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JURANDIR, Dalcídio. Os Habitantes.

Rio de Janeiro:
Artenova, 1976. 160p.

[9] Alfredo, na escada dos fundos, apoiou-se no corrimão.


Como se tivesse corrido tanto. Porta aberta para o alpendre, a cozinha
clareava o quintal molhado. D. Dudu debruçada no parapeito.
Ela sabe, a família ouviu, me esperam. D. Dudu vem avisar-me.
Esméia quis ver, não Viu? Sala, alcova, tudo ai só Valeu esta noite
pela presença da preta. Fiquem vocês com o entulho, donos. Daí,
agora, só minha mala e adeus.
Desceu num repente de escapar-se pelo portão.
— As três aí na cozinha atando as sete cartas no gogó do velho.
Era a D. Dudu, ali ao pé, espreitosa, abrindo um jenipapo: deste
um toma uma prova. A casca, joga fora.
Num alívio, sem Indagar das sete cartas, Alfredo com avidez
come com casca e tudo, saboreando Cachoeira, menino entre
jenipapos. Escolhia no alguidar o mais molinho. Dos verdes só travor
e nódoa até agora. Dos misturados com açúcar saiam pelo soalho as
sementes que se cobriam de formiga, pingou que pingou tempo no
vinho com farinha, vozes do verão a amarelar o jenipapeiro e bem
debaixo o bom maduro chão enjenipapado onde se aquietavam os
carneiros do seu Araguaia, sem acordar na moita vizinha aquela bela
adormecida a sono solto e o alarma: Danilo, Danilo, a cascavel [10]
dormindo. Dormindo, dormindo. Não mata a inocente dormindo.
D. Dudu se fechou no banheiro.
Recostado no parapeito, lambendo os dedos, retardando a sua
entrada na cozinha, Alfredo suspeitou. Ana podia ter saltado o gradil
e ali, no escuro, escanchada num ramo pelo quintal, espiava, a
repuxar o beiço.
D. Dudu tocou-lhe o ombro, de leve, cochichando:
— A conta de mentiroso. Sete. Tu nem sabes, rapaz.
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Deu uma volta, espiou sorrateira pela porta da cozinha, veio colo da avó e esta a tirarzinho os vidros, a passar ungüento e suas
devagarinho, veio misteriosa: rezas e Ana — chega, vovó, pare com a rezação, ah que a senhora é
— Novidade.., que dá um jornal. Sete que são setecentos. até por demais — saltando com um só pé, a catar pelas panelas,
Primeiro entra. De sereno já chega. Mais jenipapo? Mais?. Trouxeram batendo carapanã, então me arme, me arme a rede vovô, que este pé
em quantidade. não me ajuda, ah se a senhora soubesse o que eu sei, o que foi que
Alfredo pede para esperar um pouco, esquivava-se, desceu de peguei agorinha-agorinha, agorinha de noite, o cinema que apreciei,
novo, D. Dudu seguiu-o. tenho que me rir muito, um que eu sei que a senhora sabe, saltando a
— Que que então já perdeste no quintal, rapaz? A cabeça? janela com aquela preta-preta, na horinha que chega a família-dona...
— Me deixe só comigo, D. Dudu, Foi só um instante a em- Aquela casa? Aquela vai virar casa mal-assistida.
briaguez do jenipapo. Ou sabe que pulamos a janela? Nos adivinhou Farejou c rastro de Ana, aquele passo de vadiagem e patrulha,
na sala? Farejou os jasmins? E que sete cartas são? deu com um caminho de formiga rodeando o pilão. Carapanã no
Franziu a testa, franziu-se todo como se principiasse a descobrir ouvido, carapanã no rosto, tentou abanar-se com uma folha de
que saltar aquela janela valia um destino, era um alcance, até onde mamoeiro.
não sabia. Que fazer desse destino, desse alcance, daquele salto? Que Bom ir depressa até Ana, com ela tirar a limpo, se viu não viu,
farei dele, dos instantes com a Esméia diante do espelho, debaixo do que sabia, que espiou dele e da Esméia no sutil assalto. Pode a D.
lustre, diante de tudo que ali lhes foi doado? Graziela sentir falta no “importante mobiliário em pau marfim, na
Quintal escorrendo, as plantas pingavam, rangia o coqueiro. maravilhosa coleção de ricos e antigos objetos de arte e gosto”, como
— Olha, não me anda rente da cerca que a Graziela, aí, noutra se lê nos anúncios de leilão. Ana, então, virá acusar-me. Dois ladrões
viagem, passou uma tarde espalhando, espalhou que foi uma que não furtaram nada, ao contrário deixam ai dentro um primeiro
quantidade de caco de vidro. calor.
Alfredo virou-se. D. Dudu explicou baixo, tapando o riso: Saiu correndo, bateu na porta da avó. Esta, a grenha de bruxa
— Pra pé de menino da vizinhança que reine pular a cerca. velha, veio abrir com o dedo do silêncio, não fizesse ruído, que as
Se andou por aqui, Ana fugiu com o pé cortado, a palma do pé duas ferravam no sono.
sangrando. Eu e ela, ao mesmo tempo, um no outro: que queres de Pelo rosto e voz da velha, via que das duas nem sonho. Levou-a
mim? Se não cortou o pé, pelos navios mortos anda, a enfiar-se nos para a rede. Ela sempre a lhe pedir silêncio, o dedo ao lábio. As mãos
chaminés, espichando o beiço para as mastreações e as bóias acende- dela tremiam um pouco. Tão firmes de leveza e exatas no partejar,
apaga do canal. A palma do pé sangrando. agora cediam a um temor, a uma expectativa, a uma aflição.
— Menino, Olha que tu corta o pé. Cochichava: não passasse no quarto dos fundos onde as duas
[11] — Não estou descalço, D. Dudu. dormiam. Não falasse alto. Miudinha na rede, gemia como se fosse
Mas Ana, cuspindo sempre aquela hóstia do orfanato, tirava as perdendo a voz.
chinelas sempre. De volta, crivada de caco de vidro, quem sabe — Descanse, sossegue um pouco, eu já vou sim.
sangrava na esquina ou num velório, depressa a esticar o pé rueiro no — Chegaram já faz que tempo. Sabe? Graças a Deus. Graças a
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Deus. Consegui na Ordem Terceira o lugar pra Dalila. De servente. cururu, zunem os carapanãs. São Longuinho, São Longuinho, faz que
Tentou levantar-se. Tinha um parto em vista, assim pelas oito e eu ache Ana, São Longuinho, Aproxima-se da barraca. A luz se
nove da manhã. Levantou-se, veio devagarinho, abriu [12] apagou. E agora, Santa Clara? Voltou tateando sobre a estiva, cai-
devagarinho a janela, passou um bonde. Da rua lhe deram boa-noite. não-cai, debaixo dos carapanãs e da vergonha. Lá no quarteirão, a
— Amanhã é o seu colégio, meu filho. Amanhã é o seu colégio. única lâmpada na parada do bonde, canto da Brasiliana. Por isso,
Alfredo pediu bença. Colégio. Colégio, dizia ela com tanto naquele alumeio que lhe parecia longe, o sótão da moura ganhava
respeito, delicadeza, confiança. Também para mandá-lo logo embora. feição de torre de onde jorravam os contrabandos e os amantes.
Colégio. Do colégio restava esta noite ao meio. Este ir e vir, quase Vence a pinguela, rompe o [13] capim, dá com o casal que pula da
apanhado saltando a janela, e essa sua mentira, vã. fornicação, cada qual para seu lado, sumiram-se. Os sapos saltavam.
No meio da rua, parou no trilho. Na cocheira defronte os zebus Ana, não, não é. Ë não. Essa aqui era um tanto escura, corpo de tatu,
dormiam. E foi que se abriu a janela do lado, do quarto das filhas do pixaim em pé.
proprietário, e as duas irmãs, que nunca falavam com ninguém, um Chegou ao portão, esperou, sem esperança. Entro cínico ou
instante apareceram. Dois rapazes pulam a cerca e entram. A janela culpado?
fechou-se. As meninas ricas do bairro! Voltavam do Colégio Santo Entrou.
Antônio carregadas de deveres e vernizes, num nem te ligo na janela, No corrimão do alpendre, o queixo sobre o quintal, a D. Dudu.
no bonde, na missa. Quando os fazendeiros iam ver os zebus, elas Essa aí me espia como se dissesse: te tenho aqui na chave da mão,
ficavam de longe, de pé, direitas, prontas para falar francês, e tudo meu tratante.
etc, e tal como mandavam as Irmãs do Santo Antônio. D. Dudu Matando formiga, bate o pé com a mordida na perna, espalha as
gabava-lhes o bom termo, sim que um tanto, ou demais, bestonas, por folhas do chão, desmancha a caravana.
se saberem filhas de que pai, dono de zebu de Minas, vacaria no Pará — Tá vendo? lá vendo? Assanhaste as formigas, acudiu D.
e quinta na Beira, O pai com a D. Izaltina sangue tupinambá deu Dudu, terrosa, espichada na sombra, sacudindo a saia.
aquela raça, beiço da tribo e olhos dalém mar, transpirando urucu e — Alfredo, seu cerimonioso, já que achaste a cabeça no meio
azeite doce, nascidas na mão da velha parteira. Rangeu o cata-vento. das formigas, sobe, vem fazer sala, salvar os donos da casa que
Os zebus dormiam. Espalhou-se um ar de estrume. A vacaria chegaram. Tira do gogó do réu o laço das sete cartas.
proliferava. E rindo, numa satisfação, inclinava a cabeça:
No capinzal que dá passagem para a José Pio, cuidou ter visto — Ao menos abre um intervalo na reunião. Rente da barba dele
Ana, Ana, Ana, chamou por entre as toiças molhadas, chamou baixo, o facho das três aceso, Entra a tempo de aparar a cinza.
um tanto suplicante, deu-lhe uma pressa, quis gritar, se via num Nini gritando do parapeito,: as formigas? Foi as formigas?
cavalo volteando o laço atrás da rês fugida. Lá embaixo, na escuridão Alfredinho! Alfredinho! fez o rapaz estremecer como se ouvisse o
do encharcado, descendo para o estaleiro e o rio, a luzinha, um pavio chamado de Lucíola no campo. Lá está a órfã saindo do choco,
aceso. Quarto a defunto? Os sapos — olha ele, Ana, olha ele, Ana — murmurou, a perna ardendo de formiga. Onde elas guardam o celeiro?
davam o alarmar. Anda na pinguela que espirra lama e faz saltar um No baile dos Juruenas? Avançou para os fundos. No baile dos
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Juruenas. No baile dos Juruenas. aquele passeio com as duas casadas Pedreira a dentro: D. Abigail,
— Agora é algum ladrão que viste? tempo de moça, saindo com as outras do banho de priprioca e orisa
— Vou no baile dos Juruenas. nuinhas pelo escuro debaixo do açaizal, lá fora São João, foguetinho
— Teu baile! Teu baile! Dá cá um cheirinho de tua graça... pela calçada, Belém pulando fogueira.
Fugindo dos donos da casa, menino? Ana, quis chamar. Cortaste o pé, te escondestes nos açaizeiros,
— Ao contrário, sempre atrás da dona verdadeira. onde te agachaste, onde teu beiço empolado de ofensa e nojo?
D. Dudu pirrônica. Tire seu bico desta minha solidão, destes Lá na cozinha, cercada de jenipapo, quem sabe, a família
meus sustos, não me indague mais nada nem as novidades me diga, deliberava, também a cobrar de D. Dudu a casa surpreendida na mão
minha senhora, Para onde ia a caravana? Para o baile dos Juruenas. de um par que pulou a janela, os dois na sala, na cadeira de embalo,
Cava, cava, formigueiro, até esta outra casa vir abaixo com cristaleira mergulham no jazigo conjugal e daí saltam a um rumor de porta
e tudo. A pé-cortado, coxa Inflamada de formiga, Ana, a esta hora abrindo. A preta os seus encantos destilava, aqui rente da cerca, aqui
roga: que o valão da José Pio bem debaixo vá estourar bem debaixo na veia, nesta ansiedade, neste sobressalto, espremia os seus jasmins,
do palacete delas, com aquele zebu mal-assombrado cobrindo as a figa, sua colação de grau e noivado, seus navios passando no
donas, fazendo raça, titias vacas, aquelas tetéias! Arre que a preta Guajará, Esméia em toda a louça, mobília, cortinado, caramboleando
enxugou o sovaco nas alvuras da família. no Centro da mesa, roçou a anca na barba do nosso Imperador,
[14] — Se algum rumor ouviste, pequeno, só se é mucura. E pendura no braçalete a lâmpada elétrica agora acesa pela família na
mucura. Vem, faz as honras. É o compadre do teu pai chegando com cozinha.
as excelentíssimas. Tenho é que te contar. Tenho é que te contar. Ao parapeito, a apertar a barriga rasa, Nini ria ou soluçava? Os
Domina a impaciência — todas as matérias do Ginásio cruas — açaizeiros se agitavam, os cachos mais altos, na [15] luz da porta
vou faltar amanhã. Amanhã, desenho, sacode o limoeiro que borrifa, vizinha, balançavam como lustres. Daqui, pelos fundos, desemboco
afasta-se, viu a D. Dudu apanhar a saia, girar: na Manoel Evaristo, acudo o pé de Ana, atravesso as jacas e a nudez
— Pra te contar, aquele-menino, só mesmo no muito muito de Zuzu, alcanço o estaleiro, pulo numa proa, fujo-me e logo do
sossegado. Mas anda vem fazer presença. Olha, cuidado que senão as bailéu — comandante manda, marinheiro faz — me aparecendo a
formigas te carregam. Ana. D. Dudu chamava.
— Para o baile dos Juruenas? Em torno da mesa, na cozinha, a família sentada, rostos de
Na porta da cozinha, Nini gritou: titia, titia, a chocolateira lhe viagem, em silêncio, inchados de desentendimento. Em vez do aperto
chamando! Já ferve. Côo? D. Dudu, atrás da chinela que lhe fugira do de mão, o nosso Imperador dá o delabençoe. Mini riu-se: ele não está
pé — É o fogo das tuas primas que ferve a água, avexada? — foi lhe tomando a bença, titio, O nosso Imperador levantou as
entrando na cozinha. sobrancelhas, enseã, enseã, em que se desculpava ou mais se
Alfredo protegeu-se entre as plantas, na folhagem, no terreno embaraçava. D. Dudu levantou o queixo contra a sobrinha. Alfredo
minado. Aqui, à espera dos inocentes da vizinhança, os cacos de apertou a mão de D. Jovita, das duas filhas, todas poupando
vidro. Lá pelos fundos se agitavam os açaizeiros. Fazia lembrar movimento e voz. Decidiam a expulsão do hóspede? Espiou o
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corredor, apanhando aquele vento, pela casa, de viagem, campo e bunda, tira do bolso da saia o molho de chaves, vai, abriu o armário,
curral, carnes salgadas, jenipapo, couros, chegando com a família. Era retira as xícaras grandes, desenrola da f olha de bananeira os beijus
como se estivesse no Jandiá, este a ferver suas águas no verão, a duros. Nessa ocasião, D. Dudu, ao virar as costas para guardar o riso,
ausente a cavalo entre o alarido dos tetéus e a virar na lama as aningas olhou fino para Alfredo. A irmã de Graziela falou nas coalhadas.
em flor. A loção de Graziela não protegia as senhoras nem a casa. A Graziela cortou.
família trazia os odores da condenada. Neste jenipapo que se abre, — Não, Felipa, aquelas são sagradas.
naquele couro de maracajá, no beiju grosso, é o chão, o igarapé, os Em três latas de querosene, seguiriam para a casa do Doutor
cavalos, a grossa tarde de urro e fogo, a ferra no curral, a moça em Gurgel, o advogado da Questã, para o ex-Governador, compadre da
cima da tranca anotando as reses ferradas. Luciana brandia a marca família, e para o Arcebispo.
do ferro em brasa, marcava a testa de cada um da família. O. Dudu D. Felipa, como se lembrando, chamou, meio cansada:
coava o café. Alfredo olhou para os rostos à mesa, cada vez mais se — Floremundo, Floremundo, vem.
desentendiam em silêncio. Na cabeceira, ainda de paletó, gravata e A pessoa não vinha.
broche, o nosso Imperador não ocultava um ar surpreendido, confuso, — Floremundo!... chamou a Graziela numa espécie de ralho.
pilhado, num esforço para readquirir a chefia, a barba como úmida, A pessoa não aparecia.
gasta, cuspida. A esquerda, a mãe de Luciana no seu traje de D. Dudu foi ao primeiro quarto, bateu, chamou.
desembarque, o colar, a travessa no cabelo a dizer sombriamente o Veio então aquele um alto, o longo rosto chupado, bigode
seu preço. Calcava a sua dureza e escureza, o todo acusador e murcho, a boca triste, a mão pelo cangote cabeludo, o ombro
sumário, numa reserva tímida, mãos no colo, as mãos que arriando, o paletó curto de tio bimba, caído o laço da gravata
desnudaram a filha, salgaram o corpo da filha, mãos no colo, Como se bolorenta, fofo e descido o colarinho. Em toda a figura se podia ver
descansasse um peso, armas do desagravo e do castigo, e a boca, tal compridez, muito osso, silêncio, paciência, as fibras da mão
qual como dizia a velha parteira, costurada lacrada. As duas filhas ressequida, o meio encandeado, a voz padecente, como está o senhor,
fingiam excluir-se, embora se notasse em Graziela, carão bambo, colo moço. Notícia de sua mãe? Do seu pai? numa cortesia antiga, o
tampa de baú, gola fechada no pescoço, a astuciosa participante, a tristonho senhor já bebendo gluteglute o café no pires. Alfredo apanha
mão de rapina sobre a mesa, dedos abertos, o dorso cru de garra que da bandeja a xícara fumegante, agora convencido: o pai, no chalé,
minou o terreno das crianças, o fugitivo dente de ouro, agora, num rir tinha as suas razões, sim. Bebe o que café queimando a goela, como
de banda. A irmã, baixinha [16] e perda, um rosto puído e coisa que só assim do sobressalto se livrava, das suposições e receio
contrariado, apertava os olhos pisca-pisca, a torcer o focinho roxo, e pelo que consentiu na sala, o pulo, a invasão dos jasmins, o entrar
sua voz, na pergunta que fez a Nini sobre sacos de papel, escorreu pelo portão, D. Dudu à espreita... Seu Floremundo, embaraçado, com
impaciente e rouca. um Deus lhe acrescente, repõe a xícara na bandeja, recusa o beiju, o
D. Dudu olhava para ela com simpatia de prima, uma vaga requeijão, passando o indicador devagarinho pela boca. Alfredo
cumplicidade a que a outra se fazia alheia. Nini trouxe a bandeja de aceitou o requeijão, feito por D. Felipa na fazenda. Consentiu num
café, distribuiu as xícaras. Graziela levantou-se, tesa de barriga e beiju, lhe deu de repente uma fome, outro beiju, outro pedaço de
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requeijão, mais café bebeu. Um instante olhou: Cercando o velho, as — O senhor, titio, faz as suas visitas, este ano, agora? Sempre,
três mulheres à mesa [17] vol|tavam ao debate sem palavras, quando vem, o meu tio Floremundo vai no Tucunduba visitar os
dominado pela D. Jovita, mais fechada, as mãos no colo. O marido, doentes da pele. É ou não é?
barba na mão, destrancou um pouco a cara ao provar do requeijão, — Desmentir não lhe desminto.. É, sim, senhora.
pediu outro café. — É. Tenho um conhecido no Tucunduba e outro no Domingos
Virou-se: Freire. A boa obrigação é ir. Já foi?
— O meu compadre, á aquele-menino, o seu pai, está me [18] Vergou o pescoço, virado para o estudante que hesitou, fez
devendo uma visita lá na fazenda. Estou que você pode ir. Nas férias. um aceno que já voltava e foi ao banheiro. Voltou.
Alfredo não respondeu, confuso um pouco e um pouco tentado — No Tucunduba? Foi?
a uma imprudência: leu minhas três cartas, seu Braulino? Agora, Um domingo, com um grupo, domingo, sim, em Tucunduba.
depois da chave entregue àquela, que desapareceu, e da visita da Trazia dali aquela hortênsia ou nunca tinha visto antes uma hortênsia?
Esméia, o seu protesto mudava, longe a primeira aula de química, o A hortênsia na janela de um lázaro. Veio um rosto, e outro, e entre os
trote, a manhã de latim, o mestre que sabia Horácio contra os roceiros dois a flor no jarro de barro. Procurou por lá — não viu, nunca mais
do Guamá. As três cartas acabavam letra morta. Agora Luciana não viu — o santo da esquina da Inocentes, a cujos pés desceu a bola e o
gera o ingênuo protesto mas um quase tranqüilo juízo contra a assombro geral naquela tarde de futebol.
família, torna-o tolerante com as duas netas, ladrão de par com a — Viu no Tucunduba alguma hortênsia?
Esméia. De certo modo, com Certa pena pelo que acontece ao seu — Das vezes que tenho ido lá, não. Não reparei. E o senhor?
Braulino. Dos lázaros trazia para sempre aquela hortênsia, tão sã, tão
Em pé, recostado no peitoril da janela, seu Floremundo parecia viva, tão feliz de estar ali na janela entre eles.
abolir-se, os olhos na lâmpada e nos mosquitos em volta. Nini, Nini insistia:
bandeja debaixo do braço, meteu-se entre os dois que se entreolhavam — Então, Alfredo, já conhecia esse meu tio?
com acanhamento. Seu Floremundo adianta-se:
— Já conhecia aqui o meu tio Floremundo, hein, Alfredo? Raro — Eh desde que tempo. Conheci ele bem menino em
vem na cidade, ele. Esse meu tio, não é por estar na presença dele mas Cachoeira. Vi o senhor recitando um discurso no salão da
é o que corre, não é, tio Floremundo? Intendência, mas bem mesmo, eu tanto soube apreciar. Agora que
— Como sei lhe dizer, se não sei o que corre? esticou um pedaço, não espanta que me estranhe.
— Sabe, Alfredo, meu tio Floremundo, de bom que tanto só — Não, seu Floremundo, não lhe estranhei. Do senhor? Me
agrava o que come. lembro bem.
— Ah mas assim não, assim também não. Tire a diferença. — Sim, senhor, sim, senhor, então se o senhor se lembra,
— Não sou eu que diz, é mea tia, é mea avô, quem conheça o estamos entendidos. Nosso conhecimento é já antigo.
senhor. Nini não se cansava:
— Agora isso não. Coisas que já agravei neste mundo é peso. — Sabe que já é do Ginásio?
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Seu Floremundo fez que sim, o dedo pelos beiços, quase numa Adivinha, adivinha.
contrariedade, que a Alfredo não escapou. o estudante deu um olhar Alfredo fingia ocupar-se com uns papéis do bolso.
para Nini que parasse. — Adivinha.
É ginasiano, o ginasiano da rua. O nosso soldadinho de Nini indicava o alpendre: D. Dudu catava o que fazer para
chumbo. A D. Marta deu aula de francês pra ele, ano passado, O meu melhor disfarçar a sua atenção à mesa onde jazia, surda, a guerra.
tio vai ver o nosso ginasianozinho fardado. Fala, fala, fala aí francês — D. Dudu não costurou, esta noite, Nini?
pro meu tio ver, anda, anda. Acabou a encomenda da loja, Hoje serviço dela foi o teu
Rindo e insistindo Nini exibia as suas intimidades com o uniforme, soldadinho de chumbo.
ginasiano e com a professora, a representar um pouco diante do — Mas não era preciso... Não era preciso...
público ali reunido. Tinha perdido o sono que tanto precisava para — Meu tio Floremundo em breve esse aí, esse moreninho, está
não cochilar durante o dia na fabriquinha de sacos de papel. com um canudo na mão atado com uma fita cor de rosa.
— Amanhã, só para o Anil das Lavadeiras, é um milheiro. — Nini... Regula a mola, Nini.
[19] Milheiro que lhe fazia doer as costas, fazendo aquele sacos, A órfã a festejá-lo:
Não por se gabar mas ali, na fábrica, melhor acaba mento na colagem, — Te mandei um passarinho pingadinho de amarelo, Te mandei
dobragem, acondicionamento, quem, que melhor que ela? um passarinho pingadinho de amarelo...
Perguntassem a seu Camilo, ao Catu; sim, que duas colegas, ali suas E repentino agarrando-lhe o peito da blusa:
amigas, veja! suas amigas, andavam no disse-não-me-disse tudo por — Mas Alfredo! Te abotoaste errado, rapaz. Onde então que tu
causa de quem ali era a primeira Ela, titia está aí pra ver, se mais anda com essa cabeça, rapaz. Espera, Olha, eu preciso ler o teu
cabeça tivesse mais caprichava As prendas de berço nem todos horóscopo.
traziam. [20] Deixando-se abotoar direito, Alfredo piscou para o seu
Mais testuda, mais escorrida, mais solteirona antes do tempo, Floremundo numa súbita familiaridade com aquele compassivo
Da órfã, só faltava o uniforme. membro da família, um tanto jogado no ostracismo, sem voto nem
Alfredo guardava-se no receio de parecer bastante reconhecido a voz naquela reunião. Seu Floremundo, sempre de pé, sorria atencioso,
ela, à sua afeição e desvelo, Via surgindo na cara de Nini a sombra de braços cruzados, como com frio. Nini não parava.
Lucíola Precisava conter os fervores de Nini. — Meu tio, peça pra ele ler pro senhor uma passagem daquele
— Nini, te vejo mais no orfanato que na fábrica, menina. livro de capa verde, do homem que roubou um pão o suspendeu
Nini fez um ar de desconsolo, afinando a voz: sozinho a carroça, peça. Não se faça rogado que é feio. A pessoa não
— Ah quem me dera eu no orfanato, Ah quem me dera ainda lá, bate a porta da escola pra sair mais orelhudo. Ele que sempre anda:
Mas assim por assim, estou com titia, Aqui também eu crio juízo. meu nobre perdigueiro, vem comigo, vamos a sós, meu corajoso
— Nunca mais foi tomar bença da irmã Gelsomina? amigo, pelos ermos vagar... Anda.
— Ela me abençoa de longe. Viste, Alfredo, lá no quarto, como Deu uma batidinha na testa a lembrar-se, a lembrar-se. Sabia de
está que é uma jóia o teu Outro uniforme? Adivinha quem passou? cor o pedaço tirado de O Colibri, de Abaeté, cópia que lhe deu a
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Pérola, colega dos sacos: de pé no chão, como vou no trajeto desfiando o terço. Titia se
— Já pedi que Alfredo, esse mexelão de moça, copie numa empenha.
carta para as tantas fiteiras dele, pois vá lá, meu tio, oiça e me diga: a — É a titia ou a Virgem de Nazaré, Nini? Qual das duas?
chuva cai. Longamente oiço o sussurro das rajadas e o tanger de um Nini avançou para Alfredo com a mão fechada:
sino. Quem sois, indago, alucinado. A mesma voz me responde: é a — Não duvida, que te dou um godeme, herege. Teu mal é só
esperança. Que o senhor acha, meu tio? debicar. Mexe com santo, mexe...
— Ah mea sobrinha logo eu... Eu quem sou eu achar... na mea — Estou debicando, seu Floremundo?
fraca opinião. .. bem, me carece competência. — Sim, que o senhor só fez foi perguntar.
— Agora és tu, Alfredinho, anda te desacanha. O Ponto Final, — Até meu tio, até meu tio!
anda. O Tudo Acabado Entre Nós Dois. Anda, que amanhã te trago da — Vais subir de graduação, sim, Nini. Te pega também com o
fábrica o teu horóscopo, seu dificultoso. Então aquele que tanto lês: velho São Pedro lá de Santana. Está um porteiro sossegado, gordão, a
há dois mil anos te mandei meu grito. Não é? Pensa que já não te ouvi costa do pé meio cavada de tanto lhe beijarem, um pouco enjoado
aí da janela da frente recitando para uma pessoa debaixo do com o cheiro de doce que vem da Palmeira ali defronte entrando pela
jasmineiro ouvir? Senão não te trago o que dizem os astros de ti. igreja, subindo pelos altares. Nini, a chapeleira, de fardamento
Alfredo puxou a moça para o lado — licença, seu Floremundo marrom, chapéu etc., e tal. Que tal, seu Floremundo?
— e lhe falou ao ouvido. Nini desconsertou-se um pouco, sem deixar — Faço voto.
de rir com seus dentes grandes — a tua valência, a tua valência é o — Tua promessa para o Carro dos Milagres? Qual? Um chapéu
meu tio aqui presente, senão, senão! Te respondia em cima da fivela. de cera? Um saco? Uma cabeça?
Em cima da fivela. Mas eu te pego na primeira de copas, deixa-te- — Pensa que os santos não estão te escutando? Tuas palavras
está, deixa-te-está! sendo anotadas lá no livro? Duvida, que não vou te trazer um chapéu
— Engoliste ovo cru de japiín [sic] pra que ficasses falando no dia do teu aniversário, seu ferino? E ofereço um pro meu tio. Sim,
tanto? meu tio?
— O ovo que tu me deste, tiraste do choco dos teus japiíns. — Como?
Deixa-te-está, deixa-te-está, pensa que não escrevo [21] pra tua mãe — Um chapéu de palhinha?
contando uns tantos sucedidos aqui em Belém por parte do anjinho Nini contou o empenho da tia para metê-la na Fábrica de
filho dela? Duvida! Chapéus Para Homens, ali era mais assim-assim, menos mal pago, e
— Seu Floremundo, Nini cedo é da Fábrica Paraense de por quinzena. Sim que a pé, para chegar lá três quarteirões do
Chapéus de Palha, a maior do Norte do Brasil. É ou não é, Nini? Esquadrão até a Quintino, passando o Igarapé das Almas. Deixava
Nini se fez prudente, logo ansiosa: aquela biboca dos sacos de papel com saudade, mas que remédio?
— Assim espero em Deus, assim espero em Deus. A Virgem de Entre saqueira de papel e chapeleira, embora não de atelier, sempre
Nazaré vai ter minha promessa no seu Carro dos Milagres nem que tinha um grau. Esperava ser chamada, hoje ou amanhã, para o
seja noutro ano. Mas ainda espero neste. Não só acompanho o Círio aprendizado, No que aprendeu, conforme Deus, a vestimenta de todo
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dia. De [22] uniforme as moças da Fábrica de Chapéus faziam mais não se sabe nada da vida alheia. A modista mudou de ofício.
figura que as piramutabas da Escola Normal. Estas, coitadas, com — Vamos, rapazinho, a Utopia, antes que o rato te roa a
todo o metidismo delas, olha a blusinha esgarçada, o cotovelo saindo, palavra.
a saia puída. As chapeleiras da Quintino, não. Era do regulamento, Nini sentia-se adivinhada, Alfredo malinou:
aquele trinque delas, chovesse ou fizesse sol. Das meninas do — Olha, olha, Nini, que eu digo...
Ginásio, conhecia pouco. Alfredo que dissesse. — Da parte que me toca.., disse ela fingindo indiferença.
— Deixas então a Utopia? [23] — Seu Floremundo, já viu os sacos de papel da fabri-
— Que queres dizer com isso? Vê lá. Teu enigma não é comigo. quinha?
Utopia que nome é esse? Ou é verde? — Não apreciei ainda a fabricação. Espero ver.
— Verde, Nini? Verde, por quê? Por que verde? — Digo por que estás na berlinda, Nini? Digo?
— Então desenrola o carretel, enigmático. — Por mim sã não querendo.
— Sou um homem, não sou uma esfinge, aquela-menina. Via a impaciência dela, o aborrecer-se, ela encrespou o rosto.
— Tua cara é, é daquela que me mostraste no livro de Adivinhava: Catu. Nini não queria saber porque estava na berlinda.
geografia, sim. Esfinge, esfinge! De homem, na fabriquinha, além do patrão, só havia um, o Catu.
Alfredo calou-se, receoso, sabendo até onde Utopia era o Catu, Trazia para as moças um feixe de modinhas, estórias da seca,
o tipógrafo, que compunha e imprimia na fabriquinha os rótulos dos saudades e desconsolações do Ceará, torrão de sua família. Nini,
sacos de papel. A toda hora, em casa, era Nini com o nome dele, e o colando saco, fazia que não escutava, rabo de olho nas outras,
que Catu sabia da rua, das tipografias, do querer, jurado, ter uma guardando a sua astúcia, De todas ali, se via a menos preferida, a mais
oficina, dono dela um dia. Alfredo se chegava: Nini, bem que Catu no canto, E um cerol cortava a linha de Nini quando, em volta de
podia ficar com aquela tipografia de Cachoeira, anos fechada, um dia Catu, empinava a sua ilusão: Zuzu debaixo da jaqueira, por um fio a
roubada inteira. Durante anos, os ratos ali imprimiam seus jornais de desnudez. Catu passava: boa-tarde, Zuzu, suspendeu a chuva, não?
telhado, os morcegos compunham pasquins mal-assombrando a vila. Boa-tarde, Catu, sem hora nem demora a chuva eivém. E assim das
Uma madrugada, chega o dono da tipografia, mete a chave, vira, lacas da Zuzu, prova um gomo, levava um pedaço, uma inteira, Era
custou, sacudiu a porta, abre, e nada encontra senão um rato podre e entrar na fabriquinha, as moças lhe arrancavam a jaca, atirada na vala
as letras B e S no cimento. Parte para o chalé, indaga do Major, o da rua. Catu não parasse na jaqueira. Não chega o que aconteceu ao
Major num espanto, tudo sumiu? Correu que tinha sido Edgar patrão? A seu Camilo ao pé da jaqueira? Torna, torna, torna a parar, e
Menezes, e só Rodolfo, o tipógrafo no chalé, lastimava aquele fim. vê o que te acontece. Catu sã escutando, curvado sobre a impressora,
Era um patrimônio cachoeirense. Embora fechada, esperando anos, que a impressora, o compor, o imprimir, o cuidar pela nitidez dos
havia de um dia abrir para lançar aquele jornal da era nova tanto rótulos, não era mais cuidado, fervor.
esperada tanto adiada. Não era o sumiço que os assombrava, era Ou Nini, indo para a Chapéus, só assim vai chamar a atenção do
ninguém ter sabido em Cachoeira nem Rodolfo. Por isso, o tipógrafo, Catu, que ela tanto, e tão secretamente, queria, quer, “corto minha
pela madrugada, colou na porta da D. Duduca, amanheceu: aqui já língua mas não digo?” Catu passava pela jaqueira. Não nos vai dizer
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que até cópia de modinha já deste a ela? Insensato! Nosso dente — Que religião social essa? Falando pondo na berlinda?
virasse serrote, serrada já estava aquela jaqueira, diziam as moças do Ouviste na Brasiliana?
seu Camilo. Mas ontem, no que chegou, a Pérola gaguejou a — Catu nunca te diz nada?
novidade: Catu de namoro agarrado com uma sarapeca da Goela da — Que é que queres dizer com isso? Na fábrica, cuidamos só
Morte, uma tal de Batista, da Fábrica de Cordas, boca tamanhona voz do serviço. Seu Camilo não é mal obedecido.
de pomba rola, atracador amarelo no pixaim curtinho, de tão curto o — Ouvi dizer que cultiva idéias.
vestido já lá em cima, todo sábado, pão de festa nos Estivadores. — Seu Camilo, o que ele é, não esconde. Religião social só se é
— Que Utopia é essa, seu cabuloso? no teu repertório. Me diz!
— Onde mais? A fábrica do seu Camilo, onde te aturam, Nini. Seu Floremundo ouvia como desinteressado ou fingia.
— Batizou de Utopia? Que eu soubesse... — Pra que te diga, esse fundamento o dicionário que guarde.
— Ouvi dizer que o teu patrão, lá na Espanha, era... Mas isso não é só contra o rei? Nem me atrevo indagar do seu
— Aí se falou que seu Camilo, sim, foi contra o Rei. Camilo. É um homem muito do silencioso.
[24] — E aqui? — Ele tem santo em casa?
— Aqui não é república? Lá pra dentro onde ele e a família dele moram, nos fundos,
Batista, beiço feroz, ela ria, os dentes te comiam. Pobre Catu, quando a gente passa pra ir no quintal, se vê uma Nossa Senhora na
ressequido, minado pelo chumbo, falta de sangue, no beiço, no dente parede do corredor. Que os dois filhos estejam batizados, a Nini, esta
daquela piraíba. aqui, ignora. Mas nunca ouvi da boca dele contra santo istozinho
— Não é mais contra o rei? assim que fosse.
— Penso eu que não. Indaga de quem sabe. Nini mostrava a unha do minguinho.
— Ouvi falar que não era só contra o rei. Que também contra — Pelo menos contra os padres?
Deus. — Estou lhe prestando declarações, senhor subprefeito?
— O excomungado te soprou? Quando uma tarde entrou uma senhora com um registro de [25] santo
— Quem? e um papel de subscrição, ele só deu, não assinou. Deu um cruzado,
— Quem lá trabalha e traz pra fora os ocultos da casa. que eu vi. Missa, Círio, nunca vi a mulher dele ir. Mas não sou
— Ouvi falar que ele freqüentava sessões de idéias em Belém. testemunha.
Parece colega do seu Lúcio, um parente meu. De uma religião social. — Seu Lícío, que tem as idéias do dicionário, contra os padres,
— Conversa sério, rapaz! Onde foste desencavar toda essa bufa. No que passa pelo arcebispado, diz adeus de mão fechada. É
maçonaria, limpa-poço? Já sei quem é o poço, poço, não, trombeta. A esse, o teu patrão?
serpente que seu Camilo tem em casa! — Conosco só falando de serviço.
— Serpente que imprime os rótulos? — As idéias do homem lindas no dicionário. Aqui fora ao pé da
— Então é ele mesmo que te conta? Zuzu...
— Onde escutei não vos cabe saber. — Mas que mentira! Aleive da Zuzu. Zuzu! Zuzu! Seu Camilo
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passa pela jaqueira com algodão no ouvido e olhos só para o canto da — Ao contrário, Nini, ao contrário.
rua ver se inda pega o bonde que vem dobrando lá do Curro. E Zuzu Nini temperava a goela:
espalha. Zuzu que te disse que seu Camilo é contra Deus? — Ela te contratou pra anjo da guarda dela? Quanto o
— Por que seu Camilo não cobre a vergonha dela colocando a ordenado? Dá a tua farda, veste ela com a tua farda.
moça na fábrica? — Seu Camilo, ao passar pela jaqueira, podia atirar em cima
— Mas cadê, cadê vaga? Nem uma nem uma. Zuzu é por dela trêszinhos [sic] metros de chita.
demais metida quanto é por demais falada. E era só Zuzu entrar, todas — Pois só por soberbia, Zuzu cuspia no pano. Logo agora que
nós: seu Camilo, faça nossas contas. Onde a sapa inchada foi buscar era cospe quando o seu Camilo passa. O vestir dela é se despir, isto
aquela soberbia, não sei. Bicha! que sim.
— É que debaixo daqueles trapos vocês enxergam a filha do rei. — Zuzu distribui jaca, não caco de vidro, entre os meninos.
— Axi! Debaixo da jaqueira, ela não minou o chão.
— Zuzu? Melhor que Zuzu, quem? — Mais baixo que a mea tia Graziela pode ouvir... Ouvindo a
— Muito me admira, muito me admira que coloques na lagalhé cantoria daquela sereia? deixa-te-está que a mea avô Santa vai já, a
um tal diadema. Seu Camilo nunca se apresentou, numa palavra que meu pedido, te fazer uma reza, te pendurar no pescoço um caroço de
fosse, com uma de nós, operárias dele. Agora ela, na jaqueira, a bem tucumã brocado com uma oração dentro, seu enfeitiçado.
dizer, com licença da palavra, meu tio... Alfredo sorriu, se lembrando da mãe, do tio, da Sabá
Nini debruçou-se, falou baixo, fazendo cruz na boca: Manjerona, da tapuinha que dizia: mas se asserene mas se asserene,
— Uma boa da sem-vergonha. noite dos maracujás, São Pedro quebrando pratos no céu. Enfeitiçado.
— Com uma semana fazendo saco de papel, Zuzu pode Agora, em vez na palma da mão, subindo e descendo, o coquinho
comprar um vestido. brocado, com uma oração dentro, pendura no pescoço.
— Aquela? Lá na fábrica? Em que ela se fia? — Um carocinho de tucumã oco oco, Nini? Pede, que eu quero.
— Ah correu com o D. Juan? A tua vó sabe?
Nini enrouquecia: — No pescoço, a reza dentro. Vou te pôr coleira, chamador de
— Alfredo, Alfredo... D. Juan, D. Juan, nesta infeliz rua, se um mau tempo.
tivesse, quem, senão vossa senhoria. Ou pensa que sou cega? — Tens a letra da oração?
— Lá na reunião das idéias, seu Camilo quer vestir os nus. Aqui — Seu adiantado! Não te convém saber. Se eu, que sou eu,
fora ao passar pela jaqueira, quer tirar da maltrapilha o último nunca li, jamais tu. Leva ela dentro do caroço pendurado sem saber se
molambo. A fabriquinha lhe dá direito? principia com A ou acaba com B. Pendurada. Dentro do oco do
[26] — Seu Camilo, bom homem até que é. Não crê em Deus? caroço, O carocinho já te espera. Brocadinho todo por dentro feito um
Mentira! Nos paga demais pouco porque o negócio dele também dá cofre das palavras que vão te desenfeitiçar, enfeitiçado. Torna, torna a
um nada. Agora Zuzu, aí, sim, ali debaixo da jaqueira, não vem me comer jaca daquela jaqueira, torna a te pôr debaixo da jaqueira! Que o
dizer que não é contra Deus. seu Camilo, logo que prospere, depressa compra dos Lobões aquele
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terreno, derruba a jaqueira, adeus o ponto da encantadora, Ai é que te Aqui Alfredo segredou:
pergunto: onde vais entronizar a filha do rei? Me vais é andar de — E ali na mesa, cá entre nós, naquele tão silêncio, que júri é?
carocinho no pescoço. A vovó te prepara. Não sabia, tio Floremundo? Ah desculpe!
[27] Seu Floremundo só fez um aceno, não se sabia se sim se Deu com o seu Floremundo tão de cabeça baixa. Seu
não. Floremundo, parte da mesa, membro da família, servente daquela
— Num instante, vais ficar cego ao passar pela jaqueira e surdo justiça. Nini espalmou a mão num: tu! tu! Seu Floremundo riu, curta
de nunca mais ouvir aquelas vozes. risada, assim como um bom respirar, tudo nele um momentinho se
— Vozes? alumiou. No mesmo que riu, voltou a entristecer.
— Dela, sim, ela entoa. A mãe é do reino das almas. Te mete — Mas bem, não mude de assunto. É o que te ensinam no
nas sessões dela, te mete! Quanto fluido já te deram? .Já estás de Ginásio, Alfredo?
espírito encostado? Minha avó vai te puxar do poço das jacas, seu [28] — Infelizmente não. Zuzu me ensina muito mais.
atraído, à força daquela oração no oco do carocinho. Atrás da jaqueira — Alfredo, ao menos respeita o tio Floremundo. Está vendo,
tem um poço onde ela atrai e some os convidados. meu tio, o que tanto aturo? Não estamos sós, Alfredo.
Nini se deu conta do que disse, se calou, se benzeu. — Seu Floremundo, lhe desrespeitando?
Entre sério e divertido — enfeitiçado, enfeitiçado — Alfredo Seu Floremundo espichou-se no silêncio, sorriu. Alfredo só
numa indagação. Zuzu, o poço, era? Não. Zuzu provocava a ira das consigo: ali na mesa é um pouco, em ponto pequeno, mal comparado,
moças na José Pio por tão soberba tão pobre, tão nua tão séria, por o célebre quadro, a lição de anatomia. Tudo ali na família se vê,
muito melhor vestida quanto mais maltrapilha. menos a barba imperial, a barba do pai que desabençoou a filha, a
— Do caroço com a oração dentro, quem mais precisa é ela, barba que presidia o Conselho Municipal, a interinidade, a barba em
Nini. Contra a tamanha carecência, os riscos que corre, contra a que se dependura a questã. Nisto, a D. Dudu chama a sobrinha que
calúnia. E o manto de Nossa Senhora em cima dela. hesitou, sem saber se dava outra resposta a Alfredo ou se atendia.
— Blasfemo! Estás no livro das Ocorrências! Deixa-te-está! Alfredo, a roer-se, já se debruçava sobre o poço, pendurava no
— Nini, pra te dizer mais, Zuzu é pura. pescoço da Zuzu o carocinho oco. Contra o rei e contra Deus. Duns
— Está ouvindo, tio Floremundo, o sacrílego? Ouvindo, tio tempos para cá, Deus se cobria de um tal gelo. Daqueles três, o Deus
Floremundo? do pai, o da mãe, o Deus da nhá Lucíola, que o agitavam em menino,
Aqui o alvo de Nini não é Zuzu, é a Batista, da Goela da Morte, iam restando cacos, como os de vidro da D. Graziela no quintal, a
Zuzu tira das jacas o grude que passa no corpo. Da Batista o grude é cicatriz, aquele arrepio este bafo gelado. Então ao menos contra o rei.
do beiço. As duas do mesmo fogareiro, da mesma ordinareza com o Não, que reis no Brasil é só esse, à cabeceira dessa mesa, assinando a1
Catu no meio. abdicação. Mas aquela república? Aquela, do Largo da Pólvora, de
— Pureza é andar — com licença do meu tio — tão... facão, com as mães de Belém ao pé, enxotando de cima de seus
— Por isso mesmo, por isso mesmo! defuntinhos a mosca que cobre a cidade?
— É o que te ensinam no Ginásio? Lembrou-se do aragonês, de que falavam as senhoras daquela
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noite. Contra o rei e contra Deus. Estava no dicionário. De um beco E este, esfregando as mãos, paciente, esperava. O estudante foi no
da Cidade Velha, enxugando o gogó e as saudades da Mãe Ciana, seu alpendre, foi no quarto, encontra no chão o Francês sem Mestre, o
Lício entrava na Sé para ler, com beatitude, os boletins da Anarquia segundo volume de Os Miseráveis, a oração de Santa Rita dos
que chegavam da Espanha. Ou o manto de Nossa Senhora, em vez de impossíveis para mandar ao pai, o Castro Alves, as cartas de Raul
cobrir, ia, aí, sim, despir Zuzu? Deus? Deus? [sic] — Nini mexeu ou não me lembro se deixei assim desarrumado.
Seu Floremundo se aproxima do estudante: Sem abrir a luz no quarto, abriu o atlas, abriu na África, aquela costa,
— As horas? O senhor sabe? ali, aqui, de. onde, de onde o brigue que trouxe aquele bisavô e a que
Quase um susto para Alfredo a idéia das horas. Foi à varanda, o preço? O deserto, o oceano, os leões, a esfinge, pulavam, bêbados, na
carrilhão parado. Na alcova — imprudente, mostrando-te, em lição de geografia. Mas não podia nem rir do mestre pois no chalé,
presença da família, assim tão íntimo da casa! — viu, entre as quem sabe, ia a mãe, fechada na despensa, enxergando no caibro as
floreiras, na mesa de mármore e pau marfim, o relógio francês bonecas — que nunca levou de Belém — da filha morta, as bruxas de
madeira e bronze. Parado. D. Dudu não dava corda nem naquele pano desfeitas pela chuva. Tal suposição, por mais exata, era trair a
quanto mais nesse, para a família não falar depois, sobretudo a mãe, ofendê-la, expô-la diante de um público, esse, que povoa a
Graziela, que ela, Dudu, andava usufruindo, gastando o alheio. consciência dele. Abre o caderno e olha com surpresa: que é feito do
Alfredo foi até a sala. Não ousou acender o lustre e tudo ali sentiu ginasiano? Quem estuda neste quarto? Estou passando um calote. De
como à espera do leilão. Sala e alcova tinham servido o essencial, cima do telhado, Luciana o espiava. Os livros o espiavam. Ser é
para uma noite só, aquela, em que recebiam a suposta visitante. Ela sentir-se espiado.
[29] entra, saiu, ou nunca entrou ou saiu, real ou de mentira, não Agora no pescoço o tucumã com um contrafeitiço dentro. Deus?
importava. Não devolveu a chave. Sinal de que não era Luciana a Deus? Nem podia mais catar os cacos de Deus, metê-los no
mulher da janela à tarde olhando a casa perdida. Ou era. Certamente. carocinho. Deus? Naquele ano, pela cidade acesa de velórios de anjo,
Pode vir a qualquer noite. Debaixo do travesseiro ou da rede, da as moscas nasciam do corpo podre do Senhor Morto. A noite, esta,
ansiedade e da irresolução, a chave está. Restara a chave, abria a casa encalhou?
na palma da mão e era tudo. D. Graziela sabe quantas chaves tem? Esquecido do seu Floremundo, foi atando a rede, o Conde
Mas a Esméia, Ismênia, Ismênia, esta de Vera visitou, sim. Aqui esta sentia-se fatigado. A Condessa também mal tinha força [30] para
coluna de ébano ganhou da preta a graça que lhe faltava. Nesta salva, pronunciar uma palavra. Rodrigo levantou-se e disse: a revelação que
das mãos da preta, ficou este pouco jasmim murcho — que D. me fizeste, minha mãe, de tal modo me confunde as idéias que sinto
Graziela descubra, fareje, indague, acuse — sem isto de que vale a necessidade de repouso, O seu pedaço de Escrich decorado no balcão
salva? E esse bronze bobo, Caçada Inglesa, no toque da assaltante do Saiu. Atou a rede, não se deitou, vai em busca do seu Floremundo.
negra, impregnou-se de aventura, torna a caçada, agora, verdadeira. A mesa, debaixo da lâmpada escura de mosquitos, entre
No silêncio do relógio francês ressoa o minuto do salto. O minuto só jenipapos e coalhadas, continuava a família, e ali à margem, remeiro à
que Vai levar para o seu Floremundo. Voltou. espera dos viajantes sentados, o seu Floremundo agora nítido na luz,
Também não sabia dar conta à conversa com o seu Floremundo. mais exposto, mais entregue à curiosidade do rapaz.
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De fato, de fato. Comparado ao modelo, de que falava o pai, a sagrado. Se deu a um. E sempre o seu Floremundo, de guarda-sol,
presente cópia não desmentia. Cópia, caricatura, ingênua ou rombuda sempre só, triste sempre, aquela figura. Rompia no sol os
imitação, negativo de fotografia, o que fosse, parente, primo, talvez encharcados, fechando a boiama debaixo de cada pampeiro, sempre
pela tristeza, o certo é que alguns traços sugeriam a semelhança. O ao relento a cabeça e o peito fundo. Mas na sede do município, por
filho do meu compadre Delabençoe é ver o D. Quixote, dizia o pai. Já particular respeito ao senhor seu pai, Presidente do Conselho e
de volta dos moinhos, possivelmente. Ainda bem menino, Interino, abria o guarda-sol. É remador do Coronel Braulino?
vasculhando as duas estantes da saleta, catando estampa, folha de re- perguntou-lhe, à porta do mercado, a D. Duduca, a modista. Não,
vista, almanaque, catálogo, dicionário, Alfredo procurava essa figura senhora. Filho. Um criado da senhora, raro é eu vir em Cachoeira, por
em pessoa, aonde andava? Quem era que servia de modelo ao isso, Um pasmo no mercado aquele fiasco da modista, Na reunião
descalço, ao calado, ao bem pacífico bem magro senhor sonolenta onde, por fastio e cansaço, já de ninguém se falava mais, os
melancolicíssimo do Mutá, o filho do Interino, chegando de remo na velhos despertaram um momento: mas tu. Duduca! Tu! E a compor
mão e cigarro apagado atrás da orelha, pescoçudo, pernudo, a voz de sempre, no chalé, o Cachoeira Nova, sem imprimir por falta sempre
quem lá nó fundo do peito ou da tripa guarda uma longa desilusão ou de papel, o Rodolfo: coitada, tinha de arquivar a língua para sempre
uma lombriga sem a qual já não pode mais viver? Lá está, psiu psiu, aquela que de todos nós sabia tudo. Seu Floremundo, um metro e
lá vai de pé no chão e perneira, chapéu de sol aberto, o nosso oitenta e dois, não podia transpor a porta da Duduca, sem vergar-se,
cavaleiro apontava o pai da janela para aquele passarão que amarrava por isso passava de largo, no rumo da Estação de Monta Onde não
a canoa no toco da beirada, comia no banco da popa o aracu assado e tinha mais o gado de raça do Ministério nem o diretor estava — foi
chibé e ia, depois de uma consulta no Ribeirão sobre as urinas, trocar fazer uma palestra na União Espírita em Belém e até hoje. De tudo ali
pernas, as suas pernas altas, pelo aterro; dava um tostão para o Bode, que se inaugurou ao som da banda do Miranda só ficou a Cerca de
na Rua da Boavista e conversava com o seleiro, ginjeiras do professor arame, o banheiro carrapaticida com algum cururu pelas noites
com quem troca duas palavras, e pedindo para ver, mais uma vez, os falando do governo. Da Monta ia ao cemitério velho, em visita a uma
cadernos de caligrafia, os de letra gótica; um instante na Prisca — tia, arrancava capim por capim da sepultura, pondo em pé a cruz,
taqui, comadre, um agradinho de minha parte, não repare. A senhora circulava por entre os mortos como um deles. No chalé, um custo
nem nunca mais nos aparece... — no caminho fechado pelo capinzal, sentar, de pé, recostado na janela, taciturno, a responder: é, sim,
ao cruzar com a Sabá Manjerona, inclina-se, com o seu guarda-sol, senhora. É, sim, senhora. Então se deu que a Inocência, servindo no
dando passagem. A porta do velho compadre do seu pai, o receio de chalé, leva o café pro homem, este bebe, Deus lhe acrescente, nisto a
entrar, ali no entrar era o viúvo desabado, a fome em torno da mesa um chamado da beira se despediu. Vai, D. Amélia, prova do café
sempre posta é sem um grão de sal ou de farinha, o prato da finada, o temperado no bule: mas, Inocência, trocaste, rapariga! Com que
copo da finada, o berro contra os [31] advo|gados: nos tomaram tudo! temperaste o café, criatura de Deus! Só sal, criatura do diabo! A
nos tomaram tudo! Deixava, à porta, na mão do vizinho: tome essa Inocência, já com o bule na mão: não foi, D. Amélia, não foi, veja lá
encomenda pro seu Domingão; subia a torre da igreja, ver — o se eu quisesse botar o homem pra fora era só pôr a vassoura atrás da
pessoal não estoriava? — o corpo da falecida, aquela que ali, no porta, é que estou com esta cabeça... Inocência padecia de suspensão.
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Quanta vez, se despedindo, seu Floremundo ouvia da D. Amélia viventes brincavam. De entrudo já me chega a lida todo dia no
na porta: dê lembranças. Ele alteava a voz: farei presente, sim, atoleiro. Meu viver é mais no campo, do campo eu gosto e vivo que
senhora. E daqui com os seus dentes a D. [32] Amé|lia: faz presente nem cascavel.
coisa nenhuma, que aquelas de mim só querem é lonjura. Eu que me — Aqui em Belém nem uma só vez, seu Floremundo?
dôo? Axi. Que boa maré te leve, passarão, merda pra tuas irmãs e tua Alfredo tinha nos olhos um carnaval em Cachoeira, cordão dos
mãe. pretinhos, entrando no chalé: o Major me conhece? Me conhecendo,
Alfredo então estranhava. Do Quixote, o pouquinho que sabia D. Amélia? A fila dos mascarados pelo aterro, como se fossem numa
sem nunca vê-lo e do escrito nem uma linha, era que corria o mundo procissão, vão entrar na igreja?
de lança e espada. Aqui esse, nascido no Mutá, em vez da espada — Aqui em Belém nem um, seu Floremundo?
trazia o remo n’água, em vez da lança, o chapéu de sol, com as suas Também Alfredo, naquela sexta-feira, espiou a prima
passadas bem vagarosas, voltando para o Mutá nos favores da maré, ornamentando o Palace para o bal-masquê de sábado. Deu [33] um
lá desembarca, monta no boi mocho, chega na fazenda: sa bença, giro pelo terraço do Grande Hotel, já a sociedade se jogava serpentina
mamãe, bença, papai, este diante do espelho com o pente fino, e confete, lá dentro jantavam, a orquestra do salão tocava fúnebre.
lambuzado de brilhantina, pela barba de Imperador. A D. Jovita na — Nem nem um, seu Floremundo?
rede, o rosto talhado em pau e silêncio, as mãos no colo, governando Seu Floremundo acena com a cabeça e pensa numa noite, nesta
a casa. Agora em Belém, é a explicação, O nosso cavaleiro nunca se cidade, chegando de repente, vai onde mora a Graziela — ela tratava
queixou do sal no café e ignora o nobre apelido. Com um novo alívio os dentes em Belém — e dá com aquele dominó amarelo, máscara
por adiar as apreensões, Alfredo ficou ao pé do cavaleiro, e entrou, com uma tromba, no meio da sala. O dominó não falou, fazendo que
num desembaraço, a indagar-lhe dos mutuns caçados, das capivaras, não conhecia o viajante. Aqui tem novelo, se diz o seu Floremundo.
quantos bois desatolou no verão, se ia ver no Jabuti os zebus de — Deixa que já te conheci, minha irmã. És tu, sim, Graziela.
Minas. Sem tirar a máscara, trombejou:
— Então que deu jenipapo, não? — Que tu vieste fazer, Floremundo?
— Jenipapo que é imundice. — Aviar esta receita de um senhor que passou por lá,
— E pro carnaval, fica? aconselhando homeopatia. Vou amanhã no Bacelar.
Seu Floremundo — quem era ele pra ficar pro carnaval — — Isso de homeopatia eu sei de quem a invenção. Quem doente
festividade que nunca usufruiu, nunca morou onde sempre se festeja. em casa? Papai? Mamãe? Felipa?
Mesmo, por nascença e índole, era bem desanimoso. — Tu sabes quem.
— Carnaval que eu sei, que me lembra, é dum, mas faz é — Aquela partiosa? A inventadeira de doença? De novo com as
tempo. Foi na boca do lago, chovia que chovia, a água então, olha a partes dela?
altura. Mesmo assim no jirau rente d’água jogavam a modo dum — Deixei ela com bem febre.
entrudo. Eu zinho na boca do toldo eu só que espiava, por um — A febre dela eu bem sei. Eu sei a febre.
desenfado. Era que era fio, Deus o livre, mesmo assim aqueles Luciana dada àquelas febres, a tal tonteira, umas dores de
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repente. Nisto fonfoneia o carro, o dominó — eu sei a febre dela, eu chamou o Alfredo para o mais afastado:
sei a febre dela — desceu e só voltou de madrugada. Encontra o — Vamos nos arretirando mais pra cá um pouquinho pois me
irmão já de pé, fumando na janela sobre as folhas de zinco onde umas deixe ir lhe dizendo. Foi na mesma noite do confete no piloto, assim
roupas serenavam. pelas nove, o Utinga não sei se apitando, eu bem na beira do toldo em
— Olha, Floremundo, não te faz de boca quente. cima, ralando a onça de tabaco. Me virei: pelas proas, lado do
— O irmão — aqui tem novelo, aqui tem novelo — não necrotério, um zunzunzum. Firmei moa vista, era. Era que era então
respondia. que só visto. Veio vindo. Um bando daquelas umas. Com voz de
— Te digo isto não por mim, por mim que não é, vou logo te mascarados, ver piaçoca no lago. No geral vestidas a caráter. Tinha
dizendo. Mas dizer lá não carece, que eu sei o que estou falando. então uma, coberta numa plumagem, asa de anjo, escorria dela um
Melhor dado por não visto. luzimento, valia ver. Sustentava uma lança, mexia na asa, arpoava a
— Ora, cera! que tenho eu com o teu dominó e tua máscara? lança e eu daqui só te olhando, só te olhando. Até que uma outra de
Sim que lá tu és sempre de sermão no bico. É só a Luciana mexer um cagão preto e penacho em riba das cadeiras, me espirrou certeiro a
dedo, não sais de ferro em brasa? lança-perfume, me bisnagou no meio mesmo do meu olho, Deus o
— Tu pensa que é uma coisa e é outra, Eu? Viro o juízo? Viro? livre, me caiu o cigarro, até hoje sinto arder, vai espirrar, com licença
É ou não é? da palavra, na que te pariu, quis dizer, não disse, viola no saco
— Não me compete. escorreguei pra dentro da camarinha. Então que num desatino iam que
Chega o irmão na fazenda. iam tomando conta dos barcos, das canoas, se enfiando pela
— Floremundo, do carnaval, mano, tiraste o teu fiapo? mastreação. Pula nesta verga, ali no rolo do cabo, lá estão por cima do
[34] — Junto de mim passou um mascarado. Um dominó velame, roçando no gurupé, aquela na boca da caranguejeira, bateu na
amarelo. Foi num lugar impróprio. Passou tua febre? barrica d’água, o senhor tire um juízo. Estou lhe dizendo, vira e que
— E a Principala, já botando o dente de ouro? mexe, iam passando de convés em convés, bailéu em bailéu, se-
— Botando. gurando o cordame, gritavam já das popas, olha aquela escanchada na
A uma palavra de Alfredo., seu Floremundo saiu do pé da irmã cana do leme. Queriam içar as velas, a estripulia, veja! As donas faz
deitada na rede, e veio e admitiu, compassou a voz, batendo o de conta que aquele canoal do Ver-o-Peso era delas, salão de baile
carapanã pelo cangote: delas. Deixe estar que [35] corria o frasco, penso eu que até aquele
— Aqui em Belém, é verdade, me deixe me lembrar, espere... fumo oculto uns e umas fumavam, não duvide, fedia que fedia a
Sim, só vi, uma viagem, andavam vendendo no Ver-o-Peso, rente das bebida, quem tinha serpentina jogava, quem não tinha dançava em
proas, numa enfiada, desconforme de caro, um horror de máscaras. cima do toldo, uma dançante dobrou o espinhaço pela borda quase
Sim, que no toldo da canoa freteira, a Zéfiro, cobriram de confete o quase na lama, não fosse a munheca do tripulante. Outra dá uma
piloto que dormia na camarinha. Mas bote confete, tão em topada na panela do mapará cozido, pulam no porão em cima dos
quantidade. Fantasiaram o dormir do homem. sacos de carregamento, invadiram camarinhas, Se amontoam mas oh
E com um olhar para o alpendre, ganhando uma cautela, donas impossíveis, no rebuliço estou que bebiam demais, penso eu.
17

