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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

PUC-SP

Rivanildo Segundo Pereira Guedes

Um novo jeito de ser Protestante no Brasil


Protestantismo de Experiência Racional

Mestrado em Ciência da Religião

São Paulo
2015
  2  

Rivanildo Segundo Pereira Guedes

Mestrado em Ciência da Religião

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia


Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para
obtenção do título de Mestre em Ciência da Religião, sob a
orientação do Prof. Dr. – Edin Sued Abumanssur
  3  

São Paulo
2015

Banca Examinadora

_________________________________
_________________________________
_________________________________
  4  

Agradecimentos

Foram meses de intenso estudo e de pesquisas. Inevitavelmente, as


pessoas próximas ficaram privadas do convívio mais natural.

Por isso, quero agradecer a todos quantos tiveram paciência e torceram


para que este texto estivesse pronto, em seu estado final.

À Fundação São Paulo e à CAPES pelo investimento financeiro e por ter


acreditado na relevância desta pesquisa.

À minha amada esposa, por acreditar que eu conseguiria chegar até aqui.
Meu amor, esta vitória é nossa! À minha filha, que, mesmo sem saber, serve de
inspiração para minha vida. À Igreja Batista do Morumbi, na pessoa do - pastor
sênior, Lisânias Moura, pelo incentivo e por ter aberto mão de horas de trabalho
para que eu pudesse dedicar-me a esta pesquisa.

E, por fim, dedico este trabalho ao Deus da Vida, o Autor da minha fé, por
meio de quem tudo existe e se move...
  5  

Resumo

Por conta do fenômeno do Neopentecostalismo, o protestantismo


brasileiro foi esquecido pela Academia de estudos de ciências sociais e da
religião. Em função disso, o crescimento e as mudanças do protestantismo no
Brasil passaram despercebidos.
Sendo assim, este trabalho se propõe a fazer um contraponto ao tipo
ideal criado por Max Weber e revisitado por Rubem Alves denominado
“Protestantismo de Reta Doutrina”, e, para tanto, irá discorrer sobre um
protestantismo brasileiro atual, ou seja, das últimas quarentas décadas.
Para Alves o “todo” do protestantismo brasileiro era “fundamentalista e
moralista” e, ao longo deste texto, veremos que existe um outro protestantismo
se formando no Brasil, e que, o chamaremos de Protestantismo de Experência
Racional no qual a experiência subjetiva da fé e a busca pela racionalidade da fé
cristã se fazem presentes.

Palavras chave
Protestantismo; Brasileiro; Racional; Experiência; Moralismo; Novo

Abstract

Due to the phenomenon of neo-Pentecostalism the Brazilian


Protestantism was forgotten by the academy (?). As a result growth and changes
of Protestantism in Brazil has gone unnoticed.
Therefore this study aims to make a counterpoint to the ideal type of
Protestant practice created by Max Weber and revisited by Rubem Alves called
“Protestantism doctrine Straight” and therefore will discuss about a current
  6  

Brasilian Protestantism or rather the past forties decades of this practice in


Brasil.
To Alves the “whole” of the Brazilian Protestantism was fundamentalist
and moralist and troughout this text we will see that there is another
Protestantism forming in Brazil and that we are calling the Rational Experience
Protestantism in which the subjective experience of faith and the search for the
rationality of the Christian faith are presents.

Key words
Protestantism; Brazilian; Rational; Experience; Moralism; New
  7  

SUMÁRIO

Introdução 08

1 - Questões Metodológicas 09
2 – A contribuição das ciências sociais ao estudo da religião 11
Pierre Bourdieu e Max Weber
3 - O Protestantismo Brasileiro 24
4 – Um novo jeito de ser protestante no Brasil 42
Protestantismo de Experiência Racional
5 – Max Weber e o novo jeito de ser protestante no Brasil 60

6 – O antigo e o novo jeito de ser Protestante 65

no Brasil: O acesso ao Mito

7 – Protestantismo de Experiência Racional 69

8 – A Teoria da Escolha Racional 77

Considerações finais 80
Bibliografia 82
  8  

1 - Problema de Pesquisa -

Desde quando o pentecostalismo e, depois, o neopentecostalismo,


chamaram a atenção da sociedade brasileira em função de seu crescimento
numérico, perdemos de vista o crescimento e importância do segmento
protestante no Brasil.

Esta falta de olhar para o protestantismo fez com que passasse


despercebido pelos olhos dos acadêmicos um novo protestantismo que está
surgindo no Brasil nos últimos 40 anos.
A falta de atenção e de clareza de dados acerca do protestantismo por
parte dos estudiosos deve-se também a outro fator: as pesquisas de opinião. No
Brasil elas são capitaneadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
por meio do “Censos”. Não obstante ao profissionalismo e experiência do IBGE,
os dados nem sempre correspondem à realidade do dinamismo religioso no
Brasil:

Com respeito aos dados sobre religião apresentados pelo Censo de 2010,
diversas críticas foram tecidas por analistas, relacionadas à sua metodologia, à
sua dificuldade para captar a “dinâmica religiosa” do país, à sua imprecisão no
afinamento do instrumental para compreender o campo protestante, bem como o
fenômeno das múltiplas pertenças, dos fluxos e trânsitos religiosos ou os
sincretismos menos visíveis (Teixeira, 2003, 22-23).

Este trabalho visa mostrar, por meio da ajuda das Ciências sociais da
religião, que existe um “novo jeito” de ser protestante no Brasil em crescimento
nas últimas décadas, sendo este, diferente do “antigo jeito” desenhado por
Rubem Alves por meio de seu tipo ideal1 “Protestantismo da Reta Doutrina”.
Para tanto, dividiremos este trabalho em três capítulos: o primeiro tratará
da relevância das ciências sociais, notadamente a sociologia, enquanto parceira
da Ciência da religião, no sentido de auxiliar no entendimento dos fenômenos
religiosos. O segundo capítulo conceituará o protestantismo brasileiro e, por fim,
                                                                                                               
1  O conceito de tipo ideal foi criado por Max Weber. Neste caso, Rubem Alves fez uso dos
postulados do sociólogo a fim de criar o seu conceito sobre o protestantismo brasileiro.
  9  

o terceiro e último capítulo trará à luz, de maneira inicial, pois ainda não há
dados empíricos atuais para suportar a hipótese, o Novo Jeito de Ser
Protestante no Brasil.
O calvinismo, segundo Max Weber2, é a teologia que se formou a partir
da influência de João Calvino, o francês que foi responsável pela reforma
protestante em Genebra, na Suíça, e - é considerado o maior e mais influente
teólogo da Reforma Protestante, tendo escrito uma grande sistematização da fé
cristã: as Institutas da Religião Cristã. Sendo assim, as “denominações
protestantes” que recebem influência de João Calvino são chamadas calvinistas.
Entre elas se destacam: Batistas, Presbiterianas, Metodistas, Episcopais e
Congregacionais.
Basicamente estas “denominações” - se caracterizam pela forte
valorização na conversão individual, no estudo da Bíblia Sagrada e pela
influência na sociedade.
Não obstante este lado “luminoso” do reformador João Calvino, o
protestantismo que se formou no Brasil tem uma forte herança dos movimentos
de avivamento e fundamentalistas da parte sul dos Estados Unidos.

II - Objetivo Geral –
A intenção deste trabalho é expor que, a despeito do que fora dito acerca
do futuro do protestantismo, existe um “novo jeito de ser protestante no Brasil”
que surgiu nas últimas quatro décadas e - tem crescido numericamente. Ou
seja, faremos um contraponto ao tipo ideal de Rubem Alves para caracterizar o
protestantismo brasileiro, que ele chamou de Protestantismo de Reta
Doutrina. Para tanto, chamaremos o “novo jeito” de Protestantismo de
Experiência Racional o qual caracterizará este novo protestantismo surgido no
Brasil há aproximadamente 40 anos e que pode ser percebido em várias igrejas
espalhadas em solo brasileiro. O nosso olhar se voltará para duas igrejas que
servirão de objeto para a pesquisa: Igreja Batista do Morumbi e Comunidade
                                                                                                               
2
Max Weber desenvolverá esta reflexão de modo especial no seu livro “A ética protestante e o
espírito do capitalismo”, nas páginas 87 e 88.
  10  

Presbiteriana Chácara Primavera.

II.I – Objetivos Específicos –

A) Compreender o que é o Protestantismo Brasileiro


B) Compreender o que seja este novo jeito de ser protestante no Brasil e
as suas características que o diferenciam do antigo jeito de ser
protestante no Brasil por meio de dois estudos de caso: Igreja
Batista do Morumbi e Comunidade Presbiteriana Chácara Primavera

III – Justificativa –

Este trabalho se justifica ao trazer para discussão a existência de um


novo protestantismo em ascensão no Brasil que vem se apresentando - menos
institucional e menos enrijecido como o que foi formado nos primórdios da
imigração e evangelização no Brasil. Estamos chamando este novo segmento
de Protestantismo de Experiência Racional.

IV - Metodologia da Pesquisa –
Para a formação deste trabalho foram utilizadas metodologias
bibliográficas e de campo (Quantitativa e Qualitativa).

Por meio da metodologia bibliográfica foi abordada a formação do


protestantismo no Brasil e por meio da metodologia de campo foi confeccionada
uma tabela comparativa dos elementos que compõem as duas igrejas (Igreja
Batista do Morumbi e Comunidade Presbiteriana Chácara Primavera) a fim de
entendermos o que seja o Protestantismo de Experiência Racional.

A intenção, portanto, é mostrar que existe um novo protestantismo,


dentre outros, se formando nas últimas décadas no Brasil.
  11  

2 – A contribuição das Ciências sociais ao estudo da religião

Um olhar sociológico do fenômeno religioso é importante na análise das


duas igrejas objetos de nossa investigação, em função de revelar que nem
sempre questões teológicas são as que mais determinam o surgimento de novas
formas de expressão religiosa. Richard Niebuhr, em sua análise empreendida
sobre o denominacionalismo nos Estados Unidos, sublinha:

O que é verdade em ética e política é verdade em teologia. Menos diretamente,


mas não menos efetivamente, as opiniões teológicas têm suas raízes na relação
entre a vida religiosa e as condições culturais e políticas prevalescentes em
qualquer grupo de cristãos. Isto significa que a interpretação econômica ou
puramente política da teologia se justifique, mas que a vida religiosa é tão
entrelaçada com as circunstâncias sociais que a formulação da teologia é
necessariamente condicionada por elas. Onde a teologia é considerada somente
a partir do ponto de vista ideológico, perde-se a visão das verdadeiras condições
que influenciaram a diversidade de suas formas, e as diferenças são explicadas
em bases intelectualmente capciosas sem levar em conta as razões
fundamentais da variação. É geralmente aceito que a teologia dos cinco
primeiros séculos pode ser entendida somente se a psicologia da mente grega e
as condições sociais, religiosas, políticas e econômicas do Império Romano são
aprendidas em sua relação com a nova fé. Falha-se completamente ao entender
o catolicismo romano se os olhos estiverem cegos à influência do espírito latino
e às influências dos Césares, na sua concepção do cristianismo e na formulação
da doutrina. O espírito e as doutrinas do luteranismo derivam não somente do
Novo Testamento, mas também do temperamento germânico de Lutero e das
condições políticas da igreja na Alemanha. O calvinismo foi não menos
influenciado em sua índole e teologia pelo caráter nacional e pelos interesses
das classes econômicas às quais ele apelou. Por trás das divergências de
doutrina deve-se procurar as condições que fazem com que ora uma outra
interpretação pareça mais razoável ou, ao menos, mais desejável. Considerando
a teologia deste ponto de vista, descobrir-se-á como as exigências da disciplina
da Igreja, as demandas da psicologia racional, o efeito da tradição social, a
influência da herança cultural e o peso dos interesses econômicos
desempenham seu papel na definição da verdade religiosa (Niebuhr, 1992, 18-
19).

A partir das palavras do teólogo Richard Niebuhr, foi trilhado o caminho


deste trabalho sendo auxiliados por Pierre Bourdieu desde seus conceitos de
campo religioso e habitu e por Max Weber por meio de seu postulado o qual ele
chamou de tipo ideal.
  12  

Uma das razões para o surgimento deste novo jeito de ser protestante no
Brasil se deu por causa das tensões entre dois campos simbólicos: A
denominação e a igreja local. Desejando vivenciar as experiências religiosas por
meio de novos habitus (Cosmovisão) as duas igrejas locais apontadas neste
estudo tensionaram com a denominação e fizeram um percurso próprio. Deste
confronto surge, portanto, um novo tipo ideal: Protestantismo de Experência
Racional.
Desde o nascedouro das ciências sociais, em especial a sociologia, a
religião foi um objeto de “preocupação” dos teóricos e acadêmicos:

Que a religião tenha sido um objeto de singular importância para as Ciências


Sociais, no processo e ato de sua emergência como ciência autônoma no
quadro geral das ciências, ninguém duvida, nem o especialista nem o leigo
interessado no assunto. Uma olhada ligeira para os clássicos serve para
demonstrar que os pais das Ciências Sociais deram atenção especial à religião
– não para fazer Teologia ou espécie de especulação metafísica, ao contrário,
para relacionar religião e sociedade, comportamento religioso e teoria social,
enfim, tudo dentro de um esforço honesto de compreender a sociedade moderna
e dar a tal compreensão caráter científico, desenvolvimento lógico e
argumentação racional (Campos, 2013, 192).

Os pais da sociologia, notadamente Max Weber e Émile Durkheim,


escreveram clássicos sobre o fenômeno religioso que são usados até hoje em
pesquisas.
Felizmente outros pesquisadores de recorte sociológico mais
contemporâneo têm atualizado os escritos dos clássicos da sociologia e ajudado
a entender as transformações que a religião vem passando nas últimas
décadas. Um desses estudiosos do período hodierno, Pierre Bourdieu, serviu de
auxílio3 na análise que foi realizada das duas igrejas. Destacando o pensamento
do Bourdieu, Campos sinaliza:

Nos termos de Pierre Bourdieu, no texto “Sociólogos da crença e crença de


sociólogos”, a pergunta adquire os seguintes contornos: “A Sociologia da
Religião tal como é praticada em graus diversos do campo religioso, pode ser
                                                                                                               
3  O Sociólogo Pierre Bourdieu não será o objeto de nosso estudo, e sim, um “companheiro” de
diálogo que auxiliará na compreensão do objeto (estudo aqui realizado)
  13  

uma verdadeira Sociologia científica? Vale notar que ele trata da Sociologia,
mas, sem dúvida, o caso pode ser tomado do particular para o geral: da
Sociologia para as Ciências Sociais da Religião. Por inversão, é Antônio Flávio
Pierucci, comentador de Bourdieu, quem autoriza a passagem: “Não sei por que,
sinto certo incômodo em usar o termo ‘cientistas sociais da religião’; por isso,
todas as vezes que eu quiser me referir - à sua produção intelectual, estarei
dizendo, por brevidade, sociólogos da religião” (Ibid,194).

É de fundamental importância destacar o papel da Ciência da religião


enquanto observadora do fenômeno religioso na sociedade. Desde que a virada
epistemológica4 impactou os estudos da religião, uma nova maneira de olhar
para a mesma vem ganhando espaço. Hans-Jurgen Greschat pontua:

“Explicar o fenômeno chamado religião [...] é efetivamente o papel da Ciência da


Religião”. Discordo novamente. Trata-se, mais provavelmente, de uma tarefa
para filósofos da religião. Cientistas da religião respondem à questão de como
algo religioso funciona. Historiadores da religião tentam reconstruir como um
fenômeno religioso desenvolveu-se. Filósofos da religião têm interesse pelo
“quê”, por sua essência. Desde que sua disciplina existe, perguntam-se “o que é
a religião?”. Sua resposta a essa pergunta difere das de cientistas da religião e
historiadores da religião. Paulo Tilich, filósofo da religião, esclarece tal diferença
escrevendo: A filosofia da religião [...] constata na forma de uma síntese criativa
e produtiva o que vale como religião. Sua construção normativa apropria-se do
material oferecido pela história da religião, pela psicologia da religião e pala
sociologia da religião. Não se assemelha a nenhuma das disciplinas
mencionadas anteriormente. Sua tarefa é reconhecer, não algo existente, mas
sim algo válido. Os fatos são seu material, mas não seu objetivo de trabalho
(Greschat, 117).

As palavras de Greschat deixam claro que o cientista da religião,


enquanto um agente da sociedade, faz a pergunta acerca de como “funciona” o
interior de uma religião. Ou seja, como se processam os “mecanismos” de tal
religião, é o objeto de preocupação de um cientista da religião.
Deste modo, para conseguir exercer o seu trabalho com mais “precisão” o
cientista da religião carece de pesquisas empíricas que possam

                                                                                                               
4  A Fenomenologia da Religião foi sendo “substituída” pelas ciências sociais. Aliás, a
fenomenologia passou a exercer mais “um” olhar acerca do fenômeno religioso e não mais “o”
olhar.
  14  

sustentar/confirmar as suas percepções. Tal estudioso não poderá se valer,


simplesmente, de axiomas, a priori, para “mapear” uma religião concreta.
É por isso que Frank Usarski faz questão de chamar esta disciplina de
“Ciência Integral das Religiões”. Ele diz:

A ciência da religião mostra sua competência em liderar com tal riqueza


fenomenológica na medida em que atua como uma “ciência integral das
religiões” que se constitui mediante um intercâmbio permanente com outras
disciplinas cujo saber específico contribui direta ou indiretamente para um saber
mais profundo e completo sobre a religião e suas manifestações múltiplas
(Usarski, 2007, 10).

Portanto, eis a razão da intenção de abordar qual seja a contribuição das


ciências sociais ao estudo da religião tendo Pierre Bourdieu e Max Weber como
auxílios e companheiros de diálogo.

2.1 - Pierre Bourdieu

Ainda que Max Weber anteceda Pierre Bourdieu cronologicamente,


Bourdieu será considerado agora por questões didáticas.
Pierre Bordieu é considerado um dos grandes intelectuais do século XX.
Sua obra tem sido lida e discutida por acadêmicos de várias áreas, porquanto
Bourdieu conseguiu, por meio de seu olhar sociológico, escrever/refletir sobre
educação, política, religião e economia.
Sobre o seu trabalho como um pensador, Pedro Ribeiro de Oliveira diz:

Pierre Bourdieu morreu em 2002, legando uma produção sociológica notável por
seu rigor científico. A sociologia da religião, embora não ocupe lugar central no
conjunto de sua obra, mais voltada para a sociologia da cultura, tem em P.
Bourdieu um dos seus melhores teóricos. Seu artigo “Gênese e estrutura do
campo religioso” propõe uma teoria da religião que visa englobar, de modo
original, as contribuições de Marx, Durkheim e Weber (Oliveira, 2013, 177).

