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JARRY, Alfred - Ubu Rei
JARRY, Alfred - Ubu Rei
São Martinho
LEI DE
!NCENTIVO
A CULTURA
MINISTÉRIO
DA CULTURA
M
FABER-CASTELL
Coleção Os grandes dramaturgos
Volume 19, 1a edição
São Paulo, 2007
TíTULO ORIGINAL
Ubu roi
© Copyright da tradução da Editora Peixoto Neto, 2007, para a edição
em qualquer mídia impressa ou eletrônica. Para a finalidade de encenação
ou para qualquer obra audiovisual, os direitos pertencem ao tradutor.
EDITOR
PATROCINADORES
João Baptista Peixoto Neto
COORDENADORA DA COLEÇÃO
Silvana Garcia
CONSULTORA
Sergio Flaksman
PREFACIADORA
Sílvia Fernandes
REDATORES
SuMARIO
PREFÁCIO
ISBN no LIVRO: 978-85-88069-24-4
ISBN DA COLEÇÃo: 85-88069-03-2 Alfred J arry 11
PREFÁCIO
ALFRED ]ARRY
SÍLVIA FERNANDES
siva nas vanguardas históricas. l Outros, como Denis Bablet, como se o dramaturgo depurasse e, em seguida, ampliasse os
vêem na obra a recusa total do teatro ilusionista e o triunfo da perfis humanos mais perversos com uma lente paródica, para
convenção, graças à projeção de uma cena que é a paródia de devolver ao espectador seu duplo monstruoso. É por esse moti-
si mesma, e retorna às fontes do teatro para desintegrá-las." Já vo que Abirached tem razão ao afirmar que Jarry concebe a mi-
Robert Abirached considera o texto de Jarry um dos j1recutc mese de forma inseparável da paródia. De fato, o ciclo Ubu, de,
sores do Teatro do Absutdo, graças ao humor avesso às leis da Paralipomedes de Ubu a Ubu cornudo (Ubu cocu, 1897), incluin-
lógica e da causalidade e à total derrisão dos pressupostos):a.- ,do Ubu acorrentado (Ubu enchaíné, 1900), as variantes Ubu so-
.cipllais, que antecipam procedimentos de dramaturgos como bre a colina (Ubu sur la butte, 1901) e os subprodutos, como os
Eugêne Ionesco, por exemplo. De fato, Jarry se aproxima do Almanaques do Pai Ubu (1899 a 1901), pode ser comparado a
autor de As cadeiras especialmente no poder anárquico de dis- uma máquina,de deslocar as aparências!
sociação do riso, destinado a inverter a lógica dos valores mais Para outros'críticos, como Bert Cardullo, a criação da perso-
caros à moral burguesa. Como observa o ensaísta, em Ubu nagem do tirano quase no princípio do século XX foi profética,
rei, pela primeira vez na história do teatro, o riso égg4~_~ especialmente levando em conta que ele sobrevive à revolta na
ra agredir e ofender os espectadores, em lugar de buscarslla Polônia graças à sua selvageria, que pode ser comparada aos "mas-
cumplicidade na crítica auma personagem aberrante.' sacres, genocídios e holocaustos das gerações subseqüentes".'
Sem dúvida, a figura do tirano anárquico é a personifi- Maurice Nadeau manifesta opinião sem~lhante quando
cação dos instintos mais baixos e das qualidades anti-sociais compara a figura de Ubu ao burguês de seu tempo, por sinte-
por excelência. Assassino do rei da Polônia, usurpador do tto- tizar traços como a covardia, a ferocidade"o cinismo e o des-
no, ditador que submete os súditos às maiores attocidades, não dém por todos os valores, o que o torna o "protótipo de uma
apresenta, entretanto, nenhum traço de verossimilhança que o classe de tiranos e parasitas". 6
aproxime de um ser humano real. Talvez o próprio Jarry tenha Como se vê, as leituras de Ubu rei são diversificadas. Con-
dado sua melhor definição ao considerá-lo "uma abstração que cebidas por vários analistas, assemelham-se, pela multiplicida-
c!ndà'. Pois Ubu não é uma figura composta nos moldes tra- de, à trajetória de criação da personagem, que permite pensar
dicionais, mas uma espécie de síntese animada de rapacidade, em processos precursores da criação coletiva no teatro. Na ver-
crueldade, estupidez, glutonaria, covardia e vulgaridade. E, no dade, o texto resulta da colaboração entre estudantes do Liceu
decorrer da peça, da usurpação do trono ao exílio na França, de Rennes, dedicados a satirizar, em esquetes de crueldade
exibe traços dessas paixões negativas quase em estado puro. É adolescente, um detestado professor de física, Félix Frédéric
Hébert. Quando, em 1888, Alfred Jarry entra para o liceu, to-
1 HENDERSON, John A. The first avant-garde (1887-1894). Londres: George G. ma conhecimento dos vários episódios de um roteito sucinto
H.ceap & Co., 1971, p. 126.
2 BABLET, Denis. La mise en scene contemporaine 1-1887-1914. Paris: La Renais- 4 ABlRACHED, Robert. Op. cit., p. 192.
sance du Livre, 1968, p. 42. 5 CARDULLO, Bert e KNorF, Robert (ed.). Theater ofthe avant-garde.1890-1950.
3 AB1RACHED, Robert. "Une abstraction qui marche", ln: La crise du person- New Haven/Londres: Yale University Press, 2001, p. 78.
nage dans le théâtre moderne, Paris: Gallimard, p. 191. 6 NADEAU, Maurice. História do surrealismo. São Paulo: Perspectiva, 1985, p. 73.
14 Prefácio 15
organizado pelos irmãos Morin a partir desses improvisos. Na ções de Jarry. O que não impede que estudiosos do porte de
época em que chega a Rennes, Charles Morin, o mais velho, já Henti Béhar, importante teórico dos movimentos dadaísta e
havia ido a Paris para cursar a Escola Politécnica, mas Henri, surrealista, refira-se a Ubu rei como uma "criaçãocoletiva de
o caçula, será seu colega de curso e é quem lhe passa o manus- várias gerações de es~uciantes de Rennes, que d,-ega ~ nós com
crito da peça. O jovem iconoclasta toma posse das cenas bre- toda acrueldade, a ingenuidade, a esplêndida insolência e 0,
ves e mal alinhavadas e acentua, com traçado sucinto de car- pod~r d~ subversão da infâncià' /
tunista, a figura detestável do tirano, destinado a protagonizar De qualquer forma, a paródia tem o traço inconfundível
uma verdadeira gesta, narrada, mais tarde, no ciclo completo de seu autor. E o primeiro objeto do deslocamento que opera é
de textos e almanaques, e comentada em manifestos teatrais. o próprio teatro. Tudo se passa como se as cenas de Ubu sedes-
Com o título de Os poloneses, o roteiro inicial da futura dobrassem por meio de um sistema interno de alusões, citações,
epopéia bufa mostra as aventuras cruéis e anárquicas de Pai alterações e jogos de imagem, em que o dramaturgo mobiliza
Heb, corruptela do nome do professor, que, nessa fase de ela- uma vasta memória cultural para submetê-la à crítica mais cor~
boração, também aparece como P.H., Ébé, Ébon ou Ébouille. rosiva, seja por simplificá-la até o absurdo, seja por denunciá-
Na primeira versão já é evidente a paródia a Macbeth, de la como forma vazia. Além da referêriciaà trama de Macbeth, o
Shakespeare, pois a personagem amoral usurpa o trono da próprio título da peça prenuncia o jogo anárq',lico que está por
Polônia com o auxílio da mulher, a Mãe Ubu, e se dedica a vir, evocando nada menos que Édipo rei, de Sófocles.
toda série de crimes e desmandos. O pequeno texto foi re- De fato, reduzido a sua estrutura básica, Ubu rei repro-
presentado diversas vezes na residência dos irmãos Morin, em duz um dos esquemas mais freqüentes da; tragédia: o assalto
Rennes, pelo "Théâtre des Phynances", ou seja, o pequeno tea- ao poder legítimo por um pretendente à coroa, a exposição de
tro de marionetes de Jarry e Henti Morin. suas maquinações e seu triunfo por meio da astúcia e da força.
Em 1891, já estudante do Liceu Henti IV, de Paris, e con- Além disso, uma leitura mais atenta mostra que o texto paro-
vivendo com a nata da intelectualidade francesa, especialmen- dia procedimentos familiares à composição dramática, imitan-
te o círculo simbolista, Jarry organiza, em sua casa, apresenta- do as técnicas básicas de exposição e desenvolvimento. A ação
ções da peça Os poliedros (Les Polyedres) ou Os cornos do EH (Les principia pouco antes do momento decisivo, uma série de pe-
cornes du EH), que mais tarde se converteria em Ubu cornudo ripécias assegura a progressão constante, a catástrofe e a reso-
(Ubu Cocu). A partir dessas apresentações informais para um lução da crise são enfatizadas, e resultaram em um final pró-
círculo íntimo, em que se incluíam o amigo Léon-Paul Fargue e ximo do melodrama. Além disso, Jarry lança mão de todo um
a escritora Rachilde, faz importantes revisões no texto, até che- arsenal de recursos dignos de um compêndio dramático tradi-
gar a uma formalização mais próxima da versão que estréia no cionál: sonhos, aparições, mensageiros, deliberações, complôs,
I'Oeuvre, com o nome definitivo da personagem: Pai Ubu. combates, nada falta à trama paródica, desenvolvida por meio
Na seqüência de transformações e adaptações que sofreu,
é evidente que o roteiro inicial dos Morin foi assumindo as fei- 7 BEHAR, Henri. Sobre el teatro dada y surrealista. Trad. José Escué. Barcelona:
Barrai, 1971, p. 34.
16 Prefácio Ubu rei 17
de diálogos, monólogos, apartes líricos e oratórios, sem esque- ximas absurdas, termos inventados e outros recursos que ins-
cer as tiradas pseudofilosóficas, Para sacá-las, Ubu recorre à { ~~~~~~ -~~-~--~spéd_-e de "primidvismo deliberado", um fumor
sua consciência, que permanece fechada numa mala, original que, em certo sentido, se aproxima das propostas de
No ótimo apontamento que faz das características do tex- Anronin Artaud para a cena da crueldade, Palotin (palotino),
to, Robert Abirached não esquece de mencionar as brincadeiras por exemplo, é a montagem da palavra palatin (paladino) com,
colegiais, os flertes com o vaudeville e a ópera-bufa, as malícias palot (boçal), Outra violência verbal é a sarcástica distribuição
eruditas, Segundo o teórico francês, ao usar tais procedimentos, de especialidades a certos objetos, como o tambor-dos-nobres,
Jarry explode a noção de racionalidade e submete os elemen- que anuncia a chegada da nobreza, o gancho-dos-nobres, des-
tos que mobiliza a uma proliferação indiscriminada, que des- tinado a arrastá-los para o alçapão, e, finalmente, a faca-dos-
trói os princípios de causalidade e não-contradição, as estrutu- nobres, usado ,para exterminá-los, Um dos exemplos mais fa-
ras de tempo e espaço (a peça se passa na Polônia, ou seja, "em mosos da transformação de vocábulos comuns em inusitados
lugar nenhum"), os imperativos da consciência moral, as regras é a corruptela da palavra "merdà' (merde), que ~ofre uma leve
imemoriais da vida em sociedade, Além disso, unindo uma ce- distorção para transformar-se em "merdrà'cf~~~J;;i), Não por
na à outra não há encadeamentos plausíveis, mas uma técnica acaso, essa é a,primeira I'alavra 'lue Ubu pronunQa no texto,
inovadora de justaposição e colagem, típica das vanguardas, que e sem dúvida funciona como prenúncio da postura escatológi-
ressalta ainda mais o absurdo do comportamento ,das persona- ca e da truculência cômica que acompanhárão a personagem
gens, avessas à lógica mais primária, Para o analista, ao ressaltar em todas as suas intervenções, durante os cinco atos e as trin-
a avidez de Ubu, Jarry sublinha a força irrepreensível dos instin- ta e três cenas da peça,
tos, cuja única jusrificariva são as necessidades primárias do es- Em geral, os críticos costumam responsabilizar o inedi-
tômago, Não por acaso, cornegidouille (cornupapança) é a pala- tismo do palavrão no palco pelo imenso escândalo que mar-
vra cunhada por Jarry para expressar as maiores fontes de poder cou a estréia da peça no Nouveau Théâtre, sede do l'Oeuvre
de Ubu, os cornos e o ventre monstruoso, sede dos "apetites in- na época, De acordo com os relatos, quando o ator Firmin
~
-.!) feriores", De fato, as decisões insensatas, as mudans:",impreyi- Gémier, intérprete de Ubu, pronunciou o "merdre" inicial, foi
C;
síveis de atitude, os saltos repentinos de hum_or,todQ>_oS_C9Ql- emudecido por quinze minutos ininterruptos de vaias e apu-
!1 [L'
l" portamentos da personagem parecem ditadosp,elos capsichos pos comparáveis ao escândalo da primeira representação de
de uma energia primitiva, irrefreável, que a COnduza uma tra- Hernani, de Victor Hugo, em 1830, que marcou o início do
vessia delirante da história e da geografia, marcada pelogr()tes(;o Romantismo nos palcos franceses, Sem saber como controlar o
e pela destruição, No final da peça, apesar de vencido e destro- público, o celebrado ator do Odeon improvisa passos de dança
nado, Ubu parece estar pronto para novas aventuras, 8 até cair sentado na caixa do ponto, o que faz a platéia rir e per-
Um do~ principais meios de provocação dapeça é o uso mite que a apresentação continue, Mas não por muito tempo,
particular que Jarry faz das palavras, com o empreg~-d~~'á~
• - ____ "_ - - __ - - - - '" •___ 'H'_' __ '" ____ '_~~.
