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Reportagem, 30 Anos das Semanas Sociais Brasileiras

Ao celebrar 30 anos, a Semana Social Brasileira reafirma sua luta pelos


direitos humanos

Olhar para a história da Semana Social Brasileira é ver os avanços e retrocessos da


mobilização, da luta e da organização popular no país; é também enxergar e denunciar as
omissões do Estado brasileiro

Por Karla Maria | Especial 6ª Semana Social Brasileira

“O sujeito da autoridade política é o povo considerado na sua


totalidade como detentor da soberania”, escreveu o Pontificado Conselho
para a Justiça e a Paz, em 2004, a pedido do papa João Paulo II no
Compendio da Doutrina Social da Igreja. Tal observação do magistério está na
base de ação e motivação das Semanas Sociais Brasileiras,que há 30 anos
colaboram com a construção de um projeto de país mais justo e igualitário.
O terreno em que a iniciativa evangelizadora brotou por aqui, a
exemplo da européia, era decelebração dos cem anos da Encíclica Rerum
Novarum, de Leão XIII, que tratava sobre as condições dos operários, das
questões sociais. Não por acaso, o tema da 1ª Semana Social Brasileira foi
“Mundo do trabalho: desafios e perspectivas”, e diferentemente das demais
edições, que se tornaram processos formativos com eventos pontuais
descentralizados por todo o país, a primeira edição aconteceu entre 3 e 8 de
novembro de 1991.
“O mundo do trabalho estava em debate naquele momento e a
sociedade começava a viver a implementação das novas tecnologias naquela
época, então foi algo importante”, avalia Ari Alberti, da coordenação nacional
do Grito dos Excluídos, que participou da primeira edição.
Mas não só. Houve um cenário de redemocratização pós-Ditadura
Militar (1968-1985), de abertura política, de organização popular e esperança
para o povo alimentada pelo Concílio Vaticano II (1965-1968) e sua obra de
aggiornamento, que firmou no interior da Igreja Católica latinoamericana uma
crescente preocupação com o povo mais pobre e suas necessidades.
“A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) passa (nos anos
1960) a assumir um papel central na luta pelos direitos humanos e constitui-se
em um foco permanente de resistência democrática”, destaca o teólogo Paulo
Fernando Carneiro de Andrade em seu artigo “Democracia e Doutrina Social
da Igreja”, publicado no livro Democracia, Igreja e Cidadania, Desafios Atuais, de
2010.
Nestes tempos, e muitas são as fontes vivas para testemunhar, bispos
como dom Waldir Calheiros, de Volta Redonda (RJ), e dom Helder Câmara,
de Recife (PE), são acusados de estarem a serviço do comunismo
internacional. Padres são presos e muitas vezes torturados, alguns são
condenados por tribunais militares e outros são expulsos do país.
“Fui preso em 1964 por integrar a direção nacional da Ação Católica,
considerada subversiva pelos militares que deram o golpe de Estado naquele
ano. E preso novamente em 1969, por dar guarida e fuga do Brasil
a perseguidos pela ditadura”, disse Frei Betto em entrevista a esta repórter.
Seus livros Cartas da Prisão (Companhia das Letras), Batismo de Sangue e Diário
de Fernando – Nos Cárceres da Ditadura Militar Brasileira (ambos editados pela
Rocco) revelam em detalhes o que sofreu.
Em 1970, dom Aloísio Lorscheider, na época secretário-geral da
CNBB, é detido por cerca de quatro horas na sede da entidade e impedido de
comparecer a uma reunião com o ministro da Justiça. Outros diversos nomes,
como dom Paulo Evaristo Arns e dom Eugênio Salles, se destacaram na luta
incondicional a favor dos presos políticos, dos Direitos Humanos.
Andrade destaca também que inúmeros documentos publicados pela
hierarquia da Igreja Católica, como “Eu Ouvi os Clamores do meu Povo”,
dos bispos do Nordeste, de maio de 1973, “Comunicação Pastoral ao Povo de
Deus”, da Comissão Representativa da CNBB, de 1976, e “Exigências Cristãs
de uma Ordem Política”, de 1977, somados às posturas individuais ou
coletivas, romperam com o silêncio imposto pela censura “e com a mordaça
que naqueles anos pretendia calar qualquer voz crítica ao regime militar, a seus
atos e à sua ideologia”.
Florescia ali também um intenso movimento pastoral que culminaria
anos depois na 1ª Semana Social Brasileira. “As semanas sociais foram grandes
sementeiras da luta do povo brasileiro e que envolveram muita gente.
Vínhamos de um processo da Ditadura Militar, da repressão, das mortes, do
silêncio, não podíamos nos reunir... então tínhamos uma organização social e
a mística do encontro, da unidade, da partilha e da perspectiva de um
horizonte novo”, lembra Ari Alberti, coordenador nacional do Grito dos
Excluídos, fruto da 2ª Semana Social Brasileira.
Mas a primeira também rendeu frutos. O teólogo Nelito Nonato
Dornelas, que já foi assessor da Comissão Episcopal Pastoral para Ação
Sociotransformadora CNBB, aponta em seu artigo “Igreja e Sociedade a Partir
das Semanas Sociais”, publicado na revista Encontros Teológicos em 2014,
que a primeira edição da Semana Social Brasileira estabeleceu um processo de
monitoramento de violação de direitos civis e sociais.
“Foram criados inúmeros grupos de economia solidária apoiados pelos
sindicatos e incentivados pelas Cáritas e por pastorais sociais. Este processo
resultou na constituição do Fórum Nacional de Economia Solidária, que
contribuiu para a criação da Secretaria Nacional de Economia Solidária no
Ministério do Trabalho e Emprego do governo federal”, registra o padre,que
também foi articulador da 5ª Semana Social Brasileira.
Ainda segundo ele, em 2014 eram mais de 20 mil os grupos de economia
popular solidária e sustentável espalhados pelo país que recebiam apoio
técnico da referida secretaria.