Pierre Félix Bourdieu (Denguin, França, 1 de agosto de 1930 — Paris,


França, 23 de janeiro de 2002), vem de berço humilde. Teve que se esforçar
  15  

muito para empreender uma carreira acadêmica. Talvez aí se explique a razão


dele desenvolver a ideia de que o sistema educacional já privilegie uns em
detrimento de outros desde a sua base. Porquanto, uma vez que os filhos de
pais mais “abastados” são expostos em casa desde pequenos à cultura, a bons
livros e à arte de uma maneira geral, eles já chegam à escola com a
possibilidade de se destacarem à frente daqueles que não tiveram os mesmos
privilégios. Ademais, segundo Bourdieu, naturalmente os mais desenvoltos e
inteligentes serão mais apreciados e terão mais oportunidades.
Sendo assim, o trabalho intelectual do sociólogo francês será influenciado
pelo pensamento de Karl Marx no que diz respeito às lutas de classe, a partir da
qual, segundo Bourdieu, se desenvolvem todas as dinâmicas sociais.
Portanto, este trabalho visa trazer a contribuição deste pensador à
compreensão da religião na sociedade enfatizando as suas teorias de Campo
Religioso e Habitu. Ainda que Bourdieu não tenha sido um grande teórico da
religião tal qual Max Weber é válido entendermos a contribuição de um
intelectual que se valeu do acervo de grandes pensadores e conseguiu
“atualizar” os seus textos.
Conforme destacado na introdução a religião não ocupou o centro do
pensamento de Pierre Bourdieu. No entanto, não podemos negar a grande
contribuição que ele trouxe ao tema:

Até aqui, Bourdieu incorpora e faz uma síntese original das contribuições
de Marx, Durkheim e Weber. Ao introduzir a noção de trabalho religioso,
porém, ele ultrapassa aqueles clássicos e aporta sua maior contribuição à
sociologia da religião. Essa noção permite superar o dilema entre uma
concepção idealista – que vê a religião como fruto da ação de pessoas
cuja criatividade e liberdade lhes permitiram intuir o transcendente – e a
concepção materialista – que reduz a religião a um reflexo, mais ou
menos mistificado, das estruturas sociais ou dos interesses econômicos
de um grupo. Mais que isso, Bourdieu abre caminho para a solução de
um antigo problema sociológico: definir as condições de possibilidade da
autonomia da religião (Oliveira, 2013, 181-182).
  16  

O pensador francês quis entender a razão de pessoas convergirem para


certos segmentos da sociedade em detrimento de outros. Esta teoria é valiosa
para tentarmos compreender a razão de certas religiões serem escolhidas em
lugar de outras.

2.2 - Campo Religioso

Para tanto, Bourdieu criou a ideia do campo religioso:

Um campo, conforme Bourdieu o concebe, é um extenso e amplo espaço social


autônomo com suas próprias regras, suas próprias estruturas de poder e, mais
genuinamente, suas próprias questões, que estão em jogo: o campo da literatura
é sobre “boa literatura”, o campo religioso sobre “religião verdadeira”.
Exatamente como o espaço social em geral, cada campo tem seu próprio tipo de
capital, que é distribuído de modo desigual. Uma precondição para esses
campos sociais é o estabelecimento de uma divisão de trabalho, onde
especialistas “fornecedores” oferecem seus serviços para um “laicato” de
consumidores, ou seja, autores escrevendo ou sacerdotes oferecendo serviços
religiosos para um público (Ibid, 2013, 269).

Na esteira do pensamento de Max Weber, Bourdieu comenta sobre o


poder que a religião tem de influenciar as decisões políticas em um campo
simbólico:

Em outras palavras, a religião contribui para a imposição (dissimulada) dos


princípios de estruturação da percepção e do pensamento do mundo e, em
particular, do mundo social, na medida em que impõe um sistema de práticas e
de representações cuja estrutura objetivamente fundada em um princípio de
divisão política apresenta-se como a estrutura natural-sobrenatural dos cosmos
(Bordieu, 2007, 33-34).

Uma vez que a religião trata com o que é absoluto ela passa a ter uma
força a mais sobre os seres humanos no sentido de legitimar posicionamentos
polítcos dentro ou fora do campo religioso. Bourdieu continua:

A estrutura das relações entre o campo religioso e o campo do poder comanda,


em cada conjuntura, a configuração da estrutura das relações constitutivas do
  17  

campo religioso que cumpre uma função externa de legitimação da ordem


estabelecida na medida em que a manutenção da ordem simbólica contribui
diretamente para a manutenção da ordem política, ao passo que a subversão
simbólica da ordem simbólica só consegue afetar a ordem política quando se faz
acompanhar por uma subversão política desta ordem (Ibid, 69).

Conforme já foi dito acima, o campo religioso para Bourdieu é o reflexo da


dinâmica interna da sociedade. Ou seja, na esteira do pensamento de Karl Marx,
a religião existe para legitimar a condição de desigualdade que existe na
sociedade, afirma Pierre Bourdieu:

O posicionamento de alguém dentro da totalidade da sociedade é muito


importante para Pierre Bourdieu. Sua construção do espaço social ajuda a
conceber a desigualdade social. Lançando mão de um esquema tridimensional,
Bourdieu afirma que as diferenças sociais dos indivíduos dependem de sua
“acumulação” diferente de capital econômico (rendimento financeiro), capital
cultural (como títulos educacionais) e capital social (as redes de relações com os
outros). Por capital, Bourdieu entende, referindo-se à compreensão do termo de
Karl Marx, o trabalho acumulado, que pode ser reinvestido para acumular mais.
Exatamente com o dinheiro pode ser reinvestido para gerar mais dinheiro,
Bourdieu afirma que as pessoas podem esforçar-se para aumentar suas
realizações educacionais e sociais para melhorar sua posição no espaço social
(Schlamelcher, 2013, 268 e 269).

A Dinâmica Interna do Campo Religioso

Tendo posto a definição de campo religioso para o sociólogo francês é


importante entendermos a dinâmica deste campo.
Para Bourdieu o campo religioso é constituído5 por produtores (os quais
ele chama também de especialistas) e consumidores de bens simbólicos de
salvação. Os produtores seriam divididos em três categorias, a saber:
Sacerdotes, Profetas e Magos. O sacerdote é aquele legitimado pela instituição,
o qual se torna o “guardião” das doutrinas e crenças da instituição religiosa
contra “os hereges”. O profeta é dono de um carisma especial e que ganha
legitimidade por parte dos fiéis, grosso modo, em meio ao descrédito da
instituição. Ele age, portanto, como uma espécie de subversivo do sistema

                                                                                                               
5  Neste âmbito de seu pensamento Pierre Bourdieu se valerá bastante das concepções de Max
Weber.
  18  

religioso com mensagens de reforma e revolução. E, por fim, o mago. Este é


uma espécie de curandeiro não institucionalizado que reúne ao redor de si uma
clientela ávida por serviços de curas milagrosas. O mago possui contornos de
um itinerante religioso.
Se ao lado do clero estão os produtores religiosos, ao lado dos leigos,
quase que passivos, encontram-se os consumidores dos bens simbólicos de
salvação. Não obstante o brilhantismo de Bourdieu cabe aqui uma crítica a partir
dos postulados da sociologia do conhecimento6. Quando Bourdieu teceu estas
análises ele tinha diante de si o decadente cristianismo europeu. Como bem
frisou Pedro Oliveira, ele não levou em conta o dinamismo do cristianismo
católico e protestante dos Países de Terceiro Mundo, onde a produção de bens
simbólicos tem sido “compartilhada” por “especialistas” e “leigos”.

2.3 - Habitus

A fim de entendermos a teoria do campo simbólico é necessário também


o conceito de habitus cunhado pelo autor:

Exatamente como podemos ver com nossos olhos somos cegos para os
processos que constroem a imagem em nosso cérebro, exatamente como
podemos ver o que aparece na TV, mas somos cegos para os processos na TV
que produzem a imagem, pode haver um princípio psicológico inconsciente na
formação de nossas preferências e gostos. Bourdieu se refere a essa entidade
psicológica como o habitus, um sistema gerador que estrutura nossos esquemas
de percepção, pensamento e ação. O habitus, diferente de nosso órgão da
visão, não naturalmente dado, mas desenvolvido constantemente pela interação
social. O indivíduo adquire seu habitus mediante o encontro com seu mundo da
vida. No entanto, o mundo da vida de indivíduos diferentes, o mundo objetivo
que eles habitam, é muito diferente, dependendo não apenas da família e da
cultura em que eles vivem, mas também da posição na sociedade (Ibid, 268).

Deste modo, para Pierre Bourdieu, o habitus está diretamente


condicionado pelo campo simbólico onde alguém está inserido. Cabe aqui um
paralelo com as teorias da sociologia do conhecimento, a qual afirma que todo

                                                                                                               
 
  19  

pensamento é condicionado pelas mediações sócio-econômico-culturais de


onde se está “plantado”.
Mais uma vez é pertinente uma observação ao pensamento de Bourdieu.
Como todo sociólogo, ele precisa trabalhar com as chamadas tipologizações a
fim de conseguir explicar (enquadrar) um fenômeno da sociedade. Nenhuma
teoria consegue dar conta da complexidade que é o ser humano e, por
conseguinte, a sociedade. Assim, não podemos afirmar categoricamente que
toda e qualquer pessoa inserida em um dado campo simbólico terá o seu
habitus gerado diretamente deste campo. Podemos fazer aproximações, mas
nunca, determinações “strictu senso” do comportamento humano. Ainda mais
hoje, onde as fronteiras sócio-culturais estão menos demarcadas e mais
transponíveis do que antigamente.
Sendo assim, de acordo com Bourdieu, o habitus é responsável pelas
ações de um indivíduo. É uma espécie de estrutura de pensamento que se
forma com o fim de analisar a realidade circundante.

2.4 - Max Weber

Para se estudar o fenômeno religioso é preciso passar por Max Weber.


Ainda que as suas ideias estejam sendo atualizadas e revistas, ele permanece
elencado como um dos principais clássicos da sociologia da religião:

Max Weber nasceu em 21 de Abril de 1864. Foi o primogênito de oito filhos e


herdeiro do nome do pai, um jurista e político geralmente descrito como homem
pragmático e acomodado. Sua mãe, Helene Weber, esforçou-se sempre por
imprimir no filho o timbre da sua concepção severamente protestante do
mundo (Cohn, 1991, 09).

É curioso perceber a influência protestante desde o berço do sociólogo.


Talvez por isso o seu olhar tenha sido despertado para escrever sobre “A ética
protestante” quando visitou os Estados Unidos:
  20  

Há uma forte tendência entre os intérpretes de Weber, no sentido de atribuírem


ao contraste entre seu pai e sua mãe um papel importante na formação daquilo
que, adapatando-se um termo do próprio Weber, seria a sua conduta pessoal de
vida, sempre tensa entre a reflexão e a ação e entre a repressão ascética dos
impulsos em nome da autodisciplina e uma postura mais tolerante e
descontraída (Ibid, 09).

Esta formação na infância levou Weber a buscar a construção de uma


visão ampla de mundo por meio de uma formação acadêmica “multidisciplinar”.
Essa postura teve como decorrência a formulação do que viria a ser a ciência da
sociologia:

Sua formação acadêmica foi muito ampla, concentrada nos estudos de Direito,
mas com profundas incursões pela História, a Economia, a Filosofia e mesmo a
Teologia. Sua dedicação explícita à Sociologia somente ocorreu na fase final de
sua vida, embora suas contribuições básicas nessa área já estivessem prontas
em 1913. Sua obra não é o resultado de um fluxo contínuo e regular de trabalho,
mas de períodos de concentração e produção extremamente intensivas (Ibid,
09).

Por conta desta ampla formação nas ciências humanas, Max Weber
conseguiu contribuir para a consolidação e aperfeiçoamento de muitas
disciplinas acadêmicas:

Após sua morte, em 14 de Junho de 1920, sua viúva Marianne Weber, que
também se dedicava ao trabalho intelectual e participava do movimento
feminista da época, organizou muito do material disperso por ele deixado e
promoveu a sua publicação, além de redigir uma extensa biografia de Max
Weber, publicada em 1926, e que por muito tempo constituiu a única fonte de
consulta nessa área (Ibid, 10).

Mas a morte não colocaria um fim em sua influência no mundo das ideias.
Ao contrário, talvez, a partir dela, é que a sua genialidade se tornou ainda mais
conhecida. E, de maneira mais específica, a sua contribuição para a
compreensão do fenômeno religioso foi imensa:

Dentre os três autores considerados os fundadores da sociologia – Marx,


Durkheim e Weber – Weber (1864-1920) foi o que mais se preocupou com o
fenômeno religioso, e consequentemente é o que mais tem influenciado a
  21  

sociologia da religião. A maior parte dos sociólogos, que estudam a religião, está
em diálogo com Weber. Peter Berger e Pierre Bourdieu são bons exemplos
(Mariz, 2013, 67).

2.5 - A Grande Preocupação

Max Weber começou a se interessar “cientificamente” pela religião


quando se fez a pergunta acerca da modernidade e de seu nascedouro. O
sociólogo inquiriu se a modernidade teria alguma relação com a religião, no
caso, o protestantismo:

Tal como Marx e Durkheim, Weber quer entender antes de tudo a sociedade
modernda ocidental na qual vivia. Considerava que essa sociedade, em seus
diferentes apectos políticos, econômicos e culturais é fruto de uma conjunção
única de fatores que historicamente se combinaram no contexto da civilização
ocidental judaico-cristã. Seria específico dessa sociedade tanto o projeto de
Estado moderno, aquele regido por uma constituição e baseado no princípio de
representação, como também o modo de produção capitalista moderno baseado
na mão-de-obra livre assalariada e regido pelas leis de mercado. A Teologia
sistemática, a ciência, e as tecnologias modernas, além de toda uma
mentalidade crescentemente secular, seriam para Weber fenômenos específicos
desse Ocidente moderno.
O centro de sua preocupação é, assim, essa sociedade moderna e o peculiar
processo de racionalização que a constituiu. Para identificar o que fez surgir e
como se produziu esse processo, Weber compara através de estudos históricos
as religiões de distintas civilizações. Uma das hipóteses com que trabalha é que
a peculiaridade das religiões, que formam o substrato da matriz cultural do
Ocidente, desempenhou papel importante na origem e desenvolvimento desta
racionalização ocidental. Por isso, se por um lado o conceito de racionalização é
fundamental na sociologia da religião de Weber, essa sociologia é parte central
de sua teoria da sociedade ocidental como um todo (Ibid, 69).

O que chama a atenção acerca do olhar de Weber é a sua “intuição” de


que a religião possui uma grande força formadora das sociedades. O que ele
observou pode ser aplicado à influência que outras religiões exerceram sobre a
formação de outras sociedades que não as ocidentais.
Ou seja, a religião está no centro da formação da identidade dos povos.
Desde suas origens as sociedades humanas construíam a sua visão de si
mesmas e do mundo ao redor levando em conta “o dado religioso”:
  22  

A religião interessa a Weber na medida em que ela é capaz de formar atitudes e


disposições para aceitar ou rejeitar determinados estilos de vida ou para criar
novos. A importância dada por Weber à subjetividade e intencionalidade dos
atores sociais nos ajuda, portanto, a entender sua dedicação aos estudos da
religião (Ibid, 74-75).

2.6 - A teoria do Tipo Ideal

A fim de tentar dar conta dos fenômenos observados por ele, Max Weber
sistematizou um método que chamou de “tipo ideal”. Este, portanto, ocupa o
centro metodológico de Weber no que diz respeito à interpretação dos
fenômenos sociais e/ou religiosos:
A partir das comparações históricas das diferentes práticas religiosas, Weber
constrói tipos ideais que podem dar conta da peculiaridade, não apenas do
protestantismo, mas de toda tradição judaico-cristã.
[...] Weber descreve tanto os processos históricos concretos que condicionaram
motivações religiosas distintas em sociedades diferentes, como os tipos que
ajudam a entender como certa religiosidade alimentou a racionalização do tipo
ocidental (Ibid, 77-78).

É importante dizer que o tipo ideal não é a descrição da “coisa” em si. É,


antes, uma aproximação da realidade posta diante do observador:

Os tipos ideais para Weber não representam nenhum fenômeno empírico. Trata-
se apenas um recurso metodológico, com valor exclusivamente instrumental.
É importante lembrar que quando se refere a uma “ética protestante”, Weber
está fazendo uso de um tipo ideal, na medida em que essa “ética” tal como
descreve em seu livro não se reduz a nenhuma das éticas das diferentes
denominações que analisa. Por outro lado, nem a ética dos luteranos, nem a
metodista, a pietista, nem a das seitas batistas, analisadas por Weber em suas
peculiaridades, se esgota no que ele chama de “ética protestante”.
Além de serem construtos internamente coerentes, os tipos ideais devem ser
coerentes entre si. Vemos que a mesma lógica orientou a sua construção dos
tipos ideais ao estudo da religião, orientou também os tipos ideais mais amplos
de ação social (Ibid, 78-79).

Deste modo, Max Weber traz uma grande contribuição ao estudo da


religião ao lado de Pierre Bourdieu. Conforme já foi dito acima, estes dois
autores não são os objetos desta investigação. O interesse maior concentra-se
nas duas igrejas mencionadas como que representando o novo jeito de ser
protestante no Brasil. Contudo, esses dois autores prestam grande ajuda no
  23  

entendimento desse novo fenômeno do protestantismo Brasileiro por meio de


suas teorias ressaltadas acima.
O próximo capítulo direciona-se ao entendimento da chegada e do perfil
do protestantismo que aportou no Brasil vindo dos Estados Unidos da América.
  24  

3 – O Protestantismo Brasileiro

O protestantismo é um sistema religioso que gira em torno da


interpretacão de um livro 7 : a Bíblia Sagrada. Ele nasceu da tentativa do
movimento leigo, humanismo e, depois, dos reformadores de lerem a Bíblia sem
as “amarras” doutrinárias da Igreja Católica. Sobre isso, Alister McAgrath afirma:

O Protestantismo, em seu cerne, representa um constante retorno à Bíblia para


revalidar e, quando necessário, reformular suas crenças e valores, recusando-se
a permitir que alguma geração ou indivíduo determine o que é definitivo para o
protestantismo como um todo (McAgrath, 2012, 201).

O protestantismo nasceu sem uma liderança centralizada em uma única


pessoa. Na verdade, a certa altura da Reforma Protestante alguns líderes
tentaram fazer uma espécie de unificação, mas foi em vão porquanto as várias
cabeças, tais quais as de: Martinho Lutero, Ulrico Zuínglio e João Calvino, ainda
que, valorizando e exaltando a mesma Bíblia Sagrada, partiam de alguns
pressupostos diferentes e, consequentemente, chegaram a algumas conclusões
distintas umas das outras.
Sendo assim, o movimento protestante traz em sua essência a não
centralização em uma pessoa apenas, colocando como uma forte ênfase do
movimento o livre exame8 das Escrituras Sagradas. Falando sobre a influência
que os reformadores tiveram para chegar ao que conhecemos como reforma,
Alister McAgrath destaca o movimento leigo e o humanismo:

Ao contrário do que se costumava acreditar, há consenso hoje em dia de que os


Séculos 14 e 15 não testemunharam uma diminuição geral no interesse pela
religião cristã na Europa ocidental. A relação bastante próxima entre a educação
e a piedade leiga na Baixa Idade Média pode ser observada no fato de o
crescimento extraordinário do interesse na educação no final do Século 15 ter
sido associado, em primeiro lugar, a instituições monásticas, especialmente
aquelas dedicadas à devótio moderna.Tudo indica que, no final do período
                                                                                                               
7
É verdade que existem outras formas de se interpretar o protestantismo. O teólogo Paul Tilich
prefere defini-lo como sendo: O Princípio Protestante.
8
Não é sinônimo de livre interpretação. Contudo, este suposto livre exame foi a razão de muitas
dispustas e divisões das igrejas. Nem sempre as lideranças eclesiásticas foram simpáticas
àqueles que tentaram interpretar a Bíblia de uma maneira “não autorizada”.
  25  

medieval, a piedade e a religião, para não dizer a Teologia em si, estavam se


tornando cada vez mais laicizadas.
Um padre não podia mais esperar que uma congregação urbana se contentasse
com a leitura de um sermão em latim como um complemento da leitura da
missa. A fim de ser digno de sua posição na sociedade, o padre devia
apresentar sermões inteligentes e novos. Não podia mais esperar justificar sua
condição privilegiada dentro de uma sociedade urbana valendo-se simplesmente
de seu chamado. O anticlericalismo foi um fenômeno amplamente difundido e
não apenas associado a uma região específica da Europa, refletindo, em parte,
o baixo nível do clero em geral. A imunidade clerical nos tribunais serviu apenas
para isolar ainda mais o clero do povo.
Sem dúvida, com o início do Século 16, o Humanismo era um movimento
transicional plenamente estabelecido e dotado de um forte senso de identidade.
Os humanistas julgavam-se uma nova “ordem leiga” com o potencial de
transformar a cultura européia e estavam cientes da importância de consolidar a
coesão social e intelectual do movimento. Em termos mais amplos, podem-se
identificar três características do movimento: um programa literário ou cultural,
voltado para o ideal de bonae litterae; um programa religioso, voltado para o
ideal de Christianismus renascens; e o programa político, direcionado,
principalmente, para a consolidação da paz da Europa (McAgrath, 2007, 21 e
43).

