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FICHAMENTO

Realizado em: 26/05/2013

ECO, H. Quase a Mesma Coisa. Tradução de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Editora Record, 2007.

INTRODUÇÃO

(p. 9) O que quer dizer traduzir? A primeira e consoladora resposta gostaria de ser: dizer a mesma coisa em
outra língua. Só que, em primeiro lugar temos muitos problemas para estabelecer o que significa “dizer a
mesma coisa” e não sabemos bem o que isso significa por causa daquelas operações que chamamos de
paráfrase, definição, explicação, reformulação para não falar das supostas substituições sinonímicas. Em
segundo lugar, porque, diante de um texto a ser traduzido, não sabemos também o que é a coisa. E, enfim,
em certos casos é duvidoso até mesmo o que quer dizer dizer.

(p. 10) Eis o sentido dos capítulos que se seguem: tentar compreender como, mesmo sabendo que nunca se
diz a mesma coisa, se pode dizer quase a mesma coisa. A essa altura, o problema já não é tanto a ideia de
mesma coisa, nem a da própria coisa, mas a idéia desse quase. Quanto deve ser elástico esse quase?
Depende do ponto de vista ...

(p. 10-11) Estabelecer a flexibilidade, a extensão do quase depende de alguns critérios que são negociados
preliminarmente. Dizer quase a mesma coisa é um procedimento que se coloca, como veremos, sob o signo
da negociação.

(p. 12) uma noção de tradução como negociação.

(p. 13) Pergunto-me se, para elaborar uma teoria da tradução, não seria igualmente necessário não somente
examinar muitos exemplos de tradução, mas ter vivido pelo menos uma dessas três experiências: ter
controlado traduções de outrem, ter traduzido e ter sido traduzido – ou, melhor ainda, ter sido traduzido
colaborando com o próprio tradutor.

(p. 13-14) Poder-se-ia observar que não é necessário ser poeta para elaborar uma boa teoria da poesia, e que
se pode apreciar um texto escrito em uma língua estrangeira mesmo possuindo apenas uma competência
eminentemente passiva dessa língua. Mas a objeção só se sustenta até certo ponto. De fato, mesmo quem
nunca escreveu um poema tem uma experiência da própria língua e no curso da própria vida pode ter tentado
(ou sempre poderia tentar) escrever um hendecassílabo, inventar uma rima, representar metaforicamente um
objeto ou um acontecimento. Mesmo quem tem competência passiva de uma língua estrangeira pelo menos
sentiu como é difícil extrair dela frases bem formadas.

Considero portanto que, para fazer observações teóricas sobre o ato de traduzir, não é inútil ter vivido a
experiência ativa ou passiva da tradução. Por outro lado, quando ainda não existia teoria da tradução, de São
Jerônimo ao nosso século, as únicas observações interessantes sobre o tema foram feitas exatamente por
quem traduzia, e são conhecidos os embaraços hermenêuticos de santo Agostinho, que pretendia falar de
traduções corretas, mas tendo limitadíssimos conhecimentos de línguas estrangeiras (não conhecia o
hebraico e pouco sabia do grego).

(p. 14) ... se o tradutor ou tradutora é inteligente, pode explicar os problemas que surgem em sua língua
mesmo para um autor que não a conhece e mesmo nesses casos o autor pode colaborar sugerindo soluções
ou até sugerindo quais licenças podem ser usadas com seu texto para contornar o obstáculo.

(p. 15-16) ... no decorrer de minhas experiências de autor traduzido, sentia-me continuamente dividido entre
a necessidade de que a versão fosse “fiel” ao que escrevera e a descoberta excitante de como o meu texto
poderia (aliás, às vezes deveria) transformar-se no momento mesmo em que fosse recontado em outra
língua. E se às vezes percebia impossibilidades – que de algum modo eram resolvidas -, com maior
freqüência percebia possibilidades: ou seja, percebia como, no contato com a outra língua, o texto exibia
potencialidades interpretativas que passaram despercebidas por mim mesmo, e como, ás vezes, a tradução
podia melhorá-lo (digo “melhor” precisamente em relação à intenção que o próprio texto manifesta de
improviso, independente da minha intenção originária de autor empírico).

(p. 17) ... o conceito de fidelidade tem a ver com a persuasão de que a tradução é uma das formas da
interpretação e que deve sempre visar, embora partindo da sensibilidade e da cultura do leitor, reencontrar
não digo a intenção do autor, mas a intenção do texto, aquilo que o texto diz ou sugere em relação à língua
em que é expresso e ao contexto cultural em que nasceu.

(p. 17) Suponhamos que, num texto americano, um personagem diga a um outro you’re just pulling my
leg. ... Traduzida literalmente, uma expressão tão insólita... deixaria supor que o personagem (e o autor com
ele) estivesse inventando uma ousada figura de retórica – o que não acontece, visto que o personagem usa
aquilo que em sua língua é uma frase feita. ... Eis como uma aparente infidelidade (não traduzir ao pé da
letra) revela-se por fim um ato de fidelidade. O que é um pouco repetir com são Jerônimo, patrono dos
tradutores, que ao traduzir não se deve verbum e verbo sed sensum exprimere de sensu (todavia veremos que
também essa afirmação pode gerar muitas ambigüidades).

(p. 17-18) Donde, traduzir quer dizer entender o sistema interno de uma língua, a estrutura de um
texto dado nessa língua e construir um duplo do sistema textual que, submetido a uma certa discrição,
possa produzir efeitos análogos no leitor, tanto no plano semântico e sintático, quanto no plano
estilístico, fono-simbólico, e quanto aos efeitos passionais para os quais tendia o texto fonte.
“Submetido a uma certa discrição” significa que toda tradução apresenta margens de infidelidade em
relação a um núcleo de suposta fidelidade, mas que a decisão acerca da posição do núcleo e a
amplitude das margens depende dos objetivos que o tradutor se coloca.

