Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
o .2
Coleção Itinerários
Conferências e Comentários de um
Seminário realizado de
9 a 12 de junho de 1981
Coleção Itinerários
C o m O äD O lO
Edibm UniversidadedeBrasilia
Ml FUNDAÇÃO ROBERTO MARINHO
Este livro ou parte dele
não pode ser reproduzido sob nenhuma forma
sem autorização por escrito do Editor
Impresso no Brasil
Editora Universidade de Brasília
Campus Universitário - Asa Norte
70910 Brasília - Distrito Federal
Copyright © 1981 bv Editora Universidade de Brasília
Capa:
Arnaldo Machado de Camargo Filho
Ficha catalográfica:
Nesse mundo plural situa-se um País plural, tantas e diferentes as áreas de nossa
cultura.
Para essa Nação gritantemente plural seria loucura a tentativa de transplantar
modelos políticos de países sedimentados, assim como também o seria o desconhe
cimento da experiência alheia, das vias já percorridas por outros povos, cujo roteiro
só nos pode auxiliar na tomada de consciência de nossos próprios caminhos, mesmo
porque o reconhecimento das constantes nacionais só é legítimo e válido como elo e
momento no processo das idéias e dos valores humanos universais.
Reale entende que, desde 1930, nosso modelo (termo ambíguo) é a Democracia
Social. O assunto deve ser visto de dois ângulos: um político-institucional e outro de
natureza econômico-financeira. Não pode haver conflito entre esses dois prismas. É
difícil conciliar uma economia puramente liberal com um Estado intervencionista; e,
vice-versa, um Estado de estrutura liberal com uma economia com algum ingrediente
de planificação. Para fazer face a esta necessidade moderna, surgem vários caminhos.
O da Democracia Social é uma solução pluralista, porque não se reduz à estatização
dos meios de produção, aind^ que através das chamadas entidades da Administração
Indireta.
A Democracia Social não considera a intervenção estatal um mal necessário (idéia
liberal), nem que a intervenção resolva o problema da socialização ou da distribuição
de riquezas. Ela procura conciliar os três fatores: a iniciativa privada, a fiscalização e a
programação do Estado (fato normal inerente à estrutura tecnológica), a participação
direta do próprio Estado.
E a dosagem desses fatores? Dependerá das circunstâncias e conjunturas de cada
Nação. A análise de nossa Constituição revela a adoção de uma economia
marcadamente social e não liberal. Ela não perde a fisionomia de economia de
mercado, mas escolhe formas para combinar a exigência de desenvolvimento com o
imperativo de participação social nos resultados da produção. Adota a Constituição o
princípio da iniciativa privada, mas também da função social da propriedade39.
Essa situação, a de uma economia social, não se concilia com um Estado de
Direito do tipo liberal.
Neoliberalismo ou neocapitalismo são eufemismos para mascarar a realidade
inevitável da Democracia Social.
Democracia Social não é antiliberal, no tocante a determinados valores presentes
no legado histórico do liberalismo, como os direitos inerentes à pessoa humana, onde
não pode o Estado legitimamente interferir. Não basta porém, a mera declaração
formal desses direitos. Os adeptos da Democracia Social vão além. As novas bases do
problema da liberdade indicam seu entendimento como forma concreta de parti/ipaçâo,
O Pensamento Político de Miguel Reale 19
tanto no plano político como no plano econômico e social. Mais uma vez, se impõe a
menção à alteração radical na compreensão do homem: ele não é um ser abstrato,
mas um ente concreto, situado num conjunto de circunstâncias. Na idéia de Ortega e
Gasset, o homem é ele e a sua circunstância. A ação política deve levar em conta tanto
o indivíduo como a sua condição social no contexto das interações coletivas. Ao lado
da Declaração dos Direitos Políticos surgiu a Declaração dos Direitos Econômicos -
Vitais. E não apenas dos indivíduos no seio de uma Nação, mas também dos povos no
âmbito da comunidade internacional. Por isso deve haver também um equilíbrio
mundial e a superação das desigualdades econômicas no plano do concerto das
Nações. A conceituação da liberdade, como participação, supera a colocação
puramente formal do poder de agir reconhecido a cada indivíduo e a cada grupo.
Acarreta uma correlação mais nítida entre a liberdade e responsabilidade. Não se trata de
colocar o problema em termos formais: quem exerce um poder deve responder pelas
conseqüências de sua ação autônoma ou a liberdade de um termina onde a liberdade
do outro começa. Isto é individualismo liberal. O que se exige é que o uso da
liberdade seja um bem para o seu titular, sem dano para coletividade, de tal modo
que o direito de participar livremente dos benefícios da vida social é corolário do
dever de preservar e desenvolver as condições gerais dessa participação.
O trabalhador, na empresa, não é um simples indivíduo, mas envolve sua
integração e sua participação no lucro e na gestão. Nesses termos, não pode ele pensar
ou agir em termos, unicamente de sua classe, ou de sua individualidade, mas de
ambas no esforço comunitário.
O princípio da liberdade como participação é um dos esteios da Democracia
Social. E as classes deixam de ser adversas para serem simplesmente diversas e
comporem o todo nacional. A Democracia Social e a Democracia Liberal são
diferentes, mas ambas buscam o Estado de Direito. Elas dão, apenas, uma conotação
diversa ao conceito “ Estado de Direito” .
Para a Democracia Social, o Estado de Direito só o é efetivamente quando se torna
“ Estado da Justiça Social”.
Como diferem as duas democracias? Uma das teses: conceito de participação dos
indivíduos nos órgãos institucionais do Estado e no processo de distribuição dos
benefícios propiciados pelo progresso tecnológico.
O
pode ser o resultado de uma composição dinâmica de valores, que devem ser
conservados, em função dos novos valores que a sociedade progressivamente
reclama.”
“... somente através da perspectiva histórica que emergem e se consolidam os
valores da cultura”40.
Quando Reale pensa em reforma, já mencionamos, pretende preservar não
apenas o legado do liberalismo, mas a herança da História das idéias políticas e da
experiência de sua aplicação.
O problema político é um problema basicamente espiritual.
A Política se situa no Mundo da Cultura e, por isso mesmo, no Mundo da
Liberdade.
O fenômeno cultural implica sempre numa atitude positiva ou negativa em face
“ dos dados da natureza”, assim como em uma reelaboração ou reafirmação de
atitudes passadas, ante o que se poderia, cum grano salis, denominar os “dados da
história” .
A política se situa no Mundo da Cultura, portanto, das posições do espírito e de
suas projeções, em face da natureza e da vida. Homem culto é aquele que tem o seu
espírito aberto às vibrações múltiplas dos valores. E dos valores de seu tempo41.
A própria Política do Direito, a teoria da Legislação, se refere aos valores42.
A passagem de uma Democracia Liberal para uma Democracia Social, que
envolve, como foi realçado, a alteração da estrutura do Estado, reflete a mutação do
Estado de Direito, de feição puramente formal, para o Estado de Cultura, logo de
realização múltipla de valores, que não deixa de interferir nos planos da vida social,
não só para realizar formalmente o Direito, mas também para promover e dinamizar
as fontes múltiplas da produção material e espiritual43.
Escrevendo sobre Revolução e Normalidade Constitucional, em 1966, diz Reale que
alguma coisa se fez de inegável valia no campo jurídico-constitucional: a elaboração
legislativa, novos dispositivos sobre a vida partidária, etc. Realça, porém, a ausência
de algo que cimente e ligue entre si as reformas parciais, dando-lhes sentido orgânico,
na unidade de um sistema destinado a durar. Como se deverá atingir a normalidade
constitucional na concretitude das circunstâncias presentes, como largueza de
compreensão, quanto às perspectivas do futuro de uma Nação, que desde 1922, tem
vivido em intermitente processo revolucionário, na busca incessante de sua própria
imagem, a qual somente será encontrada pela auto-afirmação de nossos valores
próprios, enriquecendo o cenário dos valores universais e neste nos inserindo com
consciência plena de nossa autonomia cultural44.
22 Miguel Reale na UnB
Já na superação das ideologias este problema se colocava. Não se pode postular
uma política atual desvinculada do século passado, mas é preciso saber o que há de
vivo e o que há de morto tanto no liberalismo como no socialismo45.
Todos lutamos por uma ordem social justa: a) uns se batem pela conservação ou
ressurreição de princípios do passado que julgam válidos; b) outros querem uma
sociedade autóctone ou aborígene desapegada do fluxo das idéias universais; c)
outros querem o transplante de modelos administrativos consagrados noutros
países; d) “e outros há, finalmente, que procuram compor, em unidade concreta,
velhas e novas estruturas sociais, alimentadas por nossa própria experiência histórica,
em participação com a cultura do Ocidente, desde que necessárias à realização plena
dos valores humanos, pelo atendimento complementar do que cabe a cada qual e
cabe ao todo coletivo”46.
Nesta linha é que se põe a idéia basilar da igualdade dos trabalhadores do braço,
do capital e da inteligência, de cuja harmonia depende a plenitude de uma civilização
que aspire à progressiva supressão de situações que não se fundem na auto-afirmação
da personalidade. A lei básica da convivência democrática: o reconhecimento de que
todas as formas de trabalho ostentam igual título para participar de forma efetiva, dos
benefícios da cultura material e espiritual, na medida do bem comum, segundo a
hierarquia de valores e de urgências que caracteriza cada ciclo de cultura47.
A síntese dessa crítica da História e a preservação de seu legado está na admirável
conferência “os valores fundantes da Democracia” , no Recife, em 11 de agosto de
1963 e no dia 29 no auditório do “ Fórum Roberto Simonsen” em São Paulo. São as
constantes axiológicas da História resumidas em forma admirável e propostas em
síntese necessária. O logos grego e a voluntas romana, a Filosofia e o Direito ordenaram
as idéias de fraternidade, trazida pelo Cristianismo, de liberdade, pelo liberalismo e de
igualdade, pelo socialismo. Deram-lhes um conteúdo vital,
“ Infundindo-lhes a universalidade que transcende as peculiari
dades de cada ciclo histórico onde cada “constante axiológica” haja
encontrado o clima espiritual propício à sua eclosão ou à sua maturidade.
Nada tem sido tão adverso ao ideal democrático como o apego a
soluções tidas na conta de definitivas, o amor cego por fórmulas
cristalizadas no tempo, quando a democracia só pode ser concebida como
um processus histórico aberto para o futuro, correndo-se, dia a dia, o risco e
o benefício das atitudes inovadoras.
Em contraposição às sociedades compactas ou totalitárias, funda
mentalmente anti-históricas, por visarem a atingir um estágio final de
bem-aventurança social - como seria o do comunismo - a democracia se
confunde com o processo mesmo de atualização dos valores de convi-
O Pensamento Político de Miguel Reale 23
vencia, através do enriquecimento progressivo do homem e do mundo
cultural, expressão das forças reveladoras e constitutivas do espírito.
Mister é, pois, não percamos esse sentido essencial de historicidade,
nem o rumo assinalado pelas “constantes axiológicas” que marcam os
momentos culminantes do trabalho criador da espécie.
É dentro do quadro geral de tais perspectivas que nos cabe integrar,
quanto antes, com sabedoria, em unidade harmônica e dinâmica —tal é a
intransferível e delicada missão do Ocidente - os valores fundantes que
acabamos de evocar, sem que qualquer deles aniquile o outro, sem que a
perda da liberdade seja o preço vil do bem-estar adquirido, nem a ordem
jurídica o instrumento dócil de uma “ sociedade fechada”, de um Estado
totalitário, em cujas engrenagens fique pulverizado o valor da pessoa e do
espírito como liberdade.
Não seremos nós brasileiros, orientados, nas mais duras crises por um
fino sentido de compreensão, do valor das partes e do valor do todo, do
futuro e da tradição, que haveremos de desertar dessa tarefa ingente de
compor equilíbrios e de superar eticamente os conflitos de interesses,
concordando em optar, melancólica e passivamente, por uma solução
setorizada e estrábica que reduza a liberdade à “ posse do pão e da carne”,
ou a igualdade ao marasmo dissolvente dos estímulos e das aptidões
pessoais que tornam a existência válida em si mesma.
Estou convencido, ao contrário, de que, pela singular situação
histórica e geográfica do Brasil no continente americano - livres que
somos da febre do “ espaço vital” , assim como da herança amarga dos
conflitos de raças e de classes, haveremos de colaborar, de maneira
decisiva, no processo de atualização do ideal democrático, sem neutra-
lismos calculistas e sem abdicações servis, sabendo projetar toda a
originalidade de nosso ser nacional na dinâmica das idéias universais fiéis
sempre à liberdade de pensamento, ao culto do direito, aos valores do
espírito, à independência civil e política do indivíduo e à igualdade
concreta reclamada pela sociedade contemporânea”48.
No prefácio da Formação da Política Burguesa (1934), Reale escrevia “ mais do que
soluções, procuramos sugerir problemas” .
Quando colocou, nos Fundamentos do Direito, a questão do problema da validade
da norma jurídica, deu os passos para a tridimensionalidade jurídica.
Colocava-se na linha de Gertrude Stein no episódio de sua morte: Que resposta,
se não sei a pergunta.
24 Miguel Reale na UnB
E na frase de Malraux: prefiro as perguntas às respostas, porque aquelas nunca
causaram mal à humanidade.
Reale, portanto, sempre pensou diante dos problemas e por isso pôde superar as
falsas aporias, os obstáculos intransponíveis, e chegar, assim, pensando sobre os
problemas aos tópicos do Direito e da Política.
Por ser assim, sempre exerceu a tolerância, como virtude filosófica. Lembro-me
de sua primeira aula para a minha turma na Faculdade de Direito, quando
apresentou seus dois assistentes, ilustres professores, mas que nenhum deles se filiava
à escola filosófica dele, catedrático.
Sua presença nos momentos da construção da Democracia Nacional e sua
participação na Revolução Brasileira, da qual vivemos apenas um momento, é
explicada na realização da idéia de Alberto Torres: “Toda Revolução começa com
uma mudança de atitude diante dos problemas”. Reale sempre pensou em
consonância com o espírito dos tempos e viveu as angústias das épocas.
De Lenine se disse que suas idéias tinham o cheiro da terra russa.
De Reale também se pode dizer que seu pensamento está enraizado no Brasil,
sem perder a universalidade.
NOTAS BIBLIOGRÁFICAS
1. “ O concurso de Filosofia do Direito” , SP, 1940, p. 7.
2. O tema o preocupa há muito, cf. “ O Sistema de representação proporcional e o regime presidencial
brasileiro” , in Revista Brasileira de Estudos Políticos n.° 7, novem bro de 1959; e “ Notas sobre as Reformas
Político-Eleitorais” , in Digesto Econômico n.° 169, janeiro/fevereiro de 1963.
3. cf. “ Problemas Institucionais do Estado C ontem porâneo” , in “ Arquivos do Ministério d aju stiça” , ano
XXIX, n.° 124, dezem bro, 1972.
4. cf. Democracia e Revolução, 1969 e Da Revolução à Democracia, 1977, edições Convívio.
5. cf. “ Notas sobre Reformas...” supracitadas.
6. cf. “ H om em e Cosmos no Limiar da Era Interplanetária” , in Pluralismo e Liberdade, Saraiva, SP, 1963.
7. Note-se a rim a com o já m encionado “ Atualidades Brasileiras” , de 1937.
8. in Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, n.° 10, junho de 1977.
9. in Revista Brasileira de Filosofia nP 10 1.
10. cf. Da Revolução à Democracia, na parte em que escreve sobre a Universidade Democrática.
11. cf. “ Realismo e Perseverança” , in Revista Arquivos do Ministério d aju stiça n.° 157.
O Pensamento Político de Miguel Reale 25
12. cf. Filosofia do Direito, 4? ed., Saraiva, SP, 1965, p. 418.
13. cf. Teoria do Direito e do Estado, Livraria Martins, SP, 1940.
14. cf. “ O cansaço das ideologias” , in Problemas de nosso tempo, ed. Grijalbo, SP, 1970.
15. cf. conferência cit., na nota nP 8 supra.
16. “ Realismo e Perseverança” supra cit.
17. cf. Lições Preliminares de Direito, Saraiva, 6a ed. SP, 1979, cap. XXIV.
18. cf. Filosofia do Direito, cap. XXXIV.
19. cf. Da Revolução à Democracia, p. 88.
20. cf. Teoria do Direito e do Estado, p. 29.
21. idem, ibidem, p. 29 e 105.
22. Da Democracia à Revolução, p. 84 e segts.
23. cf. “ O problem a jurídico da criação dos m unicípios” , a propósito da projetada criação do m unicípio de
Adam antina; mais tarde a m atéria foi integrada num plano mais teórico, no volume, “ Nos quadrantes do
Direito Positivo”, ed. Michalany, SP, 1960.
24. Ibidem.
25. cf. Coexistência da iniciativa privada com a atividade estatal nos serviços de Energia Elétrica, Saraiva, SP, 1961.
26. cf. Da Revolução à Democracia, p. 19.
27. ibidem.
28. ibidem, p. 21.
29. ibidem, p. 22.
30. cf. Pluralismo e Liberdade, p. 146 e segts.
31. cf. Problemas Institucionais do Estado Contemporâneo.
32. cf. Problemas do Nosso Tempo, p. 79.
33. cf. Problemas Institucionais do Estado Contemporâneo.
34. cf. “ Estruturas Jurídico-Políticas C ontem porâneas” in Revista de Direito Público, ano IV, V, 13,
julho/set. 1970.
35. cf. A Sociedade Contemporânea, Seus Conflitos...
36. cf. Estruturas Jurídico-Políticas Contemporâneas.
37. cf. Problemas de Nosso Tempo, p. 95 e segts.
26 Miguel Reale na UnB
38. cf. Estruturas Jurídico-Políticas Contemporâneas.
39. cf. “ O M odelo Político da Democracia Social” in Da Revolução à Democracia.
40. cf. Da Democracia à Revolução, p. 16.
41. cf. Filosofia do Direito, p. 507.
42. ibidem, 196.
43. cf. Da Democracia à Revolução, p. 32.
44. ibidem, p. 43.
45. cf. Estruturas Jurídico-Políticas Contemporâneas.
46. cf. Pluralismo e Liberdade, p. 136,
47. ibidem.
48. final do Pluralismo e Liberdade.
1.2. COMENTÁRIOS DE MIGUEL REALE
Magnífico Reitor José Carlos Azevedo, prezados companheiros de Mesa, meus caros
amigos, sejam as minhas primeiras palavras de elogio à Universidade de Brasília
por esta série de conferências focalizando problemas básicos da cultura contem
porânea e dedicando especial atenção à problemática brasileira.
