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Miguel Reale na UnB

Miguel Reale na UnB

o .2
Coleção Itinerários

Editom Universidade deBrasilia


Miguel Reale na UnB
FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
CONSELHO DIRETOR
Abílio Machado Filho
Amadeu Cury
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Patrícia Maria Silva de Assis
Supervisão Gráfica: Elmano Rodrigues Pinheiro
Miguel Reale na UnB

Conferências e Comentários de um
Seminário realizado de
9 a 12 de junho de 1981

Coleção Itinerários

C o m O äD O lO
Edibm UniversidadedeBrasilia
Ml FUNDAÇÃO ROBERTO MARINHO
Este livro ou parte dele
não pode ser reproduzido sob nenhuma forma
sem autorização por escrito do Editor
Impresso no Brasil
Editora Universidade de Brasília
Campus Universitário - Asa Norte
70910 Brasília - Distrito Federal
Copyright © 1981 bv Editora Universidade de Brasília
Capa:
Arnaldo Machado de Camargo Filho

Ficha catalográfica:

Miguel Reale na UnB: conferências e debates de


M 636 um seminário realizado de 9 a 12 de junho de
1981. Brasília, Editora Universidade de Brasí­
lia, cl 981.
175p. (Coleção Itinerários)
32 301 340.12
Reale, Miguel, 1910-
série
SUMÁRIO

Apresentação (José Carlos de Almeida A zevedo)..................................................... 1


1. O PENSAMENTO POLÍTICO DE MIGUEL REALE
1.1. Ronaldo Poletti .................................................................................... 3
1.2. Comentários de Miguel Reale ........................................................... 27
1.3. Debates ................................................................................................... 37
2. O PENSAMENTO SOCIAL DE MIGUEL REALE
2.1. Vamirech Chacon ................................................................................ 49
2.2. Celso L a fe r............................................................................................ 57
2.3 Comentários de Miguel Reale ........................................................... 73
2.4. Debates ................................................................................................... 81
3. MIGUEL REALE E A FILOSOFIA BRASILEIRA
3.1. Antonio P aim ........................................................................................ 91
4. A NOÇÃO DE NORMA JURÍDICA NA OBRA DE MIGUEL REALE
4.1. Têrcio Sampaio Ferraz Jr..................................................................... 101
4.2. Comentários de Miguel R eale........................................................... Ill
4.3. Debates ................................................................................................... 121
5. MIGUEL REALE POR ELE MESMO
5.1. Conferência de Miguel Reale ........................................................... 127
5.2. Debates ................................................................................................... 145
6. ILUSTRAÇÕES 155

ANEXO: Miguel Reale: Minha Trajetória Filosófica............................... 161


ÍNDICE REMISSIVO 165
ÍNDICE ONOMÁSTICO 173
APRESENTAÇÃO_____________
José Carlos de Almeida Azevedo

É uma grande alegria e um privilégio particular para a Universidade de Brasília,


receber a visita do eminente Professor Miguel Reale, ilustre pensador brasileiro, ex-
Reitor da Universidade de São Paulo em época em que aquela instituição teve
marcante surto de desenvolvimento.
À semelhança de eminentes pensadores que o antecederam neste ciclo de
conferências, o Professor Miguel Reale aqui comparece para participar do ciclo
“ Miguel Reale na Universidade de Brasília”. Nesta série de Encontros, realizados
pelo Decanato de Extensão da Universidade de Brasília, já foram homenageados
eminentes pensadores, cientistas sociais e economistas, entre os quais Karl Deutsch,
John Kenneth Galbraith, Raymond Aron, Gilberto Freyre, Ernest Gellner, Maurice
Duverger, Afonso Arinos e, por último, o Prêmio Nobel, Friedrich Hayek que há
poucos dias aqui esteve neste mesmo auditório.
Após esta série de conferências em que será discutida a obra do ilustre filósofo
Professor Miguel Reale por estudiosos, ele próprio discorrerá sobre aspectos
relevantes da sua importante obra e, a exemplo dos encontros anteriores, franqueará
ao público a palavra.
Ainda este ano a Universidade de Brasília contará com a presença, neste ciclo de
conferências, de René Dubos, do Instituto Rockefeller, nos Estados Unidos, do
eminente filósofo Karl Popper, do Professor Henry Kissinger e do Professor Leszek
Kolakowski que nos visitou há cerca de dois anos, quando da realização do primeiro
encontro internacional da Universidade de Brasília.
1 . 1 . 0 PENSAMENTO POLÍTICO DE MIGUEL REALE
Ronaldo Poletti

Expor o pensamento político de Miguel Reale, numa rápida abordagem, não é


uma tarefa fácil. O ilustre brasileiro, cuja obra constitui objeto desse Seminário na
UnB, esteve presente, pelas suas idéias, em todos os momentos políticos da
nacionalidade, ocorridos a partir da década de 30 até os dias de hoje. Ele é da turma
de 1934 da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, cujas tradições políticas
são bem conhecidas. Podemos imaginar sua participação na imprensa estudantil, tão
importante, naquela Academia de Direito, sobretudo na Revista XI de Agosto,
discutindo os temas políticos, filosóficos e jurídicos a que dedicaria sua vida de
homem de pensamento e ação.
Basta passar os olhos pela extensa bibliografia política de Miguel Reale, para
concluir-se da impossibilidade de conhecer-se a integralidade de seu pensamento
político, através de um método enciclopédico. Assim como a Enciclopédia do Direito
não alcança o saber jurídico, uma visão panorâmica da vasta obra não lograria o
obj*etivo de conhecer a síntese de seu pensamento. Já em 1934, publica O Estado
Moderno, sobre os problemas da Teoria do Estado, recebendo a crítica favorável de
Plínio Barreto, Otávio Tarquínio de Souza e Tasso da Silveira e obtendo repercussão
em Portugal, nos trabalhos de Malheiro Dias. Ainda em 1934, dá à luz a Formação da
Política Burguesa, em que faz, de forma percuciente, um estudo da história das
doutrinas políticas. Em 1935, Perspectivas Integralistas e, no mesmo ano O Capitalismo
Internacional, onde examina a organização econômica então contemporânea, a
gênese, a evolução e as formas do capitalismo, antevendo a importância desse
fenômeno de nossos dias que consiste nas grandes companhias internacionais, as
chamadas multinacionais.
Em 1936, ano em que começa a dirigir a revista PANORAMA, que teve como
colaboradores Oliveira Viana, San Tiago Dantas, Otávio de Faria, Tasso da Silveira e
outros, publica livro sobre o pensamento filosófico-político da Grécia, Atualidades de
um Mundo Antigo. Em 1937, Atualidades Brasileiras, um conjunto de ensaios de
economia e de crítica a obras de sociólogos e publicistas brasileiros. Em 1940, dois
livros fundamentais: sua dissertação de concurso para a cátedra de Filosofia do
Direito, intitulada Fundamentos do Direito, que desempenhou notável papel no
pensamento filosófico jurídico nacional; e a sua obra capital até então: Teoria do Direito
e do Estado, onde começa a desenvolver suas idéias pluralistas. Podia, portanto,
apresentar-se ao concurso, em 1940, com as credenciais que até hoje lhe são
legítimas, sem que sofresse qualquer hiato nestes últimos quarenta anos, pois não se
4 Miguel Reale na UnB
acomodou à láurea da conquista da cátedra: desde os bancos acadêmicos vem se
“ dedicando aos estudos filosóficos, jurídicos e sociais, publicando trabalhos de
investigação doutrinária e procurando contribuir para o maior desenvolvimento do
patrimônio cultural brasileiro” 1.
Nele não se aplica a crítica de que os professores, uma vez conquistadas as
cátedras, cessavam ou diminuíam a sua produção intelectual. Daquela data aos dias
de hoje, não cansou ele de debruçar-se, com brilho invulgar, sobre os problemas
filosófico-jurídicos do Brasil e do Mundo. Parte de seu trabalho de notável expressão
se refere a questões políticas. Ainda ecoam nesta Universidade suas recentes, argutas
e profundas observações sobre o nó górdio da Ciência Política, que é o problema da
representação, proferidas em conferência durante seminário recente sobre o tema,
promovido pelo decanato de extensãí)2.
Sempre cumpriu seu dever de, como homem de pensamento político, oferecê-lo
ao Governo do Brasil, independentemente das pessoas dos governantes ou dos seus
partidos. Nem sempre o Governo seguiu suas idéias, porém ele sempre influenciou,
de alguma maneira, o processo político brasileiro.
Lembro-me de seus debates sobre o parlamentarismo, havendo seus artigos e
conferências e ensaios formado valioso volume: Parlamentarismo Brasileiro, SP, 1962.
De sua intensa participação no processo político brasileiro, através de suas idéias
e projetos, seria interessante^ realçar, para efeito de registro, os momentos mais
próximos. O momento de agora. A sua participação no chamado processo de
institucionalização da Revolução de Março, como demonstram inúmeros trabalhos
já publicados, durante o desenrolar das duas últimas décadas, e diversos documentos
que ele um dia publicará. Não se quer dizer, com isso, que a Revolução sempre fez o
que Reale aconselhou. Aliás, em grande parte deixou de fazê-lo. Mas significa que do
que ela efetivou, ele previu, ou havia sugerido e formuiado antecipadamente. Ou,
ainda, que ela fez tardiamente o que havia sido acenado há tempos; ou que ela,
desafortunadamente, deixou de realizar, perdendo, talvez para sempre, a oportuni­
dade. Ocorre-me, por exemplo, sua análise de alguns passos da Constituição de 46,
que não foram sanados em 1967, e que, apesar de seus esforços, não se corrigiram a
tempo através de reforma constitucional, que estava programada, acabando por
desaguar no Ato Institucional n.° 5/68. Para não alongar esta parte introdutória,
apontem-se as fórmulas oferecidas ao Governo para a revogação dos instrumentos de
exceção, de forma a não sofrer o regime qualquer solução de continuidade. O nome
de Reale, está definitivamente inscrito dentre aqueles que vêm atuando diretamente
na construção da democracia brasileira. Já em 18/5/1972, quando poucos falavam
em revogação daqueles instrumentos, em conferência na Escola Superior de Guerra,
asseverava:
“ É claro que a revogação dos Atos, cuja transitoriedade o parágrafo
único do art. 182 da Constituição proclama, não poderá ser feita ex-
O Pensamento Político de Miguel Reale 5
abrupto, mas progressivamente, de modo a ficar plenamente assegurada a
objetivação do processo revolucionário, que coincide com os interesses
primordiais da Nação”3.
Mas, desde 1964-67 ele colocou o problema da incorporação dos primeiros atos
revolucionários à Constituição, repetindo, ainda, essa postura em 1969 e 19774. Para
ter-se idéia de Reale como precursor de idéias e de soluções políticas, registre-se sua
participação em 5 de dezembro de 1962, no “ Congresso para definição das Reformas
de base” , sob o patrocínio do Correio da Manhã e Folha de São Paulo, onde tratou, entre
outros, dos seguintes temas: a primeira reforma política de base é esta: governar com
a maioria e não à custa dela; fortalecimento dos partidos políticos; a fidelidade
partidária, “ torna-se indispensável que se estabeleça na Constituição um processo de
tutela, de fidelidade dos deputados às agremiações a que pertencem” , considerando
extinto o mandato de quem abandonar a legenda; dar ao Senado incumbência mais
clara e positiva para a fiscalização do controle da política financeira; as leis
complementares, denominadas de leis para constitucionais; a possibilidade de
delegação legislativa; os decretos-leis com controle constitucional; o voto distrital
misto5.
Diante de universo tão rico de idéias e de ação, é impossível chegar ao
pensamento de Reale por uma análise fragmentada de sua obra política ou de exame
isolado de qualquer de seus escritos, mesmo porque não seria razoável estudá-la
separadamente da filosófica e da jurídica. Penso dever-se colocar aqui o problema do
integralismo, seu belo sonho de juventude. Propomo-nos a examinar o pensamento
realeano, não seu pensamento no Integralismo, o que me parece outro tema. Para
esse outro assunto, também muito interessante, seria preciso situar Reale no
Integralismo, o que envolveria verificar as diversas dimensões dessa expressão, como
movimento de idéias filosóficas e políticas e com o partido político, ou seja, como ação
política, bem como implicaria situar nosso pensador diante das diversas correntes
presentes na Ação Integralista, de onde emanaram figuras importantes, porém muito
diversificadas em suas ideologias políticas, que abrangem desde o comunismo até o
liberalismo moderno, o sociaíismo cristão e o socialismo democrático, a democracia
social e os modelos autocráticos e totalitários, na expressão fascista moderna.
Aliás, em Reale o homem político é inseparável do filósofo e do jurista. Na
verdade, não importa tanto saber o conteúdo formal de seu pensamento, mas como
ele se aculturou de maneira a formulá-lo sempre atual de acordo com as épocas, os
homens, em favor da construção da Democracia Nacional. A pergunta fundamental
reside em indagar como Reale se tornou um homem culto, entendida a Cultura como
categoria não do saber, ou do conhecer ou do possuir ou do construir, mas na
categoria do ser, segundo a classificação de Max Scheler. Como Reale, na projeção do
homem de cultura de Nietzsche, desenvolveu as potencialidades de seu ser, a ponto
de estar sempre apto a enfrentar os problemas da Política? Esta pergunta talvez seja
respondida pela Filosofia de Reale, sua mundividência, base de onde brota
6 Miguel Reale na UnB
permanentemente seu pensamento sobre todas as realidades vivas do homem em
sociedade e tem ensejado sua ação. O dia, neste seminário, dedicado a seu
pensamento filosófico, talvez, forneça a chave para a compreensão de seu pensa­
mento político. Na verdade, sua cosmovisão, isto é, sua compreensão geral do
universo e da vida, do mundo e do homem, do Direito e da História, fornecerá o
instrumento pelo qual será possível descobrir os segredos mais profundos do
seu pensamento político. Assim como, para conhecer o Direito, é preciso indagar da
natureza do homem e do Mundo onde ele está situado, para o entendimento da
Política, é preciso saber do Cosmos e do Microcosmos, do Universo e do Homem, na
sua relação recíproca de implicação e polaridade6.
A vida ariva de Reale, no magistério, na advocacia, nos congressos de filosofia,
nos cursos de extensão, nas conferências e na imprensa, integrou-se no pensamento,
que, na verdade, constitui um movimento in fieri permanente, sempre se aperfei­
çoando, numa expressão de sua vida de filósofo que não assume uma verdade
acabada, mas simboliza a busca incessante da verdade. Daí um sem número de
trabalhos que foram adquirindo forma e vida em diversas publicações. Para ficarmos
apenas no terreno mais próximo do pensamento jurídico-político, surgem: em 1956,
Horizontes do Direito e da História, onde se destacam, sob o prisma político, os ensaios
sobre “ liberdade antiga e liberdade moderna”, “ O contratualismo - posição de
Rousseau e de Kant” e “ Direito e Cultura”; em 1960, Nos quadrantes do Direito Positivo,
reunião de notáveis estudos e pareceres, não apenas de Direito privado, mas também
de Direito Público, como os atinentes á Teoria do Estado e Direito Constitucional
(representação política, municipalismo, intervenção no domínio econômico, disci­
plina jurídica da vida associativa rural, etc.); em 1962, o já cit. livro sobre
parlamentarismo; e, em 1963, obra importantíssima, porque de certa forma
representa o encontro de seu pensamento filosófico, consubstanciado na sua Filosofia
do Direito, com o seu pensamento político, em notável síntese, seu Pluralismo e
Liberdade. A partir de então, Reale se movimenta para oferecer fórmulas à Revolução
Brasileira, cuja expressão recente é o evento de 1964 até hoje. Salientam-se Os
imperativos da Revolução de Março (1935) e Democracia e Revolução (1969) mais tarde, na
segunda edição de 1977, reestruturada sob o título “ Da Revolução à Democracia” .
Merecem citados, ainda, a propósito de nosso tema, Problemas de nosso tempo (1970),
onde alguns aspectos ideológicos e filosóficos são tratados7. E os livros mais recentes,
Política de ontem e de hoje, O homem e seu horizonte, Cultura e Experiência. Destaco, ainda, as
conferências na Escola Superior de Guerra, “ Estruturas Jurídico-Políticas contem­
porâneas” (8.6.70), “ Problemas Institucionais do Estado Contemporâneo” (18.5.72):
“ A Sociedade Contemporânea, seus conflitos e a eficácia do Direito” (25.3.77),
proferida no curso “Temas Fundamentais de Direito Público” , organizado pela
Procuradoria Geral do Estado de São Paulo8; e o trabalho Política e Direito na Doutrina de
Nicolai Hartmann9. Além desses títulos, há um número muito grande de artigos
recentemente publicados em jornais e revistas especializadas. Diante disso, de tal
universo tão profundo e rico, não é possível pretender, nos limites deste trabalho,
alcançar uma síntese. Daí a nossa tentativa de examinar, tão-somente, alguns pontos
O Pensamento Político de Miguel Reale 7
do pensamento político de Miguel Reale, através de características, que me parecem
fundamentais permanentes na sua trajetória de Pensador político, com o que
abandonamos qualquer idéia de dividir cronologicamente o pensamento realeano.
São os seguintes os pontos de que trataremos:
1 - a relação entre a teoria e a prática;
2 - a importância da globalidade;
3 —' a superação das ideologias do século passado;
4 - a situação mundial e o modelo brasileiro;
5 - a crítica e o legado da história.
1. Desde seu primeiro livro, Estado Moderno, Reale formulou um lema que parece
haver seguido durante toda a sua vida de intelectual: “ viver a teoria e teorizar a vida,
na unidade indissolúvel do pensamento e da ação”. Como intelectual não pode
deixar de intentar a realização do que pensa em termos sociais e políticos. Sob esse
prisma, vê a ideologia como algo saudável e inevitável, sinal de uma dimensão
própria da cultura de nosso tem po10.
Sua vida de professor e advogado revelam isto, que, no plano da Política, se
evidencia.
Na sua participação já citada na institucionalização da Revolução, ele sempre
“ ofereceu sugestões de caráter prático ou operacional”. Invariavelmente indicou
“ alternativas possíveis, desde logo corporificadas em emendas constitucionais” 11.
Isto, aliás, está compreendido em todo o seu pensamento filosófico-jurídico.
Diante do exagero de Kelsen, em reduzir a Teoria Geral do Estado kTeovWijurídica do
Estado - mero aspecto subjetivado ou personalizado do Direito - Reale reafirma o
dualismo de Jellinek que distinguia a teoria jurídica e teoria social do Estado12. E vai
além, atribuindo uma terceira ordem de pesquisas à Teoria do Estado consistente “à
indagação in concreto dos fins da comunidade política” 13.
Na verdade, esta identificação entre a realidade e a prática, no plano das idéias
políticas, está de acordo com um método adotado do qual resulta igualmente a
“ concretitude histórico-cultural do Direito”. Reale tem do Direito, como da Política,
uma visão menos formal e mais concreta e viva. Considera até um dos fenômenos
fundamentais da Teoria do Direito da nossa época a concreçãojurídica. Não é o Direito
formal o objeto de suas preocupações, mas o Direito como Experiência, como dimensão
de vida, como Direito próprio do homem situado no espaço e no tempo sociais.
O método é a aplicação da dialética de complementariedade que não se confunde
com a dialética dos opostos formulada por Hegel. De fato, é a dialética de implicação
e polaridade, já utilizada para explicar a tridimensionalidade dinâmica do Direito, o
instrumento metodológico pelo qual nosso pensador observa a superação das
8 Miguel Reale na UnB
antinomias, de que trataremos dentro em pouco, entre liberalismo - socialismo,
totalitários e individualistas, ocidente e oriente, e também do pensamento e
realidade, da arte e da vida, da poesia e da sua realização, enfim, da teoria e da prática.
Tal postura diante do fenômeno lhe possibilitou, de um lado a formalização de
projetos políticos nacionais, e de outro, uma análise rara da realidade mundial
contemporânea, verificando o abismo entre os esquemas ideológicos abstratos e as
atitudes concretas dos governos e dos povos. Pôde, por isso, caminhar para aquela
outra nota característica (a superação das ideologias do século passado), ao
demonstrar as contradições internas do comunismo e do capitalismo14. Esta idéia já
estava latente, apenas aplicada num outro momento histórico, no seu livro sobre o
capitalismo mundial, de 1935.
Isto também se manifesta na diversificação da formação, que propõe, de
bacharéis nas Faculdades de Direito. Os juristas não existem só para o pretório, mas
para o Ministério Público, para as Procuradorias do Estado. Devem ser especialistas
em Economia, em Diplomacia, em Contabilidade Pública, em Administração Geral,
em Criminologia, em Direito Empresarial, em Direito Econômico. Por isso, efetiva,
como Secretário da Justiça, as especializações das Procuradorias do Estado e cria, em
1947, a primeira Assessoria Técnico-Legislativa do País, destinada a ser órgão de
ligação entre o Executivo e a Assembléia Legislativa15. Mais tarde a idéia foi adotada a
nível federal. Ele concretizava, portanto, viabilizando, em termos práticos, a Teoria
da Legislação, ciência antiga, ponto de intercessão entre a Política e o Direito, que ele
prefere chamar de Política do Direito. Para ele,
“ Os caminhos da lei só se tornam mais precisos quando se passa das
premissas teóricas para o enunciado das normas, na articulação lúcida e
congruente de suas prescrições. O jurista ou o filósofo do direito pode
planar alto na esfera dos princípios ou no traçado geral das diretrizes
teóricas; o político, ao contrário, inclusive o jurista quando investido da
incumbência de oferecer soluções de natureza normativa - é obrigado a
concretizar suas idéias ou seus programas de ação no ordenamento
articulado das regras. É nesse instante prático que, por assim dizer, a idéia
se faz carne, passa a converter-se em momento d cpraxis, configurando-se
como previsão de uma classe de comportamentos futuros já possíveis, ou
cuja possibilidade deva ser assegurada para atender aos objetivos da
Sociedade Civil e do Estado” 16.
Essa relação Direito-Política é importante, pois enquanto a Política ou Ciência
Política visa à realização dos fins da comunidade através da ação do Estado e de outros
centros do Poder, a Política do Direito indaga das formas e meios jurídicos mais
adequados daqueles fins17. Assim, seno plano filosófico, é vitoriosa a batalha em prol
da compreensão do Direito como dimensão da vida e da Cultura, cumpre, na Política,
ter uma visão menos formal, mais concreta e viva. Noutras palavras urge traduzir a
teoria em atos.
O Pensamento Político de Miguel Reale 9
Foi o que Reale faz ou tenta fazer, no processo de institucionalização democrática
brasileira, como demonstram seus inúmeros trabalhos sobre a reforma política,
alguns que chegaram a adquirir forma e vida no texto de nossa Constituição e de
nossas leis.
2. Outro aspecto, que me parece permanente e invariável no pensamento político
de Reale, consiste na abordagem global com que ele examina os assuntos políticos.
Ora, isto que qualifico como a importância da globalidade, já está bem presente
no seu livro Atualidades de um Mundo Antigo, de 1936. De uma certa forma, a teoria
tridimensional do Direito coloca o problema de que o fenômeno jurídico não pode
ser visto sob prismas isolados, porém de dimensões que se complementam. Tal idéia
repudia os monismos e os unilateralismos. O mundo não é uma projeção somente do
Econômico (Marx), ou das condições geográficas (Ratzel), os fatores que o explicam
não se localizam em setores isolados da compreensão política, social, ética, étnica,
sexual, racional, mesológica, jurídica, etc. O assunto repercute da concepção do
homem, que não pode ser reduzido à sua dimensão econômica, ou étnica, ou sexual
ou social. De igual forma, o homem não se confunde nem se resume apenas no
cidadão dos liberais ou no ser abstrato dos idealistas. O homem é um ser real e
histórico, sua dimensão existencial se projeta em muitas direções de sua experiência
social. Por isso, não é possível examinar o problema do homem e da sua criação
cultural, onde se situa o Direito e a Política, sem considerar a globalidade de sua
situação.
Seu livro Fundamentos do Direito encontra justamente a resistência do ambiente, à
época, onde predominavam visões unilaterais do Direito: ou o positivismo jurídico
ou o formalismo normativista; de igual maneira, no plano da Política, sua Teoria do
Direito e do Estado surge num momento em que permanecíamos, ainda, sob a
influência do positivismo republicano, do liberalismo individualista e do marxismo
leninista revolucionário.
Esta globalidade está sempre presente em Reale e deflui de seu exame da Paidéia
grega. “ No mundo grego a Política representa a expressão mais alta do homem,
enquanto se dedica ao plano da ação ou à vida prática” . O Direito e a Moral se
resolvem na Política, que, para Aristóteles, não é apenas a Ciência do Estado, mas a
maiòr de todas as Ciências: a arquitetônica das Ciências, aquela que contém em si
todas as outras, pois se refere ao bem de todos, não ao bem individual singularmente
considerado18. Esta idéia aristotélica da Política como a arquitetônica das Ciências
está presente em todos os momentos de pensamento - ação de Reale. Ele lembra
sempre que a vida política dos gregos tinha um centro fundamental que era a Pólis.
Logo, não se pode pensar a Política sem esta múltipla abrangência a que o homem
está envolvido. São os centros de influência ou de decisão social, em que a experiência
democrática se concretiza como uma poliarquia, ou seja, “ como um governo
subordinado às múltiplas fontes da vontade coletiva, numa relação dialógica e
10 Miguel Reale na UnB
dialética entre poderes, mais ou menos institucionalizados, como o econômico, o
militar, o universitário, o religioso, o sindical, o literário, o artístico, etc., os quais se
distribuem segundo círculos secantes que, em maior ou menor grau, tendem a
influir sobre os centros do poder político” 19.
Vejamos, a título de exemplo, como este método globalizante é aplicado em
diversos assuntos da temática política.
Este aspecto multifacetário do Político está bem presente na formação do Estado,
sobretudo, do Estado Moderno, que é resultado de um longo e complexo processo de
integração e de discriminação, no qual interfere uma série de fatores20. Da mesma
forma que se deve repudiar o monismo e o unilateralismo na concepção do Homem
e, portanto, do Direito, também as teorias simplistas, que reduzem os fatores na
criação do Estado a um só, não estão com a verdade.
Por isso, o Estado não é só jurídico21. Dentre os fatores importantes está o
ingrediente humano na criação do Estado, que não foi formado por heróis nem por
super-homens. Daí a ambigüidade da expressão classe política, que não se confunde
com a classe dirigente. Uma das caracterizações do mundo contemporâneo é o
fenômeno da institucionalização de múltiplos centros de poder, além do Estado
(poder empresarial, poder sindical, poder universitário, etc.). Em conseqüência, o
poder político não se confunde com o poder estatal.
Na verdade, o poder político envolve todas as formas institucionalizadas de
controle e direção da vida social22.
A solução realena não ê aristocrática ou elitista, mas pluralista. Não lhe seduz um
Estado confiado a técnicos, que só possuem conhecimentos setorizados. Decorre daí
a importância dos partidos políticos. Eis a solução democrática: atualizar nossos
processos político administrativos; afastar as influências de clientela e os interesses
imediatistas que invertem e subvertem a ordem dos valores e das competências;
prestigiar os líderes sociais; buscar nos partidos e na experiência política os líderes da
Política; criar condições para a existência do político profissional e para o Congresso
assumir a sua verdadeira posição.
Sobre a criação de municípios, ele salienta que o surgimento de uma nova pessoa
jurídica de Direito Público de base territorial na ordenação de um Estado, não
constitui problema puramente jurídico. É questão eminentemente política, no
sentido genérico, “ pois se a Política ou Ciência do Estado não abrange e integra em
síntese todos os elementos sociais e econômicos, históricos e éticos, jurídicos,
geográficos ou étnicos de qualquer esfera de realidade humana, não pode deixar de
levá-los em conta, como dados essenciais ao alcance de seu objetivo precípuo, que é o
bem comum da sociedade”23. O ato de criação envolve o reconhecimento das
condições de fato e, portanto, para se conferir a dignidade de município, deve o
O Pensamento Político de Miguel Reale 11
estadista decidir em face de um sistema de múltiplos elementos: “ O que prevalece é
sempre o critério de oportunidade ou conveniência político-social, que se afirma
perante cada hipótese em exame, em função das circunstâncias peculiares aos
diferentes casos concretos”24.
Em 1961, sobre outro assunto, sob certo aspecto, ele volta a este discurso em
“ Coexistência da Iniciativa.Privada com a Atividade Estatal nos serviços de Energia
Elétrica” : “ Uma das diretrizes que vem logrando cada vez mais a preferência dos
estudiosos da Ciência Política e do Direito Público é a que refoge de teses abstratas ou
unilaterais, para a solução dos problemas básicos da Administração Pública, visto
exigir esta uma compreensão sintética e unitária fundada na ponderação de múltiplos
fatores e conjunturas.
Teorias, como as que contrapõem, no puro plano dos princípios, “livre câmbio”
a “protecionismo”, “dirigismo econômico” a “livre empresa”, “ monopólio estatal”
a “ iniciativa privada”, etc., valem como indispensáveis esquemas de referência, mas
sujeitos sempre à contrasteação dos fatos, na concretitude de todas as circunstâncias
sociais, históricas, econômicas, financeiras, técnicas e políticas, àluz das quais devem
ser equacionados os problemas.
Dessarte* abstração feita das múltiplas, gigantescas e urgentes tarefas que
incumbem ao Estado brasileiro, no campo dos transportes, da saúde pública, do
ensino, das indústrias básicas, da exploração petrolífera, etc., e adstritos apenas ao
âmbito do abastecimento de força motriz, é inegável que a solução pluralista,
fundada na cooperação pacífica e fecunda entre o Estado e a iniciativa privada, abre-
se como via natural, a única deveras aconselhável aos interesses nacionais.
No setor que estamos analisando, em suma, as realizações fundamentais são no
Brasil de tal envergadura que não podem ser encaradas isoladamente, segundo
esquemas abstratos, ou preconceitos ideológicos, notadamente em razão da carência
de capitais e dos apetrechamentos técnicos indispensáveis”25.
Por força, pois, da dimensão de seu pensamento e sobretudo pela importância
que ele dá ao correlacionismo fenomênico, Reale não é somente um jurista,
justamente porque tem plena consciência da frase de Lutero, aplaudida por
Carnelutti: “o jurista que é somente jurista é uma pobre e triste coisa” .
Esses aspectos globalizantes, aplicados à praxis revolucionária, revelam consi­
derações críticas da maior importância, ainda hoje atuais sobre o movimento de
1964. Segundo ele, no primeiro momento revolucionário, o excesso de prudência
converteu-se “em temor de afrontar, com decisão e coragem, a questão fundamental
da reformado Estado, abrangendo a totalidade de seus aspectos, de maneira orgânica
e sistemática”26. Os encargos da tarefa revolucionária, no plano institucional, não
foram assumidos. O Governo concentrou toda a sua atenção no setor econômico-
12 Miguel Reale na UnB
financeiro, que era importante e merecedor de urgentes providências, “ mas não era
motivo bastante para esquecer-se o caráter inadiável da modernização dos órgãos do
Estado”27. Cabia ao Governo Revolucionário uma tarefa marcada pelo sentido da
compreensão global dos nossos problemas. Isto não aconteceu: “ primeiro, porque a
atenção governamental só deu ênfase kvertente econômico-financeira, como se o êxito ea
consolidação do sucesso nesse setor não dependessem também de firmes diretrizes
na vertente político-institucional; e, em segundo lugar, porque, o que tem às vezes
prevalecido são os ditames de uma razão abstrata, a qual, facilmente, se converte em
mito,, com perda de contacto com as contingências do meio ambiente”28.
Percebia ele, portanto, desde o início do processo, que o problema econômico
não se resolve apenas com categorias econômicas. Não se resolve a inflação ou a
distribuiçàade rendas ou até o problema da renda nacional e da produtividade, com
a aplicação isolada de medidas econômicas. E que a predominância deste aspecto é,
no fundo, uma concessão não ao marxismo, que a Revolução tanto pretendeu
combater, mas a um economicismo grosseiro, que pretende solucionar o problema
nacional não como uma idéia política global e diretora, mas com a falsa mitologia das
estatísticas econômicas irracionais.
Ele escreve:
“ Procurei, inutilmente, demonstrar que a planificação econômico-
financeira traçada pelo Governo federal, além de ser marcada por
excessivo espírito fiscalista e estatizante, arriscava-se a perder-se, ou a ter
os seus resultados indefinidamente adiados, pela falta de dois fatores
essenciais:
a) a excessiva confiança no “ mito dos números”, com
perigosa abstração das deficiências do meio ambiente
e da precariedade do aparelho administrativo, man­
tido inalterado e obsoleto, sofreando, amortecendo
ou desviando as ordens emanadas, de cima para
baixo, com um otimismo injustificável;
b) a falta de “sentido de comunicação e de participação”
com o povo, como se fosse possível travar a batalha da
inflação sem se dar o devido valor aos fatores psicoló­
gicos, ao “esforço nacional conjunto”, como num
plebiscito de todas as horas”29.
3. Outro ponto permanente no pensamento político de Reale reside na superação
das ideologias do século passado, por ele denominado de “o cansaço das ideolo­
gias”30. Já adiantamos, a respeito, alguma coisa: a concepção parcial do homem e do
universo no século 19, o das análises, em contraste com o século 20, que é o século da
grande síntese. A verificação da necessidade de ultrapassar, como um movimento de
O Pensamento Político de Miguel Reale 13

nossa libertação, as ideologias do século passado, possibilita, como salientamos, o


superamento de velhas antinomias; a localização das contradições entre as ideologias
e os fatos, reveladas no abismo entre os esquemas ideológicos abstratos e as atitudes
concretas dos governos e dos povos; trabalhar não mais sobre o Estado Moderno, mas
sobre o Estado Contemporâneo, que nasce depois da Segunda Guerra, correspon­
dente à era eletrônica: “o impacto plasmador da Ciência e da Tecnologia sobre as
relações sociais e o intervencionismo estatal sistemático no âmbito da vida privada”.
Ele demonstra o imperativo de rever, livre de preconceitos teóricos e de paixão,
as doutrinas políticas forjadas no século passado, quando bem outras eram as
condições tecnológicas, sendo imprevisível a surpreendente transmutação operada
nos processos de produção econômica e de organização do trabalho32.
São suas palavras:
“ ... há fases na história em que a crise fica circunscrita à uma troca do
regime ou das instituições, permanecendo imutável, em suas linhas
dominantes, a tábua de valores políticos vigentes - isto é, a concepção
fundamental do Estado e de seu Direito - enquanto que há época em que
a crise é antes do “ sistema”, sendo posto em xeque o quadro de valores, a
sua ordenação escalonada, e, com isto a atitude mesma do homem em
relação à prioridade dos fins a serem atingidos. Como se vê, o “ sistema”
vincula-se à ideologia, tomado este termo, não no sentido pejorativo que
lhe dá Marx, como o ideário com que a classe dominante procura
maliciosamente legitimar o poder que o predomínio econômico lhe
confere, mas sim na acepção lata de conjunto integrado de idéias e
convicções políticas, segundo as quais uma sociedade dirige suas atitudes,
comportamentos e instituições, como expressão da cosmovisão própria
de sua época.
Compreende-se, por conseguinte, que o problema da crise do Estado
envolve a crise das ideologias vigentes em nosso tempo havendo mesmo
quem afirme que uma das condições de superamento da crise política será
o abandono de qualquer apriorismo ideológico que impeça a análise
objetiva dos fatos, distorcendo a realidade e gerando preconceitos e
intolerâncias incompatíveis com a serenidade reclamada por qualquer
pesquisa científica.
Se há uma crise no sistema, afirmam com razão os partidários da
Democracia Social, é absurdo o apego a modelos do século passado. O
processo de substituição dos modelos pregados por Lincoln ou Marx, por
outros mais adequados às relações sociais hodiernas - que daqui a
algumas dezenas de anos poderão dar a impressão de. um processo
intencional - está se desenvolvendo através de avanços e de recuos, de
14 Miguel Reale na UnB
tentativas, apreensões e conflitos. A crise vem daí, dessa tensão axiológica,
desse contraste entre valores e realidade, do qual resultará a nova ordem das
estimativas”33.
E noutro trabalho:
penso que o sentido mesmo de contemporaneidade deve ser
revisto, no que se refere à temática política. A rigor, por política
contemporânea, dadas as vertiginosas mutações operadas na cultura de
nossos dias, deve ser entendida tão-somente a correspondente ao segundo
após-guerra, quando fatores novos, e até certo ponto imprevistos, vieram
alterar, substancialmente, não só as ideologias políticas dominantes,
como a atitude dos especialistas, e até mesmo dos políticos em geral,
perante as formas tradicionais de organização da sociedade e do Estado”34.
Uma das características do nosso tempo é a celeridade do processo histórico, no
entanto só na segunda metade do presente século estamos nos libertando das
ideologias do século passado.
Ainda somos, em grande parte, tributários de pensadores oitocentistas, como
Stuart Mill e Spencer, Proudhon ou Marx. Reale é um permanente lidador contra os
preconceitos e as superstições, geralmente produzidos pelas ideologias do passado.
Há necessidade aqui de voltar ao problema da concretitiide. O Século 19 é um século
de análises e visualizações parciais. Uma das idéias do século passado está na
visualização parcial do homem, como um ser abstrato, o homem cívico da cidadania,
ou o trabalhador. A verdade, porém, está em que o homem é um ser existencial e
histórico. Daí, também, a idéia do homem situado em múltiplos círculos de poder e
de liberdade, o homem real, que deve ser a preocupação do sistema de representação.
Parecem evidentes as contradições entre as ideologias e os fatos.
No Comunismo: a repressão à Hungria e à Checoslováquia, as atrocidades
cometidas por Stalin, a produção socialista reajustada em moldes capitalistas, o
revisionismo chinês, o problema do Estado evanescente, contraditado pelo seu
extraordinário fortalecimento, a contradição do comunismo nacionalista, etc.
No Capitalismo: os conflitos, a violência, ò episódio sombrio do Vietnã, a crise
econômica, a inflação, a estatização das formas de produção, as revoltas estudantis, as
greves, os desempregos. Há, porém, exemplos positivos dessas contradições: a
existência do socialismo democrático à margem da ideologia marxista, a igualdade
social mais próxima através da produção em massa do capitalismo americano, a volta
do (comunismo soviético do planejamento total da economia) aos modelos capitalis­
tas (NEP em 1920 e, agora, suas empresas modernas). Enquanto o planejamento total
do comunismo constitui uma contradição com a idéia do fim anárquico (governo dos
O Pensamento Político de Miguel Reale 15
homens e das coisas por si só), o regime capitalista chega mais próximo à socialização,
não pela estatização dos bens da produção, mas pela socialização dos frutos da
produção, a socialização do progresso.
Na verdade, há um processo de identificação mundial: no desenvolvimento
econômico, que se processa com as mesmas implicações, em todos os Países
desenvolvidos. Tal identificação ocorre através do impacto tecnológico, transfor­
mando a comunidade humana, dando-lhe uma conformação completamente
inesperada, em muito pouco tempo. Em menos de meio século operou-se uma
transformação violenta, que provocou a desapropriação do ser do homem. Este
processo revela-se no cotidiano, pela intromissão de elementos de comunicação em
sua própria casa. A televisão e o rádio transmitem a todo instante mensagens que
formam, conformam e deformam o ser humano, influindo sobre nossas atividades, e
até sobre nossos sonhos. Seria essa a alienação dos tempos novos. Diante da qual será
preciso buscar novas maneiras de libertação. O lar, o meu castelo contra o qual a
ninguém é permitido investir, nem mesmo o Rei, é, agora, presa fácil dos meios de
comunicação. A expressão de McLuhan, “ sociedade tribal”, revela a perda da
consciência de nossa individualidade própria e a massificação aparentemente
irresistível. A autonomia individual não se perde, apenas, pelo socialismo totalitário.
A tecnologia pode acarretar resultado idêntico, alterando substancialmente tudo, até
mesmo as ideologias. Grupos ideológicos, que pareciam irremediavelmente confli­
tantes, estão aos poucos se aproximando para atender às necessidades tecnológicas.
Já mencionamos a contradição de regimes comunistas adotarem modelos capitalis­
tas, até para a produção de automóveis à altura do conforto moderno. O trágico,
todavia, não está na superação ideológica pelo progresso da técnica, mas no fato de os
processos técnicos não estabelecerem uma unidade na cosmovisão, apta a propor­
cionar a base para o entendimento entre os povos. Os homens e as nações continuam
dispersos35.
Vejamos as próprias palavras de Reale:
“ Na realidade, é o impacto tecnológico a grande mola propulsora das
soluções políticas atuais, alterando o significado dos modelos tradicionais
e influindo poderosamente na determinação da sede do poder. Na
sociedade contemporânea, com efeito, os grandes mentores da vida
econômica deixam de ser os proprietários dos meios de produção - como
pareceu a Karl Marx, no início da era industrial, quando a economia de
utensílios era substituída pela economia de máquinas motrizes - mas sim
pelos gestores ou administradores, capazes de tirar proveito de recursos
socializados, coletados na comunidade através, por exemplo, de partici­
pação acionária.
Quanto mais se avança no ciclo da economia da automação e dos
computadores, mais se especializam as sedes do comando econômico, e
16 Miguel Reale na UnB

mais se faz notar, paralelamente, a co-participação gerencial ou fiscali-


zadora do Estado, o qual não pode deixar, por sua vez, de aparelhar-se,
em termos de preparo técnico, para realizar as ingentes atribuições que
dia a dia entram no círculo de sua interferência.
Não se trata, entendamo-nos, de aceitar a tecnocracia como uma
solução política, mas sim de reconhecer que a vida democrática, mesmo
mantendo, como deve manter, os partidos políticos como instrumentos
essenciais à representação global do povo, assume novas formas resul­
tantes de exigências tecnológicas.
Já foi observado com razão por Sérgio Cotta, professor da Universi­
dade de Roma, que a humanidade volta a sentir a energia tecnológica
como um dos fatores primordiais da história. De certo modo, após ter-se
falado inicialmente em era da pedra, do bronze e do ferro, e ter-se pre­
ferido, depois, distinguir as épocas históricas em sentido humanista
(idade clássica, humanismo, renascimento do instrumento) e a materiali­
dade do aparelho: idade do computador, idade da energia atômica e assim
por diante, a abrir perspectivas de novos ciclos humanísticos.
Quando, por conseguinte, Marshall McLuhan nos diz, anunciando
uma civilização cibernética, que não são os meios de produção que
determinam as formas de vida (como pretendia Marx), mas sim os meios
de comunicação, ele está apenas substituindo uma visão parcial por outra,
visto como quem diz tecnologia diz convergência e complementariedade
de meios e processos, pluralidade de fatores operantes numa totalidade
orgânica e congruente.
Ora, essa natureza ao mesmo tempo plural e global dos processos
tecnológicos imanentes à era eletrônica, numa interação propulsiva e
complementar, repercute imediata e necessariamente nas estruturas
políticas democráticas do tipo norte-americano, onde a vida social não
obedece a uma dialética de conflitos, mas a uma dialética de complemen­
tariedade, correlacionando, funcional e operacionalmente, poderes
públicos e privados”36.
Reale tomou logo consciência dessa ideologia chamada por Merleau-Ponty de
Ideologia Cibernética, que revolucionaria o mundo e evidenciaria a alteração da vida e
das relações de produção pela tecnologia moderna, que dera seus primeiros passos
no início do século e que, depois da 2.a Guerra, se tornaria irreversível. A conclusões,
de agora, feitas pelos livros de divulgação de Jean-Jacques Schreiber, O Desafio
Americano (os computadores e as grandes multinacionais) e O Desafio Mundial (a crise do
petróleo e a revolução da eletrônica), já haviam sido alcançadas por Reale. Ele
compreendeu, logo, a nova era, posteriormente, identificada por Marshall McLuhan,
O Pensamento Político de Miguel Reale 17

que altera os dados do conhecimento e transforma em obsoletos os currículos


universitários tanto quanto a divisão do trivium e quatrivium das Universidades
medievais. Diante disso, há duas atitudes: a) uma, o pânico e a recusa do totalitarismo
tecnológico, no plano doutrinário (Marcuse) e o ingênuo retorno ao “natural
primitivo” dos hippies, no plano existencial; b) outra, o endeusamento dos processos
cibernéticos, com desmedida confiança na automação, tanto para o domínio das
coisas como para o autogoverno dos homens. Isto tudo provoca um novo huma­
nismo, diante do qual é preciso nos precaver, mais uma vez do unilateralismo: o
mundo não existe para acabar num livro, como o dito de Mallarmé, nem para a
memória do computador. Esses seriam dois iluminismos, o estético e o tecnológico,
fruto da compreensão abstrata da história. Na concretitude da história, todavia, a
tecnologia só tem sentido se impregnada de direção pelo homem e, portanto, vencida
diante do m undo da cultura que lhe dará um significado de “valores interdepen­
dentes e complementares, refletindo toda a gama das vocações do espírito em sua
livre faina civilizadora”37.
4. A situação mundial contemporânea produz efeitos na formulação, digamos
apesar da ambigüidade do termo, modelo democrático brasileiro, que não obstante
deve ser puro, i.e., com peculiaridades próprias, integrado na síntese dos valores
universais e de nossa própria experiência histórica.
É preciso, portanto, salientar essa atenção diversificada de Reale: de um lado a
análise da Política Mundial e de outro a preocupação com o Brasil e os problemas
brasileiros, em face dos quais ele procura pensar de forma independente e autônoma:
“ Cada povo, muito embora operando na linha comum a todo
desenvolvimento econômico-social, próprio da era tecnológica, não pode
deixar de obedecer àquilo que substancialmente lhe é peculiar, não só ém
virtude de suas condições objetivas, de ordem mesológica e social, mas
também em função de suas contingências históricas.
O que nos interessa ê o modelo plasmado num esforço de auto-
revelação de nossa inconfundível imagem cultural e histórica. Em cotejo
com o que se passa no Mundo, o modelo político que nos cabe constituir
só pode se situar na esfera da democracia social, do Estado de Direito, em
suma, entendido como Estado da justiça social, com todas as implicações
de modernização dos quadros legislativos, partidários e administrativos
requeridos pela era da ciência e da tecnologia.
Isto cabe à classe dirigente e à classe política, “pois vivemos num
mundo marcado cada vez mais pela pluralidade dos focos de poder,
numa verdadeira poliarquia, com múltiplos centros de força, científicos,
políticos, econômicos, religiosos, militares, artísticos, etc., sem cujo
atendimento a imagem da Nação resultaria deformada”38.
18 Miguel Reale na UnB

Nesse mundo plural situa-se um País plural, tantas e diferentes as áreas de nossa
cultura.
Para essa Nação gritantemente plural seria loucura a tentativa de transplantar
modelos políticos de países sedimentados, assim como também o seria o desconhe­
cimento da experiência alheia, das vias já percorridas por outros povos, cujo roteiro
só nos pode auxiliar na tomada de consciência de nossos próprios caminhos, mesmo
porque o reconhecimento das constantes nacionais só é legítimo e válido como elo e
momento no processo das idéias e dos valores humanos universais.
Reale entende que, desde 1930, nosso modelo (termo ambíguo) é a Democracia
Social. O assunto deve ser visto de dois ângulos: um político-institucional e outro de
natureza econômico-financeira. Não pode haver conflito entre esses dois prismas. É
difícil conciliar uma economia puramente liberal com um Estado intervencionista; e,
vice-versa, um Estado de estrutura liberal com uma economia com algum ingrediente
de planificação. Para fazer face a esta necessidade moderna, surgem vários caminhos.
O da Democracia Social é uma solução pluralista, porque não se reduz à estatização
dos meios de produção, aind^ que através das chamadas entidades da Administração
Indireta.
A Democracia Social não considera a intervenção estatal um mal necessário (idéia
liberal), nem que a intervenção resolva o problema da socialização ou da distribuição
de riquezas. Ela procura conciliar os três fatores: a iniciativa privada, a fiscalização e a
programação do Estado (fato normal inerente à estrutura tecnológica), a participação
direta do próprio Estado.
E a dosagem desses fatores? Dependerá das circunstâncias e conjunturas de cada
Nação. A análise de nossa Constituição revela a adoção de uma economia
marcadamente social e não liberal. Ela não perde a fisionomia de economia de
mercado, mas escolhe formas para combinar a exigência de desenvolvimento com o
imperativo de participação social nos resultados da produção. Adota a Constituição o
princípio da iniciativa privada, mas também da função social da propriedade39.
Essa situação, a de uma economia social, não se concilia com um Estado de
Direito do tipo liberal.
Neoliberalismo ou neocapitalismo são eufemismos para mascarar a realidade
inevitável da Democracia Social.
Democracia Social não é antiliberal, no tocante a determinados valores presentes
no legado histórico do liberalismo, como os direitos inerentes à pessoa humana, onde
não pode o Estado legitimamente interferir. Não basta porém, a mera declaração
formal desses direitos. Os adeptos da Democracia Social vão além. As novas bases do
problema da liberdade indicam seu entendimento como forma concreta de parti/ipaçâo,
O Pensamento Político de Miguel Reale 19
tanto no plano político como no plano econômico e social. Mais uma vez, se impõe a
menção à alteração radical na compreensão do homem: ele não é um ser abstrato,
mas um ente concreto, situado num conjunto de circunstâncias. Na idéia de Ortega e
Gasset, o homem é ele e a sua circunstância. A ação política deve levar em conta tanto
o indivíduo como a sua condição social no contexto das interações coletivas. Ao lado
da Declaração dos Direitos Políticos surgiu a Declaração dos Direitos Econômicos -
Vitais. E não apenas dos indivíduos no seio de uma Nação, mas também dos povos no
âmbito da comunidade internacional. Por isso deve haver também um equilíbrio
mundial e a superação das desigualdades econômicas no plano do concerto das
Nações. A conceituação da liberdade, como participação, supera a colocação
puramente formal do poder de agir reconhecido a cada indivíduo e a cada grupo.
Acarreta uma correlação mais nítida entre a liberdade e responsabilidade. Não se trata de
colocar o problema em termos formais: quem exerce um poder deve responder pelas
conseqüências de sua ação autônoma ou a liberdade de um termina onde a liberdade
do outro começa. Isto é individualismo liberal. O que se exige é que o uso da
liberdade seja um bem para o seu titular, sem dano para coletividade, de tal modo
que o direito de participar livremente dos benefícios da vida social é corolário do
dever de preservar e desenvolver as condições gerais dessa participação.
O trabalhador, na empresa, não é um simples indivíduo, mas envolve sua
integração e sua participação no lucro e na gestão. Nesses termos, não pode ele pensar
ou agir em termos, unicamente de sua classe, ou de sua individualidade, mas de
ambas no esforço comunitário.
O princípio da liberdade como participação é um dos esteios da Democracia
Social. E as classes deixam de ser adversas para serem simplesmente diversas e
comporem o todo nacional. A Democracia Social e a Democracia Liberal são
diferentes, mas ambas buscam o Estado de Direito. Elas dão, apenas, uma conotação
diversa ao conceito “ Estado de Direito” .
Para a Democracia Social, o Estado de Direito só o é efetivamente quando se torna
“ Estado da Justiça Social”.
Como diferem as duas democracias? Uma das teses: conceito de participação dos
indivíduos nos órgãos institucionais do Estado e no processo de distribuição dos
benefícios propiciados pelo progresso tecnológico.
O

No Estado da Democracia Social confere-se uma importância muito grande ao


trabalho e, portanto, ao trabalhador, cuja circunstância não se restringe a seu
ambiente de trabalho ou na sua associação de Classe, mas se estende à sua projeção
civil e social, a seu lazer e à sua participação cultural. Nasce daí a idéia de que, ainda,
falaremos, do conceito de trabalhador, que envolve todas formas igualmente nobres
do trabalho humano, o do capital, o do braço e o da inteligência.
20 Miguel Reale na UnB
O que se preconiza, portanto, não é o regime do trabalhador, no sentido
marxista, mas um regime de ampla e diversificada participação de todos nos
benefícios do progresso material, cultural e social.
A visão setorizada do marxismo envolvia uma dependência à infra-estrutura
econômica. Isto não parece corresponder à realidade. A relação do dado econômico
com os outros dados da experiência social e histórica parece evidenciar uma
interdependência.
Economia-religião, política ou direito exercem-se influências de reciprocidade
explicada pela dialética de complementariedade. Assim, ocorre na relação econô­
mica e na relação jurídico-política. A relação econômica influencia e é influenciada
pelo Direito, que a disciplina anteriormente.
Os fins da Democracia Social implicam na necessidade de uma alteração da
estrutura do Estado.
Em suma: a Democracia Social é a expressão política da Economia Social.
A Democracia Social se caracteriza por integrar em si e superar os valores
políticos do liberalismo clássico e, ao mesmo tempo, a sua orientação pragmática e
realista almeja a solução do problema essencial da participação dos indivíduos nos
benefícios da riqueza social, sem se deixar enredar pelos preconceitos e mitos
inerentes ao marxismo.
Houve um certo esforço, por parte dos neomarxistas, para superar as contra­
dições que a História trouxe à lume no próprio marxismo e na sua experiência. Mas a
socialização, confundida com a tragédia da estatização gerou a Ditadura do
proletariado ou, como íjuerem, mais modernamente, o Estado do Povo Inteiro,
reduzindo a nada o sonho do desaparecimento paulatino do Leviatã indesejado.
Embora Marx houvesse escrito muito pouco sobre o Estado, Lenine imaginou-o
transitório, o Estado évanescente de que já falamos, o qual desapareceria paulatina­
mente como se esfarela nas mãos uma côdea de pão. Pode-se imaginar o que significa,
aos olhos do marxismo, o Estado cada vez mais forte e onipotente.
A doutrina econômica que inspira a Democracia Social distingue-se da marxista
exatamente por seu caráter pluralista, pela aderência às realidades concretas, pela
manutenção das liberdades públicas, entre as quais os direitos públicos oponíveis
contra o Estado, que não se concilia com a concepção do Estadtf-objeto, suscetível de
apropriação por uma classe, por um partido ou pelo próprio povo. A Democracia
Social pretende não a burocratização das riquezas, mas a socialização do progresso.
\

