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HISTÓRIAS INÉDITAS DA LITERATURA BRASILEIRA

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Autor: Sérgio Barcellos Ximenes.

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D. Pedro II e o famoso "golden shower" de uma baronesa em 1888
Apresentação
Graças à conta de twitter do Presidente Bolsonaro, no carnaval de 2019 o Brasil
inteiro aprendeu, um tanto surpreso, o significado moderno da expressão inglesa golden
shower ("chuva dourada" ou "chuva de ouro"). Assim, com alívio, evito explicá-lo neste
artigo.
Em 1888, 131 anos antes, outro supremo mandatário da nação (no caso, D. Pedro II)
foi envolvido inadvertidamente em uma história cuja maior atração era... adivinhe: um
golden shower.
Obviamente, naquele tempo "chuva de ouro" (golden shower) tinha um significado
menos safadinho. Ou, digamos, parcial: denominava somente a queda da urina devido à
gravidade, sem nenhuma referência a um corpo tomado como alvo. Descendentes da ex-
família imperial, tranquilizem-se.
A Chuva de Ouro (conto científico) conta uma breve, estranha e divertida história
cujos personagens são D. Pedro II, uma bela baronesa, seu esposo e seu suposto amante
(da esposa, bem entendido), e ainda o francês Louis Pasteur, cientista cuja análise
química "detetivesca" permitiu descobrir a ocorrência de um golden shower (no bom
sentido) em uma noite chuvosa de 1888, no chalé vizinho ao palacete onde repousava
enfermo o ainda imperador.
Cidade do Rio (Rio), 26/12/1889, número, página 1, penúltima e última colunas.
http://memoria.bn.br/docreader/085669/2591

O autor
O conto, publicado em 26 de dezembro de 1889 no jornal Cidade do Rio, tinha por
autor um francês de nascimento, Émile Rouède (1848-1908), radicado no Brasil desde
1880. Artista de múltiplos talentos (compositor, cantor, escritor, dramaturgo, pintor,
litógrafo, fotógrafo, caricaturista e professor), Émile lutou pela abolição da escravatura
e pela instituição da República em nosso país. No período de moradia no Rio, tornou-se
amigo de boa parte da intelectualidade carioca.
Vamos ao conto.