Devo informar ao ilustre Reitor que, na última sessão do Conselho Federal de
Cultura, o Conselheiro-Ministro Geraldo Bezerra de Menezes, focalizando essa
iniciativa da Universidade de Brasília, enfatizou sua importância. E, entre as palmas
do Plenário, propôs fosse oficiado a Vossa Magnificência no sentido da inteira
solidariedade daquele órgão, que representa a cultura brasileira, por tudo que tem
sido feito durante a sua gestão, numa compreensão profunda dos valores nacionais é
universais.
Eu sou aqui portador dessa mensagem que deverá chegar dentro em pouco,
oficialmente, às mãos de Vossa Magnificência.
Todos perceberam com que carinho e com que acuidade o Professor Ronaldo
Poletti reconstituiu os pontos básicos e essenciais de meu pensamento político.
Reconheço que não era e não ê tarefa simples. Não pelo valor e complexidade do que
foi exposto, nem pela amplitude de minha experiência política, mas pelo fato de que,
dadas as vicissitudes de minha vida, muitas teses acham-se dispersas em livros,
conferências e artigos. Nada teria a acrescentar ao que ele, com tanta precisão e
clareza, tornou conhecido de minhas obras.
Eu vou obedecer ao programa sempre seguido nestes encontros, que é dar minha
impressão sintética sobre o que foi exposto, a fim de, depois, permitir que haja um
diálogo mais livre, mediante o qual se torne possível verificar como a exposição de
minhas idéias, fielmente feita pelo Professor Ronaldo Poletti, repercutiu no espírito
dos presentes. O que interessa, em matéria científica, e aqui estamos para tratar da
política com espírito científico, - é exatamente esse problema nuclear da partici
pação: verificar como a idéia é recebida, visto como, no ato de recebê-la, há algo que
transcende a passividade, e marca uma atitude ativa e criadora do espírito.
Em relação à exposição feita pelo Professor Poletti, devo assinalar um ponto que
me parece importante na cultura nacional. Alguém há de perguntar: por que essa
preocupação permanente, constante, desde a adolescência, pela problemática
28 Miguel Reale na UnB
política, por parte de quem tinha a vocação - e tem a vocação - fundamentalmente
filosófica e jurídica?
Nos países altamente desenvolvidos opera-se como que uma divisão do trabalho,
de tal maneira que, a partir mesmo dos bancos acadêmicos, um jovem se destina à
Ciência Política, um outro à Filosofia, um terceiro ao campo jurídico, um quarto a
esta ou àquela outra atividade cultural, e assim por diante. Em países como o nosso,
no entanto, verifica-se uma atração para múltiplos centros de interesses, o que é
expressão e exigência da sociedade e do meio em que vivemos. Um velho professor
da Escola Politécnica de São Paulo dizia que nos países altamente desenvolvidos há
um homem por metro quadrado, em termos de elite, enquanto no Brasil existe um
homem por metro de testada. Daí, esta solicitação contínua do intelectual brasileiro a
fázer muitas coisas, a dar atenção a uma multiplicidade de tarefas. Isto representa, de
um lado, um mal; de outro lado, oferece aspectos positivos.
Sejamos sinceros: se eu me tivesse concentrado de maneira plena e permanente
na temática política, teria talvez tido a oportunidade de desenvolver, de maneira
sistemática, questões que Ficaram apenas esboçadas. Mas, de outro lado, a preocupa
ção pelos problemas filosóficos, jurídicos, econômicos, poéticos, etc., deram-me a
vantagem de uma visão mais compreensiva, tendo o homem como personagem
principal. Sob esse ângulo, o intelectual brasileiro possui uma abertura que talvez seja
condicionadora de uma nova atitude humanística, liberta de obstáculos e preconceitos
que cerceiam alhures o entendimento da vida política.
A temática política sempre me fascinou, desde quando, com pouco mais de 19
anos, me matriculei na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco e participei
daquele território livre, que é um pouco o coração vivo da ação política brasileira. Entrei
em 1930, ou seja, às vésperas daquele grande acontecimento histórico que foi a
Revolução de 30, marco inegável de uma nova fase da existência nacional. Desde
então, passei a viver intensamente os problemas da minha geração.
Minha geração foi marcada por uma inquietação extraordinária, tanto como a
vossa. Em torno de nós havia mais perguntas e angústias do que soluções e
tranqüilidade. Nosso século tem vivido uma sucessão de crises, não apenas políticas,
mas espirituais, sucessão esta que não podia deixar de repercutir no plano de quem
jamais aceitou a teoria política como simples abstração.
O grande mestre Jellinek deixou-nos uma lição estupenda, ao afirmar que aquilo
que não é realizável não merece um instante sequer de atenção por parte do político
ou do jurista. O que deve marcar o político é o senso do concreto, do possível e do
realizável. Uma teoria política, que plane apenas sobre aspectos teóricos, sem
vinculação com a realidade, desde logo assume feição utópica. As utopias também
têm seu valor. Os grandes mestres das utopias muitas vezes antecipam-se ao seu
tempo, mas não podemos viver com elas.
Comentários de Miguel Reale 29
Deixando de lado esse aspecto positivo das utopias, que são válidas como
poderosas intuições na mente dos grandes gênios, o certo é que nenhuma ciência
deve ser tão imbuída de experiência e de realidade como a Ciência Política, muito
embora inexista conflito entre realismo e ideal.
Por outro lado, a exposição de Poletti me faz lembrar que o nosso Pais, que tem
passado por crises políticas tão intensas, não apresenta grande riqueza no sentido de
contribuições originais á Teoria Política. Há grande carência de Ciência Política na
cultura brasileira. São raros os centros de pesquisa política no País. Até hoje, não
surgiu uma só Faculdade de Ciência Política que estudasse a política, não em termos
de pós-graduação, mas em termos de graduação universitária. Isso bastaria para
demonstrar como nós somos carecedores de meditação política mais profunda. Há
um vazio que está sendo coberto de maneira entusiástica e dedicada em Brasília, em
São Paulo, no Rio dejaneiro, em Belo Horizonte, ou Recife, mas é preciso reconhecer
que, além de inexistir uma correlação constante entre nossas pesquisas, estas não
raro, se reduzem a meros reflexos ou comentários de doutrinas alienígenas. O que
mais me preocupa é a carência de um diálogo nosso, na imanência de- nossas
circunstâncias.
Esse relativo descaso pelos estudos políticos explica a crítica apontada pelo
Professor Poletti, feita por mim, durante os últimos anos, no sentido de ter-se dado
excessiva importância à problemática econômica, sem se lembrarem os responsáveis
pelo poder de que não há solução econômica que não pressuponha uma tomada de
posição no plano político. Uma coisa é a Economia; outra coisa é a Economia Política,
ou mais precisamente, a Política Econômica. Não basta a perspectiva do economista
para se decidir, no plano governamental, sobre os problemas fundamentais do País,
sem se levar em conta os demais fatores que operam na vida da sociedade e do Estado.
O fato econômico, como bem observou o grande jurista e politicólogo Tullio
Ascarelli, converte-se, nas mãos do político, em um conteúdo de decisões que
implicam e reclamam uma multiplicidade de parâmetros e perspectivas.
O ensinamento fundamental de Aristóteles, de que a Política é a arquitetônica das
ciências, ainda continua válido, porquanto a análise prevalece no momento teorético,
mas a prática é, necessária e essencialmente, sintética. Pode um homem de ciência
trancar-se no séu laboratório e fazer abstração de uma série de problemas que
tentariam o seu espírito, concentrando-se em determinado objeto de pesquisa e de
estudo. Se ele, no entanto, despe a sua veste de pesquisador para passar ao plano da
ação, imediatamente uma série de outros elementos se torna necessária, de tal
maneira que uma síntese se impõe ao seu espírito, e aquilo, que antes era uma visão
setorizada, por motivos metodológicos, passa a ter um significado e uma amplitude
de globalidade, sem a qual, no plano dapraxis, a idéia não se realiza com validade e
eficácia.
É por esse motivo que jamais concordei com aqueles que enaltecem os valores da
teoria ou, então, se inclinam pela primazia da prática. Perguntar qual das duas é a
30 Miguel Reale na UnB
mais importante é, a meu ver, um pseudoproblema. Na realidade, a teoria e a prática
se interligam de maneira fundamental em razão mesmo da natureza do pensamento
humano. O pensamento já é sempre um esboço de ação. Ao formular uma hipótese
no plano científico, estou delineando algo que vai repercutir, ainda que não o saiba,
no plano das conseqüências utilitárias. E, por outro lado, o verdadeiro homem de
ação, no instante em que atua sobre a realidade, adquire percepção de novos valores
teoréticos e intelectivos que a realidade lhe vai inspirando. Assim, não há que optar
entre teoria e prática que são valores complementares.
Foi essa a primeira grande luta que eu, confesso, tive de vencer, porquanto
provinha de uma visão setorizada, monocórdica, unilateral da vida cultural e política
em particular de inspiração marxista. É por essa razão que, ao escrever a minha
primeira obra, tentei, com grande ousadia, traçar um plano de vida ao qual procurei
manter-me fiel: “viver a teoria e teorizar a vida, na unidade indissolúvel do
pensamento e da ação” . Foi esse o ponto de partida da minha compreensão política
que, com razão, Tristão de Atayde declara ser marcada por um sentido de
integralidade e que, agora, Ronaldo Poletti aponta como um sentido de globalidade.
As visões unilaterais têm, com efeito, prejudicado profundamente as pesquisas
sociais, jurídicas e políticas, obrigando-nos a fazer opção por uma determinada via,
com o sacrifício de outras não menos necessárias. Ora, a vinculaçào entre teoria e
prática é a mesma que se põe entre a problemática dos meios e a dos fins. Em política
é absurdo pensar apenas nos objetivos que devam ser alcançados. Não existe um
finalismo político em si e por si significativo. Não é possível ao politicólogo contentar-
se com um espectro de objetivos ou de alvos a serem alcançados: esses objetivos,
enquanto políticos, devem necessariamente ser dimensionados em função de meios
adequados à sua realização. É a mesma lição de concreção, a que já aludi.
A esta altura, tenho uma observação a fazer, que me parece relevante, quanto ao
sentido do pensar de nosso tempo.
A nossa época, sobretudo nos últimos vinte anos, tem sido marcada por uma
palavra que nem sempre é entendida com clareza no cenário cultural brasileiro: a
palavra concreção. Concreção em Ciência Política, concreção em Ciênciajurídica, para
apenas limitarmos o nosso objeto de estudo.
Que pretende a “ teoria da concreção” , em Ciências Jurídicas? Essa doutrina, que
também corresponde à visão experimental do Direito (o “ Direito como Experiência”
é o título de um de meus livros) - essa doutrina, que é hoje prevalecente em altos
centros culturais da Europa e da América, representa uma fuga ao formalismo. Não
nos contentamos mais com soluções puramente esquemáticas e abstratas que possam
dar aparência de solução aos problemas. A forma, que nos interessa, é como a forma
de uma estátua que possui um conteúdo em si e não se exaure numa simples
aparência. Quer dizer que a forma implica o conteúdo. Assim como uma estátua é a
Comentários de Miguel Reale 31
sua forma, e a sua forma é o valor artístico que nela se insere, também uma regra de
Direito não pode ser uma simples expressão lógica ou matemática, mas deve ser
sempre expressão da vida humana em determinadas circunstâncias, quer para o
indivíduo, quer para a coletividade. Essa visão concreta do Direito leva a uma
aplicação concreta da juridicidade. Não mais o Juiz, que vê a lei como fria premissa
de um silogismo e chega a uma inexorável conseqüência, mas, ao contrário, o
magistrado, que, na plenitude da vida humana, recebe a regra do Direito como uma
diretriz a ser seguida, é certo, mas que é suscetível de ser interpretada de maneira tal
que possa se ajustar à situação em que se encontram os interesses em conflito, visando
a um justo equilíbrio.
Concreção política é a mesma coisa. Concreção política significa a busca de
soluções que não tenham o aparato e a majestade dos pronunciamentos puramente
verbais, mas, que, ao contrário, marquem o encontro da palavra com a substância
concreta do indivíduo e sua circunstância. Não é por outra razão que assistimos, em
nosso tempo, ao florescimento das chamadas filosofias existenciais, que tamanha
influência exercem sobre o mundo jurídico ou político, pondo o primado do social
sobre o estatal.
Que é que caracteriza as filosofias existenciais, que não se confundem com
qualquer forma particular de existencialismo? Que é que caracteriza a Filosofia
existencial, se não uma insatisfação com referência a tudo aquilo que não penetra no
âmago da problemática do homem? O homem não é apenas um ser que pensa, mas
um ser que, ao pensar, pensa numa determinada circunstância e num* relaciona
mento global, que é o seu mundo, o seu mundo envolvente.
Isto posto, não temos mais, como ponto de partida, o indivíduo isolado, da
concepção política que condicionou todo o liberalismo clássico, através da figura
abstrata do cidadão. Temos, ao contrário, o indivíduo essencialmente vinculado à sua
circunstância existencial, ao seu próprio projeto irrenunciável de vida, mas ligado
também ao sistema de valores que representa a sua comunidade, a sua convivência.
Dessa colocação concreta do indivíduo partimos para algo que poderíamos
denominar um liberalismo em concreção. Um liberalismo, não em função do indivíduo
abstrato, mas um liberalismo em função do indivíduo concreto, ou, como com razão
Poletti o lembrou, do homem situado. A afirmação de Ortega y Gasset, que foi um
homem com visão extraordinária a respeito de uma série de problemas de nossa
época, de que o homem é ele e a sua circunstância, marca uma verdade que parece
pequena, mas que é densa de conseqüências. Este ponto de partida implica relevante
alteração metodológica, porque, desde logo, como foi lembrado, significa o
afastamento de soluções unilaterais, impondo-se um sentido de totalidade que é
preciso esclarecer. Nós todos estamos sentindo a necessidade de uma compreensão
global da vida brasileira. Essa compreensão global é cheia de grandes riscos. Nada é
mais perigoso do que o desejo de totalidade, visto como ele pode levar-nos a uma
32 Miguel Reale na UnB
/
de poder. Não estamos mais apegados à visão unilateral, mas poderosa, de Max
Weber, que via o estamento burocrático, unitariamente ordenado, como funda
mento por excelência do Estado burguês de seu tempo. Estamos cada vez mais
verificando que a antiga burocracia perde dia a dia sua unidade, alarga-se e
multiplica-se, esfacelando-se em mil sedes de poder. Além disso, há outras estruturas
tão vigorosas como os estamentos burocráticos: são as multinacionais quê atuam em
todas os setores da sociedade civil.
Não posso me alongar mais, mas basta olhar o panorama brasileiro para vermos
como o estamento burocrático está se tornando cada vez mais restrito: em torno dele
e, muitas vezes, em conflito com ele giram corpos autônomos, autarquias, entidades
paraestatais, empresas públicas e até autonomias contábeis e outros organismos
misteriosamente dotados de força própria, de tal maneira, que nós estamos vivendo
numa sociedade cujo Estado, apesar de seus Executivos cada vez mais poderosos,
perde, dia a dia, sentido diretor, que é a característica essencial e eminente do poder.
O resultado é que não há possibilidade mais de governar com sentido de globalidade,
tão acelerada é a dispersão periférica do poder estatal.
Eis aí outra grande pergunta de nossa época, para a qual a resposta só pode ser
dada por uma teoria política aberta como é a da democracia social, que não prefigura
nenhum modelo salvador, mas apenas procura estabelecer as condições metodoló
gicas e o condicionamento ético indispensáveis à realização de uma sociedade civil
irredutível aos interesses dos indivíduos ou do Estado.
1.3. DEBATES
PERGUNTA - O senhor falou sobre Marx, e eu gostaria de saber por que a burguesia
faz objeção às teorias marxistas.
MIGUEL REALE - Confesso que não me sinto muito bem falando em nome da
burguesia, (Risos) mas tentarei dar uma explicação que permita esclarecer deter
minados aspectos do problema.
A burguesia, como disse muito bem Benedetto Croce, mais do que uma classe, é
um estado de espírito, uma compreensão da vida política e da vida econômica
fundada na supremacia dos valores utilitários.
Não vejo nenhuma classe, hoje em dia, que se identifique plenamente com a
burguesia como tal. A atitude da burguesia perante o marxismo tem mudado muito,
ao longo dos anos. Quando Karl Marx começou a desenvolver sua idéias, não
devemos pensar que elas tenham tido repercussão profunda e imediata. Ao contrário,
deu-se, como sempre ocorre, uma filtragem lenta e demorada, que depois iria ter
conseqüências profundas no processo da história.
Qual era a verdade que Karl Marx trazia e que eu considero válida? A verdade que
Karl Marx oferecia era a de situar com vigor o problema da Filosofia no plano d a "
socialidade. Ou seja, a Filosofia deixava de ser considerada apenas como meditação
puramente teórica, para ser vivida em função de valores sociais, tal como vinha sendo
reclamado, aliás, por outros pensadores, franceses e ingleses. Esse banho de
socialidade dado ao problema filosófico foi estendido por Marx à teoria política, que
ele imergiu no mundo econômico. Com certa arrogância, dizia ele que, com essa
atitude, havia posto a Filosofia a marchar pelos pés e não pela cabeça, como teria
ocorrido na obra de Hegel que proclamara o primado do Estado, dominado,
segundo Marx, pelos capitalistas, senhores dos meios de produção. Assim sendo,
somente a destruição da burguesia e de seu aparelho burocrático permitiria a
ascensão do proletariado. Este seria o resultado de uma luta de classes, desfecho e
técnicas que evidentemente não podiam ser aceitos pela burguesia. Essa concepção,
que reduz o Estado e o Direito a meras superestruturas da estrutura econômica da
sociedade, veio a prevalecer na Rússia, com a revolução soviética de 1917, pouco mais
de um ano antes do fim da Primeira Grande Guerra. Para mim, a Primeira Grande
Guerra marca o término do século XIX. É com a Primeira Grande Guerra que morre,
de certa maneira, uma série de valores próprios da cosmovisão oitocentista, para dar
início a uma nova compreensão do homem e dos problemas da sociedade e do
38 Miguel Reale na UnB
MIGUEL REALE - Não me parece que haja muita ligação entre uma coisa e
outra. Mas isso não me impede de dizer algo sobre a Assembléia Constituinte.
O problema da Assembléia Constituinte pode ser um tema de finalidade
eleitoral, ou pode ser um problema político objetivamente tratado. Para alguns é
tema eleitoral, ou seja, é uma bandeira para lutas políticas futuras. Para mim, é
apenas um tema de análise política no plano científico.
Ora, nas circunstâncias atuais da vida brasileira, a Assembléia Constituinte é uma
solução que me parece completamente inadequada. Quem pensa em Assembléia
Constituinte imagina, às vezes, coisa muito curiosa, com excessivo otimismo. Espera,
por exemplo, que daqui a seis meses ou dois anos, os Deputados vão reunir-se e, por
obra do Espírito Santo cívico, serão capazes de elaborar um estatuto político em
condições de salvar a Nação.
