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SERTÕES:
IMAGINÁRIOS,
MEMÓRIAS E POLÍTICAS
As invenções do Nordeste:
quais são os imaginários que definem os
sertões brasileiros?
Artes e ciências
contemporâneas sertanejas:
busca de novas narrativas
A Revista Observatório 25 trata dos
sertões brasileiros. O tema figura como um
manancial de mundos, de imaginários, de
significados e da diversidade simbólico-
cultural e territorial que o definem. A
edição traz um repertório contemporâneo
desse sertão, tentando abordar como
se entendem as representações e as
identidades, que se manifestam nas artes
do sertão, e como se dão as memórias e as
resistências, trazendo reflexões sobre a
política cultural e os modelos sustentáveis
nela inseridos.
4 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
AOS LEITORES 5
Memória e Pesquisa / Itaú Cultural
Semestral
E
sta edição da Revista Observatório competitiva a partir da década de 1970 não
Itaú Cultural tem como objeto um diluíram esse repertório telúrico, sentimen-
tema/mundo. Esse tema/mundo tal e mágico que define o mosaico dos mun-
não sugere imprecisão na escolha do tema, dos rurais brasileiros. Antes, o contrário.
mas, antes, que o tema evocado figura como Esses mundos se multiplicaram ainda mais,
um manancial de mundos, de imaginários, de principalmente por meio da música popu-
repertórios de significados e da diversidade lar, da televisão e do cinema. Há uma senha
simbólico-cultural e territorial que define os que os acessa, e, tal qual sugere o sociólogo
sertões brasileiros. Significa assinalar que, Norbert Elias, essa senha diz respeito a um
em uma sociedade predominantemente ru- símbolo conceitual portador de um formi-
ral até por volta dos anos 1960, as experiên- dável acervo de significação. Esse símbolo
cias simbólicas, afetivas e orais dos mundos conceitual diz respeito à palavra sertão. Pou-
rurais brasileiros constituem uma parte cas palavras na língua portuguesa falada e
vibrante e recôndita do mosaico da nossa escrita no Brasil são tão prenhes de signifi-
identidade nacional. São memórias lúdicas, cados quanto “sertão”. Seu conteúdo é consti-
gustativas e comunitárias que repousam nas tutivo do nosso complexo e sinuoso processo
sensibilidades de grupos, classes e coletivi- de nacionalização dos sentimentos e afetos
dades mais amplas e que compõem os fluxos (ELIAS, 1991). Há um naco vibrante de ser-
de fantasias de milhões de brasileiros – nor- tão em cada brasileiro e em cada brasileira.
destinos, caipiras paulistas, gaúchos, goia- Não há oportunidade mais alvissarei-
nos, mineiros e pantaneiros, entre outros. ra e fecunda para se tratar do sertão do que
A densidade urbana e a consolidação no final da segunda década do século XXI.
de uma sociedade industrial, impessoal e Por três razões fundamentais. A primeira
10 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
porque as políticas públicas que tencionam desses artefatos que compõem esses mes-
promover a cidadania cultural e o exercício mos mundos, como as Indicações Geográfi-
dos direitos culturais têm nos sertões e nos cas (IGs), que contribuem para a promoção
mundos rurais brasileiros um grande desafio. do turismo rural e ambiental sustentável,
Por um lado, essas políticas, levadas a termo para a busca de novas experiências e para a
por instituições nacionais, locais e organis- valorização da diversidade socioambiental
mos transnacionais (como a Unesco), con- e histórico-cultural. São essas tecnologias,
tribuíram para a valorização dos saberes, dos combinadas a novos engajamentos empre-
fazeres e das crenças das comunidades rurais sariais e a ativismos culturais e ambientais,
(indígenas, quilombolas etc.), assim como de que permitem a emergência de modelos de
determinadas coletividades, como artesãs, la- negócios sustentáveis, capazes de gerar tra-
vadeiras, cordelistas, cozinheiras, rezadeiras, balho, emprego, renda e dignidade.
vaqueiros, pescadores e agricultores, entre Por fim, a terceira razão que torna
outras. Logo, os mundos rurais brasileiros, já essa escolha temática tanto mais relevan-
ricos em seus repertórios expressivos, ganha- te concerne à necessidade de recuperação
ram um novo reconhecimento, atestando, de e pesquisa acerca da gênese das memórias
modo institucional e jurídico, a sua diversida- e das narrativas envolvendo as identidades
de e pluralidade de mundos – um patrimônio regionais. É aqui que repousam as maiores
imaterial digno de promoção e valorização. tensões, resultado da construção de estigmas
Por outro lado, diante da escassez de recursos seculares, formas de silenciamento e domi-
econômicos e da dificuldade de gestão polí- nação. Em um momento global de disputas
tica, promoção e valorização desses mundos, pelas afirmações das memórias, as políticas
os governos locais e estaduais têm declinado de memórias – ancoradas na recuperação de
da proteção e da promoção dos mundos e dos traços do passado, na gênese dos significados
sertões que nos constituem, cedendo a pres- e na desnaturalização de verdades aparente-
sões momentâneas e, logo, aos fechamentos mente incontestes – tornam-se também uma
dos mundos, reduzindo, assim, os horizontes nova arena de busca pelo reconhecimento e
de fruição da diversidade cultural brasileira. pela afirmação da diversidade regional, étni-
A segunda razão para se tratar dos ca, geracional, racial e de gênero. As políticas
sertões decorre da possibilidade do desen- da memória se expressam, por exemplo, nas
volvimento local sustentável, seja por meio ações de valorização das memórias africanas
da valorização de saberes e fazeres rurais e indígenas no Brasil e na América Latina, por
encarnados em produtos (artesanatos, culi- meio da criação de museus específicos, espa-
nária, gêneros agrícolas, aguardente e cria- ços culturais, bibliotecas, rotas e destinos tu-
ções artísticas, entre muitos outros), seja por rísticos, centros de documentação, pesquisas,
meio da difusão de tecnologias de valorização eventos acadêmicos.
AOS LEITORES 11
Essas três razões fazem da pesquisa, do seu território, a cidade de Salvador e a re-
análise e reflexão acerca dos sertões brasilei- gião do Recôncavo. A autora desnuda como
ros um tema tão candente e necessário. Para um estado que tem 75% do seu território
abarcar e explorar essa pluralidade de mun- localizado no semiárido, com uma grande
dos, são necessários também recursos multi- multiplicidade simbólico-cultural, tem sua
facetados. Precisamente por esse aspecto, os identidade hegemonizada por apenas uma
trabalhos aqui reunidos, artigos e entrevistas, representação específica.
são necessariamente multifacetados. São Ainda na primeira parte, tem-se a con-
depoimentos e relatos que cobrem a diver- tribuição de Henrique Fontes. Trata-se de
sidade dos nossos sertões, das suas distintas um relato muito valioso. É formidável como
geografias sentimentais, das suas tensões e o sucesso de um texto acadêmico (o livro A In-
disputas, dos seus fluxos e refluxos, das atua- venção do Nordeste e Outras Artes, de autoria
lizações e ressignificações contemporâneas, do historiador Durval Muniz de Albuquerque
da mutação dos sentidos e das cristalizações Jr.) tenha circulado e motivado a feitura de
no tempo, no espaço e nas memórias. uma obra teatral que percorre o país. Fontes
Abrindo esta edição, logo em sua primei- descreve como o livro resultou no espetácu-
ra parte, temos o artigo de Durval Muniz de lo A Invenção do Nordeste, do Grupo Carmin.
Albuquerque Jr. Sobejamente conhecido, o Explorando as veredas do sertão-Nordeste,
historiador revela, com maestria e contun- logo em seguida figura o artigo de Adones Va-
dência, o processo de “rapto” do Nordeste e do lença. Prodigioso artista popular sergipano,
sertão nordestino. Já o artigo da pesquisadora Adones foi descoberto pela exitosa política
Maria Geralda explora outro sertão, aquele do projeto Rumos, criado e consolidado pelo
do Centro-Oeste, onde duas diversidades se Itaú Cultural. O seu relato confere ainda mais
combinam para revelar mundos simbólico- força simbólica ao sertão nordestino e tudo
-culturais e ambientais. Na imensidão dos que o constitui – o cangaço, o isolamento ter-
biomas do Pantanal e do Cerrado também se ritorial, as lendas, os coronéis, os vaqueiros
encontram crenças, danças, rituais e formas e o messianismo religioso. Como desdobra-
de transmissão de memórias que fazem dos mento, João Júnior elege como objeto um
sertões brasileiros verdadeiros enigmas. Na dos fenômenos socioculturais mais densos
sequência, o premiado trabalho de Cláudia e dramáticos da história do Brasil, o grande
Pereira Vasconcelos traz uma contribuição ciclo migratório vivido pelo numeroso con-
notável. Intitulado Ser-tão Baiano, nele a tingente de sertanejos-nordestinos para São
autora problematiza o processo de silencia- Paulo desde os anos 1950. O autor mobiliza
mento e invisibilidade de uma identidade ru- o relato de migrantes cuja existência esteve
ral, interiorana e pastoril nos limites de um marcada pela necessidade do deslocamen-
estado identificado com apenas uma porção to e da sobrevivência, pela saudade, pelas
12 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
Sertanejo: a Luz da Obra de Elomar Decom- Piauí, Paraíba e Sergipe como Roteiros, revela
posta em um Espectro de Cores, em torno da as potencialidades do turismo cultural e os
poética musical do cantor e trovador Elomar, usos dos direitos autorais coletivos permiti-
é uma poderosa vereda mítica, pois mobiliza dos pelas Indicações Geográficas, cruzando
a criação de um artista contemporâneo cria- aspectos como economia criativa, Indicações
dor e recriador do medievalismo do sertão Geográficas e desenvolvimento regional/
do Nordeste brasileiro. Já a entrevista com local. Trata-se de uma agenda que pode ser
a arqueóloga Niède Guidon revela uma face convertida em políticas sistemáticas, do-
ainda mais longínqua, de uma longa duração tadas de maior capilaridade e abrangência,
histórica, geológica e arqueológica que re- capaz, portanto, de revelar novos mundos. No
monta aos primeiros habitantes do território mesmo diapasão, Wanderson José Francisco
brasileiro das Américas. Niède traz, em suas Gomes descortina os impactos econômicos
vivências de pesquisadora e experiências de locais no município de Piranhas, em Alagoas,
gestora, décadas de conhecimentos e propos- decorrentes da construção e consolidação
tas de desenvolvimento do Parque Nacional de um destino turístico até recentemente
da Serra da Capivara. É uma personagem muito pouco conhecido. Em seguida, temos
digna de reverência e muita inspiração. o trabalho de Alexandre Barbalho. Um dos
Abrindo a quarta e última parte está o pesquisadores mais competentes no que
trabalho de Juracy Marques, intitulado Eco- tange à investigação das políticas culturais
logia e Política do Projeto de Transposição do no Brasil, Barbalho realiza um elucidativo
Rio São Francisco. O autor destaca os inte- balanço histórico e regional sobre a temática.
resses econômicos em torno de um bem cada Já o relato de Alemberg Quindins, músico de
vez mais escasso, a água, e as possibilidades formação popular, historiador autodidata e
de organização institucional para regular o criador da Fundação Casa Grande – Memo-
capital e os seus interesses no processo de rial do Homem Kariri, é um exemplo categó-
privatização desse recurso tão valioso. Em rico de um artista, produtor e gestor cultural
consonância com Juracy, Fernanda Cruz que traz o sertão nordestino nos punhos e
mobiliza com muita propriedade as relações nas fábulas das quais é resultado. Trata-se
complexas entre o processo de convivência de um fabulador e tradutor de mundos, que,
com o semiárido e a luta feminista pela orga- de modo muito vibrante e criativo, organiza
nização social em torno da agroecologia e da formas de criação e produção cultural sobre
agricultura familiar, revelando o êxito formi- a mitologia nordestina, contribuindo direta-
dável de instituições e movimentos sociais. mente para inseri-la nos fluxos digitais e nos
Na sequência, o criativo e rigoroso tra- mecanismos de globalização das imagens.
balho de Janaina Cardoso de Mello, intitula-
do Turismo Cultural & Indicação Geográfica: Elder Patrick
7. Aos leitores
Elder Patrick
1. SERTÕES, IDENTIDADES
E REPRESENTAÇÕES
2. ARTES E CULTURA NO SERTÃO
3. MEMÓRIAS E
RESISTÊNCIAS DOS SERTÕES
4. POLÍTICAS CULTURAIS &
MODELOS SUSTENTÁVEIS:
EM BUSCA DA CONVIVÊNCIA COM
119. Véio, um ser(tão): relato sobre O SEMIÁRIDO
uma viagem sertaneja
Fernanda Castello Branco 155. Ecologia e política do projeto de
transposição do Rio São Francisco
125. No encontro das águas: Juracy Marques
mulheres camponesas do
Sertão do Pajeú transformando 170. Agroecologia e convivência com
o semiárido o semiárido: quebrando paradigmas,
Juliana Funari transformando vidas
Fernanda Cruz
134. O sertão não é longe daqui:
tradição e migração das almas 184. Turismo cultural & indicação
entre católicos e evangélicos no geográfica: Piauí, Paraíba e Sergipe
novo semiárido como roteiros
Moacir Carvalho Janaina Cardoso de Mello
O RAPTO DO SERTÃO:
A CAPTURA DO CONCEITO DE SERTÃO PELO
DISCURSO REGIONALISTA NORDESTINO
Durval Muniz de Albuquerque Júnior
Este texto trata das motivações históricas que fizeram com que a categoria sertão, que
até o século XIX descrevia qualquer área do país que ficava para além do litoral e das cidades,
fosse capturada paulatinamente pelo discurso regionalista nordestino, a ponto de o sertão ser
oficialmente incorporado como uma sub-região do espaço nordestino. Aborda-se como, ao longo
do final do século XIX e do século XX, o sertão foi sendo associado, pelos discursos literários,
parlamentares, técnicos, jornalísticos e artísticos, a temas como a seca, a semiaridez, a caa-
tinga, o cangaço, o messianismo e o coronelismo, raptando o sertão para o espaço nordestino.
A
té o início do século XX, o sertão timentos mais primários de um ser humano.
era todas as terras que ficavam O sertão seria marcado pela ausência do Es-
afastadas da costa, que ficavam tado, pelo poder discricionário dos mandões,
distantes das aglomerações urbanas que se dos valentes, dos destemidos, impérios das
distribuíam por todo o litoral brasileiro. O armas e do crime, da luta em defesa da honra,
sertão estava em todas as províncias, em to- terra a exigir destemor e coragem.
dos os estados, terras que eram de todos, ter- Na primeira metade do século XIX, o
ras que eram de ninguém. O sertão era visto e conceito de sertão ainda guarda os sentidos
dito na literatura, nos discursos parlamenta- ligados a sua origem etimológica, pois sertão
res e no discurso jornalístico como o outro da viria do latim sertãnu ou sertu, significando
civilização, do progresso, do adiantamento, “bosque, do bosque”, ou da palavra latina
da ilustração. Em O Sertanejo (1875) e Irace- desertãnu, significando “região deserta”. Há
ma (1865), de José de Alencar (ALENCAR, ainda quem a derive de uma palavra de ori-
1987, 1997), a terra habitada pelo sertanejo gem angolana, mulcetão, que significava “terra
e/ou pelos indígenas era marcada por uma entre terras”, “local distante do mar”, “lugar
natureza luxuriante, ao mesmo tempo idíli- interior”. A palavra surge grafada na docu-
ca e inóspita. Em Memórias de um Sargento mentação do século XV de várias maneiras:
de Milícias (1853), de Manuel Antônio de sartão, sertaão, ssertaão, sertão (CUNHA,
Almeida, era a terra da vida simples, rude, 2010). Ela já aparece na Crônica do Descobri-
primitiva, sem artifícios, movida pelos sen- mento e Conquista de Guiné, de Gomes Eanes
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É durante a ocorrência desse fenômeno para que o Governo Central se voltasse com
que se dá uma das primeiras demonstrações maior atenção para esse espaço do país. Em-
explícitas da existência de um discurso re- bora sendo elites da Zona da Mata, elas não
gionalista que começava a emergir nas cha- deixam de olhar para o sertão e dar visibili-
madas províncias do Norte. Alijadas pelo dade ao que seria o seu problema.
Império do convite feito aos grupos agrários A seca de 1877-1879 é a primeira a ter
para um congresso agrícola a se realizar no repercussão nacional, o que dá a ela também
Rio de Janeiro, visando debater os angus- a sua especificidade. Tendo ocorrido após
tiosos problemas da lavoura cafeeira – o fim um período de cerca de 25 anos da última
do tráfico de escravos e a consequente imi- ocorrência do fenômeno, a seca de setenta
nência do fim da escravidão, acarretando a encontra uma imprensa já bastante presente
chamada falta de braços para em todo o território nacional.
a lavoura, a falta de crédito, a A seca de 1877-1879 Ela é a primeira a levar para
questão cambial etc. –, as eli- entrará para a memória as páginas dos jornais as nar-
tes açucareiras do Norte do como a “grande seca” e rativas chocantes de pessoas
Império realizam, em 1878, dará origem ao discurso vítimas da fome extrema, da
da seca, tornando essa
o Congresso Agrícola do Re- miséria absoluta, morrendo
temática central no
cife, no qual a denúncia da pelas estradas e pelas ruas
emergente discurso
política discriminatória do regionalista do Norte e de inanição, desidratação e
Império em relação à agri- base para a montagem do vítimas das inúmeras doen-
cultura nortista ganhou foros que passou a se chamar ças que se espalhavam nos
de separatismo em algumas de indústria da seca. ajuntamentos dos retirantes.
falas. Tendo sido palco, desde Ela também conta com o sur-
o início do século XIX, de movimentos que gimento e desenvolvimento da tecnologia
iam da defesa do federalismo até a defesa fotográfica, que permitirá que as elites letra-
da secessão em relação ao restante do país, das de outras partes do país vejam, pela pri-
Pernambuco era mais uma vez palco de um meira vez, as imagens chocantes dos corpos
movimento de contestação à centralização cadavéricos de crianças filhas dos retirantes.
monárquica (MELLO, 1999). Esboça-se aí O jornalista negro José do Patrocínio de-
uma solidariedade entre as elites dirigentes sempenhou um importante papel na trans-
das províncias do Norte que será fundamen- formação da seca do Ceará em uma temática
tal para o surgimento, no início do século nacional, pela comoção que suas reportagens
XX, do recorte regional Nordeste (ALBU- para o jornal Gazeta de Notícias do Rio de Ja-
QUERQUE JR., 2011). Até o momento em neiro provocaram na capital do país. Enviado
que ocorre, o Congresso Agrícola do Recife, ao Ceará como correspondente para cobrir os
embora dominado pelos interesses das elites acontecimentos que lá se passavam, acom-
açucareiras, de uma área não sujeita às secas panhado de um fotógrafo, Patrocínio escre-
periódicas, não deixa de tratar do chamado ve crônicas marcadas por sua solidariedade
problema da seca e tomá-lo como argumento com os retirantes e pela denúncia contra os
24 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
poderes públicos, que, além de não socorre- ocorrências de 1877-1879. Além de Patrocí-
rem a população, passaram a se aproveitar nio, vários escritores vão dedicar ao fenôme-
dos socorros públicos e privados que come- no da seca do Norte alguns de seus escritos.
çaram a chegar, vindos do governo imperial e Seguindo o chamamento feito ainda em 1876
da caridade de particulares em todo o país. As pelo escritor cearense Franklin Távora para
reportagens que enviou, acompanhadas das que fosse constituída uma literatura do Norte
fotos extremamente chocantes de corpos ca- (TÁVORA, 1981), autores como Rodolfo Theó-
davéricos, fizeram a seca do Norte surgir como filo e Domingos Olímpio, e livros como A Fome
um problema a ser enfrentado nacionalmente, (1890) e Luzia-Homem (1903) foram dando
e não apenas pelas províncias figurabilidade às secas, a seus
que eram por ela afetadas. Ao As teorias raciológicas se personagens e ao seu espaço:
transformar o que presenciou imbricavam com as teorias as terras sertanejas, o sertão
em um romance, que nomeou geodeterministas para (TEÓFILO, 2011; OLÍMPIO,
Os Retirantes (PATROCÍNIO, explicar o grande evento 1998; ALBUQUERQUE JR.,
1973) e publicou em 1879, ano ocorrido nos sertões 2017). Mas, sem dúvida, o
em que teve fim o fenômeno, baianos, numa narrativa grande monumento literário
forjada em poderosas
dando visibilidade a esse per- que definitivamente introduz
imagens que se torna
sonagem e definindo seu perfil a temática do sertão, inclusi-
um arquivo inesgotável
em grande medida, Patrocínio de tropos, temas e ve na discussão da questão da
vai colaborar para a emer- enunciados acerca da nacionalidade, da brasilidade,
gência da associação entre o paisagem e do da identidade nacional, foi es-
conceito de sertão e o espaço homem sertanejo. crito e publicado nos primei-
de ocorrência das secas. Pau- ros anos do século XX pelo
latinamente, estabelece-se a sinonímia entre jornalista, escritor e militar paulista Eucli-
sertão, semiárido e ocorrência das secas, terra des da Cunha. Fruto de sua experiência como
dos retirantes. correspondente do jornal O Estado de S. Paulo
Mas não é apenas José do Patrocínio que na cobertura da Guerra de Canudos, Euclides
contribui para iniciar esse processo de asso- fez de sua vivência do sertão baiano e de seu
ciação entre o espaço de ocorrência das secas contato com os sertanejos – que resistiram,
e o conceito de sertão. A chamada grande seca quase até o último homem, na defesa do seu
de 1877-1879 foi objeto de atenção também arraial contra as forças do governo republica-
dos discursos parlamentares, governamen- no – uma narrativa que se pretendia analítica
tais, técnicos e até religiosos, em que quase e interpretativa do fenômeno do fanatismo
sempre figurava essa remissão ao espaço religioso, utilizando para isso as mais moder-
sertanejo como aquele em que estavam se nas teorias de interpretação do social de base
dando os acontecimentos ligados à estiagem. positivista, naturalista e social-darwinista.
Entre esses discursos, destacam-se o da cha- As teorias raciológicas se imbricavam com as
mada literatura das secas, resultado justa- teorias geodeterministas para explicar o gran-
mente da emergência dessa temática com as de evento ocorrido nos sertões baianos, numa
SERTÕES, IDENTIDADES E REPRESENTAÇÕES Durval Muniz de Albuquerque Júnior 25
narrativa forjada em poderosas imagens que Não é mera coincidência que os sertões das
se torna um arquivo inesgotável de tropos, Gerais e seus moradores tenham inspirado a
temas e enunciados acerca da paisagem e do segunda obra-prima sobre o espaço dos ser-
homem sertanejo. O livro Os Sertões (1902) tões, o romance do médico, diplomata e es-
torna-se uma fonte permanente de imagens critor mineiro João Guimarães Rosa, Grande
e textos, sempre consultada quando se quiser Sertão: Veredas (1956) (ROSA, 1967).
dizer e fazer ver o sertão. Os livros de estreia Mas, antes do monumento literário es-
de grandes nomes do que será a literatura crito por Rosa, outros escritores cariocas,
nordestina e o chamado romance de 30 tive- mineiros e paulistas já haviam escrito sobre
ram no livro vingador de Euclides da Cunha a temática sertaneja. Ainda em 1872, o cario-
a sua inspiração (CUNHA, 1902). É possível ca Visconde de Taunay publicou Inocência,
encontrar as imagens euclidianas tanto em um romance de temática sertaneja, que re-
A Bagaceira (1928), de José Américo de Al- forçava a imagem de rusticidade e, ao mes-
meida, quanto em O Quinze (1930), de Rachel mo tempo, de ambiente regido por estritos
de Queiroz, obras que serão muito importan- códigos de moralidade e honra masculinas
tes nesse processo de captura do sertão pelo e femininas. É dele também uma obra pu-
regionalismo nordestino (ALMEIDA, 1978; blicada postumamente, em 1923, intitulada
QUEIROZ, 2010). Visões do Sertão (TAUNAY, 1981 e 1923). Em
No entanto, no início do século XX, o ser- 1898, o jornalista, jurista e escritor mineiro
tão ainda é tema de escrita e preocupação por Afonso Arinos de Melo Franco publicou o
parte de autores de outras áreas do país. Em conjunto de contos intitulado Pelo Sertão
São Paulo, notadamente, onde a conquista (ARINOS, 1981), fazendo desse espaço o
dos sertões pelo bandeirantismo serviu de lugar da naturalidade, da autenticidade,
narrativa mestra na construção da identi- mas também do inusitado, do sobrenatural
dade regional, com a destacada participação e do místico. Assim como acontecerá com o
de autores ligados ao Instituto Histórico e sertão figurado pelas narrativas nordestinas,
Geográfico de São Paulo, fundado em 1894, marcado pela violência do cangaço, pelo po-
ainda é muito presente a temática sertaneja, der discricionário, pela defesa de um estrito
ao lado da temática do caipira, quase sempre código de honra e virilidade pelos coronéis,
um personagem destacado nas narrativas sa- pelo misticismo dos beatos, essa produção
tíricas ou humorísticas. Outro estado do país em torno do sertão, que vem de autores de
em que a temática dos sertões continua tendo outros espaços do país, traz sempre consor-
uma presença marcante é Minas Gerais. Sua ciadas a fé e a violência, o poder sem peias e
condição de território sem acesso ao mar e o a coragem pessoal.
fato de seu desenvolvimento histórico ter se O rapto da categoria sertão pelo discur-
dado com a procura e exploração das minas so regionalista nordestino foi antecedido e
por parte de expedições de bandeirantes e en- possibilitado por discursos e práticas institu-
tradistas tornam a temática sertaneja muito cionais que antecederam a própria invenção
presente em sua cultura artística e literária. do Nordeste. Ainda se utilizando da categoria
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1918, 194-; ALBANO, 1969). Obras como Ter- literárias e poéticas de suas gentes, nas suas
ra do Sol (1912), Heróis e Bandidos (1917), Ao formas de ser, em seus comportamentos e
Som da Viola (1921), Praias e Várzeas: Alma gestos, considerados estranhos e distintos
Sertaneja (1923), de João do Norte (Gustavo em relação às gentes do litoral e das cidades.