5. Finalmente, a crítica e o legado da História.


a crise em que nos encontramos, a qual resulta, em grande parte, exatamente,
de uma falha e abstrata compreensão de ordem, que, como ordem social e política, só
O Pensamento Político de Miguel Reale 21

pode ser o resultado de uma composição dinâmica de valores, que devem ser
conservados, em função dos novos valores que a sociedade progressivamente
reclama.”
“... somente através da perspectiva histórica que emergem e se consolidam os
valores da cultura”40.
Quando Reale pensa em reforma, já mencionamos, pretende preservar não
apenas o legado do liberalismo, mas a herança da História das idéias políticas e da
experiência de sua aplicação.
O problema político é um problema basicamente espiritual.
A Política se situa no Mundo da Cultura e, por isso mesmo, no Mundo da
Liberdade.
O fenômeno cultural implica sempre numa atitude positiva ou negativa em face
“ dos dados da natureza”, assim como em uma reelaboração ou reafirmação de
atitudes passadas, ante o que se poderia, cum grano salis, denominar os “dados da
história” .
A política se situa no Mundo da Cultura, portanto, das posições do espírito e de
suas projeções, em face da natureza e da vida. Homem culto é aquele que tem o seu
espírito aberto às vibrações múltiplas dos valores. E dos valores de seu tempo41.
A própria Política do Direito, a teoria da Legislação, se refere aos valores42.
A passagem de uma Democracia Liberal para uma Democracia Social, que
envolve, como foi realçado, a alteração da estrutura do Estado, reflete a mutação do
Estado de Direito, de feição puramente formal, para o Estado de Cultura, logo de
realização múltipla de valores, que não deixa de interferir nos planos da vida social,
não só para realizar formalmente o Direito, mas também para promover e dinamizar
as fontes múltiplas da produção material e espiritual43.
Escrevendo sobre Revolução e Normalidade Constitucional, em 1966, diz Reale que
alguma coisa se fez de inegável valia no campo jurídico-constitucional: a elaboração
legislativa, novos dispositivos sobre a vida partidária, etc. Realça, porém, a ausência
de algo que cimente e ligue entre si as reformas parciais, dando-lhes sentido orgânico,
na unidade de um sistema destinado a durar. Como se deverá atingir a normalidade
constitucional na concretitude das circunstâncias presentes, como largueza de
compreensão, quanto às perspectivas do futuro de uma Nação, que desde 1922, tem
vivido em intermitente processo revolucionário, na busca incessante de sua própria
imagem, a qual somente será encontrada pela auto-afirmação de nossos valores
próprios, enriquecendo o cenário dos valores universais e neste nos inserindo com
consciência plena de nossa autonomia cultural44.
22 Miguel Reale na UnB
Já na superação das ideologias este problema se colocava. Não se pode postular
uma política atual desvinculada do século passado, mas é preciso saber o que há de
vivo e o que há de morto tanto no liberalismo como no socialismo45.
Todos lutamos por uma ordem social justa: a) uns se batem pela conservação ou
ressurreição de princípios do passado que julgam válidos; b) outros querem uma
sociedade autóctone ou aborígene desapegada do fluxo das idéias universais; c)
outros querem o transplante de modelos administrativos consagrados noutros
países; d) “e outros há, finalmente, que procuram compor, em unidade concreta,
velhas e novas estruturas sociais, alimentadas por nossa própria experiência histórica,
em participação com a cultura do Ocidente, desde que necessárias à realização plena
dos valores humanos, pelo atendimento complementar do que cabe a cada qual e
cabe ao todo coletivo”46.
Nesta linha é que se põe a idéia basilar da igualdade dos trabalhadores do braço,
do capital e da inteligência, de cuja harmonia depende a plenitude de uma civilização
que aspire à progressiva supressão de situações que não se fundem na auto-afirmação
da personalidade. A lei básica da convivência democrática: o reconhecimento de que
todas as formas de trabalho ostentam igual título para participar de forma efetiva, dos
benefícios da cultura material e espiritual, na medida do bem comum, segundo a
hierarquia de valores e de urgências que caracteriza cada ciclo de cultura47.
A síntese dessa crítica da História e a preservação de seu legado está na admirável
conferência “os valores fundantes da Democracia” , no Recife, em 11 de agosto de
1963 e no dia 29 no auditório do “ Fórum Roberto Simonsen” em São Paulo. São as
constantes axiológicas da História resumidas em forma admirável e propostas em
síntese necessária. O logos grego e a voluntas romana, a Filosofia e o Direito ordenaram
as idéias de fraternidade, trazida pelo Cristianismo, de liberdade, pelo liberalismo e de
igualdade, pelo socialismo. Deram-lhes um conteúdo vital,
“ Infundindo-lhes a universalidade que transcende as peculiari­
dades de cada ciclo histórico onde cada “constante axiológica” haja
encontrado o clima espiritual propício à sua eclosão ou à sua maturidade.
Nada tem sido tão adverso ao ideal democrático como o apego a
soluções tidas na conta de definitivas, o amor cego por fórmulas
cristalizadas no tempo, quando a democracia só pode ser concebida como
um processus histórico aberto para o futuro, correndo-se, dia a dia, o risco e
o benefício das atitudes inovadoras.
Em contraposição às sociedades compactas ou totalitárias, funda­
mentalmente anti-históricas, por visarem a atingir um estágio final de
bem-aventurança social - como seria o do comunismo - a democracia se
confunde com o processo mesmo de atualização dos valores de convi-
O Pensamento Político de Miguel Reale 23
vencia, através do enriquecimento progressivo do homem e do mundo
cultural, expressão das forças reveladoras e constitutivas do espírito.
Mister é, pois, não percamos esse sentido essencial de historicidade,
nem o rumo assinalado pelas “constantes axiológicas” que marcam os
momentos culminantes do trabalho criador da espécie.
É dentro do quadro geral de tais perspectivas que nos cabe integrar,
quanto antes, com sabedoria, em unidade harmônica e dinâmica —tal é a
intransferível e delicada missão do Ocidente - os valores fundantes que
acabamos de evocar, sem que qualquer deles aniquile o outro, sem que a
perda da liberdade seja o preço vil do bem-estar adquirido, nem a ordem
jurídica o instrumento dócil de uma “ sociedade fechada”, de um Estado
totalitário, em cujas engrenagens fique pulverizado o valor da pessoa e do
espírito como liberdade.
Não seremos nós brasileiros, orientados, nas mais duras crises por um
fino sentido de compreensão, do valor das partes e do valor do todo, do
futuro e da tradição, que haveremos de desertar dessa tarefa ingente de
compor equilíbrios e de superar eticamente os conflitos de interesses,
concordando em optar, melancólica e passivamente, por uma solução
setorizada e estrábica que reduza a liberdade à “ posse do pão e da carne”,
ou a igualdade ao marasmo dissolvente dos estímulos e das aptidões
pessoais que tornam a existência válida em si mesma.
Estou convencido, ao contrário, de que, pela singular situação
histórica e geográfica do Brasil no continente americano - livres que
somos da febre do “ espaço vital” , assim como da herança amarga dos
conflitos de raças e de classes, haveremos de colaborar, de maneira
decisiva, no processo de atualização do ideal democrático, sem neutra-
lismos calculistas e sem abdicações servis, sabendo projetar toda a
originalidade de nosso ser nacional na dinâmica das idéias universais fiéis
sempre à liberdade de pensamento, ao culto do direito, aos valores do
espírito, à independência civil e política do indivíduo e à igualdade
concreta reclamada pela sociedade contemporânea”48.
No prefácio da Formação da Política Burguesa (1934), Reale escrevia “ mais do que
soluções, procuramos sugerir problemas” .
Quando colocou, nos Fundamentos do Direito, a questão do problema da validade
da norma jurídica, deu os passos para a tridimensionalidade jurídica.
Colocava-se na linha de Gertrude Stein no episódio de sua morte: Que resposta,
se não sei a pergunta.
24 Miguel Reale na UnB
E na frase de Malraux: prefiro as perguntas às respostas, porque aquelas nunca
causaram mal à humanidade.
Reale, portanto, sempre pensou diante dos problemas e por isso pôde superar as
falsas aporias, os obstáculos intransponíveis, e chegar, assim, pensando sobre os
problemas aos tópicos do Direito e da Política.
Por ser assim, sempre exerceu a tolerância, como virtude filosófica. Lembro-me
de sua primeira aula para a minha turma na Faculdade de Direito, quando
apresentou seus dois assistentes, ilustres professores, mas que nenhum deles se filiava
à escola filosófica dele, catedrático.
Sua presença nos momentos da construção da Democracia Nacional e sua
participação na Revolução Brasileira, da qual vivemos apenas um momento, é
explicada na realização da idéia de Alberto Torres: “Toda Revolução começa com
uma mudança de atitude diante dos problemas”. Reale sempre pensou em
consonância com o espírito dos tempos e viveu as angústias das épocas.
De Lenine se disse que suas idéias tinham o cheiro da terra russa.
De Reale também se pode dizer que seu pensamento está enraizado no Brasil,
sem perder a universalidade.
NOTAS BIBLIOGRÁFICAS
1. “ O concurso de Filosofia do Direito” , SP, 1940, p. 7.
2. O tema o preocupa há muito, cf. “ O Sistema de representação proporcional e o regime presidencial
brasileiro” , in Revista Brasileira de Estudos Políticos n.° 7, novem bro de 1959; e “ Notas sobre as Reformas
Político-Eleitorais” , in Digesto Econômico n.° 169, janeiro/fevereiro de 1963.
3. cf. “ Problemas Institucionais do Estado C ontem porâneo” , in “ Arquivos do Ministério d aju stiça” , ano
XXIX, n.° 124, dezem bro, 1972.
4. cf. Democracia e Revolução, 1969 e Da Revolução à Democracia, 1977, edições Convívio.
5. cf. “ Notas sobre Reformas...” supracitadas.
6. cf. “ H om em e Cosmos no Limiar da Era Interplanetária” , in Pluralismo e Liberdade, Saraiva, SP, 1963.
7. Note-se a rim a com o já m encionado “ Atualidades Brasileiras” , de 1937.
8. in Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, n.° 10, junho de 1977.
9. in Revista Brasileira de Filosofia nP 10 1.
10. cf. Da Revolução à Democracia, na parte em que escreve sobre a Universidade Democrática.
11. cf. “ Realismo e Perseverança” , in Revista Arquivos do Ministério d aju stiça n.° 157.
O Pensamento Político de Miguel Reale 25
12. cf. Filosofia do Direito, 4? ed., Saraiva, SP, 1965, p. 418.
13. cf. Teoria do Direito e do Estado, Livraria Martins, SP, 1940.
14. cf. “ O cansaço das ideologias” , in Problemas de nosso tempo, ed. Grijalbo, SP, 1970.
15. cf. conferência cit., na nota nP 8 supra.
16. “ Realismo e Perseverança” supra cit.
17. cf. Lições Preliminares de Direito, Saraiva, 6a ed. SP, 1979, cap. XXIV.
18. cf. Filosofia do Direito, cap. XXXIV.
19. cf. Da Revolução à Democracia, p. 88.
20. cf. Teoria do Direito e do Estado, p. 29.
21. idem, ibidem, p. 29 e 105.
22. Da Democracia à Revolução, p. 84 e segts.
23. cf. “ O problem a jurídico da criação dos m unicípios” , a propósito da projetada criação do m unicípio de
Adam antina; mais tarde a m atéria foi integrada num plano mais teórico, no volume, “ Nos quadrantes do
Direito Positivo”, ed. Michalany, SP, 1960.
24. Ibidem.

25. cf. Coexistência da iniciativa privada com a atividade estatal nos serviços de Energia Elétrica, Saraiva, SP, 1961.
26. cf. Da Revolução à Democracia, p. 19.
27. ibidem.
28. ibidem, p. 21.
29. ibidem, p. 22.
30. cf. Pluralismo e Liberdade, p. 146 e segts.
31. cf. Problemas Institucionais do Estado Contemporâneo.
32. cf. Problemas do Nosso Tempo, p. 79.
33. cf. Problemas Institucionais do Estado Contemporâneo.
34. cf. “ Estruturas Jurídico-Políticas C ontem porâneas” in Revista de Direito Público, ano IV, V, 13,
julho/set. 1970.
35. cf. A Sociedade Contemporânea, Seus Conflitos...
36. cf. Estruturas Jurídico-Políticas Contemporâneas.
37. cf. Problemas de Nosso Tempo, p. 95 e segts.
26 Miguel Reale na UnB
38. cf. Estruturas Jurídico-Políticas Contemporâneas.
39. cf. “ O M odelo Político da Democracia Social” in Da Revolução à Democracia.
40. cf. Da Democracia à Revolução, p. 16.
41. cf. Filosofia do Direito, p. 507.
42. ibidem, 196.
43. cf. Da Democracia à Revolução, p. 32.
44. ibidem, p. 43.
45. cf. Estruturas Jurídico-Políticas Contemporâneas.
46. cf. Pluralismo e Liberdade, p. 136,
47. ibidem.
48. final do Pluralismo e Liberdade.
1.2. COMENTÁRIOS DE MIGUEL REALE

Magnífico Reitor José Carlos Azevedo, prezados companheiros de Mesa, meus caros
amigos, sejam as minhas primeiras palavras de elogio à Universidade de Brasília
por esta série de conferências focalizando problemas básicos da cultura contem­
porânea e dedicando especial atenção à problemática brasileira.
Devo informar ao ilustre Reitor que, na última sessão do Conselho Federal de
Cultura, o Conselheiro-Ministro Geraldo Bezerra de Menezes, focalizando essa
iniciativa da Universidade de Brasília, enfatizou sua importância. E, entre as palmas
do Plenário, propôs fosse oficiado a Vossa Magnificência no sentido da inteira
solidariedade daquele órgão, que representa a cultura brasileira, por tudo que tem
sido feito durante a sua gestão, numa compreensão profunda dos valores nacionais é
universais.
Eu sou aqui portador dessa mensagem que deverá chegar dentro em pouco,
oficialmente, às mãos de Vossa Magnificência.
Todos perceberam com que carinho e com que acuidade o Professor Ronaldo
Poletti reconstituiu os pontos básicos e essenciais de meu pensamento político.
Reconheço que não era e não ê tarefa simples. Não pelo valor e complexidade do que
foi exposto, nem pela amplitude de minha experiência política, mas pelo fato de que,
dadas as vicissitudes de minha vida, muitas teses acham-se dispersas em livros,
conferências e artigos. Nada teria a acrescentar ao que ele, com tanta precisão e
clareza, tornou conhecido de minhas obras.
Eu vou obedecer ao programa sempre seguido nestes encontros, que é dar minha
impressão sintética sobre o que foi exposto, a fim de, depois, permitir que haja um
diálogo mais livre, mediante o qual se torne possível verificar como a exposição de
minhas idéias, fielmente feita pelo Professor Ronaldo Poletti, repercutiu no espírito
dos presentes. O que interessa, em matéria científica, e aqui estamos para tratar da
política com espírito científico, - é exatamente esse problema nuclear da partici­
pação: verificar como a idéia é recebida, visto como, no ato de recebê-la, há algo que
transcende a passividade, e marca uma atitude ativa e criadora do espírito.
Em relação à exposição feita pelo Professor Poletti, devo assinalar um ponto que
me parece importante na cultura nacional. Alguém há de perguntar: por que essa
preocupação permanente, constante, desde a adolescência, pela problemática
28 Miguel Reale na UnB
política, por parte de quem tinha a vocação - e tem a vocação - fundamentalmente
filosófica e jurídica?
Nos países altamente desenvolvidos opera-se como que uma divisão do trabalho,
de tal maneira que, a partir mesmo dos bancos acadêmicos, um jovem se destina à
Ciência Política, um outro à Filosofia, um terceiro ao campo jurídico, um quarto a
esta ou àquela outra atividade cultural, e assim por diante. Em países como o nosso,
no entanto, verifica-se uma atração para múltiplos centros de interesses, o que é
expressão e exigência da sociedade e do meio em que vivemos. Um velho professor
da Escola Politécnica de São Paulo dizia que nos países altamente desenvolvidos há
um homem por metro quadrado, em termos de elite, enquanto no Brasil existe um
homem por metro de testada. Daí, esta solicitação contínua do intelectual brasileiro a
fázer muitas coisas, a dar atenção a uma multiplicidade de tarefas. Isto representa, de
um lado, um mal; de outro lado, oferece aspectos positivos.
Sejamos sinceros: se eu me tivesse concentrado de maneira plena e permanente
na temática política, teria talvez tido a oportunidade de desenvolver, de maneira
sistemática, questões que Ficaram apenas esboçadas. Mas, de outro lado, a preocupa­
ção pelos problemas filosóficos, jurídicos, econômicos, poéticos, etc., deram-me a
vantagem de uma visão mais compreensiva, tendo o homem como personagem
principal. Sob esse ângulo, o intelectual brasileiro possui uma abertura que talvez seja
condicionadora de uma nova atitude humanística, liberta de obstáculos e preconceitos
que cerceiam alhures o entendimento da vida política.
A temática política sempre me fascinou, desde quando, com pouco mais de 19
anos, me matriculei na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco e participei
daquele território livre, que é um pouco o coração vivo da ação política brasileira. Entrei
em 1930, ou seja, às vésperas daquele grande acontecimento histórico que foi a
Revolução de 30, marco inegável de uma nova fase da existência nacional. Desde
então, passei a viver intensamente os problemas da minha geração.
Minha geração foi marcada por uma inquietação extraordinária, tanto como a
vossa. Em torno de nós havia mais perguntas e angústias do que soluções e
tranqüilidade. Nosso século tem vivido uma sucessão de crises, não apenas políticas,
mas espirituais, sucessão esta que não podia deixar de repercutir no plano de quem
jamais aceitou a teoria política como simples abstração.
O grande mestre Jellinek deixou-nos uma lição estupenda, ao afirmar que aquilo
que não é realizável não merece um instante sequer de atenção por parte do político
ou do jurista. O que deve marcar o político é o senso do concreto, do possível e do
realizável. Uma teoria política, que plane apenas sobre aspectos teóricos, sem
vinculação com a realidade, desde logo assume feição utópica. As utopias também
têm seu valor. Os grandes mestres das utopias muitas vezes antecipam-se ao seu
tempo, mas não podemos viver com elas.
Comentários de Miguel Reale 29

Deixando de lado esse aspecto positivo das utopias, que são válidas como
poderosas intuições na mente dos grandes gênios, o certo é que nenhuma ciência
deve ser tão imbuída de experiência e de realidade como a Ciência Política, muito
embora inexista conflito entre realismo e ideal.
Por outro lado, a exposição de Poletti me faz lembrar que o nosso Pais, que tem
passado por crises políticas tão intensas, não apresenta grande riqueza no sentido de
contribuições originais á Teoria Política. Há grande carência de Ciência Política na
cultura brasileira. São raros os centros de pesquisa política no País. Até hoje, não
surgiu uma só Faculdade de Ciência Política que estudasse a política, não em termos
de pós-graduação, mas em termos de graduação universitária. Isso bastaria para
demonstrar como nós somos carecedores de meditação política mais profunda. Há
um vazio que está sendo coberto de maneira entusiástica e dedicada em Brasília, em
São Paulo, no Rio dejaneiro, em Belo Horizonte, ou Recife, mas é preciso reconhecer
que, além de inexistir uma correlação constante entre nossas pesquisas, estas não
raro, se reduzem a meros reflexos ou comentários de doutrinas alienígenas. O que
mais me preocupa é a carência de um diálogo nosso, na imanência de- nossas
circunstâncias.
Esse relativo descaso pelos estudos políticos explica a crítica apontada pelo
Professor Poletti, feita por mim, durante os últimos anos, no sentido de ter-se dado
excessiva importância à problemática econômica, sem se lembrarem os responsáveis
pelo poder de que não há solução econômica que não pressuponha uma tomada de
posição no plano político. Uma coisa é a Economia; outra coisa é a Economia Política,
ou mais precisamente, a Política Econômica. Não basta a perspectiva do economista
para se decidir, no plano governamental, sobre os problemas fundamentais do País,
sem se levar em conta os demais fatores que operam na vida da sociedade e do Estado.
O fato econômico, como bem observou o grande jurista e politicólogo Tullio
Ascarelli, converte-se, nas mãos do político, em um conteúdo de decisões que
implicam e reclamam uma multiplicidade de parâmetros e perspectivas.
O ensinamento fundamental de Aristóteles, de que a Política é a arquitetônica das
ciências, ainda continua válido, porquanto a análise prevalece no momento teorético,
mas a prática é, necessária e essencialmente, sintética. Pode um homem de ciência
trancar-se no séu laboratório e fazer abstração de uma série de problemas que
tentariam o seu espírito, concentrando-se em determinado objeto de pesquisa e de
estudo. Se ele, no entanto, despe a sua veste de pesquisador para passar ao plano da
ação, imediatamente uma série de outros elementos se torna necessária, de tal
maneira que uma síntese se impõe ao seu espírito, e aquilo, que antes era uma visão
setorizada, por motivos metodológicos, passa a ter um significado e uma amplitude
de globalidade, sem a qual, no plano dapraxis, a idéia não se realiza com validade e
eficácia.
É por esse motivo que jamais concordei com aqueles que enaltecem os valores da
teoria ou, então, se inclinam pela primazia da prática. Perguntar qual das duas é a
30 Miguel Reale na UnB
mais importante é, a meu ver, um pseudoproblema. Na realidade, a teoria e a prática
se interligam de maneira fundamental em razão mesmo da natureza do pensamento
humano. O pensamento já é sempre um esboço de ação. Ao formular uma hipótese
no plano científico, estou delineando algo que vai repercutir, ainda que não o saiba,
no plano das conseqüências utilitárias. E, por outro lado, o verdadeiro homem de
ação, no instante em que atua sobre a realidade, adquire percepção de novos valores
teoréticos e intelectivos que a realidade lhe vai inspirando. Assim, não há que optar
entre teoria e prática que são valores complementares.
Foi essa a primeira grande luta que eu, confesso, tive de vencer, porquanto
provinha de uma visão setorizada, monocórdica, unilateral da vida cultural e política
em particular de inspiração marxista. É por essa razão que, ao escrever a minha
primeira obra, tentei, com grande ousadia, traçar um plano de vida ao qual procurei
manter-me fiel: “viver a teoria e teorizar a vida, na unidade indissolúvel do
pensamento e da ação” . Foi esse o ponto de partida da minha compreensão política
que, com razão, Tristão de Atayde declara ser marcada por um sentido de
integralidade e que, agora, Ronaldo Poletti aponta como um sentido de globalidade.
As visões unilaterais têm, com efeito, prejudicado profundamente as pesquisas
sociais, jurídicas e políticas, obrigando-nos a fazer opção por uma determinada via,
com o sacrifício de outras não menos necessárias. Ora, a vinculaçào entre teoria e
prática é a mesma que se põe entre a problemática dos meios e a dos fins. Em política
é absurdo pensar apenas nos objetivos que devam ser alcançados. Não existe um
finalismo político em si e por si significativo. Não é possível ao politicólogo contentar-
se com um espectro de objetivos ou de alvos a serem alcançados: esses objetivos,
enquanto políticos, devem necessariamente ser dimensionados em função de meios
adequados à sua realização. É a mesma lição de concreção, a que já aludi.
A esta altura, tenho uma observação a fazer, que me parece relevante, quanto ao
sentido do pensar de nosso tempo.
A nossa época, sobretudo nos últimos vinte anos, tem sido marcada por uma
palavra que nem sempre é entendida com clareza no cenário cultural brasileiro: a
palavra concreção. Concreção em Ciência Política, concreção em Ciênciajurídica, para
apenas limitarmos o nosso objeto de estudo.
Que pretende a “ teoria da concreção” , em Ciências Jurídicas? Essa doutrina, que
também corresponde à visão experimental do Direito (o “ Direito como Experiência”
é o título de um de meus livros) - essa doutrina, que é hoje prevalecente em altos
centros culturais da Europa e da América, representa uma fuga ao formalismo. Não
nos contentamos mais com soluções puramente esquemáticas e abstratas que possam
dar aparência de solução aos problemas. A forma, que nos interessa, é como a forma
de uma estátua que possui um conteúdo em si e não se exaure numa simples
aparência. Quer dizer que a forma implica o conteúdo. Assim como uma estátua é a
Comentários de Miguel Reale 31

sua forma, e a sua forma é o valor artístico que nela se insere, também uma regra de
Direito não pode ser uma simples expressão lógica ou matemática, mas deve ser
sempre expressão da vida humana em determinadas circunstâncias, quer para o
indivíduo, quer para a coletividade. Essa visão concreta do Direito leva a uma
aplicação concreta da juridicidade. Não mais o Juiz, que vê a lei como fria premissa
de um silogismo e chega a uma inexorável conseqüência, mas, ao contrário, o
magistrado, que, na plenitude da vida humana, recebe a regra do Direito como uma
diretriz a ser seguida, é certo, mas que é suscetível de ser interpretada de maneira tal
que possa se ajustar à situação em que se encontram os interesses em conflito, visando
a um justo equilíbrio.
Concreção política é a mesma coisa. Concreção política significa a busca de
soluções que não tenham o aparato e a majestade dos pronunciamentos puramente
verbais, mas, que, ao contrário, marquem o encontro da palavra com a substância
concreta do indivíduo e sua circunstância. Não é por outra razão que assistimos, em
nosso tempo, ao florescimento das chamadas filosofias existenciais, que tamanha
influência exercem sobre o mundo jurídico ou político, pondo o primado do social
sobre o estatal.
Que é que caracteriza as filosofias existenciais, que não se confundem com
qualquer forma particular de existencialismo? Que é que caracteriza a Filosofia
existencial, se não uma insatisfação com referência a tudo aquilo que não penetra no
âmago da problemática do homem? O homem não é apenas um ser que pensa, mas
um ser que, ao pensar, pensa numa determinada circunstância e num* relaciona­
mento global, que é o seu mundo, o seu mundo envolvente.
Isto posto, não temos mais, como ponto de partida, o indivíduo isolado, da
concepção política que condicionou todo o liberalismo clássico, através da figura
abstrata do cidadão. Temos, ao contrário, o indivíduo essencialmente vinculado à sua
circunstância existencial, ao seu próprio projeto irrenunciável de vida, mas ligado
também ao sistema de valores que representa a sua comunidade, a sua convivência.
Dessa colocação concreta do indivíduo partimos para algo que poderíamos
denominar um liberalismo em concreção. Um liberalismo, não em função do indivíduo
abstrato, mas um liberalismo em função do indivíduo concreto, ou, como com razão
Poletti o lembrou, do homem situado. A afirmação de Ortega y Gasset, que foi um
homem com visão extraordinária a respeito de uma série de problemas de nossa
época, de que o homem é ele e a sua circunstância, marca uma verdade que parece
pequena, mas que é densa de conseqüências. Este ponto de partida implica relevante
alteração metodológica, porque, desde logo, como foi lembrado, significa o
afastamento de soluções unilaterais, impondo-se um sentido de totalidade que é
preciso esclarecer. Nós todos estamos sentindo a necessidade de uma compreensão
global da vida brasileira. Essa compreensão global é cheia de grandes riscos. Nada é
mais perigoso do que o desejo de totalidade, visto como ele pode levar-nos a uma
32 Miguel Reale na UnB
/

totalidade granítica, cerrada, própria de certas ideologias que já perderam inspiração


criadora e vivem a repetir, como num realejo, as mesmas e antigas fórmulas. É o
primeiro risco: o desejo de totalidade indiferençada e estática. É o enquistamento, a
fossilização, aquilo que podemos chamar de totalitarismo, como solução definitiva e
cerrada, que, de certa maneira, resolve o problema suprimindo as perguntas
formuladas.
Esse risco de globalidade é acompanhado por outro, que consiste em contentar-
nos com visões utópicas da totalidade. Tal equívoco ocorre quando nos conforma­
mos com uma compreensão total puramente fictícia, que satisfaz à nossa vaidade
teórica, mas não atende às nossas exigências vitais.
Diante desses dois riscos, é indispensável optar por uma visão de globalidade
aberta. À primeira vista, pode parecer paradoxal que se fale numa síntese aberta. Mas
o século passado, através, sobretudo, da visão de Hegel, seguido de perto pela
compreensão de Marx, nos legou uma visão de globalidade fechada, onde tudo, de
certa maneira, está, de antemão, pensado como momentos de um historicismo
absoluto. O nosso tempo, ao contrário, tem sido marcado por uma compreensão
diferente, de uma síntese que não se encerra em si mesma, porquanto toda síntese já
condiciona o processo histórico em seu evolver, visto como jamais se resolve na
identidade dos contrários ou dos contraditórios.
Põe-se aqui um problema, ao qual Poletti acenou, e que eu não posso
desenvolver: refiro-me à nova compreensão da “dialética de complementaridade”,
que tanta importância tem no plano da Física e outras ciências, mostrando que muitas
contradições, que parecem irremediáveis e irredutíveis, na realidade, são apenas
aparentes, sendo mister desfazê-las.
Digamos, pois, que há uma diferença entre a globalidade oitocentista e a
prevalecente em nosso tempo. Pensava-se antes, numa solução sintética capaz de
resolver definitivamente os problemas da sociedade; nós, ao contrário, dizemos que
toda síntese é apenas uma tomada de posição provisória, para que novos problemas
sejam propostos, numa retificação contínua que resulta da refutação crítica do
anteriormente conquistado. A teoria da sociedade aberta, a que se refere Karl Popper,
não é senão uma conseqüência de uma mudança na metodologia da Ciência Social e
da Ciência Política e que, no fundo, repercute em todos os planos das ciências
positivas. Aproveito, aliás, a oportunidade para ponderar que a condenação de
Popper ao historicismo somente me parece válida para o historicismo oitocentista, ao
qual os marxistas ficaram apegados.
Há hoje em dia, grande esforço nos centros culturais fundamentais do mundo,
preocupados com o que se chama ácinterdisciplinalidade. A interdisciplinalidade é um
instrumento extraordinário para uma globalidade viva, porquanto é, através dela,
que um cultor de ciência matemática ou de ciência física se encontra com um cultor
Comentários de Miguel Reale 33

de ciências éticas ou sociais, e todos podem conviver na convicção de que estão


estudando a mesma realidade sob perspectivas diversas, e que os pontos de vista
diferentes podem convergir para dar-nos uma imagem totalizadora do real, mas não
como monobloco da realidade.
Ora, essa compreensão metodológica, no plano político, leva ao que os autores
alemães, italianos, franceses etc., chamam de democracia social Esta expressão nada
tem a ver com o fato contingente de um partido político ter essa denominação, mas foi
ato de muita argúcia e sabedoria tomar posse desse nome, de expressão política tão
significativa.
Que é democracia social, que hoje agita como um valor novo a problemática do
nosso tempo? A democracia social, que pode ser vista como uma nova forma do
liberalismo, ou como o liberalismo deste fim de século, é marcada por alguns pontos
fundamentais, que terei ocasião de ir apresentando ao longo deste seminário,
porquanto o assunto envolve aspectos filosóficos, jurídicos e políticos.
Sob o prisma político, o que caracteriza a democracia social é o abandono de todo
e qualquer apriorismo. Um apriorismo, por exemplo, seria este: só é válida a polí­
tica econômica baseada exclusivamente na livre empresa. Um outro apriorismo
seria este: só é eficaz a política econômica Jbaseada na socialização dos meios de
produção.
Ou seja, todas aquelas teses, que marcaram o grande conflito entre o liberalismo
e o socialismo marxista, especialmente, durante dezenas de anos, todas essas teses são
apreciadas sob outro ângulo. O que era antes uma tese abstrata passa a ser um
problema; converte-se em problema ou indagação, no contexto de uma situação
histórico-social. Ou seja, quando é, e em que circunstâncias, a livre iniciativa se
mostra mais adequada a uma solução política, em determinado pais? E quando é que
a estatização se impõe de maneira necessária? Ninguém toma partido aprioristica:
mente por esta ou aquela via, mas reconhece que, na sua operacionalidade, a Ciência
Política deverá fazer sempre uma eleição de meios e fins segundo certas prioridades,
sim, mas segundo condições de possibilidade também.
O problema é posto a partir, digamos assim, de uma tese de Kant, que eu quero
lembrar nesta noite, porque estamos comemorando, em 1981, o segundo centenário
da Crítica da Razão Pura. Ao abrir a Crítica da Razão Pura, na sua Introdução, Kant
esclarece não ser seu propósito provar a legitimidade ou o acerto das ciências,
porquanto, no seu entender, não podiam ser postas em dúvida as leis de Galileu, de
Kepler e de Newton. Seria absurdo ao filósofo pretender legitimar a Física ou a
Astronomia. A pergunta do filósofo é outra, a saber: quais foram as condições lógicas
que tornaram a ciência possível? O importante é examinar as asserções científicas em
razão de suas “ condicionalidade” e “ possibilidade”.
34 Miguel Reale na UnB

Mutatis mutandis, a atitude do politicólogo contemporâneo deve ser esta: indagar,


objetivamente, e sem preconceitos, das condições lógico-sociais e experienciais que
permitem a um pais realizar os seus objetivos, conciliando a liberdade dos*
indivíduos com os valores da ordem e da justiça social, O problema é inegavelmente
ético, mas é também operacional, envolvendo o que denomino a “ dialética dos meios
e dos fins”, que me parece um ponto a ser acrescentado à bela exposição feita pelo
Professor Poletti.
A dialética dos meios e dos fins tem um significado, repito, ao mesmo tempo ético
e operacional. Ético, porquanto nenhuma atitude política seria não digo válida, mas
legítima, se não tivesse como destinatário, em primeiro lugar, o homem. Quando
Platão traçou o ideal de sua República, ele a imginou como um homem em ponto
grande, para melhor compreensão do ser humano. Portanto, na realidade, o que ele
queria, através da teoria da “ República”, não era o aperfeiçoamento do Estado, mas
sim o do homem. A Política, para ser legítima, tem de ser antropocêntrica ou, mais
amplamente, humanística, porque tem como seu destinatário essencial o homem,
considerado em si mesmo, na sua individualidade intocável, isto é, na sua
subjetividade, que é valor último e primordial, mas também nas suas relações com os
demais seres que outorgam valor à convivência ou comunidade.
O conceito fundamental da Política continua sendo, pois, o posto por Aristóteles
como um saber eminentemente sintético ou arquitetônico, que a torna a mais alta de
toda as ciências, porque não visa ao bem de cada um, em si mesmo, mas ao bem dos
indivíduos em correlação harmônica com o bem comum. Esta é a tônica moral, ética,
de toda e qualquer Política, o que impede possa ser ela reduzida a uma simples
superestrutura, a um reflexo de fenômenos tecnológicos ou econômicos.
Pois bem, se o ideal é o de uma ordem social justa, centrada em torno do valor da
pessoa, é preciso reconhecer que são múltiplos os caminhos da democracia,
tornando-se imperioso lançar mão de todos os processos adequados àquele fim. A
habilidade do estadista consistirá em saber escolher o momento propício para agir
em consonância com o povo, elegendo os métodos de ação correspondentes a cada
conjuntura histórica.
É no contexto desses objetivos complexos que se situa o problema da opinião
pública. No meu pensamento político reservo lugar muito importante para a teoria
da opinião pública, sem a qual os ideais éticos não adquirem força real, nem se
convertem em instituições jurídicas e políticas úteis aos indivíduos e aos grupos. A
opinião pública marca o horizonte de eticidade política dentro do qual deve agir o
homem de Estado. Ai do homem de Estado que volta as costas para a opinião pública!
É como se alguém quisesse se orientar perdendo a linha do horizonte.
A opinião pública é a condição fundamental para a tomada das decisões políticas,
sobretudo numa sociedade como a nossa, caracterizada pelo pluralismo dos centros
Comentários de Miguel Reale 35

de poder. Não estamos mais apegados à visão unilateral, mas poderosa, de Max
Weber, que via o estamento burocrático, unitariamente ordenado, como funda­
mento por excelência do Estado burguês de seu tempo. Estamos cada vez mais
verificando que a antiga burocracia perde dia a dia sua unidade, alarga-se e
multiplica-se, esfacelando-se em mil sedes de poder. Além disso, há outras estruturas
tão vigorosas como os estamentos burocráticos: são as multinacionais quê atuam em
todas os setores da sociedade civil.
Não posso me alongar mais, mas basta olhar o panorama brasileiro para vermos
como o estamento burocrático está se tornando cada vez mais restrito: em torno dele
e, muitas vezes, em conflito com ele giram corpos autônomos, autarquias, entidades
paraestatais, empresas públicas e até autonomias contábeis e outros organismos
misteriosamente dotados de força própria, de tal maneira, que nós estamos vivendo
numa sociedade cujo Estado, apesar de seus Executivos cada vez mais poderosos,
perde, dia a dia, sentido diretor, que é a característica essencial e eminente do poder.
O resultado é que não há possibilidade mais de governar com sentido de globalidade,
tão acelerada é a dispersão periférica do poder estatal.
Eis aí outra grande pergunta de nossa época, para a qual a resposta só pode ser
dada por uma teoria política aberta como é a da democracia social, que não prefigura
nenhum modelo salvador, mas apenas procura estabelecer as condições metodoló­
gicas e o condicionamento ético indispensáveis à realização de uma sociedade civil
irredutível aos interesses dos indivíduos ou do Estado.
1.3. DEBATES

PERGUNTA - O senhor falou sobre Marx, e eu gostaria de saber por que a burguesia
faz objeção às teorias marxistas.
MIGUEL REALE - Confesso que não me sinto muito bem falando em nome da
burguesia, (Risos) mas tentarei dar uma explicação que permita esclarecer deter­
minados aspectos do problema.
A burguesia, como disse muito bem Benedetto Croce, mais do que uma classe, é
um estado de espírito, uma compreensão da vida política e da vida econômica
fundada na supremacia dos valores utilitários.
Não vejo nenhuma classe, hoje em dia, que se identifique plenamente com a
burguesia como tal. A atitude da burguesia perante o marxismo tem mudado muito,
ao longo dos anos. Quando Karl Marx começou a desenvolver sua idéias, não
devemos pensar que elas tenham tido repercussão profunda e imediata. Ao contrário,
deu-se, como sempre ocorre, uma filtragem lenta e demorada, que depois iria ter
conseqüências profundas no processo da história.
Qual era a verdade que Karl Marx trazia e que eu considero válida? A verdade que
Karl Marx oferecia era a de situar com vigor o problema da Filosofia no plano d a "
socialidade. Ou seja, a Filosofia deixava de ser considerada apenas como meditação
puramente teórica, para ser vivida em função de valores sociais, tal como vinha sendo
reclamado, aliás, por outros pensadores, franceses e ingleses. Esse banho de
socialidade dado ao problema filosófico foi estendido por Marx à teoria política, que
ele imergiu no mundo econômico. Com certa arrogância, dizia ele que, com essa
atitude, havia posto a Filosofia a marchar pelos pés e não pela cabeça, como teria
ocorrido na obra de Hegel que proclamara o primado do Estado, dominado,
segundo Marx, pelos capitalistas, senhores dos meios de produção. Assim sendo,
somente a destruição da burguesia e de seu aparelho burocrático permitiria a
ascensão do proletariado. Este seria o resultado de uma luta de classes, desfecho e
técnicas que evidentemente não podiam ser aceitos pela burguesia. Essa concepção,
que reduz o Estado e o Direito a meras superestruturas da estrutura econômica da
sociedade, veio a prevalecer na Rússia, com a revolução soviética de 1917, pouco mais
de um ano antes do fim da Primeira Grande Guerra. Para mim, a Primeira Grande
Guerra marca o término do século XIX. É com a Primeira Grande Guerra que morre,
de certa maneira, uma série de valores próprios da cosmovisão oitocentista, para dar
início a uma nova compreensão do homem e dos problemas da sociedade e do
38 Miguel Reale na UnB

Estado. Hoje, já estamos compreendendo que o triunfo do marxismo-leninismo


ajudou, paradoxalmente, a sobrevivência de valores oitocentistas, desembocando no
Estado totalitário.
Nào se pense que, com tal afirmação, eu seja um adversário incondicional do
marxismo. O que reclamo é que se estude a doutrina de Marx, reconhecendo-lhe
méritos e deméritos, como se faz com as teorias políticas de Rousseau, de Hegel ou de
Stuart Mill, isto é, sem preconceitos ideológicos. Somente assim poderemos ver o que
há de positivo e de negativo na teoria marxista. Como toda grande doutrina, o
marxismo tem valores positivos e negativos, e devendo eles ser analisados de maneira
crítica e objetiva. Não é demais salientar que neutralidade absoluta nào existe nas
ciências, sobretudo nas ciências humanas, mas devemos agir com isenção, no sentido
de que o observador não se intrometa, a todo instante, na análise que esteja fazendo,
com os seus preconceitos e pontos de vista predeterminados.
Não me interessa, senão para fins de avaliação crítica, o que a burguesia pensa a
respeito do marxismo. Porque nem sei se o burguês, enquanto burguês, pensa
propriamente no marxismo. Ele estará antes fascinado por sua visão puramente
utilitária da vida, não se podendo afirmar, apriori, que essa atitude seja ilegítima. De
outro lado, devemos apreciar a burguesia no seu real papel histórico. Ela significou
um momento da história sem o qual o marxismo não teria sido possível, assim como
não teria sido possível a revisão que estamos fazendo de valores burgueses e
marxistas. Não estamos mais diante de um Estado burguês como o pintou Karl Marx,
partindo de estruturas científicas e tecnológicas já superadas, e que tiveram como
conseqüência alterações profundas no sistema capitalista. Essas mudanças foram de
tal ordem que acabaram modificando o conceito de classe, até o ponto de tornar
anacrônica, por exemplo, mesmo nos meios e partidos comunistas, a idéia de
ditadura do proletariado.
Não se pode, em verdade, falar mais em “classe” como no tempo do Manifesto
Comunista, ou de 0 Capital de Karl Marx. O conceito de classe sofreu um impasse tão
profundo, em nossa época, que, na realidade, é preciso ter outra ótica, mais atual e
mais condizente com as nossas circunstâncias, para estudo das categorias sociais.
Preferi colocar o problema sob tais prismas amplos, porque, de maneira
simplista, qué talvez pudesse agradar a alguns, seria possível dizer que o burguês fala
mal de Marx porque tem medo dele. Mas eu pergunto: hoje, num “ mundo socialista”
tão dividido como o que existe, quem tem medo de Karl Marx? Só aqueles que não o
conhecem e não se dispõem a estudá-lo com objetiva serenidade.
PERGUNTA - Poderia o senhor apontar alguns dos valores positivos do
marxismo?
Debates 39
MIGUEL REALE- Penso que já apontei um, que é fundamental: a colocação dos
problemas filosóficos em função da problemática social. Ao dar a resposta anterior,
penso já ter esclarecido essa questão.
Mas, não é só esse. Há uma série de outras contribuições básicas que podemos
atribuir ao marxismo, como, por exemplo, a consideração do problema econômico
como um problema fundamental, tanto para o economista como para o político.
Nesse afã de enaltecer o econômico, Karl Marx cuja ciência já fora consolidada por
Adam Smith, foi levado ao exagero de transformá-lo na base condicionadora de todos
os valores sociais, políticos, religiosos e jurídicos, erro em que incidiram, até certo
ponto, outros adeptos do socialismo, ou aqueles liberais que pregavam a supremacia
do fator econômico até o ponto de acreditarem na sua espontânea virtude de
promover a justiça social.
É indiscutível que Marx exagerou com o seu “reducionismo econômico”, que é a
chave mestra do materialismo histórico. Não se pode, porém, olvidar que nesse
exagero pulsava uma verdade de ordem moral, que Marx naturalmente não a
qualificaria como tal: a de que a ordem econômica da época implicava ã expoliação
do homem pelo homem.
Essa exploração econômica foi explicada por Marx em termos pretensamente
científicos de “mais-valia”, conceito que, na realidade, corresponde menos a uma
categoria econômica do que a uma exigência ética, tendo servido de estupendo
instrumento para reivindicações sociais. Não se lhe pode negar o mérito de, numa
época de tanta sedução pela ciência, ter dado veste científica a um imperativo ético-
político, legitimado pela incontestável desigualdade entre empresários e assalariados
no que se refere aos resultados econômicos da produção.
Numa estrutura de produção capitalista, baseada no individualismo, não existe
uma distribuição igual de riquezas, de tal maneira, que a grande maioria - afirmava
Marx - não recebe de retorno o que corresponde ao valor real de seu trabalho, o que
explicaria a crescente concentração das riquezas na mão de poucos privilegiados.
Outro problema, que me parece importante na teoria marxista, é ter posto em
destaque o problema da praxis, ou seja, o valor da ação como algo de inseparável do
pensamento como tal. A teoria filosófica anterior era dominada por excessiva
unilateralidade teorética. Cuidavà-se, digamos assim, mais do “ Penso” do que do
“ eu existo” , para usarmos aqui o “ Cogito, ergo sum” com que Descartes descorti­
nara os caminhos da Gnoseologia moderna. Sentiu-se, em suma, necessidade de pôr a
tônica, não no “cogito”, mas no “sum ”, para se indagar das condições da existência.
Inegavelmente, todo o socialismo, e não apenas o marxismo, tem esse mérito de
chamar a atenção para o “existeficial” nas relações sociais, não se contentando com a
simples declaração dos direitos civis ou de cidadania.
40 Miguel Reale na UnB
Eis aí alguns aspectos apenas, para mostrar que o verdadeiro estudioso de
Ciência Política não deve se colocar diante de um grande doutrinador com olhos
vendados, nem tampouco com um olho aberto e outro fechado. Ou seja, há uns que
olham para Marx com o olho esquerdo e só vêem a sua função revolucionária ou
progressista; enquanto que outros o enxergam só com o olho direito que revela o
substrato totalitário de suas idéias.
Vamos abrir os dois olhos para vê-lo tal como ele realmente é, um socialista que
não tem nada de democrático, com uma Filosofia que só por equívoco foi
considerada a Filosofia por excelência do século XX.
PERGUNTA: Entre os valores fundamentais da democracia, o senhor, no trabalho
referido pelo Professor Poletti, falou no papel da Grécia e de Roma. Pergunto: e as
civilizações da Antiguidade Oriental, deram alguma contribuição à formação da idéia
democrática?
MIGUEL RE ALE - Quando eu me refiro às idéias fundamentais que vêm da Grécia
e Roma, coloco-me, evidentemente, dentro do nosso contexto cultural. Nenhuma
idéia da índia, nenhuma idéia do budismo ou nenhuma idéia da filosofia chinesa
interferiu no processo democrático. O problema da teoria da cultura está vinculado à
problemática histórica. Uma teoria da cultura despregada do processo histórico não
tem sentido. A nossa compreensão democrática é fruto de uma experiência que, salvo
seja, nada deve às antigas civilizações orientais.
Aproveito, aliás, a oportunidade, para focalizar uma questão que me parece
interessante.
Quando Mao Tse-tung aceitou a teoria marxista, ele estava fazendo infiltrar na
cultura do Oriente um pensamento do Ocidente. Os chineses, que sempre viveram
separados do mundo ocidental pela sua muralha intransponível, tanto de pedras
como de idéias, foram conquistados por uma concepção que afunda suas raízes na
tradição filosófica mediterrânea. Essa concepção ocidental, no entanto, assumiu, por
força das circunstâncias, um aspecto diferente. O marxismo chinês não se confunde
com o marxismo russo. E mesmo na Rússia há diretrizes que não se harmonizam
com o resto da Europa. É possível que a própria URSS não seja o monobloco
ideológico que aqui nos chega, através daquilo que escoa da imprensa soviética.
Voltando, porém, ao marxismo chinês, já foi sustentado que ele jamais se libertou de
Confúcio, nem abandonou as próprias tradições históricas e culturais, o que explica
as mudanças operadas depois do desaparecimento do grande líder, intérprete
“ chinês” do marxismo-leninismo.
Através desse processo, se algo nos chega de retorno, do Oriente à problemática
democrática ocidental, é uma questão a ser analisada. Mas, de maneira direta e
concreta, a mim me parece que nada de substancial, na concepção ocidental da
Debates 41
democracia, se deve a qualquer legado proveniente das antigas religiões da índia ou
da China. O processo histórico do Ocidente tem uma linha marcada e bem
acentuada que encontra o seu patamar básico na cultura ou paidéia grega.
ALCEU PEIXOTO FILHO: Como o senhor avaliaria a força política dos
movimentos ecológicos do mundo de hoje?
MIGUEL RE ALE - Bem, o fato de terem surgido, em nossa época, movimentos
ecológicos, que já começam a ter algum peso na opinião pública, revela o estado de
perplexidade em que o impacto tecnológico deixa a criatura humana.
O problema do impacto tecnológico, sobre o qual tanto se fala, não tem sido
estudado, a meu ver, em toda a sua amplitude. O impacto tecnológico atua, por
exemplo, no setor político, de tal maneira, que ideologias que pareciam irreversivel­
mente conflitantes, acabam sendo obrigadas a adotar soluções iguais ou equivalentes.
O equipamento tecnológico e a tecnologia, como cabedal de conhecimentos
especializados, são de tal ordem, que, qualquer que seja a diretriz política dominante
num País, acabam impondo certos modelos de ação que se equivalem.
É esse impacto tecnológico que está destruindo até mesmo o monobloco
soviético, obrigado, por exemplo, a aceitar a iniciativa privada da Fiat, para produzir
bons automóveis, ou a contar com as grandes multinacionais do setor hoteleiro para
desenvolvimento do turismo...
Mas há um outro aspecto do impacto tecnológico, decorrente do fato de ter-se
perdido de vista o destinatário da atividade econômica, que é o homem. É o aspecto
negativo da tecnologia, destruidora do meio ambiente e das condições de vida.
Dizia Pedro Lessa- grande mestre de Direito e Ministro do Supremo Tribunal -
que o Direito é o conjunto de condições de vida e de desenvolvimento do homem e da
sociedade. Eu diria que a Política também o é. No entanto, uma visão setorizada, ou,
talvez, perversa ou pervertida do problema da “produção pela produção”, o produti-
vismo levado ao máximo, desprezou a componente humana, os valores existenciais.
O que importa, pâra muitos, é produzir com um mínimo de esforço e o máximo de
resultado, ainda que sacrificada a criatura humana. E sacrificada, mais do que a
criatura humana, tem sido a natureza, cujo sacrifício será o sacrifício do homem.
Estamos verificando, portanto, que o movimento ecológico é uma reação contra
uma compreensão setorizada da tecnologia. É uma reação para, na natureza, salvar o
homem e, através do homem, reconquistar-se o espontâneo e o natural.
Compreendo, portanto, que os movimentos ecológicos tenham um significado
político profundo, que não nasce do desejo de contemplação lírica da natureza, mas
se impõe, ao contrário, pela correspondência concreta que há entre o homem, como
ser natural, e o homem, como ser cultural.
42 Miguel Reale na UnB
Nós estamos correndo o risco de cavar um divórcio, um abismo entre natureza e
cultura. Os ecologistas dão um brado de alerta. É uma advertência fundamental. Que
essa atitude baste para formar um partido político, não me parece, por ora, viável.
Mas essa tomada de posição dos ecologistas vai ter de repercutir necessariamente na
reformulação dos problemas ideológicos, na revisão dos programas partidários.
Não será possível uma atitude política, hoje, sem que se tome posição perante tal
problema. Transformar esse ideário num partido político é algo que, no entanto, me
parece incompatível com a sua natureza universal: redundaria em acordos e atos
pragmáticos e utilitários de reduzido alcance.
PERGUNTA: Poderia V. Sa. esclarecer-nos se há identidade entr eprática epraxis ,
que têm sido usadas indistintamente?
MIGUEL RE ALE - É-me feita uma pergunta sobre a diferença entre praxis e
prática , para saber se não haveria uma sinonímia entre essas duas expressões.
A palavra “ praxis” ganhou popularidade sobretudo graças ao pensamento
marxista, que, como já lembrei, dá grande ênfase ao problema da ação. Trata-se de
palavra hoje de uso genérico, mas que, originariamente, se vinculou ao materialismo
histórico, que Gramsci identifica com a “ filosofia da praxis” . Vou apreciar a palavra
apenas na sua possível acepção genérica.
Que seria, propriamente, a praxis? A praxis seria a prática da qual se tem
consciência teorética. Há a teoria e há a prática. Mas a prática é, por sua vez, objeto de
uma teoria, a teoria da prática. Eu posso ser um homem prático sem nunca meditar
sobre o que seja prática. Os romanos, que eram práticos por excelência, criaram ô
Direito, que é um instrumento da vida prática, e, para perplexidade de todos, os
romanos não criaram nenhuma teoria do Direito. Temos, então, esse fenômeno
curioso e até paradoxal: o povo criador do Direito não nos deixou qualquer teoria
jurídica. Ou seja, não teorizou sobre a prática, não converteu a prática em praxis.
Poderíamos dizer, até certo ponto, que, as duas expressões são sinônimas. Mas,
pelo menos na linha de meu pensamento, a praxis é a prática com autoconsciência
teorética.
PERGUNTA: Como o senhor vê o problema político brasileiro sob o prisma de
ser o Brasil uma nação católica. Ou seja, as influências externas na política brasileira
devem ou não sofrer análise sob o ponto de vista católico? Por quê?
MIGUEL REALE - A resposta a esta pergunta envolveria uma série de
considerações de grande amplitude. Em primeiro lugar, começaria a perguntar: até
que ponto, na realidade, somos uma nação católica? Porque esta afirmação poderá
suscitar perguntas como esta: católica, só do ponto de vista do censo? Católica,
Debates 43
porque a grande maioria responde à pergunta: “ Que religião tem?” escrevendo em
baixo: “ Católica”? Eu pergunto até que ponto esse catolicismo é autêntico e se, na
realidade, corresponde a uma atitude clara e consciente daquilo que signifique
“ catolicidade” .
É a primeira indagação. Porque, já devem ter percebido os que me ouvem, que
sou apaixonado pelas perguntas muito mais do que pelas respostas.
De outro lado, o Brasil é uma nação plural na raiz da sua substância. O
catolicismo baiano, todo ele envolvido de tradições africanas e animado de ritos e de
mitos não católicos, será um catolicismo autêntico? Eu fui a Nosso Senhor do Bonfim,
onde tudo se veste de branco, e nunca vi tanta expressão de cultura negra como
naquela catolicidade.
Não devemos, pois, colocar o problema com rigidez extrema. De qualquer
modo, a nossa “ forma mentis” fundamental, do ponto de vista dos valores culturais
superiores, tem uma prevalência, uma predominância católica.
Será isso um obstáculo a receber influências externas? Eu não entendo a que
influências externas está se referindo o imerpelante. Influência externa de outra
religião? O problema, aí, é de pura consciência individual, de pura subjetividade. Se
um pregador protestante ou espírita está ganhando ou perdendo terreno, o problema
é apenas de adequação de suas idéias e de suas mensagens a atitudes subjetivas. Não
há que falar em atitude política. A política jamais poderia interferir nesse campo.
Poder-se-ia pensar em influências externas de natureza política, inclusive
oriundas de meios católicos, dos chamados “ setores progressistas” da Igreja. É
evidente que, quem tem convicção católica e é adepto de uma teoria política inspirada
no catolicismo, vê o problema sob um prisma; quem não segue esse caminho, o vê
sob prisma diferente, mas quem poderá negar as profundas diferenças doutrinárias
hoje existentes no mundo católico, e até mesmo na Igreja? Até que ponto o desejo de
“ participação social”, ou de socialidade já não estará primando sobre a sacralidade,
predominando o profano sobre o escatológico?
Não creio porém, que, qualquer que seja a diretriz católica adotada, ela basta
para impedir a repercussão de idéias políticas distintas no Brasil. Se temos a nossa
convicção, não devemos ter receio da convicção alheia. Pelo contrário, devemos
procurar receber a convicção alheia como um ponto de partida para nosso próprio
enriquecimento e também para nos corrigirmos... E há tanta coisa a corrigir-se, até
mesmo naquilo que se chama de catolicidade!
PERGUNTA: Professor Reale, o senhor aponta, ou melhor, afirma que a solução
para a democracia é sempre pluralista. Assim, gostaria de saber se, para que haja essa
participação múltipla, se faz necessária a convocação de uma Assembléia Nacional
Constituinte, no caso brasileiro, particularmente.
44 Miguel Reale na UnB

