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ESCRITORES BRASILEIROS

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Autor: Sérgio Barcellos Ximenes.

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______________________

Adalzira Bittencourt, Monteiro Lobato e a defesa da pena de morte para as


mães apegadas aos filhos "defeituosos"

Resumo

Tema: a carta (jamais divulgada em sua inteireza) enviada pelo escritor Monteiro
Lobato (1882-1948) à escritora Adalzira Bittencourt (1904-1976) após a leitura do
romance "Sua Excia. a Presidente da República no ano 2500" (1934), parabenizando-a
pela defesa da eugenia na história, admirando-a pela coragem e concordando com a
proposta de impor a pena de morte às mães que amassem demais os seus filhos, em
detrimento das obrigações impostas por um Estado ideal.

Publicação da carta: "Jornal do Commercio" (RJ), 10 de outubro de 1934, número


8, página 10, terceira coluna.

Trecho da carta omitido nas divulgações: "Onde descobriu você tais reservas de
coragem para arrostar todos os preconceitos atuais e propugnar medidas maravilhosas,
como a eliminação dos estropiados e morféticos, e até a pena de morte para as mães
que sobreponham aos interesses nacionais supremos o outro e egoístico amor à cria?"
[a menção se refere à obrigatoriedade de entregar filhos "defeituosos" ao Estado, para a
sua pronta eliminação].

Contexto histórico: a popularidade, nos meios intelectuais e científicos brasileiros,


do movimento eugenista, destinado a criar uma "raça perfeita" pela imposição de
medidas radicais do Estado aos cidadãos, entre elas a pena de morte em casos de
organismos "imperfeitos" ou de desvio de conduta.

Informação inédita sobre o romance de Adalzira: a obra foi publicada em 1934, e


não em 1929, como se lê na folha de rosto da primeira edição; o ano de 1929 se refere
àquele em que a obra teria sido escrita, segundo a autora.
__________________________________________

Apresentação

Eugenia é a prática ideológica, supostamente científica, que visa à criação de uma


"raça perfeita", física e mentalmente, por meio de medidas estatais que abrangem a
promoção da higiene e da saúde, a educação centrada na "melhoria da espécie", a
distribuição de funções segundo os sexos, a segregação de indivíduos "disformes" ou
não adaptados a essas medidas, e, em certos casos, a condenação à morte desses
indivíduos.

O estatístico, meteorologista e antropólogo inglês Francis Galton (1822-1911) criou


o termo e propôs essa prática social no livro "Inquiries into Human Faculty and Its
Development ["Investigações sobre a Faculdade Humana e Seu Desenvolvimento"]"
(1883), motivo pelo qual é considerado o "pai" do movimento eugenista.

Meio-primo do naturalista Charles Darwin (1809-1882) ― este o autor da teoria da


seleção natural das espécies (1859) ―, Galton procurou aplicar a teoria de Darwin ao
futuro da evolução humana, propondo, entre outras medidas, que fossem evitados
"cruzamentos indesejados", de modo a se produzirem somente seres humanos ideais dos
pontos de vista orgânico e moral.

A doutrina eugenista, assim como as obras de não ficção e ficção baseadas nesse
movimento, apresenta dois aspectos: um construtivo e o outro destrutivo.

O aspecto construtivo consiste no sonho de se criar uma "raça ideal" de seres


humanos por meio de medidas higienistas, morais e sociais. Seus proponentes
reconhecem a dificuldade da empreitada e concordam que a nova forma de educação
deveria ser imposta ao povo, exigindo-se pulso forte na condução de um governo
voltado a esse ideal.

O aspecto destrutivo consiste na necessidade de eliminar as ameaças a essa "raça


ideal", ameaças representadas por indivíduos que não combinam com suas
características por serem doentios ou fisicamente "disformes", ou por terem
comportamentos opostos aos do grupo ideal de seres humanos. As formas dessa
eliminação vão desde a simples segregação social até o assassinato sumário dos
inconvenientes.

O movimento chegou ao Brasil na década de 10 do século XX. Em janeiro de 1918,


médicos paulistas fundaram a Sociedade Eugênica de São Paulo.
"Correio Paulistano", 15/1/1918, número 19.585, página 3, da primeira à sexta
coluna.

http://memoria.bn.br/docreader/090972_06/45204

Na década seguinte, o movimento eugenista ganhou força e chegou ao ápice de sua


influência. Boa parte da intelectualidade brasileira, incluindo médicos, psiquiatras,
juristas e escritores, apoiou e divulgou os ideais eugenistas. Nenhum deles ocultou a
extensão ilimitada das providências necessárias para se conseguir criar uma raça
brasileira "pura".

Um dos principais expoentes do movimento, o médico Renato Kehl (1889-1974)


defendeu o seguinte em seu artigo "A esterilização dos grandes degenerados e
criminosos", publicado nos "Archivos Brasileiros de Hygiene Mental" em 1925 (página
70, volume 2, número 1):

"A esterilização dos degenerados e criminosos constitui uma das medidas


complementares da política eugênica, a qual estabelece, principalmente, o exame de
sanidade pré-nupcial, o impedimento à paternidade indigna, à procriação, em suma, de
cacoplastas [pessoas organicamente imperfeitas] e desgraçados".

"A Esterilização na Perspectiva Eugênica de Renato Kehl na Década de 1920",


página 238, Leonardo Dallacqua de Carvalho, "SÆCULUM – Revista de História",
número 38, janeiro-junho de 2018, João Pessoa, Paraíba.

https://www.academia.edu/37383855/A_esteriliza%C3%A7%C3%A3o_na_perspecti
va_eug%C3%AAnica_de_Renato_Kehl_na_d%C3%A9cada_de_1920._Revista_Saecul
um
Veremos adiante como essa proposta básica da eugenia se enquadra perfeitamente no
contexto da militância social de Monteiro Lobato e Adalzira Bittencourt.

Um artigo publicado em 1921 no periódico "O Jornal" (Rio) deixa claro o contexto
imaginário ao qual reagiam os higienistas, ao proporem medidas urgentes para evitar
um mal insanável ao país. O trecho final:

"Contra essa imensa mole [multidão] humana que vive a espalhar por todos os cantos
filhos raquíticos e irresponsáveis é que se levanta a campanha eugênica nacional
merecedora dos mais calorosos aplausos daqueles que procuram salvar a nossa raça da
decadência completa e da ruína total."

