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Uma Definição Naturalista Da Arte
Uma Definição Naturalista Da Arte
As distorções causadas pelos preconceitos da cultura local combinam-se com outro factor.
Os filósofos da arte têm uma tendência natural para começar a teorizar a partir das suas próprias
predilecções estéticas, das suas respostas estéticas mais perspicazes, por muito estranhas ou
limitadas que possam ser. Immanuel Kant tinha um interesse marcado pela poesia, mas o seu
descartar da função da cor na pintura é tão excêntrico que sugere mesmo uma possível
deficiência visual. Bell, que reconhecia sem peias a sua incapacidade para apreciar música,
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concentrou a sua atenção na pintura, alargando falaciosamente as suas perspectivas a outras
artes. Mais frequentemente, os pensadores que amam a beleza natural, ou que têm um
fraquinho por uma cultura exótica ou género em particular, tendem a generalizar a partir dos
sentimentos e experiência individuais. Este elemento pessoal pode ser teoricamente
enriquecedor (Bell acerca do expressionismo abstracto) ou ter resultados quase absurdos (Kant
acerca da pintura em geral). Devia porém instigar o cepticismo em todos nós. As perspectivas
gerais extrapoladas do entusiasmo pessoal limitado podem persuadir-nos enquanto nos
concentrarmos nos exemplos fornecidos pelo teorizador; frequentemente não funcionam quando
aplicadas a uma maior diversidade de artes.
A estética no início do século XXI encontra-se numa situação paradoxal, para não dizer
bizarra. Por um lado, os académicos e os estetas têm acesso — em bibliotecas, em museus, na
Internet, em primeira mão por meio de viagens — a uma perspectiva mais ampla do que alguma
vez tiveram sobre a criação artística, em diversas culturas e ao longo da história. Podemos
estudar e apreciar esculturas e pinturas do paleolítico, música de toda a parte, artes populares e
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rituais de todo o mundo, literatura, artes de todas as nações, do passado e do presente. Perante
esta vasta disponibilidade, como é estranho que a especulação filosófica sobre a arte tenha
permanecido inclinada para a análise interminável de um conjunto infinitesimalmente pequeno de
casos, entre os quais se destacam os readymades de Duchamp ou objectos como as fotografias
apropriadas de Sherri Levine e a 4'33'' de John Cage. Subjacente a esta orientação filosófica
está um pressuposto escondido, nunca articulado: supõe-se que o mundo da arte será
finalmente compreendido quando formos capazes de explicar os exemplos mais marginais ou
difíceis da arte. A Fonte e Antecipação de um Braço Partido, de Duchamp, são à primeira vista
os casos mais difíceis com os quais a teoria da arte tem de lidar, o que explica a dimensão da
bibliografia teórica que estas obras e os seus irmãos readymade geraram. A própria extensão
desta bibliografia aponta também para uma esperança de que sermos capazes de explicar os
exemplos mais extravagantes de arte nos ajudará a alcançar a melhor explicação geral de toda a
arte.
Esta esperança conduziu a estética na direcção errada. Os juristas sabem que os casos
difíceis dão má legislação. Se o leitor deseja compreender a natureza essencial do assassínio,
não tomará como ponto de partida uma discussão do suicídio assistido ou do aborto ou da pena
capital. O suicídio assistido pode ser ou não assassínio, mas determinar se tais casos em
disputa são ou não assassínio exige antes o esclarecimento acerca da natureza e da lógica dos
casos indisputáveis; passamos do centro incontroverso para os disputados territórios remotos. O
mesmo princípio se aplica na teoria estética. A obsessão de dar conta dos mais problemáticos
casos periféricos da arte, embora seja intelectualmente estimulante e um bom modo de os
professores de estética gerarem discussão, fez a estética ignorar o centro da arte e dos seus
valores. A filosofia da arte precisa de uma abordagem que comece por tratar a arte como um
campo de actividades, objectos, e experiência dados naturalmente na vida humana. Temos
primeiro de procurar demarcar um centro incontroverso que confere aos periféricos qualquer
interesse que estes possam ter. Considero que esta abordagem é “naturalista”, não no sentido
de ser impulsionada pela biologia (embora a biologia se mostre relevante), mas porque depende
de padrões de comportamento e discurso persistentes, identificados transculturalmente: fazer
obras de arte, ter experiência delas, e avaliá-las. Muitos dos modos como se discute a arte e se
tem experiência dela transpõem facilmente fronteiras culturais, e conseguem uma aceitação
global sem a ajuda dos académicos ou teorizadores. De Lascaux a Bollywood, artistas,
escritores, e músicos não raro têm pouca ou nenhuma dificuldade em conseguir a compreensão
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estética transcultural. É no centro natural onde essa compreensão existe que a teoria deve
começar.
