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Textos Filosóficos

Director da Colecção:
ARTUR MORÃO
Licenciado em Filosofia;
professor na Secção de Lisboa da Faculdade de Filosofia
da Universidade Católica Portuguesa

I. Crltica da Razão Prática


Immanuel Kant PONTO Df: VISTA
2. Investigação sobre o Entendimento Humano f:XPLICATIVO
David Hume
DA l'IlNUA OBRA
3. Crepúsculo dos idolos
Friedrich Nietzsche COl'lO f:SCRITOR
4. Discurso de Metaj{sica
Gottfried Wilhelm Leibniz

5. Os Progressos da Metaffsica
Immanuel Kant

6. Regras para a Direcção do Esplrrto


René Descartes

7. Fundamentação da Metaflsica dos Costumes


Immalluel Kant

8. A Ideia da Fenomenologia
Edmund Husserl

9. Discurso do Método
Rellé Descartes

10. Ponto de Vista Explicativo da Minha Obra como Escritor


Soren Kierkegaard
Soren
KIERKEGAARD

PONTO Df: VISTA


Título original: Synspunktet for min Forfatter- Virksomhed. En ligefrem
f:XPLICATIVO
Meddelelse, Rapport til Historien, 1859
Tvende ethisk-religieuse Smaa-Afhandlinger. 1859
. Edição feita a partir da tradução francesa de Paul-Henri
DA MINUA OBRA
Tissean, revista por Else-Marie Jaquet-Tissean.
© ORANTE COMO f:SCRITOR
Tradução de João Gama
revista por Artur Morão
Capa de Jorge Machado Dias

Todos os direitos desta tradução reservados para a língua portuguesa


por Edições 70, L.da, Lisboa - PORTUGAL

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no todo ou em parte, qualquer que seja o modo utilizado,
incluindo fotocópia e xeroc6pia, sem prévia autorização do Editor.
Qualquer transgressão à Lei dos Direitos de Autor será passível
de procedimento judicial.
ADVERT~NCIA

A propósito
do Ponto deste
de vista escrito
e de de Kierkegaard,
outros umaemexplicação:
breves trabalhos a edição
Ungua portuguesa
constitui i4ma excepção ao princfpio que anima a colecção«Textos Filo-
sóficos., isto é, a versão a partir das línguas originais - a qual só em
casos verdadeiramente extraordinários- como o presmte - poderá ser
infringido, para não defraudar o leitor do valor e da riqueza de algumas
obras}ilosóficas. Para minimizar e atenuar semelhante falta - impossfvel
de evitar no contexto português, recorreu-se a uma das melhores traduções
e edições internacionais, a das Oeuvres Completes das Éditions de
l'Orante de Paris; a versão é de Paul-Henri Tisseau e de Else-Marie
Tisseau e a Comissão de Patrocfnio de tão notável empreendimento inclui
os nomes de Henri Gouhier, Mogens Hermannsetl, Paul Ricouer e Jean
Wahl; muitas das introduções a cada volume são da autoria de Jean Brun.
As notas, além das de Kierkegaard, são do editor e dos tradutores
franceses. COltstituen:1mais um dos motivos que levaram a optar pela
,'ersâo
Aoa longo
partir das
do jrands, dadaalgumas
notas surgem a sua riqueza e pertitllncia.
siglas. Eis a sua interpretação:
SVl indica as Sõren Kierkegaards Samlede Vocrker (Obras Com-
pletas de S. K.), Copenhague, 1901-1906, publicadas em 14 volumes
por A. B. Drachmann, J. L. Heiberg e H. O. Lange; SV2 expressa as
Sõren Kierkcgaards Samlede Voerker, 2." edição, Copenhague, 1920-
-1936, em 13 volumes; é considerada a melhor edição até hoje e serve
de base à traduçãofrancesa. O últiino volume contém um fndice termi-
nológicofeito por A. Ibsen e J. Himmelstrup j SV3 refere as Sõren Kier-
kegaards Samlede Voerker, 3." edição, Copmhague 1962-1964, em
20 volumes; a sigla Papo está por Sõren Kierkegaards Papirer (Papéis

9
de S. K.), Copenhague I909-I948, publicados em 20 volumes por
P. A. Heiberg, V. Kuhr e E. Torsting, estando a efectuar-se uma repro-
dução fotográfica desde I967 na mesma cidade - Os Papéis encontram-se
repartidos em três grupos: o grupo A compreende o Diário e notas pessoais;
o grupo B, rascunhos, IJariantes, esboços de obras; o grup~ C, notas
de leituras; OC indica as Oeuvres completes de Sõren Klerkegaard,
Paris I966 ss., em 20 volumes. Os escritos agora publicados em portu-
guês aparecem no tomo I6.
É de esperar que o leitor português aprecie estas notáveis páginas
de Kierkegaard em que ele propõe uma auto-interpretação da sua obra
como autor estético e, sobretudo, religioso, além de redescobrir a sua con-
temporaneidade incisiva relativamente à tensão entre a massa e o indiv{duo.

ARTUR MORÃO

INTRODUÇÃO

(. .. ) A redacção do Ponto de vista explicativo da minha obra


de escritor permitiu a Kierkegaard ser claro consigo próprio; com efeito,
ele reflectiu neste escrito sobre a unidade da sua obra, de que descreve
a génese e forf}ece o sentido geral, pensando que está, agora, muito perto
da meta (1). E por isso que este livro se apresenta, antes de mais, como
o balanço de uma activídade, depois, como um programa de acção.
.Desde o princfpio, Kierkegaard procura dissipar a ideia segundo
a qual, numa primeira parte da sua vida, teria sido um escritor estético
que, depois, se teria metamorfoseado em escritor religioso, um pouco à
maneira como o diabo , diz-se, acaba por se fazer eremita quando já velho.
Kierkegaard proclama que foi logo à primeira um escritor religioso e que
toda a sua obra tem como objecto o tornar-se cristão. Se começou por uma
produção de carácter estético foi porque julgava que, no mundo que social-
mente se diz cristão mas que ignora toda a mensagem de Cristo, é neces-
sário evitar um ataque directo para não fixar o homem nas suas ilusões,
exasperando-o logo de início. Há que utilizar, portanto, a maiêutíca,
mas é importante que, a seguir, o homem da maiêutica se transforme em
testemunha (2). Assim, as diferentes formas de existência pessoal do autor
são apresentadas como correspondendo aos diferentes aspectos da obra,
se bem que as disputas com O Corsário, como os artigos publicados em
Faedrelandet, venham a ocupar os seus lugares respectivos. Kierkegaard

(1) Cf. Papo IX A 293.


(2) Cf. Papo IX A 221.

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queria estar preparado para o momento em que aparecesse o Post-Scrip- tomar absolutamente à letra todas as afirmações de Kierkegaard sobre
tum definitivo, resolveu, por conseguinte, transformar a sua vida ae este assunto; em certa medida, foi muito tardiamente que pôde dar à sua
obra anterior a ordem que lhe interessava e que nos apresenta como um
acordo ele,
tanto, com mestre
a transição onde colocava
da ironia, alterar aodialéctica
problema do
religioso.
seu modoDecidiu por-e
de vida plano predeterminado. Todavia, convém não esquecer que é tanto a obra
tornar-se a presa dos ironistas desta publicação panjletária, que ainda quefaz o autor como o autor a obra; como disse muito bem Torsten Bohlin:
o não tinham tomado como alvo; foi por isso que escreveu um artigo «Por um lado, a obra estritamente estética e literária, decorrente de um
em Faedrelander (3), onde se queixava de não ter sido objecto das injú- i"esistfvel impulso criador interno. Era-lhe forçoso escrever assim. Por
rias do Corsário. outro, o elemgnto ético!..!!Jjgioso é dado desde o princípio de maneira
Mas Kierkegaard foi assaltado por um escrúpulo que o não deixou. semi-reflectida e inconsciente. A curva da sua obra constitui o reflexo do
Desejava sublinhar que não era ele que concedia ao cristianismo a graça pr6prio desenvolvimento do seu carácter e da formação da sua persona-
de o defender, mas sim o cristianismo que lhe concedera esta graça. No
capítulo llI, Kierkegaard insiste na parte predominante da Provid~ncia clidade»(5).
passos Retrospectivamente,
em função do sentido que, Kierkegaard organiza,
posteriormente, portanto,
lhes quer conferir;os mas,
seus
na elaboração da sua obra; é ao mesmo tempo, para ele, uma ocasião de como estesfizeram dele aquilo em que se converteu, não é artificialmente
esboçar a sua autobiografia, em que fala da melancolia e do papel essen- que o ponto de partida se encontra explicado a partir do ponto de chegada;
cial que desempenhou na sua vida a personalidade do pai; além disso, cada qual se relaciona com o outro por um elo biogr4fico e dialéctico.
faz uma alusão aos dois epis6dios, que levatltam um problema a todos O Ponto de vista é seguido de um Apêndice muito importante,
os bi6grafos, e a que chama «o espinho na carne» e um «facto... terrivel- constitu{dopor Duas notas sobre «Q.Ingjy!d.uo». Trata-se deuma categoria
mente doseado de dialéctica, embora fosse, por outro lado, completamente eminentemente kierkegaardiana que constitui, para Kierkegaard, a cate-
normal», facto que, no limiar da sua actividade literária, o deve ter obri- goria cristãpor excel~ncia, a q!iczldesigna ao mesmo tempo o Único e cada
gado a passar à acção e a concebera sua vida na esfera do religioso. Esta
acçãocomeçapor uma luta contra a Igreja oficial, luta que se irá continua- um. de.remetem
guem; n6s. A actualidade destas
naturalmente para análises
a noção não passará
de Deus despercebida
pessoal, a nin- "
mas inserem-se
mente ampliando até à reacção de O Instante (4). Este combate é neces- igualmente num contexto cultural e hist6rico. Com Comte, Feuerbach,
sário porque os sacerdotes invertem a relação cristã exig~cia-indulg~cia: Marx, um novo conceito surgia: Q dlLHomem genérico; perante ele,
a pessoa humana não passava de uma abstracçãoe a generalidade conver-
em vez de considerarem
consci~nciadiante de Deusa relativamente
indulg~ncia como o mais profundo
à exig~ncia, alteraramsegredo da
a relação tia-se naquilo em que cada indivíduo se devia dissolver e traniformar.
e proclamaram simples e unicamente a indulg~cia, deixando de lado Kierkegaard opõe-se a todas as escamoteaçõesda pessoa humana, visando
a exig~ncia ou dizendo que se destinava apenas aos Ap6stolos. Kierke- fazer acreditar que a massa encama a voz de Deus, esta massa que gritou
gaard pensa, portanto, que a Provid~ncia o investiu de uma missão: para Pôncio pilatos: «Crucifica-o!». Para Kierkegaard, q hOl/lcm não
a de dizer que a cristandade mão é mais do que uma sociedade mundana é um animfll precisamentepO!que o indil,íduo é mais do que a eSpécie.
vivendo na ignortSnciado temor e do tremor e fazendo de Deus aquele A verdadeira abstracção é a Multidão,·· que desconhece o laço pessoal
de quem se espera que terá o bom gosto de não usar nenhum rigor para e em que reside a mentira. O cristiatlismo pede-nos para amar o nosso
com as faltas a que o homem se atribuia boa consci~nciade ter sucumbido pr6ximo, isto é, cada homem, não nos manda amar a multidão, caminho
com lucidez e com todo o conhecimento de causa. que conduz sempre à conquista do poder temporal e a todas as baixezas
Assim, no Ponto de vista, Kierkegaard propõe-se dar aos seus da lisonja e do compromisso. O Indiv{áuo, no sentido cristão do termo,
leitores um quadro preciso e coerente da evolução do seu pensamento; está no oposto desta multidão de que a nossa época de desintegraçãofaz
como num drama em que a sucessãodas cenas e dos actos obedecea um plano a categoriafundamental, ao procurar abandonar-se às vertigens da totali-
rigorosamente definido, a produção anterior de Kierkegaard, quer tenha zação. Kiekegaard, aliás, via nos acontecimentos hist6ricos de 1848
sido literária ou estritamente filos6fica, ter-se-ia desenvolvido em conso- uma ilustração daquilo a que a multidão poderia conduzir. A Dimanarca
ntSncia com uma ordem minuciosamente estabelecida e co"espondendo conhecia, de facto, um dos períodos mais conturbados da sua hist6ria.
às exig~cias particulares do método indirecto. Talvez não convenha Depois de uma curta guerra contra a Alemanha, a Dinamarca devia
perder o Slesvig e o Holstein; por outro lado, mais de 10 000 pessoas

(3) No n." 2078 do dia 27 de Dezembro de 1845, com o título Aetividade de


um esteta ambulante: OC VIII (SV 2 XIII 459-467). (5) Soren Kierkegaard. L'Homme et I'Oeuvre, traduzido do sueco por P.-H. Tis-
(4) OC XIX. seau, Bazoges-en-Parcds 1941, p. 82.

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tinham ido maniftstar-se perante o Palácioeo rei teve de aceitar um
que estas confissões visavam finalmente apresentá-Io tão bom como era;
governo parlamentar. Kierkegaard. impressionara-se simultaneamente com
e que era intrometer'"'secom a Providencia e tlar a entender que o cristia-
a versatilidade da multidão e com a incerteza dos meios e dos objectivos nismo não podia prescindir dos bons ofícios de um homem.
que queria defender. Seguia muito atentamente o curso dos acontecime1l-
Tal é a razão pela qual Kierkegaard. redigiu no seu Diário o «ba-
tos; assim, no seu Diário de 27 de Março de r848, escreve: lanço» que segue:
.E eis-me tranquilamente sentado, em minha casa. Fora, tudo é agitação, todo N. B. - Fiz ainda uma última tentativa para dizer, apesar de tudo, uma palavra
o povo é percorrido por uma vaga de nacionalismo; cada um fala em sacrificar a sua
a meu respeito e sobre o conjunto da minha obra de escritor. Redigi um «anexo»
vida e o seu sangue, cada qual está disposto a isso, mas levado pela omnipotência da que devia intitular-se O Balanço e seguir-se aos .Discurso:;» (9). Na minha opinião,
opinião. E eu permaneço sentado na calma do meu quarto (- depressa hão-de denun-
é uma obra-prima; mas pertence ao domínio do indiferente: não posso empregá-lo.
ciar, sem dúvida, a minha indiferença à causa da nação -), não conheço senão um De facto, concebo eom uma extraordinária clareza o pensamento infinitamente
perigo: o que corrc a religiosidade. Mas com este perigo ninguém se preocupa _ e complexo que anima a totalidade da obra. Sob o ponto de vista humano, chegou o
ninguém duvida do que se passa em mim. Tal é a minha vida. Sempre incompreen- momento, pois vai sair a segunda edição de A Alternativa. Teria sido excelente. Mas
dida. Ninguém me compreende no meu sofrimento _ e odeiam-me» (6). isso falta um pouco à verdade.
Porque sou um génio no sentido de que não posso directamente, em pessoa, encarregar-
Seria um grosseiro contra-senso ver, nas páginas que Kierkegaard -me de tudo, sem me intrometer no terreno da Provid2ncia. Todo o génio depende eminen-
consagrou ao Indivfduo, apmas uma apologia egoísta do invididualisll10 temente da imediatez e da imanência, não tem «porquê»; por isso, devo uma vez
mais à minha genialidade ver tão nitidamente, depois de tanto tempo, o porquê infi-
mais mesquinho. Kierke,gaard sentia que o carácter sagrado da pessoa nitO do todo; mas isto cabe à Provid2ncia. Por outro lado, não SOIl assaz religioso para poder
humana cedo viria a ser tido como uma noção perimida por sistemas filo- relacionar tudo directamente com Deus.
s6fico-poIíticos; a sua principal preocupação era realçar que o que funda Portanto, nem uma palavra. Se é necessário dizer qualquer coisa, que seja unica-
o carácter sagrado da pessoa é, antes mais, a relação desta com Deus. mente isto. Ou se o· mundo quer, custe o que custar, arrancar-me uma declaração
e uma explicação, que seja esta.
É por isso que procura sublinhar que a noção de igualdade proposta por Sofro indizivelmente sempre que começo a encarar uma publicação que diz
pensadores políticos é, ainda de tudo, uma noção cristã, que não pode nascer respeito a mim e à minha produção. A minha alma torna-se inquieta, o meu espírito
do medo dos homens:
não encontra, como habitualmnte, a tranquilidade na produção; agarro-me com paixão
cruel a cada palavra, lembro-me continuamente, mesmo fora das horas de trabalho;
a minha oração altera-se e torna-se de má qualidade e distraída, porque atribuo a cada
«No nosso país e noutras partes, os comunistas lutam pelos direitos do homem.
Muito bem, também eu. É precisamente por isso que combato ao medo do homem.
I pormenor insignificante uma excessiva importância, desde que se relacione com esta
I ideia de publicação. Logo que a abandono, quer eu produza sem intenção de publicar
O comunismo terá como resultado, quando muito, a tirania exercida pelo medo
do homem (vede como neste momento a França sofre com isso); é precisamente o meu trabalho, quer produza outra coisa, reencontro subitamente a calma, o meu
aqui que começa o cristianismo. A questão à volta da qual o comunismo faz tanto 1 espírito acha descanso, como hoje, com a ideia de ter escrito e de ter de publicar três
piedosos discursos.
b~rulho é considerada pelo cristianismo como evidente: todos os homens são iguais
diante de Deus, portanto, esscncialmente iguais. Mas o cristianismo estremece diante É demasiado querer encarregar-me como excessiva brusquidão desta enorme
da abominação que pretende abolir Deus e pôr no Seu lugar o medo da multidão,
~a maioria, do povo, do público». (7) Ir produtividade sob a forma de um pensamento único - ainda que o seja, vejo-o per-
feitissimamente. Contudo, não é a vaidade que está na origem da minha decisão, não
creio: devo-a. de facto, a um pensamento religioso, julgava-me em dívida para com
Deus neste ponto. Assim, tudo está preparado agora - esperando a minha morte.
A redacção do Ponto dc vista levou a Kierkegaard um ou dois Não me posso encarregar disto pessoalmente, desta maneira. É verdade, para dar
meses, mas logo hesitou em publicá-Io. Em r849, tenta dtferentes solu- j um exemplo, é verdade que ao começar a minha carreira de autor me tinha proposto
ções: recorrer a um pselldánimo, jUlltar estas páginas a outras ou adiar uma «meta religiosa»: mas há que alcançá-Ia num outro sentido. Escrevi A Alternativa
e, principalmente, o Diário do Sedutor, por causa dela (10), para lhe poupar dissabores.
a publicação. Por um momento, pensa editar simultaneamente A Docnça E está precisamente aqui o indício de uma certa genialidade na minha obra: os meus
mortal, A Escola do cristianismo e o Ponto dcvista, acrescelltando-
projectos pessoais tiveram, graças à Providência, uma vasta repercussão. Penso agora
-lhe 11111 suplemento, A Neutralidade armada; o cOl/junto teria C01ll0 no que um pseudónimo disse a propósito de Sócrates: «Toda a sua vida foi uma acti-
título JIcral:. Obras completas do acabamento, frutos do ano 1848. vidade consagrada à sua própria pessoa e eis que a Providência lhe concede, por acrés-
Mas, por .fim, Kierkegaard recusou-se a publicar esta obra e A Neu- cimo, uma significação histórica e universal (11)>>. Para dar outro exemplo, sou um
polêmista-nato e a lição do Indivíduo surgiu-me cedo. E, contudo, quando a pus por
tralidade armada não saiu dos seus Papéis (8). E.fectil'amente, pensava

(6) Papo VIII 1 A 602. (9) Os três piedosos discursos publicados em 1849 com o título O Urio dos cam-
pos e a ave do céu.
(7) Papo VIII 1 A 598.
(10) Trata-se de Regina Olseh.
(8) Cf. OC XVII (Pap. X 5 B 105-114).
(ll) Citação não literal do Post-Scriptum: OC X (SV 2 VII 132).

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escrito pela primeira vez (nos dois discursos edificantes) pensava sobretudo no: meu ;,ulgaridade perturbaram um pouco, além disso, o meu anonimato e quiseram assim
leitor (12). Porque este livro continha uma pequena indicação que lhe era dirigida e, Im~or-me .à força um carácter imediato, quando ele é sempre dialéctico; forçaram-me
até nova ordem, eu era sobretudo habitado por esta verdade pessoal que em tudo ocu- a sair de mim próprio. O meu anonimato consistia em não ser - como dizer? - nada
em ser um original de aspecto bizarro, de pernas esguias, um ocioso, etc. Tudo iss~
pava o primeiro lugar: a saber, em procurava um único leitor. Assim, fui-me pouco
a pouco apoderando deste pensamento. Mas, ainda aqui, a parte da Providência é ~ era com meu plen? consen~imento. Agora, o povo aprendeu com isto a saciar bes-
infinita. tlal~ente o olhar, dia após dia, e a troçar de mim. Estes incidentes fizeram com que
me smta, por vezes, cansado do meu anonimato, e corria o risco de me tornar exacta-
O resto da produção pode perfeitamente ser publicado. Só que sem uma palavra mente o contrário.
a meu respeito.
Faz-me falta é viajar. (13) Isto não deve ser, e dou graças a Deus por aí ter posto um obstáculo, dou-lhe
graças por ~u ter sido impedido ~e publicar (não há dúvida que sempre experimentei
a este respeito alguma repugnânCia) o Ponto de vista explicativo da minha obra de es-
Kierkegarad renunciou, portanto, à publicação do Ponto de vista critor.
e explica isso a si próprio, noutra passagem do Diário, que é conveniente O próprio livro é verdadeiro, e na minha opinião, uma obra prima. Mas as coisas
citar igualmente por inteiro: ~ã? podem ser public~das senão depois da minha morte. Algumas pequenas notas que
mSlstem no meu caracter de penitente, no meu pecado e na minha falta, algumas
N. B. - N. n. - N. n. - O Ponto de vista explicativo da minha obra de escritor pequenas cois~s.a propósito da minha miséria interior farão com que ele seja verdadeiro.
não deve ser publicado, não! não! Mas é neces.sa;l? 5lue me mostre prudente com o pensamento da morte para evitar
I. Eis porque em última análise (tudo o que pude imaginar sobre os perigos toma~ uma Imclatlva ao esperar morrer dentro de seis meses - quando talvez chegue
aos omtenta anos (15). Não, há que terminar estas coisas, fechá-Ias no meu escritório
que isso implicaria para os meus proventos e o meu ganha-pão não é mais do que vento):
não me posso apresentar sob um aspecto completamente verdadeiro. Mesmo no manus- seladas com a inscrição: .Para abrir depois da minha morte.. '
crito original (que, no entanto, redigira sem a menor intenção de o mandar imprimir) . E se, para falar uma linguagem puramente humana, eu corresse um risco dema-
não pude realçar o facto, essencial para mim, de que sou um penitente, a mai~ profunda Siado pequeno ou se tivesse podido arriscar-me um pouco mais longe? Seja, o Senhor
explicação que se possa dar de mim mesmo. Mas, como pensava em publicá-Io, pe- Deus, o Deus d? Céu que é amor, meu Pai que está nos Céus e que perdoa os pecados
em nome de Cmto, perdoar-me-á também isto, sem dúvida. Porque não é um Senhor
guei, portanto, no manuscrito e fui assim obrigado a nele introduzir algumas pequenas
cruel, nem um amante ciumento, mas o Pai cheio de amor. A Ele atrever-me-ia sem
modificações porque, apesar de tudo, tinha insistido demasiado neste ponto para o
dúvida a dizer: Não terei a vergonha de correr um risco maior, temo faltar à verdade,
entregar para publicação.
mostrar-me demasiado familiar contigo. Prefiro ficar no meu anonimato e deixar
2. Não posso pretender inteiramente que a minha obra de escritor seja também
um sacriflcio; sem dúvida, é verdade que fui indizivelmente infeliz desde a minha infân- a cada um a preocupação de ver em mim o que quiser do que tornar-me aos olhos
cia, mas, a este respeito, devo também reconhecer que Deus, ao pensar fazer de mim d~ alg~ns o Extraordinário, ?o ponto de vista patético. De qualquer modo, não há
um autor, me proporcionou uma fonte rica, muito rica, de alegrias. Fui, pois, sem m~guem a. quem possa explicar-~e ~ompletamente, porque o que é decisivo para
dúvida, sacrificado, mas a minha actividade de escritor não é um sacriflcio, porque num na mmha eventual Extraordmandade - o meu pecado e a minha falta - não
pode ser divulgado.
é nesta profissão que incondicionalmente prefiro continuar.
Portanto, não posso aqui também apresentar-me sob um aspecto totalmente E Deus fará concorrer todas as coisas para meu bem.
verdadeiro, porque não seria capaz de expor assim em todas as letras o meu sofrimento ? que, aliás, eu escrevi pode muito bem servir -contanto que prossiga a minha
carreira de autor - mas é necessário então que o atribua a um poeta, a um pseudónio.
e a minha miséria - faltando isso, o acento recai propriamente sobre a alegria.
Por exemplo:
Sempre tive um certo aspecto temerário, ainda por cima consegui enganar-me
a mim próprio, ignorando até que ponto não pudera, de facto, preferir a condenação pelo
à morte à busca de uma actividade mais tranquila. poeta Johannes de Silentio (16)
3. Quando der a conhecer a minha missão extraordinária, mesmo com todas as editado por
reservas de que lancei mão, e nela estiver comprometido, a vida será para mim um S. Kierkegard
tormento quando, no terreno patético, virem em mim um Extraordinário, e ela será
por isso uma terrível responsabilidade. Mas isso é exactamente a melhor prova de que o Ponto de vista explicativo da minha
(00.) obra de escritor não pode ser publicado e que importa atribuí-lo a uma terceira pessoa,
Mas, eis a situação. O incidente do ano passado (14) (quando escrevi o estudo em ~pres;ntando-? c0To'~o,?m; explicação possível da obra do Magister Kierkegaard;
questão) pôs-me intensamente à prova, e sofri muito. Os maus tratos infligidos pela Isto e, que o livro Ja nao e entao o que era. A sua característica consistia justamente
naquilo que me era pessoal.
E, depois, devo partir na Primavera.
M~s ~oi graças à solicitude de Deus que fui banido da indolente criação em que
(12) A expressão dinarmarquesa ~nin Laeser pode aplicar-se tanto a um leitor prodUZia lIlcessantemente (e, num sentido, obras magistrais), sem nunca ter a coragem
como a uma leitora, mas aqui e por detrás desta ambiguidade Kierkegaard faz, eviden- de pensar na publicação, esperando, por outro lado, vagamente morrer» (17).
temente, alusão a Regina. Os .dois discursos edificantes. são os do dia 16 de Maio
de 1843, os primeiros que escreveu: ef. OC VI (SV 2 III 15)·
(13) Papo X 1 A 266.
(14) Alusão às caricaturas do jornal satírico O Corsário: Kierkegaard era nele (15) É a idade com que morreu o pai de Kierkegaard.
muitas vezes representado vestindo calças com uma perna mais curta do que a outra, (16) Com este pseudónimo fora publicado, em 1843, Temor e tremor (OC V).
(17) Papo X 1 A 78.
e os garotos tinham chegado a fazer pouco dele na rua.

