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Denis Dutton

Uma definição naturalista da arte

( The Journal of Aesthetics and Art Criticism 64:3 (Verão de 2006)

Tradução de Vítor Guerreiro (in Criticanarede.com)

As teorias estéticas podem proclamar-se universais, mas normalmente são condicionadas


pelas questões e debates estéticos das suas próprias épocas. Platão e Aristóteles tinham ambos
uma motivação igualmente forte para explicar as artes gregas do seu tempo e para ligar a
estética às suas metafísicas gerais e teorias do valor. Mais perto de nós, como observa Noël
Carroll, pode-se encarar as teorias de Clive Bell e R. G. Collingwood como a “defesa de práticas
vanguardistas emergentes — o neo-impressionismo, por um lado, e a poética modernista de
Joyce, Stein, e Eliot por outro.” 1 Pode-se ler Susanne Langer como alguém que apresenta uma
justificação da dança moderna, ao passo que a primeira versão da teoria institucional de George
Dickie “exige algo como o pressuposto de que o Dada é uma forma central de prática artística”
de maneira a ganhar apelo intuitivo. O mesmo se pode afirmar da teorização quase obsessiva,
por Arthur Danto, acerca de quebra-cabeças minimalistas e objectos artísticos indiscerníveis de
objectos não artísticos — acrescente-se as telas negras de Rheinhart, os readymades de
Duchamp e as caixas de Brillo de Andy Warhol. À medida que as formas de arte e as técnicas
mudam e se desenvolvem, à medida que o interesse artístico floresce ou declina, a teoria segue
também o mesmo caminho, deslocando o seu foco de atenção, modificando os seus valores.

As distorções causadas pelos preconceitos da cultura local combinam-se com outro factor.
Os filósofos da arte têm uma tendência natural para começar a teorizar a partir das suas próprias
predilecções estéticas, das suas respostas estéticas mais perspicazes, por muito estranhas ou
limitadas que possam ser. Immanuel Kant tinha um interesse marcado pela poesia, mas o seu
descartar da função da cor na pintura é tão excêntrico que sugere mesmo uma possível
deficiência visual. Bell, que reconhecia sem peias a sua incapacidade para apreciar música,
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concentrou a sua atenção na pintura, alargando falaciosamente as suas perspectivas a outras
artes. Mais frequentemente, os pensadores que amam a beleza natural, ou que têm um
fraquinho por uma cultura exótica ou género em particular, tendem a generalizar a partir dos
sentimentos e experiência individuais. Este elemento pessoal pode ser teoricamente
enriquecedor (Bell acerca do expressionismo abstracto) ou ter resultados quase absurdos (Kant
acerca da pintura em geral). Devia porém instigar o cepticismo em todos nós. As perspectivas
gerais extrapoladas do entusiasmo pessoal limitado podem persuadir-nos enquanto nos
concentrarmos nos exemplos fornecidos pelo teorizador; frequentemente não funcionam quando
aplicadas a uma maior diversidade de artes.

Além do preconceito cultural e da idiossincrasia pessoal, um terceiro factor tem sido um


obstáculo ao filosofar apropriado acerca das artes: o carácter da retórica filosófica. A filosofia é
maximamente robusta e estimulante quando argumenta a favor de uma posição única e
exclusivamente verdadeira e procura desacreditar alternativas plausíveis. Na história da filosofia
da arte, isto tem sido um obstáculo persistente à compreensão. Kant, por exemplo, não se limita
a separar as componentes intelectuais da experiência estética das suas componentes sensuais
primárias, mas em secções da sua terceira Crítica nega inteiramente o valor das últimas. Leão
Tolstoi é tão dogmático na sua insistência na sinceridade como critério central da arte, a ponto
de ter notoriamente rejeitado grandes porções do cânone, incluindo a maior parte da sua própria
obra. Bell, mais uma vez o esteta por excelência, não se limita a elevar a experiência da forma
na pintura abstracta, mas insiste que o elemento ilustrativo na pintura é esteticamente
irrelevante. Tais posições extremas em estética são retoricamente apelativas, ao passo que as
teorias menos exclusivistas não o são. Ensiná-las é também um prazer para os professores de
estética, visto que dão aos estudantes um pano de fundo histórico, insights estéticos genuínos
(ainda que absurdamente unilaterais), e o exercício intelectual envolvido na apresentação de
contra-exemplos e contra-argumentos. Juntamente com o desenvolvimento histórico da própria
arte, semelhante teorização faz avançar o debate — não no sentido da resolução, mas apenas
para gerar mais disputa.

A estética no início do século XXI encontra-se numa situação paradoxal, para não dizer
bizarra. Por um lado, os académicos e os estetas têm acesso — em bibliotecas, em museus, na
Internet, em primeira mão por meio de viagens — a uma perspectiva mais ampla do que alguma
vez tiveram sobre a criação artística, em diversas culturas e ao longo da história. Podemos
estudar e apreciar esculturas e pinturas do paleolítico, música de toda a parte, artes populares e

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rituais de todo o mundo, literatura, artes de todas as nações, do passado e do presente. Perante
esta vasta disponibilidade, como é estranho que a especulação filosófica sobre a arte tenha
permanecido inclinada para a análise interminável de um conjunto infinitesimalmente pequeno de
casos, entre os quais se destacam os readymades de Duchamp ou objectos como as fotografias
apropriadas de Sherri Levine e a 4'33'' de John Cage. Subjacente a esta orientação filosófica
está um pressuposto escondido, nunca articulado: supõe-se que o mundo da arte será
finalmente compreendido quando formos capazes de explicar os exemplos mais marginais ou
difíceis da arte. A Fonte e Antecipação de um Braço Partido, de Duchamp, são à primeira vista
os casos mais difíceis com os quais a teoria da arte tem de lidar, o que explica a dimensão da
bibliografia teórica que estas obras e os seus irmãos readymade geraram. A própria extensão
desta bibliografia aponta também para uma esperança de que sermos capazes de explicar os
exemplos mais extravagantes de arte nos ajudará a alcançar a melhor explicação geral de toda a
arte.

