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PROJETO LEITURA E DIDATIZAÇÃO

AS TREVAS E OUTROS POEMAS


LORD BYRON

Possíveis dialogismos trabalhados neste Projeto:

1. Ecos da recusa (Leitura 1)

2. O abade do crânio (Leitura 2)

3. Os monges negros (Leitura 3)

LEITURA 1
ECOS DA RECUSA
1

TEXTO 1
A INÊS

Não te sorrias, não, para o meu carregado aspecto. Ai!


já me não posso sorrir! Todavia, não permita o céu que ja-
mais chores, e talvez que chores em vão.
E tu inquires do oculto mal que me oprime e me corrói
a alegria e a mocidade? E quererás em vão procurar conhecer
uma dor que tu própria não poderias mitigar?
Não é amor nem ódio, não são as honras perdidas de
uma baixa ambição, que me fazem aborrecer o meu presen-
te estado e fugir de tudo o que mais prezei:
É esse tédio que ressalta de quantas cousas topo, ouço
ou vejo: a beleza nenhum prazer me dá; os teus olhos mal
têm encanto para mim.
É essa tenaz e incessante tristeza do fabulado judeu er-
rante, que nada veria além do túmulo, mas aquém dele não
espera ter descanso.
Que desterrado pode fugir de si próprio? Em quais-
Por Cid Vale Ferreira quer zonas que me ache, por mais remotas que sejam, per-
segue-me sempre, sempre a maldição da vida – o demônio possível considerar a imitação do brasileiro mais fiel ao ori-
Pensamento. ginal em qual(is) aspecto(s)?
Outros, contudo, parecem-me engolfados no prazer, sa-
boreando quanto eu deixei. Oxalá que sonhem sempre com Forma de apresentação: A fragilidade conceitual da “oposi-
transportes e que nunca despertem, ao menos, como eu! ção” entre forma e conteúdo na literatura levou alguns críticos
a propor a substituição desses termos por “forma de apresenta-
É-me destino perlustrar muitos climas com bastas re- ção” (no lugar de forma) e “forma interna” (no lugar de con-
cordações amaldiçoadas; e toda a minha consolação é saber teúdo). Com isso, reforça-se a afirmação de que – ao menos
que; suceda o que suceder, já conheci o pior. em literatura – essas duas faces de uma mesma moeda não
O que seja esse pior não o perguntes – por piedade, estabelecem oposição entre si.
foge de o indagar: continua a sorrir – e não te aventures a
desvendar o coração do homem e o inferno que existe lá. TEXTO 2
A INÊS
LORD BYRON. Peregrinação de Childe Harold. Tradução de Alberto Telles.
Lisboa: Ferreira, 1881. p. 56-57. I

1. Os tradutores dos poemas mais extensos de Byron muitas Não mais sorrias a esta fronte turva.
vezes preferiram a prosa aos versos, tendência exemplifi- Ai! – não posso pagar-te o teu sorriso;
cada pela tradução de Childe Harold’s Pilgrimage (1812-1818) Praza no entanto ao céu vedar-te as lágrimas!
publicada em 1881 pelo açoreano Alberto Telles. Leia-a aten- Praza ao céu, que jamais debalde as vertas!
2
tamente e, em seguida, compare-a à versão de Fagundes Va- II
rela (página 30). Ciente de que ambos buscaram transpor ao
português a mesma canção, prossiga às questões: Conhecer queres que desgraça oculta
Juventude e prazeres me envenena?
a) Às nove estrofes de Fagundes Varela correspondem nove Por que buscas saber que dor me punge,
parágrafos de Alberto Telles. Aponte na versão poética duas Se mesmo tu não podes mitigá-la?
estrofes cujo sentido você considere particularmente diferen-
te do sentido de seus parágrafos correspondentes. Que seme- III
lhanças e diferenças você nota no “conteúdo” expresso pelos
trechos escolhidos? Não me obriga o amor, nem mesmo o ódio,
Nem da baixa ambição perdidas honras
b) No século XIX, versões como a de Fagundes Varela não A praguejar meu fado, abandonando
eram consideradas ou denominadas traduções, mas sim Tudo o que eu mais prezava sobre a terra.
imitações, por apresentarem soluções poéticas que não se-
guiam à risca as obras originais. A versão de Alberto Telles, IV
por sua vez, é um ótimo exemplo daquilo que recebia a
alcunha de tradução, reconstituindo fielmente os aspectos É este horrível tédio que me inspira
semânticos da canção original (neste caso, à custa de sua Tudo o que vejo e ouço. A formosura
forma de apresentação). Pois bem, sabendo que os versos Cessou de me agradar; teus próprios olhos
de “To Inez” (1812) compõem paralelismo métrico, e que Conservam para mim encanto apenas.
suas estrofes seguem o mesmo esquema de rimas, seria
V 2. Nenhum outro poema de Byron foi tão traduzido no Brasil
quanto “To Inez”, e o confronto de suas diferentes versões
É a sombria dor que acompanhava tem se mostrado no mínimo revelador. Segundo nossos le-
O fabulado Hebreu no mundo errante: vantamentos, a primeira tradução brasileira da canção foi
Temo os olhos lançar além da campa; publicada no ano de 1848. Confronte-a com a imitação de Fa-
E entanto nela só repouso aguardo. gundes Varela, “Childe Harold” (página 30), publicada mais
de 15 anos depois, e atente ao estilo de ambas as versões. A
VI seguir, responda:

Que exilado evitar pode a si próprio? Estilo: Na criação literária, é a escolha de recursos expressivos da
língua que refletem as intenções e a natureza de quem escreve.
Inda mesmo nos mais remotos climas,
Persegue-me o flagelo da existência,
E o terrível Demônio – o Pensamento. a) Em qual versão é possível perceber uma maior carga de
elementos que evocam a morte, os mortos ou o aparato sepul-
VII cral? Justique sua resposta com elementos do próprio texto.