16 17
PVE-2
Kierkegaard renuncia, pois, a publicar o Ponto de vista e crt quê
a Providtncia guiou esta decisão (18).
Será necessário esperar por 1859 para que, quatro anos depois da
morte de Kierkegaard, o seu irmão Peter Christian, bispo de Aalborg,
edite o que Soren decidira guardar escondido enquanto vivo.
Tendo renunciado a publicar o Ponto de vista, não dando conti-
nuação ao projecto de lançar, com o tftulo A neutralidade armada,
um periódico religioso onde teria precisado o retrato do ideal cristão subli-
nhando que não pretendia de modo algum ser o modelo que pintava, Kierk-
kegaard redigiu em 1849 uma espécie de resumo do Ponto de vista que
ilttitulotl: Sobre a minha obra de escritor (19). Ainda hesitou em
publicar este último texto, mas fe"-lo aparecer em 7 de Agosto de 1851
acrescentando-lhe um suplemento com data de Novembro de 1850, em
que remete para A Doença mortal e para a Escola do cristianismo,
entretanto publicada (... ).

jEANBRUN PONTO DE VISTA EXPLICATIVO


DA MINHA OBRA DE ESCRITOR
Uma Comunicação directa
Relatório à História (1)

1n jedem Dinge muss die Que direi eu? As minhas pala-


Absicht mit der Thorheit auI vras não significam grande coisa.
die Wagschale gelegt werden. Ó Deus, como são grandes a tua
sabedoria, a tua bondade, o teu
poder, o teu reino.
SHAKESPEARE (2) BRORSON(3)

Editado por P. Chr. Kierkegaard (4)

(1) Cf. nota suplementar A, no fim do volume.


(2) .Em tudo, há que pôr na balança a intenção e a loucura» (He/lrique IV, H.'
parte, 2.' acto, cena 2): o texto pertence à última deixa do príncipe Henrique. A tra-
dução alemã que Kierkegaard aqui utiliza é a de A.W. von Schelgel e L. Tieck, Shakes-
peare's dramatische Werke, Berlim, 1839 (Ktl. 1883-1888), I.
(3) Este texto do grande salmógrafo dinamarquês H. A. Brorson (1694-1764)
pertence ao salmo n.' 16: Dp aI de/l Ti/lg, som Gud har giort (De pé! tudo o que Deus
fez) do PsaImebogfor Kirke og Hjem (Saltério para a igreja e para casa), aparecido em
1734 e inserido mais tarde nos livros oficiais da Igreja dinamarquesa. Kierkegaard
(18) Cf. Papo X 1 A 79. cita, sem dúvida, de acordo com o PsaImer og aQ/ldeligeSa/lge (Salmos e c~nticos espi-
rituais). (Kt1. 200).
(19) DC XVH (SV 2 XIII 523-543).
(4) Irmão de Kierkegaard, então bispo de Asborg.

18
INTRODUÇÃO (5)

Na minha obra, cheguei a um ponto onde é possível, onde


experimento a necessidade, e por conseguinte, considero agora
agora meu dever declarar de uma vez por todas tão francamente,
tão abertamente, tão categoricamente quanto possível, em que con-
siste a produção, o que pretendo ser como autor. Por desfavorável
que seja, aliás, chegou agora, por um lado, o momento, repito,
porque me encontro neste ponto, por outro, porque reconheço
a minha estreia literária com a segunda edição de A Alternativa,
que não quis publicar mais cedo (6).
Há um tempo para calar e um tempo para falar (7). Durante
todo o tempo que considerei como meu dever religioso observar
o mais estrito silêncio, esforcei-me por guardá-Io por todos os meios;
Não hesitei em contrariar o meu esforço no sentido finito, numa
atitude conforme ao silêncio, à mistificação e à duplicidade. A minha
conduta não foi, a este respeito, compreendida; classificaram-na
de orgulho, arrogancia, Deus sabe de que mais. Vendo no silêncio
o meu dever religioso, não fiz a menor tentativa para desfazer
este mal-entendido. E vi no silêncio o meu dever porque a minha

(5) Ainda que o texto do Ponto de vista estivesse quase terminado em Novem-
bro de 1848, esta Introdução pertence a uma remodelação. feita em vista de uma publi-
cação, que data de Janeiro-Fevereiro de 1849.
(6) Esta segunda edição apareceu no dia 4 de Maio de r849.
(7) Cf. Qo. 3. 7.

21
obra ainda não estava no ponto de acabamento (8) em que a sua passado - espero dispor de ainda mais sem causar a minha perda;
compreensão pôde ser outra coisa diversa de uma falsa compreen- a única coisa que não poderia consentir e que não poderia f:1.zer
são. sem me perder e sem perder a dialéctica da minha situação (e é
justamente o que poderia aceitar) seria defender-me como autor;
Esta como
ramente pequena obraque
autor, propõe-se,
fui e soupois,
um dizer
autor oreligioso,
que sou verdadei-
que toda cometeria assim um erro que, ainda que me ajudasse a ganhar como
a minha obra de escritor (9) se relaciona com o cristianismo, com insensato todo o mundo (12), se transformaria para sempre na
o problema do tornar-se cristão, com intenções polémicas directas minha perda. Humilde diante de Deus, sei também de que faltas,
e indirectas contra a formidável ilusão que é a cristandade, ou a perante os homens, me pude tornar culpável pessoalmente; mas
pretensão de que todos os habitantes de um país são, tais quais, sei, além disso, com Deus, que precisamente a minha obra brotou
cristãos.
Rogo a todo o homem votado de coração à causa do cristia- de u.ma irresistível
bilidade oferecida anecessidade interior,profundamente
um melancólico que ela foi a única possi-
humilhado,
nismo, e tanto mais encarecidamente quanto mais querida ela lhe o honesto esforço de um penitente com vista a reparar, se possível,
for, que tome conhecimento desta modesta obra, sem curiosidade, fazendo um pouco de bem à custa de todos os sacrifícios na disci-
mas com recolhimento, como se lê um escrito religioso. Ao consi- plina ao serviço da verdade. E sei, por conseguinte, com Deus, aos
derar a minha obra total, é-me naturalmente indiferente saber olhos de quem este empreendimento encontrou e encontra graça,
em que medida um público de supostos estetas encontrou ou poderia como ele se regozija também do seu auxílio, que não me cabe
encontrar prazer em ler toda ou parte da produção estética, que é defender-me como autor perante os meus contemporâneos; porque,
o incógnito e o embuste ao serviço do cristianismo; sou, com efeito, se desempenho algum papel entre eles, não é o de culpado, nem
um autor religioso. Se um leitor compreende e julga perfeitamente o de defensor, mas o de procurador-geral.
a produção estética tomada isoladamente, está num erro completo Mas também, não acuso os meus contemporâneos, justamente
a meu respeito, já que não a enquadra na totalidade religiosa da porque compreendi que o meu dever religioso é servir a verdade
minha obra. Se, pelo contrário, um leitor compreende a minha com uma abnegação em que a minha tarefa foi defender-me, por
obra sob este último ponto de vista sem talvez compreender esta todos os meios, da benevolência e da consideração. Só aquele que
ou aquela produção estética, a sua incompreensão, é, então, pura- sabe por experiência o que é a verdadeira abnegação pode resolver
mente sectmdária. o meu enigma e ver que agi animado por este espírito. Por falta
Estas páginas são destinadas a orientar e a certificar; não for- de compreensão pessoal, qualificar-se-á a minha conduta como egoís-
necem uma defesa ou uma apologia. Se, por outro lado, nada tenho mo, orgulho, mania, loucura, todas as coisas de que, em boa lógica,
em comum com Sócrates, creio verdadeiramente coincidir com ele não me ofendo, porque, ao serviço da verdadeira abnegação, eu
neste ponto. Quando foi acusado perante «a multidão» chamada
ajulgá-Io, a ele, que tinha consciência de ser um presente divino (10), próprio
uma coisacontribuí para ser
não poderia essas opnúões. Absolutamente
compreendida nem por uma falando, só
assembleia
o seu demónio proibiu-lhe defender-se (1 1) - e como teria sido incon- barulhenta, nem por um honrado e distinguido público, nem num
veniente e contraditório fazê-Io! Da mesma maneira, há em mim discurso de uma meia hora: a natureza da abnegação cristã. Para
e na dialéctica da minha situação alguma coisa que me impede e a entender, é preciso muito temor e tremor, o silêncio da solidão,
torna em si impossível apresentar uma «defesa»da minha obra de e muito tempo.
escritor. Pronunciei-me sobre muitas coisas e espero- quem sabe, Tenho a certeza eterna de ter compreendido a verdade do que
porém? talvez o futuro me venha a ser mais clemente do que o adianto e disso mesmo estou igualmente convencido; os meus con-
temporâneos que não o entendem assim estarão quer queiram quer
não, obrigados a admiti-Io quando, uma vez na eternidade, estive-
(8) São as obras escritas em 1848 que serão consideradas por Kierkegaard como rem libertados de todas as importunidades, preocupações e dificul-
assinalando um ponto de acabamento: cf. Papo X 2 A 66 e X 4 A 560. dades de que fui dispensado, se tiverem então encontrado na serie-
(9) Aqui e a seguir, Kierkegaard retoma a palavra composta utilizada no título: dade feita de calma e de solidão bastante tempo para pensar. Se volun-
Forfatter-Virksomhed (literalmente: actividade de autor) que traduzimos por «obra tariamente me expus à incompreensão, não se segue que não possa
de escritor» ou simplesmente «obra•. Em todo o caso, a palavra «obra> deve tomar-se
no seu sentido activo. (N. T. fr.).
(10) Cf. Platão, Apologia de Sócrates 30 e.
(11) Cf. Xenofonte, Memoráveis IV, 8. 5. (12) Cf. Mt. 16, 26 e paralelos.

22 23
relamente sofrer: de outro modo, todo o sofrimento cristão ver-
dadeiro, voluntário por natureza, seria abolido; e não se segue
também que «os outros», muito simplesmente e sem outra forma
de processo, sejam isentos de toda a responsabilidade, se, por outro
lado, é verdade que suporto a sua incompreensão ao serviço da
verdade: por maior que tenha sido esta incompreensão, só posso,
pois, dar graças a Deus, não por sofrer assim, mas pelo dom que
me faz de compreender a verdade, onde tenho a minha ocupação
infinita.
Uma simples palavra ainda. É evidente que não posso dar da
minha obra de escritor uma explicação integral, quero dizer, no
carácter estritamente Íntimo e pessoal em que a tenho. Por um lado,
não posso assim tornar pública a minha relação com Deus: tal
relação é, efectivamente, nem mais nem menos que a vida interior
própria de cada homem, despida de todo o carácter oficial, como
se encontra em cada um; seria criminoso passá-Ia em silêncio e tenho
a obrigação de a pôr em evidência, ou poderia invocá-Ia para dela Primeira Secção
me valer; por outro lado, não pretenderia (e ninguém o quererá)
impor a alguém o que unicamente diz respeito à minha pessoa
privada e que, a meus olhos, é contudo de grande importância para
explicar a minha personalidade de autor.

24
A

DUPLO CARÁCTER OU DUPLICIDADE (13)


DE TODA A OBRA(*): SE O AUTOR É UM
AUTOR DE ORDEM ESTÉTICA OU RELIGIOSA

Trata-se, aqui, de provar que este duplo carácter existe do


princípio
descobertaaopor
fim.outros
Não eé, que
pois,compete
o caso deaouma duplicidade
interessado suposta,
demonstrar
que ela não existe. De modo nenhum, muito pelo contrário. Se o
leitor não prestou suficiente atenção a este duplo carácter, o papel
do autor é demonstrar-lhe a sua realidade com toda a evidência
possível. Por outras palavras, esta duplicidade é conscicnte, o autor
cstá dela melhor informado do que ninguém, ela é a condição dia-

(*) Eis, para lembrá-Ios, os títulos das obras: Primeiro grupo (produção estética):
A Alternativa j Temor e Tremor j A Repetição j O Conceito de Angtlstia j Prefácios; Migalhas
Filos6jicas, Os Estádios no Caminho da Vida j e dezoito discursos edificantes, aparecidos
sucessivamente. Segundo· grupo: Post-scriptum definitivo e não cient!fico. Terceiro grupo:
(produção estritamente religiosa): Discursos edificantes sob diversos POlltOSde vista, As
obras do amor; Discursos cristãos, um pequeno artigo estético: A crise e uma crise na vida
de uma actriz (Nota de Kierkegaard).

(13) Kierkegaard emprega aqui duas palavras: tvetydighed e duplicitet, a pri-


meira, corrente, de forma dinamarquesa, a segunda, mais rara, decalcada sobre o latim.
A palavra «duplicidade. é evidentemente a que escolhemos, no seu primeiro sentido.
(N. do T.)

27
léctica fundamental de toda a obra e tem como consequência uma disc~rsose~ificantes apareceram dois ou três meses depois de A Alter-
razão profunda. na~lva, assl;n tambem o pe.queno artigo de estética se seguiu, em
Mas é disto mesmo que se trata; está o duplo carácter inte- dOISou tres meses, aos dOISanos de escritos estritamente religio-
gralmente observando na obra? Não pode explicar-se o fenómeno sos (15). Os D~is '!iscursos edificantes e o J;'equeno artigo correspon-
de outra maneira e dizer que se trata de um autor primeiramente d.em-se na razao mversa e mostram reCIprocamente que a dupli-
dedicado à estética e que depois, com o decorrer dos anos, mudou CIdade.aparece no começo e no fim. Enquanto que A Alternativa
e se tornou um autor religioso? Não direi que, se assim fosse, o absorVIa toda .a a~enção e ninguém reparava nos Dois discursos edi-
autor não teria certamente escrito um livro como este, não se teria, jicantes, estes slgmficavam, apesar de tudo, que o carácter edificante
de certeza, dado ao trabalho de fazer uma sinopse de toda a sua obra, era exact.a~ente o que era necessário realçar, que o autor era um
e, sobretudo, teria para isso escolhido o momento em que retoma autor rehgloso que" J;'0r consequência, ele próprio jamais escreveu
aos seus primeiros passos. Não :J1egareiigualmente a singularidade algo de orde~ estettca, mas recorreu a pseudónimos para obras
de semelhante mudança ocorrida ao longo de tão poucos anos. de~ta categona, ao .passo .que os Dois discursos edificantes eram
Ordi1l3.riamente, quando vemos um escritor passar do domínio assmados pelo Magls:er Klerkegaard. Inversamente, quando dois
estético ao domínio religioso, verifica-se um intervalo de um deter- anos .de obras e~cluslvamente e~ficantes chamaram, de alguma
minado número de anos, e não é inadmissível explicar a mudança maneIra, a atençao de. outros leItores, talvez também ninguém
relacionando-a com a idade, na realidade notoriamente mais av<,.n- tenha reparado, no senttdo profundo, de. que o pequeno artigo era
çada do autor. Mas deixo de lado este argumento; porque, se o a prova, que doravante se encontra termmada a estrutura dialéctica
facto é singular, quase inexplicável, se convida a procurar e a encon- de toda a produção. O pequeno artigo está na obra a título de
trar uma explicação completamente diferente, não é, contudo, impos- test~m:mho e ~e confronto, para de~au;o~izar no fim (como os
sível que semelhante transformação possa acontecer em três anos. DOISdIscursosedificantes o fizeram no pnnclplO) a explicação do fenó-
Pelo contrário, provarei que é impossível explicar o fenómeno meno, s~gun~? a qual se.trata de um escritor que, primeiramente
desta maneira. Com efeito, olhando de mais perto, ver-se-á que votado a .estettca, a se~u.lr mudou e se tornou um autor religioso;
não passaram três anos antes do aparecimento da mudança, mas porque fOIum autor rehglOso desde o início, e fornece uma produção
estética no último momento da obra.
tIue esta data do princípio; dito de outra maneira, o duplo carácter
está presente desde o princípio. Porque, simultaneamente com , C? primeiro grugo de es~ritos constitui a produção estética;
A Alternativa, aparecem Dois discursos edificantes (14). Em sentido o ul.t1;llo, a_pr.odl~çao exclUSIvamente religiosa: o Post-Scriptum
profundo, no sentido de toda a obra, a duplicidade não foi de modo de.fi~'t'vo e nao ctent(fico encontra-se entre os dois, formando o ponto
algum aquela de que então se falou, quando se opôs a primeira à mtlCO. Esta obr.a gõe e trata «o pro.blema» que é o de toda a obra,
segunda parte de A Alternativa. Não, a duplicidade foi esta: A Alter- de t~rnar-~e cnstao; ~etoma e anahsa a produção pseudónima e os
nativa... e Dois discursos edificantes. dez?lto dISCursos edlficantes intercalados (*); mostra como este
O religioso está presente desde o princípio. Inversamente, o esté- c0ll.}l:nto~~clarec.eo problema, sem contudo avançar que este iti-
tico está ainda presente no último momento. Após dois anos consa- nerano fOImtenclOnal na pro~u9ão precendente, o que é impossível,
grados à publicação de escritos unicamente religiosos, assiste-se porque se trata de um pseudommo estudando outros pseudónimos,
ao aparecimento de um pequeno artigo de estética (*). No começo
e no fim, tem-se a certeza de não poder explicar o fenómeno, di-
zendo que se trata de um autor do domínio estético que mudou (*) Cf. p. 187-227. Peço ao leitor que queria ter em conta esta passagem (16)
(Nota de Kierkegaard).
com os anos e se tornou um autor religioso. E assim como os Dois

(*) A Crise e uma crise na vida de uma actriz. Foedrelandet, Julho de 1848. (Nota (15) Durante os dois anos que separaram o Post-Scriptum (27 de Fevereiro de
de Kierkegaard). 1846) do pequeno artigo de estética, isto é, A crise e uma crise na vida de uma actriz
(24-2: d~ Julho ~e 1848). Kic;rkegaard só publicou, de facto,. escritos religiosos, a
saber. DIscursos edíficantes sob dIVersos pontos de vista (13 de Março de 1847), As obras
do Amor (29 de Set~~bro de 1847) e Discursos cristãos (26 de Abril de 1848).
(14) Trata-se dos Dois discursos edíficantes que apareceram a 16 de Maio de 1843. (16) Esta preClSaoremete eVIdentemente para a edição original: cf. OC X (SV 2
VII 237-287).
ao passo que A Alternativa tinha aparecido em 20 de Fevereiro.

28 29
portanto, de um terceiro que nada pode saber dos objectivos de uma como autor, altero um pouco o carácter de toda a obra, dialéctica
desde o princípio ao fim.
produção que lhe é estranha. O Post-Scriptum não é de ordem estética, Não posso, pois, afirmar nada, pelo menos antes de ter dado
mas, para falar apesar
pseudónimo; com propriedade, também nele
de tudo, inscrevi meu nomeÉ de
não oé religioso. um
como de outra maneira à explicação uma tal evidência que uma certeza
editor, o que não fiz com nenhuma outra obra puramente esté- se torne como tal inteiramente supérflua; porque pode ser conce-
tica (*); é um indício para quem tenha o sentido e a preocupação dida como uma satisfação lírica, se dela sinto necessidade, e exi-
destas coisas. Depois, passam dois anos durante os quais aparecem gida como um ~e~er religioso. Enquanto homem, com efeito, posso
unicamente obras religiosas assinadas com o meu nome. O tempo estar no ~l1~UdIreIto de dar uma certeza, e fazê-Io pode ser o meu
dos pseudónimos acabara; o autor religioso tinha-se desembara- dever rehgIOso. Mas não há que confundir esta maneira de certi-
çado do disfarce estético - depois, para fazer fé e por precaução, ficar com a produção. Enquanto autor, importa muito pouco, que
o pequeno artigo estético assinado com o pseudónimo Inter et como homem, afirme ter querido isto ou aqtúlo. Mas todos estarão
Inter(18). Num sentido, toma de repente consciência de toda a ~e. acor~o,: quando, perante um fenómeno, se pode mostrar que
obra e, já o disse, lembra, mas de uma maneira inversa, os Dois e lll~xphcavel de qualquer outra maneira e que, pelo contrário, se
discursos edificantes. exphca em todos os pontos segundo a certeza invocada, o bem
fundado desta alegação encontra-se justificado, com toda a evi-
dência possível, em semelhante caso.
B Contudo, não há aqui uma contradição? Quando precedente-
mente se estabeleceu que a duplicidade é real até ao fim, na medida
EXPLICAÇÃO: QUE O AUTOR em q~e isso .se <:,onsegiu também se tornou impossível estabelecer
É E FOI UM AUTOR RELIGIOSO qual e a exphcaçao, de tal modo que uma declaração, uma certeza.
se afirm~ aqtú o único meio de suprimir a tensão dialéctica, de resol-
Uma simples certeza do autor poderia ser, ,a este respeito, ver a dlficul?~de. 1st? parece muito forte e, todavia, não passa
mais do que suficiente, parece; porque ele deve saber melhor do de uma argucIa. ASSIm, quando uma pessoa numa determinada
que ninguém de que se trata. Mas não gosto muito das certezas situação julga necessário recorrer à mistificação, a lógica dos seus
em literatura e habituei-me a considerar as minhas produções objec- subtis processos implica exactamente que ela actue de modo a
tivamente. Se, na qualidade de ter,ceiro, de leitor, eu não pudesse fazer aparecer o cómico,
provar pelos meus escritos que é como digo e que não pode ser Mas semelhante conduta sem queaoa si
revela mesmatempo
mesmo aí se consiga reconhecer.
uma falta de serie-
de outra maneira, nunca pensaria em pretender ganhar uma causa dade em que se produra a mistificação por si mesma, quando deve
que consideraria como perdida. Se devo começar por dar garantias ter como fim a verdade. Portanto, quando uma mistificação, uma
red~plicação dialéctica é posta ao serviço da seriedade, este pro-
cedullento supõe que se recorra a ele simplesmente de maneira
a. evitar os equívocos e os acordos provisórios, deixando ao inves-
(*) Não pode objectar-se com Apresentação literária de .Duas épocas» (17); por tIgador honesto o cuidado de encontrar a explicação verdadeira.
um lado, este escrito não é de ordem estética, como o é a produção poética: é crítico;
por outro, tem um fundo totalmente religioso na sua concepção do «tempo actual».
Valendo-nos do mais elevado exemplo, toda a vida de Cristo
(Nota de Kierkegaard). aqui na terra teria sido uma espécie de jogo ou de manobra se tivesse
conservado o an.onimato a ponto de passar a sua vida completa-
mente despercebIdo - e, contudo, ele foi verdadeiramente incóg-
nito (19).
(17) Cf. OC VIII (SV2 VIII 7-121). Trata-se de um profundo estudo crítico de
uma novela de Thomasine Gyllembourg (1773-1856): To Tidsaldere, Novelle tif For-
O mesmo acontece com uma reduplicação dialéetica.; consiste
játteren til .En Hverdagshistorie. (Duas épocas, novelas pelo autor de .Uma História em conservar a duplicidade. Logo que a seriedade necessária inter-
de todos os diaso), publicada em 1845. Autor célebre no seu tempo, Mme Gyllembourg vém, pode também deslindá-Ia, mas sempre apenas de maneira
era, por um primeiro casamento, a mãe de J. L. Heiberg, que ocupa o lugar que se
sabe na vida e obra de Kierkegaard.
(18) De um certo ponto de vista, Inter et Inter não é totalmente comparável
aos outros pseudónimos. Tratar-se-ia antes de um .sinal., como Kierkegaard utili-
. (19) Encontram-se várias observações de Kierkegaard sobre o incógnito de
zou em algumas vezes para artigos de jornais (A, B) ou pequenos artigos (H.H.). Costo, por exemplo, em A Escola do Cristianismo: OC XVII (SV 2 XII 149-154).