É importante dizer que o protestanstismo não nasceu no vácuo histórico-


cultural. Toda uma contingência facilitou a implantação das novas ideias de
Libertação e Democracia típicas do movimento protestante tal qual conhecido no
mundo ocidental.
De acordo com Alister McAgrath o protestantismo se tornou, portanto, um
método de interpretação da Bíblia e da realidade. Muito mais do que “esquemas”
fechados a priori este fenômeno religioso pauta o seu processo epistemológico
na liberdade de acesso ao texto sagrado com um desejo de viver a partir das
conclusões aferidas deste exame.
De acordo com Antônio Gouveia Mendonça este é o mesmo tipo de
protestantismo que chegou ao Brasil no final do Século XIX por meio das
chamadas denominações históricas. Ou seja, uma religião baseada no intelecto
e racionalidade. No entanto, com a chegada dos puritanos ingleses aos Estados
Unidos no Século XVI e anos depois com o desenvolvimento do
fundamentalismo 9 , o protestastismo ganhou ares de prentenso detentor

                                                                                                               
9
Termo utilizado para referir-se aos fundamentos da fé cristã conservadora (Fundamentals)
como forma de se contrapor ao liberalismo teológico da época.
  26  

exclusivo da verdade, passando a enxergar outras religiões, notadamente o


Catolicismo Romano, como “a outra”; ou seja, aquela que está contra a verdade
das Sagradas Escrituras precisando, portanto, de salvação:

Sendo o protestantismo brasileiro ponta-de-linha do norte-americano, sua índole


e seu espírito deveriam proceder do “espírito” do protestantismo preponderante
nas missões que empreenderam sua implantação no Brasil.
Em suma, a convicção de que os fatores específicos da ordem histórico-social
do Brasil, aliados à especificidade da mensagem religiosa dos missionários,
modeleram aqui um protestantismo com características próprias e, até certo
ponto, negador de seus modelos históricos ligados ao liberalismo e à
modernidade, é que me levou a empreender este estudo. Pretendi encontrar
caminhos para compreender o “espírito” do protestantismo no Brasil e assim dar
respostas às questões levantadas no início desta introdução (Mendonça, 2008,
30-31).

Mendonça vai pontuar ainda em seu livro “O Celeste Porvir” que os


movimentos de avivamento e fundamentalismo teológico nos Estados Unidos
modelaram um novo jeito de ser cristão que era diferente daquele da Reforma
Protestante. Então, o pietismo de John Wesley somado as ideias de progresso e
democracia criaram um jeito de ser protestante que, inclusive, interessou muito a
alguns líderes politicos no Brasil em função de poder ter “armas” intelectuais
para fazerem frente à hegemonia Católico Romana:

O pietismo protestante é, ressalvada de certo modo, a tendência para o


monasticismo, o equivalente do misticismo católico. Se este tem
caracacterísticas solitárias, aquele é individualista. Tanto o misticismo quanto o
pietismo são uma ascese pessoal, no sentido de um apropriar-se do sagrado
sem a ajuda de fatores de ordem epistemológica. Parecem ser fatores
morfológicos dessas manifestações de vivência religiosa o platonismo e o
indivivualismo (Ibid, 107-108).

Para entendermos melhor o modelo de protestantismo que aportou em


terra brasilis é importante fazermos a tradicional distinção entre Protestantismo
de Migração e Protestantismo de Missão. Vamos a elas:
  27  

Protestantismo de Migração –

Este seguimento do protestantismo brasileiro é assim chamado por se


constituir pelos imigrantes estadunidenses e europeus que desembarcaram no
Brasil em busca de uma melhor oportunidade de vida sócio-econômica.
A princípio não vieram para o Brasil com o objetivo de expandir o
movimento protestante em novas terras. Mas, como consequência de estarem
em um novo lugar trouxeram consigo o ideal de instalar igrejas e fazer cultos,
mas em sua língua natal.

Foi preciso esperar a Independência do Brasil, em setembro de 1822, para o


país deixar de ser cem por cento católico, muito embora o grosso dos fiéis
carregasse apenas o batismo cristão, como acontecia especialmente com os
escravos, que eram 68,5% da população, e com os índios cristianizados. Menos
de dois anos depois, em 1824, começaram a chegar os primeiros imigrantes
alemães, dos quais um pouco mais da metade eram protestantes. A maior parte
seguiu para o Rio Grande do Sul. Outros foram para Nova Friburgo, na região
mostanhosa da provincial do Rio de Janeiro. Esse grupo de 300 alemães trouxe
em sua companhia o pastor Friedrich Oswald Sauerbronn, de 52 anos, que se
enviuvou - durante a viagem de seis meses entre Amsterdã e o Reio de Janeiro,
tendo ficado sozinho com seus filhos menores. Tido como o primeiro ministro
protestante residente no país, Sauerbronn pastoreou a comunidade luterana de
Nova Friburgo por quarenta anos, até morrer em 1864.
Os alemães vieram para o Brasil, entre outros motivos, para branquear a
população brasileira, por demais negra, para dificultar uma possível revolta dos
escravos, para garantir a posse da parte mais meridional do país contra os
espanhóis, para criar uma classe intermediária entre o latifundiário e o escravo,
e para fazer a terra produzir. Cinco anos antes do início da imigração alemã,
havia apenas 943 mil brancos no Brasil, contra 1.728.000 escravos negros, 202
mil escravos mulatos, 159.500 negros alforriados e 426 mil mulatos livres e
mamelucos. Além disso, como explica o pastor luterano Armindo L. Muller, o
governo pretendia engajar alguns alemães no exército para proteger a
independência havia pouco sido proclamada e a monarquia (César, 2000, 72-
73).

Este protestantismo não tinha, portanto, intenções estritamente


proselitistas. Elben Lenz César afirma que com a chegada dos alemães
luteranos veio também uma “fraca vida moral” típica de um protestantismo
  28  

étnico. Ou seja, ao contrário do protestantismo de missão os imigrantes


desejavam uma vida sócio-econômico melhor.

Protestantismo de Missão –

Este seguimento do protestantismo chegou ao Brasil com uma intensão


clara: alargar as fronteiras do cristianismo protestante no Novo Mundo.
Sendo assim, as denominações egressas do Primeiro Mundo vieram
enviadas por agências missionárias com a finalidade de proclamar as boas
novas de Jesus Cristo.
O cristianismo possui em sua essência uma visão expancionista a partir
das palavras do Cristo ressuscitado, quando disse: Vão por todo o mundo e
preguem o evangelho a toda criatura.

3.1 - A chegada do Protestantismo no Brasil

Émile Léonard foi um historiador francês que viveu no Brasil entre 1949 e
1951 a fim de lecionar história na Universidade de São Paulo. Possuidor de uma
inteligência arguta e capacidade de observação ímpar somado ao seu
envolvimento com o protestantismo francês resolveu pesquisar este fenômeno
religioso em terra brasilis. Sobre ele, Antônio Gouveia Mendonça diz:

Émile-Guillaume Léonard (1891-1961) foi, sem dúvida, o maior historiador do


protestantismo, pois, além de numerosos livros e artigos escritos sobre o
protestantismo francês, é o autor do monumental Histoire Génerale du
Protestantisme, obra em três volumes com cerca de 1.600 páginas. No terceiro
volume, Léonard dedica cerca de doze páginas ao Brasil, pouco diante dos
demais trabalhos escritos por ele sobre o protestantismo brasileiro. O motivo
dessa aparente pouca atenção deve-se ao falecimento abrupto de Léonard
quando estava trabalhando nesse volume; faleceu vítima de um acidente aos
setenta anos de idade, embora, conforme correspondência com amigos
brasileiros, já estivesse enfermo.

Léonard teve também seus “anos brasileiros”. Veio, como professor contratado,
ensinar história moderna e contemporânea na Universidade de São Paulo por
três anos, de 1949 a 1951, recomendado por Lucien Febvre. Sua permanência
entre nós foi muito mais curta do que a de Roger Batisde, mas suficiente para
  29  

que se apaixonasse pelo Brasil, pelo fascínio de sua história, pelas pessoas com
quem se encontrou e fez amizade. Entre esses amigos estavam intelectuais da
universidade e pastores de igrejas, assim como pessoas simples das
comunidades protestantes que frequentou devocionalmente, pois que, à
semelhança de Bastide, era também um reformado.

O principal trabalho escrito pelo historiador francês sobre do cristianismo


de viés protestante brasileiro foi “O Protestantismo Brasileiro”. Ele mesmo se
pronuncia acerca de sua intenção de pesquisa:

Não existe até agora nenhuma história geral do protestantismo brasileiro.


Entretanto, na obra de José de Carlos Rodrigues, Religiões Acatólicas,
publicada no vol. II do Livro do Centenário (Rio, 1901), encontram-se
informações interessantes e documentação precisa sobre as suas origens
recentes, sobre o início de seu desenvolvimento. Trata-se de um longo estudo
que, apesar de velho, é preferível ao esboço rápido e insuficiente do Domingos
Ribeiro, Origens do Evangelismo Brasileiro (Rio, 1937). Os capítulos sobre
Villegagnon e Maurício de Nassau, que constituem uma parte importante deste
último livro, não têm relação alguma com o protestantismo brasileiro de hoje:
deixamos então de lado a bibliografia destes dois personagens bem conhecidos
(Léonard, 2002, 23).

Léonard foi despertado para pesquisar o Protestantismo Tupiniquim em


virtude de perceber continuidades e descontinuidades acerca da Reforma
Protestante da Europa.

Ele diz que o catolicismo no Brasil estava apresentando as mesmas


“lacunas” presentes no catolicismo Europeu no período medieval:

Circunstâncias análogas e resultados semelhantes existiram no Brasil, na


primeira parte do século XIX – é o que se depreende da leitura de narrativas de
viajantes que visitaram o país nessa época, principalmente a do pastor norte-
americano Kidder, que percorreu o Brasil durante a minoridade de D. Pedro II,
distribuindo Bíblias e reunindo documentário para seus Sketches of residence
and travel in Brazil. Outras descrições de viagens poderão interessar mais do
ponto de vista da descrição geográfica, econômica e social do país. A grande
insuficiência numérica do clero secular é ainda hoje o título de um livro do Pe.
Paschoal Lacroix chamado O mais urgente problema do Brasil. Com mais forte
razão assim era numa época em que a hierarquia reduzida a um arcebispado e
cinco bispados. A insuficiência numérica do clero brasileiro se fez acompanhar
de um enfraquecimento de sua vida espiritual. Embora não fosse de se esperar,
porque a falta de sacerdotes deve aumentar o seu prestígio, constituiu ela,
entretanto, um elemento ativo desse enfraquecimento (Ibid, 32-33 e 35).

Ele ainda acrescenta:


  30  

Apesar de mais rico, o clero regular nem por isso era mais florescente. A
verdadeira inflação monástica que o Brasil conhecera no fim do século XVIII
(mesmo assim ela havia sido menos intensa que no resto da cristandade
católica) reduzira-se consideravelmente na segunda metade do século XVIII pela
expulsão dos jesuítas, o sequestro de seus bens e a secularização de muitos
conventos. As casas religiosas ainda conservadas estavam vazias, embora não
fosse o medo de uma situação restrita a causa dessa situação. “Ninguém quer
ser frade”, é a frase corrente. “A despeito de ser uma vida cômoda e opulenta,
tal é a aversão que a ela votam o governo e o público, que ninguém quer se
aproveitar dessas vantagens inglórias” (Ibid, 34).

O pesquisador francês vai dizer ainda que a decadência moral do clero e


a corrupção financeira do mesmo propiciou um solo fértil para a entrada do
protestantismo e o seu consequente sucesso. Caso contrário, o protestantismo
não teria conseguido fincar raízes em solo brasileiro.

No entanto, alguns outros elementos são fundamentais para se entender


a facilidade de entrada do protestantismo no Brasil: O liberalismo, o jansenismo
do clero e o anticlericalismo e sobre isso Léonard pontua:

A este tipo de religiosidade no qual os padres e, consequentemente, os


sacramentos ocupavam lugar secundário, aliava-se uma tolerância geral com
relação a toda crença e toda forma de piedade, tolerância de que o clero
frequentemente partilhava e que, aliás, teria sido impossível combater, se
atentarmos para as disposições do governo em matéria eclesiástica.

O liberalismo brasileiro e, de um modo geral, lusitano, além de objeto de


gratidão e congratulação por parte dos estrangeiros, constituiu uma das causas
e uma das manifestações dessa adaptabilidade, à qual Portugal deve seus
admiráveis sucessos em matéria de colonização. Com respeito à religião, sua
tolerância encontra réplica natural, mas constante, no fanatismo espanhol.
Estava-se, além disso, num período de progresso, ao qual a vitória das nações
protestantes, Inglaterra e Prússia, em 1815, dava, em todo o mundo branco,
uma nuance de filo-protestantismo: com a constituição à inglesa, era a religião à
inglesa que parecia, então, a mais própria aos povos “evoluídos”. Entre os
progressistas declarados e, por isso mesmo, liberais em matéria religiosa,
encontramos no Brasil os “moços de chapéu de palha”, jovens intelectuais que
ostentavam o chapéu de fibras de Taquaruçu, na mesma época em que seus
companheiros da Itália distinguiam-se pelo uso da “paglietta” – cujo nome
recebiam – além dos oficiais que, em toda a América do Sul, se achavam à testa
de movimentos avançados. Encontramos mais tarde grande número de
intelectuais e oficiais entre os primeiros protestantes brasileiros. Os próprios
reacionários – corcundas, camelos, galegos, os detestados caramurus – e,
piores que todos, aos olhos dos jovens exaltados, os moderados, não se
  31  

contentavam em receber da Inglaterra os seus chapéus de feltro: adotavam


também muitas de suas ideias. Simpatizantes da Inglaterra tanto quanto de
Portugal, não possuíam preconceito contra o protestantismo – religião do país
que salvara outrora a coroa portuguesa – pensavam, já que lhes era impossível
raciocinar guiados por esse espírito filosófico que os brasileiros ilustres
herdaram do século XVIII. Vamos encontrar sentimentos análogos entre muitos
membros do clero. Kidder observa, referindo-se a um padre encontrado numa
fazenda nos arredores de São Paulo, que “ele possuía não apenas sólida
instrução, mas também ideias muito liberais”. Liberalismo político, de um lado,
mas também de natureza religiosa. O catolicismo que, de um modo geral, jamais
foi obrigado, no Brasil, a lutar contra a Reforma (o episódio da ocupação
holandesa constitui caso isolado e relativamente breve), não apresentou, e hoje
apresenta menos que nunca, esse aspecto de Contra-Reforma que assumiu na
Europa no século XVI. Era ainda, no momento em que o consideramos, o que a
igreja foi até o início da época moderna – não obstante acesos temporários e
esporádicos de severidade, e reações que não revestiam caráter metódico e
regular contra esse movimento herético – isto é, inofensivo, longânimo, paciente
e lento nas suas reações. Aqui, ainda, Kidder encarou os fatos com uma
imparcialidade rara de se encontrar. Era necessário, realmente, que esse
pequeno metodista, distribuidor de Bíblias, possuísse grande inteligência e amor
profundo ao próximo, para compreender tão bem uma situação sobre a qual
todo mundo se enganou.

Esse liberalismo, como dissemos, está na melhor tradição da igreja anterior à


Reforma. É necessário, entretanto, que concedamos alguma importância a um
traço extraordinário, à primeira vista, do clero brasileiro dessa época, traço
oriundo da educação que seus bispos receberam em Coimbra: as fortes
influências jansenistas que sofrera e sofria ainda. Um clero sul-americano
jansenista! Eis o que nos afasta bem longe da concepção tradicional do
sacerdote de costumes corruptos, ou de um misticismo excessivo, sensual e
“colonial”. Apenas recentemente esse jansenismo brasileiro da primeira metade
do século XIX foi observado e estudado. Entretanto, lidas com cuidado, as
Reminiscências de Kidder nos colocam nesse rumo.

Falta-nos um estudo mais aprofundado do jansenismo brasileiro, para podermos


calcular com exatidão a influência que essa corrente desempenhou no Brasil, na
época que estudamos. A importância dessa influência revela-se, entretanto, em
três pontos: fomentação de uma piedade austera, culto das Sagradas Escrituras
e independência com relação a Roma (Ibid, 40-43).

É possível perceber que a maneira do catolicismo se apresentar, no final


do século XIX, facilitou não apenas a entrada do protestansimo no Brasil, mas
também, a sua propagação.

Conforme colocado acima, por meio do projeto da França Antártica o


calvinismo foi, de fato, a primeira expressão protestante a chegar ao Brasil logo
no início da colonização católica.
  32  

Não obstante, uma vez que este projeto de João Calvino não chegou a
bom termo, há que se afirmar juntamente com Léonard que as três primeiras
denominações que aportaram no Brasil, foram: Congregacional, Presbiteriana e
Batista.

Émile Léonard destaca que ao chegar ao Brasil após a abertura feita pela
coroa de Portugal em acordo com a Inglaterra, os Congregacionais, por
exemplo, na pessoa de Robert Reid Kalley (1809-1888), logo conseguiram
abertura para pregar a nova fé, inclusive, com acesso às elites brasileiras:

Foi uma personalidade curiosa, característica desses propagandistas anglo-


saxões, aristocratas ou burgueses ricos que, por motivos culturais ou de saúde,
tornavam-se grandes viajantes, e que utilizavam fortuna e turismo na difusão da
fé protestante (Ibid, 56).

Esta ordem incendiou o próprio catolicismo romano, o qual chegou com


os Jesuítas ao Brasil, pelo menos 300 anos antes dos protestantes. A intenção
da Companhia de Jesus era evangelizar também.
Elben Lenz César, comentando sobre a chegada do protestanstismo de
missão à terra brasilis, pontua:

Eram anglo-americanos os missionários protestantes que vieram para o Brasil


na última metade do século 19. Muito excepcionalmente poderia haver algum
missionário alemão ou holandês. A maior parte provinha dos Estados Unidos.
Naturalmente vieram vários ministros da Alemanaha não como missionários,
mas para pastorear o rebanho luterano formado exclusivamente de imigrantes
alemães. A enorme e contínua movimentação missionária começou em 1855,
com os congregacionais, e terminou em 1889, com os episcopais. Entre uns e
outros estão, pela ordem de chegada, os presbiterianos, os metodistas e os
batistas. Eles tinham de aprender a língua e entender a cultura brasileira,
bastante diversa das culturas britânica e norte-americana (Ibid, 78).
  33  

3.2 - O perfil do Protestantismo Brasileiro

Ainda buscando entender o perfil do protestantismo brasileiro, Antônio


Gouveia Mendonça, em uma entrevista que concedeu à Adailton Maciel
Augusto, afirma:

Sob este ponto de vista, tenho insistido em considerar a Reforma do Século XVI
a partir de três vertentes: a Reforma Anglicana, uma meia Reforma, a Reforma
Luterana e a Reforma Calvinista. O anglicanismo tem se mantido em geral
uniforme, assim como o luteranismo. Agora, o calvinismo, por razões que o
espaço não me permite discutir, tem se multiplicado a ponto de construir, com
todas as variantes possíveis quase todo esse universo conhecido por
protestantismo. Quando à distinção entre protestante e evangélico, é outro
problema. Como resultado da Reforma, o adjetivo “evangélica” passou a fazer
parte de muitas igrejas, principalmente na Alemanha, com ênfase na Bíblia e
principalmente no Evangelho, como fonte absoluta de autoridade. Nesse
sentido, cabe identificar protestante com evangélico. Contudo, como decorrência
do chamado movimento de Oxford, havido na Igreja Anglicana nas primeiras
décadas do século XIX, surgiu um movimento conservador que passou a ser
chamado de “evangélico”. Hoje, esse termo, principalmente nos Estados Unidos,
é usado para designar os protestantes da ala conservadora e que se aproximam
bastante do fundamentalismo. No Brasil, diante da dificuldade de distinção,
estamos começando a aportuguesar o termo ingles “evangelical” para
evangélica com acento na antepenúltima sílaba, a fim de não confundir as
coisas. Assim, evangélico seria sinônimo de protestante e evangelical seria
restrito aos protestantes mais conservadores.
Excluídas as igrejas ritualistas ou litúrgicas, cuja melhor expressão é a
Anglicana, que nem mesmo se inclui entre as protestantes, todas as demais,
que se inserem no protestantismo histórico, são igrejas da Palavra. Objetos
sagrados, assim como gestos rituais, são afastados para dar lugar à Palavra. O
sagrado é a Palavra. Mesmo que existam rituais escritos, só usados no ofício de
sacramentos e outros ritos especiais, como matrimônio, ordenações,
consagrações, etc. Mesmo assim, os oficiantes que banalizam o ritual,
improvisando-o, não são recriminados. Sob o ponto de vista da emoção, o
protestantismo histórico é a expressão do sagrado dominado (Augusto, 2010, 13
e 15).