Faziam dali, penso eu, o arraial delas, de suas folias, penso eu, o Puxou um fôlego.
terraço do Grande Hotel delas, o largo da Pólvora delas. Então se — No que deu então aquela calmaria, o piloto se acordou
ouviu deste barco, daquela canoa, do lado do Mercado de Ferro, da cuspindo confete: que foi? que foi? Olhe, até que não era para estar
parte onde sempre é a louçaria de barro, do encosto das geleiras, es- lhe contando ao senhor semelhante passagem. Que feder, o Ver-o-
trondou, só o senhor vendo, aquela goela só: Ei cunhado! Ei cunhado! Peso fede, o trabalhar fede, ali a tripulação não larga de mão o canoal
A zona embarcou toda! Larga o cabo! Tira a prancha! A zona carrega descarrega, espera maré, entrando, saindo... Mas naquele
embarcou foi toda! Suspende o traquete, cunhado! só faltava a maré instante no que botei o nariz de fora da camarinha, com perdão da
encher, que a doca estava seca, as quilhas na lama, com siri e tralhoto palavra, que tudo ali fedia a fêmea, com lança-perfume bebida e fumo
lambendo o limo das embarcações. Eu dentro da camarinha, Olho ah fedia e corre inda aqui pela entranha o grito daquela menina.
ardendo sem poder abrir, assim mesmo espiava com o outro Olho Calou-se com muito embaraço e igual reserva. Calou-se.
pela porta, pela vigia — o piloto dormindo dormindo debaixo do Calado. Está ouvindo o grito da irmã?
confete — e cada vez mais lá por cima as donas na danação, espie. A modo que foi ontem, a irmã arranca os três dias da folhinha,
Pena é o senhor não ter, por uma comparação que fosse, Subido num vai ao tabocal jogando terra nos bichos de criação: jogar nosso
daqueles sobrados, naquele do seu Antonico Silva, com o holofote da confete, senhoras e cavalheiros. É uma batalha. E aquele repente em
Marinha em cima dos mastros e dos toldos, só pra tirar uma vista. que se enfia no velho fraque do pai, a máscara ela mesma fez, a
Que o que se viu por dentro daquele canal foi feioso, foi foi feio. cavalo para o pagode dos Ervedosas, tamanho sábado gordo, no Mutá.
Nisto a polícia, crau! a debandada, chega a patrulha, crau! ferra o Precisou ir atrás dela, escondido da mãe, esta na fiúza que a filha só
pano, rompe a cavalaria quebrando os potes de barro, o mau tempo tinha ido desinflamar um pirralho no retiro com garapa de aninga.
em cima delas, gritavam debaixo dos mastros e dos cabos e Flechou o galope atrás da irmã. Desajuízo dela era mais de
aquelazinha com um diadema e Um manto todo de cetim vermelho contrariação que lhe faziam de não poder pôr o pé na cidade? Só?
que se pôs a gritar? Me dá essa bijarruna, me deixa me esconder Estava entra-não-entra no pagode, oculta num mirizal, ali agachou-se,
debaixo da bijarruna, meu pai era da Vigia, quem é aí os da Vigia? de fraque e máscara.
Me escondam na bijarruna. Sou da Vigia, meu pai era piloto, me deu — Mas Luciana!
que foi uma saudade do meu pai, Minha Nossa Senhora, me O salto que ela deu para o pé do cavalo! O rosto que saiu de
arranquem deste manto, me arranquem deste diadema, me levem onde debaixo da máscara! De volta, se agarrou na tranca da porteira, com o
a canoa do meu pai se afundou, inteirou seis anos, eu era inda menina gado preso no curral fazendo aquele pião. Entrar em casa, cadê? Olha
bem menina, lá na Vigia, eu era, sim, eu juro, eu juro, me cubram mea mãe, Luciana, olha a mea mãe, ela que já não anda muito
com a bijarruna, me cubram com a bijarruna. Rasgou-se o manto, o católica contigo. Ninguém te viu? Ninguém te conheceu tua cara
diadema abaixo, levada pelos soldados, foi no grampo. E foi que debaixo da máscara? Não se desgarrava da tranca. Brusco, destrancou
parecia só ficava aquele suplicar dela no Ver-o-Peso, pelo carnaval a porteira, deixando o gado sair, e dela iam saindo também as
inteiro, ela só, [36] gri|tando. E eu querendo um poder para guardar a lágrimas de raiva, lhe tirando o alvaiade do rosto. Numa caveira de
menina na palma desta mea mão. boi, espetada na cerca, com os urubus olhando, amanhece a máscara.
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— Seu Floremundo, tenho em lembrança, não sei direito, era Pois duvida. Quem hospeda o pai, hospeda a filha.
em casa em Cachoeira. Dum mutum aparecido, bastante tempo. Sã Agora é o filho dela, tão dela, sossegado sem sossego, chegando
me lembro é dele na varanda voando escuro. Era? O senhor que de uma noite sabia-se lá que noite. Mas palavras do moço a rua
levou? latejava, rodando aí pelas horas de Belém a todo vapor. Que trouxe da
[37] Seu Floremundo esfiapou pelo bigode escasso o sorriso, a noite o menino? Um tanto mais sobressaltado que curioso, a indagar
escutar com atenção tristonha. Com uma palmada no pé do Ouvido de mutum, de capivara e de carnaval, por ser da educação, do bom
matou o carapanã. Lia-se nele um repentino, manhoso gosto de só acolhimento indagar. Na pele do rapaz, se vê, as baunilhas da mãe,
escutar. Bastante queimado era. Castigado de campo, curral e caça. aqui e ali, os ocultos da mãe, principalmente daquela, aquela tarde, na
— Trouxe o guarda-sol? porta do chalé. Do pai era o rir nos olhos, o puxar assunto, o abrir um
— Havera então de não trazer? Aqui sol dói. livro. Também a outra, nesta casa, era de estar em [38] cima de sua
— Também a chuva? leitura, moça de se dizer: esta sim, também... Também lá uma pessoa
— O que sei lhe dizer é que a chuva aqui amofina a gente. criada entre bois, porcos e búfalos no Jandiá, nascida dona desta casa,
Preferível sempre abrir o chapéu das águas. cobiçou esta cidade. De sua cobiça nasce esta moradia. Agora? Pelas
O cavaleiro arriava o ossudo. ombro, varando a sombra com os tripas de Belém correndo, onde todo dia é noite.
seus ossos altos. Se distraía um pouco escutando esse zinho trazido — Uma vez, seu Floremundo, levei de Belém um jabuti. Joguei
para o estudo, esse empinado, mal quebrando o ovo e já se fazendo de no rio. Não duvido que desembarcasse no Mutá atrás de ficar entre os
galo. Viu ele piquixitinho no braço daquela que, nem por ser de pele seus, seu Floremundo, que eu sei que o senhor cria.
fechada e esposarana, menos senhora é. Até lhe deu, mais que uma Seu Floremundo pigarreou breve:
surpresa, um respeito, uma cerimônia ao vê-la pela primeira vez, na — Não, senhor, seu jabuti inda não chegou lá. Chegando lhe
porta do Major. Pode entrar, pode entrar, mas suba, seu Floremundo, comunico. Será bem recebido.
casa às ordens. Com a criança no colo, o rosto — cor, boca, voz — de Sorriu, tirando o paletó jegue, e toda a ossada do peito apontou
baunilha feito. Aquele sal no café, tinha certeza, se não procedeu dum sob a camisa, esta um presente do pai, pelas mãos de Luciana
engano, de vasilha, foi por pinima daquela tapuia por certo hoje marcada, foi em dezembro, dia de Nossa Senhora das Candeias, a
espalhando rio abaixo a proeza dela. O chalé era digno de hospedar o acender a vela no oratório, a candeia de azeite na porteira do curral,
Coronel Braulino quando Interino do Município ou presente à numa lonjura de meia légua alastrava um fogo, fogaréu alto, a parição
assinatura do Orçamento, não as filhas que nunca iam. Pois na daquela égua alvaçoa era por horas. Nesta camisa, a letra marcada, F,
Camamoro, aquela preciosidade do Secretário, a pretinha metida a me rói muito doído. Quando marcou a letra, tinha no braço um fogo
branca que o Major sustenta, a pé rapado que virou família, a selvagem. Até imagina, imagina que ela foi, aquele dia, depois, pelo
negrinha de pé tuíra que ele carregou do Muaná na garupa, ouvia raio arrebatada. No que apeou no curral, ele entra em casa, olha para
constante das duas irmãs maiores e da mãe sob o silêncio do pai. Da o quarto escancarado, dela restava a sandália virada que desvirou,
caçula, o que escutou só: se eu fosse agora em Cachoeira, mano, casa avança para a mãe sentada na rede, de olhar em cima dele, as mãos no
onde eu só ia, outra não era sótão a casa da D. Amélia. Duvidando? colo, a muxinga em pé. Graziela limpando o bandolim que nunca
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tocava. Felipa, das folhas do alecrim tirava um sumo, O vento abre e olha que era outra apresentação de homem, uma pessoa que se sabia
fecha porta abre e fecha janela, debatia-se casa adentro, era rincho, que era, o pastor só faltou foi se rojar diante da caçula — andaram
bicho piando, aquele soturno dos lavrados, despencou um jenipapo, contando o contrário — e ela com um não e um aperto de mão,
rangia o tabocal, todas as vozes dela, muitas, muitas, dentro de casa embora andassem espalhando que galopou pela beira do Mutá atrás
soprando por baixo da rede da D. Jovita que não se embalava, o olhar do recusado, coisa que se põe em dúvida. Felipa, depois do seu tiro na
em cima, as mãos no colo, a muxinga ao pé. Depois, nem adeus macaca (tanto tempo já!) ao estranho que chega, acaba em sim,
depois, nem forças para um dia procurá-la, flechar um galope até ao senhor, sim, senhor, a voz pingando: então conforme seu trato, lhe
Mutá: ó do barco! ó do barco! está aí, ai no toldo aquela mea irmã? autorizo, O seu Cipriano escrivão trata dos papéis. Também acho que
Viram? Com efeito, num galope chegou na caiçara e até sentiu a irmã pode ser já, luxo não carece, do meu enxoval eu me encarrego.
embarcada na caiçara, içada no cabo pelos cabelos, descida brusco no Parecia até vendendo um dos seus capados, o rosto crespo, piscando,
porão, rês a outro consumo aqui nesta cidade que tudo come, tudo um argueiro em cada olho, arre que por esperar sentada até que veio
obra. um. Não que acesa por marido nunca foi, nem por desesperada, não é
— Com sono, seu Floremundo? do seu calibre, então, então? Fogo no teu juízo, Felipa? O caruncho
— Até que não. Pensavazinho um pouco. que te comichou, sua cega? Viste a Principala se rindo? Viste a
— Então que tal um pulinho pelo quintal? Principala só consertando a goela? Viste depois a Principala te cobrar
— Só não querendo... aqueles dez contos que estavam na tua mão? Viste a Principala te
[39] Fez ele, obediente, pois fugir daquela mesa de cozinha, dizer: daquelas jóias, Felipe, ali juntas, só uma que é tua, tu sabes. E
daqueles quatro engasgados num surdo escândalo, fugir, queria, sim, tu disseste, sem mágoa nem suspeita: é, sim, Graziela,
depressa. Ele, a vagarosidade em pessoa, tudo num vagar fazendo, Estuda um pouco o pretendente, Felipa. É ou não é um do
bem do bem vagaroso, a maré que é a maré, enche tão depressa? Arienga, comércio dele lá fechando as portas, cortados seus
devagar no remo, em riba do cavalo, no ir à caça, no preparo de uma aviamentos no Antonico Silva do Ver-o-Peso e do Pinto Alves, do
ferra e de um embarque, devagar as suas armas carrega, o mundo não Porto do Sal? Sobe o Arari atrás de viúva que o [40] livre da falência,
carecia pressa, e até mesmo desenrolar os novelos de sua família era chega no Camamoro: ah esta aqui, esse refugo, me serve, eu peço é já.
sem avexame. A Questã anos no Foro, naquele areião guloso que era Amanhã, Felipa vai ao comércio aviar-se de paramentos que,
o Advogado, indo pro fundo, papel e boi, quanto mais tempo dure, por esperarem tanto, amarelaram na prateleira. E aí nessa mesa,
mais orgulho dá ao pai, a caçula trazida por um raio ou por um fado, debaixo da luz do inglês, se prolongava o que ouviu e viu na
de quem se tira esta casa e por quem se acaba o sossego do irmão, O Camamoro e durante a viagem na Lima Júnior fretada: é a Chefatura,
casamento — tudo, menos esperar por Isso — de Felipa de tamanha é a Justiça com a espada no endereço, la para o endereço com a
idade, a mais velha. Pois esta semana passada aparece um que vê o carroça, e arrecadar tudo, ladra! A mãe, a tal palavra, endereço, nunca
gado, sabe do dinheirinho dela no Banco, bastante foi o conversar usou, agora ouvido nas sete cartas. Graziela relia o sobrescrito:
com ela um par de tempo, pediu a triste mão da carcomida Não, endereço. Travessa da Violeta. A mãe escutava.
Felipa, eu podia dizer, disse? Te lembra daquele pastor protestante, — A letra? Dela?
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— Parecendo que sim, mamãe. De quem mais. Até que assim come uma só letra, não me salta um pingo. Me informa das datas.
assim a caligrafia. — Espere, mamãe, que vou verter água.
— Estou te indagando? — Inda mais essa. Aproveita me enche meu cachimbo.
— Dela, sim, a letra. Cobriu-se, na rede, com as varandas, a gargarejar de furor.
— Sabes? Quem te disse? A Justiça vai saber. Possível que ali nas cartas esteja um rastro da renegada.
Tudo porque Graziela, vai, enfia a garra no bolso do velho, no Em tudo por tudo, o velho, foi, carimbou a sentença contra a
casimira azul marinho trazido, meu Deus, que distração, de caçula, sem carregar na mão. Uma palavra, pelo menos, dele, o filho
Cachoeira, traje do Interino, feitio do Leônidas, guardado sempre na não escutou. Conversavam o trivial — gado, obras no retiro, o atrás e
mala grande do chalé do Major Alberto. O velho trouxe a casimira o adiante da Questã — bulir no assunto, nem por sonho. E foi, uma
para um casamento no Setepele, ia servir de padrinho, foi adiado, tarde, subiu no alpendre, fedendo a cavalo: papai, me dê uma opinião,
deixou a roupa na fazenda. Graziela dá Com as sete cartas de Belém e então. Não convém saber o certo? Indagar, cartas na mesa, da caçula
ainda no mais aquele retrato, Foi pegar nas cartas, corre, na mão da o que foi visto mesmo? Um investigar? O pai, debruçado no
mãe. Lê, Graziela, que te falta? pra isso te mandei ensinar, Graziela, parapeito, aninhava os dedos na barba sem nem dizer estou te
ao pé da mãe sentada na esteira, lia, leu, releu, é a que sempre lê, a ouvindo, meu filho.
leitora da fazenda, a guardadeira das chaves, documentos e segredos, D. Jovita — tal como a chamava Luciana quando via a mãe
chocando a voz, meio ralhosa no falar, a Principala. nada católica — suspeitava naquela amante do Marco da Légua,
Algum desgosto, umas tantas contrariedades, meias suspeitas, tirada do bolso do casimira, um caminho em que ia o pai até dar com
tenho dela, negar não nego, mas não me fere tanto, me fere é o receio a filha? Tramóia da perdida? Cartas falsas, escritas de mão esquerda,
que Graziela vem me dando, aqui tem novelo, me arrepia um para varrer da família todo o sossego? Por trás da rapariga do Marco
pressentir que me faz nascer um grude grosso azedo na saliva. da Légua, não estava o sumetume daquela capivara? Com seu rancor
O pai repuxava a barba, repuxava a consciência, obrigado a e repugnância da cidade, a D. Jovita farejava naquelas cartas um sinal
escutar, obrigado a esta viagem, arrastado pela família à presença do da amaldiçoada. Até que ponto o pai não sabia da filha? Sim, tinha o
Dr. Gurgel, do ex-Governador, ao peso das sete cartas, por tudo que retrato, era um porém. Graziela voltava a ler os documentos. No
sucedeu. Pelas sete cartas esquecidas no bolso, lidas alto, uma a uma, mesmo quarto onde esteve presa a Luciana, o seu Braulino, só de
com o endereço no sobrescrito, o pedidinho para tirar — sim, meu calça de pijama, a barba escumando sobre o peito de guariba velha,
anjo? — no Ferreira Gomes um jogo de louça, a caçarola, e o abria a janela para o curral, debruça-se, vira-se para apanhar da mão
milheiro [41] de palha para a barraca, o colar e o pano do robe no de Felipa a xicrinha de café, a ouvir a leitura na varanda, desce para o
prestação e o resto a pagar pela imagem de Teresinha de Jesus. curral e aquela leitura o acompanha, anda por uma distância e sempre
“Tenho também de botar o pivô, coração”. Estás ouvindo, cachorro? ouvindo a Graziela. Voltava e agora numa sucessão de ecos, meu
rosnava a D. Jovita para o Bogarim, o cão de caça. Escutando, seu velho meu vovô. Se lembre, meu filhinho, de sua filhinha, dos
sem-vergonha? indagava do papagaio que pousava no punho da rede. carinhos que lhe dei na sua barba linda que só eu sei pentear, meu
A crua analfabeta mandava: Me diz de novo essa passagem. Não me vovozinho. Não é assim que me pede que [42] eu lhe chame, meu
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vovô? Lido cru e grosso, como quem reza terço, pela Principala, a voz Seu Floremundo muito sossegado:
da amante escorrendo pela casa. — Da carne deles, do mutum, nunca provou? do mutum?
Seu Floremundo saltou de suas cismas: Nunca?
— Era um mutum açu, o que levei pra casa de sua mãe. — Ah que o meu tio Sebastião falava...
Casa de seu pai, quis emendar, não emendou, satisfeito. — Que era ver carne de peru?
Lá da mesa pareceu sair um regougo. Os dois aqui se caiavam. — Adivinhou. Peru.
Seu Floremundo pensou: o caminho, quem sabe, que o velho via, ou [43] O gritinho da Nini: uai, vocês ai conversando com as for-
dela se aproveitou, ou aproveitado pela amante, para tirar da toca a migas? Enxugando o quintal? Fizeram promessa de levar, sereno?
perdida. — Comer mutum, lá em casa, só mesmo uma pessoa lá, este seu
— Seu Floremundo, não me lembro bem. Bem bem, não. criado. Que aquela mea irmã, rá! Nem mesmo o cheiro longe. Dizia:
— Ah mas já faz bote que tempo. Peso de tempo. Dei também quem come mutum come gente.
um pro seu Saiu, esse um mutum pinina, com topete senhor topete. — A caçula?
Um penacho que o mutum tem, serve pra encastoar em ouro. Seu Floremundo disfarçou, mirando as plantas, passou a mão na
No balaio da caçula, agora da Graziela, aqueles tantos folha do tajazeiro.
encastoados, o trancelim, a corrente... — Mutum, em casa, foi, par de vez, o meu peru.
— É preto-preto. Lustroso do lustroso. Trancou-se para lembrar só consigo o aniversário dela, sim, sem
Meu Deus, da mesma tinta e lustro o cabelo da caçula. Olha, nem um festejo, assim sempre foi. Aquele assado de peru apareceu na
mano, cor deste meu cabelo e cor do penacho do mutum tirado é da mesa, presente de uma comadre dela do Mutá, trazido de boi, dentro
mesminha tinta. Quando num carnaval em Cachoeira, vou enfiar na da panela de barro. Luciana o que só comeu. Mas então comeu! Pois
minha fantasia um penacho de mutum. Não sacode a cabeça, mano, era mutum, sua-diz-que-nunca-hã-de-comer-mutum, pois comeu
que eu ainda vou, sim, contigo, tu me leva, me fantasio na casa de D. mutum, falou bem brando o irmão. A irmã tomou aquele sobressalto,
Amélia, oh que esse meu irmão! Que triste irmão és! Penduraste a tua se enfarruscou, boca não mexeu. Minto. Falou pelos olhos por onde
alegria no pé do urubu? mais falava.
Também Alfredo via nos tios, um pouco na mãe, a cor do — Canso eu de comer mutum.
penacho do mutum, lustroso de rosto e sossego no banho, beirada e A voz se tornava compassiva, nem o caçador nem o ferrador de
ladainha, no baile de Santana, no leme do barco, no lombo do cavalo. curral que conversava nem o andante entre os búfalos e as trovoadas,
Mutum e tios, da mesma família. farejando pelos encobertos, com um pingo de lua em cima do piriá, o
Tinha o seu Floremundo parecença com a nunca vista Luciana? rastro das onças Alfredo queria escutar nessa voz o perdão a ressoar
Do mesmo pai, Luciana e Floremundo? Não podia conceber. Em longe, até que a desabençoada escutasse.
Luciana aquela insubmissão, aquele frenesi para o risco, aquele — Uma vez, beira do rio, vi um casal. O mutum macho fazia
brusco desajuízo que via, um pouco, em Ana, e por um instante, um pitiu, pitiu... pitiu. A fêmea: can... can... Peguei, levei, pedi: cria eles,
instante só, na Esméia ao saltar a janela para dentro da sala. mana?
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Aqui seu Floremundo vergou-se um pouco mais, estalou os Falso banho, enganosa batata, lia nos olhos de seu Flora.
dedos, coçou-se nas costas, olhou as alturas da noite. mundo.
— Deixa ar que eu crio, disse ela. Um dia, o macho derrama da Seu Floremundo disse o pau de que era feita a cerca aos fundos,
cuia a garapa que a mea irmã fazia da batata da aninga. Ela olhou para a laranjeira desfolhada com aquelas quatro laranjas tão
costumava levar a batata da aninga no quente das cinzas, depois maduras lá na ponta do galho mais alto, como se para amadurecê-las
lavava, ia espremendo, ia espremendo, até que desse um caldo tivesse a laranjeira perdido toda a folhagem e o fôlego. D. Dudu
igualzinho garapa de cana, só que sem a doçura. Com isto Luciana... preferia vê-las podres a apanhá-las. As laranjas deviam estar anotadas
Escapou como um gemido. Há quanto sem soltar o nome. no caderno da Graziela. Seu Floremundo levantou a cabeça:
Podia? Varrido não foi tudo em casa o que lembrava a caçula? Vem o — Tem que tem chovido, não? Por lá nem se fala, é chuva que
rapaz, esse — as coisas! — me tirando o nome da boca, me espreme fede.
um pouco aqui por dentro. Pouco é mas tira o tamanho. Tirou o lenço, enxugou o rosto, como se ainda estivesse se
[44] Alfredo esperou, apoiando o pé na cerca, o coqueiro enxugando daquelas chuvas de lá e das saudades de Luciana. Dobrou
rangia. Lá dentro a sessão em silêncio. Para entrar no quarto, sem o lenço com cautela.
nunca ligar a luz elétrica, D. Dudu acendia a sua lamparina. Nini — Também se criou um japu. Ela criou com gema do ovo. O
gargarejava no parapeito. japu pintava! Furtava os óculos do papai, o cachimbo da mea mãe, as
— ... com a garapa da batata da aninga até que curava viventes pulseiras da Graziela, tudo levando no bico. Ninho dele é como um
que sempre apareciam na fazenda, inflamação de um, inchaço de balde, no bojo põe o ovo, a boca do ninho que nem boca de cachimbo,
outro. Só indagar da mea tia Santa. Indague, que ela lhe diz. nunca chove dentro. Bicho que era bicho que tinha em casa! A caçula
Padecente no cuidado dela, dessa mea tia, padecente que inflama a era muito xerimbabeira. Os bichos naquele pegadio com ela. Chegou
barriga, ela cansa de tratar com aquele caldo. Também quanto a de [45] amansar, a bem dizer debaixo do sovaco, um acuatipuru en-
qualquer batata agreste, Deus o livre, aquela mea irmã tinha a modo carnado, que estoriam que encanta folha de qualquer mato, virando a
de uma querença. Daquela batata, de que se faz um banho, do vai-e- folha em pé de milho, em banana.
volta? Bote! Ralava passava pelo corpo do braço. Assim como tu Faz um milharal daquele mirizeiro, e já espigando, anda!
vais, tu volta, assim como tu vais, tu volta. Assim. ordenava a caçula. Quero agora mesmo desta sororoca um cacho de
Alfredo: banho do vai-e-volta, vai e volta, ralando a batata no banana inajá, anda!
banho. Alfredo andou ciscando no terreno minado. Recolhido na
— E conhecido. sombra, aquele-um alto calou-se. Das asas do mutum, do ninho do
— O que, seu Floremundo? japu, da garapa da aninga, do banho do vai-e-volta, do acuatipuru
— Estou lhe dizendo da batata do banho. Sua mãe bem que encarnado, safa a irmã do seu Floremundo, encastoada em saudade.
sabe. Mas, homem, onde é que então estava que não acudiu, não arrancou
Alfredo mentiu: da mãe a castigada, com teus ninhos, com tuas penas, tuas cordas, os
— Mamãe é que usa. xerimbabos dela, não armaste a rede onde a tua irmã ficasse? Onde
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estavas que, em nome dos bichos, não trouxeste de volta a ama deles? — Por parte de mamãe, sim.
Ninho de japu, nunca chove dentro? Mas aqui em cima de Luciana, Alfredo concentrou-se: Então Luciana é sangue de Menezes? É
chove, chuva de Belém, esta, sim, fede, seu Floremundo. Onde o teu Menezes? Oh família por toda a parte!
remo, cavaleiro do miri e da canarana, para recolher na canoa a moça Seu Floremundo se assoava.
pela família vomitada, deixar a irmã onde ao menos alguém dissesse: — O senhor visitou o preso?
não te escasseio o meu jirau. A mãe no chalé poder ficar pode, minha — Na última viagem. Era como se eu fosse pedir perdão em
filha, que teu juiz não sou — podia recebê-la. Agora, sem o vai-e- nome do sangue que corre neste meu corpo.
volta, sem o milho e a banana que tanto pediu ao bicho encantador, — Contra cobra, o senhor fechou o corpo?
agora, nós dois juntos, seu Floremundo, nesta lamentação disfarçada, Alfredo puxou por malineza, assim de súbito, sabendo a cobra
viraste, irmão ossudo e bimba, num japu desassado, sim, sim, já faz de que falava.
hora que te espio, que descascas tua ferida, seu triste. — Segurozinho sempre uma pelo pescoço, ela viva. Vezes, fiz.
— O senhor então que de espingarda atira é bem, não? E eu que O corpo me fecharam mas não foi no Arari. Se deu numa viagem, lá
nunca um tiro dei. no Soures, uma viagem, andava me queixando das urinas.
— O senhor, novinho que é, andando pelo mundo vai sortir — O mestre de Condeixa?
repleto a sua memória. Eu, não é por me gabar, boa mira Deus me — Fui bater na porta dum, lá de Condeixa. Tem ouvido? Dum,
deu. Mas que tem por aqueles campos e beiragens uma quantidade não. Do.
melhor que eu eh isso tem eh bote! Peso de gente. Quando der prazer — Mestre Jesuíno.
— mas vá! — de passar um dia por nossa casa, às ordens. Do — Mas o senhor já me anda bem adiantado como coisa que o
pouquinho que atiro, minha experiência lhe passo, a pontaria é pouca. seu estudo sempre soltazinho um tempo pra saber do que se passa por
Escondeu as mãos, se fez mais descarnado, mais torto, como se aquelas cabeceiras. É. Ali no seu Jesuíno, sempre chegando um povo
sustentar a cabeça lá em cima fosse muito. de gente.
Um assunto de pescaria, um resvalo nas lembranças da irmã, o Ao pé do açaí coberto pela trepadeira, seu Floremundo
nome do Major Alberto, se o Leônidas, o alfaiate, voltou a montar sua suspirou, a enxugar o rosto agora com a manga da camisa.
alfaiataria de bubuia pelo Arari, e veio o caso daquele que matou o — Me curou de cobra, estou lhe dizendo, O nome dele corre.
fazendeiro, foi pelos irmãos do morto obrigado a tirar da cova o No silêncio feito, o comprido fugiu, voou até onde era o curral
defunto... da fazenda, aquela tarde, a ver a irmã chegando a pé, puxando o
[46] — Ah é arriscoso conviver com eles. Isto eu sei, é arris- cavalo pelo cabresto, se dizendo mordida de cobra.
coso. Não contesto. — Conheceste a cobra?
— O senhor se dá bem com eles? — Não. Mas, mano, não sinto nada-nada.
— Os Menezes lá de cima? Me dar bem, faço parecer, que é — Querias sentir? Vou já-já chamar mea mãe. Pra dentro! Te
meu dever, pois se são parentes. recolhe, não te roda a cabeça?
— Os Menezes? — Não. Chamar mea mãe, não carece. Sinto nada-nada. Não
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carece. atoleiro, não te deram o Ginásio, por que tudo te acontece? Sua fala-
— Querias sentir? Daqui com pouco vais ver o que é não sentir diante-do-espelho, vai, vai, vai falar de novo no espelho, vê o que te
nada. A vista turva? Tonteira? acontece. Não faz nem ontem era aquela ferida na costa do pé, não
[47] — Nem, nem a menor... Vi o bicho se enfiando... fosse a casca de ocapurana, não secava. Não está te inchando a perna?
— A modo que desejavas. Te escurece a vista?
— E pálida, estou? — Olha, mano Floremundo, pra nossa mãe, nem um pio.
— Me deixa então ao menos chupar o lugar da mordição. Dá cá Inchando? Compara as duas, esta e esta. Está?
tua perna. Bem nascida de perna, as duas lisas sem um senão.
— Agora tarde é. Me vendo amarela? Ou não estava venenosa? — Me escurecendo a vista? Vez de escuro, vejo é tudo um
Ou sou fechada de nascença? alvume, mas branco-branco que até teu rosto é, criatura, tudo alvo,
— Se deu onde? mano!
— Na volta daquele juquirizal. Descalça pelo curral meteu fundo e a gosto o pé na bosta verde,
— Dá cá, xá ver tua perna, estripulia. Por que que tudo te girou, deu um salto — a cobra é que a esta hora [48] entre|ga a alma
acontece? ao diabo — tombou Como desmaiada, O irmão acudiu, ela se fazia
— Estás vendo? Nem sangue nem um arranho. Doer nem defunta, o pé esverdeado da obra, o cabelo desgrampou-se. Viu que
ardume. Como é que nem ardume? ela estava pegando uma feição outra. Pegou a mão dele para levantar-
— A modo que desejavas. se.
— Amarelou meu rosto? Estou uma cera? Meu veneno mais — Passou.
forte. Eu mesma precisava de uma dose. Então sem um pingo nas faces, olhando sério para o irmão.
— Nem que cobra era, nem nada? O dente de jacaré que te dei, Séria. Aquela — que ele uma vez espiou — a falante diante do
aquele, algum dia usaste? espelho, olhando o espelho no escuro — menina isso não presta!
— Na hora dei foi um pulo e já que já montei, flechei um Séria, como se daí em diante começasse o veneno, O efeito que foi
galope, aqui estou eu. Mas que cobra era, isso era, era. O dente? mais tarde, foi? No tabocal? No raio? Quando esfolada na surra?
Aquele dente? Ah, meu irmão, mutum comeu. Agora em Belém?
Montou de novo — mutum comeu! mutum comeu! — ga- Outro assunto de caça, seu Floremundo, voz de folião de santo,
lopeou, galopeou. De com pouco ela se apeia: ia rezando:
— Te arreda de mim que o que transpiro mata. Agora mim que — ... sempre esfrego pimenta no corpo do braço, na batata da
vou me virar peçonhosa. Quem eu morder, rá! Olha o meu braço perna, no sovaco, passo a ponta da malagueta nos cantos do olho. Pra
suando do bicho. Empeçonhei meu dente. dar sorte numa caçada, não tem, Mas bem, como ia lhe dizendo, eles
— Tranca essa tua boca, te recolhe, ou és mesma de nascença? voaram...
Ferrada de arraia, chupada de morcego, escouceada de vaca, com — Voaram?
cicatriz de taboca, mordida por piranha, jogada pelo cavalo no — Sim, estorio aquele casal de mutum. Minha irmã tratava
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deles com caroço de açaí, com fruto de seringueira. Comiam. A tudo no bolso da calça, pendurou o paletó no braço, deu um trago
moela do mutum mói tudo. Precisava muito dessa moela, dizia a forte, deu um passo até ao limoeiro, Alfredo sentiu que tinha se
minha irmã. Mas bem, voaram. Voaram de casa pra dormir no galho adiantado.
baixo da mangueira. Minha irmã saiu gritando. Nessa ocasião batia Seu Floremundo olhava agora a cozinha de porta aberta para o
um ovo, dava a vida por uma gemada com farinha e açúcar moreno. alpendre, as cabeças da família boiavam na claridade.
Saiu gritando: Voaram! Voaram! — Japu é como japiín [sic], os machos ficam cantando na exi-
Seu Floremundo salta o minuto em que via pelas feições da bição deles e as fêmeas nos ninhos trabalhando.
irmã uma espécie de culposa ambição ou desabafo, não sabia. Explicação sem mais nem menos, para encobrir o que lhe
Voaram. Voaram. grudava a língua, chegava se escurecer por dentro. Meu filho, de tudo
— Que anoiteceu, ninguém cuidou, Veio a coruja, pois, não isto chega. Só moela de mutum mói tudo isto.
levou a fêmea? Aí foi que foi. Minha irmã, na mesma hora que deu Neste grude, nesta escurecença quando vejo, é ela.
por falta, foi fechando o rosto, foi me dizendo: te devolvo o macho Com ela na garupa, ou no banco da montaria, caçando marreca
antes que a coruja arranque ele da minha mão. A fêmea não foi voar, Debaixo do mururezal, metia-se. Deus o livre, ali sustendo o fôlego,
perdeu-se? Ela passou o dia no Jundiá, só voltou pela boca da noite vigiando as aves. Aquele bando delas descendo na baixa que se
com um feixe de pau saca! na cabeça, encheu água, tomou banho. Foi avermelhava. Então, inocentes do caçador e da vigia, começavam a
mexer no gramofone velho que não falava, só rodava mudo e ali ficou comedia delas. Por baixo do boi marrequeiro, com a espingarda que
como se ouvisse música. A fêmea foi voar perdeu-se. carrega pela boca, boi nem se mexendo o pau falou, o estouro, a
Tirou o cigarro, faltou palito, Alfredo lhe trouxe um tição. nuvem, o marrecal subindo, e saltando da água a Luciana com a
— Nossa Senhora das Candeias lhe alumie. embiara, era ver filma no fundo, com aquele dizer só dela
Alfredo apagou o tição na terra, escutou: toqueestoloque toqueestoloque.
— Também, com pouco, coisa de uma semana, macho, adeus Vendo o irmão sair para o campo (um cerco de jacaré ou
deu. Como sumiu, não decifro. pirarucu num braço), a oferecida:
[49] — No dia daquele raio, o senhor estava? — Ah até que sonhei, esta noite, que o meu bom do mano ia me
— Não. Caçava. levando com ele, agora. Dito e certo, vou? Toqueestoloque. Me
— Que raio, não? levando?
— Sim, senhor, foi. Cheguei depois. A faísca partiu o — Mas te guarda dentro de tua anágua, rapariga. Tu não carece
bacurizeiro em duzentos e cinqüenta e dois pedaços pequenos e de ir, oferecida. Tu és fêmea.
dezesseis pedaços grandes que dois homens não suspendiam. — Fêmea eu sou, que eu sei, a mãe sabe, toqueestoloque, o
— E antes? mururé sabe, os fundos, aquela cobra, que me sabendo donzela, não
— Que antes? quis me botar nem um veneno, toqueestoloque Que tem, que tem ser
— Sim, antes do raio. fêmea?
Seu Floremundo desatou a gravata, tirou o colarinho, embolou [50] Escorrendo tijuco, a ouvir o coaxo: me chamando, cigana?
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Montada no jacaré morto, aquela irmã, aquela irmã! Umas tantas deixou escrito na parede a tinta, depois raspado pela Graziela, e o
horas, ia estranhando ela, quem tu és? Comi pouco sal contigo, que é relógio francês, este, sim, que ali na alcova deve estar. No curral,
que tem que, te conhecendo tanto, num minuto te desconheço? aquele laranjo, Floremundo, essa araçã, escolhia. Animais que fossem
Arrasta o pirarucu no seco, escoa casco, no igapó atolou-se, distração mais filé, fizessem mais figura no matadouro. Ao piloto do barco:
dela. Principia a ferra, já ela anotando, tarde inteira, bunda na tranca, olhe, seu Levindo, cuidadinho com a criação. Não me deixe a [51]
testa no sol, o gado de era, a geração do ano, o gado de nossa marca, travessia tirar o peso dessa gente. Eles são a minha casa em Belém.
lápis, papel, a mão sabida. Por mais porca, até dum fofão saindo, Quanto custava ao irmão se desapartar das reses, criadas no capim de
sempre limpa parecia. No atoleiro, não no fundo, no raso conforme casa, tão debaixo da vista dele. Luciana era aquela volta da caiçara a
ficasse, a cabeça só de fora: é, é urubu, urubu, vem me comer meus se embalar alto no trapézio do alpendre, a se embalar, a se embalar, lá
olhos como tu come os do boi atolado! Vêm, seus sem-vergonha! dentro a Principala, embuchada, limpava o bandolim que só os ratos
Deus via, onde no mais grosso no mais bruto se encontrasse era iam tocando. Findo o embarque, desatraca, as varas n’água
rasgando seda. Sim, que com a enfiada das marrecas, ou pegando empurrando o barco, Luciana tirava o chapéu de pano, acenava:
caramujo ou se encharcando na canhapira, no juízo dela estava: ah eu Adeus, mea família! Gracejo que feria o irmão, saudoso das reses,
em Belém, ah ela em Belém. Ainda conto me sentar lá, naquele sofá com um juízo contra a casa, contra a cidade, aquela, que tanto
que vi no leilão, ela, esta, quer, Santo Amâncio, dobre essa mea mãe. enfeitiçava a irmã. Então veio, se espalhou, dos confins nasceu, pra
Querer sempre, este é o meu fraco. Embarca os bois, mano, que me outros confins foi, de boca em boca, estoria neste rodeio, escuta na
pague aquela casa. calçara no acabar o embarque com a lambada da abaeté goela a
A casa. A casa. A vitória contra a Principala. A vitória contra a dentro, cai no ouvido das mulheres, no Ouvido da Caçula, a falância
mãe. Que o pai, este, sempre escondendo suas preferências pela do vaqueiro Talismã. Ver o vaqueiro, ninguém via nem ouvia. Nem
caçula e sempre visíveis a toda a família, mansinho ordenou a ao menos a poeira do seu cavalo. Seu rasto, no limpo cerrado, seco,
construção. Relações na sociedade, a Questã, cabia ter casa em alagado, se deixava, só boi seguia. Do seu galope, diziam, um galope
Belém, as posses davam, embora a mãe tosse aquele rancor contra longe Ou no meio do trovoadal, na sacudição dos relâmpagos, na sela
Belém, e seu filho, mamãe, também, sim um azedume, já agora mais do vento, rédea no raio, furando o redemoinho. Um daqueles três de
um pouco e será mais. A caçula, no que soube, flechou o galope cavalo branco Marajó adentro, travessia de Soure, travessia de
campo arriba como se já fosse apear na porta de casa e abrir a sala Chaves, era? O relincho dos três cavalos, por cima do mar, se ouvia
para o baile. Agora, sim, se não era o Ginásio, era Belém, Belém. na Mexiana, por cima dos mondongos, se ouvia no Araruna. Talismã,
Desenha a Caixa D’água, borda o Teatro da Paz, o pavilhão do largo um dos três cavaleiros?
de Nazaré, a torre da Sé, a casa do Museu. Uma tarde, trazia no pano — Mano, comigo, toqueestoloque, vou de faca no dente ou
marcado o portão do Bosque. Belém. E a planta da casa, que veio, e o desapeio ele ou ele some comigo na garupa. Eu criança já bem taluda,
serão em torno das acomodações, fachada, mobiliário, lustre, não dormia com a tesoura aberta debaixo da rede? Ensino de uma
campainha. Dos jornais chegados, recortava os anúncios de leilão e velha sarapeca a minha mãe. Sou ou não sou salva do perigo?
marcava a lápis “importantes peças: arca e biombo chinês” que ela Aconcheava a mão na boca: O três vaqueiros da outra Banda,
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venham cá, que quero tirar a limpo se um de vós três é o que eu Outra Banda não veio uma aragem. Quantos cavalos cansou? As sela,
cismo. de que seleiro? Que fado é o dele, a galopar, sem corpo, sem tropel,
— Mas não brinca, não brinca, Luciana, Não brinca que Senão entra numa fechação, esparrama os búfalos, revira, sem ser visto, o
só pelo vento tu acaba prenha. laço no meio das contagens, espanta os urubus de cima do bezerro
Divino Espírito Santo! o que ele disse! Agora pese. parido agorinha mesmo, vaqueirando sem ordenado sem fazenda sem
Sempre os dois irmãos, um com o outro, não na vista dos pais, fazendeiro? Era conhecido o gado do mato na São Jerônimo, o
vergonha não tinham das palavras. Por ser de irmão, leal, nunca asselvajamento, bicho de pirizal, só pastando à noite, só pegado a tiro,
ofendia. Felipa, essa, a fala, precisava se adivinhar se tinha. Graziela, Pois vinha aquele invisível tocando cem reses da São Jerônimo para
maneirosa, fazendo a muito ajuizada, não se dava a graças, Só a dentro do curral, aí ficaram, de porteira aberta, rum sossego como
caçula, ocasião que havia, batia com a língua no dente. crias de debaixo de jirau. Chegavam os vaqueiros — isso é gado ou
[52] — Brinca, brinca, abusa das palavras e vê. Depois: que é visão? — e vêra! vêra! queriam tocar os bichos pra fora, estou lhe
isto na mea barriga? dizendo, quem disse? Quem disse que um só se volta, ou raspe o pé
— Agora isso, Floremundo, agora isso. ou empine o rabo, estira o focinho para a porteira aberta? A modo que
Os dois juntos, vinha a mãe; que tanto um tem com o outro, pra a boiada num encandeio a modo viam o aquele-só, pelo faro, pelo
se andarem assim no agarrado? Os dois, os olhos tamanhos para a aceno oculto: O certo que o curral só se esvaziou a uma ordem dele,
mãe. Uma tarde, a velha vai no Jandiá, vê, os dois tão esquecidos de onde? As reses não quebravam o mistério.1
conversavam. A mãe, de dentro dela a voz de onça: Floremundo! e [53] Luciana abelhudosa a mãe lhe negando a cidade por uma
arrepio na boca, destilava uma ira.. O espanto inchou no filho. influência, teima:
Luciana, esta o que fez? Enfia o pé na água, deixou que se deixou — Não me segura Floremundo, que vou espiar mesmo, nariz
mirar no igarapé que ganhava mais sossego fazendo as vontades com nariz lá fora com esse-um de que tanto contam a fama. Cismo
daquela todo o tempo se olhando no espelho. Quando a mãe saltou, que sou eu que ele anda atrás, Contrato os serviços dele.
até deu eco: como coisa que o pai dela é o igarapé, é o que está aí no Com ela, aquela noite, no tabocal? Fiz uma profecia? Ou no que
fundo. Pra casa, já, sua coma! viu, foi no rasto dele, Pisou tresvariou?
No trapézio do alpendre, vem e vai, o sol lavando a Luciana, vai Noites, bastante, acumulou, noites sobre noites, de primeiro,
e vem e vem e vai, ela ia falando, joelho em cima, joelho embaixo, sendo irmão, imaginando, cisma futrica o juízo, laçado pela estória,
aquela ventania no cabelo: crendo, descrendo o que aconteceu, foi? A mãe, que viu, que deu com
— Facilitou facilitou me despenco é já atrás daquele querubim. ela, do visto não declara, estrompou a filha, joga os pedaços da filha
Olha que ao redor da Camamoro, o que tem é lonjura. Não digo pelo mundo Graziela, essa, cala-te, boca. O pai só Viu foi a filha
o igapó, o igarapé, par de ilhas, é a lonjura rasa, comendo Os olhos. A encamboada, a mãe batendo, a mãe batendo, a mãe batendo e só se
gente então some. Luciana tinha uma força de sumir, lá nela, que eu ouvia no quarto a mãe batendo.
que conte. Possível pelo sumiço se encontre o enigma, se aviste o A salva do Perigo. A fechada de nascença.
coxim, a cilha, a balança, a corda, a crina, os rumos do Talismã. Da
1
Cf. Sagarana.
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No que sucede o raio, rachou-se o bacurizeiro o quarto Não noite mais? Nunca tão longe foi. Ou mais curta? Esticou,
escancara-se. O irmão, que augurou não sabe. A salva do perigo. encolheu, o tempo?
Toda a viagem na lancha, agora no rolo deste outro, pouco, Cessavam os açaizeiros. Atrás, na Manoel Evaristo, a padaria
escândalo foi o pensar nela, aqui, esta noite, no sereneio deste quintal trabalhava. Nunca tão longa noite. Esse homem, neste sobejo da
da casa dela, embarquei os bois que levantaram esta casa, a salva do noite, por onde andava, que noite a dele, que não disse uma palavra
perigo. Agora de dentro de mim me sai a visão do vaqueiro e dela. mais?
Esta cidade é assim tão trancada que nunca informa? Suas lonjuras Amanhã, desenho. Liceu, amanhã. Os sem material, rua. Os de
não deixam um número? material, desenhar este cubo.
Chego a pé carregando a sela. — Seu Floremundo, lavar o rosto?
Aqui espio, aqui ouço o rapaz do Major Alberto filho daquela — Nem ouvi inambu cantar. Que nem um relógio, inhambu
senhora mais que morena, até que abria este meu coração com ela, lhe canta nas cinco horas.
dizendo de tudo isto, da finada em vida, isto me dói que me apostema — Não tem mais em Belém, seu Floremundo.
inteiro Vejo a família em redor das sete cartas e do retrato da rapariga — É verdade, menino, os inhambus daqui bateram asa.
do Marco. No meio, a Graziela, o dominó guardado se cobrindo de — Os inhambus aqui apitam, seu Floremundo.
seus véus a santinha. D. Jovita minha mãe, mas deixe! Que Arcebispo — Sim, senhor, tenho visto os bicos do que o senhor apelidou
que ex-Governador, que nada! Invenção sua foi essa? Dedo da de inhambu, chega de fumaçar. É a cidade, sim, senhor, que é, é, a
Graziela? Tanto o que o meu pai já fez, aquele rio atesta, quantia. É o coisa que foi feita não está por fazer.
forte da Carne dele. Soprou no ouvido, a dona do ouvido, adeus, o Alfredo não respondeu de súbito alheoso. A cidade. Esta cidade,
sopro entrou macio lá dentro, abre e afia o esporão No que Olhou a Então aqui debaixo das folhas, bom enterrar a noite, a aventura, os
arma, a embiara está é já no pé Caçador Ë que usa aquela barba e a professores, tudo que intimida, tudo que contraria, bom enterrar a
descansada voz. família, esta aflição por Luciana. Luciana era também a educação
[54] Espero lá na frente bater três palmas, apertou a campainha: perdida, o Ginásio que não foi. Mas ao menos encontrá-la, mesmo já
mora aqui um senhor por nome Floremundo? Está aqui um bilhete. em ruma, em qualquer passagem, em qualquer batente, ouvi-la, vê-la.
A salva do perigo. Que isso terá Sido alivio ou a desilusão de toda busca.
Em tua intenção, mana, duas marrecas do Jandiá, com a minha Lá na cozinha, em torno das sete cartas, as quatro cabeças
pontaria arriei. Arriei, depenei, salguei, de conta que te trouxe. Ah já acabavam também a noite.
chega! A noite passou? Viraste a que ninguém sabe, te juntaste aos Acocorocado, o seu Floremundo riscava o chão com uma tala.
três cavaleiros de cavalo branco não mais no Marajó, agora de rédea Alfredo se chegou para saber que riscos, podia ser um [55] nome; via
solta pelos lavrados e cerrados desta cidade. no rosto do homem a sombra dos inhambus, aquele Outrora da
Seu Floremundo vergou-se sobre o limoeiro, ao peso de seus fazenda, ele e a irmã na caça, no curral, na pesca, aqui ela juntando os
mutuns mortos, de seus silêncios e de seus ossos. bilros de tucumã, junto ele destrançando as enviras, os dois bem
Alfredo, esse, lhe deu um espanto: até que altura vai a noite? irmãos. Mas seu Floremundo risca nada, risca sua solidão, sua
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amargura, sua compridez, sua separação da família, seu pensar voltar Felipa nunca falou, que se soubesse, foi casar, intensa ao namoro,
já, já, rumo do cantar do inhambu. Pouco se lhe dá que as três da talvez por sem sal ou feiosa. Ou foi o [56] tem|po todo pensando,
mesa arrastem o barbudo culpado até ao Bispo, ao peso de sete cartas lacrando o que pensava? Ou só agora se modificou?
e de um retrato. A mãe, por ter recebido o Bispo na fazenda, vem Da Felipa, Luciana sempre dizia: Conhecer a Felipa, nunca é
pagar a visita. Viram aquela chegada do Bispo na fazenda? Toda em salão, varanda, lugar de etc e tal. É debaixo do soalho, sentada na
penteadona, o colo papo de pomba, sapato rangendo, o rosário no canoa velha de barco, ali nos nossos segredos. O caçôo que ela faz do
pescoço, Graziela a primeira a beijar o anel; a velha, na saia do lilás, mundo, da Principala desafinando o bandolim, do pai de pente fino e
emproava a venta nas soberbias, atrás o velho, barba de ermitão, mais espelho adornando a barba, da mãe quando não está católica!
atrás o filho, este — um de perneira e gravata — mas chamem a Descaroça o seu algodão, passandozinho a urtiga não que viu, onde
Felipa na cozinha — e eivém ela, enxugando as mãos na barra do foi. uma viagem, uma visita. . Então sobre casamentos pelo rio Mutá,
vestido, no que que vai beijar o anel, o anel a encandeou, a criatura Tarumã, Cairu, que presenciou, a urtiga dela arde. Arde muito mais
tropeça, caiu de joelho, e o Bispo: te levanta, filha de Deus. O Pastor estoriando o casório da Serafina, da mesma idade dela, criadas a bem
sorria e logo um, outro, os mais, babando o anel, o alpendre encheu dizer no mesmo peito, o da sia Fuluca, lá do São Sento, mãe de uma
com o Mutá inteiro, beirada e campo, berreiro de batismo e crisma, a quantidade de filho e sempre bem leiteira, hoje em glória. Só me caso
rede armada pela Graziela, D. Jovita com a terrina da coalhada. A depois que tu te cases, era a Serafina para a Felipa. Uai, Serafina,
Igreja ia dormir aquela noite no Camamoro, rezou-se ladainha, Deus agora isso... Passou-se, que foi, o tempo. Num relâmpago, a Serafina
se embalava de rede na varanda — Coronel, Coronel, olhe a capela da casando. Felpa. convidada, vai com irmão, lã está o noivo, o
fazenda, olhe a capela! — enseiã, enseiã. O Bispo benze os currais, semblante cicie esmorecido, meio a modo dizendo: que foi que eu
urra a vaca sangrando na faca do Tapajós no meio das salve-rainhas. fiz? de branco, um ramo de flor no paletó — feito pelo seu Leônidas
Os padres devoravam o toucinho e a coalhada. A comitiva embarcou — que era só goma. Da casa do seu Santos, trouxeram para o
do Mutá com um mantimento mede o tamanho do mantimento, o cochicholo de seu Cipriano, onde se casavam, aquele que já serviu a
vento jogou o chapéu do padre n’água. Agora, com as Sete cartas e o tanto casamento no estirão, o sofá velho. Serafina num fustão
retrato, D. Jovita vem cobrar as contas no Arcebispado. enchamboado, grinalda e véu, a mancha de cano no rosto, a porção de
— Floremundo... Teu chá de pega-pinto, faço? talco paissandu tapando a idade, pareceu no seu papel. Seu Cipriano.
Que tu sabes do meu casamento? Isso, sim, me devias indagar, o escrivão, leu corrido a ata. O Substituto o Dr. Campos, de
minha irmã Felipa. Teu consolo, daqui em diante, é ler sempre a Cachoeira, sempre bebido, vermelhão, a orelha atorada, resfolegando
infeliz mas sempre a honrada, por lei roubada — não quis a separação os declarou marido e mulher. Tão assim depressa. A noiva, como
de bens — pelo juiz obrigada a pagar os débitos na matriz do aviador, assustada, e o leque na boca, saber assinar não sabia, o dono do sofá
teus bois, adeus, irmã. Ah Silva do perigo, em qualquer condição que assinou a rogo, falando: calam idade este nosso não saber ler nem
estiveres, não hás de ter pena, que eu sei teu sentimento, o juízo me escrever, mormente neste estirão. A noiva, leque na testa como coisa
diz, é um perau, se sabe onde neste rio? Ah salva do perigo. De Felipa que o ralho nem tosse com ela. E veio de lá de dentro a mãe da
casando, rir não vais nem lastimar, sim te lembrando: em coisa que desposada, no que abraçou a filha, foge de mãos no rosto, grunhia um
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porco debaixo do soalho. Serafina não desgrudou a boca. O noivo, esfriando o seu chocolate — o irmão soprava no pires E pela
dentro daquela goma, de duro não se mexia. O Juiz já vai? Vai, não dobrança da maré, la Se vai a amiga de véu e grinalda na montaria
fica para a mesa? Todo o casamento foi deixar o Substituto na cabeça rumo de casa, a ter que tirar sapato e meia, faz a água no automóvel,
do trapiche. Levado para a montaria, cambaleou na lama, encarnadão lá se vamos com o casamento desembarcando pelo tijuco, a Serafina
gordo ouro, o inchaço na orelha, resfolegante, a suar, bem cibrado. aparamentada e o pé no tijuco, nisto chove, a casa deles nem de
Então voltou o casamento para dentro, os noivos do seu Santos. cumeeira fechada estava, o seu Floremundo, lá dentro junto dos
Felipa tinha se esquecido, ou disso traída em só olhar a cerimônia, de noivos com c guarda-chuva aberto. Feche, feche o guarda-chuva Não
cumprimentar os noivos, [57] vai agora. Serafina estava! A mão dela presta. Agoura mãe e pai. Os noivos refugiam-se a um canto em pé,
um gelo. A irmã da raiva, a Diquinha, por ter chegado da cidade, borrifados pela chuva. Não tinha mais o sofá do seu Santos.
reclamava contra a pressa do Juiz. Casando com o pai na forca? Nem Luciana, então, brincou: Assim por assim, Felipa, aí no
ao menos põe a mão do noivo em cima da mão da noiva? Semelhante cotovelinho nem um ardume, uma comichão nenhuma? Felipa: agora
proceder! Não estava direito Se pagava para isso Pra que que ele isso, Com a maciez vem cela, sem um travo sem um cuspe pois só
então é Juiz? Fez foi nem cumprimentar os noivos, chama o remeiro passar a sua urtiga, pois só usar de [58] caçoa|gem desejava. Assim
dele, põe-se a fresco Também... que Deus me tape a minha, não tira a fazia crer. Também tudo que dizia, fosse a maior bobagem, era dito
boca á dele, do frasco! Felipa, lhe veio no juízo: mão com mão quem sempre a sério e num ar muito benigno, a sobrancelha lá em cima,
põe não é o padre? Diquinha com as novidades! Mal o pé no Ver-o- inocente-inocente. Assim por assim, quem ia duvidar? Mas isto é só o
Peso. da cidade se lambuza, Os noivos no sofá de seu Santos. Então que sei dela, repetia a caçula, que Felipa é muito temerosa. É só
que lá de dentro chamam, tocou rancho, tocou rancho, mas venham, chegar gente adeus, é a caramuja, fica fazendo só o que tem de fazer,
se sirvam — se chegue. seu Leônidas — vão cada um se servindo — quem tem de conversar sou eu, a diplomata, a fazedeira de sala,
se chegue D. Prisca — para a mesa cheia de xícaras de chocolate e inventando conversa, pra isso não me deram em criança chá de folha
duas cornpoteiras com sequilho enfeitadas com flor de papel . No quebra-ferro? A Felipa aí no oco do pau.
centro aquele alguidar com a planta boiúna subindo num pau de Sim, mas naquele casamento, já frio o chocolate, Felipa só
taboca. Rapazes, gente aí de fora, mas entrem! Chamem quem está no bebia era a Serafina no sofá do seu Santos, da noiva os Olhos não
trapiche, nas embarcações, falou o seu Cipriano no mesmo a enxotar tirava. Teu chocolate gelou, Felipa, foi preciso o irmão falar. Ela até
o porco que vira e mexe queria meter-se debaixo cio sofá, fossando o um tantinho assustou-se, o beiço na xícara, rejeita o sequilho, a modo
véu da noiva: te convidaram seu enxerido? Cuche Cuche! Pelo jirau que só passou a língua na espuma de ovo do chocolate. Na viagem
dos fundos, a D. Davina Mateus danava-se com a sobrinha por ter para levar os casadinhos, dela só se ouviu: ah que este rio hoje está
ficado bem junto se roçando no seu Agapito, pessoa baixa, que fez que só lixo. Dos botões de grinalda distribuídos pela noiva, Felipa
queixa dela num jornal de Belém por via de terreno duns órfãos, que disfarçou, fez por não ganhar um, a chamar na beirada o irmão para
estes, não demorou, acabaram no relento pois a D. Davina Mateus o pegar a canoa deles, solta da amarração, que fugia. De volta pelo rio
sítio deles — semeado, com fruteiras —— ela quis porque quis até ao Mutá, de onde a cavalo seguiriam para a fazenda, o irmão
procura a lei. dela é. Felipa olhava, sem tirar os olhos, olhava a noiva vinha no remo, com o seu Tapajós pilotando, Felipe ali no banco do
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meio, mas meu Deus tão calada, tão encolhida debaixo do guarda- nome.
chuva. O irmão, no seu remar vagaroso, suspendia o remo para Fêmea. Coisa de um mês depois do que se deu com a futura
enrolar um cigarro e dizer coisa e outra a seu Tapajós que só madrinha. Mas o nome, que era, botei? Cadê a madrinha? Espia na
respondia: hum hum ah isso é, ah isso é... Iam por um estirão canoa velha debaixo do soalho e olha se ela está, está? Esta uma osga.
chuvoso, gerou um tal silêncio, era ou não era a Felipa no banco do E isto me sulapa, me tira o leme da mão. Até a Jardelina, sempre
meio, encolhidinha, debaixo do guarda-chuva? assim respeitosa comigo, veio: seu Floremundo, o nome dela
Luciana, esta, se falava de casamento, sim, um pouco por empestava a criança? Não tinha de ser xera e afilhada? Que a sua
enfeite. Repetia o que escutava dos canoeiros cametauaras, de irmã, em segredo, na ausência do senhor, aqui apeava, em muito me
passagem pelo Mutá a oferecer cachaça, farinha e mel de cana: valeu. Estou que tudo ali com ela foi sua mãe ter virado cega. Sua
casamento é que nem cacuri. Quem está de fora, quer entrar. Quem irmã, se não falou, por uma verdade foi. Não digo que só fosse por
está dentro, quer sair. O mais era faceirice, quanto mais tamanhona uma orgulhosidade, uma teima, quem sabe e razão dela? Um
moça por fora, por dentro mais menina. E uma noite: Mas, sentimento tenho de nunca mais uma noticia uma-uma que fosse,
Floremundo, o tempo passando e tu nunca te amarrando, rapaz? daquela que deixou de ser a mea Comadre, que tanta que era vontade
Vergonhoso de pedir ali na vizinhança a mão da Mindoca, do Itacuã, dela e a minha e sua também, a sua promessa, o seu trato, seu
senão a irmã dela, a Idália, ou da outra irmã, a Biló, ou da mais velha, Floremundo. A Sebastiana, essa nossa filha, era pra ter o nome
a Lelé, se não prefere a minha xera, a Lucica, ou então a caçula, a daquela próxima na pia e no seu Cipriano, penso eu. Não foi, Nosso
mais jeitosinha, a Cota? O Itacuã, aquele casão grande com as suas Senhor põe na conta, a ele entrego.
vinte janelas ocupadas por vinte irmãs olhando o rio, está pra cair é No mesmo seguinte, fazendo no alguidar um vinho de mucajá, a
mais ao peso de tanta moça, lá, esperando casamento, seu cego. Jardelina em bom termo me fez ver: que do meu direito não é, eu bem
[59] Luciana, coisa de um mês depois, nas suas voltas em riba sei, primeiro me deixe lhe dizer. Mas é uma covardice era se eu não
de cavalo, se distanciou, chega ao retirinho onde o irmão fez um tapiri viesse agora lhe falar o que por ai andei pescando com este meu
ali para descansar, guardar teréns de caça e pesca. Encontra aquela ouvido, cera dele eu tiro. Bom fique ciente. Por maldar não lhe digo,
figura de barriga grande bem acendendo fogo no tracuá, o rosto na ou como Coisa que estou lhe emprenhando, isto nunca foi meu cos-
fumaça, os olhos lá dentro some-some. No que olhou de cima a baixo tume. É que sua irmã, desculpe a metição do meu bico, eu soube,
aquela tão de casa, nada mais foi preciso: Jardelina, esse teu por onde andei sabendo, vento me soprou, a D. Graziela atrás de quem quisesse
me anda? Deixem estar que Luciana se calou, aquele calar dela, que balear pra ela um anum.
sempre nunca era, o olhar soltando o que ela prendia por dentro. [60] — Se teu costume, Jardelina, é não ouvir falância, jamais
Jardelina — Luciana bem que sabia — quando conheci ela, não eu. Até que me admira, tu.
era mais, sim que inda bem verde. Mas pegou de mim aquela barriga, — Então, seu Floremundo, me manda me calar, me calo.
desde aí sustento. Luciana, muito segredeira, então que me piscava, — Te mandar calar não te mandei. A boca não é tua?
até que entre o encilhar o cavalo e o armar o freio, vem, me cochicha: O ouvido não é teu?
eu de madrinha, viu? Boa-tarde, meu compadre, se fêmea, com meu — Vou me desacostumar de lhe dizer umas tantas coisas. De
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hoje o que eu ouvir caiu no poço, lá fica, No que eu falar, me atore a [61] Já não digo as tuas feições, gerada que foste para os
língua. espelhos.
— Mas, Jardelina, um anum? Fazer o que do anum, Jardelina? Me lembrando véspera do último ano, disseste que ias ficar só
— Olhe, seu Floremundo, não inteirou uma semana, eu soube. de sombra vestida, tua combinação debaixo daquele teu vestido
A quem ela pediu, a quem, quem que caça anum? branco, assim precisavas entrar o ano. O ano entrava e tu só de
— Hum hum, me deixa me calar. Se eu digo quem, o senhor sombra pelo quarto e como a tua sombra, um cetim, era rosa, entraste
logo atrás dele. Me calo. o ano rosa. Teu chá de quebra-ferro não te fez falar, não falaste, como
— E balearam? Levaram o anum.. . Pra que serve o anum? coisa que a mãe te arrancou a língua, ou te deu o outro chá. Desde
— Se tira o fígado, disque. Afie seu dente neste meu dedo que o aquela noite, escondeste a fala, acordaste de cauda no ar como o
senhor não sabe.. mutum, foi voar, perdeu-se. Tanto feixe de paxiúba me preparaste
— Parece então que já usaste o fígado do anum comigo, para fachear no lago atrás dos cardumes, agora nem um facho aceso
Jardelina? Então tu ouviste? O fígado? na minha mão atrás do teu passo.
— Pelo que suspeitou agora, o senhor paga! O fígado lá dele do Felipa, por sua parte, amordaçou a palavra. Sobre a caçula, uma
bicho, seu alevantador de aleive! opinião não deu, não dá. Uma vez foi sentar no trapézio do alpendre
Mas torrado, Jardelina, torrado, Jardelina? Tenho escutado por a corda puiu, rebenta, o trapézio no chão. Deixou de Sentar na canoa
aí. de borco, caramuja no seu buraco, agora saindo para tirar da forca,
— O senhor bem sabe o efeito que ele faz torrado, seu enforcando-se. aquele-um lá do Arienga. Se nada sabe, se aprovou, se
Floremundo. também condenou — fiz muito por saber — Felipa se trancou.
— A Graziela? Eta? Felipa, ao menos quando a nossa mãe já por demais castigava,
— Já não está aqui quem lhe falou, vigie bem. Vigie só. Já não acudiste?
inteirou mês que também escutei que a mea comadre, a sua irmã Felipa, sem me olhar, até parecia zuruó, a mão parada na massa
caçula, bebeu inocente num chá a raspa de unha ralada, Consiga o de tapioca que mexia na gurupema.
rastro de sua irmã, seu Floremundo. — Felipa, ao menos ela te escreveu de Belém quando aqueles
Graziela, de dominó, cabacinha e bandolim, torrando o ligado dias na casa da nossa tia? Do teu mandaste algum trocado?
do anum? O chá virou a cabeça da outra? Ah sangue dos Menezes. Felipa se voltou:
O salva do perigo, desata este novelo, e eu sei, bem sei, porque — Queres teu chá de pega-pinto?
do mutum querias a moela que mói tudo. As flechas te flecharam Foi, fez, bebi, os dois esta palavra.
dentro de casa, por tuas prendas de nascença, boa cabeça para livro, o E eu, que fiz? Que trocado mandei? Que noticia pedi? Juízo me
fazer tão bem renda, tão fino recebe as pessoas, e aquele dia, com as diz que esse casamento da Felipa é a modo de um padecimento dela
notas da prova escrita de Cachoeira, tão inocente sentaste no trapézio, pelo que não fez a bem da irmã, ou: agora que estou casada ninguém
no alpendre da fazenda, te embalando, te embalando, disseste: agora é me proíbe de chamar pra mea companhia, no Arienga, aquela
o Ginásio. O sonho da casa entornou o alguidar. penitente?
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Que fiz que não chamei, mordaça me botei não chamo. não numa apressada solicitude atrás de Alfredo que varava o portão.
corro nesta cidade, tatu pelos buracos, até pisar no rasto? — Já venho, D. Dudu.
Quem que não te proíbe, Felipa? Quem? Teu marido? Lá na Ocasião que amanhecia.
fazenda, o labioso, todo garboso da família dele, cheirava penico de A caminho do Curro.
barro novo para suas moléstias do coração, e era com meias palavras Abre-se a janela, a velha parteira abençoa o madrugador e lá vai
que aprovava o rigor aplicado na caçula. Tenho que ele quis primeiro ele até ao quintal, apanha da roseira de Ana, aquela que se abria mais
a Graziela, o tempo dum [62] embaraço, um minuto, ou calafrio cedo em Belém e no mundo, subiu, bate no quarto das moças:
diante dela, Graziela se vestia de intocável, guardada para noivo à dormindo? dormindo? Licença para levar a rosa, Ana? Bença, D.
altura. Pelos olhos trios, pelo franzir o canto da boca, se via o pique, o Santa? Olhe, seu irmão chegou. Meu pão é hoje esta rosa.
aborrecer-se das pessoas que é muito dela. Nas artes de uma rabugice Foi desfolhando a rosa, corria um pouco, os zebus saíam do
a espertalhona, a unha de fome e a santa se entendem, ganham o Jabuti, moças indo para o curtume, a Sabina. Sabina! Ama, afilhada,
mundo. dama daquele baile no chalé, agora mãe [63] sol|teira, a mesma
— Floremundo... risonha, a mesma de face aberta e bem dormida, com ela e a bem
D. Felipa esperava a resposta do irmão. A família levantara-se. dizer ontem, tão meninos, de galo e galinha no galinheiro.
Graziela sacudia as suas chaves. Seu Floremundo pediu licença, subiu — Mas que te fez essa flor, mano?
para a cozinha. Logo desce a D. Dudu, macilenta feliz na sua galhofa, Daqui a instante Sabina está metida entre couros verdes, as
atrás do Alfredo, cochichando: mãos no tanque de água podre, entre aqueles fedores dia inteiro.
— Vê se dependura naquela barca as sete cartas e o retrato. — Que te fez essa flor?
Alfredo entrou. Ao pé do fogão, a D. Jovita acendia o Os zebus passaram, as moças passaram. Do fim da linha vinha o
cachimbe. Graziela despencava o cabelo, apanhava os grampos, a bonde. Sabina ainda virou-se:
examinar a cozinha, se alguma coisa faltava, farejando um risco na — Quando escrever, lembrança pra madrinha Amélia.
parede, um ralo na cadeira, um roído na mesa. D. Dudu, já de orelha Estudando muito? Aprenda também um pouco por mim.
inchada, fazia fagulhar pelos olhos sua zombaria, seu desdém. Na Então ele se voltou e deu a ela o que restava da rosa. Olhou para
mesa, entre as xícaras, as sete cartas e um retrato de mulher. a casa da velha parteira e lá da janela, já na porta, saltando na calçada,
Então que o seu Braulino vem da varanda, se aproveita, apanha correndo até a esquina, agora no trilho, a Ana, descalça, num galope,
as cartas, o retrato, vai jogar no fogão aceso, logo a mulher lhe apara crescendo o olhar e o beiço e nisto o bonde se atravessa entre os dois,
o braço sem uma palavra, e sem uma palavra guarda os documentos Alfredo apanha o bonde, salta na José Pio.
no bolso da saia. Seu Braulino se meteu na sala, um momento na Uniformizou-se, não com o bem gomado por D. Dudu que
cadeira de embalo, abriu a janela, fechou, tira e não tira o paletó, reclamou atrás dele.
ensaiou sair, anda pela calçada, entrou, de novo abriu a janela. No Presente à aula de desenho, adianta-se:
corredor, Alfredo e seu Floremundo se entreolhavam. — Professor, entrei sem material. Rua?
— Menino, olha o café. Hoje não tem ginásio? gritou a D. Dudu O baixote, parafusando o bigode, bochecha inflamada. espiou-o,
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mediu-o, vai à porta, chama a inspetora: esse aluno é sobrinho de barqueiro e de um andador do mundo?
— Por três dias, inspetora. Comunique à Secretaria. Daqui não és, embiara dos Coutinhos, besta de carga dos Lobatos. O
E com bom metal português, no silêncio da aula, curvou-se, Secretário não entende a posição de sentido, a rígida atenção com que
cerimonioso: é escutado? Ou não nasci eu também dum Secretário?
— Sr. Alfredo Coimbra, o obséquio e as minhas congratulações. Vá. vá, pode ir, podo ir.
Outros colegas, sem material, iam saindo. Deu meia volta, só, muito só. O Secretário chamava-o.
— Obrigado, obrigado pela gentileza, professor. — Escreva a seu pai, pedindo material de desenho.
Rua. Primeiro desceu ao pátio. Subiu, tentou o Secretário. Pela — Pois não, Secretário, foi bem lembrar.
gradinha, o Secretário: — Escreveu que falta ao Tiro?
— O senhor falta ao tiro, falta ao desenho, falta à concentração — Escrevi.
cívica. Desacatou, ano passado, o lente de latim. Acusado de colar um — Não precisa essa posição de sentido. Escreveu que desacatou
rabo no professor de matemática. Entrou, quando não era, na aula de o mestre de latim?
química. Errou a porta, rapaz, errou a porta. Monte banca de bicho. — Ah é verdade, lembrou bem. Secretário, vou escrever já-já.
Trabalhe de catraieiro. Tão tamanho bigu! — Olhe a zombaria comigo! Casco-lhe mais três dias. A sua
Ouvia em posição de sentido, olhando o teto, o sentido lá em expulsão, promovo a sua expulsão! Ou duvida?
Cachoeira, ouvindo a mãe: Eu, Secretário?
[64] — Pois foi, comadre Porcina. Ele passou, está no segundo Deu meia volta, só, muito só, ouvindo aquela conversação na
ano. Me gabar, não me gabo, que de filho ah vê lá que me gabe. A escada do chalé. Nisto, de juba, bengala e pasta, o lente de latim.
sorte é que sabe. E comadre, e os seus? — Olá, olá, roceiro! Fora de aula? Rua, novamente? Onde os
— Argemiro na tripulação do barco do seu Coutinho, o São teus roceiros do Guamá que não te acodem? A ti e a eles, esta!
Gabriel. O Laércio na fazenda dos Lobatos. Empunhou a bengala, sempre estrondoso, caiu-lhe a pasta.
— É assim mesmo, comadre. Meu filho, eu que me gabo? Quis, Alfredo não deu um passo, vendo o mestre, soproso, [65] a apanhar os
que seja, O que for, soará. papéis espalhados, o soneto, a tira do artigo contra o padre Dubois, o
As delicadezas da mãe: apagar a diferença entre o seu filho e os recibo da água.
de sua comadre. Por isso mesmo, só fazia sobressair. Que tinha — E não me ajudaste nem a apanhar a pasta, roceiro. O tempora
perguntar pelos guris da comadre? Já não sabia? Dizendo não se o mores! Que tu sabes de agricultura, dos direitos da propriedade,
gabar, por demais que se gabava. Nem o traquete dos Coutinhos nem meu bisonho, meu quadrúpede marajoara? Ou não és marajoara? És
o curral dos Lobatos. Ouvindo debaixo do soalho, rente a escada dos do Guamá?
fundos onde as duas conversavam, Alfredo se cobria de privilégio e Alfredo fitava-o, sem traquejo. assim apanhado à queima-roupa,
vexame. A mãe, na escada, sentava no degrau de cima, a comadre no ainda sem costume de lidar’ com semelhantes figurões. O Secretário,
degrau de baixo, e rente, oculto, sem sossego, o felizardo no Ginásio. por exemplo, era mais temido que o Diretor, este sempre rispidamente
Agora diante do Secretário, o que for, soará, Sabe o Secretário que apressado. com a beiçorra em que pendia o charuto, a cátedra de
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Direito Romano na Faculdade e a banca alta de advocacia. O pecha que lhes dei de bandoleiros? Fui vê-los, sim, no pátio da
Secretario, por unicamente Secretária, parecia mandar mais, muito Central, mais de cem, do Guamá, o pátio à cunha. Eu tinha a razão
inapelável, muito draconiano, como dizia o Pereirinha, grau sete em por mim. Pois numa terra opulenta como esta, a bradar... Stultorum
história universal. infinitus est numerus, rapaz!
— Que te fez o Secretário, múmia do Pacoval? Aquilo é um Partiu batendo as botas para agredir o terceiro ano que que o
carraceiro. Não lhe consinta mais que me dirija a palavra, nunca mais. esperava. Alfredo via no ar a dentadura postiça da D. Inácia, a
Que te fez ele? Madrinha-Mãe, a rir: Te disse não? e disse não? E logo o rosto, o
Agora, se fazia de embaraçado, forçava a frieza, porque o lente, cabelo desmanchado, o colo na Gentil, e Antônio quebrando a
por ódio ao Secretário, lhe falava com certa jovialidade, embora lâmpada em Nazaré. A dentadura virava trem, um trem de Capanema,
sempre as patadas. Sabia que o Mestre, fazendo reabrir o Teatro da um trem cabano.
Paz, fechado também meses, se empossou, sexta-feira, na Academia Do Guamá, agora, só a notícia do Intendente chegando, com o
de Letras, com os irmãos Nobres cantando Puccini e Donizetti. A retrato a vinte mil na primeira página de A Imprensa, do seu
Folha do Norte publicou, entre o elixir de inhame e a milagrosa Laudelino. Das roças e dos roceiros nada mais se sabia. Nem daqueles
pomada contra comichão e impingem, três sonetos do mestre e um noivos, ocultos da polícia, levados pelo seu Lício, véspera do Círio,
ditirambo, Neste, minuto, dominante de estatura, pasta no sovaco, àquela canoa amiga, deles nem uma lembrança. Onde os teus roceiros
digerindo a imortalidade, o mestre contempla o aluno, entre olímpico que não te acodem? Guardar esta pergunta. E nem um filho deles
e benevolente. aqui, nesta escada, subindo ou descendo. Apenas eu, bicho de Marajó,
— Como me decoraste, cabeça de passarinho. o fragmento do ainda arisco, carregado de mim e dos meus, carregado de Andreza e
artigo, aquele, que me obrigou a te suspender. muito bem merecido. Luciana. Espantou-se: entrava, catarroso e miudinho, o lente de
Ultimo ratio regum. Me avacalhando em plena aula! História. A disparar os raios de sua carreira eclesiástica, descia o da
— Primeiro, baixe a bengala e a voz, professor. Instrução Moral e Cívica, o Monsenhor Compêndio. Atrasado, numa
O lente conteve, o acesso, ou fingia, de furor, batendo a bengala afobação, talvez em jejum, também subia o Pereirinha, de pasta nova.
no soalho, a abrir a boca, como lhe faltando ar. Conseguira um papel de desenho, o lápis, com uma tia da travessa da
— Onde soletraste o meu artigo? Como foi que me decoraste? Angustura. Não iam deixá-lo mais entrar.
Onde.? Rua. A praça, desenhar esta praça. Os sobradinhos, abrindo as
— Eu lia em menino a uma senhora da Gentil que pedia a Deus janelas, até que riam, desenhar os sobradinhos rindo. Vai convidar o
que os roceiros viessem no trem e tomassem a cidade. Ela, então, me seu Floremundo prum giro pela cidade. Desce a Manoel Barata, passa
dizia: esse contra os bandoleiros vai ser teu mestre de latim. por Santana — como vai de saúde, São Pedro? Me ceda a chave. Da
— Como se merecesses! Como se merecesses! calçada defronte fica olhando a fábrica de roupa: no térreo de portas
[66] Alfredo se fingia respeitoso, medindo-lhe a juba, a bengala, abertas, as moças costurando. Aquela, sua acompanhante a pé pelas
a pasta. manhãs? Qual? Lá está, lá está, lhe faz adeus e todas olharam, as
— Eu tinha a razão por mim. Eu tinha a razão por mim. Negas a máquinas pararam, as moças olhando. Rumou para a Biblioteca,
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receia o salão escuro; as estantes, pelas janelas, lhe dizem: não, não porta fora. No susto, soltou-se a marrequinha correndo pelo quintal.
entra. Aí fora é sol e tem. nos tabuleiros multa pupunha cozida. Não Alfredo juntou aqui o machucado, lhe deu água, agasalhou o pinto na
está vendo, lá embaixo desta Campos SaIes, o rio? palma da mão, chamou a marreca escondida entre as bananeiras.
Pela escada alta, tanto degrau, ao peso de seus volumes debaixo Cresceu-lhe uma incompreensão, uma culpa obscura, toda a noite sem
do braço e da epopéia que há longos anos escreve [67] sobre os fastos um cochilo, acordado, acordado, três dias suspenso, o Liceu no ar, da
nacionais, sobrecasaca e cavanhaque, vem descendo o mãe nem uma linha, do tio nem sombra. Sabina, sobre o tanque dos
Desembargador Jeremias. couros, a vê-lo sobre os livros. O pintinho sossegava. Corre atrás da
Agora pode entrar na Agência Martins, é um rapaz, já não se marreca apanha-a e amarra a bichinha ao pé do fogão, acariciando-lhe
lembram do menino que aqui arrancou a capa da Cena Muda: trazia o a cabeça. Esperou. Com a sarrapilheira bateu que bateu mosca,
herói da fita em série O FURACÃO. cansou-se, desistiu. Dalila entrava com uma talhada de melancia.
Mas por que Ana? Do bonde, pôde ainda perceber a pequena — Fez promessa?
agachando-se pelo trilho, a apanhar as pétalas pisadas pelos zebus, [68] — Como?
será? Apanhava? Foi pela rosa, pelo salto na janela, pela Sabina? — De bater mosca?
Entrou. — D. Santa?
— D. Santa está? — A avó, o pé é dela pra mim saber aonde ela anda. Quem te
Ana fechou a mão, inclinou-se na cadeira, olhando a parede, pôs de castigo batendo mosca?
espicha o beiço, os braços largados. — Ana ficou braba por via da rosa?
— Eh Ana! D. Santa? — Não tenho a boca de Ana pra te responder. Olha vou sair,
Derrubando a cadeira, Ana enfiou-se no quarto pisando tábuas Fica ou me deixa trancar a porta?
soltas, a sarrapilheira esburacada feito porta, a fresta de sol lá dentro — E a melancia? Dá uma prova?
em que descia-subia aquele ar, Uns fios de teia de aranha, o cinto na — É pra meu cabelo, aquele menino, Ver se tiro a lisura do
corda. bicho, uma praga de tão liso, escorre demais. Ah que Deus me dê um
— Ana, me diz. O. Santa? tifo! Depois do tifo, sim, nasce ondulado.
Para descer na cozinha de chão, tinha um degrau. Alfredo — E a melancia ondula?
desceu: estava úmido, pegajoso, dois pintinhos piavam, amarrada ao — Assim me imbuíram, Mas ah! Eu quero é um tifo.
pé do fogão a marreca assustosa, as moscas donas da casa. Voltou. — Que é, que te coças tanto? Estás com cavaquinho?
— Ana, ou foi a rosa? Queres quanto pela rosa? Em troca — Já-começa da braba. Sai que pega, rapaz.
espanto as moscas, dou milho pra marreca, tiro a cinza do fogão. — O Hidroterápico, um banho no Hidroterápico.
Meteu os dedos pelos buracos da sarrapilheira, parado é porta — Hidroterápico? Hidroterápico é a Pedreira, o mocó, as ervas
do quarto. do caruana. Num instante a urucubaca diz adeus. Me meto na tina das
— Ana, Ana, saíste pela fresta de sol? ervas com o pajé me dando de cuia.
Ana pulou do quarto, sarrapilheira abaixo, pisa o pintinho, voou — Me leva?
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— Só não querendo. Estás sem sorte no estudo? Queres eu tranças. a outra muito bem cacheada. Aos poucos se voltavam, abriam
contrato. Queres? a pasta de desenho cheia de laços e a caixa de lápis. Assim faziam que
— Vocês não estão matando a galope a avó de vocês, Dalila? desenhavam. Alfredo tornou a assobiar pelo vento. Bateram-lhe a
— Agora isso. Matando está é aquela, a filha dela, de boca no janela, sumiram-se. Tornavam agora, com um tamanho Atlas que
mundo contra nós, Que tem a tia Dudu com nós duas pra querer nos folheavam. Alfredo temperou a goela, caminhando. Breve, casando a
meter fechadura? A toda hora nos intimando a ir no Médico Legal galope estariam chamando a velha parteira para pegar os de sete
tirar a limpo se somos ou não somos? A fechadura? Naquela tetéia meses. O estábulo fazia trescalar os seus estrumes. E elas, soberbas,
dela, na Nini! Em mim, eras! A rédea dela para outra égua, pra esta, sobre o Atlas, já cobertas, ruminando no pasto.
arreda daí! Do pasto ao curtume onde Sabina trabalhava, menos dum
— Quando começas no hospital? instante, A metade da rosa no cabelo? No peitilho? Guardada no
— Lavar pereba alheia? Carregar bacia de tifo alheio? Olha balainho, Ou atirada nos caldos de couro verde. Parece entender
meu nariz, achatado, não é? Um toco de nariz, não é? De tanto cheirar porque lhe deu a rosa, a metade da rosa, que a outra metade, pisada de
sim-senhor de freira. Chega! Chega! Chegou! Daquele asilo tenho zebu, Ana colheu da rua, pétala a pétala. Artes de menino com a
ainda a marca das corubas. Antes na cavalaria lavando cavalo. menina, E esta, nos olhos da operária, lhe pedia uma rosa, Alfredo
— Cavalaria? Agora um da cavalaria? saiu do trilho para deixar passar o bonde e esperou que só ficasse,
— Pra vós saber, maninho, mete um requerimento selado. neste sol. o silêncio do capinzal da vacaria marginando a rua. E via
Alfredo tentava comparar as duas irmãs. Ana, na sua insolência que o capinzal se cobria de flor, flor de algodoeiro brabo, aquele que
andadeira, concentrava-se. Possível em Ana uma danação, guardada, amanhecia beirando o rio, defronte do chalé. colhida pelos carneiros e
freada.. Dalila era rasa como a sua anca, [69] na tina do pajé, tomando as vacas por ali errantes, Saíam ele e Sabina marido e mulher do
banho de cuia. Soltava-se no vestido sem cinto, a abrir o cós coçando- galinheiro, e se viam entre uma fartura de flor, flor do algodoal brabo.
se em todo lugar. Estava em pleno desalinho, suada, como saboreando Com efeito, não só abriam na beirada entre as patas do gado, com as
a coceira. formigas de fogo ao pé. Na cerca de casa, do lado onde era o gali-
— E agora, tua vó, Dalila? nheiro e a sentina, o banheiro, o poço, o ingá, só flor, variando a roxo,
— No oficio dela. Ela quer que eu me empregue no hospital? a violeta, vá ver que azul e róseo, e ninguém, [70] a não ser o menino,
Vá lá, a Dalila faz de conta que vai, faz que vai. não vai, que jeito? ou um e outro carneiro, dava por isso. Sabina, correndo atrás da
Que outra, não eu. limpe as pústulas, não eu. Trancas a porta? Não? picota, nem via. Mas agora salta dos olhos dela a beirada em flor, a
Vou ao banho. Espertar a mãe do corpo. cerca, o campo, vacas e carneiros pastando roxo. No chalé, telhado,
Alfredo na rua olhou a vacaria, assobiou chamando vento para janelas, a mãe, o rosto lilás, pilando café, a cachorra, a borboleta, a
rodar o moinho d’água. Na mesma janela que abriam, tarde da noite, picota no jirau, é só flor de algodoeiro brabo. É o que está vendo nos
para os rapazes, as duas irmãs apareceram. Cotovelos na almofada, olhos da outrora dama daquele baile, Sabina, a braçal do curtume.
sempre no não te ligo, muito mais donas de seus zebus, de sua Na beirada, espiando pelos navios velhos, o estaleiro, aquela
educação no Santo Antônio. Ao vê-lo, lhe deram as costas, uma de barca portuguesa vai virando moradia de terra; lá está a armação do
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casco novo, aqui se faz um barco, um barco nascendo, quero uma Alfredo esperava, a pendurar no galho da jaqueira o carocinho
vaga nessa construção. Dobrou pela Podrona, lugar de bucho, prometido pela Nini.
precisão e lama e onde estão moças as meninas vindas da seca, agora — A senhora tem poço aí atrás?
neste lixo lindas; esta, por exemplo e aquela que põe o rosto na — Ter, tem, mas falta limpar. Água, a gente tira daí do vizinho.
janelita e abre o cabelo e chama pela vizinha: Marizô, um palmo de Limpar o poço, quede pessoal? Quede posse?
fio do teu novelo, tem não? A mulher foi aos fundos, chamando a filha. Voltou.
Desembocou defronte da penitenciária. Lá em cima, na janela, — Tão que aprecio o senhor de ver o senhor todo dia indo para
santo do flagelo, aquele cego e escaveirado retirante. A esta hora o sua escota, sabendo que o senhor aproveita que aproveita o estudo,
pajé dá banho na Dalila, Dalila lhe pedindo um tifo. No carrinho do ora bobo se não souber aproveitar. Ouço que o senhor é do Marajó.
canto, o bucheiro pesa um quilo de livro e tripa. Com uma banda de Que fazenda é a de sua família?
porco às costas, passa um tipo gritando para dentro da vila. — Fazenda? Não, senhora. Fazenda?
Ana o espiava, onde? Pelos olhos do cego flagelado, lá da — Como então... Língua do pessoal espalhando que a sua
janela? família tem. Ë então pobre? Ah bem... Pobre, hein, aprendendo? Olhe
Olhou para o cego lá de cima que o condenava. Veio saltando lá...
as poças do Una, entra na José Pio, passa pela jaqueira. Ficou um tanto pensativa. Chamou pela filha. Virou-se:
— Olhe, moço, olhe, moço, entre aqui dentro, entre aqui dentro, — É então pobre.
sim? Ganhou um desembaraço.
A mãe da Zuzu, aquela senhora, alta e cafusa, que ia no — Entre, mas entre! Zuzu!
espiritismo, distribuía fluidos pela vizinhança. Debaixo da jaqueira, o Dos fundos, silenciosa, nos seus molambos, braços e joelhos de
chão de tão alvo um trigo. fora, nudez iminente, Zuzu chegava.
— Olhe, não repare, estou lhe chamando é por uma precisão, — Ah se o senhor pudessezinho ensinar meu filho, o caçula.
por uma esperança, espero que o senhor possa. Me dá um Que o senhor acha?
acanhamento. — Mamãe!
Alfredo segurou o pescoço onde ainda não pendurava o — Zuzu, faz pouco eu te chamava, agora te mando embora,
carocinho, um pouco vexado e já apressado de servir à mãe da Zuzu. corta-conversa!
— O senhor sabe. Já tanto que queria... Zuzu, essa moa filha, Zuzu corrigia os trapos numa compostura, a olhar para a mie e
sempre me dizendo: Como é que a senhora vai agora tirar o tempo do para o rapaz, como a dizer-lhe: não repare na mamãe.
moço, mamãe? Lhe chamei agora, [71] me deu que foi uma coragem. — Até que botei esse meu filho numa oficina praticando, mas
Zuzu! Zuzu! Vem cá! Me tira deste atrapalho. ler é sempre uma precisão, assim acho. Estou pelejando que ele
A filha não aparecia. aprenda. O senhor pode? Do que eu tiver lhe pago que agora não —
— Pode, pode dizer. Sem cerimônia. mas olhe que eu lhe pago! — que pagar semelhante trabalho por
— Zuzu! Onde que essa menina se meteu? Zuzu! maior pagamento que fosse quem disse que se paga.
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— Em que livro está seu filho? — Agrado nenhum que lhe dê, tenho. Zuzu, escolhe uma das
— Eh avalie! Nem da primeira folha do primeiro livro passou. maduras. O senhor mesmo escolhe. Gosta de jaca?
Tal está. É ou não é, Zuzu? Ora... como é a sua graça? Tudo recendia jaca, Zuzu, a mãe, o livro. No terreiro, a jaqueira
[72] Alfredo, mamãe. Alfredo. pejada. Alfredo folheava o bacalhau. Faltava a folha 3. Zuzu, muito
O rapaz virou-se para a moça. Ela deu de ombro, o ombro nu princesa nos seus trapos, como se o intimasse. Fardado, a ponto de
com uma tira, digna, do outrora vestido. continência, o ginasiano combina o dia, aceita a jaca, pesada, que
— Pois olhe, seu Alfredo, quando zinho puder ter um tempo carrega no ombro.
mas só quando o senhor tiver, que eu sei que o seu estudo ocupa é No que olha o portão da Esméia, um rosto fugiu-lhe por entre os
horas. Olhe, vá pondo de parte umas tantas coisas. Mãe, por via de ramos do jasmineiro, o olhar na jaca que ele trazia no ombro. Ao fim
filho, não mede. Agora que sei que o senhor é pobre nem esconde que da rua baixa, no rio de maré alta, [73] passava um gaiola: apitou o
é, já me sinto mais... o senhor me tirou do apuro. O livro, tem, já curtume, iam saindo as mulheres. Sabina com a metade da flor?
ajudou a desasnar conte nos dedos a quanta gente. De mão em mão, Aqui na varanda dos Boaventuras a mãe e a filha entonavam-se
cede pra este, pra aquele. Meu falecido no comprar disse; este, pra para levar ao Arcebispo, ao Advogado e ao Ex-Governador os sele
quando chegar idade de filho desasnar. O senhor me creia que até pro documentos e o retrato. No corredor, na porta da sala, mais gordo a
fundo já foi. Ah não lhe conto nada. Pois se deu numa viagem, suco! mar; suado, coro o pacote de jornais debaixo do braço, o seu
essa ar xixitinha, A gente se alagou, a canoa então não emborcou? Lá Laudelino de A Imprensa, à espera do fazendeiro. Vinha ajustar a
confronte o Outeiro, escuro, cada banzeirão, a embarcação maneira, noticia nos recém-chegados. Estirado no jazigo conjugal,
veio um rabo de refega. E eu e a mea falecida mãe e essa ainda gita, suspensórios descidos, mão na barba, o nosso Imperador chamou o
santa misericórdia, segurando no que ia boiando, até que o corpo da estudante:
gente encalhou naquele beiço de lama de uma ilhinha me lembro que — Me faça este favor, disse, baixo diga ao seu Laudelino, que
essa mea filha até se assustou mais foi com os siris pulando no sim, publique o total dos nomes, com o meu retrato. Aqui os nomes,
escuro. A noite ventosa, mas Deus era que tinha estrela. Pois bem, entregue a ele este envelope. Que me desculpe não aparecer, de tanta
atrás de nós, não é o bauzinho bem de bubuia? Benzinho de bubuia, a dor de cabeça que estou. Peça aí dentro um cafezinho pra ele.
dizer: vim com vocês com vocês vou sem vocês não fico. Dentro do Na varanda, a D. Jovita, num traje de viúva enfiava-se nos seus
bauzinho, o livro, que já pode contar que, esteve numa alagação, viu colares. Graziela, no quarto, punha c chapéu, sem usar os espelhos da
por dentro d’água. Se as letras falassem até que então contava. Correu alcova e da sala. Felipa e D. Dudu tinham ido às compras nupciais.
de mão em mão, nesta, não demora naquela, pobre só tira, quando Cheiravam os jenipapos. Pelos fundos, na corda sobre as plantas, as
poder pode, um fiapo das letras e pronto. Zuzu soletrou nele. Está que carnes un sol. Nini chega da fábrica, pega Alfredo pelo braço, vão à
é um bacalhau mas ainda dá um caldo. Vai Zuzu buscar. cozinha onde o seu Floremundo, mais vergado, mais sozinho, mais
Zuzu num jeito de que não queria ir, foi, trouxe. Ela e livro, até triste, comia. Na escada do alpendre, Nini, entregando o horóscopo,
que se pareciam, tirante o corpo dela, que desabrochava. soprou:
— A velha vai sair com roupa-de-ver-a-Deus.
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— Então vai haver o diabo? favor daquela a cujo nome se faz cruz? O certo é que Luciana não se
— Com roupa-de-ver-a-Deus. Gruda a boca. Espera que ainda desencarnava deles, da mãe, irmãos, pai, ou tirava deles tudo,
vou lustrar os borzeguins do meu tio. Coitado, ele que tão carece. esvaziava-os. O. Jovita, porte morubixaba, estofada de roxo, arriou-se
— Nini, olha o que eu te trouxe. Ali. Ali rio pilão, no alpendre. na cadeira, as mãos no colo, guardando o olhar. E era como se
Nini, fazendo figa, atira a jaca sobre os cacos de vidro do Luciana lhe pusesse um ferrolho na boca, retorcesse nos dedos da
quintal da Principala. velha os anéis honrados e com o dente pelas costas lhe arrancasse a
— Deixa-te está! Hoje mesmo vou pedir da vovó o teu talismã. roupa-de-ver-a-Deus.
Mas lê, lê o teu horóscopo. Escuta o que ele diz. Vejo que tu não tens D. Graziela tinha mudado o chapéu, tirado no guarda-roupa da
dó da tua mãe. Nem de ti mesmo. Tua mãe vai tornar conhecimento alcova aquele mesmo que Esméia usou. Na preta uma soberania,
dessa jaca, deixa-te está! agora, na fazendeira, menos que um chapelinho. Seu Floremundo:
Alfredo dobrou o horóscopo. — Pois bem, mamãe, eu vou. Não carece isso tanto. Ajusto com
— Um girinho pela cidade, aceita, seu Floremundo? Está aqui o moço um outro dia. Sim que só tenho amanhã só, que assim que a
no meu horóscopo. Só que o senhor paga o bonde. lancha volte, me ponho. Só me esperem eu comerzinho este sobejo,
— Só não querendo. É só o senhor se adispor. Querendo, às que comida no prato é impróprio deixar. Ah me deixem também fazer
ordens, mas primeiro se abanque, se sirva, vá desvirando o prato, se companhia ao moço, pra ele não ficar comendo só. Mas se sirva,
sirva. menino.
— Uai! E quem vai levar nós? — Não, pode ir, pode ir. Estou me servindo.
É a D. Jovita, fechando a testa, ao pé da mesa. — Suas lições, hoje? Quero crer que o sono lhe tirou a visão do
[74] Alfredo amassa o horóscopo: desta casa vou é me embora, estudo. Ou não?
é já. Vai levantar-se, o seu Floremundo o apanha — se sente se sirva Alfredo parou o garfo: esse homem está falando comigo ou com
— continuando a comer, com vagar e melancolia. Já a Graziela, de a irmã que chega do Ginásio? No olhar dele, estou eu ou ela?
chapéu, cintada a rigor, o almofadado colo, cheia de penduricalhos, se — De olho aberto a noite inteira... Ou aboliu o sono?
aproxima, pondo um sossego na voz: [75] — E o senhor, que também não dormiu?
— Mamãe, dispense o Floremundo. Lá, ele a boca não vai abrir O seu Floremundo guardou o suspiro.
uma só vez que eu sei. Nós só que vamos. Custa ir só nós duas? — Eu, moço? Lá em casa? Durmo feito um acuatipuru. Nestes
— Nós duas? Era se fosse! A audiência é nas barbas dele. dias que não. Uma cuíra...
D. Graziela, alagada de loção, veio, roçou na mesa: Vieste, com a tua cuíra, indagar de mim se sou a tua irmã no
— Despachaste as coalhadas, Floremundo? Já? Ginásio ou um saltador de janela?
— Sobrou uma, por acaso, por cima da mesa? Estás vendo? — Não vem me dando apetite de dormir. E a sua aula de hoje?
— Também as carnes? Os couros? Os jenipapos? Assim querias, quando chegasses da fazenda, ouvir da Irmã
D. Jovita deu um olhar para Alfredo que cismou: também ginasiana.
ouviu, por boca de Graziela, as três cartas que ele escreveu ao velho a
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— Aula de desenho. Desenhei um mutum. Não acertei foi o se o café e se faz a coalhada do Advogado, do ex-Governador e do
bico. Arcebispo. Queimado o tabocal, bosque onde a bela adormecia, uma
— Me mostre, que conforme for, eu vou lhe dizendo o feitio. quentura soprou para dentro de casa, um bafo, acabou-se a sombra e
Eu lhe dizendo, o senhor com o lápis na mão, não Custa fazer os ventos que passavam pelo tabocal. Meu tabocal é me chamando,
semelhável. dizia ela, quando as tabocas rangiam pela noite. Vou precisar
— Deixei lá no Ginásio ah não vale a pena. daquelas tabocas pra fazer um jirau, respondeu a Principala, aquela
— Desenhar até que é um saber que muito me admira, Penso taboca chama raio. Quem te chama não são elas que eu sei... A
eu, eu lhe digo. Olhe, por uma comparação, quando é um desenho de caçula, como num acalanto, desafiava: Principala, Principala, as
uma planta de moradia, de um barco, de uma letra marcada na roupa. tabocas me chamando...
D. Jovita elevou a voz: Certo é que ainda rangem, quando ele, Floremundo, chega pela
— Pois bem, Floremundo, te dispenso. Olha, dá cá, me enche e madrugada, moído do campo, da caça e do mais que só ele sabe.
acende o meu cachimbo. A visita, tua obrigação não é. Não és tu. Dá De todos nós, nesta casa, só o rosto do moço parece lavado. Ou
cá o cachimbo. Não és tu. também não? Que é que o aflige? Agora, me espia oculto, como
A mãe cachimbou fundo e grosso, sombria na sua cadeira. No sabendo de tudo ou como também culpado?
jazigo conjugal, debaixo da intimação, o nosso Imperador espirrou no Veio a D. Graziela:
travesseiro. — Mamãe, papai já na porta. Vamos? Primeiro onde?
— Mamãe, a senhora, mea mãe, se quisesse uma opinião... — Já não te disse?
— Te pedi? — No Arcebispado, então?
D. Jovita tinha ficado de pé, costas para o filho, cachimbando. — Não falo duas vezes.
Nini chegava do alpendre machucando com açúcar um jenipapo para No peitoril ficou o cachimbo e a cinza. Alfredo vê um cachimbo
o Alfredo que se levantou. Seu Floremundo limpou a boca na ponta enorme, feroz. Seu Floremundo vê a cinza só a cinza, só.
da toalha, apanha delicadamente do chão uns bagos de farinha, lançou Agora no uniforme passado a capricho por D. Dudu, quepe na
peia janela. Fez vagaroso o pelo-sinal, desvergou-se com a sua mão, mirando-se no vidro da cristaleira, Alfredo indagou alto:
compridez e seus ossos, no que ficou de pé. Alfredo, ali defronte da — Não pode sair assim, seu Floremundo? Em manga de
máquina de costura da D. Dudu, .quis armá-lo cavaleiro. camisa?
Mas seu Floremundo aqui já não está e sim no quarto dele, lá na Sem resposta, pôs-se a indagar de si mesmo: que vai me pedir
fazenda onde a irmã deixou, coberta pela esteira, suspensa na parede, que não me pediu ainda? Me leva no caminho da irmã, vai falar de
aquela folhinha parada no exato dia, 16 do outubro, semana, mês, minhas cartas? Me pede guia para correr as trinta mil portas da
ano, século, eternidade. Na fazenda, o ponteiro não andou mais. A cidade?
mãe ateou fogo no tabocal e [76] até hoje é cinza no ar. Passa o dedo Diante da cristaleira, penteou-se; porta da cristaleira, vira
no rosto, sai cinzento, passa a mão por dentro da família e vê a cinza espelho mágico, espelho mágico. Não. Ai dentro as louças são
que dá. Come-se ali com o gosto daquela cinza, com a cinza tempera-
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adornos de sepultura. Seu Floremundo, rejeitando os copos da mesa, banqueiro, presidente do Conselho e benemérito da Santa Casa de
procurava uma cuia no alpendre. Misericórdia. A pé, de guarda-chuva, alagado de suor cívico, saía
— Não quer experimentar um da cristaleira, seu Floremundo? pelo portão o Secretário. Atrás, sempre maneta e de casimira, o
[77] — Se quisesse, cadê a chave? No que acabo deste meu porteiro do Barão, que guerreou em Canudos, Já lá se vão em silêncio
gole d’água, vamos. Vou me vestir. as bandas, O pequerrucho na poça d’água apanhava a tampinha de
— Vá assim mesmo, seu Floremundo. Belém não é de ce- guaraná.
rimônia. O senhor não prefere cuia a copo? — Vá a você, seu Floremundo. Na cidade, quem repara? Lhe
Alfredo Olhou os sapatos remontados, a perneira pedia um Sirvo de ordenança.
lustro. Faltou ao Tiro, à concentração cívica... Faltou mas foi espiar, a Seu Floremundo bebendo água, bebendo ficou. Bebia de Cuia
paisana, no campo do Paissandu, os grupos escolares em ginástica ao num saborear de boi velho, gole a gole, devagaroso. Enxugou na
sol das onze, uma menina desmaiou, as bandas substituíam a merenda manga a boca satisfeita [78]
escolar pelos dobrados cívicos; bebendo guaraná, entre ramalhetes de — Ah menino. Des dessa noite esta sede, que até me esqueci de
flores, bandeirinhas e damas da São Jerônimo, as autoridades na lhe dizer antes se era servido. A educação, fique desde já sabendo, é
tribuna de honra forrada pelos pavilhões do Brasil e do Pará. Como na do que mais careço.
corrida grega dos archotes, o que é necessário é que o facho simbólico — E a barba? Faz? Não precisa?
chegue ao templo divino que se perde lá longe no Impreciso da Seu Floremundo espreguiçou-se, emborcou a cuia na palma da
distância, falava o orador, entre o Governador, o Comandante da mão, tamborilou na cuja, fez um fôlego, espiou pela janela:
Região, o Arcebispo e os Cônsules, tudo saiu no jornal, toca o hino, — Perigoso...
desmaiou outra mofina, eivém o carro do Arcebispo salpicando lama — O que então, seu Floremundo?
nos olhos do pequerrucho aqui fora, pé no chão, costela varando a O vagaroso estirou o beiço para o quintal
pele — olha o tamanho da barriga -— que olhava, dedinho no beiço, — O tempo, seu Floremundo?
para o tabuleiro de cocada cheio do moscas. Na linha, os bondes — Quem mais?
reservados esperavam os grupos escolares, os colégios, o Ginásio, a O tempo? A cidade? O tempo até que consentia, afofando a
Escola Normal. Alfredo tentou reconhecer professoras do seu Barão. tarde de sossegadas nuvens caseiras, a aragem pelas folhas do quintal.
Diabo! Já nem mais pareciam, de tão usadas, com aquele tanto suar Pelo vizinho, um gulugulu. Hora da vá da Esméia abancar no lado do
debaixo do braço, e toca atrás dos alunos que apanhavam o bonde no portão, com o seu tacacá. Com pouco, chegavam as duas freguesas de
risco de desmaiarem em massa. Resfolegando, esfalfado, desculpe o toda tarde, as moças da cocheira que vendia zebu de Minas, como
atraso, desculpe o atraso, desculpe o atraso, chegava o trem de sempre nem boa-tarde a ninguém, bebendo tacacá no cupim de suas
Bragança. Seu maquinista, jogue daí uma rapadura! Me atire um soberbias. Os rapazes do Aston Vila iam bater bola. O intérprete do
camarão seco! gritavam os meninos. Passou no auto oficial o orador e Hildebrand subia rumo de Manaus. Subitamente invadindo o
seus archotes. Pendurando no charuto a data cívica, entra o Diretor do alpendre, largo e breve cantou a galinha nanica da Nini.
Liceu no landau do Comendador, este com os seus oito anéis de — O tempo sossegou, seu Floremundo. Vai fazer a barba?
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— Mas depois de comer? Me rogando que eu estupore? Seu Floremundo se amaciou por dentro, aquele sossego dela é minha
Vagarosamente, seu Floremundo entrou na alcova, espiou nos melhor sustância. Vigie Jardelina olhando essa cristaleira. Lá na
móveis, no relógio francês, enfia a cabeça pelo cortinado do leito, palhoça do retiro, lugar das tigelas, duas de barro, duas de folha,
diacho, a modo que cheira a jasmim? Do pai velho que não é. xícara, prato, bule, era na tábua mesmo, o pote d’água com o caneco
Jasmim. É da cama ou do jasmineiro vizinho ou rocei nas folhas dele na boca ao pé do esteio onde a Jardelina grudou, tirada de uma
lá fora, não acerto. Vamos que a mãe fareje. Do velho? Não. É do ar, revista, a pintura italiana. Olhando essa cristaleira, então que os olhos
uma corrente do jasmineiro das pretas. Mas por onde entrou, as de Jardelina ficariam inocentes, lá do fundo a matuta olhando, bem
janelas fechadas, a porta? E jasmineiro, para recender assim, só de menina, logo disfarçando, a procurar pela casa um serviço, Sossegada
noite, no calmo, os cachos no escuro. Vamos cheirar de novo. É. que é mas sempre atrás de uma ocupação. Nem ao menos sabe que
Jasmim. existe louça assim, em tão tamanha quantidade, só de se ver, de
Na sala, arriscou um dedo pela palhinha do sofá, na perna da servir-se, deixa-te-está, te serve delas com os olhos. Desejo da
coluna, o lustro parecia despencar. Voltou ao leito, soprou, sacudiu a Jardelina — menos de boca, mais no juízo — era a máquina de
colcha, o cortinado, virou o travesseiro. Do pai não era. Dudu costura, me dá assim mesmo usada, já de muita mão, caraquenta,
cheirava a calça de homem que faz para a loja, a ferro de engomar. O semelhante uma que viu, virada a um canto, no Pindobal, espólio do
pai, agora, só cheirava a viagem, a sarro daquele cachimbo, e finado Duó Serra, reclamado por seis herdeiros. Era só pedir a seu
embirrava com jasmim, agora se lembra, embirrava. E então? Mocinho para armar, azeitou, encorreiou, e tinha com que costurar
Assustou-se, era Alfredo a seu lado: um pano. Jardelina era sabedora que em casa, na Camamoro, duas
— Poeira na cama, seu Floremundo? máquinas, tinha. Duas. A velha, da mãe dele, de serventia diária, e a
— Até que não. Só apreciando. nova, da Graziela. Fazendo par com o bandolim, a nova só só era lim-
[79] Ficaram em silêncio, à espreita, apurando o faro. pa, encapada, sempre chegando da fábrica. Pois outra ocasião, vou
— Tenho de ir. negociar, Jardelina, o ferro velho dos seis herdeiros, assim que me
Falou o seu Floremundo, como se lembrando. Passaram-se para desembaraçar das tantas obrigações, embarque de gado, esta cidade,
a varanda. Alfredo entrou no quarto, quis apanhar a loção da Nini e casamento da Felipa, bicheira dando nuns bezerros, tira certidão em
respingar no jazigo. O vidro na mala fechada a chave. Aproveitou a Cachoeira para os autos, que já medem légua e meia, da Questã. E
breve ausência do seu Floremundo, correu, cheirou o travesseiro: era, não esqueça que tem ainda de esperar a sentença do juiz sobre o
sim, Será que o cheiro aumenta, vai impregnar toda a casa, agora? Ou espólio. Seu [80] Leô|nidas vem servindo, de perito. A esta hora o
seu Floremundo astuciou abrir o travesseiro onde a O. Dudu escondia alfaiate anda pelo Anajás. longe, atrás de quem lhe encomende uma
aquelas cartas? roupa. Seu Leônidas, de volta, chega ao Mutá, avalia, e avalia reto,
Já o seu Floremundo olhava a cristaleira atulhada. Uma igual a nasceu conhecedor.
essa, Jardelina algum dia viu? Nem-nem por sonho. Jardelina. Outra Pois não, outra ocasião, compro. O mais, Jardelina não
ocasião te levo na cidade, rapariga, disse a ela, uma tarde, por dizer ambiciona. Por exemplo, essa lixaria aqui toda, de tudo isso um e
Jardelina escutou, depenava a marreca. Jardelina ah pessoa sossegada. outro enfeite, Jardelina podia pendurar pela parede, nunca soube ser
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enfeitosa aquela rapariga Bom que ela nunca serviu a branco. sangrando com a ausência da irmã, dele vem uma voz. É dos
Jardelina. a família dela? Tivesse anotação de família, olhe idade! a professores?
primeira linha escrita ia principiar lá dentro da maloca, tempo em que O convite do seu Floremundo era correr Belém até encontrar
aquele rio era, de ninguém mais, dos seus bisavós Que ele vivendo aquela a quem os dois, por todos, devem pedir perdão?
com ela, branco não se considerava meio branco, branquicento, vá lá, Ou sou eu que estou, pela primeira vez, encontrando um
mais para a parte do índio, Diabo é a raça dos Menezes escorrendo na homem? Em Cachoeira, o pai, os tios e os Outros assumiam, de certo
família Nos olhos da Graziela — só não vê quem não quer — modo, um parentesco tal que não podia julgá-los, considerá-los parte
prevalecia o olhar menez. Deles vazou também para a filha que ele do homem, esse que é o alheio desta cidade, o seu Camilo entre a
tem com Jardelina? Anarquia e a fábrica, o pastor da Ponte do Galo entre a Dadá e o
A pergunta de Alfredo, respondeu com brandura: barco do Maranhão, o Professor Moquém entre as decaídas do
— Estou de navalha cega subúrbio e o sobrinho tomando o hábito em Roma, já melado no
Alfredo escarafunchava aquela resposta. Me deixe que afio Cuspe da Antonieta. Nega que Lucíola foi, com efeito, também mãe
De afiar navalha, gostava. Afiou a do Leônidas. afiou a do seu dele, que foi também nascido daquela solidão, noivado e morte?
pai, e ainda não tinha a sua, que barba dele, a malpenugem, o barbeiro Aquele repentino defunto no xadrez, que velou durante a noite ao
tirava se rindo: Mas, meu filho, já querendo tão sem tempo? Pra se ter lado da mãe, da grávida e do carcereiro, aquele, por exemplo, era já
barba, bote... Aproveite de grande a cara enquanto é lisa. Plantio de de sua família, tragicamente no chalé. E a filha, que agora pariu do
barba quem faz é o mundo, meu penugento. Cada fio é uma aflição. pai morto, irmã talqual, vai dizer que não? Escreveu para o chalé que
— Seu Floremundo, eu afio. valessem a criatura, sabendo embora que tal mie e tal filho, a canoa
Como se lhe dissesse: barbeie suas aflições. que tomam é da linha de Belém. Assim por toda a noite e no entrar
— Agora, não, não presta. Também me deu foi um fastio de desta tarde, Alfredo encontra nesse seu Floremundo o homem que lhe
fazei... Uai! Nem a navalha eu trouxe... disse o seu Floremundo vem confiar o segredo. Pela primeira vez, de homem para homem.
tirando do bolso o colarinho, a gravata, o maço de dinheiro. Não lhe vem cobrar a entrada do pagode, como o Capoeira. É ocasião
— Olhe, seu Alfredo, o favor que lhe pedi, só no meio da pera lembrar o que se passou com ele, ainda do Barão, morando na
viagem, lhe vou explicando qual. Mas menino o senhor já não é, que Inocentes, ele e o seu Antonino Emiliano, marido de D. Celeste.
eu sei, taludo que ficou, tamanho! Confio no homem que já vejo no Quando lhe revela que desmanchou em Muaná o sobrado da mulher,
senhor, que eu sei. Então me espere, paciência, é o tico de tempo em para vender os azulejos, o seu Antonino diz por garimpagem pura, já
que mudo esta camisa, é só mudar. o juízo lá no Oiapoque, aqui a perder o menino? Só agora se sente
Alfredo, pela varanda e por dentro de si mesmo, deu de novo crescido? Ou mais exatamente, só agora se comunica?
com o cachimbo, o sarro e a ferocidade da D. Jovita. Logo ressentia-se: a mãe, negando-se teimosamente a confiar
Que homem é que vê em mim? Indagação quase assustada, um nele, a abrir-se. Escancare a porta da despensa, mãe, que veja a
ter de descobrir quem sou, que não ia longe. [81] Com|parou o seu senhora, oiça a mulher que tem dentro da senhora e a senhora
Floremundo aos professores do Ginásio, Esse-um fedendo a boi,
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descubra o homem que tem dentro do filho. Das lições que me dás, — Meu pai não ia aprovar que eu saísse pela cidade em manga
teu silêncio é o que mais dói. de camisa. Por mim que não. Esqueci de lhe dizer que Belém me
Uma esperança, chegou o momento, bom escrever-lhe. Trio repugna.
linhas, enquanto espero o seu Floremundo. Fez uma careta, fez que cuspia não cuspiu, espichado e soturno.
Experimentou a caneta. A pena cega. Destampa o tinteiro, — Ouvi dizer que escureceu de mosca na cidade, quase comem
molha, e escreve, arranhando o papel, letra a letra: Mamãe, só agora, a população. Que deu nas crianças uma tal peste. Que só de anjo que
me sinto... Enxugou o borrão com giz, vendo no ar a cena quando ele foi, São Pedro teve de dizer: por ora, chega. Que passou de muda uma
caiu no poço trazido no mesmo [82] ins|tante pela mãe, que lhe dizia: tulha de tucano. Que era só abrir a boca, olha, bote mosca dentro da
disto não diga nada a ninguém. Dito agora assim: tome esta vida que goela. Foi? Como foi?
lhe dou de novo e não diga nada a ninguém. Agora nesta carta, nesta — Quando eu ia saber direitinho, meus tios me levaram. Me
pena aberta, de repente pede: me ponha na palma da mão o que tanto lavei das moscas lá no rio.
guarda. Ouvia a Areinha falando dela, de mal sem medir o mal, de — Aquelezinho nosso rio, que até que aceia, isto é exato. Este
bem sem medir o bem, e tudo na mês era aquela, ação para trazê-lo a da cidade nem o salobro do mar que às vezes entra e vem cortar as
Belém. Que a mãe, embora muito do chalé — ou não? — tinha as tantas fezes. Tudo aqui é o bastante pra uma peste.
suas fraquezas pela cidade, tinha. Aquela barraca na Bernal do Couto [83] — Os tucanos não deixaram peste. Acho que até levaram.
que ela, em 1918, tanto tanto quis comprar? Por que não a vê, de Limparam um pouco a cidade.
novo, no Teatro da Paz, a luz do palco sobre o rosto negro, o silêncio — Olhe, olhe... O senhor fique aí de vigia. Vigie e me escreva.
dela, ao lado do Major, ouvindo a ópera? Perdida ópera do pai e da — Ficar, fico, tenho de ficar.
mãe. Arias que nunca ouviu nem ouvirá mais, árias ao preço da — Mas tratezinho de saber como ficar. Até puxo que essa mea
borracha, tempo do padrinho Barbosa com o ganso ouvindo sobrinha lhe pendure quanto antes o caroço de tucumã no pescoço.
gramofone e a menina no tapete. Grite socorro antes do risco.
Guardou o papel, guardou aquelas palavras para um dia. — Já não vou me fiando em talismã, seu Floremundo.
Seu Floremundo demorava. A esta hora a mãe dele, pai e irmã, — Só de boca, que o Senhor diz. Só de boca. Eu que estou aqui
caminham para o Arcebispado. pra lhe dizer.
Correu até a porta da rua, espiou o campo, o canto, a jaqueira, a Alfredo voltou à porta da rua, espiou, e lá noutro lado, no
Penitenciária. Voltou: que é que faço do Ginásio? Ou o que é que o capinzal — pois não era? — a Ana de branco. Acenou-lhe. Ana lhe
Ginásio faz de mim? deu as costas. No sol-com-chuva da tarde, ela caminhou para a linha
Seu Floremundo voltou sem ter mudado roupa, o mesmo do bonde, de chinelas, via-se. Sumiu D. João adentro. Em que que
conviva de quintal, tornou à cuia d’água. Ana mudava? Antes correndo, poldra solta, o pé andeiro, obrigatória
— Foi o sal da carne, o não dormir resseca. em quarto de defunto.
Volta do fogão onde acendeu o cigarro. Esperou. Passou a Bina, a feia perfeita, num cetim colado,
lhe atirou uma carta, a terceira no mês.
46