"O Jornal", 8/12/1921, número 884, página 1, terceira, quarta e quinta colunas.

http://memoria.bn.br/DocReader/110523_02/8362

Quase sete anos depois, um artigo no mesmo jornal, centrado na proposta do já


famoso médico Miguel Couto (o mesmo homenageado no nome de um hospital no Rio
de Janeiro), de promover o primeiro congresso nacional de eugenia, mencionava o
desinteresse do público pelo movimento e a necessidade, segundo ele, de se iniciar uma
campanha educativa antes da introdução das medidas eugenistas no país.
"O Jornal", 22/7/1928, número 1960, página 2, antepenúltima e penúltima colunas.

http://memoria.bn.br/DocReader/110523_02/27507

O congresso foi realmente realizado, no ano seguinte, tendo a participação de nomes


ilustres como Renato Kehl, Miguel Couto, Edgard Roquette Pinto (médico e pioneiro da
radiodifusão no Brasil) e Levy Carneiro (jurista e escritor), entre outros. Em sua
programação constavam apresentações como:
. Estatística dos tarados no Brasil (cegos, surdos-mudos, débeis mentais e atrasados,
epilépticos, toxicômanos, alienados, vagabundos);

. O feminismo e a raça;

. Educação moral e eugênica;

. A esterilização eugênica dos tarados e criminosos;

. A regulamentação eugênica do casamento;

. O lar adotivo; delito de contaminação;

. Proteção fiscal e administrativa dos lares sadios;

. O problema eugênico da imigração.


"O Paiz", 10/3/1929, número 16.212, página 2, primeira, segunda e terceira colunas.

http://memoria.bn.br/DocReader/178691_05/37585

Como se percebe, o movimento propunha o controle estatal de todos os aspectos da


vida do cidadão, por meio da educação imposta ou da violência, conforme o caso. A
"perfeição da raça" implicava necessariamente a eliminação dos seres humanos
"imperfeitos".

As edições do "Boletim de Eugenia", fundado e dirigido por Renato Kehl, estão


disponíveis na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional:
http://memoria.bn.br/DocReader/159808/1

Monteiro Lobato e o movimento eugênico

O editor e escritor Monteiro Lobato (1882-1948) entrou cedo para a militância do


movimento eugenista. Em 1919, a sua "Revista do Brasil" lançava os "Anais da
Eugenia", de autoria do amigo Renato Kehl. Esse mesmo amigo, após a publicação de
"O Choque das Raças", de Lobato, em 1927, recebeu uma carta do autor com o seguinte
trecho:

"Renato, tu és o pai da eugenia no Brasil e a ti devia eu dedicar meu Choque, grito de


guerra pró-eugenia. Vejo que errei não te pondo lá no frontispício, mas perdoai a este
estropiado amigo. [...] Precisamos lançar, vulgarizar estas ideias. A humanidade precisa
de uma coisa só: poda. É como a vinha".

"Carta aberta a Ziraldo", Ana Maria Gonçalves.


http://mariadapenhaneles.blogspot.com/2011/02/carta-aberta-ao-ziraldo-por-ana-
maria.html

Repare na admissão de Lobato: seu romance O Choque das Raças é um "grito de


guerra pró-eugenia". Repare também que a importância do aspecto destrutivo do
movimento eugênico (segregação, esterilização, "poda") é mais uma vez ressaltada.

Adalzira Bittencourt e o movimento eugenista

Adalzira Bittencourt (1904-1976) já era uma advogada, poeta e feminista conhecida


quando lançou, em 1934, o romance "S. Excia. a Presidente da República no Ano
2.500", no qual o Brasil teria se transformado no país ideal, na concepção da autora.

Essa concepção ideal é essencialmente eugenista.

Consultora jurídica e colaboradora da revista "Brasil Feminino", Adalzira anunciou


no número 3 da publicação o oferecimento de serviços gratuitos de advocacia a favor
das leitoras, nos fóruns de São Paulo.

"Brasil Feminino", maio de 1932, número 3, página 21, primeira coluna.

http://memoria.bn.br/DocReader/160733/173

Esta mesma revista, embora não militasse abertamente a favor da eugenia, acolheu o
artigo de Adalzira reproduzido mais abaixo ("Eutanásia") e publicou matérias como a
do título a seguir.
"Brasil Feminino", maio de 1932, número 4, página 27.

http://memoria.bn.br/DocReader/160733/179

O "aperfeiçoamento da raça", um dos objetivos da eugenia, implicava o


desenvolvimento perfeito do físico, tanto da mulher quanto do homem.

O movimento eugenista e a ficção científica brasileira

No período chamado "proto ficção científica brasileira", que vai de 1857 (com a
publicação de "O Fim do Mundo", folhetim de Joaquim Manuel de Macedo) a 1960,
vários escritores aproveitaram suas histórias para promover a ideia de uma sociedade
ideal composta de seres "perfeitos".

A primeira história em que se pretendia moldar os destinos do Brasil por meio de


medidas estatais de controle físico e comportamental, "São Paulo no Ano 2000 ou
Regeneração nacional (Crônica da sociedade brasileira futura)", foi publicada em 1909,
antes da chegada do movimento eugenista ao Brasil. O autor: o dentista Godofredo
Barnsley (1874-1935).
http://www.miguelsalles.com.br/peca.asp?ID=4263009

Na década de 20, auge do movimento eugênico no país, seus ideais entraram na


ficção científica com "O Reino de Kiato (No País da Verdade)", de autoria do
farmacêutico Rodolfo Teófilo (1863-1932).
http://www.babelleiloes.com.br/peca.asp?ID=367734

Três outros autores se incorporaram ao movimento nessa década: Monteiro Lobato


(1927), Adalzira Bittencourt (que escreveu seu livro em 1929, lançando-o em 1934) e
Berilo Neves (1929). Os três foram estudados no capítulo VI da tese "Eugenia e
literatura no Brasil: apropriação da ciência e do pensamento social dos eugenistas pelos
escritores brasileiros de ficção científica (1922 a 1949)" , de Edgar Smaniotto. O título
do capítulo: "O Futuro Eugenizado: pensamento eugênico, nacionalismo e ficção
científica no Brasil".

"Eugenia e literatura no Brasil: apropriação da ciência e do pensamento social dos


eugenistas pelos escritores brasileiros de ficção científica (1922 a 1949)", Edgar
Smaniotto, Faculdade de Filosofia e Ciências da Universidade Estadual Paulista, 2012,
Marília, São Paulo.

https://www.academia.edu/33116999/Eugenia_e_literatura_no_Brasil_apropria%C3
%A7%C3%A3o_da_ci%C3%AAncia_e_do_pensamento_social_dos_eugenistas_pelos
_escritores_brasileiros_de_fic%C3%A7%C3%A3o_cient%C3%ADfica_1922_a_1949_

Berilo Neves (1901-1974) lançou em 1929 a coletânea de contos "A Costela de


Adão".

https://www.marciopinho.com.br/peca.asp?ID=2495840

Outras duas coletâneas de contos de Berilo Neves, "A Mulher e o Diabo" (1931) e
"Século XXI" (1934) figuram em todas as cronologias da ficção científica brasileira.

O único entre esses autores que poderia ficar de fora do movimento seria Adalzira
Bittencourt, se considerada a epígrafe do seu livro.

AO BRASIL

DOS MEUS SONHOS


... cada leitor interprete este

livro como entender.

