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Repertório, Salvador, nº 18, p.144-149, 2012.

COMO FAZER A
DANÇAPRÓPRIA?

Ana Milena Navarro Busaid1

RESUMO: Este texto tem o fim de esboçar os temas Palavras-chave: Dança própria. Improvisação. André
abordados por André Lepecki na introdução do livro: Lepecki. Ontologia. Movimento.
“Agotar la danza: Performance y Politica del movimento” e,
ao mesmo tempo, fazer cruzamentos com ideias que ABSTRACT: Thistextaimstooutlinetheissuesaddres-
desenvolvo em minha pesquisa sobre processos de cria- sedby André Lepecki in theintroduction of hisbook
ção em dança. Analisarei temas relevantes para minha “EXHAUSTING DANCE: Performance and thePolitics of
pesquisa, como a ontologia do movimento na dança e Movement”,whileintertwiningthe ideas I am developin-
sua hegemonia, e os processos de subjetivação do sujei- gaboutcreativeprocesses and improvisation in dance.
to no fazer artístico. O objetivo é apontar para a cons- I willanalyzerelevanttopicsformyinvestigationlikeonto-
trução de uma dança própria, que elimine as ideias pre- logy of movement in dance and itshegemony, as well
concebidas da modernidade e se arrisque a se reinventar as theprocesses of subjectification of thesubject in ar-
como proposta artística experimental, sob parâmetros tisticcreation. Thegoalistohighlighttheconstruction of
abertos, que incluam a utilização de imagens, objetos, a dance of ourownthateliminatespreconceived ideas of
ações e movimentos articulados pela improvisação modernity and riskstoreinventitselfwithan experimental
como modo de operar para a criação. Para explorar este artisticproposal, under open patternsthatincludethe use
processo de criação em dança, proponho primeiro fa- of images, objects, actions and movements, articulate-
zer um estudo teórico-prático, baseado em três eixos: dbyimprovisation as a way of guidingcreation. In order-
esvaziar o corpo, afastar a ideia do “Eu”, e a criação to explore thisprocess of creation in dance, I propose
da própria dança. Estes temas estão focados na ideia in thefirst place, a theorical and practicalstudybased in
de transformar o corpo, extraindo-o da sua forma co- three axis: emptythebody, dismissthe idea of “self ”,
nhecida, o que dará acesso a experiências corporais, na and thecreation of a dance of ourown. Thesetopics-
procura dessa dança própria. focusonthe idea of transformingthebody, gettingitout
of itsknownform, givingaccesstobodyexperiences, se-
arching a dance of ourown.

1
Mestranda em Artes Cênicas Programa de Pós Graduação Keywords: Dance of ourown. Improvisation. André
em Artes Cênicas, Universidade Federal da Bahia. E-mail: an- Lepecki. Ontology. Movement.
amilenanavarrob@gmail.com. Codiretora da Escola Zajana
Danza da cidade de Bogotá – Colômbia, onde se desenvolve RÉSUMÉ: Cetarticle examine les principaux sujets-
como professora, dançarina da companhia e diretora de mar- traités par André Lepeckidansl’introduction du livre
keting há 10 anos. Atualmente, é estudante do mestrado em “ÉPUISER LA DANSE: Performance et Politique du
Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Na Mouvement”, aumêmetemps, ilfait des croisementsa-
Colômbia, foi diretora e coreógrafa da companhia da Fun-
vec les idéesissues de maproprerecherche sur les pro-
daciónUniversidad de Bogotá Jorge Tadeo Lozano e diretora de mar-
cessus de création de la danse. Le texte analyse des
keting cultural para os XIII e XIV festivais universitários de
Dança contemporânea (Colômbia). sujetsrelevantspourmarecherchetels que l’ontologie du
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mouvementdans la danse et son hégémonie, ainsi que que penetra em outros campos artísticos, criando
les processus de subjectivation du sujetdans la créatio- novas possibilidades para pensar as relações entre
nartistique. L‘objectifest de mettre en proposer la const política, corpo, subjetividades e movimentos. Do
ructiond’unedanseproprequiélimine les idéespréconçu- mesmo modo, abre-se espaço para a discussão so-
es de la modernité et quiessaie de se réinventer en tant bre coreografias onde a relação entre dança e mo-
que une propositionartistiqueexpérimentale, sous des p
vimento se está esgotando, evidenciando, assim,
aramétrésouvertsquiincluentl’utilisation des images, des
objets, des actions et des mouvements, touxeuxarti- uma crítica com um profundo impacto ontológico
culés par l’improvisationcomme une forme de guider Este impacto ontológico me faz lembrar que
la création. A fin d’explorer ce processus de création eu aprendi uma dança baseada em regras técni-
en danse, je propose de faire un étudethéoriqueprati- cas específicas, em sequências coreográficas que
quebasée sur troisaxes: vider le corps, oublierl’idée du garantiam minha entrada à experiência na dança.