II
Note-se que, dada existência de inúmeros casos marginais, por “arte” e “artes” refiro-me a
artefactos (esculturas, pinturas, e objectos decorados, tais como ferramentas ou o corpo
humano, e partituras e textos considerados como objectos) e execuções (danças, música, e a
composição e recitação de histórias). Quando falamos acerca de arte, concentramo-nos por
vezes em actos de criação, por vezes nos objectos criados, noutras ocasiões referimo-nos mais
à experiência que se tem destes objectos. Formular estas distinções é uma tarefa distinta. A lista
consiste portanto nas características indicadoras da arte considerada como uma categoria
universal, transcultural. Com isto não afirmo que qualquer item na minha lista pertence
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exclusivamente à arte ou à experiência que dela temos. Muitos destes aspectos da arte
coexistem com experiências e aptidões não artísticas; relembramos isto aqui entre parêntesis, na
conclusão de cada entrada.
1. Prazer directo
O objecto artístico — narrativa, história, artefacto feito à mão, ou execução visual e auditiva — é
valorizado em si como fonte de prazer experiencial imediato, e não primariamente pela sua
utilidade na produção de outra coisa que é ou útil ou aprazível. Quando a analisamos, vemos
que esta qualidade do prazer da beleza, ou “prazer estético”, como é tão frequentemente
designada, resulta de fontes muito diferentes. Uma cor pura, intensamente saturada, pode ser
aprazível à vista; compreender a detalhada coerência de uma história intricadamente construída
pode dar prazer (semelhante ao prazer de um quebra-cabeças de palavras cruzadas perspicaz
ou um problema de xadrez bem formado); a composição de uma pintura paisagística pode dar
prazer, mas também as montanhas distantes, brumosas e azuladas que ela representa nos
podem causar prazer independentemente da forma e da técnica; as modulações harmónicas
surpreendentes e a aceleração rítmica podem dar prazer na música, e por aí em diante. Aqui é
da maior importância o facto de a fruição da beleza artística não raro resultar de prazeres
multifacetados mas distinguíveis, de que se tem experiência ou em simultâneo ou em estreita
proximidade entre si. Estas experiências estratificadas podem ser maximamente eficazes
quando prazeres distinguíveis se relacionam coerentemente entre si, ou interagem — como, de
um modo aproximado, na forma estrutural, cores, e tema de uma pintura, ou na música, drama,
canto, execução dirigida, e cenários de uma ópera. Esta ideia é a conhecida unidade orgânica
das obras de arte, a sua “unidade na diversidade”. Diz-se frequentemente que tal fruição estética
tem “fim em si mesma”. (Chama-se “prazer estético” a este prazer quando resulta da experiência
da arte, mas é bem conhecida em muitas outras áreas da vida, com o prazer do desporto e do
jogo, de tomar uma bebida fresca num dia de calor, ou de observar as cotovias planando ou
nuvens de tempestade tornam-se mais espessas. Os seres humanos têm experiência de uma
lista indefinidamente longa de prazeres directos não artísticos, experiências fruídas em função
de nada além de si próprias. Quaisquer prazeres semelhantes podem, como os que estão
notoriamente associados ao sexo, ou a alimentos doces e ricos em gorduras, ter causas antigas
evoluídas de que não estamos cientes na experiência imediata.)
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2. Aptidão ou virtuosismo.