O Brasil que queremos


A 2ª Semana Social Brasileira, realizada em 1993 e 1994, tratou do tema
“Brasil: Alternativas e Protagonistas”, e para se ter ideia da relevância desta
iniciativa no cenário político,a programação da semana contou com a
realização de um debate com os candidatos à presidência da República. Em
julho de 1994 houveo primeiro confronto entre Fernando Henrique Cardoso
(PSDB) e Luiz Inácio Lula da Silva (PT), dentre os nove presidenciáveis na
ocasião.
O debate foi realizado no Centro de Convenções Ulysses Guimarães,
em Brasília (DF), e transmitido ao vivo pela TV Bandeirantes. Segundo a
Folha de S.Paulo de 26 de julho de 1994, apenas os 350 participantes da 2ªSSB e
a imprensa credenciada poderiam assistir no local.
“Cinquenta perguntas foram colocadas em várias urnas distribuídas
pelas regiões do país e eram sorteadas publicamente. Todos os participantes
estavam presentes no debate. Ou seja, o debate não foi feito num estúdio, mas
num lugar público sob o olhar atento de todos os participantes do evento
(semana social)”, conta o professor Cesar Sanson, da Universidade Federal do
Rio Grande do Norte (UFRN)eex-coordenador nacional da Comissão
Pastoral Operária no artigo “A CNBB e o debate de 1994 entre os
presidenciáveis. Algumas notas”.
Todas as perguntas foram elaboradas a partir de uma consulta aos
participantes da 2ª SSB, distribuídos em grupos temáticos, e o debate foi
coordenado pessoalmente por dom Luciano Mendes de Almeida, então
presidente da CNBB, que realizou reuniões entre os presidenciáveis. Naquele
ano, dom Luciano também publicou artigos sobre a Semana Social Brasileira
tanto no jornal Folha de S.Paulo quanto na Revista Família Cristã.
A 2ª Semana foi articulada pelo Setor Pastoral Social da CNBB, cujo
bispo responsável era dom DemetrioValentini, atualmentebispo emérito de
Jales (SP),e a partir de um grupo de lideranças das pastorais sociais
coordenadana época pelo jesuíta Inácio Neutzling, hoje diretor do Instituto
Humanistas Unisinos - IHU. Em entrevista ao Boletim da União Cristã
Brasileira de Comunicação Social e da União de Radiodifusão Católica do
Brasil São Pauto, de abril de 1994, padre Inácio Neutzling falou sobre a
realização da Semana Social.
“Ela vai ao encontro de diversas iniciativas das organizações da
sociedade civil que estão assumindo a dimensão propositiva. Isso acontece no
momento em que o espaço interno dos partidos e das articulações
interpartidárias, bem como os espaços das instituições do Estado, revelam-se
limitados para a construção daqueles consensos estratégicos necessários à
formulação e implementação de um novo projeto nacional”.
Todo o processo de mobilização e articulação acumulado nas semanas sociais
culminou também em 1994 no surgimento da Articulação do Semiárido
(ASA). “O surgimento da ASA está diretamente relacionado ao processo de
mobilização e fortalecimento da sociedade civil no início da década de 1990.
Um dos mais marcantes foi a ocupação da Superintendência de
Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), em 1993, com o objetivo de pautar a
convivência com o semiárido em contraposição à política governamental
vigente na época”, registra a articulação em sua história.
Padre Nelito Dornellas destaca que a 2ª Semana Social Brasileira
possibilitou a Articulação do Semiárido (ASA) envolvendo mais de 400
entidades que atuam no semiárido brasileiro, e que desde então a articulação