Gozem outros arroubos de delícias, b) Que temas de “To Inez” podem ser identificados na tradu-
E em paz desfrutem tudo o que abandono! ção de João Cardoso?
Oxalá que aos seus sonhos de ventura
3
Mais feliz despertar os céus lhe fadem! c) Os temas que você identificou se mantiveram intactos na
imitação de Fagundes Varela?
VIII

Sou condenado a errar por mil países, TEXTO 3


C’o anátema horroroso das lembranças: FOGE DE MIM
Meu consolo ao sofrer desgraças novas,
É que a maior de todas já feriu-me. Foge de mim, qual foge o passarinho
Do tronco estéril sem raiz na terra,
IX Sem sombra nem folhagem;
Foge, – não queiras perscrutar desta alma
Que desgraça esta é. – Ah! não me inquiras; A lúgubre voragem.
Por piedade; sim, não me interrogues:
Continua a sorrir; rasgar não busques Não vás crestar nas chamas de meu peito
O véu de um coração que oculta o inferno. Do cálix teu a mádida frescura,
Gentil, cândido lírio;
LORD BYRON. A Ignez. Tradução de João Cardoso de Meneses e Sousa Foge, – não queiras esgotar comigo
Júnior. Ensaios Litterarios, São Paulo: Typographia do Governo. p. 18-19. 1848. A taça do martírio.

Sorris?… oh! quanto é belo o teu sorriso;


Mas em minha alma derramar não podem
Nem sombra de ventura; Hera mimosa e tenra, oh! não te abraces
São como os raios da manhã fulgindo Ao tronco estéril sem raiz na terra,
Em feia sepultura. Sem folhagem no céu;
Melhor seria te envolvesse a fronte
Ah! tu choras; – e as lágrimas que vertes, O mortuário véu.
Na aridez de meu peito vêm secar-se,
Bem como almo rocio, GUIMARÃES, Bernardo Joaquim da Silva. Poesias de B. J. da Silva Guimarães.
Que o céu derrama em vão na ardente areia Rio de Janeiro: B.-L. Garnier, 1865. p. 295-297.
De páramo bravio.
3. Entre os principais motivos literários que nortearam a po-
Dizem que os dias meus correm serenos!… esia byroniana brasileira, o da recusa amorosa, de notável dis-
Não creias, não; – a paz que me rodeia seminação, pode ser exemplificado por obras como “Versos
É lúgubre ironia; escritos sobre um álbum” (1849), do Barão de Paranapiacaba,
É como essa que os túmulos povoa, “Foge de mim” (1865), de Bernardo Guimarães, “Amargura”
Paz gélida e sombria. (1873), de Aureliano Lessa, e “Descrença” (poema anônimo
publicado pelo periódico carioca A Luz em 1872). Além do
Quem me dera chorar! – o pranto é sangue tema, os poemas supracitados compartilham o mesmo mo-
Que nos escorre das feridas d’alma, delo estético e formal: a canção “To Inez” (da qual você pôde
E o gérmen peçonhento ler duas traduções e uma imitação em português). Reflita
4
Delas lavando, um pouco a dor acalma, sobre essas afirmações e responda:
E adoça o sofrimento.
Motivo: Tema que, recorrente em determinado autor ou tradição,
serve como o desencadeador de uma ou mais ações. O motivo da mu-
Não vertem sangue as úlceras desta alma, lher idealizada que esvaece, sumindo nas ondas ou evaporando, por
E nem ressoa fora de meu peito exemplo, pode servir de ponto de partida para o tratamento da deca-
De minha dor o grito. dência de determinado modelo de feminilidade.
Em suspiros não sai; – tenaz se agarra
Ao coração aflito. a) Que elementos do poema de Bernardo Guimarães podem
confirmar ou refutar a afirmação do enunciado de que “Foge
Eu bem quisera amar-te; – mas como hei de de mim” também se modela em “To Inez”?
Guiar-te pelas sendas em que piso,
Em que só vejo espinhos?… b) Aponte as três passagens do poema brasileiro em que há
Como?!… se para mim estão fechados intertextualidade com a canção inglesa. Os trechos selecio-
Do porvir os caminhos?… nados citam Byron repercutindo ou subvertendo o sentido
geral de seus versos?
Fica-te pois em teu puro horizonte,
Belo astro de amor, e não pretendas Intertextualidade: Aspecto da transtextualidade que consiste na pre-
Perder tua luz pura, sença de aspectos de um texto em outro por meio de citações, alusões,
plágios etc.
Nesta, que a triste vida me escurece,
Medonha noite escura.
c) Em “Foge de mim”, Bernardo Guimarães lança mão de vá- 1. Poucos trechos da longa seqüência de entrevistas entre Byron
rias imagens poéticas. Algumas delas são elaboradas como e Medwin foram tão reproduzidos quanto o que acabamos de
símiles, figuras de pensamento que se diferenciam das me- destacar. Ao confirmar rumores a respeito de seu crânio-taça, a
táforas por relacionarem seres de natureza diversa por meio declaração do poeta serviu de base não apenas a ensaios críticos
de conectivos comparativos (“um sentimento é como uma e biográficos, mas também a uma longa lista de textos aciden-
paisagem”, “um ser vivo é como um fenômeno natural” etc.). tais que ajudaram a exportá-lo como um semideus do imaginá-
Identifique os quatro símiles presentes no poema e respon- rio frenético. A surpreendente acolhida desse trecho fez com
da: como eles caracterizam o enunciador? que ele se tornasse a maior referência sobre a vida estudantil
de Byron, com desdobramentos literários fundamentais ao de-
senvolvimento da ficção byroniana brasileira. Voltemos a ele,
LEITURA 2 portanto, como ponto de partida de outras reflexões:

O ABADE DO CRÂNIO a) O local de residência de Byron (uma abadia medieval), a


suposição de que o crânio desenterrado tenha pertencido a
TEXTO 4 um frei ou monge, o estabelecimento de uma “nova ordem”
monástica e o abuso de jargão eclesiástico católico (“capítu-
Foi encontrado pelo jardineiro, durante uma escavação, um lo”, “consistório” etc.), entre outros elementos, impregnam
crânio que provavelmente pertenceu a algum venturoso frei ou o relato de elementos próprios à esfera religiosa. De que ma-
monge da Abadia nos tempos em que ela foi “desmonasterizada”. neira o Catolicismo é tratado no texto?
5
(…)
Ao observar-lhe o tamanho gigante e o perfeito estado de b) Ao qualificar Abade do Crânio como “um imponente títu-
preservação, vi-me tomado pelo estranho capricho de adaptá-lo e lo heráldico” e descrever seus companheiros de orgia como
montá-lo como uma taça. Conseqüentemente, enviei-o à cidade, “deuses do Consistório”, Byron emprega uma linguagem hi-
e ele retornou perfeitamente polido, em cores matizadas como perbólica (propositalmente exagerada) ou irônica (contrária
as dos cascos de tartaruga (o Coronel Wildman é seu dono ago- ao que realmente deseja expressar)? Justifique sua resposta
ra). Lembro-me de ter escrito alguns versos a respeito, mas isso com elementos do contexto do qual as expressões constam.
não foi tudo: posteriormente, estabeleci na Abadia uma nova
ordem. Seus membros somavam doze, e eu me autodeclarei c) O poema de Byron traduzido por Castro Alves como “A uma
grão-mestre, ou Abade do Crânio, um imponente título herál- taça feita de um crânio humano” (página 26) foi fielmente ver-
dico. Um conjunto de hábitos negros, o meu diferenciado dos tido ao português por Péricles Eugênio da Silva Ramos. O título
demais, foi encomendado, e de tempos em tempos, quando um de sua versão publicada em 1989, “Versos inscritos numa taça
dia particularmente revolto era esperado, um capítulo era con- feita de um crânio”, reforça o tom de profanação observável no
vocado; o crânio era então preenchido com vinho tinto e, numa original ao sugerir que as convidativas estrofes lidas na caixa
imitação dos antigos godos, circulado pelos deuses do Consistó- óssea teriam sido gravadas por um terceiro. Ciente dessa sutile-
rio, enquanto várias piadas sinistras eram feitas a sua custa. za do título original, relacione o poema ao relato de Byron para
tecer argumentos a favor de apenas uma das seguintes propo-
Tradução do organizador. sições: 1) “os versos que lemos são manifestações debochadas
MEDWIN, Thomas. Conversations of Lord Byron: noted during do espírito da caveira, que procura atenuar seu presente esta-
a residence with his lordship at Pisa, in the years 1821 and 1822. do e encorajar seu portador a beber nela”; 2) “os versos que
London: Henry Colburn. 1824. p. 70-71. lemos são o toque final de abuso por parte daquele que, além
de não devolver o crânio ao túmulo, transformou-o em taça se me quereis bem, para beber por esta taça.
por capricho e, por meio das inscrições, fez dele uma espécie Homero vos diria: “Agathos a possuía de Osmindas;
de fantoche a ironizar a própria profanação”. Osmindas a ganhara a Triptolemo nos jogos do Disco; Trip-
tolemo a recebera de Júpiter”. Mas eu digo-vos: “Está cheia
TEXTO 5 de vinho das Canárias”. Bebei!
UMA ORGIA DE LORD BYRON EM VENEZA – É extraordinário, Byron. Que louca idéia a de fazer en-
gastar em ouro esta taça de marfim, assentá-la sobre um pé a
“Tratávamos, amigos, da imortalidade da alma. É uma semelhar um esqueleto cujos olhos ocos de nós escarnecem,
verdade de sentimento? É uma verdade de razão? É mister cuja boca parece beber conosco! Byron, sois egípcio e quereis
entendermo-nos; e, para isso, bebamos! que vossos amigos alegres vos paguem a quota da tristeza?…
– É uma verdade de sentimento. Vamos, ei-lo no delírio da melancolia. Peters, leva esta taça!…
– Peters! destapa o champanhe, e dize-nos se sentes a – Deixai-a… Vou contar-vos. Era uma mulher que en-
tua alma em algum lugar. contrei em uma casa de jogo; sua sociedade era de dissolutos,
– Com o respeito que vos devo, Senhor, certo que não. banqueiros, membros do parlamento, filhos de lords, duques
– Bem! chamem o meu cocheiro, o meu moço da es- e condes. Em sua casa, Sardanapalo corara; mas ali, viva São
trebaria, os meus criados todos, e perguntem-lhes se têm o Jorge, estávamos mais à vontade do que em um palácio,
sentimento da sua alma. Senhores; nos entregávamos sem reserva ao vinho, à licen-
– É inútil, Byron. Será, se o quiserdes, uma verdade de ça, ao prazer; eram mulheres que nos embriagavam, a nós
razão. aristocratas, com todo o descaro. Se tivésseis visto a minha;
6
– De razão? – Por São Jorge! estou louco, eu, que não tomava rapé como Southey, o poeta, e cigarrava como um
creio nela! – Ouvi, amigos, é uma disputa frívola. Acredi- andaluz. Pobre mulher! amei-a…
tamos em uma alma, como acreditamos na Providência “Oh! peregrinei o mundo, bem o sabeis, Senhores; res-
quando não temos nem um real. Possuindo mil guinéus, sou pirei o perfume das rosas de Madri, das pálidas anêmonas de
ateu, bebo; tendo apenas quinhentos, sou pirrônico, discuto Portugal, dos lírios da França. Falemos sem figuras; – amei