MIGUEL REALE - Não me parece que haja muita ligação entre uma coisa e
outra. Mas isso não me impede de dizer algo sobre a Assembléia Constituinte.
O problema da Assembléia Constituinte pode ser um tema de finalidade
eleitoral, ou pode ser um problema político objetivamente tratado. Para alguns é
tema eleitoral, ou seja, é uma bandeira para lutas políticas futuras. Para mim, é
apenas um tema de análise política no plano científico.
Ora, nas circunstâncias atuais da vida brasileira, a Assembléia Constituinte é uma
solução que me parece completamente inadequada. Quem pensa em Assembléia
Constituinte imagina, às vezes, coisa muito curiosa, com excessivo otimismo. Espera,
por exemplo, que daqui a seis meses ou dois anos, os Deputados vão reunir-se e, por
obra do Espírito Santo cívico, serão capazes de elaborar um estatuto político em
condições de salvar a Nação.
Ora, essa visão lírica da Constituinte me parece destituída de significado. As
Assembléias Constituintes surgem, muitas vezes, na crista de um processo revolu­
cionário, com grande entusiasmo, e suas criações revelam-se efêmeras. Com a queda
do Estado Novo, tivemos a Assembléia Constituinte de 1934, que fez uma
Constituição, por sinal, rica de muitos valores teóricos, mas que durou apenas três
anos, visto não estar de acordo com as circunstâncias. A Constituição do Império, que
foi outorgada, durou dezenas de anos.
Olhando o problema com espírito realístico e sem qualquer interesse de ordem
política ou eleitoral, vejo a possibilidade de uma solução global sob outro ângulo;
admito e postulo uma revisão profunda da Constituição mas sem todo o aparato de
uma Constituinte. Parece que estamos ainda com mentalidade oitocentista, e, pior
ainda, vivendo no século XVIII! Quando se fala em Assembléia Constituinte, surgem
logo a idéia e a imagem da Revolução Francesa, com posições ideológicas contra­
postas, com todas as gamas que vão da extrema esquerda à extrema direita. Pergunto:
onde estão os partidos tão diferençados em idéias? Onde estão os debates políticos?
Agora é que estamos começando a focalizar alguns problemas básicos. A Assembléia
Constituinte seria válida se fosse antecedida por um debate sobre nossas instituições
fundamentais, à luz de teorias políticas diversificadas. Improvisar uma Constituição
no curto prazo de uma Constituinte só pode ter como resultado um compromisso de
curto fôlego.
A revisão constitucional, a meu ver, tem de ser feita, em profundidade, porque,
inegavelmente, a Constituição que aí está não espelha o querer e os complexos
interesses do País. Mas essa revisão pode e deve ser feita através de emendas
constitucionais.
Não quero aqui antecipar um assunto que talvez venha a ser objeto de análise
oportuna. Não é assunto para fim de sessão: é assunto para ser estudado com mais
vagar e todo cuidado.
Debates 45
PERGUNTA (inaudível):
MIGUEL REALE: Em primeiro lugar, eu devo retificar a sua afirmação. Eu não
tive o dom divinatório de prever a Revolução de 64. Nem foi isso que foi exposto pelo
Professor Poletti. O que o Professor Poletti esclareceu foi que, em 1962 e 1963, escrevi
determinados artigos e tomei certas posições, chamando a atenção para problemas
que exigiam solução de ordem política. Segundo o que ele afirma, se essas diretrizes
tivessem sido seguidas, o processo revolucionário não teria eclodido. Exatamente o
oposto do que parece ter sido dito por quem formulou a pergunta. O que eu queria
era evitar uma solução de força, por julgar ainda possível uma solução de outro tipo.
Ora, a Revolução de 64, como todo fenômeno histórico de longa duração, não
pode ser analisado em bloco. É uma forma de estrabismo considerar tal movimento
na sua globalidade, sem levar em conta as circunstâncias históricas em que ele eclodiu
e se desenvolveu, obedecendo a fatores emergentes.
O grande mestre Hegel declara, e com razão, que não se inventiva um fato
histórico, assim como não se inventiva um terremoto. À essa luz, cabe-nos
reconhecer que havia motivos graves para determinar que um movimento político se
transformasse em movimento armado, com um processo revolucionário que está na
moda repudiar em bloco.
De uns tempos para cá, tem-se fortalecido o hábito de colocar todo o processo
revolucionário no pelourinho. Há, parece, medo de dizer-se o que houve de acerto
ou de útil nesse acontecimento. Como eu tive a coragem, permitam-me o termo, de
condenar, durante o processo, o que nele havia de mau, não é nada extraordinário
que, depois do processo, diga alguma coisa sobre o que nele houve de bem.
Já em 1965 eu publicava um livro chamado Imperativos da Revolução de Março. Suas
páginas contêm várias criticas ao Governo revolucionário, por considerá-lo vazio de
idéias políticas. E dizia: “ Uma revolução pode deixar de derramar sangue, mas não
pode deixar de derramar idéias”. Era uma crítica feita, um ano depois da eclosão do
movimento, reclamando definições no plano político. Mas, se houve falhas do ponto
de vista político, houve muita coisa de positivo que a sua geração não pode
compreender.
D izia Alberto Torres - como foi lem brado - que toda revolução começa com uma
mudança de atitude diante dos problemas. E, efetivamente, em 64 houve mudança
de atitude. Mudança de atitude, por exemplo, desde quando se passou a administrar
com mais racionalidade, reconhecendo-se a necessidade de um planejamento
segundo critérios técnicos. O superamento de normas rotineiras, ou o abandono de
tributos coloniais como os previstos na “lei do selo”, que entravava as atividades
empresariais; uma nova e mais diversificada estrutura tributária; uma política de
realismo tarifário nas concessões de serviços públicos, eis aí alguns exemplos da nova
46 Miguel Reale na UnB
mentalidade instaurada ém 1964, embora depois viéssemos a recair em antigos erros.
O certo é que o Brasil mudou de fisionomia, o que já vinha acontecendo desde a
presidência de Juscelino Kubistchek, mas não devemos esquecer que antigos
colaboradores imediatos de Kubistchek passaram a ocupar posição de relevo no
processo revolucionárip, dando uma tônica de, diríamos, racionalização política.
Tais valores não podem deixar de ser creditados à Revolução.
Não olvidemos, também, a mudança que, por via de conseqüência, se implantou
no seio do próprio povo, no que se refere ao fenômeno econômico. O brasileiro
era, sem dúvida nenhuma, um povo dissipador por natureza. Até a palavra, que
indica o ato de economizar, era, e é, uma palavra feia: “ poupança”. E, no entanto, o
brasileiro aprendeu a poupar! Essa mudança de atitude tem um valor muito grande,
que não deve ser posto de lado como questão de somenos. Há também o problema da
planificação, sobre o qual muito poderia ser explanado. Digo mais: quis-se planejar
até demais. Houve, além disso, o ideal da criação de um “ Brasil grande” , e essa idéia,
convenhamos - se deu lugar a excessos e a abusos, perpetuando as leis de exceção,
havidas como indispensáveis à política do desenvolvimento, - não deixou de influir
em nosso destino, do qual passamos a cuidar por nós mesmos, sem transferirmos
para as “ nações imperialistas” as culpas resultantes de nossos próprios erros, como
costumam fazer os povos subdesenvolvidos...
Quem negará exageros e atos de violência durante o processo revolucionário, ou
os males do progresso â custa de sacrifícios salariais? Assim como nào podemos
olvidar essas manchas negras da Revolução de 1964, não devemos também olvidar os
benefícios por ela propiciados, convertendo nosso País em potência emergente,
modernizando suas estruturas oficiais e potenciando reservas de riquezas naturais até
então esquecidas. Dizer, como fez certo economista, que “ o Brasil se modernizou,
mas não progrediu”, antes de ser um eufemismo, é sinal de prevenção, incompatível
com o estudo sereno dos acontecimentos históricos.
Aspectos negativos são, pois, incontestáveis, e eu os apontei com freqüência, até o
ponto de não fechar os olhos para fenômenos gravíssimos, como, por exemplo, o do
chamado “Esquadrão da Morte”.
O Esquadrão da Morte atuava sem peias, realizando uma bárbara justiça
sumária, ante a omissão das autoridades governamentais e do Ministério Público.
Vaidade à parte, posso afirmar, sem temor de desmentido, que o primeiro artigo
publicado contra o Esquadrão da Morte foi de minha autoria, na Folha de São Paulo,
estabelecendo uma alternativa: ou os crimes são perpetrados por delinqüentes em
guerra entre si e devem ser apurados e punidos; ou estão envolvidas autoridades
policiais, que devem ser punidas também.
Ora, aspectos negativos havia e, infelizmente, foram crescendo até o ponto d t
ressurgir a corrupção tão veementemente condenada. E que os governos de força
Debates 47

tendem a se perverter, à sombra da impunidade. Já agora estamos em fase de


recuperação democrática, e eu creio na “política de abertura” paraaqual colaborei, na
medida de minhas possibilidades.
PERGUNTA (inaudível):
MIGUEL REALE- Bem, se eu tivesse um quadro negro, eu teria a possibilidade
de explicar com mais facilidade esse problema. Mas eu não vejo nenhuma separação
fundamental entre experiência política e experiência jurídica. Na minha concepção
— e isso foi lembrado pelo Professor Poletti - a política do Direito é o elemento de
intersecção e de conexão entre a Ciência Política, de um lado, e a Ciência do Direito,
de outro.
O legislador, que está elaborando uma norma, ele não está fazendo uma obra de
jurista; ele está fazendo uma obra de político. O legislador está fazendo uma obra de
político! O fim, o resultado do seu trabalho é um produto jurídico, é uma regra de
Direito, è um código, é uma lei... Porém, o seu critério de decisão ou de escolha é
puramente político. Nesse momento é que ele atua numa relação de meio a fim. Ele
tem que escolher aquela norma que sirva de meio para atingir os resultados. Então, ai
a relação é de norma para fim. Agora, tomemos essa norma considerada por um juiz,
ou por um advogado. O processo é o inverso, porque ele tem, já, um fim consagrado
na norma e ele tem de obter um resultado que é o interesse do seu cliente, ou interesse
da Justiça. De maneira que são apenas diferenças direcionais. Mas a experiência, na
sua substância, é a mesma. Mesmo porque, o que é meio em relação a um fim, é fim
em relação a outro meio. Não há esta rigidez em que parece estar sendo colocada a
matéria. É preciso tomar meio e fim como conceitos plásticos e não como
instrumentos materiais.
Este seria um aspecto.
Esse aspecto da teoria do meio e o fim é um problema dos mais delicados, mas,
pela sua natureza eminentemente técnica, exigiria uma conversa mais direta do que
uma explanação desta forma, ampla. O essencial, porém - para concluir - é que,
tanto na Ciência Política, como na Ciência Jurídica, nós devemos ir superando os
mitos das abstrações puramente finalísticas para, ao contrário, verificarmos a
necessidade de dimensionar ós fins em razão-dos meios. É o que se chamou solução de
concreção ou solução de experiência.
2.1. O PENSAMENTO SOCIAL DE MIGUEL REALE
Vamireh Chacon

As epistemologias explícitas costumam ter éticas implícitas.


No caso do historicismo, o humanismo.
Os anti-humanismos são, quase sempre, anti-historicistas, em nome do teocen-
trismo radicalizado ou, do seu oposto, o materialismo vulgar.
O pensamento de Miguel Reale é social, porque cultural e culturalista. Ele
chegou ao Direito de início pela filosofia política, antes que pelas mãos de juristas.
Apresenta-se sintomático o subtítulo do seu livro Horizontes do Direito e da História:
Estudos de Filosofia do Direito e da Cultura. Ali a sua filosofia da Cultura emerge quase de
corpo inteiro, girando em torno do problema da liberdade, desde a “ polis” ateniense
ã revolução francesa de Rousseau e o despontar dos totalitarismos modernos em
Hegel e Nietzsche, passando pelos marcos fundamentais dos romanos, do Renasci­
mento, de Grócio e Vico.
O ponto de partida e o de chegada é a distinção, feita por Benjamin Constant em
célebre conferência em 1819, entre “ liberdade antiga” e “ liberdade moderna” , hoje
cada vez mais atual.
Constant pretendia que “ Liberdade, entre os antigos, significa participação no
poder do Estado; liberdade entre os modernos é a liberdade perante o Estado” .
Enquanto esta veio a equivaler à liberdade liberal, a anterior volta à tona como a
liberdade no socialismo autoritário e no fascismo: “A liberdade antiga é uma liber­
dade coletiva; consiste, por assim dizer, na presença permanente do cidadão na praça
pública, sem ser incompatível com a mais completa submissão do indivíduo à
entidade do conjunto”.
A crítica de Laboulaye retoma o entusiasmo de Hegel, “ em Atenas existia uma
liberdade viva e uma viva igualdade”: “Votar as leis nos comícios, eleger os chefes de
Estado e julgá-los, quando necessário, eis o que constitui o privilégio dos cidadãos.
Do restante, da religião, das finanças, da administração, do comércio e das indústrias
encarrega-se um conselho depositário da tradição. Verifica-se o fenômeno estranho
de um a dependência extrema ao lado de um poder sem limites. Ao passo que na ágora
50 Miguel Reale na UnB
tudo se curva perante as tribos, o indivíduo e os seus mais preciosos interesses ficam
nas mãos do Estado: o povo é rei, o homem é escravo”.
A moderna crítica de W ernerjaeger confirma-o: “A vida na polis criou a isonomia,
não só na esfera do Direito, como também nos mais altos bens da vida. Satisfeita a
exigência da isonomia como igualdade perante a lei, o Estado se impunha aos
indivíduos de forma inexorável. Através da lei, o homem forja-se uma nova e estreita
cadeia que mantém unidas as forças e os impulsos divergentes, centralizando-os,
como jamais puderam fazê-lo” 1.
Que estranha atualidade nestas descrições de um mundo antigo, quase parafra­
seando outro título de livro de Miguel Realeí...
Quase evocam a distinção de Isaiah Berlin entre “ freedom from” e “ freedom to”
noutro ensaio famoso.
A “freedom to” é evidentemente a liberdade para fazer-se algo, a liberdade
chamada de “ positiva” por Berlin, porque implicando em autodomínio, embora
reconheça que este nem sempre se consuma, gerando cisões na personalidade em
nome do dever-ser e do ser; já a “ freedom from”, ou “ liberdade negativa” , seria
aquela diminuída pela igualdade, em benefício da liberdade de todos, em vez da
liberdade do mais forte esmagar a do mais fraco2.
E como Reale termina aquele seu ciclo de análise na Revolução Francesa, implí­
cita em Rousseau, e nos totalitarismos modernos em germe em Hegel e Nietzsche,
poderíamos relembrar a possibilidade da conciliação das liberdades “ to” e “from”
num plano mais alto e anterior ao de Isaiah Berlin, pois ao nível da igualdade e nas
palavras de Alexis de Tocqueville: “ O nobre terá descido na escala social, e a ela terá
subido o plebeu; um desce, outro eleva-se. Cada meio século os torna mais próximos
e em breve se estarão tocando”. “ Por isso mesmo, o gradual desenvolvimento da
igualdade é uma realidade providencial. Dessa realidade, tem ele as principais
características: é universal, é durável, foge dia a dia à interferência humana; todos os
acontecimentos assim como todos os homens servem ao seu desenvolvimento”. É
uma “ revolução irresistível, que vem marchando há tantos e tantos séculos, vencendo
todos os obstáculos e que ainda hoje vemos avançar em meio das ruínas que ela
mesma produziu” .
Observe-se ter Tocqueville escrito estas palavras em 1835, mais de uma década,
portanto, antes do Manifesto de 1848.
E, já naquele tempo, advertia como se estivesse falando hoje: “Vejo entre nossos
contemporâneos duas idéias contrárias, mas igualmente funestas. Uns só percebem
na igualdade as tendências anárquicas que ela acarreta. Temem o seu livre arbítrio, e
têm medo de si mesmos. Os outros, em menor número, embora mais bem esclarecidos,
O Pensamento Social de Miguel Reale 51
têm outra opinião. Ao lado do caminho que, partindo da igualdade, conduz à
anarquia, descobriram afinal o caminho que parece levar invencivelmente os homens
para a servidão. De antemão curvam a alma a essa servidão necessária, desesperando
de continuar livres, já, no fundo do coração, adoram o mestre que deve vir sem
tardança. Os primeiros abandonam a liberdade porque ajulgam perigosa; os outros,
porque a têm por impossível” .
A eles responde Tocqueville: “ Não ignoro que muitos dos meus contemporâ­
neos julgam que os povos jamais são aqui na terra senhores de si mesmos, e que
obedecem necessariamente a que não sei que força invencível e inteligente que nasce
dos acontecimentos anteriores, da raça, do solo ou do clima. Tudo isso são doutrinas
falsas e covardes, que jamais poderiam produzir senão homens fracos e nações
pusilânimes; a Providência não criou o gênero humano nem inteiramente indepen­
dente nem completamente escravo. É verdade que traça em redor de cada homem
um círculo fatal, de onde ele não pode sair; mas, dentro dos seus amplos limites, o
homem é poderoso e livre, assim também os povos”.
Pois, “ o espírito humano se desenvolve pelos pequenos esforços conjugados de
todos os homens e não pelo poderoso impulso de alguns deles. Há menos perfeição,-
porém mais fecundidade nas obras. Todos os laços de raça, classe e pátria se
afrouxam, aperta-se o grande laço da humanidade” . “A igualdade é menos elevada,
talvez; é, porém, mais justa e sua justiça faz a sua grandeza e a sua beleza.”
Não temos, enfim, de temer, com Berlin ou Constant, que essa igualdade mate a
liberdade, ecoa a voz de Tocqueville confirmada pelos momentos da história: “As
nações de hoje em dia não poderiam impedir que as condições fossem iguais em seu
seio; mas depende delas que a igualdade as conduza à servidão ou à liberdade, às
luzes ou à barbárie, à prosperidade ou às misérias” .
Daí as últimas palavras de Tocqueville, dirigidas às almas suas irmãs: “Tenha­
mos, pois, do futuro, esse temor salutar, que leva a velar e combater, e não essa
espécie de frouxo e ocioso terror que abate os corações e os enfraquece”3.
Recorrendo assim a Tocqueville, tão aceito na praxis política das democracias de
massas no Ocidente e Japão e Oceania por ele influenciados, e não só nos
doutrinários, talvez possamos exorcizar, um pouco, o temor crônico das elites
tradicionais brasileiras por qualquer tipo de igualitarismo, o que as costuma incluir
entre aqueles sempre o temendo, a pretexto do medo da anarquia.
Estas reflexões nos levam a outro livro fundamental para a compreensão do
pensamento social de Miguel Reale: Pluralismo e liberdade, onde chega a algumas
conclusões aproximadas, mas sem recurso a Marx, o que não o impede de ter pago
também o seu tributo de admiração juvenil por ele.
Ali se revela, por inteiro, o historicismo axiológico de Reale, se pudermos definir
numa só expressão a filosofia que permeia o seu ser político e o seu dever-ser jurídico.
52 Miguel Reale na UnB
O homem ou, melhor dito, os homens, projetam-se historicamente em Reale
como um valor absoluto. Recorrendo a Ugo Spirito, Reale admite que “é a falta de
certeza do absoluto que dá origem à instância da liberdade,,, pois, nas suas palavras:
“A fenomenologia dos valores convence-nos, em verdade, da impossibilidade da
referida identificação absoluta entre valor e liberdade no âmbito do processo
espiritual, visto como o valor não só implica no seu contrário, como transcende cada
experiência axiológica particular, cada ato que livremente se constitua: a polaridade
liberdade-valor representa, no meu entender, a vida mesma do espírito, sendo a
condição de seu processus”.
O abandono da tentação marxista por Reale não o levou, contudo, a aceitar o
“ comunismo paralelo” de ambos na expressão de Ugo Spirito, através da “ identifi­
cação entre o indivíduo e o Estado, que Gentile já apresentara como o princípio
essencial do ordenamento corporativo fascista”. Ao ver do Reale da maturidade:
“ Nessa visão pessimista do homem contemporâneo, a democracia e a luta de classe
representam um binômio incindível, só cessando a primeira com o extinguir-se da
outra, o que pode ocorrer tanto pela violência como pelo desaparecimento
progressivo dos privilégios dos ricos, sendo certo, porém, de qualquer forma, que
prevalece um novo conceito de indivíduo como unidade fracionária, resolvendo-se o
problema do homem no problema do todo, como participação funcional segundo
critérios de competência” .
Ao longo do processo de maturação, Miguel Reale passou a querer integrar as
inevitáveis contradições da sociedade. Suas posições chegam a aproximá-lo, por
exemplo, de um Ralf Dahrendorf, quando reconhece: “ Razões para contrastes
existirão sempre entre os grupos, e não serão menos fortes, no futuro, os motivos das
contendas travadas perante os órgãos dajustiça do que os que ainda induzem, hoje
em dia, operários e industriais a declararem a greve ou o lock-out como solução dos
conflitos coletivos” .
“ O que se dá não é, pois, o desaparecimento das lutas - ideal impossível e
incompatível com o progresso, - mas, como já disse, a institucionalização progressiva
das lutas e a atuação cada vez màis jurídica do poder.”
“ Donde a conclusão que põe à mostra a diferença fundamental existente entre
dois tipos de vida e de Estado: o Estado democrático é necessariamente um Estado
plural, próprio das ‘sociedades abertas’, fundadas no pressuposto da legitimidade de
múltiplos pontos de vista, no respeito à autonomia e à coexistência pacífica de
diversos e até mesmo antinômicos centros de interesses pessoais e grupalistas, dando
origem a distintas concepções políticas abertas no leque projetante e sempre
renovado das correntes de opinião, sempre suscetíveis de mútuo e livre entendi­
mento e de pacífica coexistência no plano d a praxis.”
Reale apresenta então o “real presente” como o mínimo denominador comum
viabilizador do pluralismo democrático, apresentando-o “como forma essencial do
O Pensamento Social de Miguel Reale 53
futuro”, sinônitna de ideal contraposto à utopia, “ um modo de fugir do real presente,
ao qual é contraposta a imagem de uma ordem passada ou futura, que a imaginação
constrói, para os mais variados fins e os mais diversos motivos” .
O realismo recomendaria o desapego à utopia, em nome da “ possibilidade de
escolha autônoma, nos limites objetivos máximos consentidos pelo processo
histórico”, “ daqueles desideratos históricos que os homens estão em condições
efetivas de realizar”4.
Perspectiva antiutópica também seguida pelo mais que sociólogo, filósofo social
conflituahsta oposto ao contratualismo, Dahrendorf, embora admitindo que “aquele
que perdeu sua imagem de futuro abandonou sua vida”, necessitando de “ um
sentido de direção que permanece aberto às dúvidas de cada um e às dos outros, mas
é guiado por uma imagem do futuro, a da meta a ser buscada”5.
É que Miguel Reale ainda está marcado pelo “sentido de totalidade e de
concreção, marcante na ação dos verdadeiros estadistas”, reconhecendo o Estado
como “ a instituição por excelência, a que deve reter a maior força, na medida e
enquanto personifica o querer do grupo estadeado na objetividade superior das leis e
das estruturas técnico-administrativas” . Pois, ao seu ver: “ Quando se perde o ‘senso
do Estado’ é sinal que já se perdeu o senso da história, isto é, a consciência daquele
sistema hierárquico de valores que constitui a fisionomia espiritual de uma época,
assinalando o rumo a ser trilhado pelos povos na renovada faina de seu aperfei­
çoamento material e ético”6.
São palavras que ecoam, trinta anos depois, O Estado moderno de 1934...
Cabe, então, aqui menos uma digressão que um aprofundamento das raízes da
sua filosofia social desde os tempos do integralismo.
Hoje se costuma repelir sumariamente o integralismo, sem maiores exames,
como se algumas das suas inovações não merecessem consideração.
Na década de 1930, buscava-se ardentemente, no Brasil e noutros lugares, um
terceiro caminho que fosse tão nacional, que chegou a ser classificado de nacionalista,
entre um liberalismo formalista, dependente econômica e intelectualmente das
matrizes capitalistas, e um leninismo já então se stalinizando com todas suas seqüelas
de abusos contra o marxismo. A geração, atingida em cheio pelo impasse, voltou-se
ao que lhe parecia menos um corporativismo também artigo de exportação de certas
potências européias, que para uma descoberta dionisiacamente política dos valores
culturais brasileiros.
Era a época da APRA (“Asociación Peruana Revolucionária”) e doutros
movimentos nacionalistas, herdeiros e antecessores terceiromundistas dos chamados
54 Miguel Reale na UnB
“ jovens turcos” de Kemal Ataturk, por um lado, e de Gamai Abdel Nasser e doutros
no futuro. O nacionalismo passava a ver-se convocado à arena política das próprias
nações periféricas, traduzindo, à sua linguagem e interesses, o apelo patriótico
unificador de Fichte. Na geração seguinte, incorporando a dimensão econômica
desenvolvimentista.
Dissemos “ movimento” no sentido contemporâneo de Ciência Política: no de
“ panidos-movimentos”, em vez de partidos coexistentes; daí outros tantos, sob o
nome principalmente de “ Frentes”, nos dias atuais.
Foi por esta opção culturalista política, que se inclinou grande parte da geração de
classe média na década de 1930, conforme o demonstrou Hélgio Trindade7. Dentro
dela uma figura-símbolo da transição entre os dois nacionalismos, elitista anterior à
Segunda Guerra Mundial e populista em seguida: Francisco Clementino San Tiago
Dantas.
Pois não esqueçamos, nem subestimemos, o peso concedido à religião naquele
contexto cultural-nacional. Alceu Amoroso Lima, já então o maior líder intelectual
católico, recomendava aos jovens que entrassem na Ação Integralista Brasileira8,
tanto quanto os “aiatolás” e “ muezzins” de hoje apontam caminhos políticos aos
xiitas e sunitas.
Esta preocupação pelo “ terceiro caminho” permaneceria no pensamento social
de Miguel Reale, vinculado à transcendência espiritual, mais que apenas filosófica.
Neles ressoam ecos de Blake: “ Less than ali cannot satysfy man”. É o valor
absoluto transcendente da pessoa humana.
Isto explica sua angústia pela “ trágica liberdade do ‘homem-massa’, do ‘homem-
raça’\ do ‘homem-nação’, ou do ‘homem-classe de nossos dias, ditada pelos
imperativos de uma ‘ideologia’ qualquer, que, como um sistema cerrado e
intolerante de idéias, acaba dominando os corações e as inteligências, com o sacrifício
dos valores supremos da pessoa humana”9.
O culturalismo, filosófico e político de Miguel Reale, está impregnado por uma
das vertentes do personalismo cristão.
Poderíamos discuti-lo ainda muito, tanta é a sua riqueza intelectual. Mas
preferimos fazer-lhe apenas alguns contrapontos neoliberais...
Daí determo-nos no patamar da sua Filosofia do Direito, “ clef de voûte”,
culminação do seu pensamento. Outros dela falarão. Aqui fique só o registro do
reconhecimento do Direito, e da sua Filosofia, como a síntese final do pensamento
social de Miguel Reale.
O Pensamento Social de Miguel Reale 55

Ali o cuhuralismo surge como a segunda, cronologicamente, grande corrente


jusfilosófica no Brasil, ao lado do fisicalismo de Pontes de Miranda desde sua
Introdução à Sociologia Geral, em 1924.
O que Pontes tentava em “ esprit de géométrie”, para usarmos uma expressão de
Pascal, Reale busca em “esprit de finesse”.
Nicolai Hartmann, oincorporadordafenomenologiaaxiológicaaoculturalismo
de Miguel Reale, foi colega de quarto de Ortega y Gasset na Universidade de
Marburgo. Ambos tinham vinte e dois ou vinte e três anos. Dele relata Ortega, no seu
Prólogo para alemanes, que costumava tocar violoncelo diante do companheiro
deslumbrado com sua “golondrina melódica” . Então parava e dizia-lhe: “ Usted,
querido Ortega, tiene altruismo intelectual...” 10.
É o que também podemos proclamar ao grande animador da Filosofia no Brasil,
com seus admiráveis instituto e revista.
NOTAS BIBLIOGRÁFICAS
1. Apud Horizontes do Direito e da História, São Paulo, Edição Saraiva, 1956, pp. 18-22.
2. “Two Concepts of Liberty” , in Four Essays on Liberty, Oxford University Press, 1971,
(conferência pronunciada em 1958), pp. 131, 134 e 125.
3. De la démocratie en Amérique, trad. bras. A democracia na América, Belo Horizonte,
Editora Itatiaia, 1977, pp. 13, 14, 540-542 e 539.
4. Pluralismo e Liberdade, São Paulo, Edição Saraiva, 1963, pp. 41, 42, 166, 167, 223,
243, 244, 172, 171 e 143.
5. A nova liberdade (trad. do ingl. The New Liberty, Londres, 1975), Editora Universidade
de Brasília, 1979, p. 63.
6. Pluralismo e liberdade, ob. cit., pp. 201 e 247.
7. Integralismo (O fascismo brasileiro na década de 30), São Paulo, Difusão Européia do
Livro, 2.a ed., 1979, passim.
8. Indicações políticas (Da Revolução à Constituição), Civilização Brasileira, Rio de Janeiro,
1936, pp. 187-220.
9. Horizontes do Direito e da História, ob. cit., p. 44.
10. Prólogo para alemanes, Madrid, Taurus Ediciones, 1958, pp. 19 e 20
2.2. DIREITO E PODER NA REFLEXÃO DE MIGUEL REALE
Celso Lafer

No prefácio à primeira edição de sua Filosofia do Direito, que é de 1953, Miguel


Reale, ao reafirmar a sua posição - expressa em Fundamentos do Direito, que data de
1940 - de que o Direito não é uma pura abstração lógica ou ética, destacada da
experiência social, reiterou, como lema, o seu propósito juvenil de ”teorizar a vida e
viver a teoria na unidade indissolúvel do pensamento e da ação”1.
Sempre me causou impacto esta formulação de propósito que permeia todo o
discurso de Miguel Reale, tanto que foi esse o tema da oração com a qual o saudei, no
segundo semestre de 1964, em nome de meus colegas - bacharelandos daquele ano
da Faculdade de Direito da USP- quando ele recebeu o prêmio “ Moinho Santista”,
na categoria de Ciências Jurídicas. Naquela ocasião, numa quadra de intensos
debates políticos, e procurando transcender a agenda do debate ideológico, tentei
realçar a importância de um esforço que buscava amalgamar logos epragma, e que não
recusava enfrentar, no plano substantivo, as contradições entre pensamento e ação2.
Dezessete anos depois, nesta semana dedicada à obra de Miguel Reale, em boa hora
promovida pela Universidade de,Brasília, volto ao tema, que também, por afinidade
intelectual e inquietação pessoal, continua a me seduzir.
Existe na tradição ocidental, como observou Hannah Arendt, um antagonismo
latente entre o “eu que pensa” e o “eu que quer”. O tonus do eupensante é a serenidade, a
tranquillitas animae de Leibniz, que provém da acquiescentia in se ipso spinoziana,
alcançável por meio de um entendimento com a ordem do mundo. O tonus do eu que
quer, ao contrário, é a tensão, provocada pela desordem das coisas, tensão que só é
superável pela ação, pois a força da vontade só se revela no projeto, voltado para o
futuro, uma vez que a vontade, quando quer retrospectivamente, percebe a sua
impotência3.
Em Miguel Reale, o tradicional antagonismo entre o tonus do eupensante edo eu que
quer - que motivou a célebre afirmação de Marx, de que era necessário não apenas a
interpretação do mundo, mas também a sua transformação - foi fecundo, e
sobretudo enriquecedor, de sua reflexão. Acredito que isto se deve, entre outras
coisas, a duas que me parecem fundamentais: a primeira é uma inquietação
permanente com as possibilidades do conhecimento, que em Reale se traduziu,
enquanto leitor de Kant, na presença da razão, enquanto idéia regulativa, ainda que
histórica e socialmente condicionada. A segunda radica-se numa atitude dialética,
voltada para a percepção dos contrários e dos contraditórios, que para ele se
58 Miguel Reale na UnB
co-implicam numa relação de mútua complementariedade. Esta atitude dialética
permitiu a Miguel Reale lidar com as ambigüidades da ação, incorporando-as na sua
reflexão - reflexão motivada por sincero e kantiano desejo de conhecimento. Daí um
sempre presente parar para pensar, aberto para o mundo que nos cerca e preocupado
com o significado das coisas.

Esta combinatória de reflexão e ação, produto de uma inquietação básica,


fundamentadora da personalidade de Miguel Reale, teve um efeito singular na sua
obra e na qualidade de seu ensino, que ora desejo realçar.
Uma vida sem palavra e sem ação, argumenta Hannah Arendt, é uma vida morta
para o mundo, pois deixa de ser uma vida vivida entre os homens. Com efeito, é
através da palavra e da kção que os homens se distinguem, ao invés de serem apenas
distintos uns dos outros, pois o ato humano primordial está na resposta à pergunta:
“ Quem sois?”. A palavra e a ação desvendam o ser concreto, constituindo a
modalidade específica por meio da qual os seres humanos aparecem uns em relação
aos outros, não como objetos fisicos, mas enquanto seres humanos. A palavra e a ação
estão, por isso mesmo, intimamente relacionadas, existindo também uma evidente
afinidade entre a palavra enquanto ação de falar e a revelação. Segundo Platão, na
leitura de Hannah Arendt, a ação de falar, lexis- adere mais à verdade do que apraxisA,
no desvendamento do ser, que surge no espaço da intersubjetividade.
Eu creio que o espaço de intersubjetividade privilegiado da palavra e da ação de
Miguel Reale foi a grande sala de aula. Foi nela que, durante 40 anos, ele revelou a sua
verdade, qual seja, a de que a Filosofia não é um simples “amor à sabedoria”, mas sim,
como ele diz no fecho de Experiência e Cultura, seguindo a lição de D ante Alighieri,
“uno amoroso uso de sapienza”5.
No magistério de Miguel Reale o que impressionou a minha geração, bem como
as que nos antecederam e nos sucederam no Largo São Francisco, foi precisamente a
sinceridade de sua “amorosa experiência de sabedoria” . Daí a unanimidade do
respeito que o cercou, durante todos estes anos, independentemente da natural
divergência de posturas e de posições provocadas pela trajetória de uma vida pública
complexa e mui ti facetada. No espaço da sala de aula o que surgia de sua ação de falar
- de sua/exw - era um dizer brilhante e forte, porque hauria a sua autenticidade numa
amorosa aventura intelectual, na qual o empenho da sabedoria sempre transcendeu a
finitude das contingências e das contradições da travessia, na dignidade do nuncstans
de seu pensamento.
É da dignidade desta postura que emergiu a autoridade do magistério de Miguel
Reale na Faculdade de Direito da USP. Autoridade, como se sabe, envolve um
acatamento que se situa no campo da hierarquia, mas que não comporta o emprego
da força, já que se baseia no respeito. É por isso mesmo complexo o fundamento
Direito e Poder na Reflexão de Miguel Reale 59
deste tipo de relação assimétrica, cujo sentido, no entanto, pode ser captado pela
origem etimológica da palavra autoridade, que deriva do verbo latino augere -
aumentar, acrescentar. Com efeito, o que os alunos sentiam face ao dizer de Miguel
Reale, na grandé sala de aula - que só funciona bem como espaço intersubjetivo
quando um professor tem autoridade - é que, de turma para turma, de geração para
geração acadêmica, ele acrescentava serenamente à universalidade do seu pensar o
produto de sua proposta e de sua tensão particular de “teorizara vida e vivera teoria na
unidade indissolúvel do pensamento e da ação”. É por isso que ele se converteu - e este foi o
melhor resultado do seu propósito juvenil - num estadista da cultura, que soube
inclusive, quando reitor da USP, preservar a sua universidade como um espaço
aberto do pensamento, numa quadra da política brasileira pós-1964 particularmente
obscurantista para a cultura e a sociedade civil.
A palavra estadista origina-se do verbo stare - estar, estar de pé, estar firme. Creio
que nenhum tema seria mais esclarecedor da interação fecunda entre pensamento e
ação na reflexão de Miguel Reale - e, portanto, das razões pelas quais a sua obra está
firme e de pé - do que o tema das relações entre Direito e Poder. Com efeito, nada
mais central para quem está preocupado com a ação do que o poder, e nada mais
pertinente, no campo da Filosofia do Direito, enquanto objeto de investigação, do
interrelacionamento entre a serenidade do pensamento e a tensão da vontade,
voltada para a ação, do que as contradições e ambigüidades que caracterizam as
relações entre Direito e Poder na experiência jurídica. Daí a razão da escolha do
objeto deste trabalho - Direito e Poder na reflexão de Miguel Reale - tema com o
qual sinto ter especial afinidade, pois, como Reale, estou igualmente convencido,
depois de alguns anos de estudo e ensino de Direito Internacional Público, de que:
“Estão destinados a insucesso todas as doutrinas que procuram eliminar do Direito o conceito de
“poder”, ou então tentam reduzir o poder a uma “categoria jurídica pura”i}.
Importância do tema no pensamento jurídico-político moderno
O complexo das relações entre Direito e Poder é um dos grandes temas da
reflexão jurídico-política. No mundo moderno essa reflexão tem ligações muito
estreitas com o aparecimento do Estado, que transformou o papel do Direito. De fato,
o Direito deixou de ser, como era na Idade Média, um quadro de referências da
política e passou a ser, com a sua crescente positivação pelo Estado - razão explicativa
das doutrinas jurídicas estatalistas - um instrumento de governo7.
Daí a proximidade entre Direito e Estado e a nova importância da dicotomia
Direito Público x Direito Privado, calcada ha noção de poder. Daí também a razão
pela qual os juristas e jusfilósofos, que vêm pensando a realidade jurídica na
perspectiva do Direito Público, tenham sido tomados pela importância da existência
do Estado como instituição e como poder. Na ótica do Direito o Estado, como
instituição e organização, significa, em última instância, um conjunto de normas (o
ordenamento). Estas normas estabelecem competências que permitem o exercício do
60 Miguel Reale na UnB
poder, inclusive o de criar e aplicar normas jurídicas8. De Hobbes a Rousseau, de
Jhering, Austin a Jellineck, de Santi-Romano a Kelsen, esta é uma linha importante
nas reflexões jusfilosóficas.
No percurso intelectual de Miguel Reale, a primeira obra de maior ambição
teórica é a Teoria do Direito e do Estado, cuja primeira edição é de 1940. Como o próprio
título indica, a linha acima mencionada foi, desde o primeiro momento, uma
preocupação de Miguel Reale, preocupação que teve biograficamente origem na sua
participação nos embates políticos da década de 30 e que, naturalmente, se
aprofundou, posteriormente, em função de seu contacto e de sua experiência com os
problemas de governo.
Não é minha intenção examinar, neste trabalho, a obra de Reale que abarca os
anos 30 e, portanto, a sua fase integralista. Diria apenas que esses trabalhos não
podem ser ignorados, inclusive no plano substantivo, pois a análise do integralismo
não se esgota na crítica intelectual e na resistência política a um movimento
autoritário, de grande impacto na vida nacional. Com efeito, e como salientou
Antônio Cândido, ao refledr sobre o clima intelectual da década de 30, a distância do
tempo mostra que, para vários jovens, o integralismo foi mais do que a negatividade
de sua dimensão política. t(Foi um tipo de interesse fecundo pelas coisas brasileiras, uma
tentativa de substituir a platibanda liberalóide por alguma coisa mais viva”^.
Esta “coisa mais viva” amadurece, positivamente, em Reale, na sua obra, que se
inicia em 1940, com a publicação dos já mencionados Teoria do Direito e do Estado e
Fundamentos do Direito. Daí a razão da escolha do universo a ser estudado: a sua obra
madura. Na análise, que a seguir proponho, meu objetivo é apresentar algumas notas
sobre as suas reflexões a propósito das relações entre Estado, Direito e Poder na sua
obra madura, tema que, como uma inquietação constante, fruto de seu propósito
juvenil de " teorizar a vida e viver a teoria na unidade indissolúvel do pensamento e da ação",
permeia toda a sua elocubração. A minha leitura tem um cunho metodológico que se
estende pelas seguintes passagens: na primeira examino a sua postura filosófica; a
seguir tento esclarecer como essa postura se desdobra numa teoria geral do Direito,
seja em termos de fontes, seja em termos de hermenêutica; depois discuto o processo
de institucionalização do poder mostrando qual é, no mundo contemporâneo,
segundo Reale, o papel axiológico e sociológico da legalidade, e, finalmente, concluo
com um exame do significado de sua contribuição, no contexto atual, aos estudos
sobre Direito, Estado e Poder.
Postura filosófica
A Filosofia do Direito, bem como Experiência e Cultura, de Miguel Reale, são
propostas voltadas para o problema do conhecimento e da experiência, para o
significado e o alcance histórico-temporal do ato gnoseológico, resultante do
entrelaçamento entre o sujeito cognoscente e o objeto cognoscível. O seu tridimen-
Direito e Poder na Reflexão de Miguel Reale 61

sionalismo específico, no campo do Direito e do Estado, por isso mesmo, contém


uma postura epistemológica - a ontognoseologia jurídica. Esta o leva a ver o
fenômeno jurídico como objetivamente tridimensional, na unidade integrante de
seus três elementos: fato, valor e norma10. Desta postura derivam conseqüências
relevantes na apreciação de cada um desses elementos no estudo das relações entre o
Direito e o Poder.
Ofato, para Miguel Reale- como aponta Renato Czerna—não é um dado externo
indiscutível e puramente empírico. A correlação funcional sujeito/objeto realça a
contribuição do sujeito na constituição do objeto. Esta contribuição resulta de uma
atitude crítica, da qual provém uma concepção funcional do fato em movimento. A
rejeição de uma facticidade acrítica esclarece porque ele não se filia às correntes do
“ realismo político”, que reduzem O Direito e o Estado apenas a uma expressão de
força - a força de uma decisão (decisionismo) - vendo o tema das relações entre
Direito e Poder apenas à luz da efetividade das normas11.
Por outro lado, na perspectiva do valor, cabe dizer que o ato do conhecimento,
para Miguel Reale, não é puramente lógico-formal, mas também estimativo, uma vez
que existe um potencial axiológico na própria estrutura do conhecimento. Os valores
deste potencial são históricos, tendo uma objetividade proveniente da totalidade do
processo histórico que os põe em movimento. São características dos valores, para
Miguel Reale, a sua realizabilidade na história e a sua inexauribilidade derivada da
abertura, a cada momento histórico particular, ao pluralismo das possibilidades de
expressão da atividade hum ana12. É o historicismo axiológico que explica, na obra de
Reale, a razão pela qual ele não vê, no mundo atual, “poder duradouro que não se baseie
sobre o consenso dos governados”, posto que os valores fundantes da democracia provêm
de “um processo histórico incessante de integração de valores de convivência”, composto de
vários legados.
Sãoeles: I) o legado da Greda, ou seja, a “ liberdade de pensar como pluralidade de
pensar”; II) o de Roma, que se traduz na consciência dos valores autônomos do
Direito como algo mais amplo do que a consciência da lei. Sem esta consciência dos
valores autônomos do Direito, que permite afastar “a idéia do arbítrio”, observa Reale,
“poderá existir ordem e disciplina, mas não existirá dem ocracia III) o legado do cristianismo,
representado pelo reconhecimento da igualdade da natureza humana independen­
temente dos particularismos dos invólucros políticos e sociais da cidadania; IV) o
legado do liberalismo, ou seja, a noção de Estado de Direito, na qual, graças ao
constitucionalismo, a prudente distribuição de competências no âmbito do Estado
enseja a fiscalização dos atos do Executivo, que evita o abuso do poder; e, finalmente,
V) o legado do socialismo, do qual se origina uma exigência de igualdade perante a vida
e a cultura, entendida como direito reconhecido a cada homem de participar do
“ bem-estar social”, daquilo que a espécie humana, num processo coletivo, vai
acumulando através do tempo13.
62 Miguel Reale na UnB
São estas constantes axiológicas no processo de integração dos valores de
convivência - verdadeiro fio subjacente à reflexão de Miguel Reale sobre ofundamento
das relações entre Direito e Poder - que o levam a tratar do assunto tendo como
horizonte a legitimidade do poder e a justiça da norma.
Finalmente, quanto à norma, esta é apreciada lato sensu como uma expressão
dialética que integra, em cada situação histórica, de maneira mais ou menos
duradoura, mas nunca definitiva, fato e valor. Essa integração envolve uma escolha: a
opção por um caminho dentre múltiplos caminhos possíveis. Tal escolha, que resulta
da necessidade de um ato hierárquico de gestão, no processo de elaboração
normativa, dá-se através da interferência decisória do poder14.
Nas palavras de Reale, " não surge norma jurídica sem ato decisório, mas também inexiste
ato decisório absoluto, não condicionado, em maior ou menor grau, por um quadro de possibilidades
normativas. Se será exagero afirmar-se que o poder não passa de um momento subordinado ao
processo de objetivação normativa, não resta dúvida que não há poder que não seja condicionado pelo
(íplexo f ático-axiológico” de cada campo de relações sociais” 15. Este processo, no qual a
estimativa de realizabilidade dos valores revela o Reale preocupado com os limites
possíveis da ação em cada situação particular, e a consciência da inexauribilidade dos
valores o Reale pensador ciente da finitude do homem concreto diante da História,
evidencia-se, na experiência do Direito, num momento paradigmático: o da
nomogênese jurídica. Por essa razão, pode-se dizer que a correlação essencial entre
Direito e Poder transita inicialmente, na reflexão de Miguel Reale, em termos de sua
teoria geral do Direito, por uma análise das fontes.
Teoria Geral do Direito
a) Fontes
O tema das fontes do Direito é um dos problemas cruciais da reflexão jurídica.
Em 0 Direito como Experiência, Miguel Reale propõe a substituição da teoria das fontes
pela dos modelos jurídicos, tendo em vista a sua concepção tridimensional do Direito
como o produto dialético inseparável do fato, do valor e da norma. Nas teorias
clássicas das fontes formais e materiais, aponta ele, existe uma visão excessivamente
comportamentalizada de fato, valor e norma, e também uma ótica retrospectiva e não
prospectiva do Direito - que não capta as necessidades de mudança do Direito em
sociedades em permanente transformação, como são as sociedades modernas e que
não atende também, poder-se-ia dizer, à inquieta vontade de ação inerente à
proposta de vida de Miguel Reale.
Os modelos jurídicos estruturam-se, de acordo com Miguel Reale, graças à
integração d zfatos e valores, segundo normas postas em virtude de um ato de escolha.
Este ato de escolha exprime uma função hierárquica de gestão da sociedade,
necessária dada a multiplicidade possível de caminhos de integração, uma vez que
Direito e Poder na Reflexão de Miguel Reale 63
inexiste verdade única, transpessoal e definitiva. O ato de escolha e de gestão, que
impede a paralisia decisória e a entropia e permite a elaboração normativa, pode
resultar de opções costumeiras, da vontade do legislador, da decisão do juiz ou de
estipulações fundadas na autonomia da vontade16. Esse ato de escolha é ontologi-
camente um momento dè poder, na experiência jurídica.
Com efeito, para ser dotada de validade objetiva, isto é, de efetividade para
outrém (heteronomia), a norma, enquanto diretriz de conduta, requer - como se
evidência com clareza na experiência do Direito Internacional - o poder, ainda que
descentralizado, como categoria de realizabilidade do Direito17.
Os modelos jurídicos, assim elaborados por meio da interferência decisória do
poder, têm distintos índices de obrigatoriedade e áreas diversificadas de incidência. A
sua positividade está correlacionada a uma geração de poder. A soberania, como o poder
de declarar, em última instância, a positividade do Direito, significa para Miguel
Reale que o Estado, no mundo moderno, é o centro geométrico' da positividade
jurídica, sem prejuízo do pluralismo dos modelos jurídicos18. Desta maneira, na sua
reflexão sobre as fontes do Direito, que leva em consideração, sem dúvida, a sua
prática de advogado militante, Reale dá conta da multiplicidade e da eventual e
ambígua incoerência dos modelos jurídicos que a experiência jurídica vai elaborando
em função de vários fatores. Tais modelos incluem os elaborados pelo Direito das
Gentes, provenientes da necessidade de mútua colaboração dos Estados no âmbito
internacional, e cuja positividade advém tanto da permanência da reciprocidade dos
interesses que os motivaram, quanto da estruturação das relações entre ordem e
poder, em cada momento histórico da vida da sociedade internacional.
Abrangem também os modelos derivados da estruturação do poder privado, seja
os de alcance transnacional - como, por exemplo, a nova “lex mercatoria” da
empresa multinacional, seja os de alcance transnacional e nacional, como os de poder
de controle nas sociedades anônimas, tão bem estudados por Fábio Konder
Comparato. Incluem, igualmente os que resultam do desdobramento da ação
intervencionista do Estado. Estes últimos, Miguel Reale examina-os em estudo
recente, sugestivamente intitulado “ O ‘Duplo’ do Estado” , no qual aponta os riscos
e as contradições de uma dispersão na ação governamental que ameaça o Estado,
inclusive o brasileiro, enquanto centro geométrico da positividade jurídica19.
A norma posta pela interferência decisória do poder converte-se num a intenciona­
lidade objetivada, pois, para Miguel Reale, “a normajurídica é sempre uma medida racional ou
teleológica de conduta ou de organização”. A ação objetivante do poder, no campo do
Direito20, requer um exame do ato interpretativo e do poder, posto que, para Reale,
“à luz de um normativismo concreto, ato normativo e ato interpretativo são elementos que se co-
implicam e se integram, não sepodendo, senão por abstração e como linha de orientação da pesquisa,
separar a regra e “a situação regulada”21.
64 Miguel Reale na UnB

b) Hermenêutica
Toda época, aponta Miguel Reale, fixa as normas e os limites de sua exegese do
Direito em função de valores culturais prevalecentes. É por essa razão que, por
exemplo, no século XIX, à concepção do Estado Liberal não-intervencionista
corresponde uma compreensão restrita e negativa da hermenêutica jurídica, com*
preensão essa substituída, no século atual, pelas exigências de uma nova hermenêu­
tica, intervencionista como o Estado no século XX.
No mundo contemporâneo, as múltiplas e complexas intencionalidades objeti­
vadas nas normas, postas pelo ato decisório do poder, estão sempre na dependência
do ato interpretativo. Com efeito, é na situação específica regulada pela interpretação
que se verifica o sentido concreto de que se reveste uma totalidade de sentidos
possíveis, compreendidos nos diversos modelos jurídicos. Miguel Reale examina
algumas das notas distintivas da hermenêutica contemporânea, por ele denominada
interpretação estrutural. Para os propósitos deste trabalho, fixo-me apenas em duas:
I) os limites objetivos do processo hermenêutico, pois a atividade interpretativa tem a sua
liberdade limitada pela fidelidade às intencionalidades objetivadas da norma; e II) a
natureza racional do ato interpretativo concreto, pois os modelos jurídicos são entidades
lógicas, válidas segundo exigências racionais, ainda que estas, na experiência furídica,
sejam as do razoável, que leva em conta fatos e valores22.
As duas notas apontadas ligam-se à dimensão objetivante do poder no campo do
Direito contemporâneo, que visa a reduzir o arbítrio, inclusive o do intérprete, em
obediência ao princípio de racionalidade legal. Este, como observou Max Weber, é o
tipo ideal de legitimidade que permeia a evolução dos padrões de autoridade no
mundo moderno23. Isto, em síntese, significa que o intérprete não pode apenas
afirmar, mas deve igualmente justificar a sua decisão, prestando contas às partes e à
comunidade da razoabilidade da sua tomada de decisão24.
A dimensão objetivante do poder, colocada ao intérprete pela norma posta, não
esgota, no entanto, a análise da relação entre Direito e Poder no momento da
aplicação normativa. Toda norma, no momento em que é aplicada, sempre
comporta mais de uma interpretação. O ato decisório da escolha e da opção por uma
interpretação, ainda que fundamentado racionalmente e balizado pelos limites da
hermenêutica estrutural, é também um ato de poder.
A positividade de uma interpretação, assim como a positividade da norma, estão
ligadas a uma gradação de poder. E por essa razão que a solução judicial de
controvérsias no plano internacional é complexa, dada a distribuição individual de
poder entre os Estados, e é por isso que, no âmbito interno, a prestação jurisdicional é
uma dimensão da soberania. O Estado, ao avocar a si o poder de declarar em última
instância a positividade de uma interpretação (por exemplo: por intermédio do
Supremo Tribunal Federal), busca manter-se como o centro geométrico da positivi-
Direito e Poder na Reflexão de Miguél Reale 65

dade jurídica. Naturalmente, isto não exclui a possível pluralidade de interpretações


e aplicações normativas previstas nos modelos jurídicos e admitidas pelo ordena­
mento jurídico estatal ou internacional, no contexto do “ plexo fático-axiológico” .
Esclareceria, neste sentido, que a dimensão ontológica da relação entre Direito e
Poder, tanto no ato normativo, quanto no interpretativo, pode ser adequadamente
apreendida por uma rápida referência às características do discurso jurídico, tal como
as vem analisando Tércio Sampaio Ferraz Jr.
O discurso da experiência jurídica tem como objeto um dubium conflitivo. Este
dubium é dialógico, tanto no momento que antecede a nomogênese jurídica - que são
as diversas propostas normativas - quanto no momento que antecede a sentença-
que são, como se pode entender, as alegações das panes em virtude do princípio do
contraditório. O discurso, no entanto, converte-se necessariamente num monólogo
pela interferência decisória do poder. Esta é a maneira pela qual o dubium , que é
objeto do discurso jurídico, se converte num certum: na nomogênese jurídica, através
da certeza da norma posta, caminho escolhido entre muitas propostas normativas
possíveis, dadas, em cada circunstância histórica, pelo “ plexo fático-axiológico”; na
aplicação da norma, pela sentença revestida de autoridade de coisa julgada, que, no
espectro das intencionalidades objetivadas pelas normas postas, representa também
uma interpretação entre muitas possíveis, dadas pelo “ plexo fático-axiológico” . De
fato, é da natureza do discurso jurídico pôr fim a um conflito, solucionando-o não
por meio do caminho de mão única da evidência, que inexiste no campo das ciências
humanas25 mas sim terminarido-o, num dado momento, através de uma decisão,
seja sobre a norma que deve ser posta, seja sobre a sua interpretação. Essa decisão,
para ter validade objetiva “ erga omnes” exige, ontologicamente, o poder como
categoria de sua realizabilidade26.
O papel da legalidade e da legitimidade
Estes apontamentos sobre as relações entre Direito e Poder, na reflexão de Miguel
Reale, não ficariam adequadamente balizados em seus contornos se referência não
fosse feita também à dimensão deontológica do problema, ou seja, à aspiração de que
o poder, no mundo contemporâneo, subordine-se ào Direito. Efetivamente, no jogo
da dialética de implicação e polaridade, que governa a reflexão de Miguel Reale, valor
e realidade pressupõem-se em relação de mútua complementariedade. Daí a
importância de um exame da imbricação entre o plano ontológico e o sociológico (o
poder como categoria de realizabilidade do Direito) e o plano deontológico, o qual,
no caso, para os efeitos deste trabalho, poderia ser resumido em torno da
legitimidade da aspiração ao Estado de Direito27.
Desde a Teoria do Direito e do Estado, vem Miguel Reale se preocupando com os
processos de institucionalização progressiva do poder. Uma das dimensões des­
se processo é a sua jurisfação, ou seja, a juridicidade progressiva de que se reveste o
66 Miguel Reale na UnB