É romance? É fantasia? É crítica?

É obra de ficção, ou pedagógica?

Que sei eu...

Que ele seja esquisito manjar

e que cada leitor encontre nele

um bocado a seu sabor...

A.

Essa aparente ambiguidade se desfaz quando se sabe que Adalzira jamais contestou
os elogios recebidos por sua utopia eugenista. Mais do que isso: eles foram registrados
orgulhosamente em livros posteriores, como veremos.
Monteiro Lobato e o "Choque das Raças"

Em janeiro de 1927, os jornais brasileiros anunciaram o lançamento da mais


polêmica obra de Monteiro Lobato (1882-1948), intitulada "O Choque das Raças ou O
Presidente Negro ― Romance americano do ano de 2.228". Nela, os eleitores
estadunidenses escolhiam pela primeira vez um político negro para comandar o país.

Lobato vinha de uma associação de cerca de três décadas com as ideias eugenistas,
que propõem a "purificação da raça humana", baseada na adoção de medidas radicais de
higiene e de eliminação de seres humanos "deficientes" segundo critérios morais
(comportamentos impróprios, como o alcoolismo), orgânicos (aleijados ou doentes) e
étnicos (a cor da pele). Neste último aspecto, a eugenia sempre foi centrada na
dominação do mundo pela "raça" branca e pela "purificação" progressiva desse conjunto
de seres humanos.

O romance de 279 páginas, lançado pela Companhia Editora Nacional (Rio), do


próprio autor, é um dos clássicos de nossa ficção científica, tendo no "porviroscópio"
(artifício tecnológico para "espionar" o futuro) a primeira utilização da máquina do
tempo na literatura brasileira.
Observação: embora o ano da folha de rosto seja 1926, o livro foi realmente lançado
em janeiro de 1927, como atestam os anúncios e as resenhas.

Anúncios da obra à época do lançamento

A editora de Lobato publicou grandes anúncios para divulgar o romance do autor. O


primeiro deles saiu em 8 de janeiro de 1927 e continha um longo resumo do enredo,
algo inédito entre os anúncios literários daquele tempo.

___________________________

O que será o mundo no ano 2228

O FUTURO DESVENDADO

A população negra dos Estados Unidos é de milhões de almas e cresce mais que a
branca. Dia há de vir em que o negro dominará pelo número e vencerá o branco nas
urnas, elegendo um presidente pigmentado.

Eis o tema do romance de Monteiro Lobato

O CHOQUE DAS RAÇAS

OU O PRESIDENTE NEGRO

que acaba de sair e no qual a imaginação, a serviço da lógica, antevê o grandioso


drama futuro, localizado no ano 2228. Esta obra não se aproxima de nenhuma outra da
nossa literatura, lembrando certos trabalhos de H. G. Wells, o impressionante
romancista inglês.

O sábio professor Benson descobre a máquina de visionar o futuro e por meio desse
"porviroscópio" consegue ASSISTIR aos acontecimentos dessa época remota. É sua
filha, miss Jane quem relata ao herói do livro, Ayrton Lobo, o estranho drama do
choque das raças na América, por ela sondado em companhia do pai. Essa encantadora
criatura, tão bela quanto forte de inteligência, deslumbra o apaixonado Ayrton com os
mais imprevistos aspectos futuros, como sejam: a noite urbana depois da invenção da
luz fria; Erópolis, a maravilhosa cidade do Amor, só habitada por amorosos em pleno
período de ebridadade; o Museu da Roda, onde repousavam todas as variedades de
rodas sobre que gira a nossa civilização industrial, "aposentadas" depois da grande
transformação que ao mundo trouxe o rádio-transporte e a rádio-sensação; a harmonia
na sociedade sexual entre o homem e a mulher após a adoção de férias conjugais
obrigatórias; a estação psicofônica de Detroit, por meio da qual os espíritos se
comunicavam com os vivos etc., etc.

Os personagens que animam o romance impressionam de maneira singular. Um


grande líder negro se destaca. Jim Roy, o Moisés da raça, eleito presidente por ocasião
da rutura do bloco branco, determinada pelas arrojadíssimas ideias de miss Elvin. Esta
rebelada contra o domínio dos homens lançou a atrevida hipótese da "simbiose" entre o
HOMO e a fêmea de uma espécie animal extinta, o sabino, destruída pelo HOMO que
se apossou das sabinas — a atual mulher.

Há o presidente Kerlog, sob cujo governo, por sugestões da Convenção da Raça


Branca, os arianos deram o traiçoeiro golpe de morte na raça negra, extinguindo-a.

Por todo o livro perpassa a ideia nova da Eugenia e da Eficiência, dadas já como
plenamente vitoriosas naquela época e de cuja sábia aplicação o povo americano colheu
os mais assombrosos frutos. Quanto ao Brasil, terra onde se deu a maravilhosa
descoberta do professor Benson, miss Jane conta como se dividiu ele em duas grandes
repúblicas, uma das quais assimilou a si a Argentina e o Uruguai, formando o segundo
país do mundo em grandeza.

O enredo é empolgadíssimo, sobretudo quando os brancos desferem nos negros o


golpe mortal por meio dos raios Ômega, inventados por John Dudley, o Edison daqueles
tempos.

O singular romance de Monteiro Lobato sairá nos Estados Unidos, em março, em


bela tradução de Aubrey Stuart; em França, traduzido por Jean Duriau e na Alemanha,
por Fred Sommer.
"O Jornal" (RJ), 8/1/1927, número 2.480, página 3, primeira, segunda e terceira
colunas.

http://memoria.bn.br/DocReader/110523_02/30032

Outro anúncio, bem melhor, no jornal "Última Hora" (RJ), destacou a relação da
história com e eugenia:

"Romance dos tempos futuros, com a visão de um mundo rico e feliz graças à vitória
final das grandes ideias da Eficiência e da Eugenia."
"Ultima Hora" (RJ), 17/1/1927, número 5.445, página 3, última coluna.

http://memoria.bn.br/DocReader/348970_02/19116

Resenhas da obra à época do lançamento

Houve dez resenhas de "O Presidente Negro" no ano do lançamento do romance.

1. A primeira delas, de Mario Vilalva, intitulada "Um romance de Lobato",


desconsiderou de todo a questão central da eugenia e qualificou a obra como caricatural
e humorística.

__________________________

Todos nós conhecemos a feição deliciosamente caricatural do fecundo talento


literário de Monteiro Lobato.

O seu romance O Choque, neste momento exposto nas livrarias, e já conhecido, com
certeza, de milhares de leitores, é mais uma afirmação pitoresca dessa inestimável
singularidade num escritor brasileiro ― a de fazer rir. Mas rir inteligentemente, está
claro, desse rir bom, retemperante, profundo e largo, que só mesmo a seiva exuberante,
a saúde pletórica [excessiva] do espírito, nos pode proporcionar.
"A.B.C." (RJ), 22/1/1927, número 620, página 11, primeira, segunda e terceira
colunas.

http://memoria.bn.br/DocReader/830267/10556

2. A segunda resenha, da também escritora Chrysanthéme (Cecília


Moncorvo Bandeira de Melo), intitulada "Um choque de imagens", acaba "entregando"
o final da história, algo evitado no verbete da Wikipédia relativo ao romance.