promove a campanha de convivência com o semiárido e não de combate à
seca, mediante a proposição de políticas públicas que resultou na campanha
pela construção de um milhão de cisternas para a coleta de água da chuva.
Ao longo dos anos, a ASA vem fortalecendo a sociedade civil na
construção de processos participativos para o desenvolvimento sustentável e a
convivência com o semiárido referenciados em valores culturais e de justiça
social. “A ASA fortalece a sociedade civil mobilizando-a. Uma das estratégias
que a articulação utiliza para a mobilização social é a comunicação popular,
assim como processos de sistematização de experiências e de intercâmbio
entre as famílias agricultoras, que promovem a construção coletiva do
conhecimento”.
Mais uma vez, as experiências desenvolvidas e articuladas pela ASA e
suas organizações mostram que só é possível reformular as bases estruturais
do modelo de desenvolvimento a partir das bases. “Elas(as experiências)revelam
a possibilidade de estabelecer novas relações entre Estado e sociedade civil,
nas quais o Estado assuma o papel de apoiar as iniciativas autônomas e
criativas, gestadas no seio da sociedade”, registra a ASA em sua missão.
O Grito dos Excluídos também surge a partir do debate do “Brasil:
alternativas e protagonistas”,com o objetivo de mobilizar a sociedade durante
a Semana da Pátria, em setembro, para discutir questões sociais em âmbito
local, e então, desde seu nascimento, o Grito dos Excluídos vem marcando o
país discutindo a liberdade, a independência e a soberania do Brasil, e tem
servido de horizonte e de luta para todos os movimentos sociais, mas a partir
daqueles que são mais excluídos. Assim avalia seu coordenador nacional.
“Em 1994, o cenário político pós-ditadura era protagonizado por PT e
PSDB, uma polarização difícil de ser comparada com o atual cenário que
enfrentamos hoje no país. Estávamos em um processo crescente. Não
tínhamos a rede social, mas tínhamos uma articulação melhor, uma unidade
maior dos movimentos, das pastorais, e tínhamos processos que davam liga, e
era sim mais lento, porque se a gente pensa em mudança é preciso pensar em
processos lentos. Mudanças exigem processos maiores, horizontalidade”,
avalia Ari Alberti.
Ele conta que o trabalho era feito na base, no olho no olho,
alimentando a partilha, a luta e o sorriso. “Talvez aquilo que o papa Francisco
fala agora da Igreja em saída, da visita que está no Evangelho dos Discípulos
de Emaús, nos mostra a importância do trabalho de base, do trabalho de
formiguinha que foi feito”.
A proposta do Grito dos Excluídos e Excluídas surgiu,portanto,
em1994, inspirada também pela Campanha da Fraternidade de 1995, que tinha
o lema “A fraternidade e osexcluídos”.O primeiro Grito dos Excluídos, no
entanto, aconteceu no dia 7 de setembro de 1995, como lema “A vida em
primeiro lugar”.
A partir de 1996, o Grito passa a ser assumido pela CNBB, e a cada ano
seefetivacomoumaimensaconstruçãocoletiva,antes, durante e após o Dia da
Pátria, como uma experiência formativa interna e pessoal sobre os problemas
existentes no país, mas também coletiva, de mobilização, de denúncia.
“Se o povo brasileiro não fosse lutador e resistente, mais gente estaria
na miséria. O nosso desafio principal hoje não é o Planalto, é a planície onde
temos que atuar. Só mexendo na planície se pode mexer na estrutura. O nosso
inimigo é gigante, mas ele tem os pés de barro, se a gente souber lutar e onde
jogar água o gigante cai”, conclama Ari.