Esta esperança conduziu a estética na direcção errada. Os juristas sabem que os casos
difíceis dão má legislação. Se o leitor deseja compreender a natureza essencial do assassínio,
não tomará como ponto de partida uma discussão do suicídio assistido ou do aborto ou da pena
capital. O suicídio assistido pode ser ou não assassínio, mas determinar se tais casos em
disputa são ou não assassínio exige antes o esclarecimento acerca da natureza e da lógica dos
casos indisputáveis; passamos do centro incontroverso para os disputados territórios remotos. O
mesmo princípio se aplica na teoria estética. A obsessão de dar conta dos mais problemáticos
casos periféricos da arte, embora seja intelectualmente estimulante e um bom modo de os
professores de estética gerarem discussão, fez a estética ignorar o centro da arte e dos seus
valores. A filosofia da arte precisa de uma abordagem que comece por tratar a arte como um
campo de actividades, objectos, e experiência dados naturalmente na vida humana. Temos
primeiro de procurar demarcar um centro incontroverso que confere aos periféricos qualquer
interesse que estes possam ter. Considero que esta abordagem é “naturalista”, não no sentido
de ser impulsionada pela biologia (embora a biologia se mostre relevante), mas porque depende
de padrões de comportamento e discurso persistentes, identificados transculturalmente: fazer
obras de arte, ter experiência delas, e avaliá-las. Muitos dos modos como se discute a arte e se
tem experiência dela transpõem facilmente fronteiras culturais, e conseguem uma aceitação
global sem a ajuda dos académicos ou teorizadores. De Lascaux a Bollywood, artistas,
escritores, e músicos não raro têm pouca ou nenhuma dificuldade em conseguir a compreensão

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estética transcultural. É no centro natural onde essa compreensão existe que a teoria deve
começar.

II

Pode-se reduzir os aspectos característicos encontrados transculturalmente nas artes a


uma lista de itens nucleares, doze na versão apresentada em seguida, a que chamo critérios de
reconhecimento. Alguns dos itens destacam aspectos de obras de arte, outros destacam
qualidades da experiência da arte. Outros teorizadores propuseram listas semelhantes no
propósito, embora não idênticas no conteúdo. Nestas se incluem listas publicadas em 1975 por
E. J. Bond, Richard L. Anderson (1979 e repetidamente revista desde então), H. Gene Blocker
(1993), Julius Moravcsik (1992), e Berys Gaut (2000). 2 Publiquei duas predecessoras da
presente lista (2000 e 2001).3 A minha lista presta-se portanto à correcção por meio do
esclarecimento, permutação de itens, ampliação, ou redução. Os itens que nela constam não
são escolhidos para satisfazer um propósito teórico preconcebido; pelo contrário, a finalidade
destes critérios é proporcionar uma base neutra à especulação teórica. Pode-se descrever a lista
como inclusiva no modo como refere as artes em várias culturas e épocas históricas, mas não é
por essa razão um compromisso entre posições adversárias que se excluem mutuamente.
Reflecte um domínio vasto de experiência humana que as pessoas identificam sem dificuldade
como artística. David Novitz observou que “as formulações precisas e as definições rigorosas”
pouco ajudam a captar o significado da arte transculturalmente. 4 Não obstante, só porque, como
afirma Novitz, não há “um só modo” de ser uma obra de arte, não se segue que os “muitos
modos” contrários sejam tão irremediavelmente numerosos a ponto de não se poder especificá-
los, mesmo que o domínio a que se referem seja tão irregular e multifacetado como o da arte. Na
verdade, serem especificáveis, por mais que sejam abertos à discussão, é exigido pela própria
existência de uma bibliografia sobre estética transcultural.

Note-se que, dada existência de inúmeros casos marginais, por “arte” e “artes” refiro-me a
artefactos (esculturas, pinturas, e objectos decorados, tais como ferramentas ou o corpo
humano, e partituras e textos considerados como objectos) e execuções (danças, música, e a
composição e recitação de histórias). Quando falamos acerca de arte, concentramo-nos por
vezes em actos de criação, por vezes nos objectos criados, noutras ocasiões referimo-nos mais
à experiência que se tem destes objectos. Formular estas distinções é uma tarefa distinta. A lista
consiste portanto nas características indicadoras da arte considerada como uma categoria
universal, transcultural. Com isto não afirmo que qualquer item na minha lista pertence

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exclusivamente à arte ou à experiência que dela temos. Muitos destes aspectos da arte
coexistem com experiências e aptidões não artísticas; relembramos isto aqui entre parêntesis, na
conclusão de cada entrada.

1. Prazer directo

O objecto artístico — narrativa, história, artefacto feito à mão, ou execução visual e auditiva — é
valorizado em si como fonte de prazer experiencial imediato, e não primariamente pela sua
utilidade na produção de outra coisa que é ou útil ou aprazível. Quando a analisamos, vemos
que esta qualidade do prazer da beleza, ou “prazer estético”, como é tão frequentemente
designada, resulta de fontes muito diferentes. Uma cor pura, intensamente saturada, pode ser
aprazível à vista; compreender a detalhada coerência de uma história intricadamente construída
pode dar prazer (semelhante ao prazer de um quebra-cabeças de palavras cruzadas perspicaz
ou um problema de xadrez bem formado); a composição de uma pintura paisagística pode dar
prazer, mas também as montanhas distantes, brumosas e azuladas que ela representa nos
podem causar prazer independentemente da forma e da técnica; as modulações harmónicas
surpreendentes e a aceleração rítmica podem dar prazer na música, e por aí em diante. Aqui é
da maior importância o facto de a fruição da beleza artística não raro resultar de prazeres
multifacetados mas distinguíveis, de que se tem experiência ou em simultâneo ou em estreita
proximidade entre si. Estas experiências estratificadas podem ser maximamente eficazes
quando prazeres distinguíveis se relacionam coerentemente entre si, ou interagem — como, de
um modo aproximado, na forma estrutural, cores, e tema de uma pintura, ou na música, drama,
canto, execução dirigida, e cenários de uma ópera. Esta ideia é a conhecida unidade orgânica
das obras de arte, a sua “unidade na diversidade”. Diz-se frequentemente que tal fruição estética
tem “fim em si mesma”. (Chama-se “prazer estético” a este prazer quando resulta da experiência
da arte, mas é bem conhecida em muitas outras áreas da vida, com o prazer do desporto e do
jogo, de tomar uma bebida fresca num dia de calor, ou de observar as cotovias planando ou
nuvens de tempestade tornam-se mais espessas. Os seres humanos têm experiência de uma
lista indefinidamente longa de prazeres directos não artísticos, experiências fruídas em função
de nada além de si próprias. Quaisquer prazeres semelhantes podem, como os que estão
notoriamente associados ao sexo, ou a alimentos doces e ricos em gorduras, ter causas antigas
evoluídas de que não estamos cientes na experiência imediata.)

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2. Aptidão ou virtuosismo.