Abriu. Miudinha letra, o dizer sarapeca, o que tinha de feia e de pouco. Agora os meninos da Manoel Evaristo para dentro do quintal
reboleado no corpo, tinha de inocente, triste-triste no escrever. tome pedra.
Já a Bina voltava do canto, reboleando nos seus cetins que lhe — Respeito as praxes do meu pai. Assim é também em
davam um ar de uma do mundo e não era. O que parecia não era. Cachoeira se vou na ocasião que ele comparece no Conselho e
Bina, passando, falou ceará puro: assume.
— Estou brincando não. Estou brincando não. Assume, Alfredo escutou como se visse o velho Delabençoe, no
Alfredo arrepiou-se. Ficava um eco de malefício. Aquela gabinete do Intendente, assinando pela mão do Major os ofícios,
Inocente e feia transpirava paixão e praga. Lá vai dobrando a rua rubricando os talões, visando os papéis da professora. Assume,
debaixo da chuva miúda. Alfredo ouvia o chamado do seu repetiu o seu Floremundo, com circunspecção filial.
Floremundo. — E assim, quando é isso, tenho de me enfarpelar.
— O senhor com pressa, não? Cerimonioso, resignado, deixa que Alfredo lhe tire as
— Não, não. Espero. abotoaduras.
— Não tem lição pra estudar agora? Três palmas na porta da rua, a velha parteira entrando com um
— Hoje só é o seu passeio. embrulho. Sentou-se na varanda, seu Floremundo lhe pedindo a
— Me admira que com tanta mosca na cidade, aqui nesta casa, bença. Alfredo lhe deu um gole d’água. A velha abriu o embrulho,
que demais podia ter, não tem. Não tem tanta. papel de loja, seis rosas para o Alfredo.
Não lhe disse que foram os tucanos? D. Dudu zelou bem. — Mas D. Santa!
— Muita coisa aqui nesta casa fede. Repare com o seu nariz. Seu Floremundo se aproxima:
Aquela carne na corda. Aquele mobiliário, não sei por que, mas é. E — Raça de rosa assim é raro.
os mais cheiros. As moscas não tiveram noticia? Alfredo, sangue no rosto, que vai fazer com as rosas? Que dizer
— Aqui a casa é em cima dum cemitério de bailes, seu à velha? Seis rosas diante delas o rostinho murcho-murcho da
Floremundo. parteira, rosto de pau roído, a voz desbotada.
[84] Seu Floremundo olhou o cachimbo da mãe. Andando sem — D. Santa, a rosa que apanhei, aquela, hoje... Ana ficou
sossego, Alfredo amarrotou a carta, pulou para o quintal. As formigas braba?
tinham restabelecido os seus comboios. Atrás da cerca, alguns — Cismo que não. Ana é braba de nascença. Está bordando.
meninos espiavam. De repente atiraram pedra. Caiu-lhe aos pés um — Agora?
caroço de manga. Os meninos assobiavam. Alfredo, na cerca, acenou: — Na casa de uma comadre dela na Soares Carneiro. Algum
— Algum de vocês entrou se cortou no vidro? mal ter apanhado a rosa?
Os meninos apedrejavam. — Era de Ana.
Entrou, com uma pressa, uma coisa que devia ter feito sempre, — A prova é que te mandou essas ai me intimando que eu não
em menino, apedrejar. Até em mangueira apedrejou pouco. Tão dissesse que foi ela. Floremundo, e tu? Demoras?
[85] — Demorar, mea tia? Eu nesta cidade demorando?
47