30 31
no casamento a tranquilidade da vid .,
a que a seriedade se conserve como garante da verdade; porque a cl~ustro, e este pensamento est' a: J~/dstava religiosamente no
reduplicação dialéctica é para a verdadeira seriedade o que o desdém Vlctor.:. Eremita (21). a escon I o sob o pseud6nimo:
de uma mulher é para o verdadeiro amante, perante o qual, então, TaIS são os factos. A Alt' .
mas só então, ele desaparece. A explicação não pode, pois, ser dada clau~tro e dou disso a certeza (d:~ttva, estbtamente, foi escrita num
a um homem com uma seriedade insuftciente; porque a elasticidade
da duplicidade dialéctica é demasiado grande para que ele a possa ter tido
nem ocasião .de ler de
a oportumdade estaabr;
pe uenge-ba o rasoe retudo aosterem
que, sem que poderiam
os meios
dominar; retira-lhe a explicação e torna-o perplexo quanto ao perturbados pela singulat co~~r ta~ prdduçã~,. poderiam ters ido
facto de saber se é exactamente essa a explicação. certo tempo a ler para su d'fi ll:açao o estetIco e do reli ioso
Que se faça a tentativa; que se procure explicar toda esta obra da minha obra), disso dO~lea Iclc~çao.pessoal, obras de piedade, ; ftm
admitindo que se trata de um autor trabalhando no plano estético. sagrou :odos os dias, reguIar~::~a~ °c autor de :1 Alternativa con-
Desde o principio, ver-se-á que esta explicação não é adequada ao de medir a sua responsabilidad om um rIgor monacal um
fenómeno, e que depressa esbarra com os Dois discursos edificantes. Enquanto fazia isto (coisa estra~h~~ temor e num grande tre~or.
Que se suponha, pelo contrário, um autor religioso, e ver-se-á de um Sedutor. O mund b' .), pensou sobretudo no Diário
a hipótese concordar passo a passo em todos os aspectos. Resta ao autor admirado ao ql~ala na-se duma medida extraordinária
apenas este ponto inexplicável: como é que um autor religioso nem mudava, porque estav~a ppesar I edtudo~ nada disto «seduzia»
se pôde ter lembrado de recorrer à estética? Por outras palavras, uma eternidade. ara ta emasIado velho, velho de
eis-nos de novO na duplicidade ou na reduplicação dialéctica. A
A Seg~iram-se Dois discursos edtifi . .
única diferença é que a hipótese de um autor religioso resulto~ telu, mmtas vezes uma a A • can~es. as COIsas mais decisivas
e que se trata a partir de agora, de explicar a duplicidade. Em que o b ra d e A Alternativa
' foi «muit
parencla dO.
<
r
mmt 11l~lg1l1
. . 'filcante. A grande
medida poderá outro fazê-Io, não o decido eu; mas a explicação os Dois discursosedificantes, dedi~ad a: maIS ;11~dadiscutida»; depois
é o tema da segunda secção deste pequeno livro.
Apesar de tudo, uma simples palavra ainda aqui: aquilo que, c~dhs
Z11la ~o dia do meu
a sombra aniversário
da grande flor (Sod:
t ;:t~)o(r~~)d~
alO meu pai
, IOram e publi-
«Uma flor-
repito, enquanto homem me pode proporcionar uma satisfação sua ~agnifi.ciência, nem pelo es a, qu~ não é procurada nem pela
lírica, e enquanto homem também é meu dever religioso, é uma nutrItiva» (*). Não houve nin s~u per ume, nem pela sua virtude
certeza directa de que o autor foi e é um autor religioso. Quando
por estes dois discursos ou q~ue: q1e desse, em sentido profundo,
comecei A Alternativa (da qual, in parenthesi só existia cerca de uma
J
que um dos conhecidos veio Fe e es. se preocupasse; recordo até
página, dois «diapsalmata», embora toda a obra tenha sido escrita
em onze meses, e a segunda parte em primeiro lugar), estava,
comprado, pensando de boa t'
r C0n;t~go e se queixou de os ter
algo de divertido e de espirituos e .q1e, Jb que eram meus, isso seria
em potência, sob uma influência do religioso tão profunda como em dar-lhe o dinheiro se o d .0, e em ro-me também que prometI'
qualquer outro momento ulterior. Eu estava tão profundament< ao mun d o A Alternariva
,. e eseJasse
com . d'Com . a mao - esquerda, ofereci
abalado (20) que compreendia a impossibilidade radical em que mas todos ou quase todo; t d Irelta, Dois discursos edificantes'
me via de encontrar o meio aprazívcl e seguro onde a maior parte esquerda (**). es en eram a sua direita para à minh~
dos homens têm a sua vida: precisava, ou de me precipitar no deses-
pero e na sensualidade, ou de escolher absolutamente o religioso
como a única coisa necessária, ou o mundo numa medida que se
anunciava cruel, ou o claustro. No ftmdo, estava decidido que eu (:~ Cf. Dois discursos edificantes 18 P .

optaria por este última alternativa, não podia agir de outra maneira;
) CIef.que
leit or,( aque Doisco discursos
~..edificant;sJ I~34'4,re.aClO:
rpefá;;o: (Nota r
«Este de Kierkegaard).
a excentricidade do primeiro movimento exprimia simplesmente (Nota de Kie rk egaard~ /. a mao dIreIta recebe o que se lhe Olerece r Ivro
comproc~ra
a dIreita>
O (23).
meu
a intensidade do segundo, porque tinha compreendido como me
era impossível ser religioso até a um certo ponto. A Alternativa
dá isto testemunho. Libertei-me de poesia, sem todavia ultrapassar (21) Sobre este pseud6nim f. . .
a esfera ética. Pessoalmente, estava muito longe de querer colocar OC IV 342. ss. o, C . prmclpalmente o Post-Scriptum à Alt t'
(22) Os Dois discursos ed' • erna wa:

data1~3~o ~iaC 6:
VI cf.
(SVOC2. IV rs~n~e~I~o
VI 81). A citaS):areceram a 6 deabreviada
ç ão e• um pouco Maio, masporo Kierkeg
Prefácio aar
está
d.
(20) Alusão à ruptura com Regina Olsen: cf. OC III Introdução.

32
33
Tinha, perante Deus, uma clara consciência do meu objectivo;
tomava partido pelos dois discursos edificantes, mas compreendia
bem que poucos davam por eles (*). Aparece aqui pela primeira
vez a categoria do Indiv{duo, «este indivíduo que, com alegria e
reconhecimento, chamo ao meu leitor», fórmula que foi, como um
estereótipo, repetida no prefácio de cada compilação de discursos
edificantes. Ninguém me poderá verdadeiramente acusar de ter
mudado e de ter, ulteriormente, pensado de maneira diferente do
princípio, porque não estava talvez em excelentes relações com o
público, se, por outro lado, nunca recolhi os seus votos; quanto
muito, o seu apoio foi mais forte no segundo ou no terceiro mês
que se seguiu à publicação de A Altemativa. Esta situação, talve7.
tentadora para muitos, era a meus olhos a única favorável à ela-
boração da minha tarefa; coloquei-a ao serviço da verdade para
produzir a minha categoria do «Indivíduo»; neste preciso momento,
cortei com o público, não por orgulho, nem por arrogância, etc.
(nem ainda menos como consequência de um descrédito, junto Segunda Secção
do público, já que, pelo contrário, tinha então o seu inteiro apoio),
mas por ser, via-o claramente, um autor religioso cuja missão é A CONCEPÇÃO DE TODA A OBRA E QUE, SOB ESTE
dirigir-se ao «Indivíduo», categoria 9EÚ~ndo-se à de «Eúbg~o») PONTO DE VISTA, O AUTOR É UM AUTOR RELIGIOSO
exprj~:n~,_!"~:umidamente toda U!!1:l conc~ç~g-ga vida e.do .n}llPoiIQ.
Doravante, isto é,a partir dé""-Temor e Tremor, o observador
sério dispondo de pressupostos religiosos, o observador sério de
quem é possível fazer-se compreender à distância, ao qual se pode
falar no silêncio (o pseudónimo: Johannes ... de Silentio [25]), devia
notar que se tratava de uma produção estética com um carácter
particular; a honrada firma Kts. (26) realçou isto criteriosamente,
o que me proporcionou uma grande alegria.

(*) Daí o tom melancólico do Prefácio, a propósito deste pequeno livro:


.Pela sua publicação, este pequeno livro empreende, de alguma maneira, em sentido
figurado, uma viagem; acompanhei-o, pois, com o olhar por um breve instante.
E vi-o seguir o seu rumo pelos caminhos solitários, ou ir, solitário, pelas sendas batidas.
Após uns pequenos equívocos em que foi enganado por uma semelhança efémera,
encontrou finalmente o Indivíduo que, com alegria e reconhecimento, chamo o meu
leitor, o Indivíduo que ele procura e para o qual estende, por assim dizer, os braços»,
etc.: cf. Dois discursos edificantes 1843, Prefácio. Aliás, este Prefácio tinha e teve para
mim um significado muito íntimo que não se presta assim a publicação (24). Nota de
Kierkegaard).

(24) OC VI (SV 2 III 15). O sentido profundo deste Prefácio é que, de facto,
Kierkegaard se dirige a Regina, a quem deseja que verdadeiramente seja '0 Indivíduo.,
o único leitor capaz de compreender o seu livro.
(25) Cf OC V Introdução.
(26) Assinatura pseudónima do bispo Mynster.

34
Capítulo I

A PRODUÇÃO ESTÉTICA

Porque se começou pela produção estética, ou o papel


desta produção no conjunto da obra (*)

§ I
Que «a cristandade» é uma imensa ilusão

Toda a pessoa dotada de um pouco de discemimento que con-


sidere com seriedade o que se chama a cristandade, ou o estado de
um país dito cristão, deve, certamente, bem depressacair numa grande
perplexidade. Que significa que tantos milhares de homens se digam
cristãos sem mais dificuldades! Como podem obter este nome
inúmeros homens, c1tia imensa maioria, segundo tudo leva a crer,
vive sob categorias tão diferentes, como o demonstra a mais super-
ficial observação! Como o podem eles, homens que talvez nunca
vão à igreja, nunca pensem em Deus, nunca pronunciem o seu nome,

(*) Peço insistentemente, e de uma vez por todas, ao benévolo leitor para ter
sempre in mente que o pensamento total de toda a obra é esta: o tornar-se cristão.
(Nota de Kierkegaard).

37
senão para blasfemar! Como o podem eles, homens que nunca (para os arquivos); ou, se a palavra viva os impressiona, envere-
compreenderam que podem ter na sua vida uma obrigação para dam pela ruas mais perto e não ouvem nada. Depois, desembaraçam-se
com Deus, e que fazem de uma certa integridade física o máximo dele graças a alguns conceitos e organizam-se muito tranquilamente
do seu ideal, se nem mesmo a acham absolutamente necessária! na ilusão; vêem nele um exaltado, no seu cristianismo um exagero,
Todos, no entanto, até os que negam Deus, são cristãos, dizem-se ainda que, no fim, continue a ser o único ou um dos raros que não
cristãos, são reconhecidos como cristãos pelo Estado, são enterrados são seriamente cristãos (porque o exagero é também uma ('llta de
como cristãos pela Igreja, são enviados como cristãos para a eter- seriedade); os outros são todos cristãos sérios.
nidade! Não, uma ilusão nunca é dissipada directamente, só se destrói
É impossível duvidar de que aqui deve reinar uma enorme con- radicalmente de uma maneira indirecta. Se todos estão na ilusão,
fusão, uma terrível ilusão. Mas vão lá, pois, bulir nisto! Conheço dizendo-se cristãos, e se é necessário trabalhar contra isso, esta noção
perfeitamente a objecção. Porque mais de uma pessoa que me ouve, deve ser dirigida indirectamente, e não por um homem que proclama
dir-me-ia, batendo-me, com bonomia no ombro: «Caro amigo, bem alto que é um cristão extraordinário, mas por um homem que,
ainda és jovem para te lançares em semelhante empreendimento mais bem informado, declara que não é cristão (*). Por outras pala-
que, para ter um êxito relativo, exigiria, pelos menos, uma dezena vras, é preciso apanhar pelas costas o que está na ilusão. Em vez de
de missionários bem disciplinados, e que não tende, nem mais nem alguém se gabar de ele próprio ser um cristão com uma enverga-
menos, senão a reintroduzir o cristianismo ... na cristandade. Não, dura pouco comum, há que deixar à vítima da ilusão a vantagem
caro amigo, sejamos homens; semelhante projecto está acima das do seu pretenso cristianismo, e aceitar que se está muito distante dele;
tuas forças e das minhas. É tão loucamente grandioso como preten- de outro modo, não se tira da sua ilusão, o que já não é tão fácil.
der reformar «a multidão. com a qual nenhum homem razoável Se, pois, por hipótese, a maioria dos cristãos só o são em ima-
se mistura e que a considera como tal. Embarcar assim é naufrágio ginação, em que categorias vivem eles? Nas da estética ou, quando
certo •. Talvez, mas se o fracasso é ou foi curto, é igualmente certo muito, nas categorias estético-éticas.
que esta objecção não nos veio do cristianismo; porque, quando Imaginai agora que um autor religioso tenha verdadeiramente
apareceu no mundo, o empreendimento estava garantido de uma reconhecido a fundo esta ilusão que é a cristandade e que, na medida
maneira ainda mais categórica contra um fracasso certo e, apesar das suas forças, com o auxílio de Deus, bem entendido, declara
de tudo, foi começado; também é certo que não se recebeu esta uma guerra impiedosa a esta quimera; que conduta deve observar?
objecção de Sócrates, porque ele misturou-se com «a multidão. Antes de mais nada, deve evitar a impaciência. Se isso faltar, preci-
e quis reformá-Ia. pita-se directamente sobre o obstáculo e não faz nada. O ataque
Assim se apresenta mais ou menos a questão. Uma vez por directo não faz mais do que ancorar o homem na sua ilusão, exas-
outra, um sacerdote lança um pouco alarme do alto do púlpito; perando-o. Para ser extirpada, nada exige tanto que se use de doçura
acha que o deve dizer a muitos cristãos, mas todos os assistentes como a ilusão. Tudo está perdido se levamos, de uma maneira ou
que o ouvem e, portanto, todos os ouvintes cristãos; mas todos de outra, o enganado pela ilusão a desencadear a posição de sua
os assistentes que o ouvem e, portanto, todos os ouvintes aos quais vontade. E chega-se a este resultado pelo ataque directo que, além
se dirige são cristãos, mas não se dirige àqueles de quem fala. Ora, disso, tem a arrogância de exigir a alguém que faça a outro, ou
se há ouvintes de quem ele fala, é porque não se dirige a eles. É o que diante de outro, uma confissão, infinitamente mais salutar quando
exactamente se chama um movimento fictício. De tempos a tempos, se faz a si mesmo no silêncio. Destrói-se a ilusão pelo método indi-
aparece um revivalista (27); enfurece-se contra a cristandade, faz recto que, servindo o amor da verdade, observa na sua dialéctica
um grande alarido, denuncia quase todo o mlmdo como não cris- todas as espécies de atenções para com o homem iludido e que,
tão - e não faz nada. Não pensa que não é assim tão fácil destruir
uma ilusão. E se, de facto, a maioria está na ilusão quando se dizem
(*) Lembra-se o Post-Scriptum definitivo e não ciwt(fico, cujo autor, Johannes
cristãos, que atitude tomam eles perante este exaltado? Em primeiro
Climacus, declara abertamente que não é cristão (28). (Nota de Kierkegaard).
lugar, não se preocupam absolutamente nada com ele: não metem
o nariz no seu livro que relegam, imediatamente a seguir, ad acta
(28) Por exemplo, o Apêndice que começa por estas palavras: .0 abaixo assi-
nado, Johannes Climacus, não se considera cristão; está antes totalmente preocupado
(27) Alusão ao bispo N.F.S. Grundtvig (1783-1872). com a dificuldade que há em tornar-se cristão.; cf. OC XI (SV 2 VII 608).

38 39
que ele, e antes de mais nada, ter a inteligência do que ele compreende,
com o pudor que
da confissão próprio do amor, a se
o interessado si retira
própriopara
faz,não ser testemunha
sozinho diante de
Deus, quando reconhecçe que viveu na ilusão. sem
apesaro de
quetudo,
a minha sabedoria
reivindico não inteligência,
a maior lhe traZ nenhum
é por proveito. Se,
uma vaidade
O autor religioso deve, portanto, em primeiro lugar, entrar em ou por um orgulho em que, no fundo procuro a sua admiração, em
contacto com os homens. Por outras palavras, deve começar por vez de lhe ser útil. Mas todo o auxílio. verdadeiro começa por uma
•uma produção estética que lhe servirá de preço a pagar. E quanto humilhação: para ó' proporcionar, há primeiro que humilhar-se'
mais brilhante é o seu trabalho, melhor se sente com ele. Seguida- perante aquele que queremos ajudar, e. compreender assim que
mente, deve estar seguro de si, ou antes (e é o meio mais seguro ajudar nªo é dominar,. mas servir, que ajudar não é mostrar uma
e até o único certo), deve permanecer sob o olhar de Deus no temor extrema ambição, mas uma extrema paciência, que ajudar é aceitar
e no tremor, a fim de evitar o resultado inverso e de não se tomar provisoriamente estar errado e ser ignorante nas coisas que o anta-.
um animador do poder daqueles que estimula, para se atolar final- gonista compreende. ..-
mente no estético. Deve, portanto, estar totalmente pronto para Considera um homem votado à paixão e admitamos que esteja
produzir o religioso, sem qualquer impaciência, mas tão depressa realmente errado: se não podes importuná-Io, deixando-lhe a apa-
quanto possível no exacto momento em que conquistou os leitores, rência de te ensinar, e se não podes fazê-Io de maneira a que ele tenha
de modo a que embatam contra o religioso à velocidade com que gosto em encontrar em ti um ouvinte atento e bem disposto, ele
se abandonam do estético. que, na sua impaciência, não quer ouvir uma palavra da tua boca,
É importante não apresentar o religioso nem demasiado depressa, então, não o podes também socorrer. Considera um amante infeliz;
1
supões que se entrega à sua paixão de uma maneira verdadeiramente
nemvê demasiado
se aparecer a devagar. Se o intervalo
ilusão segundo a qual éo demasiado longo,
autor estético depressa
envelheceu indesculpável, ímpia, contrária ao cristianismo: se não podes impor-
l'
e, por consequência, se tomou religioso. Se o religioso surge dema- tuná.,.lo de modo a que encontre um real alívio em te falar do seu
siado depressa, o efeito não é tão poderoso. sofrimento, e quase uma promessa maior naquilo que tu acrescentas
E se verdadeiramente todas estas inúmeras pessoas se encontram pela tua concepção poética, porque esta paixão não te habita e queres
numa imensa ilusão quando se dizem cristãos e passam por tais, justamente arrancá-Io a ele; se não podes importtmá-Io assim, és
o método que indico não implica nenhum juízo, nenhuma condena- igualmente incapaz de o socorrer; ele fecha-se a ti, encerra-se em
ção. É uma autêntica descoberta cristã; não se pode exercer sem temor si mesmo - e bem podes então falar-lhe de moral! Talvez o levasses,
e tremor, mas apenas numa sincera abnegação. Para o aplicar com pela tua influência pessoal, a confessar-te o seu erro: ó meu caro!
eficácia, é necessário efectivamente assumir toda a responsabilidade instantes depois, desliza por um caminho escuro ao encontro da
sua paixão secreta, pela qual suspira agora mais, quase receando que
eintrínseco.
todo o esforço. Mas é também
Normalmente, porque só
um método este método
vale tem oresultados.
pelos seus seu valor ela tenha perdido o seu ardor cativante, porque, pela tua conduta,
Julga-se e condena-se; grita-se e barafusta-se: estes procedimentos o ajudaste a prender-se, uma vez mais, à sua paixão infeilz, e bem
não têm valor em si mesmos, embora com eles se obtenham grandes podes então fazer-lhe sermões.
resultados. Admitamos que um homem aprendeu o seu uso e o O mesmo se passa com o tornar-se cristão. ao supor-se na
tenha praticado durante toda a sua vida sem resultados: a sua vida ilusão todos os que, na cristandade, se dizem dristãos. Condena o
não foi, todavia, em vão, porque foi feita de abnegação verdadeira. encanto de vida estética: em certas épocas, terias, assim conseguido
obrigar os homens - sim, a quê? a amar no silêncio da sua alma
e no segredo da paixão este encanto com mais exaltação ainda.
Evoca, pelo contrário, o mundo estético ... e tu, homem sério e
austero (lembra-te que, se não podes humilhar-te, já não és um
Que é necessário} para levar alguém com um verdadeiro sucesso homem sério), sê o ouvinte que os propósitos do teu interIocutor
a um ponto preciso} ter antes de mais nada o cuidado mergulham no espanto, muito divertido em os formular, e mais
de o cativar e começar onde ele se encontra. ainda em te ver assim atento; mas, sobretudo, não esqueças uma
coisa, a retenção da adição, o religioso que tens em reserva. Ou se
É o segredo de toda a maiêutica. Todo aquele que disso é puderes, muito bem: descreve o mtmdo estético com todos os seus
encantos, cativa, se possível, o teu interIocutor, mostra este mundo
incapaz,
liar está iludido quando
verdadeiramente alguém,crê devo
poder estar
ser útil a outrem.
melhor Para auxi-
informado do tomando o tom da paixão que convém a esse homem, petulante

40 41
se é jovial, triste se é melancólico, espiritual se gosta de belas pala- ser não é grande e, supondo que todos são verdadeiros cristãos,
vras, etc.; mas, sobretudo, não esqueças uma coisa, a retenção da este procedimento não pode, quanto muito, senão estimulá-los
adição, o religioso a apresentar; age apenas e sem receio, porque, a sê-lo mais.
na verdade, este método só é possível num grande temor e tre-
mor.
És disso capaz, podes encontrar exactamente o ponto onde se
encontra o teu interIocutor e começar aí, terás talvez a sorte de o
conduzir ao ponto onde tu estás.
A ilusão segundo a qual religiosidade e cristianismo
são coisas às quais se recorre apenas com a idade.
Ser mestre não é cortar a direito à força de afirmações, nem
dar lições para aprender, etc.; ser mestre é verdadeiramente ser A ordem estética sobrevaloriza sempre a juventude e o seu
discípulo. O ensino começa quanto tu, o mestre, aprendes com o instante de eternidade; não pode entender-se com a seriedade dos
teu discípulo, quando te colocas naquilo que ele compreendeu, anos, nem com a da eternidade. O estético vê, pois, sempre com
na maneira como o compreendeu, ou, se ignoravas tudo isso, quanto um olhar desconfiado, um espírito religioso; para ele, ou este homem
simulas prestares-te a exame, deixando o teu interIocutor conven- nunca teve o sentido do belo, ou ainda, no fundo e sobretudo,
cer-se de que sabes a lição: tal é a introdução, e pode então abor- quereria continuar a cultivá-lo, mas, exercendo o tempo o seu
dar-se um outro assunto.
poder destruidor, o homem vê os anos a acumularem-se e procura
Há, por conseguinte, uma objecção que sempre a mim fiz, para um refúgio no religioso. Divide-se a vida em duas idades: da juven-
com os meus botões, contra um certo grupo de ortodoxos de entre tude, faz-se o tempo do estético; e da maturidade, o do sentimento
nós (29): reúnem-se em capelas, confirmam-se mutuamente que :-eligioso - mas, para falar verdade, todos quereríamos p'ermanecer
são os únicos cristãos, depois não sabem fazer outra coisa em toda Jovens.
a cristandade que asseverar que não são cristãos. Se é verdade que Como pode esta ilusão ser dissipada? Porque o sucesso é outra
a cristandade encerra apenas um tão pequeno número de verdadeiros questão. Pode sê-lo por uma produção estética e religiosa, simul-
cristãos, eles são eo ipso considerados como missionários, se bem taneamente. Aqui, não há desacordo possível, porque a produção
que um missionário se apresente sempre na cristandade de uma estética atesta a juventude, de modo que a produção religiosa
maneira diferente que no paganismo. Ver-se-á que esta objecção simultJnea não se pode explicar por uma causa acidental.
Supondo que a cristandade é wna imensa ilusão e que a massa
os apanha
ou exactamente
da hipótese desprevenidos,
de que estes ortodoxos porque parte daverdadeiros
são realmente concessão
dos que se dizem cristãos vive nesta quimera, há então toda a apa-
cristãos, e os únicos verdadeiros na cristandade. rência de que a ilusão de que falamos seja muito geral. Mas compli-
Assim, o autor religioso, cujo pensamento total é o tornar-se ca-se com a ideia imaginária de que se é cristão. A vida decorre nas
cristão, faz bem em estrear-se na cristandade como autor estético.
Deixemos por um instante em suspenso a questão de saber se a categorias estéticas,
a questão para mais etarde
se porventura se pensa no cristianismo,
e fica-se absolutamente adia-se
tranquilo porque,
cristandade constitui uma imensa ilusão, e se todos os que se chamam diz-se, no fundo, sou cristão. É indubitável que se encontram na
cristãos estão nessa quimera; suponhamos o contrário: muito bem; cristandade pessoas que levam uma vida tão sensual como a do pagão
então, esta maneira de se estrear é supérflua; funda-se numa irrea- mais sensual, e mais sensual ainda devido à sua maldita certeza de,
lidade - sem fazer mal algum. O prejuízo é muito maior, ou antes, no fundo, serem cristãos. Mas adia-se o mais possível a decisão de
há um prejuízo quando um homem que não é cristão se toma como se tornar cristão, e até se acrescenta ainda um obstáculo; porque se
tal. pelo contrário, o dano causado por um cristão que finge não o tem como ponto de honra continuar jovem enquanto se puder,

para
se fizerse velho;
refugiare há
na tanta
religiosidade
dificuldadee no
em cristianismo
confessar queapenas quando
se envelheceu!
Mas vêm os cabelos grisalhos, e saber-se-á encontrar religiosidade
(29) Alusão provável aos discípulos de Grundtvig; cf. o Post-Scriptum: OC e cristianismo.
X (SV 2 VII 600 ss) e o Diário de 1848; Papo VIII I A 591. Talvez Kierkegaard vise
também os discípulos do Dr. A. G. Rvdelbach, entusiasta do neoluteranismo orto- Portanto, se fosse possível continuar sempre jovem, não haveria
doxo, com o qual se explicará em]aneiro de 1851 num artigo de Fredre/andet: ef. OC absolutamente necessidade alguma nem do cristianismo, nem da
XVII (SV 2 XlII 472-480). religiosidade.