O protestantismo que, de modo geral, se desenvolveu em nossas terras


possuia um forte vínculo com a doutrina. O filósofo e educador Rubem Alves
chamou este fenômeno de protestanstismo de reta doutrina10 (falaremos mais
sobre ele adiante). Ele diz que o Brasil não recebeu um protestantismo de
                                                                                                               
10  Rubem  Alves  explica  que  o  caráter  progressista  e  transformador  típico  do  protestantismo  

no  seu  nascedouro  não  foi  exatamente  o  mesmo  que  chegou  em  nossas  terras.  
  34  

projeto de país, mas apenas um movimento cujo compromisso maior era com a
explicação correta dos credos e confissões do cristianismo protestante.
Certamente o filósofo se fez valer de experiências negativas com o movimento
protestante quando, na altura, era um pastor presbiteriano. Entregue pelos
próprios colegas ao antigo governo de ditadura militar se desvincula da Igreja
Presbiteriana do Brasil por conta de suas convicções socialistas.
Voltemos a Mendonça. Na visão deste sociólogo da religião, o
protestantismo que se formou no Brasil após ter passado pelos Estados Unidos
sofrendo as influências protestantes de lá se apresenta da seguinte maneira:

O padrão de pregação no protestantismo brasileiro de missão foi sempre tríplice:


avivalista, polêmico e moralista. O padrão avivalista tinha por objetivo a
conversão do indivíduo, o polêmico por convencê–lo da verdade do
protestantismo ante o catolicismo, e o moralista por mostrar e inculcar os
padrões de conduta diferenciadores da nova religião (Mendonça, 2008, 298).

Por estas e outras razões o protestantismo brasileiro sempre teve muita


dificudade de lidar com a cultura brasileira. O forte moralismo impedia os
missionários de “olhar com bons olhos para a cultura nativa”.
Outros dois traços curiosos, de acordo com Mendonça, do protestantismo
brasileiro herdado dos avivamentos norte Americanos, são o “Neoplatonismo e o
Transcendentalismo”. Ele sublinha:

As linhas mestras do pensamento de Emerson apareceram em 1826 no seu


sermão pregado perante a Associação de Pastores de Middlesex, como prova
para seu ingresso no ministério. Essas linhas mestras se baseiam em duas
ideias filosóficas: I) a supremacia do espírito sobre o material; e II) o imediatismo
de Deus na alma humana. Esse idealismo de Emerson, sem entrar em
complicações mais avançadas, tem pelo menos duas implicações muito
significativas: o distanciamento entre a religião e a ordem social e a negação da
religião como um saber ordenado, lógico, em favor de um certo tipo de
intuicionismo pessoal. A tradição idealista, desde Platão até o neokantismo,
fornece o principal estímulo a essa forma de pensamento. A questão
epistemological, posteriormente, encontrou um bom apoio na teologia do
sentimento de Schleiermacher, em que o subjetivismo em religião se transforma
em crítica aos dogmas e, por consequencia, à sistematização objetiva das
doutrinas.
  35  

Ha muitas razões para se admitir que o transcendentalismo, com suas


implicações iniciais pelo menos, encontrou algum canal para se instalar no
protestantismo brasileiro.
Não pode deixar de causar curiosidade, ainda, que o neoplatonismo tenha
adquirido, no pensamento protestante brasileiro, aproximações estranhas com o
maniqueísmo. Não se trata por certo de criação do espírito brasileiro; ele
encontrou canais que o filtraram dos portadores da mensagem protestante (Ibid,
298, 304-305).

Em linhas gerais, a partir de Antônio Mendonça e Rubem Alves é que


podemos fazer uma leitura também positiva da inserção do protestantismo no
Brasil. O teólogo e cientista da religião Jorge Pinheiro desabafa:

A Reforma desde os seus primeiros momentos buscou fundações. Conhecemos


os princípios basilares apresentados por Lutero: a justificação pela fé, a Sola
Scriptura, o livre exame e o sacerdócio universal dos crentes. A partir destes
conceitos de liberdade, que depois foram acrescidos, surgiu um conjunto de
princípios sobre o qual se levantou a teologia reformada. Tal construção foi vista
como base que legitimou e autorizou a expansão de uma das maiores
revoluções religiosas da história humana. E, assim, surgiu a teologia reformada
como fundamento do protestantismo e também do evangelicalismo.
No Brasil, a sociologia viu o movimento evangélico como fundamentalista,
observando apenas seu lado integrista. Na verdade, a utilização da expressão
fundamentalista para o evangelicalismo brasileiro ou setores dele não está
errada, mas se torna reducionista ao prender-se aos aspectos relacionais
positivos que a busca por fundacão implica (Pinheiro, 206-207).

Uma vez que o protestantismo aportado no Brasil ainda no século XVI11


seja um filho legítimo da Reforma do Século XVI na Europa, é natural que este
movimento tenha trazido a essência da inquietação e a busca constante por
justiça. Não se pode negar que todo movimento enquanto expressão de uma
cultura vai se transformando12 ao longo dos anos e, ao chegar a outros lugares,
sofre mutações. Mas, no caso do protestantismo calvinista, observa-se uma
linearidade em sua forma de agir em cada lugar que chegou:
                                                                                                               
11  O  huguenote  Jean  de  Léry  chegou  ao  Brasil  em  1556.  
12  O  sociólogo  e  cientista  da  religião  Leonildo  Campos,  diz  que  a  cultura  precisa,  de  fato,  de  

mutações:   “Toda   cultura   é   líquida   e   quando   se   pretende   torná-­‐la   sólida   ela   se   petrifica   e  
morre”  (Campos,  173).  Sendo  assim,  o  protestantismo  enquando  um  movimento  religioso-­‐
cultural  precisava,  ao  entrar  no  Brasil,  de  adaptações.  Ainda  que  reconheçamos  que  por  ele  
não   ter   se   adptado   da   maneira   ideal   “abriu   espaço”   para   expressões   como   o  
Neopentecostalismo   o   qual   é   a   “cara   do   Brasil”,   o   movimento   protestante   conseguiu   se  
inserir  no  Brasil  e  se  tornar  um  movimento  legitimamente  nacional.  
  36  

O Puritanismo, não obstante constituir, em alguns aspectos, uma distorção do


Calvinismo – particularmente no ascetismo da vida cotidiana e na concepção da
economia que veio a desenvolver-se posteriormente - foi uma força
extraordinária que atuou singularmente na formação da grande nação do Norte
(Lalli, 01).

Em seu livro O Paraíso Protestante, Jorge Pinheiro faz uma leitura muito
rica da chegada do jovem Jean de Léry ao Brasil. Pinheiro nos conduz ao
entendimento de que Léry representava o pensamento de sua época e local:

O calvinismo não se dava simplesmente como processo de adequação da


mente de Léry ao novo que lhe era apresentado. Impunha o processo
cognoscitivo que este novo tivesse uma leitura ideológica: uma relação em que
Léry operasse como portador da utopia e o novo como ideologia. O calvinismo
do jovem huguenote não se processava entre realidades a-históricas, mas em
relação especial e temporal, exigindo que a interação entre ele e a realidade se
estruturasse em algo maior, alguma coisa além de ambos, não casual, mas
essencial (Pinheiro, 2013, 44).

A partir das palavras de Jorge Pinheiro entende-se que o calvinismo não


era uma realidade estanque e impermeável. Jean de Léry chega ao Brasil não
apenas com um projeto civilizador13 , mas também, como um admirador das
belezas e do povo Brasileiro (os tupinambás) enquanto “palco da glória de
Deus”.
Sendo assim, estas “denominações” protestantes que chegaram ao Brasil
se caracterizam pela forte valorização na conversão individual, no estudo da
Bíblia Sagrada e pela influência na sociedade agindo na cultura, na saúde, na
política etc.
Não obstante esta verdade acerca do Calvinismo, o protestantismo que
se formou no Brasil adquiriu contornos mais fundamentalistas e “castradores”
em função de muitas das denominações terem vindo para o Brasil desde os
Estados Unidos da região Sul do país, onde uma forte influência pietista-
fundamentalista estava em franco desenvolvimento:

                                                                                                               
13
Chamado de França Antártica.
  37  

Parte significativa do conjunto da obra de Mendonça permite, por exemplo,


compreender as origens puritanas do Protestantismo brasileiro. Puritanismo
europeu que sofreu uma acomodação decisiva nos Estados Unidos e de lá veio
para cá por meio das missões principalmente. Àquelas origens puritanas foram
acrescentadas outras tendências, vindas de fora ou desenvolvidas aqui, ao
longo das décadas da presença protestante no Brasil (Campos, 2013, 198).

É bem verdade que assim que os Congregacionais e Presbiterianos


chegaram ao Brasil eles conseguiram desenvolver uma comunicação aberta
com a sociedade da época. Até porque muitos dos pastores destas
denominações eram intelectuais e possuíam formação nas chamadas ciências
humanas.
No entanto, por causa das idas e vindas de vários líderes e ênfases
teológico-doutrinárias, o protestantismo brasileiro foi ganhando um viés mais
obscurantista no que diz respeito à possibilidade de se pensar de maneira
diferente:

Na mesma linha de afirmação de que o protestantismo brasileiro (o de missão)


nunca ofereceu espaço para o pensamento teológico livre, outro autor que
interessa ser resgatado aqui é Rubem Alves. Cerca de trinta anos depois de
haver publicado o livro Protestantismo e repressão, o autor relançou a mesma
obra com o título modificado (e ampliado em sua abrangência): Religião e
repressão.
É de Rubem Alves a seguinte afirmação: “A revelação já tem o conhecimento
que a ciência ainda procura”. Revelação e ciência são, pela lógica daquele
Protestantismo puritano e da Reta Doutrina (que pode servir de comparação
com outros modelos religiosos que aprisionam mentes e corpos), realidades que
ocupam posições diferentes e hierárquicas, ou seja, a revelação é superior e
ocupa um plano inatingível pela ciência (Ibid, 199).

Antônio Gouveia Mendonça conclui a sua reflexão sobre o perfil do


protestantismo brasileiro e diz:

Os missionários, tanto pregadores como educadores, embora academicamente


preparados nos seminários e universidades, foram, como já dito, produto dos
movimentos de avivamento. Assim sendo, a teologia que eles trouxeram para o
culto no Brasil não foi acadêmica, mas a teologia das suas formas de crença, no
seu conjunto a teologia dos avivamentos, à qual, diversas tradições haviam se
esforçado para encontrar meios de ajustamento. De modo que a teologia dos
púlpitos e do culto em geral não foi a dos seminários e academias. Essa mesma
defasagem ocorreu no Brasil quando os presbiterianos começaram a formar os
seus pastores em seminários. As complicações da teologia não eram levadas
  38  

para o púlpito. O púlpito desempenhou no Brasil um triplo papel: o de polemizar


contra a Igreja Católica, o de infundir moral e o da explanação bíblica (Ibid, 308).

3.3 - O Protestantismo da Reta Doutrina

A expressão Reta Doutrina foi cunhada por Rubem Alves para se referir a
um seguimento do protestantismo. Assim ele diz na introdução do seu livro
“Religião e repressão”:

As investigações a que dei o nome de Protestantismo e repressão foram


provocadas pelo comportamento rigorosamente conservador de um certo tipo de
protestantismo brasileiro. O comportamento conservador aí se manifesta em
dois níveis distintos e complementares.
O primeiro deles é definido pelos limites da instituição religiosa. Expressa-se
internamente pela resistência a qualquer tentativa de inovação, resistência esta
que se legitima pela sacralização das formas de pensamento e comportamento
herdadas do passado e que se torna efetiva pelo estabelecimento de
mecanismos institucionais de controle que se encarregam de eliminar as formas
desviantes de pensamento e comportamento. O segundo nível do
comportamento conservador já não é mais interno à instituição. Tem a ver com a
relação entre a instituição e seus fiéis, de um lado, e a realidade política, de
outro, expressando-se pela legitimação das condições dominantes de poder,
que são assim sacralizadas, e pela ausência de qualquer crítica de tipo
profético.
A análise que se segue pretende elucidar os elementos que, no nível ideológico,
contribuem para o comportamento conservador do tipo de protestantismo que
analisamos. Os materiais empíricos de que fazemos uso não nos permitem fazer
extrapolações além do tipo em questão, que denominamos de Protestantismo de
Reta Doutrina. Nossas conclusões, entretanto, podem servir de hipótese incial
de investigação dos outros protestantismos, porque eles também têm exibido um
comportamento conservador (Alves, 2005, 15 e 17).

Rubem Alves, ex-pastor presbiteriano que, por conta de seu pensamento


progressista, sofreu perseguição no seio da denominação sendo, inclusive,
entregue por seus colegas em razão de sua simpatia com o comunismo no
período da Ditadura Militar no Brasil. Por isso ele desenvolveu uma profunda
tristeza pelo movimento protestante:

Os imprevistos de minha biografia fizeram com que eu me interessasse


profundamente pelo protestantismo. Interesse ambivalente, carcterizado por
uma mistura de ódio e amor (Ibid, 19).
  39  

Não obstante, o que chama a atenção é o fato de Alves não generalizar, a


priori, todo o espectro do protestantismo brasileiro como sendo da Reta
Doutrina. Ele afirma que o seu objeto principal de pesquisa é a Igreja
Presbiteriana do Brasil. Mas, ainda assim, tenta “enquadrar” todas as
denominações protestantes no mesmo perfil afirmando que a sua teoria pode
ser aplicada de igual modo:

Já dissemos que o nosso propósito é levar a cabo uma análise do


protestantismo. Com isto indicamos uma direção, mas não definimos um objeto.
E isto porque este termo, geral e abrangente, não se refere a algo claramente
delimitado. A história coloca à nossa frente uma pluralidade de protestantismos.
E não vejo uma forma de reduzi-los a um denominador comum. Temos de nos
lembrar que este termo se cristalizou na interioridade de um discurso polêmico.

Retirado do seu uso polêmico, a unidade que o termo protestantismo sugere se


dissolve numa multiplicidade de oposições. Aí estão as denominações
protestantes. As oposições entre elas não são superficiais. Por isto, parece-me
que o termo protestantismo não pode ser usado como um conceito científico, por
não se referir de forma unívoca a um objeto determinado que exibe constantes
de comportamento.

Não posso, portanto, falar sobre o protestantismo em geral. É necessário, a fim


de se atingir a precisão desejada, elaborar uma classificação do mesmo em
termos de tipos. E aqui parece que a história vem nos ajudar. Ela já nos oferece
uma tipologia pronta, cristalizada em organizações institucionais: as
denominações. A adoção de uma tipologia histórica em muito simplificaria o
nosso trabalho. Ela nos permitiria apontar para unidades sociais específicas,
claramente delimitadas no tempo, no espaço e, frequentemente, em termos de
classes sociais. Não nos caberia construir os tipos, mas simplesmente recolher e
empregar aqueles que a história colocou à nossa frente. Tomaríamos então as
denominações, objetos distintos e definidos, como ponto de partida para o nosso
trabalho de análise e explicação. Teríamos, então, o luteranismo, o calvinismo
ou presbiterianismo, o congregacionalismo, e assim por diante (Ibid, 33-34).

Se - perguntar ao “filósofo da religião”, Rubem Alves, o que seria o todo


do protestantismo brasileiro, ele responderia: De Reta Doutrina. Mas, o “cientista
da religião”, Rubem Alves, responderia: Diversificado.

Certamente Alves sabia muito bem da responsabilidade que seria afirmar


que todo o espectro do protestantismo de sua época se encaixava em seu tipo
ideal.
  40  

Há que se concordar com o autor quando ele diz que não existe um olhar
completamente neutro ou desisteressado por seu objeto de pesquisa. É como se
todo ser fosse tomado por uma “paixão” avassaladora pelo objeto a ponto de
“roubar” noites de sono. No entanto, esta mesma paixão/sentimento impediu
Rubem Alves de olhar de maneira abrangente para o protestantismo.
Provavelmente por isso tenha pairado na mente dos acadêmicos a ideia de que
todo o espectro do protestantismo seja de Reta Doutrina:

Não creio que uma ciência sem emoção seja possível. É a relação afetiva para
com um objeto, que me atrai ou ameaça, que cria as condições para a
concentração de minha atenção. O objeto que provocou meu interesse se torna
o ponto focal de meus olhos e inteligência, enquanto o resto do mundo passa a
ter importância secundária. Foi a emoção que fez com que o objeto se
constituísse, em meio à multiplicidade indefinida de objetos possíveis, como o
objeto do meu conhecimento (Ibid, 20).

Alves direciona-se agora para definir o que seja, de fato, a sua construção
ideal: Protestantismo de Reta Doutrina. Ele dirá que podem existir três
segmentos dentro do espectro protestante brasileiro: Reta Doutrina, Sacramento
e o do Espírito; tendo, porém, a Reta Doutrina como a melhor forma de explicar
o protestantismo brasileiro:

É possível estabelecer pelo menos três tipos ideais no protestantismo:

1) O Protestantismo da Reta Doutrina (que indicarei, de forma abreviada, no


transcurso deste trabalho, como PRD), e que se caracteriza com uma série
de formulações doutrinárias, tidas como expressões da verdade, e que
devem ser afirmadas, sem nenhuma sombra de dúvida, como condição para
participação na comunidade eclesial.
2) O protestantismo do sacramento, para o qual a confissão da reta doutrina é
de importância secundária, quando comparada com a participação
emocional e mística na liturgia e nos sacramentos.
3) O protestantismo do espírito, para o qual a marca distintiva da participação
na comunidade eclesial não é nem a reta doutrina nem a participação nos
sacramentos, mas uma experiência subjetiva de êxtase intenso (Ibid, 43-44).

Deste modo, a Reta Doutrina se explica como sendo uma maneira dos
fiéis pensarem doutrinariamente de maneira inequívoca e absolutamente dentro
dos parâmetros das confissões de fé do protestantismo.
  41  

Portanto, de acordo com Alves, o crente “fiel” é aquele que explica a sua
fé de maneira racional e previsível, porquanto ele precisará repetir o que já
consta nas “cartilhas” doutrinárias da igreja.

É importante, no entanto, destacarmos que Rubem Alves acredita que o


protestantismo se deturpa de seus ideais primeiros ao chegar ao Brasil
envernizado pela cultura protestante norte-americana, ou seja, que talvez alguns
segmentos do protestantismo brasileiro tenham perdido de vista a sua razão de
ser:

Que o protestantismo tenha sido no seu momento carismático fundador, original,


a explosão de um grito reprimido de liberdade, parece-me um fato que não pode
ser negado. O problema é se, no seu desenvolvimento histórico, o
protestantismo preservou a sua visão inicial.