3. Estilo.
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artes históricas que não permitem qualquer afastamento criativo do estilo estabelecido. Na
verdade, se nenhuma variação fosse permitida, o estatuto de uma actividade estilizada seria
posto em causa como arte; isto não se aplica apenas às tradições europeias. Muitos autores, em
particular nas ciências sociais, trataram o estilo como uma prisão metafórica dos artistas,
determinando limites de forma e conteúdo. Os estilos, todavia, ao proporcionarem aos artistas e
aos seus públicos um pano de fundo familiar, permitem o exercício da liberdade artística,
libertando tanto quanto restringem. Os estilos podem oprimir os artistas; mais frequentemente,
libertam-nos. (Quase toda a actividade humana importante acima dos reflexos involuntários é
realizada num enquadramento estilístico: os gestos, o uso da linguagem, e as cortesias sociais,
como as normas do riso ou da distância corporal em encontros pessoais. O estilo e a cultura são
praticamente coincidentes.)
4. Novidade e criatividade.
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5. Crítica.
Onde quer que se encontre formas artísticas, estas existem juntamente com algum género de
linguagem crítica avaliativa ou apreciativa, simples ou, mais provavelmente, elaborada. Isto inclui
o vocabulário técnico dos produtores de arte, o discurso público dos críticos profissionais, e a
conversa avaliativa do público. A crítica profissional, inclusive a erudição académica aplicada às
artes com fim avaliativo, é ela própria uma execução e está sujeita à avaliação pelo seu público
mais vasto; os críticos criticam-se frequentemente uns aos outros. Há uma grande variação entre
culturas e no interior destas, no que respeita à complexidade da crítica. Os antropólogos
comentaram repetidamente o seu desenvolvimento rudimentar, ou o que parece a quase
inexistência, em pequenas sociedades que não têm escrita, mesmo as que produzem arte
complexa. É geralmente muito mais elaborado no discurso sobre arte da história europeia e da
literatura oriental. (A crítica obviamente existe em muitas esferas da vida não estética, mas com
a seguinte condição: o género de crítica análogo à crítica da arte aplica-se apenas a esforços em
que aquilo que potencialmente se alcança é complexo e sem limites definidos. Em geral não se
aplica a crítica a desempenhos na corrida de cem metros em velocidade: quem tem o melhor
tempo vence, não importa quão deselegantemente. É só onde os próprios critérios de sucesso
são complexos — na política ou na religião, por exemplo — que o discurso crítico se torna
estruturalmente semelhante à crítica de arte.)
6. Representação.
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primeira tem mais a ver com a aptidão do que com a representação em si; a segunda é redutível
ao prazer que se tem no objecto, mais do que na representação em si. O deleite na imitação e
representação em qualquer meio, inclusive palavras, pode envolver o impacto combinado de
todos os três prazeres. (Desenhos técnicos, ilustrações de jornal, fotografias de passaporte e
mapas rodoviários são igualmente imitações ou representações. A importância da representação
estende-se a todas as áreas da vida.)
7. Enfoque “especial”.
8. Individualidade expressiva.
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O potencial para exprimir a personalidade individual encontra-se em geral latente nas práticas
artísticas, independentemente de ser ou não plenamente conseguido. Quando uma actividade
produtiva tem um resultado definido, como na contabilidade ou na reparação de dentes, não há
grande oportunidade para a expressão individual nem tal é exigido. Quando aquilo que conta
como consecução numa actividade produtiva é vago e sem limites definidos, como nas artes, a
exigência de individualidade expressiva parece surgir inevitavelmente. Mesmo em culturas que
produzem aquilo que aos não autóctones podem parecer artes menos personalizadas, a
individualidade, por contraste com a execução competente, pode ser foco de atenção e
avaliação. A afirmação de que a individualidade artística é uma construção ocidental que não se
encontra em culturas não ocidentais e tribais foi amplamente aceite e é seguramente falsa. Na
Nova Guiné, por exemplo, os entalhes tradicionais não eram assinados. Isto dificilmente
surpreende numa cultura de pequenas povoações, sem escrita, em que as interacções sociais
se fazem em grande medida cara-a-cara: todos sabem quem são os entalhadores mais
estimados e talentosos e reconhecem as suas obras sem marcas de autoria. O talento individual
e a personalidade expressiva são respeitados na Nova Guiné, como em toda a parte. (Qualquer
actividade comum com uma componente criativa — o discurso quotidiano, o estilo de
conferenciar, a hospitalidade caseira, preparar o boletim informativo da empresa — abre a
possibilidade da individualidade expressiva. O interesse geral pela individualidade na vida
quotidiana parece ter menos a ver com a contemplação da expressão do que com o
conhecimento da qualidade mental que produziu a expressão.)