_____________________________

O desfecho, entretanto, dessa tremenda tragédia "racial" dá-se pelos raios Ômega, os
raios de John Dudley, que possuem virtude dupla. Ao mesmo tempo que alisam os
cabelos dos "negros" esterilizam esses homens. Jim Roy estremece quando é informado
desse horrível desenlace...

"Correio Paulistano" (SP), 25/1/1927, número 22.814, página 3, primeira e segunda


colunas.

http://memoria.bn.br/DocReader/090972_07/24487
Também a autora não percebe a importância do contexto da eugenia e a sugestão de
Lobato, de que a "purificação da raça branca" e o seu domínio final se dará
necessariamente pela eliminação da "raça negra".

3. Curiosamente, a terceira resenha, em ordem cronológica, coube à mesma escritora


(Chrysanthéme), que escreveu um texto bem diferente da primeira para o jornal "O
País" (RJ).

Nessa resenha, a autora destaca a importância do final da história em termos de ideal


eugênico para o ser humano.

_________________________________

E como com ele, todos os negros tinham sido omegados [submetidos à esterilização
causada pelo uso do raio Ômega], o choque das raças fora prevenido, o que valeu pela
nova vitória da eugenia.

E assim termina esse livro excelente do grande Monteiro Lobato, livro de fatura
[feitura] preciosa, de revisão perfeita e talento pujante.

"O País" (RJ), 30/1/1927, número 15.442, página 3, primeira e segunda colunas (em
A Semana).

http://memoria.bn.br/DocReader/178691_05/28639

4. A quarta resenha saiu no periódico "O Imparcial" (RJ), um texto de Carlos Maul
em forma de diálogo: "O Choque das Raças (Conversa fiada ao redor da novela de
Monteiro Lobato)". É a primeira totalmente centrada nas propostas da eugenia, que o
autor remonta, no Brasil, ao padre Diogo Antônio Feijó (1784-1843), contrário à
escravidão, mas também ao processo de mestiçagem da população brasileira.

Crítico tanto à proposta de Feijó quanto às intenções de Lobato, Carlos Maul ironiza:

____________________________

MARCOS
Pelos modos, vê-se que Feijó, em [18]32, sonhava, como Lobato continua sonhando
com os raios Ômega para 2228...

APOLÔNIO

Por isso o Brasil ainda é o "inferno dos pretos, o purgatório dos brancos e o paraíso
dos mulatos", segundo o conceito de Francisco Manuel de Melo [político e escritor
português, 1608-1666]...

MARCOS

E é precisamente por isso também que estamos livres da profeta [profecia] trágica de
Monteiro Lobato sobre os Estados Unidos de amanhã. [...]

O Imparcial (RJ), 2/2/1927, número 5.756, página 3, última coluna.

http://memoria.bn.br/DocReader/107670_02/29688

5. A quinta resenha, de S. Galeão Coutinho, intitulada "Ianquismo de Bugre", saiu


em "A Gazeta" (SP) e, de todas, foi a mais depreciativa ― mais do autor, como
empresário e escritor, do que da obra. Depois de fazer um histórico literário e
empresarial de Lobato, Galeão critica em "O Choque das Roças" a propaganda política
e cultural realizada por Lobato a favor dos Estados Unidos, mas não toca na questão de
eugenia.
A Gazeta (SP), 16/2/1927, número 6.312, página 3, segunda e terceira colunas.

http://memoria.bn.br/DocReader/763900/24616

6. A sexta resenha, de autoria de João Vasconcellos, publicada no "Diário de


Pernambuco" (PE), intitulou-se "O novo livro do Sr. Lobato". No final do texto, o autor
pareceu demonstrar sensibilidade quanto ao destino dos negros no romance, mas acabou
validando a "solução final" de Lobato, com o recurso da "razão".

____________________________

E vendo, depois, desapareceram tristonhamente os últimos remanescentes da raça


infeliz, um movimento de piedade não cobrirá de remorsos os responsáveis pelo
infortúnio negro?

Uma vitória assim seria tão bastarda e afogaria para sempre na maldição os
vencedores.

Mas, sob o ponto de vista humano, seria uma vitória legítima e definitiva. Em rigor, à
luz do precário juízo humano, a razão não implica nobreza de atitudes, nem beleza de
movimentos, mas a firmeza de um pulso rijo ou a acuidade de uma inteligência pronta
que a saibam impor e conservar.

A partilha do leão ainda é a melhor e a mais legítima. Sobretudo para o leão.


"Diário de Pernambuco" (PE), 18/3/1927, número 60, página 4, quarta, quinta e sexta
colunas.

http://memoria.bn.br/DocReader/029033_10/19986

7. A sétima resenha, publicada em "O Jornal" (RJ) e escrita por Villar Belmonte
intitulou-se "Ante-visões do futuro" e representa o exato oposto da resenha de Galeão
Coutinho ("Ianquismo de Bugre"): onde nesta só havia críticas, na de Belmonte há só
elogios.

O autor era totalmente favorável às práticas da eugenia e à visão de Lobato sobre a


excelência da sociedade americana.

____________________________

A mescla de raças não afins, a adoção de leis ilógicas, o exagerado liberalismo penal
— desnortearão toda a ciência administrativa: os cegos, os vadios, os infecciosos, os
criminosos natos e os loucos destruirão toda a ordem social no futuro, se não houver
corretivos enérgicos, drásticos, por parte dos legisladores e estadistas. Essa operação
que a natureza faz cruelmente poderíamos fazê-la com anestésicos sutis, com arte, com
humanidade.
"O Jornal" (RJ), 19/3/1927, número 2.544, página 4, quarta e quinta colunas.

http://memoria.bn.br/DocReader/110523_02/31010

8. A resenha mais extensa coube a Fábio Luz, na revista "Brasiliana" (RJ). Com o
título "O CHOQUE ─ romance do choque das raças no ano de 2.228", Fábio adotou o
tom crítico e o enfoque político desde o início, apontando várias inconsistências no
enredo.

____________________________

Monteiro Lobato escreveu um livro à moda dos de Júlio Verne e de [H. G.] Wells,
mais próximo do último na "ciência adivinhatória", ciência de pura fantasia, anulados
todos os postulados que a experiência e a observação estabeleceram.

Mas esquecem o dr. Benson, sua continuadora miss Jane e seu profeta Ayrton que
nos Estados Unidos não há apenas duas raças em luta, mas que todas as raças têm suas
grandes representações no cruel Imperialismo Norte-Americano.