e duvido; quando tenho cem, sou deísta, creio; enfim quan- as mulheres belas de todas as nações; conheci algumas que
do nada tenho, sou religioso, oro e – amo. Porque é preciso para me verem, a mim, Byron, saltaram de noite os muros
ter uma alma profundamente religiosa para amar. No amor do convento; outras que por paixão se afogaram no mar; ou-
– tudo é religião. O gérmen é o mesmo. Amai uma espa- tras que se finaram sem revelar o segredo de suas dores.
nhola e ouvi uma missa de finados; vede seus olhos negros Ri-me delas como um louco: porque após uma – outra: o Sol
a vos seguirem por entre as pilastras de uma catedral e con- faz o mesmo: elas e as flores: num dia as cora, as desabotoa;
templai os pálidos brandões esmorecidos pelo incenso – que no dia seguinte as mirra.
banham com sua luz mortiça a imagem da Virgem; tomai “Porém ela, com seu vício e suas cartas e seus dedos
da mão acetinada da castelhana ou mergulhai vossos dedos carregados de diamantes e sua conversação cínica e sua
na pia de pórfido; casai-a ao vosso peito – a ela com suas ebriedade e seu brutal marido, ei-la sempre diante de mim.
lágrimas, seus gritos e sua mantilha enrugada ou embebei- Dir-vos-ei por que a amei tanto.
vos no êxtase ao levantar o sacerdote a Hóstia no momento “Porque tinha um marido que envenenou por amor de
da consagração; e depois – perguntai ao coração a diferença mim: um homem belo, timbaleiro do Royal Cumberland.
que sente nessas duas emoções. Amigos – nenhuma. Assim, “Seu crime a conduziu ao cadafalso. Sou a causa da
pois, orar é amar; beber, – ainda é amar. O amor e a religião sua morte, bem o vedes; ah! deixai-me prantear a mulher
existem em toda parte. A propósito disso convido-vos a todos do timbaleiro!”
– Mas por quê, Byron, a propósito da história da taça b) Leia o seguinte trecho sobre a fase estudantil de Byron:
vêm as recordações de uma libertina que hoje é apenas um “Formava uma espécie de associação monástica com os seus
pouco de pó? amigos e bebiam num crânio montado e cinzelado em pra-
– Um pouco de pó? Em presença da morte, ao lem- ta; o que originou a infundada crença vulgar de que bebiam
brar-me de tamanha perda, nada de materialismo, Senhores. pelo crânio de uma fantástica amante que imaginavam mor-
Creio na imortalidade da alma, na ressurreição da carne, na ta violentamente”. Confronte mentalmente o poema “A uma
remissão dos pecados, na vida eterna. taça feita de um crânio humano” (página 25), o relato sobre a
– Amém! Byron, mas não choreis com tanta paixão um “nova ordem” colhido por Thomas Medwin e esse fragmen-
dia de embriaguez. to biográfico por Emilio Castelar. De acordo com esses tex-
– Que eu não chore?! Pois não sabeis que na noite da tos, seria mais adequado descrever o conto de Gozlan como
sua execução, procurei por ela, cortei-lhe a cabeça e mandei um tratamento literário de “elementos contidos no poema de
ferver essa cabeça? Não a comi, acreditai-o! Tirei-lhe os cabe- Byron”, de “um de seus mais notórios episódios biográficos”
los e a carne, e quando a mão do artista a poliu, um joalheiro ou de “uma das várias lendas circuladas a seu respeito”?
de Milão ma afeiçoou em taça!
– Grande Deus! Byron, fizeste-nos beber no crânio da TEXTO 6
vossa querida! BERTRAM (EXCERTO)
E Byron caiu, completamente ébrio, debaixo da mesa.
(…)
GOZLAN, Léon. Uma orgia de Lord Byron em Veneza. Trad. A. Ensaios – Por que empalideces, Solfieri? a vida é assim. Tu o
7
Litterarios, São Paulo: Typographia do Governo. p. 19-21. 1848. sabes como eu o sei. O que é o homem? é a escuma que
ferve hoje na torrente e amanhã desmaia: alguma coisa de
louco e movediço como a vaga, de fatal como o sepulcro!
2. Traduzido e publicado no Brasil sete anos após sua pu- O que é a existência? Na mocidade é o caleidoscópio das
blicação, o conto do francês Léon Gozlan figurou entre ilusões: vive-se então da seiva do futuro. Depois envelhece-
os principais alicerces da nossa produção byroniana. Suas mos: quando chegamos aos trinta anos e o suor das agonias
características – a estrutura dramática (na qual o diálogo nos grisalhou os cabelos antes do tempo, e murcharam
predomina sobre a narração e a descrição), a ambientação como nossas faces as nossas esperanças, oscilamos entre o
simposíaca (focada nas conversas de orgias e festins), a passado visionário, e este amanhã do velho, gelado e ermo
tematização de discussões filosóficas enviesadas pela em- – despido como um cadáver que se banha antes de dar à
briaguez e o rememorar de histórias fatais protagonizadas sepultura! Miséria! loucura!
pelo próprio simposiarca – serviram de modelo a trechos – Muito bem! miséria e loucura! interrompeu uma voz.
de obras de vulto como “Folhas de minha carteira – fatali- O homem que falara era um velho. A fronte se lhe des-
dade” (1850), de Andrada e Silva, e Noite na taverna (1855), calvara, e longas e fundas rugas a sulcavam – eram ondas
de Álvares de Azevedo. Tenha em mente tais elementos ao que o vento da velhice lhe cavava no mar da vida… Sob espes-
prosseguir às questões. sas sobrancelhas grisalhas lampejavam-lhe os olhos pardos
e um espesso bigode lhe cobria parte dos lábios. Trazia um
a) Contraste o relato do Byron real às lembranças do Byron gibão negro e roto, e um manto desbotado, da mesma cor
