhos da participação - ou seja, em sentido mais direto, das
lutas sociais - se apresentarão distintamente, segundo a natu-
reza real da contradição complexa para a qual aponta a noção
de marginalidade. Esta, por sua vez, como indiquei neste tra-
balho, não pode ser conceituada se ao mesmo tempo não se
propuser um esquema teórico que situe as classes numa situação
de economia dependente na qual, a acumulação se faz produ-
zindo camadas sociais que, ao mesmo tempo, são postas à mar-
gem e são relevantes, em termos do próprio sistema econômico,
para o processo de acumulação nas economias perUéricas.
Com essas afirmações não quero endossar, sem maiores
esclarecimentos, a noção de marginalidade, nem penso que seja
fácil substituir o conceito de exército de reserva pelo de setores
marginais. Antes me parece qtJe afastar a hipótese de que os
grupos chamados marginais decorrem da contradição entre
acumulação e miséria e que sua existência seja pertinente e ne-
cessária para o processo de acumulação é um passo teórico
ousado para ser dado sem comprovações empíricas e sem que
se refaça a análise dos mecanismos capitalistas de acumulação.
Infelizmente, até hoje a noção de marginalidade tem sido intro-
duzida nas ciências sociais mais como um argumento ao nível
do discurso descritivo do que como uma categoria teorica-
mente fundada. Por isso limitei-me, neste trabalho, à disqJssão
sobre o contexto teórico no qual é possível tomar em conside-
ração a existência de massas postas à margem pela complexidade
da combinação em formações históricas defillidas, de modos de

184
produção distintos, sem, contudo, aceitar que para o caso das
sociedades latino-americanas seja possível substituir o conceito
de exército de reserva pelo de massas marginais. No pr6ximo
capítulo ver·se·á com mais pormenores as dificuldades existentes
para dar este passo ( *).

(.) As afinnaçáes precedentes não implicam em que Quijano,


especialmente, ou Nun e seus colaboradores hajam proposto a substi-
tuição da noção de exército de reserva pela de mal'llinalidade.

185
CAPÍTULO IX

IMPERIALISMO E DEPEND~NCIA NA
AMÉRICA LATINA (*)

VISÃO LENINISTA DO IMPERIALISMO

1.1 Como é sabido, a teoria do capitalismo na fase impe-


rialista atinge seu tratamento mais significativo nos traba-
lhos de Lênine. Isso não somente em virtude das tentativas
feitas por Lênine para explic~r as transformações econô-
mic.as que ocorreram durante a última década do século
XIX e primeira década do século XX, mas principalmente
por causa das implicações políticas e históricas contidas
em suas interpretações.
1.2 Os argumentos descritivos das teorias de Lênine sobre
o imperialismo têm origens nas análises de Hobson. Ou-
tros autores já haviam descrito o processo expansionista
das nações e economias capitalistas. Sem embargo, inspi-
rado pelas idéias de Marx, Lênine foi capaz de mostrar que
o efeito da expansão econômica é destituído de sentido
quando não se leva em consideração os aspectos políticos
e históricos aos quais os fatores econômicos estão intima-
mente relacionados. Na perspectiva leninista o imperialis-
mo é uma nova forma do modo capitalista de produção.
Esta nova forma não pode ser considerada como um modo
diferente de organização econômica, na medida em que a

(*) Este texto é a tradução da Introdução feita para um con-


junto de comunicações apresentadas por diversos autores no "Simp6sio
sobre o Imperialismo", realizado na Universidade de Stanford, U.S.A.,
em fevereiro de 1972. Foi redigido sob a forma de notas para serem
desenvolvidas oralmente. Tradução de Sylvia M. Caiuby Novaes.

186
acumulação de capital baseada na propriedade privada do.
meios de produção e na exploração capitalista da força de
trabalho permanecem como características básicas do sis-
tema. No entanto, a importância do reconhecimento da
existência de uma fase imperialista reside no fato dela
implicar um novo estágio do capitalismo. O "momento
histórico" é outro, com todas as conseqüências políticas
deste tipo de transformação; no seio das classes dominan-
tes novos setores tentam impor seus interesses e ideolo-
gias; o Estado, as Forças Armadas e as instituições sociais
e políticas se redefinem a fim de assegurar a expansão
externa etc. Ao mesmo tempo, surgem na cena histórica
novas formas de lutas de libertação e de revoltas sociais,
como os movimentos de libertação colonial e a luta contra
o trade unionism. Esta última tendência passa a ser
vista como uma forma inicial de compromisso da classe
trabalhadora com a burguesia, possibilitado pela explora-
ção do mundo colonial. É a partir deste quadro geral de
um novo estágio histórico de desenvolvimento do capi-
talismo que Lênine vai inferir as tarefas, táticas e estraté-
gias políticas para a revolução socialista.
I .3 É desnecessário dar maiores detalhes da caracteriza-
ção de Lênine sobre o imperialismo. Presume-se que ela
seja bem conhecida. Os principais itens que Lênine utiliza
para a caracterização do imperialismo, e que são essenciais
para esta discussão, podem ser resumidos do seguinte
modo:
a) a economia capitalista, nos seus "estágios mais avan-
çados", envolve a concentração do capital e da produ-
ção (pontos que Marx já havia estabelecido em O
Capital) de tal modo que o mercado competitivo é
substituído nos seus ramos básicos pelo mercado mo-
nopolista;
b) esta tendência realizou-se historicamente através da
diferenciação interna das funções capitalistas, levando
não somente à formação de um estrato financeiro entre
os empresários, mas também a uma marcante preemi
nência do sistema bancário no modo capitalista de
produção. Além disso, a fusão do capital industrial
com o capital financeiro, sob o controle deste último,
tomou-se fator decisivo nas relações políticas e eco-

187
nômicas entre as classes capitalistas, com todas as
conseqüências práticas que tal sistema de relações apre-
senta em termos da organização estatal, da política e
oos ideologias;
c) o capitalismo alcançou com o imperialismo, seu "últi-
mo estágio de desenvolvimento" tanto interna como
externamente. Internamente; o controle do sistema
produtivo pelos bancos e a expansão das forças produ-
. tivas levaram à procura de novas possibilidades de
investimento. Neste sentido, a busca de soluções para
o problema da "realização do capital" tornou-se requi.
sito necessário para a continuação da expansão capitl1-
lista. Convém acrescentar que existem limites intemos
que impedem a contínua realização do novo capital
(empobrecimento das massas, taxa de crescimento do
capital mais rápida do que a do mercado interno, e
assim por diante). Torna-se necessário, portanto, en-
contrar saídas do capital para o exterior a fim de asse-
gurar a continuidade do avanço capitalista da acumu-
lação de capital;
d) a maior e sempre crescente aceleração do processo de
desenvolvimento das forças produtivas, sob controle
monopolista, também impulsiona os países capitalistas
avançados no sentido da obtenção do controle político
de áreas coloniais. A busca de controle das matérias·
-primas é ainda uma outra razão pela qual o capita-
lismo, em seu estágio monopolista, torna-se expansio-
nista.