Barroso), que carregava a identidade nortis- Essas obras vão contribuir para definir
ta até no pseudônimo; Cantadores: Poesia e outro elemento que particularizaria e daria
Linguagem do Sertão Cearense (1921), Vio- perfil distinto ao sertão que será posterior-
leiros do Norte (1925), Sertão Alegre (1928), mente chamado de nordestino, ou seja, esse
de Leonardo Mota; Meu Sertão (1918), Alma sertão que, além de uma paisagem, de uma
do Sertão (194-), de Catulo da Paixão Cearen- natureza distinta, da qual as secas e a caa-
se; e Jeca Tatu e Mané Xiquexique (1919), de tinga seriam os principais elementos defi-
Ildefonso Albano, dão ao sertão o que seria a nidores, possuiria uma cultura própria. Os
sua alma, plasmada nas produções culturais, sertões do Norte e, em seguida, os sertões
28 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
nordestinos representariam um arquivo, uma do órgão federal que estava sendo criado.
reserva de expressões culturais considera- Embora fosse um recorte meramente terri-
das autenticamente nacionais, manifestações torial, não se constituindo ainda um conceito
culturais não maculadas e deturpadas pelas que designasse uma identidade regional, o
influências externas, do estrangeiro ou da termo Nordeste passa a ser associado, nes-
cidade. Notadamente as camadas populares se discurso técnico, insistentemente às pro-
e suas matérias e formas de expressão cultu- blemáticas das secas e às obras e medidas
rais, definidas por esses autores como sendo que deveriam ser levadas a efeito pelo poder
folclóricas, significariam um repositório de público para solucionar esse problema (AL-
inspiração para a produção de uma cultura, BUQUERQUE JR., 1988).
de uma literatura e de uma arte nacionais. Esse fato é motivo de queixa por parte
Esse sertanismo, que depois é rotulado de de Gilberto Freyre quando escreve o livro
pré-modernista, traz a marca de um olhar, ao Nordeste, publicado em 1937, texto que se
mesmo tempo, de superioridade e distância, constitui na certidão definitiva de nascimen-
de condescendência, curiosidade e empatia to e existência dessa região como um todo à
de letrados da cidade em relação às produ- parte no país (FREYRE, 1985). Ao iniciar o
ções culturais, aos modos de vida das gentes texto, Freyre constata, com certa contrarie-
simples do sertão. Uma diferença que apare- dade, que o conceito de Nordeste, que a pala-
ce na própria narrativa, entre a fala erudita e vra Nordeste seria uma “palavra desfigurada
competente do narrador e a fala deficitária pela expressão ‘obras do Nordeste’, que quer
do narrado, muitas vezes tornando-se mo- dizer: ‘obras contra as secas’”. E prossegue di-
tivo de riso. O sertão é também esse lugar da zendo que a palavra Nordeste “quase não su-
distância cultural, o espaço do anacronismo, gere senão a seca”. Ou seja, de saída, o autor
de um passado, de tradições, de costumes que constata a sinonímia entre Nordeste e secas,
atravessam os tempos, infensos a mudanças. estabelecida pela atuação da Ifocs, e a reper-
O sertão é uma distância no tempo e no espa- cussão, inclusive em termos de escândalos
ço (ALBUQUERQUE JR., 2013). de corrupção, das chamadas “obras contra
A produção escrita nascida do trabalho as secas”, expressão popularizada ainda no
de técnicos ligados à Inspetoria Federal de governo Epitácio Pessoa, primeira gestão
Obras contra as Secas (Ifocs) também em de atuação desse órgão. Mas ele prossegue,
muito contribui para a afirmação inicial da dizendo que a palavra Nordeste remetia
singularidade do sertão nordestino e, poste- também “aos sertões de areia seca rangendo
riormente, para que ele apareça como sendo debaixo dos pés. Os sertões de paisagens du-
o sertão, relegando as outras partes do país ras doendo nos olhos” (FREYRE, 1985, p. 5).
a terem apenas interior e não mais sertões. Ou seja, além da sinonímia entre Nordeste e
É no documento de criação da Ifocs, em seca, havia já se estabelecido, nesse final dos
1919, que aparece pela primeira vez em um anos 1930, uma sinonímia entre Nordeste e
documento oficial a designação “Nordeste” sertão, entre Nordeste e dados sertões, en-
para dar conta de definir a área de atuação tre Nordeste e dada imagem e paisagem do
SERTÕES, IDENTIDADES E REPRESENTAÇÕES Durval Muniz de Albuquerque Júnior 29
sertão, aquele marcado pelo seco, pelo duro, verdadeiro arquivo audiovisual vinculan-
pelo anguloso, pelo pouco, pelo menos, pelo do os conceitos de Nordeste e de sertão. Os
espinhoso, como aparecerá na obra-prima do lamentos de Freyre no livro Nordeste são o
escritor alagoano Graciliano Ramos, publica- sinal eloquente de que, embora o Nordeste
da um ano após o livro de Freyre, Vidas Secas como região tenha seu epicentro de elabo-
(1938) (RAMOS, 1984). Essa produção de ração em Pernambuco, em Recife e nas eli-
um discurso técnico terá continuidade com tes ligadas à produção açucareira – como
órgãos como o Departamento Nacional de ele procurará plasmar no final da década de
Obras contra as Secas (DNOCS), surgido da 1970, com a criação do Museu do Homem
reformulação da Ifocs em 1945, o Banco do do Nordeste, da Fundação Joaquim Nabu-
Nordeste, fundado em 1952, e a Superinten- co, fruto de sua atuação como parlamentar
dência do Desenvolvimento na legislatura de 1946-1950
do Nordeste (Sudene), cria- Notadamente as camadas –, foi a produção intelectual
da em 1959. O Boletim da populares e suas matérias e artística ligada ao sertão
Inspetoria Federal de Obras e formas de expressão e, mais particularmente, ao
contra as Secas se consti- culturais, definidas por Ceará que terminou por pre-
esses autores como sendo
tuiu no veículo privilegiado valecer na hora de definir o
folclóricas, significariam um
desse discurso técnico, que que é o Nordeste.
repositório de inspiração
contou com os trabalhos e a para a produção de uma Ora, sendo desde o
colaboração de engenheiros cultura, de uma literatura e século XIX o espaço de
agrônomos, veterinários, de uma arte nacionais. ocorrência da seca por ex-
zoólogos, botânicos, geólo- celência, sendo o estado
gos, como Rodolpho Theodor von Ihering, nordestino em que até o litoral se encontra
José Augusto Trindade, José Guimarães Du- praticamente no sertão, a prevalência do
que, Alberto Löfgren, Paulo de Brito Guerra, imaginário criado pela produção cultural
Teófilo Pacheco Leão, Inácio Ellery Barreira cearense contribuiu decisivamente para
e tantos outros. Eles vão definir tecnicamen- estabelecer a sinonímia entre Nordeste
te o que politicamente ficaria definido como e sertão, sertão e semiaridez. O próprio
sendo o Polígono das Secas, ou seja, a área Freyre colaborou enormemente para isso
afetada por esse fenômeno meteorológico, ao patrocinar a publicação – no mesmo ano
objeto de disputa e interesse, notadamente que deu a lume o seu próprio livro sobre o
após a criação da Sudene, que tomaria essa Nordeste, na coleção Documentos Brasi-
demarcação como sua área de atuação, em- leiros, da editora José Olympio, da qual era
bora fosse um órgão destinado ao planeja- diretor na oportunidade – da obra do juris-
mento do desenvolvimento do Nordeste. ta e sociólogo cearense Djacir Menezes O
Esse rapto do sertão pelo regionalis- Outro Nordeste (1937). Essa obra, única na
mo nordestino não teria sido possível sem trajetória de um estudioso do pensamen-
a contribuição de uma poderosa produção to de Hegel, articula todas as temáticas
literária, artística, sem a produção de um que configuram o imaginário em torno do
30 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
no final dos anos 1960, bem como da cha- Pedra Bonita (1938) e Cangaceiros (1953),
mada geração Nordeste, um conjunto de de José Lins do Rêgo, cuja obra, como a de
grandes nomes de compositores e canto- Freyre, privilegia a temática do engenho e
res vindos da região (Zé Ramalho, Fagner, da cana na hora de pensar o Nordeste, mas
Geraldo Azevedo, Ednardo, Elba Ramalho), termina por se render à temática do sertão,
em cujas obras a sinonímia entre Nordeste e pela força que esta adquire na definição da
sertão já aparece estabelecida e trabalhada região (RÊGO, 1979, 1973). O mesmo ocor-
com grande sofisticação poética e sonora. re com Jorge Amado, que, embora tenha na
Nenhum dos outros sertões do país zona da produção do cacau e no Recôncavo
pôde contar com a força plástica e visual Baiano o centro espacial de sua produção,
de uma série de quadros como Retirantes, não deixa de dedicar um livro ao sertão, Sea-
de Candido Portinari, as obras de maior re- ra Vermelha (1946) (AMADO, 1983). O ser-
percussão do nosso mais festejado pintor. tão é o espaço privilegiado na definição do
A força dessa visualidade só é comparável Nordeste em autores do quilate de um Luís
à dos filmes do Cinema Novo, que fizeram da Câmara Cascudo, embora este fosse um
do sertão e do Nordeste suas espacialidades citadino habitante do litoral, de um João Ca-
preferidas. Mesmo dois grandes clássicos bral de Melo Neto e de um Ariano Suassuna
do cinema brasileiro que antecederam o e seu movimento armorial, produzindo um
Cinema Novo, como O Cangaceiro (1953), sertão medievalizado, um sertão construído
uma produção da Companhia Vera Cruz por emblemas, mitos, lendas, narrado como
com direção do cineasta Lima Barreto, e romance de cavalaria, como auto de Natal.
O Pagador de Promessas, filme dirigido por O poema “Morte e Vida Severina”, de
Anselmo Duarte e ganhador da Palma de João Cabral de Melo Neto, é um dos mais
Ouro no festival de Cannes, em 1962, es- conhecidos e reproduzidos da poética bra-
tavam relacionados a esse imaginário do sileira, tendo se tornado um premiado pro-
sertão e sua vinculação com o Nordeste. grama de televisão, com direção de Walter
Os clássicos glauberianos Deus e o Diabo na Avancini e música de Chico Buarque de
Terra do Sol (1964) e O Dragão da Maldade Hollanda, no ar em rede nacional em 1981.
contra o Santo Guerreiro (1969) fazem do Tanto a produção de Câmara Cascudo como
sertão nordestino o espaço onde se travam a de Ariano Suassuna também se tornaram
as lutas ontológicas da vida humana e da filmes e séries televisivas de sucesso, rea-
própria vida social entre o bem e o mal, a limentando e reafirmando no imaginário
reação e a revolução (ROCHA, 1965, 1985). nacional o rapto do espaço sertanejo pelo
As forças da morte enfrentam as for- Nordeste e pelo discurso regionalista des-
ças da vida numa dialética bastante ma- sa região (MELO NETO, 2007; CASCUDO,
niqueísta. A estética da fome tem o sertão 1984; SUASSUNA, 1971, 1977) .
nordestino como seu protótipo (ROCHA, Ao longo do século XX, principalmen-
1981). Esses filmes se alimentaram de toda te após a invenção do Nordeste, os sertões
a riqueza imagética de obras literárias como foram sendo nordestinizados, a ponto de
32 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
obras que tratavam desse espaço antes da duração, com a diferenciação desde a co-
existência do Nordeste, como Os Sertões, lônia da área açucareira, da área dedicada
de Euclides da Cunha, ou tratavam de ou- à pecuária e depois ao plantio do algodão,
tros sertões, como Grande Sertão: Veredas, tendo um lastro político que se materiali-
de João Guimarães Rosa, serem conside- zou, ao longo do tempo, em disputas e que-
radas algumas vezes, de forma equivocada, relas entre as elites do litoral e do interior,
como obras sobre o Nordeste. Mas o passo essa distinção de sertão e litoral estruturou
definitivo, que oficializa e materializa essa toda uma produção cultural e intelectual,
captura do sertão pelo Nordeste, foi a sub- que terminou por fazer do sertão e do ser
divisão da região em quatro sub-regiões, sertanejo um atributo exclusivo das gentes
sendo uma delas o sertão. Essa subdivisão, nascidas no interior do Nordeste.
feita pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Quando Ulysses Lins de Albuquerque
Estatística (IBGE), se deu em 1969. Ao lado escreve um livro como Um Sertanejo e o
da Zona da Mata, do agreste e do meio-nor- Sertão (1957), está expressando o arraigo
te, o sertão passou a figurar oficialmente subjetivo a uma identidade que já não en-
como uma parte da Região Nordeste, sen- contramos em outras áreas do país (AL-
do, aliás, a sua maior parte, correspondendo BUQUERQUE, 2012). Nas demais regiões
ao que também se denomina de semiárido, brasileiras, as gentes nascidas longe da
área de ocorrência privilegiada das secas costa tornaram-se interioranas, matutas,
periódicas. Da mesma forma que, em 1945, caipiras, capioas, bugres, mas não mais
ao realizar a primeira divisão regional do sertanejas. Essa designação, marcada pelas
país, o IBGE reconheceu uma situação de sagas dolorosas e repetidas das secas, pelas
fato já existente, incorporando o Nordeste retiradas, pelos êxodos, pelas migrações,
como uma das cinco regiões do país, sendo pelos saques de feiras e armazéns públicos,
as demais o Norte, o Centro-Oeste, o Leste pelos campos de concentração, pelos abar-
e o Sul, meras convenções político-adminis- racamentos, pelas frentes de emergência,
trativas que não tinham amparo nas iden- pelas obras contra as secas, pelos socor-
tidades regionais vividas e incorporadas ros públicos, pela indústria da seca, pela
pela população. viagem dramática em paus de arara, vai
Dessas cinco regiões, somente o Nor- se tornando indesejável para grande parte
deste era efetivamente incorporado pelas das pessoas que vivem longe das pancadas
pessoas em suas identidades. Podemos di- do mar, como diria Câmara Cascudo. Ser
zer que o mesmo ocorre com o sertão. Ao sertanejo foi se tornando, ao longo do sé-
definir o sertão como uma subárea do Nor- culo XX, sinônimo de ser nordestino e de
deste, o IBGE deu reconhecimento oficial viver o drama das secas periódicas. Mes-
a uma situação de fato, situação essa fruto mo as elites desse espaço, que estão lon-
desse longo processo histórico que tenta- ge de ser afetadas da mesma forma que os
mos tratar em suas linhas gerais neste ar- mais pobres pelas estiagens, se assumem
tigo. Tendo um lastro econômico de longa como sertanejas.
SERTÕES, IDENTIDADES E REPRESENTAÇÕES Durval Muniz de Albuquerque Júnior 33
Referências
_______. A invenção do Nordeste e outras artes. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2011.
ALMEIDA, José Américo de. A bagaceira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1978.
34 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
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TEÓFILO, Rodolfo. A fome: cenas da seca do Ceará. São Paulo: Tordesilhas, 2011.
SERTÃO, IDENTIDADES E
REPRESENTAÇÕES NO
CENTRO-OESTE
Maria Geralda de Almeida
I
A etnoterritorialidade do sertanejo do o território. E a identidade territorial do ser-
Centro-Oeste é o cerne para compreen- tanejo aparece como indispensável para a
der o sertão a partir de suas representa- existência e a manutenção da biodiversidade
ções associadas ao bioma Cerrado. Para e do horizonte de vida do sertão brasileiro.
tanto, serão evidenciadas as concepções No século XVIII, surgiu um interesse
de sertão e as dimensões culturais cons- pelo sertão a fim de descobrir o que a ter-
truídas “no mundo rústico, sertão, onde ra incógnita ainda poderia oferecer como
estariam nossas raízes e nossa autentici- recursos. Naquele período, havia um ca-
dade”, conforme nos lembra Martins (2000, minho que cruzava o Planalto Central até
p. 28), para entender esse sertanejo e, sob Mato Grosso – era o mais extenso da época
essa perspectiva, compreender a nossa colonial, conhecido como a Estrada Geral
essência brasileira. do Sertão, e confundia-se com o Caminho
Claval (1995) clareia essa discussão de Goiás ou Picada de Goiás. No total, o
ao afirmar que é pela cultura que homens e chamado Caminho de Goiás estendia-se
mulheres fazem a sua mediação com o mun- por 266 léguas (cerca de 1.500 km), sepa-
do, constroem um modo de vida particular e rando Vila Boa de Goiás do Rio de Janeiro,
se “enraízam” no território. Há, assim, uma e consumia cerca de três meses de viagem
herança cultural que permeia a relação com (ROCHA JR. et al., 2006).
SERTÕES, IDENTIDADES E REPRESENTAÇÕES Maria Geralda de Almeida 35
II
As representações são fundadas sobre a mero coadjuvante do processo de construção
aparência dos objetos e não sobre o objeto da unidade nacional e da formação do sen-
em si. São criadas para expressão do real no timento patriótico. Eram representações
bojo de uma ideologia. As representações so- que faziam parte do imaginário social das
ciais também regem nossas relações com o populações que habitavam o exterior ou o
mundo e os outros, orientam e organizam os litoral brasileiro.
comportamentos e as comunicações sociais Este olhar negativo e preconceituoso
(BAILLY, 1992). sobre o oeste brasileiro pelos habitantes mais
Jodelet (1991) é mais enfática ao afir- próximos à costa não é recente, como foi vis-
mar que a representação corresponde a um to. O “sertão”, como por vezes Goiás e Mato
ato do pensamento pelo qual o indivíduo Grosso foram denominados, seria o oposto
se relaciona com um objeto. Isso pode ser do que existia no litoral – considerado como
uma pessoa, um objeto, um evento material um espaço de progresso e desenvolvimento.
físico ou social, um fenômeno natural, uma O resultado foi a construção de uma
ideia, uma teoria; pode ser real, imaginário imagem negativa dos sertões e dos costu-
ou mítico. mes e tradições das suas populações. Em
Representação, para Chartier (1990, p. resposta, ocorreu também a construção de
20), é uma forma de discurso que permite representações locais, que buscaram se con-
“ver uma coisa ausente”, ou também que se trapor às primeiras e negá-las, originando,
manifesta como a “exibição de uma presença assim, uma verdadeira luta de representa-
[...] de algo ou de alguém”; processo de articu- ções. Embora identificado como sertão, o
lações simbólicas por meio do qual se estabe- Centro-Oeste negava a originalidade da cul-
lece uma acepção do real, uma significação tura sertaneja, a sertanidade que refletiria o
da realidade. Pesavento, complementando Brasil autêntico (LIMA, 1999; SENA, 2003).
esse entendimento, afirma: O olhar dos estrangeiros aqui chegados,
de um continente que conhecia já os benefí-
As representações construídas sobre cios da industrialização, ressentiu as marcas
o mundo não só se colocam no lugar deste materiais do progresso lá visto. Contudo, es-
mundo, como fazem com que os homens ses sertões goianos tiveram vários olhares. O
percebam a realidade e pautem a sua exis- conceito de sertão da decadência e do atraso
tência. Indivíduos e grupos dão sentido ao que perpassa a reconstituição feita por Luis
mundo por meio das representações que Palacín do passado dessa sociedade difere do
constroem sobre a realidade (2005, p. 39). sertão de abastança e de paraíso caboclo que
se encontra em Paulo Bertran (1994). Já sob
O Centro-Oeste era representado como a visão artística de Hugo de Carvalho Ramos,
um lugar distante e de difícil acesso, povoado na obra Tropas e Boiadas (1917), surge um
por uma esparsa população, violenta e pou- sertão poético, de horror e beleza, sertão ao
co civilizada, sendo, por vezes, exibido como mesmo tempo dramático e belo.
SERTÕES, IDENTIDADES E REPRESENTAÇÕES Maria Geralda de Almeida 37
38 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
III
Os homens não agem em função do real, mas Entendo que o sertão, território em
em função da imagem que fazem dele, já bem questão, também se define e se singulariza
nos disse Claval (1992). Contudo, se uma por características simbólicas e culturais e
imagem presente não faz pensar em uma destaca-se por ser uma construção social.
imagem ausente, se uma imagem casual não Por isso, considero que tais aspectos devem
determina uma explosão de imagens, não há ser levados em conta na compreensão de
imaginação. Bailly (1990) e Carlos (1994) nos processos históricos mais amplos, os quais
chamam a atenção para os lugares vividos trazem em seu bojo as marcas do vínculo
que são também espaços imaginários. En- com o lugar em que se originaram.
tre os espaços da vida próximos ao distante
e apenas imaginado, todos os territórios vi-
IV
vidos e/ou pensados o são por meio de cate- O sertão resulta como produto da cultura
gorias que refletem situações da experiência ecológica e os sertanejos ilustram essa cul-
relacional de vida. tura. A sociedade localizada em um ambien-
Uma definição inspirada em Casto- te de sertões, apesar de constituir-se uma
riadis, e também expressiva, unidade totalizada, é múlti-
considera o imaginário como Essa paisagem resulta em pla. Uma sociedade – convém
“um sistema de ideias e ima- alterações substanciais destacar – resultante de im-
no próprio entendimento
gens de representações cole- bricações de diversos povos
do rural, fazendo emergir,
tivas que os homens, em todas associados aos cerradeiros
além do agronegócio,
as épocas, construíram para novas ruralidades no geraizeiros, aos chapadeiros,
si, dando sentido ao mundo” cenário do Centro-Oeste, aos negros aquilombados,
(PESAVENTO, 2005, p. 43). como turismo rural, aos indígenas, aos barran-
Uma crítica às interpreta- pesque-pague e spas. queiros/ribeirinhos dos rios
ções de sertão é feita por Mo- Araguaia, Paranaíba, Para-
raes (2002-2003). Para ele, o sertão não é um guai, Paraná, Teles e Cuiabá, entre tantos
lugar, mas uma condição atribuída a variados outros, e aos vazanteiros e pantaneiros ou
e diferenciados lugares – ideia com a qual con- de outros alagados e, ocasionalmente, áreas
cordo e busco abordar nesta discussão. inundadas dos sertões.
Espindola (2004, p. 3) destaca que Esses signos identitários que infor-
o “sertão foi um discurso sobre espaços e mam as especificidades das populações
pessoas, uma construção simbólica com locais vinculam-se a algumas das diversas
fins determinados”. Esse argumento enfa- ecologias que compõem os sertões. Os cer-
tizei anteriormente, quando afirmei que: “a radeiros e chapadeiros encontram-se nas
construção discursiva sobre o sertão espelha faixas de cerrado e chapadas. Os vazanteiros
a maneira como ele é pensado e uma manei- e pantaneiros estão situados nas áreas de
ra específica de ‘ver’ o mundo” (ALMEIDA, vazantes dos rios e lagoas existentes no ter-
2003a, p. 71). ritório regional; os habitantes das margens
SERTÕES, IDENTIDADES E REPRESENTAÇÕES Maria Geralda de Almeida 39
dos rios são associados ao gênero de vida do alimento tradicional das plantas pelas
que ali estabelecem. populações a elas associadas.
Desde os anos 1950, o vasto território Somente 1,5% do território do Centro-
do Centro-Oeste passou a se constituir em -Oeste encontra-se protegido na forma de
uma extensa fronteira agrícola propiciada Unidades de Conservação. Com a destrui-
pela sua capacidade de receber população ção sistemática a que o bioma é submetido, o
e seu potencial econômico a ser explorado. país perde um potencial biológico e uma im-
Atentos a essas características, os inves- portante alternativa socioeconômica basea-
tidores governamentais e multinacionais da na utilização sustentável da diversidade
procuraram transformar aquele território biológica do Cerrado. Os sertões transmu-
em um grande produtor, principalmente dam-se na paisagem e no imaginário.
de gado e de grãos, para o abastecimento
do mercado mundial. Eles historicamente
V
fizeram a ocupação dos sertões, bem como Se a identidade é “a fonte de significado e
a mineração e a silvicultura foram selecio- experiência de um povo”, como nos afirma
nadas como os principais produtos de des- Castells (2006, p. 22), um primeiro elemen-
taque regional. to que materializa a identidade dos serta-
Para o ideário desenvolvimentista nejos, sua sertanidade, é a existência de
que caracterizou as principais políticas uma natureza sertaneja, rural, e se sentir
governamentais desde a década de 1950, pertencente ao sertão. É o caso da socieda-
as vastas terras do cerrado significavam, e de goiana, que está impregnada de valores
ainda significam, um espaço com viabilida- e traços rurais, afirma Nogueira (2009). Ela
de econômica, dessa forma obscurecendo está, assim, prenhe de sertanidade.
seu potencial enquanto biodiversidade. A Sertanidade implica ser parte da natu-
expansão da monocultura da soja, embora reza do sertão, estar nas redes de sociabili-
venha favorecendo a balança comercial bra- dade e solidariedade que permitem ampliar
sileira, também está afetando sensivelmen- os vínculos de amizade e parentesco, que se
te o ecossistema e as populações sertanejas. tornam cada vez mais sólidos e presentes no
No caso da biodiversidade, posta como imaginário construído em torno do lugar.
território culturalizado (ALMEIDA, 2003b), Le Bossé (2004) nos auxilia a com-
há a perda de habitat de inúmeras espécies preender a identidade apresentando refe-
animais e vegetais, o que reflete sobre aque- renciais que são estabelecidos a partir de
las populações gradualmente privadas de subjetividades individuais e coletivas. O
sua base de recursos, comprometendo, as- autor destaca o aspecto dinâmico e variável
sim, sua identidade cultural enquanto ser que a entidade adota e assume.
sertanejo. Também deve-se considerar que Na visão de Castells (2006), a identi-
a devastação da vegetação natural significa a dade é uma forma de distinção entre o eu e
perda do conhecimento acumulado ao longo o outro. Segundo ele, os atores sociais dão
dos tempos sobre o uso medicinal e o uso significado às suas ações a partir de um ou
40 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
mais atributos culturais que prevalecem com qualidades específicas, pela combina-
no processo de construção das identida- ção de fatores que se interagem diferen-
des. Ele também adota a premissa de que ciando a qualidade de solos, a vegetação,
toda identidade é uma construção social as influências sutis deixadas pela rede de
que se serve de conhecimentos provindos drenagem do presente e do passado. Os cer-
de instituições, pela memória coletiva e por radeiros constroem um mosaico de atribu-
fantasias pessoais, pelos aparatos de poder tos ecológicos e culturais que se realiza pela
e de religião. Porém, homens, grupos sociais sua interação, conformando uma unidade
e sociedade reorganizam seu significado em da paisagem, fato já relatado nos estudos
função de projetos culturais enraizados e de Rigonato (2005).
sua estrutura social, bem como em sua visão Conforme Costa (2005), na década de
de tempo/espaço. 1970, o Governo Federal, principal interven-
Tais argumentos reforçam ser o ser- tor com seus financiamentos subsidiados
tão e os sertões um espaço vivo e dinâmico, e seus incentivos fiscais, deu início à mo-
que comunica e traz consigo uma forte carga dernização dos sertões. Sertanejos foram
simbólica transmitida por valores e práti- desprezados, privilegiando-se as oligarquias
cas por todos que partilham o espaço. Não tradicionais, o agronegócio e as agroindús-
importa qual signo identitário ele comunga trias da sociedade dominante.
dessa natureza sertaneja. Desde então, ocorre a constituição de
A paisagem que compõe esse território uma nova paisagem, que afetou as bases de
está vinculada àquela formação denomina- sustentação da agricultura familiar tradi-
da os gerais, ou seja, os planaltos, as encos- cional, com impactos nos recursos natu-
tas e os vales das regiões de cerrados, com rais cerradeiros, acelerando seu processo
suas vastidões que dominam as paisagens de deterioração. Essa paisagem resulta em
dos sertões. A denominação geraizeiro é alterações substanciais no próprio enten-
usada mais em Minas Gerais, e cerradei- dimento do rural, fazendo emergir, além do
ros é o termo defendido por Bertran (1994), agronegócio, novas ruralidades no cenário
referindo-se às populações do cerrado de do Centro-Oeste, como turismo rural, pes-
modo geral. que-pague e spas.
Os sertões, com seus tabuleiros, espi- A partir dessas significações do rural
gões e chapadas, fazem parte da estratégia tradicional, Pereira (2002) traça o novo
produtiva e garantem suas reproduções imaginário em construção em Goiás, no
com diversos produtos do extrativismo. processo de superação de uma cultura rural,
Este desempenha, cada vez mais, um papel apontando para o quadro dos novos tempos
importante na geração de renda pela comer- de Goiás. Processo semelhante existe na
cialização de frutos, óleos, plantas medici- zona rural de todo o Centro-Oeste.
nais e artesanatos. Atualmente, os horizontes dos sertões
Conforme já mencionado, os cerradei- do Centro-Oeste têm outros protagonis-
ros reconhecem inúmeras zonas ecológicas tas. Em Goiás, as usinas canavieiras, com
SERTÕES, IDENTIDADES E REPRESENTAÇÕES Maria Geralda de Almeida 41
produção de açúcar, etanol e energia, têm empobrecer os sertões vendo-os como uma
sua produção ampliada sobremaneira nos sociedade e um território únicos. Pode-se,
últimos anos. Em 2017, eram 38 usinas em pois, afirmar que a identidade cultural dá
funcionamento no estado de Goiás, o que nos sentido ao território e delineia as territo-
coloca na segunda posição nacional, liderada rialidades que se apoiam sobre as paisa-
pelo estado de São Paulo. Em Mato Grosso, gens sertanejas.
soja, milho, algodão e cana-de-açúcar res-
pondem a incríveis 94,7% de todo o valor da
produção da agricultura do estado. Em Mato
Grosso do Sul, Rio Brilhante é o município
do país com maior quantidade produzida de
cana-de-açúcar; e o estado lidera o cresci-
mento da produção de soja no país.
Na contramão, os diversos movimentos
sociais dos sertões demonstram experiên-
cias de luta para a conservação dos cerra-
dos e pelo seu uso não destrutivo. Esses
sertanejos veem a necessidade de incorpo-
rar técnicas que causem menos impactos Maria Geralda de Almeida
nos cultivos – agora mais intensivos, com É sertaneja de Brasília de Minas, no Vale do
restrição das terras, restrição da oferta de São Francisco. Já morou em Rio Branco (AC), Ara-
água e perda da biodiversidade. Também a caju (SE), Fortaleza (CE) e atualmente vive em
percepção de que sertanejos têm uma convi- Goiânia (GO), sempre trabalhando em universi-
vência estreita com a natureza nessas áreas, dades federais. É professora titular no curso de
e eles dispõem de saberes e interesses da geografia no Instituto de Estudos Socioambientais
manutenção da biodiversidade, da qual de- da Universidade Federal de Goiás (Iesa/UFG). Tem
pende a sua sobrevivência, tem fortalecido diversos artigos publicados e organizou os seguin-
a compreensão de que eles são sujeitos so- tes livros: Geografia: Leituras Culturais (2003),
ciais importantes nas discussões e políticas com A. Ratts; Tantos Cerrados (2005); Geografia
que envolvem os cerrados. e Cultura: Lugares de Vida e a Vida nos Lugares
Uma tipologia identitária do sertanejo, (2008), com E. Chaveiro e H. Braga; Território e
embora grosseira, foi esboçada. Porém, re- Cultura (2009), com B. A. Nates; Territorialidades
conheço a natureza dinâmica presente na na América Latina (2009); É Geografia, É Paul
identidade. Há, além disso, a possibilidade Claval (2013), com Arrais; Território e Comunida-
de mesclar tipos identitários. Portanto, as de Kalunga (2015); Paisagem e Desenvolvimento
identidades sertanejas são traços gerais, Chibuto (Moçambique) (2015); Atlas de Festas
e somente singularizam a diversidade dos Populares de Goiás (2015); Atlas de Celebrações
sertanejos, conforme já referi. Reconhe- (2016), com M. A. Vargas; e Territórios de Tradições
cê-los em sua diversidade evita o risco de e Festas (2018).