Fazer o objecto ou executar algo exige e demonstra o exercício de aptidões especializadas. Em


algumas sociedades estas aptidões são adquiridas numa tradição de aprendizagem, noutras
quem quer que considere “ter queda” para elas as pode aprender. Onde uma aptidão é adquirida
por praticamente todos os membros da cultura, como sucede com o canto ou dança colectivos
em algumas tribos, tenderá ainda a haver indivíduos que se destacam em virtude de um talento
ou mestria especial. As aptidões técnicas artísticas são objecto de atenção nas sociedades de
pequena escala bem como nas civilizações desenvolvidas, e onde são objecto de atenção são
universalmente admiradas. O admirar a aptidão não é apenas intelectual; a aptidão exercida
pelos escritores, talhadores, dançarinos, oleiros, compositores, pintores, pianistas, etc., pode
deixar queixos caídos, arrepiar cabelos na nuca e encher os olhos de lágrimas. A demonstração
de perícia é um dos aspectos da arte mais profundamente comoventes e aprazíveis. (A elevada
aptidão é uma fonte de prazer e admiração em todas as áreas da acção humana além da arte,
hoje talvez especialmente nos desportos. Quase todas as actividades humanas organizadas se
podem tornar competitivas de modo a sublinhar o desenvolvimento e admiração do seu aspecto
técnico, pericial. O Guiness Book of Records está cheio de “campeões do mundo” das
actividades mais mundanas e extravagantes; isto atesta um impulso universal para tornar quase
tudo o que os seres humanos conseguem fazer numa actividade admirada tanto pelo seu
virtuosismo como pela sua capacidade produtiva.

3. Estilo.

Os objectos e execuções em todas as formas de arte são feitos em estilos reconhecíveis,


segundo regras de forma, composição, ou expressão. O estilo proporciona um pano de fundo
estável, previsível, “normal”, contra o qual os artistas podem criar elementos de novidade e
surpresa expressiva. Um estilo pode derivar de uma cultura, uma família, ou ser a invenção de
um indivíduo; as mudanças nos estilos envolvem o tomar de empréstimo e a alteração súbita,
bem como a evolução lenta. A rigidez ou adaptabilidade fluida dos estilos podem variar tanto nas
culturas não ocidentais e tribais como nas histórias das civilizações que têm escrita; por
exemplo, alguns objectos e execuções sagrados são estritamente circunscritos pela tradição
(como nos estilos mais antigos da olaria Pueblo), sendo outros abertos à variação interpretativa
individualista e criativa (como em grande parte do Norte da Nova Guiné). Pouquíssimas são as

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artes históricas que não permitem qualquer afastamento criativo do estilo estabelecido. Na
verdade, se nenhuma variação fosse permitida, o estatuto de uma actividade estilizada seria
posto em causa como arte; isto não se aplica apenas às tradições europeias. Muitos autores, em
particular nas ciências sociais, trataram o estilo como uma prisão metafórica dos artistas,
determinando limites de forma e conteúdo. Os estilos, todavia, ao proporcionarem aos artistas e
aos seus públicos um pano de fundo familiar, permitem o exercício da liberdade artística,
libertando tanto quanto restringem. Os estilos podem oprimir os artistas; mais frequentemente,
libertam-nos. (Quase toda a actividade humana importante acima dos reflexos involuntários é
realizada num enquadramento estilístico: os gestos, o uso da linguagem, e as cortesias sociais,
como as normas do riso ou da distância corporal em encontros pessoais. O estilo e a cultura são
praticamente coincidentes.)

4. Novidade e criatividade.

A arte é valorizada e elogiada pela sua novidade, criatividade, originalidade, e capacidade de


surpreender o seu público. A criatividade inclui a função que a arte tem de captar a atenção (uma
componente importante do seu valor de entretenimento) e a talvez menos surpreendente
capacidade que o artista tem de explorar as possibilidades mais profundas de um meio ou tema.
Embora tais géneros de criatividade se sobreponham, A Sagração da Primavera de Stravinsky é
criativa sobretudo no primeiro sentido, Orgulho e Preconceito de Jane Austen é criativo no
segundo. A imprevisibilidade da arte criativa, a sua novidade, joga contra a previsibilidade do
estilo convencional ou do tipo formal (sonata, romance, tragédia, etc.). A criatividade e a
novidade são o locus da individualidade ou do génio na arte, referindo-se àquele aspecto da arte
que não é regido por regras. O talento imaginativo é classificado na arte segundo a sua
capacidade para exibir criatividade. (A criatividade é exigida e admirada em inúmeras outras
áreas da vida além da arte. Admiramos soluções criativas para problemas de medicina dentária
e canalização bem como nas artes. A procura persistente da criatividade mostra-se na relutância
que os autores cuidadosos têm em usar a mesma palavra pela segunda vez numa frase quando
dispõem de sinónimas; o dicionário de sinónimos não existe tanto para uma maior precisão na
escrita como para o prazer da variedade criativa.)

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5. Crítica.

Onde quer que se encontre formas artísticas, estas existem juntamente com algum género de
linguagem crítica avaliativa ou apreciativa, simples ou, mais provavelmente, elaborada. Isto inclui
o vocabulário técnico dos produtores de arte, o discurso público dos críticos profissionais, e a
conversa avaliativa do público. A crítica profissional, inclusive a erudição académica aplicada às
artes com fim avaliativo, é ela própria uma execução e está sujeita à avaliação pelo seu público
mais vasto; os críticos criticam-se frequentemente uns aos outros. Há uma grande variação entre
culturas e no interior destas, no que respeita à complexidade da crítica. Os antropólogos
comentaram repetidamente o seu desenvolvimento rudimentar, ou o que parece a quase
inexistência, em pequenas sociedades que não têm escrita, mesmo as que produzem arte
complexa. É geralmente muito mais elaborado no discurso sobre arte da história europeia e da
literatura oriental. (A crítica obviamente existe em muitas esferas da vida não estética, mas com
a seguinte condição: o género de crítica análogo à crítica da arte aplica-se apenas a esforços em
que aquilo que potencialmente se alcança é complexo e sem limites definidos. Em geral não se
aplica a crítica a desempenhos na corrida de cem metros em velocidade: quem tem o melhor
tempo vence, não importa quão deselegantemente. É só onde os próprios critérios de sucesso
são complexos — na política ou na religião, por exemplo — que o discurso crítico se torna
estruturalmente semelhante à crítica de arte.)

6. Representação.

Em graus de naturalismo amplamente variáveis, os objectos artísticos, incluindo esculturas,


pinturas, e narrativas orais e escritas, e por vezes mesmo a música, representam ou imitam
experiências reais e imaginárias do mundo. Como observou originalmente Aristóteles, os seres
humanos têm um prazer irredutível na representação: uma pintura realista das dobras num
vestido de cetim vermelho, um modelo detalhado de uma máquina a vapor, ou os minúsculos
pratos, prataria, taças, e tartes de cereja com crosta cruzada sobre a mesa da sala de jantar de
uma casa de bonecas. Contudo, podemos também apreciar a representação por duas outras
razões: pode dar-nos prazer o quanto uma representação foi bem conseguida, e pode dar-nos
prazer o objecto ou situação representada, como uma bela paisagem figurada num calendário. A

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primeira tem mais a ver com a aptidão do que com a representação em si; a segunda é redutível
ao prazer que se tem no objecto, mais do que na representação em si. O deleite na imitação e
representação em qualquer meio, inclusive palavras, pode envolver o impacto combinado de
todos os três prazeres. (Desenhos técnicos, ilustrações de jornal, fotografias de passaporte e
mapas rodoviários são igualmente imitações ou representações. A importância da representação
estende-se a todas as áreas da vida.)