I.4 Em resumo, as expli~ções de Lênine sobre as razões


que impeliam as economias capitalistas avançadas no seno
tido do controle de nações menos desenvolvidas, estavam
baseadas em dois fatores principais. Um enfatizava o m0-
vimento do capital, o outro sublinhava o processo produ-
tivo. Ambos estavam não somente ligados entre si, mas
relacionados com a transformação global do sistema capi-
talista, que tinha levado o capital financeiro a controlar o
sistema produtivo. Não é difícil perceber que liS modifi-
cações referidas afetavam profundamente a organização e
as funções do Estado, assim como as relações entre nações,
uma. vez que a principal arremetida do desenvolvimento
do capitalismo, no estágio do imperialismo, era no sen-

188
tido da divisão territorial do mundo entre os países capi-
talistas dominantes. Este processo garantia o fluxo de
capital de economias extremamente capitalizadas para paí-
ses menos desenvolvidos encontrando uma saída externa
para o capital excedente, e assegurava, além disso, o for-
necimento de matéria-prima que os países industrializados
requeriam.

IMPERIALISMO E ECONOMIAS DEPENDENTES

11 . 1 Desta perspectiva, o imperialismo levou as economias


e nações (ou colônias) dependentes à integração no mer-
cado internacional. A falta de igualdade entre as nações
e economias tomou-se o resultado esperado do desenvol-
vimento do imperialismo, na medida em que a importação
de matéria-prima e exportação de bens manufaturados
formavam a base da relação metrópole-colônia. A repro-
dução e ampliação da desigualdade entre economias avan-
çadas e economias dependentes se desenvolveu como
produto derivado do próprio processo de crescimento do
capitalismo.
Lênine tinha consciência da existência de tipos espe-
cíficos de interconexões, como no caso da Argentina e das
economias dependentes da Grã-Bretanha, nas quais as
burguesias locais controlavam setores do sistema produti-
vo criando padrões mais complexos de explorações. O
mesmo se verificava no tocante aos aspectos políticos da
dependência nos países onde o Est.ado procurava defender
a burguesia nacional das pressões imperialistas.
No entanto, numa perspectiva teórica, o imperialis-
mo, como modo de exploração, tendia a restringir o cres·
cimento dos países mais atrasados aos setores agrícolas e
mineradores, li fim de assegurar matéria-prima às nações
capitalistas avançadas no seu ímpeto de industrialização.
Pelas mesmas razões, a relação imperialista criava baixos
níveis de salário para a força de trabalho dos p,aíses do-
minados. Com isso se assegurava às economias centrais
dominantes um preço mais baixo de matéria-prima. Con-
seqüentemente, nas nações colonizadas ou dependentes, o
mercado interno não tinha importância estratégica especial.

189
11 . 2 Evidentemente, em termos de "realização de capital"
a venda externa dos produtos tinha importância. Mas
mesmo assim, o principal laço imperialista em termos de
investimento direto de capital estava orientado no sentido
da concessão de em[ :éstimos ao Estado dependente ou
aos empresários privados locais. Em ambos os casos, no
entanto, as garantias políticas e financeiras eram assegu-
radas pelo Estado ou pela administração do país recebedor.
Em resumo, o lucro imperialista estava baseado no co-
mércio desigual e na exploração financeira. Esta última
poderia ser medida pelo débito crescente das economias
exploradas às economias centrais. O primeiro se eviden-
ciava pelas diferenças qualitativas entre os produtos troca·
dos, isto é, matérias-primas por produtos manufaturados.
O processo de exploração da força de trabalho nativa asse-
gurava a desigualdade em ambos os tipos de economia.
Além disso, o avanço tecnológicO nos setores industriais
das economias centrais garantia um alto nível de expIo.
ração, aumentando a mais valia relativa, extraída através
de um avanço contínuo da produção tecnológica, enquanto
no sistema produtivo das economias dominadas prevalecia
a superexploração do trabalho. Isso levava, por seu
turno, à desigualdade crescente entre a taxa de composi·
ção orgânica do capital das economias centrais e a das
periféricas.
11.3 Politicamente, este tipo de expansão econômica de·
veria reforçar os laços coloniais entre as nações, através
de guerras, repressão e submissão de povos que anterior·
mente eram não só marginalizados com relação ao mercado
internacional como culturalmente independentes, e às ve·
zes estruturalmente desconectados do mundo ocidental. O
último processo referido ocorria principalmente na Africa
e na Ásia, onde apesar da prévia expansão do capitalismo
comercial, as nações mantinham em grande parte seus
sistemas produtivos intocados.
II .4 Desde o início os laços de dominação imperialista na
América Latina eram um pouco diferentes. É verdade
que as características da penetração colonialista acima
mencionada são válidas com respeito a alguns países da
região, principalmente as nações do Caribe. No entanto,
em quase toda a América Latina o surto imperialista ocor·
reu por meio de um processo mais complexo, no qual os

190
países dependentes mantiveram a independência política,
passando ao mesmo tempo rapidamente da área de influên-
cia econômica britânica à predominância americana.
A principal diferenciação ocorrida dizia respeito à
propriedade do sistema produtivo. Mesmo depois da pre-
dominância imperialista, algumas ecónomias latino-ameri-
canas foram capazes de enfrentar a nova situação, manten-
do a propriedade da economia de exportação nas mãos da
burguesia local. Assim, em alguns países (como Argenti.
na, Brasil, Uruguai, Colômbia) o setor exportador per·
maneceu, pelo menos até certo ponto, controlado pela
burguesia local, e os laços da dependência estavam basea-
dos mais no comércio e relações financeiras do que dire·
tamente no controle dos setores produtivos. Em alguns
países o próprio sistema financeiro se encontrava domina-
do pelos banqueiros locais, e a dependência financeira
b.aseava-se como já foi visto, nos empréstimos internacio-
nais, contraídos pelo Estado ou sob as garantias do Es-
tado e).
11 . 5 Entretanto, apesar das inúmeras variações políticas e
econômicas da expansão imperialista, o esquema básico de
Lênine permaneceu válido: o mercado interno dos países
latino-americanos cresceu de modo limitado durante o pri-
meiro período da referida expansão; o setor industrial não
se expandiu de modo significativo; a dependência finan-
ceira externa cresceu enormemente; a produção de matéria-
-prima, incluindo produtos alimentícios, constituiu a base
das economias de exportação.
Ao mesmo tempo, a maioria dos países latino-ameri-
canos não só se apresentava como incapaz de manter o
controle sobre o setor exportador (por razões que esca-
pam aos objetivos deste artigo) como inclusive alguns dos
países, que haviam anteriormente atingido certo controle
sobre a produção alimentícia ou de matéria-prima, tam-
bém perderam tal capacidade (como foi o caso da eco-
nomia mineradora chilena) ( 2 ) •