42 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
Referências
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Encyclopédie de Geógraphie. Paris: Economica, 1992.
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Brasília: Paralelo 15, 2006.
SER-TÃO BAIANO
Cláudia Pereira Vasconcelos
Este trabalho visa discutir como o propagado texto identitário da baianidade se construiu
de modo a suprimir a visibilidade de uma presença rural/sertaneja em um estado culturalmente
muito plural e do qual 70% do território é classificado como semiárido. Apresenta resultados de
uma pesquisa sobre o assunto realizada em 2007 e, de forma breve, se propõe a pensar na atua-
lização do tema a partir da questão: estariam hoje a baianidade e a sertanidade no mesmo lugar?
Para compreender tais reflexões, dialoga com autores e experiências que atravessam a temática.
suas políticas estaduais de cultura e turismo,2 desenvolvimento; por isso mesmo, não in-
constituindo-se, por sua vez, numa poderosa tegraria ao seu discurso identitário questões
estratégia para alavancar a economia local que pudessem associá-la à região da qual
a partir da representação da singularidade faz parte geograficamente: o Nordeste, um
como motivação para o consumo do entre- território concebido historicamente como
tenimento. Neste período, que vai aproxima- sinônimo de sertão, que por diversas razões
damente dos anos 1970 até o ano de 2006, a também foi construído no imaginário nacio-
permanência no poder de um mesmo grupo nal como representação de pobreza, analfa-
político, liderado por Antônio Carlos Maga- betismo, seca e violência, entre outros signos
lhães, foi determinante para a legitimação da associados ao passado e ao atraso (ALBU-
baianidade, bem como o azeitamento realiza- QUERQUE JÚNIOR, 2003).
do pela mídia local, especialmente pela Rede Para melhor compreender essa constru-
Bahia, de propriedade da família Magalhães, ção histórica do conceito de sertão e as formas
retransmissora da Rede Globo na Bahia. Essa de utilização dos seus múltiplos sentidos na
lógica política e midiática conseguiu construir construção da brasilidade, o estudo adentrou
um texto unificador em torno da ideia de Bah- um contexto mais amplo, entre o final do sécu-
ia, por meio de uma eficaz estratégia da positi- lo XIX e o início do século XX, quando o projeto
vidade pela qual se recorta e evidencia aquilo de constituição da identidade nacional apre-
que interessa e se esconde ou esquece o que sentou-se como uma das principais discussões
não convém (MOURA, 2005). entre os pensadores brasileiros. Em suma, po-
Diversos estudiosos da baianidade, demos afirmar que o sertão foi ocupando lugar
entre eles Antonio Risério (1993), apontam nos discursos sobre a nacionalidade de forma
que o olhar centrado na cultura de Salvador, ambivalente e, por vezes, contraditória, sendo
“Cidade da Bahia”, deve-se ao fato de que as visto tanto como o cerne da brasilidade mais
elites tradicionais locais, após o lento pro- pura quanto como uma mancha que dificulta
cesso de declínio econômico e político que o projeto de modernização e desenvolvimen-
se inicia no final do século XVIII, sentem a to urbano gestado e implementado a partir do
necessidade de ostentar o seu passado glo- século XX. É interessante notar que, mesmo
rioso, buscando a antiga referência da capital divergentes, essas linhas de pensamento se
colonial do Brasil. Desse modo, no período fundamentaram em teorias científicas da
em que o texto da baianidade começa a ser época, de cunho evolucionista, racista e na-
elaborado – início do século XX –, a Bahia turalista. Das diversas narrativas em disputa,
ainda se encontra em crise econômica e po- dois blocos regionais destacam-se ao travar
lítica, perdendo o compasso do desenvolvi- uma batalha discursiva na afirmação de uma
mento que se verificava no centro-sul do país. brasilidade mais legítima.
Como o objetivo central desse proje- De um lado estavam os representantes
to será o de gerar recursos financeiros, a das elites do Norte/Nordeste, região que, mer-
Bahia não se deixará mostrar como mais gulhados numa longa crise política e econô-
um estado pobre que perdeu o passo do mica, buscavam reafirmar sua legitimidade
SERTÕES, IDENTIDADES E REPRESENTAÇÕES Cláudia Pereira Vasconcelos 47
Referências
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Ed. Bertrand Brasil, 2005.
LIMA, Hanayana Fontes. Políticas culturais na Bahia: gestões de Paulo Souto (2003-
-2007) e Jaques Wagner (2007-2009). Dissertação de mestrado. Programa de
pós-graduação em cultura e sociedade da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Salvador, 2015.
MOURA, Milton. Identidades. In: RUBIM, Antonio Albino C. (Org.). Cultura e atualidade.
Salvador: Edufba, 2005.
RISÉRIO, Antônio. Caymmi: uma utopia de lugar. São Paulo: Perspectiva. 1993.
Notas
4 Refiro-me aos governos Jaques Wagner, de 2007 a 2014, e ao governo Rui Costa,
de 2015 até os dias atuais.
52 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
A INVENÇÃO DO NORDESTE,
DESCAMINHOS SÍSMICOS DE
UMA PEÇA DOCUMENTAL DO
GRUPO CARMIN
Henrique Fontes
O Nordeste, invenção com menos de um século de existência, tem seus estereótipos e nar-
rativas reducionistas questionados de forma ácida pelo Grupo Carmin em sua montagem
A Invenção do Nordeste. A peça, que vem circulando pelo Brasil em festivais e em unidades
do Sesc, é inspirada no livro homônimo do historiador Durval Muniz de Albuquerque Jr. e tem
gerado reações diversas por onde passa.
“[...] Não tem o raquitismo exaustivo A descrição desse ser meio homem,
dos mestiços neurastênicos do litoral. A sua meio bicho talvez possa, para fins literários,
aparência, entretanto, ao primeiro lance de ter contribuído para o propósito de Euclides
vista, revela o contrário. Falta-lhe a plás- da Cunha de confundir a figura humana com
tica impecável, o desempeno, a estrutura a paisagem árida do sertão nordestino, ou
SERTÕES, IDENTIDADES E REPRESENTAÇÕES Henrique Fontes 53
melhor, baiano, pois a Bahia foi tudo que ele unidade significativa chamada Nordeste
conseguiu conhecer na sua jornada rumo a se constituísse perante nossos olhos, foi
Canudos. No entanto, a criação euclidiana necessário que inúmeras práticas e dis-
alimenta um imaginário que foi repetido à cursos “nordestinizadores” aflorassem de
exaustão pela literatura, pelas artes plásti- forma dispersa e fossem agrupados pos-
cas, música, teatro, cinema e, mais recen- teriormente (ALBUQUERQUE JR., 2009,
temente, pelas novelas e séries televisivas. p. 78-79).
Se é o Nordeste que precisa ser retratado,
há sempre uma cara, uma paisagem, uma E por quê? Para que finalidade uma
cor que aparece pintada ou descrita. Você região formada por nove estados e quase
certamente já imaginou algo semelhante. 1.800 municípios precisaria ter uma única
Consegue visualizar um tom ocre? Uns ga- identidade e tão ligada à seca, à pobreza e
lhos secos? Um chão de terra rachada? Um ao atraso?
homem em trajes de vaqueiro? E, se essa
imagem tivesse som, você ouviria uma mu- Essa figuração de uma origem linear
sicalidade particular na fala? Um jeito en- e pacífica para o Nordeste se faz preciso
graçado ou rude de se expressar? Se foram para negar que ele é algo que se inventa no
essas as imagens que lhe vieram à mente, presente. Visa negá-lo como objeto político
elas não surgiram por acaso. cultural, colocando-o como objeto “natu-
Sendo eu nortista, radicado no Nordeste ral”, “neutro” ou “histórico” desde sempre
litorâneo urbano, a pelo menos 200 km do (ALBUQUERQUE JR., 2009, p. 80).
sertão, em Natal (RN), posso dizer que para
mim também é difícil escapar desse imagi- Essa identidade inventada nasce de
nário. Essa representação simplificada vem uma necessidade de dominação política e
sendo ao longo dos anos reiterada e já está constitui uma estratégia da elite aliada à
fortemente incorporada à narrativa até dos classe política para reduzir o impacto que
próprios nordestinos. No entanto, como toda as secas e a perda da mão de obra escrava
simplificação, ela esconde algo. exerciam sobre seus lucros.
Segundo o historiador Durval Muniz de
Albuquerque Jr., autor do livro A Invenção do O Nordeste nasce da construção de
Nordeste e Outras Artes, o Nordeste enquanto uma totalidade político-cultural, como rea-
região nasce após a criação de sua suposta ção à sensação de perda de espaços econô-
identidade regionalista. Ela é criada, ou me- micos e políticos por parte dos produtores
lhor, inventada, como um lugar anacrônico e tradicionais de açúcar e algodão, dos co-
sem muitos recursos. merciantes e dos intelectuais a eles ligados.
[...] Unem-se forças em torno de um novo
A região Nordeste, que surge na pai- recorte nacional, surgido com as grandes
sagem imaginária do país [...], foi fundada obras contra a seca (ALBUQUERQUE JR.,
na saudade e na tradição. [...] Antes que a 2009, p. 80).
54 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
I
Para Hélio Oiticica (1937-1980), a arte é um platônica viria pelas sombras, primitivas
campo de possibilidade capaz de modificar a imagens projetadas, primeiros indícios da
realidade. Assim como Oiticica, Cildo Mei- arte, conhecimento que Platão criticava por
reles, em sua obra Inserções em Circuitos estar a três pontos da verdade. Para Platão, o
Ideológicos (1975), busca efetivar uma ação que liberta é a verdade. Para Oiticica, a arte
que, neste caso, não recria uma realidade ou é uma verdade criadora de mundos possí-
sensação, mas se insere na realidade para veis que libertam os sujeitos; seu projeto é
subverter. Uma obra que se infiltra para co- também um projeto político.
municar no silêncio de um sistema. Assim como Oiticica e Meireles, uma
Oiticica trabalha com as categorias de série de artistas tentou, ao longo do século
tempo e espaço para propor ao seu público XX, tirar a arte de museus e galerias, tor-
um mundo de coisas livres de sentidos a nando-a presente na vida cotidiana. Essa
priori. Ele quer um descondicionamento; tentativa culminou no registro de tais ações
já Meireles, uma revolução política. Seria como produtos, dentro dos espaços dos
curioso pensar que a libertação da caverna quais deveriam ter saído.
SERTÕES, IDENTIDADES E REPRESENTAÇÕES Adones Valença 57
II
“Aqui nós somos muito esquecidos”, denun- “Foi aqui que teve aquelas guerras.
ciou seu Manoel em Sozinho (PB). Ele tra- Está vendo?”, disse ele. Quando me voltei
balha para finalizar um tanque de pedras e para Renata, a parte branca dos seus olhos
criar peixes. se fazia vermelha como sangue. Perguntei
se ela estava sentindo alguma irritação, dis-
III se que não. Saímos e, na calçada, encontro
Quando delimitei a área em que ocorreria o desenho de um revólver gravado no piso.
o projeto Viagens Não Têm Títulos,1 elabo- Faço um frottage no caderno que levava. De
rei um conjunto de rotas que passava pelo lá, viajamos até Sozinho.
interior dos estados da Paraíba, Rio Gran-
de do Norte, Ceará, Bahia e Pernambuco.
V
Como artista viajante, não iria apenas pro- As capitais regionais do interior do Nor-
duzir, mas também mostrar uma obra a um deste recriaram seu capital cultural atuali-
público previamente escolhido. Este foi o zando seus modos de fazer arte. Cito como
objeto do projeto. exemplo os Centros Culturais do Banco do
Deslocar um item da prateleira da arte Nordeste em Sousa (PB), Juazeiro do Norte
subverte a lógica de uma estrutura social. (CE) e Cariri (CE); as ações de formação e
É como colocar um quadro debaixo do braço fruição do Centro de Arte e Cultura Ana das
e fazer uma viagem, mostrando-o às pessoas. Carrancas e do Sesc em Petrolina (PE); os
O projeto ocorre então como um jogo em que cursos de artes visuais dos campi da Univer-
é preciso o outro para que a obra aconteça. É sidade Federal do Vale do São Francisco e
a troca que efetiva a poética. Este é um tra- de design na Universidade Federal do Cariri.
balho que só é possível a partir do encontro Esses espaços constituem um lugar de fluxo
com o outro, com o público, que muitas vezes criativo com ação de realizadores locais e cir-
não é passivo. Existe uma ética nesse sistema culação de artistas e projetos. Desenvolvem
de trocas. Esta é uma obra tecida com outros importantes ações de formação e estímulo no
que vivem e produzem naqueles lugares, âmbito cultural, por meio de editais públicos
onde cada um, a seu modo, continuamente anuais e programação sistemática.
reinventa sua existência.
VI
IV Conheci várias Sousas porque me perdi na
“Aqui era o spa de Lampião! Era aqui que cidade em vários momentos. Sousa é cheia
Lampião vinha descansar!”, disse-nos um me- de dinossauros. Tem esculturas deles espa-
morialista, no alpendre de sua casa, na estrada lhadas por todos os lugares. Há um ar de Mi-
para Sozinho. Um pouco mais à frente, avista- chelangelo na postura das estátuas brancas
mos um casarão abandonado; o motorista que ao lado da matriz. Marquei com Rayra de
nos levava apontou e disse que iria parar ali. nos encontrarmos. Às 7h30, ela apareceu na
As ruínas estavam cheias de marcas de bala. pousada de D. Geralda. De lá fomos comprar
58 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
IX
pão e café. Ela é uma artista que mora em Sete da manhã, sento numa praça em
Sousa e trabalha com fotografia. O que Sousa à espera de uma lotação que me
propus foi que ela fosse uma médium entre levaria até Marcelino Vieira (RN), onde
mim e as pessoas que encontraríamos nas teria início a rota 2. Começo a desenhar,
rotas. Além disso, faria registros fotográfi- por observação, a carroça de Maria, que
cos desse trecho da viagem. Ela concordou. vende café e tapioca e serve de rodoviária.
Sendo artista que vive e trabalha em Quatro ou cinco pessoas percebem o que
Sousa, o começo da carreira de Rayra está es- estou fazendo e ficam em volta, dizen-
treitamente atrelado às atividades do Centro do: “Como é interessante aquilo, olha só,
Cultural Banco do Nordeste como possibilida- é a barraca de Maria!”. Depois chega um
de de mundo. Mantivemos contato e frequen- homem curioso olhando com minúcia, um
temente conversamos sobre nossos trabalhos tanto desconfiado daquilo que eu fazia.
e sobre a vida. Desde que estive por lá, ela fez“Este é um bom desenho, eu reconheço
duas exposições individuais e, recentemente, um bom desenho! Você faz quadros?”
a fotografia de um filme. Rayra reflete sobre Respondi que sim.
seu lugar de mulher, o corpo feminino e o peso “Eu sei que você desenha bem, eu
das tradições que vêm sendo questionadas por já fui um pintor letrista. Mas vocês con-
rompimentos como os que ela provoca. seguem dar volume às coisas, conse-
guem efeitos que nós não conseguimos”,
VII disse ele.
O desenho tem o mesmo poder mágico das Mostrou-me, no caderno, que sabia
palavras. Ele é uma ação do espírito que atin- fazer letreiros e disse que nos anos 1990
ge determinadas ondas de sensibilidade. Sua ganhou muito dinheiro como pintor de
frequência atrai. As primeiras sociedades já letreiros em São Paulo e no Rio Grande
sabiam disso. do Norte. Mostrou a propaganda de Elias,
o “deputado da água”, tipo de político ca-
VIII racterístico da indústria da seca, que vem
Cada lugar em que andei possui um ritmo de acabando por causa da transposição do
tempo próprio. Há lugares como Pintadas Rio São Francisco. Ficou empolgado com
(BA), em que ao meio-dia todas as ativida- o encontro, mostrei-lhe meus pincéis e
des do comércio se encerram, pois cessa o os materiais que trazia. Disse-me que
transporte para outras cidades. Há lugares depois, em São Paulo, vendia limão. Em
como Gangorra (RN) e Simpatia (PE), onde seguida, foi cantor de banda de forró e fa-
as pessoas se recusaram a participar da mi- zia sucesso, mas, por causa das andanças,
nha proposta. Lugar de encontro é todo lugar preferiu ficar mais próximo da família.
onde pode ocorrer a experiência entre artista, Mostrei-lhe o projeto, as rotas que faria
público e objeto. Se o cientista experimenta no e o que levava: uma mala que virava uma
laboratório, o artista experimenta no mundo. galeria de arte.
SERTÕES, IDENTIDADES E REPRESENTAÇÕES Adones Valença 59
60 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
X
Ao projeto, então, é necessário corrigir os avança pelo céu com uma revoada de uru-
processos de produção de sentido estabe- bus à espera de que algum daqueles desva-
lecendo uma relação significativa com a neça. Não são faces alegres, são máscaras
aprendizagem. Se arte implica modificação encaveiradas. Todo tom do quadro é som-
da realidade, os produtos do artista devem brio. A luz que dissolve o horizonte ao fun-
subverter as sensações de tempo e espaço, do serve para destacar as figuras tristes.
para descondicionamento dos sujeitos. Isso Algumas nos fitam. São uma família, o con-
é possível na área da educação e da arte. junto ao centro deixa isso claro. Carregam
Em seu Les Beaux-Arts Réduits à un Même consigo tudo que restou: duas trouxas, uma
Principe (1746), o abade Charles Batteux na cabeça e outra nos ombros.
dedica parte do texto à formação do gosto, A imagem, criada em 1944 pelo pin-
apontando a importância de se trabalhar a tor Candido Portinari, foi amplamente
sensibilidade ainda na infância. O que ele reproduzida em cartazes, livros didáticos
chama de formação do gosto é aqui enten- e revistas. A pintura de Portinari foi acom-
dido como formação da sensibilidade. panhada de um discurso que reforça uma
determinada ideia de sertão e de sertane-
XI jo. Se quisermos entender o sertão atual,
Foram percorridos mais de 3.484 quilô- é preciso atravessar essa imagem, ir para
metros, entre os dias 10 de janeiro e 18 de além das sombras que por tanto tempo fo-
fevereiro de 2017. Foram realizados 203 ram expostas ao nosso olhar.
atendimentos, entre escolas, alpendres e
terreiros, sendo 89 professores e 17 artistas
XIII
e artistas-professores. Na garupa, apoiando a maleta portátil na
perna, segui por estradas de terra. Para
XII percorrer os caminhos de Sozinho até
As figuras parecem estar mascaradas. Nas Passagem (BA) é preciso subir em algumas
roupas que vestem faltam peças e as que motos sem capacete, com algum motorista
existem estão em farrapos. Nos corpos desconhecido, até os lugares traçados nas
faltam gorduras. Ao que parece, a fome de- rotas. Atendia pela manhã e, à tarde ou à
vorou a derme, restando os músculos. A pai- noite, no quarto do hotel ou da pousada em
sagem que serve de fundo a esse conjunto é que estava, me sentava, abria o computa-
um deserto com restos de ossos, pedras no dor e ia escrever sobre aqueles lugares e
chão e montinhos de terra que se asseme- personagens. Era escrevendo que eu fazia
lham a covas. a obra existir.
O grupo, intitulado “retirantes”, des-
loca-se para algum lugar. Parecem fugir da
morte, que não está apenas na terra, mas
SERTÕES, IDENTIDADES E REPRESENTAÇÕES Adones Valença 61
Adones Valença
Nasceu em 1989 em Belo Jardim (PE). O artista vive e trabalha em São Cristóvão
(SE), onde é estudante de artes visuais na Universidade Federal de Sergipe. A partir de
2008, sistematiza sua produção em artes visuais, tendo participado de exposições indi-
viduais e coletivas e da execução de projetos. Publicou Viagens Não Têm Títulos, trabalho
que reúne relatos da pesquisa homônima realizada em 2017 com apoio do Rumos Itaú
Cultural 2015-2016.
Nota
PORTAR(IA) SILÊNCIO:
O SER-TÃO MIGRANTE DAS PORTARIAS DE
EDIFÍCIOS DA CIDADE DE SÃO PAULO
João Júnior
O
sertão do Seridó potiguar é o lugar paulistano, por exemplo, foi se expandindo
mais próximo do céu que a minha a partir desse fluxo migratório, que criou
vista pode alcançar. Deitar no chão ali um Nordeste que se reproduz na orali-
da terra seca trouxe uma sensação de que, ao dade, nas áreas de convívio, no comércio e
esticar o braço, uma estrela podia ser toca- na vizinhança.
da. É lá que a imensidão se fez vista diante Ao migrante é necessário a reconstru-
do meu olhar. Há um casamento entre céu ção de boa parte daquilo que lhe garante a
e terra que tem o sertanejo como testemu- segurança existencial. Assim, é funda-
nha. Mas as terras secas do Nordeste fazem mental recriar o lugar de origem na cidade.
com que homens e mulheres migrem para Segundo Fontes, São Miguel Paulista foi
as grandes cidades do país. se expandindo a partir do estabelecimen-
O fluxo migratório do Nordeste na to de redes sociais pautadas nessa expe-
década de 1950 se deu por conta de uma riência migrante.
grande seca. São Paulo se tornou um dos O ato de migrar gera implicações exis-
principais lugares de destino do desejo de tenciais profundas no indivíduo, que parece
migrantes que partiram em busca de aplacar viver em um estado de suspensão na busca
o sol que ardia dentro de suas barrigas va- por pertencimento. No silêncio da experiên-
zias. Segundo Paulo Fontes (2008), o bair- cia urbana e na invisibilidade de sua própria
ro de São Miguel Paulista, no extremo leste condição, o exercício com a memória se faz
SERTÕES, IDENTIDADES E REPRESENTAÇÕES João Júnior 63
Introdução
A
palavra sertão é uma corruptela do urbanos mais povoados – no caso brasileiro,
aumentativo “desertão”, criada pe- os centros litorâneos costeiros. Tratava-se
los colonizadores portugueses du- de um lugar abstrato, evasivo e indefinido.
rante os séculos XVII e XVIII, quando esqua- Poderia estar bem ali, após o sítio central da
drinhavam o território da colônia em busca cidade, ou bem acolá, matas e rios adentro.
de riquezas. Etimologicamente, designa lu- Nos dicionários da língua portuguesa, o ad-
gar distante, ermo, separado dos locais habi- jetivo correspondente de sertão, sertanejo,
tados. O sertão era simplesmente um espaço diz-se de alguém rude, silvestre, do sertão.
rural desconhecido e distante dos espaços Todavia, no decurso do século XX, especial-
68 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
mente entre os anos 1930 e 1970, um espaço tradições rurais e pastoris, da culinária espe-
geográfico e simbólico-cultural específico cífica, da migração, da resistência, da cultura
passou a reter para si a ideia do sertão por popular, da literatura de cordel, das festas ju-
excelência, do espaço que melhor traduzia ninas e das criações artísticas, do forró e do
e representava o mundo rural brasileiro – o baião, das quadrilhas juninas e das danças.
sertão nordestino. Todos esses aspectos exercem uma de-
Entre as décadas de 1930 e 1970, os masiada força de atração, como uma espé-
muitos sertões existentes no extenso terri- cie de ímã simbólico-espacial: ao se falar de
tório nacional sofreram um esvaziamento sertão e de rural brasileiro, emerge com toda
e uma diluição de significado, ao passo que força o interior da Região Nordeste. Essa não
um sertão específico, um espaço geográfico é, contudo, uma defesa estética e/ou norma-
e simbólico-cultural determinado, o espa- tiva do sertão nordestino, não significa que
ço que compreende a região semiárida do outras regiões não sejam sertões, tampouco
interior da antiga Região Norte, o interior que outros espaços rurais não tenham cons-
daquela imensa região, passou a monopoli- truído e projetado as suas identidades, como
zar para si um conjunto de significados que os espaços rurais do Rio Grande do Sul, de
o fizeram se descolar dos demais sertões e São Paulo e de Goiás, para citar apenas os
espaços rurais brasileiros. Com corolário, mais conhecidos. O conceito de monopó-
o sertão nordestino passou a exercer um lio de significado diz respeito à retenção de
monopólio de significado sobre os demais um dado significado coletivo (uma crença,
sertões brasileiros e sobre a representação um valor, uma representação, uma imagem,
geral do imaginário rural nacional. Significa um estigma, uma identidade, uma ideia ou
dizer que, entre os muitos sertões possíveis todos esses aspectos em conjunto) que um
e os respectivos espaços rurais narrados, determinado grupo, classe, instituição, país
representados e projetados no imaginário ou região construiu, sedimentou e projetou
nacional, o mais conhecido, nacionalizado, sobre os demais, exercendo poder simbólico,
definido e delimitado é o sertão nordestino. político e econômico sobre esse significado.