pois logo as vaias ressurgem com maior intensidade, Na diver-
tida reconstituição que faz do episódio, Roger Shattuck men-
8 AmRACHED, Robert. Op. cito
18 Prefácio Ubu rei 19
ciona O pandemônio que se instalou no teatro, com os parti- que, e da pouca fluência em francês, que deve ter prejudicado
dários de Jarry aplaudindo delirantemente, enquanto os ad- sua compreensão do texto, Yeats conclui as observações com-
versários assobiam e apupam, repetindo, desta vez sem o r, a parando os artistas simbolistas à criação de Jarry:
palavra de ordem de Ubu no palco." O crítico menciona agres-
Depois de Stéphane Mallarmé, depois de Paul Verlaine, depois
sões físicas no fosso da orquestra, espectadores em pé nas pol- de Gustave Mareau, depois de Puvis de Chavannes, depois de ,-
tronas, punhos erguidos e expedientes desesperados de amigos nossos próprios poemas, depois de todas as nossas cores sutis e
do autor, como Ferdinand Hérold, que, nos bastidores, acen- nosso ritmo hipersensível, depois de nossos tons pálidos mes-
de as luzes da platéia para tentar conter os ânimos. Quanto clados de Cander, o que ainda é possível? Depois de nós, o deus
selvagem.
aos críticos, ficaram divididos. De um lado, contra a peça,
colocavam-se os mais tradicionais, como Henry Fouquier, do Segundo Shattuck, o deus selvagem de Jarry inaugu-
Figaro, e Francisque Sarcey, do Temps, adepto mais ferrenho rou o reino do terror na literatura dramática. De certa .for-
das "peças bem-feitas", que não suportou assistir à representa- ma, Frantisek Deak, o mais importante teórico contemporâ-
ção até o final. De outro, aplaudindo, o critico Henry Bauer neo do Simbolismo teatral, concorda com Shattuck, ao refe-
do jornall'Echo de Paris, o escritor Edmond Rostand, sorrin- rir-se a Ubu como uma figura de origem satânica, um repre-
do com indulgência, e o poeta simbolista Stéphane Mallarmé, sentante da violência absoluta, feito sob medida para a temá-
sentado calmamente, observando a "personagem prodigiosà' tica apocalíptica da peça. Deak reforça suas opiniões recorren-
a que se referiria em carta endereçada a Jarry na manhã se- do a César anticristo, texto do autor publicado em 1895, cujo
guinte, em que trata o dramaturgo como um "escultor sóbrio terceiro episódio - o "Ato Terrestre" - é uma versão reduzi-
e dramático". Quanto a CatuIle Mendes, o influente articulis- da de Ubu rei, editado um ano depois. No contexto da tra-
ta do le Journal, elogia o espetáculo em crítica entusiasmada, ma, Ubu é concebido como uma deformação da natureza hu-
em que destaca o tipo criado pela "imaginação extravagante e mana, um dllplo terrestre do anticristo destinado a dominar
brutal de um homem quase criançà' (Jarry tinha apenas vinte o mundo e submetê-lo a seus instintos bestiais. De fato, a lei-
e três anos), uma "máscara infame" composta de Polichinelo tura da peça comprova que o estranho efeito causado pela fi-
e Punch, e destinada a tornar-se uma lenda popular. Também gura de Ubu não é apenas cômico, mas de alucinação e pesa-
estava presente na estréia o jovem poeta inglês William Burler delo. De acordo com Deal" esse traço ubuesco permite que se
Yeats, que registra suas impressões sobre os atores, conside- considere Jarry o inventor de um modelo de vanguarda basea-
rando-os quase marionetes, e sobre a personagem principal, do na compreensão do teatro como realização de visões apoca-
"uma espécie de rei que tem como cetro uma vassoura como lípticas. E conclui: "Esse modelo mostra que as preocupações
essas que se usam para limpar banheiros". A despeito do cho- metafísicas, místicas e proféticas são importantes para a defi-
. ~ d a arte d e vanguard"
mçao a. LO
9 o relato que se segue, incluindo as opiniões dos críticos, foi elaborado a partir
do livro de Roger Shattuck Les primitifs de l'avant-garde, versão francesa de
The banque! years, tradução de Jean BorzÍc e edição da Flammarion, 1974, pp. 10DEAK, Franrisek. Symbolist theater. The Johns Hopkins University Press, 1993,
228-31. p.245.
20 Prefácio Ubu rei 21
No mesmo ensaio, Deak coloca em xeque o motivo e a ex- desenrola na casamata das fortificações de Thorn (cena V, Ato
tensão do escândalo da estréia de Ubu rei. Para o critico, o públi- IV), quando Ubu vai visitar o capitão Bordadura, que man-
co de convidados - intelectuais, artistas, poetas, músicos, ami- tém prisioneito.
gos - não tinba motivos para se escandalizar de tal forma com
Para substituir a porta da prisão, um at?!J)-=~~~~_~_:_~ _ ~,?J?_~~
a palavra merdre, a despeito do ineditismo do palavrão nos pal- ~omo- braço -esg~~r~oe~;t~~Cfo~-Eu-colocava a chave em s~a_ i
H
cos da época. Afirma, inclusive, amparado em rigorosas pesqui- ~[ocôm~-~e-Jos;~-~ma f~chadura. Fazia o ruído, crie-crae, e g,t-
sas documentais, que encontrou poucas referências aos quinze ~;~a seu braço como se -aofisse a porta. Nesse momento, sem 11
minuros de vaia mencionados por vários historiadores. De acor- dúvida por -adlar que a brincadeira tinha ido longe demais, o ii
público começou a urrar, a se enfurecer: de todo: os lados ,par-
do com o ensaísta, os minutos lendários teriam sido prolonga-
tiam gritos, injúrias, vaias acompanhadas por diversos rUldos; li
q
dos pela imaginação cúmplice de Rachilde, que todos conside-
1,li
logo, sqb mil formas, o protesto era de tal ordem que eu ~un
ravam fonte digna de crédito, não apenas por ser confidente e ca vira nada comparável. Aquilo ultrapassava tudo o que rrtmha
amiga de Jarry, mas também por figurar com destaque no cír- experiência conhecia. E essa experiência eu havia adquirido em I!
peças de vanguarda muito mal acolhidas. I I I'
culo literário francês, além de estar presente na polêmica apre- í'
sentação. O fato é que o estudioso duvida da veracidade do re-
Levando em conta essa série de rupturas, e conhecendo o
lato de Rachilde. Para Dealc, o escândalo de Ubu estaria mais li-
depoimento de Gémier, Deak conclui que o escândalo de Ubu
gado a problemas estéticos que morais. As inovações formais da
deveu-se menos à palavra merdre que à invenção de uma no-
encenação do I'Oeuvre, pela primeira vez consciente de si mes-
va linguagem teatral.
ma no uso dos recursos abertamente teatrais e antiilusionistas
requeridos pelo texto de Jarry, seriam as grandes responsáveis Historicamente, a encenação de Ubu rei, em combinação com
os escritos teóricos· de Jarry sobre a produção, resulta na rein-
pela insurreição dos espectadores. O exército representado ape-
ven~ão de um certo tipo de teatralidade. Jarry reafirma a auto-
nas porumsoldado, os cavalos depapeliop-elldllrad(}s~º:g~~ nomi~ do palco e a conecta a gêneros teatrais populares, mos-
~"Oço~de Ubu na cena da guerra, a atuação estiIizªda~dod"nco, trando uma nova direção para o teatro de vanguarda. Esse ca-
que imita ges~?~ ~~~~.~~?_s, _ d~ _ !!1:~~~~_~1~§_~ ..r~_ÇQ1T~_<!J!m.a__çQ_~.: minho do Simbolismo para a nova teatralidade será percorrido,
po~ção;';()caI inusitada, adequada a cada papel, o us()4e_lllás- posteriormente, por muitos encenadores do século XX, entre os
cl~as,(}sc<:lláÍ:i();sintéticos.enão ilu~i()nistas(ob~;dos pint()- quais Meyerhold e Reinhardt. 12
res Bonnard, Séru~i~r;VtÍillard, TotÍlouse:L;utrec, Ranson e do De fato, não apenas a encenação de Ubu, mas também os
próprio Jarry), os ca~az.e"jl14i~anc!o(}Illgar4"~,,窺, todas essas manifestos e as cartas de Jarry são a definição e a ampliação da
~oluçii~JJPunlLa.ffi~seJrºj1tiJJ!Dente~à . est"tiça.teatt:al_c!a~P9ca, teatralidade do texto. As primeiras idéias para a cena ubues-
mesmo considerando as conquistas da cena simbolista. ca aparecem na carta que o dramaturgo endereça a Lugné-Poe
A impressão de Deak é corroborada pelo relato de Firmin
11 GÉIVllER Firmin. "La creation d' Ubu Roi" .. E:~~~~~t,u;:e;~lj1:a,~-ª-PQ~.~º~!:.Y~}~:!!~,
Gémier sobre a turbulenta noite de estréia. O ator afirma que piibIi~aJa-·~-o-&c~Ei;-;-em-,fae-nove~b~~- d~ 1-92' e reprod~zida em Thédtre. Revue
a hostilidade do público começou, realmente, na cena que se Programme, nO 7, Reims, Centre Dramatique National de Rcuns, 1980, p. 30.
12DEAK, Frantisek. Op. cit., p. 237.
22 Prefácio Ubu rei 23
em 8 de janeiro de 1896, onze meses antes da estréia da peça, quem consiga imaginar uma personagem sem correspondente
em que apresenta seu texto ao diretor do rOeuvre e lhe suge- na vida cotidiana. Essa personagem única, abstrata, deve fun-
re diversas soluções para a montagem. Lugné considera-as ex- cionar como síntese complexa de diferentes caracteres e, por is-
cessivamente radicais e só não desiste do projeto por interfe- so, os_ at<?re~ que forem representá-la necessitam usar _máscara"
rência de Rachilde. Entre as sugestões de Jarry, já figuram, por além de adquirir "a voz do papel", para atingir mais facilmen-
exemplo, as máscaras para os atores e o cavalo de p<ljJelão pre- te a completa iml'essoalidade.. Além disso, para Jarry, é o prota-
~2aopesc()ç(}(leUbu "como no antig;re-;;tt;'-ingiês" ,'alé~ de 'g;ni;ta da peça quem deve determinar todo o espetáculo, d~s
outros detalhes que, segundo o dramaturgo, estão de acordo de os antagonistas até os cenários, todos submetidos a seu cIr-
com o espírito da peça, pois pretende "fazer um teatro. de ma- culo de influência e, se possível, criados a partir de princípios
rio_n"~~~,,. Outros recursos usados na ence~çi;'de iug~é~ P;e abstratos de construção. O resultado da proposta, ousada pa-
também aparecem na carta de Jarry, como o ator que deve exi- ra a época, é que a personagem Ubu passa a gozar de autono-
birc"rtaz"sn~palco indicando olugar da'ação, as cenas cole- mia, criando sua própria história e seus adversários por meio
tivas represeJ"ltadas p';r um único protagonista, além do ':<!çe;:;- de intrigas e peripécias que surgem e sedesfazem segundo seu
to"esl'ecial para cada personagem, uma espécie de musicalid~ capricho. Para permitir que Ubu enfrente a armada polonesa,
~ejJf,ó1'!iaquedeveclistinguHadas demais: Quanto aos fi~ passe suas tropas em revista, atravesse a Livônia com seu séqüi-
rinos, Jarry exige o mínimo possível de cor local ou histórica, to em fuga ou converse com sua consciência, é suficiente, pa-
a fim de acentuar a impressão de algo eterno, para que o dra- ra Jarry, criar uma contracena precária e esquemática, que fim-
ma pareça "mais miserável e horrível". ciona apenas para aquela situação. Como observa, com razão,
Os princípios dramatúrgicos e cênicos são retomados e Abirached, Ubu escapa às leis da vida humana exatamente por-
ampliados no artigo teórico mais famoso do escritor, "Da inu- que seus móv,is de ação são as necessidades primárias da hu-
tilic\ade _cl2J:.Eêatro }]9 teatro.':, publicado no Mercure de France manidade, levadas, entretanto, ao grau mais extremo. O medo,
em setembro de 1896, com a clara intenção de preparar o pú- o desejo e o instinto de conservação em estado puro só podem
blico para a encenação do rOeuvre. Dentre os princípios re- ser protagonizados por silhuetas estilizadas, atemporais, dispa-
cidivos está a, afi!tIlaT~o do teatro enquanto teatro e a neg,,!i- ratadas, estereotipadas como as figuras da peça. "~eJ'res,etltadas
,,",-de.<>fer"cer no palco- qualquer tipo de ilusão de xealidad~ ou não "p()f marion,etes, _essasperson_~gen~ Co!?p(~rtam-se como
Ainda que s~- ap61eem certas premissas de autores simbolistas, i;';nec';snÍanlpllfados por uma mão invisível, que os controla
ü como Maeterlinck, o dramaturgo reabilita, contra eles, a auto- com um fio: das marlol!e~es, têm os movimentos trucado_~,_ü
Q)
nomia da teatralidade e sua liberação das funções representa- tom flauteado e a feérica insensibilidade."l3
J-
tivas. Trata~~e!Erillcipallll"tl!.e"dadefesadoartif(çio_ecl'!-'::(}I1_ Na noite seguinte à primeira apresentação da peça, no dia
cepção da personagem como uma máscara autónoma, libera- 11 de dezembro de 1896, o público francês assiste à última
Aa<1aspretensoe(ªeIécríãç~(j-q;;'imserlil.t;"an';t~~CP';ti;o apresentação de Ubu rei no Théâtre de 1'0euvre, depois de ter
Jarry afirma, no mesmo ensaio, que só deve escrever para teatro
13ABTRACITED, Ro~ert. Op. cit., p. 189.