"Um povo que rompe com o álcool" é um povo cheio de nobres ideias, povo de
maior "idealismo pragmático" que já existiu na terra (pg. 107). Pura zombaria dizer que
a lei seca conseguiu extirpar o alcoolismo nos Estados Unidos.
"Brasiliana" (RJ), volume 10, abril de 1927, páginas 192 a 198.

http://memoria.bn.br/DocReader/403920/2307

http://memoria.bn.br/DocReader/403920/2308

http://memoria.bn.br/DocReader/403920/2309

http://memoria.bn.br/DocReader/403920/2310

http://memoria.bn.br/DocReader/403920/2311

http://memoria.bn.br/DocReader/403920/2312

http://memoria.bn.br/DocReader/403920/2313

9. A nona resenha, publicada no jornal "A Manhã" (RJ), intitulava-se "Lobato e a


conquista do mundo". Nela, Ribeiro Couto apresentou uma biografia do autor e depois,
ao invés de comentar a história, desenvolveu previsões irrealistas (e falhas) sobre o
futuro sucesso da obra nos Estados Unidos e em outros países, afirmando que seria
possível atingir a marca de um milhão de exemplares vendidos.

____________________________

Baterá o recorde do livro brasileiro: um livro brasileiro com uma tiragem de mais de
milhão! É a conquista ― a última e a maior — de todos os mercados do mundo. O
escritor poderá ganhar uma fortuna imensa e ficará popular nos Estados Unidos, como
Blasco Ibañez [romancista espanhol de "Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse", que
vendeu milhões de exemplares nos EUA]. Ficará popular em todos os continentes da
Terra.
"A Manhã" (RJ), 20/7/1927, número 489, página 3, primeira e segunda colunas.

http://memoria.bn.br/DocReader/116408/5663

10. A última resenha publicada no ano de lançamento de "O Presidente Negro" era,
na verdade, um trecho do artigo "A mais perfeita síntese eugenética", de Maurice'A
Filho, centrado na necessidade de imposição do exame pré-nupcial pelo Estado.
Publicada no "Pequeno Jornal" de Recife, terminava com um lamento do autor por não
estar ainda no futuro imaginado por Lobato.

____________________________

A parlenda de Monteiro Lobato é sobremodo instrutiva. Mas tem a desvantagem de


nos deixar chocados pela tristeza desta realidade: ― não podermos alcançar, por muito
que nos eugenizemos, o ano 2228 na América, e provavelmente (o escritor não diz mas
adivinha-se) o ano 3000 e tantos no Brasil.

Veríamos assim realizada, fora do romance, e livre dos retóricos... a mais perfeita
síntese eugenética.

"Pequeno Jornal" (PE), 15/12/1927, número 283, página 1, segunda e terceira


colunas.

http://memoria.bn.br/DocReader/800643/42974

*
A primeira denúncia fundamentada sobre o racismo de Monteiro Lobato veio da
romancista Ana Maria Gonçalves, autora de "Um Defeito de Cor" (2006). O texto,
intitulado "Lobato: Não é sobre você que devemos falar", tem data de 20 de novembro
de 2010.

https://www.geledes.org.br/ana-maria-goncalves-lobato-nao-e-sobre-voce-que-
devemos-falar/

Inicialmente publicado no site "O Biscoito Fino e a Massa", do acadêmico Idelber


Avelar (página atualmente indisponível; veja abaixo), o texto gerou polêmica nas redes
sociais e na mídia.

http://idelberavelar.com/archives/2010/11/nao_e_sobre_voce_que_devemos_falar_p
or_ana_maria_goncalves.php#comments

A partir de então, já não se tornou mais possível esconder as afinidades racistas e


eugenistas de Lobato. Atualmente elas se encontram expostas até mesmo na Wikipédia,
como se pode constatar pela leitura do verbete dedicado ao romance:

https://pt.wikipedia.org/wiki/O_Presidente_Negro

Link para baixar o livro de Lobato

http://lelivros.love/book/download-o-presidente-negro-monteiro-lobato-em-epub-
mobi-e-pdf/
Adalzira Bittencourt e o romance "S. Excia. a Presidente da República no Ano
2.500"

Assim como o paulista Monteiro Lobato idealizou pioneiramente a eleição de um


presidente negro nos Estados Unidos ― fato consumado com a vitória de Barack
Obama em 2008, 81 anos após o lançamento de "O Presidente Negro" ―, a paulista
Adalzira Bittencourt (1904-1976) também se tornou pioneira ao imaginar a futura
eleição de uma presidenta brasileira ― fato consumado com a eleição de Dilma
Rousseff em 2010, 76 anos após o lançamento de "S. Excia. a Presidente da República
no anno 2.500".

O livro de Adalzira, lançado pela editora Schmidt (São Paulo) em 1934, foi o
segundo no gênero da ficção científica escrito por uma brasileira. O primeiro, "A
Rainha do Ignoto", de autoria da cearense Emília Freitas, saíra em 1899.

Abaixo, foto de Adalzira Bittencourt nos tempos em que era conhecida apenas como
advogada, poeta e feminista.

"Revista da Semana" (RJ), 18/8/1923, número 34, página 23, terceira coluna.
http://memoria.bn.br/DocReader/025909_02/5301

Em suas 158 páginas, o romance de Adalzira expõe um programa completo (e cruel)


de imposição dos ideais da eugenia ao povo brasileiro do futuro, comandado por uma
mulher.

http://www.sebonascanelasleiloes.com.br/peca.asp?ID=4459389&ctd=4&tot=&tipo=
&artista=
Correção importante sobre o ano de lançamento do romance de Adalzira

A folha de rosto da primeira edição traz "1929" como o ano do lançamento:

Este é o ano presente em todas as cronologias da ficção científica brasileira e em


fontes como a Wikipédia.
Repare como o texto da folha de rosto informa: "Adalzira Bittencourt escreveu [...]".

Os recortes abaixo, entretanto, provam que a obra de Adalzira foi realmente lançada
em 1934, ano que deve constar das cronologias e da bibliografia da autora, por ser este o
critério consagrado para o registro de obras literárias.

1. A primeira menção ao livro de Adalzira na mídia da época deu-se em 9 de outubro


de 1934. Confundindo o nome da autora ("Ideziza Bittencourt" e "Ideziza R. Lacart"), o
redator informava sobre a leitura dos originais do romance pela própria Adalzira, em
uma reunião social.

____________________________

UMA FESTA DE ARTE

A ESCRITORA IDEZIZA [erro do redator] BITTENCOURT LÊ AOS CRÍTICOS


CRÔNICAS [erro do redator] DE ORIGINAIS DE UM LIVRO

Nos escritórios da Editora Ramos, a escritora Ideziza R. Lacart [erro do redator] leu
para os críticos cariocas, amigos e admiradores, os originais de um livro "S. Excia. O
[erro do redator] Presidente da República no ano 2.500.

A leitura agradou extraordinariamente, sendo a jovem escritora muito felicitada.