Ao se falar de sertão, ao se mobilizar Esse conceito foi urdido e aplicado pelo
essa palavra no contexto sociocultural bra- sociólogo alemão Norbert Elias (1897-1990),
sileiro contemporâneo, invariavelmente em seu livro clássico O Processo Civilizador.
imagens, signos, ideias, valores, represen- De acordo com o autor, durante os séculos
tações, estigmas e estereótipos se vinculam XV e XIX, as principais sociedades estado-
diretamente a um espaço rural específico -nacionais ocidentais, França e Inglaterra,
do interior do Brasil – o sertão nordestino. construíram um monopólio de significado
São imagens, lendas, canções, livros, filmes em torno da ideia e do conceito de civilização.
e documentários acerca da seca e da caatinga Em O Processo Civilizador, volumes I e II,
ressequida, das lideranças messiânicas e da Elias realiza um esforço interpretativo para
religiosidade popular, do cangaço, do coronel explicar, a um só tempo, a direção da mu-
e do vaqueiro, dos jagunços, do latifúndio, das dança ocorrida no padrão da sensibilidade
ARTES E CULTURA NO SERTÃO Elder Patrick 69
Agreste
MA CE Meio-Norte
RN
PB
PI
PE
AL
SE Sertão
BA
Zona da Mata
MG
Semiárido
Sul (ou Centro-Sul, localizado da Bahia para assim como o era também a extensa zona ári-
baixo) e o Norte, localizado acima da Bahia. A da e ressequida afastada do litoral. Do mes-
gigantesca Região Norte abrigava três zonas mo modo, eram sertão também as zonas mais
mais ou menos diferenciadas e distintas: 1) afastadas dos principais centros urbanos de
o imenso e pouco conhecido território que povoamento do Sul (ou Centro-Sul) do país
recobre a úmida Floresta Amazônica; 2) o – Rio de Janeiro e São Paulo. Com efeito, no
litoral costeiro, coberto pela Mata Atlânti- início do século XX, em um país eminente-
ca (também conhecido como Zona da Mata, mente rural e agrícola, quase tudo era sertão.
principal núcleo de povoamento até o início Os mapas acima demonstram aspectos da
do século XIX, onde estavam situadas as ci- circunscrição espacial das zonas 2 e 3 que
dades de São Luís, Recife e Salvador); 3) e a compunham o gigantesco Norte.
contínua zona seca e árida que se estendia Se até a segunda década do século XX
depois do litoral, abarcando parte do interior quase todo o território nacional era visto
da província/estado de Minas Gerais, Bahia, como um sertão, por que então um sertão
Pernambuco, Alagoas, Paraíba, Ceará, Rio específico, um espaço em particular, mono-
Grande do Norte e Piauí. Portanto, até por polizou para si determinados significados e a
volta da década de 1920, ainda não havia a ideia de sertão por excelência? Minha hipó-
Região Nordeste. A vastíssima faixa que re- tese é que esse espaço em particular, o sertão
cobre a Floresta Amazônica era um sertão, nordestino, foi objeto, mais do que os demais
ARTES E CULTURA NO SERTÃO Elder Patrick 71
sertões e espaços rurais, de uma represen- território brasileiro. Foi nessa zona litorânea e
tação literária, fílmica e musical muito mais nas suas imediações que se estabeleceu, com
potente, poderosa, nacionalizada e politica- maior pujança entre os séculos XVII e XIX, o
mente interessada por parte de diferentes modelo de exploração econômica agroexpor-
gerações de intelectuais e artistas entre as tador da plantation. Portanto, o Norte do lito-
décadas de 1930 e 1970. Esse foi exatamente ral – com seus núcleos urbanos de povoação e
o período de maior ampliação da produção, atividade econômica – era bastante conheci-
da circulação e do consumo do conteúdo de do nas duas primeiras décadas do século XX.
determinadas linguagens artístico-culturais, Muito menos conhecidas, no entanto, eram
como a literatura, o cinema, a música popu- as duas outras zonas que compunham o an-
lar e a televisão. Foi em meio ao processo de tigo Norte – a vasta área úmida que recobre
modernização cultural brasileira, ou seja, de a Floresta Amazônica e a longa zona árida e
integração dos sistemas técnicos, tecnológi- seca que se estendia desde o Piauí até parte
cos e industriais de transmissão, circulação de Minas Gerais. Essa vasta área seca, pouco
e consumo de bens simbólico-culturais (jor- fértil e distante do litoral somente aos poucos
nais, livros, revistas, filmes, músicas, novelas foi sendo povoada e explorada.
etc.), que o sertão nordestino passou a figurar Durante o primeiro e o segundo século
como o sertão nacional e o espaço rural por de colonização, o espaço caracterizado pe-
excelência. A literatura, o cinema, a música los vastos planaltos áridos e irregulares, e
popular e a televisão (telenovelas) projetaram que tem como expressão vegetal os cactos e
e nacionalizaram – cada um a seu modo, e xerófilas que caracterizam a caatinga, per-
abrangendo diferentes públicos e camadas de maneceu incólume à presença do coloniza-
consumidores – tipos humanos, instituições, dor português. O elemento socioeconômico
crenças e uma determinada realidade socioe- dinamizador desse embrionário povoamento
conômica. A combinação entre essa realidade e penetração pelo interior adentro foi a busca
econômica, política e cultural e a sua projeção por metais preciosos, a captura e escraviza-
e nacionalização literária, cinematográfica, ção das populações indígenas e a criação dos
musical e televisiva resultou em quatro regis- rebanhos bovinos. Os primeiros rebanhos bo-
tros socioculturais específicos: 1) o registro vinos ocuparam o agreste pernambucano e o
da fome; 2) o registro da violência; 3) o re- Recôncavo Baiano, em uma margem segura
gistro da resistência; 4) o registro da criação de distância para que não danificassem as
artístico-cultural e da ludicidade encantada. plantações de açúcar e outras culturas tro-
picais dos primeiros séculos de colonização
1. O registro sociocultural da fome e atividade econômica, como o fumo, por
Das três grandes zonas que compunham exemplo. Durante os séculos XVIII e XIX,
o imenso e antigo Norte brasileiro até a se- multiplicaram-se as criações bovinas em
gunda década do século XX, a mais conhecida direção ao interior dos estados, chegando até
era exatamente a zona litorânea/costeira, nú- o Rio São Francisco e, mais tarde, dirigindo-
cleo inicial do povoamento e colonização do -se ao interior do Ceará e do Piauí. Segundo
72 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
reforçou e nacionalizou o registro sociocul- verdes. Espaço da luz que cega, da indefini-
tural da fome em torno do sertão nordestino. ção entre homens e animais, da loucura, da
Em uma década de profunda agitação políti- prostituição, dos retirantes. Romances con-
co-ideológica, os romances da década de 1930 sagrados, como Vidas Secas (1939), de Graci-
contêm uma identificação integral dos auto- liano Ramos, e O Quinze (1931), de Rachel de
res e intelectuais com sua paisagem humana Queiroz, além de muitos outros, exploram a
e natural, com sua natureza, passando a sen- linguagem simbólica e política desse registro
ti-la, a vê-la e a dizê-la como sociocultural demasiado forte
nunca antes se fez. O romance Para autores como e contundente – a fome. Esta
Rachel de Queiroz e
da década de 1930 dotou uma passa a ser identificada e loca-
Graciliano Ramos, foi
parte do antigo Norte de uma lizada nos corpos esquálidos
a civilização do couro
visibilidade que passou pelo ou dos currais, e não a dos sertanejos migrantes. A
trabalho de consecução de civilização do açúcar, fome é resultado da aridez
uma nova linguagem e uma formada pelo complexo inóspita do meio, mas princi-
nova maneira de se narrar o litorâneo da casa-grande palmente do descaso político
encadeamento das histórias. e da senzala, que gestou e dos mecanismos de domina-
Na estruturação da narrativa nossa nacionalidade. ção econômica existentes na-
dos romances de 1930, o Nor- quele território, cada vez mais
deste (palavra já relativamente difundida nos identificado como um espaço-fome.
meios oficiais, a partir do que destaca Albu- O drama da seca e de tudo que ela de-
querque Jr.) é sempre o espaço das caatingas, sencadeia atravessa as escolas estéticas e
das pequenas cidades empoeiradas, onde se os movimentos de renovação da linguagem
destacam entre as construções a igreja e en- literária existentes nos anos 1930 e 1940. No
tre as pessoas e personagens locais o padre, o final da década de 1930, em razão do impac-
cangaceiro, o vaqueiro e o coronel. to dessas obras e do regionalismo como um
Para autores como Rachel de Queiroz e todo, já é possível perceber claramente uma
Graciliano Ramos, foi a civilização do couro justaposição entre Nordeste e sertão. Ou seja,
ou dos currais, e não a civilização do açúcar, há muitos sertões no território nacional, mas
formada pelo complexo litorâneo da casa- somente um começa a definir um conjunto
-grande e da senzala, que gestou nossa nacio- de significados claros e delineados, e um dos
nalidade, nossa personalidade mais íntima e mais fortes e contundentes é o registro socio-
inconfessa. Fazer um levantamento afetivo cultural da fome. Essa justaposição causou
e político desse espaço, de seus espinhos e incômodo a um dos maiores intelectuais
seus sonhos, é traçar a própria história da regionalistas, o sociólogo pernambucano
resistência e, por conseguinte, da revolução. Gilberto Freyre, um dileto representante do
Trata-se do espaço físico e social do fogo, da antigo Norte conhecido e celebrado, o norte
brasa, da cinza, do céu transparente, da ve- costeiro do litoral. Assim se pronunciou Gil-
getação rasteira, espinhosa, onde somente berto Freyre, logo no primeiro capítulo (“A
o mandacaru, o juazeiro e o papagaio são cana e a terra”) do seu livro Nordeste:
ARTES E CULTURA NO SERTÃO Elder Patrick 75
A palavra Nordeste é hoje uma pala- acerca do Norte distante do litoral, do Nor-
vra desfigurada pela expressão “obras do te dotado de “paisagens duras doendo nos
Nordeste”, que quer dizer “obras contra as olhos”, como assinala Freyre. Essa filmogra-
secas”. E quase não sugere senão as secas. fia, devotada aos aspectos políticos, econô-
Os sertões de areia seca rangendo debaixo micos e sociais dessa região, responde pelo
dos pés. Os sertões de paisagens duras doen- epíteto de Cinema Novo. O Cinema Novo bus-
do nos olhos. As sombras leves como umas cou na temática regionalista dos romances
almas do outro mundo com medo do sol [...] sociopolíticos da década de 1930 as imagens e
Mas esse Nordeste de figuras de homens e de os enunciados que falam da realidade coletiva
bichos se alongando quase em figuras de El do país, de sua miserabilidade e das condi-
Greco é apenas um lado do Nordeste. Outro ções de privação que acometiam boa parte
Nordeste. Mais velho que ele é o Nordeste da população nacional. Em seu manifesto de
de árvores gordas, de sombras profundas, de 1965, Uma Estética da Fome, o cineasta baia-
bois pachorrentos, de gente vagarosa e às ve- no Glauber Rocha defende a ideia de um cine-
zes arredondada quase em sanchos-panchas ma faminto, filmes que demonstrassem toda
pelo mel de engenho, pelo peixe cozido com a fome e tristeza das populações latino-ame-
pirão, pelo trabalho parado e sempre o mes- ricanas; filmes que não tratassem da fome e
mo, pela opilação, pela aguardente, pela gara- da violência como temas, mas que também
pa de cana, pelo feijão de coco, pelos vermes, fossem famintos em razão da pobreza de seus
pela erisipela, pelo ócio, pelas doenças que meios de produção, a pobreza material de es-
fazem a pessoa inchar, pelo próprio mal de tilo sinalizaria a pobreza do mundo real. Para
comer terra. Um Nordeste onde nunca deixa Glauber, a originalidade da América Latina
de haver uma mancha de água: um avanço de era a fome, e a manifestação cultural mais no-
mar, um rio, um riacho, o esverdeado de uma bre da fome seria a violência. Tudo o que fosse
lagoa (FREYRE, 2013, p. 93 ). preciso e demasiado urgente seria, tal qual
o guerrilheiro cubano que pegou em armas
A citação de Albuquerque Jr. e de Gil- anos antes, a intervenção do cineasta com
berto Freyre permite antever que, por meio uma “câmera na mão e uma ideia na cabeça”.
do fenômeno das secas e suas repercussões
político-culturais, ocorreu a sertanização 2. O registro sociocultural
paulatina do antigo Norte, e, por conseguin- da violência
te, o nascimento do Nordeste. A consolidação O paulatino processo de sertanização
do registro sociocultural da fome, por meio do Norte, o respectivo nascimento do Nor-
da privação causada pelas secas, foi decisiva deste e, por conseguinte, a justaposição entre
para o advento do Nordeste. Outro aspecto sertão e Nordeste ganham ainda mais força
que consolidou o registro sociocultural da com a construção e projeção do registro so-
fome que compõe o monopólio de sentido ciocultural da violência. Em 1896, eclodiu no
exercido pelo sertão nordestino diz respei- longínquo interior da Bahia, às margens do
to ao advento de uma filmografia específica Rio Vaza-Barris, um conflito que imprimiu
76 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
anedotas nas confrarias e nos cafés, de ar- de Silvino, ao mesmo tempo que anuncia
tigos nos jornais, de peças e encenações nos uma recompensa oferecida pelo governo bra-
teatros, de temor nas escolas, de espanto e sileiro para quem soubesse notícias de seu
surpresa nas faculdades e de alerta geral nos paradeiro e de seu bando. O aparecimento
quartéis. Os relatos dos atos de violência, do cangaço, do messianismo e do infortúnio
decapitações e mutilações cometidos pelos das secas traça um registro duplo de identifi-
conselheiristas contra os soldados do Exér- cação do sertão: fome e violência. Esses dois
cito, assim como a fúria “fanática” do líder registros só se consolidam à medida que o
religioso Antônio Conselheiro, impregnavam espaço mais interior da antiga Região Norte
a imprensa e constituíam a opinião pública ganha nova visibilidade na produção literária
corrente. Notícias acompanhadas de foto- pós-1930 e na produção cinematográfica dos
grafias e fotogramas surpreendiam e repug- anos 1950 e 1960. Não é por acaso que os ele-
navam essas populações. Eram cadáveres e mentos como o cangaço, o messianismo e o
corpos mutilados, quando não ciclo das secas serão trabalha-
em completo estado de priva- O aparecimento dos e escolhidos pelas narrati-
ção. Uma batalha que se travava do cangaço, do vas literária e cinematográfica
messianismo e do
em um ambiente inteiramente para sustentar um projeto de
infortúnio das secas
inóspito, uma população de fa- denúncia política.
traça um registro
cínoras, guiada por um fanático duplo de identificação O Cinema Novo e o cinema
messiânico em trajes e aspecto do sertão: brasileiro de modo geral tam-
bárbaros, desafia a República fome e violência. bém corroboraram diretamen-
e a boa ordem do mundo civi- te para a construção do registro
lizado. Esse era o tom das manchetes e das sociocultural da violência. Ao todo, entre a dé-
2
colunas políticas veiculadas nos principais cada de 1950 e meados dos anos 1960, foram
jornais do Centro-Sul do país. mais de 20 filmes tematizando o fenômeno do
Dezessete anos após o término do con- cangaço, ora narrando a vida de seu principal
flito de Canudos, relatos jornalísticos em líder, Lampião, ora mobilizando o cangaço no
1915, publicados em revistas e jornais do interior de uma complexa trama narrativa,
Centro-Sul, dão conta de diversos bandos como fez Glauber Rocha. Trata-se de uma
armados espalhados pelos rincões do Norte problemática formadora de uma geração de
do país, fazendo suas próprias leis e ofere- intelectuais e cineastas. Sob os mais diversos
cendo seus serviços bélicos a quem pudes- ângulos, o cangaço se inscreve na teia narra-
sem interessar. Um desses grupos, o mais tiva e discursiva do cinema brasileiro. O can-
propalado naquela década, era liderado pelo gaço representa um dos traços do sistema de
ex-agricultor Antônio Silvino (1887-1934), assimetrias que marcou o interior do antigo
uma espécie de precursor do líder do cangaço Norte durante os primeiros séculos de ocupa-
Virgulino Ferreira da Silva – o Lampião. Em ção. Para os cineastas do Cinema Novo (como
março de 1916, a revista Selecta, sediada no Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos),
Rio de Janeiro, publica algumas fotografias tomados pela verve de um cinema crítico e de
78 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
a produção cultural brasileira e sua avidez baião é uma corruptela da palavra baiano,
por experimentação estética e denúncia po- derivada de danças e festejos existentes
lítica. A essa altura, em meados da década de no interior da Bahia, durante o século XIX.
1960, a justaposição entre sertão e Nordeste Diferentemente do coco de embolada (ori-
é total e o processo paulatino de sertanização ginário da Zona da Mata costeira do antigo
do antigo Norte, iniciado no final do século Norte) e da moda de viola caipira (originária
XX, se completa mediante a consolidação dos do interior dos estados de São Paulo e Mato
registros socioculturais da fome, da violência Grosso), o baião não é um gênero musical
e da resistência. de matriz rural. Ao contrário desses gêne-
ros musicais, eminentemente rurais, não
4. O registro da criação artística havia no interior do antigo Norte brasileiro
popular e da ludicidade (o Norte das caatingas e das secas) um gê-
O registro sociocultural da criação ar- nero musical definido e sistematizado em
tística popular e da ludicidade tem diversas suas linhas rítmico-melódicas. O que havia
fontes e partiu de diversas direções. Desde a era um gênero poético-musical, o repente,
profusão da literatura de cordel e do repente, que continha uma unidade sonora chamada
passando pela valorização literária e cine- baião, mas não um gênero musical, nuclea-
matográfica das lendas, anedotas, cantigas do pela canção popular, como foi o caso do
e cosmologias rurais. No entanto, nenhuma baião urbano-comercial criado, sistematiza-
linguagem artística foi mais eficaz do que a do e difundido por Luiz Gonzaga e Humberto
música popular para projetar, nacionalizar Teixeira a partir de 1945.
e positivar o sertão nordestino. A música O chamado baião de viola (trecho sono-
popular que realizou esse feito diz respeito ro que marca a introdução dos desafios e a
ao gênero musical baião. Em sua poética poética musical dos cantadores repentistas)
musical, o gênero baião condensou os três não foi suficiente para engendrar um gênero
registros culturais destacados anteriormen- musical nucleado pela forma da canção po-
te, positivando-os e projetando o imaginá- pular. Esse material sonoro foi utilizado por
rio rural-pastoril-árido do interior do antigo Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira como um
Norte (o novo Nordeste) por todo o território mecanismo de orientação dos seus processos
nacional durante os anos 1940 e 1950 atra- criativos, desencadeado por um complexo
vés do rádio – o mais moderno, dinâmico e e tortuoso processo de reativação e recria-
popular veículo de comunicação e consumo ção das memórias lúdico-musicais de am-
cultural do período. bos, após uma longa ausência do interior do
O gênero musical baião foi construído, antigo Norte. A trajetória dos autores, bem
sistematizado e difundido em suas linhas como a incorporação de disposições artís-
rítmico-melódicas pelos músicos e compo- ticas e aprendizados múltiplos nos espaços
sitores Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, musicais urbanos, nos estúdios de rádio e nas
no transcorrer da década de 1940, no espaço gravadoras de disco, resultou num proces-
urbano da cidade do Rio de Janeiro. O termo so constante de experimentação e criação
ARTES E CULTURA NO SERTÃO Elder Patrick 81
musical, que resultou no gênero musical da antiga região Norte) para o centro da cria-
baião. O gênero musical baião, difundido e ção lúdico-musical, e, por conseguinte, para
nacionalizado nos anos 1940 e 1950, aproxi- o consumo musical que se ampliava. O baião
mou a festa de Momo, o calendário junino e acentuou o monopólio de significado ligado
o gênero musical, resultando na definição de ao sertão nordestino porque, por um lado,
uma pauta musical para os festejos que cele- potencializou os registros socioculturais da
bram a tríade de santos populares católicos. fome e da violência, presentes no interior
Antes do advento do samba e das mar- da sua grade temática musical; por outro,
chinhas carnavalescas, não havia gêneros mediante as especificidades da linguagem
musicais específicos de Carnaval, tocava-se, musical e dos recursos tecnológicos do rádio
até o final dos anos 1920, toda sorte de músi- e do disco, criou o polo de positividade ligado
cas – inclusive gêneros musicais originários ao sertão nordestino, a própria criação lú-
da Zona da Mata costeira do antigo Norte, dica e artística. Uma dessas especificidades
como o coco de embolada. A consistiu em fazer da própria
ascensão e a consolidação O chamado baião de viola seca e do drama da migração
do samba, nos anos 1930, (trecho sonoro que marca matéria-prima da aceleração
conjugado às derivações a introdução dos desafios rítmica e dos estímulos cor-
e a poética musical dos
das marchinhas carnavales- porais direcionados à dança.
cantadores repentistas)
cas, passaram a dinamizar A seca e a migração, além de
não foi suficiente para
o caráter lúdico da festa de engendrar um gênero mote lírico-dramático, foram
Momo, confundindo-se com musical nucleado pela também temas dançantes e
ela, forjando uma unidade forma da canção popular. eminentemente lúdicos.
– principalmente no Rio de O gênero musical baião
Janeiro – entre Carnaval, samba e marchi- foi decisivo para potencializar o processo já
nha. Com o baião, o processo foi semelhante. em curso de sertanização do antigo Norte e,
Até meados dos anos 1940, não havia gêneros por conseguinte, de nascimento definitivo
musicais juninos, sobretudo porque a festa do Nordeste, justapondo sertão e Nordeste.
abrigava um caráter gregário de matriz re- Um único exemplo evidencia a relevância
ligiosa e familiar. A partir dos anos 1950, as do gênero musical baião para o processo
marchas juninas e os baiões mais dançantes de monopolização de sentido construído e
imprimiram, aos poucos, uma pauta musical exercido pelo sertão nordestino entre 1930
às noites de São João, São Pedro e Santo An- e 1970. Trata-se da série musical No Mundo
tônio, fundindo a festa, o calendário e o baião. do Baião, transmitida pela rádio mais ouvi-
O gênero musical baião foi decisivo para da no Brasil, e uma das emissoras mais mo-
a construção do monopólio de significado dernas e potentes da radiodifusão mundial,
exercido pelo sertão nordestino, posto que, a Rádio Nacional do Rio de Janeiro. A série
mediante o alcance da sua poética musical no foi ao ar pela primeira vez no primeiro se-
decurso dos anos 1940/50, trouxe um sertão mestre de 1951, ocupando o horário nobre
específico (o interior seco, árido e desértico do rádio brasileiro, as 21h, às terças-feiras.
82 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
Apresentada pelo locutor Paulo Roberto, as sociedades pastoris, como a lida com os
contava com a presença regular do sanfo- rebanhos (notadamente o bovino) e o traba-
neiro Luiz Gonzaga, sendo escrita e diri- lho com a terra. Esses aspectos, produzidos
gida pelo médico e compositor Zé Dantas e reproduzidos no rádio como uma espécie
e supervisionada pelo advogado e compo- de pedagogia auditiva, colaboraram para,
sitor Humberto Teixeira. Compareciam à paulatinamente, circunscrever os limites
série diversos cantores e grupos musicais, sonoros do sertão brasileiro, cada vez mais
conhecidos e desconhecidos. Os números identificado e representado por um sertão
musicais recebiam a orquestração e os ar- em particular, o nordestino. As narrações do
ranjos do maestro Guio de Moraes (parceiro locutor Paulo Roberto, eivadas de lirismo e
de Gonzaga na canção “Pau de Arara”), cujos de um apelo bucólico, desenhavam verda-
temas e o teor das canções eram sempre se- deiras paisagens sonoras.
guidos de explicações, muitas delas forne-
cidas pelos “doutores” do baião, Humberto Na penumbra da tarde, o sol enciman-
Teixeira e Zé Dantas. do as serras clareia o horizonte distante [...]
A música que organizava o programa Êta sertão bonito! O sol tinge de vermelho
era conduzida como uma espécie de quadro escarlate esparsos tufos de nuvens que pa-
geral, cuja moldura era tecida pelas melo- recem marcas de beijos da noite que chega,
dias e poesias do baião, mas também consis- na boca do dia que se despede [...] O gado
tia numa chave de acesso a um Brasil mais gordo e sadio, com mugido de alegria; o
“denso” e “profundo”, distante e eminente- coachá das rãs nos açudes e lagoas; a re-
mente rural, que saltava e sensibilizava por voada das aves nas árvores mais frondosas
meio de personagens, estórias, anedotas, e o fazendeiro (sorri) deitado numa rede no
piadas, fontes de informação, digressões alpendre da casa grande [...] O vaqueiro do
explicativas etc. Esses elementos concorre- Nordeste, este homem valente e ágil, que
ram para dotar o baião e o sertão nordestino com sua vestimenta de couro enfrenta os
de uma gramática específica de pertenci- maiores perigos dentro do mato atrás de um
mento, que não poderia mais prescindir boi, consegue dominar a brabeza de toda
de termos como tradição, autenticidade e uma boiada, cantando uma canção caracte-
criatividade. No Mundo do Baião era mar- rística. É o aboio. Ouvindo a cantiga, o gado
cado, além de por músicas (xotes, xaxado, caminha lentamente na estrada, parecen-
coco, maracatu, que gravitavam em torno do entendê-la [barulho de gado mungin-
do baião), pela narração de anedotas, crôni- do] (narração da série No Mundo do Baião,
cas e contos do sertão nordestino, reprodu- apud VIEIRA, 2000, p. 165).
zindo reminiscências orais (a prosopopeia
característica, o uso de determinados ver- A transcrição acima revela, entre ou-
bos, a atualização de palavras e os feitos tros aspectos, o caráter didático da locução
idílicos de mitos e personagens do sertão e de parte dos conteúdos veiculados na sé-
nordestino) que marcam profundamente rie. O perfil lúdico-instrutivo da série não
ARTES E CULTURA NO SERTÃO Elder Patrick 83
diferia muito dos programas realizados Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira) passou
pelos folcloristas do rádio nos anos 1940 a ser o prefixo de diversas rádios espalha-
e 1950 (Almirante, Zé do Norte e Renato das pelos rincões nordestinos, algumas
Murce, entre outros); o que o diferenciava, inclusive fora do Nordeste.
no entanto, era a produção do programa. A Outro gênero musical, a moda de viola
série contava com os poetas, os músicos e caipira, embora bem menos do que o baião,
os próprios “pesquisadores” especialistas também falou e cantou o sertão, nesse caso
em sertão, uma vez que, diferentemente o sertão caipira paulista, presente no rádio
dos folcloristas do rádio, Dantas e Teixeira e no disco entre os anos 1930 e 1950. Essa
(além de Gonzaga) não eram apenas pro- representação rural específica, projetada
dutores, mas também criadores e siste- e nacionalizada pela canção popular, a li-
matizadores de expressões e informações, teratura e o cinema, não obteve, todavia, o
figurando como “autoridades nativas”, o mesmo poder cultural e político alcançado
que lhes permitia prescindir de maiores pelo sertão nordestino. Foi o baião o grande
auxílios e assessorias, pois eram eles mes- responsável pela diferenciação assumida
mos os principais tradutores do sertão e entre os sertões brasileiros no plano mu-
também as fontes mais “fi- sical: o sucesso comercial e
dedignas”. Por isso mesmo, “Asa Branca” (de Luiz artístico do baião conden-
No Mundo do Baião poderia Gonzaga e Humberto sou e vinculou o sertão ao
ser facilmente chamado de Teixeira) passou a ser Nordeste, dotando aquela
No Mundo do Sertão ou de o prefixo de diversas região de um gênero musi-
No Mundo do Nordeste – o rádios espalhadas pelos cal de grande alcance nacio-
Nordeste do sertão, o sertão rincões nordestinos, nal, nucleado pela forma da
nordestino. Se o folclorista algumas inclusive fora canção popular. Os demais
Câmara Cascudo é ainda do Nordeste. sertões (São Paulo, Minas,
hoje reputado como o maior Goiás) progressivamente se
professor de sertão, a série musical foi uma diluíram, ao passo que o sertão do Nordes-
espécie de escola lúdico-musical radiofô- te se tornou a representação acabada do
nica avançada e bastante criativa sobre sertão brasileiro, do mundo rural nacional,
mitologia, cosmologia, cosmogonia, an- inteiramente definido pelos quatro regis-
tropologia, fauna, flora, folclore, religião e tros socioculturais explorados aqui: a fome,
música do sertão nordestino. A recorrência a violência, a resistência e a criação artís-
do baião nos programas radiofônicos con- tico-popular. Este último registro socio-
tribuiu sobremaneira para a nacionaliza- cultural, muito em decorrência do gênero
ção do gênero. Assim como, em 1939, “Luar musical baião, incorporou em seus temas
do Sertão” (de João Pernambuco e Catulo e motes os três primeiros registros, valori-
da Paixão Cearense) havia sido escolhida zando-os, positivando-os e nacionalizan-
como o prefixo da maior rádio da história do uma identidade e um pertencimento
brasileira (a Nacional), “Asa Branca” (de regional específico.
84 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
ARTES E CULTURA NO SERTÃO Elder Patrick 85
86 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
Elder Patrick
Possui graduação em ciências sociais pela Universidade Federal da Bahia (UFBA)
e mestrado e doutorado em sociologia pela Universidade de Brasília (UnB) e pós-douto-
rado em sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos (Iesp-Uerj). Atualmente
é professor associado I do Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade Federal de
Alagoas (Ufal) e professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS-Ufal).
Realiza pesquisa na área de sociologia dos mercados culturais, economia criativa; eco-
nomia da cultura; mercados culturais no Brasil; sociologia econômica; políticas culturais,
consumo cultural; estratificação social e desigualdade; cultura popular, sertão nordestino
e desenvolvimento regional. É membro do comitê Sociólogos do Futuro da Sociedade
Brasileira de Sociologia (SBS). Em 2010, venceu o Prêmio de Pesquisa em Cultura – Polí-
ticas Públicas de Cultura, do Ministério da Cultura (MinC), e o Prêmio Estudos e Pesquisas
sobre Arte e Economia da Arte no Brasil, da Fundação Bienal de Arte de São Paulo, com
o livro A Economia Simbólica da Cultura Popular Sertanejo-Nordestina. Em 2012, foi lau-
reado com o Prêmio Funarte Centenário de Luiz Gonzaga, da Fundação Nacional de Arte
(Funarte), com o livro A Sociologia de um Gênero: o Baião.
Referências
ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz. A invenção do Nordeste e outras artes. São Paulo:
Cortez, 1997.
BANDEIRA, Luiz Alberto Muniz. O feudo. A casa da torre de Garcia D’Ávila: da conquista
dos sertões à independência do Brasil. Rio de Janeiro: Civilização, 2007.
ELIAS, Norbert. O processo civilizador, v. I e II. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991.
ARTES E CULTURA NO SERTÃO Elder Patrick 87
FREYRE, Gilberto (2013). Nordeste: aspectos da influência da cana sobre a vida e a paisagem do
Nordeste do Brasil. São Paulo: Global, 2013. Disponível em: http://lelivros.love/book/baixar-
livro-nordeste-gilberto-freyre-em-pdf-epub-e-mobi-ou-ler-online/. Acesso em: 16 dez. 2018.
LEVINE, Robert. O sertão prometido: o massacre de Canudos. São Paulo: Edusp, 1998.
MOREL, Marcos. O poder da palavra: o surgimento da imprensa no Brasil do século XIX. Rio de
Janeiro: DP&A Editora, 2003.
Notas
2 Ver: https://acervo.estadao.com.br/noticias/acervo,canudos-diario-de-uma-expedicao-
euclides-da-cunha-781897,11951,0.htm. Acesso em: 16 dez. 2018.
3 Hoje em dia, a cidade de Monte Santo, localizada no nordeste da Bahia, sede das locações
de Deus e o Diabo na Terra do Sol, abriga uma das maiores procissões de romeiros do
sertão nordestino.