fictício e responda: qual dos dois textos trata a aquisição lhe caía dos ombros.
do crânio de maneira “trágica”? Justifique sua resposta.  CASTELAR, Emilio. A vida de Lord Byron. Tradução de M. Fernandez Reis. Porto: Typo-
graphia do Jornal do Porto, 1876. p. 41.
– Quem és, velho? perguntou o narrador. – Não bradastes – miséria e loucura! – vós, almas onde
– Passava lá fora: a chuva caía a cântaros: a tempestade era talvez borbulhava o sopro de Deus, cérebros que a luz divina
medonha: entrei. Boa noite, senhores! se houver mais uma taça do gênio esclarecia, e que o vinho enchia de vapores e a sa-
na vossa mesa, enchei-a até às bordas e beberei convosco. ciedade de escárnios? Enchei as taças ate à borda! enchei-as e
– Quem és? bebei; bebei à lembrança do cérebro que ardeu nesse crânio,
– Quem eu sou? na verdade fora difícil dizê-lo: corri da alma que aí habitou, do poeta-louco – Werner! e eu brada-
muito mundo, a cada instante mudando de nome e de vida. rei ainda uma vez: – miséria e loucura!
– Fui poeta – e como poeta cantei. Fui soldado e banhei (…)
minha fronte juvenil nos últimos raios de sol da águia de
Waterloo. – Apertei ao fogo da batalha a mão do homem AZEVEDO, Alvares de. Noite na taverna. In: PIRES, Homero (org.). Obras
do século. Bebi numa taverna com Bocage – o Português, completas de Alvares de Azevedo. São Paulo/Rio de Janeiro/Recife/Porto Alegre:
ajoelhei-me na Itália sobre o túmulo de Dante – e fui à Gré- Companhia Editora Nacional. 1942. v. 2. p. 112-115.
cia para sonhar como Byron naquele túmulo das glórias
do passado. – Quem eu sou? Fui um poeta aos vinte anos, 3. Publicação póstuma de Álvares de Azevedo, Noite na taver-
um libertino aos trinta – sou um vagabundo sem pátria e na (1855) é uma das obras mais lidas do Romantismo brasi-
sem crenças aos quarenta. Sentei-me à sombra de todos os leiro. Conhecê-la bem é familiarizar-se com alguns dos prin-
sóis – beijei lábios de mulheres de todos os países – e de cipais motivos de nossa produção byroniana, e entender seu
todo esse peregrinar só trouxe duas lembranças – um amor diálogo com a tradição literária européia é o primeiro passo
de mulher que morreu nos meus braços na primeira noite para a compreensão do papel exercido pela transtextualidade
8
de embriaguez e de febre – e uma agonia de poeta… Dela, em nosso byronismo. Leia atentamente o trecho selecionado
tenho uma rosa murcha e a fita que prendia seus cabelos. e estabeleça mentalmente alguns paralelos entre o excerto
– Dele – olhai… de Álvares de Azevedo e o conto de Léon Gozlan. Em segui-
O velho tirou do bolso um embrulho: era um lenço ver- da, prossiga às questões a seguir.
melho o invólucro: desataram-no: dentro estava uma caveira.
– Uma caveira! gritaram em torno: és um profanador a) Assim como no conto francês, em determinado momento
de sepulturas? os convivas reunidos no texto brasileiro voltam suas aten-
– Olha, moço, se entendes a ciência de Gall e Spurzheim, ções a um crânio humano. Em relação ao uso que se faz
dize-me pela protuberância dessa fronte, e pelas bossas dessa delas, o que diferencia as duas caveiras dessas obras? E em
cabeça quem podia ser esse homem? relação ao relato de Byron? O sentimento que leva os porta-
– Talvez um poeta – talvez um louco. dores fictícios de ambas as “relíquias” a mantê-las é o mes-
– Muito bem! adivinhaste. Só erraste não dizendo que mo demonstrado pelo poeta inglês?
talvez ambas as coisas a um tempo. Sêneca o disse – a poe-
sia é a insânia. Talvez o gênio seja uma alucinação, e o en- b) Atente às seguintes passagens: “um poeta aos vinte anos,
tusiasmo precise da embriaguez para escrever o hino san- um libertino aos trinta – sou um vagabundo sem pátria e
guinário e fervoroso de Rouget de l’Isle, ou para, na criação sem crenças aos quarenta”, “beijei lábios de mulheres de
do painel medonho do Cristo morto de Holbein, estudar todos os países” e “um amor de mulher que morreu nos
a corrupção no cadáver. Na vida misteriosa de Dante, nas meus braços”. Relacione esses trechos ao conto de Gozlan
orgias de Marlowe, no peregrinar de Byron havia uma som- e responda: já que Álvares de Azevedo figurava entre os co-
bra da doença de Hamlet: quem sabe? laboradores do periódico Ensaios Litterarios, no qual a tradu-
– Mas a que vem tudo isso? ção desse conto foi publicada, é bastante provável que ele
a tenha lido; assim, caso as passagens assinaladas tenham a passagens de Don Juan. Baseado na leitura desse trecho e da
sido cunhadas visando à intertextualidade, quais seriam as canção “O monge negro” (página 59), responda:
prováveis passagens da obra francesa que nosso poeta teria
implicado em seu texto? a) Segundo Galt, o “fantasma do monge” faz sua “aparição
ominosa [ou seja, de mau agouro] quando desventura ou
c) Assuma que o “velho” do trecho lido tenha sido efetivamen- morte iminente ameaçam o mestre da mansão”. Além des-
te calcado em Byron. Em sua opinião, com “qual Byron” esse sas duas circunstâncias (desventura e morte), quais são as
homem compartilha mais traços comuns: o poeta de “carne e duas outras ocasiões em que, de acordo com o poema, é co-
osso” ou a personagem de Gozlan? Justifique sua resposta. mum que o espectro se manifeste?