7. Enfoque “especial”.

As obras de arte e as execuções artísticas tendem a ser destacadas da vida quotidiana,


tornando-se um enfoque da experiência separado e dramático. Em todas as culturas conhecidas,
a arte envolve aquilo a que Ellen Dissanayake chama “tornar especial”. 5 Um palco com cortinas
douradas, um plinto, luzes de palco, molduras de fotografia ornamentadas, expositores
iluminados, sobrecapas e tipografia, aspectos cerimoniais de concertos e peças públicos, as
roupas caras que um dado público usa, a gravata preta do intérprete, a presença do Czar no seu
camarote real, inclusive o preço elevado dos bilhetes: estes e inúmeros outros factores podem
contribuir para um sentido de que a obra de arte, ou evento artístico, é um objecto de atenção
singular, a ser apreciado como algo exterior ao curso mundano da experiência e actividade. O
enquadramento e a apresentação, contudo, não são os únicos factores que produzem um
sentido do especial: está na natureza da própria arte exigir uma atenção particular. Embora
algumas obras de valor artístico — por exemplo, papel de parede ou música — possam ser
usadas como pano de fundo, todas as culturas conhecem e apreciam arte especial, “enfatizada”.
(Também se encontra o enfoque especial e um sentido do momentoso nos rituais religiosos, na
pompa das cerimónias reais, nos discursos e comícios políticos, na publicidade e nos eventos
desportivos. Qualquer episódio isolável, artístico ou não, do qual se pode afirmar que tem um
elemento “teatral” reconhecível partilha algo em comum, contudo, com quase toda a arte. Isto
aplicar-se-ia a experiências tão díspares como tomadas de posse presidenciais, finais de
campeonatos, viagens na montanha-russa.)

8. Individualidade expressiva.

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O potencial para exprimir a personalidade individual encontra-se em geral latente nas práticas
artísticas, independentemente de ser ou não plenamente conseguido. Quando uma actividade
produtiva tem um resultado definido, como na contabilidade ou na reparação de dentes, não há
grande oportunidade para a expressão individual nem tal é exigido. Quando aquilo que conta
como consecução numa actividade produtiva é vago e sem limites definidos, como nas artes, a
exigência de individualidade expressiva parece surgir inevitavelmente. Mesmo em culturas que
produzem aquilo que aos não autóctones podem parecer artes menos personalizadas, a
individualidade, por contraste com a execução competente, pode ser foco de atenção e
avaliação. A afirmação de que a individualidade artística é uma construção ocidental que não se
encontra em culturas não ocidentais e tribais foi amplamente aceite e é seguramente falsa. Na
Nova Guiné, por exemplo, os entalhes tradicionais não eram assinados. Isto dificilmente
surpreende numa cultura de pequenas povoações, sem escrita, em que as interacções sociais
se fazem em grande medida cara-a-cara: todos sabem quem são os entalhadores mais
estimados e talentosos e reconhecem as suas obras sem marcas de autoria. O talento individual
e a personalidade expressiva são respeitados na Nova Guiné, como em toda a parte. (Qualquer
actividade comum com uma componente criativa — o discurso quotidiano, o estilo de
conferenciar, a hospitalidade caseira, preparar o boletim informativo da empresa — abre a
possibilidade da individualidade expressiva. O interesse geral pela individualidade na vida
quotidiana parece ter menos a ver com a contemplação da expressão do que com o
conhecimento da qualidade mental que produziu a expressão.)

9. Saturação emocional.

Em graus variáveis, a experiência das obras de arte está permeada de emoção. A emoção na
arte divide-se grosso modo em dois géneros, fundidos (ou confundidos) na experiência mas
analiticamente distintos. Primeiro estão as emoções provocadas ou incitadas pelo conteúdo
representado da arte — o pathos da cena representada numa pintura, uma sequência cómica
numa peça, uma visão de morte num poema. Estas são emoções normais da vida, e como tal
são objecto de investigação psicológica transcultural fora da estética (uma taxonomia

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presentemente em uso na psicologia empírica nomeia sete tipos genéricos de emoção: medo,
alegria, tristeza, ira, repugnância, desprezo e surpresa). 6 Há um segundo sentido alternativo,
contudo, em que se encontra as emoções na arte: as obras de arte podem ser permeadas por
um aroma ou tom emocional distinto que difere das emoções causadas pelo conteúdo
representado. Este segundo género de emoção corporizada ou expressa está ligado ao primeiro
mas não é necessariamente regido por este. É o tom emocional que podemos sentir numa
história de Tolstoi ou numa sinfonia de Brahms. Não é genérica, não é um tipo de emoção, mas
normalmente descrita como exclusiva da obra — o contorno emocional da obra, a sua
perspectiva emocional, para citar duas metáforas comuns. (Muitas experiências de vida comuns,
não artísticas — apaixonar-se, observar uma criança dar os primeiros passos, assistir a um
funeral, ver um atleta quebrar um recorde mundial, remar com um amigo íntimo, observar a
grandiosidade da natureza — também estão imbuídas de emoção.)

10. Desafio intelectual.

As obras de arte tendem a ser concebidas para utilizar uma diversidade combinada de aptidões
perceptivas e intelectuais humanas em larga escala; na verdade, as melhores obras levam-nas
para lá dos limites comuns. O pleno exercício das aptidões mentais é em si uma fonte de prazer
estético. Isto inclui debater-se com um enredo complexo, reunir indícios para reconhecer um
problema ou solução antes que um personagem na história os reconheça, equilibrando e
combinando elementos ilustrativos e formais numa pintura complexa, seguir as transformações
de uma melodia inicial recapitulada no fim da peça musical. O prazer de lidar com desafios
intelectuais é mais óbvio na arte imensamente complexa, como na experiência de Guerra e Paz,
de Leão Tolstoi, ou o Anel, de Wagner. Mas mesmo obras que são simples num nível, como os
readymades de Duchamp, podem recusar uma explicação simples e dar prazer seguindo-se as
suas complexas dimensões históricas ou interpretativas. (Palavras cruzadas, jogos como o
xadrez ou o Trivial Pursuit, cozinhar a partir de receitas complicadas, reparações caseiras,
concursos televisivos de pergunta e resposta, videojogos, ou mesmo calcular reembolsos fiscais,
podem proporcionar desafios de exercício e proficiência que resultam em prazer.)

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11. Tradições e instituições artísticas.