Dívida de quem?
Entre 1997 e 1999 foi realizada a 3ª Semana Social Brasileira, com o
tema “Resgate das Dívidas Sociais: Justiça e solidariedade na construção de
uma sociedade democrática”, e dela se efetivou o nascimento da Rede Jubileu
Sul Brasil, entidade que questiona o pagamento de dívida externa em
detrimento do uso de dinheiro público em direitos da população. “Para a
saúde, educação não há recurso, mas para manter o pagamento dos títulos das
dívidas há. Essa é a lógica perversa e que a gente tem denunciado
permanentemente. Esse é um Estado que não tem a população como
prioridade, isso é perverso, desumano”, conta Rosilene Wansetto, secretária-
executiva da entidade.
Rosi, como é conhecida na militância, lembra que o nascimento da
Rede surgiu a partir do acúmulo dos debates sobre o endividamento público
que perpassaram os anos 1990 nos “países do sul global”, ou seja, nas regiões
periféricas e semiperiféricas dos países anteriormente denominados Terceiro
Mundo.
Os debates a que ela se refere eram feitos nas bases, paróquias e rodas
de conversa, e desmitificavam a economia dando informação, formação e
autonomia para o cidadão e a cidadã cobrarem o bom uso do dinheiro público
naquilo que é necessário e legítimo: em direitos.
“Houve contratos da dívida brasileira contraídas no período ditatorial
que nem existem mais, que desapareceram, e esse recurso não foi aplicado em
saúde, educação ou saneamento, então essa é uma questão que a gente vem
discutindo bastante. Você contrai dívida para quê e para quem? Diz-se para o
desenvolvimento, mas do quê?”, questiona Rosilene.
Para a socióloga, não basta só discutir a dívida financeira, monetária,
mas é preciso também discutir qual a dívida que alimenta a dívida social, e isso
tem aver com o racismo, a colonização, a destruição dos territórios, dos povos
indígenas, com esses modelos de desenvolvimento, com o impacto disso na
vida das mulheres.
“Quem sempre lucrou continua lucrando, ou seja, o país tem uma
prioridade, que é manter esse compromisso fiscal com os detentores dos
títulos. Veja agora, em tempos de pandemia, vem uma negociação com o FMI
(Fundo Monetário Internacional) para adquirir mais dívida, enquanto a maior parte
da população está desempregada, desalentada”.
Rosilene defende que a 6ª Semana Social Brasileira seja um espaço de
luta pelo fim do teto de gastos (a Emenda Constitucional 95),que congelou
por 30 anos investimentos em direitos sociais, e que um novo projeto popular
de nação seja construído coletivamente, mas ela tambémalerta que isso não se
dará pelas redes sociais. “Não vamos conseguir derrotar esse projeto de morte
que está aí com lives, Twitter, é só através de um projeto de formação
contínua, e a Semana Social é este espaço”.

Militância
Além do surgimento da Rede Jubileu Sul Brasil, a 3ª SSB fortaleceu a
vida democrática participativa do país, com a organização popular no
monitoramento da dívida externa. “Se nós conseguimos fazer um plebiscito
sobre a dívida externa na Semana da Pátria e juntar 6 milhões e 30 mil votos,
foi porque existiu um trabalho de base. Havia articulação e muito trabalho de
distribuição de cartilhas e jornaizinhos por meio de correio...”, conta Alberti, o
coordenador do Grito dos Excluídos.
Entre os dias 1º e 7 de setembro de 2002, a partir desse processo de
organização popular, aconteceu o plebiscito contra a Área de Livre Comércio
das Américas (Alca) e nele a maioria dos 10.149.542 de eleitores brasileiros de
3.894 municípios mostrou-se contra a adesão do governo brasileiro à Alca.
Mas decidiram também pela suspensão das negociações para a formação do
bloco e sobre um projeto de lei do governo, que na ocasião estava em análise
no Congresso e que permitiria aos Estados Unidos o uso da base de
lançamento de Alcântara.
Naquela consulta, a população brasileira votou contra a cessão da base
de Alcântara, e contrariando esse desejo popular, em novembro de 2019 o
governo Bolsonaro permitiu aos Estados Unidos o uso comercial da base em
troca de recursos para investir no desenvolvimento e no aperfeiçoamento do
Programa Espacial Brasileiro.
“O trabalho que a semana social faz historicamente gera movimento,
mudança, constrói um projeto de sociedade em que todas as pessoas estão
incluídas. E o que nós temos hoje é um projeto que seleciona as pessoas, e ele
já escolheu”, explica Rosi, lembrando o momento de paralisia que hoje o país
atravessa.
“Nos anos 1980 estávamos em um movimento de ascensão, estávamos
lutando contra um gigante maior, que era a ditadura. Tínhamos um horizonte,
que era o processo democrático, e hoje estamos como que paralisados,
mesmo as esquerdas estão sem projeto de Brasil, o que dificulta a
possibilidade de impeachment de um governo que já cometeu muito mais crimes
e nada acontece”, analisa Rosi.
Do processo da 3ª SSB também nasceu a Assembleia Popular com o
objetivo de criar mecanismos de discussões sobre questões sociais e articular
as forças em defesa dos direitos civis e sociais.