42 43
Este erro é extremamente funesto a toda a religiosidade verda- não poderia suportar ser tido pela única coisa que não foi, religioso.
deira, explica-se pela confusão dos dois sentidos da palavra enve- Com efeito, ao olhar da reflexão, a aptidão para suportar este juizo
'I
lhecer, segundo o tempo e segundo a eternidade. É inegável que dá a mais exacta medida da verdadeira religiosidade.
se viu bastante vezes o fenómeno pouco edificante de um espírito il
juvenil, na paixão inflamada, primeiramente intérprete da vida I

estética, que, uma vez passada a juventude, se volta para uma reli-
giosidade relaxada num sentido, exaltada noutro, e apresentando
todos os defeitos da velhice. É inegável também que numerosos
autores religiosos, como se temessem carecer de seriedade, escrevem Que mesmo se um homem recusa seguir até onde
com demasiada severidade e rigor. Estes procedimentos e muitos nos esforçamos por conduzi-Io, pode todavia jazer-se
outros podem contribuir para generalizar e consolidar a ilusão de uma coisa por ele: obrigá-Io a tornar-se atento. .'
que falamos - mas qual é a utilidade disto? O que deve ajudar é
justamente o que poderia contribuir para dissipar a ilusão. Um homem pode ter a sorte de fazer muito por outro, a de
Se, pois, um autor religioso quer opor-se a tal ilusão, deve, o conduzir até onde deseja levá-Io; para nos atermos ao nosso tema
por assim dizer, apresentar-se desde o princípio como autor simul- principal e constante, pode ter a felicidade de o ajudar a tornar-se cris-
taneamente estético e religioso. Mas, sobretudo, não deve esquecer tão. Mas esta possibilidade não está em meu poder; depende de
uma coisa, o nó da questão, a retenção da adição, e que o religioso uma multidão de circunstâncias e, sobretudo, da vontade do outro.
é o elemento decisivo que é preciso produzir. A produção estéti~a Nunca posso de modo algum impor a alguém uma opinião, uma
torna-se um meio de comunicação; para aquele que dela pode sentIr convicção, uma crença; mas posso uma coisa, num sentido a pri-
necessidade (e são numerosos, na suposição de que a cristandade é meira (porque ela condiciona a seguinte: a aceitação da opinião, da
uma imensa ilusão), é a prova de que a produção religiosa não se convicção, da crença), e, num outro, a última, se não quer a COllti-
pode explicar pelo facto de o autor ter envelhecido, porque'é simul- nuação: 1>.9.ssoobrigá-Io ~~.aten.!o...!_
tânea, e não se envelheceu no tempo. Que Isto~a acção, não há a menor dúvida; mas tam-
Talvez não se tenha êxito algum desta maneira; mas o dano bém não é preciso esquecer que o golpe é arriscado. Obrigando
não seria grande; quanto muito, não se acredita nada na religio- este homem a tornar-se atento, forço-o a julgar. E ele julga. Mas
sidade de um semelhante iniciador. Pode ser! O que transmite o que ele julga não está em meu poder. Talvez julgue o contrário
uma mensagem religiosa, pode bastante vezes, recear ele próprio daquilo que desejo. E, além disso, talvez esta necessidade em que
passar por religioso. Mas este receio mostra justamente que ele não o coloquei de se pronunciar o exaspere, e até ao furor, contra a
é o espírito religioso verdadeiro. Acontece aqui o mesmo que àquele questão e contra mim; e talvez seja eu, no final, a vítima do meu
que, querendo ser professor, se preocupa demasiado com o que os procedimento, corajoso.
seus alunos pensarão dele, do seu ensino, do seu saber, etc. Um Obrigar um homem a prestar atenção e a julgar, eis a lei do
semelhante mestre está paralisado no seu ensino. Suponhamos, martírio verdadeiro. Um autêntico mártir nunca recorreu ao poder;
por exemplo, que, no interesse do aluno, ele julga que vale mais sempre combateu com a força da sua impotência. Obrigou os
dizer que não compreendeu tal ponto, quando não é nada disso: homens a pestrarem atenção. Certamente, sabe Deus, eles estiveram
mas, grande Deus! não ousaria arriscar-se, com receio de que o atentos: condenaram-no à morte. Todavia, ele consentiu; não
aluno imagine verdadeiramente que ele não compreendeu, isto é, pensou que a morte o paralisaria na sua actividade; compreendeu
que não está à altura do seu papel: apesar do seu título de mestre, que ela fazia parte integrante daquela e, até, que a sua actividade
está tão longe de o ser que aspira, na realidade, a ser felicitado- começava justamente a partir da morte. Porque, verdadeiramente,
pelo aluno. É ainda como um pregador do arrependimento que, os que o mataram tornaram-se também atentos; voltaram uma vez
querendo fustigar severamente os vícios do tempo, está muito mais e de uma maneira completamente diferente a reflectir sobre
preocupado por saber o que dele pensa a geração que censura: a questão; e o que o vivo não conseguiu, cumpriu-o o morto:
tão longe está de pregar o arrependimento que dá antes cumpri- ganhou para a sua causa os que se tornaram atentos.
mentos do novo ano, procurando apenas tornar-se um pouco inters- Há uma objecção que, no meu foro íntimo, centenas de vezes
sante mediante este costume, singular para um cumprimentador. dirigi contra os que, na cristandade, anunciam regularmente o cris-
O mesmo se passa com tal espírito religioso que, no pior dos casos, tianismo: é que no meio de tantas ilusões que os abonam, não têm

44 45
a coragem de tornar os homens atentos. Por outras palavras, não Não posso aqui alargar-me mais para mostrar que a primeira
dão testemunho de uma abnegação suficiente na causa que repre- necessidade da cristandade é uma táctica completamente nova (30),
sentam. Querem, sim, fazer prosélitos, mas para fortificar a sua uma táctica totalmente impregnada de reflexão. Já forneci os seus
causa e, por conseguinte, sem verificar demasiado se recrutaram ver- momentos decisivos em várias obras (31). Pode-se resumir em
dadeiros adeptos ou não. Ainda por outras palavras, não têm propria- poucas
trabalho, palavras
a atençãotodo
maiseste método,a toda
vigilante ctua a aplicação exige
hora do dia, anos de
o exercício
mente uma causa, porque se comportam como egoístas naquela que
contínuo da pauta e do dedilhado no teclado do dialéctico, um
representam. Por isso, não ousam realmente sair para o meio dos
temor e tremor incessantes: este método deve ser indirecto (32).
homens, nem dissipar a ilusão para dar a impressão genuina da ideia,
Quando se anuncia o cristianismo no seio da cristandade, não se
porque têm o vago sentimento de que é verdadeiramente perigoso entra de improviso na matéria; é necessário, antes de mais, dissipar
tornar os homens atentos. Dedicar-se a esta tarefa na mentira,
uma ilusão; toda a velha táctica, toda a apologética e os seus aces-
isto é, prostrar-se por terra diante dos homens, adulá-Ios, mendigar sórios concorrem antes, falando com franqueza, para trair a causa
a sua atenção e a benevolência do seu juízo, submeter a votos a do cristianismo. A táctica consiste em organizar-se a todo o momento
verdade: tudo isso, certamente, não comporta perigo algum, pelo e acerca .de cada ponto, considerando que há a combater uma ilusão,
menos aqui em baixo, onde, pelo contrário, tais procedimentos pro- uma qmmera.
porcionam todas as vantagens, mas também talvez o perigo de Portanto, quando na cristandade um autor religioso, cujo
ser um dia, na eternidade - um condenado.
pensamento total se resume no tornar-se cristão, quer chegar à
O mesmo se passa com a nossa hipótese, com a ilusão de todos possibilidade de tornar os homens atentos (porque o sucesso é outro
os que se dizem cristãos. Quando, pois, um homem vive nesta assunto), deve começar por ser autor estético e conservar, até a
ilusão, por conseguinte, em categorias puramente estéticas de todo um certo ponto, esta faculdade; mas tem de impor-se um limite,
diferentes das cristãs, que acontece se, pela sua produção estética, porque não usa este género de produção a não ser para despertar
um autor é capaz de o cativar e de o ganhar completamente, depois, a atenção. E há uma coisa que não deve esquecer, a retenção da
de apresentar o religioso com tanto desembaraço que o outro, adição: deve distinguir o religioso, que é o decisivo, do estético,
no rumo para que se deixa conduzir, corre directamente para as que é o incógnito, a fim de que o jogo dialéctico não seja pura taga-
determinações mais decisivas do religioso? Que acontece? Este relice.
homem torna-se necessariamente atento. Apesar de tudo, ninguém
pode predizer o resultado: mas a atenção está forçosamente des-
pertada. Talvez venha realmente a pergtmtar-se porque se chamou § 5
cristão, a reflectir sobre a situação. Talvez esteja furioso contra o
autor que se permitiu esta intervenção; mas a atenção está despertada; Que toda a produção estética, considerada no
o nosso homem vem a julgar. Talvez volte ao seu antigo estado conjunto da produção, é um engano,
e trate o autor como hipócrita, mentiroso e meio louco: não importa, se compreendida de uma certa maneira.
deve julgar e tornou-se atento.
Normalmente, inverte-se a situação e, de facto, assim acon- Se se considerasse a produção estética como um todo e se se
teceu quando o cristianismo se dirigiu ao paganismo. Mas há uma encarasse o religioso segundo esta hipótese e sob este ponto de
negligência completa em ver como a situação mudou, e que a deter- vista, seria necessário ver nesta produção um descrédito, um refugo.
minação da cristandade coloca tudo sob a reflexão. Normalmente Mostrei anteriormente a falsidade desta hipótese justificando a pre-
aquele que, na cristandade, se esforça por levar os homens a torna- sença, desde o princípio, de provas convincentes assinadas com o
rem-se cristãos põe todo o empenho em estabelecer que ele próprio
é cristão, e alarga-se em garantias. Não vê a enorme confusão em
que se encontra, desde o princípio, porque se dirige a cristãos. Se
se dirige a cristãos, que significa, então, a sua pretensão de os tornar (30) Sobre esta táctica, cf., por exemplo, A neutralidade armada: oe XVII
cristãos? Se, pelo contrário, segundo ele, não são cristãos ainda oe
(Pap. X 5 B I07-IIO), Sobre a minha obra de escritor; XVII (SV 2 XIII 539) e Papo
IX B 64-65.
que se dêem como tal, a sua pretensão mostra que depende da (31) Por exemplo, no Post-Scriptum, A Doença mortal e A Escola do Cristianismo.
reflexão. Importa, pois, mudar toda a táctica. (32) Cf. adiante, no fim do presente capítulo.

46 47
meu nome, as quais ao mesmo tempo que a produção pseudónima, de empregar o método socrático, limito-me, todavia, tranquila-
indicavam o religioso. m.ente a Sócrates, sob este aspecto. Sem dúvida, ele não era cristão,
Mas, do ponto de vista global da obra complet~, a produç~o sei-o bem, mas estou convencido de que o veio a ser. Mas era dia-
léctico, compreendia tudo à luz da reflexão. E esta questão é de
estética é umaprofundo.
o seu sentido fraude em quefraude!
Uma o «recurso
Comoaosé feio!
pseudórumos» adqwre
Ao que respondo ordem estritamente dialéctica; é a do uso da reflexão na cristandade.
que não se deixe iludir pela palavra. Pode enganar-se um homem Do ponto de vista qualificativo, as grandezas de que temos de nos
em vista do verdadeiro e, para lembrar o velho Sócrates, enganá-Io ocupar são completamente diferentes; mas, do ponto de vista
para o levar ao verdadeiro (33). É mesmo a única maneira quando formal, posso chamar, perfeitamente, a Sócrates meu mestre - se
ele é vítima de uma ilusão. Se não se partilha esta opinião, revela-se bem qu~ não acreditei nem acredito senão num único, o Senhor
então que não se é particularmente forte em dialéctica, cujo do~o Jesus CrIStO.
é apesar de tudo necessário para assim agir. Grande, com efelt?,
é a diferença dialéctica, ou de dialéctica, nestes dois casos: o pn- B
meiro, em que se trata de um ignorante a quem é necessário incul~ar
um saber e comparável a um vaso por encher, ou a uma págl11a «POST-SCRIPTUM DEFINITIVO»
banca por escr~ver, e o segundo, en: qu.e ~e trata ~e um h~men;
na ilusão que Importa, antes de maiS, dissipar, assim t~mbem ha
uma diferença entre o facto de escrever numa folha virgem e o Constitui, para voltar a dizê-Io, o ponto crítico da obra inteira.
de revelar, com a ajuda de corrosivos, uma escrita escondida de- Põe «o problema»:_ o de ~~mar-se cris~ão. Depois de se ter apoiado
baixo de outra (34). No caso de um homem na ilusão que importa, em toda a produçao estetlca pseudómma, tomada como descrição
de uma via pela qual é necessário passar para se tomar cristão,
por conseguinte, em primeiro lugar dissi~ar,. s: não começ? p:,r
enganar é porque emprego, desde o prl11Clpl~, a comu~l1caçao a saber, a via em que se regressa do estético para se tomar cristão,
directa. Mas este procedimento supõe que nada Impede o l11teres- esta ~bra descreve a segunda via, a saber, aquela em que se regressa
do SIstema, da especulação, etc., para se tomar cristão.
sado de a receber, o que não é aqui o ca~o, porque se interpõe l;lma
ilusão. Por outras palavras, trata-se aqm de recorrer ao corrosIvo;
mas este meio é o negativo, o qual, em matéria de ensino, é exactis-
simamente o engano. . . C
Que é, pois, «enganar»? É começar por tomar como dll1helro
a pronto a ilusão do outro, e não cOl11~çar dire~ta~lente pelo que A PRODUÇÃO RELIGIOSA
se lhe quer incul~ar ... Para me ater. ao objecto .pr~nclpal de~ta ob~a,
não se deve, pOIS, começar por dizer: sou cnstao e t.u nao o es, Já pude resumir-me muito brevemente a propósito do Post-
mas por dizer: tu és cristão, o qu~ ~u ~ão sou. Ou .alnda, não se -Scriptum definitivo; com efeito, o ponto de vista de toda a obra
parte deste princípio: prego o CrIStlam~mO, e tu vives no puro de escritor significa que o autor é um autor religioso. Era necessário
domínio do estético, não, aborda-se assim a questão: falemos do precisar a maneira como convém conceber a produção estética
estético; o engano consiste em falar assim precisamente para se sob este ponto de vista. E o que, supondo que se trata efectivamente
chegar ao religioso., ~as" por ~p..?tese, o outro está. també~ _na de um autor religioso, não exige nenhum esclarecimento é natural-
ilusão de que o estetlco e o cnstao, porque se considera cnstao, mente a última parte, a produção estritamente religiosa, que fornece,
vivendo nas determinações do estético. de facto, o ponto de vista.
Se um certo número de sacerdotes acha estas posições insus-
tentáveis, se um igual número as não pode compreender, embora
todos juntos, seguindo a sua própria opinião, tenham o costume
CONCLUSÃO

(33) Cf. Sobre a minha obra de escritor: OC XVII (SV 2 XIII 530). . Que sentido atribuir a tudo o que precede, se o leitor recapi-
(34) Alusão aos processos químicos, aperfeiçoados no século XV!I1. que permi- tular agora os momentos analisados nos diferentes parágrafos? Este:
tiram o estudo dos palimpsestos e a descoberta de numerosos textos Ignorados. trata-se de uma obra cuja ideia global é a tareL'l do tomar-se cris-

48 49
tão. Mas de uma obra que compreendeu, desde o princípio, depois,
seguiu com uma dialéctica lógica, os dados de uma situação que é
a da cristandade - no que se está no terreno da reflexão; também
esta obra colocou toda a ordem cristã no plano da reflexão. Na
cristandade, tornar-se cristão é ou tornar-se o que se é (vida interior
em que se reflecte, ou reflexão em que a vida se interioriza), ou
sair, primeiro, de uma ilusão, o que ainda depende da reflexão.
Não há aqui oscilação, ambiguidade do género habitual, de maneira
que não se sabe nem se pode saber se a situação é a do paganismo,
se o sacerdote é um missionário entre os pagãos, e que se ignora
onde se está, ao contrário do que normalmente acontece, dispõe-se
aqui de uma determinação categórica decisiva da situação e de uma
fórmula decisiva para a exprimir: trata-se, com efeito, de anunciar
o cristianismo na cristandade. Tudo está no terreno da reflexão.
A comunicação faz-se neste plano; por isso, é indirecta. O instrutor,
instalado na reflexão, tem uma posição negativa; não se afirma,
pois, como cristão num grau extraordinário, ou não recorre a reve-
Capítulo II
lações (35) (coisas que dependem da imediatez e da comunicação
directa); pelo contrário, diz até que não é cristão; por outras pala- AS DIFERENTES FORMAS DA MINHA
vras, conserva-se na retaguarda e traz um auxílio negativo _ por-
EXIST~NCIA PESSOAL CORRESPONDEM
que é outra questão saber se ele ajuda eficazmente alguém. O pro-
blema é da ordem da reflexão: sendo cristão de nome, apenas, tra- ÀS DIVERSAS FORMAS DA MINHA PRODUÇÃO
ta-se de se tornar cristão.

Já há muito tempo, e também hoje em dia, se perdeu comple-


tamente de vista que ser escritor é agir, ter obrigação de agir e,
por conseguinte, ter um modo pessoal de existência. De uma
maneira geral, é evidente que a imprensa, símbolo da informação

I' abstractae eindiferente


formal impessoal àe, verdade
sobretudo,
ou aà imprensa
falsidade diária,
das suastotalmente
notícias,
contribui enormemente para a desmoralização, porque tudo o que
é impessoal e, portanto, mais ou menos livre de responsabilidade
e de escrúpulos, é um factor de desmoralização; é até evidente que
'0 anonimato, expressão suprema da bastracção, da impessoalidade,
da ausência de escrúpulos e de responsabilidade, é uma das causas
profundas da corrupção moderna; por ol1tr_olado, é muito claro
que se encontraria um remédio muito simples para o anominato
e um salutar correctivo para a abstracção da imprensa de informação
se nos dirigíssemos à Antiguidade para com ela aprender o que é.
ser um homem individual, nem mais·nem menos, o que é também
"-;;'-mescritor, nem mais nem menos. Mas, nos nossos dias, em que a
(35) Alusão ao Magister A. P. Ad1er (1812-1869), pastor na ilha de Bornholm, sabedoria, fonte oculta de todos os nossos males, cqnsiste em infor-
que pretendia escrever sob a inspiração directa de Cristo. Kierkegaard consagrara-lhe, mar-se da mensagem e não do mensageiro, em ocupar-se unicamente
em 1846-1847, um longo estudo, que refundiu várias vezes, mas que nunca publicou: da coisa, do objectivo, que é feito do escritor? Muitas vezes, e até
OC XII (Pap. VII 2 B 235, particularmente p. 17).
quando é nomeado, é um x} uma coisa impessoal que, pela via
50
51
d~ impre~sa se dirige, com toda ~ abstracção, a m!lhares de pessoas; noite por nada ser, e sem serem sustentados, entre outras, pela ilusão
nao se ve, permanece desconheCldo, leva uma vIda tão escondida de que a sua obra é o seu emprego ou o seu ganha-pão.
anónima e impessoal quanto possível, sem dúvida, para não mani~ Eis o que era necessário fazer, e o que eu fiz, não por safanões,
mas todos os dias e incessantemente. Estou convencido: o sexto
fest;r a ~ontradição entre o formaidável meio de informação e o
caracter sImplesmente humano do autor, e talvez também com receio de A Alternativa, um pouco de conventículo, um autor invisível,
?o c~ntrolo exercido pela vida sobre todo aquele que pretende e o resultado teria sido, sobretudo a longo prazo, bem mais extraor-
mstrUlr os outros, quando ela confronta a sua existência pessoal e as dinário. Mas certificara-me, pelo contrário, de poder trabalhar com
suas opiniões. Contudo, não me ocuparei mais aqui de todas estas todo o afinco que me agradava, sob o impulso do espírito, sem receio
questões, dignas do maior interesse para quem quisesse estudar a de obter demasiada consideração; porque, num sentido, não me
desmoralização dos Estados modernos. tinha aplicado menos noutra direcção, trabalhando - contra mim
mesmo. Só um escritor compreenderá verdadeiramente que tarefa
é a de fazer obra de autor, pelo espírito e pela pena, pondo-se,
A bem se pode dizer, ao serviço de cada um. Ainda que me tenha
enriquecido extraordinariamente com observações, esta tarefa com-
A EXIST~NCIA PESSOAL E A PRODUÇÃO ESTÉTICA porta uma dose de espírito crítico que reduziria a maioria ao deses-
pero; porque se trata de extirpar inclusivamente a menor ilusão
Passo, portanto, à minha obra e à primeira fase do meu modo para dar a pura noção da ideia; e, com efeito, não é a verdade que
de existência. Trata-se, aqui, de um autor religioso, primeiramente governa o mundo, mas as ilusões. Um autor produz uma obra
autor estético num princípio que era um incógnito, um engano.
com uma
viva comotalacabo
superioridade
de dizer que
para nunca se viu em
que esteja, semelhante: basta tempo,
muito pouco que ele
Desde muito cedo e muito profundamente iniciado no segredo
segundo o qual mundus vult decipi (o mundo quer ser enganado), eu ao abrigo da consideração do mundo e dos estúpidos favores da
não podia seguir esta táctica. Pelo contrário, tratava-se, tanto quanto multidão. Esta, com efeito, não tem idealidade, nem, por conse-
possível, de enganar ao invés, de se servir de todo o conhecimento guinte, a força para defender uma ideia não obstante as aparências;
dos h?mens nas suas fra'lue:as e su~s loucuras, não para deles tirar cai sempre na armadilha da aparência. Basta mostrar-se constante-
proveito, mas para me aruqUllar a rmm mesmo e atenuar a impressão mente e ser visto continuamente, mesmo na companhia do primeiro
produzida pela minha pessoa. O segredo do engano que se acomoda que chegar, para que a multidão perca a ideia que tem de alguém
aos caprichos do mundo desejoso de ser enganado consiste, por um e cedo se canse dele. E para se fazer notado incessantemente, não
lado, em organi~ar conventículos e tudo o que se segue, em ligar-se é preciso muito tempo, se se é habilidoso (quer dizer, louco os olhares
a U1?a das SOCIedades de. admiração mútua onde há entreajuda humanos), e se se emprega, com conhecimento de causa, aquilo
mediante a palavra e a escnta para proveito mundano de cada um; de que se dispõe: basta ir a um único e mesmo sítio da cidade,
por outro lado, ele quer que se fuja da multidão, à qual jamais se o mais frequentado, e de lá voltar. Cautela, se alguém é cioso da sua
mostra, para assim agir sobre as imaginações. Tratava-se, portanto, reputação no mundo, mesmo se, para regressar, o melhor caminho
de fazer o inverso; eu devia existir e entrincheirar a minha existência é o de ir; cuidado, ainda que seja para evitar ser visto duas vezes
nu.m isolamento absoluto; mas precisava, ao mesmo tempo, de ter em tão pouco tempo; porque as pessoas poderiam julgar que nada
cUldado em me mostrar a toda a hora do dia, vivendo por assim se fez, coisa em que ninguém repara, se o interessado ficou a dormir
dizer na rua, na companhia de Pedro e de Paulo e nos encontros no seu quarto os dois terços do dia. pelo contrário, uma hora bem
mais ~nesperados. Tal era, na arte de enganar o caminho da verdade, aplicada no sentido religioso, uma hora vivida para a eternidade (36),
o meIO para sempre certo de atenuar no mundo a impressão que indo e vindo entre a multidão, já não é pouco. E verdadeiramente,
se dá de si mesmo, a via de renúncia seguida ainda por pessoas com-
pletamente diferent~s de mim para atrair a atenção, pelos homens
que .gozam de conSIderação pelos «embusteiros» expeditos em tirar
(36) Esta expressão, que Kierkegaard emprega muito frequentemente, inspi-
partI~<? da mens!gem, ~ não em servi-Ia, e que visam unicamente ra-se no título de uma obra de Ch. F. Sintenis (1750-1820), teólogo e pregador alemão,
adqumr reputaçao; e amda pelos homens desprezados, pelas «tes- Stundenfür die Ewigkeit gelebt, Redim, 1791-1792. Existia uma tradução dinamarquesa
deste livro, publicada em 1795 com o título Timer, levedeJor Evigheden (Horas vividas
temunhas
como regradaestar
verdade»
à mercêquedoenganam ao invés
mundo, ainda que etrabalhando
sempre tiveram
dia e para a eternidade) e editada em 1798.