88 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
O PASSADO, O PRESENTE E O
PRETÉRITO IMPERFEITO DA
MÚSICA SERTANEJA
Brian Henrique de Assis Fuentes Requena
Este artigo tem como intuito apresentar as principais particularidades sociais da música
sertaneja, conjugando assim o passado, o presente e o pretérito imperfeito do gênero. Em menos
de duas décadas, a música sertaneja tem movimentado um mercado milionário na indústria
do showbiz brasileiro, transformando-se em um império nacional. Paralelamente a isso, a
modernização do gênero tem despertado a contestação daqueles que se autorreferenciam como
defensores da tradição da música sertaneja. Portanto, um dos intuitos deste ensaio é abordar
as configurações atuais desse debate histórico.
Introdução
O
sucesso comercial da música ser- as principais particularidades sociais do
taneja é um fenômeno sem-par na gênero sertanejo. Então vamos lá.
história social da música popular Dos anos 1940 em diante, os artistas
brasileira. Em 1929, o folclorista Corné- sertanejos têm adotado uma estratégia de
lio Pires foi o responsável pela gravação mercado estruturalmente simples, embo-
das primeiras modas de viola em disco, e, ra muito funcional, para assegurar a hege-
de lá para cá, o gênero se modernizou e se monia do gênero na indústria da música:
adaptou aos ditames do mercado fonográ- o casamento entre a “tradição” da música
fico brasileiro. Mais do que isso, a música sertaneja – o formato de duetos, o canto de
sertaneja acompanhou as transformações dupla em terças, o uso predominante do vio-
sociais, econômicas, políticas e culturais da lão, o bucolismo, os enredos sertanistas – e a
sociedade brasileira contemporânea. Do in- “modernização” do gênero – os instrumen-
terior às capitais, dos subúrbios às megaca- tos eletrificados, as narrativas urbanas, os
sas de espetáculos, dos shows tradicionais vestuários modernos, os espetáculos tec-
às baladas pop, o Brasil se tornou sertanejo. nológicos. E, concomitantemente a isso,
Mas como a música sertaneja logrou esse graças à apropriação de ritmos estrangeiros
êxito nacional? Eis o ponto de partida deste no repertório, a música sertaneja pôde se
artigo. E, para isso, temos que apresentar ajustar às diretrizes impostas pela indústria
ARTES E CULTURA NO SERTÃO Brian Henrique de Assis Fuentes Requena 89
cantos do país. Uma das modalidades de radiofônica entre os meses de janeiro e ju-
show ao vivo é a balada sertaneja. Em São lho de 2017, com mais de 41 bilhões de exe-
Paulo, por exemplo, casas noturnas como cuções nas rádios brasileiras. “Acordando o
a Wood’s, na Vila Olímpia, e bares como Prédio”, de Luan Santana, foi a música mais
Brook’s, na Chácara Santo Antônio, se tor- tocada de 2017. Outros artistas, como Jorge
naram parte do reduto boêmio da capital & Mateus, Victor & Leo, Fernando & Soro-
paulistana. Pelo interior do Brasil afora, o caba, Marcos & Belutti, Henrique & Juliano,
agronegócio e seus subcircuitos culturais, Zé Neto & Cristiano, João Neto & Frederico,
como as festas do peão de boiadeiro e os Simone & Simaria, Maiara & Maraísa, Paula
festivais agropecuários, são os principais Fernandes e Marília Mendonça, estavam no
financiadores dos shows dos sertanejos. topo do ranking 100 do ano passado.
Quanto ao público consumidor de músi- Em 2018, a música sertaneja assegu-
ca sertaneja, o conhecemos rou sua liderança nas rádios:
ainda muito pouco. Segundo Em 2018, a música das dez faixas mais tocadas,
o levantamento Tribos Musi- sertaneja assegurou sua sete são desse gênero (74%).
cais, realizado pelo Ibope em liderança nas rádios: Já nas plataformas de strea-
2013, os ouvintes de música das dez faixas mais ming, o sertanejo tem dois
sertaneja têm entre 25 e 34 tocadas, sete são desse gêneros concorrentes: o funk
anos, são predominantemen- gênero (74%). e o pop. No YouTube, o funk
te da classe C (52%), têm o domina os principais lugares
diploma do ensino fundamental e estão da lista (55%). No ranking do Spotify, o ser-
majoritariamente no interior e nas capitais tanejo (40%) concorre com o pop (32%) e
do Centro-Sul brasileiro. Em sua extensa o funk (22%), conforme o monitoramento
pesquisa de campo, Requena (2016) assis- da Connectmix. E sobre o público consu-
tiu aos shows de Victor & Leo e Fernando midor de música digital? Setenta e cinco
& Sorocaba em São Paulo. Para o autor, os por cento dos usuários do YouTube e 70%
sertanejos têm um público bem mais hete- dos ouvintes do Spotify têm menos de 34
rogêneo do que isso. anos. Por outro lado, entre os radiouvin-
Em relação aos meios de comunicação, tes, apenas 50% compõem tal faixa etária,
o rádio e a internet são os maiores respon- de acordo com os dados do Ibope de 2017.
sáveis pela divulgação dos sertanejos na Das 50 músicas mais executadas no país em
audiência nacional. Em 2017, por exemplo, 2017, em plataformas como Apple Music,
das dez músicas mais tocadas nas emisso- Deezer, Google Play, Napster e Spotify, 20
ras radiofônicas, nove eram do gênero serta- eram sertanejas, 40% ao todo, conforme o
nejo. De acordo com a listagem da Crowley levantamento da empresa BMAT. Segundo
Broadcast Analysis, das cem músicas do o relatório da Federação Internacional da
ranking, 87 eram sertanejas. Segundo os da- Indústria Fonográfica (IFPI, na sigla em
dos da Kantar Ibope Media e da Crowley, a inglês), a indústria fonográfica brasileira
música sertaneja compôs 32% da audiência faturou mais de US$ 295,8 milhões em 2017,
ARTES E CULTURA NO SERTÃO Brian Henrique de Assis Fuentes Requena 91
com 17,9% de crescimento, o maior índice e os romances fortuitos, sem deixar de lado
em mais de uma década. Somos o maior a “sofrência” clássica do gênero. Mas essa
mercado da música na América Latina e o atualização do universo da música sertaneja
nono no ranking mundial. não veio sem custos. O bucolismo não foi
Nos últimos 18 anos, a música se completamente extirpado, porém, concorre
transformou em um negócio milionário no com o hedonismo e o individualismo. O vio-
Brasil. Não foi à toa que alguns sertanejos lão em cordas de aço e o acordeom têm que
se tornaram empreendedores da música competir com os instrumentos eletrifica-
(REQUENA, 2016). Não obstante, o império dos. O investimento em tecnologia digital de
sertanejo se estendeu ainda mais além. Em ponta transformou os shows de música ser-
uma década, o gênero musical tomou a lide- taneja em baladas eletrônicas. Consequen-
rança das listas de arrecadação de direitos temente, tudo isso suscitou a contestação
autorais. De acordo com o Escritório Cen- daqueles que se autorreferenciavam como
tral de Arrecadação e Distribuição (Ecad), defensores da música sertaneja tradicional,
a cantora Marília Mendonça é a artista da caipira, genuinamente de raiz. Na realidade,
vez. Com mais de 300 fonogramas de sua essa defesa de uma suposta autenticidade
autoria, foi a compositora com maior rendi- musical tem atravessado a história social
mento no setor de música ao vivo no ano de do gênero (ALONSO, 2011). Então, temos
2017. Fernando Fakri de Assis “Sorocaba” que voltar ao passado da música sertaneja
foi o líder do ranking em 2016, 2012 e 2011, e para entendê-lo no presente.
vice-líder em 2010 e 2009. Victor Chaves foi
o compositor que mais arrecadou direitos Sobre o universo sertanejo
autorais pelo Ecad entre 2008 e 2009. Interpretar o passado da música ser-
Em um meio tão competitivo quanto o taneja não é uma incumbência simples.
da música sertaneja, sobressaem-se aqueles Seguindo as pistas dadas por Bourdieu
que têm repertório estritamente autoral. E (2004), isso demanda muito exercício de
quem não tem? Em tais casos, é corriqueiro reflexividade sociológica. Primeiramente
que um mesmo compositor seja o autor de porque a bibliografia sobre a música ser-
dezenas de músicas aclamadas nas vozes taneja é relativamente escassa – sendo ela
de outros intérpretes. Geralmente, esses caipira, sertaneja, de raiz, tradicional, mo-
autores são anônimos ou desconhecidos derna, romântica ou universitária. Quan-
do grande público, mas movimentam um do existente, os autores dão depoimentos
mercado bem lucrativo de compra e venda acusatórios, apoiados em argumentos nor-
de composições na música sertaneja. De- mativos. Na maior parte das vezes, esse
pois do relâmpago do movimento univer- mal-estar consubstanciava um diagnósti-
sitário, que tanto atraiu a audiência jovem co comum: música caipira não era sinôni-
e urbana, alguns sertanejos têm apostado ma de música sertaneja – ainda que parte
em enredos mais modernos, como a farra, as dos intelectuais e artistas aceitasse a pri-
festas, as baladas, a bebedeira, a embriaguez meira como legítima porta-voz do povo e a
92 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
Referências
OLIVEIRA, Allan de Paula. Miguilim foi pra cidade ser cantor: uma antropologia
da música sertaneja. Tese de doutorado em antropologia. Florianópolis:
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), 2009.
ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira: cultura brasileira e indústria cultural. São
Paulo: Brasiliense, 1989.
VILELA, Ivan. Cantando a própria história. Tese de doutorado em psicologia. São Paulo:
Universidade de São Paulo (USP), 2011.
Programas de TV
BEM SERTANEJO. Michel Teló mostra negócio milionário que a música sertaneja
movimenta. Fantástico, Rede Globo, 19 out. 2014.
Websites
Connectmix: <https://www.connectmix.com>.
As artes visuais têm uma longa e íntima relação com o sertão. A região não apenas
alimentou uma ampla produção de pinturas, esculturas e fotografias relativas ao seu povo
e à sua natureza, ajudando a cunhar uma imagem de resistência e simplicidade, como é
também a origem – em termos geográficos e simbólicos – de muitos dos mais importantes
artistas populares do país.
A
s artes visuais são amplamente res- com o traje típico de couro – necessário ao
ponsáveis pela imagem do sertão enfrentamento da vegetação bruta da caa-
formada ao longo do último século tinga. Na obra do artista inglês, que integrou
no país, fortemente ancorada na ideia de rus- uma missão diplomática em visita ao país em
ticidade, miséria e resistência. Imagem que 1825, o homem parece integrar-se natural-
se traduz seja numa temática baseada em mente com o solo seco e árido. Essa mesma
figuras simbólicas, como as do retirante, do fusão entre homem e paisagem, em que a
cangaceiro e do beato, seja numa materiali- brutalidade de um ecoa na secura do outro e o
dade mais tosca, que remete a certa aspereza tom de terra predomina, vai se fazer presente
na forma e no gesto. Quer na produção local, em uma ampla gama de representações pro-
quer nos diferentes modos de representação duzidas ao longo desses quase dois séculos,
visual dessa cultura nas ditas formas cultas, por artistas nordestinos ou não.
prepondera a noção da força, da resistência Em alguns momentos, domina certa
às agruras da seca, da pobreza e das ameaças ternura e um sentimento de pertencimen-
de dissolução de uma cultura tradicional. to, como no caso das gravuras de Pelo Sertão
A aquarela pintada por Charles Land- feitas na década de 1940 por Lívio Abramo.
seer é uma das primeiras imagens relativas Em outros, a denúncia da miséria e da seca,
ao tema encontradas na Enciclopédia Itaú em sintonia com uma ideia de transforma-
Cultural e mostra a figura do sertanejo já ção social por meio da arte, se faz presente.
ARTES E CULTURA NO SERTÃO Maria Hirszman 97
Esse fenômeno se torna bastante evidente, Janeiro, principais polos culturais do país,
sobretudo na segunda fase do modernismo ela se torna uma importante bandeira para os
brasileiro. Pintores como Fulvio Pennacchi, movimentos locais que começam a surgir e a
Clóvis Graciano, Henrique Oswald e, sobre- reivindicar os temas e as formas de fazer arte
tudo, Candido Portinari – cuja série sobre no Nordeste como núcleo de um processo de
os retirantes deu visibilidade nacional à desenvolvimento regional.
triste sina dos refugiados da seca – trans- É possível citar duas dessas iniciativas
formaram em tema a tragédia recorrente e que renderam importantes frutos: o Ateliê
corporificaram em imagens uma situação de Coletivo, movimento fundado por Abelardo
desalento que já vinha sendo da Hora e outros companhei-
trabalhada de forma intensa Ao mesmo tempo ros em 1952, e o Movimento
pela literatura. O realismo que artistas com Armorial, fundado em 1970
social e a defesa de uma óp- formação profissional por Ariano Suassuna. Nos
tica regionalista, capaz de e reconhecimento se dois movimentos há uma cla-
dar conta da história local alimentam dos hábitos ra incorporação de elemen-
de uma população vitimada do povo simples, tos de cultura popular, uma
pela natureza inclemente e abre-se um caminho tentativa de integrar arte
para esses produtores
pelo descaso das autoridades, erudita e raízes populares,
anônimos, responsáveis
fortemente presentes na lite- buscando desenvolver uma
pela perpetuação
ratura da primeira metade do dessas tradições. produção regional genuína,
século XX, também tiveram que reunisse as tradições lo-
sua contrapartida nas artes visuais, ganhan- cais, absorvendo processos, técnicas, temas
do visibilidade por meio de obras de grandes e vivências do povo. Gilvan Samico, um dos
mestres, como Cícero Dias. E continuaram, mais virtuosos gravadores do país e próximo
nas décadas seguintes, a conquistar um es- dos dois movimentos citados, promove uma
paço crescente nessa produção. interessante aproximação entre um universo
Foram, por exemplo, as cenas de viagem mítico e arcaico e uma forte tradição da cultu-
no pau-de-arara, as vendeiras e os cangacei- ra popular nordestina. Essa aproximação en-
ros representados no álbum Cenas da Seca do tre o mundo culto e a riqueza popular tem um
Nordeste que garantiram a Aldemir Martins o duplo sentido. Ao mesmo tempo que artistas
Prêmio Aquisição na 1ª Bienal Internacional com formação profissional e reconhecimento
de São Paulo e a inserção no circuito artís- do circuito se alimentam da cultura das ruas,
tico do Sudeste. É importante frisar que há dos hábitos do povo simples, se apropriando
um duplo movimento nessa incorporação de narrativas e formas de fazer, abre-se tam-
da temática do sertanejo. Ao mesmo tempo bém um caminho duro, porém em ampliação,
que tal absorção permite uma abertura para para esses produtores anônimos, responsá-
além dos limites regionais, garantindo uma veis pela perpetuação dessas tradições.
identidade mais definida a artistas nordes- O artesanato e a arte dita primitiva, cos-
tinos que migram para São Paulo e Rio de tumeiramente anônimos, vão adquirindo um
98 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
estatuto mais elevado, ganhando espaço nas barraquinhas da feira que ajudou a notabili-
pesquisas não apenas antropológicas, mas zar, ainda era considerado um ceramista sem
artísticas, e conquistando lugar nas cole- identidade. Curiosamente, é nesse mesmo
ções de arte, nas galerias especializadas e ano que nasce a Comissão Nacional de Fol-
nos espaços institucionais de exibição. Há clore, um indício do crescente interesse por
uma espécie de biografia comum a essas fi- esse tipo de manifestação cultural. A saída
guras: em sua maioria, artistas de baixo es- paulatina de Vitalino do anonimato ocorreu
trato social, com nenhuma ou pouquíssima de forma quase simultânea a esse processo
educação formal, e marcados por um desejo de resgate de trabalhos como o dele, nos
anormal de expressão artística, que os faz quais predominam grande talento, forte im-
desviar do caminho natural de produção de pulso criativo e uma verdadeira obsessão em
objetos de uso cotidiano para desenvolverem dar formas tangíveis às tradições e vivências
expressões de grande potência plástica. Há da população em seu entorno.
uma lista grande de artistas que, por meio Outro artista cuja notabilidade afirma-
da pintura ou da escultura (com destaque -se aos poucos, mas torna-se incontornável
para o uso do barro, desviado das olarias, ou quando se trata de pensar em cultura popular
da madeira, facilmente en- sertaneja, é J. Borges. Nascido
contrável), acabam forjando Um caso paradigmático em Bezerros (PE), frequentou
formas bastante particulares é o de Mestre Vitalino, a escola por dez meses apenas.
de criação e adquirindo amplo que traduz em singelas Foi marceneiro, mascate, pin-
reconhecimento, muitas vezes figurinhas de barro a tor de parede e oleiro, entre
até formando escolas. ampla diversidade da outras profissões. Em 1956,
Um caso paradigmático cultura nordestina. começou a vender literatura
nesse sentido é o de Mestre de cordel e rapidamente se
Vitalino, que traduz em singelas figurinhas tornou ele próprio um ilustrador, inicial-
de barro a ampla diversidade da cultura nor- mente produzindo as imagens para os fo-
destina, retratando desde figuras emblemáti- lhetos que comercializou e paulatinamente
cas, como a de Lampião, a festas, profissões e conquistando maior autonomia e reconheci-
hábitos de sua gente. Com grande maestria, mento nacional e internacional, tornando-se,
criou modelos que até hoje são seguidos por nas palavras de Suassuna, o maior gravador
seus descendentes e por novas gerações de popular do Brasil.
artesãos de Caruaru, com os quais ele sempre Para além desses dois nomes, é possí-
compartilhou suas técnicas e sua maneira de vel citar inúmeros artesãos e artistas que
dar forma ao barro, que, como muitos, apren- foram lentamente conquistando um lugar
deu a manusear ainda menino, em pedaços nesse amplo segmento da arte popular. É in-
subtraídos da mãe, que se ocupava de fazer teressante notar os vínculos existentes entre
utensílios para serem vendidos. eles. Nhô Caboclo, por exemplo, foi apren-
No entanto, em 1947, quando suas diz de Mestre Vitalino, antes de definir seu
primeiras peças surgem para além das próprio caminho, dedicando-se à escultura
ARTES E CULTURA NO SERTÃO Maria Hirszman 99
100 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
A
poesia sempre escreveu a história homens: a presença masculina era mais nu-
da microrregião do Pajeú. Os vio- merosa – e até hoje é – na cantoria de viola e
leiros repentistas e os cordelistas a maior parte de títulos publicados de cordel
do sertão pernambucano conduziram essa também era assinada por homens, e assim
narrativa pelo mundo afora. A partir de uma se estendia para os recitais. Com isso, eles
cultura predominantemente oral, eles rom- ganhavam mais visibilidade.
peram barreiras sociais e limites geográficos Torna-se evidente que os motivos não
para mostrar à poesia o lugar onde ela mere- se restringem a dados matemáticos. Os va-
ce estar: na boca do povo. tes ganhavam fama porque, para realizarem
Fazendo uma visita rápida às nossas suas cantorias, as viagens eram frequentes
memórias, verifica-se que as mulheres poe- e os públicos eram sortidos. As poetisas,
tas (ou poetisas, de acordo como cada uma em geral, por sua vez, cuidavam dos filhos
prefira ser chamada) desenvolveram papel e da família e executavam as tantas ativi-
fundamental na poesia da região. No entan- dades domésticas que o sistema patriarcal
to, poucos nomes ganharam destaque – se por tanto tempo impôs. Assim, viajar por
comparado à quantidade de homens poetas aí improvisando versos estava fora de co-
que tiveram notoriedade – pelos pesquisado- gitação para elas. E, ainda que não fossem
res, apologistas e pela mídia. Os motivos são casadas, “não pegava bem moça solteira sair
vários para que a ênfase tenha sido dada aos pegada em braço de viola”, nas palavras de
104 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
Maria Batista, mãe da cantadora Luzia Ba- da nossa gente no trecho do poema “Hino às
tista, natural da zona rural de São José do Avessas”: “Nosso hino nasceu desafinado/
Egito (PE). Numa conversa informal, ela Entoando uma falsa liberdade”. A bisneta
acrescentou que só deixou a filha cantar Ana Luiza, aos 16 anos, demonstra o quan-
porque o pai a acompanhava. Luzia se or- to a poética passeia por diferentes idades:
gulha de ter cantado com figuras renoma- “Perdi esperanças sofrendo ilusões/Calei-
das e de ter conseguido o seu espaço, muito -me no tempo e na fala precisa/Nos versos
embora tenha parado de cantar logo após o de moça, artesã, poetisa/Juntando pedaços
casamento, fato que hoje la- de vis corações”.
menta. O livro, recém-publi- Severina Branca Também de uma família
cado, traz um recorte das suas igualmente bebeu do de poetas, Bia Marinho (São
produções poéticas, além de elixir da eternidade José do Egito), mesmo com
ao propor o mote “O
quebrar paradigmas, uma todos os percalços do mun-
silêncio da noite é que
vez que Luzia é analfabeta e do artístico independente,
tem sido/Testemunha
quase cega. Os versos “Meu das minhas amarguras”. nunca esteve fora dos palcos.
Jesus, meu Deus, por que/A Como uma das primeiras mu-
mulher é massacrada?/Por mais que ela se lheres do Pajeú que se propôs a viver de mú-
esforce/Termina discriminada” trazem a sica, o seu canto é, antes de tudo, um canto
dura realidade de muitas mulheres. de resistência. Poetisas como Bia trilharam
Curioso pensar que, mesmo sendo de caminhos para outras tantas vindouras,
um chão tão fértil culturalmente, ela nunca como Eriberta Leite, Naldirene Barros,
tenha duelado na viola com outra mulher. Jéssica Gomes e Ana Clara Meneses.
Atualmente, a dificuldade de se encontrar A Tabira (PE) de Cármem Pedrosa e de
cantadoras em festivais de improvisos per- Dulce Lima abriu as portas (inclusive para a
manece. Nomes como Anita Catôta (glosa- literatura em prosa) para as novas gerações,
dora de primeira), Rafaelzinha (“poetisa da como as poetisas Verônica Sobral, Andreia
saudade”), Zefa Tereza (coquista) e Das Ne- Miron, Alecssandra Ramalho, Pepita Lins e
ves Marinho provam que nem a morte apaga Wandra Rodrigues. Andreia, que também é
o legado construído por elas. cordelista, deu o recado no seguinte trecho:
Severina Branca igualmente bebeu do
elixir da eternidade ao propor o mote “O si- Distante de preconceito
lêncio da noite é que tem sido/Testemunha Rasguemos o nosso peito
das minhas amarguras”. Os pesos carrega- Pra falar de feminismo
dos durante a vida de prostituição foram
desabafados nos seus versos. A também Que busquemos ser iguais
conterrânea Beatriz Passos é a matriarca Pra que as lutas sociais
poetisa de uma família de poetas. Suas fi- Não tenham nome
lhas Cármem Beatriz e Cláudia também são “modismo”
poetisas. A neta Simone resume a história
ARTES E CULTURA NO SERTÃO Isabelly Moreira 105
a mulher, infelizmente, está longe de virar só Para dar fala a quem não tem e para ocupar
causo. Bem disse Celeste Vidal nos versos: os espaços que também são nossos. Uma
“Acordas/Para a luta da vida/Mulher. Já que causa jamais anula outra, apenas se somam.
não podemos dormir diante dos machismos Uma mulher sertaneja, antes de ser flor, é
disfarçados de piadas e gentilezas”. espinho. Antes de ser musa, é guerreira.
É fundamental cultivar as nossas raí- Encerro com uma poesia de minha au-
zes, vates que nos antecederam. Contudo, toria em nome de todas as mulheres poetas
é igualmente crucial furarmos as bolhas idas e vivas, anônimas e que não caberia
regionais para ampliar as vozes e as lutas. citar aqui.
Isabelly Moreira
Nasceu em São José do Egito, no sertão pernambucano. Iniciou seus trabalhos como
declamadora. Autora de vários cordéis, incluindo títulos voltados para a literatura infantil,
Belinha, como também é conhecida, publicou em 2017 o seu primeiro livro, intitulado
Canta Dores. A poetisa também produz eventos culturais e integra projetos musicais.
Referências
BATISTA, Luzia. Poetisa sonhadora: versos e canções. 1. ed. São José do Egito: RS
Gráfica Editora Ltda., 2018.
NA CAATINGA não tem só mandacaru. Direção: Tauana Uchôa. Produção: Que Tau
Produções. Recife, 2016.
TEM CRIANÇA no repente. Direção: Francisco Eduardo Alves Crispim. Produção: Madre
Filmes. São José do Egito, 2018.
ilustração: xx
ARTES E CULTURA NO SERTÃO Marcel Fracassi 109
O SERTÃO INSTRUMENTAL
DE CACÁ MALAQUIAS
Marcel Fracassi
E
ducador, palestrante, pesquisador, produtor cultural, compositor,
arranjador e multi-instrumentista, Cacá Malaquias vem de família de
músicos. A música começa em casa, com seu pai, Petronilo Malaquias,
que na época era professor e maestro de uma série de bandas filarmônicas no
Sertão do Pajeú. Nascido em Carnaíba, cidade nessa região, Cacá sempre trouxe
a influência do sertão na sua música. E do sertão foi para o mundo, tocando
com diversos nomes da música nacional e internacional, de João Bosco a Ray
Conniff, da Banda Mantiqueira a Lenine, entre outros. Dedicou-se também a
lecionar no conservatório de sua cidade.
110 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
QUAL A INFLUÊNCIA DO SERTÃO NO SEU COMO FOI SEU PRIMEIRO CONTATO COM A
TRABALHO? MÚSICA INSTRUMENTAL?
O Sertão do Pajeú tem uma riqueza A Banda Filarmônica de Santo Antô-
cultural imensa e uma natureza belíssima. nio, o trio de forró pé de serra e a banda de
A culinária, a música, a poesia, a dança, a re- pífanos são grupos instrumentais com que
ligião, a geografia e o sotaque são importan- convivi desde menino. O forró pé de serra
tes para nosso povo e isso influenciou muito e a banda filarmônica são meus primeiros
meu trabalho como compositor, arranjador contatos com a música instrumental, já que
e instrumentista. O pifeiro, o repentista, a toquei com essas formações.
banda de música, o coco de roda, o aboia-
dor e o pastoril são elementos fortes dentro
desse contexto.
112 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
EM SUA CARREIRA, VOCÊ TEM UMA FORTE NO FINAL DA DÉCADA PASSADA, VOCÊ
RELAÇÃO COM O CHORO. COMO SE DEU ISSO? VOLTOU PARA TRABALHAR COMO PROFES-
Cresci dentro de um ambiente musi- SOR NA ESCOLA DE MÚSICA DE CARNAÍBA.
cal, meu pai tocava violão, era seresteiro no QUAIS FORAM SUAS IMPRESSÕES DEPOIS DE
interior nordestino, havia muitos saxofonis- TANTO TEMPO FORA? COMO FOI O CONTATO
tas, acordeonistas, violonistas e clarinetistas COM OS JOVENS MÚSICOS?
que tocavam choro. Meu pai tinha um cader- Em 2006, fui convidado pelo gestor An-
no com melodias escritas com caneta pena, chieta Patriota, que é filho do maestro Israel
melodias que serviam como metodologia de Gomes, que dá nome à escola, para partici-
desenvolvimento, muitos choros de Severino par de uma oficina de música durante a festa
Araújo, K-ximbinho, Ratinho e Luiz Américo. do poeta carnaibano Zé Dantas, parceiro de
Como não existiam métodos de instrumen- Luiz Gonzaga. Fiquei impressionado com a
tos de sopro, éramos obrigados a praticar dia- estrutura da escola, com professores de acor-
riamente esse estilo, que, junto com o frevo e deom, sopros, violão, percussão, piano, com
o forró, exige muito do instrumentista! uma banda filarmônica e uma quantidade
ARTES E CULTURA NO SERTÃO Marcel Fracassi 113
surpreendente de instrumentos sendo usa- com os alunos ocorreu com facilidade, pelo
dos por crianças, jovens e adolescentes. fato de a escola ter um bom número de es-
Assim como com a mistura social, a musi- tudantes, mas esse número triplicou. For-
calidade e o interesse dos pais, o acompa- mamos grupos instrumentais, reforçamos
nhamento etc. a oficina com a participação de músicos
Chamaram-me atenção, ainda, as apre- como Nailor Proveta, Maestro Spok, Paulo
sentações dos artistas e dos grupos tradicio- Moura, Dominguinhos, UH e professores do
nais de cultura popular, coisas difíceis de se Conservatório Pernambucano de Música.
ver em centros culturais como São Paulo. Conseguimos formar uma banda sinfônica
Em conversa com o administrador do mu- com cerca de 50 crianças e adolescentes e
nicípio, que era músico e tocava comigo na gravar um DVD no Teatro de Santa Isabel,
banda, falei da possibilidade de voltar para no Recife, em 2009. Atualmente, temos or-
Carnaíba para coordenar a Escola de Músi- questra sanfônica, zabumbada (grupo de
ca, conviver com as crianças, a cultura e a percussão), banda sinfônica jovem e grupos
comunidade, ensinar e aprender. O contato de câmaras.