"Jornal do Brasil" (RJ), 9/10/1834, número 241, página 12, terceira coluna.

http://memoria.bn.br/DocReader/030015_05/47518

2. No dia seguinte, talvez motivado pelos erros do redator, o mesmo jornal repetiu a
notícia, agora com as devidas correções.
_________________________

UMA FESTA DE ARTE

A ESCRITORA ADALZIRA BITTENCOURT LÊ AOS CRÍTICOS CARIOCAS


DE ORIGINAIS DO SEU LIVRO

Nos escritórios da Editora Ravaro, dirigido pela Sra. Rachel Prado, a escritora
Adalzira Bittencourt leu para os críticos cariocas, amigos e admiradores, os originais de
um livro "S. Ex. a Presidente da República no ano 2.500.

A leitura agradou extraordinariamente. A jovem escritora revela brilhantes dotes de


romancista, prendendo a leitura a atenção do seleto auditório.

A impressão geral é que o livro da escritora Adalzira Bittencourt alcançará grande


sucesso.

"Jornal do Brasil" (RJ), 10/10/1934, número 242, página 12, terceira coluna.

http://memoria.bn.br/DocReader/030015_05/47550
Repare em "alcançará grande sucesso", trecho que indica o futuro lançamento da
obra.

3. Também o "Jornal do Commercio", na mesma data (10 de outubro) registrou a


reunião literária. O texto contém uma nova informação: "[...] cujo livro — "Sua Exa., a
Presidente da República no ano de 2.500" — apareceu naquela tarde". Ou seja,
provavelmente, trata-se da data do lançamento da obra.

Jornal do Commercio (RJ), 10/10/1934, número 8, página 10, terceira coluna.

http://memoria.bn.br/DocReader/364568_12/32523

4. A mesma reunião foi relatada em matéria publicada dez dias depois (20 de
outubro) pela "Revista da Semana".
"Revista da Semana" (RJ), 20/10/1934, número 45, página 21, primeira coluna.

http://memoria.bn.br/DocReader/025909_03/11048

Resenhas da obra de Adalzira à época do lançamento.

1. A primeira resenha saiu no dia 28 do mesmo mês (outubro de 1934), publicada


pelo "Jornal do Commercio".

_________________________

A autora procurou atrair a atenção do público com um título que promete muitas
fantasias, coisas extraordinárias e originais.

Não sabemos se assim foi melhor. O fim do livro é divulgar os pontos de vista da
autora sobre o feminismo.

E, neste particular, sua orientação e seus conselhos são de uma sadia realidade e
elevada concepção.

Toda a imaginação que ela pôs em pintar a república feminista do ano 2500 não torna
mais belos, nem mais seguros, nem mais atraentes os princípios sobre o feminismo,
enunciados no capítulo 7 do livro, na transcrição de trechos avulsos das preleções que
imagina devam ser feitas naqueles temos vindouros, nas "Escolas das Mães".

Vale a pena ler essas páginas claras, sadias e bem pensadas.

Nem por isso a ficção em que a Senhora Adalzira Bittencourt envolveu o seu
trabalho deixa de despertar interesse e prender o leitor.

São episódios e cenas arquitetadas com visível exagero, mas bem escritas, cheias de
originalidade, que se leem com prazer e crescente atenção.

"Jornal do Commercio" (RJ), 28/10/1934, número 24, página 9, segunda e terceira


colunas.

http://memoria.bn.br/DocReader/364568_12/32876

No capítulo 7, destacado na resenha acima, Adalzira expõe seu ideal de educação das
mulheres e, em particular, das mães. Trechos da obra, a seguir.

_________________________

O feminismo, o nosso verdadeiro feminismo, é esse. Feminismo brasileiro. Não


feminismo importado. Feminismo latino. É colocar a mulher no seu lugar. Levar-lhe aí
os seus direitos, pois que ela deve intervir positivamente nos assuntos políticos, nas
finanças, nos negócios, a fim de garantir com mais eficiência o esteio forte da família e
do lar. Ela deve saber ensinar aos filhos o caminho reto do dever, a aplicação dos
patrimônios, a honestidade e a justiça...
Repetindo um tema clássico das utopias (na verdade, distopias) dos primórdios da
ficção científica brasileira, Adalzira coloca a mulher no seu "devido lugar": o lar, onde
deverá ser a principal agente do Estado para formar cidadãos adaptados aos valores da
sociedade ideal.

A segunda função da mulher é previsível: ela deve ser um satélite que gira em torno
do planeta-marido. E também deve lhe conceder prazeres a que ela mesma não tem
direito.

_________________________

A mulher deve ser a musa inspiradora, a conselheira, a companheira, a amiga, a


enfermeira, a amante e confidente do marido.

Deve procurar mantê-lo no seu lugar de honra. Deve saber que o homem necessita
na vida de afetos diferentes e como a esposa não os sabe fazer ele necessita de diversas
mulheres...

Houve um reboliço de espanto pela classe.

Não se assustem com isso, diz a professora, pois é da própria natureza do homem.

A maternidade, exaltada como o ápice da vida feminina, é outro tema clássico dessas
utopias.

_________________________

Ser mãe é a mais bela, a mais nobre e a mais grandiosa missão da mulher. Ser mãe é
ser deusa. É ser rainha. Quantas mulheres não se julgariam imensamente felizes se
ouvissem uma boquinha rósea chamar-lhe — "mamãe".
2. A segunda e última resenha, bem breve, foi publicada na revista "Beira Mar" (RJ),
no mês seguinte (novembro de 1934).

_________________________

João Luso, apresentando Adalzira Bittencourt, diz da escritora de Mal-me-queres,


poesias que tiveram um prefácio do luminoso Vicente de Carvalho: "Fisicamente ― ou
quimicamente — Adalzira Bittencourt é homeopática. Mas que energia, que vibração,
que vida! Jornalista, advogada, poetisa, oradora, sufragista... Assim, moral a
intelectualmente, a gota se torna oceano. É pena que seja tão extenso o título da novela
da senhora Adalzira Bittencourt. Porque é realmente interessante, prendendo a atenção
do leitor pela novidade que encerra, apresentando-nos uma visão do Brasil em 2500,
governado por uma mulher linda e genial.
"Beira-Mar" (RJ), 24/11/1934, número 437, página 4, quarta coluna.

http://memoria.bn.br/docreader/067822/4168

3. No ano seguinte, em 1935, dois jornais publicaram uma avaliação do romance


escrita por um político em evidência, o deputado Aarão Rebelo (1906-1989).

_____________________________

Folgo registrar as impressões que experimentei da leitura de "S. Exa. a Presidente da


República no Ano 2500".

Livro de ficções: mas, atrás de cujas páginas se esconde um motivo superior, uma
grande inspiração no elogio da raça, na elevada e corajosa afirmação do povo brasileiro.