b) Em outra curiosa passagem da biografia publicada por


LEITURA 3 Galt, o autor conjectura que o crânio encontrado pelo jardi-
neiro de Byron “deve ter sido o do monge que assombrava a
OS MONGES NEGROS casa, ou de um de seus ancestrais, ou de alguma vítima da
sisuda raça”. É possível apontar, em “O monge negro”, pas-
TEXTO 7 sagens que confirmem essa suposta relação entre o espectro
e o crânio-taça de Byron?
É algo de curioso e místico o fato de, no período ao qual
aludo – e pouquíssimo tempo, apenas um mês, antes de ele
9
pedir com êxito a mão da senhorita Milbanke –, estando em TEXTO 8
Newstead, ele cogitar ter visto o fantasma do monge que su- O MONGE DO HORROR; OU, O CONCLAVE DE CADÁVERES
postamente assombra a abadia e faz sua aparição ominosa
quando desventura ou morte iminente ameaçam o mestre da Há cerca de trezentos anos, nos dias de glória do convento
mansão. – A história da aparição no décimo sexto canto de de Kreutzberg, um dos monges ali confinados, desejoso de ave-
Don Juan deriva dessa lenda familiar, e a Abadia Normanda, riguar algo acerca da posteridade daqueles cujos corpos jazem
no décimo terceiro canto do mesmo poema, é uma descrição incorruptos no cemitério, visitou-o desacompanhado na calada
rica e elaborada de Newstead. da noite a fim de esclarecer suas dúvidas a respeito daquele te-
meroso assunto. Tão logo abriu o alçapão da câmara, uma luz
Tradução do organizador. GALT, John. The Life of Lord Byron. irrompeu de baixo; supondo, porém, tratar-se da lamparina do
New York: J & J. Harper, 1830. p. 185. sacristão, o monge recuou e aguardou sua passagem escondido
atrás do elevado altar. O sacristão, porém, não saiu pela aber-
1. Em 1830, o poeta inglês Thomas Moore, amigo íntimo de tura e, cansado de esperar, o monge aproximou-se e finalmen-
Byron durante boa parte de sua vida, publicou o indispensável te desceu os degraus tortuosos rumo à lúgubre profundeza.
Letters and journals of Lord Byron. Exaustivamente citadas pelas Assim que seus pés palmilharam o último lance de escadas,
biografias do poeta, as notas de rodapé do livro freqüentemen- o cenário bem conhecido por ele havia sofrido uma completa
te ressurgiam transplantadas em outros textos. Uma delas, a transformação ante seus olhos. Há tempos ele se acostumara a
que relata o encontro de Byron com o lendário “monge ne- visitar a câmara, e, cada vez que o sacristão para lá se dirigia, era
gro” da abadia de Newstead, por exemplo, serviu de base para quase certo que ele o acompanhasse. Dessa forma, conhecia
um trecho da biografia The life of Lord Byron (1830), de John cada uma de suas partes tão bem como o interior de sua estreita
Galt, que a expandiu relacionando-a ao casamento de Byron e cela; além disso, a disposição de seu conteúdo era perfeitamen-
te familiar ao seu olhar. Destarte, qual não foi seu horror ao fazer; suas faculdades rapidamente o abandonavam; o Céu pa-
perceber que esse arranjo, que até aquela manhã pareceu-lhe recia tê-lo deserdado por sua incredulidade. Nesse momento de
normal, apresentava-se inteiramente alterado, tendo sido subs- dúvida e temor, lembrou-se de orar e, à medida que prosseguia,
tituído por uma nova e insólita arrumação? sentiu-se possuído por uma confiança que até então desconhecia.
Permeou o breu da desolada câmara uma luz crepitan- Ele olhou o livro à sua frente. Era um grande tomo, de encader-
te e débil, quase incapaz de vislumbrar-lhe aquele panorama nação preta reforçada por tiras de ouro, com um fecho do mes-
da mais singular descrição. mo metal. No cabeçalho de cada página lia-se Liber Obedientiae.
Por todos os lados, os corpos mumificados dos confrades Nada mais pôde ler. Então olhou, primeiro nos olhos
inumados há tempos estavam sentados em seus caixões des- daquele ante quem o livro se abria, depois nos de seus pares.
tampados; seus gélidos e faiscantes olhos encaravam-no com Finalmente, viu ao redor da cripta os cadáveres que ocupa-
mortuosa rigidez, seus definhados dedos cobriam-lhes os pei- vam cada esquife visível nesse negro e vasto útero. A fala se
tos, seus membros enrijecidos permaneciam silenciosamente lhe apresentou, assim como a iniciativa de usá-la. Dirigiu-se
estáticos. Era uma visão de petrificar os mais intrépidos cora- aos seres hediondos em cuja presença se encontrava, com
ções, e o monge horripilou-se ante ela, apesar de ser um filó- termos próprios de alguém com autoridade sobre eles.
sofo e, além disso, cético. Na porção mais elevada ao fim da – Pax vobis – destarte se pronunciou.
câmara, numa mesa rústica formada por um esquife deteriora- – Hic nulla pax – respondeu-lhe um velho monge num
do, ou algo que servira ao mesmo propósito, sentaram-se três timbre trêmulo e solene, enquanto descobria seu peito.
monges. Eram os cadáveres mais antigos do ossário, pois o ir- Ele apontou o próprio tórax enquanto falava – e o mon-
mão inquisitivo conhecia bem seus rostos; e o matiz cadavérico ge, deitando ali o seu olhar, entreviu sob suas costelas um
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de suas faces parecia ainda mais cadavérico na penumbra sobre coração cercado por chamas que dele pareciam alimentar-se
elas projetada, enquanto as ocas órbitas de seus olhos exalavam sem, porém, consumi-lo. Virou-se num transporte de hor-
algo como centelhas fumegantes. Um grande livro jazia aberto ror, mas não encerrou sua interpelação.