114 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
O MAESTRO MOACIR SANTOS TAMBÉM ERA Ainda Não Ouviu Nada (Philips, 1964). Não
DO SERTÃO DO PAJEÚ. VOCÊ CHEGOU A TRA- acreditei quando vi sua foto, seus arranjos e
BALHAR COM ELE EM ALGUM MOMENTO? FOI a música “Nanã”.2 Troquei um relógio pelo
INFLUENCIADO PELO TRABALHO DELE? disco e, quando cheguei a São Paulo, no
Cresci escutando as histórias de “Ne- mesmo ano de 1978, comprei o disco The
guin” – era assim que os amigos chamavam Maestro (Blue Note, 1972), no Museu do
Moacir Santos. Meu primeiro contato com Disco. Não trabalhei com ele, mas quando
a música dele ocorreu em 1978, quando ele veio ao Brasil para participar do Festival de
passou pela cidade do Crato/CE. No Car- Inverno de Campos do Jordão, perguntou
naval, fui tocar em uma orquestra daque- justamente ao Nailor Proveta se me conhe-
la cidade e um cara tinha chegado do Rio cia. Passaram meu contato para o Moacir e
de Janeiro vendendo um monte de discos ele me telefonou, foi inacreditável. Tenho
de jazz. O que me chamou atenção foi um muita influência dele na minha música,
disco do Sergio Mendes & Bossa Rio: Você na minha vida.
Marcel Fracassi
É bibliotecário pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP/
SP), com especialização em gestão e políticas culturais pela Universidade de Girona. Atua
como pesquisador do Observatório Itaú Cultural. Dirigiu o documentário Música ao Lado.
Notas
1 <https://www.brasildefato.com.br/2017/05/25/setenta-anos-de-asa-branca-o-hino-
-do-rei-do-baiao>. Acesso em: 13 ago. 2018.
VÉIO, UM SER(TÃO):
RELATO SOBRE UMA
VIAGEM SERTANEJA
Fernanda Castello Branco
Relato sobre breve vivência no sertão de Sergipe, durante viagem de pesquisa para
produção de conteúdo para a exposição Véio – a Imaginação da Madeira (que ficou em car-
taz de março a maio de 2018 no Itaú Cultural, em São Paulo/SP). O texto tem como tema
tanto os vários significados que o sertão pode oferecer a uma pessoa que não é de lá como a
relação do artista Véio com o seu local de origem, explicitada no seu trabalho artístico e na
sua forma de encarar a vida.
T
(que ficou em cartaz de março a maio de 2018
ão além dos limites do que o dicio- no Itaú Cultural, em São Paulo/SP). Não era
nário e a língua portuguesa colocam minha primeira vez naquela região, mas cer-
como seus? Dentro da cerca semân- tamente foi o momento preciso em que co-
tica, sertão é “1. região do interior, com po- mecei a compreender a palavra para além da
voação escassa e longe dos núcleos urbanos, palavra. Para além da definição linguística.
onde a pecuária se sobrepõe às atividades A fronteira entre os estados de Alagoas
agrícolas; 2. região de vegetação esparsa e e Sergipe já tinha me deslumbrado alguns
solo arenoso e salitroso, sujeito a secas pe- anos antes. Mas foi ali, naquele novembro
riódicas; 3. terreno coberto de mato, afastado de 2017, que conheci o significado que ser-
da costa; 4. o interior do país”.1 tão tem hoje para mim. Foi quando também
Tão além do próprio significado, o ser- conheci Véio. No seu lugar de origem. Onde
tão é um estado de espírito. Uma sensação. ele habita e cria. E talvez tenha sido mesmo
Um sentimento. Nascida em uma ilha nor- o contato com o homem que tenha me feito
destina e habitando há duas décadas a capital entender melhor a terra.
120 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
Notas
1 Dicionário Michaelis.
3 Ibidem.
124 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
MEMÓRIAS E RESISTÊNCIAS DOS SERTÕES Juliana Funari 125
T
emos como ponto de partida as política (LEFF, 2006; PORTO-GONÇAL-
relações históricas das mulheres VES, 2008), percebemos que as múltiplas
camponesas do Sertão do Pajeú – formas de gestão da água se dão a partir
um território do semiárido pernambucano1 dos modos de vida, das cosmovisões e das
– com a água. Sertanejas, catingueiras, tra- diferentes perspectivas dos sujeitos ati-
balhadoras rurais, agricultoras, indígenas, vamente transformadores da natureza. O
negras – que, diante das injustiças e opres- acesso e a gestão das águas estão atrelados
sões que permeiam suas vidas, (re)existem, às condições de gênero, classe, etnia e raça,
semeiam e colhem as águas das veias da assim como aos conflitos socioambientais
terra, raízes e nuvens. Mulheres que há ge- resultantes das relações de poder estabele-
rações lutam cotidianamente pelo acesso cidas no território, de forma conectada ao
à água para suas famílias, que enfrentam contexto global capitalista, no qual existe
barreiras materiais e simbólicas para o re- um processo intenso de mercantilização
conhecimento de seu trabalho e que, mesmo da natureza.
nas adversidades, afirmam gostar de con- No semiárido brasileiro, as estiagens
viver com a natureza do sertão, com a qual prolongadas, ou as chamadas grandes se-
profundamente se identificam. cas, são um elemento central na questão
Por meio das lentes do ecofeminismo da água. Características do clima da região
construtivista (PULEO, 2011) e da ecologia obedecem a uma lógica natural e cíclica,
126 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
podendo chegar a durar seis anos consecuti- empregavam os homens camponeses atin-
vos. Entretanto, a estrutura da problemática gidos pelas estiagens na construção de
da água no semiárido é sociopolítica, pois se estradas e em obras hídricas. Na prática,
funda não apenas em aspectos ambientais, essas obras beneficiavam as elites locais e
mas sobretudo na sua integração em um se estabeleciam sob péssimas condições de
contexto histórico de dominação e de in- trabalho e baixos salários (MEDEIROS FI-
justiças socioambientais2 (FUNARI, 2016). LHO E SOUZA, 1988). No Sertão do Pajeú,
O problema da “seca” é tão antigo esses fatos levaram os trabalhadores rurais
quanto a colonização, estruturando-se des- a se organizarem contra a chamada “emer-
de o século XVIII na concentra- gência do patrão” na grande
ção de terra e água nas mãos de Produziam-se, como seca de 1979-1984.
uma restrita elite agrária e na uma construção Para compreendermos
ausência de políticas públi- social, os cenários os desafios das mulheres é
onde as mulheres
cas adequadas à convivência preciso considerar que tudo
caminhavam
dos(as) sertanejos(as) com a isso ocorre dentro do sistema
quilômetros com
natureza (ANDRADE, 1973). latas na cabeça para patriarcal e da decorrente
As estiagens atingiam intensa- acessar fontes de divisão sexual do trabalho,4
mente a produção camponesa, água voltadas para segundo a qual as mulheres
constituída de sistemas de se- usos vitais, como são responsabilizadas pelos
queiro3 – dependentes das chu- beber e cozinhar. trabalhos reprodutivos, pela
vas do inverno. Produziam-se, preparação de alimentos,
como uma construção social, os cenários pelos cuidados com a saúde da família e
onde as mulheres caminhavam quilômetros pelo abastecimento de água e lenha. Pre-
com latas na cabeça para acessar fontes de cisam garantir que tais insumos cheguem
água voltadas para usos vitais, como be- aos membros da casa mesmo durante as
ber e cozinhar. estiagens – quando os recursos se tornam
As(os) camponesas(es) desenvolveram mais escassos –, o que suscita um grande
estratégias de convivência com o semiárido peso nas vidas das sertanejas. As mulheres
como forma de resistência. Buscavam cons- percebem e respondem de forma muito par-
truir sociedades autossustentáveis e adap- ticular às mudanças no acesso aos meios
tadas aos sertões. Exemplos históricos são de sobrevivência, sendo frequentemente as
o Arraial de Canudos, no século XIX, e a fa- primeiras a reagirem contra a escassez, a
zenda Caldeirão de Santa Cruz do Deserto, privatização e a deterioração da natureza
no início do século XX (MARTINS, 1990). (SHIVA, 2006).
De 1950 a 1980, a ação do Estado se li- As camponesas participantes de nossa
mitou ao combate à seca, resumindo-se a pesquisa5 vivenciaram na pele essas dificul-
frentes de emergência, abastecimento das dades. Uma das agricultoras entrevistadas
populações com carros-pipa e distribuição conta sobre as mudanças e permanências
de cestas básicas. As frentes de emergência entre a grande seca de 1960 e a de 1980:
MEMÓRIAS E RESISTÊNCIAS DOS SERTÕES Juliana Funari 127
A gente não era da ASA ainda, mas em Como elemento da natureza próximo
2004 a gente se desafiou. Fomos a primeira das mulheres e direito a ser conquistado,
organização no Nordeste a fazer um curso a água conecta as camponesas no Sertão
de formação para mulheres pedreiras cis- do Pajeú. A partir de uma relação históri-
terneiras. Porque esse campo da constru- ca com a água, elas trazem outros olhares,
ção civil é dominado pelos homens, e havia conhecimentos e práticas para a constru-
algumas mulheres que tinham interesse ção de uma convivência com o semiárido
em aprender. Foi fantástico, houve muitas emancipatória para as mulheres e, de fato,
críticas dos homens. Elas construíram as transformadora da sociedade.
cisternas. [...] hoje a ASA apoia totalmente, Por fim, considerando que não há
em muitos estados existem muitas mulhe- questão ecológica que não seja uma ques-
res cisterneiras (coordenadora da Casa da tão humana, os movimentos e organizações
Mulher do Nordeste, no Sertão do Pajeú). de mulheres camponesas constituem um
campo político socioambientalista, femi-
Houve também uma relativa redução nista e popular, contribuindo para a ges-
do tempo e dos esforços gastos na realização tão participativa e equitativa da natureza
dos serviços de casa a partir do armazena- em direção ao direito à água com igual-
mento e da gestão da água acarretados pelas dade de gênero.
tecnologias sociais, porém, a divisão sexual
do trabalho continua afastando-as dos espa-
ços políticos, existindo barreiras materiais
e simbólicas mais profundas que precisam
ser quebradas.
Em contraste à lógica da “indústria da
seca” que ainda permeia as relações com
a água no território – desde grandes obras
hídricas caríssimas e ineficientes até venda
e desvio de água, uso da água como moeda Juliana Funari
política –, as mulheres desenvolveram uma É gestora ambiental pela Universidade de
relação de cuidado com a água, por elas São Paulo (USP) e mestra em desenvolvimento
percebida como uma condicionante para a e meio ambiente pela Universidade Federal de
reprodução da vida e o bem viver de suas Pernambuco (UFPE). É membro do Núcleo de
famílias. Uma relação radical no sentido Educação, Pesquisa e Práticas em Agroecologia
de ser ligada à raiz da vida e contra a mer- e Geografia (Neppag-Ayni) da UFPE e do Dadá
cantilização da natureza, que se baseia na – Grupo de Pesquisa em Relações de Gênero,
perspectiva da água enquanto um bem co- Sexualidade e Saúde, da Unidade Acadêmica de
mum – público e de gestão coletiva –, uma Serra Talhada, da Universidade Federal Rural de
das bases do paradigma da convivência com Pernambuco (UFRPE). Integra a Rede Feminismo
o semiárido. e Agroecologia do Nordeste.
130 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
Referências
ALMEIDA. V. Ser mulher num mundo de homens: Vanete Almeida entrevistada por
Cornélia Parisius. Serra Talhada: Sactes/DED – MMTR/NE, 1995.
ANDRADE, M. C. de. A terra e o homem no Nordeste. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1973.
PULEO, A. H. Ecofeminismo para outro mundo possível. Feminismos. 1. ed. Madrid, 2011.
SHIVA, V. Guerras por água: privatização, poluição e lucro. São Paulo: Radical Livros,
2006.
MEMÓRIAS E RESISTÊNCIAS DOS SERTÕES Juliana Funari 131
Notas
a 2003 e, em 2005, foi indicada pela ONG suíça Mulheres pela Paz ao Redor do
Mundo ao Prêmio Nobel. A partir de 1996, tornou-se coordenadora internacional
da Rede de Mulheres Rurais da América Latina e do Caribe, que ajudou a fundar.
N
o ano de 1962, estreia filme sobre o ao artificialismo autointeressado da cúpula
tema religioso que faria história no ilustrada e citadina. Evidentemente, qualquer
cinema brasileiro. Nele, não só se- semelhança com a Teologia da Libertação não
riam relacionados litoral e sertão na composi- será mera coincidência.
ção dos conflitos que dariam sentido à trama, Todavia, mesmo que o cosmos religioso
mas também seriam explorados os dilemas oferecido em O Pagador de Promessas seja
entre uma determinada religiosidade popular extremamente rico, capaz de promover a vi-
e os desiguais processos e velocidades moder- sibilidade de uma diversidade de expressões
nizadoras nacionais. Trata-se de O Pagador de espirituais, nele não vemos “crentes”. Como
Promessas, de Anselmo Duarte, filme baseado se, no esforço integrativo do popular numa
na peça de Dias Gomes. Somos aí apresenta- narrativa em que estava em jogo o futuro da
dos a Zé do Burro, personagem principal que, nação, tivesse sido difícil integrar o protes-
com sua pureza e moralidade inflexíveis, por- tantismo como cultura contra o pano de fun-
taria um tipo de grandeza cativante, síntese do da profusão católica e afro-brasileira que
dos ideais de um popular sobrevivente em um então se estetizava em meios profanos com
Brasil profundo. seus ritos, êxtases e cerimoniais festivos. Se
Na tentativa de cumprir promessa feita o catolicismo rústico (QUEIROZ, 1968) era
em terreiro visando à cura de Nicolau, seu a nossa história, como os protestantes pode-
burro, o protagonista tensiona-se em longa riam tomar parte nela?
refrega com um pároco de Salvador. Curado Fato é que eles tomaram, começando a
o burro, Zé do Burro carregaria imensa cruz chegar no século XIX, após a abertura dos por-
ao interior da igreja de Santa Bárbara e – fator tos em 1808 e a Constituição de 1824 – sobre-
geralmente esquecido – dividiria suas terras tudo anglicanos e luteranos, que se dirigiam
entre os mais pobres. Chegando, porém, às preferencialmente às regiões Sul e Sudeste.
portas da igreja, o pároco lhe nega entrada! Todavia, o ritmo da protestantização seguiria
Começa o verdadeiro padecimento de Zé do lentamente, dependendo da entrada de imi-
Burro: não o trajeto entre sertão e litoral, mas grantes entre fins do século XIX e início do
o que lhe aguarda na cidade. XX. Isso mudaria com o protestantismo de
O sertão parideiro de fanatismos vai missão e com os pentecostais. Estes últimos
desaparecer para dar lugar ao motor urba- vieram com a Congregação Cristã em 1910 e
no da história. E, com o sertão feito lonjura a Assembleia de Deus em 1911. Ambas carac-
esquecida em meio a nossa aventura civili- terizadas por rigor moral e aversão ao mundo.
zatória, o urbano se torna o campo das ten- É a chamada primeira onda pentecostal asso-
sões constituintes do agora. É aí que Zé do ciada à glossolalia – o falar em línguas.
Burro deverá converter o mito do sertanejo, Principais responsáveis pelo crescimen-
politizando-o em história. Enfim, inverte-se to evangélico no país, nas décadas de 1950 e
a relação entre catolicismo oficial e popular, 1960 adviria sua segunda onda, com Evange-
fazendo desse catolicismo rural, festivo e ile- lho Quadrangular, Brasil para Cristo e Deus
trado expressão do autêntico em oposição é Amor. A partir daí, o fenômeno pentecostal
136 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
chamaria mais atenção, ainda que perma- Nesse contexto, não só católicos e afro-
necesse marginal e, eventualmente, fosse -brasileiros se mostrariam especialmente
considerado mero modismo ou fanatismo. alarmados. Também setores leigos da socieda-
Enfim, começariam a ser acusados pelo en- de temeram que o avanço do segmento em sua
fraquecimento católico dos anos 1970 e 1980, preferencial afinidade ao conservadorismo po-
ao mesmo tempo que seu avanço seria tomado lítico ameaçasse a laicidade estatal. No limite,
como expressão de desenraizamento rural, levando-nos a um tipo de teocracia evangélica.
migrações, consumismo, proletarização, ur- Leitura essa que ganha força diante do impres-
banização e modernização. sionante crescimento numérico do segmento,
Na década de 1970, enquanto as CEBs1 que, segundo pesquisa do Datafolha de 2016,
católicas avançariam sertão adentro apos- estaria alcançando 30%. Também, de acordo
tando numa solução coletivista à tensão entre com o Pew Research Center, nos anos 2030 o
este e o outro mundo, os chamados neopen- Brasil já não será majoritariamente católico.
tecostais pareceram preferir, inclusive por E não se trata apenas de números, mas
logística, as cidades. Nesse caso, oferecendo de uma inovação cultural capaz de alterar o
modelo menos politizado, mas que se mostra- campo religioso. Aliás, é possível que esteja-
ria bem adaptável. Contrapondo-se à rejeição mos presenciando os desdobramentos não
ao mundo dos seus “ancestrais” pentecostais, planejados das inovações neopentecostali-
tal modelo proporcionaria um formato cultu- zantes ocorridas nos anos 1970 e 1990, algo
ral espetacular, mesclando música, dança e que excederia as expectativas das primeiras
esfuziantes exorcismos. Universal do Reino lideranças. Por exemplo, se nos primeiros
de Deus (IURD), Renascer, Internacional da anos do fenômeno o doador preferencial de
Graça de Deus, entre outras, são exemplos “fiéis” foi o catolicismo urbano, grande parte
desse formato. da mobilidade religiosa atual se daria no inte-
Tal corrente, empunhando um proseli- rior do próprio espectro evangélico. Sendo que
tismo mais agressivo, se mostraria particular- esse fenômeno estaria sendo acompanhado
mente habilidosa em atrair para si polêmicas. pelo crescimento dos confessionalmente não
Bastando rápida pesquisa nas matérias jor- determinados. Ao mesmo tempo, se os neo-
nalísticas a partir dos anos 1990, encontram- pentecostais foram habilidosos em incorpo-
-se desde chutes na santa até acusações de rar festivamente rituais e símbolos católicos,
exploração monetária dos fiéis, lavagem de também os católicos incorporariam recursos
dinheiro e associação ao tráfico, com prisões pentecostalizantes via Renovação Carismáti-
de pastores, casos de insulto e mesmo agres- ca. Tudo muito complexo.
são. Além, é claro, das controversas aproxi- Não se pode esquecer, o catolicismo é
mações entre evangélicos, meios massivos de nosso cristianismo mais velho. Contando com
comunicação e política – tendo ocorrido, mais recursos e rede de relações globais, tem se per-
recentemente, a eleição de Marcelo Crivella, petuado com sucesso por quase 2 mil anos. E,
figura de peso da IURD, para prefeito do Rio com isso, sendo capaz de até os dias de hoje
de Janeiro pelo PRB. combinar elementos novos com práticas
MEMÓRIAS E RESISTÊNCIAS DOS SERTÕES Moacir Carvalho 137
Fonte: IBGE.
antigas, muitas delas com particular apelo que os patamares de 2010, por região, ha-
lúdico-festivo e já bem consolidadas: roma- viam se multiplicado em relação aos de 1940,
rias, procissões, festas aos santos e devoções chegamos a um quadro bastante distinto.
domésticas. Desde São João a Frei Damião, Agora as regiões Norte (com aumento de 24
passando pelas hierópolis do Juazeiro de Pa- vezes), Nordeste (22 vezes) e Centro-Oeste
dre Cícero, São Francisco do Canindé e Bom (20 vezes) aparecem, respectivamente, como
Jesus da Lapa, ou a encenação da Paixão de aquelas de protestantização mais acelerada,
Cristo, o sertão parece ainda oferecer vitali- seguidas por Sudeste (11 vezes) e Sul, com
dade espiritual impressionante. pouco mais que duas vezes.
E se, por um lado, o catolicismo não tem Assim, se a Região Nordeste é ainda
impedido o avanço dos evangélicos no sertão, a de mais catolicismo – 72,2% em 2010 –, a
é certo que aí os católicos continuem mais re- queda deste aí só ficou atrás da Região Norte.
presentados que a média nacional, com quase Enquanto isso, Pernambuco (32,3%), Bahia
90% das 485 cidades brasileiras com menos de (17,4%) e Maranhão (17,2%) são, respectiva-
3% de evangélicos no sertão. Buscando rever- mente, os mais protestantes. Já a Região Sul,
ter esse quadro é que iniciativas como o Mo- que em 1940 era disparada a mais protestante,
vimento Nacional de Evangelização do Sertão deverá se tornar a mais católica nos próximos
Nordestino têm acontecido. Em sua página, anos. No quadro atual, de fato, o semiárido se
lê-se: “Esforçando-nos para levar o evange- confirma como ainda mais católico (80%) e
lho onde Cristo ainda não é conhecido”. Com menos protestante (12%) que a média nor-
cerca de 23 milhões de habitantes, o sertão destina. Todavia, ultimamente tem seguido
tornara-se fatia do mercado espiritual parti- o ritmo de evangelização da região, ou seja,
cularmente compensadora ao investimento. mais rápido que a média nacional.
A princípio, se focamos índices absolu- Além do mais, entre os anos 1970-2010, o
tos, confirma-se um Nordeste mais católico índice de urbanização no Nordeste passou de
que as demais regiões, com o Piauí dispara- 41,78% para 73,13%. No mesmo período, a taxa
do em primeiro – 85,1%. Por certo. Todavia, nacional se ampliou de 55,98% para 84,36%.
se nos voltamos para a quantidade de vezes Ou seja, não só o Nordeste, com 53 milhões
138 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
de habitantes, mas também o sertão já não tempo. Mas esse é o espetáculo que se abre
seriam essencialmente rurais. E, mesmo que aos que vivem da religião, empenhados em
o semiárido ainda possua alguns dos piores garantir casa cheia e motivada. O outro lado
IDHs do país, ele vem se desenvolvendo mais da moeda é que os antigos ideais confessionais
rapidamente que a média brasileira. Talvez espiritualmente monogâmicos estariam per-
estejamos vivendo um processo de integração dendo legitimidade.
no qual determinadas formas de vida estariam O sertão não deverá ser muito diferente.
se propagando mais homogeneamente, ainda Lugar de gente com “Deus” – ou deuses –, mas
que com diferentes velocidades. Os próprios cada vez com “menos igreja”; assim, ofertado-
sentidos de “espiritual”, “povo”, “tradicional” res quaisquer já não poderão contar com uma
e “moderno” estão mudando. representação submissa ou incapaz do serta-
Decerto, o sertão continuará por um bom nejo, se é que já puderam um dia... Não seria
tempo muito católico, sim! Mas resistente à essa incompreensão parte da tragédia que as-
novidade e criatividade religiosas? Dificil- solou Canudos ou, de forma mais discreta, im-
mente. Precisa-se lembrar: a velha espiri- pôs tantos padecimentos a tantos feito Zé do
tualidade popular retratada em O Pagador de Burro? Nesse sentido, a combinação de ofertas
Promessas era tudo, menos resistente à inven- festivas entre Renovação Carismática, velhos
ção. Diante dela, se nossa recepção do protes- catolicismos e neopentecostalismo parece
tantismo ainda no século XIX teria oscilado conferir ocasião celebrativa àqueles desejosos
entre a esperança de modernização e o medo por formas lúdicas de autoexpressão. O prati-
de infecção, em anos recentes têm prevalecido cante de hoje, sobretudo o mais jovem, parece
a maleabilidade e a atratividade das agências; querer experimentar todo acepipe espiritual
generaliza-se a importância de experiências que lhe aprouver nesta vida. Mas, diversidade
de plenitude e mesmo prazer. Sobre seu en- eventualmente marcada por conflitos mais
contro com o Espírito Santo, comunicou-me abertos e mesmo casos de insulto e agressão,
certa vez uma praticante da IURD: deverá tender, espera-se, a resolver suas dife-
renças mediante um sentido celebrativo, de
Sabe quando você se lembra de uma coisa tolerância e consideração às garantias estatais
gostosa, e dá aquela risadinha assim... Você está legais para todos.
ali, meu Deus, eu Te amo, eu Te adoro. Você
só tem vontade de louvar, de agradecer [...] O
Espírito Santo é de paz, é uma intimidade [...]
Então você sente aquela presença mais gostosa.
Referências
ALVES, J.; CAVENAGHI, S.; BARROS, L.; CARVALHO, A. Distribuição espacial da transição
religiosa no Brasil. Tempo Social, v. 29, n. 2, 2017, p. 215-242.
DATAFOLHA. Perfil e opinião dos evangélicos no Brasil, São Paulo, 7 e 8 dez. 2016.
STEIL, Carlos Alberto; HERRERA, Sonia Reys. Catolicismo e ciências sociais no Brasil:
mudanças de foco e perspectiva num objeto de estudo. Sociologias, Porto Alegre, v.
12, n. 23, jan./abr. 2010, p. 354-393.
Nota
ARCO-ÍRIS SERTANEJO:
A LUZ DA OBRA DE ELOMAR DECOMPOSTA
EM UM ESPECTRO DE CORES
Carlos Costa
“Todo cantador errante traz no peito uma mazela; na alma a lua brilhante, estrada e som
de cancela.” A frase está em “Desafio”, o último canto da ópera Auto da Catingueira, de Elomar
Figueira Mello (Vitória da Conquista, Bahia, 1937). Recorro à frase como a um prisma, para
o exercício de decompor a luz do artista em suas cores.
A
primeira cor é a da formalidade uma das mais povoadas regiões de terras
apurada dessa frase e dessa obra secas do planeta), situações (histórias de
– nos campos da literatura e da amor e desencontros, morte e vida) e, inclu-
música. Elomar surgiu na cena cultural em sive, um idioma próprio chamado “serta-
1968 e seguiu um caminho particular, em nezo”. O sertão profundo eternizado nesse
que garantiu espaço no segmento mais re- vasto e vivo conjunto, com lua minguante e
finado, manteve diálogo com uma legião fiel som de cancela.
de fãs e nunca cedeu a apelos do mercado. Mais uma cor para a sensibilidade que
Escreveu romances, peças de teatro e cons- faz sua arte universal. Esse cantador erran-
truiu um monumento musical que se divide te é um pouco de Elomar, de mim, dos meus
em duas veredas: o cancioneiro e um con- ídolos; é um pouco de você, se você quiser se
junto de músicas cultas (óperas, antífonas, perder e se achar. Representa um homem que
concertos e sinfonias). Em tudo, reprocessa assume as feridas do peito e segue seu des-
influências diversas e imprime sua verdade. tino. Samurai, monge, beduíno, vagamundo,
Outra cor para o conteúdo – um retrato cangaceiro, águia cruzando os ares. Atraves-
lírico e profundo do universo arquetípico sa tempos, territórios e culturas.
sertanejo, com seus personagens (pessoas O prisma revela mais cores. As cores
simples, que erram pela terra em busca do da obsessão, da solidão e da incompatibili-
destino), paisagens (o semiárido nordestino, dade entre esse artista errante e o mundo. A
MEMÓRIAS E RESISTÊNCIAS DOS SERTÕES Carlos Costa 141
frase está na canção de uma ópera, territó- povoado da Gameleira, zona rural de Vitó-
rio que Elomar explora há mais de 30 anos, ria da Conquista (BA), que funciona como
mas a maior parte continua inédita. Nos um centro cultural e é onde o músico vive,
shows que realiza, interpreta uma ou outra compõe, cria bodes e, às vezes, se apresenta.
peça, cenas dispersas sempre intercalan- Formado em arquitetura, Elomar fez o
do com músicas do cancioneiro. “Quem vai projeto do edifício do acervo, que é redondo
montar uma ópera sertaneja de um músico como um curral de bodes, com vidros no teto
autodidata recluso no sertão da Bahia?”, e nas laterais para aproveitamento da luz da
questiona há anos. caatinga. Batizou de Arquivos Implacáveis
E assim chegamos à cor da contra- da Casa dos Carneiros.
dição. Elomar move um público que lota Em 2015, integrando a equipe de pes-
todas as suas apresentações. Mas ele não quisa do Itaú Cultural, estive pela primeira
canta o que quer, como quer. Está sempre se vez na Casa dos Carneiros. O acervo estava
equilibrando entre o cancioneiro e o projeto em pleno processo de organização e higie-
da música culta. nização, mais vivo que nunca. Inclusive
porque, durante essa atividade, em que um
Ocupação Elomar grupo de pesquisadores organizava manus-
Em 2015, Elomar foi homenageado no critos, partituras, fotos e outros documen-
programa Ocupação Itaú Cultural (itau- tos, o artista invadia o espaço, geralmente
cultural.org.br/ocupacao/elomar/) – uma sem ser visto, e levava papéis, fitas cassete
das principais atividades do instituto, que e outros objetos para seu quarto, sem dar sa-
consiste em uma série de exposições a par- tisfação a ninguém. Afinal, aquilo tudo era
tir de acervos representativos no conjunto dele e um pouco ele.
da cultura brasileira, com o objetivo de res- Em 2015, eu me apaixonei por Elomar
gatar essa memória no contexto contempo- e mergulhei em sua obra. Com o cancionei-
râneo. A exposição ocorreu na sede do Itaú ro, vivi minha epifania. Vasculhei minhas
Cultural, em São Paulo, e contou com três origens, descobri que parte dos meus an-
concertos no Auditório Ibirapuera. cestrais vieram do sertão. Tornei-me um
Elomar costuma dizer que o tempo or- cavaleiro do mestre Elomar.
dinário, que marca os relógios e os calen- Um dia, na feira em Vitória da Con-
dários, não importa, o que torna memória quista, olhando uma barraca de flores, eu
e contemporaneidade faces da mesma es- e mais uma integrante do grupo, Cristiane
sência, a vida. Zago, resolvemos levar um buquê para Elo-
Em paralelo com o processo de pesqui- mar. Receoso de sua reação, esquivei-me da
sa para a Ocupação, o Banco Itaú apoiou a entrega, deixando para a dama a graça. Logo
digitalização do acervo do artista e a cons- depois, as flores estavam na sala de pesqui-
trução de um arquivo para a guarda do mate- sa, em um jarro, e Cristiane contava que ele,
rial. A obra foi finalizada neste ano, na Casa emocionado ao receber, revelou que era a
dos Carneiros – uma fazenda localizada no primeira vez na vida que ganhava flores.