9. Saturação emocional.
Em graus variáveis, a experiência das obras de arte está permeada de emoção. A emoção na
arte divide-se grosso modo em dois géneros, fundidos (ou confundidos) na experiência mas
analiticamente distintos. Primeiro estão as emoções provocadas ou incitadas pelo conteúdo
representado da arte — o pathos da cena representada numa pintura, uma sequência cómica
numa peça, uma visão de morte num poema. Estas são emoções normais da vida, e como tal
são objecto de investigação psicológica transcultural fora da estética (uma taxonomia
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presentemente em uso na psicologia empírica nomeia sete tipos genéricos de emoção: medo,
alegria, tristeza, ira, repugnância, desprezo e surpresa). 6 Há um segundo sentido alternativo,
contudo, em que se encontra as emoções na arte: as obras de arte podem ser permeadas por
um aroma ou tom emocional distinto que difere das emoções causadas pelo conteúdo
representado. Este segundo género de emoção corporizada ou expressa está ligado ao primeiro
mas não é necessariamente regido por este. É o tom emocional que podemos sentir numa
história de Tolstoi ou numa sinfonia de Brahms. Não é genérica, não é um tipo de emoção, mas
normalmente descrita como exclusiva da obra — o contorno emocional da obra, a sua
perspectiva emocional, para citar duas metáforas comuns. (Muitas experiências de vida comuns,
não artísticas — apaixonar-se, observar uma criança dar os primeiros passos, assistir a um
funeral, ver um atleta quebrar um recorde mundial, remar com um amigo íntimo, observar a
grandiosidade da natureza — também estão imbuídas de emoção.)
As obras de arte tendem a ser concebidas para utilizar uma diversidade combinada de aptidões
perceptivas e intelectuais humanas em larga escala; na verdade, as melhores obras levam-nas
para lá dos limites comuns. O pleno exercício das aptidões mentais é em si uma fonte de prazer
estético. Isto inclui debater-se com um enredo complexo, reunir indícios para reconhecer um
problema ou solução antes que um personagem na história os reconheça, equilibrando e
combinando elementos ilustrativos e formais numa pintura complexa, seguir as transformações
de uma melodia inicial recapitulada no fim da peça musical. O prazer de lidar com desafios
intelectuais é mais óbvio na arte imensamente complexa, como na experiência de Guerra e Paz,
de Leão Tolstoi, ou o Anel, de Wagner. Mas mesmo obras que são simples num nível, como os
readymades de Duchamp, podem recusar uma explicação simples e dar prazer seguindo-se as
suas complexas dimensões históricas ou interpretativas. (Palavras cruzadas, jogos como o
xadrez ou o Trivial Pursuit, cozinhar a partir de receitas complicadas, reparações caseiras,
concursos televisivos de pergunta e resposta, videojogos, ou mesmo calcular reembolsos fiscais,
podem proporcionar desafios de exercício e proficiência que resultam em prazer.)
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11. Tradições e instituições artísticas.
Os objectos e execuções, tanto nas culturas orais de pequena dimensão como nas civilizações
que têm escrita, são criadas e até certo ponto tornam-se importantes pelo seu lugar na história e
tradições da sua arte. Como argumentou Jerrold Levinson, as obras de arte adquirem a sua
identidade ao instanciarem modos historicamente reconhecidos de ser arte — a obra situa-se
numa sequência de predecessores históricos. 7 Sobrepondo-se a esta noção estão perspectivas
anteriores, defendidas por Arthur Danto, Terry Diffey, e George Dickie, a favor da ideia de que as
obras de arte ganham significado ao serem produzidas num mundo da arte, naquilo que
essencialmente são instituições artísticas socialmente construídas. Os defensores de uma teoria
institucional tendem a concentrar-se em readymades e arte conceptual porque o interesse de
tais obras é quase esgotado pela sua importância na situação histórica da sua produção. 8 Essas
obras contrastam com obras canónicas como a nona sinfonia de Beethoven, que apesar de
aberta a uma ampla análise histórica e institucional, consegue atrair a si um enorme e
entusiástico público de ouvintes que pouco ou nada sabem do seu contexto institucional. Por
outro lado, é argumentável que mesmo uma apreciação mínima da Fonte, de Duchamp, exige
algum conhecimento da história da arte, ou pelo menos do contexto artístico contemporâneo.