A ideologia protestante responde de forma afirmativa. E o faz apontando para as


conexões do protestantismo com a democracia e a modernidade. A obra de Karl
Holl, O siginificado cultural da reforma, constitui um dos maiores esforços para
consubstanciar tal tese. Seja na esfera da religião e da vida secular, seja por
seus efeitos sobre a política e a vida econômica, seja por sua contribuição na
educação, na filosofia, na poesia e na arte, Holl conclui que a Reforma significou
uma ruptura radical com a ordem de coisas ligadas à civilização medieval e ao
catolicismo e lançou as sementes donde iriam brotar as mais altas criações de
nossa era (Ibid, 52).

Isso dá indicações, a partir das palavras do filósofo, que o protestantismo


traga consigo intensões de liberdade. Ele tem uma proposta de vida para ser
vivenciada no mundo da vida e não nos guetos da igreja. Então, é possível que
existam focos no Brasil de hoje de igrejas protestantes se fazendo valer dos
seus ideais primeiros de vida.
  42  

4 – Um novo jeito de ser protestante no Brasil: Protestantismo de


Experiência Racional

Este capítulo é, na verdade, o mais importante deste trabalho, uma vez


que, falar de algo novo é como se estivéssemos pisando em um terreno
movediço. Ainda mais quando as pesquisas mostram que não existe algo “novo”
no protestantismo porquanto ele não teve um expressivo crescimento nos
últimos anos.
No entanto, cabe aqui o mesmo argumento de Marcelo Ayres Camurça,
quando diz que, por falta de um melhor critério de análise, o CENSO tem
afirmado o declínio do catolicismo no Brasil. Ele pontua que o IBGE não tem
olhado para o crescimento do movimento carismático católico e das
comunidades alternativas, as quais vêm apresentando um crescimento
impressionante. Estas, inclusive, têm sido uma forma de atrair um grande
número de jovens. Nas palavras dele:

Em minha opinião, fica aqui um desafio para futuras pesquisas, para que estas
indiquem, dentro do universo católico, algo semelhante ao que foi feito com o
meio evangélico, que detectou em seu seio quem eram os evangélicos
tradicionais, os pentecostais ou os evangélicos em geral. No caso católico seria
revelador de suas dinâmicas indicar internamente qual o percentual de
“carismáticos”, “paroquianos”, das “CEBs”, das “Novas Comunidades” para se
detectar onde precisamente o catolicismo está diminuindo. Porém, gostaria de
sugerir, à guisa de hipótese, que, se esses movimentos
carismáticos/performáticos/midiáticos/consumistas não tivessem se constituído
dentro do catolicismo brasileiro, a sua queda teria sido ainda mais vertiginosa
(Camurça, 2013, 74-75).

Da mesma maneira o CENSO vem afirmando que o protestantismo


histórico tem “estacionado” o seu crescimento no Brasil. À guisa do arrazoado
de Camurça, pode-se afirmar que no “interior” do protestantismo também
existem focos de crescimento e atração de jovens. É como se fosse um grupo
“subversivo” inserido no segmento protestante brasileiro. Ainda que Camurça
tenha afirmado que o CENSO vem conseguindo identificar as várias frações
dentro do campo evangélico brasileiro, tem-se percebido que os instrumentos de
  43  

análise não tem conseguido mapear que dentro do próprio protestantismo tem
surgido várias maneiras de se viver/praticar este ramo do cristianismo no Brasil.
Leonildo Campos, falando da dificuldade que o IBGE encontra de
classificar com mais precisão os focos de crescimento, observa:

Há várias dificuldades envolvendo essa tarefa. Algumas delas foram


mencionadas por Cesar Romero Jacob, para quem não há como negar a
existência de uma crescente complexidade no campo religioso brasileiro; uma
pluralização e uma diversidade cada vez maior; todas elas características nem
sempre possíveis de identificação quando se usa somente metodologias
quantitativas de abordagem do fenômeno religioso. Há processo dinâmico e
contínuo de pluralização e de diversidade que exige uma atenção especial dos
analistas. Nesse contexto, cada unidade se torna portadora de sua própria
complexidade (Campos, 129).

Ele ainda sublinha:

Há que se destacar também o trânsito que ganha crescente velocidade entre


movimentos, organizações, grupos e denominações religiosos, provocando o
aparecimento de novos atores, tais como os caracterizados por Daniele Herviu-
Léger “convertido” e “peregrino”. Como nomear identidades e crenças em ritmo
de “despedaçamento” e de “desregulação”, quando já se pode falar em “fim das
identidades religiosas herdadas”? (Ibid, 129).

A partir das palavras de Leonildo é possível afirmar que o fenômeno


religioso é muito mais complexo do que o IBGE consegue dar conta. A religião é
muita mais fluida e mutável do que se queira admitir:

Coletar adequadamente dados acerca da adesão religiosa da população não é


tarefa fácil e requer uma complexa engenharia de classificação dos grupos
religiosos, num cenário sabidamente de grande fragmentação.
Quantificação deve permitir obter uma medida fiel, discriminante e válida. Uma
medida fiel é a que permanece constante quando é medida em condições
constantes (Ibid, 130-131).

Na verdade, não se pode mais conceber religiões estáticas em ambientes


como as cidades. Tudo na sociedade muda em uma velocidade impressionante.
A religião, portanto, como um “elemento” da sociedade sofre mutações
constantes a ponto do IBGE não conseguir acompanhar e explicar. Somado a
este fator é fundamental também se destacar o jeito adaptável do protestantismo
  44  

ser. Uma vez que ele é bem menos “rígido” que o catolicismo ele vai se
adequando as exigências do mundo pluralizado e cambiante de nossas cidades.
E, possivelmente, este novo jeito de ser protesnte no Brasil tenha percebido este
aspecto mutante das cidades.
A socióloga Danièle Léger nos auxilia no sentido de elucidar o perfil do
novo religioso dos centros urbanos por meio de seu livro “O peregrino e o
Convertido: A religião em movimento”:

O peregrino emerge como uma figura típica do religioso em movimento, em


duplo sentido. Inicialmente ele remete, de maneira metafórica, à fluência dos
percursos espirituais individuais, percursos que podem, em certas condições,
organizar-se como trajetórias de identificação religiosa. Em seguida,
correspondente a uma forma de solidariedade religiosa em plena expansão que
se estabelece, ela mesma, sob o signo da mobilidade e da associação
temporária.
A condição moderna se caracteriza, como já dissemos, pelo imperativo que se
impõe ao indivíduo de produzir ele mesmo as significações de sua própria
existência através da diversidade das situações que experimenta, em função de
seus próprios recursos e disposições (Léger, 2008, 89).

Léger expõe a figura dos “andantes da fé” por meio da metáfora do


peregrino. Ou seja, este sujeito religioso que está, ele mesmo, construindo a sua
identidade religiosa uma vez que a modernidade14 a dissolveu.
No entanto, a mesma modernidade que lança os indivíduos para o interior
de sua subjetividade, desperta-lhes o desejo de se identificarem com uma
comunidade de “fé”. Estas são algumas das ambivalências da modernidade.
O novo jeito de ser protestante no Brasil parece interagir melhor com esta
ambivalência. As igrejas/comunidades que representam este fenômeno
conseguem gerar compromisso com o fiel, mas também, a liberdade necessária
para que eles “construam” o seu modo de ser. É importante lembrar que este
protestantismo é menos dogmático do que aquele desenhado por Rubem Alves

                                                                                                               
14  Qualificar por meio de nomes: moderno, pós moderno, hiper moderno, modernidade líquida,
os diversos momentos do pensamento é uma atividade difícil. Portanto, consciente desta tensão
este texto optou pela expressão modernidade para se referir a um momento de ambivalência no
qual os indivíduos estão submetidos.
  45  

por meio de seu tipo ideal: Protestantismo de Reta Doutrina. Danièle Léger
completa:

Por isso, ele deve interpretar essa sucessão de experiências contraditórias como
um caminho que tem um sentido. Isto implica particularmente que ele consiga
reconstruir sua própria trajetória pela meditação de um relato. Ora a “condição
de peregrino” se define essencialmente a partir desse trabalho de construção
biográfica – mais ou menos elaborada, mais ou menos sistematizada – efetuada
pelo próprio indivíduo. Esta construção narrativa de si mesmo é a trama das
trajetórias de identificação percorridas pelos indivíduos. Existe formação de uma
identidade religiosa quando a construção biográfica subjetiva se encontra com a
objetividade de uma linhagem de crença, encarnada em uma comunidade na
qual o indivíduo se reconhece. Esclareçamos, imediatamente, que essa
referência nem sempre implica a adesão completa a uma doutrina religiosa,
tampouco a incorporação definitiva em uma comunidade, sob o controle de uma
instituição que fixa as condições da pertença (Ibid, 89).

Para que se torne mais tranquilo perceber este novo fenômeno do


protestantismo brasileiro, o próximo capítulo trará um estudo de caso sobre duas
igrejas, uma batista e outra presbiteriana, que servirão de concretização dessas
percepções.
  46  

4.1 – Pierre Bourdieu e o novo jeito de ser protestante no Brasil

Conforme abordado no capítulo I, Pierre Bourdieu traz uma grande


contribuição à compreenssão do fenômeno religioso, em especial, por meio dos
conceitos de Campos.
Aplicando ao nosso estudo de maneira específica, podemos afirmar que
nos últimos 40 anos vêm se formando no Brasil um sub-campo simbólico dentro
do Campo Religioso Protestante em função das tensões entre Denominação e
Igrejas Locais. Este sub-campo traz consigo continuidades e descontinuidades
com relação ao protestantismo clássico instalado há 150 anos em nosso País.
Então, este sub-campo é gerador de novos habitus (jeito de ver o mundo
e agir a partir disso) e formador de um novo jeito de ser protestante.
Cabe agora a observação das duas igrejas protestantes históricas,
objetos mais concretos deste estudo, as quais fazem parte deste novo jeito de
ser protestante no Brasil. Mas também cabe dizer que estes são alguns dos
tantos outros novos jeitos de ser protestante no Brasil.

4.2 - A Igreja Batista do Morumbi

A fim de se fazer um estudo de caso da Igreja Batista do Morumbi faz-se


necessário um trabalho por meio de uma periodização. Ou seja, a demarcação
do tempo cronológico objetivando compreender melhor tal organização.
Escrevendo sobre as Assembleias de Deus no Brasil, o Cientista da Religião
Gedeon Freire de Alencar, afirma o seguinte sobre a periodização:

A periodização é válida e se justifica, mas não é fixa e absoluta. Aqui é usada


como recurso didático; a delimitação do tempo cronológico viabiliza melhor o
entendimento dos processos, mas em hipótese nenhuma com a pretensão de
pensar a história assembleiana em uma cronologia natural, fechada e contínua;
de forma positivista. Conquanto a tese possa analisar cronologicamente o
desenvolvimento histórico assembleiano, também vai diacronicamente relacionar
aspectos 102 dessa igreja em suas idas e vindas com a história do país
(Alencar, 52).
  47  

Como tudo começou

A título de maior precisão periódica, os anos compreendidos entre 1985 e


2000 é que serão considerados.

A Igreja Batista do Morumbi nasceu do desejo de Ary Velloso 15 de


“alcançar para Cristo” pessoas da classe média e media alta de São Paulo.
Assim está escrito pelo próprio Ary no site da igreja:

Na sala do Ary e da Carolina, num sobrado modesto, perto da Av. Santo Amaro
em São Paulo, nasceu um grupo de estudo bíblico em 1.978. O Casal já tinha
em vista a formação de uma igreja que se preocupasse em alcançar a classe
média e média alta, sem jamais negligenciar o pobre e necessitado. Na primeira
reunião, estavam cinco pessoas, incluindo o casal. Pouco a pouco, o trabalho
cresceu e uma casa foi alugada, já recebendo, pela fé, o nome de Congregação
Batista do Morumbi, embora estivéssemos em Santo Amaro. Da casa,
passaram a se reunir no Novotel, já no Morumbi. No primeiro domingo de março
de 1.980, nossa congregação tornou-se Igreja, com 54 (cinquenta e quatro)
membros, pregando na ocasião o Dr. Russel Shedd. Sendo o Novotel um lugar
neutro, era mais fácil para o visitante chegar. E o trabalho cresceu. O Salão do
Novotel tinha apenas 240m2, por isso tornou-se necessária a realização de dois
cultos pela manhã e dois à noite. Do salão, fomos para a garagem; da garagem,
para diferentes escolas e, depois, para nossa propriedade atual. De um
pequeno grupo de cinco pessoas, Deus nos fez, hoje, uma Igreja com mais de
2.000 pessoas. Queremos convidá-lo a ser parte do que Deus está fazendo
através de nós: invadir o terreno do inimigo com o evangelho transformador de
Deus.

Ary Velloso, o seu fundador, tinha em mente um propósito muito claro: ser
uma igreja diferente para alcancar o que, na época, seria impenssado para o
setor evangélico de missão brasileiro.

                                                                                                               
15  Filho de um militar, nasceu na mineira Congonhas do Campo e cresceu em Belo Horizonte.
Mudou-se para São Paulo para estudar. Na PUC, formou-se em letras. O mestrado em teologia
ele fez nos EUA no Dallas Theological Seminary.
  48  

Logo após o seu falecimento, a Folha de São Paulo 16 publicou uma


matéria com o título “Ary Velloso da Silva (1935-2012) - Pastor que mudou o
jeito de pregar”. Ainda nesta reportagem, Lisanias Moura, Pastor Sênior da
Igreja Batista do Morumbi e successor de Ary Veloso, sublinhou:

Segundo o pastor Lisânias Moura, o amigo modificou a forma dos cultos,


tornando-os informais (sem a necessidade de paletó e gravata). Usava músicas
e contava piadas palmeirenses, sempre tirava sarro do Corinthians

A IBM começou como uma congregação da Igreja Batista Peniel até se


tornar igreja autônoma desde o Dia 01 de Março de 1980. Assim está escrito na
primeira ata da igreja:

Ata da sessão solene, da organização em igreja, da congregação da Igreja


Batista Peniel, no bairro do Morumbi, realizada no dia 01 de Março de 1980, no
salão de Convenções do Novotel São Paulo, à rua Ministro Nelson Hungria, 450,
Morumbi, São Paulo, Capital.

Com um jeito de ser informal e, por vezes, irreverente, Velloso começou a


construção do que seria o primeiro e único, até hoje, campus da Igreja Batista do
Morumbi localizado à Rua Carvalho de Freitas, 1076, no bairro do Morumbi. Ao
contrário da maioria dos templos evangélicos, Ary construiu uma espécie de
quadra poliesportiva onde, aos domingos, seriam celebrados os cultos, mas
durante a semana, o espaço seria usado para a prática de esportes,
notadamente, o futebol. Conforme visto neste trabalho o protestantismo que se
implantou no Brasil ganhou contornos de moralismo. Então, não se imaginaria
na década de 1980 um pastor batista pregando em um púlpito de igreja sem
gravata e contando piadas sobre disputas entre times de futebol.
A Igreja Batista do Morumbi começou a atrair pessoas da elite de São
Paulo. Mas, além disso, pessoas que já faziam parte de outras igrejas
configurando, assim, uma espécie de trânsito religioso.
É interessante observar que a IBM nasce como um movimento religioso.
Ela consegue diminuir ao máximo possível as tensões com a sociedade em

                                                                                                               
16
http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano
  49  

geral fazendo das práticas litúrgicas, elementos culturais “comuns” às pessoas


de fora da igreja. Ou seja, ela conseguiu se adequar à cultura da época a ponto
de gravar um LP de músicas cristãs embaladas por Bossa Nova e Música
Popular Brasileira:

Johnson postulou uma dimensão subjacente do grau de tensão entre uma


organização religiosa e seu ambiente sociocultural. Quanto maior a tensão, mais
ela adquire os aspectos de seita. Quanto menor a tensão, mais o corpo religioso
adquire os aspectos de igreja. Tensão equivale a um vasto desvio subcultural. O
grupo de alta tensão é diferente do padrão sociocultural, mutuamente
antagonista em direção aos grupos dominantes que estabelecem tais padrões e
socialmente separado deles (Stark e Bainbridge, 156).

É possível afirmar a partir destas palavras que a sociedade se sentirá


atraída por uma religião onde não será necessário transpor muitas barreiras
culturais. Ou seja, - uma igreja onde o pastor prega com roupas normais (sem
terno e gravata, que são roupas típicas dos pastores protestantes), fala uma
linguagem que todos entendem e a música é bem feita e natural aos ouvidos,
notadamente fará com que as pessoas se sintam atraídas.
A IBM nasceu com pouca tensão com a sociedade em geral, mas com
alta tensão com a denominação batista. Para as igrejas com perfil mais
institucionalizado a IBM assumiu um caráter de movimento desviante. Para
muitos seria mais uma “moda” evangélica que logo passaria.

4.3 - A Comunidade Presbiteriana Chácara Primavera

É curioso o fato de que as duas igrejas que sevem como estudo de caso
para este trabalho tenham sido fundadas para fazerem frente ao jeito mais
“engessado” de ser protestante. Somado a isso, a força e convicção dos líderes
fundadores também chamam a atenção.
  50  

Como tudo começou

A título de maior precisão periódica, os anos compreendidos entre 2004 e


2006 é que serão considerados.

Esta é a meneira como Ricardo Agreste17 se expressa ao falar sobre a


história da Comunidade Presbiteriana Chácara Primavera:

Em 1997, após dois anos fora do país, retornei para morar na cidade de
Campinas e atuar como professor no Seminário Presbiteriano do Sul. Foi ali que
conheci a professora Ana Maria Coelho Rocha quem, em maio daquele mesmo
ano, me convidou para iniciar um grupo de estudo bíblico em sua casa na região
de Gramado. Ao longo dos três anos seguintes, vi muita coisa acontecer na vida
das pessoas que por ali passavam. Enquanto procurava ensinar a Bíblia com
integridade e relevância àquelas pessoas, vidas se aproximavam de Deus e se
rendiam ao Seu amor. Outros, depois de distantes e feridos, retornavam aos
braços do Pai envolvidos por Sua graça. Assim, o grupo crescia de forma
espontânea. Numa tarde de Agosto de 2000, fui surpreendido com a visita do Pr.
Ivan (então pastor da Igreja Presbiteriana Ebenézer). Ele veio ao meu escritório
para me desafiar a pensar na possibilidade de, junto com um casal de sua igreja
(Sylvia e Ralph Heinrich) iniciar uma nova comunidade cristã na cidade. Na
semana seguinte fui visitar aquele casal e, imediatamente, comecei a sonhar.
Um grande encontro estava sendo promovido por Deus. De um lado, o que Ele
vinha fazendo naquele grupo de estudo bíblico na região de Gramado. Do outro,
o que Ele estava colocando no coração do casal Sylvia e Ralph Heinrich, bem
como a disposição de sua igreja local.Tinhamos o sonho, mas não os recursos.
Mas muito antes que eu pudesse imaginar, Deus levantou parceiros para que
este sonho se tornasse realidade. A Fundação Grão de Mostarda e a Redeemer
Presbyterian Church se prontificaram a nos apoiar parcialmente ao longo de três
anos para que este projeto fosse consolidado. Assim, no segundo domingo de
Janeiro de 2001, realizamos o nosso primeiro encontro com aproximadamente
15 pessoas na residência do Ralph e Sylvia. Em Fevereiro nos deslocamos para
um salão do consultório médico do Dr. Afonso Celso, pois nosso grupo já tinha
crescido para 25 pessoas. No primeiro domingo de março nos mudamos mais
uma vez. Com aproximadamente 40 pessoas, realizamos nossa primeira reunião
no Buffet Metropolitan, momento que se tornaria o marco de nascimento de
nossa comunidade.Três anos mais tarde, com aproximadamente 300 pessoas
em suas reuniões aos domingos, diversos grupos de estudos pela cidade e
várias frentes de atuação como o Instituto Renovo e a Comunidade
Presbiteriana de Vinhedo, a Chácara Primavera foi organizada como igreja
tendo a clara consciência de sua vocação histórica em ser um espaço no qual a
vida com Jesus seja sempre apresentada de forma criativa, acolhedora e
transformadora.