1) Ver CARDOSO, F. H. e FALETTO, E. - Dependencia


)' DesaTTollo en América Latina, Siglo XXI, 1972 (4,a edição), México.
Tradução em português publicada por Zahar Editores em 1971-
(2) para uma análise mais pormenorizada destes problemas, ver
F. H. CARDOSO e E. FALETTO, op. cito

191
NOVOS PADROES DE ACUMULAÇÃO DE CAPITAL
IH. 1 Apesar da precisão do insight de Lênine, confirma·
do pelos acontecimentos históricos da primeira metade do
século, algumas importantes. mudanças recentes afetaram
profundamente o padrão da relação entre as nações impe-
rialistas e dependentes. Estas mudanças requerem uma
nova avaliação das estruturas emergentes e de suas prin.
cipais tendências.
IH.2 Mesmo que estas modificações não sejam tão pro-
fundas quanto a mudança que possibilitou a Lênine a ca-
racterização de um novo estágio do capitalismo durante
o período da expansão imperialista, elas são suficiente-
mente marcantes para provocar uma revisão das análises já
estabelecidas sobre o capitalismo e o imperialismo. Convém
esclarecer, para evitar equívocos, que a expansão capita-
lista internacional contemporânea, e o controle das eco-
nomias dependentes que deIa decorre, não dissolvem o
caráter imperialista da dominação econÔmica.
III . 3 Contudo, a reafirmação da permanência de relações
imperialistas não deve impedir que se reconheça que os
principais pontos da caracterização de Lênine sobre o impe-
rialismo e o capitalismo já não são totalmente adequados
para descrever e explicar as formas atuais de acumulação
de capital e de expansão externa. Com respeito às mu-
danças que ocorreram nas economias de capitalismo mais
avançado (sobretudo o predomínio do capital mon0p6lico
e dos conglomerados empresariais) há algumas análises
consistentes. Evidentemente me refiro aos trabalhos de
Baran e Sweezy, assim como às contribuições que Mag-
doff, MandeI e O'Connor fizeram a este debate. Estes
trabalhos oferecem um conjunto de análises e hip6teses
descritivas e explicativas, mostrando as diferenças entre o
capitalismo atual e o da época de Lênine.
Apesar de algumas críticas recentes, Baran e Sweezy
mostraram de modo convincente (e o artigo de Sweezy
sobre "The Ressurgence of FinanciaI ContraI: Fact or
Fancy? " ( 3 ) ajuda a confirmar aquela convicção) que as

(3) Ver SWEEZY, P. - "The Resurgence oI Financiai Control:


Fact oi Fancy?", Socialist Revolution, n.o 8, vol. 2, n.o 2, março-abril.
1972, pp. 157-192.

192
corponçães funcionam como unidades quase aute>suficien.
tes de decisão e ação para a acumulação de capital. Da
mesma manein, as noções enteriores que sublinhavam o
controle bancário sobre a indústria devem ser repensadas.
De igual modo, a forma conglomerada das gnndes cor-
porações atuais e o alcance multinacionaI de sua produção
e mercado acrescentam consideráveis inovações à forma de
produção capitalista (4).
Estas transformações (e 56 estamos sugerindo algu-
mas das principais, que afetaram o capitalismo) tiveram
importantes conseqüências, que já foram analisadas pelos
autores mencionados, assim como por outros. Estes aute>
res enfatizam, por exemplo, que as taxas de lucro, sob
o regime de preços administrados num sistema de mone>
pólio, não tendem a decrescer secularmente. Evidente-
mente, este é um ponto que discrepa da teoria marxista e
das análises de Lênine. Modificações importantes, como as
mencionadas, alteram o tipo de resposta polftica que o
sistema capitalista está apto a produzir a fim de enfrentar
as situações ameaçadoras criadas por sua pr6pria expansão.
g também conveniente abordar o problema da realização
do excedente numa perspectiva mais atual. Neste ponto,
alguns autores consideraram o fortalecimento dos laços
entre a expansão militarista e o reforço do controle militar
sobre a sociedade, através de uma economia de guerra,
como o meio básico da realização do capital. Como se-
gundo argumento, mas ainda como fator importante, os
gastos do Estado com o bem-estar são focalizados como
saídas alternativas para a acumulação de capital.
Embora se possa questionar a pertinência destas aná-
lises, autores marxistas levaram a cabo uma reinterpreta-
ção econômica global do modo de funcionamento do
capitalismo monopolista, como os exemplos acima evi·
denciam.
IH.4 No entanto, o mesmo não se verifica quando se con-
sideram os aspectos politicos do problema e principal-
mente as conseqüências politicc>econômicas do capitalismo
monopolista nas economias dependentes.
Comecemos com o último aspecto da questão.

(4) Ver MAGDOFF, H. e SWEEZY, P., "Notes on the Multina-


cional Corporation", in Fann and Hodges, Readings in U. S. Imperia-
lism, Porter Sargent Publisher, Boston, 1972, pp. 93-116.

193
NOVAS FORMAS DE DEPEND~NCIA ECONOMlCA

IV.l Dados recentes demonstram (Ver Tabela I e 11) que


o investimento estrangeiro nas novas nações e na Amé·
rica Latina está se afastando rapidamente da exploração
de petróleo, de matérias-primas e da agricultura, em dire·
ção aos setores industriais. Mesmo nos casos em que o
grosso do ativo continua nos setores tradicionais do inves·
timento imperialista, a taxa de expansão do setor industrial
é rápida. E isto é verdade não só para a América Latina,
mas também para a Africa e Asia.
IV.2 O problema não está apenas no fato das corporações
multinacionais estarem investindo nos setores industriais
das economias dominadas, e não nos setores tradicionais
da agricultura e mineração. Além disto, mesmo quando
as corporações monopolistas, operando como conglomera-
dos, investem nos setores "tradicionais" das economias
dependentes, elas estão operando de modo avançado, téc·
nica e organizacionalmente, aceitando algumas vezes parti-
cipação local em suas empresas. Obviamente, estas trans·
formações não significam que as formas anteriores de
investimento imperialista, isto é, através do controle direto
da produção de petróleo ou matéria-prima, estejam desa·
parecendo, mesmo no caso de algumas das economias de-
pendentes mais industrializadas. Contudo, na medida em
que avança o processo de industrialização, os traços domi·
nantes do imperialismo em países como a Argentina, o
Brasil e o México não podem ser adequadamente descritos
e interpretados a partir de quadros de referência que su-
põem a troca de matérias-primas por bens industrializados,
como a característica principal do comércio, e sustentam
que os meios de produção das economias dependentes
está quase totalmente em mão dos estrangeiros.
Mesmo o setor mineral (como o manganês no Brasil,
o cobalto no Chile durante o governo de Frei, ou a petro-
química em vários países) está sendo submetido a novos
padrões de propriedade econômica capitalista. O traço
distintivo destas novas formas é a formação de "joint
venture enterprises", abrangendo o capital estatal local, o
capital nacional privado e o investimento internacional
monopolista (em última análise sob controle estrangeiro).