52 53
é agradável a Deus ver a verdade assim servida; o seu espírito teste- fidente o meu amigo Giõdwad (40), revisor de A Alternativa. Na
munhou poderosamente ao meu espírito (37) que tinha nesta conduta leitura das provas desta obra, estava tão ocupado que me era impos-
a sua elevadíssima aprovação; todas as testemunhas da verdade apro- sível dedicar às minhas idas e vindas na rua o tempo habitual. Só
vam que se queira servir a verdade, a ideia, e que se rejeite traí-Ias tinha acabado já avançada a noite: então, apressava-me para ir ao
aproveitando-se das ilusões. Eu sentia uma satisfação muito cristã teatro, onde, literalmente, não permanecia mais de cinco a dez
se podia pôr em prática, na segunda-feira, algumas das exortações minutos. Porquê? Porque receava que esta grande obra me trou-
de que choramos, no domingo, ao ouvir o sermão do pastor, tam- xesse demasiado renome (*). Porquê, ainda? Porque conhecia as
bém ele comovido até às lágrimas - com risco de vir a rir na segunda- pessoas, de Copenhague sobretudo; bastava ser visto cada noite
-feira; experimentava uma alegria muito cristã em pensar que, na cinco ou seis minutos por algumas centenas de pessoas para que a
falta de outro, havia pelo menos em Copenhague um homem opinião continuassae a mesma: não faz absolutamente nada, não
a quem todo o pobre podia, sem mais cerimónia, confiar-se e passa de um preguiçoso.
falar na rua; que, na falta de outro, havia aqui um homem que, fre- Tal era a minha existência, enquanto mantinha a produção
quentando ~ambém as mais distintas sociedades, não se esquivava, estética (aliás, tinha cortado com todas as capelinhas) e, definitiva-
mas conheCIa toda a empregada, todo o criado, com o qual, aliás, mente, mantinha uma atitude polémica em que considerava todo
se relacionava; tinha um contentamento muito cristão em pensar que, o elogio como um ataque e todo o ataque como coisa desprezível.
na falta de outro, havia e vários anos antes de os acontecimentos Tal era o meu modo de existência em público; por assim dizer,
terem servido de lição à geração (38) um homem que tentava nunca fazia visitas e, em minha casa, uma ordem inexorável fechava
praticar um pouco a doutrina do amor do próximo; e este homem, a minha porta absolutamente a todos, excepto aos pobres que pediam
ai de mim! teve, ao mesmo tempo e exactamente por isso, um terrí- esmola; não tinha tempo de receber e, vindo-me ver, facilmente se
vel vislumbre da ilusão em que vive a cristandade, como também, teria podido notar que não se devia suspeitar. Tal era a minha exis-
mas mais tarde, é verdade, da facilidade com que a classe popular tência. Se alguma vez Copenhague formou acerca de alguém uma
'.0 se deixa seduzir por miseráveis jornalistas, cujos esforços e luta opinião, atrevo-me a dizer que foi de mim: era um madraço, um
pela igualdade são postos ao servido da mentira; e se estes esforços ocioso, um vadio, um homem superficial, um bom cérebro, até
pudessem ter êxito, não seriam senão para levar os grandes a ripostar, brilhante, espirituoso, etc., mas completamente desprovido de «serie-
mantendo-se longe do povo, e a tornar este insolente na sua familia- dade». Eu representava a ironia da sociedade, o prazer da vida e o
ridade (39). prazer mais refinado, mas sem um pitada de espírito «sérioe positivo»;
Não queria alargar aqui o quadro da minha existência pessoal; em compensação, era extremamente interessante e mordaz.
mas, estou certo, raramente um autor recorrer tanto a astúcia, Ao pensar neste modo de existência, vejo que poderia real-
à intriga, à habilidade para conquistar e glória e reputação no mundo, mente resolver-me a pedir às pessoas das classessuperiores uma espé-
para o enganar, como eu, com a intenção inversa... de o enganar cie de desculpa. Sem dúvida, sabia perfeitamente o que fazia; mas,
ao serviço da verdade. Para dar uma ideia da medida em que a isso
me entreguei, citarei apenas um só rasgo, do qual tenho como con-
(*) Completada a redacção definitiva de A Alternativa, publiquei também,
nesta altura e pela mesma razão, no Fredrelandet, um pequeno artigo: Con,fissão pú-
blica (41), assinado com o meu nome, onde, sem qualquer motivo, declarava que não
(37) Cf. Rom 8, 16. era o autor de numerosos e interessantes artigos aparecidos em diversos jornais,
(38) Foi no dia 21 de Março que uma importante manifestação política assi- onde confessava e reconhecia a minha inactividade, e onde pedia uma coisa: que nunca,
nalou em Copenhague a explosão de crise constitucional, que teria como resultado para o futuro, fosse considerado como o autor de escritos que não levassem o meu nome.
o desaparecimento da monarquia absoluta. Surgida de um problema próprio das pro- (Nota de Kierkegaard).
víncias de Slesvig e de Holstein, esta manifestação foi seguida de uma insurreição do
Holstein, depois do Slesvig, que depressa provocou a entrada da Alemanha na guerra
contra a Dinamarca. Estes «acontecimentos., contemporineos da redacção do Ponto
de vista, estão evidentemente em íntima relação com a revolução de Fevereiro de 1848 (40) J. F. Gi1idwad (18II-1891), amigo íntimo de Kierkegaard, foi co-redactor
e os movimentos, simultaneamente revolucionários e unitários, que então se manifes- do jornal liberal-nacionalista Fredre/andet de 1840 a 1877. Até 1846, Gi1idwad serviu
taram na Europa. de intermediário entre Kierkegaard, que queria conservar o anonimato, e os seus edi-
(39) Kierkegaard faz muitas vezes alusão ao papel da imprensa e, por mais de tores e impressores. Era em virtude da sua amizade que Kierkegaard publicava habitual-
uma vez, desencadeou vivas polémicas com os jornalistas, principalmente político~. mente os seus artigos no Fredrelandet.
CL, por exemplo, Papo IX A 468. (41) Cf. OC 11 (SB 2 XIII 433-442).

54 55
do seu ponto de vista, tinham, todavia, razão para me criticar em; a mentira, a baixeza e a injustiça governam o mundo; e is~o leva-
porque, desconsiderando-me assim, contribuía também para menos- va-me muitas vezes a pensar nestas pa~avr.as de A Alternatl~a (42~ :
«Se soubésseis de que vos rides»; se soubesseIs com quem estalS metl-
prezar o respeito
outro lado, sempredevido
tenha ao poder,
sido a estepor mais conservador
respeito, quefossem
e fossem quais eu, pora
dos, e quem é este vadio! (43)
veneração, o respeito e a admiração com que tive a alegria de prestar
às pessoas de qualidade a homenagem que lhes pertencia; mas o
meu carácter de conservador não tinha como consequência subme-
ter-me de alguma maneira às suas opiniões. Estas pessoas de quali- B
dade testemunharam-me, de muitas maneiras, a sua simpatia e as
suas graças; procuraram, muitíssimas vezes, atrair-me para o seu A EXIST~NCIA PESSOAL E A PRODUÇÃO RELIGIOSA
lado com sinceras e excelentes intenções; sinto também necessidade
de lhes pedir desculpa, ainda que, naturalmente, não esteja arre- Em Dezembro de r845, tinha terminado o manuscrito do
pendido da minha conduta, porque eu servia a minha ideia. Contudo, Post-Scriptum definitivo (44); segundo o m~u costume, entregara:o
integralmente aLuno (45), como os seus hvros confirmam, ~e nao
estas pessoas mostraram-se sempre consequentes se as comparo
com o p.ovo que, até do seu ponto de vista, foi injusto para comigo; acreditam na minha palavra. Esta publicação é o ponto ~r~tlco de
com efeIto, atacou-me porque, como se deduz do que precede, não toda a minha obra; coloca «o problema» do tornar-se cnstao; por
o tratei com altivez, conduta muito singular e ridícula por parte conseguinte, en~ontra-se a~s~gurada a. passag~m para a. ú.ltlma
do povo.
parte da produçao, para a sene dos eSCrItos e.stnta~ente rehglOso.S.
Tal é a primeira parte; pela minha existência pessoal, procurei Compreendi logo que o modo de eXlstênCla pessoal de~a
manter os pseud6nimos, toda a produção estética. Melanc6lico, conscquentemente experimentar uma tranformação, que me devla
incuravelmente melanc6lico como era, levava no fundo cruéis feri- esforçar por proporcionar aos meus contemporâneos uma outra
das depois de ter cortado, no desespero com o mundo e as coisas
impressão da minha existência pessoal, ~ dedi,!uei. toda a atcnção
do mundo; submetido, desde a infância, a uma severa educação a esta necessidade quando uma pequena Clrcunstaxcla extremamente
onde se me observava que a verdade está votada ao sofrimento, favorável (46), em que vi um sinal da Providência, me ajudou a
à troça, ao insulto, e dedicando todos os dias um certo tempo agir de uma maneira decisiva neste sentido. . .
à oração e à meditação, era, a meus olhos, um penitente. Não nego; Contudo, não a posso relatar antes de ter descnto rapIdamente
sendo quem era, experimentava uma certa satisfação em levar uma para a mem6ria do leitor a situação de Copenhague nesta época.
vi.da de engano ao invés; contentava-me com pensar que a intriga O quadro adquirirá todo o seu relevo se se opuser ao estado de guerra
trIunfasse de uma maneira tão extraordinária; o público e eu éramos
t~ lá, tu cá, o evangelho de mundanidade que eu anunciava propor-
CIOnava-me a reputação; sem desfrutar do género de renome que não
se pode adquirir a não ser por todo um outro modo de vida, era, (42) Cf. A Alternativa lI: OC IV 185.
todavia, em segredo e por esta razão, tanto mais amado e favorecido (43) Podem relacionar-se estas reflexões com várias notas do Diário, contem-
pelo público, bem visto por cada um, graças a um espírito extre- podneas da redacção do Ponto de vista; assim, Papo IX A 288 e Papo X I A 272.
(44) Por volta de meados de Dezembro., efectivamente, segundo Papo VII
mamente interessante a mordaz, ainda que cada um se sentia melhor,
I A 2, e o epílogo final de 30 de Dezembro.
mais sério, mais honesto e mais positivo do que eu. A satisfação, (45) O impressor Bianco Luno (1795-1852) estava instalado, desde I de Agosto
meu, segredo para onde era por Vezes como que transportado, de 1838, no n.o 20 de Oestergade, em Copenhague; trabalhava, em particular, para
poderia, por outro lado, ter-se tornado uma perigosa tentação. o editor Reitzel e imprimiu a maior parte dos livros de Kierkegaard.
Tinha perfeitamente a certeza de que a lisonja, a admiração, etc., (46) Trata-se do artigo Et Besog i Soro (Uma visita a Soró) pu~licado por
P. L. Moller na sua revista anual de estética Grea (fascículo de 1846, aparecido a 22 de
os favores do mundo e do público não podiam tentar-me. Se eu Dezembro de 1845), onde a obra de Kierkegaard e principalmente a terceira p:u:te
tivesse de soçobrar, teria sido nesta reflexão à segunda potência, num dos Estádios no caminho da vida, é apreciada de uma maneira desdenhosamente sumária.
quase transporte de possesso, quando reflectia sobre até que ponto Este artigo devia suscitar uma resposta de Kierkegaard ~ 27 de Dezembro n~ Fredre-
o engano triunfava; este pensamento trazia um incrível alívio landet· intitulada Actividade de um esteta ambulante, era aSSInada por .Frater Taclturnus.,
,'. chefe 'da 3." secção dos Estádios no caminho da vida: OC VIII (SV 2 XIII 459-467). Dois
à c6lera interior que alimentava desde a minha infância: com efeito, dias mais tarde, o mesmo jornal publicava uma última réplica de P. L. Mõller: Ao
'I
muito tempo antes de a ter experimentado, tinha aprendido que Sr. Frater Taciturnus ... Sobre P. L. Mõller, cf. OC III, XXV sS.
~i
56 57
J
actual (47). POUCOa pouco, com efeito, tinha-se assistido à produção não era um talento medíocre, esta ironia, que se estendia a milhares
do fenómeno impressionante de toda uma população que se entre- de pessoas, naturalmente não se tornava noutra coisa a não ser
gava à ironia e ao humor, e sobretudo na medida em que lhe L'lltava em grosseria, a qual, infelizmente, é sempre popular. A desmora-
saber e cultura; em tudo e por todo o lado, não havia senão ironia. lização não lembrava senão demasiado cruelmente o castigo com
Se a situação não fosse tão grave, se eu tivesse de a encarar como puro que um dos antigos profetas ameaçava os Judeus em nome do Eterno
esteta, diria que nunca tinha visto nada de mais ridículo, e creio ver- como o castigo mais terrível: «as crianças ju1gar-vos-ão» (53);
dadeiramente que necessitaria de viajar muito tempo e até ter sorte e dadas estas proporções num país, tão pequeno, a desmoralização
para descobrir uma analogia de um cómico tão completo. Viu-se ameaçava, liberalmente, com uma completa dissolução dos costumes,
toda a população de uma cidade, e primeiramente a que vai dos Para se fazer uma ideia do perigo, há que ver de perto como até
ociosos da rua à juventude das escolas e aos aprendizes sapateiros, pessoas corajosas, a partir do momento em que se tornaram «multi-
viram-se todas estas legiões que, nada sendo, constituem hoje a dão», se transformam em seres diferentes. É preciso ver de perto a
única classe favorecida e privilegiada comportar-se... em massa (48) ; moleza com que homens, aliás honestos, exclamam: «Que vergonha!
É revoltante fazer ou dizer estas coisas!» e contribuem com a sua
viu-se toda a população de uma cidade, associações, corpo rações,
comerciantes, pessoas de qualidade comportar-se... em familia pequena parte para sepultar a cidade e o campo no torvelinho das
(quase como um burgês em Duerhaugent [49]); estes milhares de suas bisbilhotices; é preciso ver com que insensibilidade homens,
pessoas tornaram-se, por assim dizer ... a única coisa que, poder-se-ia aliás, caridosos, agem como público, parecendo-1hes a sua inter-
assegurar, 1hes era impossível vir a ser, sobretudo em massa ou em venção. ou asbtenção um3- bag~tela - cuja proliferação acabou por
família: tornaram-se «irónicas», graças a um jornal que, por ironia produzIr um monstro. E preCISO saber que nenhum ataque é tão
das coisas e graças a uma redacção dç-rgario1as (50), monopolizou temível como o do riso: mesmo o homem que enfrente um perigo
e deu por sua vez o torti~írõiíiã:-Creio que é impossível imaginar mortal por uma pessoa que lhe é estranha não estaria longe de renegar
algo de mais ridículo. A ironia pressupõe uma formação intelectual pai e mãe se fosse ameaçado pelo perigo do riso; este ataque é efec-
completamente específica muito rara em cada geração - e este tivamente o mais indicado para imolar a vítima, sem qualquer apoio
caos de pessoas eram a ironistas. A ironia é absolutamente contrária de «pathos» em ponto algum; contudo, a superficialidade, a curio-
ao social e uma ironia «em maioria» é, eo ipso 1 uma coisa inteiramente sidade e a sensualidade entregam-se às suas chacotas; a covardia
diversa da ironia. Nada de mais certo, de acordo com o próprio de nervos enfraquecidos, tremendo também ela ser assim atacada,
conceito; a irOlúa tende por excelência a ser privilégio de um só, grita sem cessar: «Não é nada»; a covardia, sem mais, liberta-se
segundo a acertada fórmula de Aristóteles (51): o ironista fez indignamente do ataque, comprando o agressor ou fazendo-lhe
todas as coisas Éocu-rou ÉUEXOC (em vista de si própria); e tinha-se boa cara, dizen~o assim; «Não é nada»; e a simpatia vai repetindo:
aqui um imenso público unido que - coisa espantosa - in bona «Não é nada». E terrível ver um país pequeno estúpidas tagarelices
caritate (numa união fraterna) se tinha tornado irónica. A situação e fingimentos ameaçavam vir a tornar-se a «opinião pública». A Dina-
era gravíssima. E mesmo se o grande árbitro deste estado de coisas (52) marca reduzia-se a Copenhague, que se transformava numa a1deola
de província. Este resultado é muito fácil de atingir, sobretudo
graças à imprensa; mas quando o mal está feito, é necessário talvez

(47) Cfr. atrás a n. 38. uma Mas geração para ira contra
já chega propósitoa corrente.
deste tema. Era importante, para
(48) En massc: aqui e a seguir, em francês no texto.
(49) Ou Dyrehaven (Parque dos Veados), vasto domínio situado ao Norte de
uúm, transformar a minha existência pessoal de acordo com a
Copenhague onde se organizam, no Verão, todas .as espécies de atracções; os citadinos transição em que levantava os problemas religiosos. Tinha de levar
fazem dele um dos seus passeios favoritos. uma existência que correspondensse a este género de actividade
(50) Para evitar as perseguições judiciárias, O Corsário, jornal de sátira política, literária e a apoiasse. Estávamos, como disse, em Dezembro, e con-
tinha numerosos redactores ocasionais que, muitas vezes, não passavam de bonecos
de palha. Num artigo do Fredrelandet, publicado a 10 de Janeiro de 1846, intitulado
vinha estar preparado para o momento em que apareceria o Post-
O Resultado dialéctico de um assunto de policia literária: OC VIII (SV 2 XIII 468-471),
Kierkegaard fizera alusão aos «fornecedores ocultos. do Corsário.
(51) Aristóteles, Ret6rica 1419 b, onde a ironia, definida como um prazer que
nos damos a nós próprios, é o oposto do gracejo, que se faz para prazer dos. outros.
(52) Alusão a M. A .. Goldschmidt (1819-1887), que tinha fundado O Corsário
em 1840. (53) Is 3, 4.

58 59
,
.
, .
.)-.,

-Scriptum definitivo. O passo foi dado no decurso desse mês (54). Ocupando-me exclusivamente de publicações religiosas, contava pôr
Com o meu conhecimento destas coisas, vi bem que as duas palavras Ulll travão aos ímpetos quotidianos da população; esperava que se
dirigidas a este órgão de ironia que, num sentido, quero dizer-se
prolongassem bastante para impedir que a ~omunica~ão religiosa
eu não tivesse sido quem era, não me teria até então venerado e imor- illsse demasiado directa, ou que mesmo serVISSedemasIado aberta-
talizado sem habilidade - bastariam para alterar completamente lIlente os adeptos. O leitor não podia ter comigo relações direetas:
a dialéctica de todo o meu modo de existência e para levar esse
porque, em vez do incógnito do estético, e~tr~ra agora na zon:
inumerável público de ironistas a lançar o olho para mim, de modo perigosa do riso e da chacota, com que a maIOrIa se assusta. E ate
a servir de alvo à ironia de todos, eu - ai de mim! - «magister»
os sossegados se deviam sentir perturbado~, imagin~ndo que volunt~-
da ironia (55) ! riamente me tinha espoxto a todos estes mconveruentes e me preCI-
Foi, então, dada a ordem: para impedir que daí se tirasse
pitara numa espécie de louc~ra: assim também for~j~lgado aquele
partido como de uma forma de ironia completamente nova e da
Romano que deu um. salt? I~ortal para salvar a patrIa (56); l?-u~a
última sárita, acrescentei uma fortíssima dose de moral, exigindo
espécie de demência, SIm, lllSISt<,:;po~q,:te, do ponto de Vista di.alec-
a minha parte de injúrias a esse órgão ignóbil de repugnante ironia. tico era exactamente a abnegaçao CrIsta -e eu, o pobre «magIster»
A incontável horda do ironistas tornou-me, naturalmente como lou-
da i~onia, servia tristemente de alvo ao riso do respeitável público
co; as raras pessoas de olhar mais penetrante não me viram efectuar cultivado.
este salto sem um certo receio ou (limitando-se apenas ao aspecto A indumentária era a boa. Todo o autor religioso é eo ipso
mundano da dignidade sem descobrirem o seu carácter religioso)
polémico, porque o mundo não é suficientemente ?o:n para admi-
acharam abaixo da minha dignidade a escolha de um tal objectivo, tir que o religioso triunfou ou tem por ele a maIOrIa. Um autor
quando, pelo meu lado, julgaria indigno ter vivido numa época
religioso que conhece o s~cesso e a fa,!,? não, é eo ipso um, a~tor
de semelhãlltC:;desmoraliiação sem empreender uma acção decisiva, ~I religioso. O autor essenCIalmente relIgIOSO e sempre polermco;
contente com a fácil virtude de me comportar como «os outros», suporta o peso ou o sofrimento da resistência em que se traduz
isto é, de me dispensar o mais possível de agir, enquanto que a in- o que é necessário considerar como o mal específico da sua época.
famia sem limites da imprensa conduzia ao túmulo as suas vítimas Se os reis e os imperadores, os papas e os bispos e o poder são o mal,
o escritor religioso deve também reconhecer-se nos ataques de que
cheiasmenos
pelo de amarguras
na pessoa e dadesuaofensas,
mulher, e dos
nemseussempre
filhos, directamente,
dos seus pais
é objecto por seu l~do. Mas se o :nal. resid~ na mult~dão e ~a. sua
e parentes, porque da
o contágio estendia-se por datodo o lado e alcan- tagarelice, no públIco e no seu rISO ImbecIl, o escnt~r _relIgIOso
çava a intimidade vida privada, o asilo escola, o santuário deve ainda reconhecer-se nos seus ataques e persegwçoes. E se
da Igreja, vomitando mentiras, calúnias, insolências, desaforos, e tem como alavanca apenas o miraculoso silolgismo, quando se
tudo isto para servir funestas paixões e uma vil avareza; e de tudo lhe pede para justificar a verdade da sua mensagem, responde:
isto eram responsáveis «redactores mariolas»! Compreendi que este a minha prova é a perseguição; a prova da que eu proclamo a ver-
meio de servir a minha ideia foi o verdadeiro, e não hesitei; as conse- dade tenho-a nos vossos risos. Por outras palavras, ele não prova a
verdade ou a justiça da sua causa pela glória, pelo renome ou outros
quências que
vindico-as ninguém,como
na história então, pensou
minha em disputar
propriedade legítima,comigo, rei-
cujo valor favores de que desfruta; muito pelo contrário, porque o autor
para o futuro os meus olhos descobrem sem dificuldades.
religioso verdadeiro é sempre polémico. Desta maneira, todo o escri-
Calculara eu que, do ponto de vista dialéctico, a situação tor, orador ou professor que se esquiva e não se encontra onde está
seria favorável a um novo recurso à comunicação indirecta.
l
..••
o perigo, ond~ o ~al, se acoita, é um impostor, como também e~e
o demonstrara. POIS e verdade que todo o homem, ao chegar as