24 25
Prefácio Ubu rei
ouvido uma palestra de Jarry apresentando a obra, em que re- como define Shattuck, ou uma maneira de "descobrir ~,-!<eis
toma alguns pontos de seu manifesto. que regem<is,exceções, para explicar o Univer;;-;uplemetltal',
O texto é remontado quase dez anos depois pelo mes- aeacordo~com Jarry, a pataphysica é comparável ao estado que
mo Gémier, em 1908, e pelo encenador Lugné-Poe, em 1922, se produz no sonho. A verdade é que a aplicação de seus prin-
com acolhida fria no primeiro caso e fracasso no segundo. No cípios transforma a vida do dramaturgo em algo semelhante ,
entanto, a má recepção não diminuiu o entusiasmo dos sur- a uma ficção teatral, que acaba por levá-lo ao abandono com-
realistas com o texto. Pois, nesse momento, a obra de Jarry é pleto da realidade, em favor de um mundo de alucinação. A
objeto das primeiras recuperações, especialmente por parte de passagem é facilitada pela bebida e pelo consumo do absinto .e
~dré Breton, um de seus maiores defensores e divulgadores. do éter, que inicia logo após a morte de sua mãe, o que expli-
E bastante significativo que, pouco depois, em 1926, quando ca em parte o estado de completo delírio em que termina seus
Robert Aron, Antonin Arraud e Roger Vitrac decidem criar !
dias, quando abdica totalmente da própria personalidade'pa- I
uma nova companhia de teatro, resolvem batizá-Ia com o no- ra transformar-se em um outro, adotando um comportamen- i1
me de Alfred Jarry. to transgressor e autodestrutivo que Shattuck compara à ima-
Nesse momento, a fama do excêntrico escritor de Laval já gem contrafeita de um Fausto.
é considerável. Morto prematuramente aos 34 anos, em um De qualquer forma, a simbiose entre arte ~ vida faz parte
sanatório de Paris, em meio a inúmeras privações, talvez Jarry de uma estratégia mais ampla de ação, iniciada pelas vanguar-
tenha sido um dos primeiros representantes de uma das práti- das, que coloca Alfred Jarry no centro de um debate extrema-
cas mais radicais das vanguardas do princípio do século XX, ao mente contemporâneo, quando performers fazem de suas bio-
permitir que a criação ficcional contaminasse sua vida, a pon- grafias fonte de criação, atenuando a máscara ficcional a pon- li
to de referir-se a si mesmo, nas últimas cartas, como o próprio to de, muitas vezes, colocarem em questão os próprios funda-
Ubu. Como observa André Breton, a partir de Jarry a distân- mentos do ato' de representar, por meio de recursos autobio- !
cia entre arte e vida será contestada, para terminar negada em gráficos e inserções do real nos processos ficcionais.
~~seus princípios. Ubu rei tem uma carreira bem-sucedida nos ]Jalcos lIlO-
\ A excentricidade do artista era famosa nos círculos boê- dem;s ~-c;;-nt~~porineos.Jean Viia~,~Je;n-Louis BarrauJt,
mios de Montmartre, que reconhecia a figura pequena, com Georges'Wilson ,Peter Brook, para citar os di retores mais fa-
calças apertadas em meias de ciclista, pedalando a inseparável mosos, encenaram apeça com adaptações e supressões, conti-
bicicleta pelas ruas do bairro, não raro declamando trechos de nuando a obra em progresso iniciada por Jarry. A montagem
suas peças com voz de falsete e acento inconfundível, imitado de Brook estreou no Théâtre du Bouffes du Nord, em Paris,
~or Gémier na criação original de Ubu. Nesse período, Jarry em 1977, com Andréas Katsulas no papel de Ubu e MicheIle
desenvolve a pataphysica, "método das soIUç õ esifl1ªgi[lárji!§" CoIlison como Mãe Ubu. Preservando sua simplicidade pro-
que aplica, simultaneamente, à vida e à dramaturgia, duas fa- verbial, o diretor eliminou as máscaras e os figurinos, conser-
ces de uma mesma máscara. Um "modo de desrazão razoável", vando o mínimo de elementos cênicos. A cena mais comen-
26 Prefácio Ubu rei 27
tada pelos criticos foi a do exército russo, feita com balões de ro e da primeira década de trabalho da equipe, estreando no
J2á~,. solução ingênua que dava ~ p~~a ~~-c~rá~~; de j~~ Teatro Sérgio Porto, no Rio de Janeiro. Com cenografia de
fantil bastante apropriado à origem do texto. Brook conside- Hélio Eichbauer, a montagem unia o conceito de supermario-
ra a sátira feroz e a caricatura grotesca de Ubu uma atualização nete de Gordon Craig às propostas de Jarry e embaralhava os
das tradições populares agressivas e primitivas, presentes, por limites entre o teatro de atores e o de bonecos.
exemplo, no teatro elisabetano. 14 As apropriações recentes provam que Ubu rei continua
Em São Paulo, a primeira montagem de Ubu rei foi cria- sua história de transgressões, ainda que seu protagonista te-
da pelos alunos da Escola de Arte Dramática (EAD) em 1958, nha perdido muiro do caráter diabólico, graças à competição
com tradução e direção de Alfredo Mesquita. Em critica do es- desleal da cena contemporânea. De todo modo, a personagem
petáculo, Décio de Almeida Prado menciona as adaptações do derrisória ainqa sobrevive no equilíbrio precário entre a con-
diretor e observa que o trabalho, de modo geral, privou a peça venção e seu duplo, preservando o "mimetismo invertido" das
de seu lado mais feroz e intransigente. Ainda, vê na montagem máscaras universais.
certo aspecto de brincadeira de estudantes e pergunta: "Ubu
rei, entre outras coisas, não será também essa inconseqüência
e essa irresponsabilidade?" 15
Sem dúvida também é. Não por acaso, uma das encena-
ções mais iconoclastas do texto foi realizada pelo grupo cario-
ca Asdrúbal Trouxe o Trombone, em 1976, e funcionou co-
mo preparação para as futuras criações coletivas, especialmen-
te a mais famosa delas, Trate-me Leão. É interessante constatar
a atração que a peça exerce sobre coletivos de teatro, que pare-
cem interessados em dar continuidade à crítica corrosiva dos
alunos de Rennes, reescrevendo o roteiro para mirar alvos mais
próximos. Outra equipe paulista, o Teatro do Ornirorrinco,
em atividade até hoje, montou Ubu rei em 1980, com direção
e interpretação de Cacá Rosset, numa criação memorável da
personagem Ubu, que unia as várias versões da peça a propos-
tas de Eisenstein, especialmente a "montagem de atrações".
Mais recentemente, em 1996, o grupo Sobrevento ence-
nou Ubu rei em comemoração conjunta dos cem anos do tex-
14 BROOK, Peter. O teatro e seu espaço. Petrópolis: Vozes, 1970, p. 67.
15 PRADO, Décio de Almeida. "Ubu rei". ln: Teatro em progresso. São Paulo: Martins
Editota, 1964, p. 111.
DISCURSO DE ALFRED ]ARRY
Pronunciado na estréia de Ubu rei no Théâtre de l'Oeuvre,
dia 10 de dezembro de 1896, epublicado em jàc-símile no tomo
XXI de Vers et Prose (abril-maio-junho de 1910).
Senhoras, senhores
Seria supérfluo - além do certo ridículo de um autor fa-
lar de sua pr6pria peça - eu vir aqui preceder de algumas pala-
vras a encenação de Ubu rei, depois que pessoas mais not6rias
já se dignaram a dela falar, pelo que lhes agradeço, e, com eles
todos os outtoS, os senhores Silvestre, Mendes, Scholl, Lorrain
e Bauer, se não acreditasse que sua benevolência tenha visto o
ventre de Ubu mais repleto de mais símbolos satíricos do que
pudemos inflá-lo para esta noite.
O swedel1horgiano dr. Mises comparou excelentemen-
te as obras rudimentares às mais perfeitas, e os seres embrio-
nários aos mais completos, mostrando que aos primeiros fal-
tam todos os acidentes, protuberâncias e qualidades, o que
lhes deixa a forma esférica ou quase, como ocorre com o 6vu-
lo e com o senhor Ubu, acrescentando-se aos segundos tan-
tos detalhes que os tornam pessoas que adquirem, de manei-
ra similar, uma forma de esfera, em virtude do seguinte axio-
ma: o corpo é mais polido tanto maior a quantidade de as-
perezas que apresente. Eis por que as senhoras e os senhores
têm a liberdade de ver no senhor Ubu as múltiplas alusões
que quiserem, ou um simples fantoche, a deformação jocosa
30
AlfredJany Ubu rei 31
de um dos seus professores que representasse todo o grotes- fim de ocupar o palco. - Os três primeiros atas pelo menos e
co existente no mundo. as últimas cenas serão apresentados na íntegra, tais como fo-
É este aspecto que lhes apresentará hoje o Théâtre de ram escritos.
I'Oeuvre. Alguns atores tiveram, nas duas noites, o prazer de Contaremos, além disso, com um cenário perfeitamente
tornarem-se impessoais e representarem cobertos por másca- exato, pois ao mesmo tempo que este é um recurso fácil pa-
ras, a fim de encarnarem exatamente o homem interior e a al- ra situar uma peça na Eternidade, a saber, de fazer com que
ma das grandes marionetes às quais irão assistir. Tendo sido a soem por exemplo no ano mil tiros de revólver, os senhores ve-
peça encenada às pressas e, sobretudo, com muito pouca boa rão portas que se abrem para planícies nevadas debaixo de um
vontade, Ubu não teve tempo de receber sua verdadeira másca- céu azul, lareiras guarnecidas de relógios de parede abrindo-se
ra, aliás muito incômoda de usar, e seus comparsas, como ele, para servir de P?rtas, e palmeiras verdes ao pé das camas.' .rara
estarão revestidos de aproximações. Era muito importante que terem as folhas consumidas por pequenos elefantes eqUlhbra-
tivéssemos, para um teatto de marionetes completo, uma mú- dos em prateleiras.
sica de circo, e a orquestração foi distribuída por metais, gon- Quanto à orquestra que deixamos de apresentar, só farão
gos e ttombetas marinhas que faltou-nos o tempo de reunir. falta sua intensidade e seu timbre, diversos pianos e címbalos
Não condenemos além da conta o Théâtre de I 'Oeuvre: alme- executando os temas de Ubu por trás dos bastidores.
jávamos mais que tudo encarnar Ubu na leveza do talento do Quanto à ação, que vai começar, passa-se n~ Polónia: quer
senhorr Gémier, e são hoje e amanhã as duas únicas noites em dizer, em Lugar Nenhum.
que o senhor Ginisty - e a interpretação de Villiers de I'Isle-
Adam - terão a liberdade de empresta-lo a nós. Vamos apre-
sentar a peça com três atas que foram decorados e dois atas
que também foram decorados graças a alguns cortes. Fiz to-
dos os cortes pedidos pelos atares (mesmo de vários trechos in-
dispensáveis ao sentido da peça), e mantive a pedido deles ou-
tras cenas que, por mim, teria cortado com muito gosto. Pois,
por mais marionetes que quiséssemos ser, não suspendemos ca-
da personagem a um fio, o que teria sido, se não absurdo, pelo
menos para nós bastante complicado, e, ademais, não estáva-
mos seguros do conjunto de nossas hostes, embora no Guignol
um feixe de fios e engrenagens baste para comandar todo um
exército. Podemos esperar ver personagens notáveis, como o se-
nhor Ubu e o Czar, forçados a corcovear frente a frente em ci-
ma de cavalos de papelão (que passamos a noite pintando) a
OUTRA APRESENTAÇAo
DE UBU REI
Publicada com o título de Ubu rei na brochura-programa
editada pela revista La critique para o Théâtre de I'Oeuvre e dis-
tribuída aos espectadores.
34
Alfred Jarry Ubu rei 35
defeitos não são de modo algum vícios exclusivamente france- do número universal, em comparação com a compreensão dos
ses, pois favorecem ainda o capitão BOI'dure, que fala inglês, a inteligentes; - e, paralelamente, a Merdra.
rainha Rosamunda, que tem sotaque do CantaI, e a massa dos Será talvez inútil expulsar o senhor Ubu da Polônia, que
poloneses, que tem cara grotesca, fala pelo nariz e se veste de é, como já dissemos, Lugar Nenhum, pois ele pode se com-
cinza. Se várias sátiras se deixam ver, o local da cena torna seus prazer primeiro com alguma inação de artista como "acender
intérpretes irresponsáveis.
o fogo enquanto não lhe trazem a lenha", ou comandar tripu-
O senhor Ubu é um ser ignóbil, e por isso ele (por baixo) l"ções percorrendo o Báltico de iate, e acaba conseguindo ser
lembra a todos nós. Assassina o rei da Polônia (ataque ao tira- nomeado senhor das Phynanças em Paris.
no, o assassinato parece justo a algumas pessoas, por ser um si- Ele nos era menos indiferente naquele país de Longe-
mulacro de um ato de justiça), e depois, quando se torna rei, Algum Lugar, onde, diante dos rostos de papelão de atores
massacra os nobres, em seguida os funcionários, mais tarde os que tiveram tal~nto suficiente para ousar pretender-se impes-
camponeses. E assim, tendo matado todo mundo, ele certa- soais, um público de inteligentes por algumas horas consen-
mente terá expurgado alguns culpados, e se manifesta homem tiu-se polonês.
moral e normal. Finalmente, como um anarquista, executa em
pessoa seus decretos, despedaça as pessoas porque isso lhe dá AlfredJarry
prazer e pede aos soldados russos que não atirem em sua dire-
ção porque assim ele não gosta. É um pouco um menino mi-
mado, e nada o contradiz tanto quanto o fato de não levantar
a mão contra o czar, que é o que todos nós respeitamos. O czar
faz-lhe justiça, tira-lhe a coroa de que fez mau uso, reinstala
Bougrelas no trono (será que valia a pena?) e expulsa o senhor
Ubu da Polônia com três partes de sua potência (pelo poder
dos apetites inferiores).