Articular é preciso e cuidar também


A 4ª Semana Social Brasileira realizada de 2003 a 2005 trabalhou com o
tema “Mutirão por um novo Brasil: Articulação das forças sociais para a
“construção conjunta do Brasil que queremos” e tinha como objetivo atingir
um projeto alternativo de sociedade que fosse economicamente justo,
politicamente democrático, culturalmente plural e que fosse também solidário
e sustentável.
“Um dos horizontes da Semana Social é a conquista de uma soberania
em que os bens e as riquezas ambientais como a biodiversidade, a água, as
florestas, nossos recursos econômicos, nossas riquezas culturais e os bens
socialmente produzidos possam beneficiar o conjunto da população brasileira,
em especial os mais pobres, historicamente excluídos desses bens.
Evidentemente, numa perspectiva de solidariedade e unidade com os pobres
do mundo. A Semana Social aposta ainda na transformação do estado como
instrumento a serviço da cidadania”, escreveu Luiz Bassegio, secretário
continental do Grito dos Excluídos e da coordenação da 4ª Semana Social
Brasileira.
Como resultado desse processo surgiu o Fórum para a Justiça Social e
Mudanças Climáticas, coordenado desde então pelo filósofo e cientista social
Ivo Polleto. O fórum promove o debate e formação permanente sobre as
questões ambientais e demanda políticas públicas para a sustentabilidade
ambiental e prevenção de desastres. Atua em âmbito nacional e se faz presente
nos biomas e territórios por meio das entidades membros e parceiras.
Na esteira do processo da 4ª SSB aconteceu em 2007 a campanha
nacional “A Vale é nossa” com o propósito imediato de consultar a população
sobre o processo de privatização de uma das empresas estatais mais
importantes do País, a Companhia Vale do Rio Doce, uma das maiores
produtoras de minério de ferro do mundo. A privatização dessa empresa
estatal havia ocorrido em maio de 1997, quando foi vendida por R$ 3,3
bilhões. Diversos movimentos sociais acusaram que teria havido fraude no
processo de privatização e que a Vale tinha um valor muito superior ao que
foi efetivamente vendido, chegando a R$ 100 bilhões.
O plebiscito tinha como objetivo principal anular a privatização da
empresa. Segundo os seus organizadores, foram colhidos mais de 3,7 milhões
de votos em 3.200 municípios, sendo que a mobilização envolveu 104 mil
militantes em todo o país.

“O Estado que temos e o Estado que queremos”