(p. 18) As razões para o crescimento dos interesses tradutológicos são muitas e convergentes:
primeiramente, os fenômenos de globalização que cada vez mais põem em contato grupos e indivíduos de
línguas diversas; em seguida, o desenvolvimento dos interesses semióticos, para os quais o conceito de
tradução é central mesmo quando não explicitado (basta pensar nas discussões sobre a definição do
significado de um enunciado como aquilo que, teoricamente, deveria sobreviver na passagem de uma língua
para outra), e, enfim, a expansão da informática, que leva muita gente a tentar e a apurar cada vez mais
modelos de tradução automática (onde o problema tradutológico torna-se crucial não tanto quanto o modelo
funciona, mas justamente quando demonstra que não funciona em regime pleno).

(p. 19) Ademais, desde a primeira metade do século passado foram elaboradas teorias da estrutura das
línguas ou da dinâmica das linguagens que destacavam o fenômeno da radical impossibilidade da tradução:
desafio de monta para os próprios teóricos que, ao mesmo tempo que elaboravam tais teorias, davam-se
conta de que, de fato e há milênios, as pessoas traduzem.

(p. 19) Portanto, mesmo quando se defende a impossibilidade – de direito – da tradução, na prática sempre
nos vemos diante de Aquiles e da tartaruga: na teoria de Aquiles nunca alcançaria a tartaruga, mas, de fato
(como ensina a experiência), ele a supera. Talvez a teoria aspire a uma pureza da qual a experiência pode
abrir mão, mas o problema interessante é em que medida e de que coisas a experiência pode abrir mão. Daí a
ideia de que a tradução se apóia em alguns processos de negociação, sendo a negociação, justamente,
um processo com base no qual se renuncia a alguma coisa para obter outra – e no fim as partes em
jogo deveriam experimentar uma sensação de razoável e recíproca satisfação à luz do áureo princípio
de que não se pode ter tudo.
(p. 19-20) Poderiam perguntar quais são as partes em jogo no processo de negociação. São muitas, embora,
às vezes, desprovidas de iniciativa: de um lado, o texto fonte, com seus direitos autônomos, algumas vezes a
figura do autor empírico – ainda vivo – com suas eventuais pretensões de controle, e toda a cultura em que o
texto foi gerado; do outro, o texto de chegada e a cultura em que se insere, com o sistema de expectativas de
seus prováveis leitores e por vezes até da indústria editorial, que prevê critérios diversos de tradução
conforme o destino do texto de chegada...

(p. 20) O tradutor coloca-se como negociador entre todas estas partes reais ou virtuais e nestas
negociações nem sempre é previsto o assentimento explícito das partes. Mas uma negociação implícita
existe até para os pactos de veridicidade.

Ora, por mais que um teórico possa atestar que não existem regras para estabelecer que uma tradução é
melhor que a outra, a prática editorial nos ensina que, pelo menos os casos de erros evidentes e indiscutíveis,
é bastante fácil estabelecer se uma tradução está errada e deve ser corrigida. Será apenas uma questão de
senso comum, mas o senso comum de um redator editorial normal lhe permite convocar o tradutor e, lápis
na mão, indicar os casos em que seu trabalho é inaceitável.

(p. 21-22) Na tradução propriamente dita, vige o tácito princípio segundo o qual se é obrigado ao respeito
jurídico dos ditos de outrem, embora seja um interessante problema de jurisprudência estabelecer o que se
entende por respeito dos ditos de outrem no momento em que se passa de uma língua para outra.

(p. 22) Quando compro ou procuro em uma biblioteca a tradução que um grande poeta fez de outro grande
poeta, não espero encontrar algo de profundamente semelhante ao original; pelo contrário, em geral leio a
tradução porque já conheço o original e quero ver como o artista tradutor confrontou-se (seja em termos de
desafio, seja em termos de homenagem) com o artista traduzido. Quando vou a uma sala de cinema ver
Aquele caso maldito de Pietro Germi, mesmo sabendo que foi extraído de Quer pasticciaccio brutto de via
Merulana [Aquela tremenda confusão na rua Merulana] de Gadda (embora o diretor advirta nos créditos que
o filme é livremente inspirado no romance), não acho que posso, tendo visto o filme, eximir-me de ler o
livro (a menos que seja um espectador subdesenvolvido). Sei desde o início que posso encontrar no filme
alguns elementos da trama, traços psicológicos dos personagens, algumas atmosferas romanas, mas
certamente não um equivalente da linguagem gaddiana.

(p. 23) Se, no entanto, compro a tradução italiana de uma obra estrangeira, seja um tratado de sociologia ou
um romance (e certamente sabendo que no segundo caso corro mais riscos que no primeiro), espero que a
tradução possa me dizer da melhor forma possível o que estava escrito no original. Vou considerar trapaça o
corte de trechos ou de capítulos inteiros, ficarei certamente irritado com erros evidentes de tradução... e, com
maior razão, ficarei escandalizado se descobrir que o tradutor fez um personagem dizer ou fazer (por
imperícia ou por deliberada censura) o contrário do que dizia ou fazia.

(p. 23) Pode-se objetar que estas são, justamente, convenções editoriais, exigências comerciais e que tais
critérios nada têm a ver com uma filosofia ou uma semiótica dos vários tipos de tradução. Mas eu me
pergunto se tais critérios jurídico-comerciais são realmente estranhos a um juízo estético ou semiótico.

(p. 25) Contudo, recordando essa história, sempre considerei que a tradução propriamente dita é uma coisa
séria, que impõe uma deontologia profissional que nenhuma teoria desconstrutivista da tradução poderá
neutralizar.

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