Os objectos e execuções, tanto nas culturas orais de pequena dimensão como nas civilizações
que têm escrita, são criadas e até certo ponto tornam-se importantes pelo seu lugar na história e
tradições da sua arte. Como argumentou Jerrold Levinson, as obras de arte adquirem a sua
identidade ao instanciarem modos historicamente reconhecidos de ser arte — a obra situa-se
numa sequência de predecessores históricos. 7 Sobrepondo-se a esta noção estão perspectivas
anteriores, defendidas por Arthur Danto, Terry Diffey, e George Dickie, a favor da ideia de que as
obras de arte ganham significado ao serem produzidas num mundo da arte, naquilo que
essencialmente são instituições artísticas socialmente construídas. Os defensores de uma teoria
institucional tendem a concentrar-se em readymades e arte conceptual porque o interesse de
tais obras é quase esgotado pela sua importância na situação histórica da sua produção. 8 Essas
obras contrastam com obras canónicas como a nona sinfonia de Beethoven, que apesar de
aberta a uma ampla análise histórica e institucional, consegue atrair a si um enorme e
entusiástico público de ouvintes que pouco ou nada sabem do seu contexto institucional. Por
outro lado, é argumentável que mesmo uma apreciação mínima da Fonte, de Duchamp, exige
algum conhecimento da história da arte, ou pelo menos do contexto artístico contemporâneo.
(Praticamente todas as actividades sociais organizadas — medicina, guerra, educação, política,
tecnologias, e ciências — são erigidas tendo como pano de fundo tradições históricas e
institucionais, costumes e exigências. A teoria institucional, tal como é defendida na estética
moderna, pode ser aplicada a qualquer actividade humana.)

12. Experiência imaginativa.

Por fim, e talvez seja a mais importante de todas as características nesta lista, os objectos de
arte proporcionam essencialmente uma experiência imaginativa tanto para quem os produz
como para o público. Um entalhe em mármore pode representar realistamente um animal, mas
uma obra de arte estatuária torna-se um objecto imaginativo. O mesmo se pode afirmar de
qualquer história bem narrada, seja uma história mitológica ou pessoal. A dança com trajes junto
à luz da fogueira, com a sua profunda unidade de propósito entre os dançarinos, tem um
elemento imaginativo bastante arredado do exercício colectivo dos operários fabris. Isto é o que

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Kant queria dizer ao insistir que uma obra de arte é uma “apresentação” que se oferece a uma
imaginação que a aprecia independentemente da existência de um objecto representado: para
Kant, as obras de arte são objectos imaginativos sujeitos à contemplação desinteressada. Deste
modo, toda a arte ocorre num mundo de faz-de-conta. Isto aplica-se tanto às artes abstractas,
não imitativas, como às artes representacionais. A experiência artística tem lugar no teatro da
imaginação. (A nível mundano, a imaginação a resolver problemas, fazer planos, formular
hipóteses, inferir os estados mentais de outros, ou no mero sonhar acordado é praticamente co-
extensional com a vida consciente humana normal. Tentar compreender como era a vida na
antiga Roma é um acto imaginativo, mas também o é relembrar que deixei as chaves do carro na
cozinha. Todavia, a experiência da arte é notavelmente marcada pela maneira como separa a
imaginação das preocupações práticas, libertando-a, como afirmou Kant, das restrições da lógica
e da compreensão racional.)

III

As características nesta lista estão subjacentes, individualmente e com maior frequência


conjuntamente, em respostas à questão de, confrontados com um objecto, execução ou
actividade que parecem arte, termos ou não justificação para lhe chamar “arte”. Como critérios
de reconhecimento, identificam portanto as “características de superfície” mais comuns e
facilmente captáveis da arte, as suas características tradicionais, costumeiras ou pré-teóricas;
não estão incluídos elementos de análise técnica que com maior probabilidade serão usados por
críticos e teorizadores. Neste aspecto, uma analogia química com a lista seria a enumeração das
características definidoras de um líquido (incluindo características que ajudam em casos de
fronteira), em vez das características definidoras do metanol (para o que é difícil imaginar casos
de fronteira, visto que são normalmente excluídos pela própria definição, CH 3OH). Por exemplo,
a distinção entre forma e conteúdo foi produtivamente usada para analisar as artes desde os
gregos (embora, como sabia Aristóteles, a distinção seja igualmente útil para analisar tijolos). Por
muito comum que tal análise seja na crítica e em contextos teóricos acerca da arte, a distinção
não serve normalmente para responder à questão de um dado objecto dúbio ser ou não arte. A
pergunta “Será arte?” normalmente evoca pensamentos como “Mostra aptidão? Exprime
emoção? Dá prazer ouvir?” A pergunta “Tem forma e conteúdo?” não é normalmente uma das
primeiras que se faz para responder à questão de algo ser ou não arte. Podia-se defender algo
semelhante a respeito da autenticidade: embora o conceito de autenticidade seja central para

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uma plena compreensão da arte, e tenha vindo a confundir durante muito tempo filósofos,
historiadores de arte, coleccionadores, e advogados, a questão de algo ter ou não autenticidade
não é a primeira a responder quando queremos saber se algo é uma obra de arte. A
autenticidade é uma questão que surge na arte só depois de um objecto ou execução terem sido
identificados como putativamente artísticos no tipo ou no propósito.

Mais uma vez, pode suceder um dia os neurofisiólogos descobrirem um novo método
técnico de identificar as experiências artísticas (através de ressonâncias magnéticas ou algo
semelhante) ou os físicos inventarem um tipo de análise molecular que lhes permita distinguir
entre, digamos, obras de arte e artigos sanitários ou partes de automóveis. Uma especulação
absurda, talvez, mas note-se que se a ciência alguma vez alcançasse tal método para identificar
exemplos de arte ou de experiência artística, estará na condição de fazer corresponder as suas
propriedades cientificamente determinadas com uma descrição da arte compreendida em termos
dos critérios de reconhecimento na minha lista ou numa lista semelhante. Os critérios de
reconhecimento dizem-nos o que já sabemos acerca da arte. Podem ser ajustados nas margens,
subtraindo ou adicionando itens à lista, mas permanecerão em grande medida intactos no futuro
previsível, regendo o que conta como investigação das artes por neurofisiólogos, filósofos,
antropólogos, críticos ou historiadores.

É argumentável que outras características não técnicas podiam ter sido incluídas nesta
lista. Na sua versão da lista, H. Gene Blocker, escrevendo sobre as artes tribais, considera
importante os artistas serem “percepcionados não só como profissionais mas como inovadores,
excêntricos, ou um tanto socialmente alienados.” 9 Embora isto seja frequentemente verdade
(Blocker observou-o em África e eu observei o mesmo na Nova Guiné) há no mundo demasiados
artistas inovadores mas que não são socialmente alienados, bem como demasiados excêntricos
que não são artistas, para que a característica de Blocker seja um modo útil de reconhecer a
arte. O mesmo se podia dizer acerca de ser raro ou oneroso. Muitas obras de arte são raras,
feitas de materiais onerosos, ou incorporam enormes custos de mão-de-obra, e isto é muitas
vezes uma componente do seu interesse para o público. Muitas, todavia, nada têm destas
características. A onerosidade é relevante para a arte, mas não é criterial. Embora ser oneroso e
ter sido produzido por um excêntrico sejam frequentemente características da arte, nem uma
nem outra são normalmente um meio de a reconhecermos.