194
IV.3 Conseqüentemente, em algumas economias dependen-
tes - entre estas os assim chamados "países em desen-
volvimento" da América Latina - o investimento estran-
geiro não mais permanece como um simples "jogo de
soma zero" da exploração, como era padrão no imperialis-
mo clássico.
Estritamente falando - se considerarmos os índices
puramente econômicos - não será difícil mostrar que
desenvolvimento e penetração de monop6lio não são in-
compatíveis. A idéia de que ocorre um tipo de "desen-
volvimento do subdesenvolvimento", fora o jogo de pa-
lavras bem .achado, não é de muita valia para compreender
o que ocorre. De fato, dependência, capitalismo monopo-
lista e desenvolvimento não são termos contradit6rios, pois
ocorre um tipo de desenvolvimento capitalista dependente
nos setores do Terceiro Mundo que estão integrados na
nova forma de expansão monopolista.
Como conseqüência, em países como Argentina, Bra-
sil, México, Africa do Sul, índia e alguns outros, ocorre
uma fragmentação estrutural interna que relaciona as
partes mais "avançadas" de suas economias (isto é, os
setores diretamente ligados ao sistema monop6lico inter-
nacional) ao modo de produção capitalista internacional.
Afastando-se deste üpo de economia internacionalizada,
os setores econômicos e sociais mais atrasados, embora
subordinados aos mais avançados, desempenharão um pa-
pel de "colônias internas". O hiato entre ambos prova-
velmente crescerá, criando um novo tipo de dualismo,
bastante diferente daquele que antes se supunha, e que
era sustentado por autores não marxistas. A nova "dua-
lidade" estrutural correspondeao tipo de diferenciação
interna da mesma unidade. Este processo resulta direta-
mente, é claro, da expansão capitalista, sendo funcional a
ela, na medida em que ajuda a manter os salários em níveis
baixos, e a diminuir as pressões políticas, uma ve:z que a
posição social e econômica dos indivíduos que pertencem
ao setor monopolista é sempre melhor em termos compa-
rativos, e alenta perspectivas de prosperidade, mesmo para
os que não pertencem ao setor monopólico das economias
dependentes, criando neles a ilusão de consumo e da "par-
ticipação diferida".

195
IV.4 Se isto é verdade, até que ponto é possível sustentar
a idéi,a de desenvolvimento em compasso com a depeno
dência?
A resposta não pode ser imediata. Primeiramente,
sugiro que a tendência atual do investimento imperialista
permite algum grau de participação local no processo de
produção econômica. Como, por quê e até que ponto?
Convém apontar um traço crucial de diferenciação
entre as formas de capitalismo atuais e passadas. Durante
a vigência do tipo anterior de imperialismo, o mercado
para bens produzidos em economias dependentes por em·
presas estrangeiras era, em grande parte, senão total·
mente, o mercado das economias avançadas: petr6leo,
cobre, café, ferro, bauxita, manganês etc., eram produzidos
a fim de serem vendidos e consumidos nos países de capi-
talismo avançado. Isso explica porque o mercado interno
das economias dependentes era irrelevante para as econo-
mias imperialista, excetuando-se a modesta porção de bens
importados, consumidos pela classe mais alta na sociedade
dominada.
Mas para a General Motors ou a Volkswagen, ou a Ge-
neral Electric, ou a Sears Roebuck etc., o objetivo imediato,
em termos de lucro, é o mercado latino-americano ou o mer-
cado específico dos países da América Latina nos quais
essas corporações estão operando. Portanto, pelo menos
até certo ponto, um investimento estrangeiro deste tipo
exige algum grau de prosperidade interna.
Que tipo de prosperidade interna? As secções sub·
seqüentes (*) sobre distribuição da renda, padrões de
mercado e emprego, mostrarão que de fato, o tipo de de-
senvolvimento produzido pelo investimento estrangeiro -.:.
em virtude de razões específicas que serão discutidas mais
adiante, principalmente o tipo de tecnologia utilizada e a
forma de acumulação de capital - cria um tipo de mero
cado restrito, limitado e orientado para s.atisfazer o con-
sumo das classes de altas rendas.
Apesar disso, há e haverá, algumas partes das socie·
dades dependentes ligadas por interesses comuns, interna

(.) Refiro-me aqui a outros trabalhos apresentados no mesmo


seminário.

196
e externamente, 80 Sistema Capitalista Internacional, na
medida em que este passa a existir dentro das economias
dependentes.
IV.5 Por outro lado, e apesar do desenvolvimento econô-
mico interno, os países ligados ao capitalismo internacional
por este tipo de associação permanecem economicamente
dependentes, na medida em que 8 produção dos meios de
produção (tecnologia) estão concentradas nas economias
de capitalismo avançado ( principalmente nos Estados
Unidos).
Em termos do esquema marxista de reprodução de
capital, isto significa que o setor I (produção dos meios
de produção) - 8 parte estratégica do esquema reprodu-
tivo - virtualmente pode não existir nas economias
dependentes, ou, quando existe, não se desenvolve ple-
namente. Portanto, numa perspectiva mais ampla, a
realização da acumulação de capital requer uma complemen-
taridade produtiva que não existe dentro do país depen-
dente. Na interpretação de Lênine, 8S economias imperia-
listas requerem a expansão externa para a realização de
acumulação de capital. Inversamente, nas economias
dependentes, o capital deverá retornar à metr6pole, 8 fim
de completar o ciclo de reprodução ca.pitalista. Esta é a
razão pela qual a tecnologia é tão importante. Seu aspecto
"material" é menos impressionante que seu significado
como forma de manutenção do controle e como passo
necessário no processo de acumulação de capital.
A superioridade tecnol6gica assegura às corporações
internacionais uma posição decisiva no sistema global de
acumulação de capital. A prosperidade local das economias
dependentes é até certo ponto possível, na medida em
que o consumo de produtos produzidos no local' pelo
investimento estrangeiro pode induzir alguns efeitos dinâ-
micos. Mas, ao mesmo tempo, o processo global de de-
senvolvimento do capitalismo requer uma interconexão entre
o setor de produção de bens de consumo e o setor de bens
de capital, reproduzidos deste modo os laços da depen-
dência.
IV.6 Na teoria de Lênine um dos principais fatores que
explicavam a expansão imperialista era a busca de áreas
para o investimento. Atualmente, uma vez que o capital
estrangeiro se dirige ao setor industrial das economias