Ubu menciona com freqüência três coisas, sempre parale-
las em seu espírito: a fisica, que é a natureza comparada à arte,
o mínimo de compreensão oposta ao máximo de cerebralida-
de, a realidade do consentimento universal oposta à alucina-
ção da inteligência, Dom Juan oposto a Platão, a vida oposta
ao pensamento, o ceticÍsmo oposto à crença, a medicina opos-
ta à alquimia, o exército oposto ao duelo; - e, paralelamente, a
finança, que são as honras diante da satisfação consigo só por
si, como os produtores de literatura segundo o prejulgamento
FIGURINOS
Publicado por J H Sainmont, em manuscrito inédito, nos
Cadernos do Colégio de Pataphysica, ti" 3-4 (22 haha 78 e. p.).
PAI UBU - Terno com colete cinza cor de aço, sempre uma
bengala enfiada no bolso direito, chapéu melão. Coroa por cima
do chapéu, a partir da cena II do Segundo Ato. De cabeça nua a
partir da cena VI (Segundo Ato). - Terceiro Ato, cena II, coroa e
capa branca em forma de manto real. Cena IV (Terceiro Ato) ja-
pana, capacete, um sabre na cinta, uma vara de gancho, tesouras,
uma faca, sempre a bengala no bolso direito. Uma garrafa baten-
do-lhe nas nádegas. Cena V (Quarto Ato) jap~nae capacete, sem
armas nem bastão. Uma valise na mão na cena do navio.
MAE UBU:;- Trajes de quitandeira bem-vestida. Gorro cor-
de-rosa ou ch~péu com flores e plumas, ao lado uma bolsa
de rede ou cesta de compras. Um avental na cena do festim.
Manto real a partir da cena VI, Segundo Ato.
CAPITÃo BORDURE - Trajes de instrumentista húngaro
muito colante, vermelho. Sobretudo comprido, espada longa,
botas craneladas, chapska com plumas.
O REI VENCESLAS - O manto real e a coroa que Ubu usa-
rá depois do assassinato do rei.
A RAINHA ROSAMUNDA - O manto e a coroa que serão
usados pela Mãe Ubu.
BOLESLAS, LAoISLAS - Trajes poloneses cinzentos ornados
de galões, calças curtas.
38
Alfred Jarry Ubll rei 39
PAI UBU
Merdra!
MAEUBU
Ah! Que papelão, Pai Ubu, você não vale nada mesmo!
PAI UBU
E quase te pego, Mãe Ubu!
MAEUBU
Mas não sou eu, Pai Ubu, é um outro que a gente precisa-
va assasSInar.
PAI UBU
Pela luz da minha vela verde, não entendi.
MÃE UBU
Quer dizer, Pai Ubu, que está contente com a sua sorte?
PAI UBU
Pela luz da minha vela verde, merdra, minha senhora, com
certeza que sim, estou contente. E sei de gente que se contenta
com bem menos: capitão dos dragões, oficial de confiança do
rei Venceslas, condecorado com a ordem da Águia Vermelha
da Polônia e antigo rei de Aragão, que mais a senhora deseja?
48
Alfred }arry Ubu rei 49
MÃE UBU
quezas, comer chouriço quase sempre, e rodar de carruagem
Como! Depois de ter sido rei de Aragão, satisfazer-se em
pelas ruas.
comandar manobras de quatro dúzias de escudeiros armados
de facas de cozinha, quando poderia equilibrar em Sua cacho- PAl UBU
la a coroa da Polônia sucedendo à de Aragão? Se eu fosse rei, mandaria construir um elmo grande como
PAI UBU o que eu tinha em Aragão e aqueles malfeitores espanhóis me
roubaram sem a menor vergonha na cara.
Ah, Mãe Ubu, não entendo patavina do que você diz.
MÃE UBU MÃE UBU
Você é tão burro! E poderia conseguir também um guarda-chuva, além de
uma capa comprida descendo até os calcanhares.
PAI UBU
PAl UBU
Pela luz da minha vela verde, o rei Venceslas ainda está bem
vivo; e, mesmo admitindo que ele venha a morrer, não tem Ah assim eu cedo à tentação. Biltre de merdra, merdra de
uma legião de filhos? bilrre, ,se um dia eu pego o rei num canto da floresta ele vai
passar um mau bocado!
MÃE UBU
MAEUBU
E quem o impede de massacrar a família inteira e tomar o
lugar de todos? Ah' muito bem, Pai Ubu, agora você está falando como um
homem de verdade.
PAI UBU
PAI UBU .
Ah, Mãe Ubu, a senhora me ofende, e ainda acaba fritan-
do numa chapa quente. Ah' não! E,!, capitão dos dragões, massacrar o rei da Polô-
nia? Antes a morte!
MÃE UBU
MAEUBU
Ah' pobre infeliz, se eu fritar numa chapa quente, quem irá
remendar os fundilhos das suas calças? (À parte.) Ah' merdra! (Alto.) Com que então você quer con-
tinuar ~iserável como um rato, Pai Ubu?
PAI UBU
PAl UBU
É verdade! Mas e daí? A minha bunda não é igual à de to-
do mundo? Raios me partam, pela luz da minha vela verde, prefiro ser
miserável como um rato magro e digno a ser rico como um
MAEUBU
gato mau e gordo.
No seu lugar, bem que eu gostaria de instalar minha bun-
MAEUBU
da num trono. Você poderia aumentar infinitamente suas ri-
E o elmo? E o guarda-chuva? E a capa compn·da.?
50 Alfred Jarry
PAI UBU
É verdade. Mas e depois, Mãe Ubu?
(Sai batendo a porta.)
MÃEUBU
(Só.) Arre, merdra, foi duro de explicar; mas arre, merdra, CENA II
ainda assim acho que agora ele recebeu a mensagem. Graças a
Deus e a mim mesma, daqui a oito dias talvez eu me rome rai-
nha da Polônia. o cendrio representa um aposento da casa do Pai Ubu onde
uma mesa esplêndida estd posta.
Pai Ubu, Mãe Ubu.
MÃEUBU
Ora, nossos convidados se atrasaram.
PAI UBU
É verdade, pela luz da minha vela verde. Estou morto de fome.
Mãe Ubu, você está bem feia hoje. Será porqu~ temos visitas?
MÃEUBU
(Dando de ombros.) Grande merdra.
PAI UBU
(Agarrando um frango assado.) Olhe, estou com fome. Vou
morder esta ave. É uma galinha, ao que me parece. E não es-
tá nada má.
MÃE UBU
O que você está fazendo, infeliz? E o que vão comer os nos-
sos convidados?
PAI UBU
Vai sobrar mais do que o bastante para eles. E depois disso
não comerei mais nada mesmo. Mãe Ubll, vá olhar pela jane-
la para ver se os convidados estão chegando.
52
Alfred Jarry
MÃE UBU
(Vtzi.) Não estou vendo nada.
(Enquanto isso, o Pai Ubu rouba uma fotia de vitela.)
MÃE UBU
Ah, está chegando o Capitão Bordure com seus seguidores.
E você, o que está comendo, Pai Ubu?
CENA III
PAI UBU Pai Ubu, Mãe Ubu, Capitão Bordure e seus seguidores.
Nada, só um pouquinho de vitela.
MAEUBU
MÃE UBU
Bom dia, senhores, estavam sendo esperados com impaciên-
Ah, a vitela! A vitela! Vitela! Ele está comendo a vitela! cia. Sentem-se.
Acudam!
CAPITÃO BORDURE
PAI UBU
Bom dia, minha senhora. Mas onde está o Pai Ubu?
Pela luz da minha vela verde, vou arrancar os seus olhos.
(A porta se abre.) PAI UBU
Estou aqui! Estou aqui! Cáspite, pela luz da minha vela ver-
de, eu sou bem gordo! <
CAPITÃO BORDURE
Bom dia, Pai Ubu. Sentem-se, meus homens. (Todos se sentam.)
PAI UBU
Ufa, um pouco mais e eu desmontava minha cadeira.
CAPITÃO BORDURE
E então, Mãe Ubu, o que temos de bom hoje?
MAEUBU
O cardápio é o seguinte.
PAI UBU
Ah, isto me interessa.
..--------------------------------,
54 Alf,ed Ja,,1' Ubu rei 55
PAI DBU
Como não acabaram? Fora, todo mundo! Fique, Bordure.
(Ninguém se mexe.)
PAI DBU
Não foram embora? Pela luz da minha vela verde, vou ata- CENA IV
cá-los com as costeletas de rastrão.
(Começa a atírd-Ias.) Pai Ubu, Mãe Ubu, Capitão Bordure.
PAI DEU . .d
Dentro de alguns dias, se o senhor permitir, serei o rei a
Polônia. 'j
CAPITÃO BORDURE
O senhor quer matar Venceslas?
58
AIfred Jarry
PAI UBU
Ele não é burro, o patife, e adivinhou.
CAPITAo BORDURE
Se for o caso de matar Venceslas, pode contar comigo. Ele é
meu inimigo mortal, e respondo pelos meus homens.
CENA V
PAI UBU
(Atirando-se sobre ele para beijd-Io.) Oh! Oh! Gosto muito
de você, Bordure. Pai Ubu, Mãe Ubu, um Mensageiro.
MAEUBU (Sai.)
Nunca!
PAI UBU
PAI UBU Ah! Merdra, com mil cacodemônios, pela, luz da minha ve-
Vou pisar nos seus pés. la verde, fui descoberro, vou ser decapitado! Que lástima! Que
MAE UBU lástima!
Grande merdra! MAEUBU
Que sujeito frouxo! E o tempo corre.
PAI UEU
Vá, Bordure, nossa conversa está encerrada. Mas, pela luz PAIUBU
da mmha vela verde, juro pela Mãe Ubu mortinha fazer do se- Oh! Tive uma idéia: vou dizer que foram a Mãe Ubu e
nhor duque da Lituânia. Bordure.
MAE UBU MAE UBU
Mas ... Ah, gordo Pai Ubu, se você fizer uma coisa dessas ...
PAIUBU PAI UBU
Cale-se, minha criança ... E vou agora mesmo.
(Saem.) (Sai.)
60 Alfred Jarry
MÃE UBU
(C~rre atrds dele.) Oh! Pai Ubu, Pai Ubu, eu lhe darei um
chounço.
(Sai.)
PAI UBU
(Entrando.) Oh! O senhor sabe, não fui eu, foram a Mãe
Ubu e o Capitão Bordure.
O REI
O que deu em você, Pai Ubu?
CAPITÃo BORDURE
Ele bebeu demais.
O REI
Como eu, hoje de manhã.
PAI UBU
Pois é, estou embriagado porque bebi vinho francês.
O REI
Pai Ubu, resolvi recompensar seus inúmeros serviços como
capitão dos dragões e quero nomeá-lo conde de Sandomir.
PAI UBU
6, senhor Venceslas, não sei como lhe agradecer.
62 Alfred Jarry
OREI
Não me agradeça, Pai Ubu, e amanhã se apresente para
a grande parada.
PAl UBU
Estarei lá, mas aceite, por gentileza, este pequeno apito.
(Oferece um apito ao rei.) CENA VII
O REI
Mas o que eu posso fazer com um apito? Vou dar para A c~ade Ubu.
Bougrelas. Giron, Pile, Cotice, Pai Ubu, Mãe Ubu, Conjurados e solda-
O JOVEM BOUGRELAS dos, Capitão Bordure.
É mesmo uma besta, o Pai Ubu.
PAl UBU
PAl UBU Então, meus bons amigos, já está mais do que na hora de
E agora vou dar no pé. (Cai quando dd meia-volta.) Oh! Ai! decidir o plano da conspiração. Que cada um dê o seu palpite.
Acudam! Pela luz da minha vela verde, rompi meu intestino e E primeiro vou dar o meu, se me dão licença. '
rebentei a bordélia!
CAPITÃO BORDURE
O REI Fale, Pai Ubu.
(Erguendo-o.) Pai Ubu, o senhor se machucou?
PAI UBU
PAl UBU Pois bem, amigos, acho que devíamos simplesmente enve-
Claro que sim, e agora com certeza vou morrer. E o que vai nenar o rei, pondo arsênico no seu almoço. Quando ele for fa-
ser da Mãe Ubu? zer o repasto cai morto, e aí eu viro rei.
OREI TODOS
Cuidaremos do sustento dela. Mas que covardia!
PAl UBU PAI UBU
<? senhor tem mesmo bondade de sobra. (Sai.) Ora, não gostaram? Então que Bordure diga o que acha.
E verdade, Rei Venceslas, mas mesmo assim você vai ser
massacrado. CAPITÃO BORDURE
Acho que ele deveria levar um golpe violento de espada, ra-
chando o seu corpo da cabeça até o quadril.