O gênio, a beleza, o heroísmo, a poesia, o amor, o sacrifício, a pátria, a humanidade,


não passam de abstrações porque são ideias. Pouco importa se temos o poder de animá-
las, embeber de sua irradiação a nossa argila, e vermos pelo seu prisma o único
hemisfério da vida. A ideia foi, é, e será sempre, a única realidade no universo.

Em "S. Exa., a Presidente da República no Ano 2500", há exagero. Não o nego. Mas,
no exagero vive uma lição. Há um estímulo. Há caminhos e rumos. Há um tema social.
Há ideias a seguir.

Assim, digna de nota, a tese fortemente desenvolvida na "Escola das Mães" (da pág.
59 à 86): crisol onde se estimam e aproveitam as energias da raça, onde se forjam e
apuram as grandes virtudes morais e cívicas do cidadão de amanhã.

A "Escola das Mães" é uma parte do livro assaz interessante: fonte de ensinamentos
eficazes, conselhos proveitosos. Um zelo bem compreendido pela sorte da prole. Há luz
no mistério da vida, no culto da família, no amor do lar: sentimentos que se vão
esmaecendo na cadência desta civilização de empréstimo.

"S. Exa. a Presidente da República no Ano 2500" é um romance passado num outro
clima cultural: numa elevada atitude política, num campo de grandes projeções sociais,
num salutar ambiente moral e material. O Brasil do futuro que amanhece.

Quanto ao sentido central do livro, o advento do feminismo, não me surpreende ―


está plenamente justificado, foi escrito por uma mulher.

Não há nisso, censura. Pelo contrário, vejo uma conclusão. Adivinha-se com
dificuldade, à leitura de "S. Exa. a Presidente da República no Ano 2500", que a sua
autora é, sem favores, pela sua inteligência, pelo espírito de observação e análise, pela
brilhante tese de seu romance, uma autêntica representante de seu sexo ― Aarão
Rebelo".
Jornal do Brasil (RJ), 9/4/1935, número 84, página 31, quarta e quinta colunas.
http://memoria.bn.br/DocReader/030015_05/52646

Correio da Manhã (RJ), 14/4/1935, número 12.391, página 31, quinta, sexta e sétima
colunas.

http://memoria.bn.br/DocReader/089842_04/27284

Também em 1935, o texto "O Dom das Lágrimas", de autoria da escritora Henriqueta
Lisboa (1901-1985) e publicado em "O Malho", mencionou uma cena do final do livro
de Adalzira.

_________________________

Razão de sobra teve Adalzira Bittencourt, quando na última página deste livro
audacioso e brilhante que é "Sua Excelência o [a] Presidente da República no ano de
2500" faz cair em prantos a mulher poderosa que assina, sem hesitação, o decreto de
morte para o homem que a fizera sonhar.

"O Malho" (RJ), 10/1/1935, número 84, página 12, segunda coluna.

http://memoria.bn.br/DocReader/116300/81799

Link para baixar o livro de Adalzira

https://pt.scribd.com/document/403502252/Adalzira-Bittencourt-Sua-Excia-a-
Presidente-Da-Republica-No-Ano-2500

Observação

. Esta cópia digital se baseia na edição fac-similar divulgada no livro Visões do


Passado, Previsões do Futuro, de Susan Canty Quinlan (Tempo Brasileiro Ltda.
Edições, Rio de Janeiro, 1996).
http://portal-archipelagus.azurewebsites.net/farol/ufg/produto/visoes-do-passado-
previsoes-do-futuro-duas-modernistas-esquecidas/39610/
A concordância de Lobato com a proposta de Adalzira: assassinar as mães que
protegessem seus filhos "defeituosos" da violência do Estado

Em 27 de novembro de 1934, o "Jornal do Brasil" publicou uma carta de Monteiro


Lobato a Adalzira Bittencourt, redigida após a leitura de "Sua Excia. a Presidente da
República no ano 2500".

Nessa carta, Lobato expôs sua plena adesão aos princípios da eugenia e expressou
concordância inequívoca (e chocante) com uma das medidas mais desumanas adotadas
pela "utopia feminista" na história de Adalzira.

Como é de costume no trabalho de pesquisa, a descoberta desse documento histórico


se deu por acaso, durante a busca de resenhas publicadas após o lançamento do livro "O
Presidente Negro".

Segundo o Google, o conteúdo da carta é reproduzido, sempre parcialmente (e sem o


seu trecho mais assustador), em apenas dois trabalhos acadêmicos. E nos dois a fonte é
a mesma: a primeira apreciação elogiosa ao livro de Adalzira, registrada no final de
"Visões do Passado, Previsões do Futuro – Duas Modernistas Esquecidas" (página 213).
É este o trecho:

"... que maravilha não será, a avaliar pelo quadro rápido que você pinta! Que delícia
viver no ano 2500!

"Mas quanta audácia, menina! Onde descobriu você tais reservas de coragem para
arrostar todos os preconceitos atuais e propugnar medidas maravilhosas... Parabéns!
Você é muito maior do que eu supunha..."

Monteiro Lobato.

São estas as reproduções da apreciação elogiosa:


"Quando uma Mulher for Presidente: feminismo e eugenia na obra de Adalzira
Bittencourt", página 11, Edgar Indalecio Smaniotto, 2012.

https://www.marilia.unesp.br/Home/Eventos/2015/xiisemanadamulher11189/quando-
uma-mulher-for_edgar-indalecio-smaniotto.pdf

"Ao Brasil dos meus sonhos: feminismo e modernismo na utopia de Adalzira


Bittencourt", página 28, Maria Bernardete Ramos, "Revista Estudos Feministas",
volume 10, número 1, janeiro de 2002, Florianópolis, Santa Catarina.

http://www.scielo.br/pdf/ref/v10n1/11627.pdf

A princípio, um elogio que apenas confirma o amor de Lobato aos princípios da


eugenia, incluindo seus aspectos discriminatórios e violentos.

O trecho acima lembra a prática do "blurb", breve endosso de pessoa famosa que
ilustra a capa de um livro. Às vezes, o editor seleciona somente a parte elogiosa da
resenha (em certos casos, somente um adjetivo), omitindo o que não ajudaria na
promoção da obra.

A nota de número 73 de "Visões do Passado, Previsões do Futuro – Duas


Modernistas Esquecidas" (página 222) informa que "as apreciações foram publicadas
em Alegria, 2.ª ed., 1948".

Eis a obra de Aldazira (um livro de poemas):


Dedicatória de Alzira na segunda edição do livro "Alegria".
https://produto.mercadolivre.com.br/MLB-712042452-alegria-freude-adalzira-
bittencourt-autografado-_JM

Divulgação de "Alegria" em "O Malho".

"O Malho" (RJ), fevereiro de 1941, número 13, página 60, primeira coluna.

http://memoria.bn.br/DocReader/116300/93419

O editor de "Alegria" cortou justamente os trechos mais fortes do endosso de Lobato.