— Até que fiquei pensando que Ana bem que podia passar um — Que eu saiba, seu Floremundo...
mês lá na fazenda bebendozinho um leite... Que tu acha? — Já não está aqui quem lhe perguntou.
— É só a senhora falar... — Entreolharam-se, rindo, e logo Alfredo:
— Com a peça de tua mãe? Agora isso... ah! — Ir no hospital a esta hora, a esta hora!
D. Santa, num gesto aborrecido, sossegou-se na cadeira, ali num [86] — Cisma que a neta... É?
descanso. Com as seis rosas no braço, Alfredo foi espiar no quintal: — É o cansaço da velha, olhe que cansa.
uma e outra pedra. A velha se levantava: — Sim, que muito cansa, é. Do senhor que não é a culpa.
— Bem, gente, já me Indo. Agorinha-agorinha venho saindo Seu Floremundo entrou no quarto, abriu a mala, parou, meio
dum parto. De noitinha, conforme for, é outro. suspenso, meio contrariado. Esta repugnância pela cidade devo
— Seu Floremundo, vamos deixar primeiro a D. Santa em casa? guardar só comigo. Foi ruim dizer ao. moço. Vi o olhar dele. Deve ter
— Isso que não, meu filho. Daqui inda sigo... vou atar um tomado como uma ofensa. Vi o olhar dele para a velha parteira. Mas o
cordão na barriga duma pra a criança dela não subir pro peito. E mais, estudo dele, esse, eu respeito, é o que talvez se salve nesta cidade.
tenho de ver mea neta na Ordem Terceira. Hoje primeiro dia dela, ah Mudava de camisa? Era como se obscuramente dissesse: mudaria de
graças a Deus. família? A camisa parecia menos suja que empapada de toda a
Alfredo deixou as rosas, apanhou-as, tornou a deixá-las. viagem e de todo o serão passado. Despiu-se dela, vagaroso, se
— Deixe numa cuia d’água. despindo da noite, aquela, do quintal, mais do quintal que do céu.
Alfredo via a Dalila na tina, o pajé lhe dando banho. Custou a achar na mala outra camisa não marcada pela irmã. No
— D. Santa, não é já tarde e longe pra senhora ir no hospital? mesmo que vestia, empinou-se, atento: não disse? A chuvinha lá fora,
— Pra mim? Nem ir no bonde careço. Antes vou amarrar a chuva da cidade, pingando a sua imundície, o que mais doeu no seu
barriga da Sofia Arantes na D. Januária. Depois vejo a Dalila. Floremundo, já num repente de fechar a mala e sair-se, sem nada
A velha desceu o batente, arqueada, consumida, levava de volta explicar, mas depressa — contrariando seus hábitos — depressa no
o papel de embrulho, dobradinho. Arari, depressa, entrando no retiro:
— D. Santa, foi a Ana mesmo? — Jardelina, tempo não tive de trazer tua encomenda. Outra
— As rosas? que que havera de te mentir? Agora se ela sabe ocasião, te trago.
que eu soltei a língua. Ela não te escasseou aquela rosa, meu filho. A — Seu Floremundo, isto já nem me coça, deixe que lhe diga,
prova não é as seis rosas que ai estão? O mais na Ana é mimo. tenha paciência, mas o senhor é sempre da outra ocasião. Acaba o
Alfredo entrou, ajeitou as rosas na cuia d’água, voltou ao senhor.., acaba gente por ai lhe botando o apelido de Outra Ocasião.
alpendre: as pedras cessaram. Entra o Alfredo, curioso da mala aberta: retrato de Luciana?
— Certo que a mea tia carrega uma cruz com as duas netas, seu Seu Floremundo tão vagarosamente se vestia, bem verdade que
Alfredo? A Dudu me jogou umas amostras, é? O senhor que apressado por dentro.
testemunha, é? — O senhor vai me guardar silêncio. O senhor sabe...
Alfredo olhava as rosas na cuia e a Dalila nas mãos do pajé.
48