(54) Trata-se do artigo já citado (ef. atrás n. 46): Actividade de um esteta ambulante.
(56) Segundo Tito Lívio (História romana VII, 6), a~riu-se uma cra~e~ no c~ntro
No último parágrafo, o autor queixa-se de ser o único a não sofrer as injúrias do do Forum de Roma, em 362 a. C., que não se consegma tapar. Os adlvmbos viram
Corsário e deseja não ser mais poupado para o futuro. Sabe-se que este desejo depressa aí o presságio da queda da cidade. Para eles, o único meio de evitar a desgraça era
foi atendido: cf. OC VIII.
precipitar na cratera, como sacrifício, o que fazia a força do povo romano. Perante
(55) Alusão à tese apresentada por Kierkegaard em 1841 para obter o grau de
a besitação geral, um jovem cidadão, Marcus Curtius, declarando ~u~ a força de Roma
eMagister artium», O Conceito de Ironia constantemente referido a Sócrates: OC 11 (SV 2 estava na sua bravura, montou num cavalo todo armado e precIpitou-se na cratera,
XIII 103-428).
que se fecbou imediatamente.
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portas da morte, que se abrem perante ele, tem de depor toda a gl6ria Os acontecimentos mundiais que abalaram tudo ao longo destes
e magnificência, toda a riqueza e celebridade no mundo, e as cruzes últimos meses (59) revelaram confusos porta-vozes de novos pensa-
e as distinções honoríficas que recebera dos reis e dos imperadores mentos, ousados e naturalmente confusos; em contrapartida, silen-
ou da multidão e do público; tem de depor tudo isso com absolu- ciaram ou embaraçaram todos os que, até ao momento, elevaram
tamel!te v~o e s~pérfluo. S6 é objecto de excepção aquele que, na a voz num sentido ou noutro e também os obrigaram a procurar
sua vIda VIva, fOI autor, professor, orador, etc., ao serviço do reli- um hábito lustrosamente novo; todo o sistema saltou; no decurso
gioso, e o foi com os seus riscos e perigos. Se se encontra possuído de poucos meses, lUna igual paixão cavou um fosso entre o passado
por uma ou outra destas vaidades, não lhe é permitido desembara- e o presente, e dir-se-ia que uma geração desapareceu. Enquanto
çar-se delas; não, fez delas um viático que lhe é entregue e que é ocorria esta catástrofe, lia as provas de um livro (60), por consequên-
obrigado a guardar ou a levar, como se obriga um ladrão a levar cia, anterior aos acontecimentos. Não lhe acrescentei nem tirei uma
o seu roubo. E é com esta bagagem que se deve apresentar no local palavra; era a concepção que eu, «o pensador bizarro», já apresentara
do j~zo. Ensinou u~n~ doutrina religiosa: será julgado pelos ver- há vários anos: que se leia a obra, e ter-se-á a impressão de que foi
dadeIros mestres rehglOsos que foram, durante toda a sua vida, escrita depois da catástrofe. Esta revolução, de uma importância
ridicularizados, perseguidos, escarnecidos, insultados e desprezados. hist6rica mundial, e com um significado tal que ultrapassa o pr6prio
E se é terrível para o homem carnal ser aqui na terra alvo do riso, desmoronamento de Antiguidade, é o tentamen rigorosum (o exame
da troça e dos insultos, muito mais o é ainda aparecer na eternidade
com esta bagagem debaixo do braço, ou revestido com um luxuoso rigoroso) absoluto de
de não ter(61)necessidade de todo aquele ou
modificar quemudar
foi autor.
um Vivi
jota oe triunfo
de ver
vestuário.
que a minha obra precedente, se fosse lida agora, seria infinitamente
. A indumentária era a boa. Numa época de chacotas e de fin- mais bem compreendida do que o foi quando apareceu.
gImentos (como aquela de que falo, e a este respeito, creio, é pelo Uma palavra ainda. Quando vier o leitor amigo, não terá
menos opinião minha que a «guerra» foi uma felicidade para a dificuldade em ver que, quando passei por ser ironista, a ironia não
Dinamarca [57]), o autor religioso deve, pela honra de Deus, velar estava de modo algum onde julgava um venerável público cul-
por ser ridicularizado, antes de mais nada. Se o mal vem da massa, tivado; para semelhante leitor, é evidente que não iria cair na miséria
o autor religioso contempodneo deve, pela honra de Deus, velar de admitir que um público possa entender de ironia, o que é tão
por ~er <;>bjectode preseguição ~a massa, e vem a este respeito para impossível como existir em massa o Indivíduo; verá que a ironia
o pnmeIro plano. E toda a mmha concepção sobre a multidão, consistia no facto de, neste autor estético e sob a sua «Erscheinung»
que até os espíritos mais avisados tenham talvez, no seu tempo, (aparência) de mundanidade, se esconder o autor religioso que, exac-
achado um pouco exagerada, cis que hoje, em 1848, graças aos movi- tamente nesta época, se entregava para sua edificação a tanta reli-
mentos desordenados da vida (e, no seu poder autmentado, são giosidade, talvez como uma família inteira. Verá, além disso, que a
semelhantes ao furor dos elementos comparados com a fraca voz do ironia se encontra na sequência e justamente naquilo que o respei-
Indivíd~lO), eis q~e teriam mais fundamento em objectar-me que não tável público cultivado tinha como demência. Numa época de ironia
exagereI o sufiCIente. E a categoria de «o Indivíduo», considerada (esta grande assembleia de loucos), o ironista verdadeiro não tem
como bizarra descoberta de um espírito bizarro, o que todavia ela outra coisa a fazer senão revolver toda a situação, tornando-se
é - pois aquele que, nem sentido, a encontrou, S6crates, não foi ele pr6prio o objecto da ironia geral. Este leitor amigo verá uma
chamado no seu tempo eX"t'07to"t'oc/t"Oç (o muito bizarro [5 8J) ? _ concordância em todos os pontos e como o meu modo de existência
esta categoria, não trocaria por um reino o benefício de a ter enun-
ciado no seu tempo de uma maneira decisiva. Se a multidão é o mal,
,-
-\ e os caos aquilo que nos ameaça, então s6 há salvação numa coisa
,-' (59) Cf. atrás n. 38. Aqui, Kierkegaardvisa maisparticularm,ente os.movi.t,nentos
-3 - ~()rnar:-seo Indivíduo, e s6há pensamento salutar no do Indivíduo. nacionalistas liberais que se produziram nos diversos países da E~ropa, na Primavera
.'
-,
Vivi um trilmfo, um único, mas satisfaz-me tão plenamente que, de r848. ..
como pensador, não posso pedir absolutamente mais nada no mundo. (60) Os Discursos cristãos: OC XV (SV 2 X 7-362). Kierkegaard tinha dado o
manuscrito ao impressor Bianco Luno a 6 de Março de r848 e a obra apareceu na
editora Reitze1 a 26 de Abril seguinte.
(61) Assim se chamavam na Alemanha as provas práticas de teologia prestadas
(57) Cf. atrás n. 38. diante de uma comissão de eclesiásticas, que tinha a reputação de julgar da ortodoxia
(58) Cf. Platão, Fedra 230 c. Kierkegraad deveria ter escrito: ci't"o,,"o't"lX't"oC; dos candidatos mais severamente do que o fazia a Universidade.

62 63
se transformou numa exacta correspondência com a mud~nça
introduzida na produção. Se não eu tive~se estado t~o atento a ~sto,
ou se me tivesse faltado a coragem, se ~lV:SS~ mo~fica~o a ffi1n~a
produção, mas não o meu modo de eXlstenCl:, a sltuaçao ter-se-la
afastado da dialéctica e teria caido na confusao.

Capitulo III

PARTE DA PROVID~NCIA NA MINHA OBRA

Num sentido, não tive nem prazer, nem alegria em escrever


os desenvolvimentos precedentes; sente-se um certo mal-estar em
tanto falar de si. Prouve a Deus que eu tivesse podido guardar silên-
cio mais tempo ainda e morrer até calando aquilo que no silêncio,
dia e noite, me ocupou como o meu trabalho e minha actividade.
Mas, Deus seja louvado, respiro finalmente, sinto verdadeiramente
agora a necessidade de falar e abordo um tema cuja meditação
e exposição me proporcionam uma indizivel felicidade. A minha
relação com Deus é o amor feliz de minha vida, sob muitos aspectos,
infeliz e penosa. E embora esta história de amor (se me atrevo a
dizer) revele o carácter essencial da verdadeira história de amor,
de modo que só a pode compreender inteiramente o ser amado

a quemo ser
aqui, unicamente
por quemelaseseéconta
amadocom
(*), uma alegriaestou
todavia, completa,
feliz deisto é,
falar
dela a outros.

(*) O leitor observará talvez agora, do ponto de vista humano, a infelicidade


de toda a produção, o que dela faz mais uma superfluidade do que uma intervenção
activa, é que ela é, para as perspectivas humanas. demasiado religiosa. ou que a exis-
tência do autor é demasiado religiosa; é que o autor, enquanto autor. foi de uma fra-
queza absoluta e. por conseguinte, esteve numa absoluta necessidade de recorrer a
Deus. Menos fraco, portanto, humanamente mais forte (isto é, menos religioso).
teria muito simplesmente feito da sua actividade literária wn assunto seu, sem dúvida
ter-se-ia rodeado de alguns amigos e confidentes, teria antecipadamente posto outras

64 65
Para me lembrar e indicar exactamente como sempre tive exclamando: «o meu reino por um cavalo (62)~, e resoluto numa
necessidade do auxílio de Deus, dia após dia e ano após ano, basta- felicidade que não conheceu, daria tudo, incluíndo a minha vida,
-me recorrer à memória ou à recordação, tanto como ao diário
ou aos cadernos de notas que ainda me é inútil comparar entre pensamento expressão~
para encontraruma felicidade
«a num doencontro
maior queemproporciona
que aquela ao
que o amante
si: revivo-o neste momento, na sua integridade actual e ~o~te. encontra a amada, e a fim de morrer balbuciando-a. E eis que os
Contudo, de que exposições não foi esta pena capaz, de que audacIas, pensamentos se oferecem, encantadores como frutos no jardim
de que arrebatamentos, de que exaltações, que confinavam quase do conde abundant~s,
vras que (63),.
filt1gam a mmhacheios de. calor, de
neceSSIdade profun~os,
gratIdão com as pala-
e refrescam
com a loucura! E, agora, que devo falar da minha ~elação co~ J?~us,
o ardor do meu desejo: parece-me que, se tivesse uma pena alada,
do que cada dia repeti na minha oração a~rad~cId~ pelo mdIzl~el
dez até, não poderia seguir tão depressa os meus pensamentos na
benefício com que me cumulou numa medIda Infill1ta~ent~ maIor
riqu,:za com que se oferecem. Mas, quando quero pegar na pena,
do que jamais teria esperado; do assombro que ~pren~1 a. alImentar sou mcapaz, nesse momento, de a mover, semelhante àquele que
acerca de Deus, do seu amor e do que pode a Impotencla hum~na
não pode dar um passo; um tal estado, não posso pôr no papel uma
com o seu auxílio; do desejo da eternidade com a qual aprendI a linha sobre este estado da minha alma. Julgo ouvir uma voz: «Pobre
suspirar sem receio de a achar aborrecida, porque ela é .exactamen,:e louco! Que imagina ele! Não sabe que Deus prefere a obediência
a situação de que tenho necessidade para não fazer maIS nada senao à gordura dos carneiros (64): faz tudo isso como um deven. Então,
dar graças, agora, que devo falar de tudo. isto, eis que desperta n~ a calma apodera-se de mim completamente; com uma pena mais
minha alma a impaciência do poeta. MaIS resoluto do que o reI lenta, tenho de formar quase cada letra. E se a paixão de poeta des-
perta por um momento, parece-me ouvir uma voz dizer-me como
o mestre ao aluno: «Segura bem a tua pena, e forma cada palavra
com igual exactidão~. E consigo, me não atrevo a fazer de outra
maneira; escrevo cada palavra, cada linha, numa quase-ignorância
pessoas ao corrente dos seus projectos, ouvido o seu cons~o, pedido. a sua ajud~;
estes colegas teriam, por sua vez, chamado outros: a p~oduçao, fruto do ms~ante, t:na da palavra e da linha que se seguem. Depois, ao reler, experimento
assim agido no instante, - em vez de ser uma superflUl~ade c0';l10' em sentido fimto, uma satisfação completamente diferente. Porque, mesmo se um
o próprio Deus é acima de tudo e antes de todos. - O leitor vera" t;1~ez, agora porqu~ termo ardente me escapou, a produção tem um outro carácter;
é que, dia após dia, à custa de grande~ esforços e de ?randes ,sacrlf IClOS,.me empenheI
em impedir a intervenção da mentIra que me tena tambem 'p~oporclO~ado, co.mo não é oé fruto
Deus, da paixão
a minha poeta
maneira<10de ou do pensador, mas do temor de
o venerar.
sempre o faz, dinheiro, homas, consideração, aplausos, etc.;, eVIteI ~ ';l1entlra. de dizer
que a minha mensagem era «a exigência do tempo. submetido, ao JUlZO~enévolo ~o Mas o que revivo ou acabo de reviver, experimentei-o mil
respeitável público, atribuindo-lhe o seu sucesso, bem corno a aprovaçao: ao apOIo e uma vezes ao longo da minha carreira literária. «o poeta», diz-se,
e às aclamações dos contemporftneos. No temor e amor de Deus, preclsa,:a, pelo «invoca a musa que o il1Spirará~.Este nunca foi o meu caso, o carácter
contrário de velar sem descanso por expressar a verdade que se segue: trabalhei exclu-
sivament; com o auxílio de Deus e não devo nada ao público, ~em a~s contempor~neos, da minha individualidade proíbe-me até de o compreender; pelo
a não ser a parte de injustiça que me fizeram; esta verdade e. o eplg~ama pró~no do contrário, todos os dias tive necessidade de Deus para me preservar
despertar; num tempo em que apenas se tra~ava de assemblelas gerais, de SOCiedades, da afluência dos pensamentos. Na verdade, dai a um homem seme-
de comissões fundadas, dissolvidas, restabelecldas sem que nada se fizesse, um homem lhante faculdade de produzir com uma saúde tão vacilante: acabará
fraco e solitário via que lhe era concedida a faculdade e a for~a .?e trabalhar n?ma
medida que fazia supor mais do que .0 rendim~nto de, u~a .cormssa~, em s~ma, ~nha
por pe~r perdão. Pude, constantemente, realizar este grande esfor-
corno dever religioso expressar, me~lante a minha e:C1Stenclae a minha eXlstêncl~ de ço, e amda sou capaz; poderia sentar-me à minha mesa e escrever
autor, a verdade experimentada e venfica~a tod~s os.dlas d~ que há u,m Deus. - O leitor ininterruptamente um dia e uma noite e ainda um dia e uma noite,
notará talvez agora porque é que, no sentIdo ~~to, Julguei necessáno. contrapor o meu
esforço, e precisamente para que a responsabilidade me pudesse ser Imputa~a d,e um~
maneira absoluta. Precisei em cada instante de estar total e absolutamente so; tive a~e
que rejeitar o amet1io dos outros, para que a minha responsa,b,ilidade nã~ me fo.sse ali- (62) Exclamação de Ricardo m, rei de Inglaterra, na alrora da batalha de Bosworth
$ iada. Um único amigo, um único colaborador e a responsabilidade ,:stana fraCClOna?a, (1485) contra o conde de Richmond, Henrique Tudor. A palavra foi retomada por
,j e muito mais ainda quando se tem a assistência de toda uma geraçao. M;s, ao se~lço
da verdade, tenho por regra que, se me extraviasse, se me entregasse a te~~r~dade
Shakespeare no seu Ricardo III (acto V, cena 4).
(63) Alusão provável a A. Oehlenschl1iger, Aladdin eller Den forunderlige Lampe
.1 ou à mentira, a Providência me esperaria infalivelmdntte e qu~, na poss~bilidade (Aladino ou a Umpada maravilhosa), fim do I acto. Kierkegaard refere-se muitas vezes
incessantemente presente ao meu espírito de lhe .pre~tar contas, tutJ:a necessidade de a esta peça; cf. A Alternativa I: OC m 21, n. 13.
permanecer na vigiJancia, na docilidade e obec1iênCla. (Nota de Klerkegaard). (64) Cf. 1 S 5, 22.

66 67
Mas, num outro sentido, ainda tive necessidade do auxílio
porque sou muit~ fé~til em ~ensamentos. Se o fi~esse, ficaria abalado. de Deus durante toda a minha actividade literária e constantemente
A menor imprudencia de regime, e estou em perigo mortal! Quando
dia após dia, ano após ano; porque foi Ele o meu único confidente:
assim aprendo a obediência, executo o meu tr~balho como uma , fi' d
c so ne~ta con iança e ,que J?u e ot~s~r o que ousei, suportar o que
'
tarefa rigorosa, seguro bem .a pena e f?rmo c~l1dadosame1?-tecad.a suporteI, e encontrar aI a mmha felicidade: estar, totalmente à letra,
palavra, posso então ser suficiente. E aSSim, mmt~s, vezes, tive maIS só no vasto mundo, só, porque em toda a parte onde estive, aos
alegria em obedecer a Deus ~o que .em produzi: pensamentos.- olhos de todos ou no encontro mais íntimo, sempre estive vestido
Por outras palavras, como se ve sem dificuldade, nao tenho que apro- com o manto do embuste; portanto, estava só, não o teria estado
veitar-me de uma relação imediata com Deus, não posso nem ouso
mais na solidão da noite; só, não nas florestas da América nos seus
dizer que Ele me inspira directamente os meus ~ens:m~ntos,. mas perigos e terrores, mas naquilo que faz mesmo da mais terrível
que a minha relação com Ele é da ordem da re~exao, e f~lta d.e l1~t~- realidade um sossego apaziguador, só na sociedade das mais cruéis
rioridade na reflexão que é, aliás, a característica da mmha m~Vi-
possibilidades; só quase com. a linguagem humana contra mim, só
dualidade; e é também porque na minha oração encontro a mmha
nos tormentos que me ensmaram mais de um comentário novo
consolação em dar graças. . ..,..
Assim, ao longo de toda a mmha carreira hterarIa, tIve constan- sobr~ o. texto do .espinho na carne (65), só nas decisões onde se
temente necessidade do auxílio de Deus, a fn11 de desempenhar o preCISaria dos :;migos e,_ se l?os~ív:el, de toda a huma~dade para
nos amparar; so nas tensoes dialectlcas que, sem o auxílio de Deus
meu trabalho como um simples dev~r: par~ isso, estab~le.ci_cada conduziriam à demência todo o homem dotado com a minha ima~
dia determinadas horas fora das quais me Impus a prolblçao de
ginação; só nas angústias até à morte; só no absurdo da vida sem
escrever' e se me aconteceu falhar algumas vezes, tive de pagá-lo
demasiado caro. Nada se assemelha menos à minha conduta do q?~ p?der, ai~da que o tivess~ querido, fazer-me compreender p;r um
o ímpeto do génio interrompendo-se no tumulto; ~o f1.~ndo, VIVi so, que digo eu, por um so? - não, houve tempos em que não eram
como um secretário no seu escritório. Desde o prmcípiO, estava, ~s pessoas q~e
impossível dizer:faltayam para me
«So me faltan: compreender,
elas», mas tempos de
em modo
que nãoquepodia
era
por assim dizer, detido; a todo o momento pressentia que, muito mesmo compre~nder-me a mim mesmo. Estremeci ao pensar que
longe de seu próprio desempenhar o papel do Senhor, um outro se passaram aSSIm anos: se, por um só momento, não vejo bem,
era o meu mestre; compreendi-o, com temor e tremor., quan.do
afund?-me. Mas, se vejo bem, encontro, acreditando, o descanso
me fez sentir a sua onmipotência e o meu nada; experImenteH~ na mmha confiança na confidência de Deus, e a felicidade volta
com uma indizível felicidade quando, no meu trabalho, observei até mim.
para com ele uma obediência absoluta. A dialéctica ~onsiste em q~e E o pormenor, .em vão tentaria eu contar as ocasiões em que
a parte de extraordinário que me foi confiada o fOI por pre~auça? Deus me fez experimentar o seu auxílio. Aconteceu-me muitas
numa elasticidade tal que, se recusasse obedecer, este talento lmph-
caria a minha morte. O pai diz assim ao filho: terás tudo o que te vez<:suma coisa que a n:im mesmo não pude explicar: quando fazia
aqmlo de que me c:ra Impossível fornec:r a razão, não pensando
pertence; mas se não. que~es ~bedecer e usar do~ teus ben~ como e,u sequer. em esquadrI~á-la, quando segma como simples particu-
entendo, não te caStigarei privando-te deles; n.ao, poderas guar?a-
-Ias _ eles destruir-te-ão. Sem Deus, sou demaSIado forte para num, lar os ~mpulsos da mInha natureza, estas coisas que tinham, assim,
e o meu cérebro estoira da maneira talvez mais cruel de todas. Desde para mim um val?r ~stritamente pessoal, dependendo quase do acaso,
~evelavam um slgl1!ficado completamente diferente e puramente
que sou autor, nunca vivi verdadeiramente um dia em que tenha
conhecido a esterilidade ou a recusa dos pensamentos, d.e que ouço ideal q~ando, ~epols, elas aparecian: na minha obra; coisas que
os outros queixarem-se; se isto me acontecesse, estaria. antes na fiz a tltul.o privado revelaram~e Justam:nte s~r, facto curi~so,
situação de me julgar quase feliz por ter finalmente u~ di~ de ver- as que deVia fazer ~omo ::ut~r. Nao me podia eXl'lIcar como, mtl1tas
vezes, pequenas clrcunstanClas aparentemente fortuitas da minha
dadeiro descanso. Mas, muitíssimas vezes, fiz a experiênCIa, e em
vida e que, com a ajuda da minha imaginação, assumiriam imensas
cada momento tive, com horror, a consciência do terrível torn:ento
proporções, me punham numa disposição, determinada; não com-
que consiste, por assim dizer, em sofrer com f?me no meiO ~e
abundância, em ser esmagado sob o peso d~s riquezas -:.se nao
aprendo imediatamente a obediência, se não deIXODeus aU?Ghar-me,
(65) Cf. 2 Co 12, 7. Este texto tinha servido de tema a um discurso edificante
se não produzo de uma maneira igual, calma e tranqutla, como de Kierkegaard, aparecido em 1844: OC VI (SV 2 II7-137).
no cumprimento de uma tarefa.
69
68
preendida, caía na melancolia, e coisa curiosa, resultava daqui uma f: t entido é uma «evacuação»necessária. Desde o
disposição, precisamente a que me faltava para o trabalho com que, arce
. '. mas nou
'mento ro s ,
o religioso , d"eClSlva,
é dado de maneIra . tem,
então, me preocupava, e há pouco citado. A minha produção, com pnmeIro mo, , ta
d' ida a primazia, mas espera paClentemente que o poe
efeito, não sofreu o menor atraso; tive sempre à mão o meu material
no momento desejado. Num sentido, produzi toda a minha obra ;~~a ~:rmi~ado de desabafar, vigiando tudo com olhos de1Ar-
na constante igualdade de trabalho, como se não tivesse feito outra gos (66) para não se deixar enganar numa obra em que se proc ama
coisa do que copiar, todos os dias, um determinado fragmento
de um livro impresso. o pO~;e)::~ue a importância para a época da mü~ha obra de escritor
, melhor sob este ponto de vista. Se tlvesse que promm-
se mostrara , , d' , lh f: lta
Contudo, tenho ainda de precisar, nesta recensão, a parte da .
CIar-me conl lIma<, palavra sobre a mmha epoca, , Ina _
que .e 't"a
Providência na minha obra. Pois tornar-me-ia culpado de desleal-
educaçao
- re1l'gl'osa.. Banal se fez tornar-se
A' e ser
1 cnstao, de o este
staIdcO
o
dade e de negação de Deus se tivesse pretendido ter, desde o prin- tem incontestavelmente a preponderanCla: u trapassan o o e,
cípio, a vista de conjunto de toda a estrutura dialéctica da minha obra,
ou ter esgotado de antemão, em cada instante e gradualmente, as cristão (onde facilmente alguém se situa, voltou-~e ~ u.m pagal11smf:0
possibilidades na minha reflexão, a qual nada, em seguida, me teria, estético e intelectual refmado, temp,erado c?m cnstl~n~m~; a tar~ :
a ro or à maioria na cristandade e a segumte: ?artm o o «poe_a
ensinado, a não ser às vezes que eu tinha agido correctamente, não pd ~da de acordo com as suas concepções, partmdo da especulaçao,
o compreendendo bem a não ser só então. Não, devo dizê-Io fran-
camente: não posso compreender o conjunto, precisamente pela ~~ d~ uma vida consagrada no imaginário (o que é, ~o~nedn~Otempo,
razão por que posso compreendê-Io até ao mínimo pormenor; impossível) à especulação (em vez de existir), partl~ ~fi al,_tor:~~:l
mas o que me escapa é que posso agora ter a sua compreensão, sem . C O primeiro movimento oferece a slgm Icaçao .
todavia poder de maneira alguma dizer que, ao prmcípio, a captei 'd: ~~d:~io estética na obra total; o segundo é o do Post~Sertptum
aq!nitivo (68) que, ordenando ou tirando, para seu P7velto, toda
com obra
esta todae aalevei
clareza:
a bome termo,
contudo, fuia exactamente
passo passo, com a eu quereflexão.
millha realizei dução estética para bem esclarecer o problema, e que trata,
a pro . t numa outra
d «tornar-se cristão», executa o mesmo mOVImeno . _
Poder-se-ia
também se facilmente atabalhoar
disse de mim, sem se uma explicação,
ter nenhuma alegando,
ideia como
da totalidade
da minha obra, que fui um génio da reflexão - sou excessivamente ~sfe~a: pa~tindo d:- especulaç~o, do ~iS~emqa~eet~~d~or:ej~-~i~~ls::~~
Este mOVImento e: PARA TRAS, e am a 1 b
reflectido para não ver que esta mistura de reflexão e de génio não «autoridade»(69), não deixa de have~ no tom algo que e:n .ra u~
explica nada; porque se carece de reflexão na medida em que se agente de polícia gritando a um aJuntamento: «para tras», e eIS
tem génio, e inversamente, já que a reflexão é, propriamente falando,
a negação da imediateza.
, . bé' h 'do em A Alternativa;
Se necessitasse agora de exprimir com todo o rigor e precisão (*) Esta ideia d.o 'poeta» a :eJeIta~:a:ra ~r~~~-~ a~:;~~~mente de se afastar ou
possíveis a parte da Providência em toda a minha obra de escritor,
não saberia dar-lhe uma fórmula mais adequada ou mais decisiva mas, quando se consIdera a totalIdade t"d m~ito mais profundo do que a segunda
de retomar para trás do poeta nu~ sen I o 'a este o caso desta obra, foi o que se sub-
do que esta; a Providência fez a minha educação, que se reflecte parte de A Alternativa poderia explicar. ~~e seJ I ss (67). a passagem efectuada em
no processo da minha produção. Assim, caducaram, em certa medida linhou no Post-Scriptu~
A Alternativa difinitivo,
é propnamente a quep. IVaI
,'dI.a 2eXISe
, t'~cia 'poética à existência moral,
(Nota de Kiergkegaard),
as opiniões
estética quefraude;
é uma anteriormente
pois, estaexpus, a saber,
fórmula que um
concede todacerto
a produção
excesso
à consciência. Mas não é totalmente falsa, porque tive consciência
. d a mitologia grega, tinha sido encarregado
de mim ao longo desta educação e desde o princípio. O processo (66) Príncipe argIvo que,. segun o f, da m bezerra. Para este efeito, estava
comporta a rejeição de uma natureza poética e filosófica, a fim de por Hera de guardar a sacerdotIsa 10, trans orma ~ sempre abert o,s
munido de cem olhos, de que cinquenta permaneciam
tornar-se cristão. Mas o curioso é que o movimento começa ao (67) Cf, OC X (SV 2 VII 238).
mesmo tempo, de onde se segue que o desenvolvimento é cons-
(68) Cf. OC X (SV 2 VII 237-287). , d ver a maior parte dos
ciente; pode ver-se como ele se efectua; a continuação não está (69) Sobre est~ noção, i,?p,:,rtantenfea~o~I~~~~~s~~r edificantes de 1843; OC VI
separada do início e não aparece após um intervalo de um certo Prefácios
(SV 2 III dos
15)' seus dIscursos,
Discursos prmclpaln;e
edificantes . tas.'OC XIII 9 e 153; Dois
sob diversos pontos de VIS
número de anos. Assim, a produção estética é certamente um dis- discursospara 'a comunhão de sexta-feira OC XVIII. 3,