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A chuva de ouro (conto científico)
Sempre gostei das coisas e dos homens sérios, porque eles me fazem rir a bandeiras
despregadas [gostosamente]: os tais homens têm excentricidades sublimes; julguem,
leitoras queridas, julguem e com certeza acharão que tenho toda [a] razão.
***
O título de Barão de Santa Ureia é um pseudônimo que oculta o nome de um dos
nossos homens sérios, mais dados a ciências naturais e antropológicas. Esse barão, hoje
sexagenário, casou há dez anos com a mais linda flor do Catete, com a bela Sebastiana.
Apesar de todos os seus conhecimentos antropológicos, só conseguiu um herdeiro do
seu nome no ano passado, isto é, desde que foi morar no seu lindo chalé da Tijuca, em
companhia de Sebastiana e de Gustavo (Gustavo é um sobrinho dele, rapaz robusto e
garboso que o ajuda em seus trabalhos científicos).
Alguns mal-intencionados talvez encontrem, nesse fato, motivo para alimentar a
crônica escandalosa da boa sociedade. O barão, coitado!, acha isso muito natural,
porque vem confirmar as suas teorias a respeito das correntes atmosféricas que
constantemente pairam nas florestas da Tijuca. Ele gosta de faltar nisso; quando
conversa, de pé, na sala de visitas, pousa a mão numa cadeira como fazem os oradores,
fecha os olhos, gesticula lentamente, escuta-se.
Dizia ele há dias:
― É assim, Gustavo. Aqui nessas alturas tudo é fecundo: o ar, a água, o solo e a
luxuriante vegetação.
"Aqui as sementes germinativas encerradas debaixo das camadas terrestres batem-se
para encontrar um lugarzinho ao sol. Olha para essa árvore e para essa pedra: nas
aberturas do tronco verás uma planta, e nas fendas do sílex encontrarás um vegetal.
"Ficam, porém, sementes no subsolo — atende bem, Sebastiana, porque é agora que
a minha teoria começa. — As chuvas vespertinas, caindo das nuvens, dissolvem esses
germes, o sol evapora essas águas ocasionando um vapor criador que é arrastado pela
chuva do dia seguinte. Resulta dessas observações o seguinte aforismo: As chuvas da
Tijuca encerram o micróbio da geração.
"Sim, Gustavo, estamos em presença do célebre Anthropoliuminum dos antigos
Druidas."
***
O Barão estava realmente satisfeito: tinha encontrado uma teoria original que lhe
dava o direito de figurar na história das descobertas deste século. Uma coisa, porém, o
amofinava: para tornar público o seu invento precisava analisar a tal chuva, e ele não
possuía os instrumentos necessários para esse trabalho; além disso, não tinha a
suficiente confiança nos químicos do Rio de Janeiro. Que fazer?...
... Consultou o sobrinho, e este lhe aconselhou que mandasse um litro de sua chuva a
Pasteur.
O Barão achou boa a ideia. Ato contínuo, procurou uma garrafa de vidro branco,
colocou-a no terraço do chalé, tendo a precaução de introduzir um funil na boca do
recipiente, e esperou que as nuvens deixassem cair o seu benéfico líquido.
Estes fatos ocorriam há pouco mais de um ano, quando o [agora] ex-imperador, por
conselho do Sr. Mota Maia, habitava a Tijuca.
O chalé do Barão de Santa Ureia, situado perto do palacete onde convalescia o régio
enfermo, via-se invadido por numerosos hóspedes.
Uma noite que todos os dormitórios do chalé se achavam ocupados, chegou ainda
mais uma visita, com intenção de ali passar a noite, para ter a honra de falar muito cedo
ao imperial doente que, como todos sabem, gostava de madrugar.
Improvisou-se mais uma cama para a baronesa de Monte Baixo; era esse o nome da
última [pessoa] chegada, e no momento de dar um beijo à dona da casa, para tomar
posse do leito improvisado, notou a de Monte Baixo que faltava um objeto de primeira
necessidade. O objeto que faltava não era uma taça, nem um copo... antes pelo
contrário, mas era um recipiente. Pediram isso à criada, que pouco tempo depois voltou
dizendo que estavam todos ocupados. Sebastiana era mulher de recursos: foi direitinho
ao terraço e voltou com o pluviômetro na mão, dizendo à de Monte Baixo: À la guerre
comme à la guerre [Na guerra, aja como na guerra]. Riram da ocorrência e separaram-
se.
***
Às duas horas da madrugada, Sebastiana foi acordada pelo ruído da trovoada e da
chuva que caía copiosamente.
Lembrando-se de que o marido iria cedo à procura da garrafa do terraço, levantou-se
ao raiar do dia e colocou no seu lugar o pluviômetro.
Poucos momentos depois, o Barão examinava com toda [a] atenção a garrafa que
encerrava um líquido cor de topázio. Fechou o recipiente e mandou-o pelo primeiro
vapor a Pasteur, para que ele emitisse opinião a respeito.
***
Pasteur respondeu com o laconismo que todos lhe conhecem e que é apanágio de
todos aqueles que sabem apreciar o valor do tempo. Eis a sua carta, traduzida ao pé da
letra:
____
Sr. Barão de Santa Ureia,
O líquido que me mandou, analisado por mim, contém as matérias seguintes:
Água ....................... 875.052
Ureia ....................... 10.366
Ácido úrico ............. 0.406
Sais fixos ................ 6.143
Matérias orgânicas.... 8.033
A senhora dará à luz dentro de quatro meses. — (Assinado) — Pasteur.
***
O Barão de Santa Ureia está, e com toda [a] razão, convencidíssimo que as águas da
Tijuca encerram o micróbio da fecundidade.
Émile Rouède.

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