Veja quais são eles, em negrito:

_______________________

Uma carta do escritor Monteiro Lobato

A Dra. Adalzira Bittencourt, advogada, poetisa, incansável batalhadora feminista,


tem recebido muitos aplausos pela publicação de seu livro, há pouco aparecido, "Sua
Excelência a Presidente da República no ano 2.500". Dentre esses aplausos cumpre
destacar os de Monteiro Lobato, escritor cujo renome se espalha pelo Brasil inteiro:

"Li de um trago o seu livro, tão original e animador. Animador porque nos dá, a nós,
homens que construímos este Brasil tão desengonçado, a esperança de que isto vire um
Éden quando a mulher tomar conta do leme. Que maravilha não será, a avaliar pelo
quadro rápido que você pinta!

"Mas quanta audácia, menina!

"Onde descobriu você tais reservas de coragem para arrostar todos os preconceitos
atuais e propugnar medidas maravilhosas, como a eliminação dos estropiados e
morféticos. e até a pena de morte para as mães que sobreponham aos interesses
nacionais supremos o outro e egoístico amor à cria?

"Parabéns. Você é muito maior do que eu o supunha. Desculpe a minha imbecilidade


avaliativa. Coisas de homem.

"(a.) Lobato."
"Jornal do Brasil" (RJ), 27/11/1934, número 283, página 13, terceira coluna.

http://memoria.bn.br/DocReader/030015_05/48889

A carta saiu também no "Correio da Manhã", dois dias depois.


"Correio da Manhã" (RJ), 29/11/1934, número 12.275, página 6, terceira coluna.
Lobato

http://memoria.bn.br/DocReader/089842_04/25139

"Estropiados" significa "aleijados"; "morféticos" significa "hansenianos" (leprosos).


Essas categorias de seres humanos, no mundo ideal de Adalzira e Lobato, não
mereceriam conviver com as pessoas "normais", sendo justificado o uso do Estado para
a sua eliminação imediata.

A concordância de Lobato se refere especificamente a esta determinação do


"governo feminista" (classificação da autora) de 2500, relativa a crianças que nasciam
com "defeitos físicos":

________________________

§ 2.º ― No caso de encontrar defeito físico incorrigível com os moderníssimos


aparelhos ortopédicos, [a mãe] deverá levá-lo imediatamente para o "Centro de Saúde e
Higiene" a fim de ser objeto de estudos, e dentro de 3 dias deverá ser exterminado.

Art. 12.º — A mãe que ocultar um filho aleijado a fim de não ser legalmente
exterminado, em benefício da eugenia da raça, ao ser descoberta será decapitada
juntamente com o filho.
Essa pena de morte aplicada a mães que protegessem seus filhos "defeituosos" da
violência extrema do Estado foi exemplificada em cena do final do romance.

________________________

Uma manhã Mariângela estava no seu gabinete quando o Chefe de Polícia apareceu
com 2 decretos para Sua Excia. a Presidente assinar.

Eram decretos com sentenças de morte. Uma pobre moça ocultara o filho que
nascera sem mãos e o criara até 2 anos de idade. A polícia descobriu. A mãe deveria ser
decapitada juntamente com o filho.

Entanto a mãe amamentava outro filhinho de 8 meses. Este era belo e perfeito. Um
romance triste.

Porém... Dura lex, sed lex... [A lei é dura, mas é lei.]

***

Mariângela assinou. Sempre que isso lhe acontecia, ela passava o dia triste e
amargurado. A carta de Jorge era o seu único lenitivo. Esquecia tudo para só se lembrar
dele, o seu Amor, seu grande Amor!

Seguindo a boa técnica literária, a autora provou de modo cênico uma afirmação
anterior (e chocante) da narradora.
Como foi mostrado antes, Adalzira introduziu o seu romance sugerindo que a
interpretação do sentido da obra caberia ao leitor. Mas não há possibilidade de dúvida
quanto ao sentido que lhe foi atribuído pela própria Adalzira.

Em dezembro de 1932 (pouco antes, portanto, do lançamento da obra), Adalzira


escreveu especialmente para a revista "Brasil Feminino" o artigo "Eutanásia", no qual
não poderia ser mais explícita quanto a esse sentido. O conteúdo do artigo é idêntico ao
das propostas eugenistas da história, no aspecto abordado por este texto.

Adalzira inicia o artigo com a pergunta:

"Tem o médico o direito de abreviar a morte do doente quando falham todos os


recursos da ciência?"

A resposta permite que Adalzira reafirme sua filiação ao movimento (negrito


acrescentado):

"Entretanto, eu responderia quatro vezes SIM, encarando a Eutanásia como uma


grande conquista em favor da raça como função eugênica; encarando-a como uma
questão eminentemente social; e sob o prisma econômico e patriótico".

O assassinato de seres humanos "imperfeitos", encoberto pelo eufemismo "eutanásia"


nesta artigo de Adalzira, era na verdade um dos meios mais rápidos para se atingir o
ideal eugenista: eliminando-se quem não se enquadrava no mundo ideal, bastaria
aprimorar os restantes, já organicamente "perfeitos".

E Adalzira vai além.

"A Eutanásia deve, diante disso, ser regulada sem apelarmos para o
sentimentalismo [vide a cena do romance transcrita mais acima] ou para a questão
religiosa.

"Sou tão extremista nesta questão que se pudesse ser ouvida, se pudesse fazer alguma
coisa dos meus desejos patrióticos, eu aplicaria por lei a Eutanásia a todos os
enfermos do mal de Hansen; aos idiotas e aos loucos incuráveis; aos aleijados
monstruosos, e isso o faria por patriotismo.
"O Brasil precisa de braços fortes; de espíritos fortes; de caracteres bem formados, de
gente sadia, enfim. Aí está ventilada a questão sob o prisma patriótico, econômico,
eugênico e social.

"A Eutanásia social e patriótica devia ir além: exterminar, não somente os loucos e
os leprosos, como também aqueles que revelam ausência de brio, de caráter e de
dignidade, fazendo com isso a desgraça do Brasil".

Historicamente, quem faz o mal sempre se considera um representante do bem. O


caso Adalzira-Lobato não foi diferente:

"A questão sentimental se calará também, porque o 'homicídio piedoso' é executado


por alguém que quer eliminar um sofrimento. Dessa premissa tira-se a conclusão que
esse alguém é possuidor de sentimentos bons, puros e perfeitos".

"Brasil Feminino" (Rio de Janeiro), dezembro de 1932, número 8, página 12.

http://memoria.bn.br/DocReader/160733/364
Foi esse "programa social", proposto por Adalzira no artigo e no romance, que
Monteiro Lobato aprovou — mais do que na ficção, para ser aplicado na realidade.

Se havia dúvidas a respeito de quão longe o escritor tinha se permitido avançar, em


seu sonho de ver um governo eugenista instalado no Brasil, agora não há mais.

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