ante um deles, e os outros se debruçaram sobre a mesa apo- – Pax vobis in nomine Domini – ele tornou a dizer.
drecida contorcendo-se como se padecessem de intensa dor, ou – Hic non pax – os tons abismais e pungentes do vetusto
com profunda e absorta atenção. Palavra alguma foi dita; som monge sentado à direita na mesa ressoaram como resposta.
algum foi ouvido; a câmara estava quieta como um túmulo; Após essas palavras, o ente a quem elas se endereça-
seus funestos inquilinos, estáticos como estátuas. vam levantou sua cabeça, aproximou sua mão e, fechando o
O curioso monge daria tudo para retirar-se deste lugar livro com forte estampido, disse:
horrível, daria tudo para descobrir o caminho de volta e procu- – Fala. Cabe a ti perguntar e a mim responder.
rar novamente sua cela, daria tudo para fechar seus olhos ante a O monge sentiu-se assegurado e, com isso, sua cora-
cena aterradora; mas ele não conseguia afastar-se daquele local, gem reergueu-se.
sentia-se enraizado ali. Apesar de antes ter conseguido volver seu – Quem sois vós? – ele interpela; – quem podeis ser?
olhar à entrada da câmara, para sua infinita surpresa e desolação – Não sabemos! – foi a resposta, – lástima! Não sabemos!
ele não era mais capaz de apontá-la, nem de perceber quaisquer – Não sabemos, não sabemos! – ecoaram em tons me-
meios de escapar. Assim permaneceu por alguns instantes até rencórios os habitantes da câmara.
que, finalmente, o velho monge à mesa acenou para que se apro-
ximasse. Com passos lentos e hesitantes ele avançou ao grupo,  “Livro da Obediência.”
parando a seguir diante da mesa, enquanto os demais monges  “Que a paz esteja convosco.”
 “Não há paz alguma aqui.”
levantaram suas cabeças e o encararam fixamente com olhares  “Que a paz esteja convosco, em nome do Senhor.”
vítreos que congelaram seu sangue nas veias. Ele não sabia o que  “Não há paz aqui.”
– O que fazeis aqui? – prosseguiu o inquiridor. clave of corpses” teve sua sobrevida garantida por antologias
– Aguardamos o derradeiro dia, o dia do Juízo Final! que, ao traçar a história da literatura terrífica, o utilizaram
Quão desafortunados! Ai de nós! como exemplo dos títulos baratos que diluíram os lugares-
– Ai de nós! – reverberaram todos os lados. comuns do romance gótico inglês entre a população de baixa
O monge estava consternado, mas mesmo assim renda. Seu clímax alude ao final de Vathek (1786), de William
prosseguiu. Beckford, no qual é revelada a punição do arquidemônio
– Que fizestes para merecer tal fadário? Qual crime Eblis àqueles que alimentam paixões irrefreáveis: a “perda
vosso seria merecedor de tal pesar e angústia? da esperança”, acompanhada de chamas inextinguíveis que
Ao levantar a questão, o solo sob ele tremeu, e uma tur- lhes devorarão o coração. Ao lê-lo, tenha em mente o poema
ba de esqueletos empilhou-se de um sem-número de covas “O monge negro” e, após sua leitura, prossiga às questões:
repentinamente escancaradas aos seus pés.
– Aí estão nossas vítimas – respondeu o velho monge. Romance gótico: Escola do romance inglês iniciada pela publicação do influente
– Elas sofreram em nossas mãos. Sofremos agora, enquanto O Castelo de Otranto (1865), de Horace Walpole. Seus enredos, geralmente am-
bientados na Idade Média, eram pontuados pelas atrocidades de vilões marcan-
estão em paz; e continuaremos a sofrer.
tes que ameaçavam uniões amorosas. Entre seus principais recursos, destaca-se
– Por quanto tempo? – perguntou o monge. o uso ora requintado, ora sensacionalista de referências do imaginário sobrena-
– Para todo o sempre! – foi a resposta. tural, geralmente pinçadas de antigas lendas e superstições. A estética gótica na
– Para todo o sempre, para todo o sempre! – o som dis- literatura predominou na ficção e no drama ingleses até a década de 1820, mas
inúmeras obras românticas e vitorianas também beberam de seu legado.
sipou-se ao longo da câmara.
– Que Deus tenha piedade de nós! – foi tudo o que o
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monge pôde exclamar. Os esqueletos sumiram, os túmulos a) No aparato fantasmagórico da literatura gótica, freiras,
lacrando-se sobre eles. Os anciãos desapareceram de sua vis- padres e monges mortos-vivos geralmente desempenham
ta, os cadáveres tombaram de volta aos seus esquifes, o lume papéis secundários, e romances como O monge (1796),
extinguiu-se e o covil de morte foi mais uma vez recoberto Manuscrito encontrado em Saragoça (1805) e Melmoth, o
por seu negrume usual. viandante (1820) o comprovam. Porém, nos contos góticos
Em seu despertar, o monge se viu estendido ao pé do al- publicados nos panfletos baratos conhecidos como gothic
tar. A aurora plúmbea de uma manhã primaveril se fez visível bluebooks, a brevidade das narrativas não permitia a exis-
e ele ansiava por retirar-se tão secretamente quanto lhe fosse tência de algo como um “enredo secundário”, o que fazia
possível, temeroso da possibilidade de ali flagrarem-no. com que o episódio sobrenatural apresentado se tornasse
Daí em diante, diz a lenda, ele evitou a vã filosofia e o cerne do texto, implicando assim todos os traços de sua
– devotando seu tempo à busca do verdadeiro conhecimen- carga ideológica. Observe a caracterização dos monges mu-
to e à extensão do poder, da grandeza e da glória da Igreja mificados, compare-a com a do “monge negro” e respon-
