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Dívida de quem?
Entre 1997 e 1999 foi realizada a 3ª Semana Social Brasileira, com o
tema “Resgate das Dívidas Sociais: Justiça e solidariedade na construção de
uma sociedade democrática”, e dela se efetivou o nascimento da Rede Jubileu
Sul Brasil, entidade que questiona o pagamento de dívida externa em
detrimento do uso de dinheiro público em direitos da população. “Para a
saúde, educação não há recurso, mas para manter o pagamento dos títulos das
dívidas há. Essa é a lógica perversa e que a gente tem denunciado
permanentemente. Esse é um Estado que não tem a população como
prioridade, isso é perverso, desumano”, conta Rosilene Wansetto, secretária-
executiva da entidade.
Rosi, como é conhecida na militância, lembra que o nascimento da
Rede surgiu a partir do acúmulo dos debates sobre o endividamento público
que perpassaram os anos 1990 nos “países do sul global”, ou seja, nas regiões
periféricas e semiperiféricas dos países anteriormente denominados Terceiro
Mundo.
Os debates a que ela se refere eram feitos nas bases, paróquias e rodas
de conversa, e desmitificavam a economia dando informação, formação e
autonomia para o cidadão e a cidadã cobrarem o bom uso do dinheiro público
naquilo que é necessário e legítimo: em direitos.
“Houve contratos da dívida brasileira contraídas no período ditatorial
que nem existem mais, que desapareceram, e esse recurso não foi aplicado em
saúde, educação ou saneamento, então essa é uma questão que a gente vem
discutindo bastante. Você contrai dívida para quê e para quem? Diz-se para o
desenvolvimento, mas do quê?”, questiona Rosilene.
Para a socióloga, não basta só discutir a dívida financeira, monetária,
mas é preciso também discutir qual a dívida que alimenta a dívida social, e isso
tem aver com o racismo, a colonização, a destruição dos territórios, dos povos
indígenas, com esses modelos de desenvolvimento, com o impacto disso na
vida das mulheres.
“Quem sempre lucrou continua lucrando, ou seja, o país tem uma
prioridade, que é manter esse compromisso fiscal com os detentores dos
títulos. Veja agora, em tempos de pandemia, vem uma negociação com o FMI
(Fundo Monetário Internacional) para adquirir mais dívida, enquanto a maior parte
da população está desempregada, desalentada”.
Rosilene defende que a 6ª Semana Social Brasileira seja um espaço de
luta pelo fim do teto de gastos (a Emenda Constitucional 95),que congelou
por 30 anos investimentos em direitos sociais, e que um novo projeto popular
de nação seja construído coletivamente, mas ela tambémalerta que isso não se
dará pelas redes sociais. “Não vamos conseguir derrotar esse projeto de morte
que está aí com lives, Twitter, é só através de um projeto de formação
contínua, e a Semana Social é este espaço”.
Militância
Além do surgimento da Rede Jubileu Sul Brasil, a 3ª SSB fortaleceu a
vida democrática participativa do país, com a organização popular no
monitoramento da dívida externa. “Se nós conseguimos fazer um plebiscito
sobre a dívida externa na Semana da Pátria e juntar 6 milhões e 30 mil votos,
foi porque existiu um trabalho de base. Havia articulação e muito trabalho de
distribuição de cartilhas e jornaizinhos por meio de correio...”, conta Alberti, o
coordenador do Grito dos Excluídos.
Entre os dias 1º e 7 de setembro de 2002, a partir desse processo de
organização popular, aconteceu o plebiscito contra a Área de Livre Comércio
das Américas (Alca) e nele a maioria dos 10.149.542 de eleitores brasileiros de
3.894 municípios mostrou-se contra a adesão do governo brasileiro à Alca.
Mas decidiram também pela suspensão das negociações para a formação do
bloco e sobre um projeto de lei do governo, que na ocasião estava em análise
no Congresso e que permitiria aos Estados Unidos o uso da base de
lançamento de Alcântara.
Naquela consulta, a população brasileira votou contra a cessão da base
de Alcântara, e contrariando esse desejo popular, em novembro de 2019 o
governo Bolsonaro permitiu aos Estados Unidos o uso comercial da base em
troca de recursos para investir no desenvolvimento e no aperfeiçoamento do
Programa Espacial Brasileiro.
“O trabalho que a semana social faz historicamente gera movimento,
mudança, constrói um projeto de sociedade em que todas as pessoas estão
incluídas. E o que nós temos hoje é um projeto que seleciona as pessoas, e ele
já escolheu”, explica Rosi, lembrando o momento de paralisia que hoje o país
atravessa.
“Nos anos 1980 estávamos em um movimento de ascensão, estávamos
lutando contra um gigante maior, que era a ditadura. Tínhamos um horizonte,
que era o processo democrático, e hoje estamos como que paralisados,
mesmo as esquerdas estão sem projeto de Brasil, o que dificulta a
possibilidade de impeachment de um governo que já cometeu muito mais crimes
e nada acontece”, analisa Rosi.
Do processo da 3ª SSB também nasceu a Assembleia Popular com o
objetivo de criar mecanismos de discussões sobre questões sociais e articular
as forças em defesa dos direitos civis e sociais.