197
dependentes, algumas mudanças consideráveis vêm ocor-
rendo.
Primeiramente, em comparação com a expansão do
ativo das corporações estrangeiras, a quantidade de capital
externo líquido que é realmente investida nas economias
dependentes é decrescente: a poupança local e o reinves-
timento dos lucros realizados no mercado local fornecem
as fontes para o crescimento do ativo estrangeiro, com um
fluxo externo de novo capital limitado (Ver Tabela 111).
Isto está intimamente relacionado ao já discutido pro·
cesso de expansão do mercado local e está também rela-
cionado à promoção de empreendimentos mistos ("joint
ventures") ligando capitalistas locais e empresa estran-
geira.
Em segundo lugar, mas de igual importância, os da·
dos mostram que as economias dependentes, durante o
período de expansão do imperialismo monopolista, estão
exportando lucros às economias domin,antes (Ver Tabelas
IV e V), em proporções maiores que a importação de
capital.
IV.7 Não é objetivo desta apresentação discutir o conjunto
dos conseqüências da economia capitalista monopolista.
No entanto, algumas repercussões do novo padrão de imo
perialismo nos Estados Unidos e em outras economias cen·
trais são óbvias.
Se existe, sob o capitalismo monopolista, um real
problema de realização de capital, a nova forma de de·
pendência irá aumentar a necessidade de se encontr,lt
novos campos de aplicação para o capital acumulado n,as
economias centrais. '
Efeito disso é a tendência em direção ao maior "obso.
letismo técnico" que caracteriza a política das Big Corpo.
rations. Gastos militares são outros meios que proporcio.
nam novas válvulas de escape ao capital. Contudo, não
estou considerando o problema em toda a sua amplitude.
De fato, algumas destas conclusões devem mudar se o
fluxo de capital e o comércio entre as economias de capi.
talismo avançado forem levados em conta. Portanto, as
observações anteriores são apresentadas com o único pro-
pósito de enfatizar que a tendência atual de exportação
de lucros dos países subdesenvolvidos aos imperialistas

198
leva à reconsideração da função real da expansão externa,
em termos de problemas de realização de capital.
IV.8 A idéia de que o crescimento do capitalismo depende
da exploração do Terceiro Mundo requer ainda alguma
elaboração.
De fato as principais tendências da última década
mostram que a participação da América Latina, tanto na
expansão do comércio internacional, quanto no investi-
mento, é decrescente. Se aceitarmos a distinção entte dois
setores do comércio internacional - o Centro e a Peri-
feria - descobre-se que o crescimento da taxa de
comércio era de 7,9% ao ano nas economias centrais e de
4,8% nas periféricas. Como conseqüência, as exportações
das economias periféricas que alcançaram seu ponto má-
ximo em 1948 (32% do comércio internacional) decres-
ceram a 26% em 1958 e a 21 % em 1968 (abaixo dos
28% do período anterior a guerra). No caso latin~ame­
ricano esta participação decresceu de 12% em 1948 a 696
em 1968 (li). O mesmo está acontecendo com respeito à
importância que a periferia representa para os investi-
mentos americanos. A periferia absorveu 55% do total
dos investimentos diretos dos Estados Unidos em 1950
e só 40% em 1968. A particip.ação latin~americana neste
processo caiu no mesmo período de 39% a 20%.
Evidentemente, esses dados não consideram que o
aumento de "empréstimos e ajudas" ("loans and aid")
é, como já foi dito, de importância crescente no imperia-
lismo econômico. Por outro lado, o fato das relações
entre as economias mais avançadas estar crescendo não
pode ser utilizado como um argumento para inferir o
"fim do imperialismo". Pelo contrário, a inferência mais
adequada é que as relações entre países de capitalismo .
avançado e nações dependentes leva de preferência à
"merginalização" dessas últimas no sistema global de de-
senvolvimento econômico (como frisou Anibal Pinto) (6).

(5) Estes dados e análises podem ser encontrados in ANIBAL


PINTO e JAN KNAKEL "El sistema centro-periferia 20 afios despues",
ECLA, terceira versão, 11-11-1971, pp. 14 e seguinte.
(6) Uma análise pioneira e global das novas formas do impe-
rialismo pode ser encontrada in J. O'CONNOR, "The meaning of eco-

199
ALGUMAS CONSEQO~NCIAS POUTICAS

V .1 Alguns efeitos podem ser esperados da nova forma


de dependência quanto ao condicionamento e às reações
políticas nos países dependentes.
Se a análise é correta, o processo acima mencionado
de fragmentação de interesses levará provavelmente a uma
diferenciação interna, que em termos muito esquemáticos
pode ser sugerida do seguinte modo. Parte da "burguesia
nacional" (a principal em termos de poder econômico -
agrária, comercial, industrial ou financeira) é a beneficiária
direta, como participante minoritária, do interesse estran-
geiro. Refiro-me não somente aos associados diretos mas
também aos grupos econômicos que se beneficiam da
atmosfera eventual de prosperidade, derivada do desen.
volvimento dependente (como se vê facilmente no Brasd
ou México). O processo ainda vai além, e não somente
parte da "classe média" (intelectuais, burocracias estatais,
forças armadas etc.) está envolvida no novo sistema, mas
inclusive parte da classe trabalhadora. Os trabalhadores
empregados no setor "internacionalizado" pertencem es-
truturalmente a este grupo.
V.2 Evidentemente, a dependência estrutural não signi-
fica cooptação política imediata. A integração política
efetiva de grupos e pessoas depende do processo político,
dos movimentos, objetivos e alternativas políticas que eles
terão que enfrentar.
Contudo, na medida em que progride o processo de
internacionalização das nações dependentes, toma-se difícil
perceber o processo político em termos de um conflito
entre a Nação e a antiNação, sendo esta última concebida
como o Poder Externo (Internacional) do Imperialismo.
A antiNação estará dentro da "Nação" - por assim dizer
- no seio da população local e em diferentes estratos
sociais. Acrescente-se que coloc,ar este problema nos ter·
mos da existência de uma Nação internamente ocupada
não é tarefa fácil: há muito poucos "outros" em termos

mic imperialism". Ver também H. ALAVI, Imperialism old and


new, publicado por Radical Education Project, Detroit. Dados sobre
a economia hindu e novas fonnas de imperialismo são aí apresentados.