Ora, essa visão lírica da Constituinte me parece destituída de significado. As
Assembléias Constituintes surgem, muitas vezes, na crista de um processo revolu
cionário, com grande entusiasmo, e suas criações revelam-se efêmeras. Com a queda
do Estado Novo, tivemos a Assembléia Constituinte de 1934, que fez uma
Constituição, por sinal, rica de muitos valores teóricos, mas que durou apenas três
anos, visto não estar de acordo com as circunstâncias. A Constituição do Império, que
foi outorgada, durou dezenas de anos.
Olhando o problema com espírito realístico e sem qualquer interesse de ordem
política ou eleitoral, vejo a possibilidade de uma solução global sob outro ângulo;
admito e postulo uma revisão profunda da Constituição mas sem todo o aparato de
uma Constituinte. Parece que estamos ainda com mentalidade oitocentista, e, pior
ainda, vivendo no século XVIII! Quando se fala em Assembléia Constituinte, surgem
logo a idéia e a imagem da Revolução Francesa, com posições ideológicas contra
postas, com todas as gamas que vão da extrema esquerda à extrema direita. Pergunto:
onde estão os partidos tão diferençados em idéias? Onde estão os debates políticos?
Agora é que estamos começando a focalizar alguns problemas básicos. A Assembléia
Constituinte seria válida se fosse antecedida por um debate sobre nossas instituições
fundamentais, à luz de teorias políticas diversificadas. Improvisar uma Constituição
no curto prazo de uma Constituinte só pode ter como resultado um compromisso de
curto fôlego.
A revisão constitucional, a meu ver, tem de ser feita, em profundidade, porque,
inegavelmente, a Constituição que aí está não espelha o querer e os complexos
interesses do País. Mas essa revisão pode e deve ser feita através de emendas
constitucionais.
Não quero aqui antecipar um assunto que talvez venha a ser objeto de análise
oportuna. Não é assunto para fim de sessão: é assunto para ser estudado com mais
vagar e todo cuidado.
Debates 45
PERGUNTA (inaudível):
MIGUEL REALE: Em primeiro lugar, eu devo retificar a sua afirmação. Eu não
tive o dom divinatório de prever a Revolução de 64. Nem foi isso que foi exposto pelo
Professor Poletti. O que o Professor Poletti esclareceu foi que, em 1962 e 1963, escrevi
determinados artigos e tomei certas posições, chamando a atenção para problemas
que exigiam solução de ordem política. Segundo o que ele afirma, se essas diretrizes
tivessem sido seguidas, o processo revolucionário não teria eclodido. Exatamente o
oposto do que parece ter sido dito por quem formulou a pergunta. O que eu queria
era evitar uma solução de força, por julgar ainda possível uma solução de outro tipo.
Ora, a Revolução de 64, como todo fenômeno histórico de longa duração, não
pode ser analisado em bloco. É uma forma de estrabismo considerar tal movimento
na sua globalidade, sem levar em conta as circunstâncias históricas em que ele eclodiu
e se desenvolveu, obedecendo a fatores emergentes.
O grande mestre Hegel declara, e com razão, que não se inventiva um fato
histórico, assim como não se inventiva um terremoto. À essa luz, cabe-nos
reconhecer que havia motivos graves para determinar que um movimento político se
transformasse em movimento armado, com um processo revolucionário que está na
moda repudiar em bloco.
De uns tempos para cá, tem-se fortalecido o hábito de colocar todo o processo
revolucionário no pelourinho. Há, parece, medo de dizer-se o que houve de acerto
ou de útil nesse acontecimento. Como eu tive a coragem, permitam-me o termo, de
condenar, durante o processo, o que nele havia de mau, não é nada extraordinário
que, depois do processo, diga alguma coisa sobre o que nele houve de bem.
Já em 1965 eu publicava um livro chamado Imperativos da Revolução de Março. Suas
páginas contêm várias criticas ao Governo revolucionário, por considerá-lo vazio de
idéias políticas. E dizia: “ Uma revolução pode deixar de derramar sangue, mas não
pode deixar de derramar idéias”. Era uma crítica feita, um ano depois da eclosão do
movimento, reclamando definições no plano político. Mas, se houve falhas do ponto
de vista político, houve muita coisa de positivo que a sua geração não pode
compreender.
D izia Alberto Torres - como foi lem brado - que toda revolução começa com uma
mudança de atitude diante dos problemas. E, efetivamente, em 64 houve mudança
de atitude. Mudança de atitude, por exemplo, desde quando se passou a administrar
com mais racionalidade, reconhecendo-se a necessidade de um planejamento
segundo critérios técnicos. O superamento de normas rotineiras, ou o abandono de
tributos coloniais como os previstos na “lei do selo”, que entravava as atividades
empresariais; uma nova e mais diversificada estrutura tributária; uma política de
realismo tarifário nas concessões de serviços públicos, eis aí alguns exemplos da nova
46 Miguel Reale na UnB
mentalidade instaurada ém 1964, embora depois viéssemos a recair em antigos erros.
O certo é que o Brasil mudou de fisionomia, o que já vinha acontecendo desde a
presidência de Juscelino Kubistchek, mas não devemos esquecer que antigos
colaboradores imediatos de Kubistchek passaram a ocupar posição de relevo no
processo revolucionárip, dando uma tônica de, diríamos, racionalização política.
Tais valores não podem deixar de ser creditados à Revolução.
Não olvidemos, também, a mudança que, por via de conseqüência, se implantou
no seio do próprio povo, no que se refere ao fenômeno econômico. O brasileiro
era, sem dúvida nenhuma, um povo dissipador por natureza. Até a palavra, que
indica o ato de economizar, era, e é, uma palavra feia: “ poupança”. E, no entanto, o
brasileiro aprendeu a poupar! Essa mudança de atitude tem um valor muito grande,
que não deve ser posto de lado como questão de somenos. Há também o problema da
planificação, sobre o qual muito poderia ser explanado. Digo mais: quis-se planejar
até demais. Houve, além disso, o ideal da criação de um “ Brasil grande” , e essa idéia,
convenhamos - se deu lugar a excessos e a abusos, perpetuando as leis de exceção,
havidas como indispensáveis à política do desenvolvimento, - não deixou de influir
em nosso destino, do qual passamos a cuidar por nós mesmos, sem transferirmos
para as “ nações imperialistas” as culpas resultantes de nossos próprios erros, como
costumam fazer os povos subdesenvolvidos...
Quem negará exageros e atos de violência durante o processo revolucionário, ou
os males do progresso â custa de sacrifícios salariais? Assim como nào podemos
olvidar essas manchas negras da Revolução de 1964, não devemos também olvidar os
benefícios por ela propiciados, convertendo nosso País em potência emergente,
modernizando suas estruturas oficiais e potenciando reservas de riquezas naturais até
então esquecidas. Dizer, como fez certo economista, que “ o Brasil se modernizou,
mas não progrediu”, antes de ser um eufemismo, é sinal de prevenção, incompatível
com o estudo sereno dos acontecimentos históricos.
Aspectos negativos são, pois, incontestáveis, e eu os apontei com freqüência, até o
ponto de não fechar os olhos para fenômenos gravíssimos, como, por exemplo, o do
chamado “Esquadrão da Morte”.
O Esquadrão da Morte atuava sem peias, realizando uma bárbara justiça
sumária, ante a omissão das autoridades governamentais e do Ministério Público.
Vaidade à parte, posso afirmar, sem temor de desmentido, que o primeiro artigo
publicado contra o Esquadrão da Morte foi de minha autoria, na Folha de São Paulo,
estabelecendo uma alternativa: ou os crimes são perpetrados por delinqüentes em
guerra entre si e devem ser apurados e punidos; ou estão envolvidas autoridades
policiais, que devem ser punidas também.
Ora, aspectos negativos havia e, infelizmente, foram crescendo até o ponto d t
ressurgir a corrupção tão veementemente condenada. E que os governos de força
Debates 47
b) Hermenêutica
Toda época, aponta Miguel Reale, fixa as normas e os limites de sua exegese do
Direito em função de valores culturais prevalecentes. É por essa razão que, por
exemplo, no século XIX, à concepção do Estado Liberal não-intervencionista
corresponde uma compreensão restrita e negativa da hermenêutica jurídica, com*
preensão essa substituída, no século atual, pelas exigências de uma nova hermenêu
tica, intervencionista como o Estado no século XX.
No mundo contemporâneo, as múltiplas e complexas intencionalidades objeti
vadas nas normas, postas pelo ato decisório do poder, estão sempre na dependência
do ato interpretativo. Com efeito, é na situação específica regulada pela interpretação
que se verifica o sentido concreto de que se reveste uma totalidade de sentidos
possíveis, compreendidos nos diversos modelos jurídicos. Miguel Reale examina
algumas das notas distintivas da hermenêutica contemporânea, por ele denominada
interpretação estrutural. Para os propósitos deste trabalho, fixo-me apenas em duas:
I) os limites objetivos do processo hermenêutico, pois a atividade interpretativa tem a sua
liberdade limitada pela fidelidade às intencionalidades objetivadas da norma; e II) a
natureza racional do ato interpretativo concreto, pois os modelos jurídicos são entidades
lógicas, válidas segundo exigências racionais, ainda que estas, na experiência furídica,
sejam as do razoável, que leva em conta fatos e valores22.
As duas notas apontadas ligam-se à dimensão objetivante do poder no campo do
Direito contemporâneo, que visa a reduzir o arbítrio, inclusive o do intérprete, em
obediência ao princípio de racionalidade legal. Este, como observou Max Weber, é o
tipo ideal de legitimidade que permeia a evolução dos padrões de autoridade no
mundo moderno23. Isto, em síntese, significa que o intérprete não pode apenas
afirmar, mas deve igualmente justificar a sua decisão, prestando contas às partes e à
comunidade da razoabilidade da sua tomada de decisão24.
A dimensão objetivante do poder, colocada ao intérprete pela norma posta, não
esgota, no entanto, a análise da relação entre Direito e Poder no momento da
aplicação normativa. Toda norma, no momento em que é aplicada, sempre
comporta mais de uma interpretação. O ato decisório da escolha e da opção por uma
interpretação, ainda que fundamentado racionalmente e balizado pelos limites da
hermenêutica estrutural, é também um ato de poder.
A positividade de uma interpretação, assim como a positividade da norma, estão
ligadas a uma gradação de poder. E por essa razão que a solução judicial de
controvérsias no plano internacional é complexa, dada a distribuição individual de
poder entre os Estados, e é por isso que, no âmbito interno, a prestação jurisdicional é
uma dimensão da soberania. O Estado, ao avocar a si o poder de declarar em última
instância a positividade de uma interpretação (por exemplo: por intermédio do
Supremo Tribunal Federal), busca manter-se como o centro geométrico da positivi-
Direito e Poder na Reflexão de Miguél Reale 65
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. MIGUEL REALE, Filosofia do Direito (8.a ed., revista), S. Paulo: Saraiva, 1978, vo!. I, p. XXIII.
2. O texto de m eu discurso foi publicado n&Revista da Faculdade de Direito da VSP, vol. LX, 1965, pp. 361-364.
3. HANNAH ARENDT, The üfe ofthe Mindy vol. II: Willing, N. York: Harcourt, Brace,Jovanovich, 1978, pp.
35-38, 169, 195-198 e passim.
4. HANNAH ARENDT, The Human Condition, Chicago: The University of Chicago Press, 1958, pp.
177-181.
70 Miguel Reale na UnB
30. NORBERTO BOBBIO, Studiper una Teoria Generale del Diritto, cit., pp. 175-197; H. L. A. HART, The
Concept of Law, N. York: O xford University Press, 1961, pp. 77-96; CELSO LAFER, Hobbes, o Direito e o Estado
Moderno, cit., pp. 31-33.
31. NOBERTO BOBBIO, Teoria della Norma Giuridica, cit., pp. 21 1-212; Studiperuna Teoria Generaledel Diritto,
cit., p. 83; CELSO LAFER, Ensaios sobre a Liberdade, cit., pp. 58-59; MIGUEL REALE, Política de Ontem e de
Hoje, São Paulo: Saraiva, 1978, pp. 77-89.
32. CARLO BARBÈ, Appunti per una Teoria della Legittimazione, Torino: Giappichelli, 1973, pp. 41-42;
CELSO LAFER, Hannah Arendt - Pensamento, Persuasão e Poder, Rio: Paz e Terra, 1979, pp. 35-38; “ A
Legitimidade na Perspectiva Histórica” (com entário in Universidade de Brasília, Encontros Internacionais da
UnB, Brasília: Ed. da Universidiade de Brasília, 1980, pp. 319-325.
33. A. PASSÉRIN D’ENTRÈVES, La Notion deVÉtat, cit., pp. 9-12, passim.
34. NORBERTO BOBBIO, Giusnaturalismo e Positivismo Giuridico, cit., pp. 37-38, 53-54.
35. M-IGUEL REALE, Teoria Tridimensional do Direito, cit., pp. 28-30.
36. MIGUEL REALE, Teoria do Direito e do Estado, cit., p. 346.
37. MIGUEL REAI.E, Teoria do Direito e do Estado, cit., p. 345; Filosofia do Direito, cit., vol. II, p. 557.
38. MIGUEL REALE, Filosofia do Direito, citl, vol. I, pp. 240-256.
39. HANNAH ARENDT, “ C om preension et Politique” in Esprit n? 42, Ju in 1980, pp. 66-79.
40. MIGUEL REALE, Filosofia do Direito, cit., vol. I, pp. 228-230; EDUARDO SPRANGER, Formas de Vida
(trad. Ram ón de la Serna), Buenos Aires: Rev. de O cidente Argentina, 1946, passim; NORBERTO
BOBBIO, Giusnaturalismo e Positivismo Giuridico, cit., pp. 43-46.
2.3. COMENTÁRIOS DE MIGUEL REALE
De maneira que a tese de Celso Lafer diz respeito a algo de fundamental em meu
pensamento, que é o resultado de minhas pesquisas sobre a natureza do vínculo
existente entre a experiência política e a experiência jurídica.
O problema do poder sempre me pareceu fundamental. Jamais concordei com
aqueles que, como Léon Duguit, por exemplo, pretendem que o Direito possa surgir
espontaneamente da consciência popular, ou das forças conflitantes da sociedade
civil, sem a interferência de um poder decisório. A geração espontânea ou automática
do Direito é uma ilusãoque durante algum tempo conquistou sociólogos e políticos,
de mentalidade naturalista, na primeira metade do nosso século. Concepção essa, de
certa maneira, iluminista. Um iluminismo sociológico que julga possível fazer
aparecer o Direito como por encanto, sem a interferência de uma opção necessária
entre os múltiplos caminhos que se abrem ao legislador, quando este analisa um
complexo de valores incidentes sobre um complexo de fatos.
Como bem observou Celso Lafer, a interferência do poder é indispensável ao
surgimento da norma de direito, conforme resulta de meus estudos sobre a
“ nomogênese jurídica” . Se, por exemplo, num Congresso, surge um projeto de lei,
relativo a locação, sobre lei do inquilinato, é evidente que, de um lado, existe uma
multiplicidade de fatos e de interesses e, de outro lado, um número considerável de
perspectivas valorativas distintas, segundo a colocação doutrinária de cada um. É
claro que o parlamentar, de posição mais nitidamente liberal ou individualista,
inclinará seu espírito no sentido de uma lei que não interfira na elaboração e na
execução dos contratos. Ao contrário, àquele, para quem a autonomia da vontade já
deixou de representar um valor fundamental, para ser apenas um elemento
secundário da vida social, a conclusão será no sentido de uma intervenção cada vez
maior do Estado na vida dos contratos, até o ponto destes deixarem de ser convenções
entre as partes para se converterem em meros reflexos do querer estatal.
Entre esses dois extremos, de um contratalismo absoluto e de uma instituciona
lização extrema, abre-se um leque extraordinário de possibilidades. Como traçar o
caminho da norma? Porque toda norma implica a escolha de uma diretriz. O
legislador não pode ficar indefinidamente em estado de perplexidade ou de dúvida.
Ele é obrigado a eleger uma via, que poderá resultar de um compromisso, de um
balanceamento de valores em função das circunstâncias emergentes, mas, num certo
momento, é necessário ofiatlex, ou seja, a opção pela norma destinada a viger. É nesse
momento que culmina e se aperfeiçoa o ato decisório do poder.
O poder, porém, não pode ser concebido à maneira do grande constitucionalista
alemão Cari Schmitt, ou seja, como mero resultado de uma decisão autônoma; nem
tampouco deve ser aceito como “ poder nu”, um poder válido em si e por si. Na
realidade, as opções do poder, ainda quando não percebidas, já vêm imantadas por
uma série de pressões valorativas, estimativas, ou axiológicas - são palavras
sinônimas - que condicionam o momento fundamental da opção regulativa.
Comentários de Miguel Reale 75
É por essa razão que o poder não constitui urria quarta dimensão no Direito. O
poder corresponde ao momento nomogenético de transição, para o qual convergem,
a um só tempo, pressões factuais e axiológicas, exigindo o superamento dessa tensão.
Poder-se-ia afirmar que o poder é o elemento de conexão, a essa altura já “ fático-
axiológico” , do qual surge a norma jurídica como forma integradora e superadora de
um conflito. Surge, pois, a norma como uma integração de caráter transitório, sem
dúvida, mas numa expectativa de durabilidade. A meu ver, pois, 6 processo dialético
de objetivação do Direito não nasce, nem se desenvolve de maneira puramente
sonambúlica ou irracional, mas, ao contrário, implica certa carga de racionalidade,
mesmo quando, em certos casos extremos, a lei surge sob dominante impacto
emocional.
E possível que no momento, em que se escolhe o rumo normativo, não haja
consciência da opção racional realizada, tal como muitas vezes se dá, em virtude da
massa de interesses e de impulsos atuantes sobre a personalidade do legislador. Mas,
uma vez formulada a regra jurídica, - e é aqui que está o paradoxo da vida do Direito;
aqui é que está o sentido fundamental do poder - uma vez formulada a norma
jurídica, ainda que esta possa ter contido, em sua origem, fatos espúrios e irracionais,
ela passa a ser e deve ser analisada pelo jurista como um dado lógico e racional,
inserido no “lucidus ordo” a que se referia Rui Barbosa, como algo inerente à
sistemática do Direito.