64
Alfred Jarry Ubu rei 65
TODOS
Ah sim! Este é nobre e valente. CAPITÃO BORDURE .
E eu saio correndo com meus homens, persegumdo a famí-
PAI UBU
lia real.
E se ele reagir aos pontapés? Lembro agora que ele usa nos
desfiles um par de sapatos de ferro que machucam muito seus PAI UBU I
Isso, e eu lhe recomendo especialmente o jovem Bougre as.
pés. Se eu soubesse que ia ser assim, ia agora correndo denun-
(Saem.)
ciar vocês para me livrar dessa história malparada, e acho que
ele ainda me daria algum dinheiro. PAl UBU
MÃEUBu /Correndo atrds deles e fozendo-os voltar.) Senhores,
l' . esq
I ue-
cemos uma cerimônia indispensável. Precisamos Jurar so ene-
Ah! Traidor, covarde, bandido vil e sem-remédio.
mente que esgrimiremos com valentia. .
TODOS
Vamos vaiar o Pai Ubu! CAPITÃO BORDURE
Mas como? Não temos um padre presente.
PAI UBU
PAl UBU
Ora! Senhores, fiquem calmos se não quiserem fazer uma
A Mãe Ubu substitui.
visita aos meus bolsos. No fim das Contas, concordei em me
arriscar por vocês. E assim, Bordure, você se encarrega de ra- TODOS
char o rei. Está bem.
CAPITÃO BORDURE PAI UBU
Não seria melhor se todos nós nos atirássemos em cima E então, vocês juram matar mesmo o Rei?
dele, gritando e berrando? Ainda seria uma Oportunidade de
treinar as tropas. TODOS
Sim, juramos. Viva o Pai Ubu!
PAI UBU
Muito bem, então é isso. Eu tento pisar no pé dele, ele vai Fim do primeiro ato.
reagir, daí eu lhe digo: MERDRA, e a este sinal todos vocês se
atiram em cima dele.
MÃE UEU
o paldcio do Rei.
Venceslas, a Rainha Rosamunda, Bo/eslas, Ladislas e Bougrelas.
o REI
Senhor Bougrelas, hoje pela manhã o senhor foi deveras
impertinente para com o senhor Ubu, cavaleiro das minhas
ordens e conde de Sandomir. E é por isso que eu o proíbo de
comparecer à minha parada. .
A RAINHA
Mas se for assim, Venceslas, você não estitrá cercado de to-
da a família para defendê-lo.
O REI
Senhora, eu nunca volto atrás no que eu digo. A senhora me
cansa com essas suas algaravias.
O JOVEM BOUGRELAS
Eu me submeto, senhor meu pai.
A RAINHA
Mas enfim, majestade, estais sempre disposto a ir a essa
parada?
OREI
E por que não, senhora?
70 Alfred Jarry
A RAINHA
Torno a dizer que já o vi em sonhos aracar-vos com a clava e de-
pois atirar-vos nas águas do Vísrula, e em seguida uma águia como
a que figura nas armas da Polônia pondo-lhe a coroa na cabeça.
O REI
De quem? CENA II
A RAINHA
Do Pai Ubu.
o Éxército polonês, o Rei, Boleslas, Ladislas, Pai Ubu, Capitão
Bordure e seus homens, Giron, Pile e Cotice.
O REI
Mas que despropósito! O Senhor de Ubu é um cavalheiro OREI
de grandes qualidades, que seria capaz de se deixar despedaçar Nobre Pai Ubu, aproxime-se de mim com seu séqüito para
por quatro cavalos a meu serviço. passarmos as tropas em revista.
o REI
Miserável!
PAI DBU
MERDRA! A mim, meus homens! CENA III
CAPITÃO BORDURE
Hurra! Em frente! A Rainha e Bougrelas.
(Todos golpeiam o Rei, um palatino explode.)
A RAINHA
O REI Finalmente, agora fiquei mais tranqüila.
Oh! Socorro! Santa Virgem, estou morto. BOUGRELAS
BOLESLAS A senhora não tem motivo nenhum para temer. (Ouve-se um
(ii Ladisfas.) O que está havendo? Vamos puxar das espadas. clamor horrível do lado de fora.)
Ah! O que vejo? Meus dois irmãos perseguidos pelo Pai Ubu
PAI DBU
e seus homens.
Ah l]'
. a pegue!. a coroa! Agora os outros.
A RAINHA
CAPITÃO BORDURE Ó meu Deus! Santa Virgem, estão perdendo, estão perden-
Morte aos traidores!! do terreno!
(Os filhos do Rei fogem, e todos correm atrds deles.)
BOUGRELAS
Todo o exérciro está obedecendo ao Pai Ubu. O Rei não es-
tá mais lá. Horror! Socorro!
A RAINHA
Boleslas acaba de morrer! Levou um tiro.
BOUGRELAS
Ei! (Ladisfas se vira.) Defenda-se! Vamos, Ladislas!
A RAINHA
Oh! Ele foi cercado.
74 Alfred Jarry
BOUGRELAS
E foi o seu fim. Acaba de ser cortado ao meio por Bordure,
como se fosse uma salsicha.
A RAINHA
Ah! Ai de nós! Os celerados entraram no palácio, estão su-
bindo a escada.
CENA IV
(Aumenta o clamor.)
Os mesmos. A porta é arrombada. Entram o Pai Ubu e os re-
A RAINHA E BOUGRELAS voltosos.
(De joelhos.) Meu Deus, defendei-nos.
PAI UBU
BOUGRELAS Ei, Bougrelas, o que você iria fazer comigo?
Ah! Esse Pai Ubu! O canalha, o miserável, se eu pusesse as
BOUGRELAS
mãos nele ...
Em nome de Deus! Defenderei minha mãe até a morte! O
primeiro que der um passo morre.
PAI UBU
Oh! Bordure, estou com medo! Deixem-me ir embora.
UM SOLDADO
(Avança.) Renda-se, Bougrelas.
O JOVEM BOUGRELAS
Tome isso, bandido! É o que você merece! (E racha o crâ-
nio do soldado.)
A RAINHA
Fique firme, Bougrelas, fique firme!
VAmos
(Avançam.) Bougrelas, prometemos poupar a sua vida.
BOUGRELAS
Patifes, miseráveis, traidores!
76 Alfred Jarry
PAI UBU
Ah! Seja como for, vou acabar com isso!
BOUGRELAS CENA V
Mãe, fuja pela escada secreta.
A RAINHA Uma caverna nas montanhas.
E você, meu filho, e você?
Entra oJovem Bougrelas, seguido de Rosamunda.
BOUGRELAS
Vou daqui a pouco. BOUGRELAS
Aqui estaremos a salvo.
PAI UBU
Tentem pegar a Rainha! Ah! Ela conseguiu fugir. Quanto a A RAINHA
você, miserável! Sim, acho que sim! Bougrelas, me segure!
BOUGRELAS BOUGRELAS
Ah! Em nome de Deus! Eis a minha vingança! (E descostu" Ah! O que houve com você, minha mãe?
ra-lhe a bandulha com uma terrível estocada.) ARAINHA "'
Mãe, já estou indo! (Desaparece pela escada secreta.) Estou bem doente, acredite, Bougrelas. S6 me restam duas
horas de vida.
BOUGRELAS
O quê! O frio lhe fez tanto mal assim?
A RAINHA
Mas como você quer que eu resista a tantos golpes? O Rei
massacrado, nossa família destruída, e você, representante da
raça mais nobre que jamais brandiu uma espada, forçado a se
refugiar nas montanhas como um contrabandista.
78
Alfred]any Ubu rei 79
BOUGRELAS
BOUGRELAS
E por quem, grande Deus! Por quem? Um vulgar Pai Ubu, Ora! O que vejo? Toda a minha família, meus ancestrais ...
aventureiro saído ninguém sabe de onde, um crápula vil, um Que ml·1agre sera' este ....?
miserável coberto de vergonha! E quando eu penso que meu
pai condecorou esse homem, que o transformou em conde, e A SOMBRA .
que no dia seguinte o canalha não teve a menor dúvida em le- Pois fica sabendo, Bougrelas, que em vida fui o senhor
vantar a mão contra ele! Mathias de Konigsberg, primeiro rei e fundador da nossa di-
~astia. Passo a ti o encargo da nossa vingança. (Entrega-lhe
ARArNHA
uma espada imensa.) E que esta espada que agora te entrego só
Ó Bougrelas! Quando me lembro do quanto fomos feli- descanse depois de golpear de morte o usurpador.
zes antes do surgimento desse Pai Ubu! Mas agora, ai de nós!
Tudo mudou! (Todos desaparecem, e Bougrelas fica só, numa atitude de êxtase.)
BOUGRELAS
Ora! O que foi? Ela empalidece, ela cai, acudam! Mas aqui
é um lugar deserto! Ó meu Deus! O coração dela parou de ba-
ter. Ela morreu! Será possível? Mais uma vítima do Pai Ubu!
(Esconde o rosto nas mãos e chora.) Ó meu Deus! Como é tris-
te, aos catorze anos, ver-se obrigado a cumprir uma vingan-
ça terrível!
(Entrega-se ao mais violento desespero.)
o paldeio do Rei.
Pai Ubu, Mãe Ubu, Capitão Bordure.
PAI UBU
Não, eu não deixo! Vocês querem me arruinar por causa des-
ses pamonhas?
CAPITÃO BORDURE
Mas afinal, Pai Ubu, o senhor não vê que o povo está à es-
pera dos presentes pelo feliz evento?
MAEUBU
Se você não mandar distribuir carne e ouro, acabará derru-
bado em menôs de duas horas.
PAI UBU
Carne, sim! Ouro, não! Abatam três cavalos velhos, já está
bom demais para esses traidores.
MAEUBU
Mas o traidor é você! Quem me criou um animal assim?
PAI UBU
Repito: o que eu quero é entiquecer, e não entrego nem
um tostão.
MAE UBU
Quando temos nas mãos todo o tesouro da Polónia!
82
Alfred Jarry
CAPITÃO BORDURE
Isso mesmo, eu sei que existe um tesouro imenso guardado
na capela. Vamos distribuí-lo ao povo.
PAl DEU
Miserável! Se você se atrever...
CAPITÃO BORDURE CENA VII
Mas, Pai Ubu, se o senhor não distribuir nada, o povo não
vai mais querer pagar os impostos. Opdtio do paldcio, repleto de gente.
PAI DBU Pai Ubu coroado, Mãe Ubu, Capitão Bordure, lacaios carre-
É mesmo? gados de carne.
MÃE DBU
POVO
Claro, claro! É o rei! Viva o rei! hurra!
PAl DBU
PAl DBU
Ah, então concordo com tudo. Reúnam três milhões e man- (Atirando moedas de ouro.) Peguem, é para vocês. Eu não es-
dem assar cento e cinqüenta bois e carneiros, especialmente tava achando a menor graça em lhes dar dinheiro, mas sabem
porque eu também quero comer! como é, quem quis foi a Mãe Ubu. Vocês s6 precisam me pro-
(Saem.) meter que vão pagar seus imposros.
TODOS
Vamos, vamos!
CAPITÃO BORDURE
Está vendo, Mãe Ubu, como eles disputam o Outo? Que
batalha!
MÃEUBU
De fato, que coisa horrível. Nossa! Acabam de rachar o crâ-
nio de um deles.
PAl DBU
Que belo espetáculo! Tragam mais baús de ouro.
84
Alfred Jarry Ubu rei 85
CAPITÃO BORDURE
MÃEUBU
E se organizássemos uma corrida?
Não, agora ele recuperou.
PAI UBU
CAPITÃO BORDURE
Isso, boa idéia!
Oh! Vai perder, vai perder! Acabou! Ganhou o outro!
(Ao Povo.)
(O que estava em segundo chega em primeiro.)
Amigos, estão vendo este baú de ouro? Ele contém trezen- ,y
tos mil nobres da rosa em ouro, em moeda polonesa de boa li- TODOS
ga. Que os candidatos à corrida se alinhem no fundo do pátio. Viva Mikhail Fedérovitch! Viva Mikhail Fedérovitch!
Irão partir quando eu agitar meu lenço, e o primeiro a chegar MIKHAlL FEDÉROVITCH
ganhará o baú. Quanto aos que não ganharem, terão como Majestade, na verdade não sei como vos agradecer...
consolo esta outra caixa, que será dividida entre todos.
PAI UBU
TODOS
Ora, meu caro amigo, não é nada. Leve o baú para a sua ca-
Sim! Viva o Pai Ubu! Que belo rei! Não víamos tanta ri- sa, Mikhail; e vocês, dividam esse outro, vão tirando uma moe-
queza no tempo de Venceslas.
da cada um até acabar tudo.
PAI UBU
TODOS
a Mãe Ubu, com alegria.} Escute só o que eles dizem! Viva Mikhail Fedérovitch! Viva o Pai Ubu!
(Todo o povo se alinha no final do pdtio.)
PAI UBU
PAI UBU Quanto a vocês, m~eus amigos, vamos jantar! Hoje eu lhes
Um, dois, três! Todos prontos? abro as portas do palácio, tenham a bondade de honrar a mi-
nha mesa!
TODOS
Sim! Sim! POVO
Vamos entrar! Vamos entrar! Viva o Pai Ubu, o mais no-
PAI UBU
bre dos soberanos!
Já! (Todos partem, derrubando uns aos outros. Gritos e tumulto.)
(Entram no paldcio. Ouve-se o barulho da orgia que se prolon-
CAPITÃO BORDURE ga até o dia seguinte. Desce o pano.)
Estão chegando! Estão chegando!
PAI UBU Fim do segundo ato.
Ora! O primeiro está perdendo terreno.