70 71
também porque mais de um pseudónimo diz de si próprio que Que há de espantoso se, em certas épocas, o cristianismo me tenha
é um agente, um guarda da ordem (70). parecido a mais inumana crueldade, se bem que nunca, mesmo
E, agora, qual a minha relação com a minha época, como autor
e segtmdo a minha opinião? Sou porventura «apóstolo» (71)? Que quando deleresolvido,
firmemente mais afastado estive,
sobretudo o tenha
se não optassedeixado de respeitar,
por tomar-me cris-
horror! Nunca forneci pretexto para semelhante interpretação; não tão, a nunca iniciar alguém nas dificuldades que conheci e que jamai~
sou mais de que um pobre homem insignificante. Sou porventura um encontrei nas minhas leituras, nem ouvi tratar. Mas nunca corteI
mestre um, educador? Também não. Sou alguém que foi educado com o cristianismo e nunca o reneguei; nunca pensei em atacá-lo;
ou cuja obra exprime a disciplina que leva ao tornar-se cristão: não, desde o tempo em que pude pensar com o uso das minhas
enquanto e porque esta educação pesa sobre mim, faço, por minha forças, resolvera firmemente tudo fazer para o defend~r ou, em to~~
vez, pressão sobre a época, mas longe de ser um mestre, não sou o caso, para o apresentar sob a sua forma verdadelra; porque]a
mais que um condisdpulo. muito cedo, graças à minha educação, fui capaz de me convencer da
raridade de uma exposição fiel, capaz de ver como os seus defen-
Para explicar melhor a parte da Providência na minha obra sores o atraiçoam a maioria das vezes, quão raramente os seus adver-
é necessário dizer, na medida em que puder, como me tornei autor: sários o atingem verdadeiramente, ~o passo ~ue, de acordo c?m. as
Não ~osso. aq~ ~larg~r-me sobre a minha vita ante act~ (isto é, opiniões que sempre tive, e1<:scastIg.am m~llta~ vezes com mteIra
justiça a cristandade estabe~eclda~ 1?-~to mals digl~a sde se ch.amar
~m~o~aa mmha
desde mfanCIa asatecircunstâncias
ache notáveis ao momemto que,
em quedesdemea torneI
minha autor),
tenra uma caricatura do verdadeIro cnstlamsmo ou um lmenso conjunto
mfancIa, e passo a passo ao longo de todo o meu desenvolvimento de errose ilusões onde se mistura uma reduzida e fraca dose de cris-
me .predispuseram para ser o escritor que vim a ser. A sequênci; tianismo autêntico. Amei assim o cristianismo de unla certa maneira;
obnga-me, contudo, a fornecer algumas indicações a este respeito, era, a meus olhos, digno de respeito; do ponto de ~ista .humano,
e fayo-o com o pu~or de todo o homem que tem de falar de coisas
estntamente pessoaIs. não há dúvida
situação, que ele
intervinham me tomara
as minhas extremamente
relações m.fehz.
com meu pal, Nesta
o homem
Estive, desde os meus verdes anos, sob a influência de uma imensa que mais amei, e que significa isto? Que era o homem que me tomara
mela?-colia, cttia proftmdidade encontra a sua única expressão ver- infeliz - mas por amor. O seu defeito não era carecer de a1?-0~'
dadeIra na ~ac~dade que me fo~ c~ncedida com um igual imenso mas confundir o velho e a criança. Amar quem vos toma fehz e,
grau. de a dIssImu~ar sob a aparencIa do bom humor e da alegria sob o aspecto da reflexão, dar do amor. um~ de,finiç~o insuficiet;te;
de YlVer~ J;J0r maI~ lo~ge que re~on~em :s minhas lembranças, amar quem, por maldade, vos tornou mfehz, e a vIrtude; porem,
a m~n~a un.Ica alegna fOI a de que nmguem pode descobrir como me
sentIa mfelIz; esta exacta correspondência (entre a minha melan- amar quem,
amor, por amor
fez a vossa mal compreendido,
infelicidade, massei,
eis, tanto quanto apesar de tudoreflec-
a fórmula por
coli~ e a mi~lha virtuos~dade em escondê-lo) mostra que estava tida, que sem dúvida, nunca se deu, mas contudo normal, do
destmado a VIver para mIm e para Deus. Criança, recebi uma edu- amor.
cação cristã rigorosa e austera que foi, para perspectivas humanas Caminhei assim pela vida, favorecido de toda a maneira pelo
uma .loucura. Desde a minha mais tenra infância, a minha confiança que respeita ao espírito e à vida material.; tudo estaya dado e tud?
na VIda queb~o~l-se pelas imp~essõe~ a que sucumbira o próprio foi feito para desenvolver o ~eu es.pínto e o e~nqu:cer o malS
velho melancolIco que mas tInha Imposto: criança, ó loucura! possível. Ainda que, com uma SImpatIa e uma predilecça? marcadas
adquiri a indumentária de um melancólico velho. Terrível situação! pelo sofrimento e pelo que de uma ou de ~utra ~aneIra ge~e e
sofre, posso dizer que, num sentido, defrontel corajosamente Vlda,
adestrado numa altivez quase temerária; em nenhum momento
(70) Assim Constantino Constantius se compara a um «Conselheiro da corte da minha vida perdi esta fé: o qu~ se quer pode-se,. excepto UI~a
de justiça. e s.e qualifica como «observador. em A Repetição: OC V (SV 2 III 195 e 197); coisa mas absolutamento tudo o mals, excepto uma cOlsa: a supressao
o assessor WI1helm é comparado a um «oficial inferior da polícia» nas Diversas consi-
da m'elancolia em cujo poder me encontrav.a. Nunca me veio a.ideia
derações sobre o casamento, segunda parte dos Estádios no caminho da vida: OC (SV 2
de que vivia o homem que me era supenor, ou que nascena no
VI 191); Frater Taciturnus qualifica-se, duas vezes, como «observador» e «preposto
para a guarda. em Culpado? - Não culpado?, terceira parte dos Estádios no caminho da meu tempo aquele que o seria (outros verão nisto uma imaginação,
vida: OCsIX (SV 2 VI 479 e 493). mas, para mim, tal foi, na verdade, o caso, como também no que
(71) Nova alusão ao Magister Adler: cf. atrás n. 35. se seguiu onde outros verão ainda uma quimera) - no fundo de
72 73
mim mesmo, era. o mais miserável de todos; nunca me veio a ideia
de que, mesmo sé quisesse exercitar-me nas coisas mais audaciosas, e, livre de
sidade; ocupações,
durante longostive bastante não
períodos, tempo para permanecer
fiz outra na ocio-
coisa que exercícios
não venceria - excepto numa só, em todas as outras, absolutamente dialécticos temperados de imaginação, treinando o meu espírito
excepto numa; suprimir esta melancolia cujo sofrimento não me como se afina um instrumento; mas, propriamente falando, eu
deixou livre, por assim dizer, um único dia. Contudo, é preciso não vivia. Era sacudido, tentado de mil maneiras e em quase todas
compreender o que digo ao pensar que muito cedo aprenâi que as mais diversas coisas, infelizmente tanto nos desregramentos, como
triunfar é vencer no sentido do infinito, o que, no sentido do finito, ainda, ai de mim! no caminho da perdição; tal era eu aos vinte e
significa sofrer; assim, esta convicção encontrava-se de acordo com cinco anos; surgia diante de mim mesmo, no meu misterioso desen-
a inteligência profunda da minha melancolia, segundo a qual não volvimento, como uma extraordinária possibilidade cujo sentido
era propriamente apto para mais (no sentido do finito). - Uma e destino me escapavam, não obstante a mais eminente faculdade
coisa me reconciliou com o seu sofrimento e o meu destino: de reflexão que tanto desejava dizer tudo; compreendia uma coisa;
prisioneiro, ai de mim! por infeliz e atormentado que estivesse,
recebera a liberdade ilimitada de poder enganar; tinha e vi acusar-se
a faculdade de estar absolutamente só com a dor - apesar de tudo,
têm:tá;mãS;~~
que t.i~a
empregaria o lmelhor
verdade, não vivi, excepto como espírito;
possóvel anãominha
é evidente que esta faculdade bastava para me tornar pouco pra- (nã~
~Jovem. sido hom.. ./e.mm), sobretudo, tinha vida
sido anem
fazercriança,
pem-\
zenteiras todas as minhas outras capacidades. Quando se possui
assim esta aptidão (para sofrer e esconder o seu sofrimento), a orien- -MõrrêiCéfitãô
da minha <> meu
inf~ncia exerceu pai (72).mim,
sobre A poderosa impressão
na brandura religiosa
da idealidade, 1W
tação que toma este tormento demoníaco interior e solitário depende uma influência renovada; atingia também uma idade que convinha
do carácter específico da individualidade; encontra a sua expressão melhor à minha educação a qual, infelizmente, não me será verda-
e satisfação no ódio votado aos homens e na maldição dirigida contra deiramente pro~~itº§'ª' a não ser quando tiver quarenta anos. Pois,
Deus, ou inversamente. Este último caso foi o meu. Tão longe pOJ:,....:I.Ss-inTlÜzer,
desd~erç , 'nha infelicidade, consumada
quanto remontam as minhas lembranças, tive uma clara consciência
de que para mim não havia consolação ou auxílio a procurar junto iJela educação, jogam,
~.QL2.utros foi a de brinca~_<:!!1:Je
não ter sido homem.-se àsas coisas
quandoda sesua
é criança
idade;
de alguém; saciado com todos os bens que me eram repartidos, e quando seejõVem: - e osoutros amam, vão ao baile, entregam-se
às coisas da sua idade; ser, então, espírito, em plena inf~ncia e em
suspirando
rito enquanto
a vida mais longa homem
possível, pela
tive morte, desejando
a ideia de auxiliar enquanto
os homens espí-
que plena juventude, que triste tormento, mais terrível ainda se, graças
amava na minha melancolia, de lhe procurar uma consolação e, à imaginação, se souber realizar a difícil tarefa de parecer o mais
sobretudo, de os esclarecer, in specie, sobre o cristianismo. A muito juvenil de todos. Mas esta infelicidade atenua-se já aos quarenta
longe na minha memória remonta o pensamento de que toda anos e desaparece na eternidade. Não conheci a imediatez; por conse-
a geração conta com dois ou três homens sacrificados pelos outros guinte, de um ponto de vista estritamente humano, não vivi. Comecei
e destinados a descobrir nos terríveis sofrimentos aquilo de que os imediatamente pela reflexão: não a adquiri um pouco com a idade:
outros tiram proveito: era assim que me compreendia na minha sou reflexão do princípio ao fim. Nos dois períodos da imediatez
melancolia e me via designado para este papel. (a infância e a juventude), provi-me por necessidade de um certo
Caminhei assim na vida, iniciando em todos os prazeres possí- sucedmeo com a flexibilidade própria da reflexão e até, mal informa-
veis, sem nunca fruir realmente; esforçava-me antes por fazer do do que me tocou em sorte, suportei a dor de não ser como os
crer que tinha gozo, no que encontrava um prazer a opor à dor da outros; naturalmente, teria dado tudo, na juventude, para o ser,
melancolia; frequentava todas as espécies de homens possíveis; ainda que fosse só por um momento. Um espírito pode perfeitamente
mas nunca pensei fazer de um deles o meu confidente, como mmca habituar-se a não ser como os outtos, e está aí justamente, do ponto
também um deles advertiu que o era; por outras palavras, devia de vista negativo, a determinação do espírito; mas a infância e
ser e fui um observador; a este títúlo, e como espírito, esta vida a juventude referem-se às categorias de género, de espécie, e é por
permitia-me fazer uma extraordinária colheita de experiências; isso que, nestas idades, o maior tormento consiste em não ser como
tive ocasião de ver de muito perto um conjunto de prazeres, de pai-
xões, de disposições, de sentimentos, etc., e exercitei-me em pene-
trar bem nos corações, na arte de imitar; a minha imaginação e a
minha dialéctica tiveram sempre uma matéria suficiente para ordenar (72) A 9 de Agosto de 1838; cf. Papo 11 A 243 (trd. em OC XXIII 335).

74 75
os outros ou, como foi o meu caso, em começar por um singular da Providência): em vez de ter sido jovem, tornei-me poeta, o que
contra-senso, no ponto onde acabam alguns em cada geração: é uma segunda juventude. Tornei-me poeta; mas, com os me~s
a maioria, que apenas conhecem na sua vida os momentos da síntese
antecedentes religiosos, com o meu carácter express~mente r~~I-
do corpo e da alma, nunca chegam à determinação do que é o espírito. gioso, este mesmo facto foi, simultaneamente, para ~llm, a ?CaSlaO
Mas, assim, a vida apresenta-se-me agora sob um aspecto total-
mente diferente. Nada me é mais desconhecido nem estranho do de um despertar religioso, de tal ~odo .que, no sentido mal~ ~ate-
que a melancólica aspiração pela inHncia e juventude; dou graças górico, acabei por conceber a mlllha '.:,Ida na esfera do ~e!I~IOso,
a Deus por ter ultrapassado este desejo e sinto crescer a minha feli- na religiosidade, o que não encara:a se~ao co~o uma posstbtlIdade.
cidade em cada dia que envelheço, se bem que apenas me enchesse de O facto tornou-me poeta; se eu nao tivesse SIdo quem era, per~a-
felicidade o pensamento da eternidade, porque a temporalidade não necendo o facto o mesmo e também a minha conduta, as ~olsas
é e nunca será o elementi do espírito, mas, num sentido, o seu sofri- não teriam ido mais longe; teria permanecido p~eta, e talvez tI~es~e
mento.
abordado o religioso após longos anos. Mas, d~Vld~ a~ meu.propn?
Um observador verá também como tudo foi dialecticamente desenvolvimento religioso, o facto teve uma lllfluencta mUlto mats
posto em movimento: eu tinha um espinho na carne, os talentos do profunda; aniquilou, num sentido, no da impaci~ncia religiosa, o poeta
espírito (sobretudo a imaginação e a dialéctica), uma muito grande em que me tornara; aniquilou o ~stádio da poesta ou, em to~o o caso,
experiência de observador, uma educação cristã verdadeiramente cheguei simultanealI~ente, num lJ?-stante, a começar em dOlS,Pontos,
rara, e uma atitude muito particularmente dialéctica acerca do cris-
de tal maneira, porem, que a VIda de P?eta me :.ra proprIamente
tianismo; aprendi, desde a infância, a obedecer com uma obediência
alheia, e só era o que era por uma outra mtervençao - o meu ~es-
absoluta; estava mmúdo de uma fé quase temerária na llÚnha capa- pertar religioso; por outro. lado, nã? me tornara poeta· por mlllha
cidade de poder todas as coisas, excepto uma, tornar-me uma ave
livre, ainda que fosse por um único dia, ou quebrar as cadeias de própria vontade, mas segullldo a. mmha natur~za; por outras pala~
vras, não me reconhecia verdadetramente a mtm mesmo no poeta,
melancolia onde um outro poder me retinha; enfim, era para mim
mas sim no meu despertar religioso. . .
mesmo um penitente. Parece-me agora que um outro poder se
encarregou, desde o primeiro momento, desta demora, semelhante O leitor discerne aqui facilmente a explicação da dupl~c~dade
nisto ao pescador que diz do peixe: deixemo-Io, ainda é demasiado de toda a minha obra; mas há que acrescentar que esta d~plIctdade
cedo para o pescar. E, facto curioso, que remonta também muito passou, de repente, para o ~onsciênci~ do ~utor. Que Importava
fazer? Era preciso esgotar o poetico, eu nao podta fazer de outro. ~odo
longe na minha lembrança sem que possa, de maneira alguma,
indicar a sua data nem dizer como a ideia me veio: constantemente, Mas toda a produção estética. estav~ sob o embar~o do relIgIOSO,
consentindo que ela prossegUlsse ate ao fim, mas lluportunando-a
isto é, todos os dias, pedi a Deus para me dar o zelo e a paciência
continuamente como que para dizer: ainda não acabaste (*)? En-
necessárias para cumprir a tarefa que ele próprio me destinaria.
Foi assim que me tornei autor.

(*) Talvez se observe agora o que anteriormente ,designei como a infelicid:de


Um acontecimento, ou antes, um facto está na origem da llÚnha de toda a obra sob o ponto de vista humano: é demasiado vasta n~ sua conce'p~ao,
não se adapta a nenhum momento da realidade, por um lado, devI~o à _prodl~l~sa
obra de escritor; um acontecimento não teria sem dúvida, bastado;
rapidez de uma produção, por outro em virtude de um ~erc.!mo evolutlvo tao ~eclSl':::o
é a um facto que devo o ter passado à acção. Não posso explicar-me mo o do estético ao religioso, ao cristão. Para a pnmelra obra, A AlternatIVa, ~ao
mais, dizer em que ele consiste, mostar como foi terrivelmente : via, nenhuma medida tinha sido dada, a duplicidade não tinha sido pos:a. COnsl~e-
doseado de dialéctica, se bem que fosse, por outro lado, totalmente derou-se esta obra como o resultado de longos anos de trabalh.o. Esta ilusao, e n:mtas
outras, serviram A Alternativa. Por isso, graças à ilusão, o público ~ôde v.er o c,mdado
normal; não posso precisar a natureza do conflito; apenas rogo ao
desenvolvido pelo estilista; e, contudo, !iter~me~te, A Alte~natlva fOi escnta em
leitor para não pensar em revelações .de coisas do mesmo género, muito pouco tempo, e é talvez a obra cUJOestil~ e menos castigado. Compreen~e-se,
porque, para mim, tudo é dialéctica. Pelo contrário, apresentarei pois, que o público julgasse a primei~a parte e~cn~a alguns anos antes da segunda, ma~
a consequência deste facto, se puder servir para esclarecer a llÚnha é o contrário, a segunda parte foi escnta em pnmelro lugar. Tal. é o ca~~ de A Altern,a
obra. Foi um facto duplo. Se bem que, num outro sentido, tivesse tiva. Mas uma vez a ilusão dissipada e a medida dada, ~ão podia admitir-se outra co~a
senão que se tratava de papeladas indignas de serem segmdas! certamente, uma produçao
vivido muito, do ponto de vista humano tinha realmente saltado
que me ocupara cinco anos deveria levar, normalmente, qmnze., Talvez se compree~~a
por cima da infância e da juventude (e tal era, sem dúvida, a intenção também agora, dando-me razão, porque é que eu não desejava qualquer publicl-

76 77
quantdo se entregava às produções poéticas, o autor vivia de acordo espinho na carne» ter-mo-ia, não obstante, impedido. E para a p~o-
com etermina~ões religiosas decisivas (*). dução religiosa, a Providência refreava-me, a fim de nada a ~m
Nun: .sentIdo, t,J-ão pensava absolutamente nada tornar-me atribuir, porque eu compreendia que tinha uma grande díVIda.
auto; relIgIOSO. A mmha, i~tenção era esgotar tão depressa quanto Chego agora a um termo que diz ~espeito ao autor que ~ou,
pos~Ive~ o elemento poetlco - para tomar imediatamente uma
paroqma }uraI., !al era a minha intenção. Sentia-se alheio a toda a um termo
refere-se a todaquea minha
a mim obra,
costumo aplIcar na
considerada quando falo COmIgo;
sua marcha inversa
a produçao poetIca, mas não podia fazer de outra maneira. Repito (consistindo em que não comecei por dizer pa~a o!lde eu tet,J-;lia);
o. meu pensamento não foi, no princípio, tornar-se um autor reIi~ refere-se à minha qualidade de observador e a mmha conSCIenCIa
gIrS? O que a meus olhos traduzia energicamente o meu carácter de ter também necessidade de ser disciplinado: nos domínios da
re IWO~O,ao qual o pseudónimo era alheio, era esta passagem sem intelectualidade e da religiosidade, tendo em vista os conceitos do
translçao para um presbitério rural. «existir» e de «cristandade», sou como um espião ao serviço de interesses
Apesar de tudo, a necessidade de produzir era em mim tão superiores, os da ideia; nada tenho de !l0vo a P!oclamar~ estou sem
g~ande qu~ não podia fazer de outro modo; publiquei os Dois autoridade; mesmo sob o manto do dIsfarce, nao vou directamente
discursos edif:cantes (73),. e compreendi a intenção da Providência à obra, vou pela via indirecta da astúcia; não sou um santo; em suma,
a ~u resp~Ito. PermItIU-me consagrar algum tempo ainda à pro- sou como um espião que, ao informar-se, por função, dos erros,
duçao poe~Ica, mas sempre sob o controlo do religioso que zelava das ilusões e das coisas duvidosas, está ele próprio sob a mais estrita
pelos s~us I~teresse~, ~omo que para dizer: ainda não acabaste? E vi vigilância enquanto exerce a sua. A polic!a emprega pes~oas .assim~
qUl~.satls['trIa o relIgIOSO que havia em mim ao tornar-me autor não escolheu, precisamente para este efeIto, homens cUJa .vIda fOI
re IgIOSO.
de uma honestidade isenta de toda a censura, teve apenas cmdado de
A Provi?ência.amar~a-me daí por diante; talVez na qualidade de escolher pessoas com experiências, astutas, intrigantes, avisadas,
pessha suspeIta, fm obn~ado a observar as mais rigorosas dietas. capazes de tudo farejar, de em toda a parte assinalar v~stígios e f~zer
Ten o c?mo regra consIderar que, quanto muito, me resta um
a~? de vIda; por. vezes, não raro quando é verdadeiramente neces- esclarecimentos. Assim, a polícia não vê invconvemente em tIrar
partido da .vita ante. acta, de um tal hom~~, ~marrando-o, para o
sano al~rgar a mmha ener~ia, vivo com oito dias à vista, e até sem obrigar aSSIm a aceItar tudo, numa obedIencla sem reserva e sem
ver maIS longe do que a Jornada. E a Providência amarrava-me levantar objecções a respeito da sua pessoa. Assim também p~ra
sob todos os .aspectos. Para a produção estética, não podia esquivar~ a Providência; mas uma infinita diferença a distingue da políCIa:
-m~,. no se~tldo de qu; a~abo I?o.r ter eu próprio a minha vida no na sua compassiva caridade, ele serve-se por a:nor de u~ tal homem,
estetIco. POIS, se o propno relIgIOSO não estivesse em reserva, «o salva-o e disciplina-o, utilizando a sua sabedona, q~e aSSImse enco~t~a
santificada e consagrada. Mas ele, na sua necessIdade de ser diSCI-
plinado, compreende que está submetido à mais incondicion~~a
dade
d' (74), pois não podia esperar nenhuma fundada , como , num País pequeno obediência. Está seguro de que Deus pode absolutamente eXIgIr
po Ia e~ contar com um contempodneo dispondo das condições requeridas e do tem ~ tudo de cada um, de maneira que importa resignar-se a tudo, sem
n~cess?ánop_araco~p~eend~r u~a produção com um carácter tão conscientemente in~i-
reserva; mas também está seguro de que a consciência dos desre-
~IOSO"~. n~o podia, mstrwr runguém directamente, porque eu fizera do silêncio um
. ever re I~~OS"O.Sera que alguém realmente, ao ler A Alternativa, teve por um único gramentos anteriores ~uda consideravelmente a adquirir, a este
Instante a I ~Ia de q.u~se tra~av~~e um autor religioso, ou que ele próprio, se acom- propósito, prontidão e flexibilidade (*).
panhou
com esteaand
mmha actlvldade
t literana,
. da se encontraria ' no fim de dois ou tre's anos VIVIos
" "d
amen o, no meIO produção cristã mais decisiva. (Nota de Kierkegaard)

(~) Ver-se-á aq~ a importilncia dos .pseudónimos> e porque tive de os adopta (*) Se se dissesse (e eu veria nisso uma observação sagaz): .Nestas condições,
nas mIn?as obras est~tlcas: a minha própria vida se fundava em categorias com leta~ sea tua maneira de te conceberes como espião é verdadeira, a tua. obra inteira é uma
buste udiferentes,"fie VIdesde
mente - o ,princípio
. nesta produção uma obra de espera, ump em- espécie de traição de misantropo, um crime de lesa-humanidade», eu responderia:
, ma pun caçao necessana. (Nota de Kierkegaard). Ah! com certeza, o meu crime é, com efeito, o de ter amado cristàmente. No uso da
menor parcela das faculdades que me foram concedidas, não procurei dizer (como o
quer, talvez, a fI1antropia) que o mundo é bom, ama. a verdade, quer o bem; que a
(73) Os de 1843: oc VI (SV 2 11 II-62). verdade é a exigência do tempo; que a humanidade é a verdade, se é que a verdade
. (74) Cf. Prefácio das Migalhas Filosóficas: OC VII (SV 2
Scrtptuum' OC X (SV VII ." IV. 199 ss). e d o P,ost- é a exigência do tempo; que a humanidade é a verdade, se é que não o próprio Deus;
. 7, VI ss), os dOISescritos assinados: Johannes Climacus. que, por conseguinte, se trata de contentar a sua geração (a de Goethe e de Hegel);