142 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
As cores do amor
Voltei a ver Elomar se apresentar, Carlos Costa
além dessa noite, outras tantas vezes. Sem- É jornalista. Nascido no Recife (PE), tem apre-
pre, a casa cheia e filas enormes de admira- ço por lua, estrada e som de cancela, mas está há
dores após os espetáculos. Em todos eles, oito anos morando em São Paulo. É coordenador
ouvi o aboio. de comunicação do Itaú Cultural, onde participou
O último concerto que vi foi em Sal- dos processos curatoriais da Ocupação Elomar e da
vador, em julho de 2018. O teatro estava Ocupação Nise da Silveira, além de outras mostras.
lotado. Elomar dividiu o palco com alguns
amigos, entre os quais estava o cantor
Fábio Paes (Serrinha, Bahia, 1951), e se
configurou uma situação de encanto, que
outras vezes vi surgir na fricção do sertão
profundo de Elomar com a contempora-
neidade, para ele degenerada pelo monstro
do moderno.
Elomar e seu discurso anacrônico
sobre os costumes relacionados às liber-
dades sexuais encontraram em Paes um
contraponto político e filosófico; e certos
modos de pensar que hoje geram um lin-
chamento sem perdão, naquele palco, fo-
ram uma lição de amor. Enquanto Elomar
fazia pouco das liberdades individuais,
Paes louvava a Guerra de Canudos (1896-
1897), Che Guevara (Ernesto Guevara de
la Serna, Argentina, 1928 – Bolívia, 1967)
e as tradições libertárias.
Elomar e seu monumento ao sertão
brasileiro estão a salvo do tempo e, por mais
que ouça suas músicas, elas não deixam de
me tocar. Por mais que ouça falar de amor,
ele não deixa de me emocionar. Em suas
muitas faces. Uma delas é o respeito: como
não respeitar o diverso, o contrário? É mais
fácil enveredar por caminhos de ódio e de-
fesa de uma opinião do que aprender com
o diferente, o oposto. Para digerir o sertão,
abrace o oposto e cante seu aboio.
144 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
CIÊNCIA E ANCESTRALIDADE
NA SERRA DA CAPIVARA
C
onhecida mundialmente, Niède Guidon é uma das maiores referências
na arqueologia. Formada em história natural pela Universidade de São
Paulo e doutora em pré-história pela Sorbonne, com especialização
na Université de Paris, Niède fez carreira na França. Em 1973, fez parte da
Missão Arqueológica Franco-Brasileira, concentrando seu trabalho no Parque
Nacional da Serra da Capivara. Em 1992, foi convidada pelo governo brasileiro
para assumir a gestão do parque, e se torna presidente da Fundação Museu
do Homem Americano (Fumdham). Desde que voltou para o Brasil, Niède
tenta provar a sua tese sobre o povoamento da América. Por e-mail, do Parque
Nacional da Serra da Capivara, onde vive, a arqueóloga respondeu a algumas
questões feitas pelo conselho editorial da Revista Observatório.
146 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
OS SERTÕES E OS SERTANEJOS
SERTÃO ANCESTRAL
MITOS SERTANEJOS EM
CONTRAPONTO À CIÊNCIA
S
egundo Vandana Shiva, em seu livro Nesse sentido, estima-se que exista
Guerras por Água (2006), a partir do 1,37 bilhão de km3 de água no planeta. Desse
fenômeno chamado globalização, a volume, 97% constituem as águas dos oceanos
água vem sendo privatizada e transformada e apenas 3% são de água doce. Do total de água
em fonte de lucro para grandes empresas mul- doce, 2/3 estão nas calotas polares e nas geleiras,
tinacionais e transnacionais, ou seja, trata-se restando apenas 1% do volume para consumo da
da apropriação da natureza “com o único ob- população humana. O Brasil é detentor de 12%
jetivo de reproduzir continuamente o capital, da água doce que escorre superficialmente no
numa acumulação sem fim e sem sentido”. É mundo; 72% desses recursos estão localizados
nesse cenário que discutiremos, neste ensaio, na região amazônica e apenas 3% no Nordeste.
a gestão da água na bacia do São Francisco e o Essa desigualdade de porcentuais, com visível
projeto de transposição de suas águas. desvantagem para o Nordeste brasileiro, é con-
A água é um bem natural essencial à ma- sequência das características geoambientais da
nutenção de todas as formas de vida no plane- região (SUASSUNA, 19992). A perspectiva da es-
ta. Setenta por cento da superfície da Terra são cassez de água no Nordeste passará a ser a base
cobertos por esse precioso líquido. Entretanto, do discurso de sustentação para a efetivação do
apenas 1% desse grandioso volume de água é projeto de transposição do São Francisco, hoje
potável e adequado ao consumo humano. chamado de Integração de Bacias.
156 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
sempre favorável ao projeto, haja vista que mais de 5 mil pessoas, a um custo de mais
o Ceará, seu estado natal, é um dos maiores de 207 milhões de reais aos cofres públicos.
beneficiários da obra. Mais de dez anos se passaram e, hoje, essas
Com partes de sua megaestrutura em fun- pessoas encontram-se em estado de abando-
cionamento, a obra acumula vários impactos no nessas vilas quase fantasmas.
socioambientais, entre os quais: perda tempo-
rária de emprego e renda por efeito das desa- Precisamos da transposição?
propriações; modificação da composição das A Região Nordeste tem o maior índice de
comunidades biológicas aquáticas nativas nas açudes do mundo. São mais de 70 mil açudes,
bacias receptoras; risco de redução da biodiver- com capacidade para acumular 37 bilhões de
sidade nas bacias receptoras; risco de tensões m3 de água, o suficiente para atender ao uso hu-
durante a fase de obra; interferências no patri- mano e à dessedentação animal (SAID, 2010).
mônio cultural (sítios históricos); risco de in- O Brasil possui uma das maiores redes
trodução de espécies de peixes exóticos; perdas hidrográficas do mundo, mas a poluição hídri-
de áreas produtivas; deslocamento compulsó- ca em todo o país cresceu drasticamente desde
rio de 1.889 famílias, sendo que 70% são de não seu processo de urbanização e industrializa-
proprietários, mediante desapropriação de 24 ção. Podemos citar a dramática situação do
mil hectares de terra, entre outros (BARROS, Rio Tietê, em São Paulo, ou mesmo o assassi-
2017). Para Juliana Barros (2017), o Estudo nato do Rio Doce, a partir do rompimento das
de Impacto Ambiental (EIA) e o Relatório de barragens de mineradoras em Minas Gerais,
Impacto Ambiental (RIMA) da transposição: um dos maiores desastres ambientais da his-
tória da Terra. Mas olharemos para a agoni-
Constituem-se numa importante síntese zante situação do Rio São Francisco.
do discurso oficial, do discurso político auto- Repetindo: pela primeira vez na história,
rizado para registro, apropriação e circulação sua nascente secou. Pela primeira vez na his-
em vários segmentos [...] tratando-se de um tória, o lago de Sobradinho, maior da América
documento longo, na prática pouco acessível Latina, construído na década de 1970, atingiu
à população geral, importará vários exercícios a cota de 0% por causa da seca no rio, quan-
de tradução, recortes, seleção de destaques, do, em 2014, era de 57%; pela primeira vez
omissões e representações cartográficas, que na história, todos os moradores da Bacia do
serão construídas a favor dos interesses espe- São Francisco ficaram aflitos com a evidente
cíficos dos grupos que as veiculam e disputam morte do dantes Rio-Mar (Opara). Em muitos
interpretações – visões sobre o projeto. lugares da bacia, escuta-se a angustiante per-
gunta: “Será que o rio vai morrer?”.
Como parte das mitigações dos danos Parte dos grandes problemas socioam-
que seriam causados às famílias impactadas bientais do São Francisco foi causada pela
com a transposição, em 2007, foram planeja- implantação das grandes hidrelétricas.
das 18 Vilas Produtivas Rurais (VPRs) pelo Construídas desde 1913 (Angiquinho), todo
Ministério da Integração, que abrigariam o corpo do São Francisco fora acorrentado
POLÍTICAS CULTURAIS & MODELOS SUSTENTÁVEIS Juracy Marques 161
com paredes de concreto, o que, além de re- 3.450 barragens em território europeu. Até
sultar na destruição de dezenas de cidades e 2008, foram removidas, somente na Espanha,
da vida de milhares de pessoas, atingiu dras- 300 barragens de pequeno e médio portes.
ticamente toda a diversidade biológica que Famílias ribeirinhas, em toda a extensão
dependia do ciclo natural do São Francisco. do São Francisco, têm enfrentado dificuldades
Estima-se que, no mundo, existam mais para o abastecimento humano e a dessedenta-
de 45 mil barragens construídas, responsá- ção animal. As margens do Velho Chico estão
veis pela expulsão de mais de 80 milhões de secas. A vida ao longo do seu vale está seca,
pessoas7 (MAB, 2007). No caso do Rio São morta. Sacrificá-lo é a alternativa para levar
Francisco, foram construídas mais de uma águas aos sedentos? Afirma-se que a capta-
dezena de grandes hidrelétricas, atingin- ção de água do São Francisco pelo projeto
do mais de 250 mil pessoas8 de transposição será de cerca
(MARQUES, 2008). Trata-se Quase toda a água de 3,5% da sua vazão disponí-
do rio com a maior cascata de do Velho Chico está vel. Quase toda a água do Velho
negociada, e esse
barragens do Brasil (Três Ma- Chico está negociada, e esse por-
porcentual não se
rias, Sobradinho, Itaparica, centual, que não se aproxima da
aproxima da realidade
Complexo Paulo Afonso I, II, da quantidade de realidade da quantidade de água
III e IV e Xingó). água que sairá nessa que sairá nessa nova “sangria”,
Não podemos esquecer: nova “sangria” pode representar o “golpe de mi-
são estruturas que envelhecem sericórdia” a esse imenso corpo
e precisam ser removidas com o tempo. Não hídrico que agoniza.
são obras eternas. Esse complexo de proble- O São Francisco passa pela pior seca
mas que o Velho Chico enfrenta requer que dos últimos cem anos, mas essa não é a cau-
se coloque na pauta a retirada desses “ossos sa da sua morte. Apesar do triste cenário, os
de cimentos” que mataram o rio. Isso não é projetos econômicos em toda a bacia não
delírio, mas parte da política socioambiental foram paralisados. A indústria, a mineração
de diversos países do mundo. e a irrigação, juntas, são responsáveis por
O American Rivers,9 centro de restau- mais de 80% das águas retiradas do Velho
ração de rios nos EUA, desde 1973 vem res- Chico. Segundo a Agência Nacional de Águas
taurando rios, resguardando mais de 150 mil (ANA),11 de toda a água retirada do São Fran-
milhas desses corpos d’água. Esse centro de cisco, 76% são consumidos pela irrigação. No
restauração menciona a restauração de mais vale, essa área é de 120 mil hectares (FILHO,
de 1.100 barragens nos EUA, resultando em 2012). De acordo com a ONU,
benefícios para as águas dos rios, os peixes e
outras espécies, inclusive para nós humanos. aproximadamente 70% de toda a água
De acordo com a Dam Removal Euro- potável disponível no mundo é utilizada
pe,10 a partir dos levantamentos de dados para irrigação, enquanto as atividades in-
referentes a Suécia, Espanha, Reino Unido, dustriais consomem 20% e o uso doméstico
Portugal, França e Suíça, foram removidas 10% (TERRA AMBIENTAL, 2013).
162 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
Sabemos que a gestão das águas do ainda vai para a irrigação, para a indústria e
Velho Chico, hoje sobre a responsabilida- para a geração de energia, principais usuá-
de do Comitê da Bacia Hidrográfica do São rios da bacia. A água no sertão é represen-
Francisco (CBHSF), tem na liberação de tada e usada pelos grupos econômicos que
cotas para usos diversos o seu maior cam- controlam a política no nosso país.
po de disputa. Esperamos que esse comitê, A transposição, ao que transparece,
pensado para ser democrático e responsável consolida-se como um projeto ligado às es-
pela vida do Velho Chico, não seja o lugar do truturas políticas ecocidas e à capacidade
agenciamento de sua morte. de influência, nesse cenário, das grandes
Diante desse cenário, onde prevalece construtoras. Esconde-se, por trás do dis-
um conceito de desenvolvimento centra- curso de dessedentação humana e animal no
do nos grandes projetos de irrigação, na semiárido, a engenharia do capital, que pro-
construção de barragens sem duz riqueza transformando
pensar nos impactos e nos Ações e as políticas a natureza em mercadoria e,
sujeitos ali imbricados, pen- públicas voltadas diga-se de passagem, usando
samos que as ações e as polí- para a convivência os destinos de vidas simples
ticas públicas voltadas para a com o semiárido, como as que estão jogadas nas
convivência com o semiárido, tendo como foco o vilas quase fantasmas cons-
tendo como foco o acesso e a acesso e a captação truídas para depositar os ex-
captação de água de chuva, de água de chuva, propriados dessa obra sem pé
têm se colocado como
têm se colocado como expe- nem cabeça.
experiências inovadoras
riências inovadoras e propo- O Velho Chico agoniza
e propositivas.
sitivas diante desse gigante com graves problemas so-
discurso que insiste em ope- cioambientais intensificados
racionalizar de qualquer forma, indo de en- nesses dois últimos séculos de sua história.
contro com qualquer possibilidade de diálogo Além da salinização dos seus solos e da for-
com a sociedade civil organizada, como no mação de núcleos de desertificação, quase
caso da Transposição do Rio São Francis- toda a cobertura vegetal das suas matas
co – e de tantas outras frentes, muitas de- ciliares foi destruída, restando apenas 4%,
las ainda desconhecidas e obscurecidas na o que aumenta os processos erosivos nas
profecia e no discurso do desenvolvimento suas margens, ocasionando o assoreamento
que é anunciado. do rio e tornando-o inviável como hidrovia
A Lei nº 9.433, de 1997, Lei Nacional (FILHO, 2012).
de Recursos Hídricos, diz que, em situação Em todo o Vale do São Francisco, obser-
de escassez, o uso prioritário dos recursos vamos o uso indiscriminado de agrotóxicos
hídricos é para o consumo humano e para a na fruticultura irrigada, o que tem trazido
dessedentação animal. Isso não é respeita- certo nível de vulnerabilidade à saúde do tra-
do no caso do Rio São Francisco. Um volume balhador e de todos os consumidores. Somos
substancial de toda a água do Velho Chico o país que mais usa agrotóxicos no mundo,
POLÍTICAS CULTURAIS & MODELOS SUSTENTÁVEIS Juracy Marques 163
Referências
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ZINCLAR, João. O Rio São Francisco e as Águas no sertão. São Paulo: Silvamarts, 2010.
POLÍTICAS CULTURAIS & MODELOS SUSTENTÁVEIS Juracy Marques 167
Notas
4 O Globo, 2015.
6 Ver: <https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/pf-deflagra-
operacao-contra-desvios-na-transposicao-do-sao-francisco-com-doleiros-da-
lava-jato/>. Acesso em: 15 dez. 2018.
7 MAB. Hidrelétricas do Rio Madeira – energia para quê e para quem? Rondônia:
MAB, 2007.
11 Ver: <www.ana.gov.br>.
12 Ver: <http://www.ebc.com.br/noticias/brasil/2014/12/brasileiro-consome-52-
litros-de-agrotoxico-por-ano-alertam-ambientalistas>. Acesso em: 15 dez. 2018
168 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
POLÍTICAS CULTURAIS & MODELOS SUSTENTÁVEIS Juracy Marques 169
170 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
AGROECOLOGIA E CONVIVÊNCIA
COM O SEMIÁRIDO:
QUEBRANDO PARADIGMAS,
TRANSFORMANDO VIDAS
Fernanda Cruz
O sertão dos dias atuais não é mais o mesmo de outrora. A agroecologia tem se mostrado
uma chave para construção de novas relações no campo, para a recuperação de paisagem e para
a garantia da segurança alimentar e nutricional das pessoas, deixando para trás a escassez que
já foi tão presente na vida do povo sertanejo. Essa realidade também tem favorecido pequenos
grupos e cooperativas, revelando toda a potência de um povo, que, por meio da comercialização
do que produz, gera renda e amplia a sua capacidade de investimento local.
S
ertão. Região do interior, com po- Eles e elas viviam de modo nômade para
voação escassa e longe dos núcleos fugir das secas anuais, das longas estiagens
urbanos, onde a pecuária se sobrepõe e das enchentes nos anos chuvosos (ME-
às atividades agrícolas; região de vegetação DEIROS FILHO, 1988 apud SILVA, 2004).
esparsa e solo arenoso e salitroso, sujeito a Após esse período, a ocupação branca está
secas periódicas; terreno coberto de mato, centrada: (i) na exploração de minerais pre-
afastado da costa; o interior do país. Eis que ciosos nas margens do Rio São Francisco; (ii)
o “interior do país”, como conceitua o Dicio- na pecuária; (iii) e na fuga dos colonizadores
nário Michaelis, foi por muito tempo visto do litoral em razão da ocupação holandesa
como lugar de atraso e de miséria. As intem- (SILVA, 2004, p. 33).
péries do clima, atreladas à falta de políticas Segundo Bursztyn (2008), é no contex-
públicas estruturantes, sobretudo de acesso to histórico baseado em relações paternalis-
à água, forçaram as populações camponesas tas da sociedade patriarcal que a estrutura
a viver em estado de êxodo. social rural se constitui. A pecuária acabou
Até a primeira metade do século XVII, ocupando um papel central na ocupação,
o sertão nordestino era território indígena. fazendo largo uso de mão de obra negra e
POLÍTICAS CULTURAIS & MODELOS SUSTENTÁVEIS Fernanda Cruz 171
indígena escravizada, além de uma parcela são parte da realidade nordestina, como as
da população livre empobrecida, que não se neves perenes são parte do mundo dos es-
enquadrava no regime escravocrata (CER- quimós. Ninguém duvida que o impacto das
QUEIRA, 1989, p. 38 apud PORTO, 2018). Ou secas seria menos negativo se a economia
seja, estamos falando de uma região onde a nordestina fosse mais bem adaptada à reali-
agricultura teve como base a escravidão e o dade ecológica regional, particularmente se
monocultivo, cujas consequências geraram a estrutura agrária não a tornasse tão vulne-
conflitos que se refletem até os dias atuais. rável à produção de alimentos populares. Se
o rápido crescimento das décadas de 1960 e
No caso da sociedade local, o paterna- 1970 aumentou a vulnerabilidade da região,
lismo funciona como instrumento essencial é porque o verdadeiro problema não está em
para o esquema de legitimação dos coronéis. aumentar a produção, e sim na improprieda-
[...] porque se apresenta como um mecanis- de das estruturas (FURTADO, 2009, p. 24).
mo eficaz na consolidação das relações de
dependência que subordinam os trabalhado- A ocupação e as atividades econômi-
res aos caciques locais, tanto em nível eco- cas sem qualquer preocupação com a fauna
nômico como social. [...] e como dependência e flora locais acabam por aumentar os efeitos
lógica, essa dependência irá refletir-se no ní- da seca, que passa então a ser um problema
vel político, onde os poderosos locais sempre para o desenvolvimento rural e intensifica
lograram impor sua vontade, desde a época a migração, pois o próprio povo desacredita
colonial [...] (BURSZTYN, 2008, p. 41). na capacidade de produção do solo. É esse
sertão pobre e seco que inspira clássicos da
Soma-se a essa realidade tão incrusta- literatura, da música e das artes.
da na vida do povo sertanejo a opção políti- Essas obras registraram fatos poéticos
ca por projetos de desenvolvimento social e e também históricos, entre eles as principais
econômico centrados nas grandes estruturas secas ocorridas na região e seus impactos. Ao
hídricas, em benefício de grandes extensões mesmo tempo, também ajudaram a construir
de terra. Para o economista Celso Furtado, o o imaginário sobre a região, na qual a culpa
problema estava na política nacional de in- de todas as mazelas é a falta de chuva. Isso
dustrialização a partir do Sudeste, na con- sem contar a representação midiática, que,
centração de terra em latifúndios e no uso embora em proporção muito menor, até os
dos poucos solos agricultáveis para uma dias atuais estereotipa o sertanejo como um
agricultura de exportação em detrimento povo retirante e somente isso.
da produção de alimentos.
O sertanejo era apresentado ao Brasil
Nada é mais importante para o desen- pelas lentes da imprensa da capital, da im-
volvimento do Nordeste do que o aumento prensa do Sudeste, para onde os migrantes
da resistência da região aos efeitos das se- se dirigiam, com todas as distorções que o
cas. Nunca será demais afirmar que estas preconceito pode gerar. Mas não foi apenas
172 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
que ocorre o I Encontro Brasileiro de Agri- foi diferente. Em vez de ficar apenas espe-
cultura Alternativa (Ebaa). rando pelas ações emergenciais do Estado,
a sociedade civil organizada ocupou a Supe-
Em 1983, a Federação de Órgãos para rintendência do Desenvolvimento do Nor-
a Assistência Social e Educacional – FASE deste (Sudene), cobrando do governo ações
(uma das ONGs brasileiras mais antigas) permanentes de desenvolvimento. Mais do
passa a apoiar o Projeto Tecnologias Al- que um movimento de reivindicação, esse foi
ternativas (PTA), que foi o embrião para a um período de articulação de diversos atores,
construção do movimento agroecológico no que se reuniram posteriormente no Fórum
Brasil e sendo responsável – em boa medida Nordeste, dando origem a diversos fóruns lo-
– pela criação das principais ONGs do campo cais, a exemplo do Fórum Seca (PE), do For-
da agroecologia no Brasil. Inicialmente, esse campo (RN) e da Articulação no Semiárido
“campo de atuação” passou a se reconhecer Paraibano. Em 1998, a sociedade civil ocupou
como “agricultura alternativa”, na perspecti- novamente a Sudene, cobrando respostas do
va de ser uma alternativa ao modelo hegemô- governo ao pleito de anos atrás.
nico da Revolução Verde, que se intensificava
no país e no mundo (PORTO, 2018, p. 31). Em 1993, a ocupação da sede da Sudene
no Recife por mais de 400 trabalhadores e
Nessa mesma década, a Empresa Bra- trabalhadoras rurais potencializou o papel
sileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e as reivindicações dos movimentos sociais
e a então Empresa Brasileira de Assistência frente ao Estado. Naquele ano, outra estia-
Técnica e Extensão Rural (Embrater) publi- gem atingia a região e os agricultores e agri-
cam o documento Convivência do Homem cultoras, assim como movimentos sociais
com a Seca. Essa foi uma primeira propos- atuantes na ocupação, pautavam a necessida-
ta governamental que apontava uma pers- de de políticas mais efetivas e estruturantes
pectiva de diálogo e não de enfrentamento para fazer frente à situação em que se encon-
à questão climática. Segundo Silva (2004), trava a população. Ainda em 1993, em decor-
“a linha básica de ação do programa era a rência da mobilização proporcionada pela
criação de infraestrutura de captação e ar- ocupação da Sudene, mais de 300 entidades
mazenamento de água de pequeno porte, em envolveram-se na organização do seminário
propriedades de pequenos agricultores [...]”. “Ações Permanentes para o Desenvolvimen-
Foi nesse mesmo período que o sertão passou to do Semiárido Brasileiro”, que teve como
a ser denominado semiárido.5 principal desdobramento a criação do Fórum
Ao longo dos anos – desde a época do Nordeste e a proposta de um “Programa de
Brasil Colônia –, mais de 1 milhão de pes- Ações Permanentes”. Este Fórum tornou-se
soas já havia morrido no semiárido em de- um aglutinador das distintas organizações
corrência da seca. O ano de 1993 marca um sociais que criticavam as ações de combate à
novo ciclo para o povo sertanejo. Mais uma seca e pleiteavam alternativas de convivência
seca estava instalada, mas a reação popular com o Semiárido (Porto, 2018, p. 32).
174 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
formação e mobilização social por meio da Isso tem demonstrado o quanto a água
democratização da água, a ASA contribuiu é vital para a manutenção da qualidade de
não só para a desconstrução da imagem de vida e para o fortalecimento da agroecologia
região problema, como também para eman- na região. A simples condição de ter água ao
cipação de mais de 1 milhão de famílias na lado de casa vem provocando os camponeses
região por meio das cisternas. Elas e camponesas a refletirem sobre a sua real
capacidade de convivência, garantindo-lhes
têm impacto direto na saúde da famí- autonomia e coragem para experimentar
lia, aliviam o trabalho feminino de buscar novas formas de produção, em alinhamen-
água e produzem maior independência em to com o que propõe a agroecologia. Expe-
relação ao carro-pipa; quando bem adminis- riências de captação de água de chuva para
tradas, têm mudado a qualidade de vida das produção de alimentos, a exemplo de cister-
famílias no Semiárido (MALVEZZI, 2007). nas-calçadão, barragens subterrâneas, tan-
ques de pedras etc., têm permitido a criação
Embora estejamos falando de uma re- de pequenos animais, o cultivo de roçados e
gião com certo grau de aridez, o semiárido hortas, de plantas ornamentais e medicinais
brasileiro é o mais chuvoso do mundo, com no quintal de casa, e a conservação e troca
uma pluviosidade de até 800 mm/ano. das sementes crioulas.
Referências
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non para a produção sustentável de alimentos na região. Realidade, desafios
e perspectivas. Disponível em: <http://www.osemiáridoébelo.com/2014/09/a-
convivencia-com-o-semiarido-como.html>. Acesso em: 25 set. 2018.
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trajetória do movimento agroecológico no Brasil. In: SAMBUICHI, R. et al. A
Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica no Brasil – uma trajetória
de luta pelo desenvolvimento rural sustentável. Ipea, p. 53-83, 2017.
Notas
3 Ver: <http://www.youtube.com/watch?v=oxoZOR_qhS0&ab_
channel=RTVCaatingaUnivasf>. Acesso em: 16 dez. 2018.
4 Ver: <https://www.youtube.com/watch?v=Z2DVrL_dEcI&ab_
channel=FreiGilvanderLutapelaterraeporDireitos>. Acesso em: 16 dez. 2018.
8 Ver: <http://aspta.org.br/2018/05/video-ix-marcha-pela-vida-das-mulheres-e-
pela-agroecologia/>. Acesso em: 2 out. 2018.
9 Ver: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2012/Decreto/D7794.
htm>. Acesso em: 2 out. 2018.
