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Presidente da República

Dilma Rousseff

Ministro da Cultura
Juca Ferreira

Fundação Nacional de Artes

Presidente
Francisco Bosco

Diretor Executivo
Reinaldo Veríssimo

Diretor do Centro da Música


Marcos Lacerda

Coordenador de Música Erudita


Flávio Silva

Coordenadora do Projeto Coral


Maria José Queiróz Ferreira

Organização: Eduardo Lakschevitz Revisão: Lucy Schimiti


Capa: Paula Nogueira Design e-book: Vanessa Maia (duo.me
design)
Painéis Funarte de Regência Coral (2014 : Rio de
Janeiro, Brasil). P411 Cadernos do painel [recurso
eletrônico] : a preparação do regente / Eduardo
Lakschevitz (org.) ; Angelo Dias ... [et al.] . – Rio de
Janeiro : Oficina Coral, 2016.

1. Regência de coros - Congressos. 2. Regência


(Música) - Congressos. 3. Música – Instrução e estudo
- Congressos I. Lakschevitz, Eduardo. II. Dias, Angelo
de. III. FUNARTE. IV. Título.

CDD – 782.5
Índice
Autores
Apresentação
I - Entre mãos e corações
II - Contextos diversos, cantorias distintas
III - Um pouco de tudo
IV - Um gesto, múltiplos cantos
V - Muitas perguntas, muitos caminhos, muitas canções
VI - As múltiplas dimensões da prática coral
Autores
Eduardo Lakschevitz é Doutor em
Música pela Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e
Mestre em Regência Coral pela
Universidade de Missouri-Kansas City
(EUA). É professor da UNIRIO, onde
leciona a cadeira de História da
Música e coordena o Programa de
Mestrado Profissional em Ensino das
Práticas Musicais. É regente do Coro da TV Globo.
Pesquisador de aspectos comportamentais na produção
musical, realiza projetos em educação empresarial nos
quais aborda a música como ferramenta de
desenvolvimento cultural e humano.

Angelo Dias desenvolve intensa


atividade profissional no campo da
música vocal, seja como cantor
(barítono), regente ou professor.
Desde 2007 tem participado como
regente e professor dos Painéis
FUNARTE de Regência Coral. Angelo é
Doutor em Artes Musicais (DMA,
Canto e Regência Coral) pela
University of Oregon (USA), Mestre em Música (MM, Canto)
pela University of Wyoming (USA), e Bacharel em Canto
pela Universidade Federal de Goiás. Desde 1992, é
professor na EMAC/UFG.
Gisele Cruz é bacharel em música pela UNESP e mestranda
pelo Programa de Mestrado
Profissional em Ensino das Práticas
Musicais da UNIRIO. Coordena várias
atividades vocais do Centro de Música
do SESC Vila Mariana, entre elas o
coral infantil com o qual participou do
CD e DVD da cantora Fortuna, Na
Casa da Ruth. Também pelo SESC
editou o manual Canto, Canção,
Cantoria – Como Montar um Coral Infantil. É regente dos
corais infantil e juvenil do Colégio Dante Alighieri. Integra a
equipe de professores dos Painéis de Regência Coral
realizados pelo Centro da Música da FUNARTE, em todo o
país. Escreveu para a AAPG – Associação de Amigos do
Projeto Guri o “Livro Didático para Coral Infanto-Juvenil –
Básico I” – versão para o educador, e versão para o aluno.

Lucy Maurício Schimiti é bacharel


em Música e Mestre em Letras. Atua
há mais de 30 anos na área de
música vocal, dando aulas de
regência e conduzindo grupos corais
especialmente na Universidade
Estadual de Londrina, Paraná. Esteve
à frente de vários projetos nessa
área, incluindo assessorias e
participação em festivais e simpósios dentro e fora do país.

Samuel Kerr tem conduzido sua carreira musical ao som


da voz cantada, seja como regente, arranjador, organista ou
professor. Dentre seus trabalhos corais estão os realizados à
frente do Coral Paulistano do Teatro Municipal de São Paulo,
Coral da Unesp, por ele criado, Cia Coral, Associação Coral
Cantum Nobile, Coral dos Estudantes
de Medicina da Santa Casa de São
Paulo, Madrigal Psichopharmacom e
muitos movimentos corais por ele
liderados. Foi também Diretor da
Escola Municipal de Música de São
Paulo, Regente da Orquestra Sinfônica
Jovem Municipal de São Paulo e
Professor do Instituto de Artes da
Unesp. Atualmente tem participado dos Painéis Funarte de
Regência Coral

Vladimir Silva é Doutor em Música


(Regência) pela Louisiana State
University (EUA). Já regeu vários
grupos vocais/orquestrais, atuando
como regente e solista (tenor) na
Argentina, França, Itália, Áustria,
Alemanha e Estados Unidos. Tem
colaborado com diversas
universidades e participado de
eventos musicais no Brasil, na Europa e na América do
Norte. Lecionou nos Festivais de Música de Goiânia-GO
(2007), Londrina-PR (2009 e 2010) e nos Painéis FUNARTE
de Regência Coral. Atualmente, é professor da UFCG e
Diretor Artístico do Festival Internacional de Música de
Campina Grande.
Apresentação
A atividade coral no Brasil está se transformando muito
rapidamente. Categorias e padrões que outrora serviram
como referência parecem não mais se aplicar à análise e à
prática dessa música. Coros de todas as origens estão
expostos a idiossincrasias da vida contemporânea; estas
influenciam o comportamento dos cantores, a dinâmica de
ensaio, a escolha do repertório e os estilos de produção
vocal, o que suscita um questionamento de paradigmas até
há pouco tempo aceitos como universais. Para acomodar
tais mudanças, regentes e professores de música têm
buscado caminhos de trabalho alternativos, que equilibrem
fidelidade a seus ideais artístico-musicais e maneiras de
contextualizar a música coral na vida contemporânea, de
forma a motivar cantores e instituições mantenedoras.
Mas a alta velocidade dessas mudanças é acompanhada
com certa dificuldade pelas instituições acadêmicas, cujas
estruturas são complexas e, naturalmente, pouco flexíveis.
A bibliografia da área e os programas de cursos regulares
com frequência oferecem um tipo de formação distante dos
processos de trabalho da maioria dos regentes e
educadores brasileiros do século XXI.
O Painel FUNARTE de Regência Coral, entretanto, tem-se
mostrado um local privilegiado de observação da realidade
coral brasileira. Entende-se que, por sua curta duração 1 o
Painel não se configura como um espaço de formação
básica de regentes, mas sim de discussão, troca de
experiências e realização de atividades práticas. O público
do Painel mistura regentes experientes e novatos, de nível
técnico diversificado, vindos das mais variadas tendências
da atividade coral. Juntos discutem questões relativas ao
seu trabalho e preparam um repertório, que é apresentado
ao final do evento.
Dessa maneira, podemos pensar que o trabalho de
preparação de um professor para o Painel é semelhante ao
da maioria dos regentes de coros no Brasil, que lidam com
grupos heterogêneos formados por cantores voluntários,
geralmente com tempo de ensaio reduzido e com demandas
institucionais a ser cumpridas. Tal configuração requer do
regente competências que vão muito além daquelas em
torno das quais gravita o ensino acadêmico de música, tais
como planejamento, flexibilidade, gestão do tempo e
liderança.
Os artigos deste livro não se pretendem didáticos, não
propõem modelos, padrões ou metodologias e muito menos
tentam esgotar o tema. Os autores simplesmente
comentam sua preparação para um Painel, expondo
aspectos musicais e não-musicais desse processo. Abordam
temas como a organização de repertório, o equilíbrio entre a
experiência e a expectativa pelo inusitado, o planejamento
de ensaios e a influência do curto tempo de trabalho no
resultado final apresentado. Mais ainda, mencionam
questões que estimam como as mais presentes no dia-a-dia
dos regentes brasileiros da atualidade. Este não é um
manual de regência; tampouco segue formatação
acadêmica. Os artigos são conversas informais com os
leitores, nas quais regentes experientes expõem idéias
sobre a realidade de seu trabalho: fazer música coral nos
dias de hoje.
O Painel FUNARTE de regência coral tem a duração de
uma semana. Dois professores e um pianista acompanhador
trabalham com regentes e educadores locais aspectos que
vão da montagem de programa à dinâmica de ensaio e ao
gestual de regência. Por sua abrangência nacional, o Painel
oferece aos professores, também, uma possibilidade de
diagnóstico da atividade coral no país. Desde a retomada
desse projeto, em 2007, foram realizadas edições do Painel
em: Mossoró (RN), Aracajú (SE), Maceió (AL), Maringá (PR),
São João del Rey (MG), Santarém (PA), Rio Branco (AC),
Teresina (PI), Mogi das Cruzes (SP), Araxá (MG), Natal (RN),
Belém (PA), Goiânia (GO), Campina Grande (PB), Campo
Grande (MS), Vassouras (RJ), Quixadá (CE), São Carlos (SP),
Ponta Grossa (PR), Cuiabá (MT), Mariana (MG), Crato (CE),
Sobral (CE), Palmas (TO), João Pessoa (PB), Boa Vista (RR),
Rio Branco (AC) e São Luis (MA), Belém (PA), Crato (CE) e
Curitiba (PR).
Entre mãos e corações
Ângelo Dias

1 No princípio era...

Escrever sobre o que fazemos é algo curioso. Quando nos


dedicamos a uma tarefa por longo tempo, com a mesma
preenchendo todos os espaços de nossa existência, nem
sempre somos capazes de traçar com perfeição de detalhes,
desde a origem, todos os degraus que subimos (ou
descemos...) para acumular a farta bagagem que
carregamos conosco. As experiências vão-se acumulando,
algumas vezes ordenadamente, outras apenas se
empilhando mesmo, e a capacidade de avaliar, de apreciar
e de realizar se torna simplesmente parte de nós. Quando
se está lá pelo que chamamos hoje de “tempos idos” e se
começa uma caminhada, não se imagina, nem de longe, a
que distâncias nossa vontade, nossa persistência, enfim,
nossa teimosia em manter a vida funcionando irão nos
conduzir. Tudo se torna simplesmente parte de nós. Por mais
atenção que um médico, um engenheiro, ou uma alegre
costureira dediquem a seu trabalho no agora, uma grande
parte dos objetivos propostos é alcançada simplesmente
sem pensar, porque já sabem fazer aquilo à perfeição. A
isso, chamamos experiência.
Pensar sobre a aquisição deste know-how (utilizando-nos
do jargão emprestado da língua inglesa) é percorrer para
trás o caminho dos tijolos amarelos que levou Dorothy e
seus amigos a Oz. Só que, na vida real, o pavimento é
totalmente irregular. Alguns trechos são íngremes, quase
impossíveis de serem galgados, outros repletos de farpas
pontiagudas que, ferindo-nos, tornam-se cicatrizes que nos
marcam para sempre. Em alguns momentos do percurso, é
claro, as pedras são lindas, arrumadinhas com gosto, mas
sempre desembocam outra vez nas partes áridas da trilha.
E Oz é um lugar singular... Depois que se chega lá, por bela
que seja, descobre-se que a caminhada não terminou. Ao
contrário, precisamos agora descobrir o que fazer na cidade
mágica. Porque a caminhada nos deu mais perguntas que
respostas. É sabido que o importante é sempre fazer as
perguntas certas, e a primeira que fica na cabeça do
viajante é justamente “por que mesmo eu vim para cá?...” E
é isto que nos perguntamos um dia após o outro. Para que
adquiri toda esta experiência? Qual o objetivo de me tornar
um profissional capacitado? De que me serviram as horas
intermináveis de estudo, de trabalho, de prática, de suor e
de lágrimas (essas são tantas...)? E a resposta não é “para
um dia viver tranquilo, para me aposentar tranquilo, para
gozar a vida tranquilo”. É evidente que a segurança
material a que todos aspiramos faz parte do plano diretor
da vida, mas não é a meta central. Pelo menos, não deve
ser. Se for, a vida se converte em mero trabalho braçal,
rotineiro, que alimenta o corpo e deixa faminto o espírito. É
preciso que o ser humano tenha algo mais que o mova.
Uma vontade, um impulso que o faz transcender. Ou, se
quisermos, um ideal...
Não é meu objetivo, neste dedo de prosa, tentar
transformar ninguém em filósofo de plantão, isto porque eu
mesmo não o sou. Mas aprender a reconhecer as
necessidades fundamentais do espírito, além daquelas do
corpo, é o único caminho para a felicidade, para a paz. Ah,
aí está então... Todos nós queremos ser felizes! O problema
é que, tão somente saciados materialmente, nunca seremos
realmente felizes, a menos que haja aquele algo mais. Está
na natureza íntima do ser a necessidade de transcender,
ainda que, muitas vezes, esta parte de nós não seja bem
compreendida. Claro que a posse do necessário é fator
indiscutível para a manutenção da dignidade do viver, da
cidadania. Mas em qualquer nível social ou econômico é
possível avançar para mais além.
Lembro-me de uma história que ouvi certa vez numa
conferência proferida pelo querido professor José Raul
Teixeira, do Rio de Janeiro, sobre uma senhora do interior de
Minas Gerais que passou sua existência inteira fazendo
bolos de noiva. Eram sua especialidade. E tornou-se tão
famosa que seu negócio caseiro cresceu e ultrapassou
fronteiras. Mas ela não era apenas mais uma confeiteira. Ela
resolveu transcender. Cada noiva que a procurava era
convidada a sentar-se, a comer um bolinho, e a conversar
sobre a vida, sobre seus sonhos, suas esperanças, seus
temores. Somente depois de mergulhar no íntimo de cada
uma delas, a senhora sentia segurança para saber de qual
bolo cada nubente iria gostar mais. E ela nunca errava. Mas
o mais curioso é que sua cozinha se tornou uma espécie de
consultório, onde se fazia terapia sem pagar nada. Quantos
casamentos ela manteve, dizia o conferencista, quando as
moças lá chegavam em desespero. Anos mais tarde, ela
ainda recebia fotos e cartas de muitas de suas clientes-
amigas. Ela poderia simplesmente ter um catálogo com
belas fotos de bolos já produzidos, mostrá-lo aos
contratantes, e pronto. Mas não era assim que ela via sua
atividade. Ela transcendia.
É por isto que não consigo falar da minha profissão sem
trazer à baila a palavrinha transcender, ou seja, usar o que
sabemos para além dos limites técnicos. O aprendizado do
regente, do professor, se converte numa caixa de
ferramentas em que estão contidas as perguntas e as
respostas, os problemas e as soluções que ajuntamos, a
cada dia de trabalho, ao longo da vida. E o mais fascinante
nesta carreira é que todo dia aparece algo novo, inusitado,
impensado mesmo, no campo musical e no pessoal, e que
nos exige quebrar a cabeça sem encontrar nada de
definitivo na maleta do barbeiro. A gente abre, olha lá
dentro e diz _ “Mmm... e agora?” Mas aí reside a beleza da
vida: a novidade, a inextinguível capacidade que ela tem
para a renovação, para a diversidade. Então, percebemos
que com dois ou três apetrechos que retiramos da maleta,
acrescidos de um elemento novo que criamos na hora,
fazemos uma combinação mágica, uma poção, e o resultado
lá está: soluções musicais e humanas que são únicas. Os
compositores asseguram que seu trabalho é composto de
uma pequena parcela de inspiração e uma enorme de
transpiração. Assim também somos nós, regentes e
professores. Mas nem sempre a coisa é assim, cor-de-rosa...
Infelizmente, a regência é uma atividade profissional e
artística que nem sempre é encarada com a mesma
disciplina empregada em outras áreas da música. É muito
comum aparecerem regentes de todos os matizes pelo
mundo afora, alguns mesmo que literalmente caem de
paraquedas no trabalho, às vezes por necessidade
financeira, por circunstâncias inusitadas na escola ou na
empresa em que trabalham, ou porque uma amiga vai se
casar e precisa de um grupo para fazer a parte artística do
evento. A lista de motivos não acaba. Talvez o caso mais
curioso seja o do aluno de música que sempre teve aversão
à aula de canto coral e acaba indo para uma escola
justamente formar um coro. E com alunos que têm aversão
ao coral... No tempo de plantar, o aluno avesso não
percebeu o quanto lhe seria agradável e útil aquela parte de
sua formação. Aqui se faz, aqui se paga, dizia minha avó.
Então, se a pessoa tem alguma formação musical, toca um
pouco de violão, teclado ou outro instrumento qualquer, e
surge um pedido para fazer um coro em algum lugar, lá vai
nosso intrépido aventureiro ajuntar aqueles voluntários (os
forçados são os piores...) e colocá-los para cantar. Caixa de
ferramentas? “Bem, eu trouxe a caixinha de rapé, serve?”
Seria realmente engraçado, se não fosse tão sério.
Em todas as atividades, das mais simples às mais
complexas, a formação antecede a execução, o aprender
antecede o ensinar. Isto porque só se dá o que se tem. Não
estou dizendo que alguém que não teve formação
específica na área coral não deveria se converter em
regente da noite para o dia, se surgir a contingência. Digo
que, se isto acontecer, no mesmo dia se iniciará também a
busca do neófito pelo conhecimento especializado, pelo
estudo da nova área a que passou a se dedicar. Quem não
sabe, que aprenda; quem não conhece, que investigue;
quem não realiza, que se mova. O ingrediente fundamental
é a vontade.
Conheço muitos regentes que começaram assim,
estudando e progredindo juntamente com o coro que
formaram, “ralando”, termo usado na gíria para caracterizar
a atividade daquele que se debruça sem trégua sobre
alguma coisa para extrair dela o máximo em experiência e
aprendizado. E foram crescendo, acumulando
conhecimento, e se tornaram muito bons no que fazem. Mas
estes não são maioria, infelizmente, pois o número maior é
o dos que entram numa “zona de conforto” e dali não
avançam mais. E o que é pior, ancoram seus grupos
eternamente no mesmo patamar, impedindo que eles
continuem crescendo além do ponto em que seu regente
estacionou. Sempre me chamaram a atenção certos
anúncios de emprego que são postados por aí: “contrata-se
tal ou tal profissional, com no mínimo dois anos de
experiência.” Se ninguém contratar novatos, como adquirir
a desejada experiência? Um regente pode realmente brotar
de outra área da música, mas a formação básica está lá:
leitura musical, conhecimentos de harmonia e estrutura,
treinamento auditivo. Eventualmente, um professor de
história pode até assumir uma aula de português em níveis
mais elementares, desde que se dedique a estudar as
especificidades que o conteúdo programático exige. Isto
porque ele é alfabetizado, tem familiaridade com a escrita e
a leitura; em suma, tem a formação básica. É claro que ele
não terá o mesmo sucesso que um profissional formado em
língua portuguesa, mas poderá realizar um trabalho eficaz,
dentro dos limites impostos a ele. E crescer muito, estudar,
e talvez se tornar um excelente mestre na nova área.
Trazendo o exemplo para nossa área, o mesmo não se dá
com os ditos regentes que não têm nem mesmo noções de
música, uma formação absolutamente elementar, que seja.
Como lidar com o que não se conhece? No instinto? Na
adivinhação? Pode até ser que funcione no primeiro dia,
mas, a partir do segundo encontro com seu grupo, que
fazer? Mas os exemplos acima não funcionam para todos. A
maioria dos músicos de outra formação nunca será regente,
a menos que tenha aquele foguinho sagrado guardado lá
dentro, esperando para ser soprado com o estudo, a busca
do conhecimento e a prática. Esse foguinho é que dizem ser
o talento? Prefiro chamar de predisposição, inclinação
natural. Mas é preciso experimentar. Quantos regentes se
descobrem tardiamente?
Somos todos seres em formação. Temos uma capacidade
assombrosa, divina mesmo de aprender. E todo cuidado é
pouco, pois isto nos serve para os dois lados da moeda... O
regente, ou o candidato a ser um deles, precisa estudar, ter
curiosidade, mergulhar em assuntos variados no campo que
tem em vista. Só assim sua caixa de ferramentas vai
aumentando em quantidade e qualidade, de forma que
possa melhorar seu trabalho e promover o aprimoramento
de seus comandados. Se não, a meta maior do regente, que
deveria ser a de qualquer um, jamais será alcançada. E qual
seria ela? Fazer uma diferença na vida das pessoas. Ponto!
A música em grupo é considerada por muitos como o
maior instrumento de socialização e integração do
indivíduo. Quem canta ou toca em conjunto desenvolve
habilidades cognitivas, percepções, e compartilha sua
intimidade com o outro de forma inusitada. Sem isto, não
haveria como fazer tanta gente diferente, reunida numa
sala de ensaio ou no palco, produzir sons tão variados e
ordená-los de forma a torná-los compreensíveis para quem
escuta. E aqui vem a outra parte do processo: o público. O
ouvinte também tem que experimentar sua parcela de
transformação, ou nossa atividade musical de nada terá
valido. “E quem não está preparado para ouvir e absorver?”,
dirão alguns. Vamos fazendo música até isto acontecer,
melhorando estratégias e meios.
Poderemos então nos perguntar: a música é fim ou é
meio? E a resposta é: ambos! Para o artista, a excelência
em sua prática diária é uma meta a ser atingida, porque ele
ama e respeita o que faz, e por isto quer que seu produto
profissional se confunda consigo mesmo. O artista é sua
arte. A música nasce da camada mais profunda do ser,
aquela que está lá na base de tudo, e percorre veloz ou
lentamente, não importa, todos os outros níveis acima dela
até jorrar na nossa superfície visível. Em sua ascensão, ela
vai trazendo consigo um pouco do que encontra no caminho
e, quando surge finalmente, vem completa, plena de nós
mesmos, do que somos hoje, do que acumulamos ao longo
da vida e do que armazenamos nas nossas camadas
interiores. Parece profundo. E é mesmo. Nós atingimos as
pessoas pela música porque por meio dela conversamos
com o outro. É um diálogo, porque o outro, o público, nosso
interlocutor, nos devolve vivamente suas impressões. É um
processo mágico, tão belo que vale cada alegria e cada
percalço da estrada de tijolos amarelos.
Portanto, para termos o que dizer aos nossos
companheiros de jornada, temos a obrigação de nos
aperfeiçoarmos, pessoal e profissionalmente, para que
nossa música seja tecnicamente vitoriosa, mas que nossa
mensagem atinja também seus objetivos: transformar,
melhorar, estimular. A música coral é poderoso instrumento
para isto, mas as mãos que a manejam, por vezes,
desperdiçam a oportunidade que têm. Quanto mais se
dedica o regente ao estudo, ao saber específico da nossa
arte, mais sutil, mais rica em detalhes vai sendo sua
comunicação com seus cantores e com seu público. E o
resultado se mostra quando o coro se sente feliz, realizado
após uma apresentação. E quando nós estamos ao volante,
voltando para casa à noite, vamos repassando cada música
na cabeça e pensando: “foi tão bom, teve esta derrapada
aqui, aquela tropeçada acolá, mas foi tão bom”. Esta é a
matemática: estudo + escolhas embasadas + emoção =
dever cumprido.
E o coro deve, igualmente, compreender o que significa
fazer a diferença na vida de alguém. Se não, nós regentes
ficamos lá na frente tentando aquecer um enorme bloco de
gelo. O grupo, influenciado pelo exemplo do regente, muito
mais que pelo seu discurso, deve saber que está ali por uma
razão. Que cantar, fazer música; é uma desculpa deliciosa,
sublime quase, para algo muito maior. E há coros de todos
os formatos e coristas de todo tipo. Alguns vão
compreender estes conceitos de forma profunda; outros, só
superficialmente. Há grupos em que o intelecto vai ajudar a
chegar ao objetivo; em outros, atrapalhar. Mas há uma
ferramenta que o regente vai afiando ao longo do tempo e
que é a mais importante da caixa: o sentimento. Tocar o
coro produzirá um efeito cascata que fará com que eles
toquem o público, mas por nosso intermédio. Que processo
formidável! Se o regente domina seu conhecimento técnico,
então poderá sensibilizar mais facilmente, com precisão,
porque sabe como fazer. Mas só sentimento, muitas vezes,
não basta. Podemos chorar até nos desidratar quando um
coro que tem grandes limitações físicas e sociais canta uma
música bem simplesinha com todo amor. Mas quando
vemos um grupo que tem potencial apelando para o
sentimentalismo (que é algo bem diferente), desapontamo-
nos; sentimos quanta energia está sendo desperdiçada,
quanto potencial transformador é jogado fora. Carpe diem.
A quem muito foi dado, muito será cobrado, não é assim?
O estudo do regente nunca termina, como não acaba o
do médico, do legislador, porque chegar em Oz é como
chegar em novo começo. É como se o estudo fosse um pré-
começo, uma etapa introdutória, depois da qual vem
realmente o aprendizado. É fazendo que se aprende de
verdade, mas para fazer é preciso aprender primeiro. Não é
um espantoso paradoxo? Mãos à obra, então!