poder, no mundo contemporâneo28. A jurisfação, que não anula evidentemente o


poder, pode ser analisada recorrendo-se ao que Kelsen chamou de princípio
dinâmico do Direito, em virtude do qual as normas são conhecidas, identificadas e
qualificadas como jurídicas pelo modo como são produzidas29.
Num ordenamento que obedece ao princípio dinâmico, que por sua vez
corresponde sociologicamente às necessidades de contínua adaptação dos modelos
jurídicos às realidades em permanente transformação, o fundamental não é o estudo
das assim chamadas normas primárias, que são as que prescrevem, proscrevem,
estimulam ou desestimulam comportamentos e que têm como destinatários os
membros de uma sociedade. Na experiência jurídica das sociedades modernas, ao
contrário do que ocorria- e ocorre- nas sociedades tradicionais, as normas primárias
estão em contínua e rápida mudança. E por essa razão que, do ponto de vista da
jurisfação do poder, o importante é o exame das normas secundárias, isto é, das normas
sobre normas, que são basicamente as que tratam, ou da produção das normas
primárias, ou do modo como estas são aplicadas. É através da existência, do
acatamento e da permanência institucional das normas secundárias que se disciplina
a interferência decisória do poder, no momento ontologicamente conclusivo, da
criação e aplicação do Direito30.
De fato, uma das maneiras de se assinalar a conversão do Estado absolutista e
arbitrário num Estado de Direito, é a extensão progressiva do Direito, da base para o
vértice da pirâmidejurídica, isto é, dos governados para os governantes. Tal processo,
que marca a passagem e a substituição da decisão arbitrária pela decisão juridica­
mente controlada e disciplinada, é uma das conquistas da técnica do Estado de
Direito e da reflexão liberal. É através das normas secundárias, que têm como
destinatários os que exercem o poder, que se jurisfaz o poder. E por isso que se pode
dizer, com Bobbio, que a legalidade é uma qualidade do exercício do poder, uma vez que
impede a tyrannia quoad exercitium, interessando, por isso mesmo, antes aos governa­
dos do que aos governantes31. Por interessar aos governados é que a aspiração
deontológica da subordinação do poder ao Direito representa um dos ingredientes
do consenso, fundamentovda dimensão ontológica da relação entre Direito e Poder
no mundo contemporâneo.
O consenso, enquanto processo público e coletivo de legitimação do poder,
cresce, evidentemente, na medida em que as normas secundárias de criação e
aplicação do Direito são tidas como justas pela comunidade, através do modo como
atendem às múltiplas e conflitantes aspirações e reivindicações de seus membros. De
fato, na legitimação do poder existem os legitimados e os legitimantes. A legitimação
é fruto da interação entre governantes e governados, que resulta da concordância
com um curso comum de ação em virtude de um incessante processo de integração
dos valores de convivência. O “ pacto social” exprime esta concordância, quando faz
atuar, num dado momento histórico, os valores delineados como modelo de vida
pela comunidade32. Na evolução das sociedades contemporâneas esta correspondência
Direito e Poder na Reflexão de Miguel Reale 67

transita pelas normas secundárias, examinadas não apenas na sua dimensão


abstrata e lógica, como o fazem Kelsen e Hart, mas também em função do seu
conteúdo concreto. Com efeito, é pela proposta de estudo de seu conteúdo concreto
que o historicismo de Miguel Reale, atento aos legados axiológicos que fundamen­
tam a democracia, no jogo de sua dialética de implicação e polaridade, captas^r edever
ser, dimensão deontológica de um lado, e dimensão ontológica e sociológica de outro,
nas relações entre Direito e Poder.
Conclusão
A. Passérin d’Entrèves, no seu importante livro sobre o Estado, encarado na
perspectiva das relações entre o Direito e o poder, distingue três aspectos do Estado: I)
o Estado como força, que é o ponto de vista do “ realismo político”; II) o Estado como
“ poder” stricto sensu, isto é, como uma força qualificada pelo Direito, força submetida
à lei, que é a perspectiva da teoria jurídica e do normativismo abstrato; e, finalmente,
III) o Estado como autoridade, graças à qual a força, legalizada enquanto poder, se
legitima33. Há, portanto, na reflexão de Passérin d’Entreves, uma perspectiva
tridimensional, pois a força corresponde ao fato, o poder à norma e a autoridade ao
valor.
Por outro lado, Norberto Bobbio, ao examinar os diversos campos da Filosofia
do Direito, lembra que, na verdade, eles são três: I) a reflexão sobre a reforma e a
transformação da sociedade orientada por certos valores, como a liberdade, a ordem,
a igualdade, o bem-estar. É a Filosofia do Direito concebida como Filosofia Política e
Teoria dajustiça, ou seja, com o Deontologia; II) a análise e a definição de noções gerais,
que todos os ordenamentos jurídicos contêm e que permitem delimitar o campo do
Direito, distinguindo-o de outros, como, por exemplo, a Moral - é a Filosofia do Di­
reito encarada como Teoria Geral do Direito, ou seja Ontologia, que examina temas
como validade, eficácia, direito subjetivo, etc.; e, por fim, III) o estudo do Direito
enquanto fenômeno de controle social; é a Filosofia do Direito vista como Sociologia
Jurídica.
Bobbio também menciona um quarto campo, que seria o da Metodologia Jurídica,
que vem tendo hoje em dia grande desenvolvimento, sobretudo na área da linguagem
do Direito, lembrando ele a escola da “ Nouvelle Rhétorique”, que renovou a lógica e
a epistemologia da experiência jurídica34. Este quarto campo, no entanto, ou é fruto
de uma prévia atitude epistemológica, ou se desdobra enquanto área da Teoria Geral
do Direito. E por isto que se pode concluir que, também na perspectiva de Bobbio,
existe uma visão tridimensional da Filosofia do Direito, pois a Deontologia
corresponde ao valor, a Ontologia à norma e a Sociologia Jurídica ao fato35. Daí a
conclusão de Miguel Reale, no sentido de apontar que todo conhecimento do Direito
e do Estado “é necessariamente tridimensional: o que se verifica em cada âmbito particular de
estudo é apenas o predomínio vetorial de um dos três fatores, distinguindo-se cada indagação pelo
sentido de seu desenvolvimento" ^ .
68 Miguel Reale na UnB
Existe, no entanto, do ponto de vista de uma reflexão sobre o poder, um risco na
tridimensionalidade articulada sem interconexões mais profundas. De fato, este tipo
de articulação não é o mais propício para captar a dimensão problemática de que se
revestem o Estado e o Direito num mundo como o atual, assinalado pelos dilemas da
necessidade de compatibilizar as estruturas jurídicas e políticas com as aspirações
quotidianas da convivência humana.
Na perspectiva tridimensional, articulada apenas de maneira sistemática, o poder
tende a ser encarado: ou I) como um dado externo à norm a- que é atitude freqüente
nas correntes positivistas; ou II) como um dado independente da norma - que é
atitude freqüente na Ciência Política ou na Sociologia Jurídica; ou ainda III) como
meio para se alcançar a norma desejável - que é atitude freqüente na Deontologia.
Daí a relevância da passagem de um tridimensionalismo abstrato para um tridimen-
sionalismo concreto, tal como propõe Miguel Reale, que internaliza o poder na
norma. Em virtude de sua postura metodológica - o quarto campo mencionado por
Bobbio, aqui entendido como Epistemologia - introduz ele o problema do poder no
sistema do Estado e do Direito, inclusive o privado, problematizando-os de uma forma
aberta. Bastaria, aliás, lembrar, na área do Direito Privado, a título de ilustração, os
dilemas dos sistemas de poder de controle na sociedade anônima. Com efeito, é isto
que ele esclarece, de maneira geral, ao iluminar as modalidades por meio das quais,
num dado momento, os dilemas do enlace fático-axiológico se convertem num
sistema de normas e de sua aplicação, por meio da mediação do poder37. Entretanto,
este sistema, ao ser governado por uma dialética de implicação e polaridade, nunca é
fechado, mas sim aberto nas suas transformações e aplicações aos dilemas suscitados
pela cisão entre as estruturas, as aspirações de convivência e as realidades cambiantes
do poder.
Foi isto que tentei esboçar neste trabalho, partindo, em primeiro lugar, de uma
análise de sua posição filosófica (a ontognoseológico-jurídica); vendo a seguir como
ela se desdobra numa teoria geral do Direito, seja em termos de fontes (os modelos
jurídicos), seja em termos de hermenêutica (a interpretação estrutural); concluindo,
afinal, pelo exame do papel das normas secundárias no processo de jurisfação do
poder. Nesta última passagem, tentei esclarecer como, no jogo da dialética de
implicação e polaridade, ser (ontologia do poder) e dever ser (deontologia do poder) se
entrelaçam em relação de mútua complementariedade.
Para concluir, direi que este esquema, quase que descarnado na descrição das
etapas analíticas, das relações entre Estado, Direito e Poder, na obra de Reale, só
adquire a sua dimensão exata de conteúdo a partir da distinção de Dilthey entre o
explicar e o compreender. Com efeito, o culturalismo, que é uma das importantes
matrizes do pensamento de Miguel Reale, diferencia o explicar - a busca dos nexos
necessários de antecedente e conseqüente, aptos a esclarecer a estrutura dos fatos- e o
compreender, que envolve o explicar, na totalidade dos seus fins, esclarecendo as suas
conexões de sentido38.
Direito e Poder na Reflexão de Miguel Reale 69

A compreensão é um processo complexo e sem fim porque tem como objetivo,


ao buscar sentido, ajustar-nos à realidade e reconciliar-nos com as nossas ações e as
nossas paixões. Esta busca de sentido - ao contrário do raciocínio lógico matemático,
que é uma aptidão humana interna, do homem na sua singularidade - exige o senso
comum, ou seja, a percepção do Outro, no mundo compartilhado da intersubjetivi-
dade39. O Direito e o Poder existem no campo da intersubjetividade de um mundo
em comum. Por esse motivo, são fenômenos que não podem ser captados, no seu
perfil próprio, pelo “homo theoreticus” da reflexão de Spranger, que vive no
mundo abstrato das leis da objetividade. Nisso reside, talvez, a razão pela qual as
maiores contribuições à Filosofia do Direito contemporâneo tenham como origem
juristas com interesses filosóficos e não-filósofos com curiosidade jurídica. Por outro
lado, o “homo politicus”, fustigado pela vontade, voltada para o futuro das razões
inflexíveis de poder, raramente tem tempo para parar e pensar, traduzindo numa
obra intelectual o seu esforço de compreensão particular da situação em que se
movimenta40.
O entendimento amplo do Direito exige, por isso mesmo um tipo complexo de
personalidade, que obedece a uma combinatória mista de polarização valorativa,
interessada tanto na teoria, quanto na prática. A proposta de Reale de “teorizar a vida e
viver a teoria” representa, precisamente, uma combinatória mista de polarizações
valorativas, aptas a lidar com o interrelacionamento entre Direito e Poder. Daí a razão
pela qual, a partir de um núcleo de idéias básicas- a tridimensionalidade específica -
que conferem coerência à sua pesquisa, vem ele através de aproximações sucessivas
buscando esclarecer, no processo complexo e sem fim da compreensão, as relações
entre Direito e Poder. Estas relações, por não se assinalarem pela univocidade, são
irredutíveis a uma categoria pura - a uma sintaxe.
Comportam, no entanto, uma semântica e uma pragmática. Estas, na reflexão de
Reale, guiadas pela razão enquanto idéia regulativa, ainda que histórica e socialmente
condicionada, conjugam-se: pela gramática do historicismo axiológico e pela
dialética de implicação e polaridade, ambas conduzidas pelo horizonte aberto da
noção jurídica de legitimidade, entendida como uma ponte civilizatória entre o
poder e o medo, sem o qual a vida, na sociedade humana, perde a sua dignidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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70 Miguel Reale na UnB

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6. MIGUEL REALE, Teoria do Direito e do Estado (2? ed.), São Paulo: Martins, 1960, p. 97.
7. Cf. GIANFRANCO POGGI, The Development of the Modem State, H utchinson, 1978, pp. 72-73 e passim;
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8. NORBERTO BOBBIO, Teoria delia Norma Giuridica, Torino: Giappichelli, 1958, p. 210; Teoria
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9. A NTO N IO CANDIDO, Teresina, etc., Rio: Paz e Terra, 1980, p. 139.
10. MIGUEL REALE, Filosofia do Direito, cit., vol. II, p. 300; Experiência e Cultura, cit., passim.
11. MIGUEL REALE, Filosofia do Direito, cit., vol. II, p. 553; RENATO CIRELL CZERNA, “ Reflexões
Didáticas Preliminares à Tridim ensionalidade Dinâmica na “ Filosofia do Direito” in Teófilo Cavalcanti
(org.), Estudos em Homenagem a Miguel Reale, São Paulo: Rev. dos Tribunais, 1977, pp. 58-59; RENATO
CIRELL CZERNA, Ensaio de Filosofia Jurídica e Social, São Paulo: Saraiva, 1965, pp. 159-198; A. PASSÉRIN
D'ENTKEVES, La Notion de 1’État, Paris: Sirev, 1969, pp. 9-11, 19-81.
12. RENATO CIRELL CZERNA “ Reflexões Didáticas Preliminares àT ridim ensionalidade Dinâmica na
“ Filosofia do Direito” in loc. cit., vol., I, pp. 204-207.
13. MIGUEL REALE, Pluralismo e Liberdade, São Paulo: Saraiva, 1963, pp, 224 e 287; Teoria Tridimensional do
Direito (2.a ed., revista), São Paulo: Saraiva, 1979, pp. 79-89.
14. MIGUEL REALE, Pluralismo e Liberdade, cit., p. 210; Filosofia do Direito, cit., vol. II, pp. 546-557; TÉRCIO
SAMPAIO FERRAZ JR., “ A Noção da N orm a Jurídica na O bra de Miguel Reale” in Ciência e Cultura, vol.
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15. MIGUEL REALE, O Direito como Experiência, São Paulo: Saraiva, 1968, p. 197.
16. MIGUEL REALE, O Direito como Experiência, cit., pp. 147-173. Cf. tam bém CELSO LAFER, O Sistema
Político Brasileiro (2.a ed.), São Paulo: Ed. Perspectiva, 1978, pp. 19-58.
17. MIGUEL REALE, Pluralismo e Liberdade, cit., pp. 211-219; O Direito como Experiência, cit., p. 197.
18. MIGUEL REALE, Pluralismo e Uberdade, cit., pp. 220-222; Teoria do Direito e do Estado, cit., p. 302 e passim;
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19. FÁBIO KONDER COMPARATO, O Poder de Controle nas Sociedades Anônimas (2.a ed.), São Paulo: Rev.
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1979, pp. 288-337; CELSO LAFER, Comércio e Relações Internacionais, Sâo Paulo: Ed. Perspectiva, 1977, pp.
1 1-37, 65-88; O Convênio do Café de 1976, São Paulo: Ed. Perspectiva, 1979, pp. 7-69.
20. MIGUEL REALE, Pluralismo e Liberdade, cit., p. 217.
21. MIGUEL REALE, O Direito como Experiência, cit., p. 247.
Direito e Poder na Reflexào de Miguel Reale 71
22. MIGUEL REALE, O Direito como Experiência, cit., pp. 232 e 243; Estudos de Filosofia e Ciência do Direito, cit.,
pp. 72-82.
23. MIGUEL REALE, Pluralismo e Liberdade, cit., pp. 216-217. Cf. MAX WEBER, On Law in Economy and
Society (ed. by Max Rheinstein, translated bv Edward Schils), Cam bridge, Mass.: Harvard Univ. Press, 1954,
passim.
24. TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JR., Direito, Retórica e Comunicação, Sào Paulo: Saraiva, 1973, pp. 33-35.
25. CELSO LAFER, Ensaios sobre a Liberdade, São Paulo: Ed. Perspectiva, 1980, pp. 25-30.
26. TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JR., Direito, Retórica e Comunicação, cit., passim; A Ciência do Direito, Sào
Paulo: Atlas, 1977, pp. 87-103.
27. MIGUEL REALE, Pluralismo e Liberdade, cit., pp. 218-219; Filosofia do Direito, cit., vol. II, p. 365; Teoria
Tridimensional do Direito, cit., pp. 67-77.
28. MIGUEL REALE, Teoria do Dirdto e do Estado, cit., pp. 76-77.
29. HANS KELSEN, General Theory of Law and State (translated by Anders Wedberg), N. York: Russell and
Russell, 1961, pp. 112-1 Í4: The Pure Theory of Law and State (2.a ed.) (translated by Max Knight), Berkeley:
University of California Press, 1967, pp. 195-198; MIGUEL REALE, Pluralismo e Liberdade, cit., pp. 220-235;
Filosofia do Direito, cit., pp. 465*469.
's

30. NORBERTO BOBBIO, Studiper una Teoria Generale del Diritto, cit., pp. 175-197; H. L. A. HART, The
Concept of Law, N. York: O xford University Press, 1961, pp. 77-96; CELSO LAFER, Hobbes, o Direito e o Estado
Moderno, cit., pp. 31-33.
31. NOBERTO BOBBIO, Teoria della Norma Giuridica, cit., pp. 21 1-212; Studiperuna Teoria Generaledel Diritto,
cit., p. 83; CELSO LAFER, Ensaios sobre a Liberdade, cit., pp. 58-59; MIGUEL REALE, Política de Ontem e de
Hoje, São Paulo: Saraiva, 1978, pp. 77-89.
32. CARLO BARBÈ, Appunti per una Teoria della Legittimazione, Torino: Giappichelli, 1973, pp. 41-42;
CELSO LAFER, Hannah Arendt - Pensamento, Persuasão e Poder, Rio: Paz e Terra, 1979, pp. 35-38; “ A
Legitimidade na Perspectiva Histórica” (com entário in Universidade de Brasília, Encontros Internacionais da
UnB, Brasília: Ed. da Universidiade de Brasília, 1980, pp. 319-325.
33. A. PASSÉRIN D’ENTRÈVES, La Notion deVÉtat, cit., pp. 9-12, passim.
34. NORBERTO BOBBIO, Giusnaturalismo e Positivismo Giuridico, cit., pp. 37-38, 53-54.
35. M-IGUEL REALE, Teoria Tridimensional do Direito, cit., pp. 28-30.
36. MIGUEL REALE, Teoria do Direito e do Estado, cit., p. 346.
37. MIGUEL REAI.E, Teoria do Direito e do Estado, cit., p. 345; Filosofia do Direito, cit., vol. II, p. 557.
38. MIGUEL REALE, Filosofia do Direito, citl, vol. I, pp. 240-256.
39. HANNAH ARENDT, “ C om preension et Politique” in Esprit n? 42, Ju in 1980, pp. 66-79.
40. MIGUEL REALE, Filosofia do Direito, cit., vol. I, pp. 228-230; EDUARDO SPRANGER, Formas de Vida
(trad. Ram ón de la Serna), Buenos Aires: Rev. de O cidente Argentina, 1946, passim; NORBERTO
BOBBIO, Giusnaturalismo e Positivismo Giuridico, cit., pp. 43-46.
2.3. COMENTÁRIOS DE MIGUEL REALE

De conformidade com a norma estabelecida nesta série de Encontros na Universi­


dade de Brasília, vou ser breve, para dar ensejo à terceira parte, relativa às perguntas
suscitadas pelas exposições tão brilhantes que acabaram de ser produzidas.
A minha brevidade, evidentemente, não estará na proporção do alto mérito dos
estudos que foram elaborados por Celso Lafer e Vamireh Chacon, trabalhos que
inegavelmente atestam o conhecimento de minha obra em profundidade, o que
muito me envaidece.
É, para mim, sem duvidai, uma alegria extraordinária encontrar discípulos e
velhos amigos analisando o meu pensamento e nele procurando encontrar algo que
possa ser pelo menos uma tentativa de pensar ccyn autonomia. Uma das caracterís­
ticas marcantes do pensamento brasileiro, durante várias décadas, foi apenas um
repensar do pensado alhures. Uma falta de coragem, de audácia, de tomar posição
própria diante do pensamento europeu ou norte-americano, visando a dizer algo
dotado de significado próprio e autônomo, em função de nossas peculiares
circunstâncias brasileiras.
Se existe algo que tenha validade, em minha obra, é talvez essa tentativa de pensar
sem muletas alienígenas, mas, ao contrário, recebendo o pensamento alheio com a
tranqüilidade com que recebemos um amigo em nossa casa, na certeza de que ele não
nos está privando de nossa intimidade.
Celso Lafer escolheu o tema que se refere ao âmago de minha doutrina jurídico-
política. Digo jurídico-política, porquanto a problemática do poder, consoante
assinalei ontem, se refere exatamente ao ponto de conexão existente entre a Ciência
Política, de um lado, e a Ciência Jurídica, do outro.
Pediria a atenção dos presentes, que se mostram interessados no conhecimento
de minha doutrina, para um cotejo dos dois quadros que figuram na 3.a edição de
minha " Teoria do Direito e do E s t a d o um relativo às disciplinas que compõem o
“ mundo jurídico”; o outro concernente ao “mundo político” . Poder-se-á, então,
verificar que o que liga essas duas esferas de experiências e as respectivas ciências é a
problemática do poder, objeto de estudo da antiga “Teoria da Legislação” , hoje
denominada, mais propriamente, Política do Direito.
74 Miguel Reale na UnB

De maneira que a tese de Celso Lafer diz respeito a algo de fundamental em meu
pensamento, que é o resultado de minhas pesquisas sobre a natureza do vínculo
existente entre a experiência política e a experiência jurídica.
O problema do poder sempre me pareceu fundamental. Jamais concordei com
aqueles que, como Léon Duguit, por exemplo, pretendem que o Direito possa surgir
espontaneamente da consciência popular, ou das forças conflitantes da sociedade
civil, sem a interferência de um poder decisório. A geração espontânea ou automática
do Direito é uma ilusãoque durante algum tempo conquistou sociólogos e políticos,
de mentalidade naturalista, na primeira metade do nosso século. Concepção essa, de
certa maneira, iluminista. Um iluminismo sociológico que julga possível fazer
aparecer o Direito como por encanto, sem a interferência de uma opção necessária
entre os múltiplos caminhos que se abrem ao legislador, quando este analisa um
complexo de valores incidentes sobre um complexo de fatos.
Como bem observou Celso Lafer, a interferência do poder é indispensável ao
surgimento da norma de direito, conforme resulta de meus estudos sobre a
“ nomogênese jurídica” . Se, por exemplo, num Congresso, surge um projeto de lei,
relativo a locação, sobre lei do inquilinato, é evidente que, de um lado, existe uma
multiplicidade de fatos e de interesses e, de outro lado, um número considerável de
perspectivas valorativas distintas, segundo a colocação doutrinária de cada um. É
claro que o parlamentar, de posição mais nitidamente liberal ou individualista,
inclinará seu espírito no sentido de uma lei que não interfira na elaboração e na
execução dos contratos. Ao contrário, àquele, para quem a autonomia da vontade já
deixou de representar um valor fundamental, para ser apenas um elemento
secundário da vida social, a conclusão será no sentido de uma intervenção cada vez
maior do Estado na vida dos contratos, até o ponto destes deixarem de ser convenções
entre as partes para se converterem em meros reflexos do querer estatal.
Entre esses dois extremos, de um contratalismo absoluto e de uma instituciona­
lização extrema, abre-se um leque extraordinário de possibilidades. Como traçar o
caminho da norma? Porque toda norma implica a escolha de uma diretriz. O
legislador não pode ficar indefinidamente em estado de perplexidade ou de dúvida.
Ele é obrigado a eleger uma via, que poderá resultar de um compromisso, de um
balanceamento de valores em função das circunstâncias emergentes, mas, num certo
momento, é necessário ofiatlex, ou seja, a opção pela norma destinada a viger. É nesse
momento que culmina e se aperfeiçoa o ato decisório do poder.
O poder, porém, não pode ser concebido à maneira do grande constitucionalista
alemão Cari Schmitt, ou seja, como mero resultado de uma decisão autônoma; nem
tampouco deve ser aceito como “ poder nu”, um poder válido em si e por si. Na
realidade, as opções do poder, ainda quando não percebidas, já vêm imantadas por
uma série de pressões valorativas, estimativas, ou axiológicas - são palavras
sinônimas - que condicionam o momento fundamental da opção regulativa.
Comentários de Miguel Reale 75
É por essa razão que o poder não constitui urria quarta dimensão no Direito. O
poder corresponde ao momento nomogenético de transição, para o qual convergem,
a um só tempo, pressões factuais e axiológicas, exigindo o superamento dessa tensão.
Poder-se-ia afirmar que o poder é o elemento de conexão, a essa altura já “ fático-
axiológico” , do qual surge a norma jurídica como forma integradora e superadora de
um conflito. Surge, pois, a norma como uma integração de caráter transitório, sem
dúvida, mas numa expectativa de durabilidade. A meu ver, pois, 6 processo dialético
de objetivação do Direito não nasce, nem se desenvolve de maneira puramente
sonambúlica ou irracional, mas, ao contrário, implica certa carga de racionalidade,
mesmo quando, em certos casos extremos, a lei surge sob dominante impacto
emocional.
E possível que no momento, em que se escolhe o rumo normativo, não haja
consciência da opção racional realizada, tal como muitas vezes se dá, em virtude da
massa de interesses e de impulsos atuantes sobre a personalidade do legislador. Mas,
uma vez formulada a regra jurídica, - e é aqui que está o paradoxo da vida do Direito;
aqui é que está o sentido fundamental do poder - uma vez formulada a norma
jurídica, ainda que esta possa ter contido, em sua origem, fatos espúrios e irracionais,
ela passa a ser e deve ser analisada pelo jurista como um dado lógico e racional,
inserido no “lucidus ordo” a que se referia Rui Barbosa, como algo inerente à
sistemática do Direito.
É a razão pela qual muito bem acentuou Celso Lafer, que a exegese do Direito,
analisada “ in fieri”, jamais pode deixar de ser racional. Pretender interpretar o
Direito de maneira intuitiva apenas, ou segundo o jogo emocional dos valores, seria
um absurdo. Quando a norma jurídica é sancionada, o valor, de certa forma, se
resfria, perde o calor da emoção que acompanhou a gênese nomativa, para se
converter em algo que vale em razão de sua finalidade, tal como esta resulta
objetivamente de seu enunciado verbal. Daí, a minha afirmação de que o fim não é
senão o dever ser do valor no momento de sua assunção racional. Não creio, porém,
se possa ver, nessa colocação da matéria, - e é um pequeno reparo que faço - uma
permanência do conceito regulativo da razão kantiana, pois se trata, antes, de
reconhecer a existência de algo que Kant não viu, que é “oprocesso da razão histórica
A norma jurídica, uma vez posta pelo legislador, adquire vida autônoma. Hoje,
uma regra de direito significa X; amanhã, poderá significar Y. Qual a razão dessa
mudança? São múltiplos os motivos determinantes da alteração do sentido das leis.
Uma regra de direito pode deixar de ser considerada dispositiva (como era concebida
antes, por apego ou respeito desmedido à autonomia da vontade) para passar a ser
obedecida como “jus cogens”, ou norma imperativa, em virtude de mutação
ocorrida na tábua de valores vigente na sociedade. Destarte, as transformações
havidas no mundo dos valores ou das valorações podem importar em interpretação
nova e imprevista do mesmo texto legal, ainda que este continue formalmente
imutável.
76 Miguel Reale na UnB

Outras vezes, as variações do significado das regras decorre de alterações


operadas no mundo dos fatos, ou, então, pela intercorrência de uma nova norma
capaz de influir sobre as que já se acham em vigor.
A razão no Direito não é, pois, a razão formalizada e estática de Kant, mas é uma
“ razão axiológica e existencial” que se desdobra através do processo histórico. E uma
razão que, de certa maneira, reproduz, sob certo ângulo, aquilo que Hegel chamava o
universal concreto - expressão esta que levou a tantas interpretações equívocas. Mas o
logos do Direito, que se põe na norma jurídica, consoante tenho procurado explicar
em estudos mais recentes, está em constante vinculação com o substrato da vida comum,
com a vida corrente, com o embasamento do viver espontâneo que E. Husserl
denomina Lebenswelt (mundo da vida). É este que alimenta o conteúdo interpretável da
“ regula juris” no decorrer de sua duração histórica.
O Direito é emanado pelo legislador e se põe, desde logo, como um enunciado
racional, uma fórmula até certo ponto estratificada e aparentemente estática. Essa
imobilidade é, no entanto, ilusória, porque, como bem acentuou Celso Lafer,
ocorrem variações nos significados da norma, no fluir do tempo, o que dá lugar aos
estudos de Semântica Jurídica. Há, também, uma variação de aplicações e de
repercussões no plano da praxis, objeto de estudo de Pragmática Jurídica. A norma do
Direito, portanto, como disse um grande jurista italiano, Ludovico Barassi, é como
uma criança, que, uma vez separada do ventre materno, passa a ter vida própria, o
que não significa que ela, a criança, deva, por isso, renegar a sua origem, a sua mãe. A
normajurídica não se desprende completamente da intenção inicial do legislador, tal
como é possível reconstituí-la, com relativa certeza, graças à exegese histórica. Ela
sofre, porém, o impacto de fatos e valores emergentes. Donde a necessidade por mim
sentida e apontada por Celso Lafer, no sentido de que a teoria dasfontes, que é uma teoria
retrospectiva, que olha para a nascente do Direito, deve ser, se não substituída, pelo
menos completada por uma teoria dos modelos jurídicos que situa a norma de maneira
prospectiva, considerando a estrutura normativa na medida em que ela, revelada
através de um ato de poder, vai-se enriquecendo em virtude de sua própria
experiência. Poder-se-ia dizer que a aplicação da norma repercute sobre seu
significado, abrindo perspectivas não suspeitadas pelo legislador. É a razão pela qual
as Súmulas do Supremo Tribunal são como que o horizonte da normatividade no
plano jurisdicional: à medida que a doutrina avança e os fatos sociais vão sendo
elaborados, aquele horizonte também avança. As Súmulas não são pontos definitivos
e parados da jurisprudência, mas, ao contrário, traçam a linha do horizonte que se
altera na medida em que os protagonistas progridem no espaço-tempo histórico, - e
esses protagonistas são o jurista, o juiz e o advogado, os quais, porém, não decidem
por si, mas condicionados pelo “ mundo da vida” em que se situam como homens.
Estão verificando que a minha preocupação, nesta temática, é olhar o poder com
cuidado, mas sem desconfiança. Sempre tenho receio daqueles que têm medo do
poder. Os que têm medo do poder acabam sendo vítimas do arbítrio. Os que têm
Comentários de Miguel Reale 77
medo do Estado acabam ameaçados pela anarquia ou soçobram num Iluminismo
inoperante.
Essa última observação me permite fazer um reparo à passagem da exposição de
Vamireh Chacon em que ele, segundo me pareceu, dá a entender que, mesmo em
minhas obras mais maduras, persiste certa fascinação pelo Estado. E preciso, porém,
entender, no contexto geral de meu pensamento, a afirmação de que quem perde a
consciência do Estado, perde a consciência da história. Essa afirmação refere-se,
exatamente, á minha posição contrária à gênese espontânea do Direito, e ao
reconhecimento de que, entre o processo da vida civil e as decisões do poder, deve
haver sintonia e sincronia. Quando o Estado vai para um lado, e a sociedade civil para
outro, é que se perdeu o “ sentido da história” . Este o sentido de minha asserção que,
segundo me parece, nada tem de estatizante.
Essa tese corresponde, aliás, à minha teoria sobre a pluralidade dos ordenamentos
jurídicos positivos (note-se que não me refiro ao Direito Natural) e à teoria comple­
mentar sobre a graduação da positividade jurídica, a qual se mostra plena no âmbito da
instituição estatal. Seja-me permitido acrescentar algumas considerações sobre essa
matéria.
Desde 1940, sobretudo, como o demonstra o meu livro “Teoria do Direito e do
Estado”, este é visto como uma instituição que nada tem de monolítico. Já então
sustentava a tese da pluralidade dos ordenamentos jurídicos positivos, mostrando
que o Estado não é senão o ordenamento dotado de soberania. O Estado tem para
caracterizá-lo a soberania, entendida como sendo “o poder de declarar o Direito em
última instância”. Afinal, quem é que diz a última palavra no mundo do Direito? São
as leis votadas pelo Congresso Nacional e sancionadas pelo Executivo, cabendo ao
Poder Judiciário a declaração final do sentido do Direito, como expressão do poder
soberano. Roma Locuta..., já se dizia no passado. Depois que o Supremo Tribunal
declara o Direito positivo, este se impõe a todos os indivíduos e grupos. É inútil
querer lembrar um Direito brotado espontaneamente dos conflitos sociais e
independente da soberania estatal. É a razão pela qual, no citado livro, publicado há
quarenta anos, reconheço a autonomia de múltiplos ordenamentos, mas reconheço
que existe entre eles uma gradação que encontra no Estado o seu centro de
referibilidade e, ao mesmo tempo, de garantia comum.
De outro lado, quando escrevo que o Estado representa “o lugar geométrico da
positividade jurídica” , estou situando o assunto, como se vê, no plano da validade e
da eficácia do Direito. É a razão pela qual submeti o conceito de soberania a uma
rigorosa análise, condenando o decisionismo de Cari Schmitt, e mostrando que o
conceito jurídico de soberania exclui qualquer supremacia do Estado sobre o Direito.
O Estado, detém, em suma, a soberania jurídica, ou seja, tem o poder de, em
última instância, resolver sobre a positividade do Direito, e nisso consiste a sua
eminência em relação aos demais ordenamentos sociais.
78 Miguel Reale na UnB

Ora, essa idéia de combinar o pluralismo, próprio da sociedade civil, com a


unidade do Estado, é um dos pontos básicos do meu pensamento. É evidente que
nem Celso Lafer, nem Vamireh Chacon poderiam tratar de todos os assuntos por
mim versados, mas este é um aspecto que me parece muito importante, para evitar
interpretações unilaterais. Nesse sentido, ao contrário da graduação normativa de
Hans Kelsen, que é puramente lógico-formal, tenho procurado demonstrar que o
que caracteriza a vida do Direito é uma graduação de positividade no plano histórico.
Positividade que atinge sua máxima expressão no Estado, mas sempre nos limites de
direitos individuais impostergáveis, e em função de condições históricas variáveis.
Isto não elimina, de forma alguma, a emergência dos ordenamentos que compõem,
de maneira geral, a sociedade civil, cuja existência deve ser preservada com a máxima
autonomia possível.
Em “ O Estado Moderno”, de 1934, ainda não havia chegado a essa compreensão
pluridimensional da sociedade e do Estado, mas, nem por isso, me parece possível
afirmar tenha propendido para qualquer forma de “estatalismo” . Como bem me
lembro, fiz questão, naquela obra juvenil, de distinguir no Fascismo italiano duas
correntes doutrinárias, uma do “ Estado ético”, de Redanó e Navarra; e outro, do
“ Estado Totalitário”, de Rocco, que, com apoio de Mussolini, acabou, infelizmente,
prevalecendo, com todas as suas seqüelas. Não digo isto para justificar minha
atitude política na década de trinta, - que jamais considerei nem considero “um erro
da mocidade”, - mas sim por ser essa a verdade que resulta dos textos publicados.
Afirma, de outro lado, o caro amigo e colega Vamireh Chacon, que a minha
compreensão dos fatos sociais e políticos se fundaria num “ conceito transcendente de
pessoa”. Eis um ponto que também merece esclarecimento, pois, no meu entender,
a pessoa é um valor transcendental, e não transcendente, ou imanente.
Na compreensão da história, eu me libertei, felizmente, da dialética hegeliano-
marxista que converge as antíteses para uma identidade, da qual, depois, não se sabe
como renasce o processo novamente, para tornar possível a ocorrência de novas
sínteses. Ao contrário da dialética hegeliana, a dialética de complementaridade - por mim
aceita sob certo enfoque pessoal - não sintetiza termos contraditórios, pois tal síntese me
parece logicamente absurda. Em face de elementos contrários ou polares, o que
podemos fazer é correlacioná-los, revelando a aparência da contradição. Por outras
palavras, ante uma determinada afirmação de valor e a sua negação se estabelece um
campo aberto de conciliações possíveis, segundo linhas de complementariedade.
Além disso, há valores que não se contrapõem, mas antes se distinguem, como se dá
com os valores de liberdade e igualdade. A dialética entre liberdade e igualdade não é
uma dialética de contraposição, mas uma dialética de distinção e de implicação
recíproca, como, parcialmente, já fora assinalado por Benedetto Croce.
A meu ver, o pensamento contemporâneo oferece, como uma de suas contri­
buições, o superamento da dialética monocórdica do século passado, por uma
Comentários de Miguel Reale 79

dialética pluralista que nos leva a uma visão concreta e dinâmica da vida social, sem
ficarmos presos a sínteses fechadas e cerradas, que inexoravelmente nos levam a
ideologias que não têm mais nada a oferecer ao homem de nosso tempo.
Assim sendo, minhas idéias sobre a pessoa humana, a sociedade civil e o Estado,
ao contrário do que ainda afirmam alguns, corresponde a uma visão pluralista da
história e da cultura, e não a uma visão monística, tal como a que fatalmente se insere
em todo historicismo do tipo hegeliano-marxista. Trata-se, como já disse, de uma
dialética pluralista, de “ sínteses abertas”, consoante terminologia de Merleau-Ponty,
dando lugar a projeções complementares distintas, no processo dialógico da
História.
Ora, é nessa compreensão histórico-cultural que se situa o conceito cristão de
pessoa, que não é visto por mim como um “valor absoluto e transcendente”. Na
realidade a idéia de pessoa é fruto de múltiplas influências, devendo-se acrescentar à
tradição judaico-cristã outras fontes relevantes, como a do humanismo greco-
romano, enriquecido pelo humanismo renascentista e toda a experiência ética que se
desenvolve até nossos dias. Mas, como penso já ter dito neste seminário, se o valor da
pessoa humana emerge da história, ele transcende o fato histórico, pondo-se como
uma constante ou invariável axiológica: daí considerá-lo transcendental, no sentido que
Husserl atribui a esta palavra.
São observações que faço para tornar mais claras as diretrizes fundamentais do
historicismo axiológico, o qual não se vincula a nenhum pressuposto escatológico.
Em pequeno ensaio inserido em meu livro O homem e seus Horizontes, e intitulado
“ Meditação sobre o horizonte metafísico”, o Absoluto é visto por mim como limite
negativo do conhecimento, mas limite que tem também uma função positiva, na
medida em que assinala um pressuposto insuprimível daquilo que se conhece e se faz
no plano histórico.
Teria muito a dizer sobre esse problema do “ horizonte metafísico”, a que
devemos-nos referir, mas sem ontoligizá-lo, sem convertê-lo em algo da Metafísica
antiga, que era uma Metafísica estática do ser, mas o tempo não me permite resumir,
agora, questões amplamente versadas em meu livro Experiência e Cultura, onde o
historicismo axiológico se apresenta com contornos mais nítidos. É para essas
páginas que peço a atenção dos que me ouvem.
2.4. DEBATES

PERGUNTA: Sr. Miguel Reale, ao falar do legado histórico do Cristianismo, o


senhor se referiu à idéia da igualdade humana. Dentro de uma perspectiva
nietzscheana não haveria uma certa utopia na afirmação de que todos os homens são
iguais? São realmente todos os homens iguais? Até que ponto? Em que sentido?
MIGUEL REALE - Essa pergunta me parece muito oportuna, inclusive porque
me permite esclarecer uma dúvida que talvez tenha ficado no espírito de Vamireh
Chacon a respeito do problema da utopia.
Não devemos ser adversários radicais das utopias. O homem vive em função de
determinados ideais. Se esvaziarmos o homem do seu dever ser, teremos apenas
uma expressão anatômica-biológica. O homem é enquanto deve ser, isto é, enquanto
tem aspiração para algo dotado de valia. A vida humana é, assim, um plexo de
significados, uma projeção no sentido do futuro a ser realizado. À essa luz, as utopias
são válidas como extrapolação de certos ideais, podendo atuar como elementos
incitadores da mente e da vontade humanas.
Mas nem por isso devemos nos contentar com as utopias como tais, porque só
podemos viver e sobreviver num mundo real, com pés na Terra, ainda que olhando as
estrelas. Muitas estrelas surgiram, de início, como ideais que pareciam definitiva-
mente utópicos e irrealizáveis.
O Cristianismo terá sido utópico? Não o creio. O Cristianismo trouxe algo de
fundamental, que é o valor inviolável da subjetividade, com o corolário da igualdade
dos seres humanos, na medida em que são considerados filhos de Deus, criados à sua
imagem e semelhança.
O Cristianismo trouxe a mensagem de que o homem vale apenas pelo fato de ser
homem, e este valor se integrou na cultura contemporânea, mesmo fora da área
cristã.
Desse ponto de vista deontológico, os homens são iguais, enquanto seres
merecedores de igual respeito. Ninguém imagina, evidentemente, que os homens
sejam iguais na sua capacidade sensitiva, na sua inteligência, ou na sua vontade. O
nosso próprio corpo nos diferencia. Não há impressões digitais iguais, nem sósias
perfeitos. Não obstante a infinita muldplicidade dos rostos, em cada rosto resplende
82 Miguel Reale na UnB

algo de próprio e inconfundível. É essencial, penso eu, não confundir igualdade com
uniformidade.
A mensagem cristã sobre a personalidade vale em função do “ eu profundo”, da
subjetividade de cada um de nós. Lembremo-nos que, se existe algo em risco no
mundo contemporâneo, como muito bem foi observado por Giuseppe Capograssi,
um dos mais ilustres jusfilósofos da Itália, é o valor da subjetividade. Por que, a toda
hora, estamos falando na preservação da nossa intimidade? Por que no Direito Penal,
hoje, há tanto cuidado pela preservação da vida íntima ou da privaticidade? Porque a
subjetividade está correndo o risco da massificação, que não se confunde com a
igualdade.
Ora, quando Nietzsche fala no super-homem, não está, de certa maneira,
contrariando o valor de subjetividade, mas, ao contrário, exacerbando-a até o ponto
de romper os liames da igualdade, visto admitir a supremacia de alguns eleitos, graças
ao jogo das seleções naturais.
Nietzsche era um anticristão, influenciado pelas idéias de Darwin, no sentido da
sobrevivência dos mais aptos e seduzido pela idéia de um homem que não seja “a
imagem de Deus” , mas um deus terreno no permanente desafio de seu destino. De
mais a mais até mesmo Nietzsche vê algo de igual nos homens, que é a “vontade de
potência” , a qual lança uma ponte sobre o trágico abismo que separa o homem do
super-homem...
É claro que quem aceita a tese nietzscheana dos “ homens superiores”, entra em
conflito com a idéia deontológica da igualdade, conforme o Cristianismo, mas é o
caso de lembrar a antiga lição de Aristóteles, atualizada por Lacordaire, quando
pondera que a suprema regra da igualdade é tratar igualmente os iguais, e,
desigualmente os desiguais na medida em que se desigualem. A desigualdade refere-
se, porém, ao que há de contingente e empírico no ser humano; sem afetar a sua
igualdade transcenderual,
PERGUNTA: Quando o senhor desenvolve a necessidade de compreensão do
Direito pela teoria tridimensional, seria possível apontar, com argumentos lógicos, a
maior importância de um dos três pontos essenciais dessa teoria - norma, valor e
fato? Por outro lado, qual a origem do Direito? Ele nasce da sociedade, ou do homem
para viver em sociedade? Ele sempre existiu? Se não, o que o antecede? Se sim, qual a
sua evidência?
MIGUEL REALE- É claro que não vou poder respondera todas essas perguntas,
porque seria necessário fazer um outro seminário. Uma pergunta se formula em
poucos instantes, mas exige resposta muito longa. Mas a pergunta é oportuna para
esclarecer alguns aspectos do tridimensionalismo.
r
Debates 83

O tridimensionalismo atende a um propósito relevante, posto em realce, ontem


pelo Prof. Ronaldo Poletti, que é o afastamento de toda visão de caráter monocórdico
ou unilateral. Certos mitos, como este: qual o mais importante...? Não há nenhuma
pergunta válida, na teoria tridimensional, para saber se o mais importante é o fato, o
valor ou a norma, uma vez que estamos perante um processo dialético, no qual a
norma, uma vez constituída, tem seu sentido vinculado aos fatos e aos valores
passados, assim como os fatos e valores supervenientes. Poder-se-ia pensar na tese de
Vico, de que o verdadeiro e o fato se convertem. Num processo dialético não existe
um antes e um depois, dotados de maior ou menor valia, porque o que importa é o
sentido global do processo como tal. Quando falo em “ normativismo concreto”,
quero, precisamente, aludir a essa unidade integrante, na qual a regra de direito
representa o superamento de uma tensão fático-axiológica.
O que ocorre é que a perspectiva do valor pode ser, às vezes, dominante. E, então,
está-se fazendo Filosofia do Direito. Para o filósofo do Direito, o que prevalece é o ele­
mento estimativo. Como também para o sociólogo do Direito, o que prevalece é o
elemento fático. O sociólogo estuda o fato social enquanto ele vem imantado de
diretrizes axiológicas e normativas.
Por outro lado, o jurista, enquanto jurista, como o advogado ou o magistrado,
olha mais para a norma. Mas, para compreender a norma, em sua plenitude, não
pode deixar de recorrer a fatos e valores. Da mesma forma, o sociólogo, para
compreender o fato social, de relevância jurídica, é obrigado a referi-lo a valores,
como o da Justiça, e às regras de Direito vigentes.
Há, aqui, pois, um problema de perspectivismo ou de direção metodológica,
resultante do objeto examinado em cada campo de pesquisa. Quem diz pluralismo
diz perspectivismo, na apreciação dos fenômenos sociais e dos fenômenos humanos.
Não há, portanto, nada de absoluto na teoria tridimensional, pelo menos na minha
posição que é eminentemente dialética. Notem, aliás, que a própria norma jurídica,
uma vez positivada, é Direito posto, ou seja, algo que, em relação às normas futuras,
corresponde a um fato-normativo que condiciona a emergência de outras integrações
normativas.
Sem se ter presente essa interação e complementaridade, não penetramos
naquilo que Lafer muito bem pôs em realce: o normativismo concreto, próprio da
teoria tridimensional, é diferente do tridimensionalismo abstrato de Radbruch, de
Emil Lask e de outros.
De maneira que, dentro do limite de tempo, é esta a resposta que posso dar, mas
que espero possa esclarecer a dúvida suscitada. O importante não é dizer tudo, mas
indicar as linhas mestras de uma forma de pensar e compreender a realidade.
PERGUNTA: Geny e Erlich só pretenderam liberdade ampla de interpretação e
de aplicação, à falta de regra escrita ou costumeira. Kantorowitcz foi além: sustentou o
84 Miguel Reale na UnB
dever do juiz em procurar o ideal jurídico dentro ou fora da lei. Sustentou, portanto,
que o juiz deve buscar o Direito Justo onde estiver, ainda que contrário à lei.
E agora vem a pergunta:
Na concepção tridimensional do fenômeno jurídico é admissível o Direito contra
legem, ou o também chamado “ Direito não oficiar’?
MIGUEL REALE - Em primeiro lugar, vou-me limitar apenas ao Direito
legislado, porque a teoria tridimensional não faz identificação entre Direito e Lei. A
norma legal é apenas uma das espécies de normas jurídicas. Ora, na teoria
tridimensional, não é admissível uma decisão contra legem, porque a lei é o horizonte
dentro do qual deve se conter a experiência jurídica. O horizonte do jurista é
marcado pelo ordenamento do Direito, por um sistema de normas legais.
Porém, o que a teoria tridimensional vem demonstrar é que as normas legais não
são tão fixas, como se imagina. Determinados artigos do Código Civil, por exemplo,
embora em vigor a partir de 1916, não sofreram mudança de uma vírgula sequer, e,
no entanto, possuem significação bem diversa e imprevisível, em virtude das
modificações operadas na sociedade, conforme já tive oportunidade de dizer. A
teoria tridimensional vem, de certa maneira, legitimar o trabalho do intérprete
quando assume uma posição criadora, perante as leis vigentes, para inferir delas
todas as suas virtualidades, sem se contentar apenas com os aspectos lógicos
aparentes. Não negamos, pois, que o ato hermenêutico é, a seu modo, criador, mas
cridor de significados jurídicos novos, na medida que o permite o enunciado
normativo.
Mas acontece que determinadas normas jurídicas caem em desuso. Certas leis
desaparecem do cenário jurídico, embora continuem a ter uma validade, desprovida
de qualquer eficácia. Surge, assim, o desuso. O desuso é uma realidade. Tanto é
verdade que, certas vezes, quando é invocada uma norma legal há muito tempo
esquecida, os juizes e os juristas atenuam seus efeitos negativos, captando o seu
significado na totalidade do ordenamento. De certa maneira, procuram encapsular
ou superar aquele resíduo, aquele fóssil esquecido ao longo do processo histórico do
Direito.
É por essa razão que se não pode compreender a teoria tridimensional sem
historicismo axiológico, isto é, sem se levar em conta o impacto que o problema da
estimativa exerce sobre a vida da norma jurídica como tal. Nada se decide, porém,
contra legem. A lei tem uma elasticidade - a palavra elasticidade era um termo muito
usado por Pontes de Miranda - que abre largo espaço à liberdade criadora do
intérprete. Nós podemos esticar, por assim dizer, a norma, até atingir o fato específico
ocorrente. Mas, não raro esse esticar tem limites inamovíveis, sob pena de ficarem
comprometidos os valores da segurança e da certeza.
Debates 85
Quando se chega a esse ponto, o único remédio é a revogação da lei, pois, ao
contrário do que, por lapso, ficou constando de recente debate de que participei, em
Brasília, o juiz não pode jamais negar a lei, a pretexto de sua injustiça. Seria a
subversão da ordem jurídica, mesmo porque não há critérios absolutos para se
decidir se a lei é ou não justa...
PERGUNTA: Professor Reale, pode haver Direito sem autoridade, dentro de
uma perspectiva anarquista, por exemplo?
MIGUEL REALE - Essa pergunta põe a problemática do anarquismo e,
geralmente, se pensa de maneira um tanto apressada, que o anarquismo seria uma
teoria de eliminação total do poder. Hoje há alguns autores, como, por exemplo,
Ulrich Klug, - por sinal, um grande especialista de Lógica simbólica, mas que se
proclama um anarquista - no sentido de ser partidário de uma ordem política com a
mínima interferência do Estado, pela criação de múltiplos centros de poder. Karl
Marx, com a.sua teoria do “ Estado evanescente”, não estaria longe dessa forma de
anarquismo...
Onde está o homem, porém, aí está a autoridade; assim como onde está o homem
está o Direito. Pregar uma sociedade sem lei ou sem autoridade, é menos uma utopia
do que um contra-senso lógico, pois, em geral, os anarquistas legitimam o emprego
da força e da violência para que não haja “poder”, que é a força nos limites e para fins
do Direito. De maneira que o anarquismo é uma contradição in terminisy resolvendo-se
num círculo vicioso, como acontece com toda e qualquer explicação extremada e
radical dos problemas humanos.
PERGUNTA: Prof. Miguel Reale, Hans Kelsen faz uma distinção entre regra e
norma. O senhor, durante umas duas vezes, usou as palavras norma e regra
seguidamente. Como o senhor se coloca diante dessa diferença?
MIGUEL REALE - Bem, eu, na minha teoria tridimensional de Direito não
tenho nenhuma obrigação de fazer distinção entre regra e norma, ao contrário de
Hans Kelsen, que foi obrigado a fazê-lo. E por que Hans Kelsen foi obrigado a fazê-
lo? Porque, enquanto viveu na Europa, e mais praticamente, na Áustria, onde vigia
um Direito eminentemente formalista, ele afirmava: “Norma jurídica é uma
proposição lógica” . Então, ele identificava norma jurídica com proposição lógica.
Quando, por força de circunstâncias políticas, foi obrigado a fugir da Europa para os
Estados Unidos da América, viu-se às voltas com um Direito costumeiro-jurispru-
dencial, denso de fatos, denso de experiência concreta, e isto o levou a reformular seu
pensamento. Muito embora alguns kelsenianos exaltados não admitam que Kelsen
tenha mudado, quando é tão normal que passemos por várias fases em nossa vida
cultural, o grande Mestre passou a distinguir entre proposição e norma jurídica,
correlacionando esta com a sua aplicação ou eficácia. Essa é a raiz do segundo Kelsen,
do Kelsen da segunda edição de sua Teoria Pura do Direito: em complemento à sua
86 Miguel Reale na UnB

clássica Teoria Geral do Estado quando ele identificava Direito e Estado, porque tudo se
subsumia na lógica/normativa - escreveu e publicou nos Estados Unidos outro livro,
a que deu o título significativo de Teoria Geral do Direito do Estado, corrigindo,
substancialmente, seu normativismo originário.
É nessa obra que ele sente necessidade de fazer distinção entre norma e regra. A
norma continua sendo o enunciado lógico ou proposição de dever ser-, enquanto
que a palavra regra passa a designar o ato normativo na eficácia do ordenamento, ou
seja, em sua aplicação ou projeção prática.
Ora, em 1940, ao publicar minha Teoria do Direito do Estado, advertia, logo no
prefácio, que o títuio dado ao livro bastava para distingui-lo do normativismo
kelseniano, entend jndo, desde então, que uma norma ou regra só pode ser jurídica
tendo, ao mesmo tempo, validade e eficácia.
PERGUNTA: A validade de uma norma é dada pelo fato de esta ser fundada ou
criada com base em outra hierarquicamente superior. Como o senhor explicaria a
validade da primeira Constituição?
MIGUEL REALE - Confesso que esse problema da primeira Constituição, na
minha concepção histórica do Direito, me parece um pseudoproblema. E assim
como perguntar que é que surgiu antes, se o ovo ou a galinha. Nós só podemos
examinar tal questão de um ponto de vista estático e relativo, isto é, fazendo um corte
no processo histórico do Direito, para indagar se há, verdadeiramente, uma
concatenação lógica e unitária entre todas as normas que compõem dado ordena­
mento jurídico.
Quando Kelsen fala em primeira Constituição, já parte do pressuposto de um
encadeamento normativo unitário que, através de sucessivos enlaces de validade,
postula a validade de uma norma suprema, que, no seu entender, seria uma norma
fundamental de natureza transcendental. Quer dizer, o que dá fundamento à
totalidade do sistema é um juízo transcendental, segundo o qual a Constituição deve
ser obedecida. Essa norma fundamental não é norma positiva, mas um pressuposto
hipotético, transcendental. Herman Heller observa, com razão, que, indo à raiz do
problema, a norma fundamental kelseniana funciona como um sucedâneo de Direito
Natural, esvaziado de qualquer conteúdo ético. A meu ver, nada há de mais a-
histórico ou anti-histórico do que o monismo jurídico kelseniano: a norma
fundamental e a unidade hierárquica do sistema de normas se pressupõem
reciprocamente, num círculo vicioso inconteste.
Em ensaio recente, inserto no livro Estudos de Filosofia e Ciência do Direito, penso ter
demonstrado que o ordenamento jurídico de um País não é unitário, mas plural,
composto de um número cada vez maior de “campos de vigência e eficácia”, cuja
validade global não resulta de uma única norma fundamental hipotética, mas sim de
Debates 87