(Praticamente todas as actividades sociais organizadas — medicina, guerra, educação, política,
tecnologias, e ciências — são erigidas tendo como pano de fundo tradições históricas e
institucionais, costumes e exigências. A teoria institucional, tal como é defendida na estética
moderna, pode ser aplicada a qualquer actividade humana.)
Por fim, e talvez seja a mais importante de todas as características nesta lista, os objectos de
arte proporcionam essencialmente uma experiência imaginativa tanto para quem os produz
como para o público. Um entalhe em mármore pode representar realistamente um animal, mas
uma obra de arte estatuária torna-se um objecto imaginativo. O mesmo se pode afirmar de
qualquer história bem narrada, seja uma história mitológica ou pessoal. A dança com trajes junto
à luz da fogueira, com a sua profunda unidade de propósito entre os dançarinos, tem um
elemento imaginativo bastante arredado do exercício colectivo dos operários fabris. Isto é o que
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Kant queria dizer ao insistir que uma obra de arte é uma “apresentação” que se oferece a uma
imaginação que a aprecia independentemente da existência de um objecto representado: para
Kant, as obras de arte são objectos imaginativos sujeitos à contemplação desinteressada. Deste
modo, toda a arte ocorre num mundo de faz-de-conta. Isto aplica-se tanto às artes abstractas,
não imitativas, como às artes representacionais. A experiência artística tem lugar no teatro da
imaginação. (A nível mundano, a imaginação a resolver problemas, fazer planos, formular
hipóteses, inferir os estados mentais de outros, ou no mero sonhar acordado é praticamente co-
extensional com a vida consciente humana normal. Tentar compreender como era a vida na
antiga Roma é um acto imaginativo, mas também o é relembrar que deixei as chaves do carro na
cozinha. Todavia, a experiência da arte é notavelmente marcada pela maneira como separa a
imaginação das preocupações práticas, libertando-a, como afirmou Kant, das restrições da lógica
e da compreensão racional.)
III
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uma plena compreensão da arte, e tenha vindo a confundir durante muito tempo filósofos,
historiadores de arte, coleccionadores, e advogados, a questão de algo ter ou não autenticidade
não é a primeira a responder quando queremos saber se algo é uma obra de arte. A
autenticidade é uma questão que surge na arte só depois de um objecto ou execução terem sido
identificados como putativamente artísticos no tipo ou no propósito.
Mais uma vez, pode suceder um dia os neurofisiólogos descobrirem um novo método
técnico de identificar as experiências artísticas (através de ressonâncias magnéticas ou algo
semelhante) ou os físicos inventarem um tipo de análise molecular que lhes permita distinguir
entre, digamos, obras de arte e artigos sanitários ou partes de automóveis. Uma especulação
absurda, talvez, mas note-se que se a ciência alguma vez alcançasse tal método para identificar
exemplos de arte ou de experiência artística, estará na condição de fazer corresponder as suas
propriedades cientificamente determinadas com uma descrição da arte compreendida em termos
dos critérios de reconhecimento na minha lista ou numa lista semelhante. Os critérios de
reconhecimento dizem-nos o que já sabemos acerca da arte. Podem ser ajustados nas margens,
subtraindo ou adicionando itens à lista, mas permanecerão em grande medida intactos no futuro
previsível, regendo o que conta como investigação das artes por neurofisiólogos, filósofos,
antropólogos, críticos ou historiadores.
É argumentável que outras características não técnicas podiam ter sido incluídas nesta
lista. Na sua versão da lista, H. Gene Blocker, escrevendo sobre as artes tribais, considera
importante os artistas serem “percepcionados não só como profissionais mas como inovadores,
excêntricos, ou um tanto socialmente alienados.” 9 Embora isto seja frequentemente verdade
(Blocker observou-o em África e eu observei o mesmo na Nova Guiné) há no mundo demasiados
artistas inovadores mas que não são socialmente alienados, bem como demasiados excêntricos
que não são artistas, para que a característica de Blocker seja um modo útil de reconhecer a
arte. O mesmo se podia dizer acerca de ser raro ou oneroso. Muitas obras de arte são raras,
feitas de materiais onerosos, ou incorporam enormes custos de mão-de-obra, e isto é muitas
vezes uma componente do seu interesse para o público. Muitas, todavia, nada têm destas
características. A onerosidade é relevante para a arte, mas não é criterial. Embora ser oneroso e
ter sido produzido por um excêntrico sejam frequentemente características da arte, nem uma
nem outra são normalmente um meio de a reconhecermos.