2 Com a mão na massa...

Vamos falar um pouco sobre os grupos que encontramos


nesta vida. Há os profissionais, os acadêmicos (de
conservatórios, de escolas de música etc.) e os leigos,
também chamados de amadores. Por alguma razão, o termo
“amador” – que simplesmente quer dizer que alguém não é
especialista em alguma coisa, mas que ama fazer aquilo no
nível que consegue –, tornou-se algo depreciativo em nossa
língua. Um amateur choir nos Estados Unidos, por exemplo,
pode ser um ótimo coro, sendo formado por profissionais
liberais, por donas de casa etc. Diferentemente do que
acontece no Brasil, em que o ensino de música nas escolas
regulares está apenas recomeçando, os amadores de lá
leem música. Só não são profissionais. Entretanto, em nosso
país, por via de regra, os leigos não têm formação musical
teórica. É por isto que, aqui, parece haver um consenso em
usar-se, para o mesmo tipo de grupo, o título de coro leigo.
Para mim, tanto faz. Quem ama a arte coral ama e pronto.
Pois bem, os coros em que ninguém lê música são a
absoluta maioria dos grupos em nosso país. Há os de
empresa, de escolas públicas, comunitários, de igrejas
(exceções, pois em poucas ainda há coros mistos, ante a
avalanche importada dos “conjuntos” e dos “corinhos”). São
basicamente pessoas que se reúnem porque querem cantar.
E aí? Um erro frequente é dizer que esses grupos leigos não
são “musicalizados”. Ser musicalizado não quer dizer
somente que se compreende a escrita musical e se pode
decifrá-la. O termo nos mostra também que aquele corista é
capaz de sentir a força sonora e interpretativa da música
que executa, que balanceia sua voz com a do seu
companheiro do lado e com seu naipe, que compreende a
dinâmica de um trecho em virtude do que o texto diz
naquela passagem da partitura. E que, individualmente, faz
parte de algo maior que si mesmo. Isto também é ser
musicalizado. Neste quesito, tenho visto coros profissionais
e acadêmicos que perdem fragorosamente para um bom
coro leigo...
É possível fazer música com um coro que não lê música?
Sim, é evidente. Se a leitura não está presente, todos os
outros elementos musicais devem ser explorados em
profundidade, fugindo-se do automatismo e do lugar
comum, como o seria em qualquer grupo familiarizado com
a teoria musical. A música não está nas bolinhas, mas por
detrás delas, como o sentido de um texto está por detrás
das letras. Notas são sinais para que se decodifique a
música verdadeira. Por isto, o regente deve saber música, é
claro, para ser o primeiro decifrador, transmitindo ao grupo
em seguida o que apreendeu de sua decodificação dos
sinais grafados, e do que está por detrás deles. A
performance se torna honesta, verdadeira, adaptada ao
máximo que os cantores podem oferecer, mas desafiando-
os sempre. O leigo pode e deve produzir constantemente,
sem deixar de aprender a cada experiência. A arte
primorosa do repente é prova disto. Um repentista pode ser
incapaz de ler ou escrever, mas sua memória prodigiosa e
seu contato intenso com a realidade que o cerca lhe
fornecem subsídios para levar adiante seu trabalho. É claro
que o estudo formal da língua melhoraria ainda mais o nível
das rimas, aumentaria o cabedal do vocabulário, alargaria
os horizontes de seu repertório. Mas ele desbrava o sertão
com o que tem. E faz arte. No nosso caso, cabe ao regente
desbravar a floresta para seus coristas leigos. Mas é preciso
saber como fazê-lo com segurança, estimulando-os sempre.
Voltamos à mesma cantilena: estudo, estudo, estudo...
O coro profissional, ou aquele da academia é o coro do
sonho do regente que não o tem. Nele, todo mundo lê
música, o solfejo está em dia (se bem que nem sempre...), a
compreensão musical é elevada, mas... Sempre tem o
“mas”. O nível de exigência sobre o regente sobe à
estratosfera. Já que o corista é capaz de, por si mesmo,
decodificar muito do conteúdo do repertório, ao regente vai
ficando a tarefa cada vez mais especializada de ir além, de
buscar o que ninguém achou, de colocar uma cereja
preciosa naquele bolo que já está extraordinário. E isto é
uma tarefa para poucos. Muitos regentes sonham com um
coro assim, mas não têm a menor ideia do que fazer com
ele quando se veem cara a cara com aquele soprano ou
aquele baixo que o mede dos pés à cabeça, para ver onde
ele vai derrapar naquele dia, em que parte do ensaio ficará
surdo e não ouvirá o sol natural que está cantando de
propósito naquela peça atonal, e que deveria ser
sustenido... Claro que não são todos os coros que são assim,
nem todos os coristas, mas uma breve anamnese vai nos
dizer que raridade é que não são.
Diz a voz do povo (que, há controvérsias, se diz ser a voz
de Deus), que dois regentes só concordam inteiramente um
com o outro quando falam mal de um terceiro. Os coristas
são assim também, às vezes. E o delicado equilíbrio entre
regente e coristas, seja no coro leigo ou naquele com
conhecimento musical, é formado pela junção de dois
fatores, um profissional e outro pessoal. No primeiro
quesito, a formação e o empenho do regente ou do
professor na busca do saber mostram que ele respeita o
posto que ocupa e as pessoas que arrebanhou para com ele
trabalhar. Demonstra, ainda, que ele tem o que ensinar, que
pode extrair da música significados sempre maiores para
fazê-los chegar primeiro aos coristas, depois ao público. Mas
é no segundo quesito, o pessoal, que muitos regentes
destroem na base todo o edifício que deveria ser erigido em
função de tornar frutífera sua atividade. Por mais capacitado
profissionalmente que seja o regente, sua habilidade de
humilhar, rebaixar, reduzir a um galináceo pipilante seu
melhor corista é realmente notável. Ao invés de líder que
congrega, que atrai, torna-se o chefe que oprime, que
repele. E ninguém, absolutamente ninguém consegue fazer
música diferenciada ante um regente cujo ego submete a
todos sem respeito pelo fato de que quem emite o som,
quem é seu instrumento é o cantor. Liderança é um
elemento essencial para se fazer qualquer coisa em grupo,
e na produção de música coral não é de forma alguma
diferente.
Não quero dizer, é claro, que limites, fronteiras não
devam ser estabelecidas entre o que compete a cada um,
na frente e atrás da batuta. Mas o respeito mútuo, por meio
de uma convivência a um só tempo séria e amigável,
tornará regente e coristas conectados, interdependentes,
necessários um ao outro. Um vai querer trabalhar com, e
pelo outro. E isto não é assegurado por títulos ou por
posições; são as pequenas conquistas do dia a dia, de cada
ensaio, obtidas pelo modo como corrigimos um problema
técnico ou como resolvemos uma situação humana ou
disciplinar que precisa de esclarecimento. Quantos regentes
há por aí que seriam muito bem substituídos, e com
vantagem, por alguém que não tivesse todo o seu
conhecimento, mas que fosse uma pessoa com a qual seus
coristas gostassem de trabalhar. E quantos regentes dariam
tudo para que certos cantores excelentes de seu coro se
mudassem em definitivo para o castelo da família na
Transilvânia e que, em seu lugar, entrasse alguém com uma
voz menos dotada, mas com o dobro de vontade de
contribuir. Mas há também os regentes que submetem seus
grupos a uma meticulosa lavagem cerebral. São os “pavões
da batuta” e, como seus parentes emplumados, se der uma
chuvarada e as penas forem embora, não sobra lá muita
coisa. Em qualquer dos casos, o mais perturbador é que a
maioria dos regentes e dos coristas que são assim nunca vai
admitir que age desta forma. Eles perdem um tempo
precioso da vida que poderia ser gasto construindo algo de
especial.

3 Que cantar?

Um dos grandes desafios do trabalho com coro é a


escolha do repertório. Afinal, se um coro tem como
atividade primordial o cantar; se com a música demonstra
suas habilidades técnicas, seu potencial artístico e
transmite a mensagem transformadora que pretende levar,
uma peça mal escolhida interfere tremendamente nesse
resultado. Nada pior do que ouvir um grupo tentando forçar
seu caminho por uma música que está além de sua
compreensão, seja técnica ou emocionalmente falando. Por
outro lado, uma peça excessivamente fácil não representará
desafio algum para este ou aquele grupo, desestimulando-
os ao trabalho. Já que tudo é fácil mesmo, prestar atenção
para quê? Isto não representa um libelo acusatório contra a
música fácil, nem um louvor perene ao repertório
impossível. É, sim, um alerta para que o regente entenda o
seu grupo e se esforce por descobrir aquilo que poderá
extrair deles o melhor que possam oferecer. E estudar,
ouvir, conhecer repertório é um diferencial entre o bom
regente e os, digamos... outros regentes.
É claro que todo regente tem uma caixinha de Pandora
de onde tira, com maior ou menor frequência, coisas que
gosta de executar com seus grupos, peças com as quais se
familiarizou e que realmente são boas para se cantar. Mas
fazê-las por trinta anos??? Mais do que preferência por
algumas músicas, isto demonstra estagnação, falta de
interesse em crescer, em ampliar horizontes. Com tanta
música no mundo, por que um regente faz o mesmo
repertório em cada coro com que passa a trabalhar?
Certa feita, ouvi falar de um colega, aí pelo Brasil afora,
que tem dez corais numa mesma cidade, quase todos
leigos. Passado o susto, confesso que me fiz alguns
questionamentos. Qual o percentual de cantores que, na
verdade, só pula de um grupo para outro? Há quanta gente
“original” cantando nesses dez grupos? Onde ele arranja
tempo e disposição para tanto ensaio? Onde ele arranja
repertório? Meu palpite é que 80% das obras que executa
nos grupos é a mesma. Não digo isto para condenar o
companheiro, mas porque conheço a dificuldade que é
arrumar música adequada para nossos coros. Repertório
existe em número incalculável por aí, mas demanda tempo
e energia para ser selecionado, testado, averiguado, para
finalmente ser eleito para um grupo. A menos que o regente
seja arranjador, que é o meu caso também. Daí, escolhemos
uma música, arranjamos exatamente dentro dos limites que
nosso coro apresenta e ela sai na hora. Mas isto nos torna
legisladores em causa própria, nunca expondo nosso grupo
a linguagens e estilos diferentes do nosso. É um fator
facilitador do nosso trabalho, mas limitador do crescimento
musical do grupo. Mea culpa...
Exceto pelos regentes que, uma hora antes do ensaio,
pegam qualquer coisa no famigerado (e cobiçado) “arquivo”
ou nas “pastas” e erram lamentavelmente (coisa que nunca
admitiriam na frente dos coristas), todos os outros
dispendem bom tempo escolhendo música. É sabido que,
numa emergência, precisamos escolher rápido e vamos em
busca de algo que já deu certo em outro coro que era
semelhante ao de agora. Isto quer dizer que, dentro da
caixa de ferramentas do regente, há sempre uma gavetinha
com essas joias que ele conhece bem, pois já as executou
muito. Mas lá vem o perigo da repetição. Se usado com
parcimônia, este recurso é válido, mas todo cuidado é
pouco.
Escolhemos uma música porque gostamos dela, porque
os coristas vão gostar, porque o público vai gostar, porque
todos vão aprender algo novo com ela, porque o texto é
excelente, porque a música é bem escrita. Mas também
porque o dono da empresa adora o sertanejão e disse que é
para fazer aquela da dupla tal na próxima apresentação do
coral... Esta relação com os “patrões” que querem se arrojar
no posto de diretor artístico funciona mais ou menos como a
relação pais e filhos. Se os pais cedem demais, os filhos
tomam conta; se cedem pouco, eles ficam irritados e
rebeldes. No caso, os regentes são os pais e os filhos, os
patrões, claro. Negociar é preciso, porque patrão rebelde
despede o regente (coisa que muitos filhos gostariam de
fazer em relação aos pais) e coloca outro no lugar, às vezes
por metade do preço. Mas educar patrões, diretores de
escolas, gerentes é uma necessidade que nos assegura
longevidade e qualidade no emprego. E autenticidade. A
música coral não comporta arranjos de qualquer natureza.
Ou comporta? Não sei, já vi cada coisa... Se o chefe quer
“aquela”, na primeira vez você já diz “esta não ficaria boa,
mas podemos escolher outra. Que tal uma destas?” Há
muito sertanejo que até dá um arranjinho. Agora, chame a
atenção dele para outros detalhes, que a letra é imprópria
para o ambiente de trabalho e de apresentação, para a
natureza do evento etc. Mesmo que achemos que aquela
letra seja imprópria até mesmo para se cantar sozinho, à
meia noite, no meio do descampado, não diga nada num
primeiro momento. Claro, não vamos ficar oferecendo
música religiosa como contrapartida, pois cada coisa tem
seu lugar. Mas há muitas alternativas para o gosto absurdo
do chefinho. E, no coro, nós temos que ser os chefinhos...
Há também as ocasiões em que ficamos num voo cego
em relação a este tópico, como ocorre quando vamos reger
um grupo pela primeira vez ou quando nos preparamos
para ir para um festival de música trabalhar com coro ou
dar aulas de regência. Um exemplo clássico são os Painéis
FUNARTE de Regência Coral. Estou no time há anos e
confesso que sempre é um desafio escolher repertório para
trabalhar em um lugar em que nunca estive, pelo menos
não com esta finalidade, e produzir o máximo de resultado
em benefício de todos os cantores e regentes, que lá vão
depositando sua confiança numa relação que durará apenas
uma semana. O coro que se vai encontrar é sempre um
mistério, por mais que a coordenação local se esforce em
nos adiantar diretrizes.
Em casos como esses, o processo, por incrível que possa
parecer, não muda muito daquele do nosso quotidiano; só
se torna vertiginosamente mais rápido. De início, sempre
levamos uma ou duas peças para a detecção da condição
em que se encontra o grupo, de suas habilidades, de seus
pontos fortes e fracos. Os fortes têm que ser elevados pelo
repertório; os fracos, fortalecidos. Não é uma tarefa fácil. Do
primeiro encontro para o segundo, toda uma estratégia
precisa ser concebida com base no que foi visto. E o
repertório vai brotando. Se for muito difícil, não haverá
tempo suficiente para preparar tudo em uma semana e, na
apresentação final, canta-se em uma música ou duas tudo o
que se esperava fazer em seis ou oito, mas as escolhas
erradas já previram que isto acontecesse. Sem falar que o
tempo gasto nas músicas erradas, que não foram
aproveitadas, poderia ser usado com vantagem em outra
atividade durante o precioso tempo de ensaio. Se for tudo
fácil demais, não há crescimento, nem desafio, nem
interesse e, pelo terceiro dia, metade dos inscritos não volta
mais. Então, o jeito é ajoelhar no milho e trabalhar com a
máxima concentração, usando todos os recursos da
maletinha. Um dos fatores que contribui enormemente para
o sucesso dos painéis FUNARTE é o fato de que nunca
estamos sós. São sempre dois regentes para tomar as
decisões, e o bom senso de um sempre entra em cena
quando o outro fica megalomaníaco... Claro, afinal, somos
regentes.
Repertório, portanto, é o ponto delicado através do qual
vamos ver ou não nossos objetivos com o grupo levados a
efeito. Não tenhamos medo de arriscar, de ousar, mas
dentro de limites razoáveis. Lembremo-nos de que um bom
resultado sempre depende de uma boa proposta. Sem isto,
como vamos enfrentar o ensaio nosso de cada dia? Achando
que estamos enganando nosso corista, nosso aluno? Algum
dia, alguém nos enganou de verdade? E estejamos sempre
atentos à verdade: em matéria de repertório, seja na
escolha, na preparação ou no resultado final, nunca
agradaremos igualmente a gregos e a troianos...

Velas ao vento

Hora de partir, de levantar âncoras e velejar pela vida. Se


quisermos conservar alguma coisa deste dedo de prosa,
asseguremo-nos do fato de que todos nós, regentes, temos
nas mãos uma responsabilidade com nós mesmos, com
nossos comandados e com nosso público. E este dever é o
de sermos transformadores de vidas. Fazer a diferença na
vida de alguém significa que havia algo dentro de cada um
– nós mesmos, nosso corista, nosso público –, que
demandava um conserto imediato. E pela experiência
musical correta, bem feita, instigante, inspiradora, tocante,
este alguém foi capaz de repensar, teve ânimo para, talvez,
aguentar mais um dia de caminhada. Um conserto no
concerto! Ninguém muda ninguém, tenhamos esta certeza.
Somente nós conseguimos mudar nós mesmos, mas as
ferramentas e a direção podem vir de outrem. Nós,
regentes, podemos oferecê-las com nosso trabalho e
empenho em realizarmos nossa arte com disciplina, com
respeito humano e cometimento ao estudo.
A arte coral, por sua natureza coletiva, é poderoso
instrumento para atingir o interior das pessoas, tanto de
quem a executa (quiçá principalmente) quanto de quem
dela usufrui como ouvinte. Existe algo de mágico em ouvir
duas, três, oito dezenas de pessoas cantando melodias
separadas e que se juntam para produzir um todo em que
cada um desaparece individualmente para dar lugar a um
ente coletivo, novo, chamado coral. E este ser potencializa
dezenas de vontades numa só direção. O impacto é
tremendo, quando bem feito.
Cabe a nós, regentes, nos aprimorar sempre, sem
permitir que se esgotem nossas forças, nossas ferramentas.
A cabeça do regente trabalha muito mais que seus braços.
Vejo sempre uma preocupação enorme por parte de certos
colegas, em especial os mais jovens, em esmerilar seu
gestual até a perfeição. Isto é realmente importante, pois o
movimento é uma das vias de comunicação que temos à
disposição. Acho mesmo impressionante o balé dos gestos,
mas no momento seguinte percebo que, em muitos deles,
não há a menor conexão com a música. Lembro-me de uma
cena de um filme sobre Beethoven, em que o coro e a
orquestra se desencontram e param, e ele continua de
olhos fechados, regendo a música que estava em sua
cabeça. O gestual deve traduzir o que o regente quer dizer,
mas só se ele tiver o que dizer... Se não tiver, o coro canta,
apesar dele, ou ele rege sozinho, apesar do coro. É preciso
ouvir o que está em curso e reger a música, não a partitura!
Reger é como tocar um instrumento gigantesco, cujas teclas
e cordas estão espalhadas a nossa frente. O gesto vazio, ou
o congestionado alcançarão o mesmo resultado sonoro: o
desequilíbrio
Encerro com um parágrafo do grande pensador Léon
Denis (1846-1927), extraído do capítulo final de seu livro O
problema do ser, do destino e da dor:
O fim mais elevado do universo é a beleza, sob todos os
seus aspectos: material, intelectual, moral. A justiça e o
amor são seus meios. A beleza, em sua essência, é, pois,
inseparável do bem e ambas, por sua estreita união,
constituem a verdade absoluta, a inteligência suprema, a
perfeição!
Somos parte de algo maior que nós mesmos, de uma
beleza que transcende, de um bem que ainda excede
qualquer compreensão imediata. É preciso fazermos nossa
parte. A música é nosso instrumento. O outro, nossa meta.
Contextos diversos, cantorias
distintas
Eduardo Lakschevitz

Participar do Painel FUNARTE de Regência Coral é sempre


uma experiência marcante. O público, os objetivos e o
formato do projeto exigem do professor um tipo de
preparação muito específica, que alia experiência,
organização didática e domínio do conteúdo, associados a
uma dinâmica de trabalho flexível e objetiva. Sua
capacidade de perceber o ambiente e de trabalhar de
acordo com o contexto pode fazer a diferença entre o
sucesso e o fracasso de uma empreitada como essa. A cada
edição do Painel, o trabalho dos professores se divide em:
(a) aulas direcionadas a regentes e professores de música,
onde são discutidos aspectos técnicos relativos à área, tais
como repertório, dinâmica de ensaio, gestual etc. e (b)
prática coral, onde cantores de coros locais (com ou sem
experiência) se juntam à primeira turma para a preparação
de um repertório, que é apresentado num pequeno concerto
ao final do evento.
Neste texto, somente esta segunda faceta do Painel será
abordada, tratando de aspectos relativos à minha
preparação como um dos regentes do coro do Painel
FUNARTE de Regência Coral, que ocorreu em Maringá, em
maio de 2014. Há muitas semelhanças entre o trabalho do
regente num Painel e as atividades da maioria dos regentes
hoje em dia; por isso, optei por escrever informalmente,
como se estivesse numa conversa com meus colegas
regentes.
Uma conversa sobre esse assunto deve, então, se iniciar
pela busca de algum entendimento sobre a atividade da
regência, que é comumente descrita como: "o ato de liderar
um grupo de pessoas a cantar um repertório, o que se faz
através de determinadas técnicas usadas durante diversos
ensaios de preparação, que culminarão numa apresentação
pública. Esta, então, acontecerá em cima de um palco, para
um público ouvinte, onde o regente atuará principalmente
através dos seus gestos.” O problema é que esta descrição
não é universal e nem tão óbvia assim. Há muitos detalhes
que escapam à compreensão estritamente musical desse
trabalho, como também diversos elementos variáveis entre
diferentes tipos de coro. Instabilidade e heterogeneidade,
por exemplo, são características sempre presentes, uma vez
que se trata de uma atividade humana coletiva e
contemporânea. Assim, antes de encarar o desafio de reger
um coro, cabe uma análise ampla do contexto que o
envolve, para construir um pensamento que baseie nossas
escolhas sobre as questões propriamente musicais.