É a razão pela qual muito bem acentuou Celso Lafer, que a exegese do Direito,
analisada “ in fieri”, jamais pode deixar de ser racional. Pretender interpretar o
Direito de maneira intuitiva apenas, ou segundo o jogo emocional dos valores, seria
um absurdo. Quando a norma jurídica é sancionada, o valor, de certa forma, se
resfria, perde o calor da emoção que acompanhou a gênese nomativa, para se
converter em algo que vale em razão de sua finalidade, tal como esta resulta
objetivamente de seu enunciado verbal. Daí, a minha afirmação de que o fim não é
senão o dever ser do valor no momento de sua assunção racional. Não creio, porém,
se possa ver, nessa colocação da matéria, - e é um pequeno reparo que faço - uma
permanência do conceito regulativo da razão kantiana, pois se trata, antes, de
reconhecer a existência de algo que Kant não viu, que é “oprocesso da razão histórica
A norma jurídica, uma vez posta pelo legislador, adquire vida autônoma. Hoje,
uma regra de direito significa X; amanhã, poderá significar Y. Qual a razão dessa
mudança? São múltiplos os motivos determinantes da alteração do sentido das leis.
Uma regra de direito pode deixar de ser considerada dispositiva (como era concebida
antes, por apego ou respeito desmedido à autonomia da vontade) para passar a ser
obedecida como “jus cogens”, ou norma imperativa, em virtude de mutação
ocorrida na tábua de valores vigente na sociedade. Destarte, as transformações
havidas no mundo dos valores ou das valorações podem importar em interpretação
nova e imprevista do mesmo texto legal, ainda que este continue formalmente
imutável.
76 Miguel Reale na UnB
dialética pluralista que nos leva a uma visão concreta e dinâmica da vida social, sem
ficarmos presos a sínteses fechadas e cerradas, que inexoravelmente nos levam a
ideologias que não têm mais nada a oferecer ao homem de nosso tempo.
Assim sendo, minhas idéias sobre a pessoa humana, a sociedade civil e o Estado,
ao contrário do que ainda afirmam alguns, corresponde a uma visão pluralista da
história e da cultura, e não a uma visão monística, tal como a que fatalmente se insere
em todo historicismo do tipo hegeliano-marxista. Trata-se, como já disse, de uma
dialética pluralista, de “ sínteses abertas”, consoante terminologia de Merleau-Ponty,
dando lugar a projeções complementares distintas, no processo dialógico da
História.
Ora, é nessa compreensão histórico-cultural que se situa o conceito cristão de
pessoa, que não é visto por mim como um “valor absoluto e transcendente”. Na
realidade a idéia de pessoa é fruto de múltiplas influências, devendo-se acrescentar à
tradição judaico-cristã outras fontes relevantes, como a do humanismo greco-
romano, enriquecido pelo humanismo renascentista e toda a experiência ética que se
desenvolve até nossos dias. Mas, como penso já ter dito neste seminário, se o valor da
pessoa humana emerge da história, ele transcende o fato histórico, pondo-se como
uma constante ou invariável axiológica: daí considerá-lo transcendental, no sentido que
Husserl atribui a esta palavra.
São observações que faço para tornar mais claras as diretrizes fundamentais do
historicismo axiológico, o qual não se vincula a nenhum pressuposto escatológico.
Em pequeno ensaio inserido em meu livro O homem e seus Horizontes, e intitulado
“ Meditação sobre o horizonte metafísico”, o Absoluto é visto por mim como limite
negativo do conhecimento, mas limite que tem também uma função positiva, na
medida em que assinala um pressuposto insuprimível daquilo que se conhece e se faz
no plano histórico.
Teria muito a dizer sobre esse problema do “ horizonte metafísico”, a que
devemos-nos referir, mas sem ontoligizá-lo, sem convertê-lo em algo da Metafísica
antiga, que era uma Metafísica estática do ser, mas o tempo não me permite resumir,
agora, questões amplamente versadas em meu livro Experiência e Cultura, onde o
historicismo axiológico se apresenta com contornos mais nítidos. É para essas
páginas que peço a atenção dos que me ouvem.
2.4. DEBATES
algo de próprio e inconfundível. É essencial, penso eu, não confundir igualdade com
uniformidade.
A mensagem cristã sobre a personalidade vale em função do “ eu profundo”, da
subjetividade de cada um de nós. Lembremo-nos que, se existe algo em risco no
mundo contemporâneo, como muito bem foi observado por Giuseppe Capograssi,
um dos mais ilustres jusfilósofos da Itália, é o valor da subjetividade. Por que, a toda
hora, estamos falando na preservação da nossa intimidade? Por que no Direito Penal,
hoje, há tanto cuidado pela preservação da vida íntima ou da privaticidade? Porque a
subjetividade está correndo o risco da massificação, que não se confunde com a
igualdade.
Ora, quando Nietzsche fala no super-homem, não está, de certa maneira,
contrariando o valor de subjetividade, mas, ao contrário, exacerbando-a até o ponto
de romper os liames da igualdade, visto admitir a supremacia de alguns eleitos, graças
ao jogo das seleções naturais.
Nietzsche era um anticristão, influenciado pelas idéias de Darwin, no sentido da
sobrevivência dos mais aptos e seduzido pela idéia de um homem que não seja “a
imagem de Deus” , mas um deus terreno no permanente desafio de seu destino. De
mais a mais até mesmo Nietzsche vê algo de igual nos homens, que é a “vontade de
potência” , a qual lança uma ponte sobre o trágico abismo que separa o homem do
super-homem...
É claro que quem aceita a tese nietzscheana dos “ homens superiores”, entra em
conflito com a idéia deontológica da igualdade, conforme o Cristianismo, mas é o
caso de lembrar a antiga lição de Aristóteles, atualizada por Lacordaire, quando
pondera que a suprema regra da igualdade é tratar igualmente os iguais, e,
desigualmente os desiguais na medida em que se desigualem. A desigualdade refere-
se, porém, ao que há de contingente e empírico no ser humano; sem afetar a sua
igualdade transcenderual,
PERGUNTA: Quando o senhor desenvolve a necessidade de compreensão do
Direito pela teoria tridimensional, seria possível apontar, com argumentos lógicos, a
maior importância de um dos três pontos essenciais dessa teoria - norma, valor e
fato? Por outro lado, qual a origem do Direito? Ele nasce da sociedade, ou do homem
para viver em sociedade? Ele sempre existiu? Se não, o que o antecede? Se sim, qual a
sua evidência?
MIGUEL REALE- É claro que não vou poder respondera todas essas perguntas,
porque seria necessário fazer um outro seminário. Uma pergunta se formula em
poucos instantes, mas exige resposta muito longa. Mas a pergunta é oportuna para
esclarecer alguns aspectos do tridimensionalismo.
r
Debates 83
clássica Teoria Geral do Estado quando ele identificava Direito e Estado, porque tudo se
subsumia na lógica/normativa - escreveu e publicou nos Estados Unidos outro livro,
a que deu o título significativo de Teoria Geral do Direito do Estado, corrigindo,
substancialmente, seu normativismo originário.
É nessa obra que ele sente necessidade de fazer distinção entre norma e regra. A
norma continua sendo o enunciado lógico ou proposição de dever ser-, enquanto
que a palavra regra passa a designar o ato normativo na eficácia do ordenamento, ou
seja, em sua aplicação ou projeção prática.
Ora, em 1940, ao publicar minha Teoria do Direito do Estado, advertia, logo no
prefácio, que o títuio dado ao livro bastava para distingui-lo do normativismo
kelseniano, entend jndo, desde então, que uma norma ou regra só pode ser jurídica
tendo, ao mesmo tempo, validade e eficácia.
PERGUNTA: A validade de uma norma é dada pelo fato de esta ser fundada ou
criada com base em outra hierarquicamente superior. Como o senhor explicaria a
validade da primeira Constituição?
MIGUEL REALE - Confesso que esse problema da primeira Constituição, na
minha concepção histórica do Direito, me parece um pseudoproblema. E assim
como perguntar que é que surgiu antes, se o ovo ou a galinha. Nós só podemos
examinar tal questão de um ponto de vista estático e relativo, isto é, fazendo um corte
no processo histórico do Direito, para indagar se há, verdadeiramente, uma
concatenação lógica e unitária entre todas as normas que compõem dado ordena
mento jurídico.
Quando Kelsen fala em primeira Constituição, já parte do pressuposto de um
encadeamento normativo unitário que, através de sucessivos enlaces de validade,
postula a validade de uma norma suprema, que, no seu entender, seria uma norma
fundamental de natureza transcendental. Quer dizer, o que dá fundamento à
totalidade do sistema é um juízo transcendental, segundo o qual a Constituição deve
ser obedecida. Essa norma fundamental não é norma positiva, mas um pressuposto
hipotético, transcendental. Herman Heller observa, com razão, que, indo à raiz do
problema, a norma fundamental kelseniana funciona como um sucedâneo de Direito
Natural, esvaziado de qualquer conteúdo ético. A meu ver, nada há de mais a-
histórico ou anti-histórico do que o monismo jurídico kelseniano: a norma
fundamental e a unidade hierárquica do sistema de normas se pressupõem
reciprocamente, num círculo vicioso inconteste.
Em ensaio recente, inserto no livro Estudos de Filosofia e Ciência do Direito, penso ter
demonstrado que o ordenamento jurídico de um País não é unitário, mas plural,
composto de um número cada vez maior de “campos de vigência e eficácia”, cuja
validade global não resulta de uma única norma fundamental hipotética, mas sim de
Debates 87
um “ postulado da razão histórica”. Por outras palavras, assim como, por motivos ou
razões práticas, não se admite a ignorância das leis (embora, na realidade, ninguém
totalmente as conheça) também reconhecemos que a norma constitucional, atua
como um padrão originário de validade: estamos, pois, perante um imperativo da
razão prático-jurídica, de natureza histórico-social ou, como já disse, de “ postulado
da razão histórica”; e não perante mero juízo hipotético formal, como o sustenta
Kelsen.
Apreciando o problema com objetividade e realismo, tal como a história no-lo
demonstra, o sistema constitucional, que outorga validade ao ordenamento jurídico
de uma Nação, pode surgir por diversas vias, desde um puro ato de força até um
procedimento dotado de legitimidade ética, por estar fundado, por exemplo, na
deliberação de uma Assembléia Constituinte, que, livremente escolhida, reflita de
maneira autêntica a opinião pública. O terrível na experiência jurídica é que tanto
uma como a outra são igualmente válidas, do ponto de vista operacional, embora não
o sejam sob o prisma da legitimidade ética ou do consenso político. São amargas
contingências históricas que explicam essas diferenças ou coincidências de validade,
sendo perigoso equipará-las de um ponto de vista puramente lógico-formal, que
tornaria impossível a crítica ou a resistência às leis em conflito com o querer real do
povo.
É mais um motivo que reforça minha oposição a uma teoria puramente
normativa do Direito, preferindo vê-lo na plenitude de suas valências históricas, em
função das quais deve ser posto o problema da vigência e da eficácia das normas
jurídicas.
PERGUNTA: Pergunto ao senhor se seria possível explicar precisamente o que
vem a ser este “ teorizar a vida e viver a teoria”, e qual seria a repercussão dessa
posição na formação cultural e na reação social de um povo. Para mim, onde tudo é
teoria, nada é experiência e prática.
MIGUEL REALE - Há de convir comigo que seria muito feliz aquele para quem
tudo fosse teoria, porquanto teria atingido o ideal platônico da contemplação pura.
(Risos). E um prohlema de felicidade pessoal. Confesso que jamais uma idéia me
deixou tranqüilo. Jamais uma teoria me deixou insensível aos problemas do mundo.
Penso, ao contrário, como o grande político italiano Mazzini, que o pensamento já é
um esboço de ação. E por isso ele fundou um partido chamado, o Partido da Ação.
O pensamento... que ê pensar e que é teorizar? O pensamento não se resume em
mera concatenação de conceitos ou juízos, sem projeção prática. Pensar já é objetivar
algo através de um ato intelectivo e volitivo. O pensamento já é, por si mesmo, uma
atividade. Quando penso, estou criando alguma coisa, que se desprende de minha
mente e adquire “ objetividade”, tornando-se independente de mim. De outro lado,
só posso teorizar sobre algo ou em razão de algo: com a teoria, aidéia faz corpo com o
88 Miguel Reale na UnB
seu objeto. Quando isso não acontece, a idéia esfuma-se no vazio ou tem a pseudo-
existência de uma quimera. Logo, quando me propus a “teorizar a vida e viver a
teoria na unidade indissolúvel do pensamento e da ação” , não almejei outra coisa
senão desenvolver idéias que estivessem vinculadas ao real. Até mesmo os ideais mais
sublimes se referem à realidade, porque se afirmam como um programa de ação pelo
menos realizável em parte.
No meu modo de ver, teoria e prática marcham de mãos dadas, e é claro que, se
tudo fosse pura teoria, não haveria experiência e prática, mas essa é uma hipótese
extrema, inaceitável por quem entende que todo pensamento se resolve em “ato de
pensar” , isto é, desde logo dá início a uma objetivação que transcende o sujeito que
pensa. De outro lado, estou convencido de que um povo será tanto mais maduro e
consciente quanto mais o pensamento dos homens que o compõem for expressão de
realidades assumidas em toda a sua objetividade e concreção.
A pergunta formulada parece-me importante, por que noto que há, no Brasil,
certo desprezo pela teoria. Ora, estou de acordo com o filósofo argentino Francisco
Romero quando adverte que o mundo está-se esvaziando de sentido teorético. A
humanidade está tomada cada vez mais da angústia da ação, de um ativismo
absoluto, ativismo que talvez tenha atingido o clímax no “atualismo” de Gentile,
que jamais, meu caro amigo Chacon, foi santo de minha devoção. Esse ativismo é
hoje um dado permanente da vida contemporânea e representa um dos sistemas mais
graves da crise da cultura contemporânea, aquém e além da “ cortina de ferro”.
Dir-se-á que procuro sempre a conciliação, o que não significa “o meio termo”.
Na realidade, antes de proclamar, afoitamente, uma antinomia entre dois termos, ou
de aceitar, como irremediável, uma contradição, cuido de verificar se esta não é
apenas aparente. As contradições existem, é claro, e devemos denunciá-las, ao invés
de reduzi-las, hegelianamente, a uma impossível unidade superadora.
Não é, porém, o caso da relação entre “ teoria” e “ prática”, ou “ pensamento” e
“ação”. Assim como não se contradizem, também não se identificam: são termos
polares e entre si correlacionados, de tal modo que um só tem sentido em função do
outro, sem que haja absorção de um pelo outro. Os adoradores da praxispura , ou da
teoria pura são, na realidade, seduzidos por verdades parciais, ou vítimas de
totalidades aparentes.
“ O ato de pensar é um ato de objetivação necessária” - escrevi eu em Experiência e
Cultura, talvez minha obra maior. O homem não pensa porque quer, mas porque
não pode deixar de pensar. Ele é condenado a pensar. Quando Descartes disse cogito,
ergo sum, ele se punha num ângulo puramente cognoscitivo. Hoje, o “cogito” é
enriquecido por um sentido ontológico, uma vez que o ato de pensar é, por sua
essencial intencionalidade, em virtude de um ato de objetivação, base de outros atos
de pensar; a história da cultura, ao invés de se desenrolar através da hegeíiana
Debates 89
Embora desde muito jovem marcado pelo sentido de militância, Miguel Reale
buscou simultaneamente torná-la objeto de meditação. Na década de trinta, jovem
de vinte e poucos anos, milita no integralismo, mas está sobremaneira preocupado
com a evolução das idéias políticas que examina sucessivamente nos Wwos Atualidades
de um mundo antigo; Formação da política burguesa; O Estado moderno e Capitalismo
internacional. A essa dimensão da atividade humana iria acrescentar o direito, desde o
concurso à Academia de São Paulo, em 1940. Mas não se converte apenas no
professor dedicado à atividade docente, em que entrevê encantos renovados,
sobretudo no contato com as novas gerações. Saberia vinculá-la à militância da
advocacia e da administração universitária. A fidelidade a essas dimensões - política,
direito e ensino universitário -, encaradas não apenas como ação, mas também como
objeto de meditação, ganharia nova magnitude com o interesse pela filosofia em sua
totalidade e não somente enquanto voltada para a política ou o direito. E ainda aqui
Miguel Reale consegue descobrir uma dimensão prática ao criar o Instituto Brasileiro
de Filosofia e a Revista Brasileira de Filosofia. Quem examinar essa atividade intelectual
em sua globalidade, desde os anos trinta, verá que buscou manter-se fiel a todos
aqueles interesses. Sintetizou-o de forma magnífica Alceu Amoroso Lima ao escrever:
“A tentação da integralidade sempre foi uma nota dominante na personalidade de
Miguel Reale”.
Graças a esse afã de integralidade, a presença de Miguel Reale na filosofia
brasileira teria que ser multifacética. De um lado, jamais perdeu de vista o sentido de
universalidade da filosofia e cuidou de mantê-la atenta e presente ao diálogo que
abrange múltiplos centros. Ao mesmo tempo, soube formular como ninguém seu
caráter problemático, justamente o que permite distinguir, da uniformidade dos
sistemas, a peculiaridade e a radicalidade das filosofias nacionais.
Miguel Reale conseguiu manter o equilíbrio entre a universalidade e a problema-
ticidade da filosofia através dos seguintes procedimentos: I) elaborando um método
que se revelou capaz de identificar linhas de desenvolvimento da filosofia brasileira,
abrindo caminho, nos últimos trinta anos, ao inventário que temos realizado e que
vem facultando o surgimento e a consolidação de uma atitude valorativa da
meditação nacional; e II) centrando a sua investigação filosófica em uns poucos
(*) Os com entários e debates sobre esta conferência foram feitos após a conferência do Prof. Tércio
Sam paio Ferraz Jr.
92 Miguel Reale na UnB
problemas da maior relevância, cujo esclarecimento representa sem dúvida ulterior
aprofundamento e amadurecimento da consciência filosófica universal.
O método sugerido por Miguel Reale para a investigação da filosofia brasileira
compõe-se dos seguintes elementos:
1.°) em identificar o problema (ou os problemas) que tinha pela frente o
pensador, prescindindo da busca de filiações a correntes que lhes
são contemporâneas no exterior;
2.°) em abandonar o empenho de averiguar se o pensador brasileiro
interpretou adequadamente as idéias de determinado autor estran
geiro, mais expressamente, em renunciar ao confronto de interpre
tações e, portanto, ao cotejo da interpretação do pensador brasileiro
estudado com outras interpretações possíveis, para eleger entre uma
ou outra; e,
3.°) em ocupar-se preferentemente da identificação de elos e derivações
que permitam apreender as linhas de continuidade real de nossa
meditação.
Para melhor elucidar a fecundidade deste método, remonto ao ano de 1949
quando Miguel Reale começou a investigar os destinos da doutrina de Kant no Brasil.