                                                                                                               
17  Natural de São Paulo. Graduado em Teologia e Filosofia, é mestre em Missões Urbanas pelo
Calvin Theological Seminary (MI, EUA).
  51  

Desde o seu nascimento a CPCP vem trilhando um caminho diferente


daquele que as igrejas ligadas à Demoninação da Igreja Presbiteriana do Brasil
têm feito.

A igreja vem se caracterizando nestes últimos anos por um jeito de ser


que seja o mais próximo possível da cultura brasileira e da classe média alta.

4.4 - Dois elementos fundamentais para o Novo jeito de ser Protestante no


Brasil: A pregação e a música

A maneira como o Protestantismo do século XVI e, por conseguinte, o


Protestantismo brasileiro, propiciou o distanciamento da forma ritualista da Igreja
Católica Romana tem sua explicação na pregação e na música. Isto é, o
protestantismo é uma religião “pensada” e “cantada”.

Para Antônio Gouveia de Mendonça, o Protestantismo brasileiro se


empobreceu por ter perdido a sua forma barroca de arte a qual se caracterizou
nos primórdios o movimento na Europa. Ele diz que, talvez, o protestantismo
tenha perdido a sua “essência” enquanto um movimento das elites.

No entanto, esta talvez seja exatamente uma característica peculiar do


Protestantismo: Adequar-se ao momento cultural para não correr o perigo de
morrer:

No Renascimento, a pintura recontou o mito nas abóbadas das catedrais, por


falta de espaço nas paredes ocupadas pelas janelas e nichos santoriais. A
música religiosa desenvolveu-se muito, especialmente no século XVII, sob a
inspiração da Reforma do século XVI. A música desse período é sobretudo
protestante, a única forma de arte que lhe restou quando os Reformadores
baniram toda expressão material do reconto do mito, como a pintura e a
escultura. Restou-lhe tão somente a expressão “espiritual” da música e da
poesia, e esta quase que exclusivamente acoplada àquela. Desde os
reformadores Lutero e Calvino, passando pelos grandes compositors como Bach
e Handel até os simples hinistas, os templos protestantes transformaram-se em
espaços musicais. A fé sempre foi essencialmente expressa pela música. A
pregação, considerada como ponto alto da Reforma enquanto reatualização da
Palavra, só ganhou, de fato, relevância na voz dos grandes pregadores. O
relevo dos grandes pregadores nem sempre esteve no poder lógico do discurso,
mas na arte oratória capaz de evocar emoções (Mendonça APUD Teixeira, 132-
  52  

133).

O novo jeito de ser protestante no Brasil absorveu a cultura de massa


para que pudesse se comunicar. Por isso, ainda que a pregação e a música
persistam como elementos centrais da liturgia, são pensadas e repensadas
constantemente as formas de se expressar estes dois elementos.

Pensando em adequar o texto das Escrituras Sagradas à música da


época, a Igreja Batista do Morumbi, na década de 1980, iniciou uma nova cultura
que iria influenciar o jeito de cantar as músicas evangélicas dentro das igrejas.
Por meio dos CDS: De Vento em Popa, Missões e Adoração, Vento Livre e
outros, compositores como: Jorge Camargo, Guilherme Kerr, João Alexandre e
Nelson Bomilcar passaram a ultizar a Bossa Nova como estilo musical para as
suas composições.

Magali do Nascimento Cunha refletindo sobre o tema da música gospel


nesta época, sublinha:

O grupo que mais se destacou no período foi o Vencedores por Cristo, fundado
pelo pastor estadunidense Jaime Kemp, que atuava no Brasil pela Sepal. O
modelo inicinal era o de formar equipes de música durante o período de férias
escolares e percorrer o País com apresentação em todo tipo de espaço. Depois
da experiência evangelística, os jovens voltavam para suas igrejas de origem e
estruturavam o seu repertório musical ou repassavam as canções para grupos já
existentes. O conjunto, cuja atividade cresceu a ponto de transformar-se na
Missão Vencedores por Cristo, ainda existe, e tornou-se marcadamente
conhecido no meio protestante por suas composições características por força e
inovadora na inserção de ritmos brasileiros como a bossa-nova e o baião
(Cunha, 2007, 75).

Jaime Kemp, fundador da Missão Vencedores por Cristo, era membro da


Igreja Batista do Morumbi e, por conseguinte, amigo pessoal de Ary Veloso.
Portanto, muitos dos jovens que faziam parte do VPC (Vencedores por Cristo)
eram também membros da IBM. Sendo asim, a igreja estava no centro de tais
inovações musicais que aconteceram no Brasil na década de 1980 servindo
como mola propulsora da quebra de paradigmas na musicalidade evangélica da
  53  

época:

Uma consequência deste processo vivenciado nos anos 70 foi a consolidação


dos conjuntos jovens como modelo de participação da juventude nas igrejas
locais – era raro encontrar uma igreja evangélica que não o possuísse, e muitas
possíam mais de um (Ibid, 75).

É por isso que ainda hoje a Igreja Batista do Morumbi e a Comunidade


Presbiteriana Chácara Primavera arrancam suspiros de desconfiança por parte
das Denominações bem como de outras igrejas locais. Para este novo jeito de
ser protestante o menos importante é a forma com que estes dois atos litúrgicos
são praticados. Prima-se pela qualidade com que se prega e se canta. Por isso
a quase profissionalização das “bandas de louvor” e as técnicas de comunicação
aguçadas dos pregadores.

4.5 - Influência vinda de fora

Como tem sido exposto até aqui neste trabalho, este novo jeito de ser
protestante se caracteriza por igrejas de médio e grande porte e que existem por
si mesmas; ou seja, não dependem diretamente das Denominações.

Este modelo pode ser novo no Brasil, mas não é um fenômeno recente
nos Estados Unidos. Lá, as grandes comunidades protestantes vêm
desenvolvendo este jeito de ser há bastante tempo. Este modelo, de acordo com
o teólogo Alister McGrath, é o que mais se compatibiliza com o mundo fluido e
anti-institucional de hoje:

As limitações da denominação tradicional foram sentidas por alguns no final da


década de 1950. Alguns empreendedores firmemente protestantes ficaram cada
vez mais frustrados com a inércia institucional das estruturas denominacionais,
que lhes pareciam cada vez mais ser uma burocracia insensível que não estava
interessada nas iniciativas ou inovações locais.

Então, por que não se libertar desse controle denominacional e estabelecer


congegações receptivas a novas formas de incorporar o protestantismo?

O fenômeno da “comunidade igreja” permite que empreendedores desenvolvam


seus dons de forma que seriam impossíveis na estrutura confinada e restritiva
da maioria das denominações tradicionais. Essas igrejas são muitíssimo
sensíveis às necessidades de suas comunidades locais, e sua base local e
conhecimento da área determinam as estratégias e os programas. Muitas
“igrejas-comunidade” são não denominacionais e evitam os labirintos bizantinos
  54  

das políticas eclesiásticas. Elas consideram que existem principalmente para


seus membros e não têm muito interesse em apoiar nem em sustentar
hierarquias denominacionais volumosas que cada vez mais operam em causa
própria (McGrath, 399-400 e 402).

De acordo com McGrath, este é o perfil do protestantismo que responderá


melhor às demandas dos fiéis do mundo contemporâneo. Talvez seja uma
tendência que veio pra ficar por várias décadas. Eu me arrisco em dizer que, no
caso do Brasil, ele responde bem aos anseios religiosos por apresentar
racionalidade e emoção ao mesmo tempo.

Alister continua a sua análise e diz que:

O impacto desses movimentos vai além da reestruturação das opções e


estrututuras denominacionais e a provisão de novos modelos de igreja, menos
centralizados. Desenvolvimentos como esse no protestantismo levaram a novos
e informais estilos de adoração, à explosão de “músicas de adoração”, a um
novo interesse acerca de dinâmicas de adoração e a uma crescente insatisfação
com o tradicionalismo de adoração litúrgica informal, em especial, o enfadonho
uso de hinários e livros de culto, que muitos consideravam que alienava
culturalmente os da cultura norte-americana secular que estavam à procura de
uma opção religiosa (Ibid, 401).

Ou seja, estas “igrejas-comunidades” continuam preservando a marca


protestante do papel central das Escrituras Sagradas (racionalidade), mas
acresenta a isso o uso da música cantada e tocada em estilo contemporâneo
(emoção).

Conforme disse Mendonça, o “protestantismo de comunidades” faz uso


da cultura de massa para conseguir sobreviver e se comunidar com o fiel do
mundo contemporâneo.

No caso das duas igrejas objetos de estudo deste trabalho, elas sofrem
inluência de duas destas novas igrejas-comunidade.
  55  

Wilow Creek Community Church e a Igreja Batista do Morumbi

A partir dos anos 2000 a Igreja Batista do Morumbi começou a sofrer


grande influência da Igreja Wilow Creek. Na época, o fundador Ary Veloso,
iniciou uma série de viagens para Chicago juntamente com um grupo base da
IBM com o intuito de “reproduzir” no Brasil o que acontecia nesta Mega Igreja. A
Wilow Creek, particularmente, é marcada pelo jeito “pragmático” de ser do norte-
americano. Ou seja, a Wilow é filha do Movimento de Crescimento de Igreja18
iniciado pelo missiólogo Donald MacGavran. O resultado final deveria sempre
ser o número de fiéis que determinadas técnicas ajudariam a atrair. Quanto mais
pessoas lotando o auditório da igreja, mais ela estaria cotada nas estatísticas de
sucesso eclesiástico.

Redeemer Presbiterian Church e a Comunidade Presbiteriana Chácara


Primavera

Semelhantemente à IBM a CPCP também recebe influência de uma igreja


norte-americana. A Igreja iniciada no coração de Manhatam, Nova York, tem o
intuito de levar a mensagem cristã aos jovens secularizados de Nova York.
Marcada por um estilo menos pragmático e mais reflexivo, até porque o seu
líder, o Rev. Tim Keller, é um teólogo e escritor de livros best-sellers nos
Estados Unidos.

Ainda assim, a Redeemer pode ser descrita como sendo uma igreja
presbiteriana fora dos moldes convencionais. O uso de música contemporânea e
de uma pregação não moralista tem aproximado centenas de jovens
profissionais e universitários.

O Rev. Ricardo Agreste costuma citar trechos dos livros e das ideias de
Keller para fundamentar e ilustrar as suas pregações. Além disso, possui uma

                                                                                                               
18  Movimento iniciado na década de 1960 com o intuito de enteder as razões pelas quais as
igrejas locais cresciam. Para isso, começou-se a utilizer os recursos das ciências sociais, prática
até então estranha aos estudos de missiologia. Um dos principais pilares do movimento - foi: O
princípio das unidades homogêneas que diz que os grupos sociais se ajuntam em função de
afinidades sócio-econômico-culturais.
  56  

relação de troca de experiências com Tim Keller fazendo com que alguns
elementos da Redeemer sejam reproduzidos aqui no Brasil.

Uma tensão entre Campos Simbólicos

O fato destas novas “comunidades protestantes” serem indenpendentes


suscita ciúme por meio das Denominações Batista e Presbiteriana do Brasil, no
caso.
O sociólogo Pierre Bourdieu diz que os campos simbólicos se tencionam
em função de “disputarem” status e influência. Esta disputa não se dá,
necessariamente, de modo direto; mas sim, por meio de reações para se
conquistar os fiéis inseridos em tais campos simbólicos.
O que está transcrito abaixo diretamente da “linha do tempo” da página
do Facebook do teólogo presbiteriano Ricardo Quadros Gouveia, expressa muito
bem esta tensão entre a Comunidade Presbiteriana Chácara Primavera,
representada pelo Rev. Ricardo Agreste e a Igreja Presbiteriana do Brasil:

Quando critico o fundamentalismo, critico uma atitude, um tipo de religiosidade.


Não é um ataque pessoal. Quando critico o fundamentalismo, não estou
propondo que adotemos o liberalismo em seu lugar, mas que abracemos o
princípio da equidistância, que está nos documentos oficiais da IPB, que é a
postura de muitas denominações reformadas consideradas convervadoras.
Quando uso o termo “fundamentalismo”, eu não o uso como forma de
xingamento, mas tecnicamente. O fundamentalismo e o conservadorismo
teológico são posturas muito diferentes. Esta última é muito respeitável. Eu
mesmo me vejo como um teólogo conservador. O fundamentalista NÃO é
conservador, até porque o fundamentalismo é um movimento recente na
história. O fundamentalista é um extremista, um fanático (seja qual for a religião,
porque pode ser judaísmo, islamismo, e, no caso do cristianismo, pode ser
protestante, católico ou pentecostal), cada um com seu tipo diferente de
fundamentalismo. O fundamentalista é aquele que exclui, que condena, que
persegue, que amaldiçoa, que odeia, que pratica crueldades, e tudo isso em
nome de seu zelo religioso... Isso não tem mais nada a ver com Jesus Cristo,
nem com o Novo Testamento, na minha opinião. É por isso que lhes digo que o
fundamentalista é um apóstata, porque já não é discípulo Cristo, e sim de uma
religiosidade dogmática e fanática.

Em outro momento de seu comentário, ele passa a escrever:


  57  

Estes são autores que devem ser lidos, mas com muito cuidado, assim como
quando manipula um frasco de veneno. Aqueles que pensam que a IPB é feita
de pessoas que apoiam esses autores, não conhece a realidade da IPB, nem
muito menos sua história. Talvez não conheça o ministério e a obra de Miguel
Rizzo Jr., de José Borges dos Santos, de Erasmo Braga, de Richard Shaull, de
Jorge César Mota, de Valdir Carvalho Luz, João e Joás Dias de Araújo, Américo
Ribeiro, Júlio Andrade Ferreira, Guilhermino Cunha, nomes de homens
equilibrados que se revoltariam diante do claro processo de sectarização em
andamento hoje na IPB. A clara perseguição a Ricardo Agreste, um dos mais
lúcidos e importantes ministros da IPB hoje, é a gota d’água! A IPB é uma igreja
que sempre se colocou como equidistante do liberalismo e do fundamentalismo,
uma igreja dinâmica teologicamente, uma igreja viva. Essa onda dogmática e
sectária é perigosa.

Apesar de longa, esta trancrição foi necessária para que se possa


entender esta tensão presente no interior do campo religioso protestante da IPB.
A denominação presbiteriana transita claramente no que Rubem Alves chamou
de Protestantismo de Reta Doutrina.
Podemos estender o mesmo espírito de tensão entre Denominação e
Igreja Local para a Convenção Batista Brasileira e a Igreja Batista do Morumbi.
Abaixo segue uma tabela com uma comparação entre a forma de pensar
e agir das Denominações Batista e Presbiteriana e as duas Igrejas Locais
objetos deste estudo.
  58  

Convenção Batista Brasileira Igreja Presbiteriana do Brasil


X X
Igreja Batista do Morumbi Comunidade Presbiteriana Chácara Primavera
Doutrina Doutrina
Ainda que a CBB não tenha uma “cartilha” fechada A IPB é uma herdeira dos ensinos de João
de doutrinas, espera-se que as suas igrejas Calvino. Portanto, as confissões que se seguiram
estejam o mais próximo possível de suas desde os escritos do reformador se tornaram o
tradições. A IBM entende que os seus fiéis núcleo de crenças e práticas.
precisam ir diretamente às Escrituras Sagradas A CPCP, no entanto, entende que a tradição
para extraírem de lá a sua prática de vida calvinista que chegou ao Brasil não é a única
legítima. Ela procura estimular os seus fiéis a
investigarem as Escrituras Sagradas por si
mesmo
Relação Denominacional Relação Denominacional
A CBB espera que todas as igrejas filiadas à A IPB possui uma maneira mais rígida de dirigir
Denominação frequentem as suas reuniões e as igrejas filiadas à denominação.
ajuntamentos. Ainda assim, a CPCP escolheu trilhar um
A IBM está vinculada a CBB, mas não desenvolve caminho de menos convívio no interior da IPB.
uma relação tão próxima com a CBB em função Mesmo estando vinculada à denominação ela
das demandas diárias da igreja assume uma caracrística muito mais de
comunidade “autônoma”
Liturgia Liturgia
A CBB espera que suas igrejas sejam “serenas” e A IPB possui uma forma de liturgia um pouco
que não escandalizem por conta de músicas ou mais “rígida” do que a CBB. A Denominação
ênfases impróprias. possui prescrições acerca de como todas as
A IBM já iniciou as suas atividades fazendo uso de igrejas presbiterianas do Brasil devem proceder
ritmos brasileiros e um jeito mais “informal” de em seus cultos.
cultos A CPCP, ainda que respeite os princípios
litúrgicos da IPB, opta por uma forma de culto
mais flexível e atraente aos não cristãos
Pregação Pregação
A CBB não possui nenhuma restrição a formas de Como sendo uma Denominação muito ligada ao
pregação. Não obstante, as igrejas batistas mais calvinismo, a IPB exige que o púlpito seja uma
tradicionais fazem uso de formas de comunicação “cópia” das confissões de João Calvino. Ademais,
que apenas os “iniciados” entendem. o uso de recursos como vídeos, power point e
A IBM possui uma maneira “leve” de se comunicar filmes não são bem vindos na IPB. E é
no púlpito aliada a maneira de falar abordando a exatamente isso que a CPCP faz a fim de tornar a
cultura e os acontecimentos da atualidade pregação clara a todos os públicos
Usos e Costumes Usos e Costumes
Neste quesito a CBB não tem nada a dizer, mas o Neste quesito a IPB não tem nada a dizer, mas o
a maneira “moralista” de ver o mundo fez com que a maneira “moralista” de ver o mundo fez com
a conduta diária fosse equiparada a uma forma de que a conduta diária fosse equiparada a uma
doutrina. forma de doutrina.
A IBM busca trabalhar o desenvolvimento do ser a A CPCP busca trabalhar o desenvolvimento do
partir de conscientização desde as Escrituras ser a partir de conscientização desde as
Sagradas Escrituras Sagradas
  59  

As duas igrejas, mesmo que ainda façam parte deste espectro do


protestantismo, apresentam características muito semelhantes umas em relação
às outras. Deste modo, a título de caracterização segue abaixo um quadro
mostrando onde estas igrejas apresentam pontos de convergência:

Características similares às igrejas Batista do Morumbi e Comunidade


Presbiteriana Chácara Primavera
Liturgia – O “andamento” do culto é mais flexível, com uma música
contemporânea dirigida por “bandas de louvor” e a pregação com profundidade
bíblica e relevância sócio-cultural
Localização – Em geral os prédios destas igrejas são bem localizados e em
bairros de classe média alta
Pastor – Os pastores são esclarecidos e “estudados”. Em geral, possuem mais
de uma graduação acadêmica e muitos deles também Pós Graduação.
Ademais, estas igrejas são pastoreadas por um “colegiado” de pastores
Filiação Institucional – Estas igrejas, grosso modo, ainda que estejam filiadas
a Convenções e Denominações, são mais independentes e autônomas
Dep. Infantil – Estas igrejas valorizam muito o trabalho voltado para as crianças
por entenderem que o “reino de Deus” pertence a todos
Juventude – Os jovens se sentem atraídos para estas igrejas em função da
música ser contemporânea e de terem pastores/líderes direcionados apenas
para esta faixa etária

Por meio desta tabela se intenta mostrar como este Novo jeito de ser
Protestante no Brasil transcende as bandeiras denominacionais. No passado,
talvez, estas duas igrejas apresentassem formas de ser e de agir bastante
distitntas uma em relação à outra.
  60  

5 – Max Weber e o novo jeito de ser protestante no Brasil

A construção do Tipo Ideal

O tipo ideal é uma construção mental de um fenômeno social. A fim de


entender esse femômeno que se observa, o sujeito cria imagens e conceitos em
sua mente que tentem representar com maior exatidão possível o objeto/tipo
“real”.