TERCEIRO ATO
CENA I
o paldeio.
Pai Ubu, Mãe Ubu.
PAI UBU
Pela luz da minha vela verde, agora sou rei deste país. Já
apanhei uma indigestão, e estão trazendo meu chapéu de abas
largas.
MAEUBU
Ele é feito de quê, Pai Ubu? Apesar de sermos reis, precisa-
mos ser econômicos.
PAI UBU
Senhora minha fêmea, é feito de pele de carneiro, com um
broche e preso por tiras de couro de cachorro.
MAEUBU
Uma beleza, mas eu digo que o mais bonito ainda é ser-
mos reis.
PAI UBU
Sim, você tem razão, Mãe Ubu.
MAEUBU
Devemos muiro reconhecimento ao duque da Lituânia.
PAI UBU
A quem?
90
Alfred Jarry Ubu rei 91
MÃE UBU
MÃEUBU
Ora! O Capitão Bordure.
Escute, mais urna vez, tenho certeza de que o jovem Bou-
PAl UBU grelas vai acabar vencendo, porque o direito justo está do la-
Faça-me o favor, Mãe Ubu, de não me falar desse pascácio. do dele.
Agora que não preciso mais dele, ele pode fazer o que quiser
que não lhe dou ducado nenhum. PAl UBU
Ah! Porcaria! E o direito injusto não vale tanto quanro o
MÃE UBU júsro? Ah! Assim você me insulta, Mãe Ubu, vou fazê-la em
Mas é um grande erro, Pai Ubu, ele vai se virar contra você. pedaços.
PAl UBU (.4 Mãe Ubu sai correndo, perseguida por Ubu.)
Oh! Pois eu tenho é peria desse homenzinho, que me dá
tanto medo quanto Bougrelas.
MÃEUBU
Ora! E você acha que não tem mais nada a temer de
Bougrelas?
PAl UBU
É claro que não, pelo meu sabre das finanças! O que vo-
cê acha que ele poderia me fazer, aquele palermazinho de ca-
torze anos?
MÃE UBU
Pai Ubu, preste atenção no que eu lhe digo. Acredite em
mim, procure atrair Bougrelas para junto de você pelo bem.
PAI UBU
Mais dinheiro? Ah! não, já chega! Vocês já me fizeram gas-
tar vinte e dois milhões.
MÃE UBU
Faça o que quiser, Pai Ubu, mas isso ainda vai custar caro.
PAl UBU
Pode ser, mas você vai dividir a despesa comigo.
CENA II
o salão do paldcio.
Pai Ubu, Mãe Ubu, oficiais e soldados; Giron, Pile, Cotice, no-
bres acorrentados, financistas, magistrados, escreventes.
PAI UBU
Tragam a caixa-das-nobres, o gancho-das-nobres, a faca-
das-nobres e o livro-das-nobres! E depois mandem que os
Nobres cheguem mais perro.
(Empurram brutalmente os Nobres.)
MÃE UBU
Por caridade, modere-se, Pai Ubu.
PAI UBU
Tenho a honra de lhes anunciar que, para enriquecer o rei-
no, vou mandar matar todos os Nobres e tomar os seus bens.
NOBRES
Horror! Salvai-nos, povo e soldados!
PAI UBU
Tragam o primeiro Nobre e me passem o gancho-das-no-
bres. Os que forem condenados à morte, eu puxarei para o
alçapão: eles cairão no subsolo do Príncipe-Porco e da Câmara
dos Tostões, onde serão descerebrados. (Ao Nobre.) Quem é
você, pelintra?
Alfred Jarry Ubu rei 95
o ESCREVENTE
PAI DBU
O condado de Sandomir.
Grande merdra. Primeiro, os magistrados param de receber.
PAI DBU
MAGISTRADOS
Comece pelos principados, estúpido imbecil!
E vamos viver de quê? Somos pobres.
O ESCREVENTE
PAI DBU
O principado da Podólia, o grão-ducado de Posen, o du-
Receberão as multas das suas sentenças, e os bens dos con-
cado de Corlândia, o condado de Sandomir, o condado de
denados à morte.
Vitebsk, o palatinado de Polock, o marcgraviado de Thorn.
PRIMEIRO MAGISTRADO
PAI DBU
Horror.
E o que mais?
SEGUNDO MAGISTRADO
O ESCREVENTE
Infâmia.
Mais nada.
TERCEIRO MAGISTRADO
PAI DBU
Escândalo.
Como, mais nada? Ora, se é assim, façam avançar os
Nobres, e como não vou parar de enriquecer, vou mandar exe- QUARTO MAGISTRADO
cutar todos eles, e assim ficarei com todos os bens disponíveis. Indignidade.
Vamos, empurrem todos os Nobres para o alçapão. TODOS
(Enfiam os Nobres no alçapão.) Nessas condições, nos recusamos a julgar.
Vamos, mais depressa, agora quero fazer as leis. PAI DBU
VARIas Os magistrados, para o alçapão!
Isso é o que vamos ver. (Eles se debatem, em vão.)
PAI DBU
MAE DBU
Primeiro vou reformar a justiça, e depois chegaremos às fi-
Mas o que você está fazendo, Pai Ubu? E agora quem vai
nanças.
cuidar da justiça?
VARIaS MAGISTRADOS
PAI DBU
Somos contrários a qualquer mudança.
Ora! Eu. E você vai ver como vai dar certo.
98 Alfred Jarry Ubu rei 99
UM CAMPONÊS
(Entrando.)
Saibam da grande novidade. O rei morreu, os duques tam-
bém, e o jovem Bougrelas fugiu com a mãe para as monta-
nhas. Além disso, o Pai Ubu se apoderou do trono.
OUTRO
Eu soube de outras. Acabo de chegar da Cracóvia, onde vi
passar os corpos carregados de mais de trezentos nobres e qui-
nhentos magistrados que foram mortos; parece que os impostos
vão ser dobrado~, e que o Pai Ubu virá recebê-los em pessoa.
TODOS
Deus do céu! O que vai ser de nós? O Pai Ubu é um caua-
lha medonho, e sua família, ao que se diz, é abominável.
UM CAMPONÊS
Mas escutem só: não acham que alguém está batendo na
porta?
UMA voz
(Do lado de fora.)
Chifres de um monsrro! Abram, pela minha merdra, por
102 Alfred Jarry
são João, são Pedro e são Nicolau! Abram, pelo sabre de finan-
ças, pelos cornos de finanças, vim cobrar os imposros!
(A porta é derrubada, e Ubu entra seguido por uma legião de
coletores.)
CENA IV
PAI UBU
Quem de vocês é o mais velho? (Um camponês dd um passo
à frente.) Como você se chama?
o CAMPONÊS
Stanislas Leczinski.
PAI UBU
Pois muito bem, cornos de uma besra, escute bem o que eu
vou dizer, ou então esses senhores aqui cortarão as suas ore-
lhas. E então, vai me escutar ou não?
STANISLAS LECZINSKI
Mas Vossa Excelência ainda não disse nada.
PAI UEU
Mas como? Estou aqui falando há uma hora! Você acha que
eu vim até aqui para pregar no deserto?
STANISLAS LECZINSKI
Longe de mim uma idéia dessas.
PAI UBU
Pois eu vim lhes dizer, ordenar e deixar claro que preci-
sam trazer e me exibir imediatamente a sua finança, senão
serão massacrados. Vamos, senhores pelintróides das finan-
ças, carreiem até aqui o carrinho das finanças. (Trazem-lhe
o carrinho.)
104
Alfred Jarry
STANISLAS LECZINSKI
Majestade, só temos inscrita no registro a dívida de cento
e cinqüenta riksdalers que já pagamos, no dia de são Mateus,
faz seis semanas.
PAI UBU
Pode até ser, mas acontece que eu mudei o governo e man- CENA V
dei botar no jornal que todo mundo precisa pagar os impostos
por duas vezes, e três vezes os que poderão ser designados mais Uma casamata das fortificações de Thorn.
adiante. Com esse sistema, terei feito fortuna em pouco tem-
po, daí matarei todo mundo e irei embora. Bordure acorrentado, Pai Ubu.
CAMPONESES
PAI UBU
Senhor Ubu, misericórdia, tenha pena de nós. Somos cida- Ah, cidadão, eis o que houve: você quis que eu pagasse
dãos pobres. o que lhe devia, e então se revoltou só porque eu não quis,
PAI UBU conspirou e agora está aí trancafiado. Cornos do cofre, é bem
Pouco se me dá. Paguem. feito! E o golpe foi tão bem aplicado que até você deve ter
achado do seu gosto.
CAMPONESES
Não podemos, já pagamos. CAPITAO BORDURE
Cuidado, Pai Ubu. Faz ·cinco dias que você é rei, mas com
PAI UBU
a quantidade de assassinatos que cometeu, qualquer santo do
Paguem! Ou eu me encarrego de todos com suplício e Paraíso iria para~ no inferno. O sangue do rei e dos nobres cla-
degolação, do pescoço e da cabeça! Cornos da lua, sou o ma por vingança, e esse clamor ainda há de ser ouvido.
rei, não sabiam?
PAI UBU
TODOS
Ora, meu bom amigo, o senhor tem a língua solta demais.
Ah, é assim?! Às armas! Viva Bougrelas, pela graça de Deus, Não duvido nada que, conseguindo escapar daqui, pudesse
rei da Polónia e da Lituânia! me trazer complicações, mas não acredito que as casamatas de
PAI UBU Thorn jamais tenham permitido a fuga de nenhum dos jovens
Adiante, Senhores das Finanças, cumpram o seu dever. honestos que lhe foram confiados. Por isso, boa noite, e eu lhe
recomendo que durma protegendo as duas orelhas, pois os ra-
(Uma luta é travada, a casa é destruída e o velho Stanislas tos daqui dançam uma bela sarabanda.
Leczinski, só, foge através da planície. Ubu fica para recolher
afinança.) (Sai. Os Lacaios vêm trancar todas as portas.)
CENA V1
o paUcio de Moscou.
O imperador Alexis e sua corte; o Capitão Bordure.
O CZAR
E tu, infame aventureiro, cooperaste na morte de nosso pri-
mo Venceslas?
CAPITÃO BORDURE
Majestade, perdoai-me, fui envolvido contra a vontade pe-
lo Pai Ubu.
ALmCIs
6, que mentiroso horrendo. E então, o que desejas?
CAPITÃO BORIJURE
O Pai Ubu mandou aprisionar-me sob a falsa acusação de
conspirador; consegui fugir e corri cinco dias e cinco noites
a cavalo através das estepes para vir implorar vossa genero-
sa misericórdia.
ALEXIS
E o que me trazes como sinal de tua submissão?
CAPITÃO BORDURE
Minha espada de aventureiro, e um mapa detalhado da ci-
dade de Thorn.
lOS Alfred Jarry
ALEXIS
Aceito a espada, mas, por são Jorge, queima esse mapa, não
queto que minha vitória se deva a uma traição.
CAPITÃO BORDURE
Um dos filhos de Venceslas, o jovem Bougrelas, ainda está
vivo, e tudo farei para restaurar os seus direitos. CENA VII
ALEXIS
Que patente tinhas no Exército polonês? A sala do conselho de Ubu.
MÃE UBU
Só há uma coisa a fazer, Pai Ubu.
CENA VIII
o campo, perto de Vttrsóvia.
SOLDADOS E OFICIAIS DA CORTE
Viva a Polônia! Viva o Pai Ubu!
PAI UBU
Ab! Mãe Ubu, passe a minha couraça e meu bastãozinho
de pau. Daqui a pouco vou ficar tão pesado que nem consigo
sair do lugar se alguém vier atrás de mim.
MAEUBU
Arre, que covarde!
PAI UBU
Ab! Agora quem está me atrapalhando é o sabre de mer-
dra, e o gancho-das-finanças, que não fica no lugar!!! Não
acabo nunca de me arrumar, os russos vão chegar e acabar me
matando.
UM SOLDADO
Senhor Ubu, a tesoura de orelhas está caindo.
PAI UBU
Eu te mato com o gancho de merdra e a faca de face.
MAEUBU
Como ele fica bonito com o capacete e a couraça, parece
uma abóbora paramentada.
114 Alfred Jarry Ubu rei 115
MÃE UBU
E então, onde será que fica esse tesouro? Nenhuma das lajes
do piso soa oca. Contei direitinho treze passos a partir do tú-
mulo de Ladislau, o Grande, ao longo da parede, mas não en-
contrei nada. Devem ter me enganado. Ah, mas achei alguma
coisa: aqui a pedra tem um som oco. Mãos à obra, Mãe Ubu.
Coragem. Vamos soltar esta pedra. Ela está bem presa. Vamos
pegar essa ponta do gancho-das-finanças que ainda pode aju-
dar. Pronto! E é aqui mesmo que está o ouro, no meio das os-
sadas dos reis. Para dentro do nosso saco, então, tudo! Epa!
Que barulho foi esse? Será que ainda existe alguém vivo debai-
xo dessas velhas' cúpulas? Não, não foi nada. Depressa. Vamos
pegar tudo. À luz do dia esse dinheiro vai ter muito melhor
aparência do que aqui, no meio dos túmulos dos príncipes an-
tigos. Vamos recolocar a pedra. O que foi? De novo o mesmo
barulho. Minha presença neste lugar me causa um temor es-
tranho. Pegarei o resto do ouro outra vez. Voltarei amanhã.
UMA VOZ
(Elevando-se da tumba de Jean Sigismond.) Isso nunca, Mãe
Ubu!
(A Mãe Ubu foge perturbada e sai carregando o ouro rouba-
do pela porta secreta.)
CENA II
A praça de Varsóvia.