Contexto

Ideias como a simulação substituindo a realidade, a


estabilidade flutuante,a incredulidade e o estado de
transição aparecem com frequência no trabalho de autores
dedicados à análise das relações humanas na sociedade
contemporânea. Parece que vivemos um momento histórico
cuja maior característica é a mudança contínua, que está
sendo sentida, percebida e comentada diariamente, através
dos mais diversos meios. Sendo o canto coral uma atividade
que reúne pessoas, é natural que o estado constante de
transição e instabilidade (a "estabilidade flutuante", de
Meyer 1, por exemplo), faça parte do cotidiano e das
expectativas dos seus participantes. Quando um regente se
coloca à frente de um coro, hoje em dia, lida com um
número muito grande de variáveis, e precisa levá-las em
conta ao realizar seu trabalho.
Ao olhar o projeto de prática coral no Painel, algumas
questões já chamam a atenção imediatamente, como o
pouco tempo de ensaio (que é uma reclamação frequente
entre todos os regentes de coro), a participação de cantores
voluntários, a composição heterogênea do grupo (formado
por uns cantores experientes e outros iniciantes) e a
responsabilidade de uma apresentação ao final do evento.
Como líder desse grupo, minha primeira tarefa deverá ser
identificar os atores desse processo, inspirando, assim, a
criação de uma experiência que seja significativa para todos
e que cumpra as metas propostas. Objetivamente, as
primeiras questões serão: Quem são os cantores? Qual seu
nível técnico (estilo vocal, conhecimento de notação,
experiência musical)? Além dos cantores, quem são as
pessoas envolvidas no processo? Como é a relação entre
elas? Quais suas expectativas com relação ao Projeto? Qual
o objetivo do grupo e como poderemos atingi-los? Como
essa experiência pode transformar as pessoas que dela
participam?
Os coristas, o público ouvinte, a FUNARTE, a instituição-
parceira e as instituições onde nossos alunos trabalham têm
anseios e objetivos quando se envolvem num projeto como
o Painel, e é minha responsabilidade, como regente, levar
em conta cada um deles. A experiência, é claro, me ajuda a
compreender o funcionamento de muitos processos num
ensaio coral, a trabalhar de forma mais eficaz e até mesmo
a antecipar algumas situações, mas a chave fundamental
para um trabalho bem sucedido é a atenção às
particularidades de cada coro com quem trabalhamos.
Neste texto, comento aspectos relativos à importância do
equilíbrio entre essas duas referências, no tocante à escolha
de repertório e à dinâmica de ensaio.

Repertório
Quantos de nós já não ouvimos um cantor reclamar de
alguma peça do repertório, tentar angariar apoio para sua
"causa" junto a outros cantores, ou até mesmo, numa
situação mais extrema, deixar de participar de um coro por
falta de afinidade com o repertório escolhido? Ou, por outro
lado, quantas vezes já não percebemos uma melhor
aproximação do coro com a sua comunidade, a chegada de
novos cantores, ou o recebimento de mais convites para
apresentações em função da identificação das pessoas
(cantores e público) com o repertório executado? São
situações que nos ensinam o quanto essa escolha pode
influenciar o trabalho de um coro. Não é difícil deduzir que
nós, regentes, dependemos diretamente da participação e
do engajamento dos cantores e, por isso mesmo,
deveríamos sempre selecionar peças que promovam essa
atitude. Como na grande maioria das vezes trabalhamos
com cantores voluntários, é nossa responsabilidade olhar
com atenção para os fatores que mais os motivam 2, dentre
os quais está a escolha do repertório cantado que, mesmo
sendo objeto de sugestões vindas das mais diversas
pessoas, é uma prerrogativa do regente. Esse processo é
anterior ao funcionamento dos trabalhos do coro
propriamente dito, mas tem influência direta neste. No caso
do Painel FUNARTE, o repertório tem que ser escolhido antes
mesmo de o coro existir.
Normalmente, o regente seleciona peças que, de acordo
com certos critérios,imagina que funcionarão bem. Mas que
critérios são esses? Quem os determina? A enorme
variedade de tipos de coros hoje em dia torna pouco
provável que existam parâmetros universais, que funcionem
da mesma forma para todos os coros. Portanto há
características específicas no coro que regerei (formado
pelos alunos do Painel) que devem ser observadas na
escolha do repertório.
Ao estabelecer referências para essa escolha, é
importante compreender particularidades do grupo, nos
âmbitos musical e comportamental. Mas que fique bem
claro: conhecer e compreender um grupo para encontrar um
repertório apropriado não quer dizer simplesmente optar
por peças banais e nem relaxar a exigência com a qualidade
do que será produzido. Grupos corais são diferentes uns dos
outros, e as peças que cantam devem valorizá-los,
provocando nas pessoas um sentido de realização. Deve
trazer-lhes orgulho por um trabalho bem feito. Por outro
lado, deve também instigá-los. Há sempre alguma
construção musical que os cantores ainda não
experimentaram, ou que ainda não conseguiram realizar
bem. Quando o regente leva em conta essas questões e
sabe identificar as potencialidades do grupo, atua de forma
a facilitar a expressão máxima de um coro, ao mesmo
tempo em que promove o crescimento dos cantores. Um
dileto professor meu, ao discutir esse assunto, dizia que "só
se pode lapidar um diamante a partir de uma pedra bruta".
Em outras palavras, um repertório deve estar dentro das
possibilidades de um coro, para, a partir daí, desafiá-lo.
O termo customização, comum no meio corporativo,
serve bem ao regente coral, quando da escolha de peças.
Repertório customizado é aquele feito de acordo com o
coro, escolhido (ou, melhor ainda, criado) especialmente
para aquele grupo de cantores. Pensando por esse viés, um
repertório deve ser adaptado ao coro (e não o contrário),
num processo cujos fatores que o constroem devem ser
pensados distintamente. Assim, questões importantes a ser
analisadas no repertório coral são a forma (a peça faz
sentido?), o tratamento harmônico (é tonal ? cromático?
instável? qual a posição dos acordes?), a condução de vozes
(graus conjuntos, tipos de saltos e contornos,
"cantabilidade") e os aspectos rítmicos (andamento,
padrões, regularidade de pulso, uso de redundância).
Algumas dessas questões, porém, serão mais prementes na
análise de repertório para o Coro do Painel, pelas
características anteriormente mencionadas: o texto, a
tessitura e a textura. É certo que a produção do som coral é
resultado de todas essas questões juntas, mas é importante
que o regente seja capaz de analisar esses fatores
isoladamente numa peça.

Texto

Um cantor comunica idéias. O simples fato de o


significado do texto "sair da boca do cantor" o torna
testemunha do que canta, como se fosse um avalista das
ideias sendo transmitidas. Isto é ainda mais forte em se
tratando de cantores voluntários, cuja participação num
coro é motivada por questões de ordem pessoal. Para estes,
é praticamente impossível separar suas ideias daquilo que
seu corpo e sua voz expressam no coro. Por isso, cantores
sempre deixarão bem claro sua discordância com qualquer
conteúdo de um texto que lhes desagrada, seja ela por
razões de faixa etária – “meus alunos acharam esse texto
muito infantil”, comentam frequentemente alguns regentes
– , religião, política ou qualquer outra. Dessa forma, a
identificação de um cantor com a mensagem contida no
texto de uma canção deve ser a base da escolha do
repertório. Não se trata de escolher repertório que o corista
já conheça, mas sim de buscar textos que promovam seu
crescimento, seja pela qualidade literária, pelas idéias que
contém, ou pelo tratamento que recebeu do compositor.
Samuel Kerr, com quem colaboro nesse Projeto, diz que um
coro deve ser a voz de sua comunidade. Por isso,
conversamos muitas vezes a respeito do Painel em Maringá,
pesquisamos canções que dizem respeito àquela cidade,
suas características marcantes, clima, vegetação,
população etc. Antes de escolher peças, conversamos sobre
o que queríamos falar, sobre a mensagem que gostaríamos
de deixar com cantores e ouvintes, e sobre as relações que
gostaríamos de estabelecer entre nossa cantoria e a
comunidade local.
Mas texto não é só conteúdo, significado. Há outros
fatores a ser analisados: Qual a sua qualidade literária? Tem
originalidade? Como está associado às melodias? É
cantável? Todas as vozes têm oportunidade de cantar
trechos da letra, ou há alguma voz dedicada apenas aos
fonemas de acompanhamento (“tum, tum, tum” ou “lá, lá,
lá”, por exemplo), hoje tão comuns em arranjos e
composições corais? Todos devem ter a chance de
comunicar o texto, a poesia. Às vezes esse fato passa
despercebido porque nós, regentes, tendemos a analisar
somente a visão geral, a sonoridade resultante. Mas todo
cantor gosta de melodia e de letra (alguns, mais
inexperientes, até confundem esses termos), e as peça que
escolhemos devem proporcionar esse equilíbrio.
E como é a prosódia desse texto? Somos capazes de
compreendê-la, bem como o sentido das frases musicais e
poéticas? O sentido musical acompanha o sentido do texto?
O texto está adaptado à notação musical com naturalidade?
As acentuações do texto coincidem com as da música? Há
naturalidade na "entrega" de um texto para o ouvinte? A
definição mais precisa que já ouvi sobre a qualidade de um
texto, e que uso até hoje, é a seguinte: “Precisa ter
qualidade literária, potencial educativo (pessoas devem ter
oportunidade de aprender com ele), e tem que “ser bom de
dizer”, o que significa ter prosódia equilibrada, articulação
justa e pronúncia fácil.

Tessitura

A voz humana é um instrumento que produz sons dentro


de certos parâmetros. Obviamente, não adianta
imaginarmos que sons em determinadas alturas sejam
produzidos por vozes que simplesmente não têm
capacidade de fazê-lo. Isto é claro, e por esta razão os
manuais de instrumentação e de regência coral procuram
indicar muito precisamente em que região cada naipe deve
cantar. Mas a maioria dos manuais é escrita de forma
generalizadora; muitos deles, influenciados por ideias
estabelecidas ainda no Séc. XIX, por exemplo, não levam
em conta as variadas referências culturais da produção
vocal contemporânea.
De forma geral, hoje em dia pode-se perceber entre
cantores de coro no Brasil uma tendência ao registro médio
(os motivos para tanto são objeto de muitas discussões
entre regentes e professores, mas, devido à natureza da
questão, ainda de forma especulativa). Não são tão comuns
as vozes extremas, como baixos graves, ou sopranos
agudos. Para o coro do Painel, o ideal será encontrar peças
que se mantenham dentro desse registro (lá1 ao ré4,
podendo ir pouco mais acima ocasionalmente). Importante
também será manter uma postura flexível, que permita
alguns ajustes que venham a ser necessários no decorrer
dos ensaios, como designar determinados trechos a outras
vozes ou naipes. Há fatores que podem influenciar a
tessitura das vozes, como treinamento, idade, experiência,
aquecimento etc., mas só conheceremos as possibilidades
reais do coro a partir do primeiro encontro com o grupo.

Textura

A interação entre as vozes é um dos aspectos mais


interessantes da música coral, e a característica de
repertório mais intimamente ligada a ela é a variação
textural. Ao tratar de relações entre as diferentes vozes,
como fios numa peça de tapeçaria, a textura pode
determinar o nível de dificuldade de uma peça, o interesse
dos cantores, a inteligibilidade, a dinâmica etc.
Como as vozes de uma peça se organizam? De forma
monofônica (uníssono), polifônica, homofônica, ou como
melodia acompanhada? Há texturas que se misturam? Há
variedade de texturas numa peça? Muitas vezes nos
esquecemos de algo muito simples: cantores gostam de
cantar melodias! (perdoem a insistência). Efeitos vocais,
como mencionei anteriormente, até são interessantes
também, mas se usados como colorido, como
acompanhamento. Uma peça cuja textura privilegia
somente uma das vozes com a melodia (frequentemente o
soprano), deixando as outras todas com função de
acompanhamento, perde boa parte do grande potencial
expressivo de uma música coral. A textura deve privilegiar a
todos. Bem disse Machado de Assis, ainda no Séc. XIX, ao se
referir à importância da melodia na sensibilidade musical da
população: "o público carioca morre por uma melodia assim
como macaco morre por banana".3
Essa análise é importante, ao mostrar uma direção na
escolha do repertório para um coro. Mas, ainda assim, o
prisma de observação utilizado é o do regente. Uma
aproximação com as possíveis sensações do cantor só vem
quando, como parte do nosso estudo, cantamos em voz alta
todas as vozes da peça estudada. A idéia pode soar
redundante, mas envolvimento físico e acústico dos
participantes com a música está na essência da atividade
coral. Experimentar as linhas vocais é uma boa forma de o
regente se colocar no lugar de seus coristas, a fim de
entendê-los melhor.

Ensaio

O ensaio de um coro é muitas vezes descrito como um


momento de preparação para uma apresentação. A idéia
lembra o ideal da Era Industrial, que atinge seu ápice no
início do Século XX, e que dissocia o trabalho do prazer. De
acordo com esse pensamento, primeiro vem a obrigação, o
esforço (e até mesmo o sacrifício). Depois a diversão, o
prêmio. Mas conceber o ensaio coral unicamente como um
momento de sacrifício necessário para a preparação e
montagem de uma apresentação, onde só então o corista
receberá sua "recompensa", em forma de reconhecimento
do público, parece não condizer com o trabalho realizado
num Painel. Não consigo achar que pessoas vêm ao ensaio
para sofrer, mesmo que em nome da arte ou de uma
recompensa que só chegará muito adiante. As pessoas
querem ter prazer no processo de ensaio. Procuram uma
atividade que seja de alto nível, séria, produtiva (por vezes
até cansativa), mas, ao mesmo tempo, prazerosa e
confortadora. Além disso, é no ensaio que se dá o maior
tempo de convívio entre os participantes de um coro, o que
é mais um motivo para considerá-lo precioso. Essa é uma
questão ainda mais forte para músicos voluntários, uma vez
que estes não têm expectativa salarial ou qualquer outra
diferente da realização musical coletiva.
Por isso, a questão-chave para a preparação do regente
de um coro como o do Painel é sua capacidade de lidar com
o tempo. Num mundo onde as atividades humanas estão
cada vez mais automatizadas e onde há cada vez mais
formas de entretenimento disponíveis, o ensaio do coro é
um compromisso individual com a coletividade. Pessoas
dedicam seu tempo para estar juntas, buscando um mesmo
objetivo, sob a liderança do regente. Mesmo assim, a
simples presença dos cantores não é suficiente. Se não
estiverem engajados naquela atividade, nada de
interessante acontece. Mas como encontrar esse ponto de
equilíbrio? E o mais difícil: como manter seus coristas não
somente motivados, mas engajados nesse processo? Minha
proposta é fazer do ensaio um ambiente onde duas idéias
estejam sempre na cabeça dos participantes: realização e
desafio. Para tanto, alguns detalhes da conduta do regente
podem facilitar muito o desenvolvimento do trabalho e o
aproveitamento do tempo de ensaio.
1) Sensibilização do conjunto: Quem faz música é o
cantor, e não o regente. Nossa função, é claro,é indicar
possibilidades, mostrar caminhos. Mas quem os trilha é o
cantor. Num concerto, nós nem mesmo somos vistos pelo
público, porque estamos de costas (e, como dizem por aí,
“solo de regente” não existe). Por isso, promover o sentido
de equipe é uma das tarefas mais importantes para o
regente. Isso se faz, primeiramente, tratando os cantores
com educação e gentileza. Depois, cuidando da forma de
comunicação com os cantores. Em nossa relação com os
coristas, os exageros atrapalham; tanto os verbais como os
visuais. Não adianta querer cantar pelo coro, ou dar
palestras durante o ensaio, gritar ou gesticular em demasia
para alcançar os resultados pretendidos. O melhor coro será
aquele em que os coristas têm propriedade sobre o que se
canta, onde os coristas estão engajados. E isso acontece
quando o regente delega poder, quando o coro tem
sensibilidade para entender os mecanismos a ele
relacionados e para ouvir o "todo" musical. Há expressões
muito comuns nos ensaios de coro, que vão de encontro a
essa sensibilização: "agora eu quero assim", "cantem pra
mim", ou “vocês estão errando”, por exemplo,
inconscientemente falam contra o sentido de grupo que
quero cultivar no ensaio. São dizeres que distanciam os
cantores do regente, como se fossem entidades diferentes.
Até mesmo o uso da primeira pessoa do singular nos
ensaios prejudica essa sensibilização; afinal, se entendemos
que os coristas são aqueles que realmente se conectam
com o público e queremos sensibilizá-los para que assumam
essa responsabilidade, é bom que também os façamos
perceber que regente e cantores são partes de uma só
organização. Constituem um só grupo que se propõe a
passar uma mensagem ao público, e não duas unidades
diferentes, ou seja, um regente e um coro. Um grupo que
compreende conceitos e os põe em prática, sem precisar de
constantes instruções do regente, chega bem perto de
estabelecer uma relação mais próxima com os ouvintes, e
de emocioná-los.
2) Liderança necessária: A atividade de liderança só é
eficiente se for necessária, e um regente deve saber
identificar esses momentos. Qualquer atitude sua, seja
gestual ou verbal, só se justifica se fizer diferença, se tiver
efeito perceptível. Um olhar histórico sobre nossa atividade
mostra que a presença do regente à frente de um grupo
sempre foi fruto de uma necessidade prática de execução
musical. Só a partir do Século XIX a figura do maestro, por
uma série de razões extra-musicais, começou a se
transformar em algo que muitos consideram até mais
importante que o próprio conjunto. Mas isto está errado, e é
fácil notar tal inversão de papéis num coro como esse para
o qual estou me preparando. Minha atitude, como regente,
será sempre a de atuar quando for necessário. Um gesto,
aliás, tem maior significado quando destacado, e não
quando repetido em sequência, sem algum motivo
aparente. Um professor com quem trabalhei insistia em
dizer que "regente neutro" não existe. Ou ele promove a
produção de boa música ou a atrapalha, não havendo meio
termo entre essas situações. Quanto mais passa o tempo e
mais ganho experiência, mais eu concordo com ele.
Autoridade não significa autoritarismo. Para o bom líder, a
exposição pessoal não deve ser prioridade, mas sim o
resultado obtido pelo grupo, que passa pelo
desenvolvimento do corista.
3) Atitude positiva: O momento do ensaio constitui-se
na maior parte do tempo que passamos juntos com o coro,
onde são construídas, tanto coletiva como individualmente,
a maioria das lembranças que conservamos. Seu bom
andamento e sua fluência se darão, então, através de
experiências positivas e agradáveis, e não pelo medo de
errar. Os processos de ensaio parecem mais rápidos e mais
fáceis quando o regente impõe suas idéias e simplesmente
exige que sejam cumpridas pelo coro. Entretanto, esse é um
comportamento que cria muito mais problemas que
soluções no trabalho coral. Mesmo que as determinações de
um regente possam até ser cumpridas pelos cantores, há
um limite para a excelência dessa realização musical,
determinado pelo engajamento dos participantes. Por vezes,
uma forma hierarquizada e vertical de lidar com os cantores
deixa-se transparecer através de pequenas atitudes do
regente durante um ensaio e podem, inadvertidamente,
inibir esse engajamento dos participantes. Expressões como
"não", "negativo" e "está errado", por exemplo, têm o poder
de interromper uma linha de ação para iniciar outra. Mesmo
funcionando bem para esse propósito, seu uso exagerado
acaba por gerar um padrão de interrupção na cabeça dos
cantores, acostumando-os com a idéia de um ensaio como
lugar de punição, de pouca fluidez, que é diametralmente
oposto à idéia da produção musical prazerosa.
Sensação semelhante tem o cantor ao participar de um
ensaio conduzido por uma abordagem de conserto, ou seja,
onde o regente se baseia no erro dos cantores e dedica a
maior parte do seu tempo a consertá-los. Uma atividade em
grupo, em que se pressupõe que o participante está sempre
errado, nunca combinará com idéias como engajamento,
motivação e liberdade. Lembro-me muito claramente de
minhas aulas de clarinete com o José Botelho que, às vezes,
mesmo quando eu estava tocando as notas certas, dizia: " –
Edu, parece que você está tocando com o freio de mão
puxado". O sentido de fluidez é essencial no fazer musical,
não importa o nível técnico ou o nível de experiência dos
cantores, e o regente deve sempre ter consciência disto. É
algo que só pode ser atingido num ensaio coral através de
uma atitude positiva.
4) Comunicação clara: A regência é uma arte de
característica não-verbal e requer modos não-verbais de
comunicação. Daí se pode inferir o quanto é importante a
precisão das informações que passamos ao coro. As
expressões faciais, o equilíbrio do corpo, as relações entre o
movimento e a ausência do movimento, enfim, quaisquer
outros tipos de gestos, atitudes e jeitos do regente têm
efeito sobre o som do grupo. Por isso, todo o trabalho do
regente deve fazer referência precisa ao produto sonoro
almejado. Padrões de regência são uma ótima ferramenta
para apurar as informações gestuais, mas devem ser
utilizados criticamente, pois não são o único tipo de código
gestual capaz de transmitir informações entre pessoas. São
convenções, o que significa que, para funcionarem de forma
eficaz, é necessário que regentes e coristas entendam
exatamente o conteúdo dessas informações. Do contrário,
não se estabelece uma comunicação limpa. Mas além
desses padrões, pessoas entendem diversos outros tipos de
informação 4 e, num coro onde o tempo de preparação é
curto, quanto mais extenso é o vocabulário gestual do
regente (e quanto mais confortável esse regente está com
seus gestos), melhor. Gestual bonito nunca deve ser o
objetivo do regente, mas sim aquele que demonstra clareza.
5) Uso do tempo: Muitas vezes ouvi meu avô e minha
mãe, ambos regentes corais, dizerem que "coro é uma
atividade de longo prazo". Pela análise feita neste texto,
porém, tal conceito parece não mais se encaixar na
atividade coral contemporânea. Ao menos no caso do coro
do Painel, tema deste estudo, o pouco tempo de trabalho é
uma de suas principais características. Preciso cuidar desse
tempo com esmero. Há uma apresentação a ser feita, mas
há poucos e curtos ensaios. Mais ainda, esse é um coro de
voluntários, ou seja, um grupo de pessoas que dedica parte
de seu tempo (precioso) para realizar um trabalho em
conjunto sob minha liderança, fato que aumenta minha
responsabilidade sobre o uso do tempo. E esse trabalho é
cantar. Por isso, minha meta nos ensaios desse grupo é
fazer com que o maior número de pessoas consiga cantar o
maior tempo possível nos ensaios, dosando, também, sua
velocidade (ninguém consegue atuar com 100% de sua
energia o tempo todo). Dessa forma, sua capacidade de
concentração estará sempre mais aguçada e,
consequentemente, também seu engajamento no fazer
musical. Até mesmo a ordem da distribuição das atividades
no ensaio me ajuda a torná-lo mais produtivo. Geralmente,
os cantores chegam pouco concentrados, cada um de um
canto diferente. Depois, têm seu ponto de maior foco e
concentração na primeira parte do ensaio, antes de
começarem a se cansar (física e mentalmente). A
observação desses detalhes de comportamento é de grande
ajuda na montagem de um ensaio que aproveite ao máximo
o tempo do corista.