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um artefacto e b) ser feito ou executado para um público. A artefactualidade foi tão
exaustivamente abordada na bibliografia que não nos ocupará aqui: as obras de arte são
objectos intencionais, mesmo que tenham um número indeterminado de significados não
intencionados. Mesmo found objects — pedaços de madeira à deriva e coisas semelhantes —
são transformados em objectos intencionais no processo de selecção e exibição. Ser feito para
um público é um refinamento da artefactualidade e de importância substancial na compreensão
da arte, mas é demasiado ténue para ser um complemento útil à lista, na medida em que
também se aplica a inúmeros outros géneros de realidades humanas fora das artes. (Mais uma
vez, o habitual caso limite do pedaço de madeira à deriva qualifica-se obviamente como arte,
visto que o objecto é colocado diante de um público.) 10
A identidade cultural, outro potencial item para a lista, tem sido erroneamente exagerado
pelos académicos, a meu ver, enquanto elemento determinante da arte. No sentido em que toda
a arte surge numa cultura e é portanto um produto cultural, a afirmação é trivialmente verdadeira.
Normalmente, todavia, os defensores desta posição querem extrair dela a ideia de que os
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artistas pretendem no seu trabalho, e que o público espera da sua experiência, afirmar a
identidade cultural. Isto é tão verdade como afirmar, por exemplo, que os artistas pretendem ser
pagos pelo seu trabalho, e que o público espera de algum modo pagar-lhes: por vezes é
verdade, por vezes não. Sucede que o uso intencional da arte para afirmar a identidade cultural
tende a ser característico da arte apenas em situações de oposição cultural e dúvida. É
improvável que Cervantes, Rembrandt ou Mozart encarassem a afirmação da cultura espanhola,
holandesa ou austríaca como uma função principal do seu trabalho (e isto apesar de cada um
ser, respectivamente, um orgulhoso espanhol, holandês, e austríaco). O caso de Wagner, que se
afirmou abertamente contra a música francesa e italiana, é diferente; ele via-se conscientemente
como alguém que afirma uma identidade teutónica. É difícil ver a música indiana na sua terra
natal como algo dirigido à afirmação da identidade indiana; vem a servir essa função quando os
indianos emigram e se juntam a associações culturais indianas em Estugarda ou Chicago. As
formas artísticas locais oferecidas ao seu público natural, local, raramente suscitam
preocupações acerca de afirmar a identidade cultural; tal arte proporciona apenas beleza e
entretenimento ao seu público mais próximo, natural. Em retrospectiva, e séculos mais tarde,
podemos vir a considerar que Shakespeare afirma valores isabelinos, mas trata-se de uma
construção que lhe impomos. A sua intenção era criar um entretenimento teatral adequado ao
público do Globe. Afirmar a identidade cultural, por muito importante que possa ser, não é
criterial para reconhecer exemplos de arte.
IV
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estão na minha lista, mas só por si — como no acto de um canalizador hábil que desentope uma
conduta, ou um instantâneo num passaporte que é uma fotografia — estes não contam no
sentido de tornar tais actos ou objectos obras de arte. Estas características não tiram força a
qualquer aplicação do conceito e, tomadas em conjunto com outros itens da lista , aumentam a
probabilidade de um objecto ser uma obra de arte. O anti-essencialismo da lista resulta, segundo
Gaut, do modo indefinido e aberto pelo qual as características na lista se podem combinar em
qualquer exemplo particular de arte. Se nos deparássemos com um objecto peculiar que fosse
arte e não satisfizesse qualquer dos nossos critérios, explica Gaut, a abertura do conceito
agregativo permite-nos simplesmente adicionar outra característica à lista. Mesmo que isto
demonstrasse a imperfeição de uma lista inicial, argumenta Gaut, preserva ainda a ideia de que
um conceito agregativo é apropriado para compreender o conceito de arte. Na minha
perspectiva, a abertura de Gaut a novos critérios é desnecessária: um objecto que não tivesse
uma só característica na lista não seria uma obra de arte, ao passo que um objecto que tivesse
todas as doze características certamente que o seria. Falar em acrescentar novos critérios para
acomodar novos géneros de arte parece-me um gesto intelectualmente aberto mas vazio, a
menos que se nos possa mostrar um exemplo concreto de um novo género de arte não
abrangido pela lista.