Por meio de nossos sentidos acessamos o mundo ao nosso redor. Mas,


não basta apenas tentar acessar o objeto por meio dos sentidos. É preciso criar
conceitos que consigam explicar racionalmente o objeto observado. Max Weber
explica:

É necessário opor a tudo isto um dever elementar do autocontrole científico,


único meio suscetível de evitar surpresas, que nos convida a realizar uma
distinção estrita entre a relação que compara a realidade com tipos ideais em
sentido lógico, e a apreciação avaliadora dessa realidade a partir de ideais.
Devemos repetir mais uma vez que, no sentido que lhe damos, um tipo ideal é
algo completamente diferente da apreciação avaliadora, pois nada tem em
comum com qualquer “perfeição”, salvo com a de caráter puramente lógico.

Ele continua:

Mais acima, encaramos intencionalmente o “tipo ideal” como uma construção


intelectual destinada à mediação e à caracterização sistemática das relações
individuais, isto é, significativas pela sua especificidade, tais como o
cristianismo, o capitalismo etc (Weber, 114-115).

Usa-se, portanto, os “recursos” do tipo ideal com a intenção de discernir a


“voz” do objeto. Sendo assim, faz-se uso dos sentidos e do intelecto para
relacioná-los com o objeto de modo a entender a sua expressão:

Não sou capaz de explicar o método que me levou a constuir o tipo que irei
descrever no transcurso deste trabalho. Há emoções, valores, experiências
biográficas envolvidas no processo. Muitas sugestões me foram feitas pelas
discussões que já se deram em torno do assunto. Afirmo, entretanto, que o meu
tipo lança luz sobre problemas ainda não elucidados. Afirmo, ainda mais, que ele
é capaz de permitir previsões, pelo menos aproximadas, de como o tipo deverá
se comportar em situações futuras (Alves, 43).

Conforme pontuou Rubem Alves, a relação que o pesquisador/observador


  61  

desenvolve com o objeto é existencial. Isto confirma o que o próprio Max Weber
já havia dito. Deste modo, o processo para a construção do tipo ideal envolve
duas etapas, quais sejam: a observação empática e a racionalização conceitual.

Para construir o tipo ideal proposto neste trabalho será feita uma
validação do tipo ideal de Rubem Alves - Protestantismo de Reta Doutrina –
fazendo-se os devidos constrastes com alguns elementos que constituem o seu
tipo ideal, notadamente os que dizem respeito à moralidade, e como estes
mesmos elementos se apresentam no novo jeito de ser protestante.

Rubem Alves começa dizendo que, no antigo jeito de ser protestante:

Já indicamos que o recém-convertido é definido como aquele que ainda “não


sabe no que crê”. O problema com que ele se defronta é transcender a sua
condição de ignorância e tomar posse do conhecimento absoluto exigido pela
experiência da conversão. Em contrapartida, mostramos que a Igreja se define
como a instituição que detém o monopólio do saber. A solução do problema do
conhecimento, portanto, exige que o novo crente esqueça o saber que ele
consigo trazia, substituindo-o por aquele codificado e cristalizado na instituição.
Convertido e Igreja se unem numa relação de subordinação: o aprendiz se
submete à mestra (Ibid, 201).

Tendo posto esta relação de extrema submissão do “crente” à instituição


igreja, Alves passa a exemplificar por meio de algumas exigências morais:

• Os pecados sexuais –

O sexo é um tema ainda tido como tabu no meio protestante. Ele tem sido
visto e tratado como algo, em si, feito apenas para a “procriação da raça”:

Temos de nos perguntar se se encontra nesse protestantismo, uma doutrina


positiva da sexualidade porque, até o momento só tratamos do sexo como algo
negativo, como perigo e tentação (Ibid, 213).

Por conta desta visão, o sexo antes do casamento é tratado como uma
possibilidade de disciplina ou exclusão dos fiéis envolvidos no ato. São
incontáveis os casos de exclusão do convívio da igreja, meninas que
engravidaram antes do casamento.
  62  

Novo jeito de ser protestante –

O espírito do novo jeito de ser protestante consegue lidar de maneira


mais serena com as questões ligadas ao sexo. Até porque, uma vez que as
igrejas que encarnam este novo jeito são grandes comunidades, torna-se mais
difícil tomar conhecimento de todos os casos de sexo fora do casamento.

Contudo, neste âmbito, o sexo ainda é visto como tendo sido criado por
Deus para o desfrute no matrimômio. Ainda assim, o sexo ganha contornos mais
belos e românticos para além de sua função “apenas” reprodutora.

• As transgressões do Domingo

Domingo é dia de ir à Igreja. Esta frase está nos lábios da grande maioria
dos protestantes. O dia de descanso oficial ordenado por Deus, segundo os
protestantes, é o Domingo. Portanto, não se fará outra coisa a não ser ir para a
Igreja:

A guarda do domingo parece ser assim, o sinal da pureza da Igreja e de sua


separação do mundo. O domingo deve ser guardado porque há um
mandamento que o determina. E a obediência ao mandamento é uma questão
de salvação ou perdição. Assim, o crente se caracteriza pela maneira como se
comporta no dia do Senhor. E um comportamento que transgrida os limites do
proibido e do permitido deve sofrer a punição da disciplina eclesiástica (Ibid,
221).

Novo jeito de ser protestante –

Conforme já dito acima, o novo jeito de ser protestante interage melhor


com as demandas da pós-modernidade. Ele entende que as mudanças sócio-
econômico-culturais influenciam diretamente na maneira como os fiéis se
relacionam com o domingo. O trabalho ou lazer nesse dia se transformam em
necessidade dada às exigências do mercado de trabalho hoje. Então, trabalha-
se muito durante a semana e até sábados e domingos e torna-se inevitável não
escolher algum domingo do mês para descansar indo à praia ou à casa de
  63  

parentes.

• Os vícios: os crimes contra o dono do corpo

Para o protestantismo, a partir da leitura das Escrituras Sagradas, o corpo


é o templo do Espírito Santo e, portanto, deve ser encarado com cuidado e
reverência. Assim, práticas como beber, fumar ou jogar são tidas como vícios:

Os crentes não têm vícios”: esta é uma das marcas do caráter protestante. A
“conversão a Cristo”, por isto mesmo, é marcada pela interrupção, seja do uso
do fumo, seja do uso da bebida, seja do hábito de jogar. Num relatório de
viagens da Europa, comentava um teólogo que “na Alsácia [...] não se
escandalizavam de um seminiarista usar um bom cachimbo, de um professor de
teologia tomar seu copo de cerveja”. Comentário que só faz sentido se aqueles
para quem ele é escrito – os crentes da Igreja do Brasil – se escandalizam com
o uso do cachimbo e da cerveja (Ibid, 226-227).

Novo jeito de ser Protestante –

A priori estas práticas não são tidas como vícios. O mais comentado
deles, a bebida, passa a ser analisada pelo “crivo” do Apóstolo Paulo, em
Efésios 5, quando ele diz que o limite para a bebida é o seu excesso levando à
embreagues ou, quando afeta a “mente fraca” daqueles - da comunidade da fé
que não concordam com o uso da bebida. Ou seja, a bebida é tida como
saudável na medida em que for usada com sensatez.

• Os crimes de pensamento: as heresias

A heresia, enquanto um “crime”, vem acompanhando a história do


cristianismo desde os seus primórdios. A heresia se revela como sendo
maneiras não ortodoxas de afirmar a fé cristã:

Heresias não são atos imorais. Constituem, ao contrário, pecados muito mais
graves. O herege não é alguém que sucumbe a uma fraqueza da carne. Ao
contrário, ele rejeita um conhecimento absoluto. Nega a sua pretensão de
verdade. E, em seguida, propõe uma nova verdade (Ibid, 237).
  64  

Novo jeito de ser Protestante –

É importante distinguir heresia de possibilidades múltiplas de


interpretação. Grosso modo, heresia é todo pensamento contrário ao Credo
Apostólico. A partir deste credo é que foram escritas as Confissões
Denominacionais e estas - são interpretações do Credo, isto é, as confissões
são resoluções teológicas passíveis de discordância e reinterpretações

O novo jeito de ser Protestante faz uso desta “licença” interpretativa a fim
de atualizar o Credo Apostólico. Ademais, tomando-se essa licença como
parceira interpretativa mediada pela cultura, o novo jeito busca desenvolver
leituras atualizadas das doutrinas cristãs.
  65  

6 – O Antigo e o Novo Jeito de ser Protestante no Brasil: O acesso ao Mito

Todas as religiões fazem uso da “linguagem mítica” para se referirem ao


seu passado sagrado, mas também, para dar conta do mundo ao seu redor.
Assim, o mito é uma narrativa sagrada que conta a história de uma dada religião
ajudando-a a construir a sua própria identidade ao longo do tempo. Mircea
Eliade, refletindo sobre o mito, afirma:

O mito conta uma história sagrada, quer dizer, um acontecimento primordial que
teve lugar no começo do Tempo, ab infinito. Mas contar uma história sagrada
equivale a revelar um mistério, pois os personagens do mito não são seres
humanos: são deuses ou Heróis civilizadores. Por esta razão suas gesta
constituem mistérios: o homem não poderia conhecê-los se não lhe fossem
revelados. O mito é, pois, a história do que se passou in illo tempore, a narração
daquilo que os deuses ou os Seres divinos fizeram no começo do Tempo.
“Dizer” um mito é proclamar o que se passou ab origine. Uma vez “dito”, quer
dizer, revelado, o mito torna-se verdade apodítica: funda a verdade absoluta
(Eliade, 84).

As religiões, grosso modo, fazem uso do “acesso ao mito” a fim de


reafirmarem a sua própria identidade por meio de seus rituais. Ou seja, elas
fazem o retorno ao tempo sagrado para acentuarem as suas formas de ser
enquanto religião.

O cristianismo também possui o seu mito fundante: Jesus de Nazaré,


assim como a Torá é o mito fundante do judaísmo:

O Cristianismo é a religião que se formou a partir de seu fundador, Jesus de


Nazaré. A sua vida, morte e ressurreição são os elementos basilares que
sustentam todo o edifício desta religião que começou no oriente, mas que
alcançou o mundo quase que por inteiro tornando-se uma das três maiores
religiões mundiais19.

A religião cristã possui como fonte de vida e inspiração a pessoa de


Jesus de Nazaré. Mas, a tradição cristã que se formou nos primeiros quatro
séculos da era comum, afirma que para acessar o mito-jesus se faz necessário a
mediação das Escrituras Sagradas, e neste caso, não apenas o Antigo
                                                                                                               
19  http://ciberteologia.paulinas.org.br/ciberteologia/
  66  

Testamento dos Judeus, mas também o Novo Testamento, que representa a


Nova Aliança feita por Jesus Cristo na cruz.

Uma vez que não existem palavras escritas pelo próprio Jesus o que
resta ao cristianismo são as palavras escritas pelos próprios discípulos de Jesus
de Nazaré. Então, de certa maneira, o mito do cristianimo se transformou em
histórias que podem ser acessadas por qualquer pessoa.

O Antigo e o Novo Jeito de ser Protestante possuem maneiras


semelhantes e divergentes para acessarem o mito Jesus. O Antigo Jeito fará
uso das Escrituras Sagradas e também dos Reformadores, notadamente João
Calvino e sua teologia e dos Cânones denominacionais. Ao passo que o Novo
Jeito fará uso das Escrituras Sagradas e da mediação cultural contemporânea
com o fim de atualizar o mito-jesus às demandas dos fiéis que frequentam as
igrejas.

Pensando na importância que têm dos dogmas, e nas teologias que são
construídas a partir da leitura do mito, faz-se necessário acompanhar a mudança
dos tempos a fim de atualizar o mito. Sobre isso Antôngio Gouveia de Mendonça
sublinha:

O dogma, partindo da regulamentação do mito, não muda quanto ao seu


conteúdo, mas cambia quanto ao seu sentido. Daí, ser possível a intensa
discussão intelectual entre os teólogos, uns defendendo a linha conservadora da
Tradição e outros se esforçando por avançar na descoberta de novos sentidos
(Mendonça, 262).

Se o mito não for atualizado com o passar do tempo ao sabor do espírito


da época ele perderá a sua força e o seu sentido para os fiéis. Esta é a
importância de um olhar renovador do mito e todo o seu significado para os
seguidores de uma religião.

José Queiroz vai além da opinião de Mendonça e diz que a atualização


do mito não é papel apenas dos teólogos, e sim, de toda comunidade de fé:

As comundiades geram a atividade criadora do mito e este é uma resposta de


  67  

sentido às vicissitudes sociais que afetam o grupo. Por isso, embora não evolua
na sua forma essencial, o mito se presta a novas leituras e até a sofrer
alterações a depender da evolução da cultura e do saber, e assim, muitas vezes,
suas expressões outrora tomadas como literais passam a ter apenas um valor
simbólico (Queiroz, 2013, 507).

Porquanto, uma vez que o mito é o que confere vigor a uma religião, se
ele for “reduzido” a interpretações não compreenssíveis para a cultura vigente
esta religião tenderá a reduzir o seu número de fiéis.

Ao acessar o mito-jesus enrijecido pela tradição representada neste caso


pela teologia de João Calvino ou mesmo pelas “cartilhas denominacionais”, a
sua atualização se torna mais difícil, pois, o meio assumiu o lugar do fim.

O Novo Jeito de ser Protestante leva em consideração a tradição


enquanto uma parceira de diálogo e entendimento do que seja, de fato, o mito.
Desta forma, ele se encontra “mais à vontade” para perceber novos significados
para o mito que sejam acessíveis à mentalidade dos fiéis de hoje.

Deste modo, para ilustrar a maneira do Antigo e Novo jeito de ser


protestante e entender o mito-jesus, segue uma tabela.
  68  

Antigo Jeito de ser Protestante Novo Jeito de ser Protestante

Mito-­‐Jesus   Mito-­‐Jesus  

Escritura  
Sagrada  
  Escritura  
Teologia  de   Sagrada  
João  Calvino    
  Mediação  
Cânones   Cultural  
da  
Denominação  
 

Teólogos  
Teólogos   Pastores  
Comunidade  

É importante perceber que o novo jeito de ser protestante faz uso da


cultura contemporânea como forma de mediação para a leitura das Escrituras
Sagradas20 a fim de atualizar o mito-jesus para o mundo de hoje.

                                                                                                               
20  Somado a Escritura Sagrada o Pregador também é uma figura central nas liturgias, uma vez
que ele é o que explica/atualiza o texto sagrado. No entanto, não se pode afirmar que tal
Pregador (tal como a figura do Mago na concepção de Max Weber) seja a principal razão da
atração dos fiéis como se ele detivesse algum poder especial, porquanto tais fiéis escolheriam as
  69  

7 - Protestantismo de Experiência Racional

É importante destacar que o Protestantismo de Experiência Racional


busca contrapor o tipo ideal criado por Rubem Alves, quando ele afirmou que o
todo do Protestantismo brasileiro é de Reta Doutrina. Agora, a intenção é de
pontuar que existem outros tipos de protestantismos em nosso país e que um
deles, representado pela Igreja Batista do Morumbi e pela Comunidade
Presbiteriana Chácara Primavera, pode ser definido como sendo de Experiência
Racional.

Um país que tem cabeça e coração

O Brasil é formado por uma diversidade étinica e cultural. Ele foi


plasmado a partir de três matrizes culturais: Portuguesa-Indígena-Negra. Foi por
meio deste “caldo cultural” que surgiram os brasileiros, este povo que, ainda que
faça parte do Continente Latino Americano, é tão diferente dos outros países:

No final do século XIX, os intelectuais brasileiros já admitiam que, na


composição do “caráter brasileiro”, entravam traços culturais de três origens
diferentes: a portuguesa, a africana e a aborígene. Assim, o que dintinguia o “ser
brasileiro” do “ser europeu” ou do “ser africano”, ou ainda da “natureza
aborígene”, estava no fato de que as maneiras de pensar e agir dos brasileiros
apresentavam sempre uma mistura de elementos culturais de origem diversa
(Queiroz, 60).

A partir deste fato é possível admitir que a religiosidade brasileira é


mágica e supersticiosa sendo que, as emoções e a experiência, constituem os
papeis centrais. Mesmo tendo sofrido forte influência européia, por meio de
Portugal, o Brasil não se caracteriza pela reflexão “abstrata” e puramente
filosófica. Os brasileiros são dados à reflexão prática de modo a conseguirem
resolver os problemas do cotidiano. É uma meneira de pensar, portanto, ligada
às questões da vida. Talvez possamos inferir que tal “jeito de ser” se deve ao
fato de os negros terem exercido um papel fundamental para a formação da
nossa epistemologia. Sendo assim, os brasileiros raciocinam levando em
                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                         
igrejas neopentecostais onde o pastor exerce uma função muito mais mágica do que nas igrejas
de recorte protestante.
  70  

conta o seu ser como um todo e não apenas os aspectos “cognitivos”. As


emoções, portanto, exercem um papel central na forma de pensar do
brasileiro:

Essa é uma característica muito especial da multicultura relacional brasileira, na


qual a vida tem de ser reelaborada a cada dia. Não são formas multiculturais
fixas, mas vão se modificando conforme se vai vivendo. Esses dados são
fundamentais para se entender a questão da identidade do brasileiro. Sua
identidade não existe como algo dado. Também a identidade vai sendo
construída e os elementos externos e as pressões mais novas, isto é,
globalizadoras vão sendo deglutidas e vividas no hoje que se vive. O concreto e
imediato da vida do brasileiro o leva a ser um ser relacional. Mais do que estar
situado diante das coisas e da natureza, o realizar-se do brasileiro com ser dá-
se através do relacionar-se. Assim, não se considera prisioneiro do destino, das
forças das coisas ou da natureza. É um ser que procura aliados, quer para a
realização de seus prazeres, quer para enfrentar os desafios impostos por
elementos ou realidades alheias a seu cotidiano. A essa procura de alianças, o
brasileiro chama de amizade e companheirismo. E se ele pode relacionar-se
com seus pares, também o pode fazer com a transcendência. Para o brasileiro,
o relacionar-se com o transcendente jamais significa uma negação do humano.
Daí a intimidade que aparenta ter com a divindade (Pinheiro, 2008, 117 e 118).

Um fato interessante destacado pelo historiador Émile Léonard é que os


batistas, ao chegarem ao Brasil, trouxeram pastores menos preparados
intelectualmente do que os presbiterianos. Hoje, estes estão em menor número
do que aqueles. O que parece é que a liturgia e a forma de abordar a fé cristã
pelos batistas seja mais brasileira do que a meneira presbiteriana. A partir de tal
reflexão é possível sublinhar que o protestantismo que tem a “cara” do Brasil
seja aquele que consegue “sentir” e “pensar”, ao mesmo tempo. A denúnica que
Rubem Alves fez do “antigo jeito de ser protestante” estava relacionada,
também, a uma religião da “explicação” de dogmas e doutrinas. O novo jeito de
ser protestante deseja sentir e pensar a fé sem as amarras de uma liderança
perseguidora e que ameaça todos quantos não andarem conforme as “cartilhas
da fé”.

Assim, pode-se definir o Protestantimo de Experiência Racional como


sendo: Um segmento do protestantismo que sente e pensa a fé cristã por meio
da música e da pregação da Escritura Sagrada com liberdade e autonomia
dirigidas.
  71  

7.1 – Uma fé em busca de razão

O outro elemento do tipo ideal proposto neste trabalho é o da razão. Ou


seja, este segmento do protestantismo não preza apenas pela experiência
subjetiva da fé, mas também, pelo entendimento (racionalidade) da fé cristã.