A minha lista exclui também características de fundo que são pressupostas em


praticamente todo o discurso acerca da arte. Estas incluem as condições necessárias de a) ser

14
um artefacto e b) ser feito ou executado para um público. A artefactualidade foi tão
exaustivamente abordada na bibliografia que não nos ocupará aqui: as obras de arte são
objectos intencionais, mesmo que tenham um número indeterminado de significados não
intencionados. Mesmo found objects — pedaços de madeira à deriva e coisas semelhantes —
são transformados em objectos intencionais no processo de selecção e exibição. Ser feito para
um público é um refinamento da artefactualidade e de importância substancial na compreensão
da arte, mas é demasiado ténue para ser um complemento útil à lista, na medida em que
também se aplica a inúmeros outros géneros de realidades humanas fora das artes. (Mais uma
vez, o habitual caso limite do pedaço de madeira à deriva qualifica-se obviamente como arte,
visto que o objecto é colocado diante de um público.) 10

Foram intencionalmente omitidas da lista duas características complementares que alguns


poderão insistir serem importantes para compreender a arte: ter propriedades estéticas e
exprimir identidade cultural. Afirmar que a arte, pela sua natureza, tem propriedades estéticas
levou os teorizadores a levantar questões importantes. Na história da estética moderna, de Kant
em diante, as propriedades estéticas vieram a ser erroneamente consideradas uma classe
particular de propriedades sensuais, as cores de uma pintura por contraste com o assunto da
mesma. Este género de distinção encorajou alguns filósofos a defender, por exemplo, que as
falsificações de arte excelentes exibirão as mesmas propriedades estéticas que as obras
originais, não falsificadas, ainda que careçam de originalidade, que segundo este argumento não
é uma propriedade estética. Rejeito esta perspectiva, e com ela a noção de que ter propriedades
estéticas é algo que se possa acrescentar à lista. Pelo contrário, é a combinação dos outros
itens na lista — virtuosismo, novidade, representação imaginativa, sentimento emocional, desafio
intelectual, e aí por diante — que, combinados na experiência de uma obra de arte, consiste
precisamente nas propriedades estéticas da obra, normalmente proporcionando o prazer
descrito como item 1. Na ópera, por exemplo, as propriedades estéticas não são objecto de
experiência paralelamente à aptidão vocal, cenários impressionantes, e direcção orquestral
eficaz. Estes aspectos de que se tem experiência conjuntamente na totalidade unificada da
execução de uma ópera são precisamente as propriedades estéticas da ópera.

A identidade cultural, outro potencial item para a lista, tem sido erroneamente exagerado
pelos académicos, a meu ver, enquanto elemento determinante da arte. No sentido em que toda
a arte surge numa cultura e é portanto um produto cultural, a afirmação é trivialmente verdadeira.
Normalmente, todavia, os defensores desta posição querem extrair dela a ideia de que os

15
artistas pretendem no seu trabalho, e que o público espera da sua experiência, afirmar a
identidade cultural. Isto é tão verdade como afirmar, por exemplo, que os artistas pretendem ser
pagos pelo seu trabalho, e que o público espera de algum modo pagar-lhes: por vezes é
verdade, por vezes não. Sucede que o uso intencional da arte para afirmar a identidade cultural
tende a ser característico da arte apenas em situações de oposição cultural e dúvida. É
improvável que Cervantes, Rembrandt ou Mozart encarassem a afirmação da cultura espanhola,
holandesa ou austríaca como uma função principal do seu trabalho (e isto apesar de cada um
ser, respectivamente, um orgulhoso espanhol, holandês, e austríaco). O caso de Wagner, que se
afirmou abertamente contra a música francesa e italiana, é diferente; ele via-se conscientemente
como alguém que afirma uma identidade teutónica. É difícil ver a música indiana na sua terra
natal como algo dirigido à afirmação da identidade indiana; vem a servir essa função quando os
indianos emigram e se juntam a associações culturais indianas em Estugarda ou Chicago. As
formas artísticas locais oferecidas ao seu público natural, local, raramente suscitam
preocupações acerca de afirmar a identidade cultural; tal arte proporciona apenas beleza e
entretenimento ao seu público mais próximo, natural. Em retrospectiva, e séculos mais tarde,
podemos vir a considerar que Shakespeare afirma valores isabelinos, mas trata-se de uma
construção que lhe impomos. A sua intenção era criar um entretenimento teatral adequado ao
público do Globe. Afirmar a identidade cultural, por muito importante que possa ser, não é
criterial para reconhecer exemplos de arte.

IV

Uma abordagem à compreensão da arte baseada em critérios de reconhecimento não nos


diz de antemão quantos dos critérios têm de estar presentes para justificar que se chame “arte” a
um objecto. Não obstante, tal lista, na minha perspectiva, apresenta uma definição de arte. Ao
afirmar que a minha lista equivale a uma definição, divirjo de Berys Gaut, que, além de sugerir a
sua própria lista, elaborou uma defesa filosófica de listas deste género. Tomando de empréstimo
uma expressão de John Searle, que a usou noutro contexto, Gaut chama à listagem desses
critérios uma “teoria agregativa” da arte. Gaut insiste que a teoria agregativa da arte é, no seu
núcleo, anti-essencialista.11 “Uma abordagem anti-essencialista aplica-se a um conceito só se há
propriedades cuja instanciação por um objecto conta, por uma questão de necessidade
conceptual, para ser subsumido no conceito.” Sendo assim, então a minha lista de critérios de
reconhecimento não equivale a um conceito agregativo. A aptidão e o ser a imagem de algo

16
estão na minha lista, mas só por si — como no acto de um canalizador hábil que desentope uma
conduta, ou um instantâneo num passaporte que é uma fotografia — estes não contam no
sentido de tornar tais actos ou objectos obras de arte. Estas características não tiram força a
qualquer aplicação do conceito e, tomadas em conjunto com outros itens da lista , aumentam a
probabilidade de um objecto ser uma obra de arte. O anti-essencialismo da lista resulta, segundo
Gaut, do modo indefinido e aberto pelo qual as características na lista se podem combinar em
qualquer exemplo particular de arte. Se nos deparássemos com um objecto peculiar que fosse
arte e não satisfizesse qualquer dos nossos critérios, explica Gaut, a abertura do conceito
agregativo permite-nos simplesmente adicionar outra característica à lista. Mesmo que isto
demonstrasse a imperfeição de uma lista inicial, argumenta Gaut, preserva ainda a ideia de que
um conceito agregativo é apropriado para compreender o conceito de arte. Na minha
perspectiva, a abertura de Gaut a novos critérios é desnecessária: um objecto que não tivesse
uma só característica na lista não seria uma obra de arte, ao passo que um objecto que tivesse
todas as doze características certamente que o seria. Falar em acrescentar novos critérios para
acomodar novos géneros de arte parece-me um gesto intelectualmente aberto mas vazio, a
menos que se nos possa mostrar um exemplo concreto de um novo género de arte não
abrangido pela lista.