Organização

Todas essas são competências não-musicais


fundamentais para o desenvolvimento do meu trabalho
como regente coral que, observado com distanciamento
crítico, consiste simplesmente em liderar um grupo de
pessoas a atingir um objetivo comum. Mas a compreensão
clara dessas questões tem sido uma dificuldade dos
regentes corais hoje em dia. Muitas vezes, a preocupação
com questões técnico-musicais do seu trabalho é tão
dominante que este parece ser o único aspecto levado em
consideração quando, na verdade, essas deveriam ser
apenas as suas preocupações iniciais, pois constituem a
base para o desenvolvimento de um trabalho coral. A
construção de uma sólida e ampla base musical, nas áreas
de análise, harmonia, contraponto, estilo, regência e
instrumento é de inquestionável importância, e deve ser
desenvolvida continuamente. São as ferramentas do dia a
dia do regente, fundamentais para a fluência de seu
trabalho; fazem parte de sua formação. Mas são meio,
técnica, e não seu objetivo final. É inspirador ouvir o Samuel
Kerr dizer que "padrão com T de técnica vira patrão, e
convenção, também com T de técnica, vira contenção".
O regente é o líder de um grupo de pessoas e, por isso,
as questões relativas a esses processos coletivos de criação
artística são as que primeiro me vêm à mente. Assim,
somente após analisar o coro com quem trabalharei (as
pessoas!), escolher o repertório e imaginar potencialidades
e dificuldades do trabalho eu posso começar a pensar na
parte musical, nos melhores processos e nas questões mais
importantes a serem abordadas nos ensaios. Esse trabalho
musical precisa ser organizado, coerente. Um dos aspectos
mais difíceis para o regente é levar o cantor a construir seu
som de forma artística; esse objetivo só poderá ser
alcançado quando diferentes áreas do trabalho coral forem
tratadas isoladamente. Vou explicar.
Todo regente tem um som ideal em mente. Tenho a sorte
de já ter ouvido concertos de coros maravilhosos, de estilos
e procedências as mais variadas, de ter conversado com
muitos regentes e professores e de ter regido muitos coros
diferentes (em situações as mais diversas, em locais muito
distintos). Tudo isso me ajuda a imaginar o som que
considero ideal. O gosto de um regente e seus ideais
sonoros se constróem a partir das referências adquiridas e
das comparações estabelecidas ao longo da vida.
Sempre que me coloco à frente de um grupo coral, tenho
esse som ideal em mente, como um objetivo, uma
referência. Mas regência é uma atividade intensamente
dependente de outras pessoas e de múltiplos fatores que,
muitas vezes, propõem caminhos e sonoridades
alternativas. Assim, a mágica maior do trabalho coral é o
caminho da busca pelo som ideal, que é forjado no
equilíbrio entre as referências do regente e as situações que
se lhe vão colocando. E a função mais importante do
regente é guiar os cantores a experimentar esse caminho,
sem cair na tentação de tentar trilhá-lo por eles.
Prioridades

Gosto musical e ideais estéticos são valiosos para o


trabalho do regente, pois o balizam e lhe servem como
referência. Mas sua atividade consiste em organizar a
própria construção do som coral, e por isso lhe é necessário
aprofundar seu conhecimento sobre os elementos que o
constituem; precisa compreendê-los separadamente. A
identificação e o domínio dos processos formadores do som
coral são ferramentas fundamentais no desenvolvimento do
grupo. Por isso, é preciso organizar as prioridades de um
ensaio (ou de um grupo num certo momento do trabalho),
quando se busca chegar ao melhor resultado possível, em
condições específicas e com número grande de variáveis à
mão. Aliás, quanto mais imprevisível for a situação
encontrada pelo regente, mais bem planejada deve ser sua
atuação; afinal, é sua responsabilidade apresentar os
resultados daquele trabalho, dentro de um prazo
determinado (que quase sempre é mais curto do que
gostaria).
Não é fácil descrever o som coral. Alguns autores até
tentam fazê-lo, mas acabam esbarrando em questões de
gosto, de ponto de vista cultural, e mesmo do caráter
subjetivo do som, que é difícil de ser expresso por palavras.
Para mim, o som coral ideal, de que falei acima, é natural.
Gosto de produção vocal vibrante, livre, cheia de energia,
com boa projeção. Acho que o texto que cantamos é tão
importante que o público deve compreendê-lo com clareza
(e em muitas situações a projeção sonora e a clareza de
pronúncia não se combinam). Os naipes devem estar bem
equilibrados internamente (colorido timbrístico) e também
equilibrados entre si (dinâmica). O ritmo deve ser preciso e
os cantores devem ter controle respiratório saudável, para
dar suporte a tudo isso. Particularmente, gosto de um som
resultante de uma extensão ampla, com boa ressonância
tanto em graves quanto em agudos, proporcionando ao
ouvinte uma sonoridade com ampla gama de frequências.
Mas apesar de todos esses fatores serem
interdependentes, não se pode abordá-los de uma só vez, o
que acabaria criando confusão na comunicação com os
cantores e consequente desperdício do nosso precioso
tempo juntos. É impossível levar todos a pensar em diversos
assuntos ao mesmo tempo. O som coral ideal deve ser
construído aos poucos, num processo organizado. É claro
que as circunstâncias irão interferir (e, muitas vezes, mudar
um planejamento de ensaio), mas esta é uma razão para o
regente estar ainda mais atento aos elementos que formam
o som do coro, para poder trabalhá-los da forma mais
efetiva possível.
No coro do Painel, pelas características que analisei,
darei preferência à dicção, entre os diversos elementos que
compõem o som coral (qualidade vocal, afinação, ritmo,
equilíbrio, dicção, respiração, dinâmica etc.). Primeiro,
porque a competência mais importante do artista no fazer
da música vocal é ser compreendido pelos ouvintes.
Segundo, porque dicção é o que está mais próximo da
realidade cotidiana das pessoas, especialmente daquelas
que não têm experiência musical anterior. Todo cantor sabe
falar, conhece dicção, mesmo que nunca tenha pensado
nela de forma organizada. Por isso, poderei falar com todos
juntos (cantores experientes ou iniciantes são capazes de
compreender este assunto), de forma a obter resultados e
otimizar nosso tempo de ensaio. Finalmente, o controle
consciente das questões relativas à dicção tem forte efeito
em outros aspectos, que podem ser aprimorados sem que
sejam tratados especificamente (afinação, equilíbrio e
ritmo, por exemplo).
Dicção para instrumentistas é o título de um dos
capítulos de Casals e a arte da interpretação, livro que
retrata ideias deste grande artista sobre o tema. SSegundo
ele, "o diminuendo é o que dá vida à música, pois notas se
destacam no discurso musical não por sua especial
intensidade, mas, principalmente, pela sombra que as
precede" 5. O respeito de Casals à clareza do discurso
musical é inspirador e deve ser lido com atenção pelo
regente, pois trata-se de um tema central na música coral,
onde a comunicação do texto é material fundamental de
trabalho. A importância que confere ao discurso musical é
confirmada, ainda, por outra idéia sua: "nunca encoste o
arco na corda com indiferença". Em outras palavras, o
compromisso do músico com seu ouvinte deve ser
completo, inteiro. No caso da música vocal, esse
compromisso exige a comunicação do texto cantado.
Ao conversar sobre a música coral com pessoas que não
são familiarizadas com esse universo, percebo o quanto
nossa arte é percebida como anacrônica e dissociada dos
costumes da vida contemporânea. Dentre os motivos que
justificam tal afirmação, o mais frequente é a pouca
inteligibilidade do que se canta, que se relaciona, também,
com aspectos da dicção do texto: " – Não consigo entender
a letra", dizem. A comunicação clara e intensa entre coro e
platéia é parte importante dessa produção musical. Por isso,
a análise de somente um desses lados levará a diagnósticos
incompletos de nossa atividade. O regente deve estar
atento a esse fato e considerar a percepção (auditiva e
social) dos ouvintes com o mesmo peso que dá à técnica
vocal e aos processos musicais. 6
Mas não adianta somente construir minha própria
filosofia a respeito da importância da dicção num coro.
Precisarei, também, de uma estratégia para passá-la ao
grupo e de exercícios para fazer o corista sentir,
experimentar fisicamente os conceitos compartilhados,
conectando mente e corpo. Farei isso através das duas
unidades básicas de formação de qualquer discurso: vogais
e consoantes. O ensaio será mais fácil e fluente se os
cantores compreenderem separadamente a produção de
cada uma delas. Mais ainda, a naturalidade desse discurso
musical (fundamental na relação do coro com seus
ouvintes) vem da percepção da direção das frases e da
prosódia, que são questões intimamente ligadas à dicção.
Algumas características das VOGAIS:
a) Funcionam através da vibração das pregas vocais.
Relacionam-se com a duração do som, por isso afetam
diretamente, a “cor" do som do coro, a dinâmica, a
afinação, o equilíbrio e a projeção sonora;
b) Podem ser misturadas e até substituídas, sem prejuízo
da inteligibilidade do discurso;
c) Podem ser abertas, fechadas, orais, nasais, puras, em
ditongos e tritongos. Se ouvirmos atentamente, muitas
vezes perceberemos misturas de vogais produzidas de
acordo com diferentes sotaques;
d) Permitem a diferenciação entre voz de cabeça e de
peito. Questões de tessitura também têm relação com a
produção de vogais;
e) Podem alterar a afinação de um coro sem que esse
assunto seja sequer abordado diretamente; dependem da
consciência dos cantores quanto à sua produção.
Algumas características das CONSOANTES:
a) Duram muito menos tempo que as vogais e
geralmente recebem menos atenção do que deveriam
receber durante o trabalho. São responsáveis pela
articulação da mensagem e pela consequente
inteligibilidade do discurso;
b) Há diversos tipos: de altura determinada, puras,
sibilantes e aspiradas. Algumas, mesmo que de tipos
diferentes, têm formação semelhante (p e b, por exemplo).
A atenção a esse detalhe promove a coesão sonora do
grupo, afetando até mesmo a dinâmica e o equilíbrio entre
naipes;
c) Relacionam-se diretamente com a dinâmica (através
da precisão articulatória), com o ritmo, com o controle
respiratório e, consequentemente, com a afinação;
d) Têm capacidade de tornar um discurso claro e
inteligível. A carga dramática do texto está contida nas
consoantes. Podemos regular sua intensidade, modificá-las
e até mesmo substituí-las.
Há que se pensar, também, no equilíbrio das duas,
vogais e consoantes, mantendo-se em mente uma questão
acústica: conforme aumenta o número de cantores num
grupo, também aumenta o peso das vogais no som
resultante e as consoantes tendem a ficar perdidas, até
mesmo apagadas. Como resultado, o texto (e sua
mensagem) ficará menos claro. Por isso, num coro grande, o
cuidado com a emissão clara das consoantes é fundamental
para a compreensão do texto cantado. Para os coristas, esse
conceito poderá gerar até certa estranheza, especialmente
se comparado à emissão da voz solo ou da voz falada. Mas,
uma vez compreendendo os benefícios do resultado sonoro
final, a ideia é sempre bem assimilada, especialmente
quando os coristas se percebem parte de um grupo cuja
prioridade são os processos e o resultado coletivo.

Conclusão

A formação musical de um regente é fundamental e


constitui a base de todo o seu trabalho. Para conseguir lidar
com um coro formado num Painel, a competência técnica do
regente é ainda mais importante, juntamente com sua
concepção de som coral e sua metodologia de trabalho.
Neste texto, entretanto, foram abordadas questões mais
relacionadas ao fazer musical coletivo e à contextualização
do trabalho coral no mundo contemporâneo. Este, por estar
em constante estado de mudança, exige do regente uma
postura crítica, mesmo em relação a princípios já arraigados
na formação e na práxis da música coral. O regente coral no
século XXI precisa questionar todos os aspectos dessa arte,
mesmo os mais básicos, como por exemplo a obrigação de
o corista olhar sempre para o regente; a dependência da
notação musical; a busca pelo “cantar certo”; a supremacia
do texto musical sobre o texto literário; a “subserviência” de
todos para com o compositor e o regente; a compreensão
da atividade musical como a supremacia da “obra”, e não
da atividade. Para além de sua preparação técnico-musical,
o regente precisa olhar para a atividade coral e entender o
que é meio (ferramenta) e o que é fim (objetivo). A
capacidade de contextualização de um regente é, muitas
vezes, limitada por valores estéticos que foram fixados em
outro tempo, e que não se sustentariam bem na produção
coral contemporânea, pois não levam aos objetivos
pretendidos.
Neste texto procurei descrever a preparação de um
regente para um trabalho coral de contornos bem definidos,
e sua necessidade de entender essa música a partir de um
prisma mais amplo e contextualizado com a vida
contemporânea. Mas coros são formados por pessoas e, por
mais que o regente esteja preparado, sempre haverá a
surpresa, o inesperado. E por isso que nosso trabalho
fascina: é, ao mesmo tempo, milenar e absolutamente novo.
Que bom!
MEYER, Leonard B. History, stasis and change. In: ______.
Music: the arts and ideas. Chicago: University of Chicago
Press, 1967.
Idéias sobre motivação intrínseca e extrínseca são
comentadas por Daniel Pink em Drive (New York: Riverhead
Books, 2009.)
Em crônica publicada na Revista Ilustração Brasileira, em
15/07/1877.
O trabalho de Paul Ekman é uma das referências mais
importantes na área da comunicação gestual. As idéias de
Rudolph Laban também são largamente utilizadas por
regentes corais interessados em compreender melhor e
expandir seu vocabulário gestual.
BLUM, David. Casals and the art of interpretation. Los
Angeles: University of Califórnia Press,1977.
O modelo de análise tripartite é um exemplo de análise
musical mais compreensiva, que pode servir como uma
referência para essa idéia. Ver NATTIEZ, Jean-Jaques. Music
and discourse: toward a semiology of music. Princeton:
Princeton University Press,1990.
Um pouco de tudo
Gisele Cruz