Ao falar, naquela época, do kantismo de Diogo Antonio Feijó (1784/1843), a
inolvidável figura dos atribulados anos de consolidação da Independência, logo se
levantaram vozes para proclamar que Feijó não havia compreendido Kant ou que
não o lera diretamente, mas através do estudioso francês Charles Villers. Esse caminho
nos conduziria na direção de que rumo? Na busca, nalgum lugar do mundo, de uma
autêntica interpretação do pensamento de Kant, como se nos outros países as pessoas
circulassem em algum vetor privilegiado, imune a toda influência estranha, direta
mente vinculado ao grande cérebro de Königsberg. Essa é certamente uma
compreensão defeituosa da filosofia. A filosofia é certamente um saber especulativo,
que se volta para uma problemática que, embora renovada através dos tempos, se
tem revelado perene em contraposição à alternância dos sistemas. Esses problemas,
contudo, têm sempre a ver com a circunstância cultural. De sorte que o caráter
especulativo da filosofia não pode ser arrolado como simples diletantismo, como se a
filosofia não tivesse nenhum compromisso com a temporalidade e as angústias de
determinado momento da cultura de um povo.
Aquele debate sobre o kantismo brasileiro logo nos começos do pós-guerra teve o
mérito de permitir que Miguel Reale viesse a tornar-se o ponto de referência, ao
longo da década de cinqüenta, de um grupo de jovens recém-egresso da Univer
sidade ou ainda às voltas com os bancos acadêmicos, que acabariam dando
prosseguimento e amplitude à sua investigação. O principal deles foi Luís Washing
Miguel Reale e a Filosofia Brasileira 93
ton Vita, prematuramente falecido aos 47 anos de idade, em 1968. A esse grupo de
discípulos de Miguel Reale que tomaram em suas màos a investigação do pensa-
mento brasileiro pertencemos eu próprio e Paulo Mercadante, no Rio de Janeiro;
Roque Spencer Maciel de Barros, em São Paulo; Nelson Saldanha, em Pernambuco;
Ubiratan Macedo, no Paraná; e Antonio Luís Machado Neto, na Bahia, que faleceu
recentemente, em 1977, em pleno apogeu de sua criatividade.
Quando Miguel Reale e seus discípulos lançaram-se ao reexame da meditação
brasileira, que entendimento vigorava acerca do tema? O pensamento brasileiro era,
na verdade, simples campo de manobra para a difusão das próprias idéias. Cruz
Costa (1904/1978) que era então o mais conhecido estudioso da matéria, não se
lançou a nenhuma investigação autêntica. Antes de se ocupar do tema já estava de
posse de uma verdade e queria apenas ilustrá-la. Essa verdade consiste na simples
proclamação de que o pensamento brasileiro sanciona as suas próprias idéias e está
formulada nestes termos: “ Enquanto outras doutrinas de importação, que se
apresentam a partir do século XIX, nos parecem simples jogo intelectual, próprio de
elites eruditas, mero ornamento de inteligências curiosas, do positivismo fica, porém,
a impressão paradoxal - é certo - de que alguma relação mais profunda existe entre a
índole dessa doutrina e o conjunto das contraditórias condições que deram origem à
vida nacional e que a impelem. Se o positivismo é aincja, como as outras doutrinas,
produto de importação, nele há, no entanto, traços que revelam a sua mais perfeita
adequação às condições de nossa formação, às realidades profundas de nosso
espírito”. Quer dizer: a adesão de Cruz Costa ao que denomino de versão positivista do
marxismo estava, desta forma, plenamente legitimada.
históricos, não fazendo sentido o empenho na busca de uma pureza inexistente para,
em seguida, confrontá-la à evolução do pensamento brasileiro.
Chegamos deste modo à evidência de que importa antes de mais nada identificar
as linhas de continuidade de nossa meditação. E, no cumprimento de semelhante
programa, registramos progressos notáveis. Retiramos do esquecimento a obra de
Silvestre Pinheiro Ferreira (1769/1846), o que nos permitiu estabelecer as etapas da
adesão brasileira à filosofia espiritualista de Victor Cousin (1792/1867). Verificamos
igualmente que essa corrente comportava uma periodização extremamente fecunda
do ponto de vista do adequado entendimento de nossa evolução cultural. Logrou-se
estabelecer os vínculos de Tobias Barreto com o momento do ecletismo e as
dimensões efetivas que veio a assumir a corrente de filosofia por ele criada, o
çulturalismo, que ocupa posição destacada em nossa meditação contemporânea.
Revelou-se, desse modo, a existência de uma corrente de filosofia prestes a completar
um século de existência e que corresponde ao amadurecimento de uma vertente que
tem raízes ainda mais antigas. A densidade filosófica desse diálogo no tempo pode hoje
ser comprovada sem maior dificuldade, graças à reedição dos textos nucleares e à
elaboração dos correspondentes estudos monográficos.
A linhagem antes descrita não corresponde certamente ao único vetor de nossa
meditação filosófica. Estamos igualmente de posse de vários elementos aptos a
sugerir a significação da herança pombalina para a cultura brasileira. A plena
compreensão desse momento deve corresponder, no futuro imediato, a uma das
linhas privilegiadas de aprofundamento da análise do pensamento filosófico brasi
leiro e com vistas a estabelecer o lugar que ocupa em nossa evolução cultural.
Devemos alcançar, também, visão inteiramente renovada do pensamento católico.
Graças a esses progressos, conseguimos, em diversas Universidades, difundir
uma atitude de respeito diante de nosso passado filosófico. Em muitos Departa
mentos de Filosofia mantém-se uma cadeira dedicada à disciplina. No seio da
intelectualidade, de um modo geral, o desprezo pela filosofia brasileira se identifica
abertamente com uma atitude sectária e militante. Tornou-se patentç que a
insistência na agressão à filosofia brasileira corresponde na verdade a uma luta contra
a própria filosofia, à negação de sua autonomia e autenticidade, à pretensão de
subordiná-la à política ou à religião.
Todo o trabalho que desenvolvemos, sob a liderança e o estímulo de Miguel
Reale, no sentido de inventariar a filosofia brasileira e assim revelar a sua consistência,
longe de consistir numa obra de insulamento e xenofobia. O próprio Reale expressou
de forma magistral a expectativa que nos guia ao escrever: “ Quando pesar no espírito
de nossos pensadores toda a força do presente, não como instante imediato e fugaz,
mas como a concreção de nosso passado e de nosso futuro; quando vivermos
realmente inseridos na problemática de nossas circunstâncias, natural e espon
taneamente, sem sentirmos mais a necessidade de proclamá-lo a todo instante,
96 Miguel Reale na UnB
quando houver essa atitude nova, saberemos conversar sobre nós mesmos e entre nós
mesmos, recebendo idéias estrangeiras como acolhemos uma visita que nos
enriquece, mas não chega a privar-nos da intimidade de nosso lar” .
Miguel Reale, como acentuei, interessou-se igualmente por alguns problemas
nucleares da contemporânea meditação filosófica, a que não poderia deixar de
aludir.
Ao apresentar, em 1940, para o concurso da Faculdade de Direito de São Paulo, a
tese intitulada Fundamentos do direito, Miguel Reale coloca-se numa posição superadora
da tradição vigente naquela instituição. Superadora no melhor sentido da palavra
porquanto Reale não se propõe apenas refutar os grandes mestres que o antece
deram, como Pedro Lessa(1859/1921) ejoão Arruda(1861/1943), que pretenderam
manter o direito insulado numa sociologia geral, de franca inspiração positivista.
Contudo, Pedro Lessa ejoão Arruda não eram simples dogmáticos do comtismo, mas
figuras humanas de grande envergadura, empenhadas em fazer com que o direito,
obra milenar, se deixasse arejar pelos ventos renovadores da ciência. Inspirando-se
nos neokantianos, sobretudo na obra de Radbruch, Miguel Reale apontará para o
caráter unilateral da perspectiva positivista daqueles grandes mestres, indicando que
não se trata de opor a esfera dos objetos naturais, campo próprio das denominadas
ciências exatas, à esfera dos objetos ideais, campo próprio da lógica e da matemática,
mas reconhecer que além desses campos há uma outra constelação de objetos, aquela
referida aos valores, que retrata com fidelidade o mundo da cultura. A investigação
autêntica deve voltar-se para toda esta realidade, procurando reconhecê-la em suas
nuanças e não segundo uma postura reducionista ou exclusivista.
Como bem acentuou Teófilo Cavalcanti Filho - outro companheiro do Instituto
Brasileiro de Filosofia de cujo convívio nos vimos privados, em 1978 na
apresentação à 2.a edição de Fundamentos do Direito (1972), o ponto de vista de Reale
consistia numa novidade de extremo valor heurístico e teria, por isto mesmo, que se
constituir num ponto de aglutinação da filosofia do direito no Brasil. Ao longo de
pouco mais de dez anos, Reale iria dar-lhe uma feição muito mais elaborada,
consoante se pode ver da l.a edição de sua Filosofia do Direito, aparecida em 1953.
Mas Miguel Reale não estava satisfeito e considera que, na herança neokantiana,
persiste ainda uma compreensão meramente formal do mundo da cultura (a esfera
dos objetos referidos a valores). Deve haver, parece-lhe, uma forma de alcançar uma
verdadeira integração entre o espírito e o real, dando lugar a um autêntico conceito de
experiência, que abranja tanto a experiência natural como a experiência ética. Tal é
precisamente o sentido da investigação que anuncia com maior clareza num ensaio
de 1966 (“ Ontologia, fenomenologia e reflexão cri tico-histórica”) e se coroa em
Experiência e cultura, livro de 197 7. Refiro apenas os pontos marcantes dessa meditação
de Reale sobre um dos temas de maior densidade da filosofia contemporânea.
Miguel Reale e a Filosofia Brasileira 97
Reale tentará a superação dos resquícios de formalismo presentes ao neokan-
tismo através da retomada e da reelaboração do conceito kantiano de consciência
transcendental com base nas noções husserlianas de intencionalidade e “Lebenswelt”
(mundo da vida).
A consciência transcendental não deve ser entendida como uma espécie de
consciência comum distinta das consciências individuais e superior a elas, mas antes
indicando algo de constitutivo no homem, encarado como ser pensante. Não se trata
portanto de identificar qualquer coisa na linha do consenso, mas de apontar alguma
coisa de radical na linha do que Kant denominou de unidade a priori da percepção.
Esse elemento, longe de ser, como queria Kant, o “ eu puro” - no sentido de
puramente lógico, abstrato e formal -, acha-se desde logo irremediavelmente
comprometido com a intencionalidade.
A intencionalidade da consciência significa que conhecer é sempre conhecer
algo. Não cabe, portanto, nenhum dualismo abstrato entre natureza e espírito, como
se fossem duas instâncias em si conclusas, quando o estabelecimento da correlação
transcendental sujeito-objeto impede se reduza a natureza ao espírito e vice-versa.
Algo haverá sempre a ser convertido em objeto, alguma coisa haverá sempre além do
que recebeu doação de parte do espírito. Nem se exaure em qualquer experiência
particular o poder constitutivo de sínteses doadoras de sentido.
A respeito do que se indicou precedentemente Reale escreve o seguinte: “ É claro
que quando falo em transcendental refiro-me necessariamente... (a) algo universal
mente idêntico em toda consciência enquanto eu que pensa. Uma coisa é, no entanto,
admitir a “ subjetividade” do transcendental e outra bem diversa afirmar que a
subjetividade é condição transcendental de todo o real. É próprio da consciência, ao
contrário, pelo caráter de intencionalidade que lhe é inerente, reconhecer como
distinto de si o que ela assume em si mesma, o que equivale a dizer que, no ato de
conhecer e de agir, não é o sujeito que, de maneira absoluta, põe e constitui as leis
naturais ou as normas de ação. Se a relação volitiva só se dá na medida que se
conhece e se quer algo, está pressuposta “a priori” a correlação do que se conhece e se
quer com o sujeito cognoscente e agente, correlação essa só tornada efetivamente
possível no que denomino “processo ontognosiológico”, no qual eu e objeto e eu e objetivo
se implicam e se condicionam, mantendo-se distintos, mas complementares” . (O
direito como experiência, São Paulo, 1968, pág. 26). A fórmula que melhor expressaria
esse momento seria, ao invés do “ eu penso” kantiano, a concreção do “ eu penso algo
no m undo” .
Abstração feita dos objetos idéias (entes matemáticos e lógicos), onde o algo pensa
do se reduz ao objeto, no mundo da natureza e da cultura trata-se de “algo real” .
Aqui, às estruturas lógicas formuladas pelo sujeito correspondem estruturas
ônticas. Às determinações lógicas reveladas pelo sujeito correspondem virtualidades
de determinação. “ O sujeito apreende algo como objeto, mas há algo - correspon
98 Miguel Reale na UnB
liberdade de opinião, desde que o debate se circunscreva às idéias. Esse feito notável,
sem precedentes, repousa aindar no fato de que Miguel Reale soube transmitir-nos a
compreensão de que o autêntico diálogo é incompatível com o espírito polêmico. No
diálogo não há vencidos nem vencedores, mas o aprofundamento da compreensão
do problema focalizado - esta a premissa básica em torno da qual se estrutura a
instituição.
Concluindo estas breves indicações da notável contribuição que Miguel Reale
trouxe para a filosofia em geral e para a filosofia brasileira em particular, certo de que
expresso os sentimentos das pessoas aqui reunidas e dos promotores do Seminário,
formulo votos de que conserve ainda por muitos anos a mesma integralidade diante
do saber e da atividade intelectual, a que se tem mantido fiel ao longo do último meio
século.
4.1. A NOÇÃO DE NORMA JURÍDICA NA OBRA DE MIGUEL
REALE__________________________________ _________________
Têrcio Sampaio Ferraz Jr.
humano e do razoável” de Recasén^ Siche|s. Sua crítica não se volta, pois, contra o
formalismo conceptual vigente ainda nos primeiros anos deste século, mas sim
contra uma certa indecisão existente ainda na doutrina atual, que permite que a
combatida concepção da “normatividade jurídica abstrata”, expulsa pela porta da
frente, entre, sorrateira, pela porta d<|>s fundos. A nós nos interessa, pois, menos a sua
oposição ao normativismo formalistade Kelsen, presente nas suas primeiras obras e,
em parte também nasj últimas, muito mais a sua visão crítica do “normativismo
concreto”, porque nela não apenas se evidencia a complexidade das estruturas
normativas - e que já encontramos, por exemplo, em Lask- mas sobretudo propõe a
superação de uma concepção dispersiva e incapaz de fazer frente à chamada “crise do
direito”, entendida principalmente como “perda de confiança nas soluções normati
vas”, que provoca um “inegável desajuste ou conflito entre as condições existenciais e
as normas jurídicas vigentes”4.
O reexame da estrutura da norma jurídica em Miguel Reale tem um dos seus
pontos básicos na reinterpretação da própria “realidade”, à qual, o “direito” se
refere. O neoka^itismo, como sabemos, para evitar as tendências reducionistas do
sociologismo e do psicologismo jurídicos, considera esta “realidade” como produto
de um processoj de transformação, cujas condições estão na estrutura do pensamento.
Conforme a forma categorial da síntese, um mesmo “dado material”, onde o
processo de transformação se inicia, aparece-lhe, no resultado do procésso, ou como
“natureza”, oulcomo “cultura”, isto ê, ou como fenômeno social condicionado por
leis de causalidade ou como situação juridicamente significativa. Para muitos juristas
esta fórmula revela-se bastante apropriada, pois a “situação” juridicamente rele
vante, em face da totalidade dos acontecimentos, parece efetivamente o resultado de
uma transformação que se produz através de juízos guiados por critérios de direito.
Nesta concepção, portanto, o “material dado”, ou seja, um acontecimento qualquer,
é algo não diferenciado e sem forma, o qual adquire o sentido de uma ação humana
apenas na medida em que o referimos a um sentido transcendental, por exemplo, a
norma jurídica. As próprias normas, portanto, ao contrário do que se dá no
sociologismo ou no psicologismo, não são meros reflexos daquilo que já se contém
no “material”, mas envolvem uma posição constitutiva por parte de quem as emana
ou positiva. Se isto, de um lado, garante para a norma um estatuto próprio e
particular, de outro esvazia o mundo dos fatos e, em conseqüência, a própria relação
sntre estes e a norma, concebida abstratamente no seu aspecto puramente lógico-
"xanscendental.
Ora, no pensamento de Miguel Reale, o “fato” não ê jamais tomado como “um
pretenso fato puro originário”, como um “dado bruto recebido ab extra”, mas
significa “aquilo que já existe num dado contexto histórico”; o “fato”, de um modo
geral, é, para ele, “uma porção do real ãqual se refere um conjunto de qualificações”,
ou, ^xpresso numa linguagem fenomenológica, “a base de um complexo conver
\
4. Miguel Reale: O Direito como experiência, Sâo Paulo, 1968, p. 188.
A Noçào de Norma Jurídica na Obra de Miguel Reale 103
gente de significações, que pressupõem um eidos, isto é, uma “essência”, inconfun
dível com o “fato”, como tal”5. Nestes termos, sob o prisma da norma (em
elaboração), “fato” quer dizer “tanto o dado de natureza ou um acontecimento
independente da vontade humana, como os eventos e realizações resultantes dela (os
objetos histórico-culturais) inclusive os modelos jurídicos enquanto j ápositivados, isto é, já
feitos pelo homem”6. Há no conceito de “fato” uma “nota de tipicidade”,
embrionária e de natureza axiológica, não sendo, portanto, algo que, em dado
momento, passa a fazer parte do mundo jurídico, mas sim algo “já dotado de
sentido”7.
Esta concepção de “fato” permite, assim, a Miguel Reale, umareinterpretação da
estrutura da norma na sua referência à “realidade”. A norma deixa da ser aí um a
priori, dado antes do caso concreto, um “esquema” ou “medida” de validez da
“realidade”8, para ser um “modelo funcional” que contém em si mesmo o “fato”,
em outras palavras, que envolve em si, como componente integrante, intrínseco e
necessário, o momento situacional. Deste modo, enquanto no normativismo
abstrato, a norma se contrapõe ao caso concreto em termos de ajuste ou desajuste,
isto é, a norma, confundida com o seu texto, é um tipo geral oposto à individualidade
concreta, à qual ela tem de ser adaptada, no normativismo concreto de Reale, a
norma se conexiona intimamente com a sua “realizabilidade”9. Por conseguinte, se
ê possível afirmar-se que a norma jurídica, enqiianto texto, é um “juízo lógico” ou
“proposição normativa” onde este ê visto como simples “suporte ideal”, graças ao
qual “uma dada porção da experiência humana ê qualificada especificamente como
“experiência jurídica”, é preciso, por outro lado, dizer-se que a norma alberga, na
sua estrutura, um campo que lhe é próprio e um programa que constituiu o seu sentido
(prospectivo). Em outras palavras, sua concepção de norma coloca dentro dela
mesma a problemática da relação “direito” e “realidade”. Com isto se elimina a
oposição que se observa mesmo em certas concepções do normativismo concreto,
entre o “direito como norma” e o “direito como conduta”. O direito é, para Reale, “a
norma e mais a situação normada”, isto é, a “situação normada” não é um terceiro,
em relação à própria norma e à realidade concreta, mas constitui, com a norma, in
concreto, uma totalidade significativa10. Com esta compreensão da norma, o campo
de seu repertório - o “complexo fático” - não pode ser analisado separadamente por
uma sociologia cega para um momento normativo, nem o programa que lhe é
imanente e que lhe confirma e lhe garante o sentido - o “complexo axiológico” -
pode ser objeto de uma consideração desligada do próprio repertório, nem,
finalmente, a própria norma, enquanto texto, pode ser entendida, se reduzida a um
mero “suporte ideal”, sob pena de incorrermos num formalismo abstrato.