Stephen Davies criticou a afirmação de Gaut, de que os critérios listados são anti-
essencialistas, defendendo a noção de que os critérios listados ou agregados para a arte são na
verdade definições.12 Davies concede que o número de disjuntos na lista suficiente para algo ser
arte determinará um muito maior número de combinações potenciais: se, digamos, metade dos
doze podem fazer uma obra de arte, haverá um conjunto de todos os doze elementos, doze
conjuntos de onze, cento e trinta e dois conjuntos de dez elementos, e assim por diante até um
número muito vasto de possibilidades. Isto pode ser complicado, argumenta Davies, mas nada
há aqui que exclua uma lista de critérios de reconhecimento ou a formulação por Gaut de um
conceito agregativo como “uma definição complexa, disjuntiva, mas de resto ortodoxa.” Mil ou
mais modos de ser arte está ainda muito longe de um número infinito de modos de ser arte. “O
resultado será intricado, sem dúvida,” afirma Davies, “mas nem por isso deixa de ser uma
definição.” Na perspectiva de Davies, uma lista como estes critérios de reconhecimento capta
realmente “princípios unificadores”, e não é meramente “uma lista arbitrária de características
que se pode encontrar em qualquer obra de arte possível.” Tal abordagem merece ser levada a
sério “precisamente porque proporciona uma descrição plausível dos géneros de coisas que

17
podem fazer algo ser arte.” Uma abordagem como a de Gaut ou a minha, conclui Davies, “não
sustenta o anti-essencialismo em estética.”

Além disso, o tipo de essencialismo que sustenta é, como Gaut convenientemente mostra,
bastante útil para lidar com supostos casos de fronteira ou marginais de arte. Como indiquei na
secção I, o problema com muitas teorias clássicas da arte é começarem com um paradigma
particular (a tragédia grega, digamos, ou a música abstracta) e perdem gás à medida que se
afastam do paradigma para tipos de arte mais remotos. Em oposição a este fracasso persistente,
temos a teoria institucional da arte, concebida primariamente para lidar com casos difíceis ou
duvidosos. O seu sucesso em lidar com as fronteiras tem o preço da sua incapacidade de nos
dizer algo de interessante acerca do núcleo consensual da arte: a instituição ou mundo da arte
proclama simplesmente que um objecto em disputa está ou não incluído. Os critérios de
reconhecimento tornam a discussão dos casos de fronteira muito mais rica e gratificante. A
culinária, aponta Gaut, não é simplesmente incluída ou excluída, mas analisada nos termos da
lista. Usando a sua própria abordagem do conceito agregativo, Gaut afirma que enquanto a
presença de alguns itens na lista (aptidão e produção de prazer, por exemplo) nos inclinam a
incluir a culinária entre as artes, a ausência de outros (saturação emocional, desafio intelectual,
ou uma capacidade de representação) fazem-nos resistir à sua inclusão. “A dificuldade do caso,”
conclui Gaut, “é preservada.” Gaut tem toda a razão: não se trata de uma perda para a estética
mas de um ganho.13 Criticar a lista por não distinguir decisivamente todos os casos difíceis é
desejar que a estética não tenha de todo casos difíceis, marginais ou de fronteira. Dado que
nunca assim será, a melhor teoria estética é uma teoria que o reconhece.

Como comecei por indicar na própria lista, alguns dos critérios que contém são mais
centrais do que outros para uma definição de arte. Numa escala valorativa, por exemplo,
consideraria o item 5, a crítica, menos importante, pelo menos como critério de reconhecimento,
do que o item 2, a aptidão ou virtuosismo. Ao responder a Gaut, Thomas Adajian criticou a ideia
de que uma lista não tem modo de classificar ou avaliar internamente os seus membros. 14 Eu
acrescentaria que descobrir as diferenças de relevância que os itens têm sobre o carácter
artístico de qualquer objecto ou execução é exactamente o que a estética filosófica devia tentar
alcançar. Não vejo como a avaliação diferencial conte contra a noção geral de conjugar critérios
de reconhecimento. Na verdade, descobrir a classificação pode ser um exercício frutuoso para
melhorar a nossa compreensão da arte. Como exemplo de um caso marginal curiosamente
difícil, mencionado por Gaut e por estudantes e público de conferências ao longo dos anos,

18
refiro-me ao fenómeno do futebol europeu. Este desporto, particularmente em jogos de
campeonato, apresenta um espectáculo que pode incorporar grande aptidão, drama intenso, e
muita emoção e gozo para o público. É posteriormente sujeito a um discurso crítico. O futebol
parece já satisfazer os meus critérios para o item 1, prazer, item 2, aptidão, item 5, crítica, item 7,
enfoque especial, talvez o item 9, saturação emocional. Gaut, não obstante, afirma que os jogos
de futebol não são obras de arte ou execuções artísticas (o que não equivale a negar a arte de
alguns jogadores virtuosos ou das suas jogadas individuais). Concordando com ele, especulo
que a razão de muita gente resistir a chamar “obras de arte” aos jogos de futebol tem a ver com
a ausência daquilo que temos de ponderar como um dos itens mais importantes da lista: o item
12, experiência imaginativa. Para o adepto desportivo comum que torce pela equipa da casa,
quem efectivamente ganha o jogo, não na imaginação, mas na realidade, continua a ser a
questão dominante. Para o adepto, quem será o vencedor é a questão decisiva, geradora de
interesse. Ganhar e perder é a principal fonte de emoção, que não é expressa, como nas obras
artísticas, mas incitada nas multidões por um resultado desportivo no mundo real. Fossem os
adeptos do desporto autênticos estetas, segundo a minha especulação, pouco ou nada se
importariam com as pontuações e resultados, mas apenas desfrutariam os jogos em termos de
estilo e economia de movimento, aptidão e virtuosismo, e expressividade. No meu
discernimento, portanto, um jogo de futebol não é essencialmente (ou não suficientemente, em
todo o caso) uma “apresentação” kantiana, um evento faz-de-conta, oferecido à contemplação
imaginativa, mas, ao invés, um evento do mundo real, mais como uma eleição ou batalha. 15 O
facto de o futebol poder ter tanto em comum com a arte reconhecida e no entanto não ser um
exemplo dela é algo que a lista de critérios de reconhecimento nos pode ajudar a compreender.
A possibilidade de uma análise como esta é outra vantagem ainda da minha lista.