BOUGRELAS
Avante, amigos! Viva Venceslas, viva a Pol6nia! Pai Ubu, o
velho malfeitor, foi embora, e só ficou a bruxa da Mãe Ubu
com seu palatino. Eu me ofereço para marchar à frente de vo-
cês e recuperar o trono para a raça dos meus pai~.
TODOS
Viva Bougrelas!
BOUGRELAS
E vamos supuimir rodos os impostos criados pelo pavoro-
so Pai Ubll.
TODOS
Hurra! Avante! Vamos correr até o palácio e massacrar es-
sa gente.
BOUGRELAS
Ei! Olhem ali a Mãe Ubll saindo com seus guardas pe-
la escada!
MÃEUBU
O que desejam, senhores? Ah! Ê Bougrelas!
(A multidão lhe atira pedras.)
122 Alfred Jarry
PRIMEIRO GUARDA
Quebraram todos os vidros.
SEGUNDO GUARDA
São Jorge, fui derrubado.
TERCEIRO GUARDA CENA III
Maldição, estou morrendo.
BOUGRELAS O Exército polonês em marcha pela Ucrdnia.
Atirem mais pedras, meus amigos.
PAI UBU
PALATINO GIRON
Cornos meus, pés de Deus, cabeça de vaca! Vamos pere-
Ora! É assim?
cer, pois estamos morrendo de sede e muiro cansados. Senhor
(Puxa a espada e se precipita ao ataque, provocando uma car- Soldado, tenha a bondade de carregar meu elmo das finanças,
nificina medonha.) e você, senhor lanceiro, encarregue-se da tesoura de merdra e
do bastão da physica para aliviar nossa pessoa, pois, repito, es-
BOUGRELAS
tamos fatigados!
Nós dois agora! Defende-te, imbecil covarde.
(Os Soldados obedecem.)
(Os dois duelam.)
PILE
GIRON
Hum! Senhor! É espantoso que os russos não apareçam.
Estou morto!
"
PAI UBU
BOUGRELAS
É de fato lamentável que o estado das nossas finanças não
Vitória, amigos! Agora chegou a vez da Mãe Ubu!
nos permita contar com meios de transporte à altura do nos-
(Ouvem-se trombetas.)
so tamanho; porque, por medo de esgotar nossa montaria, fi-
BOUGRELAS
zemos todo o caminho a pé, puxando nosso cavalo pela ré-
Ah! São os Nobres que estão chegando. Vamos correr e pe- dea. Mas quando chegarmos de volta à Polónia, imaginare-
gar essa megera! mos, lançando mão de nossa ciência em física e auxiliado pe-
las luzes dos nossos conselheiros, uma viatura movida a vento
TODOS capaz de transportar todo o exército.
Enquanto não conseguimos enforcar o velho bandido!
COTICE
Vi Mãe Ubu foge, perseguida por todos os poloneses. Tiros de Eis Nicolau Rensky que chega a galope.
fozil e granizo de pedradas.}
-~
PAI UBU
Onze da manhã.
É verdade, os russos! Agora estou frito. Se pelo menos exis- PAI UBU
tisse algum modo de ir embora, mas não há jeito, estamos Então vamos almoçar, pois os russos não irão atacar antes
num ponto alto e ficaremos expostos a todos os golpes. do meio-dia. Diga aos soldados, senhor general, que cumpram
O EXÉRCITO
as suas tarefas e entoem a Canção das Finanças.
Os russos! O inimigo! (Lascy sai.)
126 Alfred Jarry
SOLDADOS E PALATINaS
Viva o l'ai Ubu, nosso grande Financista! Ting, ting, ting; ting,
ting, ting; ting, ting, tating!
l'AI UBU
Ah, eu adoro os bravos soldados. (Uma bala de canhão rus-
sa chega e despedaça uma pd do moinho.) Ah, estou com medo, CENA IV
Deus meu rei, estou morto! Mas por outro lado não, não so-
fri nada. Os inesmos, um Capitão e depois o Exército russo.
UM CAPITAo
(Chegando.) Majestade, os russos estão atacando.
PAlUBU
Ora, e o que você quer que eu faça? Não foi por ordem mi-
nha. Enquanto isso, Senhores das Finanças, vamos nos prepa-
rar para o combate.
o GENERAL LASCY
Uma segunda bala de canhão!
PAI UBU
Ah, não posso,mais. Aqui está chovendo ferro e chumbo, e
poderíamos danificar nossa preciosa pessoa. Vamos descer.
(Todos descem a passo acelerado. A batalha acaba de se iniciar.
Desaparecem em meio a cataratas de fomaça no pé da colina.)
UM RUSSO
(Atirando.)
Por Deus e pelo Czar!
RENSKY
Ah! Estou morto.
128 Alfred Jarry Ubu rei 129
UM POLONÊS
Ah! E você zomba de mim! Ainda! Eu te ponho no bolso!
Ah! Meu Deus! Salve-se quem puder, é o Czar! (Atira-se sobre ele e o despedaça.)
OUTRO O GENERAL LASCY
Ah! Pai do céu! Ele atravessou o fosso. Pai Ubu, estamos avançando em todas as frentes.
OUTRO
PAl UBU
Pá! Pum! E quatro caíram mortos por aquele imenso tenente. Estou vendo, e não agüento mais, já estou crivado de pon-
130 Alfred Jarry
Ubu rei 131
PAI UBU
(Os dragões russos fazem uma carga e libertam o Czar.)
Santa Virgem, esse louco está me perseguindo! O que foi
O GENERAL LASCY
que eu fiz, santo Deus?! Ah! E ainda preciso atravessar de
Dessa vez é a debandada!
volta o fosso. Ah! Sinto que ele está chegando atrás de mim,
com o fosso bem à minha frente! Coragem, vamos fechar os PAI UBU
olhos! Ah! Eis a ocasião de pôr os pés à obra. Ora, senhores polo-
neses, em frente! Ou melhor, para trás!
(Ele pula o fosso. O Czar cai na vala.)
POLONESES
O CZAR Salve-se quem puder!
Ora, fiquei aqui dentro!
PAI UBU
Vamos! A caminho. Quanta gente, que fuga, que multidão,
132 AIfred Jarry
PAI UBU
Ah! Que tempo maldito, faz um frio de rachar pedras e a
pessoa do Mestre das Phynanças sofre muito com ele.
PILE
Ora! Senhor Ubu, já se recupetou do seu tertor e da sua es-
capada?
PAIUBU
Sim! Não estou mais com medo, mas alguma coisa ainda
escapa.
COTICE
iA parte.)
Que porcalhão!
PAI UBU
Ei, senhor Cotice, a sua orelha, como está?
COTICE
Tão bem quanto pode, senhor meu, estando tão mal. Em
conseqüência de que o peso do chumbo faz tudo pender na di-
reção da terra e não consegui extrair a bala.
PAI UBU
Pois é bem feito! Você também queria sempre bater nos
- .
134 Alfred Jarry
PILE
Peguei, agora peguei de jeito.
- 1-,
COTICE
(Ouve-se uma explosão, e o urso cai morto.)
Firme, amigo, ele começou a me largar.
PAI UEU PILE E COTICE
Sanctificetur nomen tuum. Vitória!
Ora, pobres homens, e vamos comer o urso cru? Não trou- " Não, eu não posso fazer nada! Estou deveras cansado!
xemos nada para acender o fogo. COTICE
PILE (Entrando.) Quanta neve, meus amigos, até parece que es-
E não temos as pederneiras dos nossos fuzis? tamos em Castela ou no Pólo Norte. Começou a anoitecer.
Daqui a uma hora vai estar escuro. Vamos nos apressar en-
PAI UBU quanto ainda enxergamos claramente.
Isso mesmo, é verdade. E depois, acho que vi não longe
PAI UBU
daqui um pequeno bosque onde deve haver galhos secos. Vá
buscar, senhor Cotice. Isso, ouviu, Pile? Mais depressa. Vocês dois, se apressem!
Ponham a carne desse animal no espeto, assem logo esse ani-
(Cotiee sai andando pela neve.)
mal, estou com fome!
PILE PILE
E agora, senhor Ubu, vá cortar a carne do urso. Ah, assim já é demais! Se não trabalhar, não vai comer na-
PAI UBU
da, está me ouvindo, fominha?
Ah, não! Talvez ele não esteja bem morto. Você, por outro PAI UBU
lado, já está quase meio comido e mordido por todo lado, e as- Ah! Por mim tanto faz, como a carne crua mesmo, quem
sim está pronto para a tarefa. Vou acendendo o fogo, enquan- perde são vocês. E também estou com sono!
to espero-o chegar com a lenha.
COTICE
(Pile começa a earnear o urso.) O que podemos fazer, Pile? Vamos preparar o jantar sozi-
Oh! cuidado, ele se mexeu! nhos mesmo, e não damos nada para ele. E ptonto. Ou então
só lhe damos os ossos.
PILE
Mas senhor Ubu, ele já está frio. PILE
Está bem. Ah, agora o fogo !lambou.
PAI UBU
Que pena, seria bem melhor comê-lo quente. Isto vai pro-
140 Alfred Jarry
PAI UBU
Ah! Que bom, agora ficou mais quente. Mas ainda vejo
russos por rodo lado. Que fuga, meu Deus. Ah!
(Cai adormecido.)
CENA I
Noite. Pai Ubu dorme. Entra a Mãe Ubu sem vê-lo. Escuridão
completa.
MAEUBU
Finalmente achei um abrigo. Aqui estou só, não é uma lásti-
ma, mas que corrida desenfreada: atravessar a Polónia em qua-
tro dias de ponta a ponta! Todos os males me assolaram ao mes-
mo tempo. Assim que aquele jumento gordo vai.embora, resol-
vo ir à cripta enriquecer. Logo depois quase fui apedrejada por
aquele Bougrelas e os outros raivosos. Perco o cavaleiro que me
escoltava, o palatino Giron, tão apaixonado pelos meus atrati-
vos que pasmava de encantamenro cada vez que me via, e até,
me contaram, quando não me via, o que é o cúmulo da ternu-
ra. Por mim, elê era capaz de se deixar ser cortado ao meio, po-
bre rapaz. A prova é que foi cortado em quatro por Bougrelas.
Paf pif pam! Ah! Achei que ia morrer. Depois, fujo de lá, per-
seguida pela multidão em fúria. Deixo o palácio, chego à beira
do Vístula, sentinelas em todas as pontes. Atravesso o rio a na-
do, esperando cansar meus perseguidores. De todos os lados,
a nobreza se reúne contra mim. Mil vezes quase chego a mor-
rer, sufocada por um círculo de poloneses encarniçados com a
idéia de me matar. Finalmente consigo enganar seu furor e, ao
cabo de quatro dias de correria pelas neves que cobrem o que
foi meu reino, consigo finalmente refugiar-me aqui. Não co-
mi nem bebi nesses quatro dias. Bougrelas me seguia muito
146 Ubu rei 147
Alfred Jarry
de perto ... Finalmente, eis-me salva. Ah! Estou morta de can- está falando? Não deve ter sido o urso. Merdra! Onde estão os
saço e de frio. Mas bem que gostaria de saber o que foi feito meus fósforos? Ah! Devo ter perdido na batalha.
do meu gordo polichinelo, quer dizer, meu respeitável esposo. MÃEUsu
Tomei dele muita finança. Roubei dele muita pataca. Muita (À parte.) Vamos aproveitar a situação e a noite, simulan-
cenoura arranquei daquela horta. E o seu cavalo das finanças, do uma aparição sobrenatural e fazendo com que ele prometa
que morria de fome: quase nunca via aveia, o pobre-diabo. Ah! perdoar nossas canalhices.
A história é boa. Mas ai de mim! Perdi meu tesouro! Ficou em
Varsóvia, e quem quiser que vá buscar. pAr Usu
Mas, por santo Antônio! Alguém está falando. Perna de Deus!
PAI Usu Quero ser enforcado!
(Começando a despertar.)
MÃE Usu
Peguem a Mãe Ubu, e cortem-lhe as orelhas! (Engrossando a voz.) Pois bem, Pai Ubu, alguém está mes-
MÃE Usu mo falando, e a trombeta do arcanjo que vai erguer os mor-
tos das cinzas e do pó final não falaria de outro modo. Escuta
Ah! Meu Deus! Onde estou? Perdi a cabeça. Ah, não! Deus
do céu! esta voz severa. Pertence ao arcanjo Gabriel, ql1e só pode dar
Graças a Deus entrevejo. bons conselhos.
O senhor Pai Ubu que dorme aqui perto de mim. PAI Usu
Vamos nos fazer de gentil. E então, meu gordo, dormiu bem? Oh! E essa, agora!
PAI Usu MÃE Usu
Muito mal! Era duro demais, aquele urso! Não me irítêrrompa, ou eu me calo e vai ser o fim da sua
Combate entre os vorazes e os coriáceas, mas os vora- carcaça!
zes comeram e devoraram por completo os coriáceas, co-
mo a senhora há de ver assim que o dia clarear; ouviram, PAI Usu
nobres palatinos? Ah, minha bandulha! Vou ficar quieto, não digo mais nada!
Continue, senhora Aparição!
MÃEUsu
Mas o que ele está babujando? Ficou ainda mais cretino do MÃE Usu
que era ao partir. De quem está falando? Dizíamos, senhor Ubu, que o senhor era um sujeito gordo!
PAI UBU Pois foi exatamente como eu te disse! E você é uma idiota,
minha carcaça!
Ah! Pois bem, então vá encontrar um palmípede agora! (Joga
o urso em cima dela.) MÃEUBU
PAI UBU
Oh! Mas ainda assim chegue mais perto, carniça! Ajoelhe-
se diante do seu senhor (Ele a agarra e a força a ajoelhar-se.);
você vai ser submetida ao derradeiro suplício.