Stephen Davies criticou a afirmação de Gaut, de que os critérios listados são anti-
essencialistas, defendendo a noção de que os critérios listados ou agregados para a arte são na
verdade definições.12 Davies concede que o número de disjuntos na lista suficiente para algo ser
arte determinará um muito maior número de combinações potenciais: se, digamos, metade dos
doze podem fazer uma obra de arte, haverá um conjunto de todos os doze elementos, doze
conjuntos de onze, cento e trinta e dois conjuntos de dez elementos, e assim por diante até um
número muito vasto de possibilidades. Isto pode ser complicado, argumenta Davies, mas nada
há aqui que exclua uma lista de critérios de reconhecimento ou a formulação por Gaut de um
conceito agregativo como “uma definição complexa, disjuntiva, mas de resto ortodoxa.” Mil ou
mais modos de ser arte está ainda muito longe de um número infinito de modos de ser arte. “O
resultado será intricado, sem dúvida,” afirma Davies, “mas nem por isso deixa de ser uma
definição.” Na perspectiva de Davies, uma lista como estes critérios de reconhecimento capta
realmente “princípios unificadores”, e não é meramente “uma lista arbitrária de características
que se pode encontrar em qualquer obra de arte possível.” Tal abordagem merece ser levada a
sério “precisamente porque proporciona uma descrição plausível dos géneros de coisas que
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podem fazer algo ser arte.” Uma abordagem como a de Gaut ou a minha, conclui Davies, “não
sustenta o anti-essencialismo em estética.”
Além disso, o tipo de essencialismo que sustenta é, como Gaut convenientemente mostra,
bastante útil para lidar com supostos casos de fronteira ou marginais de arte. Como indiquei na
secção I, o problema com muitas teorias clássicas da arte é começarem com um paradigma
particular (a tragédia grega, digamos, ou a música abstracta) e perdem gás à medida que se
afastam do paradigma para tipos de arte mais remotos. Em oposição a este fracasso persistente,
temos a teoria institucional da arte, concebida primariamente para lidar com casos difíceis ou
duvidosos. O seu sucesso em lidar com as fronteiras tem o preço da sua incapacidade de nos
dizer algo de interessante acerca do núcleo consensual da arte: a instituição ou mundo da arte
proclama simplesmente que um objecto em disputa está ou não incluído. Os critérios de
reconhecimento tornam a discussão dos casos de fronteira muito mais rica e gratificante. A
culinária, aponta Gaut, não é simplesmente incluída ou excluída, mas analisada nos termos da
lista. Usando a sua própria abordagem do conceito agregativo, Gaut afirma que enquanto a
presença de alguns itens na lista (aptidão e produção de prazer, por exemplo) nos inclinam a
incluir a culinária entre as artes, a ausência de outros (saturação emocional, desafio intelectual,
ou uma capacidade de representação) fazem-nos resistir à sua inclusão. “A dificuldade do caso,”
conclui Gaut, “é preservada.” Gaut tem toda a razão: não se trata de uma perda para a estética
mas de um ganho.13 Criticar a lista por não distinguir decisivamente todos os casos difíceis é
desejar que a estética não tenha de todo casos difíceis, marginais ou de fronteira. Dado que
nunca assim será, a melhor teoria estética é uma teoria que o reconhece.