78 79
Contudo, é evidente que a cristandade se extraviou na refl~xão disso se vai aperceber antes de eu o dizer. Mas como em mim tudo
e sabedoria humanas. Não vale de nada recorrer ao pathos do Ime- é reflexão, este pensamento, naturalmente, não me escapou. Posso
diato, mesmo se a tal se consagrou a vida; o mundo dispõe de exces- representar a objecção feita por um escrúpulo pusilânime sobre o
siva reflexão e demasiada habilidade para não estar em condições dever de dizer a verdade, ideia que, em boa 16gica,leva ao completo
de reduzir a nada o papel de quem assim se decida. Hoje em dia, silêncio, com receio de enunciar qualquer falsidade e que, podendo
para ser útil, até o mártir deve ter reflexão, se quiser dominar a sua o silêncio ser também mentira, leva igualmente, por via de conse-
época de modo a mantê-Ia na expectativa e a fazer-se matar por ela quência, à f6rmula: faças ou não faças, guardes silêncio ou fales,
- para que se siga o ressurgimento. a loucura é a mesma. Mas uma ansiedade a confinar com a loucura
É assim que me compreendo na minha obra: ela to.rna patente passa por não ser uma forma superior de religiosidade. A suspensão
a ilusão da cristandade, e abre os olhos para a neceSSIdadede se teol6gica acerca da comunicação da verdade (que consiste em
tornar cristã. Ignoro se aí havia um tal grau de religiosidade que, calar provisoriamente algo para que o verdadeiro seja realçado)
para ele, toda a produção estética não poderia considerar-se como é o dever directo para com a verdade, e está implicada pela res-
uma purificação necessária, como uma piedosa fraude, mas como ponsabilidade do homem perante Deus no tocante à parte de reflexão
um objecto de arrependimento; nunca a entendi assim e ninguém que lhe foi dedicada.
No meu conhecimento do sofrimento interior relativo à neces-
sidade do tornar-se cristão, e estritamente educado neste sofrimento,
Pelo contrário, esforcei-me por exprimir que o mundo, se não é meu, é medíocre,
que «a exigência do tempo. é sempre loucura e miséria; que, aos olhos do mundo.
o outro aspecto da questão quase que se me escapou. Mas a Providên-
a verdade é um ridículo exagero ou uma bizarra superfluidade, que o bem deve sofrer, cia desvelou-se em cuidados, de tal modo que a continuidade dos
Esforcei-me por exprimir que a aplicação da categoria «de espécie. à humanidade, meus esforços me pôs verdadeiramente, com a minha causa, ao
sobretudo quando ela designa a mais elevada condição, é um erro digno do paganismo serviço do bem e que, se se comparam os talentos do espírito e um
porque a espécie humana não é apenas diferente de uma espécie animal pela superiori-
dade da espécie, mas pelo carácter hl4mano segundo o qual todo o Indivíduo (não um
instrumento de cordas, não s6 não perdi o diapasão, mas recebi ainda
espírito distinto isolado, mas todo o Indívíduo) é na espécie mais do que espécie, uma corda suplementar para o meu instrumento, o fruto de uma
o que diz respeito à relação com Deus (e que é o cristianismo, cuja categoria é exacta- educação mais completa no estado do cristão. Pois, uma vez que no
mente a do Indivíduo, tão escarnecida pela nossa respeitável época cristã), visto que momento decisivo alterei a minha posição existencial na altura do
a relação com Deus é muito mais nobre do que a relação com a espécie, ou do que a
Post-Scriptum definitivo, foi-me dado viver o que nunca se acre-
relação com Deus pela espécie. Eis o que me esforcei por demonstrar; não invectivei
nem lancei raios; não ensinei, mas fiz ver que a nossa época também se encontra numa ditará se não se tiver vivido, a verdade cristã de que uma obra de
triste confusão a respeito do bem e da verdade, do tempo e dos contemporâneos; amor está votada ao rancor. Em verdade, nunca deixei de ser um
esforcei-me por torná-Io evidente com toda a manha e astúcia de que dispunha. 1:0 grande e, de origem modesta, amei o homem comum, a classe
opor-me à concepção e à vida em que se ama a condição humana, de uma maneira
completamente humana e agradável ao homem, traindo Deus, cometi o crime de amar
popular, sei-o; na minha melancolia, encontrei eu a minha alegria
Deus e esforcei-me, por todos os meios, mas indirectamente, como espião, por tornar - e, no entanto, foi esta categoria de pessoas que foi excitada
patente esta traição. Ao admitir que tivesse disposto, com toda a liberdade, dos meus contra mim, fazendo-Ihes crer que era um grande. Se verdadeira-
talentos (sem que um outro poder pudesse sempre obrigar-me quando a minha vontade mente o tivesse sido, isto nunca me teria acontecido. Tive exacta-
se afastava do bem), teria então podido dirigir, desde o princípio, toda a minha pro-
dução de acordo com o interesse do tempo. Estive à altura de ser o que exigia o tempo
mente assim as proporções cristãs, numa medida suficiente para me
(se, aliás, esta traição não me tivesse exposto ao castigo de ser aniquilado); assim, se- permitir esclarecer o cristianismo sob este aspecto. Se, em vez de
gundo Goethe e Hegel, eu teria sido uma prova a mais, mostrando que o mundo me submeter ao juízo do cristianismo, se ligar ao dos homens,
é bom, que a espécie é a verdade, que os contemporâneos são a instância; que o público a afronta que podia ser feita à minha manera de viver s6 podia ser
é o mestre e o juiz da verdade, etc., porque, por esta traição, eu teria conhecido um
sucesso extraordinário no mundo, etc. Em vez disso, fui espião (e à força). Não há
esta: não me tive na devida conta, não procedi como um grande;
nisto nada de meritório e, verdadeiramente, não busco aí um motivo para me consolar do ponto de vista humano, falei irreflectidamente (mas, em lingua-
acerca da minha felicidade. Contudo, regozijo-me como uma criança por ter assim gem cristã, no temor de Deus); menosprezei e gl6ria e a consideração
servido, enquanto perante Deus sacrifico toda a minha actividade com mais vergonha do mundo; desprezando tanto quanto pude todo o renome que
e confusão do que uma criança restituindo aos 'pais aquilo com que a presentearam.
No entanto, em vez de lançar à criança um olhar amistoso, de entrar nas suas intenções
poderia ter no mundo, contribuí para abalar a do mlmdo em geral.
e de ver um presente naquilo que ela oferece, os pais terão a crueldade de receber o Como já disse, constataria na ordem que os grandes, as pessoas em
presente e de dizer: «É o nosso bem ?. Igualmente, no caso de Deus, Ele não é tão cruel evidência, me teriam sido, por consequência, um pouco favoráveis;
quando se lhe oferece o que lhe pertence. (Nota de Kierkegaard). e estou tanto mais reconhecido quanto o contrário foi, e é, o caso.
80 81
PVB-6
Mas que, por ter vivido como fiz, sej~alvo do ranco~ do homem ~o
povo, que, por não ter estado assaz dlstante, ~enha sld? a:acado, n:o
pelos grandes, mas pelo homem. comum, e a demenCla - e sao
estas as proporções cristãs.

Assim o objecto de toda a minha produção é a seguinte: na


cristandad;, tornar-se cristão; e tal é a parte da Providência ~ ~i~a
obra de escritor: ela submeteu o autor que sou a esta disclphna,
mas proporcionando-me a consciência disso desde o princípio.

EPÍLOGO

Ouço alguém dizer: «Que fizeste? Não vês, pois, que perdeste
aos olhos do mundo, dando publicamente estes esclarecimentos~.
Sem dúvida, vejo isso muito bem; perco aquilo cuja posse o cris-
tianismo considera como uma perda, todas as formas mundanas do
interessante. Perco a vantagem interessante de pregar a sedutora
malignidade do prazer, a alegria de viver, a alegre mensagem do
gozo mais refiniado da vida, a insolência da troça. Perco a vantagem
interessante de ser uma interessante possibilidade: a saber, se não
será possível que o representante tão caloroso e entusiasta da ética
seja exactamente o contrário, quer de uma maneira, quer de outra,
já que - e aí reside o interesse - é impossível dizer exactamente o
que é. Perco a vantagem interessante de ser um enigma, se esta defesa
do cristianismo levado ao extremo não é a forma de ataque mais
astuta. Perco a vantagem inteiramente, a que se substitui uma
outra nada menos que interessante, da comunicação àirecta, mostrando
que o problema foi e é o de tornar-se cristão. Aos olhos da multidão
e do mundo, perdi o meu carácter interessante, ao supor, aliás, que
me saio bem por este preço, e não vejo as pessoas furiosas pela
audácia com que um homem mostrou uma tal astúcia.
Sem dúvida, num sentido, o meu futuro irá regredindo (mesmo
se, do ponto de vista cristão, avanço). Iniciei-me como autor com
uma força imensa: um pouco secretamente, fui considerado como
um patife- mas, claro, apareci ainda mais amável, sobretudo como
personagem tão extraordinariamente interessante e mordaz. Esta
reputação era necessária, a fim de activar um pouco «a multidão»
dos cristãos. Mesmo para um santo, semelhante começo encerra
82 83
eo ipso uma renúncia total; pois no tempo de reflexão em que vive- tão extraordinário! Também isso o era. Se, de um ponto de vista
mos, depressa se riposta, e a própria morte do santo permanece inútil. estritamente estético, alguém me pedisse para avaliar a produçã.o
Não, na reflexão, é necessário fazer tudo às avessas.E foi assim que estética, não faria mais mistério: sei muito bem que obra prodUZI;
comecei. Estive então no meu mais elevado período relativamente mas acrescentaria que o próprio valor estético desta prestação assinala
à multidão e, como vivemos todos na cristandade onde todos são definitivamente aos meus .olhos toda a importância infinita do tor-
cristãos, em relação à multidão dos cristãos, à enorme multidão nar-se cristão. Do ponto de vista imediato, é de um modo total-
dos cristãos, a todos os leitores e a todas as leitoras de romances, mente directo que alguém se toma; mas, quanto a este tornar-se,
às pessoas cultas, aos belos espíritos, que são todos cristãos. a medida de verdade e de interioridade expressa pela reflexão é
justamente dada pelo grau de valor da reflexão de que se despoja.
Esteobservou
cristãos foi o começo. À medida- que
ou desconfiou e a avancei
opinião eé que o público
bastante falsa-de Pois não é por reflexões que se torna cristão, mas o tornar-se na
que eu não era talvez tão mau como isso, perdi cada vez mais o meu reflexão significa que se tem de rejeitar outra coisa; não se reflecte
público, e passei pouco a pouco para as aborrecidas categorias do no seio do estado cristão, reflecte-se num outro estado para tal se
bem - enquanto que, ao progredir a pouca distência nos meus tornar e, sobretudo, quando a situação é a da cristandade onde se
discursos religiosos, via com prazer que «este Indivíduo, a quem, reflecte a partir da aparência de ser cristão. A natureza deste outro
com alegria e reconhecimento, chamo o meu leitor (75)) se tornava elemento decide a profundidade e a importância do movimento
mais do que uma pessoa: uma categoria um pouco mais numerosa, da reflexão. O papel da reflexão e precisamente determinar o ponto
mas não certamente o público. E passei então a um pouco de acção de onde se sai para cristão se tornar. Eis aí a dificuldade, aumentada
cristã decisiva (76); fiz o que tenho consciência de ter cumprido relativamente ao valor e à importância daquilo que atrás se encontra.
pelo bem real da pequena Dinamarca, coisa que me alegrará sem Creio assim ter servido a causa do cristianismo, fazendo ao
reserva à hora da morte; atirei-me como vítima contra o levanta- mesmo tempo nele a minha própria educação. Aquele que, com
mento da população; o público viu então em mim um louco e uma estupefacção, foi considerado quase como o mais hábil (reputação
personagem bizarra, julgou-me quase como um criminoso; mas, alcançada com A Alternativa); aquele a quem de boa vontade se
claro, a minha conduta em nada era a de um patife ou de um malan- cedia o lugar como sendo «interessa~te»(primado ~econhecido c<:,m
dreco. - E, como se vê, não creio que se possa exigir mais de um A Alternativa), esse homem estava Justamente obngado ao s.erv~ço
espião. do cristianismo e tinha-se-lhe consagrado (*) desde o pnmelro
E, agora, já não sou nada interessante. Que a ideia fundamental momento, ao abordar a obra pseudónima. Essehomem precisame~te
de toda a minha obra seja realmente tornar-se cristão: que coisa mais lutava no seu interior e como autor para produzir a tese mUlto
aborrecida! E toda a história do Diário do Sedutor, (*) de um picante simples do tornar-se cristão.. O movimento não :vai ~a.simplicidade
para o interessante, mas do lllteressante para a slmphcldade, para o

(*) Psicologicamente, é bastante curioso, e isto merece talvez ser realçado, que uma
tornar-sedecristão:
crítico» toda a aqui
obra seque
situa
põeo Post-Scriptum
«o problema» definitivo,
e que, por o «ponto
ou.tro
pessoa em nome da qual lhe darei um lugar na minha companhia, que M. P. L. Mol- lado, graças a um~ esgrima indirecta e a uma dialéctica soc!átlca,
ler (77) tenha visto muito justamente no Diário do Sedutor o centro de toda a obra.
fere de morte «o SIstema»,pelas costas, numa luta contra o SIstema
Isto lembra-me de maneira viva a epígrafe dos Estádios no Caminho da Vida, precisa-
mente a obra sobre a qual se lançou, ou em que embateu, dela partindo para o juízo
e a especulação, a fim de que «o caminho» não vá do simples tor-
do Diário do Sedutor; na altura, fiz também referência a essa epígrafe numa pequena
réplica que lhe foi dirigida (78), mas que talvez convenha repetir aqui, porque se
presta a conservar à maneira de epigrama a lembrança das vantagens críticas e esté- (*) Esta consagração, que remonta muito atrás no tempo, levara a que eu, ainda
ticas que M. P. L. Muller retira da minha obra: «solcheWerke sind Spiegel: wenn que jamais chegasse a ser cristão, haveria de dedicar a Deus todo o meu tempo e todo
ein Affe hineinguckt, kann kein AposteI heraussehen» (Semelhantes obras são espelhos: o meu zelo, pelo menos para expor claramente a natureza do cristianismo e o ponto
quando um macaco nelas se mira, não pode ver um ap6stolo). (Nota de Kierkegaard). onde reina a confusão na cristandade; é um trabalho para o qual, no fundo, estou
preparado desde a minha primeira juventude. Era certanlente, aos olhos humanos,
uma corajosa resolução. Mas o cristianismo é uma potência excessivamente grande
para empregar, sem mais, a corajosa resoluçã~ de uIll; homen: (q,ue ,traduzia, també~
(75) Prefácio dos Dois discursos edifieantes de 1844: OC VI (SV 2 IV 81). é verdade, as minhas relações com o meu paI); por ISSO, o Clrstiamamo, ou a ProVl-
(76) Alusão à luta contra O Corsãrio. dência, tomou a liberdade de organizar a minha vida ulterior de tal maneira que nenhu-
(77) Trata-se do artigo já citado da revista Goea: cf. atrás n. 46. ma contestação, coisa que certamente não ocorria ao princípio, podia surgir, sobre
(78) Trata-se do artigo já citado do Fredre/andet: cf. atrás n. 46. a questão de saber se era eu que tinha necessidade do cristianismo, ou se este de mim.

84 85
nar-~e cristão ao Siste~a e à especulação, mas destes, regredindo,
ao sImples tornar-se cnstão, numa luta onde o Post-Scriptum se bate
com duros golpes para encontrar um caminho de retorno. Não se
trata aqui, pois, de um esteta anterior que a seguir se retira do mundo
mas de um homem que resolutamente se afastou do mundo e d~
s~a sa~e~oria. Há por isso, q~e atribuir-lhe longínquas e excepcionais
disposIçoes para se tornar cnstão: mas todas elas são de ordem dia-
léctica. Neste momento, ainda não sente qualquer necessidade de
ultrapassar o tornar-se
e da c.onsciênci:-,de estarcristão;
m0to com
longea da
ideia que tem
perfeição, nãodasente
sua tarefa
outra
necessIdade senao a de contmuar a tomar-se cristão.
Se agora o benévolo leitor l~u com atenção esta pequena obra,
sabe o que sou como autor (*). E assim que me apresento a mim
mesmo; s~ por acaso os meus contemporâneos não me compreen-
dessem, seJa;pertenço então à história, onde sei que encontrei o meu
lugar, e qual. Humilde diante de Deus, sei igualmente e ao mesmo
tempo ql;1eaqui o meu dever é o de não me calar, mas de o procla- CONCLUSÃO (79)
mar; pOIS, se há orgulho e suficiência em aproveitar-se de uma
vantagem, não há pior respeito humano, abominável a Deus, do
q?e ~ebai~ar-s~; do ponto de vist~ humano, sei que o fui (digo Nada mais tenho a acrescentar: quero apenas dar a palavra
hlst(l~ICe (hIstOrICamente],porque esta na mão de Deus mudar todos
~I a outro, o meu poeta, que, quan~o ~heg~r: me indicará o meu lugar
os dias o meu estado, e hoje mesmo); sei que (pelo que respeita entre os que sofreram por uma IdeIa; di~a: .
à geniealidade) o extraordinário me tocou em sorte.
«O martírio suportado por este escrItor pode, resumIdamente,
Comtoda
a present~ pequena descrever-se nestes termos: sofreu por ser tu:?-génio numa al~~o~a.
concluo a mmha obra obra, que também
anterior, pertence
e enfrento assimaoopassado,
futuro A medida de talentos, de aplicação, de desmt~resse, ~e sacnf~clo,
como o autor (não como autor, mas como o autor) de toda a minha de obsolutismo de pensamento, etc., que pratIcou. fOI demas~ado
obra: ignoro qual seja o futuro imediato; que será o seguinte grande para a média dos seus contemporâneos; pratIcou demasIado
o ~uturo_histó::ico"eis o que sei. Mas saiba o que souber a este res~ insensatamente a alta de preços, desprezou do mesmo modo o valor
peIto, nao, terIa lllSSOqu~lquer consolação se, ainda que humilde dos seus concidadãos, dando quase a impressão de que a al~e.ola
e arrependIdo, mas tambem confiante e crente, não fosse à frente e a maioria dos seus habitantes não tinham absolutum dOmlnlUm
do futu:o mais pró;ximo e a ca~a momento igualmente próximo: (soberania absoluta), mas que havia um,Deus. As pessoasconversaram,
a eternIdade. Se amda me estIver reservada uma vida bastante
primeiramente, algum tempo entre SI; argumentou-se a pe::d~r,de
longa, o tempo pode tudo arrebatar-me, e a posterioridade dar-me vista; perguntou-se porque havia estes talentos extraordman?s,
uma plena reparação: para falar verdade, nada tenho a perder nem porque é que ele continuava indepe1?-dentee porque dava ass~m
a ganhar;
me torneI?eo:perda,
aSSImum sepretender
ausente. ser um ausente, nem ganho, porque prova de um tal aplidação e a defen~a - falou-se durante mUlto
tempo sobre estas questões. (escanda~lzando-secom esta ou aquela
extravagância na sua maneIra de VIVer, qu~, para fal~r verda?e,
não era uma extravagância, mas um pro~edlmento ml;11toespecIal,
destinado a servir o objectivo da sua VIda) ~ conclwu-se, summa
summarum (em suma): é orgulho; tudo se explIca pelo seu orgulho.

(79) Encontram-se no Diário de Novembro de 1848 (Pap. IX A 298)_ e nos


(*) Porque é inteiramente natural que eu próprio tenha uma explicação rascunhos do Ponto de vista (pap. IXB 57) os elementos de uma outra conc1usaopre-
mais precisa e estritamente pessoal daquilo que me é pessoal. vista por Kierkegaard. (Nota de Kierkegaard).

86 87
E prosseguiu-se, passando da argumentação à acção. Porque há cidos, a recordação de ter permanecido fiel a si mesmo e ao seu
orgulho da sua parte, dize-se, toda a resistência secreta contra ele primeiro amor com o qual, humilde, não fez mais do que amar
toda ~,impudênci,a e todo o mau trato a seu respeito, são não s6
aquele que sofreu neste mundo, Ai~da que humilde, aproximou-se
permItIdos, mas amda um dever para com Deus; trata-se de castigar dos espíritos magníficos sem se esqUIvar,sem falsas vergonhas, por-
o seu orgulho. Ó aldeola inestinável, és verdadeiramente inestimável que a sua vida terrestre manifestou que a deles teve de testemunhar
quando vestes um longo vestido e tomas um ar de santidade, quando
te abandona~ a todos os repugnantes prazeres da inveja, da crueldade quer por um acaso, qu:r por um er~o, quer por uma falta de x.n~tu-
ridade porque conqUIstou ao servIço da verdade força, glona e
e da mentalIdade de ralé, pretendendo prestar culto a Deus. Mas, fama; 'encontrou por todo o lado o espírito e a inteligência, ao con-
«o seu orgulho»? Consistia nos seus grandes talentos? Pretendê-Io trário desses nobres espíritos que encontraram por quase toda a
seria censu~ar à av<;~e ouro o o~gulho do seu ado,rno ou o orgulho parte a animalidade e a incompreensão,
de o revestIr, ConsIstIa na sua aplIcação,etc. ?Imagmemos uma crian- «Contudo, encontrou também no mundo o que procurava:
ça educada muito austeramente que trabalha na aula com os seus
se ninguém ~ais o foi, ele próprio .f~i '? Indivíduo' e nele ,se :o~a
~ondiscípulos; não seria singular dizer que a sua aplicação, etc" cada vez maIS. ServIUa causa do cnstlanISmO; desde a sua InfanCla,
e orgulho, mesmo se os outros não a pudessem acompanhar? a sua vida a isso o levou de estranha maneira. Acabou por isso a obra
Mas não se depara com semelhante caso, porque a criança passa da reflexão; fez entrar totalmente nesta esfera, o cristianismo, o
então para uma cl~sse superior, Infelizmente, porém, para aquele
qU,ede tantas manelr;s :sta apto a passar para a classe da eternidade, tornar-se cristão, A pureza do seu coração fOI querer ape~as o
eXIste.apenas ?~a urnca classe, a da temporalidade, onde talvez Uno (82); a acusação levantada contra ;le pel?s ~eusco~temporaneos
lhe seja necessano permanecer durante muito tempo. que ele não quis rebater nem ceder, e o propno elOgIOque a pos-
teridade não lhe concede: quis rebater, não cedeu. Mas o seu ~ran-
. «T~I foi o m;r~írio Mas, foi também porque eu, o seu poeta, dioso empreendimento não o iludiu: enquanto que na qualIdade
VIo eplgran:a, ~ sa~ra que fOI,não esta ou aquela parte da sua obra, de autor dominava, graças à dialéctica, toda a situação com um ol,har
mas a sua VIdaInteIra; agora que todos os homens 'reais', com os
de conjunto, compreendia, graças ao cristianismo, que :udo ,1SS,?
quais não podia em nada suportar a compração, sobretudo quando
as 'pernas' (80) devem servir de medida, e ainda, não por ser animal, significava para, ele a x:eces~idaded: fa;zer ,a ~11~edl1caçao cnst,a.
mas por ser homen; agora que tanto os ossos (81) deles como os seus Não podia dedIcar a mnguem o ediflclO diale.ctIco que constrtl1;u
se transformaram em pó no. túmulo, e que chegou à eternidade e cujas partes separadas são já monument~s; amda n:enos ~ po.dia
atribuir a si próprio; se houvesse de ? dedIcar,a alguem, tena sId~
o,nde, in parenthesi, 'as pernas', esguias ou grossas, não são o essen- à Providência, à qual, não obstante, dIa após dIa, ano após ano, fOI
~Ial, onde, in parenthesi, ele está, Deus seja louvado, eternamente
dedicado pelo autor que, para o historiador, m~rreu de uma doen~a
lIvre da cO?Jpanhia dos animais: vejo, digo eu, que todos estes mortal, mas que, para o poeta, morreu do deseJ~ ardente da eterrn-
homen~ rea~s~ormam o acompanhamento indispensável; o curro, dade, por não fazer outra coisa senão dar contmuamente graças a
Deus».
~ cO,roInestlmavel
tencla, da que
as suas calças, aldeola que se agarra
se tornaram às coisasdo
'a exigência detempo';
sua compe-:.
for-
mam, de fa~to, ?m preço ,ainda mai~r, o coro que pretende ironizar
- sobre o IrOnIsta; de so pensar nISSO,ponho-me a rir alto. Mas,
por ele, consola-se na :ternidade por ter suportado estas coisas,
por se Ihes t~r voluntanamente exposto, sem ter, defendido a sua
causa por meIO de ilusões, sem se ter dissimulado atrás de alguma
mas ac~mulando, no s?frimento e no temor sapiente de Deus:
econormas para a etermdade; a recordação dos sofrimentos ven-

. (80) C? Corsário ridicularizava. Kierkegaard representando-o com as pernas


mwto esgwas e com umas calças cUJaspernas eram de comprimento desigual.
(81) e Jogo
•perna» .osso>de(N,palavras
T, fr.).a propósito de Ben, que significa ao mesmo tempo (82) Esta expressão é o leitmotiv de Um discurso de ârcunstdnâa, I:" parte dos Dis-
cursos edificantes sob diversos pontos de vista: OC XIII 5-148, em partIcular 27.

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