‘je’, et créersaprôpredanse. Ces actionsmettent la Aprendi uma dança de formas dolorosas, posturas
lumièredansl’idée de transformation du corps, loin de concretas e únicas, às vezes engraçadas, de ações
sa forme préconçue, ce quidonneral’accèsauxexpérienc corretas dentro de um formato certeiro para poder
escorporelles, en la quêted’unedansepropre à l’être. e saber dançar. Deste modo, aprendi que a forma
da dança é o movimento.
Mots de clés: Dansepropre à l’être. Improvisation.
Para muitas pessoas, pensar a dança sem mo-
André Lepecki. Ontologie. Mouvement.
vimentos seria uma traição à natureza e à essência
da dança, fundada no vínculo com o movimento
Na ontologia política do movimento, André
ou, para aclarar melhor, o “fluxo e continuidade
Lepecki2 fala sobre como a questão ontológica da
do movimento” (LEPECKI, 2008, p. 15), que se
dança no movimento que, junto à ideia de moder-
apoia na ideia da postura exata, na figura e desem-
nidade, cria subjetividades e faz do coreográfico
penho adequado, o que exemplifica as regras de
uma hegemonia atual. O autor analisa estes as-
jogos e caminhos apropriados para definir, fazer
pectos, num diálogo entre filosofia e dança, resga-
e ver a dança. O autor anuncia que, para acusar de
tando ideias que tiram de nosso entendimento a
traição a estes novos coreógrafos e suas práticas
dança, a partir do movimento, esgotando este con-
contemporâneas, seria necessário pensar e aceitar
ceito para dar uma significativa revisão sobre que
a seguinte fundamentação: “A dança imbrica-se3
é a dança. Lepecki apoia-se em diferentes autores
ontologicamente com o movimento, é isomorfa
para nos explicar como os aspectos sobre política,
com respeito ao movimento” (LEPECKI, 2008,
dança e modernidade, podem ser estudados, dando
p. 14, tradução minha). Questiono aqui esta ideia
passagem a uma teoria crítica sobre a dança, com
ontológica de dança e movimento e também me
o propósito de dar uma abordagem do coreográfi-
pergunto qual seria a maneira de desaprendê-la?