Alfredo acendeu-se: é agora. Agora que vou saber. Não é o das casas altas da Travessa do Curro? Os sobejos do cetim e do fustão
retrato, a própria. Mas intimamente culpado por não dizer à velha da madrinha lhe colavam no corpo, a feia passava pela Mu-
parteira que Dalila estava no pajé. Ao menos acompanhar a avó até o nicipalidade e José Pio, na última moda, se por fora escandalosa, por
hospital, trazê-la de volta. Seu Floremundo fechou a mala. dentro castamente apaixonada. Os rapazes a esperavam no canto e ela
Seu Floremundo atravessado por um repentino mau agouro; a fechava a cara, a sacudir-se, asperamente fiel a Alfredo que dela se
Questã. Por que não vai, não desengasga no focinho do advogado escondia. Agora é a carta aqui na mão, carta de mal-amparo, que te
umas tantas verdades? Pela consulta sobre as sete cartas e o retrato, o pede o que fio tens.
dr. Gurjel não vai se Contentar com as coalhadas. É mais uma soma Ana, pelo estaleiro, chamada a bater a quilha do barco.
na conta da Questã. E embarque boi, prepare boiada, tira certidão, Aqui no jasmineiro, Ismênia não se expõe.
paga o agrimensor -e sofra embargos. Em Cachoeira, seu [87] Domin- — Pronto, me enroupei, às ordens, falou o seu Floremundo,
|gão não se cansa de gritar no meio da casa: nos roubaram tudo. Os paletó e guarda-chuva, num passo jururu.
advogados! Nos tomaram tudo! É o seu urro, todo dia, do viúvo e Ao passarem pela taberna, sai por entre o peixe de salmoura e o
esbulhado. Foi a sua Questã e ali está com açúcar no sangue, a mesa toucinho sob as moscas, numa aragem de perfume, a D. Brasiliana,
posta sem um bago de farinha e o nos roubaram tudo. chapéu, sombrinha, bolsa.
Também no correr que vai nessa Questã, acabamos na beirada, — Sua família, seu Floremundo, viajou de auto. O carro deles
pedindo passagem no rio e ninguém escutando. Ninguém, ninguém. E chamei pelo telefone. Um para o senhor?
adeus o Advogado e o Arcebispo nunca mais. [88] Estou vendo as tuas artes, Malazarta, cismou Alfredo
Com esse temor, contou o seu dinheiro. olhando a rua sem sinal de bonde. Seu Floremundo — mas se eu
Alfredo, no alpendre, atento aos fundos da cerca, impacientou- nunca troquei duas com essa criatura — cumprimentou a dona,
se. Os meninos voltavam a apedrejar. Desceu e viu, atrás dos banhado de espanto e perfume.
meninos, de branco, a Ana, que mandava apedrejar. Quis afastar uma — É só chamar. Chamo, seu Floremundo?
estaca e sair pelos fundos, impossível, e tome pedra, Ana tinha Seu Floremundo, tentando abrir o guarda-chuva, olhou para o
desaparecido. Alfredo que espiava se vinha o bonde, olhou’ para
As pedras cessaram. Alfredo esperou. Espiou. Ana entre os D. Brasiliana que levava o jacamim para debaixo do balcão e já
meninos, debaixo do açaizal. Ela agora no meio da rua, da Manoel no rumo do telefone. Fingia não ver o ginasiano, este rio meio do
Evaristo. De crer que seguia para a baixa, dobrando, sem dúvida, para trilho, torcendo pelo bonde que não veia.
o estaleiro. Os meninos debandaram. Seguiam de carro até ao Ver-o-Peso. Ela, entre os dois, teimava
Foi ao portão, batiam bola no campo, gente em volta do tacacá não ver o ginasiano, sempre voltada para o seu Floremundo e seu
debaixo do jasmineiro. Olhou a Penitenciária. Bina ali entrava se Floremundo atarantado. O carro sacolejava, a dona ralhando: mas que
despindo do cetim e do rebolado, devolvida aos seus daquela seca, ali tanto sacolejo é esse, seu Marituba?
desde que tempo. E as roupas dela, de quem? Não era da fábrica nem
do mundo nem tinha zebu. Presente da madrinha, a madrinha de uma
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Não é bem como montar, seu Floremundo? Quando me leva lá D. Brasiliana mexeu o ombro para o lado do estudante. Seu
na sua bela fazenda? Me põe em cima dum búfalo, quando, seu Floremundo se assoou, pesado e desentendido.
Floremundo? Não põe? Me ponha! — Seu Floremundo, uma palavra, homem!
— Este-um aqui é mais na .feição da senhora. Sacode, sim, mas Seu Floremundo até assustou-se, o toque dela no braço, no
não derruba nem assa. Mas dizer que dele não me arreceio, isso não receio dele, no nojo, na sufocação, peso de perfume e ombro, aquele
digo. Não é o fogo que faz o bicho andar? rosto em cima; roçava-se nele a mulher, sacudia os braceletes, da
— Olhe que fico esperando o seu convite, seu Floremundo. cabeça aos pés vestida de contrabando e já por dentro da família com
Espero em Deus que um dia vou ser convidada, Que aquele seu pai, todo o seu telefone. Alfredo agora se admirava. Como D. Brasiliana
de tanta promessa dele, criei calo na memória. soube? O velho? Ou entre o Marco da Légua e a taberna corre uma
— Não tiro a razão da senhora, quem promete... passagem secreta? Alfredo assobiou, impaciente. Ela sem vê-lo, a
— Seu Floremundo, vá, marque data, me prometa então, que a desconhecê-lo, voltada para o seu Floremundo. Antes de sair na
sua palavra é um tiro. Quinze de Agosto mandou parar. Entrou na casa defronte, rápido.
D. Brasiliana esticou o braço cheio de pulseiras, recendeu mais, — Vamos, é melhor pelo Bulevar. Quero uma paradinha na
enfiou a mão pelo joelho adentro, era o nó da meia, a liga? Alfredo Alfândega.
não sabia. Qual das duas agora? A taberneira, a contrabandista? Nem Uma quadra, e de novo salta, entra no sobrado, não demorou
uma nem outra. Era a que fala ao telefone, a que anda de auto, agora saiu, dando adeus às senhoras que se debruçavam na Janela.
se apropriando da cidade, dama do alto comércio e das profissões — Bem, agora a Alfândega. Ah. Mesmo nesta chuvinha ti calor.
liberais. Ah.
Como então que seu pai? Que foi que deu no seu pai, na cachola Da bolsa tirou o leque azul de pontas douradas, abanou-se e
do seu pai? Fazer a senhora dele desarmar a rede branca dela lá na então fez que deu com o ginasiano, olhou de revés, indagou do
fazenda, deixar lá o leite à toa coalhando e arriscar-se a tamanha Ginásio, numa voz protetora. Alfredo, sem responder, encarou-a. Ela
viagem? Neste tempo! Não é festa de Nazaré não é nada! E ter de ir interpõe o leque, logo abana-se, examina a farda do estudante, os
no Arcebispo e ter de ir no Advogado... sapatos, muito madrinha. Espichou o beiço, fechou o leque, ar de
— Como? quem fala a menino:
— Não meta rolha na conversa, seu Floremundo, que de tudo — Então?
um pouco o ar me enche os ouvidos. Meu outro telefone é sem fio. Só — Então o que, D. Brasiliana?
cortando a foice a barbona do seu [89] pai! Onde estavam as cautelas — Quantas?
do vosso galante e digno genitor? — Quantas?
D. Brasiliana escapou um risinho, logo se fechou, ensaiou um — Levo nesta bolsa a petição ao diretor dos Correios para botar
bocejo. na nossa bela rua uma caixa postal. Só assim. Satisfeito?
— O senhor, que é filho dele, não atalhou a tempo? Não — Boiei, D. Brasiliana.
preveniu? Como seu pai... Procedendo feito um menino. — Quem não te conhece que Sarepeca.
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[90] Deu-lhe um beliscão na coxa, temperou a goela, agora com — A esta hora a sua família despachando altos papéis com o
o sacolejo do carro fez foi saltar os braceletes, colares, o peito, e mais Arcebispo. Como então que esse seu pai?! Mas tudo acaba em boa
perfume e fitas do chapéu e cada vez mais Senhora no comércio. amizade e boa paz, se Deus quiser, minha oração é forte. Não convém
— Primeiro aqui, pare. susto. Por isso, não. Nossa Senhora de Nazaré põe uma pedra em
Subiu no dentista, desceu. cima.
—. Marquei hora, meu senhor. Este pivô, não me dou com ele. Olhou o céu, benzendo-se, sem se virar para o ginasiano, logo
Nunca foi no dentista, seu Floremundo? acolhida por dois senhores de pasta e anel de doutor. Um deles,
Alfredo riu, um rir alto. Alfredo reconhece mas veja aquele ex-noivo da D. Emília Alcântara,
Ela com um talho de boas maneiras engraudava os olhos no o Dr. Viriatinho, todo no H. J., cravo [91] na botoeira, boas banhas,
estudante que pôs as mãos na boca, enchia as mãos com o riso, abria enxugando o cangote próspero.
as mãos para fora, como para contagiar a cidade, fazer a rua rir, as O Porca Prenha. Alfredo quis saltar.
portas, o bonde parado, a carroça que atravancava. O carro sacoleja, — O plenário está no meio, dr. Viriato? perguntou ela, franzida
pára defronte da Alfândega, a moura saltou. Alfredo espiou a grade da a testa, tocando com o leque a aba do Porca Prenha que lhe tomou o
capatazia, o paredão: o velho Alcântara. Dele nem lembrança? leque e se abanou jovialmente suado. Entraram no Palácio. Alfredo
Esperaram. Com pouco a D. Brasiliana: quis segui-los mas esperou que o seu Floremundo despachasse o
— Agora defronte da Recebedoria. carro. O alto espichou-se para o chofer:
Entrou sob os cumprimentos e alas da Portaria, fiscais e — Meu senhor, deixe ver a quantia.
guaritas. Os dois, no fundo do carro. Já a senhora descia, — Até aqui? Só-só até aqui? Nonada. O carro às ordens. Até
acompanhada de oficiais da repartição. aonde desejava ir?
Dobraram pelo Ver-o-Peso. Laçado pela cidade, carregando o seu asco contra a cidade, seu
— Espere. Floremundo virou-se para o estudante:
Examinou no botequim os violões pendurados. Entre os — Que o senhor diz?
canoeiros, como sempre, grande dama, muito dada. Andou até às Alfredo queria o plenário, um pulo na galeria, espiar.
proas de caranguejo e peixe, indagou preços, reclamou contra os — Pague, pague.
atravessadores, o adeusinho ao capitão da Força Pública, chuviscou, Mordeu o beiço, enfiado, com a sua pressa, conteve-se, os olhos
abriu a sombrinha, a maré subia na calçada. O carro foi parar defronte lá em cima naquelas janelas do plenário. Luciana não tinha onde. O
da Intendência. Porca Prenha! Seu Floremundo afunda-se no carro, mais barbado,
— Fico aqui no Foro. Tenho de ir na Câmara. Pena não mais sombrio.
acompanhar o senhor, seu Floremundo, na sua viagem. Outra ocasião, — Agora, seu moço, tão tarde que já é...
sim? — Do Curro até que foi um instante, patrão, atalhou o chofer.
E cochichou:
51

Alfredo não via o tempo da corrida mas o da passageiro no tirou do bolso a rua e o número, deu a Alfredo, o carro saltou nas
carro. E só agora ia principiar a viagem, talvez a busca ou outros poças, aos solavancos, dobrou na Vilota, parou no oitenta e três,
desígnios (tu me pagas, taberneira), puxou do bolso o horóscopo. assustando um galo suro que pulou para o meio da rua encharcada.
— Vamos, seu Floremundo? Custou a abrir a porta do carro. O ginasiano apeou-se, saltou a
— Agora é nisto até lá. vala, batendo palma. Barraca fechada, porta verde, janelita escassa,
Alfredo ouviu, ouvindo aquela rouquidão, aquele resmungo. Lá bateu bateu. Espiou pelo buraquinho, escuro, escuro. Veio a vizinha,
da Câmara desciam os ares da O. Brasiliana. Alta, penteado torre-de- uma de perna inchada, tirando espuma de sabão dos braços, titingosa:
pisa na janela, a dama parecia fazer inclinar o velho caçarão, todas as — A vizinha dai? Desocupou não faz nem hora. Desalugou. É a
janelas se enchiam de sua figura, seus cabelos de repente imensos chave ou é só com a ausente?
ondulavam sobre a Intendência e o largo, labaredas de um Incêndio Alfredo, deu-lhe um suor, sem responder. A ausente, a ausente.
escuro. Começou a chegar vizinho. A quadra amontoou-se em volta do carro.
— Até lá, seu Floremundo? Os meninos espiavam aquele-um alto ali dentro do carro, encolhido,
Seu Floremundo piscou muito, destemperado, deitou no colo o rosto esguio, muito só ele, a mão no guarda-chuva.
guarda-chuva, Alfredo endireitou-lhe a gravata. — Mudou num caminhão. Mudou num caminhão, exclamava a
— Ah que o senhor se arma de uma paciência comigo... Lhe vizinha.
agradecer nem sei. — Num caminhão, foi, repetiam as outras,
Olhou as janelas, ganhou um ânimo: — Ela, a D. Joinha, no que recebeu um recado de um senhor
— O senhor aí da frente, aí no piloto, faça favor, viaje. gordo que veio de caminhão, um senhor com um maço de jornal, foi
[92] Agora o piloto tem que virar a manivela, uma duas três tudo num instante.
pegou. Alfredo olhava para as janelas. Ao pé da cerca, o motorista indagando por ovos, queria meia
— Depois lhe digo onde parar. Viaje até lá. dúzia. Alfredo olhava o número da porta verde, o oito em preto, o seis
— Até lá? tornou Alfredo. em vermelho — que dizia o horóscopo? De onde esse cheiro de
— Lá no Marco, é. Lá se sabe a rua e o número. abricó? A perna-inchada:
A rua e o número, repetiu Alfredo consigo, a rua e o número. [93] — Duma hora pra outra. De caminhão. Pra Onde, não
Voa, voa, piloto. A rua e ao número. João Alfredo, Quinze de Agosto, disse. Dela o que ficou, me pediu que eu agasalhasse comigo, foi um
Largo da Pólvora, Estrada de Nazaré, agora na Independência, pé de amor-crescido no paneirinho.
calados, a rua e o número, olha o Museu debaixo da chuva, os velhos Alfredo enfiou a cabeça no carro.
bichos gritando com fome, também viajavam os perfumes, soavam os — Seu Floremundo, D. Joinha voou.
braceletes e os colares, o ombro da moura nos ossos do seu Floremun- D. Joinha. Seu Laudelino de A Imprensa. As astúcias do nosso
do, o beliscão na coxa, carro da moura entre os violões e os Imperador. A filha, esta, que a cidade devorasse.
caranguejos, entrando pelas janelas da Câmara, voa que adiante é a
rua e o número, clareou o tempo, estamos no Marco. Seu Floremundo
52

— Assim então... murmurou o seu Floremundo, se de- [94] — Passearam bem de carro, seu Floremundo? O telefone
senroscando, debaixo dos olhos da meninada, a D. Jovita chega a às ordens.
tempo de só reaver o pé do amor-crescido. No Arcebispado, a família esperou que esperou e foi o seu
Deu a nota de dois mil réis aos meninos que foram correndo espanto: o Arcebispo estava em retiro, por muitos dias.
trocar no canto. A perna-inchada mostrava a planta no paneirinho. D. Jovita — pois até aí só ela a filha que falava — então falou:
Dois ovos conseguiu o motorista. Alfredo apanhou o dinheiro das — Mas as coalhadas?
mãos do seu Floremundo, pagou o carro que ao sair da rua se atolava — As coalhadas, minha senhora?
rodeado de menino. — O cônego Jesualdo?
Os dois seguiram a pé Vilota adentro, silenciosos, seu — O cônego?
Floremundo respirando o seu alivio. As coalhadas que recebeu. Não mandaram para o retiro?
— Olhe ali um pé de loucura, correu Alfredo para o cercado em O sacerdote meneou a cabeça, tomou uma nota. No retrato da
flor. Lá dentro, a moça, socando café no pilão, ..piava-o. Seu parede, o Papa Benedito se fazia muito atento.
Floremundo se chegou, vagaroso, bem mais alto, recortado na — Nem por um instante, reverendo, ele pode suspender as
iluminação da tarde. Queria andar um pouco mais. orações?
— Desanferruja a perna e o juízo. Ah que aqui tem por demais O padre abria os braços numa consternação sem apelo.
lama. — Olhe só que é um só instante, um particular só com ele e só
— Daí em diante é só baixa, olhe que vai atolar. ele pode me dizer a palavra que tanto quero ouvir.
Pararam. Contra carapanã — olha nuvem — seu Floremundo Nunca falou tanto na cidade, sobretudo num salão de bispo, e
levantava o guarda-chuva. falou brusco, surdamente, quase no ouvido do padre que os atendia
— Então aquele seu Laudelino. Veja só o senhor, veja só o com uma atenção familiar, inclinado, macio de explicações, as mãos
senhor. cruzadas, atlético, a mão cabeluda, um tanto beiçudo, observava a
E ouvindo o apito das seis: Graziela a quem o reverendo olhava com um repente de cobiça,
— Ah, mas aqui se mora é feio. reparou o Coronel Braulino, este concordando em tudo, enseiã,
Já os sapos fabricavam a noite. enseiã, corretamente culpado, a passear a barba pelo salão. Bispos e
Voltaram em silêncio. Viram outro carro no oitenta e seis, nova papas da parede o fitavam, benignos. Benze-se diante das imagens,
aglomeração, a perna-inchada explicando. Alfredo e Floremundo, no tomado de uma Contrição protocolar em que suava muito.
escuro, espiavam. O carro fez a manobra, atolou-se na esquina. D. Jovita teimava junto do padre:
— Levam o pé do amor-crescido? perguntou o seu Floremundo — Mas as coalhadas?
numa zombaria triste. Esperaram que o carro se desatolasse. Ouviu-se Voltou-se para a filha:
um trem. Os dois apanharam o bonde. — Ou aquele descansado, aquele poço do descanso, não
Ao descerem na José Pio, D. Brasiliana, num robe de florão, mandou entregar certo e a tempo, hein, Graziela?
com o jacamim ao lado, pesava um sal.
53

Apoiada no velho consolo, Graziela respondia, pausando as Senhor dos Pessoa. Passavam pela Sé onde o seu Lício, lá dentro,
palavras, debaixo dos olhos do padre, e de novo o padre, dando à frente ao altar, usando as velas, lia beatificamente o seu Kroptkine
velha santinhos, beiçudamente explicava, cabeluda mão de agora encadernado. A porta da igreja, a velha cafusa, balaio no braço,
esmurrador, inchando os músculos debaixo da batina, Como se tão desejosa de ali entrar, temia entrar e esperava. A família não
estivesse remando numa iole do Clube do Remo na Guajará. Ficaram conhecia a Mãe Ciana. Bateu bonacheirão o sino de Santo Alexandre.
em silêncio em torno da mesa do Centro sob o olhar dos bispos e dos D. Jovita abriu a bolsa onde guardava as sete cartas e o retrato.
papas. Noutra sala, acendeu-se a luz, apagou-se, veio correndo a gata, Guardou os santinhos. Parou, a esperar pela filha, olhou por uma
desceu [95] a escada com arrebatamento e súplica. O padre cruza e porta de parede grossa que abria fundo para um escuro em que se
descruza as mãos, a inclinar-se para a D. Jovita fincada na busca do entocavam os bicheiros, petrificados atrás da banca. Sala dali um ar
desagravo conjugal. Tocou a campainha lá embaixo. Velo um rapaz, de mofo, presságio e morcego. Os três emparelharam e entram no
sacristão ou fazendo as vezes de porteiro, cabeça à escovinha, olhou o largo do Palácio a caminho do escritório do Dr. Gurjel na Manoel
padre, murmurou, desceu — passa o tabuleiro de alface e vinagreira Barata, passando pelo Foro. Era uma tarde de Júri.
— a gata miava subindo descendo a escada, o rapaz a enxotou para a [96] — Mamãe, espere, espere. Essa voz... Aí no Júri, mamãe.
rua. O padre chamou o rapaz que não entendia o recado, o padre É ele mesmo, mamãe. No escritório, não está, que eu sei. Está com a
impacientou-se, o rapaz desceu. Fez-se um recolhimento em todo o palavra.
velho Arcebispado. A família, ali de pé, a modo que ia ficar para Os três entraram no Palácio da Intendência, na sala térrea, o
sempre, parte do mobiliário, dos ladrilhos, dos lentos, bispos e papas. Júri, onde bradava o Dr. Gurjel.
Graziela foi até a janela olhar a rua, olhar a gata que sumiu. Virou-se Tinha nome no Crime, o tal que era o tal na tribuna,, a quebrar
para o salão, circulava os olhos até que viessem pousar nas mãos vidraça e coração de jurado, fulminando a Promotoria. Coronel
cabeludas, no beiço do padre. O coronel esperava, barba tranqüila, as Braulino ficou na ponta dos pés a ouvi-lo. E sempre na lapela do
sobrancelhas pacientes. D. Jovita, rígida, na sua roupa dever-a-Deus. orador o feixe de jasmim lilás. Era o advogado quem sustentava, nas
O padre não sabia como despedi-los e os três, como despedir-se. Toca baixas e altas instâncias, a Questã. D. Jovita, a custo, rompeu o
a campainha lá embaixo, Irrompe lima vara de seminaristas, aperto, entra na sala do Júri e apanhou um, talvez oficial de justiça, e
escureceu o salão, o Coronel intimidou-se, a D. Jovita estende a mão lhe pediu levasse o recado até lá, até aquele reboar que abalava a sala
ao padre, e este dá a mui para o beijo da Graziela, e os dois, marido e quente, à cunha, com aglomeração na rua olhando pelas grades.
filha, seguem a senhora pelas escadas do Arcebispado. — Mas agora, minha senhora? Agora? De todo impossível. Isso
D. Graziela trazia no beiço a mão cabeluda, no ouvido os apelos aí enfia pela noite, enfia pela madrugada.
da gata. D. Jovita, o passo enfurecido, espalhava a sua roupa-de-ver- D. Jovita avançou, recuou, chocando-se na barreira de gente e
a-Deus e as suas iras pelos sobradinhos velhos que acordavam de sobretudo da voz que o possesso despejava, esbracejando, entre o
repente e se perfilavam à sua passagem, com andorinhas nos beirais. copo d’água e a pilha dos livros na tribuna. Nisto, no ombro da
No reboque, marido e filha, sem trocar palavra, lentos, como se senhora, o toque, e os perfumes e o roçagar de roupas e o chocalho
esperassem — vai desembocar desta esquina — a procissão do
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dos colares e braceletes, a D. Brasiliana descia da Câmara, em D. Jovita lhe fez um vago aceno, na birra de varar de novo o
companhia do Procurador Fiscal da Fazenda e do Porca Prenha. aperto e chegar até ao pé daquele silêncio; logo reboa a Defesa. O.
— Ah, minha senhora, o Dr. Gurjel? Agora de todo impossível. Brasiliana recoloca-se na sua altura, torce breve o beiço para aquela
Está com a palavra. Não é, Coronel? Está com a palavra. É a Defesa babacuara — babacuara! Empinou-se entre os dois doutores, agora
falando, D. Jovita. toda ouvidos, musa da Câmara e do Júri, esperando que a qualquer
Virando-se para a filha, D. Jovita: minuto o olhar da Defesa colhesse dela a atenuante mais ao feitio e o
— Mas as coalhadas? O poço do descanso mandou certo e a sentimento que arrancasse dos jurados a absolvição. A mesa, no
tempo? centro, chocando a sentença, sob as rajadas da Defesa. Os jurados
Tentava desviar-se de tal mulher que apresenta à família o suavam, rostos pingando, pareciam fumegantes. No estrado, na
Porca Prenha — quem que não conhece o Coronel? De muito nome cadeira de espaldar, embuçado na toga e na irremovibilidade, o Juiz
no Foro. Como anda a Questão? — e aquele Procurador Fiscal, cochilava, com o Cristo na parede cai-não-cai rodeado de osga e
gordurento, de ventarola. A moura, com um doutor de cada lado e de mofo. E aqui entre os dois praças de cáqui desbotado e puído, o réu:
braço, fazia grande sala. matou um no Murutucu e fazia ali o Dr. Gurjel se cobrir de glória rio
— A família dele? Mas não sabia? No Mosqueiro. Crime. Agitando as mangas da toga e sua desatenção à Defesa,
D. Brasiliana olhou repentino para o Coronel, como a dizer-lhe: afrouxando a gola, levantava-se a Promotoria para o café e tomar
ah, bicho velho, ah, meu barba do Imperador, só a~ minhas coalhadas fresco.
não me mandas. Sem perder o ar contrito é culpado, o Coronel ouvia O. Jovita veio arfar um pouco na porta do Foro, seguida pela D.
a Defesa. Brasiliana, deixando o Coronel preso à Defesa. Graziela meio
— Bem Imagino a quanto já lá vão os honorários do Gurjel, aturdida, Pai e filha embaraçavam-se à procura de D. Jovita que aqui
Coronel, murmurava o Porca Prenha, o olhar ávido. fora parecia sufocada. A voz da Defesa escoava-se na praça. Pai e
[97] — Já marcado o casamento da D. Felipa, D. Jovita? indaga filha puderam respirar, alcançando a senhora. Do ponto dos
a D. Brasiliana. automóveis, correram os choferes para o Coronel, disputando a
— Que faz o Gurjel que não mete um recurso... Ora, comigo, corrida. O Coronel despachou-os, D. Brasiliana, como pessoa do
Coronel... Foro, intima do Legislativo e do Judiciário, conduzia a D. Jovita até a
Uma rajada sacudiu a sala, todos se espremiam na direção da esquina, acenando com o leque para os dois, o Porca Prenha e o
tribuna de onde despencou o volume do Código Penal, as rajadas Procurador Fiscal, que ficavam à porta do Palácio.
sucediam-se, trovoava a Defesa, o Porca Prenha tentava puxar o [98] — Aqui vos deixo,. disse a O. Brasiliana já ao encontro do
Coronel para o pátio. Um súbito silêncio, a Defesa bebia água. D. Mendo, um que escrevia revistas para a festa de Nazaré, agora os dois
Brasiliana, leque em cima de D. Jovita, insistia no ouvido da senhora: num longo abraço.
— Aqui em Belém o enlace ou lá na fazenda? Ela está — Mas, Mendo! Me andavas falecido?
comércio, nas compras? Podiam me falar. E de braço com o Mendo, leque no ar:
— Telefone às ordens, Coronel, às ordens, D. Jovita,
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D. Graziela. Recolhido na sua Granja, no Peixe Boi, o ex-Governador. O


O Coronel agradecia, inclinado, chapéu na mão, querendo ainda Coronel Braulino dirigiu a barba para os lados de São Brás [99] de
escutar a Defesa, só pôde escutar: onde o trem saía rumo de Peixe Boi. Também em Peixe Boi tem
— Mendo, meu filho, ora me deixa fazer um papel na tua coalhada, o ar corre fama, as laranjas um mel, e o apito do trem soa,
revista deste ano, negro. na Granja, já tão antigo, Com as sete cartas na bolsa e as trevas do seu
Já lá estavam na calçada o Porca Prenha e o Procurador Fiscal à rosto, D. Jovita olhava o trilho do trem. O Coronel descobria no
espera da vistosa. Coronel Braulino seguia mulher e filha, apetece jardim do seu compadre um pé de jamaracaru. Já o pintinho pelado
uma garapa no Batista, a mulher: não. O nosso Imperador ia apanhar beliscava as violetas. E o pavão? Também tinha o pavão. Ficava pela
o bonde Jurunas, a filha o retém pelo braço: manhã em cima do muro. Pavões de Portugal. Era o pavão no muro e
— Que é isso, papai? O nosso é o Circular. o bronze Amphytrite no meio da sala, recordando a visita do Virgínia
D. Jovita distanciou-se, carregada de suas afrontas, só, a Belém, o iate dos milionários americanos em passeio pela
sustentando o olhar contra os olhares do bonde que parou com um Amazônia o dono do Virgínia, o Mr. Benedict, da E. C. Benedict —
jornaleiro gritando no estribo. Veio o Circular. Desceram na esquina N. Y., na hora do champanhe em Palácio, oferece o bronze ao
da Dois de Dezembro com a Gentil. Passava a carroça da Vacaria Governador e à esposa de S. Excia. um álbum de vistas de Nova
Aurora e revoavam os passarinhos sobre o quintal das fruteiras York, tão folheado pelas visitantes quando a família franqueia a sala,
proibidas, defronte do Grupo Escolar, No portão do ex-Governador, a abrindo as três janelas envidraçadas do palacete. E na coluna aquele
empregada os acolheu: estojo, que o Lampreia me deu a custo, como dizia o ex-Governador,
— Ah a família? Em Peixe Boi. Cedinho, hoje, sim, senhora. íntimo do embaixador de Portugal, também visitante do Pará.
— Sabe se recebeu as coalhadas? Tocaram os sinos da Basílica.
— Que fosse na mea mão, não, senhora. Pode que tenha sido — Pois já-já num trem pra Peixe Boi, ah!
com a outra moa colega. Com licença, sim? — Agora, mamãe?
Entrou: Anésia! Anésia! Onde tu estás? Anésia? ó aquela — Quem me proíbe?
menina! — Ah logo agora hoje... Não tem trem. Cadê trem? acudia a
Sumiu-se pelos fundos, voltou correndo com um pinto pelado empregada indo e vindo com o pé na folha do portão que rangia.
na mão. — Trem nem depois de amanhã. A máquina quebrou.
— Ah a outra empregada saiu. Até que nem me lembrava que Os três ali em pé, em silêncio, na calçada do .ex-Governador.
tinha saído. Ela foi no canto e já vem. Desculpe, sim? — E o pavão? Também em Peixe Boi? indagou o Coronel com
— E do Peixe Boi, quando? a barba nos ferros do gradil, espiando o muro.
— Ah isso é só eles lá, a senhora sabe... Quando, não disseram. — Ah morreu. Fazendo mês, O que tem lá pelos fundos é só
Pode que a outra empregada de mais idade na família tenha um, um papa-mosca.
conhecimento. Ela foi ali já volta, sim? — E o dinamarquês? Na corrente?
— Então não? Deus o livre!
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O Coronel olhava de soslaio a perna da cabocla que ia e vinha lembrava aquele algodão das sumaumeiras avós de Nazaré, ali
com a folha do portão rangedor, o pinto sumia pelo canteiro, dos devotadas ao largo e à Nossa Senhora. Da garapeira, que passava a
fundos um cantar de picota. Chegava a Anésia trazendo o bicho que rodar, o cheiro de garapa azeda. Um caldo, o Coronel pediu, com uma
deu. Trem? A máquina quebrou-se, E mão em concha no ouvido da velha saudade, vendo lá no Itacuã uns tão antigos canaviais com os
colega: escravos no meio, o engenho moendo à força d’água, foi um pouco
— Pois o burro, mea mana! antes da Abolição. Hoje o canavial só é dentro da casa-grande:
Chuviscou. O Coronel abriu o guarda-chuva para a Graziela aquelas moças amadurecendo nas janelas, à espera que o rio lhes
cobrir a mãe, esta a caminho do canto, os três se abrigaram na traga marido, a avó delas se embalando: espero em Deus que depois
mercearia. de casadas, o rio carregue pro fundo este casarão comigo. Ouve o
Que chegou no largo de Nazaré, D. Jovita se emparelhou com o resmungo: seu Sem. Sem. A descer das sumaumeiras, dos coretos,
marido num regougo: bonde passando, garapeira moendo. Seu Sem. Sem. Roxa, obstinada,
— Mas que é já que tu daqui vai até lá comigo ah tu vai, seu solitária, O. Jovita mirava o tempo.
sem... — Bem azedinho esse seu caldo. Ë de cana? Me tempere ele
Afastou-se, a modo sufocada, balançou a bolsa, o marido vira- com açúcar, o Coronel fez sua graça e olhou, precavido, para a
se, vai falar, ela lhe deu as costas. mulher de venta em cima. Respingou garapa pela barba. Seu Sem.
— E é já. Seu sem, sem! Sem. Muita banda ouviu nesses coretos, incluindo aquelazinha da
Numa tranqüila submissão, sem ar de vexame, o Coronel cobria Vigia, a banda vigilenga. Só em [101] agos|to, no lugar de costume, o
a barba com a mão direita, como para protegê-la, e escutando: Seu circo dos cavalinhos. Agosto. Longe está. Mendo, na sua revista do
Sem, Sem! Graziela fingia esperar o bonde, entregue àquela mão ano, vai dar um papel àquela? Quis aproximar-se da D. Jovita, dizer-
cabeluda, ao beiço, grosso, no Arcebispado, corria-lhe pela espinha lhe: Jovita, mas Jovita. Desatreveu-se. A máquina não quebrou? Lá
aquele miado degraus abaixo e logo outra voz, que reconheceu na está na porta da farmácia o seu Godinho fazendo sinais para defronte
Defesa, agora tão reboante, mas tão abafada às três da tarde na José onde entre bilhetes de loteria, pendem máscaras e rolos de serpentina.
Pio, faz um ano, o doutor entrando, de jasmim lilás na lapela: tem O. Jovita distancia-se, deu com o velho lambe-lambe e sua máquina e
noticia do seu pai? Está só? Sozinha? Preciso juntar aos autos um suas mortalhas. Uma fotografia? Uma fotografia? D. Jovita ferrou no
documento que só o tabelião de Cachoeira. Só o tabelião de velho a sua raiva, foi passando. Graziela esperava com a mão do
Cachoeira. Você está só? Só? A prima? O ginasiano? Só? Só? de padre no colo, o beiço do padre, inchando: as coalhadas? as
pasta, o cacho de jasmim lilás e uni bigode sobre ela, de repente coalhadas? Contemplando a Basílica, o nosso Imperador tirou o
apanhada bem debaixo do lustre — só? — de repente debaixo do chapéu. Meu velho, à vontade, diziam as sumaumeiras.
cortinado. Mas doutor.. mas doutor. — Mamãe, de bonde?
— Mamãe, vamos de bonde? D. Jovita abriu a bolsa, tirou o lenço, enxugou o rosto, fez um
D. Jovita não respondia ou não escutava, O velho, com o olhar bico, restou imóvel entre a Basílica e o marido.
nas torres da Basílica, um pouco a crer, quem sabe, que a sua barba — Mamãe...
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— Cala que é, a tua boca, rapariga. Chama. da polícia e espera. Senão, vem, serve de testemunha. Não? Pois
— O bonde? O bonde, mamãe? espera. Entrei. Fui que fui entrando, no que o meu pé subia, me subia
— Tu já viste então Se chamar bonde? Variaste? a ira, me subia um asco, subi, me aparece um soldado. E eu: seu
Graziela chamou o carro. O pai abriu a portinhola para e. Jovita soldado, olhe, o senhor dá licença para se for preciso dar na Cara
que cuspiu antes de entrar. daquele seu superior? O superior tinha se levantado do seu plantão, já
— Marco, diz a Graziela. com a minha primeira bala lhe queimando a orelha, a sala assim de
D. Dudu apanha o Alfredo no alpendre, os dois no quintal, partes, culpados e queixosos, ele ainda de caneta na mão, deu um
sumiram pelo escuro. passo mostrando o dente para o meu lado: mas muito bem aparecida,
— Sujeito mais espora! Pois meu dinheiro de costura, renda de O. Dudu. Continuou? Lhe tapando a boca, eu já desembainhei a
bilro e croché, uma economia pro conserto da casa do Curro! minha língua.
Deu a volta pelo escuro, quebrou um talo de mamoeiro, Arregaçou mais as mangas, puxou o cós.
andando mal nas suas botas do comércio, botas que há um ano não — Cobrar não era, aquele-menino, que eu sabia nunca mais
calçava e calçou a pedido da Felipa para as compras do enxoval. reaver o que tanto poupei de minha costura, bilro e agulha e meu
— Pois a senhora dona Felipa, noutra viagem, me tira da mala o dormir. Era só pra lhe dizer ali na bucha. Cuspi no chão e disse: esta é
meu pé de meia, emprestou ao lunfa a troco de uma nota disque tua mãe e aqui a minha, cospe e pisa. Ah que o sangue do escrivão
promissória. Eu vendo, vendo o meu dinheiro sair: este? Adeus. escoou foi tudo, a cara transpirou verde, teve um soldado que virou a
Daquele escrivão de policia — que ele é escrivão de polícia — que se costa, os outros, mede o tamanho do espanto deles, e eu me finquei na
podia esperar senão a velhacada? Desfechei hoje o gatilho nos frente do etc e tal, com licença do nome, coberto de merda. Pois meu
predicados dele. cobrinho! Era pra consertar a barraca do Curro, se bem que aquele
Alfredo ouvia o cochichar dela no escuro, a proeza irradiando infeliz telhado cubra duas que só são janela e rua. Comprar um
do olhar dela. terreninho só meu onde finque um esteio de que se diga: esse é da
— Com quem é traquejado, traquejo e meio. Nem suspeitou que Dudu. E te dar os materiais do Ginásio, continuar o teu francês, o que
uma qualquer cose-manga de camisa e barguilha de homem ia lhe precisares.
abotoar o peito, ali na venta dos obedientes [102] dele. Juízo me — Ora, D. Dudu!
cutucou por dentro: é hoje, Dudu o teu dia, que vais abecar — Depois teu pai paga, aquele-menino! Ou depois quando te
semelhante autoridade, está de plantão e permanência, mandando formares, Só sei que foi na sala do escrivão o trinhinlin e eu
ladrão de galinha pra solitária. Fui. descascando. Adeus foi meu boró tão um a um juntado, quem encheu
Arregaçou as mangas: o papo não foi esta galinha. Mas que o bicho ouviu, que ouviu, ouviu.
— Já eu danada, danada com os termos — quem esperava? — O que nunca esperava de ouvir, ouviu, Inchei a orelha dele, no que ele
da Felipa no comércio, já com a canela da perna me doendo, falei: podia ter de mais sagrado escarrei dentro. Foi que nem um estampido.
Felipa, tu tem paciência, fizeste o teu papel, agora é o meu, quero Ali na fuça dos soldados, das partes, o canalha, o fígado pela boca,
fazer aqui um interrogamento a meu jeito, agora fica aizinho na porta numa amarelidão! A língua metida no rabo, põe no juízo o que foi.
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[103] Felipa lá na porta esperando, nariz torcido para o mês, carregando o noivado por cima do comércio? Pois loja nem
comércio dos enxovais. Então que ela, pela demora, me imaginando uma!
já no xilindró, entrou: chega, já chega, Dudu, ficando um tanto tarde, — Loja nem uma?
disse. Sai mas de peito lavado. — Nem! Nem uma!
— E o cobre, adeus, D. Dudu? — Não entrou em nem uma?
— Não sai de peito lavado? Não sal com o nome do sujeito — Entrou em todas, uma a uma e nem uma!
debaixo da sola do meu sapato? Não desfechei em cima dos D. Dudu esperou de mão na ilharga, os dentes no escuro. Lá no
predicados dele o meu gatilho? Os praças e as partes não ficaram alpendre os passos de Graziela. De onde vinha aquela voz de
sabendo quem era a vasilha? Com o que me devia, compre creolina gramofone? Alfredo, quieto, meio desfeito no escurume; deu um
pros podres dele. Compre o urubu que vá acabar de lhe comer o resto ventinho nos açaizeiros, tocou o sino de São [104] Rai|mundo. D.
do fígado. Prefiro os amigos na praça. Já disse também que o meu Dudu veio de mão no nariz dele: conhecia a Felipa de Cor e salteado,
enxoval, 1á encomendei. O noivo casa comigo no rumo do Santa direito e avesso, correndo os anos. Felipa Boaventura? A mais sem
Isabel. A lua-de-mel debaixo dos sete palmos. nem uma ilusão neste mundo. Das vaidades, dos luxos, da ambição,
— E D. Felipa? Que diz? Fica por isso? Felipa a légua e meia. Foi enfiar a aliança, vamos comprar o enxoval,
— As primas? São finas. Já inteirou um ano. entra na primeira loja... Eras, Felipa! Tu que nunca tiveste ou disseste
D. Dudu puxou um fôlego no escuro. Olhou para o alpendre: a tua preferência. Tu que nunca escolheste, que nunca te coube
cabeça da Graziela. Na escada, alto, poço do descanso, o seu escolher, nada te cheirava nem fedia. De salão e passeio nunca foste,
Floremundo pitava. Falando mais baixo, a costureira, como figurino nem olhavas, fosse um sobejo a parte que te cabia pegavas, e
apaziguada, foi para mais junto de Alfredo. agora, rapariga? Durante o bonde, ias tão no que for será, sem
— Achas que te contei uma proeza. De mim uma tal ação se nenhuma exigência, ir por ir era o teu ar. E agora, rapariga? Pra quem
espera. Mas tira uma linha da Felipa esta santa tarde no comércio, é, bacalhau já não basta? Loja por loja, modista a modista, esvazia
tira. prateleira, atocha o balcão, saindo, entrando, do lado esquerdo, do
D. Dudu fez um ar malino em roda de Alfredo, esmagando caco lado direito, que nem fiscal cobrando, que nem santo tirando esmola,
de vidro e formiga com as suas botas de solteirona. Pois a Felipa? Os uai, que é que tu queres, descontente? Que é que te apetece, sua
termos da Felipa no comércio! o proceder dela numa loja! A surpresa, fastiosa? Tudo, seja o fora de uso, seja a última novidade, nunca é o
o espanto, a impaciência, o vexame, a raiva então que Felipa foi lhe que procuras? Nada nada que te cubra da prata e do ouro que só tens
dando, entra, sai, sai, entra, na modista, te desconheço, criatura donde nas minas? Nada que te faça ao menos dizer: vá lá, por já ser tão
saiu essa? Era uma vez a Felipa do costuminho, a de juízo tão tarde, a Dudu já cansou a canela, Só erazinho axi... que uso isso, axi,
sentado, a nem carne nem peixe, a sempre come-mosca, aquela abana que vou me cobrir com isso. Este semelhante linho? Este filó? Esta
fogão, a fosse o que Deus quisesse, quem esperava a Felipa de cambraia? Este cetim? Mirava, remirava, apalpa, só transpira enjôo,
aliança, a de uma hora pra outra noiva, sem mais pra quê, casa este mas, Figura! Onde foi buscar tão depressa tão caprichado tamanho
fino conhecimento, só presta o que não tem? Veja o esmero em não se
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agradar de nada, veja a experiente, olhe a aborrecida, o desagrado em — Só na França, D. Dudu?