Quando eu era criança, existiam poucas possibilidades


de entretenimento.
Além das brincadeiras de rua, das bonecas, restava
assistir aos escassos programas infantis que exibiam
desenhos... em branco e preto!
Por muitos anos eu os imaginei coloridos e só muito
tempo depois é que pude ver os episódios de Tom e Jerry,
Pica Pau e Pernalonga em cores. Nunca mais me esqueci
desse fascínio e até hoje adoro desenhos. Eles fazem parte
do meu imaginário e ficaram como registro de humor e
perspicácia.
Ao iniciar este texto sobre o Painel Funarte de Regência
Coral, lembrei-me de um desenho intitulado “Maestro
Pernalonga”, mais especificamente de uma parte em que o
coelho se faz passar pelo famoso Maestro Stokowski e faz
todos os abusos de performance com um cantor lírico,
evidentemente, recorrendo a requintes de crueldade; ao
final, é simplesmente ovacionado pela plateia!
Vale dizer que os músicos o reverenciam e não percebem
que se trata de um impostor porque identificam nele os
estereótipos de um regente de sucesso: altivez, rigor,
severidade e acenos caricatos e descomedidos, com uma
grande dose de autoritarismo e de vaidade.
Além das boas risadas que, sadicamente, essa cena
proporciona, acho impossível resistir à provocação de
refletir sobre essa atividade privilegiada de reunir pessoas e
fazer música.
Penso que não é só o roteirista da animação que
distingue o regente com as características do desenho. Na
realidade, acho que a maioria das pessoas considera que
para estar à frente de um coral, de uma banda ou de uma
orquestra, o fundamental é um gestual de efeito, de
preferência associado a acordes retumbantes e agudos
estridentes.
Mas, então, que é necessário para ser um bom regente?
Treino? Talento? Aptidão? Conhecimento?
Esta é a pergunta que grande parte dos alunos que se
inscrevem para um Painel Funarte de Regência Coral fazem
e que nós professores daríamos tudo para ter uma resposta
pronta e certeira.
Mais uma vez, encarando a dura constatação de que não
é possível formar um regente nos seis dias de duração de
um Painel, a escassez do tempo suscita outras questões que
se colocam como norteadoras nesse momento da
preparação. Que cantar? Sobre o que falar? Que abordar
primeiro? Quais serão as necessidades dos alunos? Que
preparar para essa semana de imersão no canto coral?
Quem serão os participantes?
No canto coral, pessoas são imprescindíveis. Sem elas
não há voz, não há som, não há possibilidade de fazer
música. O coral é o instrumento através do qual o regente
pode se expressar musicalmente. Não fosse a generosidade
das pessoas que colocam sua voz a nossa disposição,
poderíamos abanar as mãos o quanto quiséssemos que não
resultaria nenhum som, nenhuma música.
É uma parceria entre a dependência e a confiança de um
grupo na condução, nas escolhas e na orientação musical
de um líder que, por sua vez, precisa desse grupo para a
realização de sua idéia musical.
Sendo assim, uma questão norteadora de qualquer
atividade coral é saber quem são as pessoas com quem se
irá trabalhar, pois são elas que definem quanto tempo de
ensaio, qual repertório, sua dificuldade, a dinâmica do
ensaio, a orientação vocal, e até as possibilidades de
apresentação. Um coral de terceira idade, por exemplo, terá
mais dificuldades de se apresentar em uma cidade mais
distante daquela em que reside, do que um grupo
constituído por jovens ou por adultos.
No que diz respeito ao ensaio, a atenção da criança e seu
tempo de aprendizado variam conforme a faixa etária.
Geralmente, entre os sete e os dez anos, absorvem bem
ensaios com duração de uma hora a uma hora e quinze
minutos. Já acima dessa faixa etária é possível realizar
ensaios com uma hora e meia, como se dá com
adolescentes e adultos em geral. Por falar em adolescentes,
se eles estiverem presentes no grupo de cantores,
principalmente os rapazes, é preciso estar atento à
mudança da voz e à extensão que conseguem cantar o que,
sem dúvida, irá interferir na escolha do repertório.
Também é muito importante considerar o espaço do
ensaio. Sendo de preferência claro, bem ventilado,
protegido de ruídos externos, que favoreça a emissão vocal
sem abafar ou reverberar demasiadamente os sons, é ele
que definirá a quantidade de pessoas, se será possível
realizar dinâmicas que envolvam movimento corporal ou,
ainda, em qual formação serão dispostos os assentos,
círculo ou semicírculo, formato auditório ou outro formato.
Em minha opinião, a melhor opção é aquela que propicia ao
regente ouvir todos os naipes de forma equilibrada, o
contato visual com o pianista correpetidor e com todos os
cantores.
Ao atender a um convite para atuar como professora em
um Painel Funarte de Regência Coral, como a uma proposta
no mercado de trabalho, dificilmente saberemos ao certo
quem iremos encontrar. Podemos tentar traçar um perfil
perguntando sobre a faixa etária, sobre a quantidade de
vozes masculinas e femininas que estão inscritas, se
possuem alguma experiência musical anterior, mas essas
informações muitas vezes não são precisas e na maioria dos
casos a realidade acaba sendo muito diferente do previsto.
Na atuação rotineira, o regente conhece seu coral e
distingue suas necessidades em cada etapa do seu
desenvolvimento. Mas,quando não há informações
suficientes sobre o grupo, a escolha acontece embasada
pela experiência de situações similares e pelos poucos
dados obtidos, deixando uma folga considerável para
mudanças de plano e para substituíções.
O leque de escolhas é imenso uma vez que, a princípio, é
possível cantar tudo. Porém, penso que a atividade coral,
mais especificamente a que é oferecida em um Painel, deve
proporcionar aquilo que dificilmente será vivenciado pelos
participantes em outra situação e, ao fazer opções,
considero a comunidade local. Creio ser importante
pesquisar uma canção ou um compositor de relevância
regional; tento encontrar músicas cujos textos falem do
universo cultural da região, alinhando essas possibilidades à
faixa etária do grupo inscrito: adulto misto,
majoritariamente feminino ou masculino, infantil ou infanto-
juvenil.
A formação musical e a experiência vocal do grupo
também define se o repertório será realizado em uníssono,
a duas, três ou quatro vozes e qual a tessitura utilizada. Um
bom uníssono é, por vezes, mais difícil de ser executado
que uma música a mais de uma voz, e é uma excelente
ferramenta para o trabalho de técnica vocal, principalmente
se o grupo não teve uma atividade vocal anterior. E ainda,
se utilizado com criatividade, pode-se transformar em uma
peça de efeito dentro do repertório. Portanto, não creio que
se deva ter ansiedade em iniciar o canto a várias vozes e,
tampouco, preconceito em relação a um trabalho em
uníssono. É preciso, isto sim , muito cuidado a fim de se
evitar um trabalho mal realizado.
No momento em que estou escolhendo um repertório
observo, também, que cada peça trabalhe um ou mais
aspectos da técnica vocal e da linguagem musical, de
maneira que formem um conjunto onde sejam encontrados
os elementos para um desenvolvimento musical global.
Tento contemplar estilos e gêneros variados, diferentes
graus de dificuldade, músicas atraentes que despertem o
interesse pela atividade, que estejam dentro do registro
médio da tessitura vocal, textos com bom conteúdo e
apropriados à faixa etária do grupo, e peças tecnicamente
acessíveis, mas que proponham desafios.
Aliás, este é um importante aspecto a ser considerado: o
de não perder de vista os limites entre a acomodação, o
desafio técnico e a frustração dos cantores, principalmente
ao se tratar de uma atividade de curta duração como
acontece no Painel Funarte.
O repertório pode ser uma ferramenta muito eficiente
para trabalhar vários aspectos da técnica vocal, assunto
que também suscita muito interesse por parte dos alunos,
como articulação, timbre, sonoridade, extensão vocal;
também pode proporcionar o desenvolvimento do ouvido
harmônico, da afinação, e do senso rítmico.
É também através da escolha de um repertório
diferenciado e diversificado que uma comunidade pode
redescobrir e aprender a valorizar sua própria riqueza
cultural e musical e, simultaneamente, ampliar seu universo
de conhecimento cantando músicas de outros países, peças
originais compostas para coral, músicas em tonalidades
maiores, menores ou modais, atonais ou sem altura
definida, e ainda peças com e sem acompanhamento
instrumental.
Apesar de a responsabilidade de escolha do repertório
ser do regente, os cantores podem e devem ser estimulados
a contribuir com sugestões que, se pertinentes, podem ser
incorporadas. Por vezes subestimamos gratuitamente a
capacidade de um grupo.
A participação no coletivo enraíza o sentimento de
pertencimento à atividade despertando o senso estético e
crítico, que é também função da atividade artística.
Nos Painéis da Funarte, a equipe é constituída por dois
regentes e um pianista correpetidor de muita experiência.
Ao pensar e selecionar o repertório, lembro-me de que terei
esses dois “luxos” que não estão presentes no meu dia a
dia: a possibilidade de dividir o trabalho com um colega
experiente e de ter o apoio melódico, harmônico e estilístico
de um (ou uma) pianista competente. Sendo assim, a
listagem de possibilidades ganha ainda mais opções: posso
escolher músicas originalmente compostas para piano e
coro; posso ousar um pouco mais no repertório porque há
um instrumento para dar suporte, e posso aumentar a
dinâmica de leitura das peças e consequentemente sua
quantidade.
Apesar de todo esse conforto, quero fazer um parêntese
de que não há instrumento mais adequado para
acompanhar uma voz do que outra voz. E ainda bem,
porque pianistas como esses dessa equipe são bem difíceis
de se encontrar.
Imagino que a maioria dos regentes tem como ideal que
seu grupo possa cantar a cappella. O canto a cappella
possibilita que seja ouvida toda a riqueza timbrística da voz
humana, além de aguçar a percepção auditiva de quem
canta e de quem ouve.
Mas, é preciso considerar que vivemos em um contexto
sonoro bem diferente e, se os cantores nunca tiveram
contato com a atividade vocal, é mais difícil dominar essa
prática rapidamente. Quanto tempo demora para isso
acontecer depende de cada grupo e de cada contexto.
Cantar a cappella tem como premissas uma atuação vocal
rigorosamente afinada, uma prática na execução de
músicas a várias vozes, um equilíbrio sonoro entre os
naipes, um repertório adequado e uma acústica favorável -
reverberação bem dosada e ambiente não muito amplo.
Assim, se o coro for inexperiente, um trabalho que
precisa ser desenvolvido em um curto espaço de tempo –
como, por exemplo, o dos Painéis - pode ficar inconcluso, ou
um grupo que é iniciante pode perder sua motivação e não
sobreviver ao longo prazo necessário para a consolidação
dessa sonoridade.
Considerando tudo isso, a utilização de um ou mais
instrumentos acompanhantes na atividade pode ser
entendida como uma ferramenta a mais para o trabalho. O
equilíbrio na sua utilização é fundamental para que esse
recurso não se transforme apenas em uma escora, e
subtraia do grupo a possibilidade de atuar de forma
autônoma.
Deve-se tirar proveito das possibilidades harmônicas e
timbrísticas do, ou dos instrumentos, preferindo o
acompanhamento com acordes, evitando dobrar a linha
melódica e prestando também muita atenção ao volume,
para que não se sobreponha ao das vozes. Muitas vezes, a
execução de um determinado trecho melódico pode ser
facilitado por um acompanhamento harmônico bem
conduzido.
As habilidades de um profissional correpetidor incluem
boa leitura à primeiravista, domínio na execução do seu
instrumento, facilidade em fazer harmonizações e
transposições, e bom senso na escolha da “levada”. É
necessário ter prática em ouvir simultaneamente os vários
naipes do coro e a si mesmo. Somente assim fará parte do
conjunto, apoiando o regente e o grupo no aprendizado,
além de valorizar a música com equilíbrio entre voz e
instrumento.
O pianista precisa estar informado sobre o projeto
musical do regente e das suas pretensões de resultado com
o coro, da mesma forma que o regente deve conhecer bem
a parte do piano ou ter uma concepção para ela, a fim de
explorar melhor suas potencialidades.
É importante pontuar que o piano ou o teclado não são
os únicos instrumentos indicados para o acompanhamento
vocal. Na lista de opções encontram-se o violão, o acordeão,
a percussão, o órgão, o quarteto de cordas e os
instrumentos melódicos como flauta, clarinete ou sax, que
podem ajudar a compor um arranjo.
Sempre que possível, procuro envolver outros
instrumentistas da cidade onde está sendo realizado o
Painel, pois, além de enriquecer os arranjos é uma
oportunidade para revelar, para comunidade local, talentos
desconhecidos ou ainda valorizar aqueles já existentes.
Qualquer que seja a escolha, é importante estar atento
às observações acima, bem como à competência dos
instrumentistas.
São tantas as ponderações e os desdobramentos
técnicos, que poderíamos pensar que escolher um
repertório adequado seja noventa por cento da capacitação
de um regente ou, neste caso, do trabalho preparatório para
um Painel.
Escolhido o repertório, deverá haver um planejamento
para sua realização; a concretização dessa etapa é outro
momento igualmente importante.
O Painel Funarte de Regência Coral não é só uma
oportunidade para uma atividade vocal prazerosa; é
também um período para reciclagem de informações sobre
regência coral, para que alguns revejam essa prática e
outros se iniciem nela.
Sendo assim, um outro viés que será observado também
nesse momento de preparo é que o material escolhido deve
contemplar uma outra área de preparação do regente: a do
conhecimento do gestual e do domínio da sua prática.
Novos desafios se apresentam a mim pois, à semelhança
dos cantores, também desconheço quem serão os alunos-
regentes, e não posso perder de vista a curta duração do
Painel.
Particularmente, observo se o material apresenta
fórmulas de compasso variadas, entradas e cortes em
tempos diferentes, andamentos distintos, polirritmias e
outros importantes aspectos da regência que poderão ser
abordados de forma prática à frente do grupo no momento
da execução do repertório. Preparo, também, exercícios
para desenvolvimento da coordenação motora, consciência
corporal, independência de mãos e domínio do gestual.
Porém todo esse arsenal de procedimentos pode resultar
em uma mera coreografia, mecânica e sem significado se
não ficar claro que antes de qualquer gesto existe a música.
É só a partir da identificação dessa música que surge o
gesto. E apesar de considerar importante que o regente
conheça os padrões tradicionais da regência, não acredito
que isso seja suficiente.
O gesto deve trazer à tona a escuta interior que
antecedeu o ensaio daquela música, as escolhas de
fraseado, o andamento, a intensidade e o timbre a serem
trabalhados. Esse gesto pode ser comum, porém eficiente e
carregado de significado, obtendo para cada estilo de
movimento resultantes sonoras diferentes.
O gestual do regente não se restringe a um simples
sincronizar de movimentos com tempos de compassos "mas
também em conjugar e projetar, por assim dizer, tudo o que
se discutiu e combinou durante os ensaios, lembrando o
coro no momento preciso através dos gestos aos quais os
cantores se acostumaram” (Oscar Zander).
É, antes de tudo, um exercício de liderança de quem
arquiteta sons e organiza as disponibilidades para construir
um resultado sonoro. Paradoxalmente e, ao longo do tempo,
descobrimos que sua necessidade pode ser bem menor do
que se imagina.
Preciso terminar este texto na próxima página e, como
também acontece nos Painéis de Regência Coral da Funarte,
não consegui colocar tudo o que desejava.
Bem disse um amigo meu que dez laudas não seriam
suficientes nem para o começo daquilo que desejamos
compartilhar sobre nosso preparo para essa atividade.
Sei que esbocei apenas parcialmente algumas respostas
à questão inicial como formar um regente?
Porém, durante o processo de elaboração deste texto
lembrei-me de que há alguns anos, antes de me tornar
participante da equipe de professores do Projeto Coral da
Funarte, fui aluna desse Projeto e sempre voltei dos Painéis
com muito material, com novidades técnicas, com dicas
para ensaios e com histórias incríveis. Mas trazia também
na bagagem muitas interrogações e reticências. Nem todas
as minhas incertezas eram resolvidas, nem todas as
perguntas tinham apenas uma resposta.
Considerei, então, o quanto isso foi significativo para
mim e constato que melhor do que a certeza é o leque de
possibilidades que a dúvida proporciona. Ou seja, não ter
uma única resposta significa poder experimentar várias
opções, algo muito mais rico, mais interessante, muito mais
criativo.
O fato é que são as perguntas, mais do que as certezas,
que apontam o caminho para a descoberta, para o
crescimento e proporcionam um espaço onde é possível
compartilhar o conhecimento e a experiência profissional
acumulada ao longo dos anos.
O escritor italiano Giani Rodari no prefácio do seu livro
“Gramática da Fantasia” diz “todos os usos da palavra para
todos” parece um bom lema sonoramente democrático. Não
exatamente porque todos sejam artistas mas porque
ninguém é escravo.”
No último Painel em que atuei, no mês de maio de 2014,
ao perguntar aos participantes quais expectativas os
motivavam e que razões tinham para estar ali, obtive a
seguinte resposta de um dos alunos mais novos: “porque
quero fazer diferença!”
Resposta certa!
Para finalizar, eu recomendo que você digite no Youtube _
Maestro Pernalonga _ e gaste aproximadamente três
minutos assitindo a essa provocação.
Dê muita risada, reflita e procure suas respostas!
Um gesto, múltiplos cantos
Lucy Maurício Schimiti

Chegar a uma nova cidade, com expectativas diversas


por parte dos participantes, com inscritos vindos de
contextos completamente diferentes e possuindo diferentes
formações acadêmicas é sempre um enorme desafio. Cada
Painel é muito diferente do outro. Se, por parte da
coordenação pedagógico-estrutural, na FUNARTE, sua
gestação acontece com meses de antecedência (nove?),
para nós, professores, é momento de também iniciarmos
um processo de elaboração mental; através dele, tentamos
traçar metas cujas bases possam alcançar o maior número
de regentes-professores no desenvolver de seu trabalho
musical direcionado ao canto coletivo.
Hoje, somamos experiências advindas de grandes
encontros dessa natureza, pois atuamos como um dos
professores convidados em Belém (PA), São Luiz (MA),
Palmas (TO), Crato (CE), Quixadá (CE), Mogi das Cruzes (SP)
e Maceió (AL). Estas cidades foram palco das mais
diferentes e intensas sensações, com momentos de
congraçamento e de trabalho árduo, locais onde
desfrutamos do convívio com pessoas ímpares: ora
integrantes da banda local, ora alunos de Licenciaturas, ora
cantores de coros e seus familiares, ora integrantes de
grupos vocais, ora professores das redes estaduais e
municipais ou mesmo particulares, ora regentes de coros
religiosos, ora curiosos tentando assimilar as metodologias
e as atividades para implementá-las em sua prática
pedagógica. Com tanta diversidade de interesses, com
níveis diversos de compreensão dos fenômenos musicais,
inseridos em comunidades com experiências tão díspares,
que fazer em uma semana de vivências? Estabelece-se uma
questão fundamental: como alcançar o regente, ou o
professor que atua em escolas, ou o cantor interessado em
aprimorar seus conhecimentos na área coral, ou o
estudante das diferentes Licenciaturas, ávido por novas
metodologias, por novas dinâmicas, oferecendo-lhes
alternativas para refletir sobre técnicas e procedimentos
que poderão redirecionar suas ações? Se por vezes não
redirecionam, esses procedimentos apresentados nos
Painéis servirão ao menos para ratificar atitudes saudáveis,
justificadas por uma bibliografia consistente sobre as
abordagens ali feitas?
Com estas preocupações, iniciamos nosso planejamento
para os desafios de cada Painel. E cada um dos quais já
fizemos parte contribuíram para um crescimento ímpar:
tanto para os alunos participantes, por suas avaliações e
seus retornos verbais expressos, como também para nós,
professores!
É sempre uma grande tarefa escolher o repertório a ser
apresentado como modelo de possibilidades de execução,
selecionar atividades, reunir bibliografia, separar textos,
delimitar tópicos para discussão, e ainda estruturar um
repertório de canções a ser ensaiado como culminância do
processo que acontecerá durante a semana. Isto tudo com
variáveis que dependerão do perfil dos participantes, das
possibilidades espaciais do local de realização, da
disponibilidade de material xerográfico por parte da
coordenação local do evento, do horário a serem
desenvolvidas as atividades.
Existe, como já afirmamos, um período necessário para a
gestação de um Painel; após a definição do trio responsável
por sua concretização_ dois professores e um pianista_ , o
local de sua realização(a) , o contato com a organização
local (b)e a definição do público alvo(c) passam a nortear
muitas das decisões .
Com esses dados, ainda que com muitas alterações no
decorrer do processo, sua preparação, pelos professores,
mescla fases de euforia, de preocupação, de dúvida, de
satisfação, de receio.
Em contextos em que o Painel FUNARTE pode apresentar-
se como uma das únicas oportunidades de aprimoramento
de conhecimentos na área coral, pela ausência de cursos
específicos e sistemáticos em diferentes regiões do país, a
decisão por repertório adequado, a escolha da metodologia,
a definição de tópicos para reflexões conjuntas e a
elaboração de atividades práticas ganham outra dimensão.
Serão estes os momentos mais preciosos de
experimentação, de vivência concreta, de reflexão sobre os
rumos de uma prática que já se consolidou como uma
grande oportunidade de convívio social, de canalização da
emoção, de prazer estético que outras atividades que não a
coral são incapazes de provocar.1
Mas quais as competências necessárias ao professor para
o sucesso dessa iniciativa? Trocando em miúdos, que
investimentos são necessários para o sucesso de cada
Painel por parte de nós, seus professores?
Não bastaria chegar ao local de sua realização e fazer
ensaios das peças sem planejamento, sem método, sem
refletir sobre cada escolha realizada. Esta já pode ser a
rotina de ensaios de muitos grupos corais em locais que
ainda não subsidiaram um Painel FUNARTE. O Painel tem de
vir para provocar, para instigar, para propor outras
alternativas, para mostrar possibilidades de otimização de
tempo de ensaio, para sugerir métodos viáveis que possam
ser aplicados pelos participantes para enriquecer suas
propostas cotidianas de ensaio coral. Sem esses propósitos,
seria improdutiva a realização de eventos dessa dimensão.
Em Belém (PA), o primeiro Painel desde que foi retomado
o Projeto pela FUNARTE, houve muita troca. Havia
expectativas dos envolvidos em relação a um projeto com
crianças, pois montavam algumas peças para serem
executadas com uma orquestra jovem; um compositor local
ainda acabava de escrever as peças que seriam cantadas!
Os participantes eram bastante atentos, um grupo
constituído por crianças acompanhadas de alguns pais,
além de professores e estudantes de música que regiam
grupos diversos. Houve necessidade de algumas
adaptações para a realização das peças anteriormente
previstas por nós, professores.
São Luiz (MA) foi surpreendente pelos interessados que
se fizeram alunos do Painel. Um grupo de integrantes da
Banda local assiduamente estava a postos, nos horários
programados, para receber as orientações e questionar
essencialmente aspectos de técnicas de regência; estavam
ávidos por resolver problemas de regência buscando
soluções para aspectos específicos da condução, por
exemplo, do Hino Nacional Brasileiro. Mas muitos aspectos
de dinâmica de ensaio e de metodologias para ensino de
canções foram bastante explorados ali. Além desses alunos,
a sala programada para acontecer o Painel estava sempre
lotada de interessados, que vibravam com cada proposta
lançada.
Em Palmas (TO), muitos integrantes de grupos vocais,
além de regentes de coros principalmente religiosos e
vários professores compunham o quadro de participantes do
Painel. Foi desenvolvido um repertório variado de canções,
direcionado a grupos diversos, tanto infantis como adultos e
discutida muita metodologia de ensaio. As atividades do
Painel tentaram deixar uma amostragem de procedimentos
que tinham por escopo otimizar os ensaios vocais, propondo
ações para que fossem analisados aspectos dos ensaios que
facilitassem a aprendizagem do repertório pelos cantores.
Crato (CE) teve características distintas em termos de
participantes: vários alunos do curso de Licenciatura em
Música, envolvidos em atividades corais, mesclavam-se com
professores de música e outros interessados, ansiosos por
bibliografia específica para pesquisa nas áreas de canto
coral e de regência. Foram realizadas atividades bastante
lúdicas e um repertório que atendia às expectativas do
grupo, pelo que pudemos verificar.
Quixadá (CE) também reuniu um bom número de
interessados pelo Painel. Professores de música, regentes
de grupos vocais e instrumentais tanto da cidade como de
cidades próximas, professores de escolas públicas, músicos
que atendiam a Projetos com crianças e adolescentes,
estudantes, enfim, pessoas ávidas por conhecer
metodologias para trabalho com crianças , jovens e adultos
e vivenciar processos de educação musical através do canto
coletivo.
Mogi das Cruzes (SP) mostrou-se ímpar em termos de
organização e motivação para o Painel. Seus participantes
vibravam com todas as atividades propostas!
Questionavam, queriam experimentar a regência das peças,
buscavam bibliografia relativa ao canto coral, à regência, às
dinâmicas de ensaio, às metodologias desenvolvidas
através das práticas realizadas. Havia também integrantes
de Bandas locais que se faziam presentes diariamente para
conhecer e refletir sobre metodologias de ensaio
desenvolvidas na semana de realização do Painel.
Nossa experiência mais recente foi em Maceió (AL), onde
um grupo de aproximadamente 180 inscritos aguardava
ansiosamente as propostas do Painel, deixando evidente um
interesse grande por aspectos gestuais, por dinâmicas de
ensaio, por indicações bibliográficas na área vocal, por
exercícios vocais que pudessem ser aplicados em grupos
iniciantes de diferentes faixas etárias, por repertório
específico para crianças. Muita disposição, muita vontade
de experimentar novos repertórios, muita dedicação
principalmente de pessoas da comunidade que
demonstraram garra na realização de tudo o que foi
proposto. Para nós, professores, foram momentos
desafiadores, compensados pela alegria daqueles
participantes que tentaram conduzir as tarefas até o final do
Painel, acreditando no que chegamos a pensar ser
impossível de realizar sob aquelas circunstâncias.
Praticamente em todas as cidades mencionadas, houve a
oportunidade de troca de experiências, de reflexão sobre
procedimentos, de indicação de bibliografia específica para
consulta posterior pelos alunos, de experimentação de um
repertório variado de canções, de apresentação de
pedagogias que fossem adequadas a diferentes momentos
do ensaio. Desta forma, o Painel constituía-se como
oportunidade de reciclagem pessoal, de experimentação
prática, de abertura para novas possibilidades
metodológicas de ensaio, fazendo com que seus
participantes ampliassem sua visão de como desenvolver
um ensaio vocal coletivo. Carlos Alberto Figueiredo,
professor e regente carioca, no capítulo em que inicia o livro
“Ensaios: olhares sobre a música coral brasileira”( 2006,
p.18) sugere que o regente sempre volte sua atenção ao
ensaio coral, estando atento às possibilidades de exploração
musical que o próprio repertório propõe, ao afirmar:
Ensaiar é uma oportunidade para um processo permanente de
musicalização. O regente não pode desprezar qualquer oportunidade de
transformar algum aspecto da obra que está preparando num exercício
para desenvolvimento da musicalidade de seu cantor, seja no aspecto
rítmico ou das alturas, melódica ou harmonicamente. (...) (FIGUEIREDO et
al., 2006, p. 18).
Concordamos com essa argumentação, tendo a absoluta
certeza de que podemos realizar uma verdadeira educação
musical através do trabalho de canto em grupo. Com esse
objetivo em mente, temos de voltar nossa atenção a todos
os aspectos que possam advir das peças que elegemos e
que constituem nosso repertório para, daí, propiciarmos
momentos de exploração de parâmetros musicais, de
criação, de execução, de apreciação musical.
Assim que chegamos ao local de realização do Painel,
esta nova e desafiadora jornada se inicia! E nossas
preocupações nos agitam: conseguiremos realizar nosso
intento? Quem serão os nossos alunos? Que atividades
atenderão melhor às ansiedades deles?Teremos de
readaptar nossos conteúdos de forma que todos possam
acompanhar as reflexões? Que peças trazidas realmente
faremos?
São frequentes as questões levantadas pelos
participantes em relação a assuntos de ordens muito
diversas. Que fazer com pessoas que não afinam?Como
resolver questões de disciplina?Como classificar vozes de
diferentes faixas etárias?Onde achar repertório fácil, e que
funcione bem com grupos iniciantes? Como desenvolver a
habilidade de cantar a vozes?Com que tipo de peças
começar os ensaios se diante de pessoas sem experiência
vocal coletiva? Devemos cantar apenas em uníssono no
início do trabalho coral? Devemos realizar repertório
escolhido pelos cantores, ou peças que ouvem diariamente
nas rádios?(...) São tantas as questões levantadas! Tantas
dúvidas!
Em nossa opinião, muitas dessas questões são de
fundamental importância para serem abordadas durante o
Painel. Por elas, poderemos traçar ações na busca de uma
alteração do perfil dos participantes, fazendo com que esses
dados venham à tona durante as aulas e tenhamos a
oportunidade de refletir sobre cada tópico levantado.
É bastante comum a ausência de cursos básicos de
regência no contexto geral de nosso país, com pouca
exceção além dos oferecidos dentro dos cursos de
Licenciatura; desta forma, em algum momento do Painel
faz-se necessária a abordagem de aspectos fundamentais
de condução gestual. Nesses momentos, nosso papel tem
sido o de trazê-los à reflexão sobre a funcionalidade dos
movimentos, sobre sua eficiência na obtenção de
determinado resultado sonoro. Os movimentos corporais
sempre trazem uma mensagem que deverá ser
compreendida pelos cantores; os intérpretes, então, são a
prova mais concreta de sua eficiência. Sob este olhar, todo
gesto deve ser pensado para não ser excessivo em termos
de informação, não gastar energia demasiada, não sugerir
articulação diferente daquela solicitada pela obra em
estudo, não executar apenas o diagrama indicado para
determinado padrão sem que haja emoção e “verdade” em
sua realização, não confundir os executantes. O gesto tem a
função de encaminhar o intérprete para o som imaginado
pelo regente e dar vida musical à peça.
Sobre a questão dos exercícios vocais realizados por
grande número de regentes no início de seus ensaios (em
geral), bem como aqueles que antecedem as performances,
vale observar que na maioria das vezes mostram-se
ineficientes e sem propósito. Grande parte dos regentes não
tem convicção sobre as diferentes funções das consoantes e
das vogais, não reconhecendo suas propriedades
articulatórias ou sua função no processo de emissão sonora.
Algumas consoantes, por exemplo, constituem-se valiosos
elementos para desenvolver aspectos respiratórios ou
musculares, ou para explorar ressonância. Outras podem
ajudar a projeção do som, ou colaborar para que se evitem
golpes de glote. São as consoantes que dão forma ao texto,
organizando as significações! Por outro lado, são as vogais
que conduzem a sonoridade. Assim sendo, como utilizar as
diferentes vogais, sem observar também sua forma de
articulação, ou seu papel na condução das linhas
melódicas? Se toda sonoridade é construída pela
alternância das vogais presentes nos textos, como realizar
um som homogêneo sem despertar o grupo para uma
realização similar, sem procurar uma mesma forma de
produção? Em relação a esse tópico, tem sido muito
oportuno o Painel, oferecendo a oportunidade de
levantamento de questões a esse respeito e trazendo os
regentes à reflexão sobre sua responsabilidade na liderança
dos grupos corais.
Escolha de repertório também tem sido tema recorrente
nas reflexões que acontecem nos Painéis; observemos,
porém, que cada grupo tem características peculiares que
lhe dão personalidade própria. Desta forma, o que pode
funcionar muito bem para um grupo pode ser catastrófico
para outro, gerando frustração tanto para os cantores como
para o regente. Que tipo de repertório fazer com o grupo
que temos agora nas mãos? Como saber se o grupo vai
conseguir realizar uma obra que já elegemos como nossa
preferida dentre as demais que nos propusemos realizar, e
que acabamos de trazer do curso mais recente de que
participamos?
Bem, caminhemos de pé no chão e por etapas.
Reflitamos juntos sobre estas questões. Quais são as
características do coro que temos nas mãos? Que funções
ele vai desempenhar dentro da instituição da qual faz
parte?Quais são as expectativas dos seus integrantes, ou de
seus idealizadores? Quais são nossas expectativas em
relação ao grupo? Que tipo de repertório conseguimos
realizar bem, hoje, e que poderá trazer contribuições de
diferentes ordens aos cantores? Seremos capazes de
adequar a escolha do repertório à capacidade atual dos
cantores?Ou seremos capazes de criar ou arranjar peças
que sejam adequadas ao nível de interesse e de realização
do grupo, e que possam contribuir para compor sua história
dentro do contexto em que ele se insere? Perguntas como
estas sempre darão um suporte para que possamos iniciar
nossa busca por material vocal a ser explorado em nossos
ensaios.
Cabe ainda, porém, uma observação a respeito da
interdependência dos fatores relacionados a essa escolha:
independentemente do nível de dificuldade do repertório
escolhido, será sempre a forma de sua realização que
poderá fazer toda a diferença no momento do ensaio. Uma
peça difícil pode-se tornar fácil nas mãos de um regente
habilidoso. Afinal, os cantores não sabem, muitas vezes, das
dificuldades que terão de enfrentar. É o líder que está à
frente do trabalho que terá a missão de transformá-la em
algo fácil e prazeroso. As diferentes pedagogias nos
despertam para possibilidades infinitas de realizações
metodológicas para serem aplicadas nos ensaios, para que
estes se transformem em momentos mágicos. Basta que
debrucemos sobre elas e busquemos estudar as peças
musicais, descobrindo os caminhos que elas mesmas
propõem para sua exploração. Ora o encaminhamento
rítmico, ora o melódico, ora o harmônico, ora o texto; todos
estes elementos sugerem, na maioria dos casos, formas de
abordagem que facilitarão sua execução até mesmo por
pessoas completamente leigas em música.
Eric Ericson, regente sueco e um dos expoentes da
música coral mundial, já afirmara em seu artigo sobre
método de ensaio que em muitos casos o regente, por não
sabe realizar determinadas peças, tenta transferir essa
incapacidade aos cantores. São palavras do maestro:
The statement `My choir will never be able to sing that piece, though
commonly said, only reflects on the conductor himself.` (p. 103).
(ERICSON, Eric. Rehearsing Methods. In: ERICSON, Eric; OHLIN,Gösta;
Lennart SPÄNGBERG. Choral Conducting. Fort Lauderdale,USA: Walton
Music Corporation, [19-- ] , p. 99-103 ) 2
Vale registrar que enfatizamos também, nos Painéis,
como a utilização de recursos áudio-visuais, eurrítmicos e
cinestésicos podem alterar significativamente o resultado
do trabalho coral, especialmente com crianças e jovens.
Esses recursos, quando utilizados nos ensaios, dão
concretude`a imaginação, deixam as referências mais
claras, possibilitam a compreensão dos parâmetros musicais
através das sensações oriundas dos movimentos corporais,
além de darem mais dinamicidade ao ensaio.
A utilização de recursos que os aproxima de um universo
conhecido, a saber, pião, bola, ioiô, bexiga, tubo de PVC,
elástico, corda, mola colorida, fantoche(e muitas outras
coisas) permite um envolvimento dos participantes em um
nível mais lúdico e fascinante, trazendo mais motivação ao
momento do ensaio , simultaneamente ao fato de que esse
arsenal facilita a compreensão de muitas referências que,
na ausência dele , implicaria a necessidade de um tempo
maior para sua assimilação.
Uma vez que no encerramento do Painel está prevista
uma apresentação final, como culminância do processo
desenvolvido durante a semana de atividades, vale a pena
ressaltar a importância da metodologia para a realização do
repertório programado. Há uma real necessidade de um
planejamento cuidadoso em termos de otimização do tempo
para que esse repertório amplo de canções a 1, 2, 3 ou 4
vozes possa ser feito, paralelamente aos momentos de
discussão sobre condução gestual, sobre as etapas do
trabalho vocal a serem feitas no aquecimento, sobre
preparação do ensaio, sobre a metodologia do ensino de
canções, sobre cuidados na escolha do repertório.
Como realizar rapidamente a leitura de peças vocais,
envolvendo ora dificuldades rítmicas, ora melódicas, ora
harmônicas, ora timbrísticas, ora de difícil articulação
textual, num tempo exíguo, sem cansar os cantores, sem
deixar que o ensaio seja enfadonho, sem que os cantores
percebam o excesso de solicitações de repetição do mesmo
trecho pelo regente, ou sem deixá-los por muito tempo sem
cantar? Sem um planejamento cuidadoso do ensaio o
regente nunca conseguiria seu intento. É em situações
como estas que percebemos a diferença de estratégias
metodológicas entre um regente e outro.
As atividades do Painel têm demonstrado a necessidade
de estarmos atentos a todos esses fatores. Uma semana
intensa de atividades que se alternam sob a orientação de
dois professores/regentes e um (a) pianista. Estes estão nas
cidades hospedeiras se empenhando para acolher os
participantes com idéias, exemplos de ações, sugestões de
encaminhamento metodológico, materiais didáticos,
dinâmicas instigantes que os façam refletir sobre suas
práticas e construir formas de encaminhamento dos
trabalhos corais de forma mais consistente, com
embasamento teórico que lhes dê amparo para sempre
aprimorar seus procedimentos.
Lembremos que as atividades desenvolvidas em todo
ensaio coral têm de servir para possibilitar aos cantores a
construção de um conhecimento musical através do canto
em grupo. Nós, regentes/professores, somos responsáveis
pela exploração de todos os dados musicais que afloram do
repertório que elegemos, de forma que a experiência coral
que propiciamos aos nossos cantores seja rica em
conteúdos, dê-lhes a sensação de completude, por
favorecer a aquisição de conhecimentos sólidos em música,
e lhes permita realizar performances com habilidade e
compreensão, conforme afirmou Doreen Rao, regente
americana, em seu livro “The art in choral music”
(RAO,Doreen, 1990, volume III, p. 4) ao comentar sobre a
necessidade de desenvolver “artistry” dentro da atividade
coral. Tenhamos sempre em mente o fato de que a
performance de nossos grupos irá apresentar a medida de
nosso conhecimento na área. Assim sendo, pensemos na
amplitude de nossas responsabilidades e façamos de nossos
ensaios momentos que conduzam a uma verdadeira
experiência estética; que haja um deslumbramento em sua
realização, permitindo um crescimento pessoal artístico-
cultural-musical que estimule o cantor nos primeiros passos
de uma caminhada musical de qualidade.
Estas são apenas algumas das reflexões levantadas pelos
Painéis FUNARTE de Regência Coral, quando de nossas
“andanças” pelas diferentes regiões do país. Que todos os
regentes que deles já participaram (ou que ainda irão
participar) sintam-se tão provocados quanto nós ao
enfrentarmos o desafio de reger grupos corais, para que a
experiência do canto coletivo possa ser multiplicadora,
satisfaça condições psicológicas e sociais nos cantores e
seja profunda em sua tarefa de introduzir pessoas no
universo da música.
Sugerimos a leitura do artigo “Que es lo que hace com
que las personas canten juntas? Perspectivas sócio-
psicológicas y transculturales sobre el fenômeno coral,
escrito por Collin Durrant e Evangelos Himonides, publicado
no International Choral Bulletin, abril,1999.
A afirmação “Meu coro nunca será capaz de cantar
aquela peça”, embora dita frequentemente, somente
espelha o regente em si mesmo( sua capacidade)”.
(Tradução nossa).
Muitas perguntas, muitos caminhos,
muitas canções
Samuel Kerr