co fora dos próprios limites da dança. Estes estu-
Sugiro fazer uma releitura da dança, não apoiada
dos supõem indicar para a dança uma amplitude
na ideia do movimento, e sim na ideia de um cor-
po, e, sobretudo, de fazer-se um corpo. Isto não é
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André Lepecki, (Brasil, 1965) é um dramaturgo, ensaísta, uma traição artística ou uma expressão eufemística,
crítico e curador. Desde 2000, é Professor Assistente no De- pode ser mais uma perspectiva de como esse corpo
partamento de Estudos Performáticos da New York University. determina seu próprio movimento, mas não esse
Leciona na Europa e Estados Unidos, nas áreas da perfor- tipo de movimento que cria uma armadilha para
mance, teoria da dança e análise crítica. Recebeu prêmios da
a dança, representada em esquemas mediatizados
Fundação Gulbenkian, da Fundação Luso-Americana para
o Desenvolvimento, do Instituto Português para a Pesquisa e preceitos imaginários de um devir fluir constan-
Científica e da Fundação Rockefeller, como membro do think- te, plástico e flexível. Neste ponto me pergunto:
tankConversations in Choreography. É autor de Exhausting Dances
(Routledge, 2005) e coordenador das antologias Intensifica-
tion, Contemporary Portuguese Performance (Theaterschrift Extra/ 3
Dispor coisas de modo que umas se sobreponham em
Danças na Cidade 1998), Of The Presence of the Body (Wesleyan parte às outras, como as telhas de um telhado. Dicionário on-
University Press, 2004) e The Senses in Performance (Routledge line de português. Disponível em: <http://www.dicio.com.
2005). Atualmente escreve um livro sobre dança e escultura. br/imbricar/>. Acesso em: 27 nov. 2011.
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será que a dança está representada com e no movi- 21, tradução minha).
mento? Por quê? O que não se move não dança? Assim, o aporte que interessa a André Lepecki,
Como transformar a ideia de meu corpo e da dança em relação aos estudos da dança, é considerar quais
e fazer-se uma própria dança? formas a coreografia e a filosofia compartilham
Estas respostas sobre a dependência de dança dessa mesma questão política, ontológica, fisioló-
e movimento estariam explicadas desde o Renas- gica, ética e fundamental, que Deleuze recupera de
cimento, segundo o historiador de dança Mark Spinoza e de Nietzsche: o que pode fazer o corpo?
Franko LEPECKI(2008), pois esta dependência se (LEPECKI, 2008, p. 21, tradução minha). De qual-
alinharia mais com um ideal de motilidade4 cons- quer modo, se a pergunta “o que pode fazer (ou faz)
tante, refletindo-se como um espetáculo de mobi- um corpo” estiver evidenciada apenas dentro de um
lidade em fluxo, que se desloca na leveza do cor- discurso coreográfico, para mim, novamente cairía-
po e sua genealogia, como o balé. Depois viria a mos na dança como a hegemonia do movimento.
dança moderna, que encontra, no movimento, sua O autor considera a coreografia como:
essência, segundo John Martim em seu desejo de
assegurar o aspecto teórico da dança para lhe dar Uma invenção da primeira modernidade, como
autonomia com respeito a outras artes. E, por últi- “uma tecnologia que cria um corpo disciplinado
mo, a discussão sobre o que deveria ser considera- para que se movimente nas ordens das escritu-
do dança e o que deveria ser excluído. Neste mo- ras” [...]. Pois a palavra coreografia foi cunhada
em 1589 por um padre jesuíta, dando título a um
mento, Lepecki (2008) reflete sobre os coreógrafos
dos manuais de dança da época (do latim orcheso-
e algumas coreografias estadunidenses e europeias, graphie ou orquesografia). (LEPECKI, 2008, p. 23,
que, na década de 1990, se colocaram na tarefa de: tradução minha)

Desmantelar a ideia da dança – associada onto-


Assim, em palavras do autor: “A relação entre
logicamente com “fluxo e continuidade do mo-
o sujeito que se move e o que ele escreve, revela o
vimento” e com “pessoas que dão saltos” (com
ou sem música...). Mas também reflitam a in- corpo como uma entidade linguística. Assim, a dan-
capacidade generalizada, ou inclusive a falta de ça e a modernidade se entrelaçam como um modo
vontade, para explicar criticamente as práticas cinético de ser no mundo” (LEPECKI, 2008, p.
coreográficas atuais como experimentos artísti- 23). O historiador cultural Harvie Fergunson diz
cos válidos. [...] O que provoca uma desconexão que “o único elemento imutável da modernidade é
entre as práticas coreográficas atuais e uma for- a propensão ao movimento, converte-se, por assim
ma de escrita vinculada ainda às ideias da dança dizer, em seu emblema permanente” (FERGUN-
como constante agitação e contínua mobilidade. SON, 2000, p. 11 apud LEPECKI, 2008, p. 23).