200
culturais e nacionais, que representem a presença do
"inimigo".
V.3 Não gostaria de dar a impressão de que concebo o
processo político de modo mecânico. Portanto, a idéia
não é "derivar" algumas conseqüências políticas de uma
análise econômica estrutural. Pelo contrário, o problema
reside em que muitas das interpretações esquerdistas da
situação política da América Latina não s6 procedem assim
como também assumem um ponto de partida estrutural
falso.
Algumas observações mais gerais podem ser resumi-
das em dois t6picos:
a ) as análises que se baseiam na afirmação ingênua de
que o imperialismo unifica os interesses e reações das
nações dominadas é claramente uma simplificação do
que está realmente ocorrendo. Ela não leva em con-
sideração a fragmentação interna dos países e o efeito
de atração que o desenvolvimento exerce em diferentes
estratO'i sociais, e não simplesmente nas classes mais
altas;
b) o termo "desenvolvimento do subdesenvolvimento"
(in A. G. Frank) resume os outros erros. De fato, a
afirmação de uma "falta de dinamismo" estrutural nas
economias dependentes causada pelo imperialismo, in-
terpreta de modo errado as formas reais do imperialis-
mo econômico e apresenta uma explicação política
imprecisa da situação. É necessário entender que em
situações específicas é possível haver desenvolvimento
e dependência.

Além disso. não é possível fazer generalizações com


relação a estes processos para todo o Terceiro Mundo.
Processos deste tipo ocorrem somente quando as corpo-
rações internacionais reorganizam a divisão internacional
do trabalho, incluindo partes das economias dependentes
nos seus planos de investimento produtivo.
Portanto. grande parte do Terceiro Mundo não está
envolvida nesta situação estrutural específica. Afirmar o
contrário levará a erros de interpretação política, equiva-
lentes àqueles derivados, por exemplo, da análise de De-
bray sobre a América Latina. Debray aceitou a idéia de

201
que o imperialismo homogeneizava todos os países da Amé·
rica Latina (com uma ou duas exceções) e adotou um
quadro de referência que enfatizava um tipo de dominação
imperialista ultrapassado, baseado na oligarquia e nos la-
tifundiários. O que estou afirmando é que há diferentes
formas de dependência na América Latina, e que em
algumas delas o desenvolvimento produz uma mudança
no poder interno, substituindo o poder dos antigos grupos
oligárquicos e reforçando tipos mais "modernos" de con·
trole político.
Neste sentido, as ditaduras atuais da América Latina,
mesmo quando baseadas em poder militar, não expressam,
em virtude de restrições puramente estruturais, uma forma
de dominação tradicional e antidesenvolvimentista ou anti-
capitalismo moderno.
, É praticamente desnecessário repetir que, do ponto
de vista das esquerdas, há fortes argumentos para se man-
ter as críticas contra as formas recentes de imperialismo,
de dependência e de autoritarismo político. Mas, eviden-
temente, novas análises políticas são necessárias para
explicar a forma técnico-burocrática de Estado autoritário,
que serve aos interesses da burguesia internacionalizada e
seus aliados.
V.4 Neste contexto, e tentando evitar uma abordagem
mecanicista, uma orientação correta na luta contra o imo
perialismo exige atenção especial aos problemas culturais
e às diferentes formas de alienação.
Se o padrão capitalista de desenvolvimento nos paí-
ses dependentes industrializados leva à fragmentação e
desigualdades internas, os valores relacionados à integri-
dade nacional e participação social devem ser transforma-
dos em instrumentos na luta política. Permitir ao Estado
e aos grupos burgueses comandar o estandarte do nacio-
nalismo - concebido não s6 em termos de soberania,
mas principalmente em termos de coesão interna e pro-
gressiva integração social - seria um erro com profundas
conseqüências. Não estou sustentando a idéia de que o
lado estratégico (ou revolucionário) das sociedades de-
pendentes industrializadas seja o "setor marginalizado".
Mas li crítica da marginalização, isto é, da superexploração
social como conseqüência do crescimento do capitalismo
é indispensável na análise política. Assim como, nestas

202
circunstâncias a organização das massas é requisito pera
a prática política.
Por este motivo não é realista esperar que e burgue-
sia nacional lidere a resistancia contra a penetração externa.
Conseqüentemente, a crítica da perspectiva da dependên-
cia não poderá estar baseada nos valores associados ao
nacionalismo burguês. Integridade nacional, como foi dito
acima, significa primariamente integração popular na Na-
ção e a necessidade de luta contre a forma específica de
desenvolvimento promovida pelas grandes corporações.
Do mesmo modo que o sindicalismo se torna um
perigo para as sociedades de capitalismo avançado, o de-
senvolvimento é um real ponto de atração ideológica par.a
os setores da classe média e operariado nos países latino-
-americanos. A resposta a este efeito de atração não pode
ser uma negação puramente ideol6gica do progresso eco-
nômico, quando ele existe realmente. A contestação deve
estar baseada em valores e objetivos poHticos que aumen-
tem a consciência da população com respeito às desigual-
dades sociais e à dependência nacional. .

203
TABELA I
CRESCIMENTO DO INVESTIMENTO DIRETO NORTE-AMERICANO
DE 1929 Att 1968

VALORES EM PORCENTAGEM DE
TAXA DE CRESCIMENTO
DÓLARES - 10P PARTICIPAÇÃO

1929 1950 1960 1968 1950-1960 Ii 1960-1968 1950 1960 1968

I I I
Todas as Regiões 9,5 I 11,8 31,9 64,8 10,4 I 9,3 100 100 100
Canadá 2,0 II 3,6 11,2 19,5 12,0
I
I 7,2 31 36 30
América Latina 3,5 I
I
4,6 8,4 13,0 6,2 I 5,6 39 26 20
Europa 1,4 1,7 6,7 19,4 14,7 II 12,4 14 21 30
Outras áreas 0,6 1,9 5,6 12,9 11,4 I 11,0 16 20
Secções II 11,3 I 11,5 32
17
35 41
Manufaturas 1,8 11,1 I 26,4
3,8
12,3 II 7,2 29 34 29
Petr6leo
Mineração
1;1
1,2 I
3,4
1,1
10,8
3,0
I 18,8
5,4
10,6 I
I
7,6 9 9 8

Outros 3,4 I 3,5 7,0 I 14,2


7,2 I
I
9,3 30 22
I
22

FONTE: Survey of Current Busines, elaboração de estatísticas da CEPAL.


In F. FAJNZYLBER, Estrategia Indv.strial 'J Empresas InternacíPnal/lS, Naciones Unidas, CEPAL, Rio,
november 1971.
TABELA 11
PORCENTAGEM DOS INVESTIMENTOS NORTE-AMERICANOS
bIRETOS EM MANUFATURAS COMPARADOS COM O TOTAL
DOS INVESTIMENTOS NORTE-AMERICANOS DIRETOS NA
. AMtRICA LATINA
TOTAL PARA I OUTROS
ANOS ,wWCA
LATINA
AaGBNTINA BaASIL
• I lima0
I pAlSBS

1929 7 25 25 1 4
1940 8 20 29 3 3
1946 13 39 39 21 6
1950 18 45 44- 32 7
1952 21 50 51 43 1
1955 22 51 51 45 7
1956 22 51 50 46 8
1959 17 43 53 47 7
1960 19 45 54 49 8
1961 20 43 54 50 7
1962 22 51 56 51 8

1963 24 55 59 55 8
1964 26 57 67 59 9
1965 29 62 67 64 11

1966 31 63 68 64 12
1967 32 63 67 66 13
1968 34 64 69 68 14

FONTE: Survey of Current Buaineu. divenos números. Investimen-


toa dot EUA Da economia Latino-Americana. AnüiIe da
CEPAL.
In F. FA]NZYLBER. op. cit., p. 204.