Ideias e objectos como “raiz quadrada” ou “neutrão” vieram a ser entendidos juntamente
com a emergência das teorias que lhes deram um lugar na compreensão. As artes, de maneiras
rudimentares e precisas, foram criadas e directamente fruídas muito antes de virem a ser objecto
de ruminação teórica. A arte não é uma área técnica regida e explicada por uma teoria, mas um
domínio rico, disperso e variegado de prática e experiência humana que existia antes dos
filósofos e teorizadores. É uma categoria natural, evoluída, o que significa que não devia
surpreender seja quem for o poder ter uma definição tão ampla e comparativamente aberta. A
este respeito, é como outros aspectos grandiosos, vagos, mas reais e persistentes da vida

19
humana, como a religião, a família, a linguagem, a amizade, ou a guerra. Sejam quais forem as
inflexões históricas e locais destes fenómenos humanos, têm suficiente em comum para serem
tratados como um género de perspectiva natural ou forma comportamental. Apesar de muitos
casos contestados e de fronteira, exemplos paradigmáticos são facilmente reconhecidos em
diversas culturas e ao longo de milénios. Quanto ao receio anti-essencialista de que uma
definição da arte em termos de critérios de reconhecimento possa restringir a própria imaginação
criativa que observamos e encorajamos nas artes, faz tanto sentido como a preocupação de que
uma definição de “livro” nos leve por derrapagem a censurar a literatura. As artes permanecem o
que são, e serão. É a estética que tem de aperfeiçoar a sua melodia. 16

Denis Dutton

Notas

1. Noël Carrol, “Identifying Art”, in Institutions of Art: Reconsiderations of George Dickie's


Philosophy, Robert J. Yanal (org.) (Pennsylvania State University Press, 1994), p. 15.
2. E. J. Bond, “The Essential Nature of Art”, American Philosophical Quarterly 12 (1975): 177-183;
publicado em resposta a Morris Weitz, este é um artigo pioneiro. Richard L. Anderson, Art in Primitive
Societies (Englewood Cliffs: Prentice-Hall, 1979) e Calliope's Sisters: A Comparative Study of Philosophies of
Art (Englewood Cliffs: Prentice-Hall, 1990); embora estes livros não apresentem uma lista explícita, reúnem
na sua maioria os itens incluídos aqui. Julius Moravcsik, “Why Philosophy of Art in a Cross-Cultural
Perspective?”, The Journal of Aesthetics and Art Criticism 51 (1993): 425-436. H. Gene Blocker, The
Aesthetics of Primitive Art (Lanham, MD: University Press of America, 1994). Berys Gaut, “ “Art” as a Cluster
Concept”, in Theories of Art Today, Noël Carrol (org.) (University of Wisconsin Press, 2000), pp. 25-44.
3. Denis Dutton, “But They Don't Have Our Concept of Art”, in Theories of Art Today, Noël Carrol
(org.) (University of Wisconsin Press, 2000), pp. 217-240; “Aesthetic Universals”, in The Routledge
Companion to Aesthetics, Berys Gaut e Dominic McIver-Lopes (orgs.) (Londres: Routledge, 2001), pp. 203-
214. Estas duas listas, algo diferentes, de critérios característicos para a arte em diversas culturas diferem da
minha lista presente, a qual foi agora explicitamente refinada para incluir apenas critérios de reconhecimento
para a arte.
4. David Novitz, “Art by Another Name”, The British Journal of Aesthetics, 38 (1998): 19-32.
5. Ellen Dissanayake, What is Art For? (University of Washington Press, 1988) e Homo Aestheticus
(Nova Iorque: Free Press, 1992).
6. Paul Ekman, Emotions Revealed (Nova Iorque: Henry Holt, 2003), Emotions Revealed (Nova
Iorque: Henry Holt, 2003), é uma boa introdução às emoções “genéricas”. A distinção que faço aqui é talvez
paralela à distinção em sânscrito entre bhava, as emoções básicas da vida, e rasa, as emoções peculiares,
algo como o sabor único, expressas em obras de arte.
20
7. Jerrold Levinson, “Defining Art Historically”, no seu Music, Art and Metaphysics (Cornell
University Press, 1990).
8. Arthur Danto, “The Artworld”, Journal of Philosophy 61 (1964): 571-584, e muitos livros e artigos
que se seguiram; Terry Diffey, “The Republic of Art”, no seu The Republic of Art and Other Essays (Nova
Iorque: Peter Lang, 1991); George Dickie, Art and the Aesthetic, an Institutional Analysis (Cornell University
Press, 1974).
9. Blocker, The Aesthetics of Primitive Art, p. 148.
10. Brian Boyd instou-me numa comunicação pessoal a expandir a minha lista de critérios de
reconhecimento para incluir itens separados para a) artefactualidade e b) ter sido feito para um público.
Resisto pelas razões acima, mas a perspectiva dele poderá ser a mais sensata.
11. Berys Gaut, “The Cluster Account of Art Defended”, The British Journal of Aesthetics 45 (2005):
273-288. John Searle deu origem à noção de descrições agregativas no seu artigo de 1958, “Proper Names”,
Mind 67 (1958): 166-173.
12. Stephen Davies, “The Cluster Theory of Art”, The British Journal of Aesthetics 44 (2004): 297-
300. Todas as citações neste parágrafo são desta fonte.
13. Govt, “The Cluster Account of Art Defended”, p. 280.
14. Thomas Adajian, “On the Cluster Account of Art”, The British Journal of Aesthetics 43 (2003):
379-385.
15. Ao instar-me a incluir a artefactualidade e o público na lista, Brian Boyd chamou a atenção para
a utilidade destes critérios no exemplo do futebol: “Quem vê uma obra de arte como um objecto intencional (e
algo feito para um público) tem um critério bastante bom para excluir o jogo de futebol: os dois lados não
cooperam para alcançar algo juntos que irá emocionar um público (isso seria uma exibição dos Harlem
Globetrotters, e não um jogo efectivo) mas competem: os diversos “performers” têm propósitos contrários, ao
passo que mesmo em obras de arte com interesses competitivos, como um estúdio cinematográfico, todos os
envolvidos se esforçam por criar a obra de arte, embora talvez de acordo com valores diferentes; ou um
grupo de jazz, onde todos reagem espontaneamente ao tocar uns dos outros mas em prol da obra e do
público, não em prol de uma vitória e o apoio de parte do público.”
16. Brinquei com ideias aqui apresentadas durante anos até uma apresentação por Julius Moravcsik
na reunião anual da American Society for Aesthetics em 1992 me ter finalmente convencido de que a arte
como fenómeno natural podia ser compreendida apenas em termos de uma lista de critérios. A sua versão
publicada dessa palestra (ver nota 2) é ainda o lugar para começar a meditar nestas questões. Também
beneficiei de textos por Berys Gaut e Stephen Davies sobre o assunto. Audiências animadas na Ludwig-
Maximilians-Universität em Munique, na Universidade de Iena, e na Universidade de Canterbury
aprofundaram a minha compreensão destas questões. Brian Boyd ofereceu generosamente comentários
soberbos e, como sempre, Margit Dutton proporcionou-me ideias sagazes que não podia encontrar em
qualquer outro lugar.

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