(LEPECKI, 2008, p. 15-16 tradução minha). Conceito ao qual Lepecki agrega ainda a ideia do
filósofo alemão Peter Sloterdijk: “a modernidade
Para Lepecki, um dos aspectos mais importantes é, ontologicamente, puro ser que gera movimen-
para os estudos em dança é a relação entre a teoria to” (SLOTERDIJK, 2000b, p. 36 apud LEPECKI,
crítica, com as modalidades de dança e o construir 2008, p. 23). Portanto, a dança adentra a moderni-
um diálogo renovado com a filosofia contemporâ- dade como seu próprio espetáculo.
nea e com autores como Nietzsche, cuja filosofia Nesta medida, a coreografia deveria refletir não
cria conceitos que falam sobre a política do corpo sobre o tema do movimento, mas sim sobre o tema
“entendendo o corpo não como uma unidade au- do corpo, enfatizando a ideia de “o que pode um
tônoma e fechada, senão como um sistema aberto corpo?”, para configurar sua presença não sob o
e dinâmico de intercâmbio” (LEPECKI, 2008, p. imperativo do movimento, mas entrar em diálogo
com a teoria crítica e a filosofia, diferenciando a
4
Faculdade de se mover, de obedecer ao impulso de uma história institucional da filosofia e do seu poder
força motriz. Dicionário on-line de português. Disponível político” (DELEUZE, 1995, p. 135-55 apud LE-
em: <http://www.dicio.com.br/motilidade/>. Acesso em: PECKI, 2008, p. 21).
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Para mim, o efeito deste discurso sobre a mo- não consegue se vincular aos processos particula-
dernidade e a ontologia da dança levanta questões res e experimentais.
sobre como reduzir o movimento ou eliminá-lo de Da mesma forma, a coreografia instaura no su-
um tal jeito que isso determine uma dança própria. jeito uma estrutura fundamental, através da sequ-
Reconheço que este estado não é mais que a sin- ência de passos, frases e ordens, que devem pare-
tomatologia de um dançarino em crise. Um dança- cer “instintivas” na hora de dançar. Neste sentido,
rino cujo discurso emprestado decide olhar para si “a modernidade é a nova forma de subjetividade”
e se reconhece só como reificação.5 Então como (FERGUNSON, 2000, p. 11 apud LEPECKI, 2008
entender a dança? Como fazê-la? Como criá-la? p. 27, tradução minha), e oferece para os sujeitos a
Poder-se-ia pensar que a interrupção deste mo- mobilidade de seus corpos sob a submissão coreo-
vimento fluido e retificado marca a entrada de pro- gráfica. Seria, então, preciso utilizar a palavra mo-
postas artísticas que identificam outros desafios dernidade para falar sobre contemporaneidade?6
políticos e teóricos, com a ideia de desmanchar a Lepecki assegura que, para fazer uma crítica e
antiga aliança entre movimento e dança, caracte- um estudo da ontologia da dança acentuada na mo-
rizada pela modernidade. O autor assegura que “a dernidade, teríamos que abordar esta não só como
exaustão da dança seria a exaustão do emblema período cronológico, mas sim como processo de
permanente da modernidade. É empurrar até seu subjetivação. “Na modernidade, a subjetivação fica
limite crítico a maneira pela qual a modernidade atrapalhada numa só experiência solipsista do ego
cria e dá preponderância a uma subjetividade ciné- como o sujeito último para e da representação”
tica” (LEPECKI, 2008, p. 24, tradução minha). (COURTINE, 1992, p. 79 apud LEPECKI, 2008,
Esta subjetividade deve ser entendida como p. 29); que vê “o corpo como algo que tem uma
um reconhecimento dinâmico em relação a modos existência independente e que se rege por leis ima-
performativos de ações políticas, de desejo, afeti- nentes” (FERGUNSON, 2000, p. 7 apud LEPE-
vas e coreográficas; ou seja, inventadas e reinven- CKI, 2008, p. 29).