20'
TABELA 111
FONTES DE INVESTIMENTO
1957/1959 1960/1962 1963/1965 1957/1965
ÁREAS Fonte de Investimento Fonte de Investimento Fonte de Investimento Fonte de Investimento
E
SETORES
FI FL FEUA FI FL FEUA FI FL Ii FEDA FI FL FEUA

Todas as /.r.as 0,52 0,22 0,26 0,57 0,24-1 0,19 0,481 0,321 0,20 0,52 0,27 0,21
Mineração 0,46 0,13 0,4-1 0,631 0,20 I 017 0,681 0,261 006 0,60 I 0,20 I 0.20
Petr61eo 0,48 0,23 0,29 0,611 0,15/ 0,24 0,431 0,291 0,28 0,50 I 0,231 0,27
Manufatura
Canadá, Total
0,57
0,57
0,24-
1,13
0,19
0,30
0,53
0,70
0,30
0,12
I 0,17
0,18
0,491
0,641
0,35\
0,22
0,16
0,14-
0,511
0,641
0, 32 1
0,17
0,17
0,19
Mineração 0,40 0,20 0,40 0,52 0,14- 0,34 0,75/ 0, 23 1 0,02 0,581 0, 19 1 0,23
Petr61eo 0,4-2 0,24- 0,34 0,66 0,11 0,23 0.58 0,18 0,24 0,551 0,18 0,27
Manufatura 0,77 0,01 0,22 0,81 0,11 0,08 0, 63 1 0, 24 1 0,13 0,71 I 0,151 0,14-
AmJrica Latina, I I
Total 0,50 0,17 0,33 0,71 0,231 0,06 0,60 I 0,31 1 0,09 0,591 0,241 0,17
Mineração 0,46 0,01 0,43 1,08 0, 26 1---ú,34 1,04- 0,13 ---ú,17 0,781 0,14/ 0,08
Petr61eo 0,57 0,09 0,34 1,06 0,01 0,07 0,96 0,14- ---Ú,10 79 0,08 0,13
0,40 I 022 0,
Manufaturaa
Europa, Total
0,36
0,44-
0,40
0,37
0,24
0,19
0,38
0,42 0,30 I 0,28
0,38
0,40
0,40
0,38
0,22
0,22
0,38 1
0,41
0,40
0,35
I 0,22
0,24
Mineração
Petr61eo
-
0,30
---Ú,50
0,44-
0,50
0,26
1,25 ---Ú,50
0,33 0,111
I 0,25
0,49
0, 32 1
0,22
0, 23 1 0,45
0,40 0,38
0,44-
0,27
0,04
0,35
0,52
0,38
Manufaturaa 0,52 0,33 0,15 0,46 0, 35 1 0,19 0,47 1 0,37/ 0,16 0,48 0,36 0,16
Outras /.r.as 0,58 0,23 0,19 0,51 0,29 0,20 0,38 0,35 0,27 0,46 0,23 0,23
Mineração
Petr61eo
0,82
0,57
---Ú,18
0,23
0,36
0,20
0,48
0,55
0,30
0,24-
I 0,22
0,21
0,29/
0,36 0,
41 0,30
0,28 1 0,36
0,401
0,471
0,31 I
0,261
0,29
0,27
Manufaturaa 0,56 0,291 0,15 0,431 0,391 0,18 0,421 0,42 í 0,16 0,441 0, 39 1 0,17
i i i i i
FI = FundOl InterIlOl (Rein~estimento de lucros e fundos de depreciação); FL = Fundos Locais, ou Fundos pro-
venientes de pa[aa ten:eirot; FEUA = Fundos provenientes dos EUA.
FONTE: Survey 01 Currente Busineu, diversos nÚJnerot, analisadOl pela CEPAL.
In F. FAJNZYLBER, oI'. cit., p. 65.
TABELA IV (*)
PERIFERIA: FLUXO PARA O CENTRO DE LUCROS E JUROS
DO CAPITAL ESTRANGEIRO

INDICADOR PERÍODO/ANO

A - Periferia Total

Lucros e Juros (em bilhões de dólares) 1960 3.5


1969 7.0
lndice 1969 200
1960
Porcentagem das rendas de exportação 1960 13.4
1969 14.9
Porcentagem das rendas totais de capital 1960 49
1969 55
B - Ãmérica Latina

1. Lucros e Jurog (Valor acumulado


por decênio em bilhões de dólares)
1950-1959 10.3
1960-1969 18.1
lndice 1960-1969
1950-1959 176
Porcentagem das rendas de expor-
tação 1950-1959 12.4
Porcentagem das rendas totais de 1960-1969 15.3
capital
2. Diferença entre a entrada líquida de 1950-1959 119
inversão direta dos EUA e a remes- 1960-1969 103
sa de lucros para este país (Em bi-
lhões de dólares)
1960-1968 -6.7
Saldo acumulado da balança co-
mercial 1960-1965 +5.6

3. Porcentagem de fundos próprios da


filial e outros fundos locais sobre o
total da inversão direta dos EUA
na América Latina 1957-1959 67
1963-1965 91

(.) De A. PINTO e J. KNAKEL, "E1 sistema centro.periferia


20 anos· despues, op. cito

FONTES E NOTAS: Vide Tabelas 6 e 7 em A. PINTO e J. KNA-


KEL, op. cit., e CEPAL, Estudio Econômico
de América Latina 1970, op. cito

207
TABELA V (*)
AM~RICA LATINA: DIVIDA ExTERNA
(Valores acumulados por decênio em bilhões de d6lares)

1950-1959 1960-1969 fNDICB

A. Tratuaçõ" Financeiras Ex-


ternas
I. Bens e serviços - Balan-
ço líquido +3.41 +5.83 171
2. Renda liquida do capital
- totalCl/ +8.64- +17.54 203
3. Fluxo líquido de capital
-. total -1:t04 -22.28 171
a) Lucros e juros -10.28 -18.07 176
b) Capital nacional -
totalb/ -2.76 -4.21 153
4. Balanço líquido de capi-
tal (2-3) -4.40 -4.74 108
5. Capital compensat6rio lí-
quido +1.00 -1.10
Balanço liquido das tran-
sações (1+2+3+4+5)
B. Ativos, Passivos Acumulados
1. Reservas internacionaisC:/ 2.784 / 4.11'/ 148
2. Dívida total 9.591/ (34.36) 358
a) Divida pública 2.211/ 16.43/1/ 743
b) Investimento estran-
geiro direto 7.381/ 17.93'/ 243

C. Indicador,s Analfticos
1. Fluxo líquido de capital
a) Como % das exporta-
ções totais 15.7 18.0
b) Como % da renda lí-
quida de capital 150.9 127.0
2. Divida total
a) Em anos de exporta-
ção média 1.2 2.9
b) Em anos de renda
média do capital 11.1 19.6

FONTE: CEPAL, Estudio EcoOOmico de América Latina - 1970 -


"Tendencias y Estructuraa de la Economfa Latinoamericana,
B. Sector Externo". Tabelas - 18, 20, 22, 23. IMF, Intema-
tional FinanCiai Statistics, September 1954, May 1970.