Mais um Painel Funarte de Regência Coral. Privilégio.


Escolhida a cidade, começo a pesquisar a respeito do local,
das suas tradições, da sua história, do seu cancioneiro. O
nome da cidade, qual o som desse nome, qual a sua
origem. Quais as igrejas e seus sinos, seus hinos. Nomes
ilustres? Um rio corta a cidade? Ah! É o mar que a
emoldura? Muitas perguntas, muitos caminhos, muitas
canções... E um roteiro musical se esboça. Canto coral: em
quais momentos o povo da cidade canta em conjunto?
Existe uma história coral naquela região? Que música corre
pelas ruas, pelas janelas, pelas praças? Onde os corais
cantam? Que cantam?
Seria possível gravar os sinos das igrejas? Não há mais
sinos? Alguém ainda se lembra deles? E na praça, muitos
pássaros? Ah! Muitas buzinas...
A cidade tem um hino? Alguém poderia enviar-me a
partitura ou uma gravação? O compositor ainda é vivo? Ele
tem outras músicas compostas? Por favor, pergunte a ele,
quem sabe ele tem músicas para coral.
E os grupos folclóricos? Por favor, mande-me uma
relação das festas. Qual a festa mais importante e qual a
música mais conhecida?
O professor de música do Colégio Estadual, sim, alguém
poderia ceder-me seu telefone ou e-mail? Ah, sim, já se
aposentou... Não há mais coral nas escolas, sim
compreendo... E no coral da igreja matriz, quem é o
regente? Há o moço que toca violão... E em relação às
igrejas protestantes, haveria algum contato? Um rapaz toca
bateria... Hum...
Posso estar sonhando, ou desmerecendo a cidade ou me
esquecendo de que a cidade é tão grande que os corais
submergiram no mar de sons de carros, motos, alto-falantes
potentíssimos e foram engolidos pela televisão ligada em
todas as casas. As distâncias desencorajaram os cantores
em reunir-se para cantar juntos.
As fantasias poderiam continuar e imaginaríamos
situações sem fim...
Mas se a Zezé Queiroz e o Eduardo Lakschevitz
escolheram essas regiões do Brasil para receber o Painel
Funarte de Regência Coral é porque lá existe um foco que
pode ser estimulado.
Vamos lá.
Neste ano de 2014, fui indicado para a cidade de
Maringá. Logo me veio a lembrança da canção de Joubert de
Carvalho e comecei a imaginar um arranjo para levar.
Entretanto, fui antes me informar se “Maringá” estaria
proibida de ser cantada, pela exaustão e obviedade da
lembrança. Pode fazer o arranjo, sim! Os jovens não a
conhecem e os mais velhos vão gostar de lembrar.
Boa! Já tenho, então, um ponto de partida! A sequência
ficou por conta da grande colônia japonesa na cidade e
escolhi uma canção japonesa atual, composta para inspirar
o renascimento das comunidades destruídas pelo recente
terremoto no Japão: “Hanawa saku”.
Estou indo bem, pensei. O nome da cidade vai soar a
quatro vozes e uma faixa da população vai ser representada
por uma música, desde que eu consiga verter para coral as
duas canções. Dois arranjos inéditos, pois não? Eu ainda
não sabia que haveria também uma composição inédita! A
cidade tem, nos quadros da Universidade Estadual de
Maringá, um compositor que fora meu aluno no Instituto de
Artes da Unesp, em São Paulo: o Prof. Rael Gimenes Toffolo.
Entrei em contato com ele, que se prontificou a compor uma
música especialmente para o Grande Coro do Painel. E já vai
para a pasta dos cantores “O Rio”, com o subtítulo “da
lagoa da Estaca a Apolinário”, composição baseada no
poema de João Cabral de Melo Neto intitulado “O rio ou a
viagem que faz o Capibaribe de sua nascente à cidade do
Recife”.
Eu não irei sozinho a Maringá. Eduardo Lakschevitz irá
junto comigo e também o pianista e arranjador Mario Cesar;
eles também vão colaborar com o repertório e terão
oportunidade de justificar suas escolhas.
Estou feliz por planejar fazer soar o nome da cidade, por
levar dois arranjos novos e ter provocado o surgimento de
uma música nova! Por isto já valeria o Painel, mas sei que
outros assuntos do canto coral vão pedir presença tendo em
vista tantos regentes e cantores reunidos. Essa reunião é
um dos objetivos da Funarte, para fortalecer a atividade
coral na região onde se realiza o Painel.
As questões levantadas pelos regentes e cantores, em
geral, são relativas à regência, à técnica vocal, à montagem
de programa, às práticas de ensaio, à classificação vocal e
muito mais. Desta vez, Eduardo, Mário e eu, por sugestão
da equipe de produção local do Painel, levantaremos três
assuntos com destaque especial: o coro de empresa, o
arranjo coral e a função do pianista no coral. Isto não quer
dizer que outros temas não possam ser abordados. A prática
coral durante a semana vai resolvendo cada dúvida, cada
indagação, enquanto as músicas são preparadas.
O item “coro de empresa” terá como interlocutor o
Eduardo com a sua larga experiência em corais corporativos
e sua tese instigante sobre o assunto. “O pianista e sua
função no coral” será assunto desenvolvido pelo Mário
Cesar e a questão “arranjo coral” será abordada de maneira
prática pelo Eduardo, pelo Mário e por mim.
Maringá é uma cidade nova, uma cidade grande e vale
perguntar, na oportunidade desse Painel, como soa o canto
coral na sua geografia urbana. As respostas vão nos ajudar
a traçar novos caminhos para a atividade coral brasileira e a
repensar a função do regente, a música que se canta, os
momentos de foco _ recitais? festas? canto comunitário?
encontros corais? _ e a função educativa e terapêutica do
canto em conjunto.
Muita coisa aflora nessa programação da Funarte, que
tem o nome de Painel pela extensão que a pintura das
imagens corais alcança. Muitas linhas, muitas cores, muitos
estilos, muitas vozes, muita música, muitos ecos, muitas
histórias, muitas surpresas e muitas descobertas... um
grande painel coral... e também uma teimosa propaganda
pela retomada de uma prática coral renovada.
Escrevi “teimosa propaganda” porque não nos
deveríamos conformar com o esquecimento da prática do
canto em conjunto diante do crescimento dos recursos
eletrônicos e da computação; recursos fantásticos, mas que
não deveriam emudecer a voz humana. É preciso declarar,
a todo momento, que cantar sempre será fundamental,
necessário e manifestação artística para o ser humano.
Cantar é bom. Um antigo ditado diz que “quem canta seus
males espanta”.
Há que considerar que outros fatores, além dos
tecnológicos, abafaram o canto coral, tais como o
crescimento das cidades, a poluição sonora, a pressa em
resolver tudo, a velocidade e a violência... Como encontrar
tempo pra se reunir pra cantar?... Como vencer as
distâncias e o cansaço?... Como não assistir ao novo
capítulo da novela?... Como fazer acreditar que cantar em
conjunto é mais fascinante que o fascínio da televisão?
Daí segue a frase “pela retomada de uma prática coral
renovada”.
É interessante observarmos o que aconteceu com os
corais de igreja, tanto católicas como, e especialmente,
protestantes: os corais, tão importantes nas práticas
litúrgicas, desapareceram. Nas igrejas católicas, por
interpretações apressadas das instruções do Concilio
Vaticano II e, nas igrejas protestantes, por terem sido
substituídos por uma atividade que passou a ser
denominada “Louvor”, com guitarras e baterias
acompanhando solos com um repertório que dispensa o
canto a 4 vozes, tradicional desde a Reforma do século XVI.
Os corais desapareceram das igrejas, assim como
desapareceram das escolas e _ atenção! _ migraram para as
empresas! Os corais corporativos herdaram a prática,
descobriram seus benefícios e criaram um novo repertório e
uma nova disposição (mas quem vai discorrer a esse
respeito é o Eduardo Lakschevitz).
Um novo repertório para o canto coral já vinha sendo
estudado e praticado desde a década de 1930 com Villa-
Lobos e Mário de Andrade, valorizando o canto em
português (em brasileiro, como dizia Mário de Andrade) e a
temática vinda do folclore. Na década de 1960, um novo
sopro renovador faz uma ventania nas partituras de música
coral: Damiano Cozzella faz soar em coro a Música Popular
Brasileira, a MPB. A voz solo com violão e suas harmonias
emprestam suas canções para o canto coral.
Duas dinâmicas. Enquanto as práticas corais vão
envelhecendo e os cantores mudam para casas novas,
largando no esquecimento o repertório religioso, o
repertório renascentista e até as esparsas composições
brasileiras de autores chamados eruditos, a força
subterrânea do canto coral vai aflorando por entre canções
da bossa nova, das marchinhas de carnaval e dos antigos
sucessos populares da primeira metade do século XX.
E mais: os corais em novos espaços (além das empresas,
em clubes e em hospitais), com novas canções, se
despedem dos seculares modelos europeus e tentam
escapar das fórmulas norte-americanas, de reconhecida
eficiência, porém distantes da nossa realidade.
Toda essa mudança de paisagem não acontece sem
dificuldades: faltam lideranças, falta formação musical para
os cantores e regentes, faltam partituras editadas ou que
sejam disponibilizadas pela internet e, principalmente, falta
apoio das entidades governamentais e mesmo particulares
para entusiasmar a formação de grupos, cuidar da
manutenção dos já existentes, que sofrem toda sorte de
obstáculos para resistir ao cotidiano dos ensaios e receber o
reconhecimento do público. Faltam espaços, falta verba
para a sobrevivência dos grupos e dos regentes; fugiram
das igrejas e das escolas, ainda estão se adaptando aos
novos lugares...
E viva o Painel Funarte de Regência Coral! Atento às
movimentações, às reivindicações, oferecendo reciclagens
aos regentes, disponibilizando partituras. E reunindo as
pessoas, criando pontes através de várias regiões do país,
fazendo todo mundo cantar.
Fazendo todo mundo cantar. Sim! Convidando a todos
para um convívio musical coletivo. Nada mais adequado
para isso que o canto coral. E um regente atento.
Durante o Painel, além dos três destaques propostos para
Maringá (coro de empresa; arranjos; o pianista), o
atendimento aos regentes é contínuo, pois percorre todos os
momentos do evento de forma prática, sempre cantando. O
regente deve ser um cantor melhor que seus cantores,
vivenciando, dentro do coral, todas as etapas de um ensaio.
A partir dessa vivência, suas perguntas e suas dúvidas
serão respondidas no decorrer do preparo das partituras,
tanto no horário dos regentes, como durante o ensaio do
coral comunitário; eles serão convidados a atuar como
regentes a todo o momento, caminhando do seu lugar de
cantor para o lugar de regente de todos os cantores. Uma
vivência plena na montagem da música coral proposta a
priori, só não participando na elaboração dos arranjos e não
atuando como pianista. Por essa razão, tempo especial será
dedicado à questão do arranjo e à função do pianista.
Uma semana só, encerrada com uma
apresentação/relatório para o público da cidade.
De volta para os seus corais, para o cotidiano do fazer
musical, teríamos atingido nosso objetivo de tornar os
regentes músicos atentos à importância do seu gesto de
regência, que excede o momento à frente do seu coral?
Teríamos dado aos regentes a consciência de que devem
ser líderes na sua comunidade, atentos às características
musicais da região, atentos à memória musical e histórica
da comunidade, promovendo o intercâmbio entre corais e
regentes e pesquisando todas as fontes de partituras corais:
as modernas fontes, via internet, e as eternas fontes
correndo pelas ruas da cidade, pelas praças, pelos ventos e
pelos sonhos?... Sonhos não só do regente, mas de toda a
comunidade... Se o regente tiver vinte cantores à sua
frente, ele terá vinte canções, vinte lembranças de sons
guardados no coração das pessoas, vinte histórias de
músicas da comunidade que não podem ser esquecidas...
Um repertório novo a cada momento...
Teríamos dado, aos regentes, instrumental para o seu
estudo individual? O regente voltará ao seu estúdio, ao
piano ou ao violão, estudando, estudando, estudando?... Ao
sair para o ensaio, ele será a personificação da música que
vai ensinar aos seus cantores?... Terá ele feito despertar o
seu talento de arranjador para que a música soe pelos
caminhos das harmonias e contrapontos por ele traçados
para os seus cantores? Tomara ele seja uma imagem segura
para o desenvolvimento vocal dos seus comandados!
Tomara ele tenha se entusiasmado a desenvolver pesquisas
que poderão dar novos rumos ao repertório do seu coral!
Energizado pelo trabalho do Painel, ele vai envolver todos
os cantores em ensaios tão bonitos e tão musicais que
ninguém mais vai faltar ao seu ensaio, ao seu fazer
musical... Até o desafinado já vai afinando...
Teremos alcançado todos esses objetivos?
A semente foi lançada com esse propósito. Agora é
esperar pelos resultados.
Mas ainda não aconteceu nada disso.
Estou arrumando minhas malas, levando vários
envelopes de sementes. Um envelope para os “Gestos de
Regência”, outro para “Canto Coral e a memória das
comunidades”, também um para “Arranjos”, sem me
esquecer dos envelopes para “Cuidados com a voz dos
cantores”, “Montagem de programa”, “Práticas de ensaio”,
“Sugestões para estudo de partituras”, “O regente e o
pianista”, e outros mais de um estoque que precisa ficar
disponível para emergências.
O envelope para “Gestos de Regência”... Ah! Se as
sementes desse envelope produzissem gestos que os
regentes identificassem no seu cotidiano... gestos lindos
que traduzam suas idéias musicais. Não nos esqueceríamos
das assinaturas métricas, nem das fermatas, nem das
anacruses, mas buscaríamos sempre gestos que esculpam
as vozes dos cantores com todas as sutilezas da voz
humana.
“Canto Coral e memória das comunidades”. Preciso
sempre tomar cuidado com esse envelope porque as
sementes germinam a todo o momento, mesmo antes do
plantio. Um fenômeno especial, creio que causado pelo fato
de que os regentes deveriam estar sempre atentos aos sons
das cidades, das praças, das ruas, das casas, das pessoas,
da canção que estão cantando e, se não registrarem logo,
perderão a oportunidade de ter um repertório exclusivo
para os seus corais, identificado com o universo sonoro que
os rodeia. Façam o plantio logo! Entrevistem as pessoas!
Registrem as canções! Ouçam os sinos! Ah! É tão bonita
essa planta, por isso ansiosa por nascer...
O envelope “Arranjos” vem sempre em seguida, mas, ao
contrário do envelope anterior, leva tempo para germinar.
Não sei fazer arranjo. Sou fraco em harmonia. E
contraponto, então? Como ser fraco em harmonia se você
está à frente de um coral que canta harmonias? Como não
gostar de contraponto quando você ensaia o tenor junto
com o soprano? Tenho um amigo que é bom em arranjos –
atenção: ele conhece seus cantores tanto quanto você os
conhece? Ele poderá escrever linhas inadequadas para eles.
Estou exagerando. Você sempre poderá usar os arranjos de
outros arranjadores, mas não se esqueça de que você
também pode fazer seus arranjos.
“Cuidados com a voz” é uma planta que não se
desenvolve sozinha. Ela precisa ser plantada junto com
“Gestos”, “Arranjos” e “Prática de ensaio” e fica feliz se não
aparece no canteiro. O gesto do regente precisa sugerir a
boa emissão; os arranjos precisam ser desenvolvidos com
boas tessituras; e a prática de ensaio precisa prever a
graduação no uso das vozes, evitando a exaustão, o
machucar as cordas vocais (ou pregas vocais como gostam
de nomear os fonoaudiólogos) e, principalmente, não jogar
para cima dos cantores sua aflição em preparar as músicas
além de evitar chegar ao ensaio com problemas pessoais.
Regente irritado é igual voz irritada. É importante regar a
todo começo de ensaio com uma linda melodia em uníssono
ou, ainda, em cânone, para não ir direto às músicas do
repertório e ir alcançando as notas passo a passo, sem o
automatismo dos vocalises, mas com o prazer de fazer
música desde o primeiro minuto de ensaio.
“Práticas de ensaio” e “Sugestões para estudo de
partituras” precisam ser semeadas em um mesmo canteiro.
O estudo das partituras corais vai gerar o roteiro do ensaio
e as práticas de ensaio sempre vão ensinar que é
impossível fazer um bom ensaio sem o domínio da partitura.
O estudo, na intimidade da sua casa, será oportunidade
preciosa para o seu preparo de atuação no exposto da sala
de ensaio onde o regente é o foco da produção musical. Que
o regente seja exigentíssimo consigo próprio para poder
atender a todas as demandas do ensaio onde ele vai atuar
com cantores totalmente dependentes do seu preparo como
músico.
“Montagem de programa” exige muitos cuidados na
semeadura com um bom preparo do solo e muitas doses de
bom senso como, por exemplo, evitar programas
intermináveis ou apresentar músicas interessantíssimas
para o coral e seu regente (que aprendeu com esse
repertório) sem ao menos um preparo para o público
desavisado presente ao concerto. Ah! Concerto? Vamos
precisar conversar muito a respeito desse evento,
lembrando que hoje podemos assistir tudo pela internet
sem sair de casa... Se o seu coral conseguiu levar um bom
público para o concerto, que ele não se arrependa... E volte
sempre! Ou, quem sabe, queira cantar junto! Eu acredito
que, n’algum dia não muito distante, todos vão preferir
ensaiar a se apresentar, tamanho vai ser o interesse pelo
convívio musical.
“O regente e o pianista”, ou o regente e o organista, ou,
ainda, o regente que é o tecladista... E tem ainda o regente
que é o violonista... Todas essas possibilidades para garantir
aos cantores o desenvolvimento do discurso musical
ouvindo o apoio instrumental.Todo o cuidado para que esse
apoio não se torne “muleta” para os cantores. Nas
partituras para música coral a cappella, impressas nos
Estados Unidos, é comum haver a redução para piano das
linhas de canto, com a anotação: “somente para o ensaio”.
É necessário que o regente se lembre de que o piano é
um instrumento de percussão, ao solicitar ao pianista que
toque as linhas de canto; este deve evitar “bater” o teclado.
Quando o instrumento for um órgão, um instrumento de
sopro (mesmo que os eletrônicos não tenham mais tubos
soprando), a atuação do organista ficará mais próxima à
execução vocal. No caso do violão, com a “alma” do
instrumento próxima ao corpo e a mão esquerda do
violonista/regente vibrando como a voz humana, as linhas
de cada naipe do coral serão executadas mais cantantes
(estou imaginando que o regente é o violonista e quando o
assunto for o “gesto” será bom fazermos um destaque bem
interessante a respeito desse caso).
Existe um grande repertório internacional em que o
compositor escreve para piano e coro, e também para órgão
e coro. Existem peças para violão e coro também. O
acompanhamento faz parte da composição. Nesses casos, o
trabalho do instrumentista é integrado ao do regente e se
faz necessário um entendimento prévio da dupla para
acertos de estilo, de dinâmica; uma integração total dos
elementos de composição, antes do ensaio para que o ritmo
dos trabalhos não seja interrompido por ajustes
regente/instrumentista. Entretanto, serão enriquecedoras as
observações decorrentes da integração de todos durante o
ensaio com o coral.
Parece óbvio falar de música coral com acompanhamento
fazendo parte da composição, mas creio ser necessário,
pois atualmente é comum os corais se apresentarem com
acompanhamento nos arranjos de música popular em que a
parte instrumental não foi escrita pelo arranjador. Basta a
indicação das cifras e o acompanhador ou um conjunto com
piano, baixo e bateria executará a música dando a base
para o coro, como no período barroco em que o cravista ou
organista improvisava a partir do “baixo cifrado”.
Eis aí uma função específica para o instrumentista,
quando o coral canta música popular. Acrescentando que é
importante o regente ter muito claro quando o
acompanhamento é realmente necessário, pois a presença
do pianista, que se torna indispensável no ensaio, acaba
criando acompanhamentos em todas as músicas do coral.
Presença imperiosa entre os corais amadores que precisa
ser revista. Cantar a cappella, isto é, sem acompanhamento
instrumental, deve fazer parte do desenvolvimento dos
corais.
Estou me esquecendo de considerar as peças corais
sinfônicas, que exigem no seu preparo a redução da
orquestra ao piano. As edições dessas obras já trazem na
partitura coral a parte para o pianista, a chamada “piano
score”. Há que considerarmos a oportunidade, resolvida,
com muito critério, de o regente programar apresentação
coral com essas reduções. O caso mais comum é dos corais
do Oratório “ O Messias”, de Handel. Conseguir uma
orquestra é tarefa impossível para os corais brasileiros.
Nossa! A semeadura “O regente e o pianista” parece ter
ocupado o jardim inteiro, tantas são as questões!
Vamos para algumas considerações finais.
Gosto muito de contar de uma Oficina Coral em Goiás.
Dentre os preparativos, telefonei para o coordenador local
pedindo que identificasse os sinos das igrejas da cidade.
Quais as igrejas, quais as notas dos sinos e se conheciam as
inscrições ou os nomes dos sinos fixados nas campanas. Ao
longo da semana de aulas e ensaios, trabalhamos o
repertório coral rodeando um mapa da cidade feito em
papel kraft com os traçados das principais ruas pontuando
as igrejas e as características dos seus sinos. Entre uma
música e outra cantávamos o carrilhão resultante de todos
os seus sinos. O encerramento foi inesquecível. O coral
deixou a sala de ensaio, foi para um ponto estratégico da
cidade e ao meio-dia ouvimos todos os sinos da cidade.
Emocionante!
Em Domingos Martins, ES, em um Festival de Inverno,
cantamos todas as notas dos sinos em cânone, com texto
de uma poetisa da cidade.
Mas por que estou contando essas histórias? Para instigar
a imaginação dos cantores e regentes a ouvir sua cidade e
cantá-la. Às vezes, as músicas já existem, como no caso de
Maringá. Às vezes, é preciso pesquisar, colecionar os sons,
as canções antigas, levantar histórias, como eu já escrevi no
início deste texto. No Painel do ano passado, 2013, na
cidade de Rio Branco, no Acre, cantamos “Benke”, uma
música do Milton Nascimento. Essa canção é o nome de um
curumim do povo Kampa, composta e gravada no Acre nos
anos 1980. Quase deu certo de Benke, hoje líder da luta dos
povos da mata, ir ouvir o coral do Painel.
Tem também a história que eu já contei centenas de
vezes do ritual que havia em casa, liderado pela minha
mãe, contralto no coro da igreja, convocando meu pai tenor
e eu, adolescente, classificado como baixo, para
estudarmos as músicas do coral, pois era inadmissível
chegarmos ao ensaio sem saber todo o repertório.
Chegávamos ao ensaio ensaiados. Lição para toda a vida:
ensaio não é lugar para aprender, mas para apreender.
Apreender, fruir, gostar, reunir, descobrir, isto é, cantar em
conjunto! Canto Coral!
As múltiplas dimensões da prática
coral
Vladimir A. P. Silva