tadas, que revelam “um processo de subjetivação, Necessita-se entender o movimento como essa
quer dizer, a produção de um modo de existência “coisa” incompleta, que mobiliza e permite criar
que não pode se confundir com um sujeito” (DE- impulsos para mudar, ou fazer novas conexões so-
LEUZE, 1995, p. 98 apud LEPECKI, 2008, p. 25, bre si; e para entender-se como inacabado, na per-
tradução minha). O autor apoia-se na denomina- manência de um processo. Este âmbito processu-
ção de subjetividade, de autores como Deleuze e al não só se justifica na transformação como eixo
Foucault, para os quais “o sujeito é sempre com- radical, senão na opção de se indeterminar, e, na
posto de processos de subjetivação, devires ativos, possibilidade de se experimentar sem uma identi-
o desencadeamento de potências e forças com o dade fechada, fugir ao conceito de sujeito ou do
fim de criar para si mesmo a possibilidade de existir “eu” como entidade fixa. De ser um nômade de si
como obra de arte” (DELEUZE, 1995, p. 95 apud mesmo, do movimento e da hegemonia formata-
LEPECKI, 2008, p. 25, tradução minha). da do que pode vir a ser uma dança. Finalmente,
As forças hegemônicas tentam destruir a criação um corpo isolado da ideia de “si mesmo” adquire
de novas subjetividades, pois obrigam os sujeitos uma expansão maior, construindo esse conceito de
a entrar nas dinâmicas de produção e dominação, nomadismo, como uma capacidade adaptativa de
sendo as artes cênicas também um lugar para esta atender a um olhar distinto em seu trânsito perma-
submissão. Em especial a dança, pois sua hegemo-
nia do movimento a leva para um lugar impróprio,
onde se volta a um assunto público e crítico que 6
Esta questão é levantada pelo autor, mas gostaria de acres-
centar: será que devemos usar a palavra “modernidade” para
discutir a dança contemporânea? E continuaria a perguntar-
me: até que ponto o moderno questiona as novas ações mod-
Transformação em coisa. Dicionário on-line de português.
5
ernas? Seria correto dizer que os aspectos progressivos nas
Disponível em: <http://www.dicio.com.br/reificacao/>. artes são modernistas? O que nos impede de passar a ideia de
Acesso em: 27 nov. 2011. modernidade?
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nente como processo da sua experiência. se é. Esta é a minha ideia de fazer a própria dança.
Para mim, fazer essa própria dança implica tam- Este conceito de dança própria busca trabalhar
bém fazer desaparecer a ideia de “si mesmo” e dei- a improvisação como um princípio de organizar ou
xar que o corpo nos leve a sua própria vontade de operar, segundo alguns parâmetros estabelecidos,
imaginar e ser. Há que confiar nas suas imagens. encaminhados à exploração. A forma aqui já não
Nietzsche já dizia: “Não diz eu, mas faz o eu” está determinada previamente no corpo, senão na
(NIETZSCHE, 2005, p. 60), pois o Eu é um jeito maneira como estabeleço minha própria experiên-
e a dança um nome. cia. Esta surge num instante presente, na procu-
Enquanto o cinético esteja relacionado à mo- ra de um movimento, um objeto, uma imagem ou
dernidade e, por sua vez, à subjetividade, e os dois ação que esteja em concordância com suas próprias
se estudem como fenômenos dentro da contempo- ideias, imagens, afetos e possibilidades.
raneidade, surgirão novos questionamentos sobre Na improvisação, a espontaneidade das ideias
como dançar sem uma hegemonia do movimento? e ações se faz vital. Ou seja, tem que existir uma
Como fazer disto um estudo crítico e aberto para a real abertura para um acontecimento imprevisível.