(*) In A. PINTO e J. KNAKEL, "EI sistema centro-periferia 20


afios despues", op. cito

208
a/ - Empréstimos a custo médio e longo prazo, investimento direto e
doações oficiais
b/ - Capital nacional, doações privadas e "Erros e omissões" (cónsi-
derando-se estes últimos como, fluxo disfarçado de capitais)
c/ - Ouro e divisas estrangeiras
til - 1949
.1·- 1969
fI - 1950
II - 1968

209
BIBLIOGRAFIA

IÀvros:
1. ALTHUSSER, Louis et alii - IÀre le Capital. Paris, Maspero,
1967. 2 v.
2. CARDOSO, Fernando Henrique - Mudanças sociais na Amé-
rica Latina. São Paulo, DIFEL, 1969.
3. CARDOSO, Fernando Henrique & FALETTO, Enzo - De-
pendencia y desarrollo en América Latina. México, Siglo XXI,
1969.
4. DALAND, Robert T. - Estratégia e estilo do planejamento
brasileiro. Rio de Janeiro, Lidador, 1969.
5. FERNANDES, Florestan - The meaning 01 military dicta-
torship in present day in Latin American, in residence lecteu-
rers. Toronto, University of Toronto, 1970.
6. GIANNOTTI, José Arthur - Origines de la dialectique lu
travail. Paris, Aubier, 1971.
7. GONZALEZ CASANOVA, Pablo - Democracia en México.
México, ERA, 1965.
8. - Sociologia de la e'GPlotacion. México, Siglo xxi,
1970.
9. MARX, Karl - O Capital. México, Fondo de Cultura Econ6-
mica, 1966. 3 v.
10. - Grundrisse. Paris, Anthropos, 1967.
11. - Zur kritik der politische Okõnomíe. Berlim, Dietz,
1958.
12. MlNDLIN. Betty Lafer - O planejamento no Brasil. São
Paulo, Perspectiva, 1970.
13. POULANTZAS, Nicos - Pouvoir politique et classes sociales.
Paris, Maspero, 1968.

Capitulo de livro:
14. POULANTZAS, Nicos - "Breves remarques sur l'objet du
Capital". In FAY, Victor - En partant liu "Capital". Paris,
Anthropos, 1968.

210
Artigos de periódicos:
15. FURTADO, Celso - "De I'oligarchie à I'tltat militaire". Pa-
ris, LES TEMPS MODERNES (257) out. 1967.
17. JAGUARIBE, Hélio - "Stabilité sociale par le colonial-fas-
cisme". Paris, LES TEMPS MODERNES (257) out.- 1967.
18. LIPSET, S.M. - "Alguns requisitos da democracia: desen-
volvimento econômico e legitimidade pol1tica". Belo Horizonte,
REVISTA BRASILEffiA DE ESTUDOS POLíTICOS (13)
jan. 1968.
19. MENDES, Cândido - "Elite de poder, democracia e desen-
volvimento". Rio de Janeiro, DADOS (6) 1969.
20. - "O governo Castelo Branco: paradigma e prog-
nose". Rio de Janeiro, DADOS (2-3) 1969.
21. - "Sistemas politicos e modelos de poder no Bra-
sil". Rio de Janeiro, DADOS (1) 1966.

Docvmentos primários:
22. JAGUARIBE, Hélio - Enfoques sobre a América Latitla:
análise critica de recentes relatórios. Bariloche, CLACSO,
1970. (paper)
23. NUN, José et alii - Planteo general de la marginalidad en
America Latina. Santiago, ILPES, 1967. (paper)
24. QUIJANO, Anibal - Notas sobre el concepto de margin.ali-
dad social. Santiago, CEPAL, 1966. (paper).

211
íNDICE

Prefá.cio . 1
CAPITuLO I - Alternativas politicas na América Latina .. 5
CAP11'ULO 11 - Industrialização, dependência e poder na
América Latina . 31
CAP11'ULO m - O modelo pol1tico brasileiro 50
CAPITULO IV - Aspectos politicos do planejamento no Brasil 83
CAP11'ULO V - Althusserianismo ou marxismo? A propó-
sito do conceito de classes em Poulantzas 104
CAPITULO VI - "Teoria de dependência" ou análises concre-
tas de situações de dependência? 123
CAPITULO VII - Comentá.r1o sobre os conceitos de superpo-
pulaçlio relativa e marginalidade 140
CAP11'ULO vm - Participaçlio e marginalidade: notas para
uma discussão teórica 166
CAPITULO IX - Imperialismo e dependência na América
Latina 186
J
li

;
I
i

*
Este livro fof. composto e
impresso pela EDIPE Artes
Grl1ficas, Rua Domingos
Paiva, 60 - 540 Paulo.

"" r~--'"
1),~1 2) 1lf7
3Z: 330.3~ (1/0>4)";:" 6'l0 (~l.)

C:L bS f)}L
" ... SERA QUE OS VALORES DEMOCRATICOS
FUNDAMENTAIS <DIREITOS DO HOMEM. LmERDADE
DE INFORMAÇAO. DE EXPRESSÃO DO PENSAMENTO,
DE ORGANIZAÇÃO ETC') SÃO COMPATíVEIS COM
OS OBJETIVOS DO CRESCIMENTO ECONOMICO
ACELERADO (JUSTIFICADO IDEOLOGICAMENTE EM
TERMOS DE ASSEGURAR "MELHORES CONDIÇOES DE VIDA
E DE TRABALHO". OU SEJA. DE "DEMOCRACIA SOCIAL")
E COM A CONVIV1!:NCIA ENTRE REGIMES DISTINTOS
EM PAíSES SUBDESENVOLVIDOS NOS QUAIS OS
CANAIS DE REGULAMENTAÇÃO DE CONFLITOS SÃO ESCASSOS
E. GERALMENTE, VIOLENTOS?"

DIFUSÃO EUROPÉIA DO LIVRO

~.-

Você também pode gostar