Como comecei por indicar na própria lista, alguns dos critérios que contém são mais
centrais do que outros para uma definição de arte. Numa escala valorativa, por exemplo,
consideraria o item 5, a crítica, menos importante, pelo menos como critério de reconhecimento,
do que o item 2, a aptidão ou virtuosismo. Ao responder a Gaut, Thomas Adajian criticou a ideia
de que uma lista não tem modo de classificar ou avaliar internamente os seus membros. 14 Eu
acrescentaria que descobrir as diferenças de relevância que os itens têm sobre o carácter
artístico de qualquer objecto ou execução é exactamente o que a estética filosófica devia tentar
alcançar. Não vejo como a avaliação diferencial conte contra a noção geral de conjugar critérios
de reconhecimento. Na verdade, descobrir a classificação pode ser um exercício frutuoso para
melhorar a nossa compreensão da arte. Como exemplo de um caso marginal curiosamente
difícil, mencionado por Gaut e por estudantes e público de conferências ao longo dos anos,
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refiro-me ao fenómeno do futebol europeu. Este desporto, particularmente em jogos de
campeonato, apresenta um espectáculo que pode incorporar grande aptidão, drama intenso, e
muita emoção e gozo para o público. É posteriormente sujeito a um discurso crítico. O futebol
parece já satisfazer os meus critérios para o item 1, prazer, item 2, aptidão, item 5, crítica, item 7,
enfoque especial, talvez o item 9, saturação emocional. Gaut, não obstante, afirma que os jogos
de futebol não são obras de arte ou execuções artísticas (o que não equivale a negar a arte de
alguns jogadores virtuosos ou das suas jogadas individuais). Concordando com ele, especulo
que a razão de muita gente resistir a chamar “obras de arte” aos jogos de futebol tem a ver com
a ausência daquilo que temos de ponderar como um dos itens mais importantes da lista: o item
12, experiência imaginativa. Para o adepto desportivo comum que torce pela equipa da casa,
quem efectivamente ganha o jogo, não na imaginação, mas na realidade, continua a ser a
questão dominante. Para o adepto, quem será o vencedor é a questão decisiva, geradora de
interesse. Ganhar e perder é a principal fonte de emoção, que não é expressa, como nas obras
artísticas, mas incitada nas multidões por um resultado desportivo no mundo real. Fossem os
adeptos do desporto autênticos estetas, segundo a minha especulação, pouco ou nada se
importariam com as pontuações e resultados, mas apenas desfrutariam os jogos em termos de
estilo e economia de movimento, aptidão e virtuosismo, e expressividade. No meu
discernimento, portanto, um jogo de futebol não é essencialmente (ou não suficientemente, em
todo o caso) uma “apresentação” kantiana, um evento faz-de-conta, oferecido à contemplação
imaginativa, mas, ao invés, um evento do mundo real, mais como uma eleição ou batalha. 15 O
facto de o futebol poder ter tanto em comum com a arte reconhecida e no entanto não ser um
exemplo dela é algo que a lista de critérios de reconhecimento nos pode ajudar a compreender.
A possibilidade de uma análise como esta é outra vantagem ainda da minha lista.
Ideias e objectos como “raiz quadrada” ou “neutrão” vieram a ser entendidos juntamente
com a emergência das teorias que lhes deram um lugar na compreensão. As artes, de maneiras
rudimentares e precisas, foram criadas e directamente fruídas muito antes de virem a ser objecto
de ruminação teórica. A arte não é uma área técnica regida e explicada por uma teoria, mas um
domínio rico, disperso e variegado de prática e experiência humana que existia antes dos
filósofos e teorizadores. É uma categoria natural, evoluída, o que significa que não devia
surpreender seja quem for o poder ter uma definição tão ampla e comparativamente aberta. A
este respeito, é como outros aspectos grandiosos, vagos, mas reais e persistentes da vida
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humana, como a religião, a família, a linguagem, a amizade, ou a guerra. Sejam quais forem as
inflexões históricas e locais destes fenómenos humanos, têm suficiente em comum para serem
tratados como um género de perspectiva natural ou forma comportamental. Apesar de muitos
casos contestados e de fronteira, exemplos paradigmáticos são facilmente reconhecidos em
diversas culturas e ao longo de milénios. Quanto ao receio anti-essencialista de que uma
definição da arte em termos de critérios de reconhecimento possa restringir a própria imaginação
criativa que observamos e encorajamos nas artes, faz tanto sentido como a preocupação de que
uma definição de “livro” nos leve por derrapagem a censurar a literatura. As artes permanecem o
que são, e serão. É a estética que tem de aperfeiçoar a sua melodia. 16
Denis Dutton
Notas
21