prática e a teoria da dança? E observar se os cruza- Aqui, o corpo está no limite de uma vertigem que
mentos filosóficos dos quais fala Lepecki estariam deve responder a sua própria originalidade, desis-
na base para replicar uma filosofia já antes escrita tindo de uma sequência organizada e conhecida
ou de criar uma filosofia a partir da dança? Embora de formas articulares e musculares, respondendo
estes resultados sejam sensíveis e possíveis como à emergência da ação, à novidade e à criação como
expressões artísticas, o que Lepecki ressalta em seu resposta, entre outras, sem a certeza de como esse
livro é a relação entre dança e política, procurando corpo vai agir.
encontrar vias para que o movimento coreográfico A proposta teórico-prática apoia-se em três
se manifeste como prática ou mudança social em eixos dos quais já fiz algumas reflexões nos pará-
diversos cenários. grafos passados. Estes eixos são: esvaziar o cor-
Portanto, modernidade, subjetividade, política e po, afastar a ideia do “Eu”, e a criação da própria
movimento são fenômenos que atravessam a dança dança. Nos três casos, a imagem mental é a linha
e fazem com que se constitua de um modo hegemô- que inaugura e conduz a concepção da própria im-
nico, impedindo que as novas formas experimentais provisação, estabelecendo-se como regra prefixada
artísticas participem de processos de crítica e evolu- que permite marcar uma trajetória na procura de
ção, pois a subjetividade moderna tem construído um movimento, gestos, novas imagens, palavras e
seu discurso de um “ser para o movimento” (LE- ações para se fazer um corpo que dança. Este prin-
PECKI, 2008, p. 34); e as novas propostas querem cípio da imagem mental, nos processos de impro-
quebrar com esta ideia coreográfica do movimento. visação, aponta a que cada nova imagem configure
Assim, uma ontologia política do movimento é o es- uma nova circunstância, uma nova ação que o cor-
tudo crítico sobre as formas de hegemonia histórica, po faz visível, definindo um contorno e as condi-
com o fim de levantar questões para produzir outras ções para se estabelecer uma estratégia de criação
formas possíveis de fazer e entender a dança. emquanto processo ou forma.
Após esta análise, sinto a necessidade de abrir o O primeiro eixo – esvaziar o corpo – está asso-
discurso de minha dança à possibilidade de não só ciado a todas as ideias teóricas sobre a ontologia do
criar movimentos ou artifícios, como também fazer movimento de André Lepecki. Na área prática, eu
aplicável a ideia de ser modificado cada vez que se proponho trabalhar a repetição, seja de movimen-
cria, e de expandir as possibilidades não refletidas tos, gestos ou palavras, como elemento fundante
apenas no movimento. Ou seja, uma dupla criação: que ajude ao corpo entrar no estado de concentra-
refazer-se a si mesmo e ao que se faz. Conceber-se ção ou de cansaço. A ideia de fazer o corpo entrar
a si mesmo e à criação como um intercâmbio de neste estado é buscar que ele escape de seu próprio
novas relações, conexões e escolhas que não me propósito com o movimento, tentando resistir à
determinam sob alguns parâmetros ou uma linha, ideia do movimento de formas conhecidas. De igual
mas que apagam a linha de ser solidamente quem maneira, busca-se trabalhar com o esvaziamento de
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pensamentos, de formas, de ideias, para levar o cor- e expressivo do ser, mas também acarreta a ideia de
po a estados diferentes que lhe permitam romper articular novas ligações que permitam ampliar os
com a significação expressiva do movimento. conhecimentos e os experimentar. Assim, é como
Esgotar o corpo e suas formas conhecidas a própria dança entra em vigor, pois transforma a
construirá, ao longo dos exercícios de repetição, exploração em percurso para criar e materializar
um plano de imanência, dando assim um próprio novas sensações e novas conexões, muito além da
sentido e tentando encontrar a diferença dentro potência da atenção, e a percepção de uma ideia,
da repetição. Neste sentido, há que se preparar o palavra, imagem, objeto, movimento ou sensação.