um “ postulado da razão histórica”. Por outras palavras, assim como, por motivos ou
razões práticas, não se admite a ignorância das leis (embora, na realidade, ninguém
totalmente as conheça) também reconhecemos que a norma constitucional, atua
como um padrão originário de validade: estamos, pois, perante um imperativo da
razão prático-jurídica, de natureza histórico-social ou, como já disse, de “ postulado
da razão histórica”; e não perante mero juízo hipotético formal, como o sustenta
Kelsen.
Apreciando o problema com objetividade e realismo, tal como a história no-lo
demonstra, o sistema constitucional, que outorga validade ao ordenamento jurídico
de uma Nação, pode surgir por diversas vias, desde um puro ato de força até um
procedimento dotado de legitimidade ética, por estar fundado, por exemplo, na
deliberação de uma Assembléia Constituinte, que, livremente escolhida, reflita de
maneira autêntica a opinião pública. O terrível na experiência jurídica é que tanto
uma como a outra são igualmente válidas, do ponto de vista operacional, embora não
o sejam sob o prisma da legitimidade ética ou do consenso político. São amargas
contingências históricas que explicam essas diferenças ou coincidências de validade,
sendo perigoso equipará-las de um ponto de vista puramente lógico-formal, que
tornaria impossível a crítica ou a resistência às leis em conflito com o querer real do
povo.
É mais um motivo que reforça minha oposição a uma teoria puramente
normativa do Direito, preferindo vê-lo na plenitude de suas valências históricas, em
função das quais deve ser posto o problema da vigência e da eficácia das normas
jurídicas.
PERGUNTA: Pergunto ao senhor se seria possível explicar precisamente o que
vem a ser este “ teorizar a vida e viver a teoria”, e qual seria a repercussão dessa
posição na formação cultural e na reação social de um povo. Para mim, onde tudo é
teoria, nada é experiência e prática.
MIGUEL REALE - Há de convir comigo que seria muito feliz aquele para quem
tudo fosse teoria, porquanto teria atingido o ideal platônico da contemplação pura.
(Risos). E um prohlema de felicidade pessoal. Confesso que jamais uma idéia me
deixou tranqüilo. Jamais uma teoria me deixou insensível aos problemas do mundo.
Penso, ao contrário, como o grande político italiano Mazzini, que o pensamento já é
um esboço de ação. E por isso ele fundou um partido chamado, o Partido da Ação.
O pensamento... que ê pensar e que é teorizar? O pensamento não se resume em
mera concatenação de conceitos ou juízos, sem projeção prática. Pensar já é objetivar
algo através de um ato intelectivo e volitivo. O pensamento já é, por si mesmo, uma
atividade. Quando penso, estou criando alguma coisa, que se desprende de minha
mente e adquire “ objetividade”, tornando-se independente de mim. De outro lado,
só posso teorizar sobre algo ou em razão de algo: com a teoria, aidéia faz corpo com o
88 Miguel Reale na UnB

seu objeto. Quando isso não acontece, a idéia esfuma-se no vazio ou tem a pseudo-
existência de uma quimera. Logo, quando me propus a “teorizar a vida e viver a
teoria na unidade indissolúvel do pensamento e da ação” , não almejei outra coisa
senão desenvolver idéias que estivessem vinculadas ao real. Até mesmo os ideais mais
sublimes se referem à realidade, porque se afirmam como um programa de ação pelo
menos realizável em parte.
No meu modo de ver, teoria e prática marcham de mãos dadas, e é claro que, se
tudo fosse pura teoria, não haveria experiência e prática, mas essa é uma hipótese
extrema, inaceitável por quem entende que todo pensamento se resolve em “ato de
pensar” , isto é, desde logo dá início a uma objetivação que transcende o sujeito que
pensa. De outro lado, estou convencido de que um povo será tanto mais maduro e
consciente quanto mais o pensamento dos homens que o compõem for expressão de
realidades assumidas em toda a sua objetividade e concreção.
A pergunta formulada parece-me importante, por que noto que há, no Brasil,
certo desprezo pela teoria. Ora, estou de acordo com o filósofo argentino Francisco
Romero quando adverte que o mundo está-se esvaziando de sentido teorético. A
humanidade está tomada cada vez mais da angústia da ação, de um ativismo
absoluto, ativismo que talvez tenha atingido o clímax no “atualismo” de Gentile,
que jamais, meu caro amigo Chacon, foi santo de minha devoção. Esse ativismo é
hoje um dado permanente da vida contemporânea e representa um dos sistemas mais
graves da crise da cultura contemporânea, aquém e além da “ cortina de ferro”.
Dir-se-á que procuro sempre a conciliação, o que não significa “o meio termo”.
Na realidade, antes de proclamar, afoitamente, uma antinomia entre dois termos, ou
de aceitar, como irremediável, uma contradição, cuido de verificar se esta não é
apenas aparente. As contradições existem, é claro, e devemos denunciá-las, ao invés
de reduzi-las, hegelianamente, a uma impossível unidade superadora.
Não é, porém, o caso da relação entre “ teoria” e “ prática”, ou “ pensamento” e
“ação”. Assim como não se contradizem, também não se identificam: são termos
polares e entre si correlacionados, de tal modo que um só tem sentido em função do
outro, sem que haja absorção de um pelo outro. Os adoradores da praxispura , ou da
teoria pura são, na realidade, seduzidos por verdades parciais, ou vítimas de
totalidades aparentes.
“ O ato de pensar é um ato de objetivação necessária” - escrevi eu em Experiência e
Cultura, talvez minha obra maior. O homem não pensa porque quer, mas porque
não pode deixar de pensar. Ele é condenado a pensar. Quando Descartes disse cogito,
ergo sum, ele se punha num ângulo puramente cognoscitivo. Hoje, o “cogito” é
enriquecido por um sentido ontológico, uma vez que o ato de pensar é, por sua
essencial intencionalidade, em virtude de um ato de objetivação, base de outros atos
de pensar; a história da cultura, ao invés de se desenrolar através da hegeíiana
Debates 89

identificação entre o real e o pensar, se desenvolve através daquilo que se pensa e


aquilo que é tornado objetivo pelo pensamento: o pensado (objeto do pensamento)
abre campo a novos atos de pensar, e, assim, sucessivamente, num proce so de
convergência entre o homem e o mundo, o homem e a comunidade em que vive.
JOSÉ CARLOS MOREIRA ALVES - meus senhores, antes de encerrar esta
sessão, eu não me posso furtar de dizer brevíssimas palavras mas brevíssimas
mesmo - para traduzir uma impressão que, tenho a certeza, é a impressão de todos
aqueles que acabaram de ouvir as palavras do Prof. Miguel Reale.
O Prof. Miguel Reale consegue reunir em si duas qualidades admiráveis e não
facilmente encontráveis: a de ser um notável filósofo com uma notável lucidez, com
uma admirável clareza de raciocínio, de exposição, com uma impressionante
facilidade de explicar o seu pensamento, aliada àquilo que acaba de dizer, a de ser um
homem que marca toda sua atividade cultural pela circunstância de teorizar com os
pés no chão, teorizar para a vida, teorizar para acrescentar algo que não fique apenas
no mundo abstrato, que não fique apenas no mundo estratosférico.
Eu, aliás, da convivência que tenho com o Prof. Miguel Reale, em longos anos de
participantes que fomos da Comissão que elaborou o projeto de Código Civil,
sempre percebi nele esta notável duplicidade em sua personalidade: um eminente
teórico que, nem por isso, deixa de ser um homem absolutamente atento,
absolutamente voltado para a prática da vida.
E, mais, hoje o Professor Reale voltou a demonstrar que a única regra
absolutamente certa do mundo é a de que toda regra tem exceção. Miguel Reale,
hoje, demonstrou que, quando se teoriza, em geral quem interpreta melhor a teoria
é um terceiro. E demonstrou, ainda, que, neste particular, leva palma a Platão,
porque ninguém melhor do que Miguel Reale para interpretar e explicar as suas
próprias teorias, como fez, de uma maneira esplendorosa, nesta noite, em que os
senhores tiveram a felicidade, como eu tive, de, mais uma vez, presenciar esse
espetáculo realmente digno da maior admiração: o de um homem que expõe as suás
teorias, que as explica de maneira inexcedível, de modo que ninguém melhor do que
ele por certo conseguirá expô-las e explicá-las.
Meus senhores, eu agradeço a atenção de todos e dou por encerrada a sessão.
3.1. MIGUEL REALE E A FILOSOFIA BRASILEIRA(*)
Antônio Paim

Embora desde muito jovem marcado pelo sentido de militância, Miguel Reale
buscou simultaneamente torná-la objeto de meditação. Na década de trinta, jovem
de vinte e poucos anos, milita no integralismo, mas está sobremaneira preocupado
com a evolução das idéias políticas que examina sucessivamente nos Wwos Atualidades
de um mundo antigo; Formação da política burguesa; O Estado moderno e Capitalismo
internacional. A essa dimensão da atividade humana iria acrescentar o direito, desde o
concurso à Academia de São Paulo, em 1940. Mas não se converte apenas no
professor dedicado à atividade docente, em que entrevê encantos renovados,
sobretudo no contato com as novas gerações. Saberia vinculá-la à militância da
advocacia e da administração universitária. A fidelidade a essas dimensões - política,
direito e ensino universitário -, encaradas não apenas como ação, mas também como
objeto de meditação, ganharia nova magnitude com o interesse pela filosofia em sua
totalidade e não somente enquanto voltada para a política ou o direito. E ainda aqui
Miguel Reale consegue descobrir uma dimensão prática ao criar o Instituto Brasileiro
de Filosofia e a Revista Brasileira de Filosofia. Quem examinar essa atividade intelectual
em sua globalidade, desde os anos trinta, verá que buscou manter-se fiel a todos
aqueles interesses. Sintetizou-o de forma magnífica Alceu Amoroso Lima ao escrever:
“A tentação da integralidade sempre foi uma nota dominante na personalidade de
Miguel Reale”.
Graças a esse afã de integralidade, a presença de Miguel Reale na filosofia
brasileira teria que ser multifacética. De um lado, jamais perdeu de vista o sentido de
universalidade da filosofia e cuidou de mantê-la atenta e presente ao diálogo que
abrange múltiplos centros. Ao mesmo tempo, soube formular como ninguém seu
caráter problemático, justamente o que permite distinguir, da uniformidade dos
sistemas, a peculiaridade e a radicalidade das filosofias nacionais.
Miguel Reale conseguiu manter o equilíbrio entre a universalidade e a problema-
ticidade da filosofia através dos seguintes procedimentos: I) elaborando um método
que se revelou capaz de identificar linhas de desenvolvimento da filosofia brasileira,
abrindo caminho, nos últimos trinta anos, ao inventário que temos realizado e que
vem facultando o surgimento e a consolidação de uma atitude valorativa da
meditação nacional; e II) centrando a sua investigação filosófica em uns poucos
(*) Os com entários e debates sobre esta conferência foram feitos após a conferência do Prof. Tércio
Sam paio Ferraz Jr.
92 Miguel Reale na UnB
problemas da maior relevância, cujo esclarecimento representa sem dúvida ulterior
aprofundamento e amadurecimento da consciência filosófica universal.
O método sugerido por Miguel Reale para a investigação da filosofia brasileira
compõe-se dos seguintes elementos:
1.°) em identificar o problema (ou os problemas) que tinha pela frente o
pensador, prescindindo da busca de filiações a correntes que lhes
são contemporâneas no exterior;
2.°) em abandonar o empenho de averiguar se o pensador brasileiro
interpretou adequadamente as idéias de determinado autor estran­
geiro, mais expressamente, em renunciar ao confronto de interpre­
tações e, portanto, ao cotejo da interpretação do pensador brasileiro
estudado com outras interpretações possíveis, para eleger entre uma
ou outra; e,
3.°) em ocupar-se preferentemente da identificação de elos e derivações
que permitam apreender as linhas de continuidade real de nossa
meditação.
Para melhor elucidar a fecundidade deste método, remonto ao ano de 1949
quando Miguel Reale começou a investigar os destinos da doutrina de Kant no Brasil.
Ao falar, naquela época, do kantismo de Diogo Antonio Feijó (1784/1843), a
inolvidável figura dos atribulados anos de consolidação da Independência, logo se
levantaram vozes para proclamar que Feijó não havia compreendido Kant ou que
não o lera diretamente, mas através do estudioso francês Charles Villers. Esse caminho
nos conduziria na direção de que rumo? Na busca, nalgum lugar do mundo, de uma
autêntica interpretação do pensamento de Kant, como se nos outros países as pessoas
circulassem em algum vetor privilegiado, imune a toda influência estranha, direta­
mente vinculado ao grande cérebro de Königsberg. Essa é certamente uma
compreensão defeituosa da filosofia. A filosofia é certamente um saber especulativo,
que se volta para uma problemática que, embora renovada através dos tempos, se
tem revelado perene em contraposição à alternância dos sistemas. Esses problemas,
contudo, têm sempre a ver com a circunstância cultural. De sorte que o caráter
especulativo da filosofia não pode ser arrolado como simples diletantismo, como se a
filosofia não tivesse nenhum compromisso com a temporalidade e as angústias de
determinado momento da cultura de um povo.
Aquele debate sobre o kantismo brasileiro logo nos começos do pós-guerra teve o
mérito de permitir que Miguel Reale viesse a tornar-se o ponto de referência, ao
longo da década de cinqüenta, de um grupo de jovens recém-egresso da Univer­
sidade ou ainda às voltas com os bancos acadêmicos, que acabariam dando
prosseguimento e amplitude à sua investigação. O principal deles foi Luís Washing­
Miguel Reale e a Filosofia Brasileira 93

ton Vita, prematuramente falecido aos 47 anos de idade, em 1968. A esse grupo de
discípulos de Miguel Reale que tomaram em suas màos a investigação do pensa-
mento brasileiro pertencemos eu próprio e Paulo Mercadante, no Rio de Janeiro;
Roque Spencer Maciel de Barros, em São Paulo; Nelson Saldanha, em Pernambuco;
Ubiratan Macedo, no Paraná; e Antonio Luís Machado Neto, na Bahia, que faleceu
recentemente, em 1977, em pleno apogeu de sua criatividade.
Quando Miguel Reale e seus discípulos lançaram-se ao reexame da meditação
brasileira, que entendimento vigorava acerca do tema? O pensamento brasileiro era,
na verdade, simples campo de manobra para a difusão das próprias idéias. Cruz
Costa (1904/1978) que era então o mais conhecido estudioso da matéria, não se
lançou a nenhuma investigação autêntica. Antes de se ocupar do tema já estava de
posse de uma verdade e queria apenas ilustrá-la. Essa verdade consiste na simples
proclamação de que o pensamento brasileiro sanciona as suas próprias idéias e está
formulada nestes termos: “ Enquanto outras doutrinas de importação, que se
apresentam a partir do século XIX, nos parecem simples jogo intelectual, próprio de
elites eruditas, mero ornamento de inteligências curiosas, do positivismo fica, porém,
a impressão paradoxal - é certo - de que alguma relação mais profunda existe entre a
índole dessa doutrina e o conjunto das contraditórias condições que deram origem à
vida nacional e que a impelem. Se o positivismo é aincja, como as outras doutrinas,
produto de importação, nele há, no entanto, traços que revelam a sua mais perfeita
adequação às condições de nossa formação, às realidades profundas de nosso
espírito”. Quer dizer: a adesão de Cruz Costa ao que denomino de versão positivista do
marxismo estava, desta forma, plenamente legitimada.

Os católicos de um lado e os comunistas de outro tinham também as suas versões


acerca do pensamento brasileiro. No primeiro caso, na obra do padre Franca, a
meditação nacional ilustrava o caminho de erros e desacertos da filosofia moderna, só
restando uma alternativa: aderir à neo-escolástica. No segundo, Nelson Werneck
Sodré enxergava no mesmo objeto um rosário de capitulações ao colonialismo e ao
imperialismo, cabendo tão-somente aderir às simplificações de sua religião salvadora.

É claro que além desses grupos engajados e comprometidos com posições


apriorí sticas, havia também os que partiam de uma atitude valorativa. Assim, tivemos
no passado entre os pesquisadores da meditação brasileira estudiosos da estatura de
Alcides Bezerra (1891/1938). Mas estes não tinham conseguido proporcionar-nos um
quadro coerente e convincente. Faltava-lhes o método compreensivo, criação de Miguel
Reale.

Reale e seus discípulos lançaram-se a uma pesquisa autêntica. E embora não


estejamos de acordo em todos os pontos, apresento algumas indicações do progresso
registrado.
94 Miguel Reaile na UnB

No caso da Escola do Recife, por exemplo, discutia-se se seria uma projeção do


evòlücionismo ou do monismo, como se aquele grupo notável fosse constituído de
simples diletantes, alheios à circunstância, interessados apenas em brilhar na
imprensa citando autores estrangeiros.
Ao contrário, os integrantes da Escola do Recife, que tanto ajudaram a derrotar o
espiritualismo dominante, logo se deram conta de que a adesão em massa ao
dogmatismo comteano, de parte da intelectualidade, não prenunciava nada de bom
para o país. O curso histórico ulterior iria evidenciar a pertinência de semelhante
intuição porquanto o positivismo tornou-se o elemento catalisador das tendências
autoritárias da tradição política de Portugal, levando a República a renunciar ao
projeto modernizador da elite imperial que desejava não apenas o progresso
material, mas igualmente a consolidação dos institutos do sistema representativo.
Foi justamente para circunstância brasileira que Reale e seus discípulos se
voltaram, inquirindo acerca do problema teórico com que se defrontavam os
integrantes daquela Escola. Encarada a questão desse ângulo, verifica-se que o
empenho de Tobias Barreto cifrava-se na superação do positivismo, que ia
granjeando simpatias crescentes à sua volta, como resultado, entre outras coisas, do
apoio que lhe dera inicialmente. Nessa busca, retirou afgumentos da obra de Ernest
Haeckel (1834/1919), mas não pode aceitar integralmente essa espécie de filosofia,
que deixava intocado o cerne do positivismo. Acabaria, em decorrência do contato
com o neokantismo, descobrindo a fórmula segundo a qual poder-se-ia refutar a
hipótese comteana de erigir uma física social. Segundo essa fórmula, o homem não se
esgota nas causas eficientes, tomadas por base no determinismo de tipo físico,
porquanto propõe-se objetivos a atingir e elabora o requerido plano de ação
erigindo desse modo o mundo das causas finais, o mundo da cultura, que não se
deixa explicar pelo causalismo mecânico. Surge, assim, um novo ponto de vista
acerca da pessoa humana. Essa parcela da meditação de Tobias Barreto foi
denominada de culturalismo. De sorte que a consideração do problema, como
referencial, deu nova dimensão ao exame do pensamento brasileiro, deslocando o
centro de interesse para o nosso próprio processo cultural
Tomando a esse tema como leitmotiv - o da pessoa humana - logrou-se uma visão
inteiramente nova tanto do ciclo anterior a Tobias Barreto como do que lhe seguiu.
Entre outros resultados, chegou-se a uma classificação do movimento positivista
brasileiro vinculada às circunstâncias particulares de nossa cultura, em lugar da
divisão em ortodoxos e dissidentes que tomava por modelo a França. Perdeu o
sentido a pergunta pelo modelo interpretativo, que, segundo a experiência, acabava
levando a privilegiar esta ou aquela forma de entendimento da obra de Locke, Kant,
Hegel ou de qualquer dos outros grandes filósofos que exerceram influência
universal. Fomos levados assim a verificar que as idéias efetivamente fecundas
repercutem das mais variadas formas nos diversos países, segundo os períodos
Miguel Reale e a Filosofia Brasileira 95

históricos, não fazendo sentido o empenho na busca de uma pureza inexistente para,
em seguida, confrontá-la à evolução do pensamento brasileiro.
Chegamos deste modo à evidência de que importa antes de mais nada identificar
as linhas de continuidade de nossa meditação. E, no cumprimento de semelhante
programa, registramos progressos notáveis. Retiramos do esquecimento a obra de
Silvestre Pinheiro Ferreira (1769/1846), o que nos permitiu estabelecer as etapas da
adesão brasileira à filosofia espiritualista de Victor Cousin (1792/1867). Verificamos
igualmente que essa corrente comportava uma periodização extremamente fecunda
do ponto de vista do adequado entendimento de nossa evolução cultural. Logrou-se
estabelecer os vínculos de Tobias Barreto com o momento do ecletismo e as
dimensões efetivas que veio a assumir a corrente de filosofia por ele criada, o
çulturalismo, que ocupa posição destacada em nossa meditação contemporânea.
Revelou-se, desse modo, a existência de uma corrente de filosofia prestes a completar
um século de existência e que corresponde ao amadurecimento de uma vertente que
tem raízes ainda mais antigas. A densidade filosófica desse diálogo no tempo pode hoje
ser comprovada sem maior dificuldade, graças à reedição dos textos nucleares e à
elaboração dos correspondentes estudos monográficos.
A linhagem antes descrita não corresponde certamente ao único vetor de nossa
meditação filosófica. Estamos igualmente de posse de vários elementos aptos a
sugerir a significação da herança pombalina para a cultura brasileira. A plena
compreensão desse momento deve corresponder, no futuro imediato, a uma das
linhas privilegiadas de aprofundamento da análise do pensamento filosófico brasi­
leiro e com vistas a estabelecer o lugar que ocupa em nossa evolução cultural.
Devemos alcançar, também, visão inteiramente renovada do pensamento católico.
Graças a esses progressos, conseguimos, em diversas Universidades, difundir
uma atitude de respeito diante de nosso passado filosófico. Em muitos Departa­
mentos de Filosofia mantém-se uma cadeira dedicada à disciplina. No seio da
intelectualidade, de um modo geral, o desprezo pela filosofia brasileira se identifica
abertamente com uma atitude sectária e militante. Tornou-se patentç que a
insistência na agressão à filosofia brasileira corresponde na verdade a uma luta contra
a própria filosofia, à negação de sua autonomia e autenticidade, à pretensão de
subordiná-la à política ou à religião.
Todo o trabalho que desenvolvemos, sob a liderança e o estímulo de Miguel
Reale, no sentido de inventariar a filosofia brasileira e assim revelar a sua consistência,
longe de consistir numa obra de insulamento e xenofobia. O próprio Reale expressou
de forma magistral a expectativa que nos guia ao escrever: “ Quando pesar no espírito
de nossos pensadores toda a força do presente, não como instante imediato e fugaz,
mas como a concreção de nosso passado e de nosso futuro; quando vivermos
realmente inseridos na problemática de nossas circunstâncias, natural e espon­
taneamente, sem sentirmos mais a necessidade de proclamá-lo a todo instante,
96 Miguel Reale na UnB
quando houver essa atitude nova, saberemos conversar sobre nós mesmos e entre nós
mesmos, recebendo idéias estrangeiras como acolhemos uma visita que nos
enriquece, mas não chega a privar-nos da intimidade de nosso lar” .
Miguel Reale, como acentuei, interessou-se igualmente por alguns problemas
nucleares da contemporânea meditação filosófica, a que não poderia deixar de
aludir.
Ao apresentar, em 1940, para o concurso da Faculdade de Direito de São Paulo, a
tese intitulada Fundamentos do direito, Miguel Reale coloca-se numa posição superadora
da tradição vigente naquela instituição. Superadora no melhor sentido da palavra
porquanto Reale não se propõe apenas refutar os grandes mestres que o antece­
deram, como Pedro Lessa(1859/1921) ejoão Arruda(1861/1943), que pretenderam
manter o direito insulado numa sociologia geral, de franca inspiração positivista.
Contudo, Pedro Lessa ejoão Arruda não eram simples dogmáticos do comtismo, mas
figuras humanas de grande envergadura, empenhadas em fazer com que o direito,
obra milenar, se deixasse arejar pelos ventos renovadores da ciência. Inspirando-se
nos neokantianos, sobretudo na obra de Radbruch, Miguel Reale apontará para o
caráter unilateral da perspectiva positivista daqueles grandes mestres, indicando que
não se trata de opor a esfera dos objetos naturais, campo próprio das denominadas
ciências exatas, à esfera dos objetos ideais, campo próprio da lógica e da matemática,
mas reconhecer que além desses campos há uma outra constelação de objetos, aquela
referida aos valores, que retrata com fidelidade o mundo da cultura. A investigação
autêntica deve voltar-se para toda esta realidade, procurando reconhecê-la em suas
nuanças e não segundo uma postura reducionista ou exclusivista.
Como bem acentuou Teófilo Cavalcanti Filho - outro companheiro do Instituto
Brasileiro de Filosofia de cujo convívio nos vimos privados, em 1978 na
apresentação à 2.a edição de Fundamentos do Direito (1972), o ponto de vista de Reale
consistia numa novidade de extremo valor heurístico e teria, por isto mesmo, que se
constituir num ponto de aglutinação da filosofia do direito no Brasil. Ao longo de
pouco mais de dez anos, Reale iria dar-lhe uma feição muito mais elaborada,
consoante se pode ver da l.a edição de sua Filosofia do Direito, aparecida em 1953.
Mas Miguel Reale não estava satisfeito e considera que, na herança neokantiana,
persiste ainda uma compreensão meramente formal do mundo da cultura (a esfera
dos objetos referidos a valores). Deve haver, parece-lhe, uma forma de alcançar uma
verdadeira integração entre o espírito e o real, dando lugar a um autêntico conceito de
experiência, que abranja tanto a experiência natural como a experiência ética. Tal é
precisamente o sentido da investigação que anuncia com maior clareza num ensaio
de 1966 (“ Ontologia, fenomenologia e reflexão cri tico-histórica”) e se coroa em
Experiência e cultura, livro de 197 7. Refiro apenas os pontos marcantes dessa meditação
de Reale sobre um dos temas de maior densidade da filosofia contemporânea.
Miguel Reale e a Filosofia Brasileira 97
Reale tentará a superação dos resquícios de formalismo presentes ao neokan-
tismo através da retomada e da reelaboração do conceito kantiano de consciência
transcendental com base nas noções husserlianas de intencionalidade e “Lebenswelt”
(mundo da vida).
A consciência transcendental não deve ser entendida como uma espécie de
consciência comum distinta das consciências individuais e superior a elas, mas antes
indicando algo de constitutivo no homem, encarado como ser pensante. Não se trata
portanto de identificar qualquer coisa na linha do consenso, mas de apontar alguma
coisa de radical na linha do que Kant denominou de unidade a priori da percepção.
Esse elemento, longe de ser, como queria Kant, o “ eu puro” - no sentido de
puramente lógico, abstrato e formal -, acha-se desde logo irremediavelmente
comprometido com a intencionalidade.
A intencionalidade da consciência significa que conhecer é sempre conhecer
algo. Não cabe, portanto, nenhum dualismo abstrato entre natureza e espírito, como
se fossem duas instâncias em si conclusas, quando o estabelecimento da correlação
transcendental sujeito-objeto impede se reduza a natureza ao espírito e vice-versa.
Algo haverá sempre a ser convertido em objeto, alguma coisa haverá sempre além do
que recebeu doação de parte do espírito. Nem se exaure em qualquer experiência
particular o poder constitutivo de sínteses doadoras de sentido.
A respeito do que se indicou precedentemente Reale escreve o seguinte: “ É claro
que quando falo em transcendental refiro-me necessariamente... (a) algo universal­
mente idêntico em toda consciência enquanto eu que pensa. Uma coisa é, no entanto,
admitir a “ subjetividade” do transcendental e outra bem diversa afirmar que a
subjetividade é condição transcendental de todo o real. É próprio da consciência, ao
contrário, pelo caráter de intencionalidade que lhe é inerente, reconhecer como
distinto de si o que ela assume em si mesma, o que equivale a dizer que, no ato de
conhecer e de agir, não é o sujeito que, de maneira absoluta, põe e constitui as leis
naturais ou as normas de ação. Se a relação volitiva só se dá na medida que se
conhece e se quer algo, está pressuposta “a priori” a correlação do que se conhece e se
quer com o sujeito cognoscente e agente, correlação essa só tornada efetivamente
possível no que denomino “processo ontognosiológico”, no qual eu e objeto e eu e objetivo
se implicam e se condicionam, mantendo-se distintos, mas complementares” . (O
direito como experiência, São Paulo, 1968, pág. 26). A fórmula que melhor expressaria
esse momento seria, ao invés do “ eu penso” kantiano, a concreção do “ eu penso algo
no m undo” .
Abstração feita dos objetos idéias (entes matemáticos e lógicos), onde o algo pensa­
do se reduz ao objeto, no mundo da natureza e da cultura trata-se de “algo real” .
Aqui, às estruturas lógicas formuladas pelo sujeito correspondem estruturas
ônticas. Às determinações lógicas reveladas pelo sujeito correspondem virtualidades
de determinação. “ O sujeito apreende algo como objeto, mas há algo - correspon­
98 Miguel Reale na UnB

dente ao objeto captado - que se conserva heterogêneo em relação ao sujeito mesmo,


por ser transcendente a ele e não se reduzir ao âmbito do processo cognitivo... (esse
algo) já deve possuir necessariamente uma certa determinação, uma certa estrutura
“ objetiva” virtual, sem a qual seria logicamente impossível a captação. O ser não é,
nesse sentido, o absolutamente indeterminado, mas antes o infinitamente determi­
nável” . (Filosofia do direito, 7.a ed., 1975, pág. 113).
Reale deseja evitar que da exigência da polaridade sujeito-objeto, possa resultar a
identificação entre saber e ser, presente não apenas no idealismo pós-kantiano, mas
que também se insinua na pretensão de manter o espírito confinado aos limites da
inquirição de índole científica. Além disto, deseja dar suficiente amplitude à tese
kantiana de que o conhecimento começa com a experiência, tornando-a efetivamente
abrangente. Para tanto invoca q apriorismo da relação eu-mundo, das manifestações
espontâneas e naturais do viver comum, a que Husserl denominou de lebenswelt.
“ Com a expressão “todo pólo de objetos” - escreve Reàle no mencionado ensaio
de 1966 - alude Husserl ao mundo intuitivo e familiar da vida quotidiana, à
experiência comum, a todo complexo de coisas, situações e atos originários, da mais
diversa e contrastante natureza, os quais não podem ser considerados “objetos”
exatamente por serem anteriores à ciência ou a todo conhecimento formulado
expressamente em juízos predicativos; é o mundo natural da vida ou do viver
(Lebenswelt) como experiência precategorial ou antepredicativa; o mundo pré-
científico do meramente dado, ou o reino de evidências originárias como pólo de
objetos infinitamente possíveis, ou por outras palavras, a experiência originária e
fundante, como estrutura fundamental de toda experiência em sentido concreto”.
Em obra recente - O homem e seus horizontes, 1979 - Reale teria oportunidade de
avançar estes oportunos esclarecimentos acerca dessas noções: “A distinção corrente
entre arte popular, espontânea ou intuitiva, e arte erudita, fundada em prévio
adestramento metódico e técnico, põe-nos perante outro aspecto relevante da
problemática cultural, que, penso eu, muito se enriquece com a distinção estabele­
cida por E. Husserl entre Lebenswelt (o mundo da vida espontânea) e a esfera das
realizações intencional e metodicamente adquiridas, tanto nos domínios das ciências
como no das artes.
É mister, por conseguinte, distinguir entre experiência cultural pré-categorial e
experiência cultural intencionalmente ordenada, sendo nesta mais pronunciada e efetiva
a contribuição racional, rrrnito embora nunca o processo da cultura seja isento de
fatores irracionais, cuja incidência se escalona desde o campo das artes, denso de
valores intuitivos, até os esquemas lógico-científicos dotados de sempre contestável
“ assepsia valorativa” .
Seria grave erro considerar “ irracional” a Lebenswelt, mesmo porque como a atual
Antropologia o demonstra, nenhum pensamento, nem mesmo o dos homens
Miguel Reale e a Filosofia Brasileira 99
primitivos, pode ser considerado alógico. Dir-se-ia, empregando terminologia de
Vico, que, na cultura predicativa, o que temos é “la ragione tutta spiegata”, isto é, a razão
na maturidade de sua concreção lógica.
Saliente-se, todavia, que a experiência pré-categorial e a predicativa não se ligam como
infra-estrutura e superestrutura, nem tampouco segundo um antes e um depois, ou
seja, como se fossem momentos sucessivos de uma progressiva evolução dominada
pela idéia de incessante perfectibilidade, de tal sorte que o último elo atingido
significasse o máximo grau de excelência. Ambas, ao contrário, coexistem perma­
nentemente influenciando-se de maneira recíproca.
É da maior relevância t;er sempre presente que entre os dois campos de
experiência cultural, o pré-categorial e ô predicativo, nunca cessam o fluxo e o refluxo
de influências ou “ mensagens” , num contínuo intercâmbio de “ modelos” : a vida
espontânea influi sobre a reflexiva, dando-lhe sentido existencial, e a segunda
repercute sobre a primeira, criando ou “populariando” novas exigências vitais e
alargando, por conseguinte, a área do senso comum.
Quando as estruturas predicativas perdem contato com o humus fecundante da
vida comum espontânea, temos as perversões do academicismo na arte; do logicismo, nas
ciências; do formalismo abstrato, na vida ética, jurídica ou religiosa etc.
Pode-se dizer, portanto, que Reale deu uma contribuição da mais ampla
significação para a filosofia tomada em sua universalidade ao aprofundar a
perspectiva transcendental de Kant e avançar no sentido da eliminação do verdadeiro
hiato que o maior dos filósofos alemães criara entre razão teórica e razão prática.
Seria possível apontar outras contribuições, devidas a Miguel Reale, enriquece-
doras do patrimônio comum da consciência filosófica universal - como o conceito de
ontognoseologia; a identificação do ser do homem com o seu dever-ser; a meditação
acerca da pessoa como o valor fonte; a revisão da noção tradicional de horizonte; etc.,
- mas creio que as considerações precedentes dão uma idéia adequada do estilo de
filosofar do querido mestre cuja posição na cultura brasileira a Universidade de
Brasília, em boa hora, procura avaliar.
Não poderia encerrar sem fazer menção ao Instituto Brasileiro de Filosofia,
fundado por Miguel Reale em 1949 e que há 31 anos edita a Revista Brasileira de
Filosofia; realiza encontros e promove a reedição de textos fundamentais da filosofia
brasileira. Essa instituição congrega representantes de todas as tendências filosóficas
existentes em nosso meio: neotomistas, blondelianos, orteguianos, entre os católicos;
existencialistas, fenomenólogos; positivistas; neopositivistas; culturalistas; marxistas;
etc. A coexistência no seio de uma única organização de tendências divergentes só foi
possível graças à inflexibilidade com que o grupo que a dirige, liderado por Miguel
Reale, tem assegurado a todos, em seus órgãos - a revista e os congressos - ampla
100 Miguel Reale na UnB

liberdade de opinião, desde que o debate se circunscreva às idéias. Esse feito notável,
sem precedentes, repousa aindar no fato de que Miguel Reale soube transmitir-nos a
compreensão de que o autêntico diálogo é incompatível com o espírito polêmico. No
diálogo não há vencidos nem vencedores, mas o aprofundamento da compreensão
do problema focalizado - esta a premissa básica em torno da qual se estrutura a
instituição.
Concluindo estas breves indicações da notável contribuição que Miguel Reale
trouxe para a filosofia em geral e para a filosofia brasileira em particular, certo de que
expresso os sentimentos das pessoas aqui reunidas e dos promotores do Seminário,
formulo votos de que conserve ainda por muitos anos a mesma integralidade diante
do saber e da atividade intelectual, a que se tem mantido fiel ao longo do último meio
século.
4.1. A NOÇÃO DE NORMA JURÍDICA NA OBRA DE MIGUEL
REALE__________________________________ _________________
Têrcio Sampaio Ferraz Jr.

TEXTO DA NORMA, NORMA E SITUAÇÃO NORMADA


Embora o POSITIVISMO JURÍDICO RADICAL não corresponda à concepção
mais aceita pela doutrina, a compreensão dominante da norma continua a vê-la como
um imperativo acabado e dado antes do caso concreto ao qual ela se aplica. Daí a
tendência em confundir o texto da norma com a própria norma, ou, pelo menos, a
tendência em admitir que a palavra da norma exprime, basicamente, de modo
suficiente e adequado, a sua validez. Um sintoma disto podemos observar na
constante atribuição à norma do caráter de generalidade, mesmo quando esta não é
entendida num sentido estritamente lógico-formal. Alípio Silveira, por exemplo,
afirma que a norma é, por natureza, geral, procedendo por abstração, por fixação de
tipos, e esclarece: ela se refere “a uma classe inteira ou série de casos, em
número indefinido; e não a pessoas determinadas, nem a relações individualmente
consideradas, nem a casos concretos”1. A partir daí é fácil inferir uma oposição entre
norma e realidade, em que esta é captada como um conglomerado concreto de
elementos heterogêneos ou singularmente homogêneos, juridicamente não orde­
nado. Esta oposição não é radical, pois a realidade participa da norma, na medida em
que a lógica jurídica dominante (que não é estritamente formal) a concebe não
propriamente como texto, mas como contexto, onde os elementos fáticos estão
abstratamente representados em termos de média uniforme, despojada de caracteres
específicos2. Assim, a aplicação da norma à realidade concreta é vista, na maior parte
das vezes, não como processo silogístico, mas como um processo de adaptação,
entendido como uma “operação valorativa e prudendal”3. Erriborà não radical, a
oposição estabelecida insiste, contudo, em ver na norma algo distinto da realidade,
onde a situação normada aparece como um terceiro obtido em função do ato
interpretativo.
Este é, esquematicamente, o quadro em que se desenvolve a análise crítica de
Miguel Reale. Nele estão incluídas as contribuições da jurisprudência sociológica de
Ehrlich, Duguit, Roscoe Pound, os princípios exegéticos da escola da “livre
investigação” de Geny e do “Direito livre”, da “jurisprudência axiológica” de
Westermann e Reinhardt que se propõe um reexame da antiga “jurisprudência dos
interesses” de Heck, sem falar do “realismo americano”, assim como da “lógica do
1. Alípio Silveira: Hermenêutica no direito brasileiro, dois volumes, São Paulo, 1968, vol. I, p. 242.
2. Idem, ibidem, p. 243.
3. Idem, ibidem, p. 251 ss.
102 Miguel Reale na UnB

humano e do razoável” de Recasén^ Siche|s. Sua crítica não se volta, pois, contra o
formalismo conceptual vigente ainda nos primeiros anos deste século, mas sim
contra uma certa indecisão existente ainda na doutrina atual, que permite que a
combatida concepção da “normatividade jurídica abstrata”, expulsa pela porta da
frente, entre, sorrateira, pela porta d<|>s fundos. A nós nos interessa, pois, menos a sua
oposição ao normativismo formalistade Kelsen, presente nas suas primeiras obras e,
em parte também nasj últimas, muito mais a sua visão crítica do “normativismo
concreto”, porque nela não apenas se evidencia a complexidade das estruturas
normativas - e que já encontramos, por exemplo, em Lask- mas sobretudo propõe a
superação de uma concepção dispersiva e incapaz de fazer frente à chamada “crise do
direito”, entendida principalmente como “perda de confiança nas soluções normati­
vas”, que provoca um “inegável desajuste ou conflito entre as condições existenciais e
as normas jurídicas vigentes”4.
O reexame da estrutura da norma jurídica em Miguel Reale tem um dos seus
pontos básicos na reinterpretação da própria “realidade”, à qual, o “direito” se
refere. O neoka^itismo, como sabemos, para evitar as tendências reducionistas do
sociologismo e do psicologismo jurídicos, considera esta “realidade” como produto
de um processoj de transformação, cujas condições estão na estrutura do pensamento.
Conforme a forma categorial da síntese, um mesmo “dado material”, onde o
processo de transformação se inicia, aparece-lhe, no resultado do procésso, ou como
“natureza”, oulcomo “cultura”, isto ê, ou como fenômeno social condicionado por
leis de causalidade ou como situação juridicamente significativa. Para muitos juristas
esta fórmula revela-se bastante apropriada, pois a “situação” juridicamente rele­
vante, em face da totalidade dos acontecimentos, parece efetivamente o resultado de
uma transformação que se produz através de juízos guiados por critérios de direito.
Nesta concepção, portanto, o “material dado”, ou seja, um acontecimento qualquer,
é algo não diferenciado e sem forma, o qual adquire o sentido de uma ação humana
apenas na medida em que o referimos a um sentido transcendental, por exemplo, a
norma jurídica. As próprias normas, portanto, ao contrário do que se dá no
sociologismo ou no psicologismo, não são meros reflexos daquilo que já se contém
no “material”, mas envolvem uma posição constitutiva por parte de quem as emana
ou positiva. Se isto, de um lado, garante para a norma um estatuto próprio e
particular, de outro esvazia o mundo dos fatos e, em conseqüência, a própria relação
sntre estes e a norma, concebida abstratamente no seu aspecto puramente lógico-
"xanscendental.
Ora, no pensamento de Miguel Reale, o “fato” não ê jamais tomado como “um
pretenso fato puro originário”, como um “dado bruto recebido ab extra”, mas
significa “aquilo que já existe num dado contexto histórico”; o “fato”, de um modo
geral, é, para ele, “uma porção do real ãqual se refere um conjunto de qualificações”,
ou, ^xpresso numa linguagem fenomenológica, “a base de um complexo conver­
\
4. Miguel Reale: O Direito como experiência, Sâo Paulo, 1968, p. 188.
A Noçào de Norma Jurídica na Obra de Miguel Reale 103
gente de significações, que pressupõem um eidos, isto é, uma “essência”, inconfun­
dível com o “fato”, como tal”5. Nestes termos, sob o prisma da norma (em
elaboração), “fato” quer dizer “tanto o dado de natureza ou um acontecimento
independente da vontade humana, como os eventos e realizações resultantes dela (os
objetos histórico-culturais) inclusive os modelos jurídicos enquanto j ápositivados, isto é, já
feitos pelo homem”6. Há no conceito de “fato” uma “nota de tipicidade”,
embrionária e de natureza axiológica, não sendo, portanto, algo que, em dado
momento, passa a fazer parte do mundo jurídico, mas sim algo “já dotado de
sentido”7.
Esta concepção de “fato” permite, assim, a Miguel Reale, umareinterpretação da
estrutura da norma na sua referência à “realidade”. A norma deixa da ser aí um a
priori, dado antes do caso concreto, um “esquema” ou “medida” de validez da
“realidade”8, para ser um “modelo funcional” que contém em si mesmo o “fato”,
em outras palavras, que envolve em si, como componente integrante, intrínseco e
necessário, o momento situacional. Deste modo, enquanto no normativismo
abstrato, a norma se contrapõe ao caso concreto em termos de ajuste ou desajuste,
isto é, a norma, confundida com o seu texto, é um tipo geral oposto à individualidade
concreta, à qual ela tem de ser adaptada, no normativismo concreto de Reale, a
norma se conexiona intimamente com a sua “realizabilidade”9. Por conseguinte, se
ê possível afirmar-se que a norma jurídica, enqiianto texto, é um “juízo lógico” ou
“proposição normativa” onde este ê visto como simples “suporte ideal”, graças ao
qual “uma dada porção da experiência humana ê qualificada especificamente como
“experiência jurídica”, é preciso, por outro lado, dizer-se que a norma alberga, na
sua estrutura, um campo que lhe é próprio e um programa que constituiu o seu sentido
(prospectivo). Em outras palavras, sua concepção de norma coloca dentro dela
mesma a problemática da relação “direito” e “realidade”. Com isto se elimina a
oposição que se observa mesmo em certas concepções do normativismo concreto,
entre o “direito como norma” e o “direito como conduta”. O direito é, para Reale, “a
norma e mais a situação normada”, isto é, a “situação normada” não é um terceiro,
em relação à própria norma e à realidade concreta, mas constitui, com a norma, in
concreto, uma totalidade significativa10. Com esta compreensão da norma, o campo
de seu repertório - o “complexo fático” - não pode ser analisado separadamente por
uma sociologia cega para um momento normativo, nem o programa que lhe é
imanente e que lhe confirma e lhe garante o sentido - o “complexo axiológico” -
pode ser objeto de uma consideração desligada do próprio repertório, nem,
finalmente, a própria norma, enquanto texto, pode ser entendida, se reduzida a um
mero “suporte ideal”, sob pena de incorrermos num formalismo abstrato.
5. Idem, ibidem, p. 202.
6. Idem, ibidem, p. 203.
7. Idem, ibidem, p. 205 s.
8. Paul Amselelc Méthode phénoménologique et theorie du Droit, Paris, 1964, p. 67 ss.
9. Miguel Reale, op. cit., p. 191, 192, 201.
10. Idem, ibidem, p. 188.
104 Miguel Reale na UnB

Não basta, entretanto, mostrar, topologicamente, que a norma constitui, por si,
uma estrutura complexa, onde diferentes elementos se contrapõem e se implicam
numa totalidade. É preciso uma demonstração de qualidade hermenêutica desta
estrutura, para que não se incorra nos defeitos que apresenta, por exemplo, a
concepção dialética de Schindler ou a teoria do “valer-para” de Lask, que se revelam
impotentes, quando examinadas nas suas bases ontológicas, para superar o problema
que a própria complexidade estrutural do Direito coloca e que redunda na
desorganização do pluralismo jurídico e na desintegração do seu sistema. Isto nos
conduz, pois, à análise, que Reale denomina “fenomenológica” do ato interpretativo.
Dimensão Hermenêutica da Estrutura Normativa
A interpretação, diz Reale, é sempre “ um momento àeintersubjetividade”: “ 0 meu
ato interpretativo procurando captar e trazer a mim o ato de outrem, não para que eu
mesmo signifique, mas para que eu me apodere de um significado objetivamente
válido” 11. O ato de interpretação, portanto, implica uma duplicidade inicial, onde
dois elementos polares - sujeito e objeto - estão postos um diante do outro. Esta
polaridade, entretanto, não significa um abismo irredutível, donde a constatação de
uma unidade precária,- de natureza meramente lógica, mas sim uma integração
aberta, em que os elementos constituem uma síntese: para o intérprete, aquilo que se
interpreta consiste em “algo objetivo”, mas aquele não se limita a reproduzi-lo, mas
contribui, de certa maneira, para “constituí-lo, em seus valores expressivos” 12. Num
segundo momento, contudo, esta duplicidade inicial se esclarece como “ intersubje-
tividade”, na medida em que o “ algo objetivado” a que se dirige o ato interpretativo
não è uma coisa, mas um outro ato: as “intencionalidades objetivadas” constituem o
domínio próprio da interpretação13. “ Intersubjetividade” significa, pois, uma vin-
culação entre dois elementos que se põem distintamente, mas ao mesmo tempo se
interpenetram e se limitam.
A conseqüência disto, para a hermenêutica, é a correlação assinalada por Reale
entre o ato interpretativo e o ato normativo, “ não se podendo, senão por abstração e como
linha de orientação da pesquisa, separar a regra e a situação regrada” 14. O instante de
encontro de ambos se dá propriamente na norma jurídica, entendida não como
atualização de um valor prévio e absoluto, mas como momento de uma experiência
estimativa específica, em que o complexo fático e o complexo axiológico se
sintetizam, graças à interferência decisória do Poder15. Ora, dada a natureza peculiar
da participação do Poder na “normogênese jurídica”, a imperatividade da norma
passa a distinguir-se tanto do querer psicológico do legislador quanto de uma validez
11. Idem, ibidem, p. 240.
12. Idem, ibidem, p. 241.
13. Idem, ibidem, p. 242.
14. Idem, ibidem, p. 247.
15. Idem, ibidem, p. 195 ss.
A Noção de Norma Jurídica na Obra de Miguel Reale 105

absoluta que se especifica, resultando, ao contrário, do “processo de objetivação de


valores” , que se realiza, por sua vez, através de “ manifestações concretas da
vontade” . A norma não é, assim, um “comando de ordem volitiva” , mas “ uma
prescrição de caráter axiológico, que não obriga em virtude do puro querer de quem
emana a norma, mas sim em virtude da pressão objetiva que os valores exercem no
meio social” 16. Desta concepção do ato normativo, segue-se a impossibilidade, para
o intérprete, de fazer abstração da “ nota de prescritividade valorativa ínsita na estrutura
da fórmula objetivada” 17. Ou seja, o intérprete, ao compreender a norma, refaz o
caminho da “fórmula normativa” ao “ato normativo” : tendo presentes os “ fatos” e
os “valores” -dos quais a norma promana, bem como os “fatos” e os “valores”
supervenientes, ele a compreende, a fim de aplicar em sua plenitude o “ significado
ilela objetivado” 18.
A dimensão hermenêutica da estrutura da norma torna-se, pois, evidente. De um
lado, a “realidade” , ou melhor, o “complexo fático”, inseparável da norma nos
quadros da sua normatividade, revela-sc hermeneuticamente como componente cons­
titutivo da própria norma. De outro, o “ complexo axiológico” evidencia, igualmente,
a sua qualidade constitutiva no plano hermenêutico. A dimensão hermenêutica da
norma é, na verdade, um aspecto particular da correlação sujeito-objeto, toda
interpretação implicando uma compreensão da estrutura da norma e vice-versa. Isto
é, não só o ato interpretativo se correlaciona a uma tomada de posição perante o “ ser
mesmo do direito” , mas também a análise estrutural da norma exige a dimensão
hermenêutica: “toda norma, por ser sempre representação de um valor e objeto de
volição, jamais pode deixar de ser interpretada, não podendo haver norma que
dispense interpretação (essencialidade do ato interpretativo)”1^. A norma se clarifica, neste
sentido, como “modelojurídico” enquanto “estruturação volitiva do sentido normativo
dos fatos sociais” , referido a “ modelos dogmáticos” , enquanto “estruturas teoré-
ticas” que procuram captar e atualizar o valor da norma na sua plenitude20.
Os “ modelos jurídicos” não são puras abstrações, ou seja, não são meros
esquemas ideais, pois a normatividade que eles expressam abstratamente se articula
necessariamente com “ fatos” e “valores”, configurando-lhes o caráter de “ modelos
operacionais”. Eles resultam de um “trabalho de aferição de dados da experiência”,
tendo em vista a determinação de um tipo de comportamento possível e também
necessário à convivência humana21. Do mesmo modo, os “ modelos dogmáticos”
também não são nem puras abstrações nem meros esquemas de aplicação, mas
envolvem “ uma certa opção ou preferência”, resultante da aferição objetiva dos
elementos analisados, correspondendo a uma “ intencionalidade teórico-compre-
16. Idem, ibidem, p. 246, 248 ss., 132.
17. Idem, ibidem, p. 245.
18. Idem, ibidem, p. 247.
19. Idem, ibidem, p. 250.
20. Idem, ibidem, p. 163.
21. Idem ibidem, p. 165.
106 Miguel Reale na UnB

ensiva”, cuja natureza é também operacional. Na concepção de modelo de Reale, pois,


existe uma articulação dos pressupostos teoréticos com a atualização da experiência,
em termos operacionais. Com isto é possível e mesmo necessário correlacionar o
“ momento abstrativo” do estabelecimento volitivo da regra com o “momento
dogmático” da sua compreensão, o que implica, em última análise, a superação do
entendimento da Dogmática Jurídica no sentido de mera aplicação prática22.
Este correlacionamemo, ademais, não se dá na forma de um recorte isolado no
fluxo da experiência jurídica. Ele não é estático, o que o tornaria abstrato, em que
pese o caráter concreto-operacional dos elementos postos em relação. Ao contrário, o
próprio movimento entre ambos, submetidos ao que Reale denomina de “ dialética
de implicação-polaridade”, é dinâmico. Esta dinamicidade peculiar localiza-se na
sua natureza essencialmente axiológica. Os valores, para ele, não podem ser
concebidos sem a sua permanente referibilidade histórica, na medida em que
transcendem cada forma de objetivaçào normativa, no ato mesmo em que a tornam
possível23. Assim, se de um lado, a norma jurídica assinala um “ momento con­
clusivo”, mas não isolado e abstrato, visto achar-se inserida num “ processus” sempre
aberto à superveniência de novos fatos e novas valorações24, isto exige, por outro, por
parte do intérprete, uma atitude “ histórico-cultural” que vai, por assim dizer, para
além de uma semântica ingênua, no sentido de que as palavras da norma podem
assumir um significado não previsto pelo legislador. A temporalidade própria do
direito, afirma Reale, não é, pois, necessariamente sucessiva e linear, “ podendo
comportar tanto a interpenetração como a simultaneidade das formas e fases”25. O
próprio ato interpretativo, por isso, significa, ao mesmo tempo, a sobrevivência de
formas temporais passadas e a projeção das significações passadas no futuro, no
sentido da sua atualização prospectiva26.
A dimensão hermenêutica da estrutura da norma revela, deste modo, para a
pesquisa científica do direito, a integração do “ momento de abstração conceituai” e o
“ momento técnico ou operacional”, não havendo interpretação e aplicação da
norma que não implique o sentido da totalidade do ordenamento, “ nem apreciação
de um fato que juridicamente não se resolva em sua qualificação, em função da
tipicidade normativa que lhe corresponde”27. A concepção de Reale da estrutura
da norma, acolhendo no seu interior as exigências axiológicas e as condicionalidades
existenciais que nela se transformam nas razões imanentes da normatividade,
diríamos, hermenêutica, permite, pois, uma visão organizada dos fenômenos de
positivação e de aplicação do direito. No ponto intermediário de convergência, a

22. Idem, ibidem,, p. 167.


23. Idem, ibidem, p. 258 ss.
24. Idem, ibidem, p. 210.
25. Idem ibidem, p. 224.
26. Idem, ibidem, p. 232.
27. Idem, ibidem, p. 128.
A Noção de Norma Jurídica na Obra de Miguel Reale 107

norma não é vista como condição a priori de uma decisão, condição cuja certeza
garante a certeza da decisão, mas é, ela própria, o produto de um processo decisório
multidimensional. Isto abre caminho para um reexame do direito como uma
constelação de fatores em comunicação.
ESTRUTURA DA NORMA E PROCESSO DE COMUNICAÇÃO
No seu “O direito como experiência”, que nos parece sua obra mais importante e
que nos serve de base para exame do seu pensamento, Miguel Reale, ao encerrar sua
análise sobre o tempo no direito, afirma-lhe o caráter não necessariamente sucessivo
ou linear. Segue-se daí, continua ele, a possibilidade de que a Cibemédca venha abrir
novas perspectivas para a compreensão do tempo social e histórico, pois, de acordo
com McLuhan “a sincronização instantânea de numerosas operações, própria da
automação, tornam sem sentido o modelo mecânico das operações em seqüência
linear”28. Nestes termos, conclui Reale, os “modelos jurídicos” obedecem a uma
“temporalidade concreta”, caracterizada por um permanente “renovar-se ou
refazer-se das soluções normativas”29. Este entendimento do modelo jurídico, que
implica a sua operacionalidade, não exclui a linguagem cibernética, embora a ela não
se reduza30.
A palavra cibernética, originalmente, não se referia aos problemas lingüísticos. O
seu modelo inicial é o da “retroalimentação”. O princípio da “retroalimentação”
permite a conservação da situação de estabilidade em sistemas fechados. Dado o fato
de que inúmeros fenômenos biológicos, ou melhor, fisiológico podiam seír esclareci­
dos através dele - por exemplo a temperatura do corpo —, a cibernética passou a
ocupar-se cada vez mais com o homem, sobretudo no terreno da teoria da
informação, cuja aplicabilidade aos problemas lingüísticos é patente31. Para Wiener,
a “informação” não é nem matéria nem energia, mas um terceiro. O modelo
lingüístico aí subjacente é o moelo “ontológico” tradicional, na medida em que à
palavra (sinal gráfico ou fonético) atribui-se a qualidkde especial: “informação”. Isto
se revela com clareza no campo jurídico. Wiener esclarece que, para que os cidadãos
possam ter uma estimativa prévia segura dos seus direitos e deveres, é exigida, a
possibilidade de previsão das decisões judiciais em cada caso dado. Isto pressupõe
que as normas mais especificamente, as leis sejam claras. Segue-se, daí, a obrigação,
para o legislador, de produzir enunciados claros e unívocos, de tal modo que não
apenas o jurista, mas qualquer pessoa pudesse interpretámos de uir único modo. O
próprio Wiener reconhece o caráter ideal desta concepção, afirmando mesmo que, na
verdade, qualquer conceito jurídico novo só se toma inteligível e toma um sentido

28. Idem ibidem, p. 224. M cLuhan: Understanding media: The extensions of man, Nova York, 1964, p. 301 ss.
29. Miguel Reale, op. cit., p. 225.
30. Idem, ibidem, p. 176 s.
31. Norbert Wiener. Homem e sociedade -O uso humano dos seres humanos, trad. J.P. Paes, São Paulo, 1968, p. 16 ss.
108 Miguel Reale na UnB
determinado depois de passar por um processo de precisão, através da jurispru­
dência32.
A aplicação da cibernética ao direito é vista, por isso, pelos próprios juristas com
alta dose de ceticismo. A doutrina tradicional concebe o papel do juiz, no processo
comunicativo, em termos de mero receptor passivo, em que pesem as teorias sobre a
participação ativa da jurisprudência na produção do direito. Por parte do legislador
estabelece-se a exigência supramencionada de clareza e precisão. É evidente que esta
exigência, nos quadros tradicionais, não pode ser mantida. Mesmo um legislador
dotado de uma fantástica imaginação não pode prever todas as situações futuras. Por
isso, o juiz, que não pode furtar-se a uma decisão, ou se vê obrigado a recusar
relevânciajurídica a um fato não previsto ou a “criar”, ele próprio, um modelo novo,
capaz de resolver o problema, mas de algum modo, sem deixar de prender-se aos
modelos normativos vigentes. Este dilema se funda numa concepção da linguagem,
onde a relação norma-realidade tem de ser abstratamente colocada, e que culmina no
problema da lacuna. Na doutrina tradicional, cada expressão conceituai de um
comportamento refere-se a um comportamento “real”. Isto pressupõe que esta
referência seja clara e conhecida por todos. Sabemos, entretanto, que na própria
literatura jurídica, isto não se dá. Há uma tendência generalizada, sobretudo na
civilística, em admitir que a lei se serve, necessariamente, de expressões genéricas, o
que exige do aplicador da lei um trabalho de interpretação e de concretização do
preceito abstrato. Do ângulo da teoria da ciência, esta exigência, entretanto, não é
vista como uma limitação, mas ao contrário, como uma conquista do progresso
científico33: o processo de abstração, numa comunidade lingüística, indica o
caminho do progresso, assinalando o uso de expressões abstratas um alto grau de
desenvolvimento. A abstração toma-se, neste sentido, um instrumento de precisão
da comunicação. No plano jurídico, a utilização de conceitos abstratos está unida à
possibilidade de cobrir-se a desproporção entre o logos limitado e o ilimitado das
situações concretas ou, pelo menos, à possibilidade conferida ao juiz de cobrir, por
meio da analogia, o vácuo normativo. A utilização da analogia, entretanto, como
vimos, revela-se, ao contrário, como um fator de insegurança, na medida em que não
há nem pode haver uma delimitação precisa do princípio da semelhança. Isto coloca o
juiz ou o advogado ou o promotor, enquanto receptores no processo comunicativo,
na difícil situação de procurar, através de comparações aproximadas, a relação entre
casos concretos, referidos a padrões abstratos, dificuldade que qualquer jurista pode
perceber já no compendiar as revistas especializadas e que reproduzem catálogos de
decisões, remetidas a índices de termos-chave, necessariamente incompletos e
imperfeitos.
A este modelò lingüístico e epistemológico aqui esboçado vincula-se, pois, a
Dogmática Jurídica tradicional, prendendo-se ao princípio de divisão dos poderes,
32. Idem, ibidem, p. 106 ss.
33. Cf. E Albrecht: Beitrage zur Erkenntnistheorie und das Verhältnis von Sprache und Denken, Halle, 1959, p. 77
A Noção de Norma Jurídica na Obra de Miguel Reale 109

que, em termos comunicológicos, implica uma concepção abstrata do sistema


jurídico enquanto sistema de comunicação. Prevalecendo aí o aspecto técnico-formal
de vigência da norma, cujo sistema se ordena, basicamente, segundo uma escala
linear e hierárquica, a doutrina tradicional torna-se cega para a exigência de
operabilidade e comunicação do discurso jurídico34. Uma superção deste ponto de
vista só se produz por uma recolocação do problema da linguagem jurídica em
termos comunicológicos, em cuja base está uma concepção concreta da norma, tal
como a encontramos em Miguel Reale. Esta recolocação pressupõe uma perspectiva
semiótica, onde as funções pragmáticas, semânticas e sintáticas da linguagem são
vistas de um ângulo integrador, que encontramos esboçado na concepção de norma
de Miguel Reale, vista como um “modelo volitivo tridimensional concreto e
dinâmico”. Esta concepção permite, desde logo, um relacionamento novo dos
componentes do processo de comunicação do direito, na medida, por exemplo, em
que se supera a visão abstrata da dogmáticajurídica como mero receptor passivo que
simplesmente aplica a norma “emitida” pelo legislador lato sensu. Mas, sobretudo, a
idéia de que à regra jurídica é inerente a informação da “exigência de uma opção
axiológica havida como essencial a uma conduta típica”35, nos remete necessaria­
mente ao sentido operacional do direito.
Este sentido operacional implica que as regras de comportamento e seus
objetivos não são fixados a priori (isto é, o Direito não é um a priori formal da vida
social, à maneira neokantiana) mas são resultado de um processo. A palavra resultado
não nos deve confundir. Ela deve ser entendida no sentido de opção axiológica”, pois
para Reale, todo valor, inerente à norma, é escolhido, não pertencendo a ela por
natureza. Assim, valores, uma vez escolhidos na positivação normativa, podem
mudar, ou porque os fatos que eles iluminavam são outros ou porque os objetivos
qúe eles prescreviam se transformaram. Ora isto explica a possibilidade de
proliferação de objetivos e o conseqüente aparecimento de conflitos em larga escala.
Ora, o sentido operacional do modelo jurídico está justamente na inversão desta
possibilidade, na medida em que, na solução normativa, o número de objetivos se
reduz, tornando-se possível o controle dos conflitos. Este sentido operacional não se
localiza, pois, nem nas proposições valorativas - não se deve matar - nem , nas
proposições fáticas - há homens que matam outros homens - mas é algo peculiar à
norma - quem matar será punido.