5. Idem, ibidem, p. 202.
6. Idem, ibidem, p. 203.
7. Idem, ibidem, p. 205 s.
8. Paul Amselelc Méthode phénoménologique et theorie du Droit, Paris, 1964, p. 67 ss.
9. Miguel Reale, op. cit., p. 191, 192, 201.
10. Idem, ibidem, p. 188.
104 Miguel Reale na UnB
Não basta, entretanto, mostrar, topologicamente, que a norma constitui, por si,
uma estrutura complexa, onde diferentes elementos se contrapõem e se implicam
numa totalidade. É preciso uma demonstração de qualidade hermenêutica desta
estrutura, para que não se incorra nos defeitos que apresenta, por exemplo, a
concepção dialética de Schindler ou a teoria do “valer-para” de Lask, que se revelam
impotentes, quando examinadas nas suas bases ontológicas, para superar o problema
que a própria complexidade estrutural do Direito coloca e que redunda na
desorganização do pluralismo jurídico e na desintegração do seu sistema. Isto nos
conduz, pois, à análise, que Reale denomina “fenomenológica” do ato interpretativo.
Dimensão Hermenêutica da Estrutura Normativa
A interpretação, diz Reale, é sempre “ um momento àeintersubjetividade”: “ 0 meu
ato interpretativo procurando captar e trazer a mim o ato de outrem, não para que eu
mesmo signifique, mas para que eu me apodere de um significado objetivamente
válido” 11. O ato de interpretação, portanto, implica uma duplicidade inicial, onde
dois elementos polares - sujeito e objeto - estão postos um diante do outro. Esta
polaridade, entretanto, não significa um abismo irredutível, donde a constatação de
uma unidade precária,- de natureza meramente lógica, mas sim uma integração
aberta, em que os elementos constituem uma síntese: para o intérprete, aquilo que se
interpreta consiste em “algo objetivo”, mas aquele não se limita a reproduzi-lo, mas
contribui, de certa maneira, para “constituí-lo, em seus valores expressivos” 12. Num
segundo momento, contudo, esta duplicidade inicial se esclarece como “ intersubje-
tividade”, na medida em que o “ algo objetivado” a que se dirige o ato interpretativo
não è uma coisa, mas um outro ato: as “intencionalidades objetivadas” constituem o
domínio próprio da interpretação13. “ Intersubjetividade” significa, pois, uma vin-
culação entre dois elementos que se põem distintamente, mas ao mesmo tempo se
interpenetram e se limitam.
A conseqüência disto, para a hermenêutica, é a correlação assinalada por Reale
entre o ato interpretativo e o ato normativo, “ não se podendo, senão por abstração e como
linha de orientação da pesquisa, separar a regra e a situação regrada” 14. O instante de
encontro de ambos se dá propriamente na norma jurídica, entendida não como
atualização de um valor prévio e absoluto, mas como momento de uma experiência
estimativa específica, em que o complexo fático e o complexo axiológico se
sintetizam, graças à interferência decisória do Poder15. Ora, dada a natureza peculiar
da participação do Poder na “normogênese jurídica”, a imperatividade da norma
passa a distinguir-se tanto do querer psicológico do legislador quanto de uma validez
11. Idem, ibidem, p. 240.
12. Idem, ibidem, p. 241.
13. Idem, ibidem, p. 242.
14. Idem, ibidem, p. 247.
15. Idem, ibidem, p. 195 ss.
A Noção de Norma Jurídica na Obra de Miguel Reale 105
norma não é vista como condição a priori de uma decisão, condição cuja certeza
garante a certeza da decisão, mas é, ela própria, o produto de um processo decisório
multidimensional. Isto abre caminho para um reexame do direito como uma
constelação de fatores em comunicação.
ESTRUTURA DA NORMA E PROCESSO DE COMUNICAÇÃO
No seu “O direito como experiência”, que nos parece sua obra mais importante e
que nos serve de base para exame do seu pensamento, Miguel Reale, ao encerrar sua
análise sobre o tempo no direito, afirma-lhe o caráter não necessariamente sucessivo
ou linear. Segue-se daí, continua ele, a possibilidade de que a Cibemédca venha abrir
novas perspectivas para a compreensão do tempo social e histórico, pois, de acordo
com McLuhan “a sincronização instantânea de numerosas operações, própria da
automação, tornam sem sentido o modelo mecânico das operações em seqüência
linear”28. Nestes termos, conclui Reale, os “modelos jurídicos” obedecem a uma
“temporalidade concreta”, caracterizada por um permanente “renovar-se ou
refazer-se das soluções normativas”29. Este entendimento do modelo jurídico, que
implica a sua operacionalidade, não exclui a linguagem cibernética, embora a ela não
se reduza30.
A palavra cibernética, originalmente, não se referia aos problemas lingüísticos. O
seu modelo inicial é o da “retroalimentação”. O princípio da “retroalimentação”
permite a conservação da situação de estabilidade em sistemas fechados. Dado o fato
de que inúmeros fenômenos biológicos, ou melhor, fisiológico podiam seír esclareci
dos através dele - por exemplo a temperatura do corpo —, a cibernética passou a
ocupar-se cada vez mais com o homem, sobretudo no terreno da teoria da
informação, cuja aplicabilidade aos problemas lingüísticos é patente31. Para Wiener,
a “informação” não é nem matéria nem energia, mas um terceiro. O modelo
lingüístico aí subjacente é o moelo “ontológico” tradicional, na medida em que à
palavra (sinal gráfico ou fonético) atribui-se a qualidkde especial: “informação”. Isto
se revela com clareza no campo jurídico. Wiener esclarece que, para que os cidadãos
possam ter uma estimativa prévia segura dos seus direitos e deveres, é exigida, a
possibilidade de previsão das decisões judiciais em cada caso dado. Isto pressupõe
que as normas mais especificamente, as leis sejam claras. Segue-se, daí, a obrigação,
para o legislador, de produzir enunciados claros e unívocos, de tal modo que não
apenas o jurista, mas qualquer pessoa pudesse interpretámos de uir único modo. O
próprio Wiener reconhece o caráter ideal desta concepção, afirmando mesmo que, na
verdade, qualquer conceito jurídico novo só se toma inteligível e toma um sentido
28. Idem ibidem, p. 224. M cLuhan: Understanding media: The extensions of man, Nova York, 1964, p. 301 ss.
29. Miguel Reale, op. cit., p. 225.
30. Idem, ibidem, p. 176 s.
31. Norbert Wiener. Homem e sociedade -O uso humano dos seres humanos, trad. J.P. Paes, São Paulo, 1968, p. 16 ss.
108 Miguel Reale na UnB
determinado depois de passar por um processo de precisão, através da jurispru
dência32.
A aplicação da cibernética ao direito é vista, por isso, pelos próprios juristas com
alta dose de ceticismo. A doutrina tradicional concebe o papel do juiz, no processo
comunicativo, em termos de mero receptor passivo, em que pesem as teorias sobre a
participação ativa da jurisprudência na produção do direito. Por parte do legislador
estabelece-se a exigência supramencionada de clareza e precisão. É evidente que esta
exigência, nos quadros tradicionais, não pode ser mantida. Mesmo um legislador
dotado de uma fantástica imaginação não pode prever todas as situações futuras. Por
isso, o juiz, que não pode furtar-se a uma decisão, ou se vê obrigado a recusar
relevânciajurídica a um fato não previsto ou a “criar”, ele próprio, um modelo novo,
capaz de resolver o problema, mas de algum modo, sem deixar de prender-se aos
modelos normativos vigentes. Este dilema se funda numa concepção da linguagem,
onde a relação norma-realidade tem de ser abstratamente colocada, e que culmina no
problema da lacuna. Na doutrina tradicional, cada expressão conceituai de um
comportamento refere-se a um comportamento “real”. Isto pressupõe que esta
referência seja clara e conhecida por todos. Sabemos, entretanto, que na própria
literatura jurídica, isto não se dá. Há uma tendência generalizada, sobretudo na
civilística, em admitir que a lei se serve, necessariamente, de expressões genéricas, o
que exige do aplicador da lei um trabalho de interpretação e de concretização do
preceito abstrato. Do ângulo da teoria da ciência, esta exigência, entretanto, não é
vista como uma limitação, mas ao contrário, como uma conquista do progresso
científico33: o processo de abstração, numa comunidade lingüística, indica o
caminho do progresso, assinalando o uso de expressões abstratas um alto grau de
desenvolvimento. A abstração toma-se, neste sentido, um instrumento de precisão
da comunicação. No plano jurídico, a utilização de conceitos abstratos está unida à
possibilidade de cobrir-se a desproporção entre o logos limitado e o ilimitado das
situações concretas ou, pelo menos, à possibilidade conferida ao juiz de cobrir, por
meio da analogia, o vácuo normativo. A utilização da analogia, entretanto, como
vimos, revela-se, ao contrário, como um fator de insegurança, na medida em que não
há nem pode haver uma delimitação precisa do princípio da semelhança. Isto coloca o
juiz ou o advogado ou o promotor, enquanto receptores no processo comunicativo,
na difícil situação de procurar, através de comparações aproximadas, a relação entre
casos concretos, referidos a padrões abstratos, dificuldade que qualquer jurista pode
perceber já no compendiar as revistas especializadas e que reproduzem catálogos de
decisões, remetidas a índices de termos-chave, necessariamente incompletos e
imperfeitos.
A este modelò lingüístico e epistemológico aqui esboçado vincula-se, pois, a
Dogmática Jurídica tradicional, prendendo-se ao princípio de divisão dos poderes,
32. Idem, ibidem, p. 106 ss.
33. Cf. E Albrecht: Beitrage zur Erkenntnistheorie und das Verhältnis von Sprache und Denken, Halle, 1959, p. 77
A Noção de Norma Jurídica na Obra de Miguel Reale 109
Ê para mim, não há dúvidáàgrande alegria ter de dialogar, primeiro, com um amigò
que conheci através do diálogo das idéias, que é Antônio Paim. As amizades,^
que vamos formando ao longo do tempo, têm diversas fontes. Uma delas pode nascer
apenas da sedução de um conceito, de um pensamento que encontra ressonância em
nosso espírito. E assim surge uma amizade espiritual. E essa a amizade que me liga a
Paim.
Igual prazer me proporciona o diálogo com Tércio Sampaio Ferraz Jr., meu ex-
aluno, cuja capacidade criadora desde logo identifiquei, mesmo antes de haver
Departamentos, porque, quando o professor tem o sentido de participação, apesar da
aparente distância da cátedra, sabe discernir os valores, identificá-los e, na medida do
possível, torná-los próprios. Não há maior alegria, para um professor, do que se
encontrar com os discípulos de ontem e os mestres de hoje, como é o caso de Tércio
Sampaio Ferraz Jr., como foi ontem o de Celso Lafer, como foi anteontem o de
Ronaldo Poletti.
É esse o privilégio dos professores: sentirem-se projetados no tempo, reencon
trando em seus antigos discípulos algo que foi pensado e intuído por eles,
freqüentemente enriquecido dê potencial e de novas perspectivas.
Feitas ess^s observações iniciais, vou tecer^lgumas considerações breves sobre o
que acabaimos de ouvir, menos para esclarecer do que para demonstrar que no Brasil
já está havendo algo de novo: uma troca de idéias, entre nós mesmos, na imanência de
nossas circunstâncias.
Fez bem Antônio Paim em dar realce inicial à problemática da Filosofia
brasileira. Confesso que, desde muito jovem, era para mim um desconsolo ler
continuamente, nos livros de História da Filosofia, quase como um ramerrão e um
realejo, esta afirmação tristonha: “A Historiada Filosofia no Brasil não tem sido outra
coisa senão a melancólica história das influências recebidas”.
Reagi contra essa maneira passiva de olhar o pensador brasileiro, assim como
reagi contra aqueles que chegavam ao ponto de dizer que o brasileiro, herdeiro do
português, não tinha bossa para filosofar. Afirmação duplamente errônea. Em
primeiro lugar, porque Portugal deu contribuição significativa^ ao pensamento
filosófico, tanto no plano da Lógica, como no da Metafísica, embora sem nos ter
112 Miguel Reale na UnB
dado um Descartes ou um Hegel. O que ocorre é que não se estuda o pensamento
português, e fala-se dele sem conhecê-lo. Por outro lado, não hã povo incapaz de
filosofar, visto como a Filosofia é o homem mesmo na sua inquietação, nas suas
dúvidas e nas suas perplexidades.
Partindo da noção fundamental de que “quem diz homem, diz um problema”,
perguntei: será que os nossos pensadores foram tão passivos assim, meros escribas do
pensado alhures? À medida que ia tomando contacto com Clovis Bevilacqua, Tobias
Barreto, Silvio Romero, Jackson Figueiredo, Farias Brito, e assim por diante, ia
percebendo que havia algo de novo na maneira de expressar as idéias alheias, pois na
forma de ser influenciado também pode haver algo de positivo. Nós nos deixamos
influenciar na medida da nossa própria personalidade e de nossas próprias
circunstâncias.
Esta, a primeira observação. Como foi influenciado, em que sentido foi atraído o
pensador nacional? Havia, portanto, a necessidade de proceder-se a uma análise
fenomenológica das influências recebidas e, através dela, reconstituir a intenciona
lidade originária que determinara a escolha de uma teoria ou a preferência por certos
temas considerados prioritários no âmbito de nossa cultura.
Essa minha mudança de atitude em face do problemafilosófico brasileiro logrou,
felizmente, encontrar ressonância na geração posterior, a que pertence Antônio
Paim.
É motivo de melancolia, neste instante que é de tanta ternura, lembrar alguns
jovens que a morte inexorável afastou de nosso convívio, quando estavam desenvol
vendo uma obra fecunda de descoberta de nós mesmos, no campo das idéias. Refiro-
me, especialmente, a Luiz Washington Vita, Luís Antônio Machado Neto e Teófilo
Cavalcanti Filho. Faço questão de lembrar esses nomes para mostrar à juventude que
o ato de filosofar não é um ato isolado e perdido no tempo, mas sempre um trabalho
de equipe e de continuidade. Que a Filosofia é um patrimônio histórico que se
acumula através de um diálogo que será tanto mais poderoso quanto mais se inserir
na intimidade de nossas razões vitais, sem que isto importe em olvido ou desprezo
pela tradição filosófica que nos liga a Platão ou a Aristóteles.
Outra observação que me ocorreu, já foi focalizada por Antônio Paim, de cuja
exposição nada posso discordar, tão feliz foi ele na abrangência dos pontos capitais.
Poderia resumi-la talvez nesta pergunta: “ Será que as idéias assimiladas tiveram no
Brasil significação e sentido iguais aos vigentes em sua pátria de origem?”
Eis aí uma pergunta que somente se tornou possível com o advento e o progresso
dos estudos de “ Sociologia do Conhecimento”, os quais vieram demonstrar que até
mesmo as teorias mais abstratas, que parecem planar no limbo do pensamento puro,
estão presas por liames às vezes subtis, às circunstâncias individuais e coletivas que
Comentários de Miguel Reale 113
positivista batia nas praias de nossa cultura com a força reveladora de uma Filosofia
renovadora e crítica. Não obstante suas insuficiências, a Filosofia Positiva, que
prevaleceu em nossas Escolas de Direito ou de Medicina representou, por assim
dizer, a forma de Filosofia crítica correspondente às nossas circunstâncias, desempe
nhando um papel inconfundível com o que teve na França.
De outro lado, a Filosofia da Religião de Augusto Comte, - a qual, do Apostolado
Positivista se estendeu à Escola Militar, com Benjamin Constant à frente, - trazia-nos,
concomitantemente com uma série de idéias autoritárias e “caudilhescas” , que iam
repercutir tão profundamente em nosso ser nacional, trazia-nos também uma
preocupação real pelos problemas do povo e do proletariado, o que representou algo
de novo num País sem tradição socialista. Esse ponto foi devidamente realçado por
João Cruz Costa, com o equívoco, porém, de colocá-lo na primeira plana do
pensamento pátrio,
Eis aí exemplo de como uma corrente de idéias pode ter ressonâncias diversas e
imprevisíveis quando os seus modelos são transplantados de um rneio cultural para
outro.
Pois bem, foi à luz desses e outros critériôs epi$temológicos e metódicos que um
grupo de jovens estudiosos, entre os quais, hòje se destaca Antônio Paim, veio se
colocar ao meu lado, nessa tarefa fascinante dè conhecer-nos melhor, com abandono
de preconceitos negativistas.
Minha função foi apenas a de apontar um caminho, depois layrado com tanta
eficiência por um grupo extraordinário de pesquisadores. /Fòi-nõs, então, possível
descobrir na Filosofia do Direito, por exemplo,, o que havia de original em Pedro
Lessa - talvez o único jurista a captar a Lógica de Stuart Mill e a aplicá-la,
conseqüentemente, no campo do Direito. Recuando mais no tempo, foi-nos dado
deparar com um fato singular, a repercussão dò pensamento de Kant no fim da era
colonial, nos cursos mantidos por Martim Francisco Ribeiro de Andrada e Diogo
Antônio Feijó.
Como estão vendo, no Brasil nunca faltou curiosidade filosófica, e nem sempre
foi tão defasada, como se costuma propalar. Bastará este fato: em 1830, Victor Cousin
desenvolvia o primeiro curso de Filosofia sobre Kant na Sorbonne. Em 1816, ou
1818, às vésperas da Independência, na então pequenina cidade de São Paulo, houve
aulas sobre Kant dadas por Martim Francisco, com tamanha repercussão que os
grandes naturalistas Martius e Spitz ficaram perplexos por encontrarem, nas terras
virgens da América, homens que se referiam com entusiasmo ao pensamento de
Kant.