Os Painéis FUNARTE de Regência Coral têm


desempenhado um importante papel no cenário musical
brasileiro, constituindo-se em uma oportunidade ímpar para
serem discutidas questões relativas à metodologia de
ensaio, à técnica vocal, ao repertório coral, bem como aos
aspectos sociais, culturais e educativos dessa atividade
musical. Este texto, fruto das minhas experiências e
reflexões antes, durante e após a realização dos vários
Painéis de que já tive a oportunidade de participar como
professor convidado, aborda estes e outros aspectos da
prática coral, tendo como objetivo principal apresentar
subsídios para o trabalho pedagógico e artístico dos
coralistas, dos professores de técnica vocal e dos regentes.

1 Análise composicional e interpretação musical

A análise composicional é uma atividade necessária para


a consolidação da prática interpretativa; para realizá-la, é
essencial que o executante tenha uma sólida formação
teórica que lhe permita utilizá-la no processo analítico que
precede qualquer execução. Os processos analíticos
abrangem múltiplas áreas do conhecimento musical,
variando quanto aos métodos, técnicas e objetivos. A
compositora Ilza Nogueira, no artigo “Análise composicional:
o que, como, e por que”, publicado na Revista ART
(Salvador: UFBA, 1992), enumera três situações analíticas
distintas: 1) a concepção, 2) a partitura e 3) a percepção.
Na primeira, o analista posiciona-se em relação à imagem
sonora na mente do compositor, no momento da
composição; na segunda, ele posiciona-se diante da
partitura stricto sensu; e na terceira, seu objetivo específico
é a imagem sonora que a partitura projeta. As situações
analíticas atendem a propósitos diversificados e a opção do
intérprete por qualquer uma delas deve ser determinada
pela bagagem cultural que o mesmo dispõe e pela
adequação ao contexto obra-compositor.
O primeiro passo no estudo de uma partitura é a
pesquisa sobre o autor, o período e as características do
momento histórico da obra para, posteriormente, identificar
seus elementos inerentes, isto é, harmonia, ritmo, tempo,
articulação, texto, dentre outros parâmetros. É preciso que
o regente desenvolva a capacidade de observar
criticamente uma partitura. Isto significa, primeiramente,
averiguar o grau de confiabilidade dela (se é original,
manuscrita, fac-símile ou editada e, uma vez editada, quais
as semelhanças e diferenças que apresenta em relação ao
original e/ou às outras edições); em seguida, ponderar sobre
as informações que ela apresenta para atestar a
compatibilidade com os princípios estéticos pertinentes ao
contexto histórico em questão. Esse posicionamento crítico
diante da partitura acentua-se quando o intérprete tem
consciência de que a notação de uma peça musical é, em
certa medida, sempre imprecisa; Stravinsky já observara, no
livro Poética Musical, que a dialética verbal é impotente
para definir a dialética musical em sua totalidade.
Também consideramos importante para o estudo e
interpretação de uma obra, além do aspecto analítico, o
desenvolvimento de processos eficientes de memorização,
a criação de referenciais sonoros e de imagens auditivas
construídas pelo ouvido interno. É necessário desenvolver
um processo sistemático de retenção de conteúdo, baseado
na análise dos elementos estruturais da partitura.
O estudo prévio da composição permite identificar onde
poderão ocorrer os principais problemas de afinação, de
respiração, de articulação, de fraseado e de dinâmica
contribuindo, assim, para a realização de ensaios eficientes,
na medida em que é possível antecipar e solucionar os
problemas, antes que eles aconteçam. A abordagem e o
conhecimento de uma obra se não nos asseguram a
fluência do discurso musical, no mínimo nos indicam os
caminhos para uma interpretação significativa.

2 O gesto, o corpo e o som

A expressão gestual do regente é uma ferramenta


importante no processo de interpretação musical e está
diretamente ligada à consciência e controle dos
movimentos corporais. O desenvolvimento da técnica
gestual deve aliar, ao domínio dos gestos padrões, aspectos
que traduzam a individualidade do regente sem, contudo,
priorizar os últimos em detrimento dos primeiros.
A postura mais adequada à regência deve ser
determinada de acordo com o biótipo de cada indivíduo e
em consonância com as necessidades da obra interpretada
e/ou do grupo dirigido. O regente deve equilibrar-se,
mantendo os pés firmes no chão com as pernas levemente
afastadas, enquanto os ombros precisam ficar soltos e
frouxos, com mãos e braços pendendo livremente para
baixo e o antebraço levemente erguido à altura do peito.
Apesar da diversidade de orientações em torno das técnicas
de regência, pode-se dizer que existem dois princípios
gerais que orientam a atividade gestual do regente: o
primeiro trata da independência dos braços, ou seja, é
importante evitar, na medida do possível, que eles
executem simetricamente movimentos idênticos; o segundo
faz referência aos movimentos da mão direita (tactus) e da
mão esquerda (expressão musical, agógica, dinâmica e/ou
fraseológica).
O campo de trabalho do regente pode ser delimitado na
região localizada entre o baixo ventre e os olhos. É
relevante observar ainda que toda informação musical, seja
no começo, no transcurso ou no final da obra, será
reforçada por intermédio da conjugação entre gesto e
expressão facial, recursos complementares imprescindíveis
à concretização das intenções musicais. Para obter o grau
de precisão e controle dos movimentos de forma ideal, é
imprescindível, então, recorrer sistematicamente à força
expressiva do olhar, pois, como Sérgio Magnani observa, os
olhos chamam, estimulam, comunicam a cor desejada do
som e sublinham os contornos da frase. Além disso, os olhos
chamam outros olhos, mantêm desperta a atenção,
estabelecem o contato humano e a empatia emocional.
Todo gesto preparatório deve indicar as principais
características da composição, como o tempo, a
intensidade, a articulação, a expressão e o caráter. A
intenção é necessária e antecede a criação dos gestos
musicais e é por esta razão que o regente deve possuir um
domínio soberano da representação mental da partitura,
pois só assim será capaz de recriar em sua fantasia a
imagem sonora ideal da obra. Neste sentido, Bernadete
Zagonel, no livro O que é gesto musical, assegura que, de
algum modo, cada partitura escrita necessita de uma
partitura gestual que permite o nascimento da obra
realizada. Assim, a exteriorização gestual deve ser,
portanto, o resultado das representações mentais e da
abstração da obra como um todo, e não simplesmente uma
ação mecânica e automatizada por meio de padrões
estabelecidos.

3 Teste e classificação vocal

O processo de seleção e classificação vocal basicamente


envolve duas etapas. Na primeira, realizam-se tarefas que
permitem verificar a percepção auditiva, nos seus aspectos
rítmicos, melódicos e harmônicos. Na segunda, analisam-se
diversos parâmetros, dentre os quais, a extensão, a
tessitura e o timbre. Tais elementos devem ser observados
em conjunto, pois concebê-los isoladamente não é um
procedimento adequado. Utilizar a extensão como único
critério de avaliação pode comprometer a análise vocal,
porque as vozes tecnicamente limitadas poderão ser
classificadas de forma equivocada em virtude das
referências associadas a esta ou aquela categoria vocal.
Além de observar os limites graves e agudos da voz, a
classificação deve ser feita com base no timbre de cada
cantor.
A mudança de registro também oferece elementos
significativos e, nesse caso, a identificação exata das notas
que estabelecem tais fronteiras pode servir como uma
referência auxiliar, corroborando com outros parâmetros já
analisados. Certamente este é um dos pontos polêmicos na
área do canto, pois as opiniões são diversificadas quanto ao
significado e quantidade dos registros vocais.
Fundamentalmente, o regente deve perceber quando ocorre
a transição do registro grave para o médio (primo
passaggio) e do médio para o agudo (secondo passaggio),
bem como a zona de passagem intermediária entre estes.
O regente, ao apreciar a voz de um cantor, precisa
perceber toda a potencialidade latente e antecipar, de certo
modo, o vir a ser desta voz, isto é, a forma como se
apresentará após o desenvolvimento de um trabalho
técnico eficaz. Somente a continuação do trabalho vocal
permite confirmar ou não a classificação inicial e, por isso,
nenhuma classificação vocal pode estabelecer um veredicto
permanente, imutável, pois a voz, ao ser (re)educada, passa
por muitas transformações, sendo essencial, nesse caso,
não rotulá-la com uma nomenclatura específica, mas guiá-la
ao longo de um estudo que favoreça o desenvolvimento
máximo sem fadiga. É função do regente e/ou do professor
de canto ou de técnica vocal acompanhar esse processo,
porque uma classificação errada, associada ao uso
inadequado numa região que extrapola a tessitura mais
cômoda e conveniente, pode estimular e favorecer o
surgimento de problemas vocais.
É imprescindível, portanto, observar os procedimentos
desse processo e avaliar precisamente a voz de cada
cantor, tomando sempre como referência a singularidade
que lhe é inerente. Além dos fatores técnicos, é
indispensável acrescentar outras informações relativas ao
perfil psicológico, social e cultural de cada indivíduo,
procurando perceber não somente como ele constrói os
seus modelos, mas qual a imagem vocal que ele tem de si
mesmo. O momento em que o regente seleciona os seus
cantores é uma das etapas mais importantes da prática
coral, pois é nessa ocasião que é definido o DNA da
sonoridade de um grupo.

4 O repertório coral

Todo ensaio coral, para ser eficiente e produtivo, precisa


ser planejado e organizado. O planejamento do ensaio
começa sempre com a escolha do repertório a ser
interpretado; uma tarefa complexa porque as obras
selecionadas devem estar em consonância com o nível
técnico, musical e vocal do grupo, assim como com o perfil
econômico, social e cultural dos participantes e da
instituição à qual o coro está vinculado. As obras que
constituirão o repertório semestral ou anual do conjunto
precisam ser definidas antes do início da temporada de
ensaios. Elas devem ser acessíveis e, ao mesmo tempo,
desafiadoras. Após selecionar o repertório, o regente
elaborará o cronograma dos ensaios, o calendário das
apresentações, assim como os recursos financeiros,
materiais e humanos necessários à consecução dos projetos
e metas estabelecidos.
No Brasil, a edição e publicação de obras originais para
coro ainda é incipiente, fato que poderá dificultar as
possibilidades de escolha do repertório. Esta realidade tem
levado muitos profissionais a optarem por um repertório de
qualidade duvidosa relegando, para um segundo plano, a
vasta literatura originalmente escrita para coro. Defendo
que os regentes selecionem os repertórios dos seus grupos
pensando sempre numa perspectiva artística e educacional,
que promova o crescimento técnico e expressivo dos
cantores.
A internet é uma ferramenta de grande utilidade no
trabalho de pesquisa e de aquisição de repertório. Vários
são os portais que têm divulgado, gratuita e legalmente, a
literatura originalmente escrita para coro a cappella ou com
acompanhamento instrumental. Entretanto, muitas
partituras apresentam problemas, merecendo um olhar
mais atento do regente, uma vez que podem ter sofrido
grandes alterações editoriais. Recomendo uma visita aos
sites da Choral Domain Public Library e do IMSLP Petrucci
Music Library, por exemplo, que são bem conhecidos dos
estudantes e músicos profissionais e têm um acervo
organizado e variado.
Outra possibilidade são os pacotes promocionais que as
editoras norte-americanas e europeias oferecem aos seus
clientes. O interessado precisa cadastrar-se e pagar taxas
específicas para receber, pelo período de doze meses, uma
cópia de cada uma das obras publicadas pela editora
selecionada. Dentre as mais conhecidas, destacam-se:
Oxford Music Publishing, Santa Barbara Music Publishing,
Alliance Music, Hinshaw Music, EarthSongs, Hal Leonard e
Boosey & Hawkes. Uma boa sugestão para ampliar o
conhecimento do repertório é ouvir a rádio online da
American Choral Directors Association, que apresenta obras
corais diversificadas.
Com relação à música coral brasileira, muitos projetos
têm-se destacado nessa área. O Musica Brasilis, criado em
2009 e coordenado por Rosana Lanzelotte, se dedica à
difusão do repertório nacional de diferentes épocas, estilos
e autores. Além das partituras, no portal é possível
encontrar áudios, vídeos e o recurso da escuta guiada.
Neste processo de apreciação musical dirigida são
apresentadas informações importantes sobre as obras,
tanto do ponto de vista estrutural quanto do formal. Essa
associação audiovisual colabora no processo de
compreensão das peças. A FUNARTE também tem
disponibilizado, por meio do site “Projeto Coral”, obras para
vozes afins e mistas, incluindo as coleções Música Nova do
Brasil para Coro A Cappella e Arranjos Corais de Música
Folclórica Brasileira, ambas publicadas nas décadas de
setenta e oitenta. A produção mais recente da Instituição,
na qual se inserem as onze canções para Coro Juvenil
(2009) e as oito canções para Coro Infantil (2010), também
podem ser obtidas no site.
O Museu da Música de Mariana, que se dedica à pesquisa
do repertório desde os tempos do Brasil Colônia, oferece, na
seção Restauração e Difusão de Partituras, relevante
patrimônio da literatura coral brasileira, destacando-se os
seguintes projetos temáticos: Pentecostes, Missa e Sábado
Santo (2001); Conceição e Assunção de Nossa Senhora,
Natal e Quinta-Feira Santa (2002); Devocionário Popular dos
Santos, Ladainha de Nossa Senhora e Música Fúnebre
(2003). Todas as obras editadas estão também disponíveis
em CDs, que foram gravados por ícones do canto coral no
país, dentre os quais Naomi Munakata e a Orquestra
Engenho Barroco; Júlio Moretzsohn e o Grupo Calíope; e
Carlos Alberto Pinto Fonseca e o Ars Nova Coral, da UFMG,
com músicos convidados. O Projeto SESC Partituras, iniciado
em 2007, contém o trabalho de vários compositores,
abrangendo música de câmara, sinfônica, coral e para
solistas.
As iniciativas do Musica Brasilis, da FUNARTE, do Museu
da Música de Mariana e do SESC Partituras preenchem uma
lacuna importante no nosso mercado editorial, contribuindo
para a preservação e para a promoção da música coral
brasileira. A prática coral é um espaço privilegiado para a
educação musical, e o foco do regente deve ser dirigido
para a sistematização pedagógica dessa atividade. É preciso
selecionar o repertório criteriosamente, em função da sua
importância no processo de aquisição e de compreensão da
linguagem musical.