34. Miguel Reale, op. cit., p. 172 s.


35. Idem, ibidem, p. 176.
4.2. COMENTÁRIOS DE MIGUEL REALE

Ê para mim, não há dúvidáàgrande alegria ter de dialogar, primeiro, com um amigò
que conheci através do diálogo das idéias, que é Antônio Paim. As amizades,^
que vamos formando ao longo do tempo, têm diversas fontes. Uma delas pode nascer
apenas da sedução de um conceito, de um pensamento que encontra ressonância em
nosso espírito. E assim surge uma amizade espiritual. E essa a amizade que me liga a
Paim.
Igual prazer me proporciona o diálogo com Tércio Sampaio Ferraz Jr., meu ex-
aluno, cuja capacidade criadora desde logo identifiquei, mesmo antes de haver
Departamentos, porque, quando o professor tem o sentido de participação, apesar da
aparente distância da cátedra, sabe discernir os valores, identificá-los e, na medida do
possível, torná-los próprios. Não há maior alegria, para um professor, do que se
encontrar com os discípulos de ontem e os mestres de hoje, como é o caso de Tércio
Sampaio Ferraz Jr., como foi ontem o de Celso Lafer, como foi anteontem o de
Ronaldo Poletti.
É esse o privilégio dos professores: sentirem-se projetados no tempo, reencon­
trando em seus antigos discípulos algo que foi pensado e intuído por eles,
freqüentemente enriquecido dê potencial e de novas perspectivas.
Feitas ess^s observações iniciais, vou tecer^lgumas considerações breves sobre o
que acabaimos de ouvir, menos para esclarecer do que para demonstrar que no Brasil
já está havendo algo de novo: uma troca de idéias, entre nós mesmos, na imanência de
nossas circunstâncias.
Fez bem Antônio Paim em dar realce inicial à problemática da Filosofia
brasileira. Confesso que, desde muito jovem, era para mim um desconsolo ler
continuamente, nos livros de História da Filosofia, quase como um ramerrão e um
realejo, esta afirmação tristonha: “A Historiada Filosofia no Brasil não tem sido outra
coisa senão a melancólica história das influências recebidas”.
Reagi contra essa maneira passiva de olhar o pensador brasileiro, assim como
reagi contra aqueles que chegavam ao ponto de dizer que o brasileiro, herdeiro do
português, não tinha bossa para filosofar. Afirmação duplamente errônea. Em
primeiro lugar, porque Portugal deu contribuição significativa^ ao pensamento
filosófico, tanto no plano da Lógica, como no da Metafísica, embora sem nos ter
112 Miguel Reale na UnB
dado um Descartes ou um Hegel. O que ocorre é que não se estuda o pensamento
português, e fala-se dele sem conhecê-lo. Por outro lado, não hã povo incapaz de
filosofar, visto como a Filosofia é o homem mesmo na sua inquietação, nas suas
dúvidas e nas suas perplexidades.
Partindo da noção fundamental de que “quem diz homem, diz um problema”,
perguntei: será que os nossos pensadores foram tão passivos assim, meros escribas do
pensado alhures? À medida que ia tomando contacto com Clovis Bevilacqua, Tobias
Barreto, Silvio Romero, Jackson Figueiredo, Farias Brito, e assim por diante, ia
percebendo que havia algo de novo na maneira de expressar as idéias alheias, pois na
forma de ser influenciado também pode haver algo de positivo. Nós nos deixamos
influenciar na medida da nossa própria personalidade e de nossas próprias
circunstâncias.
Esta, a primeira observação. Como foi influenciado, em que sentido foi atraído o
pensador nacional? Havia, portanto, a necessidade de proceder-se a uma análise
fenomenológica das influências recebidas e, através dela, reconstituir a intenciona­
lidade originária que determinara a escolha de uma teoria ou a preferência por certos
temas considerados prioritários no âmbito de nossa cultura.
Essa minha mudança de atitude em face do problemafilosófico brasileiro logrou,
felizmente, encontrar ressonância na geração posterior, a que pertence Antônio
Paim.
É motivo de melancolia, neste instante que é de tanta ternura, lembrar alguns
jovens que a morte inexorável afastou de nosso convívio, quando estavam desenvol­
vendo uma obra fecunda de descoberta de nós mesmos, no campo das idéias. Refiro-
me, especialmente, a Luiz Washington Vita, Luís Antônio Machado Neto e Teófilo
Cavalcanti Filho. Faço questão de lembrar esses nomes para mostrar à juventude que
o ato de filosofar não é um ato isolado e perdido no tempo, mas sempre um trabalho
de equipe e de continuidade. Que a Filosofia é um patrimônio histórico que se
acumula através de um diálogo que será tanto mais poderoso quanto mais se inserir
na intimidade de nossas razões vitais, sem que isto importe em olvido ou desprezo
pela tradição filosófica que nos liga a Platão ou a Aristóteles.
Outra observação que me ocorreu, já foi focalizada por Antônio Paim, de cuja
exposição nada posso discordar, tão feliz foi ele na abrangência dos pontos capitais.
Poderia resumi-la talvez nesta pergunta: “ Será que as idéias assimiladas tiveram no
Brasil significação e sentido iguais aos vigentes em sua pátria de origem?”
Eis aí uma pergunta que somente se tornou possível com o advento e o progresso
dos estudos de “ Sociologia do Conhecimento”, os quais vieram demonstrar que até
mesmo as teorias mais abstratas, que parecem planar no limbo do pensamento puro,
estão presas por liames às vezes subtis, às circunstâncias individuais e coletivas que
Comentários de Miguel Reale 113

condicionam a existência do pensador. Mais recentemente se diz, com Husserl, que a


Filosofia, como todas as ciências, lança raízes no “ mundo da vida” , de tal modo que
talvez fosse preferível falar em “ Culturologia do Conhecimento” .
Tratava-se, por conseguinte, de verificar se não teria havido significativa diferença
na atuação do pensamento europeu nas contingências e conjunturas históricas do
Brasil. Será que o positivismo de Augusto Comte, atuando na França, perguntava eu,
teve o mesmo significado do positivismo vivido no Brasil, na peculiaridade de nossas
circunstâncias?
Para limitar-me a esse exemplo, pondero que o positivismo surgiu na França
após um longo processo filosófico, que teve início com Descartes e a teoria da dúvida
metódica. Passou, depois, por uma experiência racionalista abstrata que provocou a
reação cética de Voltaire e o revisionismo científico do Iluminismo dos enciclope­
distas, bem como o impacto ético-político da obra de Jean-Jacques Rousseau.
Finalmente, Augusto Comte tivera, como seus precursores imediatos, os represen­
tantes da “ ideologia”, cuja importância vem sendo salientada, por exemplo, por
Georges Gusdorf.
Assim sendo, o positivismo na França era um ponto de chegada, através de uma
evolução operada na imanência do próprio pensamento francês.
Importado pelo Brasil, o positivismo adquiriu uma feição diferente e realizou
tarefa diversa. Não me refiro, entendamo-nos, ao positivismo religioso, à Filosofia da
religião, seguida por Miguel Lemos e seus companheiros do Apostolado Positivista
do Rio de Janeiro ou do Rio Grande do Sul. Refiro-me, especialmente, ao
“ positivismo científico”, ou melhor, à Filosofia da ciência de inspiração positivista
que constituiu o patrimônio espiritual de pelo menos duas gerações do Império,
condicionando sua cosmovisão e suas concepções políticas e jurídicas. Até mesmo
Rui Barbosa, como o demonstrei fartamente, quando emitiu, na qualidade de
deputado, seus preciosos e famosos Pareceres sobre o ensino no Brasil, era
fundamentalmente um “positivista”, no sentido lato desta palavra.
Ora, o positivismo teve ressonância no Brasil como força capaz de superar o
escolasticismo decadente, de um lado, e, do outro, um ecletismo espiritualista que já
se estiolara em fórmulas rotineiras ou retóricas, após as contribuições significativas de
Gonçalves de Magalhães, Pedro de Figueiredo ou Eduardo Ferreira França. O
positivismo teve, entre nós, essa função de contrapor-se à escolástica tradicional e de
provocar até mesmo a sua revisão. Ante o ataque positivista, a Escolástica procedeu à
sua autocrítica, dando origem à neo-escolástica com valores novos e muito
significativos no pensamento brasileiro.
Isto quer dizer que, num país, que não passara pela dúvida metódica de
Descartes, pelo ceticismo de Voltaire, e muito menos pelo criticismo de Kant, a vaga
114 Miguel Reale na UnB

positivista batia nas praias de nossa cultura com a força reveladora de uma Filosofia
renovadora e crítica. Não obstante suas insuficiências, a Filosofia Positiva, que
prevaleceu em nossas Escolas de Direito ou de Medicina representou, por assim
dizer, a forma de Filosofia crítica correspondente às nossas circunstâncias, desempe­
nhando um papel inconfundível com o que teve na França.
De outro lado, a Filosofia da Religião de Augusto Comte, - a qual, do Apostolado
Positivista se estendeu à Escola Militar, com Benjamin Constant à frente, - trazia-nos,
concomitantemente com uma série de idéias autoritárias e “caudilhescas” , que iam
repercutir tão profundamente em nosso ser nacional, trazia-nos também uma
preocupação real pelos problemas do povo e do proletariado, o que representou algo
de novo num País sem tradição socialista. Esse ponto foi devidamente realçado por
João Cruz Costa, com o equívoco, porém, de colocá-lo na primeira plana do
pensamento pátrio,
Eis aí exemplo de como uma corrente de idéias pode ter ressonâncias diversas e
imprevisíveis quando os seus modelos são transplantados de um rneio cultural para
outro.
Pois bem, foi à luz desses e outros critériôs epi$temológicos e metódicos que um
grupo de jovens estudiosos, entre os quais, hòje se destaca Antônio Paim, veio se
colocar ao meu lado, nessa tarefa fascinante dè conhecer-nos melhor, com abandono
de preconceitos negativistas.
Minha função foi apenas a de apontar um caminho, depois layrado com tanta
eficiência por um grupo extraordinário de pesquisadores. /Fòi-nõs, então, possível
descobrir na Filosofia do Direito, por exemplo,, o que havia de original em Pedro
Lessa - talvez o único jurista a captar a Lógica de Stuart Mill e a aplicá-la,
conseqüentemente, no campo do Direito. Recuando mais no tempo, foi-nos dado
deparar com um fato singular, a repercussão dò pensamento de Kant no fim da era
colonial, nos cursos mantidos por Martim Francisco Ribeiro de Andrada e Diogo
Antônio Feijó.
Como estão vendo, no Brasil nunca faltou curiosidade filosófica, e nem sempre
foi tão defasada, como se costuma propalar. Bastará este fato: em 1830, Victor Cousin
desenvolvia o primeiro curso de Filosofia sobre Kant na Sorbonne. Em 1816, ou
1818, às vésperas da Independência, na então pequenina cidade de São Paulo, houve
aulas sobre Kant dadas por Martim Francisco, com tamanha repercussão que os
grandes naturalistas Martius e Spitz ficaram perplexos por encontrarem, nas terras
virgens da América, homens que se referiam com entusiasmo ao pensamento de
Kant.
Não importa, como bem mencionou Paim, que Antônio Feijó ou Martim
Francisco tenham recebido o kantismo através de autores franceses, como Willers, de
Comentários de Miguel Reale 115
maneira incipiente, pois também Willers ainda não se dera conta de todos os valores
da concepção transcendental de Kant. De modo que o problema não consiste em
saber-se se Feijó era um kantista puro. O importante é verificar que Feijó e Martim
Francisco já distinguiam, na sua época, entre uma Filosofia dogmática, uma Filosofia
cética e uma Filosofia crítica, optando pela terceira. Outra questão, que ficara
olvidada, não merecendo sequer uma linha do Pe. Leonel Franca, apesar dos méritos
de suas páginas sobre História da Filosofia no Brasil, era o do krausismo, que formou várias
gerações de estudantes na Faculdade de Direito de São Paulo, influindo, até certo
ponto, sobre alguns líderes da chamada República Velha.
Pois bem, esse e outros filões do pensamento brasileiro foram revelados,
havendo ainda muito a fazer, para completar-se o belo panorama traçado por
Antônio Paim em sua “ História das Idéias Filosóficas no Brasil”. Folgo, aliás, em
registrar, que em várias Universidades brasileiras, este assunto já constitui disciplina
obrigatória nos Cursos de Filosofia.
Outro problema relevante era e continua sendo o da publicação das “fontes do
pensamento brasileiro” , com a reedição de obras raríssimas que dormiam nas
sombras dos arquivos. " . '
Nesse sentido, somos devedores a Antônio Pairri, por ter reconstituído a obra de
Silvestre Pinheiro Ferreira, o grande mestre português que desenvolveu um curso de
Filosofia, no Rio de Janeiro, logo após a chegada de D. João VI, curso esse publicado
em fascículos pela Imprensa Régia. Só eram conhecidos dois exemplares dessa obra,
ambos mutilados: um na Biblioteca Nacional e outro em Lisboa. O trabalho de Paim
consistiu em confrontar as duas edições e publicar “As Preleções Filosóficas” de
Silvestre Pinheiro Ferreira, que foi o ponto de partida do pensamento brasileiro. A
seguir, outros volumes de igual interesse vieram à luz, e, hoje, já possuímos uma
significativa “ Estante do pensamento brasileiro”, graças à contribuição inestimável
da Universidade de São Paulo, ora enriquecida pela de Brasília. Filosofava-se, como
se vê, sobre o Brasil sem ter o cuidado prévio de fazer-se o levantamento bibliográfico
e a análise dos textos. Esse erro já foi em parte superado.
Tal visão da Filosofia do Brasil corresponde muito a uma tendência natural em
meu espírito, no sentido de não reduzir a Filosofia a um simples brinco da
inteligência. O pensador autêntico não é mero leitor de sistemas. Hegel, certa feita,
fez uma crítica irônica à Escolástica, à Escolástica estereotipada do seu tempo,
dizendo que o escolástico se comporta como alguém que fica à margem de um rio
para aprender a nadar, lendo um tratado de natação, mas sem coragem de se lançar à
água...
Em filosofia, devemos afrontar o risco de pensar por nós mesmos. Quando
reclamei “ um pensamento próprio” (que alguns confundiram com o desejo de um
pensar autóctone ou tupiniquim) houve quem sorrise apodando-nos de “filoso-
116 Miguel Reale na UnB

fantes”. Recebemos o adjetivo com orgulho e até com certa vaidade. O que queria era
que o brasileiro passasse a pensar com a própria cabeça, dialogando com filósofos
estrangeiros, está certo, mas sem a petulância de olvidar o já pensado e dito no Brasil,
às vezes até com antecedência. O que importava, em suma, era perder o receio de só
reproduzir e criticar idéias alheias.
Foi assim que veio se delineando e afirmando a Filosofia brasileira, ou, para
evitarmos equívocos, o estudo sistemático da Filosofia no Brasil, indagando-se de seu
estilo, preferências e prioridades. Ainda há duas semanas, a tese de concurso à Livre
Docência, na PUC de Campinas, versou sobre “Vicente Ferreira da Silva no
pensamento Nacional”, e os dois pontos sobre os quais o candidato coube dissertar
foram: “ O Positivismo e seus Reflexos no Brasil” e a “ Doutrina Filosófica de São
Paulo na Primeira metade deste Século”. Fatos como esse me envaidecem e me
entusiasmam, pois, como disse, num trabalho de 1960, na Universidade do Ceará, “ a
Filosofia é a autoconsciência de um povo” . Enquanto um povo não filosofa por si
mesmo, na imanência de sua própria concretude, ainda não atingiu a maturidade.
Abram um livro de Filosofia da Alemanha: é um diálogo entre alemães, com ,
referência, de quando em quando, ao pensamento alheio. Abram um livro de
Filosofia francesa: é um diálogo entre franceses. Vamos passar a dialogar entre nós
mesmos e verificar e receber o pensamento estrangeiro como diretrizes básicas
fundamentais. Isto não significa, de maneira nenhuma, que devamos pôr entre
parênteses Kant, Russell ou Hartmann. Absolutamente. O meu pensamento está
denso dessas influências, mas nunca a influência de Kant, ou a de Hartmann foi
recebida como um modelo dominante e insuscetível de crítica. Pela mesma razão,
nehum de meus discípulos é meu seguidor passivo. Orgulho-me de discípulos que
não seguem integralmente meu pensamento e também dos que se distanciam de
minhas teorias, mas que, quanto ao método éà atitude de filosofar, são fiéis a algo que
lhes transmiti. É essa a continuidade cultural que importa como condição de um
diálogo profundo. A grandeza da Filosofia, como máxima expressão da liberdade,
consiste na possibilidade de nos entendermos, mesmo divergindo.
No que se refere à tese de Tércio Sampaio Ferraz Filho, tão densa de poder de
análise, bastará dizer que ele fere um dos pontos culminantes da teoria tridimen­
sional do Direito. Não cheguei ao chamado normativismo jurídico concreto de
repente. Quando vejo algumas pessoas citarem a minha Filosofia do Direito, edição de
1953, fico um pouco preocupado, porque essa edição está inteiramente superada. A
“ Filosofia do Direito” de 1953 era uma; a de 1980 já é bem diversa. Porque jamais me
contentei com o que já havia pensado. A minha concepção tridimensional, de início,
era abstrata, ainda sob a influência do neokantismo de Windelband, Rickert e
Radbruch. Posteriormente é que evolui para uma compreensão dialética dos três
fatores - fato, valor e norma - desenvolvendo as teses do historicismo axiológico, em
cujo conteúdo se situa o conceito de “concreção normativa”.
Comentários de Miguel Reale 117
Mais recentemente, a partir de meu livro O Direito como Experiência, é que surge
uma terceira fase na teoria tridimensional, marcada pelas meditações sobre os
modelos jurídicos em correlação com o embasamento d a Lebenswelt (mundo da vida)
de inspiração husserliana.
Apesar dessa evolução, confesso que não me dou por satisfeito, e vejo que Tércio
descortina alguns problemas novos. Na realidade, um filósofo que está contente
consigo mesmo é um filósofo que já morreu, que já é história de si mesmo. E eu ainda
não quero ser história. (Risos). Quando olho para os jovens aqui presentes, recebo um
estímulo no sentido de continuar a pensar, se possível, não com o ímpeto que eles
têm, mas com o desejo de competir com eles, como eles estão querendo competir
comigo. Nessa competição do intelecto é que está a força da cultura.
O.ra, disse muito bem Tércio que na teoria do normativismo concreto existe
sobretudo uma resistência á instrumentalização da obra do jurista. Pretendo dizer
isto de outra forma, que marca um certo desencanto que tenho tido ao longo da
minha vida. Quantas e quantas vezes, participando da administração pública, em
cargos de responsabilidade, como o de Secretário da Justiça, ou de Consultor para
determinados problemas fundamentais do Estado, me contristava verificar a posição
secundária em que é posto o jurista. O economista traça o seu programa e o expressa
numa linguagem que por ironia se chamou “ economês” . O técnico, que projeta uma
usina hidroelétrica, traça o seu plano e, depois que o traçou, pensando ter resolvido
tudo, chama o jurista e lhe diz: “articula isso, ponha isso em lei” , como se o jurista
fosse apenas um instrum entalizador- o que Tércio muito agudamente criticou - ou
seja, sempre instrumento da obra alheia. Não se pode planejar no mundo
contemporâneo sem ouvir o jurista antes, durante e depois. Quando o jurista é
chamada para ser ouvido depois, muitas vezes já está tudo perdido, e ele apenas
procura diminuir as conseqüências perniciosas daquilo que foi feito. Inclusive, do
ponto de vista técnico, o jurista deve estar presente, a fim de verificar se não há
obstáculos de ordem legal, no plano interno ou internacional.
Mas, para isso, meus caros amigos, meus caros jovens que me estão ouvindo, é
necessário que também o jurista mude de mentalidade. O jurista deve deixar de ser
apenas um especialista formado para o Foro. Há uma mentalidade puramente
forense no preparo jurídico. Lembremos, porém, que o Foro é o hospital do Direito.
Quando o Direito está doente, o advogado leva o doente ao Foro para que, através da
prova e da argumentação, - que é “ a dialética do discurso persuasivo” , o juiz possa
prolatar a sentença e restabelecer a vida do Direito. As vezes, a sentença, em lugar de
ser de vida, é de m orte (Risos), mas este é um outro problema. De qualquer maneira,
em tese, procura-se a saúde jurídica, a saúde da Justiça, quando se vai ao Foro. É um
campo formidável da atividade jurisprudencial. Porém, não deve ser o único destino
de quem estuda leis. Há o campo das consultorias técnicas, das consultorias
empresariais, em que o jurista deve estar presente não apenas como instrumento do
querer produtivo do empresário, mas como partícipe e orientador de uma obra social
relevante, inseparável dos valores jurídicos.
118 Miguel Reale na UnB
Tive uma experiência - experiência que jamais esquecerei, - durante a
construção da Usina de Itaipu, quando da assinatura do famoso Tratado entre o
Brasil e o Paraguai. Coube-me a honra de ser consultor “ad hoc” dos juristas e
diplomatas do Itamaraty. Como eu era um homem que vinha do setor empresarial
energético - na vida do intelectual brasileiro não é possível sermos só filósofos, somos
obrigados a ser técnicos, juristas, advogados e assim por diante - pude verificar
quanto o jurista pode e deve interferir criadoramente na elaboração do modelo mais
adequado a este ou àquele tipo de usina hidroelétrica. A de Itaipu envolvia problemas
de Direito Internacional, de Direito do Trabalho, de Direito Civil, Penal, etc. Poucos
sabem, por exemplo, que na “empresa binacional” de Itaipu prevalece o “ jus
sanguinis”, e não o “jus soli”: filho de brasileiro é brasileiro, ainda quando nascido
além da linha ideal da fronteira paraguaia, e vice-versa. Por outro lado, Itaipu tem seu
pequeno “ Código de Direito do Trabalho”, assim como tem sua própria moeda, de
natureza autuarial. Sem a colaboração criadora do jurista, como teria sido constituir
esse modelo singular, de uma empresa que participa, ao mesmo tempo, dos valores
da empresa privada e de uma entidade internacional?
Quando essa usina extraordinária estiver funcionando, não se lembrem apenas
dos engenheiros e economistas; pensem também nos juristas que conceberam o
Tratado e seus atos complementares dando-lhes um sentido criador único,.original,
na história do Direito Internacional contemporâneo.
Estão vendo como, de fato, a norma jurídica é algo de muito mais complexo do
que um puro juízo lógico. A norma jurídica é algo de concreto que se correlaciona
dialeticamente com certos fatos e valores. Ela assume em si o que há de permanente e
essencial nos fatos e valores, na condicionalidade espaço-temporal em que ela é
estruturada e deve ser aplicada.
Seria um engano, no entanto, pensar que o fato atua como causa. Os romanos
diziam que exfacto onturjus , mas é necessário não tomar essa fórmula ao pé da letra. O
fato é apenas um elemento de onde se parte, e cujo sentido, graças à mediação do
valor, integra-se no conteúdo da norma. Do ponto de vista do jurista, a norma é algo
de conclusivo e de integrante. A norma integra em si os elementos factuais e os
elementos valorativos, superando-os, no sentido hegeliano da palavra. E, aqui, eu
preciso lembrar qüe o conceito de superamento, em Hegel, é um conceito
fundamental para toda e qualquer concepção dialética, inclusive para a dialética de
implicação e polaridade.
É a razão pela qual eu disse - e muito bem o lembrou Tércio, numa linguagem
própria, muito precisa, porque ele é um analista da linguagem jurídica- que o Direito é
a norma, mais a situação normada.
Não tem sentido a história contada por certo realista americano, de que o juiz lê
antes os autos, forma sua convicção, e, depois, vai procurar a lei que corresponda à
sua conclusão para legitimá-la. Não é assim. A norma jurídica tem um aspecto de
Comentários de Miguel Reale 119

concreção humanística, sem o qual não se percebe nada do mundo jurídico. O


verdadeiro advogado tem a arte de refazer o momento nomogenético. Quer dizer
que, quando o cliente procura o advogado e lhe conta um fato, o advogado tem que
lhe dar o Direito. Não é só o juiz que dá o Direito. O advogado também tem que dar o
Direito, fazendo o diagnóstico jurídico do fato, o que implica a inserção do “caso” na
potencialidade genérica da norma. Às vezes, ele não encontra a norma já feita, e acaba
sendo obrigado a elaborá-la através de um processo hermenêutico integrante. Isso
ocorre sobretudo na hipótese de lacuna no sistema jurídico.
Eis-nos perante um problema muito importante realçado pelo Prof. Tércio: a
norma jurídica, uma vez promulgada, constitui, a um só tempo, o ponto de partida e
o limite da sentença, pois é a regrajurídica que confere, ou não, ao fato a “ qualificação
jurídica” pretendida pelas partes, com todas as suas decorrências lógicas. Podemos
dizer que a Inicial e a Contestação são “propostas de sentença” oferecidas ao juiz, o
que justifica que, hoje em dia, se dê tanta atenção à técnica da persuasão.
Destarte, o ato interpretativo ou hermenêutico não é um apêndice da norma, mas
algo que se insere no vivo da relação fato-norma, visando a atingir a legitimidade
essencial ao juízo enunciado pela sentença, legitimidade essa que resulta da
adequação entre o fato (determinado em sua tipicidade) e a norma típica que lhe
corresponde. Nunca será demais acentuar que a categoria de " tipicidade” atua tanto
no campo do fato como no da norma, funcionando como elemento de conexão entre um
e outro.
A separação que antes se fazia entre ato normativo, de um lado, e ato
interpretativo, de outro, está sendo superada através do que Tércio, sob outro
ângulo, considera o “ momento dialógico e o momento nomológico do discurso”. E é
exatamente porque a norma j uri dica é uma expressão de soluções conflituais que ela
não pode ser pensada como simples juízo lógico, como pretendeu Kelsen; nem como
mero dado de fato, como pretende o realismo americano ou o escandinavo: ela é,
repito, mais uma vez, a forma integrante de tensões fático-axiológicas, visando a um
equilíbrio duradouro, embora nunca definitivo.
Essa norma, por sua vez, quando é examinada pelo legislador, apresenta-se
como fato, do qual ele parte para promulgar novas leis. O Direito Positivo vigente é o
ponto de partida, é um factum para quem se propõe estabelecer novas regras, porque
factum não é particípio passado de facere, mas sim de fieri, que significa acontecer. A
norma é, pois, um acontecimento que, “de lege ferenda”, se despe de sua
prevalecente veste regulativa para se apresentar como um fato , algo d c posto, como é
próprio, aliás, do Direito positivo.
É através desse complexo processo dialético que se processa a vida do Direito,
que reflete, em suas mutações, o espírito humano em suas aspirações renovadas de
realizar justiça, sabendo que nünca lhe será dado exaurir-lhe todas as virtualidades,
porquanto, por mais que haja sentenças justas, haverá sempre sede de nova justiça.
4.3. DEBATES

PERGUNTA: Quando o Professor Tércio Ferraz falou que a norma, às vezes, se en­
contra dissociada da realidade, ele disse que o fato devia estar relacionado com a
norma. Eu queria saber de que maneira o fato pode estar relacionado com a norma,
se a norma é uma coisa já posta, já acontecida, fixa. De que forma poderia haver uma
relação; digamos, como a norma pode adaptar-se à realidade, tornando-se mais
elástica?
MIGUEL REALE ~ A sua pergunta envolve um esclarecimento prévio. O fato de
uma norma ser já posta não a converte em algo de fixo. A norma é fixa apenas na
literalidade de seu enunciado verbal, mas não em seu conteúdo, suscetível que é de
variações semânticas.
Como tive oportunidade de explicar ontem, a regra jurídica, como todo produto
cultural, é dotada de certa plasticidade ou elasticidade, que decorre de sua natureza
genérica. A regra é a previsão de uma classe de comportamentos possíveis, o que
permite, no mais das vezes, encontrar nela a resposta aos problemas postos pelos
fatos da vida social que reclamam composição jurídica.
Quando nenhuma norma vigente corresponde a um fato trazido ao conheci­
mento do Juiz, como este não pode recusar a sua prestação jurisdicional, que é um
dever do Estado, - temos a hipótese de lacuna jurídica, superada por uma série de
técnicas que não me seria possível explanar, no momento, como seria o recurso à
analogia, ou aos princípios gerais de direito, não só à luz da totalidade do
ordenamento em vigor, mas também segundo determinadas diretrizes ético-
jurídicas que atuam, como “ constantes axiológicas”, em nosso universo cultural.
O certo é que, como dispõe a Lei de Introdução ao Código Civil, o juiz não pode
deixar de sentenciar, a pretexto de obscuridade ou lacuna da legislação. Para cada
fato, por mais excepcional que seja, quer graças à interpretação extensiva e evolutiva,
quer mediante analogia ou princípios gerais de direito, será sempre possível e
indispensável chegar-se a uma solução jurídica.
PERGUNTA: Quais as causas e conseqüências do desinteresse pela Filosofia que
parece existir hoje no Brasil?
MIGUEL REALE - Tenho a impressão de que no Brasil, hoje, há mais interesse
pela Filosofia do que existia há 30 ou 40 anos. Hoje, há centros de Filosofia - o
122 Miguel Reale na UnB

Instituto Brasileiro de Filosofia, a Sociedade dos Filósofos Católicos, o Centro de


Estudos Lógicos de Campinas, etc., e parece que há também um centro de estudos
filosóficos e lógicos aqui em Brasília...
O Professor Antônio Paim publicou um volume da maior importância, Biblio­
grafia Filosófica Brasileira, fazendo favorável confronto entre as obras de Filosofia
publicadas na França e no Brasil, no ano passado, se não me engano. Portanto, não é
possível afirmar-se, em tom categórico, que não haja, entre nós, interesse pela
Filosofia.
Os grandes pensadores, hoje em dia, estão quase todos traduzidos. Dispomos de
textos fundamentais de Aristóteles, de Kant, de Hegel, e assim por diante. De maneira
que a Filosofia no Brasil, hoje, melhorou muito. Melhorou muito mais do que no
tempo em que eu entrei para a Faculdade de Direito, quando um velho professor de
Direito Civil nos dizia: “Vou dar algumas noções do Direito Civil e, depois, umas
tinturas de Filosofia do Direito, que é uma perfumaria jurídica” . {Risos). Essa época,
em que se considerava a Filosofia do Direito como “ perfumariajurídica”, felizmente,
está superada.
PERGUNTA: Até que ponto a classe filosófica do País influenciou as diretrizes
políticas e econômicas do País nos últimos cinqüenta anos?
MIGUEL REALE - Bem, a Filosofia influenciou sempre, direta ou indireta­
mente. O grande economista Keynes começa a sua obra fundamental afirmando que
um economista que pensa não obedecer a nenhuma teoria, está obedecendo, sem o
saber, a algum teórico defunto. (Risos).
Quer dizer, a Filosofia está sempre presente, influenciando, de uma forma ou de
outra, as soluções políticas. Nos últimos cinqüenta anos, essa influência tem sido
muito forte - às vezes, negativa, outras vezes, positiva. O Estado Novo, por exemplo,
não foi, como se diz, uma experiência de puro arremedo fascista, pois nele há
influência- e isso foi provado por vários estudos, inclusive de Paim - do “ positivismo
castilhista”, ou seja, daquela forma de positivismo que adquiriu feição própria do Rio
Grande do Sul, por obra de Julio de Castilho. Getúlio Vargas foi, até certo ponto, um
continuador do castilhismo. Basta este exemplo para mostrar como a Filosofia está
mais presente do que se pensa nos acontecimentos históricos nacionais.
Não me furto, ainda a salientar que o liberalismo clássico, que condenava
qualquer forma de intervenção do Estado na vida econômica, não o fazia por
indiferença pelos valores sociais ou humanos, mas sim em virtude do naturalismo
filosófico dominante. Era crença assente e pacífica que as atividades econômicas,
entregues a si mesmas, conduziriam, através de um livre jogo de interesses, à justiça
social desejada. No Brasil também imperou esse entendimento, com o predomínio
do “ laissez-faire, laissez-passer” no mundo econômico, o que lçvou a situações
desastrosas.
Debates 123

Em contraposição a essa crença no equilíbrio automático dos egoísmos, surgiu


uma teoria que demonstrou a sua inviabilidade, vendo na participação do Estado um
fator positivo e necessário, mas sempre com a salvaguarda da iniciativa privada. O
pensamento de Kevnes, tudo somado, se desenvolve nessa linha, no qual se põe o
problema da orientação intencional do fato econômico, com a idéia conseqüente de
planificação técnica.
O mal é que, às vezes, como ocorreu e ocorre no Brasil, essa política de
interferência, pode redundar em excessiva confiança em cálculos econômicos, até
mesmo de microeconomia, de tal modo que as providências estatais operam em
divórcio com as forças vivas da sociedade civil. O tecnicismo, não o esqueçamos, é
uma forma exacerbada de racionalismo naturalista, com olvido de que o econômico
deve se subordinar ao social.
Poderia lembrar outros exemplos, mas verifico que há outras perguntas.
ALBERTO DANTAS: Como o senhor vê este problema: “ ubi homo, ibi societas;
ubi societas, ibi jus” , ou seja, o Direito nasce da sociedade ou do homem para viver
em sociedade?
MIGUEL REALE - A afirmação “ ubi homo, ibi societas; ubi societas, ibi jus”, é
uma correlação estabelecida por um dos maiores juristas e filósofos do Direito da
Itália, Santi Romano, mestre da teoria institucional do Direito. Ela significa
exatamente isto: que não pode haver Direito sem sociedade, assim como não pode
haver sociedade sem Direito. Até mesmo entre os povos primitivos, digamos assim,
há uma expressão rudimentar de Direito, ainda que não seja Direito autônomo, e
esteja confundido com normas morais, ou religiosas. Quando um homem se
defronta com outro, pode surgir uma relação de domínio ou de respeito mútuo:
embora contrastantes, são ambas expressões de Direito.
Como a natureza do Direito resulta da natureza do homem, consoante clássico
ensinamento de Cícero, a natureza social do homem implica a socialidade do Direito,
e vice-versa. São, no fundo, modos distintos de expressar a mesma verdade.
GUSTAVO FRUET - O senhor não acha que a existência do decreto-lei e do
decurso de prazo são maneiras de esvaziar significativamente o Poder Legislativo e,
como conseqüência, objetivar leis que reflitam apenas a vontade do Poder Executivo?
MIGUEL REALE - Eu já tive ocasião de me manifestar sobre esse problema,
inclusive no seio da Comissão Revisora da Constituição de 1967, presidida pelo
Presidente Costa e Silva. Nunca me conformei com a legislação por decurso de
prazo. O Direito é uma obra de prudência, de exame cuidadoso da norma, do projeto
normativo.
124 Miguel Reale na UnB
Mas, por que surgiu esse sistema, que é uma criação brasileira - e, eu digo, não
das melhores? Em virtude de fato inegavelmente desabonador do Congresso, que é a
desídia quanto à tarefa legislativa. Projetos de lei da máxima importância, como, por
exemplo, da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, ou do Código Civil
dormiram dezenas de anos nos escaninhos parlamentares. Então, em grande parte,
os legisladores são responsáveis por essa situação, por não cumprirem com seu dever
primordial, que é o de legislar. - :ú
Mas isso não devia levar à conseqüência de uma legislação à queima-roupa.
Devíamos procurar soluções diferentes. Ainda há pouco tempo, em entrevista ao
Jornal do Brasil - lembrava que mesmo a Constituição atual não obriga a subordinação
do processo legislativo à aprovação por decurso de prazo. Este pode ser assinado, a
qualquer tempo, se verificado o desinteresse ou a inércia do Congresso, de
conformidade com dispositivo que consta da Carta de 1969 e que, por sinal, resultou
de proposta de minha autoria. Infelizmente, o que prevalece, como regra, é a
legislação de afogadilho, sob a espada de Dámocles da aprovação por simples
decurso de prazo.
Como o vício do cachimbo faz a boca torta, o dispositivo, que permite o envio de
projetos de lei sem prefixação de prazo, - que eu pensei que ia ser uma porta aberta
ao bom senso jurídico, - ficou esquecido, o que é um absurdo!
Eu não me conformo com a legislação a prazo fixo, mas também não me
conformo com o fato de ver que um projeto como o da atual reforma do Código Civil,
que custou seis anos de trabalho de juristas dos mais eminentes do País - abstração
feita de minha pessoa - dois dos quais já mortos, continue repetindo a longa história
do Projeto de Clovis Beviláqua, que teve uma gestação de 20 anos!
ROBERTO DANTAS: O Senhor poderia explicar estas indagações: Qual era a
Filosofia do integralismo, ou melhor a linha axiológica, e o que causou a sua morte?
MIGUEL REALE - Essa pergunta parte de um pressuposto a meu ver errôneo: é
o de pensar que houve só um integralismo, sem variantes doutrinárias.
O integralismo foi um movimento que durou apenas cinco anos, de 1932 a 1937,
e se dele ainda se fala, meio século depois, é sinal que significava alguma coisa.
Mas o integralismo não era um só. Dentro dele havia várias correntes filosóficas:
tomistas, neokantistas, neo-espiritualistas, assim como intelectuais sem posição
filosófica definida.
Mas é perguntado qual era a idéia fundamental, o valor dominante do
integralismo. Era o inconformismo perante o materialismo marxista e o utilitarismo
burguês.
Debates 125
Para os jovens de meu tempo, o que mais atuava em nosso espírito era, porém, a
decepção causada pela política brasileira então dominante. Era verificar que
tínhamos partidos como o Partido Republicano Paulista, o Partido Republicano
Mineiro e outros PR, que nada significavam. Partidos estaduais alheios à imagem do
Brasil, partidos que cuidavam dos seus feudos locais, sem a mínima atenção pelos
valores globais da Nação. Os integralistas podem ter tido todos os defeitos, mas eles
quiseram ver o Brasil, quando apenas se viam Estados. Daí o desejo de ir ao encontro
dos problemas brasileiros, de penetrar na realidade nacional, guiados pelas obras de
Tavares Bastos, Alberto Torres, Euclydes da Cunha, Oliveira Viana e tantos outros.
Não pensem que o integralismo tenha sido mero transplante do Fascismo, como
muito afoitamente se repete. Foi algo que teve a sua significação no contexto dos
problemas brasileiros. Se não tivesse tal significação, meus amigos, como é que
jovens, como San Tiago Dantas, Luís da Câmara Cascudo, Helder Câmara ou José
Lins do Rego, teriam sido atraídos pelo movimento?
É muito fácil, à distância, querer, às vezes, denegrir um movimento político que
não se viveu na autenticidade de seu momento histórico, e que, se não triunfou, foi
porque houve a preponderância de outras forças, fundadas na tradição autoritária
aliada à política de clientela, as duas fontes do Estado Novo.
PERGUNTA: Foi apenas um esquecimento do Professor Paim, ou a obra de
Henrique Lima Vaz é tão insignificante, que nem sequer foi citada?
ANTÔNIO PAIM - Essa discussão levaria a outro plano. Quer dizer, Lima Vaz
insere-se num momento importante de uma discussão filosófica, mas que, a meu ver,
ele renegou. Foi ele que saiu do campo da discussão. A contribuição dele refere-se à
pessoa humana, num determinado momento, no sentido de que o homem faz a
História como sujeito ético. Num desenrolar posterior, Lima Vaz escreveu o Manifesto
da Ação Popular, no qual automaticamente renega aquela tese, porque é uma confissão
abertamente totalitária.
Desse modo, foi ele mesmo quem se retirou do diálogo filosófico.
PERGUNTA: Professor Miguel Reale, por que razão a minha geração não teve
oportunidade de estudar Filosofia, se essa matéria é tão necessária para o homem e a
sociedade?
MIGUEL REALE - A pergunta é deveras importante e está na ordem do dia, no
sentido de se restabelecer o ensino da Filosofia no curso colegial. Infelizmente,
repetidos apelos, feitos em Congressos nacionais de Filosofia, não têm merecido a
mínima consideração por parte de nossas autoridades. Parece que se tem medo do
debate das idéias.
Lembro, a propósito, que, há poucos dias, no Conselho Federal de Cultura, o
Conselheiro Carlos Chagas Filho apresentou proposta no sentido do restabeleci-
i
126 Miguel Reale na UnB
mento dos estudos filosóficos. Houve longos debates, sobretudo sobre o modo de se
ensinar Filosofia, se pelo exame de seus temas básicos, ou através da história das
teorias fundamentais. Esse é, aliás, um problema em torno do qual fervilham as
divergências. . $
k.íj*
O risco é transformar-sé o curso de Filosofia em um instrumento ideológico, para
.

finalidades políticas, o que provocou a crise do ensino da Filosofia nos Liceus da


França, contrariando sua gloriosa tradição histórica.
A Filosofia foi retirada dos currículos, no Brasil, há mais de trinta anos, o que cria
obstáculos muito grandes. Eu tinha dificuldade enorme ao ministrar Filosofia do
Direito. Tanto assim que, no meu curso, dedicava o primeiro semestre à Filosofia, e o
outro à Filosofia do Direito, porque os estudantes vinham jejunos de qualquer noção
filosófica.
Como já observei, no Brasil e no estrangeiro, há certa desconfiança, tão fortes são
as pressões ideológicas. Há desconfiança, também, porque Filosofia significa
liberdade, abertura do espírito para as problemáticas as mais diversas e conflitantes.
Façamos, aqui e agora, um compromisso comum: o de trabalhar no sentido de
que a Filosofia volte às nossas salas de aula. Mas a Filosofia pela Filosofia, e não a
Filosofia instrumentalizada para servir a esta ou àquela direção política. Quando
a Filosofia entra na Universidade, ou no Colégio para ser instrumentalizada, já se
sacrificou o que nela é fundamental: o diálogo que, como diz Heidegger, é a essência
mesma do homem.
5. MIGUEL REALE POR ELE MESMO
5.1. Conferência