corpo para sua adaptação ao vazio, já que pode ser Com a ideia de fazer uma dança própria, as for-
fonte para a criação de sua própria dança. “A dança mas e procedimentos de criação são infinitos, assim
não se limita a dar a pensar (certos movimentos, como individuais. Mas eu acho que a improvisação
impensáveis de outro modo), constitui uma ma- é uma das formas possíveis que contribuem para a
neira de os pensar, transforma em movimentos construção dessa dança. A surpresa, a incerteza e a
de pensamentos o que o movimento comum não abertura para o processo e o produto, dentro da im-
pode pensar” (GIL, 2001, p.233) provisação, são possibilidades para criar uma manei-
Lepecki fala que a modernidade constrói um ra própria e autêntica de uma dança que não é fixa.
processo de subjetivação no sujeito, devido a uma Pois as escolhas em tempo real fundam uma forma
hegemonia do movimento. Esta crítica faz sentido ou princípio para criar uma dança ou desfazê-la.
para mim e cria um suporte teórico, pois implica Finalmente, o que traz a improvisação para a
que o jeito de se movimentar na dança está base- ideia de criar uma dança em si é a forma como o
ado numa preponderância de movimentos técni- pensamento se articula para criar, visualizar e pensar
cos, fluidos e virtuosos, que determinam um ser essa dança, por que não só se manifestará como um
na dança. Para apartar-se desta ideia hegemônica, movimento, mas ela é e irá se determinar em nós.
proponho fazer exercícios que trabalham com a Justamente, meu ponto neste trabalho foi o de
concepção de “afastar a ideia do eu”. desmistificar a ideia de que a dança é exemplificada
Estas práticas sobre o afastamento de si mesmo no movimento e representada por ele. Isto com o
levam a experimentar novas possibilidades de mo- incentivo de pensar e propor uma ideia de dança
vimentos e olhares, trabalhando com a alteridade e própria, que passa através do corpo, que não seja
com exercícios que têm a ver com a transformação. fixa e esteja estreitamente relacionada à ideia de im-
Esta alteração ou princípio de metamorfose deter- provisação – como uma forma de fazer e desfazer
minará um corpo que se cria e se desmancha, por uma dança, de fugir de sua certeza e de seu propó-
sua vez, no seu próprio movimento, para entender sito – isto é, fazer uma dança própria.
as multiplicidades que nos compõem e experien-
ciar diferentes estados. REFERÊNCIAS
Esse corpo que não se reconhece em “si mes-
mo” configura novas conexões e é obrigado a fazer GIL, J. Movimento total, o corpo e a dança. Lisboa: Re-
novas organizações, na procura por desestruturar- lógio D’Água Editores, 2001.
se e armar-se num estado mutável. Isto obrigará o LEPECKI, ANDRÉ. La ontologia politica del mo-
“eu” a construir uma forma de pensamento que vimento. Agotar la Danza: performance y politica
implica não só experimentar-se no outro para se del movimento. Traducción de Antonio Fernández
aprofundar sobre si mesmo, mas também trazer Lera. Centro coreográfico Galego; Mercat de les
movimentos e ideias que falem mais sobre a im- Flors; Aula de danza estrela casero; Universidad de
permanência deles, ao invés de trabalhar com a Alcalá, 2008.
apropriação deles. NIETZSCHE, Frederich. Assim falou Zaratustra.
Os primeiros eixos expõem a ideia de repetição e Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
transformação como práticas para entrar no campo DICIONÁRIO ON-LINE DE PORTUGUÊS.
da criação e fazer a própria dança. A importância da Disponível em: <http://www.dicio.com.br>.
criação não só se compromete com o ato liberador Acesso em: 27 nov. 2011.
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