A 5ª Semana Social Brasileira foi realizada entre 2011 e 2013promoveu
o debate“Um Novo Estado: Caminho para uma Nova Sociedade do Bem
Viver”, apresentando à sociedade os limites e o esgotamento da democracia
representativa, apontando para a necessidade de uma efetiva democracia
participativa e direta.
Padre Ari Antonio dos Reis, pároco da Catedral de Passo Fundo (RS),
foi um dos coordenadores e conta que a semana social, para além da prática
de uma mística que alimenta a fé, a Semana Socialpotencializou a capacidade
de conscientização das pessoas. “Na 5ª Semana Social estava acontecendo o
início do debate sobre a reforma política e tentou-se fazer uma ligação desse
debate com a vida das pessoas, em seu dia a dia. Na minha cidade, por
exemplo, temos várias ocupações, e a Semana Social está com esse debate
desde sempre, sobre os direitos. Teoricamente deveria fazer brilhar os olhos
dessas pessoas, mas às vezes nem isso se concretiza. Percebemos isso na
quinta semana social, de que precisávamos chegar naqueles que ainda não
compreenderam a profundidade e a importância desse debate. Claro, é utopia
pensar que todos vão participar desse debate...”, avalia o padre.
Em 2013, foi realizado um plebiscito informal sobre a necessidade de
reforma do sistema político. “Avaliando que os setores conservadores não
permitiriam uma reforma profunda e democrática nessa direção, diversas
organizações, entidades de classe e partidos políticos passaram a organizar a
realização de um plebiscito informal para pressionar pelas mudanças
desejadas”, explica o professor Alessandro Soares, da Faculdade Escola
Paulista de Direito, em sua pesquisa “Iniciativa popular no Brasil: tendências
punitivistas e dificuldades democráticas”.
Em setembro de 2013, a Plenária Nacional dos Movimentos Sociais
aprovou a celebração de um Plebiscito Popular pela Constituinte Exclusiva e
Soberana do Sistema Político. A pergunta elaborada para esse plebiscito era:
“Você é a favor de uma constituinte exclusiva e soberana sobre o sistema
político?”. Após campanha, a consulta popular foi realizada entre os dias 1° e
7 de setembro de 2014. Dados oficiais dos organizadores da campanha
apontam mais de 40 mil urnas instaladas em todo o país em 4.500 municípios,
com o diferencial que também foram colhidos votos pela internet. Os votos
em urnas físicas foram 7,75 milhões, além de 1,74 milhãopela internet, sendo
que 97,05% dos votos disseram “sim” à pergunta quanto à convocação de
uma Assembleia Constituinte para reformar o sistema político.
Padre Nelito Dornelas, que fez um levantamento histórico das Semanas
Sociais Brasileiras, destaca que a 5ª SSB assumiu como proposta a ser
apresentada e debatida pela sociedade brasileira o Sumak Kawsay, o Bem
Viver dos povos indígenas da região Andina, os Quétchua e os Aymará.
“Este conceito retoma duas palavras com significados semelhantes em
Quétchua e Aymará: sumak (muito bom) e kawsay ou camaña (conviver), com a
ideia central de uma vida em harmonia: harmonia consigo mesmo, com as
outras pessoas do mesmo grupo, com os diferentes grupos, com a
Pachamama, a Mãe Terra e seus filhos e filhas, as outras espécies e com as
realidades espirituais”.
Ele explica em sua pesquisa que antes do fracasso das políticas
econômicas neoliberais, este projeto de vida coletivo ganhou novo conteúdo,
nova forma e tal força que foi incorporado às constituições do Equador
(2008) e da Bolívia (2009), despertando a atenção de grupos e movimentos
sociais em vários países. “Os princípios do bem-viver dialogam com a
proposta das bem-aventuranças proclamadas por Jesus. Das oito bem
aventuranças, destaquemos três: bem-aventurados os puros de coração porque
verão a Deus (Mt 5,8: princípio religioso), bem-aventurados os mansos
porque possuirão a terra (Mt 5,5: princípio político) e bem-aventurados os
misericordiosos porque alcançarão misericórdia (Mt 5,7: princípio ético)”.
Desta maneira, a 5ª Semana Social entra no debate sobre o bem-viver
para contribuir e transformar em expressão política de uma sociedade do
bem-viver para todos: povos indígenas, afrodescendentes e tantos outros
povos.