– morreu no odor da santidade e foi enterrado naquela cripta da… Em qual caso a “morte em vida” é um meio de o(s)
sagrada, onde seu corpo ainda pode ser visto. monge(s) se vingar(em)? Em qual caso ela é um castigo
para ele(s)?
Tradução do organizador.
THE monk of horror. In: HAINING, Peter (ed.). Great british tales of terror. b) O conto exala um acentuado anticatolicismo, algo mui-
Harmondsworth: Penguin, 1974. p. 133-137. to comum na literatura da Inglaterra, um país anglicano.
Aliás, o fato de essa história publicada no século XVIII ter
2. Publicado originalmente na coletânea Tales of the Crypt sido ambientada na Alemanha de “trezentos anos atrás”
(1798), o conto anônimo “The monk of horror, or The con- (ou seja, antes da Reforma de Martinho Lutero), deixa claro
que o convento de Kreutzberg abriga uma ordem católica. verdes. Voltei o rosto para o lado… Oh! meu Deus! era hor-
Da mesma maneira, o “monge negro” de Byron também rível o que eu!…
já assombrava sua abadia antes da dissolução da Igreja – Então calaste?… gritou o comandante já um pouco
Católica na Inglaterra: há até mesmo uma passagem que impressionado.
evoca as ordens do rei Henrique VIII, o criador do Angli- – Eu vi, continuou André lentamente, eu vi uma figu-
canismo, no sentido de que inúmeras construções católi- ra sombria e medonha! era um frade; o capuz cobria-lhe
cas fossem desapropriadas e vendidas aos nobres. Ciente a cabeça, e lá dentro, à luz amarelenta de um círio que
desses dados, responda: em sua opinião, é possível que trazia na mão, divisei um rosto lívido e esverdeado como
– nos dois textos – essa caracterização terrível do passado o de um cadáver, e dois olhos que ardentes inflamados
católico coexista com elementos de valorização do Cristia- me faziam correr calefrios nas veias. Atrás dele vinham
nismo? Justifique sua resposta com passagens das obras. quatro vultos todos mais alvos do que a neve, e seguravam
com uma mão um chicote fumarento, enquanto a outra
TEXTO 9 sustinha um caixão mortuário. Eles caminhavam lentos
A GUARIDA DE PEDRA (EXCERTO) que parecia gastar uma hora para mover um pé; e canta-
vam com voz trêmula e cavernosa a encomendação dos
(…) defuntos. Um vento gelado e furioso corria por todos os
O soldado levantou-se um pouco sobre o cotovelo, pas- lados, as aves da morte piavam desoladamente, as ondas
sou a mão pela testa, e falou desta maneira: exalavam soluços frenéticos, batendo-se umas contra as
– Eu estava encostado à guarida com minha espin- outras. Entretanto a diabólica procissão caminhava sem-
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garda ao lado, e assobiava para distrair-me do medo que pre. O frade que ia na frente estava já perto, e estendia seu
se tinha apoderado de mim. Sem uma estrela acordada, o braço de esqueleto para me agarrar.
céu era negro como uma furna, o vento corria desespera- – Valha-me, Nossa Senhora! gritei eu, então tudo sumiu-
do, e o mar empolado batia com tal fúria sobre as pedras se, frade, espectros, caixão mortuário, e eu caí sem sentidos
que até fazia a escuma entrar pelas janelinhas da guarida. no chão!
De repente, o relógio principiou a tocar; contei até onze (…)
pancadas, quando chegou a doze, ouvi uma gargalhada tão
estridente, tão medonha, que os cabelos se me arrepiaram VARELA, Fagundes. Crenças populares: A guarida de pedra. In:
na cabeça, e a espingarda caiu de minhas mãos trêmulas; CAVALHEIRO, Edgard. Fagundes Varela. São Paulo: Martins, 1953. p. 295-296.
a gargalhada tinha soado perto, bem perto, a quatro passos
de mim!… Nossa Senhora, agora mesmo parece-me que 3. Os exemplares do jornal Correio Paulistano nos quais
ainda a tenho nos ouvidos!… Fagundes Varela publicou vários de seus contos são hoje
André interrompeu-se, os camaradas benzeram-se, e o quase impossíveis de localizar. Dessas narrativas, apenas
comandante disse com interesse: algumas foram reeditadas em biografias e coletâneas,
– Continua, meu rapaz, continua. sendo que várias delas ainda não estamparam páginas de
O rapaz prosseguiu nestes termos: livros. Nesse contexto, “A guarida de pedra” (1861) é uma
– Inda bem a gargalhada não tinha acabado de soar, das exceções, estando hoje acessível graças ao trabalho de
quando eu escutei o som lúgubre e funerário de uma sine- Edgard Cavalheiro. Transcrevê-lo aqui seria, por razões de
ta, era toque lento e compassado como o que anuncia um espaço, inviável, mas o breve trecho que selecionamos já
enterro. O suor corria-me em bagas pela testa, meus dentes vai ao encontro dos nossos objetivos. Tome-o, portanto,
rangiam com força e minhas pernas tremiam como varas como base para as seguintes questões:
a) Levando em conta a forma como André evita as apari-
ções, responda: em sua opinião, a personagem do monge
esquelético implica alguma forma de crítica aos crimes
passados da Igreja Católica ou, segundo o uso que Fagun-
des Varela faz dele, trata-se simplesmente de uma reto-
mada não-ideológica de um ícone tradicional da literatura
de horror?

b) Ciente de que o poema “O monge negro” é cantado por


Lady Adeline como forma de precaver Don Juan, e de que a
evocação a Nossa Senhora foi colocada na boca do soldado
André, responda: tais trechos podem ser considerados pro-
vas definitivas da orientação religiosa de seus autores?

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