Não importa, como bem mencionou Paim, que Antônio Feijó ou Martim
Francisco tenham recebido o kantismo através de autores franceses, como Willers, de
Comentários de Miguel Reale 115
maneira incipiente, pois também Willers ainda não se dera conta de todos os valores
da concepção transcendental de Kant. De modo que o problema não consiste em
saber-se se Feijó era um kantista puro. O importante é verificar que Feijó e Martim
Francisco já distinguiam, na sua época, entre uma Filosofia dogmática, uma Filosofia
cética e uma Filosofia crítica, optando pela terceira. Outra questão, que ficara
olvidada, não merecendo sequer uma linha do Pe. Leonel Franca, apesar dos méritos
de suas páginas sobre História da Filosofia no Brasil, era o do krausismo, que formou várias
gerações de estudantes na Faculdade de Direito de São Paulo, influindo, até certo
ponto, sobre alguns líderes da chamada República Velha.
Pois bem, esse e outros filões do pensamento brasileiro foram revelados,
havendo ainda muito a fazer, para completar-se o belo panorama traçado por
Antônio Paim em sua “ História das Idéias Filosóficas no Brasil”. Folgo, aliás, em
registrar, que em várias Universidades brasileiras, este assunto já constitui disciplina
obrigatória nos Cursos de Filosofia.
Outro problema relevante era e continua sendo o da publicação das “fontes do
pensamento brasileiro” , com a reedição de obras raríssimas que dormiam nas
sombras dos arquivos. " . '
Nesse sentido, somos devedores a Antônio Pairri, por ter reconstituído a obra de
Silvestre Pinheiro Ferreira, o grande mestre português que desenvolveu um curso de
Filosofia, no Rio de Janeiro, logo após a chegada de D. João VI, curso esse publicado
em fascículos pela Imprensa Régia. Só eram conhecidos dois exemplares dessa obra,
ambos mutilados: um na Biblioteca Nacional e outro em Lisboa. O trabalho de Paim
consistiu em confrontar as duas edições e publicar “As Preleções Filosóficas” de
Silvestre Pinheiro Ferreira, que foi o ponto de partida do pensamento brasileiro. A
seguir, outros volumes de igual interesse vieram à luz, e, hoje, já possuímos uma
significativa “ Estante do pensamento brasileiro”, graças à contribuição inestimável
da Universidade de São Paulo, ora enriquecida pela de Brasília. Filosofava-se, como
se vê, sobre o Brasil sem ter o cuidado prévio de fazer-se o levantamento bibliográfico
e a análise dos textos. Esse erro já foi em parte superado.
Tal visão da Filosofia do Brasil corresponde muito a uma tendência natural em
meu espírito, no sentido de não reduzir a Filosofia a um simples brinco da
inteligência. O pensador autêntico não é mero leitor de sistemas. Hegel, certa feita,
fez uma crítica irônica à Escolástica, à Escolástica estereotipada do seu tempo,
dizendo que o escolástico se comporta como alguém que fica à margem de um rio
para aprender a nadar, lendo um tratado de natação, mas sem coragem de se lançar à
água...
Em filosofia, devemos afrontar o risco de pensar por nós mesmos. Quando
reclamei “ um pensamento próprio” (que alguns confundiram com o desejo de um
pensar autóctone ou tupiniquim) houve quem sorrise apodando-nos de “filoso-
116 Miguel Reale na UnB
fantes”. Recebemos o adjetivo com orgulho e até com certa vaidade. O que queria era
que o brasileiro passasse a pensar com a própria cabeça, dialogando com filósofos
estrangeiros, está certo, mas sem a petulância de olvidar o já pensado e dito no Brasil,
às vezes até com antecedência. O que importava, em suma, era perder o receio de só
reproduzir e criticar idéias alheias.
Foi assim que veio se delineando e afirmando a Filosofia brasileira, ou, para
evitarmos equívocos, o estudo sistemático da Filosofia no Brasil, indagando-se de seu
estilo, preferências e prioridades. Ainda há duas semanas, a tese de concurso à Livre
Docência, na PUC de Campinas, versou sobre “Vicente Ferreira da Silva no
pensamento Nacional”, e os dois pontos sobre os quais o candidato coube dissertar
foram: “ O Positivismo e seus Reflexos no Brasil” e a “ Doutrina Filosófica de São
Paulo na Primeira metade deste Século”. Fatos como esse me envaidecem e me
entusiasmam, pois, como disse, num trabalho de 1960, na Universidade do Ceará, “ a
Filosofia é a autoconsciência de um povo” . Enquanto um povo não filosofa por si
mesmo, na imanência de sua própria concretude, ainda não atingiu a maturidade.
Abram um livro de Filosofia da Alemanha: é um diálogo entre alemães, com ,
referência, de quando em quando, ao pensamento alheio. Abram um livro de
Filosofia francesa: é um diálogo entre franceses. Vamos passar a dialogar entre nós
mesmos e verificar e receber o pensamento estrangeiro como diretrizes básicas
fundamentais. Isto não significa, de maneira nenhuma, que devamos pôr entre
parênteses Kant, Russell ou Hartmann. Absolutamente. O meu pensamento está
denso dessas influências, mas nunca a influência de Kant, ou a de Hartmann foi
recebida como um modelo dominante e insuscetível de crítica. Pela mesma razão,
nehum de meus discípulos é meu seguidor passivo. Orgulho-me de discípulos que
não seguem integralmente meu pensamento e também dos que se distanciam de
minhas teorias, mas que, quanto ao método éà atitude de filosofar, são fiéis a algo que
lhes transmiti. É essa a continuidade cultural que importa como condição de um
diálogo profundo. A grandeza da Filosofia, como máxima expressão da liberdade,
consiste na possibilidade de nos entendermos, mesmo divergindo.
No que se refere à tese de Tércio Sampaio Ferraz Filho, tão densa de poder de
análise, bastará dizer que ele fere um dos pontos culminantes da teoria tridimen
sional do Direito. Não cheguei ao chamado normativismo jurídico concreto de
repente. Quando vejo algumas pessoas citarem a minha Filosofia do Direito, edição de
1953, fico um pouco preocupado, porque essa edição está inteiramente superada. A
“ Filosofia do Direito” de 1953 era uma; a de 1980 já é bem diversa. Porque jamais me
contentei com o que já havia pensado. A minha concepção tridimensional, de início,
era abstrata, ainda sob a influência do neokantismo de Windelband, Rickert e
Radbruch. Posteriormente é que evolui para uma compreensão dialética dos três
fatores - fato, valor e norma - desenvolvendo as teses do historicismo axiológico, em
cujo conteúdo se situa o conceito de “concreção normativa”.
Comentários de Miguel Reale 117
Mais recentemente, a partir de meu livro O Direito como Experiência, é que surge
uma terceira fase na teoria tridimensional, marcada pelas meditações sobre os
modelos jurídicos em correlação com o embasamento d a Lebenswelt (mundo da vida)
de inspiração husserliana.
Apesar dessa evolução, confesso que não me dou por satisfeito, e vejo que Tércio
descortina alguns problemas novos. Na realidade, um filósofo que está contente
consigo mesmo é um filósofo que já morreu, que já é história de si mesmo. E eu ainda
não quero ser história. (Risos). Quando olho para os jovens aqui presentes, recebo um
estímulo no sentido de continuar a pensar, se possível, não com o ímpeto que eles
têm, mas com o desejo de competir com eles, como eles estão querendo competir
comigo. Nessa competição do intelecto é que está a força da cultura.
O.ra, disse muito bem Tércio que na teoria do normativismo concreto existe
sobretudo uma resistência á instrumentalização da obra do jurista. Pretendo dizer
isto de outra forma, que marca um certo desencanto que tenho tido ao longo da
minha vida. Quantas e quantas vezes, participando da administração pública, em
cargos de responsabilidade, como o de Secretário da Justiça, ou de Consultor para
determinados problemas fundamentais do Estado, me contristava verificar a posição
secundária em que é posto o jurista. O economista traça o seu programa e o expressa
numa linguagem que por ironia se chamou “ economês” . O técnico, que projeta uma
usina hidroelétrica, traça o seu plano e, depois que o traçou, pensando ter resolvido
tudo, chama o jurista e lhe diz: “articula isso, ponha isso em lei” , como se o jurista
fosse apenas um instrum entalizador- o que Tércio muito agudamente criticou - ou
seja, sempre instrumento da obra alheia. Não se pode planejar no mundo
contemporâneo sem ouvir o jurista antes, durante e depois. Quando o jurista é
chamada para ser ouvido depois, muitas vezes já está tudo perdido, e ele apenas
procura diminuir as conseqüências perniciosas daquilo que foi feito. Inclusive, do
ponto de vista técnico, o jurista deve estar presente, a fim de verificar se não há
obstáculos de ordem legal, no plano interno ou internacional.
Mas, para isso, meus caros amigos, meus caros jovens que me estão ouvindo, é
necessário que também o jurista mude de mentalidade. O jurista deve deixar de ser
apenas um especialista formado para o Foro. Há uma mentalidade puramente
forense no preparo jurídico. Lembremos, porém, que o Foro é o hospital do Direito.
Quando o Direito está doente, o advogado leva o doente ao Foro para que, através da
prova e da argumentação, - que é “ a dialética do discurso persuasivo” , o juiz possa
prolatar a sentença e restabelecer a vida do Direito. As vezes, a sentença, em lugar de
ser de vida, é de m orte (Risos), mas este é um outro problema. De qualquer maneira,
em tese, procura-se a saúde jurídica, a saúde da Justiça, quando se vai ao Foro. É um
campo formidável da atividade jurisprudencial. Porém, não deve ser o único destino
de quem estuda leis. Há o campo das consultorias técnicas, das consultorias
empresariais, em que o jurista deve estar presente não apenas como instrumento do
querer produtivo do empresário, mas como partícipe e orientador de uma obra social
relevante, inseparável dos valores jurídicos.
118 Miguel Reale na UnB
Tive uma experiência - experiência que jamais esquecerei, - durante a
construção da Usina de Itaipu, quando da assinatura do famoso Tratado entre o
Brasil e o Paraguai. Coube-me a honra de ser consultor “ad hoc” dos juristas e
diplomatas do Itamaraty. Como eu era um homem que vinha do setor empresarial
energético - na vida do intelectual brasileiro não é possível sermos só filósofos, somos
obrigados a ser técnicos, juristas, advogados e assim por diante - pude verificar
quanto o jurista pode e deve interferir criadoramente na elaboração do modelo mais
adequado a este ou àquele tipo de usina hidroelétrica. A de Itaipu envolvia problemas
de Direito Internacional, de Direito do Trabalho, de Direito Civil, Penal, etc. Poucos
sabem, por exemplo, que na “empresa binacional” de Itaipu prevalece o “ jus
sanguinis”, e não o “jus soli”: filho de brasileiro é brasileiro, ainda quando nascido
além da linha ideal da fronteira paraguaia, e vice-versa. Por outro lado, Itaipu tem seu
pequeno “ Código de Direito do Trabalho”, assim como tem sua própria moeda, de
natureza autuarial. Sem a colaboração criadora do jurista, como teria sido constituir
esse modelo singular, de uma empresa que participa, ao mesmo tempo, dos valores
da empresa privada e de uma entidade internacional?
Quando essa usina extraordinária estiver funcionando, não se lembrem apenas
dos engenheiros e economistas; pensem também nos juristas que conceberam o
Tratado e seus atos complementares dando-lhes um sentido criador único,.original,
na história do Direito Internacional contemporâneo.
Estão vendo como, de fato, a norma jurídica é algo de muito mais complexo do
que um puro juízo lógico. A norma jurídica é algo de concreto que se correlaciona
dialeticamente com certos fatos e valores. Ela assume em si o que há de permanente e
essencial nos fatos e valores, na condicionalidade espaço-temporal em que ela é
estruturada e deve ser aplicada.
Seria um engano, no entanto, pensar que o fato atua como causa. Os romanos
diziam que exfacto onturjus , mas é necessário não tomar essa fórmula ao pé da letra. O
fato é apenas um elemento de onde se parte, e cujo sentido, graças à mediação do
valor, integra-se no conteúdo da norma. Do ponto de vista do jurista, a norma é algo
de conclusivo e de integrante. A norma integra em si os elementos factuais e os
elementos valorativos, superando-os, no sentido hegeliano da palavra. E, aqui, eu
preciso lembrar qüe o conceito de superamento, em Hegel, é um conceito
fundamental para toda e qualquer concepção dialética, inclusive para a dialética de
implicação e polaridade.
É a razão pela qual eu disse - e muito bem o lembrou Tércio, numa linguagem
própria, muito precisa, porque ele é um analista da linguagem jurídica- que o Direito é
a norma, mais a situação normada.
Não tem sentido a história contada por certo realista americano, de que o juiz lê
antes os autos, forma sua convicção, e, depois, vai procurar a lei que corresponda à
sua conclusão para legitimá-la. Não é assim. A norma jurídica tem um aspecto de
Comentários de Miguel Reale 119
PERGUNTA: Quando o Professor Tércio Ferraz falou que a norma, às vezes, se en
contra dissociada da realidade, ele disse que o fato devia estar relacionado com a
norma. Eu queria saber de que maneira o fato pode estar relacionado com a norma,
se a norma é uma coisa já posta, já acontecida, fixa. De que forma poderia haver uma
relação; digamos, como a norma pode adaptar-se à realidade, tornando-se mais
elástica?
MIGUEL REALE ~ A sua pergunta envolve um esclarecimento prévio. O fato de
uma norma ser já posta não a converte em algo de fixo. A norma é fixa apenas na
literalidade de seu enunciado verbal, mas não em seu conteúdo, suscetível que é de
variações semânticas.
Como tive oportunidade de explicar ontem, a regra jurídica, como todo produto
cultural, é dotada de certa plasticidade ou elasticidade, que decorre de sua natureza
genérica. A regra é a previsão de uma classe de comportamentos possíveis, o que
permite, no mais das vezes, encontrar nela a resposta aos problemas postos pelos
fatos da vida social que reclamam composição jurídica.
Quando nenhuma norma vigente corresponde a um fato trazido ao conheci
mento do Juiz, como este não pode recusar a sua prestação jurisdicional, que é um
dever do Estado, - temos a hipótese de lacuna jurídica, superada por uma série de
técnicas que não me seria possível explanar, no momento, como seria o recurso à
analogia, ou aos princípios gerais de direito, não só à luz da totalidade do
ordenamento em vigor, mas também segundo determinadas diretrizes ético-
jurídicas que atuam, como “ constantes axiológicas”, em nosso universo cultural.
O certo é que, como dispõe a Lei de Introdução ao Código Civil, o juiz não pode
deixar de sentenciar, a pretexto de obscuridade ou lacuna da legislação. Para cada
fato, por mais excepcional que seja, quer graças à interpretação extensiva e evolutiva,
quer mediante analogia ou princípios gerais de direito, será sempre possível e
indispensável chegar-se a uma solução jurídica.
PERGUNTA: Quais as causas e conseqüências do desinteresse pela Filosofia que
parece existir hoje no Brasil?
MIGUEL REALE - Tenho a impressão de que no Brasil, hoje, há mais interesse
pela Filosofia do que existia há 30 ou 40 anos. Hoje, há centros de Filosofia - o
122 Miguel Reale na UnB
frases, e escrito o Tratado que, ainda em 1953, imaginava com mais três volumes,
cada um deles destinado a uma das partes especiais da Ontognoseologia Jurídica.
Trata-se, porém, de meras suposições, pois sempre fui avesso às Filosofias
Jurídicas que se resolvem num diálogo entre especialistas, nada significando para o
advogado ou o juiz.
A filosofia do Direito, para ser válida, precisa conter uma mensagem, algo de
significativo para o homerrt que labuta no Foro, trabalha nas consultorias ou participa
dos planos da administração pública ou privada. Está no âmago da teoria tridimen
sional do Direito essa constante preocupação pelas aspirações sociais, pelos fatos e
valores que devem se integrar na unidade harmônica da norma jurídica. Ora, esse
sentido concreto do Direito brotou, digamos assim, de minha variada experiência
como homem. Não foi um brinco da inteligência; não é que um dia eu tenha me
sentado à mesa e resolvido criar uma teoria. A suposição de que as teorias surgem
assim por encanto, como Minerva já armada e perfeita da cabeça de Júpiter, é um
grande equívoco. As teorias não são senão o produto da experiência. São a conclusão
de tudo aquiío que se sofreu, provou e experienciou, e, ao mesmo tempo, constituem
ponto de partida para outras experiências.
E esta é a razão pela qual, Bertrand Russell, se não me engano, traçou uma
diferença essencial entre as teorias políticas quando aplicadas em países desenvol
vidos e subdesenvolvidos: nos primeiros correspondem ao resultado de uma
experiência; nos segundos marcam o início de uma experiência, com resultados
imprevisíveis...
De mais a mais, nem sempre podemos governar a progressão de nossas
investigações científicas, em virtude da intercorrência de empenhos insuspeitados;
ou que prevalecem na ordem das prioridades. Foi o que aconteceu comigo, não
apenas em razão dos intervalos de ação política ou administrativa, mas também
porque me pareceu inadiável despertar o Brasil para uma consciência filosófica que
não via brotar das universidades, dedicadas exclusivamente à leitura crítica e
acadêmica de textos, sem correrem o risco de pensar por conta própria. Daí um
período intenso de conferências, congressos e artigos.
Foi tudo isso que me impediu de escrever o sonhado Tratado, embora cuidasse
sempre de atualizar, de edição para edição, a minha Filosofia do Direito, que talvez
ainda venha a rever, depois do texto de 1975, considerado complexo. Por esse
motivo, me preocupo quando vejo citada, hoje, a edição de 1953, para fundamentar
idéias que foram por mim superadas.
Quantos e quantos juristas realizam üm livro e depois se põem a contemplá-lo
pelo resto da vida, como se tivessem descoberto algo de definitivo, transformando sua
obra num ídolo intocável! Não há ídolos no plano da cultura, pois nossas criações
140 Miguel Reale na UnB
estão sempre sujeitas a revisões, o que pode ocorrer com a publicação de um novo
livro, que depois repercutirá sobre o outro. Talvez pudéssemos pensar num boneco
de cera que vamos modelando e afeiçoando às experiências próprias e às exigências
coletivas, enquanto houver engenho e arte.
Mas não exageremos. Há casos em que o escritor considera uma obra definitiva,
porque de certa forma ela já se desprendeu dele, e é melhor cuidar de outros temas,
mesmo porque o tempo urge e o espírito humano é um foco de mil atrações.
Apesar da relatividade, a que já aludi, é preferível, pois, reconhecer que as obras
de um autor correspondem a momentos distintos de sua experiência. Nesse sentido,
dados os objetivos deste seminário, seja-me permitido reexaminar a linha de
desenvolvimento de minhas idéias mestras, completando a exposição já feita ontem.