10 Ainda não existe uma definição oficial no Brasil sobre circuito curto (CC), mas
os representantes do setor agroalimentar na França têm utilizado o termo
para caracterizar os circuitos de distribuição que mobilizam, no máximo, um
intermediário entre produtor e consumidor.
TURISMO CULTURAL
& INDICAÇÃO GEOGRÁFICA:
PIAUÍ, PARAÍBA E SERGIPE
COMO ROTEIROS
Janaina Cardoso de Mello
O
registro das Indicações Geográfi- vivência de elementos significativos rela-
cas (IGs) no Instituto Nacional da cionados ao patrimônio cultural e aos even-
Propriedade Industrial (Inpi) des- tos que promovem e valorizam a cultura.
taca as particularidades dos produtos de Os bens, de natureza material e imaterial,
distintas regiões, valorizando suas caracte- possuem traços de memória e da identida-
rísticas, originalidade, história, notoriedade de das populações.
e territorialidade, o que contribui para maior As tradições de povoados, a vida rústica
visibilidade, valor de oferta e consumo de e o saber-fazer das comunidades são com-
uma experiência exclusiva em espaços com partilhados, na experiência de produção,
potencial turístico. com visitantes que desejam consumir um
As IGs culturais podem ser atrativos momento que pode durar uma eternidade
turísticos desde que ocorra uma roteiriza- nas memórias. No campo das sensações, o
ção turística definida e estruturada para produto é efêmero, mas abriga-se na subjeti-
fins de planejamento, gestão, promoção e vidade dos indivíduos de forma mais durável.
comercialização via turismo das localida- Um roteiro dos espaços com IGs cul-
des do roteiro. O turismo cultural traz a turais contém histórias interconectadas e
POLÍTICAS CULTURAIS & MODELOS SUSTENTÁVEIS Janaina Cardoso de Mello 185
Referências
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produtoras-do-cariri-paraibano-tem-renda-mensal-de-ate-r-10/>. Acesso em: 20
mar. 2018.
Nota
Introdução
A
cidade de Piranhas, fundada em Museu do Sertão), Torre do Relógio, Igreja
1887 e localizada no sertão alagoa- Nossa Senhora da Saúde, Palácio Dom Pedro
no, notabilizou-se pelo estilo arqui- II e o cemitério.2
tetônico predominantemente neoclássico. Além do processo de patrimonializa-
O município, com população estimada de ção e da exploração econômica em torno
25.298 habitantes (IBGE, 2017),1 foi gratifi- dos cânions do São Francisco, a cidade de
cado como um dos conjuntos arquitetônicos Piranhas também tratou de identificar em
mais preservados do país. Seu sítio histórico sua biografia a história do cangaço, que fi-
e paisagístico foi tombado pelo Instituto do gura como um dos fatores determinantes
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional para justificar as visitações – notadamen-
(Iphan), sendo acrescentados o distrito de te, o desfecho de Virgulino Ferreira da Sil-
Entremontes e um trecho de 13 km do Rio va (Lampião), Maria Bonita e mais nove
São Francisco. Na área tombada (que inclui cangaceiros, mortos na Grota do Angico,
mil imóveis) estão Estação Ferroviária (hoje, no município sergipano de Poço Redondo
POLÍTICAS CULTURAIS & MODELOS SUSTENTÁVEIS Wanderson José Francisco Gomes 193
Referências
BEZERRA, Edson José Gouveia; VASCONCELOS, Daniel Arthur Lisboa de. Roteiros
para um novo modelo de turistificação: do turismo de massa a águas alternativas
(e alegorias) em Alagoas. In: Silvana Pirillo Ramos (Org.). Planejamentos de
roteiros turísticos. Porto Alegre: Asterisco, 2012.
BRASIL, Ministério do Turismo. Plano Nacional de Turismo: o turismo fazendo mais pelo
Brasil 2013-2016. Brasília, 2013.
SANTOS, Gabriela Nicolau dos; ANDRADE, Cyntia; SANTOS, Daniele Soares Silva. Para
além dos cânions de Xingó: atrativos potenciais para o turismo cultural e fluvial
nos municípios de Canindé do São Francisco e Poço Redondo (SE). Ponta de
Lança, São Cristóvão, v. 10, n. 19, jun-dez. 2016, p. 50-72.
Notas
ESTADO E CULTURA
NO NORDESTE:
UMA LEITURA DAS POLÍTICAS
CULTURAIS NORDESTINAS
Alexandre Barbalho
tem pertinência porque, como é sabido por pelo Suplemento de Cultura da Munic 2006.
todos(as) que acompanham essa área, há Ainda que seja um indicador limitado –
um esforço por parte de Gil e sua equipe em aliás, como todos os indicadores; o MinC (BRA-
transformar a cultura em objeto de políticas de SIL, 2010), em seu documento fundante sobre
Estado, e não só de governo, a partir da lógica o SNC, por exemplo, recomenda a combinação
federalista – com o Plano Nacional de Cultura do IGMC com outros indicadores, como os ín-
(PNC) e o Sistema Nacional de Cultura (SNC), dices educacionais, sociais, econômicos etc. –,
por exemplo – e da participação social possi- é importante retomá-lo no sentido de trazer
bilitada por conferências, consultas públicas, elementos que possam esclarecer a configu-
câmaras setoriais e conselho de cultura pari- ração das políticas culturais nordestinas nos
tário e deliberativo, entre outros instrumen- últimos 15 anos.
tos de governança (BARBALHO; BARROS; O IGMC é subdividido em outros índices
CALABRE, 2013; BARBALHO; CALABRE; mais específicos: o primeiro é o de Fortaleci-
RUBIM, 2015; BARBALHO; RUBIM, 2007; mento Institucional e Gestão Democrática.
RUBIM, 2010). Como situa Miranda, esse índice leva em con-
Para ensaiar uma resposta à questão – e sideração que “a existência de instituições que
trata-se somente disto mesmo, um ensaio –, preservem a prioridade do setor através de vá-
vale a pena recorrer aos dados disponibilizados rias administrações é um fato positivo para a
pelo Índice de Gestão Municipal em Cultura e gestão cultural, pois favorece a continuidade
pelos Suplementos de Cultura da Pesquisa de e o seu crescimento”, bem como “o princípio
Informações Básicas Estaduais (Estadic) 2014 de que, quanto mais a população participa das
e da Pesquisa de Informações Básicas Munici- decisões de gestão, mais efetiva será a ação em
pais (Munic) 2014, do IBGE. Ainda que defa- prol da cultura no município” (MIRANDA,
sados, é o que existe de mais atualizado sobre 2009, p. 2). O segundo é o Índice de Infraes-
o setor, que só muito recentemente tem sido trutura e Recursos Humanos. E, por fim, o Ín-
objeto de atenção por parte dos formuladores dice de Ação Cultural, que, diferentemente dos
oficiais de estatísticas. anteriores, voltados para os meios, mensura a
oferta no setor por parte do município.
4. O que dizem os dados De acordo com o Índice de Fortaleci-
No esforço de obtenção de informações mento Institucional e Gestão Democrática,
e construção de índices balizadores para as nenhum município nordestino estava entre
políticas culturais, Rogério Miranda (2009), os dez mais bem avaliados no ano de 2006.
pesquisador do Instituto de Pesquisa Econô- Contudo, em termos de estado, o Ceará esta-
mica Aplicada (Ipea), desenvolveu o Índice de va em quinto lugar, atrás de Distrito Federal,
Gestão Municipal em Cultura (IGMC). Trata- Minas Gerais, Mato Grosso e Mato Grosso do
-se de um primeiro índice estatístico na área, Sul. Também não havia qualquer município
que possibilitou ranquear os municípios bra- nordestino entre os dez primeiros classifi-
sileiros em relação ao quesito gestão cultural cados, segundo o Índice de Infraestrutura e
recorrendo às informações disponibilizadas Recursos Humanos. Mas o estado da Bahia,
202 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
apesar de não fazer parte do grupo com as então se a esse dado se combinam outros que
melhores médias, possuía mais de 50% dos possam apontar para uma nova realidade.
seus municípios com valores acima da média Quando se trata de publicizar e tornar
nacional para esse índice. mais ágil o acompanhamento das políticas,
Quanto ao Índice de Ação Cultural, Re- os órgãos gestores da cultura nos estados
cife liderava o ranking, no entanto, sendo a nordestinos não se destacam, pois apenas
única cidade nordestina a fazer parte do gru- cinco (Ceará, Paraíba, Pernambuco, Ala-
po das dez melhores. Por sua vez, quando se goas e Bahia) utilizavam sistemas informa-
olha o conjunto dos municípios dos estados, tizados de gerenciamento, e nenhum deles
Ceará e Pernambuco estão entre os cinco tinha instalada a total capacidade operativa
mais pontuados. Por fim, en- definida pelo IBGE em seis
tre os dez municípios com os Entre os dez municípios funcionalidades: 1. Cadastra-
com os maiores valores
maiores valores no IGMC, Re- mento de projetos culturais,
no IGMC, Recife aparece
cife aparece na quarta coloca- pelos agentes, para solicitação
na quarta colocação,
ção, com 172,86 [para efeito com 172,86 [para efeito de apoio; 2. Acompanhamen-
de comparação, Caxias do Sul de comparação, Caxias to da execução dos projetos
(RS) estava em primeiro, com do Sul (RS) estava em cadastrados; 3. Cadastro de
179,51]. Quando se restringe o primeiro, com 179,51]. agentes e objetos culturais; 4.
índice somente às capitais, Re- Planejamento orçamentário
cife sobe para primeiro no ranking do IGMC e da política de cultura; 5. Gestão do patrimô-
Teresina aparece na nona colocação. nio cultural; e 6. Gestão de equipamentos
Vamos agora para um conjunto de dados culturais. A ausência geral se refere ao item
mais recentes formado pelo Suplemento da 4, exatamente o mais nevrálgico, por tratar
Estadic e da Munic de 2014. Comecemos com da forma como os recursos são aplicados.
informações que se relacionam com o Índi- Como contraponto ao contexto da ges-
ce de Fortalecimento Institucional e Gestão tão estadual, Pernambuco (16,8%) e Ceará
Democrática. No que diz respeito à gestão, o (15,2%) estão entre os sete estados brasilei-
Suplemento informa que, em 2014, todos os ros que contavam com a maior quantidade
estados nordestinos possuíam algum órgão de municípios com sistemas de informatiza-
gestor específico para a cultura, a despeito da ção, e o segundo se destaca entre aqueles com
diversidade de formatos (secretaria, fundação maior proporção de municípios com páginas
etc.). Quando se observa a realidade munici- de conteúdo exclusivo do órgão gestor de cul-
pal, o Maranhão, entre os estados brasileiros, tura, com 14,3%.
apresenta a maior proporção de municípios Outro ponto importante para o melhor
com estrutura organizacional exclusiva para a desempenho da política pública se refere
política cultural (62,8%). Com certeza, a exis- à capacitação de seus gestores. Esse foi um
tência de secretaria ou fundação de cultura item alvo de grande investimento por parte
não garante a efetividade da política e muito do MinC, no esforço de implantação do SNC,
menos o seu caráter republicano. Vejamos a partir principalmente do segundo governo
POLÍTICAS CULTURAIS & MODELOS SUSTENTÁVEIS Alexandre Barbalho 203
Lula. Entre 2009 e 2010, a Secretaria de Arti- Ainda no quesito formação, agora vol-
culação Institucional (SAI) do Ministério ela- tada para os setores da cultura, todos os es-
borou o Programa de Formação de Gestores tados promoveram cursos em alguma das 13
Culturais, cujo Curso Piloto de Gestão Cultu- categorias consideradas pelo IBGE: música;
ral ocorreu em Salvador. Logo na sequência, artes plásticas; teatro; gestão cultural; dança;
em 2012, a Fundação Joaquim Nabuco, em patrimônio, conservação e restauração; ma-
parceria com o MinC e a Universidade Federal nifestações tradicionais populares; cinema;
Rural de Pernambuco, ofertou o primeiro cur- literatura; vídeo; circo; artesanato; e fotogra-
so de especialização em formação de gestores fia. Pernambuco foi o único estado do país
culturais dos estados do Nordeste. que afirmou promover capacitação em todas
Em grande parte como as áreas, e o Ceará ocupava a
Em grande parte como
desdobramento da atuação do quarta colocação, com 53,3%
desdobramento da
Governo Federal, todos os es- atuação do Governo entre os cinco estados onde
tados nordestinos ofereceram Federal, todos os mais da metade de seus muni-
algum tipo de formação para estados nordestinos cípios ofereceram algum curso.
seus servidores na área da cul- ofereceram algum tipo Quanto ao esforço de
tura, ainda que nenhum tenha de formação para seus transformar a política cultu-
atuado nos sete temas estabe- servidores na área ral em política de Estado, um
lecidos pelo IBGE: 1. Curso de da cultura. dado importante se refere aos
elaboração e gestão de proje- planos. Nesse ponto, todos os
tos; 2. Curso de gestão cultural; 3. Curso de estados nordestinos estavam com seu pla-
editais; 4. Curso de capacitação tecnológica e no de cultura em elaboração em distintos
administrativa; 5. Curso de leis de incentivo; estágios. A exceção da região e do país era
6. Curso de captação de recursos; 7. Curso de Alagoas, que já tinha o seu formalizado e re-
gestão de equipamentos culturais. gulamentado por instrumento legal.
Os cursos mais ofertados estão inseridos Por sua vez, no que diz respeito aos oito
nos itens 1, 5 e 6, de perfis mais tradicionais, objetivos das políticas culturais estabeleci-
orientados muitas vezes pela lógica das leis das pelo IBGE (1. Preservar o patrimônio
de incentivo à cultura. São formações ofereci- histórico, artístico e cultural; 2. Tornar a
das tanto pelo poder público quanto pelo setor cultura um dos componentes básicos para a
privado, desde a criação da Lei Sarney, com qualidade de vida da população; 3. Democra-
incremento na gestão de Francisco Weffort tizar a gestão cultural; 4. Integrar a cultura
no MinC (1995-2002), quando se legitimou ao desenvolvimento local; 5. Dinamizar as
a figura do captador de recursos. O menos atividades culturais do estado; 6. Garantir
ofertado foi o item 7 (apenas Piauí e Bahia), a sobrevivência das tradições culturais lo-
o que pode ser indício da pouca presença de cais; 7. Descentralizar a produção cultural;
equipamentos públicos de cultura sob respon- 8. Ampliar o grau de participação social nos
sabilidade do órgão gestor estadual ou da falta projetos culturais), o Piauí foi o único estado
de profissionalização na sua gestão. nordestino a listar todos eles.
204 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
destaque é o Rio Grande do Norte, que só não Estadic e da Munic de 2014, ocorreu o for-
atende a um – o de “pessoa com deficiência” talecimento desse processo. A existência
– dos 13 segmentos listados pelo IBGE, vin- generalizada de órgãos gestores exclusivos
do atrás apenas de São Paulo, que atende a para a área, alguns deles com sistemas in-
todos. Os outros segmentos são: culturas formatizados de gerenciamento – contando
populares; comunidades indígenas; comu- com gestores capacitados, conselhos pari-
nidades afro-religiosas; comunidades qui- tários e deliberativos, planos e conferências
lombolas; crianças e adolescentes; jovens; participativas –, entre outros sinalizadores,
outras comunidades tradicionais; comunida- aponta para um novo modus operandi das
de LGBTT; mulheres; idosos; comunidades políticas culturais nordestinas.
de descendentes de nacionalidades estran- Talvez a melhor expressão da nova
geiras; comunidades ciganas. composição de forças seja a afirmação dos
valores da participação, da democracia e da
5. Algumas considerações finais institucionalização por parte dos gestores
A partir dos dados apresentados acima estaduais de cultura nos períodos imediata-
é factível afirmar que a política cultural no mente anterior e posterior à realização da III
Nordeste se assenta hoje em patamar di- Conferência Nacional de Cultura, entre 27 de
ferente daquele que vigorou entre os anos novembro e 1 de dezembro de 2013, que en-
1960 e 1990, no qual predominava, de um volveu milhares de pessoas nas conferências
lado, a atuação de intelectuais renomados municipais e estaduais que a antecederam
e próximos ao poder político vigente e, de em todo o país.
outro, uma atuação com vistas a expressões Para encerrar, vejamos algumas destas
eruditas e à valorização do popular. Obser- falas das quais destaquei algumas passagens
va-se um esforço de institucionalizar a em itálico. Segundo o então secretário de Es-
relação do governo no campo cultural re- tado da Cultura de Alagoas, Osvaldo Viégas, a
correndo a diversos instrumentos de gestão III Conferência Estadual foi “um momento de
pública, como planos, conselhos, fundos, interlocução entre poder público e sociedade
conferências e, de forma democrática, va- civil no intuito de estabelecer diretrizes para
lorizando a participação da sociedade ci- o desenvolvimento da cultura em Alagoas”.2
vil, mais especificamente dos agentes do Por sua vez, a secretária de Estado da Cultu-
campo cultural. ra de Sergipe, Eloísa Galdino, defendeu que
Percebe-se que, entre a divulgação dos “as conferências municipais visam a mobi-
resultados do IGMC, baseados em dados de lização das comunidades para o debate e a
2006 – em que os estados nordestinos não proposição de políticas de cultura junto a
tiveram muito destaque no cenário nacional, representantes do poder público”, favore-
a não ser, em determinados quesitos, Ceará, cendo a “participação intensa e coletiva dos
Bahia e Pernambuco (nos Índices de Fortale- agentes de cultura, com base em uma visão
cimento Institucional e Gestão Democrática diferenciada sobre como construir políticas
e de Ação Cultural) –, e a do Suplemento da públicas para esta área”.3
206 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
TABELA 1
ESTADOS DO NORDESTE COM CONSELHO DE CULTURA, POR ALGUMAS CARACTERÍSTICAS (2014)
Fonte: IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de População e Indicadores Sociais, Pesquisa de Informações Básicas Estaduais 2014.
FISCALIZAR O
PRONUNCIAR- ACOMPANHAR CUMPRIMENTO
SE E EMITIR E AVALIAR A DAS DIRETRIZES PROPOR,
PARECER SOBRE ELABORAR EXECUÇÃO DE E INSTRUMENTOS AVALIAR E
ASSUNTOS DE E APROVAR PROGRAMAS DE FINANCIA- REFERENDAR
NATUREZA PLANOS DE E PROJETOS MENTO DA PROJETOS
ESTADO CULTURAL CULTURA CULTURAIS CULTURA CULTURAIS
Maranhão Sim Sim Sim Sim Não
Piauí Não Sim Não Não Sim
Ceará Sim Não Sim Não Não
Rio Grande do Norte Sim Não Não Não Sim
Paraíba Não Sim Não Sim Não
Pernambuco Sim Sim Não Não Não
Alagoas Sim Não Não Não Sim
Sergipe Sim Não Não Não Sim
Bahia Sim Não Sim Não Não
Fonte: IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de População e Indicadores Sociais, Pesquisa de Informações Básicas Estaduais 2014.
POLÍTICAS CULTURAIS & MODELOS SUSTENTÁVEIS Alexandre Barbalho 207
QUANTIDADE DE
CARÁTER ESCOLHA DOS INTEGRANTES REUNIÕES NOS CONSELHEIROS
FISCALIZADOR DA SOCIEDADE CIVIL ÚLTIMOS 12 MESES SÃO REMUNERADOS
Não Indicação do poder público e da sociedade civil 4 Não
Não Indicação do poder público e da sociedade civil 48 Sim
Não Indicação do poder público e da sociedade civil 6 Não
Sim Indicação do poder público e da sociedade civil 80 Sim
Sim Indicação da sociedade civil 12 Não
Sim Indicação do poder público 96 Sim
Não Indicação do poder público e da sociedade civil 6 Não
Não Indicação do poder público 44 Sim
Não Outra forma de escolha 24 Não
FISCALIZAR AS
APRECIAR
E ATIVIDADES ELABORAR
APROVAR DE ENTIDADES NORMAS E APRECIAR
FISCALIZAR AS NORMAS E CULTURAIS ADMINISTRAR DIRETRIZES E APROVAR
ATIVIDADES DO DIRETRIZES DE CONVENIADAS O FUNDO PARA NORMAS PARA
ÓRGÃO GESTOR FINANCIAMENTO COM A GESTÃO ESTADUAL DE CONVÊNIOS CONVÊNIOS
DA CULTURA DE PROJETOS ESTADUAL CULTURA CULTURAIS CULTURAIS
Sim Sim Sim Não Não Não
Não Não Não Não Não Não
Sim Não Não Não Não Não
Não Não Não Não Não Não
Não Não Não Não Sim Não
Sim Não Não Não Não Não
Não Não Não Sim Não Não
Não Não Não Sim Não Não
Não Sim Não Não Não Não
208 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
Referências
ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 1985.
RUBIM, Albino (Org.). Políticas culturais no governo Lula. Salvador: Edufba, 2010.
Notas
S
ão dois os territórios dos mitos: um encantada, por causa de sua escassez cons-
deles fica no chão, o outro está um tante. Um rio passa a maior parte do tempo
dedo acima da terra. Esse território seco e, quando vem o inverno, voltam todos
fincado no chão é o espaço que os mitos, que os peixes. Às margens dos rios, os animais
estão um dedo acima do chão, descem para matam a sede, então a caça também está
habitar. A ocupação do sertão se dá por meio atrelada à água. Quem cuida de tudo isso é
de dois pontos mitológicos: as águas e as pe- a mãe d’água, que faz a maestria desse repo-
dras. As águas são ligadas ao mito da mãe voamento da vida reportando-se a uma prin-
d’água, que remete à vida, ao povoamento, cesa encantada na forma de serpente. Uma
à fauna. Já o mito das pedras está ligado ao vez por outra, a princesa se desencanta e as
castelo encantado. Essas duas esferas dialo- pessoas voltam a vê-la. Nas pinturas rupes-
gam através do encanto. tres do Nordeste, quando se vê uma serpente,
Todos os rios do sertão estão ligados ao é símbolo de água, esse bem precioso da vida
mito da mãe d’água, que tem os caldeirões, que some e volta trazendo repovoamento.
os boqueirões e as camas da mãe d’água. No Já o mito das pedras está ligado às for-
território sertanejo, a água já é, ela mesma, mações rochosas que falam de um reino que
POLÍTICAS CULTURAIS & MODELOS SUSTENTÁVEIS Alemberg Quindins 213
existiu e se encantou, em cujo centro exis- por sua vez, também se avultam em mitos.
tia um lago. Esse reino encantado aparece Outro dia ouvi alguém dizer que Luiz Gon-
e desaparece, e quem adentrá-lo precisa zaga cantava feito um vendedor de jerimum
sair em tempo ou se encantará lá dentro. na feira. E não é que se transformou em de-
Os portugueses já encontraram o sertão as- senvolvimento esse canto?
sim, encantado. Mais tarde, com o início do A Fundação Casa Grande, onde traba-
ciclo do couro no Nordeste, surgem novos lho, fica na casa que deu origem à cidade de
encantamentos, como o mito do boi aruá, Nova Olinda, no Ceará. Essa casa, tida por
que vaqueiro nenhum pegava. O encanto assombrada, foi restaurada para cumprir a
sertanejo engole tudo: cidades, reinados, missão de alavancar o desenvolvimento local
princesas. A boca do sertão é o encanto, como veículo cultural. Até hoje, a casa pode
que tudo degusta e devolve como cultura. A dormir aberta que ninguém entra, por acre-
palavra sertão tem uma ligação muito forte ditar-se que ali vivem fantasmas. Ou seja, o
com a palavra encanto. Todo sertão, para ser espaço continuou mitológico, apesar do seu
sertão, tem que ser encantado. O sertão é um novo papel. Na Mãe d’Água, também em Nova
portal para o encanto e é imaterial, embora Olinda, há um parque com formação rochosa
haja um local físico para ele. Todos os mitos do período Cretáceo. Um lugar ideal para ser
descem do sertão para o encanto. O sertão é tombado – por ter esculturas rochosas – e,
a morada dos mitos. a partir disso, desenvolverem-se produtos
Esse encantamento pode criar cami- ligados à mitologia local.
nhos outros para o desenvolvimento. A prin- Em Nova Olinda, a partir do encontro
cípio, o encanto está no nível imaterial, mas, com o seleiro e o vaqueiro, desenvolvemos
quando se transforma em produto cultural, um produto de design altamente estilizado,
temos desenvolvimento. Veja o Velho Oeste centrado no ciclo do couro e em um mestre
americano: um período curto das fronteiras local. Por isso, esse produto deu certo. O
da habitação que o cinema transformou em desenvolvimento pede origem, profundi-
encanto, gerando produtos que até hoje ali- dade e conteúdo, e o sertão conta com esses
mentam uma cadeia cinematográfica, um elementos. Aprofundados, mitos podem se
segmento da arte. Se há profundidade de transformar em quadrinhos, em cinema,
conteúdo, é possível gerar desenvolvimento em produtos, em todo um mercado cultural.
a partir dos mitos. Hoje, no geral, estamos vivendo um encanta-
Aliás, os mitos são a fonte que alimen- mento mercadológico, mas haverá um futu-
ta a produção cultural sertaneja, da música ro em que produtos locais e exclusivos terão
de Luiz Gonzaga à literatura de Augusto dos mais valor do que produtos de grandes mar-
Anjos e Zé Limeira. Dos mitos pode brotar o cas. Os mitos sertanejos já trazem consigo a
desenvolvimento local, com museus e pro- própria ideia de sobrevivência, desde esses
dutos culturais que permitam desenvolver o rios que secam e que voltam a se encher.
sertão a partir de quem cantou sua mitolo- Minha intenção de formar jovens ser-
gia. E a partir de produtores culturais, que, tanejos em linguagens contemporâneas já
214 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
A Fundação Casa Grande é um labo- de falar sobre música em uma rádio, por
ratório nesse sentido. Temos, por exemplo, exemplo. Pode contribuir.
um jovem que é produtor cultural, cuja mãe Os pilares de um país são as instituições
é dona de uma pousada domiciliar e que tem e suas políticas, e o conjunto de instituições
um amigo que é dono de um café e outro que brasileiras, hoje, não dialoga em torno de in-
tem uma empresa de turismo. Atualmente, tegridade nacional. Esse diálogo é necessá-
estamos formatando o projeto Museus Or- rio a fim de que o conteúdo mitológico possa
gânicos, que dará aos visitantes a chance de enfim alavancar desenvolvimento de forma
vivenciarem a história local dentro das casas efetiva. A cultura de cada lugar, na prática,
das pessoas, enquanto espaços de memórias. é o que faz a nação. E ainda precisamos co-
Será possível, por exemplo, visitar a casa de nhecer, produzir e consumir a cultura que
um chef, ser recepcionado por sua família e temos. Precisamos saber o que queremos e
viver ali uma experiência gastronômica. reconhecer o valor que temos. Patativa do
Minha guerrilha é não me contentar Assaré dizia que, para onde olhava, via “um
em ser turista no meu próprio país. Em cada verso se bulindo”. É esse olhar que precisa-
bioma brasileiro por onde passo, vejo um po- mos exercitar na direção da sustentabilidade
tencial enorme e uma destruição crescente. sertaneja. É necessária uma política nacional
Quando uma máquina derruba uma mata, ali que encontre um rumo só, uma direção mais
se vão os mitos locais. Não há mais habitação certa. A criatividade brasileira é uma fonte
para a caipora, para o saci. E passamos a con- inesgotável de soluções. Construir essa na-
sumir halloween. Sem regionalismo ou bair- ção não demanda mais horas de trabalho, e
rismo, há um universo de produtos culturais sim mais tempo para desenvolver esse enor-
brasileiros, sertanejos, que ainda precisamos me potencial criativo.
aprofundar, desenvolver e vender.
É importante ressaltar que a infância
no Brasil ainda é muito mal aproveitada, é
preciso aproximar mais as crianças desse
conteúdo. Em vez de se estar discutindo a
maioridade penal, por que não se discute a
partir de quando um jovem é capaz de in-
fluenciar sua comunidade? A partir de que Alemberg Quindins
idade ele contribui com sua inteligência? É músico de formação popular e historia-
Discutimos a idade mínima para votar, para dor autodidata. Em 1992, restaurou a primeira
ser preso, para dirigir. Mas não discutimos casa-grande da fazenda que deu origem ao mu-
a necessidade de tratar uma criança com nicípio de Nova Olinda, no Ceará, e criou a Funda-
respeito, de ouvi-la. A experiência em Nova ção Casa Grande – Memorial do Homem Kariri, uma
Olinda mostra que uma criança que cresceu organização social que tem como missão ser um
em meio a um acervo musical de qualidade lugar de vivência em gestão cultural e social para
pode se tornar um cidadão brasileiro capaz crianças e jovens.
216 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
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