Vários teólogos empreenderam a tarefa de relacionar a razão à fé cristã


buscando compreender como seria a chamada “inteligência da fé”, isto é, como
ela se explicaria. Jurgen Moltmann, teólogo luterano, tem sido uma importante
voz no sentido de articular uma teologia pública que ajude a dar conta da vida e
que tem servido, inclusive, de diálogo com as Ciências da religião:

O teólogo Jurgen Moltmann lança uma interrogação pertinente em favor de uma


teologia acadêmica, que seja aberta às indagações humanas fundamentais, sem
destinar-se exclusivamente aos crentes. Sinaliza que: ‘Deus não é Deus apenas
dos que creem, mas o criador dos céus e da terra, não sendo, portanto,
particular como a fé humana nele, e sim universal como o sol que nasce sobre
maus e bons, e como a chuva que cai sobre justos e injustos e proporciona vida
a todas as criaturas (Mt 5:45). Uma teologia apenas para pessoas crentes
constituiria a ideologia religiosa de uma comunidade religiosa cristã ou uma
doutrina secreta esotérica para iniciados (Teixeira, 2013, 179).

A fé necessita de compreensão a fim de que ela consiga explicar o


sentido da vida. E uma das razões pelas quais os fiéis buscam uma determinada
religião é por acreditar que ela dará conta da vida:

Trata-se, segundo Moltmann, de uma ‘teologia publica do Reino’, de uma


“Teologia da Vida’ animada por uma espiritualidade nova, em profunda sintonia
com o organismo Terra; uma teologia pontuada por ‘maravilhosa abertura ao
novo mundo peneterado pelo Espírito’, onde se redescobre a ‘imanência de
Deus escondida na natureza e sua presença em todas as criaturas’.

Essa perspectiva aberta por Jurgen Moltmann torna-se altamente inspiradora


para situar o lugar e a função da teologia hoje no espaço público da
universidade. O objetivo precípuo da teologia é o ‘mundo sub ratione Dei’ (Ibid,
179).

Segundo colocou Moltmann, a teologia é a maneira científica da fé se


expressar. É por meio da inteligência da fé, portanto, que se consegue fazer
uma leitura “teológica” de mundo.
  72  

Para o teólogo luterano a fé necessita de razão para que possa se


colocar na esfera pública. O ambiente público pressupõe o debate/diálogo de
ideias e de compreensões acerca da vida e da melhor forma de se viver em
sociedade:

A fé não é participação da Igreja nem decisão pessoal, mas sim uma espécie de
reflexão constante sobre o cristianismo em religiosidade crítica. O que torna o
sistema de sentido religioso aceitável não é a autoridade da igreja e da tradição,
mas sim a informação fundamentada. O diálogo livre e interessado com a igreja
assume o lugar da ida ao culto e da decisão da fé. A igreja torna-se fórum e
plataforma do diálogo com o cristianismo (Moltmann, 2013, 292).

É importante perceber nas palavras de Jurgen Moltmann que ele dá


importância ao lado objetivo da fé. Ou seja, a fé não se sustenta apenas em seu
aspecto subjetivo. A fé, então, pressupõe o aspecto da racionalização:

É a comunidade que narra a história de Cristo e sua própria história com essa
história, porque deve sua existência, coesão e atividade a essa história de
libertação. Ela é uma “comunidade de narração” que ganha cada vez de novo da
presencialização dessa história de Cristo sua liberdade em relação aos mitos e
histórias da sociedade na qual ela vive. É uma comunidade de esperança que
encontra por meio da perspectiva do Reino de Deus liberdade em relação às
perspectivas de sua sociedade (Ibd, 292-293).

Sendo assim, a racionalização da fé conforme colocou o autor implica em


situar o fiel no mundo pronto para o diálogo com as outras formas de
compreesão da vida sem, contudo, abrir mão daquilo que é tido como
cristianismo.

7.2 – Um contraste entre racionalidades

No intuito de tornar mais claro o ponto de vista deste trabalho acerca do


que seja a racionalidade, vamos fazer um contraste entre o Protestantismo de
Experiência Racional, a Racionalidade de Rubem Alves e a Racionalidade de
Max Weber.

• Protestantismo de Experiência Racional

Para o PER a racionalidade diz respeito ao desejo do fiel de entender a fé


  73  

cristã com o intuito de a mesma iluminar o seu cotidiano. Os fiéis que procuram
as igrejas do PER o fazem por sentirem a necessidade de articularem
racionalmente a fé cristã. Não basta apenas uma experiência subjetiva da fé. É
necessário processá-la por meio dos mecanismos de pensamento.

• Racionalidade de Rubem Alves

Para Rubem Alves a racionalidade está relacionada ao cumprimento, à


risca, da correta doutrina. O racional é viver segundo os parâmetros da reta
doutrina objetivada nas confissões de fé protestante. Nas palavras de Alves:

Expressa-se internamente pela resistência a quaisquer tentativas de inovação,


resistência esta que se legitima pela sacralização das formas de pensamento e
comportamento herdadas do passado e que se torna efetiva pelo
estabelecimento de mecanismos instituicionais de controle que se encarregam
de eliminar as formas desviantes de pensamento e comportamento (Alves, 2005,
15).

Para Rubem Alves, depois que alguém se converte lhe é apresentada a


reta doutrina a fim de que o fiel adeque sua vida aos ditames da igreja. É desta
forma que desenvolve a racionalidade: adequar a vida ao que está posto antes
mesmo da conversão da pessoa.

• Racionalidade de Max Weber

Para Max Weber a racionalidade está em oposição aos aspectos mágicos


e transcendentais da vida. Ou seja, a racionalidade em Weber diz respeito a
uma forma não “sagrada” de analisar o mundo. O ser humano não precisa mais
do sagrado para compreender o mundo que o cerca, pois a ciência tornou-se a
sua parceira. De acordo com o sociólogo, o protestantismo foi o responsável
pelo fim da magia enquanto forma de acesso ao mundo real. Uma vez que a
natureza não é divina, só nos restou a ciência como auxilio para o conhecimento
da verdade. Weber completa:

Aquele grande processo histórico-religioso do desencantamento do mundo que


teve início com as profecias do judaísmo antigo e, em conjunto com o
pensamento científico helênico, repudiava como superstição e sacrilégio todos
  74  

os meios mágicos de busca de salvação, encontrou aqui sua conclusão. O


puritano genuíno ia ao ponto de condenar até mesmo todo vestígio de
cerimônias religiosas fúnebres e enterrava os seus sem canto nem música, só
para não dar trela ao aparecimento da supertition, isto é, da confiança em efeitos
salvíficos à maneira mágico-sacramental. Não havia nenhum meio mágico,
melhor dizendo, meio nenhum que proporcionasse a graça divina a quem Deus
houvesse decidido negá-la (Weber, 2004, 96).

7.3 - O papel da música e da pregação da Escritura Sagrada

As igrejas que se enquadram no tipo ideal aqui proposto se apresentam


desta forma por duas razões possíveis: a influência das mega igrejas norte-
americanas ou a influência pentecostal/neopentecostal.

Peter Berger e Thomas Luckmann vão dizer que nenhuma ideia é


consumida da mesma forma aonde ela chega, ou seja, ainda que a globalização
tenha o poder de levar a cultura norte-americana para o mundo, tal cultura não
será vivenciada da mesma forma que os americanos a vivenciam. Cada país
fará uma leitura própria das ideias e produtos vindos de fora:

Apreendo a realidade da vida diária como uma realidade ordenada. Seus


fenômenos acham-se previamente dispostos em padrões que parecem ser
independentes da apreensão que deles tenho e que se impõem à minha
apreensão. A realidade da vida cotidiana aparece já objetivada, isto é,
constituída por uma ordem de objetos que foram designados como objetos antes
de minha entrada na cena. A linguagem usada na vida cotidiana fornece-me
continuamente as necessárias objetivações e determina a ordem que estas
adquirem sentido e na qual a vida cotidiana ganha significado para mim. Vivo
num lugar que é geograficamente determinado; uso instrumentos, desde os
abridores de latas até os automóveis de esporte, que têm sua designação no
vocabulário técnico da minha sociedade; vivo dentro de uma teia de relações
humanas, de meu clube de xadres até os Estados Unidos da América, que são
também ordenadas por meio do vocabulário. Desta maneira a linguagem marca
as coordenadas de minha vida na sociedade e enche esta vida de objetos
dotados de significação (Berger e Luckmann, 1985, 38 e 39).

Da mesma forma se dará com propostas de igrejas. Apesar de exercer


influência no protestantismo brasileiro, as mega igrejas norte-americanas não
são, necessariamente, reproduzidas aqui.

No que diz respeito à possível influência dos


  75  

pentecostais/neopentecostais estar presente no Protestantismo de Experência


Racional, também parece estranho que de fato isso ocorra. Nas igrejas, objetos
de estudo deste trabalho, as práticas de curas, milagres e dons de línguas não
se fazem presentes ou não são o centro de sua atenção. A teologia da
prosperidade, centro por meio do qual vive e se movimenta o
neopentecostalismo, não apenas é rejeitada como também é combatida em tais
igrejas.

Sendo assim, o Protestantismo de Experiência Racional é compreendido


por meio dos cultos das igrejas que têm a cara do Brasil. Por meio de uma
assumida “brasilidade” a Igreja Batista do Morumbi e a Comunidade
Presbiteriana Chácara Primavera atraem milhares de pessoas aos Domingos
desejosas de terem uma experiência subjetiva com o Sagrado por meio das
músicas e da pregação. Isto é, o corpo está “presente” nas celebrações
dominicais de tais igrejas.

Tais experênias subjetivas com o Sagrado são imprescindivéis para os


brasileiros. Por muito tempo a experiência foi subtraída da religiosidade
brasileira em função do posicionamento teológico dos missionários vindos da
Europa e Estados Unidos. Para alguns setores da teologia, a experiência não
pode ser tomada como “acesso ao real”. Ou seja, apenas o intelecto é confiável,
pois ele se aproxima mais de Deus do que o corpo; este, sendo ligado ao
pecado:

Só algumas experiências humanas são explícita e concientemente religiosas: ou


seja, situações onde é possível sentir a autocomunicação reveladora e
salvadora de Deus que convida a fazer ou renovar um compromisso de fé. Para
falar de experiência explicitamente religiosa, há uma linguagem especial que
tem sido utilizada frequentemente para descrevê-la. Fala-se de “situações-
limite”, “experiências-limite”, “experiências de ponta”, “experiências de
profundidade”. Também é possível identificar estas experiências profundamente
sentidas em termos aparentemente paradoxais, tais como: ser levados da morte
à vida, do absurdo ao sentido e do ódio ou solidão ao amor e à comunidade. A
reflexão sobre a Revelação como experiência se ocupará então de experiências
de Deus vividas pelo povo de Deus, pelos profetas e outros personagens da
história revelada do AT.
  76  

Foi superado, portanto, o divórcio entre dogma e espiritualidade, entre pensar


sobre Deus e experiência de Deus, consumado no século XIV. A teologia
acadêmica até o Concílio não se via devedora nem tampouco vinculada à
experiência cristã de Deus como critério, ou como ponto de partida para a
elaboração do seu pensar e seu discurso. Esta discriminação entre teologia e
espiritualidade – pensar sobre a experiência – teve consequências nefastas,
tanto para a espiritualidade, a qual se viu reduzida em consistência e vigor,
como para a teologia, que perdeu em movimento, beleza e flexibilidade,
tornando-se uma teologia doutrinal puramente explicativa e dedutiva (Bingemer,
2012, 246-248).

Neste ponto, vale a pena trazer à tona mais uma vez a reflexão da
socióloga Daniéle Léger, quando ela diz que a religião de hoje precisa saber
interagir com as ambivalências da modernidade. As instituições religiosas,
portanto, necessitam dar espaço para que o fiel desenvolva de maneira subjetiva
a sua espiritualidade.

Assim, quando os fiéis chegam para os cultos das igrejas do PER eles
sabem que os estará aguardando uma música e uma pregação de qualidades
que os ajudarão a continuar a desenvolver a sua fé. Então, a igreja cria um
vínculo afetivo com tais pessoas, mas sem ultrapassar a barreira da
individualidade dos crentes/fiéis.
  77  

8 – A Teoria da Escolha Racional

Vale a pena trazer para este trabalho a reflexão que Rodney Stark e
William Sims Bainbridge fazem, em seu livro “Uma teoria da religião” sobre a
razão pela qual as pessoas escolhem uma religião/igreja em detrimento de
outra. Eles se fizeram valer da teoria da escolha racional, conceito utilizado no
âmbito da economia:

Nas últimas décadas, as abordagens econômicas da religião tornaram-se uma


questão importante na Sociologia da religião. A maior atenção tem sido dada à
chamada abordagem da escolha racional (rational choice approach),
representada, sobretudo, por Rodney Stark, Laurence Iannaccone e Roger Fink
(Schlamelcher, 2013, 257).

A teoria (abordagem) da escolha racional aplicada à religião já tinha sido


utilizada por Adam Smith:

As abordagens econômicas são tão antigas quanto as próprias teorias


econômicas. Foi ninguém menos que Adam Smith, o fundador da moderna
ciência da economia, quem incluiu a religião em sua interpretação econômica da
origem da riqueza. Sua alegação básica de que o homem em geral, definido
como Homo economicus, é programado por objetivos individuais regidos pela
razão, esforçando-se, assim, para maximizar os resultados desejados pelo
mínimo esforço, referia-se também a atores religiosos. Smith argumenta que as
ações de sacerdotes eram dominadas por seus esforços de recrutar seguidores;
isso, porém, leva necessariamente à competição entre fornecedores religiosos.
Assim, os especialistas religiosos estão expostos às forças do mercado. Como
se tornou claro, Adam Smith antecipou e estabeleceu a base para o que mais
tarde se tornaria a abordagem da escolha racional no estudo da religião (Ibid,
257).

A Teoria da Escolha Racional deseja expressar um modo de ser de


homens e mulheres. Ou seja, os seres humanos fazem escolhas baseado na
relação custo/benefício.

No entanto, quando tais seres humanos não encontram o que precisam


para suprir as suas demandas existenciais, mesmo pagando caro por isso, eles
transcendem em busca de compensadores que lhes garantam respostas certas
às suas questões:

O conceito do compensador é a chave para a teoria da religião que


  78  

apresentaremos a seguir. Quando os seres humanos não conseguem obter


recompensas intensamente desejadas com facilidade e rapidez, eles persistem
em seus esforços e podem, com frequência, aceitar explicações que ofereçam
apenas compensadores. Estes são substituídos intangíveis para a recompensa
desejada, tendo o caráter de dívidas, cujo valor deve ser aceito pela fé (Stark e
Bainbridge, 2008, 48).

Para os autores, a religião significa, portanto, uma forma de encontrar


compensadores que não são deste mundo. A fé se torna um elemento
fundamental para que a relação igreja-cliente seja fidelizada. Isto é, o fiel precisa
crer que, de fato, as promessas de tal religião são verdadeiras:

Como ocorre com todos os outros grupos sociais e organizações formais, o


comprometimento com organizações religiosas depende do equilíbrio entre
compensadores e custos que as pessoas percebem experienciar na
participação. Embora os seres humanos frequentemente aceitem
compensadores como se fossem realmente recompensas, nossa teoria
enfatizou as diferenças conceituais e empíricas entre recompensas e
compensadores. Seguramente o papel das organizações religiosas na produção
e promulgação de compensadores será óbvio. Uma ênfase maior na
“proselitização” religiosa é que a religião proverá a cura para a dor e para os
problemas. Na realidade, pelo fato das religiões recorrerem aos domínios do
sobrenatural, elas têm também uma capacidade inigualável de criar e patrocinar
compensadores. Mas também dever-se-ia enfatizar que as organizações
religiosas, como outras organizações, têm a capacidade de prover recompensas
(Ibid, 56-57).

É importante que, para os autores, exista uma diferença entre


recompensa e compensador. A primeira diz respeito ao que se ganha quando se
investe em algo. No entanto, é sabido que nem todos conseguirão ser
recompensados à altura dos seus esforços uma vez que não existe “produto”
disponível para todos por qualquer custo. Já o compensador diz respeito àquilo
que substitui a recompensa quando não se consegue obtê-la. Daí se explica o
porquê que as religiões são ( ou... de as religiões serem...) relacionadas aos
compensadores. Porquanto, uma vez que não foi possível adquirir as
recompensas terrenas recorrer-se-á “aos céus” a fim de alcançar os
compensadores.

Pensando nas igrejas que fazem parte do Protestantismo de Experência


Racional, notadamente a Igreja Batista do Morumbi e a Comunidade
  79  

Presbiteriana Chácara Primavera, os fiéis desejarão tornarem-se parte de tais


igrejas por elas diminuírem as barreiras sócio-culturais que impediriam os
mesmos de entrarem por suas portas. Isto é, o pagar menos para obter mais
(relação custo/benefício) significaria não precisar abrir mão de seu passado
sócio-econômico-cultural para poder fazer parte do hall de fiéis e, por
conseguinte, adquirir os compensadores tão desejados.

Sendo assim, este trabalho entende que a IBM e a CPCP correspondem


aos anseios de pessoas que desejam a experiência subjetiva e o entendimento
da fé.
  80  

Considerações finais –

A intenção principal deste trabalho foi mostrar que existe um novo jeito de
ser protestante no Brasil o qual foi caracterizado por meio do tipo ideal:
Protestantismo de Experiência Racional. Tal protestantismo faz um contraponto
ao de Reta Doutrina, criado por Rubem Alves.

Não obstante ter-se chegado ao final deste trabalho, algumas questões


ficam em aberto para serem trabalhadas em um eventual futuro trabalho:

O perfil dos fiéis que frequentam as igrejas do Protestantismo de


Experiência Racional

Não foi realizada uma pesquisa de campo que respondesse acerca do


tipo de pessoa que frequenta as igrejas que foram os objetos de - atenção.
Provavalmente, muitas delas se enquadram no que está sendo chamado de
Classe Emergente. Quando os fiéis das classes mais baixas começam a
ascender socialmente buscam, por conseguinte, igrejas que atendam às suas
demandas.

O tipo de liderança pastoral das igrejas do Protestantismo de Experiência


Racional

Os pastores das igrejas do PER são caracterizados pela formação


superior em teologia e outros cursos, além de possuírem títulos de Mestrado
dentro e fora do Brasil. Eles são bem articulados e treinados para interagirem
com as demandas de Marketing, Comunicação, Gestão e Liderança. Estas
habilidades são fundamentais porquanto as igrejas que lideram são grandes
organizações as quais demandam pensamento estratégico.
  81  

O personalismo do líder nas igrejas do Protestantimo de Experência


Racional

O personalismo na figura do líder principal tem sido corrente em muitas


organizações religiosas. Tal personalismo pode dificultar a futura transição de
liderança nas igrejas.

No caso da Igreja Batista do Morumbi, o fundador, Ary Veloso, conseguiu


fazer um processo de sucessão a ponto de Lisânias Moura, o seu sucessor,
conseguir levar a IBM adiante e aumentar o número de fiéis. Além disso, a IBM
possui um perfil de liderança horizontalizada. Ela possui um corpo de líderes,
pastores e presbíteros, que pregam e dirigem a igreja.

A Comunidade Presbiteriana Chácara Primavera possui como pastor


sênior o seu fundador, Ricardo Agreste. Ainda que Ricardo possua um jeito de
liderar mais “centralizado” em sua pessoa e suas ideias a liderança também é
compartilhada por um corpo de pastores e presbíteros os quais dividem com ele
as decisões fundamentais da igreja.

Como é possível observar, muitas questões terão que ficar em aberto


para serem tratadas em outro momento. O tema do protestantismo brasileiro
ainda tem muito a ser explorado. Ele vem ganhando novos contornos e cores
que valerão a pena novos pesquisadores se debruçarem buscando entender os
seus fenômenos.
  82  

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