Desafios da 6ª Semana Social


Ao completar 30 anos desde seu “nascimento”, em 1991, a Semana
Social Brasileira enfrenta desafios que entram também para a área do que nem
sempre é possível tocar ou mensurar. Ari Alberti explica. “Temos que
ressignificar os valores: a solidariedade, a generosidade, a partilha, a ética...
Reviver entre nós essa experiência. Oxalá a Semana Social, o Grito, consigam
ser esse espaço onde o povo está bravamente partilhando a luta do dia a dia,
da sobrevivência dos mais pobres, da produção alternativa e orgânica etc.
Precisamos ter espaço para socializar as experiências que alimentam sim a luta,
a esperança”.
Não bastassem os desafios apresentados pelos contextos econômicos,
político e social, a 6ª Semana Social Brasileira, esse processo de formação
cidadã permanente, acontece em meio a uma pandemia que até o momento
em que este texto era fechado já tinha vitimado 202 mil pessoas no Brasil. Ela
entra para a história como a primeira Semana Social Brasileira a ser realizada,
quase que exclusivamente, de modo virtual, um cenário de desafios e
oportunidades frentes às bolhas e aos algoritmos.
Alessandra Miranda, secretária-executiva da 6ªSSB, conta em entrevista
feita por plataforma digital, o palco das atividades dessa semana, como tem
sido essa experiência em tempos de isolamento, polarizações e desgoverno.
“A pandemia nos fez mudar o planejamento e passamos a atuar dentro
de limites, porque sabemos que as comunidades não têm acesso à internet, e
porque também não é da cultura de grande parte da sociedade estar
conectado, se encontrar e celebrar pelas redes sociais”, avalia Alessandra.
Mas como alguém que enxerga o copo metade cheio, a secretária-
executiva observa que as exigências desse novo tempo empurraram Igrejas e
movimentos sociais a aprenderem técnica e criativamente a lidarem com as
redes sociais e estarem presentes no mundo virtual, afim de alcançar outros
públicos.
“Os movimentos e as pastorais sociais aprenderam muito na
perspectiva técnica. Hoje mesmo, depois dessa crise sanitária, a gente sabe que
em muitos momentos não precisaremos nos reunir e encontrar. Com certeza
os movimentos e pastorais estão se adaptando para dar conta de uma
linguagem mais atrativa e efetiva, porque a comunicação estava muito interna,
e com esse boom da necessidade das redes sociais a gente teve de aprender a
trabalhar nelas e o desafio é furar as bolhas e chegar aos grupos que pensam
diferente de nós”.
Alessandra revela que, caso a pandemia se alongue pelo ano de 2021,o
que é provável, a 6ª SSB se estenda por mais um ano para garantir que de fato
as discussões e debates cheguem a mais e mais pessoas e de modo presencial.
A ideia é que, assim como a cartilha sobre as eleições de 2020 puderam
aquecer o debate nos municípios, que a Semana Social colabore ainda mais
com as reflexões sobre o peso do voto em 2022.
“Quisemos aproveitar as eleições para refletir que terra, teto e trabalho
são direitos. No caderno“Mutirão de eleições pela vida” quisemos motivar as
cidades a debaterem a gestão dos municípios e nos preparando para as
eleições de 2022, porque percebemos que as eleições municipais são como
que um termômetro para as eleições de 2022. Temos uma grande perspectiva
de que a gente encerre de maneira formal a Semana gerando um grande
debate nessa perspectiva”.
O acesso da população brasileira à vacina contra a Covid-19 também
está entre os temas que devem ocupar a pauta da Semana Social em 2021.
“Lançamos enquanto CNBB uma nota sobre a importância da vacinação para
todos os brasileiros e migrantes que vivem no país. O tema é Mutirão pela
Vida, então várias questões urgentes entram na pauta para fazermos grandes
mobilizações, porque a Semana Social tem isso, e a defesa do SUS sempre
esteve em nossa agenda”, conclui Alessandra.
Ela também destaca a exigência da Semana Social de alimentar a fé, o
ânimo dos que buscam a construção coletiva de um Estado democrático, livre
e soberano. “A dinâmica da místicaindepende de religião, porque unimos
outras experiências de fé e não-fé, da mística libertadora, do engajamento e de
trazer a dinâmica da fé relacionada com a política”.
Ter esperanças e lutar para que nosso país torne-se um Estado mais
justo tem sido um grande desafio e, para Alessandra, tal constatação merece
atenção. “Não podemos cair em um pessimismo que não nos ajude a
caminhar e não nos ajude a organizar. “Esperançar” é perceber que nós
podemos fazer incidência política, é cuidar da saúde mental, é promover o
mutirão pela vida, uma forma de cuidado individual e coletivo, sobretudo em
um tempo de pandemia que mexe tanto com a gente”, finaliza
“esperançando” a secretária-executiva da 6ªSSB.
A 6ª Semana Social Brasileira segue em Mutirão pela Vida: Por Terra,
Teto e Trabalho.

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