5 Métodos e técnicas de solfejo

O canto coral, enquanto atividade educativa, configura-


se como o espaço ideal para o desenvolvimento de
habilidades, dentre as quais a aprendizagem do solfejo, uma
atividade prática que, quando associada ao repertório coral,
torna o ensaio mais eficaz, contribuindo para o processo de
ensino-aprendizagem de conteúdos teórico-musicais. É de
fundamental importância, portanto, refletir sobre os
pressupostos metodológicos do ensaio coral, à luz da
educação contemporânea, contribuindo para o
desenvolvimento dessa prática pedagógico-musical,
propondo estratégias dirigidas para a aprendizagem do
solfejo e da teoria musical, por meio da abordagem do
repertório.
Nos métodos de solfejo fixo, as sílabas especificam o
nome das notas, independentemente da função que
exercem. Muitos estudiosos argumentam que o método é
excelente para o desenvolvimento do ouvido absoluto, o
que ainda é matéria controversa. No solfejo fixo, a notação
musical é a referência, e as notas são sempre designadas
pelo mesmo nome: sol, sol bemol ou sol sustenido, por
exemplo, serão sempre cantados como “sol”; já os
intervalos “dó-mi”, “dó sustenido-mi”, “dó-mi bemol” ou “dó
sustenido-mi bemol” serão sempre entoados como “dó-mi”.
Alguns professores focalizam a atenção no ensino dos
intervalos, isolando-os do contexto musical. Esse método
parece ser útil quando o regente precisa resolver problemas
de afinação específicos, nas passagens mais difíceis do
repertório. O solfejo por intervalos é uma boa estratégia
para resolver problemas específicos, como, por exemplo,
saltos intervalares muito grandes. Uma das limitações é o
seu caráter fragmentário, visto que os intervalos são
abordados de forma isolada, fora do contexto melódico,
rítmico e harmônico no qual se inserem.
Quanto ao solfejo relativo, também denominado móvel,
os nomes das notas são referências que ajudam a
estabelecer a distância entre os graus da escala, uma vez
que a atribuição dos nomes das notas é feita com base na
análise harmônica e não apenas na notação musical. O
solfejo é funcional, e a transposição é a essência do
método. Para qualquer tom no modo maior, o modelo é
sempre a escala de dó, enquanto no modo menor a
referência é a escala de lá. As notas alteradas podem
receber diferentes nomenclaturas, dependendo do contexto
no qual se inserem. Tomando dó como ponto de partida,
temos a seguinte escala cromática ascendente: dó, di, ré, ri,
mi, fá, fi, sol, si, lá, li, ti. Em sentido descendente, temos:
dó, ti, te, lá, le, sol, se, fá, mi, me, ré, ra, dó. O método
móvel, que tem suas origens associadas ao sistema
hexacordal desenvolvido por Guido D’Arezzo, ganhou força
e projeção com o trabalho de Zoltán Kodály, na Hungria, na
primeira metade do século XX. Alguns educadores, no
ensino do solfejo relativo, se utilizam de números que
especificam os graus da escala, ao invés de sílabas; nesses
casos, o primeiro grau é sempre a tônica. Critica-se, de
forma geral, a confusão conceitual que pode ser gerada, já
que os números são usados para definir altura e duração,
simultaneamente. O uso dos gestos (manossolfa) também
contribui para a aprendizagem do solfejo móvel, facilitando
a internalização das relações entre as diversas alturas, o
que exige mais atenção do aluno.
Se, por um lado, o uso do método móvel mostra-se
eficiente porque permite que o cantor solfeje, em qualquer
tom e modo, em pouco tempo, por outro lado ele também
apresenta certas restrições. Uma delas diz respeito ao
repertório, pois o método funciona muito bem com música
tonal e modal desde que não apresentem passagens
cromáticas nem mudanças de tom e de modo. A adequação
das sílabas a cada novo contexto harmônico e melódico
pode comprometer o nível de aproveitamento do ensaio. Os
métodos móveis também podem ser um problema para
músicos que tocam com instrumentos que não são
transpositores. Há alguns anos, Ricardo Freire apresentou o
Sistema Fixo-Ampliado, elaborado a partir da análise dos
elementos de interferência identificados em vários sistemas
de solfejo, tanto fixos quanto móveis, propondo uma síntese
entre os focos de aprendizagem de cada um deles.
Cada método apresenta vantagens e desvantagens. Cabe
ao regente avaliá-las e escolher aquele que atende às suas
necessidades, pois mais importante que o método é a forma
como o professor fará uso dele. Além disso, se o educador
domina o método, o resultado será refletido no trabalho dos
alunos. Com novas metodologias, a nossa prática coral,
ainda baseada na memorização do repertório através do
exaustivo e insignificante processo de repetição, poderá
adquirir novo sentido e, posteriormente, colheremos os
frutos de uma ação planejada, objetiva e sistemática.

6 (In)Expressividade musical

Quem participa de Encontros e Festivais sabe que as


composições originalmente escritas para coro, sejam elas a
cappella ou com acompanhamento instrumental, têm sido
extirpadas do repertório dos grupos; estes já não
interpretam obras canônicas das literaturas europeia, norte-
americana e brasileira. Especialmente no Brasil, a vasta
produção vocal tem sido substituída pelos arranjos de
canções populares e folclóricas.
A inclusão desses arranjos no repertório de um coro tem
vários aspectos positivos, dentre os quais a acessibilidade
do vernáculo, que facilita a identificação sócio-cultural dos
coralistas com a música e agiliza o processo de ensino-
aprendizagem. No entanto, o problema surge quando os
arranjos interpretados são desprovidos de senso artístico,
de criatividade e de beleza. Uma obra musical, seja ela
original ou arranjo, simples ou complexa, curta ou longa,
precisa ser elaborada. É necessário que o
compositor/arranjador use técnicas diferentes para
manipular a métrica, a melodia, a harmonia e a textura,
criando, através das variações de dinâmica, tempo,
andamento e articulação, momentos de tensão e repouso,
respeitando os vários estágios da narrativa. Para indicar,
com o máximo de precisão, todas as suas intenções
musicais, aquele(a) que cria deve recorrer aos mais
sofisticados recursos da notação musical, evitando a
ambiguidade. Contudo, o que se constata é exatamente o
oposto. Muitos dos arranjos lançados no mercado, tanto
brasileiro quanto internacional, excluem detalhes sutis e
importantes para a interpretação musical que, em alguns
casos, até comprometem a essência da obra original que
lhes serviu de referência.
Essa práxis composicional, se é que se pode assim
considerá-la e denominá-la, tem contribuído para banir a
expressividade do contexto da prática coral. À falta de
concepção musical dos arranjos alia-se a robotizada atuação
dos regentes, que parecem desconhecer os princípios
básicos da interpretação musical. O desempenho dos coros
se restringe a poucos movimentos corporais, a algumas
caras e bocas e a outros adereços. A sonoridade é tão linear
e plana quanto uma pintura sem perspectiva. O interesse
musical inexiste porque falta a dramaticidade que é criada
com os contrastes da articulação, da intensidade e do
timbre. Alguns desses elementos não são indicados na
partitura, tampouco apontados pelo regente, que muitas
vezes não sabe como criá-los a partir das idiossincrasias da
obra.
Assim, os cantores vão aprendendo a cantar ignorando a
dialética relação entre staccato/legato, piano/forte,
crescendo/decrescendo, accelerando/ritardando, alheios ao
fato de que o fraseado musical é que dá sentido aos
aspectos textuais, harmônicos e melódicos de uma
composição e à própria obra. Sem essa consciência do
movimento interno que a música evoca, a sua fruição fica
comprometida. Capta-se apenas o superficial, o efêmero.
Independentemente do repertório que se interpreta, cantar
sem expressão é o mesmo que, estando vivo, apenas existir
e não viver.

7 O ensaio coral

Para assegurar a plenitude do processo de ensino-


aprendizagem da prática coral é fundamental que a sala de
ensaios seja preparada adequadamente. Deve-se cuidar da
iluminação e da ventilação, natural e artificial, pois o
conforto térmico contribui para o bem-estar do coro. O
tratamento acústico do espaço é determinante para o
sucesso do trabalho, influenciando a realização do
repertório e a sonoridade coral. O espaço físico precisa ser
adequado ao tamanho do coro e às atividades que serão
desenvolvidas. Cadeiras, armários, mesas, quadros, além de
outros equipamentos, tais como pianos, aparelhos de som e
televisão devem ser alocados em lugares estratégicos e
acessíveis.
Na sala de ensaio, os cantores devem ter à disposição
partituras legíveis e bem editadas, papel em branco, lápis e
borracha. Estes recursos materiais podem ser utilizados
para registrar as anotações pessoais e as observações do
regente. Ao contrário daquilo que comumente ocorre na
prática orquestral, coralistas ainda não desenvolveram o
hábito de anotar as indicações do regente na partitura. É
necessário estimulá-los, explicando-lhes as razões das
solicitações ou dos comentários, fazendo com que eles
compreendam o texto poético e musical das obras.
Aproveitar cada momento desse encontro de permutas e de
aquisição de saberes é, portanto, o princípio norteador do
fazer pedagógico do regente, porque no ensaio coral ocorre
um intenso processo educativo, que é dialógico e fruto da
parceria entre os cantores e o regente.
Para que o ensaio se torne significativo, seria
interessante substituir, gradualmente, a ineficiente prática
da aprendizagem por imitação e repetição, que comumente
ocorre quando o cantor reproduz acriticamente aquilo que o
regente lhe oferece, por uma forma mais consciente de
aquisição do conhecimento, na qual o coralista possa dar
uma contribuição mais efetiva e pessoal. O cantor, nesta
perspectiva, passaria a agir proativamente, enumerando
compassos, marcando respirações, solfejando partes e
solucionando, sempre que possível e por conta própria, os
problemas rítmicos, melódicos e vocais encontrados no
repertório. Estas são iniciativas importantes que deveriam
ser estimuladas e incorporadas à práxis cotidiana dos
nossos coros. Certamente, os ensaios se tornariam mais
instigantes, pois os conteúdos e desafios impostos pelo
repertório seriam superados de forma sistemática,
metódica, dinâmica, eficaz.
Recitais e concertos devem ser compreendidos, portanto,
como os produtos finais do trabalho desenvolvido ao longo
de vários ensaios criteriosamente planejados e organizados.
Tais atividades artísticas são ferramentas de avaliação
importantes para a consistência da interpretação musical.
No entanto, concebê-las como primordiais, como meta e
objetivo exclusivos da prática coral, significa transferir o
foco de atenção do processo para o produto. Que o ensaio
seja, assim, entendido como construção coletiva, contando,
em todas as suas etapas, com a colaboração e o
engajamento de cantores e regente, favorecendo o
crescimento musical, vocal, intelectual, afetivo e emocional
de todos.

8 Aspectos administrativos e organizacionais

Quando um coro decide viajar, os resultados são sempre


muito positivos. Os membros do grupo se sentem motivados
e passam a frequentar os ensaios assiduamente, atingindo
um excelente nível de participação e de aprendizagem.
Antes da viagem, no entanto, é importante que o regente
estabeleça as regras para a convivência, seja no avião, no
ônibus, no hotel ou no teatro. É sempre bom lembrar aos
cantores que estes lugares são públicos e que qualquer
comportamento inadequado poderá comprometer a imagem
do coro. Por isso, eles devem agir com cautela, discrição e
respeito.
É conveniente definir o cronograma de atividades e
estabelecer aquelas que são prioritárias, deixando espaço
para a programação social e turística, também relevante,
porém secundária. Para auxiliar o trabalho, deve-se elaborar
uma lista com todos os artefatos que os cantores precisam
incluir nas suas malas, evitando, por exemplo, que alguém
se esqueça da farda do grupo. O mesmo vale para os
remédios, documentos pessoais, números de telefones para
contatos em caso de emergência, partituras, dentre tantos
outros itens imprescindíveis. Para impedir o excesso de
bagagem, cada um deve levar apenas uma mala e uma
bolsa de mão, devidamente identificadas. Os cantores serão
responsáveis por seus pertences, transportando-os para
todos os lugares. É fundamental que o regente obtenha
dados básicos sobre o lugar a ser visitado, pois tais
informações ajudam a entender o clima e a compreender as
particularidades econômicas, políticas, sociais e culturais de
cada comunidade. Crucial mesmo é conhecer os locais onde
serão realizadas as apresentações, visto que as condições
acústicas do teatro, da igreja ou do auditório serão
determinantes para a escolha do repertório a ser
interpretado, para a organização e a disposição dos
cantores no palco.
A pontualidade é essencial para o sucesso das atividades
que envolvem muitas pessoas. Assim, o regente deve
estabelecer o horário de saída e de chegada do grupo
durante a realização das tarefas coletivas, e os cantores
devem se preparar antecipadamente. É preciso esclarecer,
desde o princípio da viagem, o prejuízo provocado pelos
atrasos. É recomendável que os cantores fiquem atentos
durante os passeios e, sempre que possível, avisem ao
chefe de naipe ou ao regente para onde estão indo e com
quem estão saindo. Isso ajudará a reduzir as preocupações
e os problemas.
A experiência da viagem em conjunto é sempre
desafiadora e enriquecedora, pois os cantores estreitam os
vínculos afetivos, criam novos laços de amizade, enfim,
potencializam os aspectos humanos da prática coral.
Todavia, essa aventura fascinante requer organização,
disciplina, paciência e muita responsabilidade, elementos
indispensáveis à manutenção e ao equilíbrio do grupo, da
arte e da vida.

9 Coro cênico versus coro tradicional

No Brasil, o coro cênico é uma tendência em expansão.


Estou apreensivo porque o coro tradicional poderá,
brevemente, ser peça de museu, coisa de regente
conservador e ultrapassado. A definição desse quadro pode
ser consequência direta da falta de programas permanentes
de formação de regentes, que estão no mercado de trabalho
atuando de forma inadequada. Comumente, esses
profissionais têm recorrido ao placebo cênico como forma
de mascarar as deficiências que eles e os seus coros
apresentam, pois o aspecto visual transfere o foco de
atenção do som para o gesto, para o adereço, para a trama
coreográfica, fazendo com que a afinação, a qualidade
vocal, o fraseado, as variações de timbre, de dinâmica e de
articulação sejam relegadas ao segundo plano.
A ideia de coro cênico remonta à tragédia grega, passou
pelos autos medievais, expandiu-se com os madrigais
renascentistas e com a ópera barroca. Mais recentemente,
no auge dos experimentalismos e das transformações
ocorridas no panorama musical da primeira metade do
século XX, a prática ganhou mais força. A mudança técnica
e estética no canto coral se fez notar na relação entre
regentes e cantores, no padrão vocal, na postura corporal,
no repertório, na vestimenta e na atuação cênica e musical
do coro; esse fato abriu espaço para a inclusão de arranjos
de música folclórica e popular brasileira e, dentre outros
fatores, permitiu um tratamento interpretativo mais
adequado, sobretudo no que diz respeito aos aspectos
sonoros e gestuais. É na década de oitenta que se constata
no trabalho de alguns coros brasileiros a presença de
determinadas tendências, que incluem o uso de
movimentos corporais e o emprego de exercícios de
expressão corporal no preparo das obras de forma geral.
Nos Estados Unidos, essa prática é vigente, sobretudo
em ambientes escolares, no ensino médio. Em nosso
contexto, a proposta tem sido usada mais frequentemente
por coros adultos e com diferentes objetivos, incluindo os
fins terapêuticos. Eu mesmo apresentei, entre os anos 80 e
90, dois espetáculos que misturavam música, teatro, dança,
humor e literatura. Foi uma experiência válida. No entanto,
quando percebi que estava deixando a matéria sonora para
trás, na segunda fila, refleti e decidi que era hora de voltar
às origens e explorar a literatura originalmente escrita para
coro e ainda muito pouco interpretada por nossos grupos,
pois a experiência musical e vocal dos nossos cantores
precisa ser ampla e abrangente.
Combato o excesso. Critico aqueles que defendem o coro
mexitivo, como sabiamente definiu o compositor e regente
Reginaldo Carvalho; os regentes desse tipo de coro alegam
que o repertório coral tradicional, seja ele europeu,
americano ou brasileiro, é difícil, chato e cafona. Sou contra
o frenesi que está em voga e que só serve para justificar a
incompetência dos aproveitadores de plantão. Defendo a
coexistência de múltiplas tendências, “cada uma com o seu
cada qual”, desde que a excelência vocal, a musical e a
artística sejam a tônica, o centro, a razão de ser da prática
coral.

10 A plateia ideal

Todo músico sofre quando se depara com uma plateia


despreparada, que se comporta de forma barulhenta,
irrequieta, inadequada. Creio que a solução está na (re)
educação do público, razão pela qual sugiro a nós, regentes,
a inclusão, nos nossos próximos programas, de um roteiro
com informações que conscientizem os ouvintes sobre a
natureza do nosso trabalho.
É muito importante que o concerto comece na hora
prevista e que o público chegue antecipadamente, com
tempo para estacionar, comprar ingresso e ler o programa.
Aqueles que chegam atrasados devem entender que o
abrir/fechar das portas desconcentra os músicos e os outros
ouvintes. Por isso, eles só devem entrar na sala de
concertos durante os aplausos. O mesmo vale para aqueles
que precisam sair antes do término da apresentação. Melhor
seria que estas pessoas ficassem, discretamente, na última
parte da sala, entrando/saindo sem serem notadas
Ao entrar no teatro, todos devem desligar o celular,
evitando deixá-lo no modo silencioso ou vibratório, o que
poderá ser perigoso e embaraçoso, sobretudo se a pessoa
tiver que atendê-lo. As pessoas precisam entender que,
num concerto, o mais importante é a música, o som
produzido pelos artistas, que passaram horas se preparando
para aquele momento. Todo e qualquer outro som poderá
comprometer a atuação dos intérpretes e a audição dos
demais presentes, e passará a ser classificado como ruído.
Frequentemente, os ruídos que mais incomodam são: o
murmúrio produzido pelas pessoas que tentam acompanhar
a obra que está sendo executada; o abrir e fechar das
embalagens de bombons e similares; o manusear dos
programas de concertos; as conversas sussurradas; as
tosses, os espirros e os pigarros da plateia. Tudo isso pode
ser controlado. Tudo isso precisa ser evitado para não
comprometer a compreensão do discurso musical, não
irritar as pessoas em derredor, não estragar a gravação
audiovisual do espetáculo. Outra coisa que atrapalha
bastante é quando alguém resolve filmar e/ou, em muitos
casos, fotografar o espetáculo usando lâmpadas e flashes
que alteram a luz do ambiente, ofuscando a vista dos
músicos no palco. O pior é quando cinegrafistas e
fotógrafos, mesmo possuindo equipamentos modernos e
potentes, se aproximam do palco para capturar detalhes.
Antes de fazer qualquer registro audiovisual, certifique-se
de que você tem autorização legal para tal finalidade.
O público também precisa aprender a aplaudir,
respeitando as especificidades de cada obra. Geralmente,
as manifestações de apreço, numa composição com vários
movimentos, devem ser resguardadas para depois do último
movimento. Por isso é tão importante familiarizar-se com o
repertório e ler o programa antes do início do concerto. O
processo de (re) educação da plateia é longo, lento e
fundamental para a fruição estética em sua plenitude.
Considerações finais: sobre o extrínseco e o
intrínseco à prática coral

As discussões em torno dos aspectos extrínsecos e


intrínsecos das diversas práticas musicais têm sido
constantes nas nossas conversas formais e informais, na
sala de aula e nos ensaios. O tema está em evidência por
conta da Lei 11.769/2008, que regulamenta a
obrigatoriedade da educação musical no ensino
fundamental e médio de todo o país.
Muitos administradores, pedagogos e pais têm destacado
a contribuição da música no processo de socialização das
crianças e dos adolescentes, estimulando-os criativamente,
tornando-os mais sensíveis e perceptivos. É certo que a
música pode cooperar em vários processos mentais,
desinibindo os indivíduos, desbloqueando as suas emoções,
desenvolvendo as suas personalidades, transformando-os.
No meu trabalho como regente coral, acompanhei de perto
as mudanças nos perfis de vários cantores, gente que (re)
descobriu o sentido do viver, superou dificuldades, encarou
desafios, assumiu uma nova postura perante a realidade.
Reconheço que a prática coral contribuiu para despertar,
nessas pessoas, tais possibilidades de mudança. No
entanto, confesso que, ao entrar na sala de ensaio, nunca
tratei dos aspectos extrínsecos à música nem tentei agir
como psicólogo ou como terapeuta ocupacional, procurando
resolver os problemas pessoais dos meus coristas.
Quando ensaiamos, focalizamos nossa atenção nos
aspectos objetivos e intrínsecos do fazer musical: ritmo,
afinação, dinâmica, articulação, respiração, projeção vocal,
sonoridade, fraseado, dicção, texto. Adotamos uma
linguagem técnica: longo, curto; forte, fraco; alto, baixo;
lento, rápido; legato, staccato. A nossa referência se
constrói a partir de parâmetros materiais, físicos, temporais,
vocais e acústicos. Só depois de superada essa etapa inicial,
que ocupa entre setenta e oitenta por cento do tempo de
trabalho, é que vamos em direção aos elementos mais
subjetivos, expressivos, emocionais e valorativos inerentes
à prática coral. E aí usamos o extramusical para motivar e
provocar o brilho no olhar. Keith Swanwick, no livro
Ensinando música musicalmente (São Paulo: Moderna,
2003), concebe a música como metáfora, como elemento
transformador e de transformação, destacando que toda e
qualquer ação pedagógica só será válida e eficiente se for
concebida em três estágios diferentes, caracterizados pelos
atos de: 1) transformar notas em gestos; 2) transformar
gestos em frases; 3) transformar frases em discurso
expressivo, que tenha sentido, que tenha valor, que
correlacione conhecimentos acumulados e adquiridos
através de uma prática significativa.
Precisamos, portanto, concentrar nossas ações
objetivamente, visando ao amplo desenvolvimento técnico
(musical e vocal) dos nossos cantores e das suas
potencialidades emocionais, sensoriais e expressivas; desta
forma, contribuiremos direta e decisivamente para a
emancipação do canto coral brasileiro, para a consolidação
da cidadania e, finalmente, para o desenvolvimento
humano em todas as suas dimensões. Para atingirmos tal
meta, devemos avaliar a forma como temos atuado diante
dos nossos coros, identificando e definindo aquilo que é (in)
apropriado à nossa práxis musical cotidiana.

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