pessoa, soprando o seu fastio em cima dos caixeiros, coitados. — Tu que aprendes francês, tu me entendes. A Felipa? Pegou o
Asneira, Dudu, que aqui, esta, eras! vê lá, nem de graça, com pouco bastão, viu-se a viloa. Quem te disse que é a mesma?
vomito. A insatisfeita que ficou de repente, aquele-menino! Ontem o — Onde é esse gramofone tocando, D. Dudu? É um fox.
tiro na macaca e agora em Belém — em Belém! — onde o enxoval — É da casa das Ouro, lá atrás, aquele-menino. Um Ouro
para a princesa? navega para a América.
D. Dudu se agitava entre as folhagens. Alfredo seguia no escuro Alheia ao fox, D. Dudu espiava o alpendre, repetindo as
aquela busca pelo comércio e casas de modas, João Alfredo, Santo peripécias da prima. Casamento, não veio a tempo, adeus. Mas o teu,
Antônio, subiram na Madame Suzy, foram até a Peruana (porta da Felipa, veio, já criando caraca, sim, mas veio, valendo os vinte paus
frente os manequins de corte e chapéus, pelos fundos o reposteiro do que o teu noivo precisa para não quebrar o balcão, porém veio. Pois te
randevu) e D. Felipa revirando o beiço e D. Felipa retorcendo o nariz, agarra, mas te agarra antes que o forasteiro, te tomando os vinte, te
e tudo — o mais na moda, o mais bem acabado, o mais no trinque — deixe esperando sentada. Faz da sarrapilheira o teu véu, da corda do
aborrece, reprova, desdenha, refugo, detesta, condena, devolve, joga balde a tua grinalda, e o sim berra três vezes ao Juiz, depressa, e estás
de lado, só falta cuspir em cima, tão incontentada que com o tanto casada, mulher. Não vai nada, não vai nada, era o que só escorria da
escolher nunca escolhia. Pensa que alteava a voz? A mesminha voz boca da Felipa no correr as lojas, no sair das modistas, cada seda! pois
cansada, a mesma sossegada e parda feiúra, o [105] mesmo ombro nem pra limpar o pé servia, olhe esta, quem sabe aquela, desta a
encolhido. Da outra, a inesperada, só era o franzir da testa, e o beiço, senhora do Moreira Gomes levou um corte, nem esta luva, Felipa? No
e o nariz, e sem um ar de se lazer rogada e requestada. Aquela Felipa atelier, então! Folheia o primeiro figurino, o segundo, faz desfilar os
metida no canto? Aquela de debaixo do soalho cerzindo as velhas moldes, mas olhe que este figurino chegou ontem, senhorinha! Senho-
anáguas de pano-da-américa? Aquela que fazia saia de saco de trigo? rinha! Felipa? Quais... Apanha o outro, quem te disse? As modistas, a
Aquela limpando tripa de porco no jirau? A que se agradava — qual- mão na cabeça, o rosto entre as mãos, pasmas. Até que principiaram a
quer uma servia — com as chitinhas de ramagem do Mercado de ser naquela feiúra impertinente a noiva Ideal que desejariam vestir e
Ferro ou do tequeteque. Toma este trancelim de 1$500 e aceitando assim, por brio, deboche e pena, [106] tudo faziam por agradar ou
como se aceitasse um brilhante? A tão sem sal, a tão tia bimba! Vai vergar a D. Felipa, desespero delas, perdido o tempo e a freguesa.
pensando! Saía dela uma, uma, tanto, tempo oculta, reservada para Nem no Paris na América nem na Maison Blanche. Nem uma toalha
esta ocasião, prendada em fazer desfeita, só ela e mais ninguém no uma anágua uma liga. A noiva D. Felipa saia bocejando da João
cobiçar o melhor. Que cravo branco vai preferir, que alecrim, pra Alfredo, os enxovais atrás dela pela sarjeta. D. Dudu não escondia
formar o seu buquê? Então, Felipa, criatura de Deus, agora só na mais o espanto, a inexplicação; na Carrapatoso, um sapato que ela
França. O teu enxoval só na França, filha do Rei. Manda teu pai pedir dissesse: bem, este, vá lá. Meias? Onde? Nem uma fita. A tudo, via,
no ex-Governador, que é casado com uma artista, que te encomende o mede o tamanho do beiço, repara no nariz. De voz cansada, o olhar
traje lá na França. miudinho, só dizendo: não. Não gosto, não gosto, já as portas se
Alfredo agachou-se no escuro. fechavam, já as lojas, se telefonavam, Belém não tinha enxoval para a
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D. Felipa. D. Felipa queria um que vingasse a longa espera? Um Eu, meu tio? E o senhor? Não foi o senhor?
enxoval que não tinha na praça. Nunca o comércio trabalhou tanto,
puxou pelos sortimentos, caprichando nas gentilezas, oferecendo os entra na Brasiliana? Foi subindo com a Brasiliana, a Brasiliana
últimos gritos e em vão para servir à noiva e a noiva nem um grampo. abrindo as arcas, estirou as maravilhas dela. Eu até que parei na porta
Criatura, chega de romaria. O navio inglês está no porto. Te apressa e me dizendo: Dudu, te guarda, deixa me fechar meu olho, pra não
embarca, parte e corre as Europas atrás de enxoval do teu agrado. encandear com as pompas ali sem selo. E tira um retrato da Felipa,
— Até me fio, por isso, que a Felipa desmanche. tira a chapa: como bem habituada, vira, revira... Com uma sandália de
— Perde os vinte pacotes? marroquim ficou? Com um perfume? Um lenço? A Brasiliana, cada
— Enxoval tem que preste? Tem figurino? Costureira do gosto bago de olho! Felipa? Todo o comércio, todo o contrabando ao pé
dela? dela e tudo ao pé dela virando lixo.
— Então só a senhora, D. Dudu. Faça, então, a senhora. Calaram-se no escuro, ao som do gramofone. Alfredo:
— Meu filho, não acabei de te contar, não me atora a palavra. Não estou eu com o meu noivado co4ll as humanidades imi-
— Agora só a senhora. tando a D. Felipa? Do alpendre a voz da Graziela:
— Menino, costurar, costuro mas pra homem e algum enxoval — Mas, mamãe, então quef fe a paciência, então quebre a
que tenho feito mal e porcamente fiz com pano da praça para noiva paciência. A máquina não quebrou? Lá no retiro o Bispo está rezando
sem titi de galinha. Noiva que vesti foi sem mimo. Fosse um saco, um por nós. A senhora já não foi? Não fez o que devia?
balão, um alinhavado, a sem mimo vestia. Não se ouvia o regougo da agravada. Alfredo espiou:
— Desencordoa a língua, rapaz, escuta, que não acabei te Agora, no alpendre, aparecia o velho. Arrastou a espregui-
contar. Pois Felipa, agorinha ao descer do bonde, pá! çadeira, deitou-se, soltando um alívio. Lá dentro foi que foi um
— D. Dudu, a caçula tinha mimo? barulho de coisa quebrando. O velho não se mexeu. Chega no
— D. Dudu ia falar, gaguejou, e Alfredo até adivinhava: quem alpendre a D. Graziela.
sabe a D. Felipa usando os dengos de Luciana? Aquela, sim. Fosse — Mamãe, já no quarto perdendo a cabeça.
com ela, dava gosto acompanhá-la, a ouvir da acompanhada: esta — Deixa, deixa. Antes quebrar que...
gaze, não quero. Deste cretone não gosto. Nunca tem o que prefiro. — Mas também papai, o senhor que crie juízo.
Chegava, mas em Felipa, a vez de Luciana? Não entrou pela noiva — Sossega, sossega, disse abafadamente o velho, levantando-
incontentável um sopro da escorraçada? Escolhe, escolhe, mana se. Desceu, veio até onde estavam os dois no quintal.
Felipa, o enxoval que era o meu, que só eu podia vestir. — Dudu, acode a tua tia. Indaga dela se... Contigo ela bebe um
— Mas, D. Dudu, minha prima da Rui Barbosa costura para as pouco de carmelitana ao menos.
de São Jerônimo. Ornamenta o Palace no carnaval. Quem sabe... [107] — Desencordoa a língua, rapaz, escuta, que não acabei de
[107] te contar. Pois Felipa, agorinha ao descer do bonde, pá! não entra na
Brasiliana? Foi subindo com a Brasiliana, a Brasiliana abrindo as
— D. Dudu arcas, estirou as maravilhas dela. Eu até que parei na porta me
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dizendo: Dudu, te guarda, deixa me fechar meu olho, pra não Alfredo: quem me atirou as rosas nesse lixo? D. Graziela, no quarto
encandear com as pompas ali sem selo. E tira um retrato da Felipa, da mãe, apanhava as coisas partidas. D. Dudu ia dormir no Curro.
tira a chapa: como bem habituada, vira, revira... Com uma sandália de Cochichou:
marroquim ficou? Com um perfume? Um lenço? A Brasiliana, cada [108] — Nem os sonhos no sono vão contentar aquela insatis-
bago de olho! Felipa? Todo o comércio, todo o contrabando ao pé feita. Nem no sono.
dela e tudo ao pé dela virando lixo. Nem no sono, repetia Alfredo, metendo as rosas no bolso.
Calaram-se no escuro, ao som do gramofone. Alfredo: D. Dudu voltou ao quarto:
Não estou eu com o meu noivado com as humanidades, imi- — Felipa, já vou. Amanhã, de novo?
tando a D. Felipa? Do alpendre a voz da Graziela: Entrou. D. Felipa embalava-se, com um emplasto na cabeça.
— Mas, mamãe, então quer e a paciência, então quebre a Embaixo da rede, recortes de jornais com leilões marcados a tinta.
paciência. A máquina não quebrou? Lã no retiro o Bispo está rezando Apaga e luz, é o fio de voz da noiva.
por nós. A senhora já não foi? Não fez o que devia? Chegava o noivo, recebido por D. Graziela que o levou à sala,
Não se ouvia o regougo da agravada. Alfredo espiou: acendendo o lustre, abrindo as janelas. Chamou o Alfredo na varanda:
Agora, no alpendre, aparecia o velho. Arrastou a espregui- — Me faça um instantinho sala para o seu Severiano, sim? É só
çadeira, deitou-se, soltando um alivio. Lá dentro foi que foi um o tempo de chamar a Felipa lá no quarto. Obrigadinho.
barulho de coisa quebrando. O velho não se mexeu. Chega no Alfredo foi à janela: lá embaixo, no vizinho, o jasmineiro
alpendre a D. Graziela. aparava o clarão da sala, Só via o pé da oculta, aquela, que logo
— Mamãe, lá no quarto perdendo a cabeça. recolheu, bateu o portão, o jasmineiro borrifou. Três pirralhos, lá fora,
— Deixa, deixa. Antes quebrar que... bem em frente, ficavam que ficavam olhando o lustre. Veio a D.
— Mas também papai, o senhor que crie juízo. Graziela:
— Sossega, sossega, disse abafadamente o velho, levantando- — Mas que estão fazendo aí? Nunca viram? Sumiço! Sumiço!
se. Desceu, veio até onde estavam os dois no quintal. Alfredo cismou: pertenciam ao bando dos fundos? vá ver vem
— Dudu, acode a tua tia. Indaga dela se... Contigo ela bebe um pedra. D. Graziela:
pouco de carmelitana ao menos. — Seu Severiano, Felipa manda lhe dizer que está com um
— Eu, meu tio? E o senhor? Não foi o senhor? principio de ezipla. Que hoje falar com o senhor ela não pode. Mas
O velho espiou pela cerca, a barba acesa no escuro, espere o café, seu Severiano, que tanta pressa? Espere o café, é que é,
— Tudo fiz para que ela não viajasse, não saísse do sossego a ezipla não pega, seu Severiano, espere, sim?
dela. Já não basta? Já não basta? Já não basta o luto da família? Seu Severiano, pálido, cai-lhe o guarda-chuva, abate-se na
— Luto? indagou Alfredo, sem conter-se. cadeira de embalo, logo se levanta, vai à janela, tossindo, volta-se,
O velho não respondeu, subindo para o alpendre. senta-se, fica de pé, estalando os dedos, dirige-se ao corredor,
D. Dudu e Alfredo entraram. Mas as rosas? Alfredo procurava. retrocede:
D. Dudu batia na porta do quarto onde a D. Felipa se fechava. — Ezipla? Essa agora! Essa agora!
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Alfredo apalpava as rosas no bolso; no silêncio, lá no quarto, a —Ficar aqui? D. Graziela só me pegar dormindo é já que me
ezipla da D. Felipa. D. Graziela se retira um momento e volta: joga sal,
— Ela lhe mandou dizer pro senhor desculpar, que é a ezipla. — Mas aquele-menino! Eu sã te tiro uma linha. O jantar ai te
Se não fosse... Só mesmo amanhã. espera. Graziela matou o sapo com sal?
— Mas amanhã? Amanhã? Alfredo olhava longe para o chalé cercado de água debaixo da
D. Graziela sorria agradável, bem empoada, voz benevolente, O chuva, o silêncio da mãe em Cachoeira. Na saleta, sozinho, com o
Coronel acode, suspensórios arriados, barba acolhedora. velho candeeiro diminuído, o pai bem se embalando; pela porta da
[109] — Mas o senhor se sente, se sente, está em casa. Cha- frente, saltando da noite entra um cururu, se esconde atrás da
maste a tua irmã, Graziela? chapeleira. — Amélia, Amélia, faz café que tem visita, mulher.
— Já, papai. Mas é que é a ezipla. — Que que te deu neste repente, menino, que te turvou a
— Então, seu Severiano, se sente mais um bocadinho. Mas o cabeça? Te doendo o sal no sapo? Não digo? Não digo? lu que tens é
senhor... se sentindo mal? verme.
Não, não... É. É. É isto, é isto! Curumim do chalé, o pé n’água, Alfredo não respondia.
— Um pingo de carmelitana pra ele, Graziela, que alivia. — Te falta é um bom suco de mastruço, esmorecido.
Chegamos não faz pouco do comércio. Ah que o tempo, em Belém, — D. Dudu, então de novo na sua barraca, hein?
voa. — Emenda a língua, rapaz. Barraca da minha mãe, é dela. Meu,
O noivo ofegava, bebeu a carmelitana, o lenço pelo rosto. só é o lugar, e isso por uns anos, lá no Santa Isabel onde vai ser meu
Arriou-se na cadeira de balanço. Alfredo foi até a porta da O. Felipa, casamento. E a barraca, lá no Curro, sem dono [110] está uma hora
escutou o embalo, desceu para a porta da rua. Lá do meio do largo os dessa. Sozinha-sozinha que está, os ratos lavram a escritura de posse.
três pirralhos espiando. As duas Comas na rua espremendo a cana, e a avó atrás de recolher o
Seu Severiano, então deixe, me deixe ver, concordou a bagaço. Pensa que não sei que ela foi no hospital ver quem ali nunca
D. Graziela voltando ao quarto da irmã. pôs o pé? Pensa? Onde a tua cabeça, quem anda te aluando?
Veio com um envelope de ofício, timbre da Intendência Alfredo olhava a mãe se mudando para aquela barraquinha da
Municipal de Cachoeira. Bernal do Couto que tanto desejou; ali debaixo de suas palhas, o filho
Alfredo, na calçada, olhava para o jasmineiro, imaginou chegando do Ginásio, a jogar os livros por cima de tudo, senhor do
Luciana doutro lado contemplando a casa, o lustre aceso em que ardia seu palácio. D. Dudu deu um passo atrás, espichando o rosto:
a sua ausência. Grau! o sapo atirado na sala pelos pirralhos, seu — E de toda a romaria, porta do Bispo, porta do advogado,
Severiano deu um pulo, o sapo saltando para a alcova — joga sal! porta de Sua Excia. o Ex, a coronel ultrajada, o que lhe sobra é
joga sal! — mandava a D. Graziela, caçado debaixo do leito. Rindo. encastoar as sete cartas e botar no caixilho a imagem da rival. Ela, na
D. Dudu se despedia. Alfredo quer acompanhá-la, mudar-se de uma fazenda, o trono é dela. Aqui, na cidade, é do marido. Aquele barba-
vez, cochichando: sonsa!
— Nossa Senhora está pondo uma pedra em cima, D. Dudu.
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A costureira fez um ar de ralho, engoliu o riso. Alguém bateu o D. Graziela levantou-se, apagou a luz do corredor, a luz da
portão do jasmineiro, passou um carrinho de bucho, nisto a sala Varanda, a luz do alpendre.
apaga-se, fecham as janelas, escurece aqui embaixo o jasmineiro, — Tenho que espalhar caco de garrafa aí rente do gradil e
vinha o noivo entre o Coronel e a D. Graziela. D. Dudu fugia. espetar as pontas contra os pés de veludo. É preciso. Este ano dando
— Meu tio, na mesa. Meu tio, venha. Alfredo, comer. Tio ladrão que é safra. Dali, de lá, daquelas janelas, só estão de espia.
Floremundo. Alfredo olhava o monte de flagelados assaltando a casa, com a
Era a Nini no corredor, trouxa na mão, espevitada para seguir a Bina no meio, o colo atulhado de cartas de amor. Era preciso ver a
tia. Alfredo subiu, subiu o pai e a filha. D. Graziela — ia se velha parteira, caçar as duas órfãs pelos quartos de defunto. Consultar
esquecendo — volta para pôr a tranca pesada na porta. Aqueles a prima da Rui Barbosa sobre o enxoval da D. Felipa. Seu
sarapecas da Penitenciária? Receava, sim. Podiam reinar, uma noite. Floremundo veio se aproximando, cheirava a banho, tomou a bença
Sonho dela era, depois das nove, eletrificar a casa. do pai. Delabençoe. Delabençoe.
— Eles só de lá, só de lá das janelas, um monte deles, sempre — Vai primeiro chamar tua mãe, Floremundo Que está em
espiando. Uma noite, uma noite! Não viu o sapo que atiraram? tempo dela suspender a tanta dieta.
— Ande, seu Alfredo, passarzinho mal neste de-comer, que já Seu Floremundo foi ao quarto da mãe, foi ao quarto da D.
está bem tarde, com este tempo voando, disse o Coronel Braulino Felipa. O silêncio dos dois quartos cobriu o corredor, a cozinha, a
numa voz resignada, e chamou: mesa em que jantavam, terrina de sopa fumegante, recendia no pires o
— Jovita, Jovita, jantar, criatura, que senão esfria. molho de pimenta de cheiro Seu Floremundo sentou-se, comia triste,
— Papai, cale essa sua boca. Não chame, que é pior. só, a escutar agora o gramofone vizinho que se coava pelos açaizeiros
— Nini, me chama a Jovita, me faz este favor. adormecidos. A boca do fogão, D. Graziela assava a lingüiça. Das
— Papai! brasas salta o beiço reverendo, aquela mão cabeluda. Vira a lingüiça e
— Me passa então aquele arroz, moa filha. Se sirva, seu da lingüiça tostando pula o doutor do Júri.
Alfredo. O senhor e o Floremundo se distraíram? — Aquele envelope Graziela? pergunta o pai, a mão na barba.
— Andamos pela tarde, foi. — Felipa, respondeu a filha, a cara suando, a avermelhada pelas
[111] — Floremundo visitou os lázaros? Visitou os fracos do brasas.
pulmão? — Ia no envelope?
— Hora não tivemos, meu pai. Foi só o tempo de uma espiada — Onde então mais?
aqui, ali, não se foi longe. Quando se viu, noite era. — O ajustado?
Olhe o seu passeio lá, meu amigo, lá na nossa fazenda. — Ou o senhor queria que não fosse?
Jovita faz questão. — E que ezipla é essa?
— Muita coalhada? [112] — Ezipla de noivado, papai, ora, papai, o senhor com os
— Enseiã, enseiã, Jovita é a mãe das coalhadas. seus assados, cale que é essa sua boca.
— Mas papai!
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O remédio é levantar-se, diz Alfredo a si mesmo, sentindo-se D. Dudu, bem na luz da lamparina, olhou para o Alfredo, rodou
demais na mesa. O. Graziela com a lingüiça no garfo. As pedras a máquina ligeiro, cantarolou, parou, cortou a linha nos dentes, o
atiradas no quintal se cobriam de formiga. Desfolhou as rosas no vento apaga a lamparina.
bolso. D. Graziela com a lingüiça no garfo. Ou é o sapo salgado? — Alfredo me acompanha até o fogão que vou acender o
— Servido, Alfredo? candeeiro.
Alfredo olhou para a barba do Coronel Braulino, a barba [113] Na Cozinha, Cochichou:
restituía-se, dona da mesa, do seu dono. Lá no quarto a D. Jovita — Guardei esta ocasião pra te dizer que tempo inda tive de
escarrava grosso. saber lá no hospital se a bicha foi. Tu foste? Tu foste? Indaga da
— Seu Alfredo, amanhã um obséquio de sua parte eu queria lhe Felipa. Tu foste?
pedir, não vá reparando, disse o seu Floremundo, a colher na mão. D. Dudu vem dos fundos com o candeeiro aceso, espalhando a
Alfredo ia saindo, o Coronel chamou-o: sua sombra pelos santos, teto e paredes, e Alfredo dá com a velhinha
— Me faça, me faça o favor, me leve esta encomenda lá no embrulhada a um canto, foi vê-la, virou o rosto, velha avô!
Curro, sim? — Se deite, D. Santa, sim?
— Pra sua irmã? — Nem ouvi apitar as nove. Apitou?
— Sendo que esta cédula é pras ervas que ela sabe. — Quer? lhe levo pra rede.
Abriu a porta do quarto; D. Jovita, cabelo solto, as iras na. boca — Me deixa morrerzinho aqui neste canto, meu filho, não dá
roxa, as cartas na mão e os pedaços do retrato pele soalho. canseira.
— As tuas ervas! As tuas ervas! Dalila chegava. Ou já que tempo, debaixo da janela, escutando?
D. Graziela acudiu, a velha avançou para o alpendre. — Vá, mas vã! Mas que hospital mais do diabo a senhora foi
Entrou na porta-e-janela do Curro. D. Dudu na velha máquina. me arranjar, vã! Queria que a Senhora visse, vó, nem pense em ver.
Subindo da cozinha, sabe Deus, gemendo nas juntas, a velha parteira Arre! Bença, vã? Bença, tia Dudu?
o abençoou, apoiada a um cabo de vassoura. A marrequinha cantava. Cabelo escorrido, o rosto arisco, piscou para o Alfredo que a via
O Santo Antônio, o São Francisco, a Nossa Senhora do Rosário, na saindo daquele banho, deste mundo lavada. Formiga da peste! ela
mesa de jantar, junto dos pratos e do bule, se distraíam com as gritou ao meter o dedo no açucareiro — nem o santo já respeitam! —
formigas que cobriam o açúcar destampado. Fazia mímica para Alfredo, estoriando o banho, a tina cheia, o se
— As ervas dele sim, vou ver. Dalila não vai por via do serviço despir, o entrar na tina, destampa a garrafa das ervas, os sumos pelo
dela. corpo, a cuia na mão do pajé que abre a toalha e a enxuga, lhe dá um
— A senhora viu, falou com ela no hospital, mamãe? copo. Um copo? Um púcaro? Bebeu. A coceira, adeus.
— Como não havera de falar com era? Se eu fui lá. No que — E teu banho que te abra a cabeça? Quando queres, vais
entrei, ela passava com a bandeja de um doente, o tempo só de me Comigo? Só me falta é o tifo pro cabelo. Pra encrespar, o trio.
pedir a bença e eu: vai, vai, mea netinha, não deixa esfriar a comida Dalila acende a vela pros santos, um papel na vela e fogo nas
do doente. formigas. Suspirou: ai que este foi um dia...
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No mocho, a um canto escurinho da alcova rasgada para a sala — Sou, disse Alfredo que entrou. A menina se deixava lamber
onde a filha costurava, D. Santa dobra a cabeça no peito. Alfredo pelo cachorro. Debaixo do banco a cabeça da boneca. Carregado de
vem, vira-se para a janela: da rua ao clarão da sala um cabelo, Ana, o embrulhos, fedendo a borracha, carão de carvoeiro, entra o dono da
olhar de Ana flechou nele e adeus; rente da janela Passa um tabuleiro, casa. Ouve-se um ai rouco lá dentro, rosnou o cachorro. Alfredo saiu.
a luz chamava para dentro os bichinhos da noite. No pé e na mão da Por onde sumiu Ana, a some-some, já não importa. E estes dias
O. Dudu a costura correndo. Ouvia-se a Dalila lavando a vasilha no sem ir ao ginásio. De repente se esvazia este afã, aquelas viagens da
alguidar do jirau, olha, que te torço o pescoço, marreca, não me mie, O tudo o mais? Assim escorre no pátio, minando o Ginásio, o
belisca meu pé, te arranco o bico, filha da mãe, ah, por que não nasci banho de Dalila.
de cu virado pra lua, meu Deus! Põe o atracador no cabelo, o pelo- Caminhou. Parar, mas em que esquina?
sinal passando pelos santos, joga na boca um torrão de açúcar, vã, vou Neste ponto de mingau, não. Debaixo dessa mesa aí na
ali cumprir uma [114] promessa, mas já venho, é já-já, sim? A avó quitanda, onde jogam dominó, impossível. Vamos espiar ai no
quis levantai-se, chamá-la. Dalila voava. D. Dudu virou que virou a barbeiro de porta entreaberta. Bebiam mas sem ela.
máquina, parou, riu, voltou a virar, saltou da roda a correia. Vou pôs a cabeça no quarto-a-defunto, três mulheres na sala morna.
salgar a boca. Vou salgar a boca. E ria, benzendo. a boca. Alfredo — Desculpe mas conhecem uma moça por nome Ana?
tentava recolocar a correia. Então bateram na porta: depressa, D. — Ana, por nome Ana? Ana? Ana, Ana, conheço três Anas.
Santa. Uma delas é essa a que aqui velamos.
No Una, Alfredo acompanha a velha parteira: [115] — Ah, a neta da parteira? A irmã da Dalila? Ah, costuma
— Aqui neste alagado é melhor eu carregar a senhora. vir por estas bandas, sim. Hoje que inda não veio. Mas que vem, vem.
— Mas, meu filho! A finada era xera dela. Pode que cheguezinho mais tarde, primeiro é
— Ah, que a senhora é até demais leve, D. Santa. por aí puxando brincadeira nalgum quarto de anjo, que anjo nunca
— Se velhice e padecimento pesasse, quando .que tu podia escasseia. Mas vem. Olhe, a porta é franca, queira entrar, se sentar,
assim me carregar, carregador! não molhe o sereno pra não dizer o contrário, faça a fineza, e espere
— Chegam num cochicholo espremido entre duas barracas, sim? Espere ao menos até que chegue outro homem neste quarto,
atrás de uma touceira de açaí. É um buraco, aqui no chão o cachorro sim? Tudo aqui, defunto e vivente, é só fêmeo.
comendo o que a menina vomitava; junto, a bonequinha de pano, — Misericórdia, Filuca! Olha que é um estranho.
degolada. No vizinho, o velhote sem camisa, violão no braço. — Estranho que ele não é, que eu sei, abom!
— Já dando nela as dores, moço? D. Filuca, alta e seca, fez muxoxo, abanando por cima do
— Não ouço. caixão. Muita mosca em tão pouca flor, em tão zinho defunto.
— Nem nas dores? Alfredo esperava. Ouviu, de lá de dentro: dá é já um chá do ipeca.
O velho tirou uma nota, emborcou o violão, numa impaciência, Chega, espirrando, um rapaz bastante Constipado com um embrulho
foi urinar atrás da touceira. Voltou, de violão no ombro: de café. Alfredo fugiu.
— O senhor é parente?
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Girou pelo prado, seguiu pelo Telégrafo, pára na estação do Melhor volver ao Prado, tirar do xarão do seu Bahiano a xicra
Sem Fio que trabalhava. Quero falar com o mundo ou comigo, torre. de chocolate, o dom que o xarão tem. Pega na minha mão, Dalila, me
Liga aqui no meu peito, Sem Fio. leva onde é o teu banho.
Dá com o Bahiano, o marinheiro do Arsenal, vizinho da Zuzu, Mas lá em cima, no sótão, a janelita acesa. É a luz do abajur,
com seu xarão de prata debaixo do braço. sim, de cabeceira, luz de vigia na cerração, não apagava, não apaga?
— Que fazer, meu filho, isto é já uma profissão. Em casa, já Corre até a calçada da taberna, foi parando, descia da janela,
nem apago a fornalha esperando desatracar. Toda semana é um agora apagada, o cabo — ou xarão de prata? — a apanhá-lo. No que
próximo atrás do xarão, Se não é pra aniversário, é batizado. Se não é ia subindo, caíam-lhe do bolso as rosas de Ana, a carta de Bina.
pra casamento, é posse de diretoria, é colação de grau, é ladainha, é
quarto, conforme os teres da família do finado. Já saiu até em dia de
rezes. E com ele infalivelmente vai o dono, que o xarão? só eu
carrego. Sim que de prata é, de lei, toque, experimente o timbre.
Vendo o metal no escuro? Prata das minhas viagens, dos meus mares,
das minhas escalas, meu menino. Daquela navegação toda, ficou este
quilate. É o que me deu a Marinha. Me requisitam o xarão? Pois não.
Retiro o penhor do baú. Venho que venho bordejando por este litoral,
lá vai o Bahiano com o xarão que já não é mais dele, é de todos. Por
Ser de prata? Pois não. Não me nego. E quanto mais serve, mais prata
soa. Vamos, meu xarão. Olhe, quando tiver uma data, não se acanhe,
bata no Bahiano, xarão às ordens. Agora é a data ali dum meu
compadre, um carpina. Quer vir conosco. Tome o navio. Mas venha!
Na volta, me traga a velha parteira no xarão de prata, seu
Bahiano.
[116] No sótão da moura a janelita acesa. Quis logo entrar em
casa, voltar a bater rua atrás de Ana, Dalila, do próprio sono, esperar a
avô, ou sacudir o jasmineiro chamando Esméia. Ninguém nos
portões. Dos rapazes do canto nem sombra. A Penitenciária no
escuro. Por certo, Bina no cubículo, de bruços na esteira — Apaga já
essa lamparina. O restinho do querosene, gasta não — Bina arranha
outra carta.
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Acampamento uns filhos de cascavel, criá-los nesta cerca, [118]