MAEUBU
Ho, ho, senhor Ubu! CENA II
PAI UBU
Oh! oh! oh! E agora, já acabou? Pois estou s6 começando: Os mesmos e Bougrelas invadindo a caverna em frente de
torção do nariz, arrancamento dos cabelos, penetração do bas- seus soldados.
tãozinho de pau pelas orei hás, extração do cérebro pelos cal-
BOUGRELAS
canhares, laceração do posterior, supressão parcial ou mesmo
Avante, amigos! Viva a Polônia!
total da medula espinhal (Se pelo menos isso tornasse seu card-
ter menos espinhoso!), sem esquecer a excisão da bexiga nata- PAI UBU
t6ria e, finalmente, a grande degolação renovada de são João Oh! Oh! Espere um pouco, senhor Polaco. Espere eu ter-
Batista, totalmente copiada das santíssimas Escrituras, tanto minar com a senhora minha cara-metade! .
do Antigo quanto do Novo Testamento, atualizado, corrigido
BOUGRELAS
e aperfeiçoado pelo aqui presente Mestre das Finanças! Está
(Golpeando.) Tome, covarde, miserável, iacripanta, infiel,
bom assim, sacripanta?
maometano!
(Ele a despedaça.)
PAI UBU
MAEUBU (Respondendo.) E tome! Polaco desgraçado, safado, embria-
Piedade, senhor Ubu! gado, bastardo, hussardo, moscardo, tártaro, tarado!
(Grande rumor na entrada da caverna.) MAEUBU
(Golpeando também.) Tome, capão, porcalhão, malsão,
bestalhão!
(Os Soldados se atiram sobre o casal Ubu, que se definde o me-
lhor que pode.)
PAI UBU
Deus! Quantos reforços!
156 Alfred Jarry Uburei 157
BOUGRELAS PILE
Batam, batam mais! Coragem, senhor Ubu!
PAl DBU
Ah! Acho que desistiram de nos alcançar.
MÃEDBU
Sim, Bougrelas foi ser coroado.
PAl DBU
Pois não tenho a menor inveja da coroa dele.
MAEDBU
Tem toda razão, Pai Ubu.
(Desaparecem ao longe.)
CENA IV
o convés de um navio ao largo, perto da costa no Bdltico. No
convés, o Pai Ubu e todo seu bando.
o COMANDANTE
Ah, que bela brisa!
PAI UBU
De fato, navegamos com uma rapidez prodigiosa. Devemos
estar fazendo pelo menos um milhão de nós por hora, e nós
que, ainda por cima, depois de feitos, não se desfazem mais. É
bem verdade que temos o vento por trás.
PILE
Que triste imbecil.
(Uma rajada'chega, o navio aderna e faz o mar cobrir-se de
espuma.)
PAI UBU
Oh! Ah! Deus! Estamos naufragando. Mas o seu barco está
tombando de lado, e vai afundar.
O COMANDANTE
Todo mundo para o lado de sotavento! Amarrem a mezena!
PAI UBU
Ah, não! Mais essa agora! Não fiquem todos do mesmo la-
do! É uma imprudência. E se o vento mudar de direção? Todo
162 Alfred Jarry Ubu rei 163
O COMANDANTE (Encharcado.)
Não encostem, caçar todas as velas. Suspeitai de Satã e suas pompas.
PAI UBU PAI UBU
Mas não, não é hora de sair à caça! Estou com pressa. En- Garçom, bebidas para todos.
costem logo, estão me ouvindo? A culpa é sua, capitão de
. (Todos se acomodam para beber.)
meia-tigela, se não chegarmos. Já devíamos ter encostado. Oh,
oh! Mas então vou eu comandar! Preparar para virar! Valha- MAEUBU
nos Deus! Molhar a âncora, virar de proa para o vento, virar Ah, que delícia! Rever dentro em pouco a doce França, nos-
de popa para o vento. Içar as velas, caçar as velas. Retranca pa- sos velhos amigos e nosso castelo de Mondragon!
ra cima, retranca para baixo, retranca para o lado. Estão ven-
do, vou indo muito bem. Vamos ficar de través para as vagas, PAI UBU
e tudo vai dar certo. Sim! Logo estaremos lá. Dentro em pouco chegaremos ao
castelo de Elseneur.
(Todos se contorcem, a brisa reftesca.)
PILE
O COMANDANTE A idéia de rever minha querida Espanha me devolve a
Abrir a bujarrona, caçar a escota do estai da proa! coragem.
PAI UEU COTICE
Nada mal, está até bem! Está ouvindo, Senhora Tripulação? Sim, e vamos encantar nossos compatriotas com a narrati-
Abrir a burra mijona, e caçar a esctota que ficou à toa! va de nossas m~ravilhosas aventuras.
(Vdrios se acabam de rir. Uma onda varre o convés.)
PAI DBU
Oh, é evidente! E eu serei nomeado Mestre das Finanças
PAI UBU
de Paris.
Oh, que dilúvio! É o efeito das manobras que foram or-
denadas. MAEUBU
É isso! Ah! Como joga!
MAE UBU E PILE
É uma coisa deliciosa a navegação! COTICE
(Mais uma onda varre o convés.) Não é nada, acabamos de dobrar a ponta de Elseneur.
164 Alf,ed Ja,ry
PILE
E agora nossa nobre nau avança a toda, singrando as vagas
escuras do mar do Norte.
PAI UBU
Mar feroz e inóspito que banha o pais chamado Germ:inia,
assim denominado porque as plantas nele germinam. DOSSIÊ
MAEUBU
É isso que eu chamo de erudição. Dizem que o pais é mui- ALFRED ]ARRY
to bonito.
PAI UBU
Ah, senhores! Por mais belo que seja, não se compara
com a Polônia. Se não existisse a Polônia, não existiriam os
poloneses!
Fim.
CRONOLOGIA DA
VIDA DO AUTOR
1873 Nasce Alfred Henri Jarry no dia 8 de setembro, na cidade de
Lavai. É o segundo filho de Anselme e Caroline Jarry (Char-
lotte, sua irmã, nascera em 1865).
Seu pai dirigia uma fábrica de tecidos e era o primeiro de sua
família a não exercer um ofício manual. O casamento com
Caroline Quernest, filha de um magistrado, consolidou sua
ascensão social.
1878 Ingressa no Petit Lycée de Laval, onde estuda com Madame
Venel, que usará como personagem em L'Amour absolute (O
amor absoluto).
1879 Sua família passa por dificuldades financeiras e seu pai co-
meça a beber. Alfred e sua irmã são levados por sua mãe para
viver em Saint-Brleuc, onde vive seu pai, um juiz de paz. Em
outubro, Alfred começa a freqüentar a escola dessa cidade.
1885 A partir desse ano escreve seus primeiros textos em verso e
prosa, mais tarde compilados na obra intitulada Ontogénie.
Ganha vários prêmios em virtude de seu destacado desem-
penho acadêmico (latim, grego, francês, inglês, composição
e desenho).
1888 Muda-se para Rennes, cidade natal de sua mãe.
Freqüenta o Liceu de Rennes, onde conhece os irmãos Hen-
ri e Charles Morin. Henri lhe apresenta uma peça escrita por
Charles em 1885, Les polonais (Os poloneses), em que se nar-
ram as aventuras do senhor Hébert, professor de física, que
168 A1fred Jarry Ubu rei 169
fora convertido em rei da Polônia. Esse professor, motivo de Conhece Lugné-Poe, diretor do Théâtre de l'Oeuvre.
chacota entre várias gerações de alunos, havia recebido, entre Em novembro, é incorporado ao serviço militar no regime
outros, os apelidos de P.H., Pere Heb (Pai Heb), Eb, Ébé, de infantaria de Laval, depois de vários pedidos de aquarte-
Éban. Será ele a base para o protagonista de sua mais famosa lamento em Paris. Deveria prestar serviço por três anos, mas
peça, Ubu roi (Ubu rei).
ao final de 1895 é dispensado por se encontrar doente.
Os poloneses é encenada em dezembro de 1888 e em janeiro Rompe com Léon-Paul Fargue e, pouco depois, com Remy
1895
de 1889 na casa dos Morin.
de Gourmont.
1890 Escreve Onésime ou les tribulations de priou, que irá se trans- O Mereure de France publica L'Aete héraldique e L'Acte terres-
formar em Les polyedres ou Les comes du PR, e mais tarde tre, ambos presentes em César antéchrist.
em Ubu coeu (Ubu coenudo).
Em outubro, morre seu pai, em Laval.
1891-92 Acompanhado de sua mãe, muda-se para Paris para tentar
Em novembro, é publicado César antéchrist.
ingressar na École Normale Supérieuf, mas é reprovado. Fre-
qüenta o Liceu Henri IV; onde estuda retórica superior e se 1896 Propõe a Lugné- Poe a encenação de sua peça Ubu roz
prepara para a próxima prova da École Normale Supérieur. (Ubu rei).
Dentre as pessoas que conhece, destacam-se o professor de Durante abril e maio, a revista Livre d'Art, em pré-lança-
filosofia Henri Bergson e Léon-Paul Fargue. mento, publica Ubu rei.
Em Paris, volta a mexer na peça Os poloneses. Faz muitas mu- Jarry é convidado para trabalhar no Théâtre de l'Oeuvre,
danças e uma das mais importantes é a alteração do nome da onde prepara a programação ao lado de Lugné-Poe.
personagem P.H. para Pore Ubu (Pai Ubu). Ubu rei, em cinco atos, é publicado p~o Mercure de France.
1893 O texto intitulado Guignol é publicado no jornal L'Écho de Em dezembro, estréia Ubu rei no Théâtre de l'Oeuvre
Paris littéraire illustré, dirigido por Catulle Mendes e Marcel numa sessão tumultuada. Nos dias seguintes, os críticos,
Schwob. A este último dedicaria Ubu rei. indignados, atacam a peça, que teve curta temporada, com
Em malo perde a mãe. Começa a beber e a escrever cada vez apenas duas apresentações, e só voltou a ser encenada após
maIS. a morte do autor.
Em dezembro, torna-se colaborador da revista L'Art Litté- 1897 A Revue Blanche publica o artigo "Question de théâtre"
raire. ("Questão de teatro"), em que o autor contesta as críticas
1894 Freqüenta os salões da escritora Rachilde (sua grande amiga que recebera na estréia de Ubu rei.
por toda a vida), esposa de Alfred Vallette, diretor do Mercu- Publicação de uma edição fac-sÍmile e autografada de Ubu
re de France, e o gtupo de Mallarmé. rei, pelo Mercure, que ainda edita Les Jours et les nuits.
Em outubro, o Mercure de France publica seu primeiro livro, Prepara Ubu cocu ou L'Achéoptéryx (Ubu cornudo).
Les Minutes de sable mémoria! (Minutos de areia memorial). 1898 Ubu rei é encenado no Théâtre des Pantis com as marionetes
Sai o primeiro número da revista L'Ymagier, ilustrada e diri- de Pierre Bonnard.
gida por Jarry e Remy de Gourmont. Muda-se para uma vila em Corbei! com ValIette, Rachi!de,
Ubu roi (Ubu rei) é encenada pela primeira vez na sede do Pierre Quillard, Hérold e Marcel Colliore, todos seus ami-
Mercure de France com as portas fechadas.
J gos do Mercure de France. A residência deles será conhecida
170 A1fred Jarry Ubu rei
Publicações póstumas
1911 Cestes et opinion du docteur Faustroll, pataphysicien
1943 La dragonne
----------------.~~"--------------------------------------------
174 AlfredJacry
FARIA, João Roberto. "Jarry, Apollinaire e o teatro de vanguar- PRADO, Décio de Almeida. "Ubu rei". ln: Teatro em progresso.
dã'. ln: O teatro na estante. São Paulo: Ateliê Editorial, São Paulo: Perspectiva, 2002. 316p.
1998, pp. 199-206. Crítica do espetáculo encenado por Alfredo Mesquita com
6tima resenha da tradução de Ubu rei realizada por José os alunos da Escola de Arte Dramática (EAD), em 1958.
Rubens Siqueira e publicada pela editora Max Limonad, em
RlNA, Signer. Ingredientes para uma "nouvelle cuisine':· o rei da
1986, com prefácio de Cacá Rosset. O historiador e crítico do
teatro brasileiro recupera a história da criação do texto e anali- Vela ao molho de Ubu rei. São Paulo: FFCLH, 2000. 238p.
sa os procedimentos inovadores de Jarry. Tese de doutorado defendida na Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, que
FREITAS, Luís Fernando Viti de. Os movimentos circulares de apresenta a vida e a obra dos escritores Alfred Jarry e Oswald de
Ubu rei. São Paulo: FFLCH, 1999. 178p. Andrade e analisa as peças Ubu rei e O rei da vela, consideran-
Tese de doutorado defendida na Faculdade de Filosofia, do seu parentesco temático e formal.
Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, que
destaca três características fundamentais de Ubu rei: a violên-
cia, o humor e o grotesco.
,
JARRY, Alfred. "Da inutilidade do teatro no teatro". ln: BORlE,
Monique; ROUGEMONT, Martine de; SCHERER, Jacques.
Estética teatral Textos de Platão a Brecht. 2 a ed. Tradução de
Helena Barbas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,
2004, pp. 362-366.
O livro publica a íntegra do manifesto mais importan-
te de Alfred Jarry, "Da inutilidade do teatro no teatro", edi-
tado pela primeira vez em setembro de 1896, no Mercure de
France, de Paris.