Como já lembrei, houve uma fase de meu pensamento, a 2.a em que passei, de
certo modo, de Kant a Husserl. Mas não recebi as diretrizes fenomenológicas, sem as
submeter a uma revisão crítica, acorde com o que já adquirira através do
“ historicismo axiológico” . Portais motivos, não me conformei com o sentido estático
da Filosofia fenomenológica. Procurei dialetizá-la e, posteriormente, com grande
surpresa e alegria, ao ler a obra póstuma de Husserl, A Crise da Ciência Européia e a
Filosofia Fenomenológica, eu verifiquei que ele, na última fase da sua vida, também tinha
chegado a uma posição paralela, reconhecendo a carência de historicidade de sua
obra. Foi a melhor resposta a certos críticos que haviam declarado incompatível com
a fenomenologia husserliana qualquer reflexão de tipo histórico ou dialético...
Da mesma forma, dissenti de outros dois mestres da Fenomenologia, Max
Scheler e Nicolai Hartmann, no que se refere à sua concepção dos valores, por ambos
considerados espécies de objetos ideais. Uma de minhas possíveis contribuições à
Axiologia consiste, ao contrário, na consideração dos valores como objetos autô
nomos, distintos dos objetos ideais, por não serem expressões do Scr (Sein) mas sim
do dever ser (Sollen) e por outras razões que não posso agora resumir.
Essa colocação do problema iria conduzir-me a uma 3.a fase, correspondente, no
plano jurídico, a meu livro “ O Direito como Experiência” , de 1968, e, no plano da
Filosofia Geral, àquela que talvez seja a minha obra maior, Experiência e Cultura, de
1977. Na primeira desenvolvo a teoria dos modelos jurídicos, e, na segunda, procuro
sistematizar meus pensamentos, visando a fundar uma teoria geral da experiência.
Projeção imediata desse livro é o que publiquei em 1980, sob o título de “ O homem e
seus horizontes” .
E a Política? Não posso dizer que ela não tenha interferido no processo que acabo
dedelinerar, pois, em minha existência política-do ponto de vista teórico-prático-
surge um livro ao qual não posso deixar de fazer especial referência. Refiro-me a
Pluralismo e Liberdade, de 1963. Esse livro, embora seja uma reunião de vários ensaios,
Miguel Reale por ele Mesmo 141
foi publicado num momento muito grave da vida brasileira: na antevéspera da
Revolução de 1964.
Nele reclamava a necessidade de uma sociedade aberta e pluralista e, ao mesmo
tempo, legitimada pelo princípio de liberdade, ao contrário das diretrizes estatizantes
pregadas pelos que orientavam o Presidente João Goulart, numa espécie de
nacionalismo neo-marxista, que, para alguns, deveria desembocar numa República
Sindicalista. As idéias pluralistas, que já havia exposto em Teoria do Direito e do Estado,
eram repensadas sob outro prisma em Pluralismo e Liberdade. Foi, então, que se
preparou a eclosão da Revolução de 1964, e eis-me, outra vez, pego pelos cabelos e
lançado na luta política, como conspirador revolucionário, primeiro, e, depois, na
qualidade de Secretário dajustiça de São Paulo, defendendo, com unhas e dentes, a
autonomia do meu Estado, que estava ameaçada.
Vitoriosa a Revolução, não fiquei de braços cruzados. Senti a necessidade de
continuar participando dos eventos, mesmo após ter deixado as funções de Secretário
dajustiça, em São Paulo.
Preocupava-me verificar que o Governo Revolucionário, empolgado com
problemas econômicos e financeiros, - que eram efetivamente os mais urgentes, -
não cuidava à í problemática política, repetindo-se o grande vazio que tem comprome
tido os momentos mais decisivos de nossa história.
É nesse contexto, no quadro dessas apreensões, que situam os livros Imperativos da
Revolução de Março, que é de 1965; Problemas de nosso tempo, que é de 1969; eDa Revolução
à Democracia, cuja l.a edição é de 1969. e, finalmente “ Política de ontem e de hoje” ,
que é de 1978, mas reúne vários estudos dos anos anteriores, inclusive na “ Escola
Superior de Guerra” .
Nessas obras, marcadas por um desejo de crítica construtiva, denunciei falhas e
desvios do processo revolucionário, a começar pela apontada falta de consciência
política e pelo estrabismo dos tecnocratas, perdidos em seus números e diagramas de
caráter puramente econômico.
Note-se que em Imperativos da Revolução de Março, de 1965, já apontava os perigos
da visão unilateral dominante, que levava a esquecer os problemas sociais, con
cluindo com esta afirmação que teve certa ressonância: “ Uma revolução pode deixar
de derramar sangue, mas não pode deixar de derramar idéias” .
A situação, com a chamada abertura, continua sendo a mesma. O grande mal dos
nossos partidos é a carência de idéias e programas... Não temos partidos nitidamente
distintos, por seu embasamento doutrinário, e que brotem de baixo para cima, à luz
de idéias diretoras. No fundo, persistem como acordo entre pessoas, combinações de
clientelas, ajustes e reajustes de interesses ocasionais e transeuntes.
142 Miguel Reale na UnB
O que explica, por exemplo, a sublegenda? A sublegenda é um ‘‘jeitinho
brasileiro” , de estar dentro do partido e, ao mesmo tempo, não estar. (Risos). A
sublegenda visa a permitir, por exemplo, num Município, que um grupo possa fazer
oposição ao Prefeito, ficando de bem com o Governador, isto é, conservando o calor
do Governo estadual e do federal. Por sua vez, no Estado, pode-se romper com o
Governador, declarando-se seu inimigo de morte, mas sem perder as graças do
Presidente da República... Como é que um jogo de sombras desse naipe pode
entusiasmar a juventude?
A nossa vida política tem sido algo de oscilante e precário, porquanto vai de um
extremo a outro. De um lado, o casuísmo empiricista e pragmático; de outro, a
abstração utópica, com todo o cerimonial solene, por exemplo, de uma Assembléia
Constituinte, como se esta fosse capaz de dar o fiat criador para solução dos
problemas nacionais. Que se faça uma Constituinte, vá lá! Mas, que se ventilem antes
os problemas básicos, para não chegarmos a ela de mãos vazias, só. depositando
esperança em soluções inspiradas pelo “ espírito santo cívico” .
Estão vendo, por conseguinte, que a minha vida tem sido uma dominada por
fatores políticos, jurídicos, filosóficos, sociológicos, etc. E não me arrependo disto.
De vez em quando, digo que vou deixar de advogar, vou deixar a política, vou deixar
disto ou daquilo, e minha mulher logo adverte: “Se você deixar, você morre”. No
fundo, esta frase talvez tenha um sentido mais profundo, porque os intelectuais
brasileiros, que não queiram desertar dos problemas de seu povo vêem-se na
contingência de viver muitas vidas, sendo obrigados abater vários pregos, ao mesmo
tempo. E a operar em vários setores, não por vaidade, mas por premência das
circunstâncias. Foi, pelo menos, o que eu senti, de maneira inexorável, em toda a
minha existência.
Hoje em dia, quando volvo os olhos para o passado, e penso no que me foi
possível construir no plano das idéias e dos fatos, regozijo-me por não ter tido êxito
na política, por ter sido vídma de tantos ataques injustos e às vezes ultrajantes,
ultrajantes para os ofensores e não para mim.
Se me vi, tantas vezes, malogrado em minha “vontade de poder”, do poder que
desejava exercer com a esperança de bem servir à coletividade, consola-me o fato
desse empenho ter-se convertido em um dos ingredientes de meu ser pessoal, em um
dos fatores determinantes desse amor que sinto pelas soluções concretas e exis
tenciais.
A Filosofia ou a Ciência do Direito me terá dado tudo? Não sei. Nos intervalos de
minha meditação ou do meu agir, como filósofo ou como jurista, muitas vezes senti
um vazio, algo que precisaria ser afrontado por outras vias. Daí os livros de versos, os
livros de poesia. Não sou poeta. Sou um filósofo que se quer completar através da
intuição estética, que é a melhor denunciadora de nossa finitude e, ao mesmo tempo,
Miguel Reale por ele Mesmo 143
a mola incitadora para o mistério que nos cerca por todos os lados, e sem o qual nem a
vida, nem a ciência, têm sentido. A poesia parece, assim, operar na franja da
existência, mas pulsa antes no âmago dela, como uma fala paradoxalmente silenciosa
que se confunde com o que há de mais puro e insondável em nosso espírito.
5.2 DEBATES
“ São como nadadores que, à beira do rio, passam o tempo estudando tratados de
natação, sem jamais ensaiarem um mergulho!”
Os conferencistas, expondo o seu normativismo concreto, ficaram à beira do rio,
sem ensaiarem tal mergulho. Gostaria de ouvir do senhor um exemplo concreto de
uma causa examinada e julgada por um juiz tridimensionalista, de um lado, e por um
juiz kelseniano, de outro.
MIGUEL REALE - Em primeiro lugar, devo fazer algumas retificações,
porquanto não creio que os que expuseram meu pensamento, sobretudo o Prof.
Tércio Sampaio Ferraz, que tratou do assunto, tenham dito que a norma não surge
dos fatos. Segundo a teoria tridimensional, o fato é um dos elementos constitutivos do
Direito, mas não o único, O erro do normativismo abstrato consiste em tomar o fato
como ponto de partida, esquecendo-se depois dele, como se a norma tivesse uma lei
própria de desenvolvimento, desligada do fato originário e de outros supervenientes.
De outro lado, o chamado “realismo jurídico” vê a norma como simples emanação e
expressão dos fatos. No tridimensionalismo procuramos evitar ambos esses exa
geros, pois a norma jurídica, uma vez emanada, carrega os elementos factuais
consigo, no seu próprio conteúdo. De maneira que o ingrediente da norma concreta
são os elementos factuais, tanto quanto os axiológicos.
Penso ter havido incompreensão quanto a esse aspecto, tanto assim que, por
vincular a vida da norma às mutações sociais, tenho sido até acusado de dar
desmedido valor ao fato. Parece-me incontestável que, quando o juiz examina a
prova e aprecia o “caso”, ele procura determinar “ o fato típico” que está expresso na
norma aplicável, a fim de poder estabelecer a correlação fato/norma que é a base da
sentença.
Também foi dito que, a meu ver, o homem não deveria sequer perder tempo com
idéias que não tenham aplicabilidade. Também é uma generalização que não
corresponde ao afirmado. Não me referi ao “ homem”, em geral, mas ao “político”,
ou ao “ jurista”, o que é muito diferente. Como pode o homem deixar de se
preocupar com idéias se, a meu ver, o que distingue o homem dos demais seres é o
seu dever ser, isto é, os seus fins?
O que foi dito é que o jurista ou o político não devem dar atenção a idéias ou
objetivos que jamais possam se converterem realidade. É de Ihering, seguido, aliás,
pelo tom istajoão Mendes e porjellinek, mestre d a “ Escola Técnico-J uri dica”, a tese
de que a “ realizabilidade” é da essência do Direito, o que me parece incontestável. O
Direito é feito para ser realizado ou cumprido. Imagine o juiz, que me distinguiu com
essa pergunta, uma norma jurídica que, por seus vícios intrínsecos, jamais se
transforme em momento de experiência humana! Imagine uma lei que promulgada
com todo o aparato do Congresso e sancionada pelo Presidente da República, nunca
logre ter eficácia! Não é lei, é apenas uma quimera!
Debates 147
A Filosofia não raro consiste em saber distinguir as coisas, sem separá-las, e
devemos dar ao fato o que é do fato, e à norm a o que é da norma, sem reduzir um à
outra ou separar os dois elementos que se exigem reciprocamente.
De outro lado, não concordo que os meus comentadores tenham evitado
afrontar a problemática jurídica, ficando à beira do rio, sem coragem de nele
penetrar. Suas análises me pareceram muito precisas e positivas. Finalmente o nobre
magistrado me pede um exemplo concreto de uma causa julgada por um juiz
kelseniano, e por um outro que não o seja.
Vou procurar satisfazer a esse pedido, com dois exemplos de minha própria
experiência de advogado militante, partindo da asserção kelseniana de que o Direito é
norma, e nada mais que norma.
Um juiz de formação kelseniana, ou seja, adepto do monismo normativo, é
levado a se contentar com o que a norma enuncia, sem cuidar de seu conteúdo
valorativo ou axiológico. Em ambos os casos, invoquei uma hermenêutica fundada
no tridimensionalismo. Confesso que tenho ganho causas com a teoria tridimen
sional, assim como houve outras também, que perdi, porque o tridimensionalismo
não é uma panacéia. (Risos). Mas, muitas vezes, me tem servido na minha vida
profissional.
O
ILUSTRAÇÕES
Ilustrações 157
Da esq. para a dir.: os Prof. Carlos Henrique Cardim (Decano de Extenslo da UnB), Miguel Reale, José
Carlos de Azevedo (presidindo os trabalhos), Ronaldo Poletti (proferindo a sua conferência sob o título
“Miguel Reale e o Pensamento Político”) e Amadeu Cury, Decano de Pós-Graduação da UnB.
Flagrante de mais uma sessão do SimpósicMiguel Reale: tendo à sua direita os Prof. Miguel Reale, Luiz
Otávio de Souza Carmo {Vice-Reitor da UnB) e Carlos Henrique Cardim, eà esquerda os Prof. Celso Lafer
(da USP) e Vamireh Chacon, o Ministrojosé Carlos Moreira Alves, do Supremo Tribunal Federal, preside
os trabalhos.
158 Miguel Reale na UnB
O Prof. Miguel ReaJe faz a sua Conferência, tendo à dir. o Prof. Carlos H enrique Cardim e à esq. o Reitor
José Carlos de Azevedo (presidindo), Ministro Gualter Godinho, do Superior Tribunal Militar e o Prof.
Amadeu Cury.
O Prof. Antônio Paim fala sobre “Miguel Reale e a Filosofia Brasileira”. À sua dir. está o Prof. Carlos
Henrique Cardim. E à sua esq.: os Prof. Miguel Reale, José Francisco Paes Landim (na presidência dos
trabalhos), Tércio Sampaio Ferraz Jr. (da USP) e Amadeu Cury.
Ilustrações 159
Outro aspecto da Conferência que o Prof. Miguel Reale fez no Simpósio em sua homenagem. À sua dir.
estão o Deputado Bonifácio José de Andrade e o Reitor José Carlos de Azevedo; à esq. vêem-se o Senador
Paulo Brossard e o Prof. Tércio Sampaio Ferraz.
ANEXO_____________________
Miguel Reale: Minha Trajetória Filosófica
consideravam uma “espécie de objeto ideal”, numa visão por assim dizer neopla-
tônica. O estudo dos valores jurídicos ou políticos, nos quais se manifesta de maneira
mais pronunciada a sua natureza normativa, levou-me a desvincular os valores dos
domínios dos “objetos ideais”, a começar pela observação fundamental do que,
enquanto que estes são, aqueles devem ser. A colocação da “ teoria dos objetos” em
função da distinção fundamental entre Sein e Sollen (o que, salvo engano, antes não
havia sido feita) revelou-se fecunda para uma fundação autônoma da Axiologia,
situando o valor como um “ ens a se” .
A essa luz, lembrei que, ao contrário dos objetos ideais, os valores, além da
“ polaridade” , que lhes é sempre inerente, se caracterizam também por sua
“ realizabilidade”, visto como não passaria de mera ilusão ou de quimera um valor
que jamais viesse a se converter, pelo menos em parte, em momento da vida humana,
através de atos de valoraçào e obras. Daí a sua essencial vinculação com a
problemática da história e da cultura, também por sua característica de “ inexauri-
bilidade” .
Talvez não haja exagero na afirmação de que, desse modo ao dar um status
autônomo aos valores como tais, estava contribuindo para lançar as bases de uma
Axiologia autônoma, fundada na natureza mesma do homem, um ser, que como já
notei, não pode deixar d e conhecer, e também não pode deixar dc escolher, pois a vida
consiste em permanentes opções. Essas duas exigências existenciais (no fundo todo
conhecimento implica certa opção) exclui a possibilidade de um pensamento divor
ciado d âpraxis e vice-versa. Há, pois, uma co-implicação necessária entre a Teoria do
Conhecimento, ou Ontognoseologia, e a Axiologia, podendo-se afirmar que o
homem “é enquanto deve ser”.
Parece-me que dessa linha de pensamento resulta a necessidade de examinar,
com mais profundidade, outra correlação não menos relevante: a que se põe entre
valor e tempo, tese esta escrita a convite do Congresso Internacional de Filosofia,
realizado em Veneza, em 1958, como uma das “ comunicações introdutivas” (Cf. Atti
dei X II Congresso Intemazionale di Filosofia, Vol. I, Florença, 1958).
Essa tese estava, aliás, ligada a uma nova compreensão da cultura, concebida
como “o mundo das intencionalidades objetivadas pelo homem ao longo de sua
experiência histórica” . Meu propósito era alcançar um conceito de cultura quê fosse
além das colocações empiricistas, mas tivesse um alcance geral englobante, tal como
já fora percebido^ por alguns historiadores, etnólogos e sociólogos: impunha-se,
reconhecer, e ainda me parece constituir uma tarefa atual, que devem-se desenvolver
paripassu a teoria do homem e a teoriá da ciência, ou seja, imago hominis e imago mundi,
como afirmei numa das conferências da tarde promovidas pelo Congresso Interna
cional de Filosofia, de Dusseldorf, em 1978 (Cf. meu livro “ O homem e seus horizon
tes”, São Paulo, 1980).
164 Miguel Reale na UnB
É claro que essa compreensão do homem e de sua experiência histórica, em
função da idéia de valor, põe uma série de problemas, aos quais tenho procurado
responder, sem a preocupação, porém, de ordenar minhas convicções em sistema.
Prefiro antes um “ pluralismo de perspectivas” que nos leve a uma dialética de
complementaridade. Esta se caracteriza pelo reconhecimento de que o processo
Histórico-cultural não se desenvolve segundo progressivas sínteses superadoras de
contrários e contraditórios, mas sim através de “ sínteses abertas”, formadas pela co-
implicação de elementos que só podem ser compreendidos em sua mútua correlação,
sem que um deles seja reduzido ao outro. À “dialética dos opostos”, de tipo
hegeliano ou marxista, representaria, assim, uma das formas possíveis da “ dialética
de complementaridade”, desde que não se pretenda alcançar uma absurda síntese de
termos contraditórios.
Foi partindo desses pressupostos que passei a estudar o problema da experiência
em geral, convencido da inviabilidade de um conceito de experiência para as ciências
empírico-formais, e outro para as ciências sociais ou para a vida ética. Uma teoria geral
,da experiência, que sirva de fundação a múltiplas e diversificadas compreensoes do real
é o campo de pesquisa em que mais me empenho atualmente.
ÍNDICE REMISSIVO