senão um dia o bando entra na despensa, roubam a bateria de
alumínio, arrombam a cristaleira, arrancam o cortinado, vão de janela
empinar seus papagaios, abrir o chafariz deles sobre o passeio. Tanto,
tanto que pediu à Dudu: olho no quintal, que moleque é o que só dá
nessa rua do fundo. Olhou? O menos que ela fez foi fechar o olho, o
quintal virou pasto de moleque, agora eu que torça a orelha, avaliando
o prejuízo. Agora a zeladora cisca de casa, arrastando consigo a
sobrinha do peito e o adotivo, aquele tamanho cairão, ai que este até
2 francês aprendeu aqui em casa, nesta casa. (Entra, D. Marta. Alfredo,
chegou a professora.) E o quintal no pé dos demônios. Serviu caco de
[117] Quantos aqui, daquele bando, cortaram o pé? indagava a vidro? Preferível cobra. Dudu, de ferro e goma nos uniformes do
D. Graziela, rente da cerca. adotivo, ou atrás de saber Onde as duas sobrinhas perderam o de cada
De que valiam suas armas, aquela porção-porção de vidro uma delas, deu as costas ao quintal que virou latrina deles. Também
quebrado minando o quintal Contra o pé dos vadias que pulavam a cismo que a vizinha da esquerda, a pretinha, essa esfogueteada do
cerca. Pisa os Cacos, agacha-se a examiná-los debaixo desta folhagem portão, pule a cerca e limpe a laranjeira. Se assem, se assem aí na
de onde escorre um luar de limo, lá fora lá em cima um dia. labareda, formiga do cão, que se pudesse ser em mim mesma ia
Espiou por entre as estacas a rua que era só lama e luar queimando onde me corre este exaspero, esta espera. Que agora o
descendo para um cariazal danado. De moleque nem um só assobio. vapor ainda manobra e o outro homem, o que se diz tão bem casado,
Mas veja como estragaram as plantas, esta pimenteira pelada, a está em Peixe Boi, ali rumina.
laranjeira, mas veja! os botões comidos, levaram o mamão verde, aqui A nuvem comeu a lua. Escureceu aqui embaixo, escureceu o pé
obraram, ali tamanho sapo morto e toda a espichada linha de guerra da D. Graziela, o fogo apagou-se, só um resto de papel crepitava, D.
das formigas, formiga, formiga, formiga. Nem as formigas mordem o Graziela quebrou a garrafa, espalhou os cacos, pisou no papel
pé deles. queimado, vou montar uma armadilha. Esperou que clareasse mas
Apanhou a garrafa, juntou folha de jornal, salpica querosene no ficou uma escurecência úmida e nem um ar no ar. As plantas
caminho das formigas, foi queimando as guerreiras. O fogo lhe transpiravam. Melhor fechar Com um muro de pedra e pontas de
aquece o Colo entreaberto, os dedos crispam-se. Misantanha, lhe dizia vidro em cima. A casa ali na sua mão, deserta, escura, atulhada de
aquela demoniosa quando a via contando, na fazenda, um a um, os móveis, louça, daquelas vozes que principiaram surdamente, agora
alfinetes da almofada, os botões no balaio, até dum grampo dava saindo de toda parte, vozes: cachorra! cachorra! E era só isto: ca-
falta. Misantanha. E aqui nenhum dos diabos Cortou o pé. Ninguém chorra! Deixou eco pelos tabocais, campos, igarapé, relincho e tropel
caiu da cerca, nem um de boca em cima deste caco pontudo, este, por de éguas, aquela voz, quem não reconhece? Não era da casa fluo era
exemplo, afiado e ensinado para entrar fundo. Ia pedir no da rua nem da cova nem de Camamoro mas desta solidão por cima
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dos cacos de vidro, espiando a rua lamacenta. As plantas roçam-lhe as como se fosse dentro dela; pegava os uruás no chão, um no outro,
nádegas: cachorra. Foi o que escutou, o raio derruba o taperebazeiro, cochichando: quem que quer fazer uruá? Quem que quer fazer uruá?
mata dezesseis porcos, escancara a porta: cachorra! que só ela ouviu, Sempre muito espiosa das coisas, catando o avesso e o não
desabava a trovoada. consentido, atravessa o rio num nadar de lontra, fazendo-se afogada
Nesta sombra, neste quintal nem um caco de vidro faiscou para no meio da aninga ou num choramingo assustado: candiru me furou.
lhe dizer que sangrou um pé de menino. Os cacos correm é aqui por Candiru me furou. E logo: agora isso... vê lá! Este meu aqui Nosso
dentro, pelo peito, roem a garganta ah, [119] pudesse ah, pudesse com Senhor lacrou. Se cobria com o couro de Jacaré: jacaré me comendo.
o meu ferro de cova, com o punhal de cabo de ouro da mamãe, retirar Jacaré me comendo. Dessa comida gera um. Remava em seco na
debaixo dos sete palmos aquela voz que lhe cuspiu, o sussurro: canoa em Seco: adeus, pessoal, que vou que vou me embora pra lá
cachorra, debaixo do raio, do trovão, com os porcos mortos, o pras pedras do Moirim onde dorme a pororoca, com os três pretinhos
taperebazeiro abatido, a porta escancarada. Então que deu pelos no colo, de repente estoura e ali dá peixe que só mina. E no assento
campos uma tal noite. Lá no Jandiá a ofensa de bubuia, a água bem do balanço, lá em cima cá embaixo, toda escanchada, lá em cima
dormindo, amanheceu de bubuia, pendurou-se no arco-íris é um dos [120] cá embaixo, desfolhando as coxas. Noite pra o dia o pulo
pedaços do taperebazeiro, abre um dos porcos mortos é a ofensa daqueles peitos e a mãe: não sei onde estou que não esfrego nesses
saindo da tripa, o pica-pau pregando o eco, e arriscou ver no quarto, teus bicos um caroço de tucumã em brasa que bem precisavas, tu? Tu
no selim, os salpicos do sangue, o feitio daquele corpo suado, és do igapó, tu nasceu de bicho. Era a mãe que resmungava,
chicoteado, fêmea que só ela, que quanto mais a mãe batia mais o trombuda. Foi fervendo na mãe a quizília contra a caçula, um
corpo se ostentava, rosto, peito, barriga, bunda, o feitio bem gerado rancume, e a caçula, esta, por pago, então que mais malcriada, mais
— que é só meu, que tu igual não tens, cachorra. Era o que vinha do rabo de foguete, já na desasa, pixota, tira o certificado em Cachoeira,
selim, a danada já sem pele, cada uma roxidão escurecendo as costas, eivém para o pé do pai: agora, o Ginásio.
a pisa do relho da mãe. Mas debaixo da surra saltava a mesma Não! me saiu num pigarro, de mim que espiava a peça. Saiu
menina, aquela, de repente sabendo ler, escrever e contar, respondia deste peito, desta goela, destas tripas. Escureci: não! que me tirava a
tudo na bucha, desembaraço que só visto oh, memória! Num instante cabeça, me revolvia aquela secreta, amarga admiração e raiva que eu
fez colegas, mestra, gente grande, vissem nela a de mais cabeça. O tive sempre pela irmã caçula. Por outro lado era o meu pouco de
escurão que me deu por dentro, com a unha arranhando a parede, a desprezo e vexame pela nossa mais velha, a Felipa, a mais fechada de
ouvir os gabas e ter de dizer: sou irmã dela. E a menina, ciente do seu cor, muito pele de cavalo, a pixuna da família, cria de fogão, a cercar
dom, então que tomou conta, se fez farsola, tome altura, tome altura, a caçula de pipo, caribé, chá de apií, almofada e dengo, no seu andar
juntando cada astúcia, a arteirice em tudo, na pontinha da língua o de cabra atrás da caçula, ali obediente dela. Luciana? Até mamote —
recitativo e o Substantivo, pinta a saracura, quando se vê lá está a foi pegar da mão do irmão o malho — castrou.
demônia já tirando os nove na pedra. Em pêlo, nas férias, olha ela na Queria o Ginásio. A mim lograva? Mas deixa estar que eivém
chuva, agarrada ao rabo da bezerra, os cavalos olhando. Vai e volta Felipa, chuleando a fronha: que mal faz, Graziela, a outra ir e
pelo campo já eivém: o murucizeiro florou! o murucizeiro florou! saberzinho um pouco? A vez não foi minha nem tua, deixa ser da
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outra, Uai! Dobra a razão da mãe. Só o ginásio é capaz de arrancar da senhor. Era o que me bulia na goela, digo não digo, o pai mundiado, o
mão de Luci o malho. E devagar, um a um, cada um na sua linha, vinho ali na cuja adoçado pela ambiciosa, as mãos dela ainda
Felipa ia pontuando a relação: amarelas de tucumã, os caroços joga pros porcos léco! léco! léco!
o cabresto léco! como quem diz: olhem, seus capados, quando eu voltar do
a espingarda Ginásio, quero comer um de vocês com três dedos de toucinho. Do
o trapézio tucumã lá dentro do alguidar, só a Felipa provou um gole, submissa.
a mão do pilão O resto azedou, que ninguém mais bebeu.
o babar-se pela cidade Pois com o não da mãe, o pai levantou da rede: o que tua mãe
isso tudo o Liceu tira, sim. Desgruda o pé dela do Jandiá. disse é lei. Saiu ela fugindo para o curral, atrás o Floremundo, o asa
Felipa, a fusca, Felipa, aquela maria xen xen, hoje viúva arriada, um selim na mão, o restinho de sol na barba do pai pendurado
donzela. Comendo, comendo coco. Engolia o logro? Soprando o na tranca, o Floremundo escuro, até mais alto, com o selim no ombro.
caminho para a princesa, já arrumandinho a mala da viagem. Era só Tirar a caçula de dentro do tabocal naquela noite, ali acuada? Só
olhar para a princesa: a proa dela em cima da Port Of, o enxoval de o Floremundo a peso de rogo, mas suplicou! A rede dela no quarto só
interna, solta na cidade, o sete que ia pintar. deixou de embalar tamanho dia quando a Contrariada saltou para o
Não, papai, não atice. Soltar essa lá, Braulino? ralhou a mie, O curral, selou o cavalo, aquele retinto, coração na testa, lá se vai pelo
pai lá fora, no alpendre, embala-se, embala-se, vem a fina, lhe dá a rastro do diabo, como se fosse desembestando no rumo de Belém,
cuia de vinho de tucumã, que ela fez (socou, espremeu, peneirou), pelo Ginásio adentro. Precisou de novo o Floremundo atrás, a que
trouxe na cuia para o pai, o [121] vinho até que vermelhudo, doce, horas!
que em tudo carregava na doçura, também no sal, salgava ou Era ou não era o meu o pai dela? Igarapé? Bicho? O que a mãe
apimentava tudo. Uma voz — não foi? — me esfregou malagueta no é, é Menezes, rio e campo conhecem a marca da família. Daquelas
nariz só porque lhe mandei um nome. Fomos tirar a teima atrás do coisas que escutei no alpendre me ficou o causo da D. Adélia no
curral. Do dente dela, até hoje, não me saiu a marca aqui do pé do tronco, nua na vista de todo o baile, amarrada pelo marido, um
umbigo. Sim que ela mesma me fechou a ferida pingando leite de Menezes, o Capitão Edgar. Mas essa, essa mãe, que é minha mãe,
pião. Menezes é, é de amarrar [122] marido e ficar diante do marido
Seca pela cidade, roxura por Belém, um fogo no juízo. Ardendo grudada no amante, os dois na rede, com o marido no tronco,
por um luiz quinze pelas calçadas de Belém, dinheiro haja para a encamboado, castrado. A mãe: te geraste de bicho.
contemplada, que a carne é dela e o osso pra Graziela. Até acabar Mas que bicho, quando? Que desforra, ou culpa, fez nascer a
(Como acabou), tirando aquele diploma à sua feição, o saber que lhe birra e desestima da mãe contra a mal concebida, que podrice é,
coube. Ginásio coisa nenhuma! Mira o rosto da encadeada sobre o desate, mãe, abra a janela, isso já é aversão. Suspeita me arrepiou
álbum de Belém, tira uma linha dela quando abre o jornal e vai direito sempre, ouvindo a mãe falar de bicho, do Jandiá onde a Luciana se
nos cinemas, moda e leilões. O pai, na alpendre, com a cuia do vinho. escondia, ali tardes, ali fincada, até chegarem as onças. Tu não és
Não beba, papai, que o que ela temperou no vinho vai amolecer o filha de meu pai, que teu semblante diz. A mãe fechou-se, por isso te
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rejeita, não sei, nunca fui malfalante. Fosse o pai dela o vaqueiro namoravam que enjoava, casavam? E toca, de novo, a cambada das
Talismã? moças para o Itacuã, aquele mofo o ano inteiro nas vinte janelas de
Me diz se espiaste, se me viste saindo e entrando, por demais semente convento, quiririm-quiririm, maré vaza, maré enche, ai!
espiona, perversa no reparar tão miudinho, esmiuçar, quem sabe, teu sossega de gemer tanto, inhambu, que te dou um tiro, morcego caindo
vício, tua ordinareza. Viste? Cada movimento meu, instante por na rede — te lembra da tia Artemis que morreu de uma mordida de
instante, vendo quem me fazia de égua debaixo do tabocal, aquelas morcego no dedo minguinho? — a esgoelação dos cururus, arriou-se
noites de Camamoro, a visagem de cabelo solto pelo curral? A espora o forro da capela, um sucuriju saindo de dentro do forno velho, com
me entrava no rim. O garanhão levando para as Minas aquela mulher tanta mutuca e maroim quem que pode? Gente, então só uma
dele, um poço de doença, estiveram na Serra de Guaramiranga, dançada. Então inventaram uma dançada. Arma o gramofone, põe a
chegam a Belém, virou, mexeu, e o passo dele e seu galope no rumo manivela, sopra os discos velhos, chama o violão, o seu Xavico do
de Camamoro, tão depressa, foi um mês — era um vento no tabocal! Mutazinho que sempre dizia: não toco, alejo. Manda no Araquiçaua
A museu de cera, lá dele, passando em Belém o carmim na cara e que atrás da requinta e aqui dando corda e dando corda no casa edison, rio
não disfarça a defunta. Por sem vergonha e desespero, corri para a de janeiro, está com gogo, lixa a agulha, mas os pares? A muito custo,
cidade, à tarde puxando o cordão no sobrado. O primo com a sem- três, e um desimpedido. Quede o bandolim, aquele teu, Graziela? Só
sangue em Soure. E foi então o Outro: Estás só? Estás só? O doutor três cavalheiros? Vasqueiro de rapaz este nosso estirão. Que fazer
de jasmim lilás. Na mesma hora, de cima do cortinado: Cachorra! Foi com tanta dama? E o Alderico Calandrini, do Ajuruteua, e o Lavico
facilitar, lá debaixo do tabocal, a caçula espiou. Só podia ter sido. Portal, e o Vitinho do Menino Jesus, sarado numa valsa, e os dois
Subiu o alpendre, a cabeça longe, olhando o tabocal: pegava Bulhosas do Porto Santo? Por carecer de aviso que não foi. Recado,
fogo, ateado pela mãe. Agora toda a crepitação, toda a cinza dentro carta, empenho, tanto que prometeram, cadê? Não bastante, ainda
dela, o tabocal ardia no quarto, arde aqui no alpendre, o tabocal que chamaram a Graziela. Bem que não veio a outra, a caçula, a come
foi mais meu que da outra, ali ardeu meu cadeado. Lembrava aquela com os olhos, peiada pela mãe. Bem que também não vieram Feias do
noite, noite seca, a casa dormia, o velho presidia em Cachoeira, Cururu, sim que tocavam flauta, mas era então que ficava atulhado de
Floremundo no retiro (Floremundo suspeitava?). O primo apeia de dama. Floremundo, esse, na sua beca de dia de eleição, se servindo de
baeta vermelha, apeia longe, vem vindo, entra no tabocal, trazia es- café com beiju de tapioca, conversava com a avó das meninas, vez e
poras. Aqui, aqui, que é mais agasalhado, mas vá-se embora, outra iam tirá-lo, quem disse? Uma delas, a Cota, a do beiço rachado,
mandado do cão, vá-se embora, um relincho me arrepiava, xô, muito séria: só se aqueles dali do nosso lugarzinho certo. Vamos?
acuraua oh, praga de tanta coruja junta. Talismã, o invisível, nos arma Aqueles... Aqueles de lundum chorado quadrilha madrugada adentro
o laço? engenho monarquia escravos, o Barão do Arari subindo no trapiche, o
[123] Culpa, culpa aquele dezembro em Muaná, o cão manda o padre embuchado num prato de tartaruga, carne de peixe-boi
primo, que chega, par com ela numa volta pelo largo, os dois pegados pendurada na vara ah, aquele tempo, que sim! Vamos no cemitério
para padrinhos num batismo, era em companhia das moças do Itacuã, convidar os cavalheiros? Dançavam umas com as outras, chegou a
atrás de casamento, fita faziam muito arraial e baile toda noite, requinta, cessa o gramofone, os três cavalheiros já não davam um
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caldo, e aquela avó, toda no tafetá e volta de ouro, na [124] cal|deira diaba espiou? De manhã, como não tivesse acontecido. Nem de
de embalo, cabeceando deste e daquele sono. Dançada ou velório, palavra, olhar, gesto, da Luciana, arisca, nem sinal.
Graziela? Com efeito, a qualquer momentinho, se podia ouvir: acode, Numa tarde, levando a cuia de vinho de taperebá para o pai, o
tragam a cera, depressa, para a nossa vó. No cotoco da estearina rosto tão maneiro ela fazia! Deu a cuia, recostou-se na janela: quer
derretendo-se no castiçal, o Floremundo acendia o seu mata-rato e ia que adoce mais? Mais doce? Assim carregada de açúcar. Mas, papai...
tragar na janela ou ver no trapiche o amarradio da sua montaria. Flo- Refugou as outras palavras, abriu uma janela, rodou, estalou dedo,
remundo, pede licença, tira a tua beca, é bom da gente ir. Era a abriu a outra janela, [125] vem para o pé do pai, volve para os fundos,
Graziela atrás dele, com um grude por dentro da boca, desatando a receosa da mie, tornou ao velho, então senta-se no soalho, descansa a
fita do cabelo, tira o pé do sapato. Que foi? A velha bateu o pacau? mio no joelho do pai, pensou um pouco, um pouco, então que se
gracejou ele. Não, aquela avô só dá o café quando o mulheral de casa explica sobre ter coes em Belém. Era ou não era tempo? Escutando no
se casar, uma a uma. Então que sim, te bota abaixo, casa grande, quarto, Graziela sobressalta-se, quis cortar-lhe a palavra, da rede não
comigo dentro, o rio que nos enguia. Então, Graziela, te despede. Lua se mexeu. Lá fora a mãe mandava assinalar os porcos no cercado.
está sai não sai. la acabar, marcava 11,35 no relojão encardido da Felipa fazia filhós, a caçula aqui dentro só usando astúcia. O pai bem
varanda que levava horas batendo a hora, quando apitou a Guilherme. que apreciava o vinho, cuidadoso de não manchar a barba, em
Correm as damas para as janelas — faz sinal com o farol! Faz sinal silêncio, inclinado, debaixo da mão dela o joelho e o juízo. A voz de
com o farol! — desembarcavam dois doutores da profilaxia que iam Luciana ponteando o seu assunto. Assim num meio segredo,
catar cerâmica no lago Arari, um enfermeiro, o piloto, o maquinista, incutindo: onde o pai fica quando tem de ir a Belém? Tão que tão mal
todos papei queimado. O último a subir e a entrar de bota alta e a acomodado pela casa alheia, é ou não é? Gastando em hotel rios. Ou
garrafa de genebra na mão, indagando se podia dançar de gola na barraquinha do Curro, é ou não é? Naquele ovo da tia, poder nem
esporte, o primo, aquele bem-te-vi de igreja. Recomeça o cerco de esticar o braço para enfiar o paletó, me diga que não. Hora de fazer
Muaná, o mesmo que, tamanho casado, ia esperar as moças saírem da casa, enquanto a Questã...
novena, aquele bem-te-vi de igreja. Floremundo, com toda a sua beca, — A Questã se ganha, sim, Isso afianço. Dure anos.
foi cochilar na montaria. A avô, pra se lazer de sentinela, se embalava — Impede a casa? Proíbe? Dificulta? O senhor precisa de
que se embalava, rezando. representação, Isso não carece? Já tão assim como se era, já hoje já
Do baile para a tabocal foi só o tempo dele ir a Belém, volve no não somos? Prosperou-se, não?
Lobato, outra vez desce na Guilherme, pára, de baeta, espora, coça o Graziela desgrudou-se da rede, quis gritar: olha que estou te
cavalo do Mutá a Camamoro, amarra longe, e vem a pé. Até que um escutando, cantadeira. Saiu. A mãe subia com a sua tromba, O pai,
noite: já de volta do tabocal, Graziela viu aquela alma fugindo, mão na barba, arrisca a conversa. A trombuda só esticou o beiço,
alvaçã, cabelo solto, trepa na porteira, prende o cabelo, Solta o respondeu atravessado, empertigou-se com a instante visão da casa
cabelo, vagueia, igual garça, pelo campo, já está ali no pé do em Belém, como aquela, em Batista Campos, dos Taveiras, aquela,
Jenipapeiro. Qual das duas, agora, entra primeiro em casa? Do primo em São Jerônimo, do Coutinho, a outra, em Nazaré, do Coronel
nem mais distância. Ficou vigiando. Esperou que a alvaçã entrasse. A Cazuza. A caçula:
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Papai, bisa o vinho? Mais? Por não ter, que não, que tem. rente do tabocal, aquele guarda-noturno de saia. Ou não foi? Ou não
Disfarçava, ausentou-se, deu comigo, me pegou bebendo chá de era? Era, que aquela palavra — cachorra — tinha um alvo.
buchinha, me olhou certeira mas benfazeja. Sabendo que eu carregava A caçula? Preferiu o espalhafato? Cobiçou o desamparo, regale-
no chá de buchinha por crua cisma, aqui, por dentro, a cisma de estar, se. Era aquela queda pelo proibido, para ir embora, feita para o
por obra do primo, gerando um? Fechada estou na mão dela, O pai desafio, ou fui eu que lhe aticei o mundo, n0 que me viu ali descobre o
repetiu o vinho, faceiro de poder fazer a casa, dizer: tua será, que caminho, quem sabe encontrada com um porco, um macho de onça,
todos apreciem teu semblante na janela, Luciana, pois formosura não um amansador de poldra? Parece que a todo momento a mãe esperava
te falta. o acontecido, se bem que a trouxesse debaixo da rédea, lhe rezando o
— Braulino, que vinho foi esse que te subiu? Haver temos tanto padre-nosso. A mãe? Juro que deu graças. A espúria carregava-lhe a
para casa na cidade? Fazer casa lá não é como armar um jirau. consciência, era de bicho, de igapó, do homem que um dia — Nossa
A caçula entrou, toda inocente. No seu avesso eu lia: a casa, Senhora não me arranque a língua, que não sei ao certo — dentista ou
Principala, por meu silêncio, olha, olha! E que tu [126] vás passando não, passa pela fazenda, pernoita, o pai na cidade, e gera-se assim de
sempre por donzela, por mim... Vai tomando teu chá de buchinha. supetão a caçula, noutro dia, bem cedo, o diabo nem adeus. Ai mundo
Entrei e ouvi: mundo quem não sabe nadar vai ao fundo.
— E tu, que tu acha, Graziela? Quando o raio arromba a porta, Luciana aparece nascida de
— O senhor que sabe, papai, o senhor que sabe. novo, assim alta, assim insolente, dizendo: cachorra, bem baixo. A
O que maldei de dizer, não disse, embuchada. Ela se mãe rezava no oratório, os porcos fulminados. Do corpo de Luciana,
aproveitava, me amordaçava, e até que ela comigo se fazia mais tão batido, saía um clareúme, sabe lá, da hora, daquele minuto,
delicada e me doía mais que o bastante. daquela vertigem. E uma inocência [127] em toda ela transpirou, sim,
Já na barba do pai pendurava a casa. Acuei-me no quarto, embuçada no medo, tira de dentro da mala o
Esta casa. terço, o beiço tremia, como se a pique de correr e ajoelhar-me diante
A planta, a caçula desenrolou no soalho, corrigia as divisões da da irmã ali com carne viva, no selim. Não lhe dei um gole d’água.
casa, tão que tão entendida, e isto e aquilo, dona-dona. Só estou que a Passa a trovoada, o céu descansa, escorria a chuva, os bezerros se
mãe fechasse tão os olhos, Só uma vez deu coice: chega! E enrolou a escouceavam no atoleiro, Nem a casa abaixo nem a família reduzida a
planta. Toma, Braultino, faz já. cinza, Luciana, essa, pulou no mundo.
Por mim, foi deixando, fui limpar o meu bandolim. Sinal que Deus me aprovou, falou a mãe sobre o raio. O braço
Esta casa. do Satanás salvou-a do raio, Pensou Graziela. E nesse raio aquela voz
Por que o Alfredo fala que foi feita em cima dos bailes quando que a surrava: cachorra. A noite é um espelho em que os rostos
o alicerce, agora, é aquela sepultura? vêm e vão, o primo ao pé da pia, o doutor no Júri, o rabecão à porta
Mas sempre me dei respeito, O traquejo, nunca perdi. Vivendo do necrotério, o comandante na casa, o padre no Arcebispado atrás da
trivial, ninguém me acusa de uma inconveniência pública. Nem em gata pelos degraus desvairada.
Muaná nem no baile deixei rabo de palha. Sem mais nem menos,
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Abriu as janelas do corredor Quem no tabocal com Luciana? Vá escrivão, o dr. Gurjel. Se case, já, comigo, lhe peço, quero ir
ver que o primo? Não duvidar. Capaz. Ou cegueira da mãe, na sossegado.
invenção do impossível; a calorenta, entre as tabocas, ai que está Felipa enviuvava, donzela-donzela, com aquela ferida na perna
quente, de supetão tira a roupa e nisto a mãe? A mãe não desengasga. que sempre escondia debaixo da folha do amor-crescido, a meia por
E a outra, riscada da família, nunca mais em nossas bocas, É assim cima. Uns dias andou meia variada, abriu a cômoda, tirou as asas,
tão funda esta Cidade? Aqui estou na casa dela, incutindo respeito, folheou figurino, duas alianças comprou e enfiou. A mais lhe deu um
sobre os sete palmos de silêncio. Dudu, se gabando de ver que as duas dordolho. Bens do marido, agora dela, só umas roças no Japiim no
Sobrinhas cumprem a profecia, sai de casa, e com a Nini e com o Arienga. Dela? Cadê escritura? Roçado no puro devoluto, feito. num
Alfredo — os olhos deste em cima de mim! ou eram os meus? E sertão. Uns sacos, a balança, pesos, o metro, um resto de calomelano,
assim sem ninguém fico, sozinha, os moleques pela cerca, ali pela um e outro rato, foi o que Felipa encontrou na Casa Comercial Divina
frente os flagelados. Vou contratar uma dúzia de cascavéis, eletrifico Providência com três cachorros ganindo de pulga e fome, o soalho da
o quintal. Recebo, sim, de lustre aceso, as visitas, e dos dois um: o cozinha arriando sobre a maré. E mais: seis contos e seiscentos e
advogado da família comendo as boiadas, agora em Peixe Boi. Ou o oitenta que o
comandante, ainda no cais, primeiro vai adorar aquela santa, a sua J. J. Pires, da 15 de Novembro, lhe cobrou no sétimo dia. Viúva.
senhora, senhora de uma tal santidade que serve a um batalhão, Agora em Camamoro, está de viagem para o Japiim, ver o que faz das
Depois apanha o Curro e vem, vem esta noite? roças.
Não Sou desta casa, diz a Felipa. Desta casa não quero nem O Comandante? Ainda manobra o navio, atracou, primeiro vai
uma perna manca, quero o meu retiro, falou o Floremundo, depois do na mulher, vem a que horas?
papel que fez no Foro. Felipa, pobre pixuna. Tanto virou, mexeu, pelo E aqui esta, ainda hoje, ou até hoje, e para sempre, é mais à
comércio e sem nada a seu gosto; que entrou errado na loja dos anjos, espera do cavalheiro do Itacuã; a esta hora, na São Jerônimo, a dele, a
só roupa pra anjo, asa, túnica, sandália, enfeite, para os anjos de casada, escorre as suas ceras diante do oratório, suplicando cor para a
pastorinha, missa e procissão, entrou, se deu conta? foi olhando, a cara, sangue para as veias. O marido cova-se noutra, que desta, deste
sobrancelha alta, atrás do seu enxoval. cocho no tabocal saiu farto, com outra acostelou-se.
— De anjo, Felipa? indagou a Dudu. Tudo fiz para não perder a bença, não perdi. Na bença, quem
[128] Virou-se a noiva, trancando a Cara, compra um par de cuspiu, eu? Cautelas valem um tesouro. Pois foi tua sorte, beldade,
asas e sai porta afora, guardou as asas na cômoda. Do enxoval só as agora Deus te salve, tudo não indicava? Assanhou-se, não se deu
asas de anjo. Ou queria ser noiva pelas duas, ela e a caçula, atrás do cobro? Comeu galinha choca, fome canina te deu, pelo mundo, por
enxoval que era da outra? Chegava das lojas, depois do quarto dia, esta cidade. Entra no relho, ensangüenta o selim, roda no redemoinho,
Dudu com ela, quando recebe o aviso. O noivo, no hospital, por um a velha de tanto te surrar fartou-se. A surrada, sem fartar-se,
fio. saboreando a esfolação. Tudo não indicava? O mundo te engoliu os
— D. Felipa chega de escolher enxoval, que agora o pano que assanhos. Lá vai o rabecão, de quem a culpa? Aquilo me disseste,
lhe peço que lhe cubra é preto, por mim. Me chame um padre, o baixo, a goela seca, em vez de água, me cochichas: [129] cachor|ra.
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Esfolada no selim, mas rainha. Baixo, bem baixo, num escarro, aquela ali chocha, morna, de joelho em cima, montada pelo cavalo, que
palavra, ali comendo relho, gloriosa no selim. Provável, noites e esperava? Um pouco dar-se por frouxidão ou desvalia, as mamas
noites acompanhava aquele meu cinema no tabocal. Sentada na pingando suor, ouvindo: Doutor Assis. No escritório o bronze Sonho
tranca, de branco, tão no ar ao pé das vacas que os garrotes cobriam, de Ícaro, a pia, a estampa da Esfinge, aquelas fotografias imorais na
no que viu, foi, quem duvida? atalha no campo o cavalheiro e este [130] gaveta da cômoda. (Em menina, em Cachoeira, tocou recreio
num estonteio e ela se cobrindo com a baeta, pelo coice do caim eivém a Alzirinha Pantoja tirando de dentro do peito uns postais. Mas
derrubada, no mesmo arpão? Com certeza, com certeza... Não? Até ah! quem te deu? quem te trouxe ah! correm as duas para a sentina, e
que combinaram no tabocal também, que Deus não me castigue. via, revia, se regalava, a outra sobressaltada, anda anda, Graziela, que
Duvidam? Então, então, assim supondo, ou decerto, quem sabe? a eivém gente). Por onde andavam aqueles postais arrancados da mão
velha pega, e puxa a caça a relho pelo chão, vápote! vápote! sem sair pelo Chico Ervelhosa? E postais de Paris, o primo andou na França,
um ai, só o resfolego da velha, som um só gemido, só o resfolego da frases sabia de cor: Paris... Paris a santa, Paris a pecadora, ah tes
velha, qual que doía na castigada! Se toda era daquele exato momento sourires d’août, tes magasins, tes arbres... o primo cochichava,
em que usufruía, e muito mais que eu, o dito instante, juro, o fervor carregado de viagens, esteve na Terra Santa. Na Doutor Assis te
nela quando arpoada era ou não era mais? Que descanse a sua alma. mostro os meus postais, te dou Paris. Aqui neste tabocal por toda a
Fecha as janelas, espia pela varanda, entra na alcova, abre o vida, não. Aqui neste bafo morno de estrume e cocho, em pleno pasto,
cortinado, estira-se na cama. Jasmim, neste travesseiro? Porém é o vá ver a jararaca pelos nós da vara, te apaga, vaga-lume, o tabocal
cochicho, o soprar das noites já antigo: só aqui, prima, debaixo destas vergando maciço sobre as palhas, eivém os porcos, dá formiga, dá
tabocas, em cima desta palha? Nisto em que um pio, um vaga-lume, caba, dá rastro de onça, Santa Bárbara, como relampeia. Olha aí fora
um maroim, tudo assusta mais? Te aguardo em Belém, parente, lá, o longe, lá fora, vem pampeiro. As esporas batiam. Parece que
sim, num sobradinho da Doutor Assis, te digo qual, vais? Do Mutá a acenderam uma luz na cozinha?
este tabocal olha que é um cansa cavalo, não contando o risco, teu Que café ele me deu que foi beber, caí? E contam, contavam
nome de moça, minha responsabilidade, e tanta cobra. Lá em Belém é que ele, menino, batendo com o pé, quero ser padre, quero ser padre,
mais cristão, não erra, só descer do Curro, atravessa o largo do me mandem já-já pro seminário, era só o que dizia. Mandaram. Quis
Palácio, é o 48, puxa o cordão da porta embaixo, abre. Fingi ali um ser padre, quis? E dele faltava sempre o que ela não sabia pedir ou
escritório de marchantaria, lá cima, atrás do escritório, com provocar, faltou que fosse assim um passarzinho a mão pela ponta do
reposteiro, pia, os paramentos, é a cama. queixo, a coceira, mas bem devagarinho, atrás da orelha, só o mal
— Está muito enganado, agora isso... Por quem me toma? passar, saindo de um sentimento miúdo miúdo que fosse, alisasse,
Sempre a embaraçada, a envergonhada, guardando conveniê- sossegasse, como quem diz: dormezinho um pouco. Não esse saltar
ncia, ouvia desouvia, fazendo cerimônia, aquele escritório serve a em cima da galinha, esse dente no beiço, o beliscão — seu malino! —
outra que só lhe sirva de costela a tanto a hora, estava muito do essa unha na espinha — mas seu bruto... — esse descer do cavalo —
enganado, agora isso... axi. Um instante suou para ofender-se ou eivém, meu Deus — já em pêlo. Não demora salta correndo, monta,
chorar, só suou, fez uns muxoxos, cumpra tudo com suada indolência, flecha o galope, amanhece na cidade, sai no jornal discutindo preços
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da carne, dança com a amarelona dele, agora mais opada, um rosto um descuido a porta da rua estava só encostada, entrou ele, aquele
que é só sebo, no Pará Clube. Dele só o convite para a Doutor Assis, manga-de-arminho no Júri, o dedo no ar em nome do P.R.F. na
o chatô. Dele o coice que a varava e nem se debatia, fofa, ronceira, Câmara, grão-mestre da maçonaria, de opa nas procissões, orador no
servida, era só chegar na sua rede rezava. Porém uma quarta-feira, banquete ao Bispo, manda chamar a Magá da Rui Barbosa para fazer
desce do bonde, primeiro se benzeu nas Mercês, ficou parada, parada a tartaruga em honra do cônsul da França. Estás só?
na rua e eis se voltou para o homem que carregava um espelho no O nosso advogado.
qual se via subitamente de corpo inteiro, ali descoberta, ali refletido o Solto na alcova, rola na língua: Yo soy como el pobre cysne que
mais íntimo dela, valei-me, entrou no largo do Palácio, faz um rodeio, canta quando se muere. Chegou ver no Teatro da Paz a Pavlova. E
estanca; pendurada nos badalos velhos da igreja, a donzela seca da tudo foi despencando e o viu levantar-se, içou a cabeça, conserta o
Santa Alexandre soprava o pó dos santos, a Sé ainda na [131] sesta, colarinho, a sua autoridade: já fio eras mais? como logrado. Não eras
agora a barata passeia pelo reposteiro, vão cobrir-se os dois de muito mais? Encoberta? E num ar de Júri: quem? Um olhar de escândalo,
mofo. Sino, mosca, morcego, mormaço. Está muito enganado. Puxou ferido o brio e a esperteza. Não eras? Desde quando? Disfarça o rego-
o cordão, puxou, puxou, não abre, e lá da janela a voz do marchante zijo, enxugando o cachaço. Como foi? Gomo se fosse denunciar ao
apressada: vá-se embora, vê-se embora. Estava em conferência, em pai dela. Quem? O riso dele, o sinal de cumplicidade, o espelho
reunião, embora, embora, e a varrida entrou na Sé, dobrou-se de gravava, os dentes cortavam o espelho. Apanhou a pasta, mal não é
joelho, lho doía a barriga, quis vomitar, lá do altar-mor era o espelho, que faça parte dos honorários, [132] uma e outra tarde, vale. Ocasião
aquele, que o homem carregava. Foi saltar, de lua, por cima da corda que houvesse, voltava, galo rouco de jasmim lilás, charuto e pasta,
que amarrava o cavalo, um mal peguei? Ou também com o meu babando nos travesseiros da alcova.
incômodo passei por cima do embuá. Será? Que mal peguei? Agora está no Peixe Boi jogando trinta-e-um com a consorte
Vá embora? Eu, esta? Pois o primo há de vir correndo a meus que arma o busto da virtude, a cinta matrimonial com que ele sugiga a
pés, raso e cego. Teu castigo, espera um pouco. Corre, apanha o cacau gordura dela. Dali corre para o banho, troca de jasmim lilás e assim
maduro, bateu bateu os bagos, faz geléia, e espera que chegue de de pasta e guarda-chuva, assalta esta alcova e cobra nos meus quartos
Marajó o compadre Apolinário com a encomenda. Não custou, um dos seus honorários.
chegou. Se fechou no quarto, finca a agulha no miolo do boto, e só o — E a Questão, doutor?
que resta do miolo no ouvido da agulha é o bastante para o tempero — Questão, não. Questã. Indo.
da geléia. Despacha o presente para o primo. — Mas só indo, doutor? Não chega?
Comeu da geléia? Ou foi só a mulher dele? — Minha filha, isto é momento? Eu e teu pai nos entendemos.
Ou a dose foi de menos? Demais não foi que senão desvairava o — Mas quantos anos, doutor!
homem. Queria ele a seu pé mas não desvairado. — Um cheirinho nesta cama, de jasmim... Quem sabe... Quem
Ou o compadre Apolinário, em vez do miolo próprio, trouxe um sabe... Confessa?
de boi? Arrancada do pente fino (cisma de lêndea) quede tempo de — Quando decide a questão, doutor?
enrolar o cabelo? a modo de um azeite pelo corpo, e entrou ele, por
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— Não me vá algum estudantinho deste subúrbio limpar o — Doutor!


boneco dele nesta colcha. Deixe de cerimônia. Que tal o ginasiano? — Sabia que aquela zinha das cartas não escrevia as cartas? Era
Não te tenta? outra que escrevia, fazia os pedidos por conta própria e cobrava da
— Doutor, olhe lá, não tire graça. amante dele, pedindo uma repartição dos regalos. Até as palhas da
— Aqui passou novilho, minha flor. barraca. Um milheiro para a escrivã.
— Doutor, a nossa Questão. Pelo amor que o senhor tem na sua — Não quero saber, doutor. O senhor está é falando muito.
senhora, me diga, quando? Adivinhando chuva?
Aqui o advogado se empina no propósito de dizer: não é lugar — Pois o Mané Xen Xen! Avançasse com o guarda-chuva. Era
nem vez de tocar no nome da minha senhora. com esta pedra, esta do anel que ele quis injuriar, este rubi, sim, que
— Então é por isso... Por isso que o teu irmão... E eu comendo lhe deixaria marca no nariz, um rombinho para lembrar-lhe a
milho. Até aquele teu irmão! Aquele Mané Xen Xen. A atrever-se, a imunidade de um deputado, a reputação de um advogado. O seu pai,
pedir explicação. Instigado pela irmã? Foste tu? Como se a Questã coitado, certo dos seus compromissos comigo, no que sabe, derrete-se
não fosse do pai. todo, corre a mandar aquele secretário lá de Cachoeira, o Major
— Mas meu irmão é que sabe o gado que embarca, doutor. Alberto, a me pedir desculpas num ofício em que se arrasta a meus
— Que tenho eu com o gado que embarca? Não é teu pai que pés. Tem gramática aquele Major. Com este rubi!
sustenta a Questã no Foro de Belém? Não é teu pai que recorre a um Fazia correr o rubi pela anca da estatelada, ora o Floremundo
advogado para defender seus direitos, ou pelo menos, o que julga Mané Xen Xen! A Questã? O tempo que exigia, o tempo que exigia!
como direitos? Ora essa! Instigou, não foi? E quem, quem que E de repente aquele de gogó mole lhe aparecendo de agravado,
instiga... tentando um escândalo em pleno Foro.
— Então, doutor, chega. Enterrou-se o assunto. — Só estou é o meu desbrio, doutor, o meu...
— Pois o teu irmão! Pois o seu Floremundo Mané Xen Xen! O doutor esfregou o rubi num sinal dela:
Aquele caxingô de colarinho. Dei-lhe um grito. Ele avançou ou fez — Chamei a polícia? Foi bem defronte do quarto oficio.
que avançou de guarda-chuva, no que dei um passo ao encontro dele, Mandei atuá-lo? Me prevaleci? Ó Capabode, leva esse homem pra
o escrivão me agarra pelas cosias — que é isso, doutor — e todo o debaixo das mangueiras, leva. Capabode, depois, veio me contar que
Foro acode... Esperem, digo [133] eu. Quero ver até onde chega a o suposto agravado ficou lá em cima dum toldo de canoa no Ver-o--
fanfarra. Capabode, não toque no homem, leve o homem por bem... Peso, ali espichado, só, de guarda-chuva, gravata embalada na mão,
Aquele Mané Xen Xen! Como se de tantos inventários grandes não feito um Antônio Conselheiro, tirada a barba. Varia um pouco aquele
tenha sido ou o advogado! teu irmão? Varia? Costuma beber?
— Mas o nosso não é inventário, o doutor sabe. Estamos ainda Graziela, enterrada no travesseiro, o rubi pelas cadeiras, bate o
vivos. Meu pai, graças a Deus... pé contra as moscas, valei-me, Nossa Senhora da Cabeça.
— Vivo? Morrendo agarrado ao cós das raparigas? A barba do — Sou de bom bofe. Não me prevaleci para desagravar-me do
imperador na entreperna delas? desacato. Fiz foi chamar o Capabode: me faz este serviço, me carrega
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o pomboca, tira uma guia pra ele entrar no Alienados, O Capabode estampa, empoado, estratado, sempre de branco. O resto do chiqueiro
acomodou a sua nobre mercadoria na mão do seu secretário, um é a Câmara e o Tribunal. Um dia lá todos nós desabamos.
barrigudinho, a verminose em pessoa, e foi levando a jeito o Graziela, inerte, ouve o cochicho: cachorra.
malcriado, sempre por bem, até deixá-lo no Ver-o-Peso. Para isso o [135] — E sobre aquilo... Também adverti o Capabode, Rá!
Capabode é bem mandado. Não conhece? Um que anda por lá, pelo Não me digas, minha filha, que estás te ofendendo. Tua família?
pátio e corredores, vendendo revistas imorais, anedotas de Bocage e a Primeiro vocês deviam ser mais cristãos no caso da caçula. Foi
Bíblia. Pajeia a amante do juiz Alvim e é, tempo de São João, caçador atirada às feras, às feras, A Questã vale mais. Que o que fizeram com
do Rouxinol. O nosso Capabode levou o rebelado e depositou a carga a pequena, que diabo, tem paciência!
no convés de uma canoa do Arari. Voltou me dizendo da figura dele, — O senhor aprovou a nossa decisão.
o queixo por cima da doca num ar de quem rogava monstra praga a — Como advogado da família, tinha eu outra conduta? Nada
esta cidade. O Capabode passou a contar pelo Foro, subiu na Câmara, mais fiz que pôr o carimbo, os fatos consumados, a velha rangia os
contando das cartas da rapariga do teu pai, da ida de vocês no dentes... Mas que diabo!
Arcebispado, a diligência do Laudelino mudando do Marco a toque O rir dele, o rubi, ela esquiva-se, revolve-se nos panos.
de caixa a costela do nosso Imperador, carregando com ela para a — Doutor, me faça uma caridade, por amor de sua senhora, se
barraca de um compadre dele lá nas baixas da Cremação. Ou da vista e vá.
Castelo Branco, não me lembrando bem. Teu pai! Teu pai! Cada fio — Tanto que te dói?
daquela barba está na conta do diabo. Chamei o Capabode: cala-te Revira o travesseiro: no Júri, Maçonaria, Associação Comercial,
que te casso o comércio. Cuida da tua mercadoria. Bons fregueses sessão do Tribunal, jantar na fragata inglesa, aula da Faculdade,
dele são os juizes, os desembargadores, todo o Legislativo. Muitas parada militar, é aquele mesmo de arminho, condecoração, fita de
vezes, de dentro da Escritura Sagrada, tira postais obscenos, irmandade, casaca e jasmim lilás. Mas aqui dentro vomitando Foro,
explicando: postais do Rei Salomão. A Brasiliana comprou dele uma Política, Igreja, família, consideração pública. Esta hora bebe leite em
Bíblia mas daquelas revistas nunca, nem daqueles cartões. Em minha Peixe-Boi, joga o trinta e um com aquela, a dele, Deus me perdoe,
casa, porquera semelhante não entra, disse ela, levando um pacote de que foi nada mais do que a mais marafona da Cristal. Ao Júri vou
contrabando para o Presidente da Câmara. Capabode é também ainda, sim, pelos meus réus pobres mas também para prestigiar a
especialista em arranjar ovo choco quando queremos, por política, instituição. Já escasseiam oradores.
jogar num juiz, num jornalista, num qualquer contrário. Ele é bem Fica o vômito no leito, por cima de mim, escorrendo pelos
digno de nosso Foro, aquele cano de esgoto, aquele pardieiro infecto. móveis, Tem que chamar os portugueses para baldear o soalho,
O casarão dá idéia mesma da nossa justiça: todo aluído, todo desinfetar a latrina — saia, saia já daqui, doutor, saia já, me deixe o
esburacado, o chão mosaicado coberto de pó e pira. Lá em cima é o quanto antes senão vai me abrir por todo o corpo uma bexiga, só de
gabinete do Intendente repleto de pedintes de emprego e aduladores a me roçar no senhor, no seu rubi, que mais imunda do que estou já é
olharem o Maestro Carlos Gomes morrendo no quadro. Também lá a impossível.
Limpeza Pública onde só limpo é o Diretor, o lavares, que é aquela
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De pé, chapéu na cabeça, guarda-chuva, pasta e pigarro que o Debaixo dos panos, de barriga, como afogado no fundo.
restitui à decência, um pouco ofegante. Fecha O jaquetão, assoa-se, — É verdade, a barriga? Nunca? Ou aquela sua tia, ar de
reassumindo austeridade, contempla esta vagabunda na cama, atolada santinha, que anda tombando pela rua atrás das notas, aquela é que
rios panos, pé de fora, o calo seco do calcanhar amarelo, o grampo tece teus anjinhos? Te tece? Aquela sua tiat A tia? Tudo em família?
fugindo pela ponta do lençol, virada no chão a chinela ordinária. É?
— Não se incomoda que lhe traga uma sandália? Debaixo do travesseiro, o punhal de cabo de ouro da nossa mãe.
A de bruços não se mexia, suando nos lençóis. A mosca. O riso do primo na marchantaria. O fio de voz da parteira
— Uma sandália chic. Essa que usa, sua unha-de-fome, jogue no escuro atrás das netas.
no valão da esquina, aquele abismo, de que fala a Madame Brasiliana. — É?
Uma sandália. Me deixe tomar a medida do pé. — Sou castrada, me castraram.
A de bruços nem se mexia. Ouve o doutor acender o fósforo, o sopro, o assoar-se.
— O Capabode será o portador. — Que o Diabo te encubra sempre, galharda. Bato a porta?
[136] Cachorra, e vinha a confidência de baixo, debaixo do Galharda, a palavra dele, a invenção dele, galharda, quando se
soalho, o cochicho, e ouvia o baforar aqui em cima, o ofego do doutor impacientava, galharda. Que que então deu no Floremundo para
que dá agora uma volta pela alcova, tossindo sobre a janela da atrever-se, que tinha de cobrar a Questã, de meter o bico no Foro,
varanda. Cachorra, O cochicho corre-lhe aqui debaixo dos panos, puxar escândalo? Mais por desespero, por não encontrar a irmã caçula
pelas tripas, mosca por dentro zumbindo. Bateram. que ocultamente procurava, com quem queria se ligar escondido,
Era o cobrador da farmácia, o filho do seu Josias, magriço, aposto, aquele [137] murcho enrabichado pela mana, era a Nossa
espinhento, de bicicleta, cobrando duro a todo minuto pelo bairro. Senhora de Nazaré no Céu e a caçula na terra, então que o anzol te
— Me deixa soprar nas tuas costas a cinza deste meu charuto fisgue, bicho besta.
pra te livrar da visagem. Ela veio na sola do meu sapato. A caçula te No que rompe aquele carnaval, a mãe se tranca no quarto com
espia cá debaixo da cama. Mas a sandália, que tal? as cartas da outra, aparecem de capota aberta os três carros defronte
— O senhor aqui ainda? Não foi? da taberna. Brasiliana, de Rainha de Sabá, debruça-se na janelinha do
— Tive que te passar um telegrama. sótão, sobre a calçada onde recitava inglês com uma garrafa na mão,
E dos lençóis, do travesseiro o “saia”, “saia”, sufocado. binóculo no bolso, o intérprete do Hildebrand. Os carros abertos. Os
Enxugou-se, o corpo a modo fumegava, pareciam que andavam carros daqueles senhores, pelo visto, só pessoas do Governo. Carros
no telhado? Menino atrás de papagaio? Cachorra, repetia-se. Até que com foliões para um assustado mas onde? Neste perímetro? Na
saltasse do forro, descesse pelo cortinado, espantando as moscas, Brasiliana? Cantando numa boca de gramofone, um arlequim de
aquele rosto, o sol lambendo-lhe a nuca, como no trapézio, vai em máscara roxa. Alfredo espiava na esquina: na Brasiliana? Eivém a
cima vai em baixo (pára com esse trapézio, varada!). A mesma do Esméia para ver os carros, estofada de crepom, o carmim queimando-
selim atravessando o raio, cuspindo: cachorra. lhe o rosto, ventarola, a figa da avó. — Tás a miss da José Pio,
— Doutor, se suma, mea cabeça roda. morena — Esméia espichou-se para o sótão: se diz morena, me ofen-
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de, D. Brasiliana, eu sei a minha cor, a sacudir-se, parecendo mais Alfredo entrou num instante: o Coronel Braulino num paletó sobre o
negra no crepom canário. D. Brasiliana atira-lhe a serpentina, dá boa- pijama, apreciava, bem menino nos olhos, muito homenageado, fa-
tarde ao homem que vem tocando os zebus; parados defronte da ceiro na barba salpicada de confete. Foi dar dez horas acaba a
taberna, os três carros buzinavam. É a vala! É a vala! Nem um carro pantomima. No que todos saíram ficou diante da casa aquele mefisto
passa! Cuidado com os zebus! Ninguém nem Deus entope a vala! bêbedo berrando contra o Dr. Gurjel: vai deixar o senhor, Coronel,
Esta aqui engole tudo, um dia se despencou goela adentro um zebu! roendo penico ao pé da aninga! me deve um parecer! Nunca entendeu
— Fingiam horror os mascarados em cima da capota, os zebus de hermenêutica! Um bucéfalo’ Ratazana do Foro! Graziela fechava a
passavam alvejados pelas lança-perfumes. O intérprete assesta o binó- casa. Esméia, debaixo do jasmineiro, puxava as serpentinas que
culo para o sótão. E daquele — um alto — cuidado com o cesto, ficavam na sacada. Alfredo corre a acudir o mefisto. Porca Prenha!
Capabode! — de quimono, cabeça de dragão, sai do carro, dá ordem, alguém gritou. Alfredo reconhece o gritador: era o Caralonge, da
logo todos a pé para aquele número da José Pio, assaltam a casa a Passagem dos Inocentes, instigando os meninos que traziam na ponta
peso de rufo, confete, pistão, trombone e uns pratos. Olha só o Cesto da vara um sapo morto. Mefisto vomitava na porta dos Boaventura,
das bebidas, credo, cochichava a Esméia no portão debaixo do Porca Prenha! Porca Prenha! Alfredo levou o Porca Prenha até a
jasmineiro, o Alfredo na calçada. Lá dentro o Coronel é apanhado de taberna, ali o deixa sobre uns sacos, mefisto enxovalhado, a Rainha
pijama, tremia a cristaleira. — Jovita, o Dr. Gurjel, sai do quarto, de Sabá passando por cima dele para vender no balcão um elixir
agrada os festejantes. Felipa escapou-se pela cerca onde, ao pé do paregórico. Da taberna a Rainha não saía, se fantasiou por simples
formigueiro, se refugiou o seu Floremundo bebendo seu chá de fantasiar-se nem serenou o assustado, lança-perfume, o tubo intacto
solidônia. O assustado varou casa, as damas enfiam a Graziela na nem abriu o saco de confete, o sótão com uns balõezinhos chineses e
cobrinha. Aqui está a sua sandália, calce. Entra, entra, menina! o os tajás guardando a janela, O português dela atirara-se com uma
quimono, cabeça de dragão, atracou a cintura da embaraçada: posso tropa num caminhão chispando por entre as cobras do Acampamento
lhe atestar, Graziela, que o que trouxe aqui pra sua casa é só moça, só para um tudo-nu na Pedreira. De madrugada, descendo do sótão,
moça, de três vinténs inteiros, cochichava-lhe, espirrando-lhe lança- Alfredo encontra a D. Graziela assoando-se no alpendre, sandália no
perfume no pescoço e colo, calce a sandália, [138] tudo aqui é pé, o cabelo cheio de confete.
família. Tudo aqui é do Governo. Graziela regougando: por que não — Sem sono, D. Graziela?
são suas filhas? Por que não é a sua senhora? E quem jurava que não Ela se volveu, a ele abraçou-se, Alfredo debaixo daqueles
fosse, pela mão do doutor, aquela de mau viver, exato aqui entrando soluços, o avantajado Colo indo e vindo. Tirou-a do alpendre, foi
de máscara? Afinal quem são, nem Uma vez tiram a máscara e levando-a, a D. Graziela dava por falta de objetos na sala, sumiu a
sempre nesses termos? Todos num vozerio trombone no meio, qual estatueta e a salva, aqui vomitaram, também dentro da jarra de cristal
delas ela? colombina? sultana? dragoa? Abre o conhaque, Capabode. lavrado a ouro. Alfredo fugiu.
Lá fora o sereninho debaixo do chuvisco, os obrigados da [139] Entrou na jaqueira. A mãe da Zuzu, por não ter café, fazia
Penitenciária com as suas máscaras e fantasias de doença, fome e chá de capim marinho.
flagelo, apanhavam bagana e miravam o lustre cheio de serpentina.
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— Meu filho já vai zinho enxergando as letras, professor? O de, visita de cerimônia, vai ficando tarde, apitou as nove, o lustre
senhor não estranha que eu estejazinho lhe pedindo uma daquelas apaga, fecharam as janelas, saiu pelos fundos?
garrafas vazias da festa, do assustado? É para o meu fluido, professor. Por onde a vó anda? Tia Dudu ouviu ficou tão séria, Nini de
Eivém do sono, nos seus trapos, que ganham agora, no amarela passou a verde. Tia Graziela só vai saber noutro [140] ano,
amanhecer, um luxo, a quase desnuda, um pouco ainda adormecida, vão saber lá na fazenda noutro ano, ninguém lê o registro fúnebre,
nascendo da jaqueira, veio, abriu uma jaca para ele. Ao menos as asas ninguém vai contar do rabecão, a avó vai ao Santa Isabel atrás do
de anjo da D. Felipa nesse ombro, cobrindo-lhe o colo. As asas de número, aqui na casa alta a honrada tia acende o lustre para as visitas
anjo da O. Felipa. Ou quatro e quinhentos para os três metros de chita de cerimônia. Ali agarrado, no meio das lacas, aquele outro, esvaído
no Tufi do Reduto, Quatro e quinhentos. Aqui no bolso só mil e de tanto subir naquele cabo e desta assim entre as jacas nua. Não sei
trezentos. E olhe que chitinha da bem ordinária. Dá na altura de Zuzu onde ‘que não espicho a canela também nesta maré, dou cabo do
o manto, aquele, da Nossa Senhora da Sé? A jaca sabe ao sono dela, canastro, salto desta cabeça de trapiche, era uma vez, o rio levou,
gomo a gomo. Lá fora no azul bem leve o verde da jaqueira pronto. Noutro domingo, por uma comparação, batiam a quilha do
carregada. Alfredo corre e traz de casa duas garrafas para o fluido. A barco, e de mim nem sombra, a maré subindo muito satisfeita. De
quase desnuda, agora atrás do jirau tapado pelas palhas de inajá, toma afogada nem sombra a não ser se de fato vá sair de mim um espírito a
banho de cuia. Lá na corda de envira os trapos no sol pareciam um correr pelo rio, pelo trapiche, desembarcando, carregado de barro,
bordado, Com pouco açúcar este chá, depois daquele Reino lá no bem tipitinga e puf! na goela deles, na goela deles, e cá te espero
sótão guardado pelo tajazeiro. debaixo da jaqueira, seu agarrado nessa papa-jaca ou te apanhando
Alfredo! Era a Nini, já de uniforme da Chapéu de Palha, bem ao quando a sobejo do galego te iça para o poleiro. Ou de repente,
pé dele, Ana e Dalila tinham voltado de repente na barraca do Curro, amanhã, Ana, esta que sou eu, bolou de cabeça roçando no esteio do
tão dia, atrás da avó que já não estava. Cochicharam para Nini, esta trapiche e aí, correndo da jaqueira ou descendo pela corda, chega o
passou a D. Dudu que ficou sem palavra, logo as duas saíram, Dalila compadecido, tão compadecido, morda pra tua compaixão.
para o Almirante Wandenkolk, Ana para o Una, Nini atrás de A maré cobriu o degrau. Volto para espiar, de novo, na
Alfredo, jaqueira? De tia se bota luto?
Do seu banho, abrindo a fresta nas palhas, Zuzu vigiava, Chia D. Graziela se levanta da cama, vai no alpendre. Teria fechado
na mão, água do corpo escorrendo no paneirinho da japana. Mamãe, bem as janelas? Daquele casarão na mão dos sara-pecas, daquela
repare aí que o professor a modo que soube uma triste notícia. escuridão ali no largo, podem descer os ratos, aquela fome canina dos
Ana, passando na jaqueira, deu com o Alfredo, no que foi vista flagelados. Já lá estão levantando também a hospedaria dos japoneses,
desembestou pelos buracos do Una, apitava o curtume, entrou no daqui a pouco, fugindo do vulcão e do terremoto, chegam ninhadas de
curtume, pediu um lugar, não tinha, foi chupando camapu até ao amarelos; aqui a nossa casa, debaixo do risco, precisava de bons
trapiche do estaleiro, Ali ficou no degrau rente d’água, o pé na maré cachorros, boas cascavéis, fazer armadilha, pagar um guarda-noturno.
que subia, Viu levantarem o mastro, passou um gaiola, quem sabe no Foi no quarto, apanhou a espingarda, um dia pois não matou um
leme não vai aquele que entra na casa dos Boaventuras, o lustre acen- anu coroca? Desde aí nunca mais acertou num alvo, deu caninga ria
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arma, que se passou para a dona da espingarda. Anu coroca. Por que cabelo na moda, a senhora recendendo a banho de São João. Pousa as
que o comandante... Cera! Por que telefona para a Brasiliana? Esta, mãos no encosto da cadeira, as mãos tranqüilas, assim de pé parece
sem demora, eivém, a figurona, apertando a campainha, nunca mirar-se num espelho, feliz de sua figura alta. O comandante ralha
mandada entrar: com a arara, vem para a mesa. Olha a senhora: um pouco pálida
D. Graziela, telefone pra senhora, às ordens. Ora, incomodando talvez, ou efeito do calor, da luz, das rosas na mesa, o anel de aliança,
a senhora, D. Brasiliana. Num embaraço, saia preta, blusa branca, não como sempre. O que usa, o único, a ele fiel. Lá dentro outros anéis se
emparelha com a taberneira, ou esta na frente, ou atrás, de Igual na amontoam. E agora nesta ausência? Indagação sem sentido, um coçar
rua que não, a apressada, entrando na taberna, apanha o telefone: mas velha ferida, pedra que volta a carregar logo que chega ao cais, chega
é o senhor? Mas que cabeça a sua... D. Brasiliana, num ar de quem em casa, e deixa a pedra na porta da rua ao sair para a viagem.
nada [141] entende, olha enviesado, escuta a outra engolindo as pala- Andou pelo caramanchão. Na saleta abriu a escrivaninha,
vras, o sim sim sem dizer mais nada, sim sim e de lá doutro lado, no mexeu à toa em papéis. Aqui o espelho grande a conhece tão bem
cais, debaixo do barulho do guincho (tinha um cargueiro alemão) o mas não tanto como a rua, os carros da praça, o vapor do Mosqueiro,
rebocador apitando, aqui o carrinho de mão deu uma topada no as areias do Ariramba. Josefina, a velha empregada, feição cada vez
paralelepípedo solto, buzinou um carro. O comandante telefona mais de pajé velha, vem com a travessa dos caranguejos. A
olhando o Guajará, a maré dobrava, desatraca a lancha na escadinha, extravagância dele: comer caranguejo com talher. De garfo e faca, vai
passou o Conqueror, lá fora o sol moqueava as velas, a mata, ferviam abrindo o bicho, [142] solenemente, numa lenta, cautelosa operação.
as lonjuras. Não pega uma unha, partir o casco nem com o cabo do garfo,
D. Brasiliana revirava o pirarucu ardido, enxotando as moscas. trinchando, sem pressa, obstinado. Atrás das rosas, do saleiro alto, e
Quem que telefonava do cais? E o sim, sim sim deste lado, querendo de todas as viagens, dos longos anos perdidos, o rosto da senhora
acabar a conversa, uma voz de velha, cerimoniosa, o colo, nem por sobre o prato. Vinha a torta de camarão, o pirarucu desfiado, o doce
isso, até que um porte no peito, a perna — não lavou em criança com de bacuri. Aquele gesto dela de levar à boca o guardanapo, tanto ele
cipó de tracuá — um tanto torta, os olhos nunca na gente e uma boca conhecia. O café na varandinha aberta sobre o quintal onde lia os
bem ordinária. jornais, acolhia o gato, escutando o vento nos abieiros. A senhora
Vai a pé pelo Bulevar, fura a Ocidental do Mercado, apanha o ficava um pouco diante da penteadeira na alcova. Vinha, sentava-se
Batista Campos. Em casa, tudo rigorosamente à sua espera e ao seu em silêncio, ouvia-se ranger a cadeira de embalo.
dispor, objetos, roupa, bichos do quintal, caramanchão, suas — A viagem? Foste até lá em cima?
espingardas, a patroa. Josefina lhe trouxe os chinelos. Vai ao banho, Ele desdobrou o jornal, foge-lhe do pé a chinela. Aquela voz,
está gordo, cresce-lhe a papada, é um banho de choque, morno do sol, aquela mesma, que o arrastara, e aqui o deixara nesta varanda, com o
ali na tina os cheiros da senhora. Josefina a toalha! gritou a arara na quintal de bicho e fruteira. Também foi assim pela primeira vez:
beira do telhado. Erra um cheiro de sapotilha e abricó, um jabuti se — Que tal a viagem?
aproxima da porta do banheiro. De chinelo e com espuma no queixo, Agora, pesado da digestão e de um vago horror de sua vida, a
o comandante olha o quintal. A espera, na mesa, sem ainda cortar o mesma pergunta. A senhora, que não estranhou o silêncio dele, foi à
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varanda, riu a uma graça de Josefina, voltou trazendo no rosto o sabor agregadas, a mãe assistia de rede, com a coruja branca no punho,
da risada. Ele não a encarava, sempre para se dizerem algo que nunca vigiando na sombra, Batia-se no pilão o cacau torrado para o
diziam, O marido levantou-se, calçou-se, apanha os cigarros e o chocolate. Cacau gordo, gordura esta aqui em volta do coração
paletó. A senhora na janela a vê-lo apanhar o bonde. Apagou a sala, grosso, com aquele sal da salga do mapará, a coruja alva na sombra.
foi embalar-se na varanda, escutando o cantar de Josefina que lavava O verde que fez pelo rio na manhã, chegando o motor das cachoeiras.
a louça. A arraia de Itaboca (mora debaixo da pedra com toda a cachoeira por
Subiu a Quinze de Agosto, espiou no Café da Paz, hesitou cima) andou esta vez mais braba contra os motores? Fez tremer mais
diante do bilhar, volta pegando o Curro. a terra? Sonhou que arpoava a arraia, trazida de bubuia até ao cais de
Sozinho no banco do meio, se via menino no Tocantins, a mãe Cametá. Talvez por isso o cais adeus. A arraia de Itaboca, no
já viúva, Brincava na burrica, bebia vinho de caju, esperando na beira adivinhar o sonho, se vingou no cais, O cais arriou-se, com ele se foi
da praia os lanceadores de camarão. Secavam no jirau os feixes de o adolescente. Aquela sumaumeira pajureba que serviu — bote tem-
gergelim e ao pé o velho Fileto de volta do rio, dizendo: gente, vai po! — de encosto da tropa contra o ataque dos cabanos? O rio
encher feio este ano. O uruá botou ovo no pau multo em cima. também comeu, Aquele cacaual antigo? O rio também comeu. A
Encheu. Lá se vai a nossa moradia pelas águas, levanta mais atrás a aranha caranguejeira, que lhe ferrou o pé, ferra agora muito mais aqui
casa nova, o araçazeiro roçando o dormitório das galinhas, os ubuçus por dentro, mais peluda, mais doendo. A flecha caiapó, que matou um
em roda, aquela noite os gritos: trapiche arriando! trapiche arriando! lá em cima, guarda sempre a bordo, embebida daquela morte.
Peso de correnteza ou a mãe do rio? Já bem soturno, com as Cunhatãs de pé no chão, vestidinho ralo esgarçado em cima da pele,
inhambus gemendo, os foliões do São Francisco das Chagas do chega o vapor, lá estão no trapiche, principalmente aquela de
Miritipucu saltavam na beiragem; lá dentro, no copiar, fazendo sabão Ituquara, lisa-lisa de cabelo e corpo — ande mas ande, seu imediato,
de cacau, as agregadas, tinha um sangue gavião. No mato, os poucos ara me leve na sua bagagem, me leve com o senhor, um dia? Me bote
homens tirando, uns a madeira, outros o sernambi. A família comia dentro da barrica de bolacha e tampe até chegar lá, sim?
[143] pare|dões de conserva, sardinhas de Portugal, e o dia em Alco- Então senão me esconda atrás da lenha, me esconde? Um dia,
baça quando viu um caiapó debaixo do jupatizeiro, o caiapó. Veio o sim? A modo que melava os braços, a barriga da perna, com manteiga
cavalo e o índio se assustou. E que estrondo esse Pelos castanhais? de cacau. O seu Cabelo aqui nesta mão, lisinho, cheirando a andiroba,
Foguete para espantar as araras que comem a flor das castanheiras. agora nele chorar um pouco, só um pouco, meio esconder o rosto, só
Com arara solta no castanhal, não tinha safra. E o bloqueio do mapará um pouco mas Inês é morta, Chega o vapor da festa cívica, também
no rio, o encontro com o cardume, eivém pelo fundo, eivém pelo seu [144] navio apitando, também embandeirado, era imediato. Então
fundo, joga as redes de pari, faz o cerco, o bem menino na montaria aquela alta aparece, a banda tocava, o Bispo abençoava, foguetes pelo
do espiador que espia e escuta o peixe no fundo, avisa quando o peixe estirão, a alta se aproxima: que tal foi a viagem? Lá se vai à crisma na
vem, o instante em que Sondou o cardume, o menino na montaria, Matriz, sai festa no gaiola, tira retrato dela junto ao leme, do chaminé,
Rio, cardume, peixe se debatendo, risada dos pescadores, o caiapó e o sentada no escaler, a cuia de tacacá na D. Miguelina ali na beira, a
cavalo, esse bem menino, tempo comeu. Na varanda a festinha das alta apanhava o jambu com os dentes no sol, a cuia na mão, os olhos
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no imediato. Segue o gaiola carregado de castanha e da visão daquela de casa, aquela sem [145] remédio. E sem nunca deixá-la, sem nunca
alta, descarrega a castanha mas não a visão, vai subindo o Xingu, procurá-la, como se uma obscura compaixão o fizesse permanecer
desce do Xingu a sete milhas, chega a Breves. Imediato, um naquele quarto de onde ouvia o vento nos abieiros. Em toda viagem
telegrama para o senhor. Prancheia em Belém. No cais, de chapéu fugia dela, vinha chegando flagelado só para vê-la. E a encontrava
com pluma, a alta de Tocantins: recebeu meu telegrama? Que tal foi a assim, como nesta noite, mas tão sossegada, dona de casa mais do que
viagem? Para encurtar: em maio, à noite, o carro os leva a Batista ninguém. Então, aquele ano, vai a Muaná, dá o baile a bordo;
Campos, descem de guarda-chuva, da grinalda sobrou um botão para subindo, apressada ou assustada, ou corrida, pela prancha vem a filha
a tia Carlinda, está escuro, chovendo, a casa de Batista Campos é do Juiz, apanha-lhe o braço, lá se vão no giro da valsa, tranca a dama
grande, quintal molhado e escuro, aquela roseira monte-cristo abrindo no camarote.
os botões ao pé da janela, os passos faziam um barulho por toda a O bonde parou no Reduto, Quis saltar, não saltou.
casa. Muito do tempo, era bem rapaz, passou pelo Furo do Pajé, no Retira a prancha, toca a sineta, a hélice puxa, apitou, tão de
Limoeiro, saindo para Oeiras, ali jogou presentes para o caruana do repente. Aquela moça do baile a bordo, ali no camarote, o navio
fundo. Quem que por ali passa, não joga presente, vá ver o que lhe fugindo, roubei a moça ou a moça roubou o navio? Ali estava, quem
acontece. Não lhe agradaram meus presentes, caruana? No cabo duns sabia? o que não pudera alcançar no Amazonas, Peru, Bolívia,
meses, apressando a volta do Xingu, entra em casa, olhou para contrabando, rio acima rio abaixo, a colcha de lhama para a noiva,
Josefina e esta num sobressalto para a jovem senhora que colocava os casamento, caucho, ah bolivianas! rio afora, rio adentro, que fazer
brincos, aquela fugindo para a cozinha, e esta: vamos hoje no Remo? deste imprevisto? Que fazer desta filha alheia? A um canto do
Um sábado, a dama diante do espelho, diante do espelho, a alta entra camarote, aquela tão entregue, variando entre curiosa, aturdida,
no clube. Ele ficou no bar, por onde a senhora? Não danças? disse ela, sucumbida, fascinada, Voltava para a proa, embaraçado com a
voltando do salão, logo apanhada para o salão. Ele continuou tripulação, tentava explicar ao imediato, esperando que o dia
bebendo, uma e outra vez entrevia o ombro, o braço, o giro, com avançasse para devolvê-la, ou dar-se a ela, rumo do Madeira, Desde
certeza dela, não sabia, já não estava no escaler e nem bebia o tacacá aquele casamento, estava em busca do ser ativo, desembaraçado,
nem no cais de chapéu e pluma. Dessa noite em diante, escolhe sólido, que fora antes. Custoso agora de estar só, de proa a popa, no
aquele quarto pegado da despensa, ali guardou-se, sem que ela meio da guarnição, o passadiço cheio, à cabeceira da mesa, atraca, os
indagasse, lhe pedisse a razão, tacitamente desentendidos, O certo é trapiches cheios, e mais só, sem salva-vida, sem socorro, de rio a rio,
que, voltando da viagem, encontrava a casa perfeita, aquela boa navio carregado de inflamáveis e crianças, Belém-Manaus, Manaus-
ordem, a mulher a tudo acode com silenciosa exatidão e distante natu- Belém, carrega castanha no Alenquer, quase levando o diabo no
ralidade, e o que ele preferia, caranguejo, pirarucu desfiado, o açaí no Tapajós, encalha no Purus, num subir descer até que um dia chegue
gelo, na varanda, roupa marcada, chinelo no lugar, tudo a tempo e àquele porto; agora nestes e a bordo não encontrava senão sua
hora. Encontrava a mesma mulher serena e serviçal, sabendo pelos sordidez, a flecha caiapó no camarote, o rosto da ausente lá da janela
olhos de Josefina, pelos olhos da senhora, pelos olhos da rua, o que de Batista Campos, queimada do Ariramba ou saindo de Nazaré, da
que acontecia, Debaixo dessa, tão ciosa, e constante, de seus deveres missa, véu no braço, hóstia engolida. Sobe, desce nos navios da lama,
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entre as taperas da borracha, marés de paludismo e trapiches de lenha