Lembro-me, neste instante, do encontro que tivemos, alguns intelectuais


brasileiros, com Sua Santidade, o Papa João Paulo II, no Rio de Janeiro, para falar a
respeito dos problemas da cultura. E o Pontífice nos disse que a nossa época é uma
época de testemunho. É o que vou tentar fazer. Tentar fazer, sem dúvida alguma,
porquanto não há pior intérprete de si próprio do que aquele que viveu intensamente
e procurou dar resposta a problemas que brotaram e brotam de seu íntimo ou, então,
são suscitadas pelas circunstâncias sociais de que participa.
Dizia o mestre Machado de Assis que o menino é o pai do homem. E, assim, eu
preciso fazer uma breve referência, também, à minha meninice, para dizer que fui
um menino nascido numa família que já albergava em si um sentido de implicação,
de correlação. De um ladò, estava meu pai, um médico italiano, trazendo todo um
sistema de cultura e de concepção de vida; e, de outro lado, minha mãe, brasileira,
integrada na minha pequenina cidade natal, que é São Bento do Sapucaí, quase uma
vila que teve a audácia de continuar sendo paulista além da Mantiqueira. E entre essas
duas influências, da meiguice materna e de uma preocupação cultural intensa por
parte do meu pai, eu fui aos poucos modelando a minha imagem.
Diz muito bem Ortega y Gasset que cada homem é o projeto irrenunciável de si
mesmo, e que nós não podemos viver a vida de um outro. Vivemos a nossa vida em
nossa inapagável e insuprimível circunstância. Essa circunstância inicial foi funda­
mental para o meu existir. Portanto, ainda menino, via-me situado numa convergên­
cia de duas formas de vida, distintas, mas complementares. E é possível que toda essa
minha preocupação, ao longo da Filosofia e da Filosofia do Direito, de buscar sempre
a conciliação e a harmonia entre os distintos ou entre os contrários, tenha resultado
desse posicionamento familiar, dessa minha maneira de ser originária.
E, como eu era um menino muito integrado na vida da cidade, e, por
conseguinte, um moleque, às vezes, de rua, meu pai entendeu que era mais
conveniente internar-me num colégio em São Paulo. E foi meu destino ir para o que
se chamava então Instituto Médio Dante Alighieri, hoje Colégio Dante Alighieri, que
continua sendo dos melhoreS estabelecimentos de ensino de 1.° e 2.° graus em São
Paulo. A ida para esse instituto foi fundamental na linha do meu pensamento e
também na minha experiência existencial. E por que razão? É que, quando me
matriculei no referido Colégio, fui obrigado a seguir, ao mesmo tempo, dois cursos:
um curso moldado de conformidade com a lei da Itália, ou seja, um curso clássico, em
128 Miguel Reale na UnB
que se estudava e comentava toda a Divina Comédia - o “ Inferno”, o “ Purgatório” e o
“ Paraíso”, cada canto em um ano do Liceu, - já trazendo na bagagem as epopéias de
Torquato Tasso e de Ludovico Ariosto... Era uma cultura clássica, na qual o Latim era
aprendido como se fosse língua materna. Como o Colégio Dante Alighieri não era
reconhecido, fui obrigado a fazer, ao mesmo tempo, o curso seriado brasileiro, de
marcado cunho técnico, onde prevaleciam as ciências naturais e matemáticas. Creio
que èssa simbiose me tenha sido salutar, porque pude compor, pelas vicissitudes da
vida, os conhecimentos da área humanística com os conhecimentos especializados da
ciência da natureza.
Estamos vendo, por conseguinte, que nós governamos o nosso ser vital até certo
ponto. Não há dúvida de que cada um de nós tem o seu código genético
indeformável. Porém, há, nas circunstâncias sociais e históricas algo que pesa muito,
e que vem, de certo modo, alterar o ritmo de nossa própria existência, determinando
rumos novos em nossa vida.
Aqui, não posso deixar de dizer que o Colégio Dante Alighieri tem para mim
outra particularidade. E que lá conheci, como colega de classe, aquela que passou a
ser a minha companheira e a minha inspiradora durante dezenas de anos. E não
posso deixar de dizer que a inserção de Nuce em minha vida não tenha significado
muito. (Palmas).
Uma vez alguém me perguntou: “ Lembra-se de algum fato da sua meninice que
já pudesse significar certa vocação para o mundo jurídico, ou o mundo filosófico?”
Eu sorri, lembrando-me de um episódio que é quase caricatural. Era menino de nove
ou dez anos, e, como todo moleque, gostava de andar pelos muros. Uma vez, estava
indo pelo muro que separava a casa de meu pai da propriedade vizinha. Não sei por
que me veio a idéia de que metade daquele muro pertencia à minha família e a outra
metade ao vizinho. Talvez tenha sido a minha primeira intuição jurídica. (Risos) E não
foi benéfica, porquanto quis pisar apenas 6 lado paterno, e o resultado é que
despenquei do muro sobre uma penca de lenha, quebrando o braço. Quebrei o braço
por inspiração do Direito (Risos), mas, felizmente, o braço não ficou torto...
É a única idéia originária, a não ser este meu ser natural, um pouco ensimes­
mado, de menino distraído. Porque, no fundo, a distração não é sénão um outro
modo de ser da abstração. Quem se abstrai, distrai-se. Entre distrair e abstrair há uma
relação sempre necessária. Todavia, isto não me impediu de ser um menino
integrado na vida comunitária. Fui, como disse, um moleque de rua. Mas, nem por
isso, deixava de ter amor pelas coisas belas, amor este que aumentou no Colégio
Dante Alighieri, através da convivência com os clássicos da Grécia, de Roma, do
pensamento itálico sobretudo. Esse amor à teoria foi aumentando e se convertendo
em uma componente do meu existir, ao mesmo tempo que sentia atração para a vida
prática, obrigado, muito jovem, a dar aulas de Latim para completar o orçamento
doméstico.
Miguel Reale por ele Mesmo 129
Foi com esse espírito que me preparei para ser médico. Meu caro amigo Amadeu
Cury, eu ia ser médico (Risos) porque, na minha família, a tradição era a Medicina.
Meu pai era o sexto médico da família e a mim me caberia ser o sétimo, um número
que iria ser rompido inesperadamente. Preparei-me conscientemente para estudar
Medicina, mas, um dia, visitei o necrotério de um hospital, justamente com um meu
colega de turma no Colégio, que depois se tornou um grande cardiologista, Reinaldo
Chiaverini. Não sei por que, não sei se foi o odor do clorofórmio, ou, então, aquelas
vestimentas brancas... Algo falou no meu espírito e me disse: “ Este não é o seu
caminho” . Decidi-me, de repente, a estudar Direito, que era a minha vocação
natural.
Não sei se se pode falar em vocação, ou se há, antes, um misterioso chamado.
Cada um de nós - costumo dizer - nasce com a sua estrela polar valorativa. Uns
nascem com atração para o sacerdócio e os valores da sacralidade; um outro já tem
inclinação maior para os problemas políticos e a temática do poder; um terceiro, ao
contrário, sente-se atraído pela beleza e pela arte. Uma atração para o Direito é algo
muito difícil de se definir. Lembro-me bem que, uma vez, meu filho, que hoje
também é professor da Faculdade de Direito, me perguntou: “ Papai, eu sei o que faz
o pedreiro, sei o que faz o pintor, sei o que faz o médico. Mas, me diga: o advogado,
que é que ele faz?” Na realidade, é muito difícil a uma criança penetrar no “fazer” do
advogado, ou compreender a missão do jurista, motivo pelo qual não juro que tenha
tido vocação jurídica. As Faculdades, naquela época, eram os únicos centros de
estudos sociais e humanísticos, dada a falta de Faculdades de Filosofia, e é possível
que essa circunstância também tenha influído em minha escolha.
O Direito, porém, como simples estrutura formal não me atraiu. Quando entrei
para a histórica Faculdade de Direito de São Paulo, diga-se a verdade, ela estava num
período de declínio, com predomínio de professores apegados áos textos da lei,
falando “ ex cathedra”, com base nos Códigos e nas interpretações jurisprudenciais.
Ainda prevalecia a tendência da chamada Escolas da Exegese, e, num tardio
individualismo oitocentista, considerava-se que “ O Direito Civil é o Código Civil e
nada mais que o Código” . Havia preocupação excessiva pelo primado formal do
sistema normativo, e isto parecia insuficiente à minha geração.
É preciso notar que entrei para a Faculdade de Direito em momento decisivo da
História do Brasil, no ano de 1930, o da Revolução, que iria determinar nova fase em
nossa vida republicana. Já então havia uma inquietação extraordinária nos meios
universitários, em busca da “ realidade brasileira”, que estava fascinando os jovens
desde 1922. Mas o ano 1922, que era? Era o do primeiro centenário do Brasil. Os
homens de 22 sentiram quase que necessidade de fazer um balanço daquilo que
havia sido vivido e de perguntar: “Após cem anos de existência independente, que é
que significamos?”
130 Miguel Reale na UnB
Não estranhem, portanto, que seja de 22 a Semana de Arte Moderna; não
estranhem que seja de 22 o levante do Forte de Copacabana; não estranhem que seja
de 22 a publicação de uma série de obras marcantes do pensamento brasileiro, como
a de Pontes de Miranda, no campo da Filosofia do Direito, ou a de Vicente Licínio
Cardoso, nos domínios de Filosofia da Arte.
O ano de 1922 foi um pontó de partida que iria repercutir em 1930, quando
eclodiu uma Revolução, na crista de uma luta eleitoral. Essa revolução foi uma
contradição em termos, porquanto surgiu sob a bandeira do Liberalismo e da Aliança
Liberal e, no entanto, fez emergir a problemática social como um problema urgente a
ser analisado.
Com exagero, o Arcebispo de São Paulo, que era excessivamente conservador-
ao contrário dos de hoje, que o são menos (itoo5) - dizia: “ Os revolucionários gaúchos
trouxeram o comunismo na mochila” . Não era o comunismo que vinha, mas a
inquietação social, a preocupação pela questão social até então posta entre parên­
teses. E nessa conjuntura que temos de examinar o problema de várias manifestações
políticas da época, problemas que determinaram conflitos ideológicos que até hoje
repercutem no Brasil, não obstante passado meio século.
No que se refere à minha atividade inicial, sofri, naturalmente, a influência
paterna. Meu pai era um socialista democrático de ampla visão, um continuador da
tradição de Mazzini. Tornei-me, não por influência apenas dele, mas por tendência
natural e por inquietação diante dos problemas humanos, um admirador das obras
do chamado “ socialismo revisionista” , sobretudo na linha de um jovem mestre
italiano, hoje quase esquecido, Cario Rosselli.
Minha primeira tomada de posição política, no plano teorético, foi, por
conseguinte, no sentido de repensar o socialismo, de repensar a teoria marxista, sem
convertê-la numa ideologia cerrada, como naquela época já acontecia com stalinistas
e trotskistás, cuja convivência me aborrecia, por duas ordens de razões: por sua
intolerância agressiva, e por conhecerem melhor os dramas da Rússia do que os do
Brasil.
Dois valores atuavam em meu espírito. De um lado, a preocupação pelo social; de
outro lado, a preocupação pela realidade brasileira, o que me levava, altas horas da
noite, a ler e reler Os Sertões, de Euclides da Cunha, as obras de Alberto Torres e
Oliveira Viana, conversando com eles em função das idéias socialistas que fermen­
tavam em meu espírito. Porque, estou convencido, meus caros amigos estudantes,
nós podemos ter grandes mestres, e eles nos podem indicar os caminhos, mas a nós
cabe a realização efetiva da nossa personalidade. Cultura pressupõe, acima de tudo,
leitura, método, dedicação e espírito crítico, compartilhando da vida que nos cerca e
dos anseios da comunidade, amando a riqueza que se contém na solidão. Não na
solidão desoladora e triste, mas na solidão criadora de quem se recolhe em si mesmo e
Miguel Reale por ele Mesmo 131
procura captar os valores alheios para convertê-los em cabedal de sua própria
formação espiritual. É a lição eterna de Leonardo da Vinci: “ Quando estás só,
pertences-te por inteiro” .
De Leonardo da Vinci me veio uma outra lição. Leonardo está ainda hoje
representado, logo no ingresso do Colégio Dante Alighieri, com esta frase gravada em
bronze: “A verdade é tão-somente filha do tempo”.
Essa frase, posta sabiamente na porta de uma Escola, penetrou profundamente
em meu espírito para fazer-me compreender que a cultura não se improvisa.
Sobretudo no campo da Filosofia e do Direito, não há improvisações. Pode haver,
como há, grandes músicos precoces, que com oito ou nove anos se antecipam no
plano da criação artística. Mas, filósofos e juristas precoces, não os conheço. Eles são,
ao contrário, produto da meditação, resultado de aturados estudos, razão pela qual o
Direito se chamajurisprudência, que significa acumulação silenciosa e metódica de
valores sociais através do tempo.
Mas, voltando ao que estava dizendo, dois valores atuavam em meu espírito: de
um lado, o desejo de participar da vida social de meu País, e, de outro, o propósito de
fazê-lo com base em um sistema de idéias. Compreenda-se que essa também era a
situação de dezenas de outros jovens. Assim, quando surgiu uma pregação que
apresentava aspectos socialistas e nacionalistas, ventilando idéias renovadoras, era
natural que nos sentíssemos atraídos por ela.
O Integralismo foi um momento decisivo em minha vida. Ainda hoje me
perguntava um jornalista: “ Que foi o Integralismo? Foi algo de que o senhor se
arrepende?” E eu respondi, serenamente: “Tenho pena dos que se arrependem da
vida que viveram com sinceridade e paixão. Se me fosse dado retornar àquela época,
com os seus mesmos problemas, não vacilaria em repetir a mesma experiência”.
Porque ela foi salutar ao meu espírito, correspondeu a algo que falava a outros jovens,
a outros membros da minha geração, como é o caso, por exemplo, de um Hélder
Câmara, jovem sacerdote do Ceará, que fui conhecer em 1933 e por quem guardo
grande afeição. Era o caso de um Andrade Lima Filho, em Pernambuco; era o caso de
Câmara Cascudo, no Rio Grande do Norte; era o caso de um José Lins do Rego, em
Alagoas, embora tenha sido integralista por pouco tempo; era o caso de um Herbert
Parente Fortes, na Bahia; era o caso de San Tiago Dantas, Antônio Gallotti, Américo
Jacobina Lacombe, de Tasso da Silveira e de tantos outros, no Rio de Janeiro; era o
caso de dezenas de meus colegas da Faculdade de Direito de São Paulo. Teremos
todos errado?
Pouco importa que o movimento tenha sido válido ou não. Pouco importa
indagar agora, com o passar dos anos, se esse movimento integralista tinha defeitos
ou sofria o impacto ou a influência de idéias alienígenas. Mas eu posso dizer que, para
a maioria dos jovens da minha geração, o modelo estrangeiro era um reforço e um
132 Miguel Reale na UnB
acréscimo: não era algo que constituísse a substância da opção feita, porque esta
brotava da nossa própria circunstancialidade histórica no Brasil de nosso tempo.
Mas deixemos essa matéria para outra oportunidade, porque só este assunto me
levaria a fazer um depoimento muito extenso, e já houve muitas referências ao
assunto no decorrer do nosso encontro.
O certo é que, quando, depois, rebentou a Revolução de 1932, não fiquei
olhando a paisagem. Encontrava-me, então, num estado de perplexidade, sem saber
que rumo tomar. Nada existe mais tenebroso na vida de um jovem do que o estado de
suspensão espiritual. Alistei-me na Revolução de 32 e fui sargento nas trincheiras de
Itaim e Caputera, sem me identificar, de corpo e alma, com um movimento que valeu
mais pelo entusiasmo e o sacrifício dos moços do que pelo descortino ou as idéias de
seus líderes.
Que experiência me ficou dessa minha pequenina vida militar? Foi uma
experiência decepcionante, em relação aos seus chefes, ao perceber a fragilidade da
aventura revolucionária, desencadeada sem o mínimo de esperança para a mocidade
sacrificada. Não que eu seja contra a Revolução de 32 ou contra a Revolução de 30. Eu
aprendi com Hegel - e já disse isto antes - que não se inventivam os fatos históricos,
como não se inventivam os terremotos contrapondo-os aos benéficos da natureza. Na
realidade, os fatos históricos são e não podiam ser outros.
Mas a Revolução de 32 ficou em meu espírito como uma grande lição. Uma
grande lição sim. A grande lição da inutilidade dos movimentos armados, quando
falhos de princípios doutrinários. Além disso, a Revolução Constitucionalista deixou
marcas profundas, como o comprova um episódio bastante significativo: São Paulo
vencido não podia deixar de provocar uma onda de ressentimentos, e muitos jovens,
a maioria dos meus companheiros da Faculdade de Direito, preferiram tomar uma
atitude transitoriamente separatista, concebendo um quadro de formatura no qual o
brasão paulista deixava de ser “ Pro Brasilia Fiant Eximia”, para ser “ Pro São Paulo
Fiant Eximia”. Foi, então, que quatorze estudantes de Direito, entre os qúais quem
lhes fala, nós nos recusamos afigurar no quadro, proclamando em Manifesto: “ Ou se
restitui a palavra Brasil no brasão paulista, ou não partilhamos da festa de formatura,
porque, para nós, não existe São Paulo; existe a Nação brasileira” . (Palmas).
Lembro esse episódio para mostrar em que clima o nacionalismo vicejou. Certo
ou errado, ele tinha suas componentes, que explicam o advento do integralismo.
Após a Revolução de 32, eu me refugiei inteiramente em meus livros. Confesso
que não tinha outra coisa a fazer senão procurar uma compensação no plano das
idéias, cuja falta havia sentido durante o processo revolucionário. Sentia, como tantos
outros moços de minha época, a necessidade de desenvolver um pensamento
próprio, de correr o risco de pensar com a própria cabeça, sobretudo diante de certas
Miguel Reale por ele Mesmo 133
afirmações que então corriam o mundo, como aquela de um historiador inglês,
segundo o qual no Brasil tudo era grande, exceto o homem. Quando eu li essa frase
ultrajante, foi como um impacto, uma espécie de desafio que só podia ter uma
resposta: dedicação e participação na vida comunitária brasileira.
Foi, nessa época de minha vida, que me convenci da necessidade de realizar uma
pesquisa histórica sobre a experiência política do homem, desde as raízes do
pensamento grego até os nossos dias. Seria um grande painel que me permitisse
chegar, com mais segurança, até os dias atuais, situando neles a realidade brasileira.
Plano arrojado e pretensioso, concebido como uma espécie de diálogo entre o
passado e o presente, pois eu não tinha intenção de fazer obra de historiador: na
minha ansiedade de jovem, queria vaíer-me da história para ler e interpretar o
presente.
Levado por essas idéias metodológicas, comecei a escrever “Atualidades de um
Mundo Antigo”, que seria o confronto da política greco-romana com o de nosso
tempo. Esse livro, por sinal incompleto, por não abranger a experiência romana, só
veio a ser publicado depois, partindo-se a ordem lógica e cronológica que pretenda
seguir.
É que, nesse meio tempo, deu-se meu ingresso no integralismo, e os imperativos
políticos me levaram a inverter a ordem dos fatores, interrompendo aquele que
deveria ser o primeiro livro, para escrever um dos últimos programados: “ O Estado
M o d e rn o cuja l.a edição é de 1934.
Do Pretàcio desse livro já se falou várias vezes neste Seminário a propósito de
teorizar a vida e viver a teoria, etc...
Foi depois de “O Estado Moderno” que, numa ordem regressiva, dei à publicidade
“Formação da Política Burguesa” e “Atualidades de um Mundo Antigo”. Se algum dia, vier a
republicar essas obras juvenis, talvez restabeleça a ordem cronológica que os
imprevistos da vida política me impediram de seguir, influindo sobre a metodologia
planejada.
Por sinal que O Estado Moderno, que eu imaginara como cúpula da investigação
política, cedeu lugar a um quarto livro O Capitalismo Internacional, que é de 1935. As
demais obras não obedecem ao programa delineado e só em parte concluído: são
trabalhos complementares ou resultantes dos empenhos da atividade política.
Seja-me permitido breve alusão ao estudo sobre o capitalismo internacional. Nele
contestava a tese de Lenine de que o imperialismo seria a última fase do capitalismo.
A meu ver, a última fase do capitalismo não era o imperialismo, por me parecer que o
colonialismo tinha seus dias contados. A última fase do capitalismo eu a ligava à
internacionalização do capital, ao aparecimento das grandes empresas - ou seja, o que
hoje chamamos de multinacionais.
134 Miguel Reale na UnB
Intuição de um jovem? Talvez. Sensação de que algo de novo iria ocorrer? Era
esta a minha última palavra, digamos aqui, na primeira fase da minha vida espiritual.
Depois, houve o malogro do integralismo e, com isto, o exílio. Há pensadores
cuja vida nada diz para a sua filosofia. Qual a vida de Kant? A vida de Kant são as süas
obras. Viveu sempre na sua pequena Königsberg, de onde jamais saiu; solitário, do
alto de sua torre, contemplava com visão de águia os problemas do seu tempo. Há
outros, ao contrário, cuja vida é cheia de aventura, que a Filosofia determina, como é
o caso de Platão, que arriscou a vida e a liberdade na sua tentativa de realizar em
Siracusa os ideais de sua teoria política. No meu caso pessoal, embora, evidente­
mente, não haja termo de comparação com esses mestres que são modelos
inexcedíveis, a minha vida não poderá ser compreendida sem a minha Filosofia e a
minha Filosofia não pode ser entendida sem os avatares de minha existência.
O certo é que, derrotado politicamente, tive de tomar o caminho do exílio. De
Roma, via as coisas do Brasil e do mundo de maneira diferente. Em primeiro lugar,
com decepção profunda sobre a problemática da Europa, fortalecendo-se em meu
espírito a convicção de que deveria mudar de rumo, para dedicar-me com afinco aos
estudos interrompidos, após meus tumultuados quatro anos na Faculdade de
Direito.
Como consegui retornar ao País é assunto para as minhas memórias. Bastará
dizer que, tolhido em minha liberdade de ir e vir, libertei-me graças a meus livros e
aos horizontes sempre abertos da investigação científica.
Minha opção foi para a Filosofia e, mais precisamente, para a Filosofiajurídico-
Política. Convicto, desde então, de que não se pode separar o Direito da Política,
quando se desce às raízes de seus problemas, dediquei-me à elaboração binada de
dois escritos: “Fundamentos do Direito}> e “Teoria do Direito e do E s t a d o Este é o
desdobramento natural do outro, podendo-se dizer que o primeiro coloca os
problemas sob uma perspectiva transcendental (na época eu era neokantiano) enquanto
que o segundo os desenvolve no plano empírico das realizações práticas.
Eram sobretudo as questões filosóficas que me seduziram, por estar convencido,
como ainda o estou, de que a crise das Ciências Jurídicas e Política do Brasil era
devida à carência de meditação filosófica.
Estava, em fins de 1939, com os dois livros em fase adiantada de elaboração (na
realidade, eram como que dois tomos de uma só obra) quando tive a notícia de que a
Faculdade de Direito do Largo de São Francisco ia publicar editais de concurso para
as cátedras de Filosofia do Direito e de Direito Constitucional. Naquela época não
havia carreira universitária, sendo lícito disputar diretamente as cátedras. Dissuadido
de concorrer para a cadeira de Direito Constitucional, a fim de evitar preconceitos
políticos, nem por isso abandonei meu plano de escrever dois livros conjugados:
Miguel Reale por ele Mesmo 135
apresentaria um como tese; e o outro como título, para não oferecer apenas as obras da
fase integralista.
Foram meses de labor insano, e confesso que nem sei me dar conta de como me
foi possível levar a cabo tão arrojado propósito, arranjando tempo para concluir e
publicar dois alentados volumes. Quando os apresentei à Faculdade de Direito, nos
primeiros meses de 1940, notei certa perplexidade, sendo recebido quase como um
intruso, e os fatos posteriores iriam confirmar essa minha primeira impressão.
A Faculdade de Direito tornara-se um reduto da Escolástica e do liberalismo
oitocentista infenso, por princípio, a alargar as funções do Estado. Ora, Fundamentos
do Direito (do qual há uma 2.a edição fascimilar, devida à iniciativa de meu saudoso
amigo Teófilo Siqueira Cavalcanti) partia do neokantismo axiológico da Escola de
Baden; enquanto que Teoria do Direito e do Estado aplicava aquelas idéias no plano da
Teoria Geral do Direito, em conexão com a problemática do Poder. Pensando bem
era um desafio, se bem que não intencional.
Dispenso-me de contar toda a história de meu concurso, talvez do conhecimento
de alguns dos presentes. Não tivesse eu 29 anos e espírito aguerrido, teria aceito,
desde logo, a exclusão imotivada de minha inscrição, obstáculo que consegui superar
a duras penas. Depois, deu-se o “ entrevero das provas” que a tanto, se reduziam os
concursos da época, no pior estilo coimbrão. Não fora a imparcialidade superior de
três mestres ilustres, cujos nomes guardo com incontida afeição - Hahnemann
Guimarães, Edgard Sanches e Nestor Duarte, - teria sido reprovado. Com três
indicações para a cátedra, reuniu*se a Congregação e, sem quorum, foi contestado o
resultado. Seguiram-se meses e meses de luta intensa, até lograr o veredito favorável
do Conselho Fedèral de Educação, isto já em 1941... Nunca pensei que na Filosofia
houvesse tanta guerra (Risos).
Integrado no magistério superior, dispunha-me a me dedicar exclusivamente ao
estudo e à pesquisa, quando, mais uma vez, aparecia a tentação política. A tentação
política figura sempre na minha existência, arrancando-me, por assim dizer, pelos
cabelos, da meditação teorética para lançar-me nos entreveros da vida administrativa.
É que o Presidente Getúlio Vargas, por quem tenho profunda admiração - e
tenho motivos para admirá-lo - resolveu confiar ao jovem professor a tarefa de ser
membro do Conselho Administrativo de São Paulo. Esse Conselho era um dos
órgãos máximos do Estado, pois, além de exercer a função legislativa para o Estado e
todos os municípios, tinha atribuições de um Tribunal de Contas. Foram quatro anos
de uma experiência extraordinária. Posso asseverar que essa experiência administra­
tiva foi decisiva na consolidação de minhas idéias, pois ela me mostrou, cada vez
mais, a inviabilidade da vida do Direito separada de seu conteúdo social e humano
bem como de adequado preparo metodológico. Aquela idéia, que depois iria ter, de
fundar uma “Assessoria Técnico-Legislativa”, quando me coube ser Secretário da
136 Miguel Reale na UnB
Justiça do Estado de São Paulo, é fruto dos anos passados no Conselho Administra­
tivo de São Paulo, o qual, para poder corresponder às suas ingentes tarefas, fora
obrigado a constituir quadros técnicos de amparo à função legislativa.
É claro que esse interregno político-administrativo mais uma vez vinha inter­
romper ou tumultuar meus programas intelectuais, apesar de nunca ter abandonado
os estudos de minha predileção. Achava sempre tempo para dedicar-me à Filosofia e
à Teoria Geral do Direito e da Política, as minhas três paixões gêmeas...
Pois bem, quando, em 1945, houve a derrocada do Estado Novo, poderia ter
continuado em minhas funções de professor (reassumindas dois anos antes, sem
prejuízo das funções do Conselho), mas, uma vez mais, fui atraído para a vida
pública. É que não me conformava com o que estava acontecendo no País.
Com a queda do Estado Novo, os velhos políticos tradicionais procuraram
reconstituir, com denominações novas, as antigas estruturas políticas que haviam
sido a madorra e a rotina da República Velha. Nem todos nos conformamos com isso.
Sentimos que a época não era mais a das oligarquias políticas. Havia necessidade de
se procurar algo que dissesse algo de novo e de útil ao povo. Foi então, que eclodiu
um movimento tão pouco estudado na História política brasileira e que se chamou o
populismo, o qual durou cerca de 10 anos.
Há expressões estranhas... O populismo estava, de certa maneira, incubado no
Estado Novo, através da popularidade de Getúlio Vargas e da influência popular que
ele exercia sobretudo no proletariado urbano.
Foi, nessa época, que começou o que, ironicamente, denomino a minha aventura
platônica. Não que eu me considere um Platão, nem tampouco Adhemar de Barros
era o tirano de Siracusa. (Risos). Mas, na verdade, eu resolvi, juntam ente com outros
políticos da época, fundar um partido novo, que teve um nome expressivo: Partido
Popular Sindicalista (PSP). Na denominação desse partido havia dois valores originais,
emergentes da problemática política de nosso tempo: o povo, de um lado, e o sindicato,
como expressão do trabalho, do outro.
O Partido Popular Sindicalista logrou relativo êxito eleitoral. Elegeu um Senador
pelo Ceará e sete Deputados. Adhemar de Barros fundara o Partido Republicano
Progressista, porque ele queria conservar a legenda PRP. Um dia ele me procurou
propondo-me a fusão de sua agremiação com o PSP, do qual eu era Vice-Presidente.
Adhemar tinha, inegavelmente, na época, grande influência em São Paulo; era o
homem que mais falava à gente paulista. Eis chegado o momento, pensei eu, de
fundir duas coisas - as minhas idéias, por pobres que fossem os meus programas, os
meus ideais doutrinários, com a capacidade realizadora e pragmática de Adhemar de
Barros. Guardadas as devidas porporções, sentia-me como Platão indo a Siracusa
para tentar convencer o tirano a realizar os ideais da sua República. Não foi fácil
Miguel Reale por ele Mesmo 137
convencer os demais líderes de meu partido a aceitar a fusão,mas essa idéia acabou
prevalecendo, com a inclusão também do Partido Agrário Nacional. Foi assim que se
constituiu o Partido Social Progressista (PSP) que iria se converter na principal força
política de São Paulo, contando com ramificações em vários Estados.
Ao redigir o Manifesto da novel entidade, salientei o sentido essencial visado, que
era o de “socializar oprogresso", isto é, promover uma política de mais justa distribuição
da riqueza, por todos os meios possíveis, sem ficarmos presos à tese marxista da
“ socialização dos meios de produção” . Ao redigir os Estatutos, com a colaboração do
então Deputado e depois Presidente da República, Café Filho, adotamos o regime
parlamentar.
Aguardava-me uma profunda desilusão, como foi a de todos que aliaram sua sorte
a “ chefes populistas” do tipo de Adhemar de Barros, Jânio Quadros oujoão Goulart.
A tese central da “ socialização do progresso”, que comportava fecunda aplicação na
conjuntura brasileira, ficou submersa, foi sumariamente absorvida pela personali­
dade carismática de Adhemar: tudo acabou, de Norte a Sul, em ademarismo,
Essa é uma das características do populismo. O populismo é um estranho
movimento da vida brasileira, uma espécie de “ Caudilhismo da era industrial”, na
sociedade de massa, fascinada por um líder no qual ela encarna os seus ideais. É o
getulismo, é o peronismo na Argentina, é o adhemarismo, o janismo, janguismo,
etc.... Vicejou de preferência nos centros de mais densa participação proletária,
representando a primeira afirmação do eleitorado de massa, que iria ter tanta
signficação na vida política nacional. O adhemarismo venceu tendo como pano de
fundo o social-progfessismo. E eu fiquei, como pensador político persistente e
teimoso, a olhar a vitória do adhemarismo, notando com melancolia o esquecimento
total, o olvido absoluto de idéias que me pareciam tão necessárias, e que ainda hoje
seriam válidas.
Essa experiência, porém, não foi de todo má, porque me coube exercer as funções
de Secretário da Justiça e, mais tarde, as de Reitor da Universidade de SãoPaulo.
A criação da primeira “Assessoria Técnico-Legislativa” do País, para atender às
necessidades do Estado intervencionista e à política de planejamento, é uma das
iniciativas de que me envaideço. No plano universitário, foi-me possível vencer os
preconceitos que ainda separavam os veterinários, farmacêuticos ou agrônomos dos
titulares das “ profissões nobres”, advogados, médicos e engenheiros, e estabelecer
um plano de extensão universitária para o interior do Estado, o que me valeu críticas
virulentas por pane dos chamados “fundadores da USP”...
Note-se que meu amor pelo magistério era tão grande que, mesmo no exercício
das referidas funções, continuei a dar regularmente aulas na Faculdade de Direito,
desenvolvendo estudos que, aos poucos, iriam me levar ao superamento do neo-
138 Miguel Reale na UnB
kantismo. Minha Filosofia do Direito, publicada em 1953, já consubstancia essa
mudança, com o delineamento de uma teoria histórico-axiológica da cultura,
fundada nos pressupostos de uma posição epistemológica que denominei Onto-
gnoseologia: eram caminhos paralelos, através dos quais dava um sentido dialético e
mais pronunciadamente axiológico às idéias de Husserl, Hartmann e Scheler.
Dir-se-á que esse vaivém entre a política e a ciência, terá prejudicado minhas
linhas de pesquisa. É possível. Não é menos verdade, contudo, que a amplitude de
meus empenhos me proporcionou uma visão global da vida, que não recebera nos
bancos universitários.
Tem razão o Magnífico Reitor da Universidade de Brasília quando se insurge
contra a preocupação setorial e profissionalizante de nossas Universidades, com
olvido da grande lição da cultura ou paidéia grega de que a mente humana não é um
vaso para se encher, mas uma chama destinada a ser mantida viva. O que importa na
Universidade não é acumular conhecimentos, mas, ao contrário, captar as razões
metodológicas pelas quais e graças às quais penetramos no âmago da experiência e
nos tornamos capazes de pôr e resolver problemas utilizando-nos das soluções
alcançadas para novas perguntas e novos problemas, em reavaliações e retificações
contínuas.
Pois bem, o período mais tranqüilo em minha obra de Professor, quando me
foi possível cuidar, com mais intensidade e continuidade, de questões filosóficas e
jurídicas, dedicando-me ao Instituto Brasileiro de Filosofia e à sua Revista, que já
comemorou mais de 30 anos de existência, devo-o ao meu fracasso político, nas
eleições para o Senado Federal, em 1950. Positivamente, não sou bom de voto (Risos).
Foi após esse insucesso que concluí minha Filosofia do Direito, revendo-a de edição para
edição, sempre introduzindo elementos novos da teoria tridimensional do Direito,
que talvez possa ser distinta em três fases, correspondentes a três obras básicas:
Fundamentos do Direito; Filosofia do Direito (D al.a à4.a ed.);eO Direito como Experiência, que
é de 1958.
Essa história de fases é um pouco relativa. São apenas pontos de referência na vida
de uma pessoa ou na vida de um povo. Meros pontos de referência, porque, na
realidade, as fases se permeiam e o passado ressurge a todo instante, embora sob
novas aparências. Há que reconhecer, com Heidegger, que a temporalidade é, ao
mesmo tempo, presente, passado e futuro, numa intercambialidade de aconteci­
mentos do presente e do passado que prefiguram o porvir, com intuições “futuri-
zantes” que outorgam sentido ao “aqui” e ao “ agora” de nossa existência.
De qualquer forma, se não tivesse sido um político participante, se não tivesse
sido um advogado militante, é provável que minha orientação teria sido no sentido de
uma doutrina teórico-jurídica parnasianamente esculpida, com beleza de termos e de
Miguel Reale por ele Mesmo 139

frases, e escrito o Tratado que, ainda em 1953, imaginava com mais três volumes,
cada um deles destinado a uma das partes especiais da Ontognoseologia Jurídica.
Trata-se, porém, de meras suposições, pois sempre fui avesso às Filosofias
Jurídicas que se resolvem num diálogo entre especialistas, nada significando para o
advogado ou o juiz.
A filosofia do Direito, para ser válida, precisa conter uma mensagem, algo de
significativo para o homerrt que labuta no Foro, trabalha nas consultorias ou participa
dos planos da administração pública ou privada. Está no âmago da teoria tridimen­
sional do Direito essa constante preocupação pelas aspirações sociais, pelos fatos e
valores que devem se integrar na unidade harmônica da norma jurídica. Ora, esse
sentido concreto do Direito brotou, digamos assim, de minha variada experiência
como homem. Não foi um brinco da inteligência; não é que um dia eu tenha me
sentado à mesa e resolvido criar uma teoria. A suposição de que as teorias surgem
assim por encanto, como Minerva já armada e perfeita da cabeça de Júpiter, é um
grande equívoco. As teorias não são senão o produto da experiência. São a conclusão
de tudo aquiío que se sofreu, provou e experienciou, e, ao mesmo tempo, constituem
ponto de partida para outras experiências.
E esta é a razão pela qual, Bertrand Russell, se não me engano, traçou uma
diferença essencial entre as teorias políticas quando aplicadas em países desenvol­
vidos e subdesenvolvidos: nos primeiros correspondem ao resultado de uma
experiência; nos segundos marcam o início de uma experiência, com resultados
imprevisíveis...
De mais a mais, nem sempre podemos governar a progressão de nossas
investigações científicas, em virtude da intercorrência de empenhos insuspeitados;
ou que prevalecem na ordem das prioridades. Foi o que aconteceu comigo, não
apenas em razão dos intervalos de ação política ou administrativa, mas também
porque me pareceu inadiável despertar o Brasil para uma consciência filosófica que
não via brotar das universidades, dedicadas exclusivamente à leitura crítica e
acadêmica de textos, sem correrem o risco de pensar por conta própria. Daí um
período intenso de conferências, congressos e artigos.
Foi tudo isso que me impediu de escrever o sonhado Tratado, embora cuidasse
sempre de atualizar, de edição para edição, a minha Filosofia do Direito, que talvez
ainda venha a rever, depois do texto de 1975, considerado complexo. Por esse
motivo, me preocupo quando vejo citada, hoje, a edição de 1953, para fundamentar
idéias que foram por mim superadas.
Quantos e quantos juristas realizam üm livro e depois se põem a contemplá-lo
pelo resto da vida, como se tivessem descoberto algo de definitivo, transformando sua
obra num ídolo intocável! Não há ídolos no plano da cultura, pois nossas criações
140 Miguel Reale na UnB
estão sempre sujeitas a revisões, o que pode ocorrer com a publicação de um novo
livro, que depois repercutirá sobre o outro. Talvez pudéssemos pensar num boneco
de cera que vamos modelando e afeiçoando às experiências próprias e às exigências
coletivas, enquanto houver engenho e arte.
Mas não exageremos. Há casos em que o escritor considera uma obra definitiva,
porque de certa forma ela já se desprendeu dele, e é melhor cuidar de outros temas,
mesmo porque o tempo urge e o espírito humano é um foco de mil atrações.
Apesar da relatividade, a que já aludi, é preferível, pois, reconhecer que as obras
de um autor correspondem a momentos distintos de sua experiência. Nesse sentido,
dados os objetivos deste seminário, seja-me permitido reexaminar a linha de
desenvolvimento de minhas idéias mestras, completando a exposição já feita ontem.
Como já lembrei, houve uma fase de meu pensamento, a 2.a em que passei, de
certo modo, de Kant a Husserl. Mas não recebi as diretrizes fenomenológicas, sem as
submeter a uma revisão crítica, acorde com o que já adquirira através do
“ historicismo axiológico” . Portais motivos, não me conformei com o sentido estático
da Filosofia fenomenológica. Procurei dialetizá-la e, posteriormente, com grande
surpresa e alegria, ao ler a obra póstuma de Husserl, A Crise da Ciência Européia e a
Filosofia Fenomenológica, eu verifiquei que ele, na última fase da sua vida, também tinha
chegado a uma posição paralela, reconhecendo a carência de historicidade de sua
obra. Foi a melhor resposta a certos críticos que haviam declarado incompatível com
a fenomenologia husserliana qualquer reflexão de tipo histórico ou dialético...
Da mesma forma, dissenti de outros dois mestres da Fenomenologia, Max
Scheler e Nicolai Hartmann, no que se refere à sua concepção dos valores, por ambos
considerados espécies de objetos ideais. Uma de minhas possíveis contribuições à
Axiologia consiste, ao contrário, na consideração dos valores como objetos autô­
nomos, distintos dos objetos ideais, por não serem expressões do Scr (Sein) mas sim
do dever ser (Sollen) e por outras razões que não posso agora resumir.
Essa colocação do problema iria conduzir-me a uma 3.a fase, correspondente, no
plano jurídico, a meu livro “ O Direito como Experiência” , de 1968, e, no plano da
Filosofia Geral, àquela que talvez seja a minha obra maior, Experiência e Cultura, de
1977. Na primeira desenvolvo a teoria dos modelos jurídicos, e, na segunda, procuro
sistematizar meus pensamentos, visando a fundar uma teoria geral da experiência.
Projeção imediata desse livro é o que publiquei em 1980, sob o título de “ O homem e
seus horizontes” .
E a Política? Não posso dizer que ela não tenha interferido no processo que acabo
dedelinerar, pois, em minha existência política-do ponto de vista teórico-prático-
surge um livro ao qual não posso deixar de fazer especial referência. Refiro-me a
Pluralismo e Liberdade, de 1963. Esse livro, embora seja uma reunião de vários ensaios,
Miguel Reale por ele Mesmo 141
foi publicado num momento muito grave da vida brasileira: na antevéspera da
Revolução de 1964.
Nele reclamava a necessidade de uma sociedade aberta e pluralista e, ao mesmo
tempo, legitimada pelo princípio de liberdade, ao contrário das diretrizes estatizantes
pregadas pelos que orientavam o Presidente João Goulart, numa espécie de
nacionalismo neo-marxista, que, para alguns, deveria desembocar numa República
Sindicalista. As idéias pluralistas, que já havia exposto em Teoria do Direito e do Estado,
eram repensadas sob outro prisma em Pluralismo e Liberdade. Foi, então, que se
preparou a eclosão da Revolução de 1964, e eis-me, outra vez, pego pelos cabelos e
lançado na luta política, como conspirador revolucionário, primeiro, e, depois, na
qualidade de Secretário dajustiça de São Paulo, defendendo, com unhas e dentes, a
autonomia do meu Estado, que estava ameaçada.
Vitoriosa a Revolução, não fiquei de braços cruzados. Senti a necessidade de
continuar participando dos eventos, mesmo após ter deixado as funções de Secretário
dajustiça, em São Paulo.
Preocupava-me verificar que o Governo Revolucionário, empolgado com
problemas econômicos e financeiros, - que eram efetivamente os mais urgentes, -
não cuidava à í problemática política, repetindo-se o grande vazio que tem comprome­
tido os momentos mais decisivos de nossa história.
É nesse contexto, no quadro dessas apreensões, que situam os livros Imperativos da
Revolução de Março, que é de 1965; Problemas de nosso tempo, que é de 1969; eDa Revolução
à Democracia, cuja l.a edição é de 1969. e, finalmente “ Política de ontem e de hoje” ,
que é de 1978, mas reúne vários estudos dos anos anteriores, inclusive na “ Escola
Superior de Guerra” .
Nessas obras, marcadas por um desejo de crítica construtiva, denunciei falhas e
desvios do processo revolucionário, a começar pela apontada falta de consciência
política e pelo estrabismo dos tecnocratas, perdidos em seus números e diagramas de
caráter puramente econômico.
Note-se que em Imperativos da Revolução de Março, de 1965, já apontava os perigos
da visão unilateral dominante, que levava a esquecer os problemas sociais, con­
cluindo com esta afirmação que teve certa ressonância: “ Uma revolução pode deixar
de derramar sangue, mas não pode deixar de derramar idéias” .
A situação, com a chamada abertura, continua sendo a mesma. O grande mal dos
nossos partidos é a carência de idéias e programas... Não temos partidos nitidamente
distintos, por seu embasamento doutrinário, e que brotem de baixo para cima, à luz
de idéias diretoras. No fundo, persistem como acordo entre pessoas, combinações de
clientelas, ajustes e reajustes de interesses ocasionais e transeuntes.
142 Miguel Reale na UnB
O que explica, por exemplo, a sublegenda? A sublegenda é um ‘‘jeitinho
brasileiro” , de estar dentro do partido e, ao mesmo tempo, não estar. (Risos). A
sublegenda visa a permitir, por exemplo, num Município, que um grupo possa fazer
oposição ao Prefeito, ficando de bem com o Governador, isto é, conservando o calor
do Governo estadual e do federal. Por sua vez, no Estado, pode-se romper com o
Governador, declarando-se seu inimigo de morte, mas sem perder as graças do
Presidente da República... Como é que um jogo de sombras desse naipe pode
entusiasmar a juventude?
A nossa vida política tem sido algo de oscilante e precário, porquanto vai de um
extremo a outro. De um lado, o casuísmo empiricista e pragmático; de outro, a
abstração utópica, com todo o cerimonial solene, por exemplo, de uma Assembléia
Constituinte, como se esta fosse capaz de dar o fiat criador para solução dos
problemas nacionais. Que se faça uma Constituinte, vá lá! Mas, que se ventilem antes
os problemas básicos, para não chegarmos a ela de mãos vazias, só. depositando
esperança em soluções inspiradas pelo “ espírito santo cívico” .
Estão vendo, por conseguinte, que a minha vida tem sido uma dominada por
fatores políticos, jurídicos, filosóficos, sociológicos, etc. E não me arrependo disto.
De vez em quando, digo que vou deixar de advogar, vou deixar a política, vou deixar
disto ou daquilo, e minha mulher logo adverte: “Se você deixar, você morre”. No
fundo, esta frase talvez tenha um sentido mais profundo, porque os intelectuais
brasileiros, que não queiram desertar dos problemas de seu povo vêem-se na
contingência de viver muitas vidas, sendo obrigados abater vários pregos, ao mesmo
tempo. E a operar em vários setores, não por vaidade, mas por premência das
circunstâncias. Foi, pelo menos, o que eu senti, de maneira inexorável, em toda a
minha existência.
Hoje em dia, quando volvo os olhos para o passado, e penso no que me foi
possível construir no plano das idéias e dos fatos, regozijo-me por não ter tido êxito
na política, por ter sido vídma de tantos ataques injustos e às vezes ultrajantes,
ultrajantes para os ofensores e não para mim.
Se me vi, tantas vezes, malogrado em minha “vontade de poder”, do poder que
desejava exercer com a esperança de bem servir à coletividade, consola-me o fato
desse empenho ter-se convertido em um dos ingredientes de meu ser pessoal, em um
dos fatores determinantes desse amor que sinto pelas soluções concretas e exis­
tenciais.
A Filosofia ou a Ciência do Direito me terá dado tudo? Não sei. Nos intervalos de
minha meditação ou do meu agir, como filósofo ou como jurista, muitas vezes senti
um vazio, algo que precisaria ser afrontado por outras vias. Daí os livros de versos, os
livros de poesia. Não sou poeta. Sou um filósofo que se quer completar através da
intuição estética, que é a melhor denunciadora de nossa finitude e, ao mesmo tempo,
Miguel Reale por ele Mesmo 143
a mola incitadora para o mistério que nos cerca por todos os lados, e sem o qual nem a
vida, nem a ciência, têm sentido. A poesia parece, assim, operar na franja da
existência, mas pulsa antes no âmago dela, como uma fala paradoxalmente silenciosa
que se confunde com o que há de mais puro e insondável em nosso espírito.
5.2 DEBATES

PÉRGUNTA: Quanto a essa obstrução da Oposição, a imprensa costuma falar


sempre sobre ela, mas é difícil saber-se exatamente o que está acontecendo. O senhor
poderia dar-nos um esclarecimento?
JOSÉ CARLOS AZEVEDO - O senhor estaria se referindo ao fato de que no
Senado da República as oposições não têm dado quorum para as votações?...
-Justam ente.
MIGUEL REALE - A pergunta, que parece simples, suscita uma série de
questões prévias. Na realidade, temos um partido considerado do Governo, mas que,
a bem ver, não é um partido no Governo, no sentido de que ele não brotou de baixo
para cima, obedecendo a idéias ou programas, como, de resto, acontece com as
demais agremiações partidárias.
Assim sendo, como o que mais pesa são vínculos de clientela, ou objetivos
eleitorais imediatos, não causa surpresa que alguns parlamentares do PDS estejam
obstruindo a aprovação de leis de iniciativa do Governo, alegando não estarem sendo
atendidos em determinadas reivindicações.
É lamentável, mas sintomático em um processo democrático incipiente, resul­
tante do fato de ter sido assegurada a deputados e senadores a faculdade de mudar de
legenda, sem o risco de infringir o princípio da “ fidelidade partidária”.
A democracia tem isto de especial: não há lição de democracia. Ela só existe como
experiência de todos os dias. Para alcançá-la temos de passar por vicissitudes iguais à
apontada, através de sucessivos erros e desenganos. Compreendo bem que um moço
fique perplexo ao verificar que o Senado, que é a cúpula do Legislativo e que existe
para legislar, se omita na tarefa legislativa por motivos pessoais. Mas é preciso inserir
tais fatos num contexto de transição, sem abandonarmos a esperança de melhores
dias.
PERGUNTA: Professor Reale, sou um moaesto Juiz de Direito. Durante todos
estes dias, em todas as conferências, insistiu-se no princípio de que a norma não surge
dos fatos, mas se engasta neles. Assim, o senhor lembrou Jelinek: “ O homem não
deve sequer perder tempo com idéias que não têm aplicabilidade!” Lembrou
também a crítica que Hegel fazia aos adeptos da escolástica deteriorada de seu tempo:
146 Miguel Reale na UnB

“ São como nadadores que, à beira do rio, passam o tempo estudando tratados de
natação, sem jamais ensaiarem um mergulho!”
Os conferencistas, expondo o seu normativismo concreto, ficaram à beira do rio,
sem ensaiarem tal mergulho. Gostaria de ouvir do senhor um exemplo concreto de
uma causa examinada e julgada por um juiz tridimensionalista, de um lado, e por um
juiz kelseniano, de outro.
MIGUEL REALE - Em primeiro lugar, devo fazer algumas retificações,
porquanto não creio que os que expuseram meu pensamento, sobretudo o Prof.
Tércio Sampaio Ferraz, que tratou do assunto, tenham dito que a norma não surge
dos fatos. Segundo a teoria tridimensional, o fato é um dos elementos constitutivos do
Direito, mas não o único, O erro do normativismo abstrato consiste em tomar o fato
como ponto de partida, esquecendo-se depois dele, como se a norma tivesse uma lei
própria de desenvolvimento, desligada do fato originário e de outros supervenientes.
De outro lado, o chamado “realismo jurídico” vê a norma como simples emanação e
expressão dos fatos. No tridimensionalismo procuramos evitar ambos esses exa­
geros, pois a norma jurídica, uma vez emanada, carrega os elementos factuais
consigo, no seu próprio conteúdo. De maneira que o ingrediente da norma concreta
são os elementos factuais, tanto quanto os axiológicos.
Penso ter havido incompreensão quanto a esse aspecto, tanto assim que, por
vincular a vida da norma às mutações sociais, tenho sido até acusado de dar
desmedido valor ao fato. Parece-me incontestável que, quando o juiz examina a
prova e aprecia o “caso”, ele procura determinar “ o fato típico” que está expresso na
norma aplicável, a fim de poder estabelecer a correlação fato/norma que é a base da
sentença.
Também foi dito que, a meu ver, o homem não deveria sequer perder tempo com
idéias que não tenham aplicabilidade. Também é uma generalização que não
corresponde ao afirmado. Não me referi ao “ homem”, em geral, mas ao “político”,
ou ao “ jurista”, o que é muito diferente. Como pode o homem deixar de se
preocupar com idéias se, a meu ver, o que distingue o homem dos demais seres é o
seu dever ser, isto é, os seus fins?
O que foi dito é que o jurista ou o político não devem dar atenção a idéias ou
objetivos que jamais possam se converterem realidade. É de Ihering, seguido, aliás,
pelo tom istajoão Mendes e porjellinek, mestre d a “ Escola Técnico-J uri dica”, a tese
de que a “ realizabilidade” é da essência do Direito, o que me parece incontestável. O
Direito é feito para ser realizado ou cumprido. Imagine o juiz, que me distinguiu com
essa pergunta, uma norma jurídica que, por seus vícios intrínsecos, jamais se
transforme em momento de experiência humana! Imagine uma lei que promulgada
com todo o aparato do Congresso e sancionada pelo Presidente da República, nunca
logre ter eficácia! Não é lei, é apenas uma quimera!
Debates 147
A Filosofia não raro consiste em saber distinguir as coisas, sem separá-las, e
devemos dar ao fato o que é do fato, e à norm a o que é da norma, sem reduzir um à
outra ou separar os dois elementos que se exigem reciprocamente.
De outro lado, não concordo que os meus comentadores tenham evitado
afrontar a problemática jurídica, ficando à beira do rio, sem coragem de nele
penetrar. Suas análises me pareceram muito precisas e positivas. Finalmente o nobre
magistrado me pede um exemplo concreto de uma causa julgada por um juiz
kelseniano, e por um outro que não o seja.
Vou procurar satisfazer a esse pedido, com dois exemplos de minha própria
experiência de advogado militante, partindo da asserção kelseniana de que o Direito é
norma, e nada mais que norma.
Um juiz de formação kelseniana, ou seja, adepto do monismo normativo, é
levado a se contentar com o que a norma enuncia, sem cuidar de seu conteúdo
valorativo ou axiológico. Em ambos os casos, invoquei uma hermenêutica fundada
no tridimensionalismo. Confesso que tenho ganho causas com a teoria tridimen­
sional, assim como houve outras também, que perdi, porque o tridimensionalismo
não é uma panacéia. (Risos). Mas, muitas vezes, me tem servido na minha vida
profissional.

Acontece que o Código Civil, contém um dispositivo que, se não me falha a


memória diz: “Aquele que, para evitar perigo iminente, causar dano à coisa alheia, é
obrigado a repará-lo” . Não sei se são exatamente essas as palavras, mas o sentido
essencial é esse.
Pois bem, aconteceu que uma pessoa, por sinal de minha família, estava andando
pela calçada, quando um automóvel, para desviar de um caminhão, atravessou o
meio-fio, fraturando a perna do meu cunhado, com fratura exposta que, infelizmente,
iria, causar-lhe a morte. Propus uma ação de indenização. E sabem qual foi a teoria
acolhida pelo juiz de l.a instância, e por dois desembargadores do Tribunal? A tese
de qúe a demanda era incabível porque o Código só se refere a “dano à coisa alheia”
(Risos). Em grau de embargos, reiterei o entendimento de que a proteção às coisas é
feita, pela lei, em atenção ao valor da pessoa, titular delas. Destarte, como excluir o dano
à própria pessoa, quando a norma legal protege os bens imateriais que compõem o
seu patrimônio. Tanto insisti sobre a natureza axiológica da lei, que a decisão final me
foi favorável, indo-se além do mero juízo lógico-formal. Donde se conclui que o valor
não pode ser considerado meta-jurídico, pois se insere na problemática jurídica
concreta.
Houve outro caso em que, também, como conseqüência de rígido formalismo
jurídico, foi decretada a falência de uma grande firma paulista, sob a alegação de que
148 Miguel Reale na UnB
ela teria deixado passar vinte e quatro horas, sem pagar ou depositar a importância de
uma condenação de salários na Justiça Trabalhista. O advogado que patrocinava a
causa, efetivamente tardara em providenciar o depósito, mas, requerida a falência,
efetivou incontinenti dois depósitos, um perante o Juízo Trabalhista, e outro perante
o Juízo Falirrientar. Isto foi no dia seguinte ao prazo draconicamente previsto na Lei
de Falências, como caracterizador de insolvência.
Nessa conjuntura, chamado a tratar da questão, resolvi impetrar mandado de
segurança contra o juiz que decretara a falência. Tive que discordar de Pontes de
Miranda que, em seu “Tratado de Direito Civil” , considera aquele prazo de 24 horas
inexorável efatal , o que demonstra que o naturalismo jurídico muitas vezes coincide
com o normativismo puro, tomando o enunciado da norma como um fato
inamovível.
Nesse caso, sustentei que a norma legal deveria ser interpretada não só em seu
sentido e valor, mas também em função de todas as circuntâncias de fato. Havia a
demonstração, em virtude da duplicidade do depósito, da plena capacidade
econômica e liquidez da sociedade, devendo-se observar que toda empresa repre­
senta um valor econômico merecedor da tutela jurídica, sobretudo quando nenhum
dano sofrera o requerente da falência, que apenas estava agindo com espírito
emulativo e visando a tirar proveito da situação.
Pois bem. em memorável acórdão, o Tribunal de justiça de São Paulo, houve por
bem decretar a nulidade da falência, levando em conta os elementosfactmis e axiológicos
postos em evidência. Reconheceram os julgadores que uma norma legal não pode ser
interpretada contra o seu espírito e os fatos comprovados (os dois depósitos da dívida)
os quais demonstravam que não havia qualquer sinal de insolvência, o que o
legislador tivera em vista caracterizar através do decurso do prazo assinado para
pagamento de uma condenação judicial.
Esses dois exemplos bastam para mostrar a diferença entre uma atitude
puramente formalista do jurista, e a de quem procura situar as questões de direito no
complexo e na concretude de todos os seus elementos econômicos e sociais, como é
próprio da experiência humana. (Palmas).
PERGUNTA: Professor Reale, quais são os pontos comuns do programa do seu
antigo Partido Popular Sindical e do atual PT do Lula?
MIGUEL REALE - Esta pergunta é muito interessante. É que, na realidade, no
manifesto que escrevi para esse Partido Popular Sindicalista - é uma das coisas que
um dia vou colecionar, eis que na minha vida tenho sido um redator de manifestos de
partidos políticos (Risos) - nesse manifesto eu digo que o povo-sindicato é o binômio
da vida política contemporânea. É possível que ele aceitasse esse binômio.
Debates 149
A diferença, porém, consiste nisso: é que eu não acredito num partido
exclusivamente de base sindical. Pode haver um partido trabalhista, mas não um
partido adstrito a uma categoria profissional, ou, então baseado em estruturas
sindicais. Parece-me que foi isso que grande líder polonês Valesa disse ao Lula. Não
tem sentido um ou mais sindicatos convertidos em partidos ou instrumentos
políticos. Pode haver um partido trabalhista apoiado na vida sindical, sim, mas não
um partido puramente setorizado. Isto, ao que parece, está sendo compreendido
pelos organizadores do PT que está recebendo intelectuais, estudantes e adesões de
todas as classes sociais, abrindo seu campo de ação.
O Partido Popular Sindicalista foi fundado em 1946, logo depois da guerra.
Então, as perspectivas eram outras, e o Brasil estava apenas no início da evolução
industrial agora atingida, a qual exige outros parâmetros políticos, tomando difícil a
comparação solicitada.
PERGUNTA: Professor Reale, em 1940, aparece, no Brasil, em sua tese do
concurso para a Universidade de São Paulo, a Teoria Tridimensional do Direito. Ao
mesmo tempo, cerca de alguns meses antes, na Alemanha, Sauer publica a sua obra
jurídico-filosófica, cujo título é “ Drietimensionale Rechtstheorie”, ou em nosso
idioma, “Teoria Tridimensional do Direito”. Existe alguma diferença entre o
tridimensionalismo jurídico do eminente mestre nacional e o do filósofo alemão?
MIGUEL REALE — Em primeiro lugar, para evitar equívocos, observo que
Wilhelm Sauer não tem nenhuma obra com o título de “Teoria Tridimensional do
Direito”. O livro por ele publicado em 1940, intitula-se, se não me falha a memória,
Juristische Methodenlehre, e é nele que ele apresenta a sua “Dreiseitentheorie” , ou, em
português, “Teoria trilateral” . Para Sauer não é só o Direito que é trilateral ou trino,
porque na sua visão panteísta, tudo, desde o mundo natural até o mundo da
inteligência, tem uma.estrutura trina, apresentando três dimensões.
O Direito, para Sauer, como lembro em minha pequena monografia “Teoria
Tridimensional do Direito”, é apenas um a das realidades trinas inserida na sua visão
tridimensional do universo, enquanto que para mim a tridimensionalidade é
específica do mundo histórico-cultural.
Não sei em que se baseia o interlocutor para afirmar que a obra de Sauer “ surgiu
alguns meses antes” da minha. Surgiram ambas em 1940, tendo sido impresso o meu
trabalho em fins de 1939, pois, em se tratando de tese para concurso, devia ser
apresentado com grande antecedência, ficando a tese em sigilo até a realização das
provas, conforme normas rígidas então vigentes na Faculdade de Direito de São
Paulo.
O certo é que tanto Sauer como eu não tínhamos conhecimento dos respectivos
escritos, e, se ambos convergimos para certas conclusões análogas, é mais um sinal do
acerto das diretrizes seguidas.
150 Miguel Reale na UnB
O certo, repito, inclusive para responder a um escritor do Nordeste que
apressadamente filiou o meu pensamento ao de Sauer, talvez porque os brasileiros
nào podem ter idéias originais (Risos) entreguei minha tese com muita antecedência.
O concurso realizou1se em... minha mulher é que sabe esse negócio de datas, nào é?
Agosto?
SRA. REALE - Setembro.
MIGUEL REALE - Setembro! Está bem. Quando eu preciso de data, é ela quem
m ’a fornece com segurança, o que é muito bom. Tenho um apoio temporal, também.
(Risos).
Minha tese ficou depositada na Secretaria da Faculdade, até que se constituísse a
banca examinadora, o que demonstra que não poderia ser posterior à de Sauer.
O importante é, porém, notar a absoluta diferença das duas teorias. A de Sauer é
estática, de mera justaposição dos três aspectos, que ele denomina matéria, idéia e
forma, e não fato, valor e norma. A meu ver, estas palavras indicam momentos de um
processo dialético de integração. Trato desse assunto também no 2.° Volume de
minha “ Filosofia do Direito” e peço a atenção para as diferenças que aponto.
A originalidade- se existe algum a- em minha teoria tridimensional, consiste em
não ver fato, valor e norma, ou matéria, idéia e forma, como fatias distintas de um
objeto.
Essa é uma das diferenças essenciais, o que quer dizer a compreensão concreta e
dinâmica do Direito, sempre tridimensional para qualquer tipo de pesquisa que a ele
se dedique.
PERGUNTA: É possível estabelecer-se um paralelo entre o casuísmo político
brasileiro e o pragmatismo inglês?
MIGUEL REALE - Acho que há uma diferença'muito grande entre o casuísmo
político brasileiro e o pragmatismo inglês. O pragmatismo inglês vincula-se à
experiência historicamente vivida, através de constante aferição de resultados úteis
ou válidos. Isto tanto na Política como no Direito.
A Inglaterra, até hoje, não precisou de Assembléia Constituinte, nem cuidou de
elaborar uma Constituição escrita. No entanto, nào há país no mundo em que o
Direito Constitucional tenha tanta força. Porque o que prevalece na cultura inglesa é a
compreensão da vida política como um hábito, um sistema consciente de usos e
costumes que lentamente se aperfeiçoam. O casuísmo, ao contrário, é a procura
artificia] ou intencional da solução para cada caso emergente. No pragmatismo temos
a naturalidade dos fatos na sua seqüência imanente; no casuísmo, imagina-se, através
Debates 151
de artifícios, uma solução que se ajuste ao fato, visando a atender a objetivos
transitórios.
Tomara que nós tivéssemos a experiência pragmática naturalística, no bom
sentido da palavra, dos ingleses. Porque eles dão o exemplo extraordinário de saber
variar e aperfeiçoar o conteúdo, muito embora mantendo as mesmas formas solenes,
ao contrário do que fazemos nós, que vivemos mudando continuamente as leis, sem
alterações de fundo...
PERGUNTA: Sou um curioso estudante e queria saber se o senhor aceita esse
conceito de democracia relativa.
MIGUEL REALE - Bem, a expressão democracia relativa foi empregada pelo
Presidente Ernesto Geísel num determinado momento do chamado “ processo de
abertura” por ele iniciado, mérito que não lhe podemos contestar. Através desses
termos, ele talvez quisesse dizer que não estava em condições de promover a
instauração de uma democracia plena, e que este ideal devia estar sujeito a necessário
gradualismo.
Além do mais, quanto a essa distinção entre democracia plena ou relativa, eu
perguntaria: onde existe, isenta de reparos, uma democracia plena e completa?
Existirá algum país com democracia perfeita? Alguns povos nos dão exemplos
extraordinários nesse ponto. Eu citaria o exemplo da Inglaterra, lembrando, no
entanto, que, para os negros, até bem pouco tempo, a democracia norte-americana
não poderia ser considerada inteiramente instituída.
Mas, democracia relativa, efetivamente, só pode ser interpretada como relativa às
possibilidades de real funcionamento das instituições, legitimadas pela vontade
popular, em função das conjunturas de cada época. A democracia, como todas as
criações humanas, depende e varia, de povo para povo, e de época para época.
Somente sob esse prisma histórico-sociológico é que a expressão “ democracia
relativa” pode ser o significado de solução de natureza transitória, em vias de
aperfeiçoamento. Isto não significa, porém, que a palavra “democracia” não possa
ser adjetivada. Os que sustentam esse ponto de vista, no fundo pretendem identificar
democracia com democracia liberal, o que, evidentemente, só pode ser aceita pelos
liberais. O emprego do termo “democracia social” parece-me, por exemplo
plenamente irreprochável.
PERGUNTA: Professor Reale, nunca houve, em sua vida, preocupação ou
inquietação religiosa? A insuficiência experimentada na Filosofia e o atual estágio
poético não apontam na direção daquele do qual disse Santo Agostinho: “Fizeste-nos
para Vós, Senhor, e nosso coração anda inquieto enquanto não repousa em Vós”?
MIGUEL REALE - Essa pergunta é deveras perturbadora. Não creio que
nenhum filósofo, que nenhum pensador, por mais que o negue, não sinta certa
152 Miguel Reale na UnB
inquietação religiosa. Eu tenho sentido, evidentemente, a inquietação do Absoluto,
mas, infelizmente, não me foi possível ir além da concepção do Absoluto como um
horizonte, para o qual avançamos indefinidamente, e que empresta um sentido
relativo ao que sabemos da realidade.
No último capítulo - e aqui é apenas uma informação, porque não poderei dar
explicação ampla da matéria - no último capítulo de meu livro Experiência e Cultura,
analiso a “ Experiência religiosa” , reconhecendo que ela é inamovível, embora não se
possa provar a validade de qualquer resposta. O essencial, porém é o sentido dessa
eterna procura. Talvez nela resida a verdadeira religiosidade, que se resolve sempre
no reconhecimento ou pressuposto de um valor supremo, que escapa ao nosso
entendimento. É o obscuro outro de que nos fala Kierkegaard. A experiência religiosa
é, a meu ver, fundamental para qualquer homem, ainda que não se enquadre nesta
ou naquela seita, ou confissão. Sinto-me um espiritualista no sentido pleno desta
palavra, porque admito que haja um valor inatingível, incognoscível, que, apesar
disto, dá sentido àquilo que eu conheço. Reside nisto o paradoxo e o grande desafio
do transcendente, inatingível, e talvez seja esta a fonte perene da poesia.
JOSÉ CARLOS AZEVEDO: Caros amigos, não havendo mais perguntas, cabe-
me agradecer, em nome da Universidade de Brasília, de toda a comunidade
acadêmica, ao eminente jurista, ao eminente filósofo, Professor Miguel Reale, e a sua
digna esposa, que nos honraram com suas presenças durante estes quatro memorá­
veis dias. As palavras do Professor Reale, nesse seu depoimento histórico hoje
prestado neste auditório, tão impregnado de conceitos morais, de uma profunda
coerência, que ele sempre guardou ao longo de toda a sua vida, merece de todos nós
aplausos e o profundo reconhecimento desta instituição.
Muito obrigado a todos.
MIGUEL REALE - Antes de concluir e, muito embora vencendo a pragmática de
falar depois do Magnífico Reitor, desejo aqui dizer duas coisas: em primeiro lugar,
que volto para São Paulo verdadeiramente encantado. Encantado com o exemplo
que a Universidade de Brasília está dando, pelo trabalho do Magnífico Reitor, pela
cooperação inestimável de Carlos Henrique Cardim, que tem sido de uma dedicação
extraordinária, e de seus auxiliares todos, os funcionários. Impressionado, natural­
mente, com esta contribuição, com esta tomada de posição teorética da Universidade
de Brasília, no momento em que há um esvaziamento de teoria nas Universidades,
perdidas num imediatismo de toda hora.
E quero dizer, mais, que eu volto com uma surpresa, que eu vou transmitir aos
meus amigos - porque, embora aposentado, eu continuo a ter amigos estudantes - a
surpresa que me fez a juventude aqui presente. Quatro noites seguidas, a ouvir longas
exposições que, à primeira vista, pareciam enfadonhas. É um sentido de participação
extraordinária! As perguntas, agudas e penetrantes, que foram feitas alegraram-me o
Debates 153
espírito, algumas num primeiro momento, me embaraçaram. Perguntas, inegavel­
mente, que traduzem uma atitude espiritual perquiridora que me inspira um ato de
confiança em nosso empenho cultural comum.
Eu tenho confiança nos jovens que têm a coragem de deixar as suas noites de
descanso para ouvir Filosofia, problemas de Política, ou de Direito, que se
interessarem tanto pelos valores da inteligência.
Não quero que ninguém imagine, nas minhas respostas, nem de longe, qualquer
intuito polêmico. Eu sou, por natureza, às vezes, levado, pelo entusiasmo das minhas
idéias, a dizer algumas coisas que podem parecer de natureza, digamos assim,
desafiadoras ou polêmicas. Não me levem a mal por esse lado. Na realidade, até
mesmo quando eu procuro-me contrapor a certas coisas, um desejo imenso de
diálogo está no âmago do meu ser, como professor que pretendeu ser sempre um
estudante.
À juventude de Brasília eu deixo aqui não uma mensagem, mas deixo apenas
uma lembrança extraordinária deste nosso encontro, no qual, por acaso, fui o centro,
um pretexto para a presença dos moços, que, na realidade, são o que interessa numa
nacionalidade e numa Universidade.
Parabéns, moços da Universidade de Brasília.

O
ILUSTRAÇÕES
Ilustrações 157

Da esq. para a dir.: os Prof. Carlos Henrique Cardim (Decano de Extenslo da UnB), Miguel Reale, José
Carlos de Azevedo (presidindo os trabalhos), Ronaldo Poletti (proferindo a sua conferência sob o título
“Miguel Reale e o Pensamento Político”) e Amadeu Cury, Decano de Pós-Graduação da UnB.

Flagrante de mais uma sessão do SimpósicMiguel Reale: tendo à sua direita os Prof. Miguel Reale, Luiz
Otávio de Souza Carmo {Vice-Reitor da UnB) e Carlos Henrique Cardim, eà esquerda os Prof. Celso Lafer
(da USP) e Vamireh Chacon, o Ministrojosé Carlos Moreira Alves, do Supremo Tribunal Federal, preside
os trabalhos.
158 Miguel Reale na UnB

O Prof. Miguel ReaJe faz a sua Conferência, tendo à dir. o Prof. Carlos H enrique Cardim e à esq. o Reitor
José Carlos de Azevedo (presidindo), Ministro Gualter Godinho, do Superior Tribunal Militar e o Prof.
Amadeu Cury.

O Prof. Antônio Paim fala sobre “Miguel Reale e a Filosofia Brasileira”. À sua dir. está o Prof. Carlos
Henrique Cardim. E à sua esq.: os Prof. Miguel Reale, José Francisco Paes Landim (na presidência dos
trabalhos), Tércio Sampaio Ferraz Jr. (da USP) e Amadeu Cury.
Ilustrações 159

Outro aspecto da Conferência que o Prof. Miguel Reale fez no Simpósio em sua homenagem. À sua dir.
estão o Deputado Bonifácio José de Andrade e o Reitor José Carlos de Azevedo; à esq. vêem-se o Senador
Paulo Brossard e o Prof. Tércio Sampaio Ferraz.
ANEXO_____________________
Miguel Reale: Minha Trajetória Filosófica

Minhas meditações filosóficas desenvolveram-se, inicialmente, em íntima vin-


culação com a análise dos problemas sociais e políticos, tendo, já no prefácio de meu
primeiro livro, 0 Estado Moderno (1934), manifestado o propósito de “teorizar a vida e
viver a teoria na unidade indissolúvel de pensamento e da ação”.
Creio que essa orienttação influiu em toda minha especulação posterior, a qual,
de resto, coincide com uma das diretrizes dominantes de nosso tempo, não digo
devido à inserção da Filosofia no social, convertendo-a numa.ancilla sociologiae, mas sim
por não poder o pensador contemporâneo ficar alheio aos problemas de natureza
existencial, de olhos fechados para a praxis.
Essã compreensão teórico-prática foi por mim sentida, primeiro, em meus
estudos de Filosofia do Direito ou de Filosofia Política (Cf. “ Filosofia do Direito”, 1.a
ed., 1953; 8.a ed., 1979), para, aos poucos, se estender a todo o campo filosófico,
podendo afirmar que minhas obras Pluralismo e Liberdade (1962) e O Direito como
experiência (1968), já preparam e antecipam as teses afinal desenvolvidas em
Experiência e Cultura e O homem e seus horizontes, respectivamente, de 1977 e 1979.
A referida exigência de concreção, visando a compreender o homem como um
“ ser situado”, tanto mais ele mesmo quanto mais correlacionado com os demais
homens e as coisas, levou-me a reconhecer a insuficiência das teorias neokantianas,
seguidas, de certa forma, até a publicação de Fundamentos do Direito (1940). Convenci-
me de que, se o retorno a Kant tivera o mérito de repropor o problema da
“ subjetividade transcendental”, não oferecia, porém, base segura para mais ade­
quada compreensão do papel da subjetividade no mundo dos valores e da história, os
quais se correlacionam essencialmente com a consciência, ou o “ espírito subjetivo”,
mas não podem ser reduzidos a ela. Donde a rejeição de um conceito formal de
cultura, intercalado paradoxalmente entre o ser(Sein) e o dever ser, (SollenJ, isto é, entre
os enlaces causais do mundo fenomenal e os nexos teleológicos da experiência dos
valores, como haviam feito os neokantianos da Escola de Baden, de Windelband até
Radbruch. Pareceu-me indispensável superar a fratura aberta entre causalidade e
liberdade, e, por via de conseqüência, entre Epistemologia e Ontologia, atendendo, nesse
ponto, às reformulações feitas por E. Husserl e seus continuadores.
O primeiro resultado dessa nova compreensão do processo cultural deu-se nos
domínios da experiência jurídica, onde desenvolvi a denominada “ teoria tridimen-
162 Miguel Reale na UnB
sional do Direito”, a qual se caracteriza pela demonstração de que a norma jurídica
não se reduz a uma simples proposição lógica, não obstante o seu aspecto formal. A
bem ver, toda regra de direito representa uma integração contínua de fatos sociais e
valores, correlacionados segundo estruturas sempre sujeitas a supervenientes muta­
ções históricas. Resultou dessa meditação a necessidade de reexaminar o problema
dialético, em geral objeto de estudo apenas à luz dos enfoques hegeliano ou marxista.
Como penso ter explicado em meu livro Experiência e Cultura, pareceu-me que, se
a fenomenologia havia estabelecido maior sintonia entre o pensamento e o real, no
seu esforço de “ ir às coisas mesmas”, fizera-o, porém, de maneira estática, ainda fiel
ao formalismo kantiano, com perda do que há de histórico, ou mais amplamente,
de temporal c volitivo em todas as formas de saber, como o estudo especial do Direito
me havia revelado. Convenci-me, em suma, que havia toda uma dialética subenten­
dida no pensamento de Husserl, apesar de seu inicial alheamento às pesquisas de
ordem histórica. Pensó que a publicação póstuma de sua obra A Crise da Ciência
Européia e a Fenomenologia Transcendental veio dar razão a essa minha crítica, que, no
entanto, não me levou a adotar a via aberta por Heidegger, cuja correlação entre “ ser
e tempo” se põe em termos de uma Ontologia radical, que, no fundo, torna sem
sentido uma teoria do conhecimento qua talis.
Ora, os estudos que tenho desenvolvido no sentido da compreensão de Teoria de
Conhecimento em termos de uma Ontognoseologia, revelam que, a meu ver, se o real
não coincide com o pensamento, como ocorre 110 sistema de Hegel, seria impossível
recusar sua essencial co-implicação dialética. Isto envolvia, no entanto, um reexame
da matéria, de tal modo que se levasse em conta não só o problema gnoseológico do
. cogito, mas também o problema ôntico da realidade enquanto objeto de conhecimento.
O homem, penso eu, é, em si mesmo, um ser histórico porque conhece eé capaz de
conhecer, mesmo porque ele não conhece porque quer, mas sim porque não pode
deixar de conhecer e de “ tornar objetivo” , independente dele, o produto de seu
próprio conhecimento. Por essa razão a essência do homem ou o eidos do real não
podem ser alcançados graças a uma reflexão que culmine no sentido da subjetividade
transcendental, embora seja esta a fonte originária doadora de sentido às nossas
experiências. E que, a partir do primeiro ato através do qual se tornam objetivos uma
percepção ou um pensamento (não se pode nem perceber, nem pensar, sem objeto) o
problema do homem fica vinculado à sua história: nada se pode dizer do homem e
dos entes, com abstração da experiência temporal que o homem adquire de si mesmo
e das coisas. Compreende-se, desse modo, que minha atenção tenha sido atraída por
dois temas correlatos: o do valor e o da cultura.
No que se refere ao primeiro, observei a tendência dominante no sentido de
reduzir o valor a esta ou àquela esfera de objetos. Se Max Scheler ou Nicolai
Hartmann, por exemplo, repudiavam a compreensão do valor segundo enfoques
psicológicos ou das ciências naturais, não era menos certo, todavia, que ambos o
Anexo 163

consideravam uma “espécie de objeto ideal”, numa visão por assim dizer neopla-
tônica. O estudo dos valores jurídicos ou políticos, nos quais se manifesta de maneira
mais pronunciada a sua natureza normativa, levou-me a desvincular os valores dos
domínios dos “objetos ideais”, a começar pela observação fundamental do que,
enquanto que estes são, aqueles devem ser. A colocação da “ teoria dos objetos” em
função da distinção fundamental entre Sein e Sollen (o que, salvo engano, antes não
havia sido feita) revelou-se fecunda para uma fundação autônoma da Axiologia,
situando o valor como um “ ens a se” .
A essa luz, lembrei que, ao contrário dos objetos ideais, os valores, além da
“ polaridade” , que lhes é sempre inerente, se caracterizam também por sua
“ realizabilidade”, visto como não passaria de mera ilusão ou de quimera um valor
que jamais viesse a se converter, pelo menos em parte, em momento da vida humana,
através de atos de valoraçào e obras. Daí a sua essencial vinculação com a
problemática da história e da cultura, também por sua característica de “ inexauri-
bilidade” .
Talvez não haja exagero na afirmação de que, desse modo ao dar um status
autônomo aos valores como tais, estava contribuindo para lançar as bases de uma
Axiologia autônoma, fundada na natureza mesma do homem, um ser, que como já
notei, não pode deixar d e conhecer, e também não pode deixar dc escolher, pois a vida
consiste em permanentes opções. Essas duas exigências existenciais (no fundo todo
conhecimento implica certa opção) exclui a possibilidade de um pensamento divor­
ciado d âpraxis e vice-versa. Há, pois, uma co-implicação necessária entre a Teoria do
Conhecimento, ou Ontognoseologia, e a Axiologia, podendo-se afirmar que o
homem “é enquanto deve ser”.
Parece-me que dessa linha de pensamento resulta a necessidade de examinar,
com mais profundidade, outra correlação não menos relevante: a que se põe entre
valor e tempo, tese esta escrita a convite do Congresso Internacional de Filosofia,
realizado em Veneza, em 1958, como uma das “ comunicações introdutivas” (Cf. Atti
dei X II Congresso Intemazionale di Filosofia, Vol. I, Florença, 1958).
Essa tese estava, aliás, ligada a uma nova compreensão da cultura, concebida
como “o mundo das intencionalidades objetivadas pelo homem ao longo de sua
experiência histórica” . Meu propósito era alcançar um conceito de cultura quê fosse
além das colocações empiricistas, mas tivesse um alcance geral englobante, tal como
já fora percebido^ por alguns historiadores, etnólogos e sociólogos: impunha-se,
reconhecer, e ainda me parece constituir uma tarefa atual, que devem-se desenvolver
paripassu a teoria do homem e a teoriá da ciência, ou seja, imago hominis e imago mundi,
como afirmei numa das conferências da tarde promovidas pelo Congresso Interna­
cional de Filosofia, de Dusseldorf, em 1978 (Cf. meu livro “ O homem e seus horizon­
tes”, São Paulo, 1980).
164 Miguel Reale na UnB
É claro que essa compreensão do homem e de sua experiência histórica, em
função da idéia de valor, põe uma série de problemas, aos quais tenho procurado
responder, sem a preocupação, porém, de ordenar minhas convicções em sistema.
Prefiro antes um “ pluralismo de perspectivas” que nos leve a uma dialética de
complementaridade. Esta se caracteriza pelo reconhecimento de que o processo
Histórico-cultural não se desenvolve segundo progressivas sínteses superadoras de
contrários e contraditórios, mas sim através de “ sínteses abertas”, formadas pela co-
implicação de elementos que só podem ser compreendidos em sua mútua correlação,
sem que um deles seja reduzido ao outro. À “dialética dos opostos”, de tipo
hegeliano ou marxista, representaria, assim, uma das formas possíveis da “ dialética
de complementaridade”, desde que não se pretenda alcançar uma absurda síntese de
termos contraditórios.
Foi partindo desses pressupostos que passei a estudar o problema da experiência
em geral, convencido da inviabilidade de um conceito de experiência para as ciências
empírico-formais, e outro para as ciências sociais ou para a vida ética. Uma teoria geral
,da experiência, que sirva de fundação a múltiplas e diversificadas compreensoes do real
é o campo de pesquisa em que mais me empenho atualmente.
ÍNDICE REMISSIVO

abertura v. política de abertura. Bibliografia Filosófica Brasileira, 122


Ação Integralista Brasileira, 54. v.t. Igreja, burguesia, 37-8
adhem arism o, 137 utilitarism o burguês, 124
Barros Adem ar de, 137 burocracia, 35, 37
adm inistração indireta, 18. aparelho burocrático, 37
adm inistração pública, 11, 12, 45,135, 139 estam entos burocráticos, 35
A lem anha, filosofia, 116. m ultinacionais, 35, 133
Aliança Liberal, 130.
antinom ia, 8, 13, 145, 164 capitalism o, 14-5, 37-9, 133
contradições entre as ideologias e os fatos, capitalistas, 37
13-4 regim e capitalista, 15, 38, 53
capitalism o, 14-5 internacional, 133.
com unism o, 14-5 internacionalização do capital, 133
prática e teoria, 8 ,1 3 C apitalism o Internacional, D, 3 91, 133
projetos políticos nacionais, 8, 13, 145 Carta de 1969, 124
A ntropologia, ciência, 98. cátedra, 4, 111, 134-5
APRA, 53 centenário da In d epen d ên cia-1922, 129,
an e, 98, 140. 130
academ icism o na ane, 99 cibernética, 16, 107-8
erudita, 98. retroalim entação, 107
popular, 98 Ciência Jurídica, 30, 47, 73
Asociación Peruana Revolucionária v. APRA Ciência Política, 4 ,8 ,1 0 ,1 1 , 28, 30,32-3, 40,
A ssem bléia Legislativa, 8. 47, 54, 68, 73
A ssem bléia N acional C onstituinte, 43-4, 87, C iência Social, 32-3
142, 150 classe social, 20, 37-8, 51-2, 149
Assessoria Técnico-L egislativa do Pais, escala social, 50
8, 135, 137. luta d e classes, 37, 52
relações sociais, 62
política do Direito, 8 código, 47
Teoria da legislação, 8 C ódigo Civil, 84, 89, 121, 124, 129, 147
Associação Peruana Revolucionária v. APRA colégio Dante Alighieri, 127-8, 131
Atualidades Brasileiras, 3 colonialism o, 93
Atualidades de um M undo A ntigo, 3 ,9 ,9 1 , com plem entariedade, dialética da, 32, 57-8,
133 65, 68,
autoridade, 67, 85 78, 83
anarquism o, 85 com tism o, 96
autoridade e Direito, relação, 85 com u n ism o, 14-5, 22, 130

V. = VER V.t. VER TAMBÉM


166 Miguel Reale na UnB
com unistas, 93 poder decisório, 74, 77, 104
partidos com unistas, 38 processo decisório, 107
regim e com unista, 15 Declaração dos Direitos Econôm icos
“com unism o paralelo”, 52 Vitais, 19.
concreção, 30, 53, 95, 99, 119, 148, 161 Declaração dos D ireitos Políticos, 19
liberalism o em , 31 dem ocracia, os valores fundantes da (confe­
solução de, 47 rência), 22, 61
solução de experiência, 47 dem ocracia, 16, 22-4, 34, 40-1, 43, 52, 61,
teoria da, 30 67, 145, 151
teoria da norm ativa, 116, 148 experiência dem ocrática, 9, 22
teoria da política, 31, 53 pluralism o dem ocrático, 52
conflito, 22-3, 28, 33, 35, 41, 64, 66, 74-5, processo dem ocrático, 40
77, 87, 109, 126, 130. solução dem ocrática, 10, 43
conflitos coletivos, 52, 77 solução brasileira, 4, 5, 151
conflitos ideológicos, 130 m od elo dem ocrático brasileiro, 17, 145
C ongresso Internacional de Filosofia, 163 processo de institucionalização da, 9
C ongresso Internazionale di Filosofia, XII, processo de institucionalização de massas,
V. C ongresso Internacional de Filosofia. 51
C ongresso N acional, 10, 74, 77, 124, 146 processo de institucionalização liberal, 19,
congressos nacionais de filosofia, 6, 125 21, 151
Conselho Administrativo de São Paulo, 135-6 processo de institucionalização plena, 151
C onselho Federal de Cultura, 125 processo de institucionalização relativa, 151
Constituição, 5, 9, 18, 21, 44, 86, 124 processo de institucionalização social, 13,
Constituição de 1946, 4 . _ 17-21, 33,. 35, 151
neocapitahsm o, 18
Constituição de 1967, 123 neoliberalism o, 18
constitucionalism o, sistem a, 87 deontologia do poder, 67-8, 82
constitucionalism o, 61 desenvolvim ento econôm ico, 15, 17, 20,
contratalism o, 74 122-3, 141
crise, 13*4, 16, 20, 23, 28-9, 88, 134 infra-estrutura econôm ica, 20
crise das ideologias, 13-4, 44, 126 países desenvolvidos, 15,27,139. v.t. economia
crise do Direito, 102, 134 desenvolvim ento econôm ico-social, 17, 20
crise do Estado, 13 dialética, 57-8, 62, 65-6, 68, 74-5, 78-9, 83,
crise do petróleo, 16 104, 116, 118-9, 138-9, 162
crise do sistem a, 13 dialética da com plem entariedade, 32, 57-8,
crise econôm ica, 14 6 5 ,6 8 ,7 8 ,
crise política, 28-9, 126, 134 83, 164
crise troca de regim e, 13 dialética de im plicação e polaridade, 67-9,
Cristianism o, 22, 61, 79, 81-2 106, 118
legado histórico do, 81 dialética do discurso persuasivo, 117, 119
Crítica da Razão Pura, 33 dialética dos opostos, 164
Cultura e Experiência, 6 dialética hegeliana
culturalism o, 54-5, 68, 94-5 dialética hegeliano-m arxista, 78-9, 164
Direito
Dante Alighieri, colégio, 127-8, 131 ciência do, 6, 7, 13, 20-2, 24, 30-1, 37, 41-2,
Da Revolução à Dem ocracia, 141 47, 50, 54, 57, 59-67, 69, 74-78,
decisionism o, 61-6, 74, 77, 104 82-86, 96, 102-4, 106-9, 117-9,
decisão arbitrária, 66 121, 123, 128-9, 131, 134-5, 142,
decisão juridicam ente controlada, 66, 107 146, 149-50, 162
índice Remissivo 167

filosofia do, v. filosofia do Direito elite im perial, 94


logos do, 76, 108 elites, 93
política do, 8, 21, 47, 73, 134 elites Tradicionais brasileiras, 51
sistem ática do, 75 em endas constitucionais, 44. v.t. constituição
socialidade do, 123 em presa, 19, 45, 63, 133, 148
teoria do, 7, 10, 62, 123 associação de classe, 19, 39
concreção jurídica, 7 v.t. concreção classe, 19, v.t. classe social
m étodo, 7, 9 Gestão, 19
tridim ensionalidade dinâm ica do Direito, 7 ‘"lei do selo” , 45
teoria Tridim ensional do, 9 60-2, v t. Teoria lucro, 19
Tridim ensionalidade do Direito m ultinacionais, 35, 133
Direito Civil, 129 produção, 39, 41
Direito com o Experiência, D, 30, 62, 97, sociedade anônim a, 63, 68
1 0 7 ,1 1 7 ,1 3 8 , Trabalhador, 19, 20, 22
140, 161 Escola do Recife, 94
Direito contra legem v. D ireito não oficial Escola Superior de Guerra, conferências, 6,
Direito das Gentes, 63 141
Direito e Estado, relação, 59-61, 67-8, 77, 86 escolástica, 113, 115, 135, 145.
Direito e norm a, 103 neo-escolástica, 113
Direito e poder, relação, 59, 61-9, 75, 77 “ esquadrão da m orte” , 46
Direito e Política, relação, 134 Estado, 10, 11, 13, 16, 1 8 -2 0 ,3 4 -5 ,3 7 -8 ,4 9 ,
vt. Política e Direito, relação. 50, 52-3, 59, 61, 63-4, 67, 77-79, 85,
Direito Internacional, 63, 118 121-2
Direito natural, 86 brasileiro, 11-2, 35, 63, 135
Direito não oficial, 84 contem porâneo, 13
Direito Penal, 82 de cultura, 21
Direito positivo, 119 de Direito, 17-9, 21, 61, 65-6
Direito Privado, 59, 68 estrutura do, 20-1
Direito Público, 10-1, 59 fiscalização e program ação do, 18
organização da sociedade e do, 14
órgãos institucionais do, 19
ecologia - participação direta do, 18, 123
ecologistas, 42 reform a do, 11
força política, 41-2 Teoria do, 3
m ovim entos ecológicos, 41-2 Estado absolutista, 66
problem as ideológicos* 42, vt. ideologia Estado burguês, 37, 38
econom ia, 29, 39, 122-3, 141 “ Estado da Justiça Social”
dim ensão econôm ica deserivolvimentista, 54 v. Estado de Direito
exploração econôm ica, 39, 46 Estado dem ocrático, 52
política do desenvolvim ento, 46 Estado e Direito relação, 59-61, 67-8, 77, 86
problem a ecôm ico, 39, 46, 141 Estado e poder relação, 60, 67-8
v.t. desenvolvim ento econ ôm ico Estado ético, 78
econ om ia política v. política ecônom ica Estado intervencionista, 18,63 -4 ,74 ,1 23,137
econ om ia social, 18, 20 Estado liberal, 18, 64, 66
econ om ia de m ercado, 18 Estado M oderno, O, 3, 7, 53, 78, 91, 133
função social da propriedade, 18 “viver a Teoria e Teorizar a vida” , 7, 30, 57,
iniciativa privada, 18, v.t. Teoria da inicia­ 59, 69,
tiva privada, 87-9,161
168 Miguel Reale na UnB
Estado m oderno, 13 filosofia da ciência, 113
form ação do, 10 filosofia da cultura, 49
classe dirigente, 10, 17 filosofia da praxis, 42
classe dom inante, 13 filosofia da religião, 114
classe política, 10, 17 filosofia do Direito, 59, 67-9, 83, 96, 102,
v.t. classe social 114, 122, 126-7, 130,
Estado-objeto, 20 139, 161
Estado Totalitário, 23, 38, 78 Filosofia do Direito, 6, 54, 57, 67, 96, 98,
v.t. Totalitarism o 114, 116, 138-9, 161
estruturas econôm icas, 37, 39 filosofia fenom enológica, 140
estruturas jurídicas, 68, 149, 162 filosofia política, 49, 67, 161
estruturas oficiais, 46 filosofia social, 53, 161
estruturas políticas, 35, 68, 136 filosofia existenciais, 31, 39, 41
estruturas políticas dem ocráticas, 16, v.t. Formação da Política Burguesa, 3, 23, 91,
dem ocracia 133
estruturas sociais, 22, 34 form alism o abstrato, 99, 103, 162
estruturas Técnico adm inistrativas, 53 form alism o conceptual, 101
v.t. T ecnologia form alism o jurídico, 147-8, 162
estruturas Tributárias, 45 Foro, 117, 139
Estudos de Filosofia e C iência do Direito, 86 França, 94, 113-4, 116, 122, 126
Executivo, poder, 77, 123 “ Frentes” 54
Experiência e Cultura, 60, 79, 88, 140, 152, Fundam entos do Direito, 3, 9, 23, 57, 60,
161-2 96, 134-5, 138,
experiência histórica, 22, 64-5, 78 150 161
experiência jurídica, 161
experiência religiosa, 151-2 G lobalidade
visão de, 28-32, 35, 53, 59, 61, 79, 83, 91,
Faculdade de Direito da USP, 5, 7, 58, 96, . 138
115, 129, 131, interdisciplinalidade, 32-3
137, 149 Grécia, 40, 61, 128, 131
Faculdade de Direito do Largo de São Paidéia Grega, 9, 41, 138
Francisco, 3, 24, 28, 58, 122, 134-5 pólis, 9, 49, 50
falência, 148 política, 9
fascism o, 49, 125
corporativo fascista, 52 herm enêutica, 64, 68, 104, 147
fascism o italiano, 78 ato interpretativo concreto, 64, 68, 105, v.t.
“ Estado ético”, 78 norm a jurídica.
“ Estado Totalitário”, 78 dim ensão herm enêutica, 104-6
Filosofia, ciência, 37, 39, 40, 51, 54-5, 58, processo herm enêutico, 64, 84, 119
91-6, 99, 100, 112-7, 122, herm enêutica contem porânea, 64
125-7, 129, 131, 134, 136 herm enêutica jurídica, 64, 147
140, História,
142, 147, 151, 15320, 22, 38, 40, 51, 53, 61, 77-9, 87,
filosofia brasileira, 91-6, 99, 100, 111-2, 92, 106, 125, 133, 162-3
114-6, 121-2, 125, 134, ciclo histórico, 22, 94
139 crítica e legado da, 20-4
m étodo para investigação, 92-3 cultura, 21-2, 27, 29, 40-1, 79, 81, 87-8, 92,
filosofia da arte, 130 94, 96, 98, 102, 106, 112, 117, 127,
v.t. arte 131, 138-9, 152, 161-3
índice Remissivo 169
fenôm en o cultural, 21 Inglaterra, 150
cultura brasileira, 95 pragm atism o político, 150-1
experiência histórica, 22, 64-5, 78, 150 vida política, 150
fenôm en o histórico, 45 Instituto Brasileiro de Filosofia, 91, 99, 122,
historicism o, 49, 51, 67, 69, 79, 84, 116, 138
138-9, 149, 151, 162, 164 integralism o, 5, 10-2, 30, 53, 60, 91, 124-5,
política brasileira, 136 131-4
processo da razão histórica, 75 ação integralista, 5, 131
processo histórico, 14, 22, 32, 37 ,4 0 , 53, 61, correntes filosóficas, 124
76, 84, 86, 94, 128, 161 filosofia, 124-5
situação histórica e Geográfica do Brasil, 23 integralistas, 125, 131
H istória da Filosofia no Brasil, 115 interpretação estrutural v. herm enêutica
H istoriadas Idéias Filosóficas no Brasil, 115 isonom ia, 50
hom em , concepção do, 9, 10, 12, 14-5, 19,
21, 23, 28, 31, 34, Japão, 51
37, 41, 51-2, 78-9, ju iz, 76, 84-5, 108, 117-9, 121, 139, 146-7
81-2, 85, 88, 94, 97, jurislação, 65-6
125, 127-8, 161-4 jurislação do poder, 66, 68
H om em e seus H orizontes 0 , 6, 7 9 ,98 , 140, jurisprudência, 76, 85, 108, 131
161, 163 atividade jurisprudencial, 117
H orizontes do Direito e da H istória, 6, 49 jurisprudência sociológica, 101
hum anism o, 49 jurista, 8, 11, 28, 31, 47, 49, 59, 69, 76, 83-4,
hüm anism o G reco-rom ano, 79 102, 107-8, 117-8, 124, 129, 131,
139, 142, 146, 148
ideologia, 7, 8, 12-3, 15-6, 21, 31, 38, 41-2, praxis, 8
44, 52, 54, 74, 79, 113, 130, 131, praxis revolucionária
136, 141
“cansaço das ideologias” , 12 krausism o, 115
ideologias do século passado, 8, 12-4, 44
pressões ideológicas, 126 Largo de São Francisco, faculdade de D i­
id eologia política dom inante, 14, 41 reito do, 3, 24, 28, 58, 122, 134-5
Igreja, 43, 54, 93 legislador, 47, 74-6, 104, 106-8, 119, 124, 148
Ação Integralista Brasileira, 54 lei, 47, 49-50, 53, 61, 74-5, 77, 84, 87, 107-8,
setores progressistas, 43 117-9, 123-4, 145-6
sociaiidade da, 43 decreto-lei, 123
ilum inism o, 74, 77, 1 13 decurso d e prazo, 123-4, 148
ilum inism o sociológico, 74 projeto de lei, 74, 124
Im perativos da R evolução de M arço, 6, 45, revogação da, 85
141 Lei de Diretrizes e Bases da Educação
im perialism o, 93, 133 N acional, 124
im prensa, 6, 145 “lei do selo” , 45
im prensa estudantil, 3 leninism o, 38, 40, 53
Im prensa Régia, 115 liberalism o, 18-22, 31, 33, 39, 49, 53, 61, 74,
Independência, centenário d a - 1922, 129-30 122, 130
inflação, 12, 14 direitos hum anos, 18, 19
distribuição de rendas, 12, 18 neocapitalísm o, 18
produtividade, 12, 14 neoliberalism o, 18, 54 1
renda nacional, 12 liberalism o em concreção, 31
170 Miguel Reale na UnB
liberalism o oitocentista, 135 norm a, 47
liberdade, 49-52, 54, 61, 64, 78, 83-4, 100, norm a constitucional, 87
116, 126, 141, 161 v.t. Constituição.
liberdade negativa, 50 norm a e Direito, 103
“freedom from ” , 50 norm a e fato, relação, 119, 121, 145-8
liberdade positiva, 50 norm a e poder, relação, 68, 76
“ freedom T o” , 50 norm a e realidade, 101-3, 108, 121
logicism o, 99 norm a e regra, distinção entre, 85-6, 104,
108, 119,
Marx, Karl (índice onom ástico), 121, 162
distribuição da riqueza, 39 norm ajurídica, 61-8, 74-5, 8 2 -7 ,10 1-7,1 09 ,
ideologia m arxista, 14, 20, 30, 37, 42, 124 116, 118-9, 121, 123, 139,
mais-valia, 39 146-8, 150, 162
m arxism o, 12, 20, 37-40, 53, 93, 130 v.t. m od elo volidvo Tridim ensional
marxistas, 32 alto interpretativo, 104-6, 119 v.t. herm e­
neom arxistas, 20 nêutica.
positivism o marxista, 93 alto norm ativo, 104-5, 119
praxis, 39, 42 estrutura normativa, 76, 102-6,.118
reducionism o econ ôm ico, 39 interpretação da, 64-5, 84, 101, 104-5, 107-8,
socialism o m arxistas, 33, 38, 40 146, 148
Teoria m arxista, 38-40, 52 norm ativism o concreto, 83, 102-3, 108,
m aterialism o, 49 116, 139, 146
m etodologia jurídica, 67-9, 83, 102, 109, normadvismo Kelseniano, 85-6, 102-3, 146-7
135 primária, 66
epistem ologia, 67-8, 138, 161, secundária, 66-8
lógica, 67, 114 situação norm ada, 101, 103, 118
pragmática, 76, 109 Texto da, 101, 103
sem ântica, 76, 109 norm atividade herm enêutica, 106. v.t. her­
m ito, 12, 20, 47, 83 m enêutica
“ m ito dos núm eros” , 12 norm atividade jurídica, 102, 105-6, 163
m odelo, 99, 106, 108, 114, 116, 118, 131 norm ogênese jurídica, 104, 148
m odelo volitivo T ridim ensional, 109, v.t. Nosquadrantes do Direito Positivo, 6
norm a jurídica
m odelos adm inistrativos, 22 O ceania, 51
m odelos jurídicos, 62-6, 68, 76, 103, 105, O cidente, 22-3, 40-1, 51, 57
107, 109, problem
117, 140ática dem ocrática, 40, 41, 51
m odelos norm ativos, 108 oitocentism o m entalidade, do 44, 129
m odelos políticos, 18, 41, 66 oitocentistas, pensadores, 14
m unicípio, 10 O ntologia, fenom enologia e reflexão críti-
co-histórica, ensaio, 96
nação caótica, 42-3 ontologia do poder, 67-8, 161-2
Brasil, 42-3 opinião pública, 34, 41, 87
nacionalism o, 54, 132, 141 decisão política, 34, v.t. decisionism o
nacionalism o elitista, 54 Teoria da, 34
nacionalism o neom arxista, 141 oposição partidária, 145
nacionalism o populista, 54 oposições v. antinom ias
nações im perialistas, 46 Oriente, 40
NEP, 14 civilizações da Antigüidade Oriental, 40-1
índice Remissivo 171

C onfúcio, 40 cosm ovisão, 6, 13, 15


cultura do, 40-1 cosm ovisão oitocentista, 37
M ao Tsé-tung, 40 pensam ento social, 49, 51, 54, 78, 140, 142
m arxism o chinês, 40 Perspectivas Integralistas, 3
Pluralism o e Liberdade, 6, 51, 140-1, 161
Panoram a, revista, 3 poder, 10, 13-5, 17, 1 9 ,2 9 ,3 5 ,4 9 ,5 9 -6 9 ,7 3 -
parlam entarism o, 4, 6, 74 7, 85, 104, 135, 142
parlam entarism o brasileiro, 4, 137 ato decisório do, 74, 77,104 v.t. decisionism o
partido d o governo, 145 Direito e poder, relação, 59, 61-9, 75, 77
Partido Popular Sindicalista v. PSP poder
Parddo Trabalhista d o Lula v. PT divisão dos poderes, 108
partidos-m ovim entos, 54 v.t. “ Frentes” Estado e podér, relação, 60, 67-8
partidos políticos, 5, 10, 16, 20, 33, 42, 125, i estatal, 10, 35, 49
141, Executivo, 77, 123
145, 148-9
fidelidade partidária, 145 focos de, 17
partidos republicanos, 125, 136 Gradação de, 64
PDS, 145 institucionalização de centros de, 10, 17,52,
pensam ento e ação, contradições, 57-60, 62, 65
67, 78, Judiciário, 77
88 -9 ,11 6, legalidade do, 65-6
139, 162-4 Legislativo, 123, 145
fato, 61-2, 67-8, 74-6, 82-3, 102-3, 105-6, legitim idade do, 65-6, 69
116, 118-9, 121, 139, 146-7, 150 norm a e poder, relação, 68, 76, 104
norm a, 61-8, 74-6, 82-7, 101-7, 109, 116, N U , 74
118-9 121, 123, 139, 146-8, 150, 162 político, 10, 13
v.t. norm a jurídica, poderes institucionalizados, 10
estrutura norm ativa, 76, 102-6, 118 poderes públicos e privados, 16
interpretação da, 64-5, 75, 84, 101, 104-5, poesia, 142-3, 151-2.
107-8, 146, 148 poliarquia, 9, 17
v.t. herm enêutica Política, 20-1, 24, 27, 29, 30, 33 -4 ,4 1 , 43, 59,
primária, 66 95, 136, 140, 142, 150
secundária, 66-8 ação, 19, 28-9, 33, 41, 43, 78, 133, 135, 139
valor, 61-2, 67, 75-6, 82-3, 105, 116, 118, decisão, 34, 45, 122 v.t. decisionism o
139, 147-8 1 5 0 ,‘162-4 experiência, 47
pensam ento filosófico, 5-8, 11, 24, 42, 49, idéias, 21, 28-9, 45, 91
54, 58, 60, 68, 73, líderes da, 10
8 7 ,9 8 -9 ,1 1 1 ,1 1 5 -6 , luta, 44, 137, 141-2
135-4 140, 142, 161-4 políticos, 14-5, 28-9, 39, 47, 74, 136, 138,
advocacia, 6, 7, 63, 76, 83, 91, 117-9, 129, 146
138-9, 147 praxis, 51-2
conferências, 6 Tem ática, 10, 14, 27-8, 44
congressos de filosofia, 6, 125 Teoria, 35, 37, 43
cursos de extensão, 6 política brasileira, 42-3, 125, 141, 150
m agistério, 6, 7, 83, 91, 135, 137 casuísm o político, 150-1
pensam ento político, 3, 4, 6, 8, 9, 11-2, 27, problem a político brasileiro 42-3, 141
33-4, 49, 51, 54, 59, problem a contem porâneo, 14, 21
6 8 ,7 3 ,7 7 -8 ,1 3 7 ,1 4 0 , problem a de abertura, 47, 141, 151
142 Política de ontem e de hoje, 6, 141
172 Miguel Reale na UnB
política de planejam ento, 137, Revista Brasileira de Filosofia, 91, 99, 138
política econôm ica, 29, 33, 122-3 Revista XI de A gosto,3
Política e Direito, relação, 8, 9, 20, 41, 134 R evolução C onstitucionalista, 132
Política e Direito na D outrina de N icolai Revolução de Março, 6, 11-2, 24, 28, 45-6, 141
H artm ann, 6 Da R evolução à D em ocracia, 6
política m undial, 17 D em ocracia e Revolução, 6
p opulism o, 136-7 G overno revolucionário, 12, 45, 141
chefes populistas, 137 Im perativos da R evolução de Março, Os, 6
Portugal, 94, 111 processo de institucionalização da 4, 7, 11, 141
positividade d o Direito v. positivism o jurí­ processo revolucionário, 21, 44-46
dico R evolução de 30, 129, 130, 132
positivism o, 9, 93-4, 96, 113-4, 122. processo revolucionário, 132-3
positivism o brasileiro, 94, 113-4 Revolução e Norm alidade Constitucional, 21
positivism o castilhista, 122 R evolução Francesa, 44, 49, 50
positivism o jurídico, 9, 77-8, 83, 101, 103, R om a,40, 61, 128, 133-4
106, 109 Direito, 42, 61
prática, 42, v.t. praxis rom anos, 42, 49, 118
praxis, 42, 58, 76, 88, 161, 163, v.t. jurista Rússia, 37, 40, 130
Preleções Filosóficas, As, 115 m arxism o russo, 40
Primeira Guerra M undial, 37 m on ob loco soviético, 41
Problem as de nosso tem po, 6, 141
problem as nucleares, 96 Segunda Guerra M undial, 13, 16, 54
problem ática jurídica, 147 após-guerra, 14
problem ática política, 141-2, 161 Senado Federal, 5, 145
problem ática social, 38-9, 141, 161 Senso com um , 99
processo político adm inistrativo, 10 servidão, 512
processo político brasileiro, 4 sindicato, 136, 148-9
produção intelecutal, 4 Lula, 149, v. t. PT
proletariado, 20, 37-8, 136-7 sistem a constitucional, 87
ditadura do, 20, 38 soberania, 7 7
Estado do Povo Inteiro, 20 soberania jurídica, 77
PSP, 136-7, 148-9 socialism o, 22, 38-9, 43, 61, 130
PT, 148-9 participação acionária, 15
socialism o autoritário, 49
reform a constitucional, 4, 44 socialism o dem ocrático, 14
v.t. Constituição socialism o marxista, 33, 38, 40
reform a política, 9, 21 socialism o, revisionista, 130
reform as de base, 5 socialism o Totalitário, 15
decretos-leis, 5 socialização, 15, 18, 20, 33, 137
legenda, 5 sociedade, 28, 38, 52, 62, 67, 69, 75, 78, 84-
leis com plem entares, 5 5, 123, 137
m andato, 5 reform a e transform ação da, 67
partidos políticos, 5 sociedade aberta, 32, 52, 141
política financeira, 5 sociedade civil, 35, 74, 77-9, 123
Senado, 5 sociedade fechada, 23
voto distrital m isto, 5 sociedade m oderna, 66
R enascim ento, 49 sociedade pluralista, 141
religiosidade, 151-2 sociedade Totalitária, 22
ÍNDICE ONOMÁSTICO

Andrada, Martim Francisco Ribeiro de, Dilthey, 68


114-5 Duguit, Léon, 74, 101
Arendt, Hannah, 57-8
Aristóteles, 9, 29, 34, 82, 112, 122 Erlich, 83, 101
poliarquia, 9
política, ciência, 9, 29, 34 Feijó, Diogo Antônio, Pe., 92, 114-5
Arruda, Joào, 96 Ferreira, Silvestre Pinheiro, 95, 115
Ascarelli, Tullio, 29 íigueiredo, Jackson, M2
» Assis, Machado de, 127, Franca, Leonel, Pe., 115
Geisel, Ernesto, 151
Barassi, Ludovico, 76 Gentile, 52, 88
Barbosa, Rui 75, 113 Goulart, João, 141
Barreto, Tobias 94-5, 112 Gramsci, 42
Berlin, Isaiah, 50-1 Gusdorf, Georges, 113
Bevilacqua, Clóvis, 112, 124
Blake, 54 Hart, 67
Bobbio, Norberto, 66-8 Hartmann, Nicolai, 55, 116, 138, 140, 162
Brito, Farias, 112 Heck, 101
*Cafè Filho, 137 Hegel, 32, 37, 45, 49, 50, 76, 88, 94, 112,
«Cândido, Antônio, 60 115, 118, 122, 145, 162
Capograssi, Giuseppe, 82 Heidegger, 126, 138, 162
Cardoso, Vicente Licínio, 130 Heller, Herman, 86
Cavalcanti Filho, Teófilo, 96, 112 Husserl, E., 76, 79, 97-8, 113, U7, 138-9,
Chagas Filho, Carlos, 125 161-2
Comte, Augusto, 94, 113-4 Jaeger, Werner, 50
comtísmo, 96 Jellinek, 7, 28, 145-6
Constant, Benjamin, 49, 51, 114
Costa, João Cruz, 93, 114 Kant, 33, 57-8, 75-6, 92, 94, 97-9, 113-6,
Cotta, Sérgio, 16 122, 134, 140, 161-2
Cousin, Victor, 95, 114 neo-kantismo, 94, 96-7, 102, 109, 116, 124,
Croce, Benedetto, 37,78 134-5, 137-8, 161
Czerna, Renato* 61 Kantorowitcz, 83
Kelsen, Hans, 7, 66-7, 78, 85-7, 102, 119,
Dahrendorf, Ralf, 52-3 146-7
«Descartes, René, 39, 88, 112-3 Keynes, 122-3
174 Miguel Reale na UnB

sociedade Tradicional, 66 128 134, 140, 142, 161, 163


“ sociedade Tribal” , 15 Teoria Geral do D ireito, 135-6
sociologia jurídica v., filosofia do Direito Teoria Geral do D ireito v. ontologia
SSSR. v. Rússia Teoria Geral do Direito e do Estado, 85
sublegenda, 142 Teoria Geral do Estado, 7, 86
Suprem o Tribunal Federal, 76-7 teoria jurídica do Estado, 7, 65
súm ulas do STF, 76 teoria política, 139
Teoria Pura do Direito, 85
Jurisprudência, 76 Teoria Tridim ensional do Direito, 9, 67, 82-
Tecnocracia, 16, 141 5, 116-7,
Tecnologia, 17, 41, 123 138-9,
estrutura T ecnológica, 18, 38, 41 146-7,149,
processos cibernéticos, 17 150, 161-2
Totalitarism o T ecnológico, 17 v.t. Direito, teoria Tridim ensional do
T ecnologia, im pacto da, 13, 15-7, 19, 41 v.t. pensam ento e ação, contradições
elem entos de com unicação, 15-6 tridimensionalidade jurídica, 23, 61-2, 67-9,
intervencionism o estatal, 13, 18 82-4,116,146-7,
organização d o trabalho, 13 149, 150
produção econôm ica, 13, 15
v.t. em presas totalitarism o, 31, 49, 50, 125 v.t. Estado
T eocentrism o, 49 totalitário
Teoria, 139
dirigism o econ ôm ico, 11 U nião Soviética, v. Rússia.
iniciativa privada, 11, 18, 41, 123 URSS v. Rússia
livre câm bio, 11 U sina de Itaipu, 118
livre em presa, 11, 33 USP, faculdade de Direito da, 5, 7, 58,96,115,
m on op ólio estatal, í 1 129, 131, 137,
protecionism o, 11 149
sociedade aberta, 32, 52 utopia, 81, 85, 142
Teoria da graduação da posidvidade jurí­
dica, 77 valores fúndantes da dem ocracia, os (confe­
Teoria da Justiça v. deontologia rência), 22, 61,
Teoria da legislação, 21 vida cultural, 30
Teoria da pluralidade dos ordenam entos vida ética, 164
jurídicos positivos, 77 vida privada, 13, 19
Teoria das fontes do Direito, 76 vida social, 10, 16, 19, 21, 74, 79, 121, 131,
Teoria d o Direito e d o Estado, 3, 9, 60, 65, 136
73, 77, 86, “Viver a Teoria é Teorizar a vida”, 7, 30, 57,
134-5, 141 59,69,87-9,
teoria do norm ativism o, 117 161
teoriae prática, 29, 30, 42, 69, 87-9, 99, 106, v.t. Estado M oderno, D
índice Onomástico 175
Kier Kegaard, 152 Radbruch, 83, 96, 116
Kubitschek, Juscelino, 46 Ratzel, 9
Reinhardt, 101
Laboulaye, 49 Rickert, 116
Lacordaire, 82 Romano, Santi, 123
Lafer, 83 Romero, Francisco, 88
Lask, 102, 104 Romero, Silvio,. 112
Lenine, 20, 24, 133 Rousseau, Jean-Jacques, 49, 50, 113
leninismo, 38, 40, 53 Russell, Bertrand, 139
Lessa, Pedro, 41, 96, 114
Lima, Alceu Amoroso, 54 Sauer, 149-150
Lima Vaz, Henrique, 125 Scheler, Max, 138, 140, 162
Lincoln, 13 Schimitt, Carl, 74, 77
Lutero, 11 Schindler, 104
Schrei rber, Jean-Jacques, 16
Machado Neto, Luís Antônio, 112 desafio americano, 0, 16
McLuhan, Marshall, 15-6, 107 desafio mundial, 0, 16
cibernética, 16, 107 Siches, Recaséns, 102
“sociedade tribal”, 15 Silveira, Alípio, 101
Malraux, 24 Sodrê, Nelson Werneck, 93
Marx, Karl, 9,13-6, 20, 32, 37-40, 51, 57, 85, Spirito, Ugo, 52
162 Spranger, 69
(índice remissivo)
Mazzini, 87, 130 Tobias Barreto V. Barreto, Tobias
Merleau-Ponty, 16, 79 Tocqueville, Alexis de, 50-1
Miranda, Pontes de, 55, 84, 130, 148 Torres, Alberto, 24, 45
Trindade, Hélgio, 54
Nietzsche, 49, 50, 81-2 Vargas, Getúlio, 122, 135-6
Ortega e Gasset, 19, 31, 55, 127 Vaz, Henrique LimaV. Lima Vaz, Henrique
Villers, 115
Vinci, Leonardo da, 131
Platão, 34, 58, 89, 112, 134, 136 Vita, Luiz Washington, 112
república, 34, 136 Voltaire, 113
visão neoplatônica, 163
Pòntes de Miranda V. Miranda, Pontes de Weber, Max, 35, 64
Ponty, Merleau V. Merleau Ponty Westermann, 101
Popper, Karl, 32 Wiener, 107
Pound, Roscoe, 101 Windelband, 116

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