com banzeiro sobre os ralos seres humanos se movendo miudinho nos
estirões. Dentro do camarote a moça de Muaná. Atraca no Curralinho,
faz descer da prateleira o vestido mandado vir da França, que a dona
nunca vestiu, ali novo e antigo para sempre. A dama do camarote
precisa trocar o vestido do baile, e entra no Aturiá, vai pelo Vira-saia,
é a beiragem mal-assombrada das fluas dentro d’água, estão supli-
cando roupa, pois não é que a dama do camarote joga os dois [146]
vestidos para as suplicantes? Lá ficavam, o da França e o do baile.
Agora, quando passa pelo furo, se chega para a roda do leme olhando
aquela beiragem soturna a ponto de se ouvir o cantar das nuas, ali
ficou a dama da borracha e a dama do baile a bordo. Era um rumo?
Um porto? Rumo esse que só foi a brusca manobra pelos Estreitos, a
moça com quarenta graus, o delírio, o noivo no cais.
Agora neste bonde, gordo no rumo da José Pio, vai ali lançar o
cabo, já sem vapor, pensando em Batista Campos, na estranha que se 3
embala na varanda, tão íntima, aquela desconhecida de tantos anos, e
que tão bem conhecia. Vem de lá pelo escuro o sabor da risada. [147] Soube? Zuzu no banho. A mãe: e eu que sei, mea filha?
Indaga dele.
A mãe saiu.
Aqui o indagado nem se mexe sem boca nem ouvido, a seu pé a
isca aberta, gomos no chão, o realejo deixado pela Nini: pois ontem
pela Santa Casa. Pois ontem pela Santa Casa... Pela Santa Casa de
Misericórdia. Vinha do banho o Soube? Soube? que lhe gelava o
espanto e a inércia. Pois ontem pela Santa Casa. Pela Santa Casa.
A cuia de banho atrás das palhas, o som do banho no silêncio, a
manhã banhava-se, a jaqueira, a rua. Menos este enfurnado espanto,
esta inércia aqui entre os gomos, pois ontem pela Santa Casa. Pela
Santa Casa. Capaz sair hoje na Folha nome idade doença. Só pedir ali
no balcão o jornal da Brasiliana, corre os olhos pelo registro, na lista
dos morridos... Pela Santa Casa.
O nome.
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A idade. senhor transpira. Esse seu suor? É do que escutou, que eu sei, sim.
A doença. Tira uma prova, é fel.
— Mamãe! Mamãe! Chegue só um instantinho aqui ao pé das Alfredo o pé não mexeu, a jaca era aquele pegajoso desperdício.
palhas, um instantinho, só um instantinho! Zuzu, sacudindo o cabelo, respingava o chão, os gomos. Entra uma
Calou-se o banho, a mãe longe. Zuzu, com a vara, colhe da borboleta, lá fora a jaqueira mexia-se, pesadona, resfolegante.
corda o seu molambo que parecia um bordado. Ana [148] pas|sou. Dela o semblante só me diz: daqui só me sais quando eu te
Resta o nome, a idade, a doença ali no jornal, com a Brasiliana entre o soprar lá dentro o meu alento. Olhem o seu braço estirado, a
camarão no coto e a caixa registradora. verruguinha, a penugem do sovaco, a gotinha do banho no pescoço, os
Alfredo vai sair e se vê com Zuzu na frente, o braço dela trapos entrefecham o peito, colantes. A borboleta vem e vai em torno
vedando-lhe a passagem. A mal enxuta, tiras pendentes do ombro, o dela como se lhe fizesse um vestido, suas cores, sua renda, irisando-
arrepiado cabelo escorrendo, a intimação mansa: lhe os trapos. Pela Santa Casa. E esse indagar molhado do banho,
— Primeiro primeiro me diga, vá me dizendo, sim? Soube? Foi adivinhoso, a súbita voz de intimidade, o braço de novo em cima, é só
triste? tocar nele despenca, maduro, no meu? Ir, retirar a mala, finque o
— O que que triste? bandolim e sua tarde de carnaval naquela sepultura, D. [149]
— A notícia que aquela outra lhe trouxe. Foi? Que que então se Graziela, ou a sua roupa-de-ver-a-Deus, D. Jovita, cuspir no batente, e
deu, que só de ouvir, vergou-se, vergou-se, chega transparece. agarrar pela barba aquele coronel até onde é o nome, a doença, a
Olhou para o calado, precipita-se: idade. Pela Santa Casa. Pela Santa Casa.
— Sim, seu sentimento. Tão na vista! — O senhor que aqui chegando parecia tão demais satisfeito
— O banho lhe fez adivinha? Que que eu soube que não sei embora um tanto mal dormido... e já-já que viro triste? Triste ou
nada? maltratado. Foi só a boca, aquela, lhe encostar no ouvido? Que foi? o
— Até sua voz transparece. Tempere a goela. Puxe um ar. senhor está que está perigoso. A menos puxe um fôlego.
Arriou a campainha? Baixou o braço, exalando seu banho, sobressaída como nunca
Zuzu baixou o rosto, sem baixar o braço direito, com o era, o olhar perguntador, e seus trapos nesse minuto pareciam enxugá-
esquerdo espremia a ponta do cabelo. Alfredo sentou-se entre os la e guardá-la.
gomos no chão. Ela deu um vagar nas palavras: — E sua mãe?
— Então bem feito pra ti, sua intrometida. Saída franca, passa — Buscar fluido. Não foi o senhor que trouxe as duas garrafas?
por baixo deste meu braço, que não molha, passe, vá. Da sua aflição, — Onde?
faça bom proveito. Corta tua volta, convencida... Quem que eu era, já, — Que onde?
pra querer saber, não é? Se abaixe, passe, ou não presta passar por — O fluido?
baixo de um braço? Lhe soprozinho primeiro no seu ouvido para um — Ah mamãe só volta já de tardinha? Daqui só que chegue lá...
seu alento, sopro? Mas ao menos mexa ai esse seu pé, professor, O as penas do senhor passam.
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A erva são caetano se enroscava pelos esteios, caibros e vigas o, lambeu o fundo: que fim levou aquela nossa borboleta? O beiço
podres da puxada em ruína. amarelou, veio:
— Tome esse mochinho que eu mesma armei, uma tarde, por — Ah pra que quebrei o pote da mamãe! Dê cá seu lenço.
não ter o que fazer, feito pela mea mão. Não repare o feitio. Dou pra — Raro eu usar lenço.
carpinteira? Se abanque, primeiro sossegue. Quem sabe mais um — Não é pra limpar meu mel da boca. Tire coisas da sua
golinho de capim marinho, o chá, sim? cabeça. Pra enxugar, isto, sim, sua testa, o senhor, eu, não, o cantinho
Eivém o chá, agora amargoso, um gole só, enquanto ela remove de seu olho, abom!
a laca para o terreiro, os gomos fogem-lhe do braço, volveu depressa. Assim de cabeça baixa, Alfredo seguia os passos dela, o pé
— Bebo o resto do seu chá só pra saber seu segredo, sim? ah descalço, a bolha na barriga da perna, o joelho que lego ela cobria
mas tão amargoso. Até que tem ainda um restinho de mel no fundo do com a mão, puxando os farrapos, o molambo se delia. Aqui por
pote, nem me lembrava nem me lembrei senão temperava. Quer? dentro deste espanto e desta inércia a morta da Santa Casa e aí fora a
Quis mesmo assim amargoso? Ah professor, que ferroada foi, que nos viva deste terreiro, sem sossego no calcanhar. Parou de mexer-se a
olhos dele só se enxerga é o seu por dentro doendo? Doendo? Se o jaqueira. Rodava pela Independência entre os carros alegóricos o
seu natural não é esse, pelo que sei, pelo que oiço... Se é um rabecão da Santa Casa e aqui o intimado numa paralisia, quantos
desespero, escapula o motivo. Está que está perigoso. Deu que foi um mortos que não sabemos nos atravessam ou se penduram em nós.
mistério por dentro do senhor! Mas olhe, olhe! Não se feche tanto que Do fundão, que é este silêncio, o indagar tranqüilo:
lhe abro uma passagem por dentro do senhor, estou ou não — Que sucedimento foi, aí nesse seu susto embutido... Um
adivinhando? Estou? Quente ou frio? Pois lhe rogo uma atenção, assim que lhe diga é já que já se sente tanto? Mas, Deus o livre,
deste tamanhinho que seja, sim? Olhe, sem nenhuma mentira, eu morreu seu pai? Sua mãe, Nossa Senhora! mal? Uma sua irmã? Um
enchi a cuia d’água ia derramar na cabeça quando olhei na cuia, na peixinho lá do seu rio que o senhor tanto estimava? Por ser a Bina —
mea mão, cheia, cheinha, sem um [150] cisco. Aquela água na cuja? ah tão babada pelo senhor — tão escandalosa mas só pro senhor,
Aquela água? Pois não era que nela aparecia o seu rosto escrito- quanto mais enfeitada mais tão feia? Bonita cada vez, mais lhe
escrito me dizendo o que agora, o senhor em pessoa, teima de não me parece? Por não lhe ter escrito inda hoje? Se não responde, é porque
dizer? Então peguei, derramei aquela água por cima de mim com o é. Febre? Me deixe apalpar seu pulso. Um padecimento de nascença
rosto do senhor e tudo. Entrou no meu ouvido, ficou chocalhando, como coisa que lhe dá e o senhor não explica? Pegou mau olhado?
sacudi, sacudi, e ainda não escorreu. Mau olhado?
Sacudiu-se, fingindo água no ouvido, apanhou o pote de mel, Tirava as talas do paneiro velho.
emborcou, um pingo no dedo oferece ao seu conviva. Este, não, Alfredo quis sair, não se levantava. Ela se adiantou com um
lembrando-se daquela viagem com a mãe, o ponto do rio, já desta surdo espanto na voz:
banda de Belém, onde afundou o veleiro com quarenta potes de mel, [151] — Mas fora de brincadeira, é? Disque os pombos daquele
quarenta potes de mel. Zuzu lambia o dedo, voltou ao pote, quebrou- telhado já estoriam... O senhor é um deles?
Alfredo nem se mexeu.
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— Olhe que eu por mim não tinha nem um cuí de paciência que — O senhor é livre de ser professor do meu mano. Jaca deixa
o senhor vem tendo para abrir aquela cabeça, daquele rude-rude de nódoa? Xô, pinto, tu és alheio, depois vão dizer que te comi de
entendimento que é o bom do meu irmãozinho. Nem lhe conto o meu espeto.
vexame com a mamãe lhe chamando, os rogos dela, era só tirar um [152] — Menina, não é nada. Estava é remoendo uma aula na
fiapo rente de seus olhos o senhor caçoava. Não faltei vez (o senhor cabeça, O mais é sonolento desta noite.
a! bem puxando pelo cabeçudo) que espiei pela brechinha do quarto, — Outra é a sua tabuada, O senhor se riu agora mas eu bem sei
ver se o senhor malinava com ele, sim, corrigir, carece, razão não lhe o que tem por detrás do seu rir. Se levantou?
tiro, um professor pode e deve usar da sujeição, aprovar, aprovo. Pois Tocou-lhe com a tala do paneiro, entre ofendida e mangona,
bem ali dentro esta espiona se metia, vamos ver se esse um do tal do apontou-lhe o mocho, intimou-o, com um espichar de beiço, a sentar-
Ginásio zomba do coitado do meu irmão. Se é que não faz é pouco da se, cruzou os braços num ar sisudo.
nossa família, sabe lá, se não está se rindo, sã se rindo de semelhante — Estudante? Na frente da academia, na Santa Luzia, os
cabeça dura que nem pau de taperebazeiro. Quem sabe lá no seu acadêmicos pintam! Uma tarde eu passava, um deles tocando à moda
estudo, porfiando na caçoagem com os outros, o senhor: ah pessoal, lá de uma flauta, tocava numa canela de defunto se chegando pro meu
num pé de jaqueira, faço que desasno um mas que um! Me morda lado... De noite, olhe eu em casa rezando, tirando aquela porção de
aqui se não é verdade. Pois o senhor, antes do senhor ser professor, tanta salve-rainha e ave-maria em tenção do dono ou dona daquela
estudante é. Estudante sendo. canela que padecia na mão de semelhante flautista. Nisso que eu
Alfredo escuta, escuta, seguindo a velha parteira, aqui na Santa rezava esgarçou-se, abriu-se o fundo de minha rede, de tão novinha
Casa, ali ao pé do rabecão, já no rumo do Santa Isabel o lugar o que ela era, tive de me ajeitar muito jeitosinha pra não varar pro chão.
número — é meu sangue, mea sobrinha, foi filha família, mando rezar Amanheci só numa banda da rede, a outra dependurada. Ou foi o peso
missa nos frades, levantar a cruz pago com meus partos e benzições. daquela alma? Está aí a rede, coitada, que não me deixa mentir..
— Ou a moça — sua parenta? — da Chapéus de Palha veio lhe Recompôs os farrapos, espantou com um xô zangado os
proibir, sopra no seu ouvido que etc, e tal não convém... que não vale pássaros da jaqueira, dizendo agora quase em segredo, os olhos lá no
a pena, olhe o risco... espere, me deixe lhe explicar... excusa do caibro; olhe, olhe, comadre aranha, mea bordadeira, só quero saber o
senhor freqüentar certos lugares... Este terreiro debaixo desta dia que me entrega tudo pronto os meus bordados, sua boa da
jaqueira. Por via do abuso dos rapazes, aqueles vagabundos de toda preguiçosa, e tornou, de surpresa:
noite, corre a má fama. Se aqui o senhor vem, culpa é da mea mãe, ela — Agora me diga se o senhor não sopra flauta em canela de
um dia lhe paga. O senhor prejudica o seu estudo sentando em nosso defunto? Ou o senhor só sopra em canela viva? Deixa está que eu
banco. Aqui daquela nossa família só é mamãe, meus irmãos, o morrendo, descubro por onde o senhor anda e lhe deixo bem embaixo
terreno é dos Lobos. A jaqueira é deles. O resto é essa cumeeira um de sua rede Como herança a minha canela esquerda, é tudo por pago
dia caindo em cima da nossa costa visto que nada se tem a não ser um da instrução que o senhor a peso de pua mete no coquinho do meu
retalho de vergonha, bem esta é o trivial da gente, como diz mamãe. irmão. Faça dela uma flauta. Fora de brincadeira, me deixa
Tapou a boca, enxotou o pinto.
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espiarzinho o seu desgosto, sim? Que foi que lhe pingaram nos Alfredo no que mal olhou, nem um instante, e ela correndo com
ouvidos? o espelho para o quarto e de lá:
Avançou sobre ele, de olhos fechados, abrindo-os para — Sua feição? Seu segredo? Fechei no baú. Mesminho que tirar
surpreender-lhe o segredo e indagou: uma fotografia. Eu com o medo que com o tanto sofrimento no seu
— O senhor já andou um dia no trem? Pois eu não. Entra muita rosto o espelho se quebre. Quebrando, o senhor me emenda? O senhor
faísca? Ah, o senhor está aqui e não está, é o mesmo. Embarcou no irou-se?
trem? Agora, mãos nos quadris, examinava, à distância, o seu
Rabecão da Santa Casa. Pela Santa Casa. Capela da Santa Casa. paciente, cantarolando:
Capela só dos falecidos pensionistas; o bonde dobra e dá subitamente
com o pano de luto na porta da capela, como se o defunto quisesse Sereno da madrugada
saltar de lá para o banco ao nosso lado. Mas só os pensionistas. Os Sereno da madrugada
outros fedem no gavetão [153] ou vão para a aula, ali retalhados ou Eu caio eu caio eu caio
escapolem pelos fundos, envergonhados de sua morte. Sereno da madrugada.
— Pra a ferida desse feitio, só sei dum ungüento... Me deixe
lavar antes que feda. — Ai ai eu bem menininha fazendo roda! Já se passou cem
Cravou os olhos nela. Ferida. Feridento, lhe dizia a mãe, no anos.
chalé, quando as pernas sangravam. Feridento, rum! lhe dizia Entre aquela visão que sempre foi Luciana e esta de carne e
Andreza, apertando o nariz. água de cheiro que é Zuzu, Alfredo flutuava.
— Que é que está tão me olhando? Sim, a sua mágoa. Quer, eu — O senhor já sabe que meu irmão, seu aprendiz, não só
vou buscar o espelhinho lá do quarto pra lhe mostrar os avessos do aprende com o senhor e na oficina, já arranha na rabeca?
senhor saindo na sua feição. Aqui graceja, dali acena, franze a testa num súbito desdém.
Correu — por onde tu te meteste, meu compadre espelho, lindo volve atenciosa, adiante fingindo cautela, um faceiro temor, afasta-se,
espelho de nossa casa, anda, anda, te desencanta — limpou o espelho por que desconfiada? e eivém confiante, [154] sor|rateira, ou
na tira do peito, fez beiço, espichou a língua, espremeu a espinha, e se embaraçada ou distraída, pega a velha tesoura, corta a unha do pé,
chegou para Alfredo, o espelho na palma da mão, um espelhinho sem passa goma nas folhas soltas da cartilha do irmão, “que aviso foi
forro, embaciado. aquela borboleta?” 56 saber que o meu mano já pode tocar numa
— Mire, se remire, estude sua figura. Não fuja com os olhos festa, vou de cara lisa na D. Brasiliana: olhe, dona, me encomende lá
que o senhor nem é tão feio. Da feiúra, aquela sua, a D. Bina, ficou do seu estrangeiro, dos seus navios, lá donde não se sabe, um bom
com todo o sortimento, se deu uma sobra foi pra mim, aquela violino que meu irmão vai pagando conforme as festas que tocar. O
somítica. Tire no espelho só uma linha da sua feição, se veja não se senhor que acha?
assuste. Vinha da jaqueira a necessária solidão em que os dois se
encerravam. A momentos, Alfredo sobressalta-se: esta recende banho
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e jaca, a outra, lá onde? fedia. Mas a visão da outra não se rompe, Soprava o tição, fez-se impaciente, foi tapou a panela. Alfredo
inteiriça, amortalhando a fazenda, o liceu, a casa, torna em pó o raio, coçava a cicatriz da perna, o dedo em cima, por que culpado da culpa
aquela barba imperial. Seca de vez o Jandiá de onde estoura sobre o alheia? Em que que sou responsável ou comprometido? E a
silêncio das derradeiras garças e derradeiro bando de marrecas. Pelo absolvição? Ou a absolvição é essa presença, tampa e destampa
extremo da culpa e perdição a que Luciana se entregara, ele agora lhe panela, tição em punho, a filha da jaqueira? No preparo dos seus
queria o extremo da inocência e salvação que toda morte reclama. encantos, Zuzu se fazia mais vagarosa, muito tranqüila por muito
Ou aqui enfeitiçado, como pensa Nini? Ana, por acaso, não dona de suas artes, Mas no chegar ao ponto, desfazia a teia e vai,
veleja por ai atrás, consumida de velório e raiva? E quebrava o seu recomeça o labirinto, voltando ao giro, “o senhor acha que fico bem
impulso, deixava-se levar no cativeiro mágico, deixava-se, não de postinha?”, convida para furarem juntos os bilros da almofada,
resignado, acumulando repentes, inerme, Ali ficavam os dois, quase Guardou-se no quarto, reaparece se espreguiçando:
estranhos, embora a qualquer instante ela sugerisse uma brincadeira — Aquela esteira velha ali na parede? Desenrole e se deite.
que os fazia tão irmãos e tão amantes. Empoou o rosto com tapioca: Desenrolou a esteira no chão.
— Espalhei bem? Quer passar a mão? — Descanse seus ossinhos desse banco de minha fabricação tão
Ele ia atender, ela um salto atrás: duro.
— Eras! Agora isso... Altona e chapeluda não sou, Nem tão E riu, riu porque ia dizendo: bem que sua bunda deve estar já
pretinha grudada no portão. Nem seguideira de rastro saindo do bem doída, limpou a goela, riu, tapou a boca, enfiou um papel de
orfanato. Nem tão assim de semblante que espante mosca, pra o jornal na cara, fez um olho no meio, a esteira estalou a seus pôs, agora
senhor... Ou misturou as quatro peças cismando que sou eu? Pra lá, ajeitou os trapos, suava um pouco nos braços, foi ao pote d’água.
Santa Clara sopre nos olhos dele. Sopre, mea Santa Clara. — Um gole? Nojo da nossa água?
Veio espiar rente os olhos dele: Alfredo olhava-a como se escutasse: vês? Estou tão só contigo
— Agora a modo que sim, que Santa Clara soprou. Limpou que até nossos anjos da guarda bateram suas asas embora e nada me
seus olhos? Agora lhe dou licença, sim. Da minha parte... dá medo, que a tua aflição me protege,
Alfredo roça-lhe no rosto a costa da mão, ela saltou de banda, Pela Santa Casa. Pela Santa Casa. Como a gente ignora tudo,
soltou um pasmo, batendo o pó nas faces. Mas onde e como procurá-la? Deu tempo para meter-se entre aquelas
— Mas o senhor! Foi que nem uma bofetada. Se desforrando do assustado, ali de máscara entrando — a sua casa — encara a irmã,
em mim? a cristaleira, o lustre? Assim tão trançada é Belém, tão sem fundo, que
Bordejava em torno dele, prevenida, no provocar fugia, um ele não pudesse acudi-la? Ao menos no hospital, nos porões da
momento ao fogão destampou a panela, aquela fumaça no rosto, indigência, era, pelo menos, uma graça, um perdão, se a visse
tossiu e veio com um tição, rosto lustroso: morrendo, fechava-lhe os olhos que nunca soube, a boca, não, que em
[155] — Me deixe então lhe queimar com esta brasa a sua vida selou sempre. E seguiria, só, e a pé o tardo rabecão. Ou será que
postema, num instante o senhor sai já daqui com ela seca-seca. o tempo... Agora nos olhos desta, da agreste maltrapilha, é a morta
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que me espreita? O mito acaba? Zuzu destampa a panela e corre a Fingiu um desapontamento: café. Café é que não se tem. Aqui é
cercá-lo. casa do não se tem. Tudo nunca-nunca tem. Chá? Mas vamos fazer de
— Quem que lhe autorizou o senhor ir fugindo? la? Dando já as conta.
onze no vizinho, Olhe até onde já chegou a sombra da jaqueira, onze. Trouxe duas xicrinhas de folha num prato de barro.
Coma comigo. Tem um peixe, uma bucha com [156] água e sal, aí na — Tive agorinha me lembrando: pedir emprestado do seu
panela. Não come com pobre? Olhe: as onze, o curtume confirmando. Bahiano aqui pra nossa festinha aquele xarão dele. Ando atrás de uma
Coma comigo. desculpa para poder emprestar dele aquela jóia preciosa. Só falar, o
Retirou uns teréns da mesa, fez que pôs a toalha, que não tinha, seu Bahiano é já de chapéu na cabeça e xarão debaixo do braço, rumo
trouxe os dois pratos de barro, a cuia de farinha d’água, o Cozido de da casa alheia. É festa, é ladainha, um luto. Mas aqui na nossa família
piramutaba, gordo e fumegante. nada sucede nem o meu intera-ano. Hoje, com o nosso professor
— Não tem é garfo, aquele-menino. Peixe se come mesmo é fazendo sala, o xarão fazendo uma falta... Mas só estava esperando
com a nossa mão. Como aqui da parte da cabeça. Não repare o mau que eu fosse no seu Bahiano, pro o senhor se escapulir de vez, não?
passar. É mulher ingrata, piramutaba salgada, se não dá sustento, Pra, não demora, falando no Ginásio que está arrotando choco por via
embucha, se dá secura, morra de beber água sendo o senhor magro, ao da mulher Ingrata que comeu no cocho do seu aprendiz, hein? Deixo
menos o senhor incha. Olhe eu. Não sou opada? Pode comer sem pra só servir o senhor com o xarão do [157] seu Bahiano na tarde do
susto que quem tratou não fui eu, foi mamãe. Até adivinhando que ia açaí amassado por mim. É o trato. Olhe que é trato.
ter um convidado, coitada da mamãe. Uma pimetinha? Tenha, tenha Aconcheou a mão ao canto da boca: estás me ouvindo,
fome. Guarde o fastio pra quando debaixo da terra. Com fome a gente açaizeiro? Trato é trato. Me escutando? Capricha esse teu cacho, que
come o mundo. Desentristeça a barriga. Faça um pirão. Ou prefere eu com ele tenho um compromisso. E chegou-se para Alfredo:
caldo? — Eu, o senhor e aquele açaizeiro, de palavra dada. O tempo
Desfiou uma banda de peixe no prato dele, derramou farinha, vai dizer quem não cumpre.
abriu a palma da mão, no meio estava a pimenta de cheiro, amarela, Estendeu-lhe o prato com as duas xicrinhas.
guardando o seu fogo. Saboreava o embaraço dele. — Pegue a sua, não seja desfeiteiro. A do beiço roído, não, essa
— Penando, não? Sobremesa é que é! Só jaca, já enjoa. Deixe outra, faça de conta que é seu café.
estar que quando o cacho daquele açaizeiro ali nos fundos pintar, lhe Ela, com a do beiço roído, fazia que derramava no pires,
amasso um açaí bem grossinho pro senhor, Deus queira um domingo. soprava — quente de tirar pele do beiço! — bebia devagarinho, os
Pra o que que quebrei o pote e lambi o fundo do mel? Mais? olhos nele, acenando que também bebesse.
Comendo tão desgostoso tão desenganado! Achando bom? Que — Carece de mais açúcar?
remédio... Acha, sim, do dente pra fora, a delicadeza obriga. Terminado, recolheu as xicras e logo volveu, receando Os
Achando? movimentos dele, agora assustadiça, alisando os seus trapos, os olhos
deste tamanho em cima dele, muito enfermeira.
Trouxe água na cuja:
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— Estire a mão, apare que eu derramo, vire a mão, olhe! olhe! — Por gosto. Ralar um pouco meu joelho. O senhor não é o
um M escritinho na palma de sua mão. Sabão, queria? Faltando. Ah meu santo?
que aqui tudo falta. Enxugar que são elas. Ele sorriu, ela pulou:
Com uma folha de bananeira enxugou as mãos dele, passou as — Aliviou? Supurou a raiva?
mãos dele na tira do que foi a barra do outrora vestido. Ela foi recuando, de novo de joelhos, apanha a agulha
— Agora sestar. Não disse que está sonolento? Na sua noite em — deixe lhe pregar esse seu botão da blusa que está cai não cai
claro não me meto. Use o sono. Tire um cochilo, um tantinho, um — cortou a linha nos dentes.
tantão, se desassuste que não vou cobrir de tapioca o rosto do senhor, — Arrotando choco, já?
o senhor dormindo. Durma a quantidade de sono conforme vós Ameaçou espetar-lhe com a agulha:
queira, conforme o corpo peça, até que o alívio venha, bata palma, — Se espiche ai na esteira do compadre da moa mãe, se pegar
diga: licença para entrar? Aqui neste tapete real, como se diz na sarna, do canoeiro não é, é minha. Olhe que depois de comer, o
pastorinha, se abolete. Se estire, se espiche, está ouvindo o galo? É o senhor sair nesse sol, o senhor estupora.
galo lá doutra banda lhe dizendo: professor, quebre a cabeça do sono. Então ele se decidiu sair e veio para junto dela, pegou-lhe a
Esta esteira malafubeca foi pertence de um canoeiro conhecido velho mão, ela fez: Deus lhe abençoe, e esquivou-se. Alfredo avançou, ela
da mea mãe. Ele tinha a esteira dentro da camarinha da canoa dele, ali recuava, sem fugir, até que esbarrou de costas na parede, frente um do
se esparralhava, ponteando violão. Violão foi esse, violão foi esse, outro.
que acabaram lhe tomando a embarcação. O que ele pôde salvar — — Olhe, professor, que daqui não tem mais pra onde recuar.
nem o violão — só foi a esteira velha, já meio largando os pedaços. Varar a parede não se pode, o meu espírito não pode carregar com o
— Me guarde, comadre, que quando a senhora me dê um meu corpo atravessando a parede, o senhor meça, assim também não
agasalho na sua casa, eu me deite nessa esteira de arumã e fique então é vantagem.
me lembrando daquela que foi mea canoa ah por Deus... Eu, Zuzu, Cruzou os braços, tapando o busto, séria, muito nos olhos dele,
andei me esticando umas par de [158] vezes em cima dela, depois ah parecendo mais curiosa que surpreendida. Virou o rosto, Os lábios
me aborreci. Desenrolei hoje em sua homenagem, o senhor não é dele puderam roçar o lombinho da orelha, resvalaram, bastante um
Visita? Se arroje. puxão e era toda desnudez.
É tarde — será que ela escapou do rio em Breves, escapou do — Direitinho. Direitinho, professor. Terminho, Terminho.
fundo onde aquelas nuas, pela meia-noite, bolam suplicando roupa Alfredo deu uma volta, deu um passo atrás dela que seguia
aos viajantes e por muita roupa que ganhem, sempre é pouca? escorre ensaiando uma valsa até o fogão, viu-a soprar as cinzas.
um azul quente pela jaqueira que cabeceia de sono. Zuzu agacha-se a Rodeou a esteira, foi saindo devagar, lá está a caveira de boi
um canto, descansando os braços no colo. Alfredo deu com aquele sol guardando a puxada. Esperava que Zuzu voltasse das cinzas, o
desvairado na rua e olhou para onde Zuzu, ajoelhada, se cobria de chamasse, viesse cercá-lo, iremos juntos em busca da sepultura ou no
repouso. trem abrir caranguejo em Boiuçucanga.
— Por que ajoelhada?
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[159] Já aqui na rua escaldante, nesta topada reencontra a cedam uma lamparina, em troca vos dou um daqueles queijos (e o
vergonha, medo que apareça a Bina atirando-lhe mais uma carta. Ou ganso?) do padrinho Barbosa. Zuzu bolava no caldo da piramutaba.
Ana. Entrou pelo portão de ferro dos Boaventuras, boa-tarde, D. Uma vertigem de ir até a quase desnuda e beijar-lhe possível o pé
Graziela. poeirento, trazê-la, sim, cobrir desta vez, sim, o seu. ombro com o
— Mas pra onde então vai levando essa sua mala, menino? necessário manto. Ou arrebatar da D. Brasiliana os penhoares que ali
Dudu tem conhecimento disso? têm dúzias, aquela esgalga crioula de régio penteado, [160]
Arrasta a mala e seus castigos, sua pressa, o rosto da mãe na escancarando os seus roupões de Caiena e Iquitos e todo aquele
boca do toldo, o rabecão carrega a sua mudança, cuspir neste batente, enxoval ilícito e secreto, corsária de sótão e moringa, o pente de
caminhar, salta da cova, a cavalo atravessa o Jandiá, vai aos três Paramaribo e o dela entre os acetinados, renda, pucarinha, frascos de
pretinhos da pororoca no Moirim encantados; está na hora, rebenta a perfume, fantasia de Rainha de Sabá espalhada no soalho, violão na
maré, me dá um gole do teu banzeiro, o cavalo flecha o rastro do penteadeira, defronte a Virgem Maria dá mama ao Menino, a cegonha
Talismã, este agora e ela, o par, lavradão acima. da folhinha, as caixas de baralho, a dama de paus, a súbita boneca de
E aqui na rua ouvindo os galopes. cabelo cacheado adormecida ao pé do urinol de louça, o escudo do
Pára neste portão: Clube do Remo coberto de serpentinas, os suspensórios do taberneiro,
o irrigador, a pomada contra espinha, a folha de mucuracaá para dor
ALUGA-SE TRATAR NA JOÃO BALBY 234 de cabeça. Sobre os peitos ver donzela o sinal da cruz e as contas
soltas do colar partido, a aragem tufa o lençol — gemeram os pombos
— É mesmo para o senhor? Sua família? Onde o senhor do vizinho? — as fronhas se despencam, atrás da cortina as arcas sob
trabalha? Tem fiador? o oleado, sinuosa e crespa pompadur suada deslizando dos
— Meu pai é um major. A senhora me entrega a chave que vou travesseiros, jibóia na escuma de onde avistava os proibidos
saber se a casa satisfaz, desembarques, o farol clandestino, o fugitivo litoral com o Porca
Abre a 86, José Pio, portão, cerrado de capim, porta e duas Prenha, lê embaixo, na taberna, a gritar que abrissem a porta. E a alta,
janelas, rótulas, água encanada, pode-se ligar a luz? Agora dono, fechando-se no roupão, vai, abre. Não demora eivém. O Porca de
dono, uma noite, desta casa, por mobília esta mala, por família esta Belzebu.
vergonha, Arma a rede, a luz cortada, o quintal meio encharcado, — Posto fora do céu?
abrir as janelas, anoiteceu: de lá de cima uma e outra estrela arrisca — Desse inferno aí embaixo, meu anjo. Inda pegou o Cristo, o
um olho. Mexe nos trincos, pendura neste prego o quepe e o mundo, último bonde da noite.
Pisa forte no soalho, esta tábua me anda solta. Aqui é a senhora Dono desta casa, esta noite, fecho a porta a chave? Ana espia?
caseando o vestido de cretone, D. Amélia. Ali a folha de lilás lembra Adivinha? Farejando? Ana? Nesta casa, tem o senhor toda licença,
Maninha, Como pingentes do lustre os caroços de tucumã repletos senhor ladrão, que sou eu mesmo, toda licença. Aqui nem o bandolim
daquele menino. Nesta austríaca de embalo a visitante por nome nem a roupa-de-ver-a-Deus. Agora, bem escuro, é o seu velório,
Andreza. E ai, é voz do telhado, façam boa vizinhança, colegas, me morta da Santa Casa, lhe descubro o rosto, morte, esquife e enterro à
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sua escolha. Velar de janela aberta, mais o peito que a janela,


arrotando choco e profundamente sobre a inteira Belém e a honra da
família.
O Utinga apitando. Está para passar, de volta do matadouro, o
velho magarefe. Desta janela quero-lhe dar boa-noite.

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