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30/10/2019 Álvaro de Campos: o “eu” futurista de Fernando Pessoa – (En)Cena – A Saúde Mental em Movimento
Em primeiro lugar, cumpre que se diferencie heterônimo de pseudônimo: o primeiro é constituído de máscaras ou personalidades, com biografia, cultura,
filosofia e olhares diferenciados sobre o homem e a vida. É justamente por causa da heteronímia que a obra de Fernando Pessoa é plural.
O pseudônimo, como o próprio prefixo pseudo sugere, é um falso nome, dado a determinada pessoa. A biografia, a cultura, a filosofia e o olhar
diferenciado sobre o homem e a vida são da pessoa que recebe o pseudônimo, o que significa dizer que ele, o pseudônimo, não cria personalidades,
apenas nomeia uma que já existe.
Cada um dos heterônimos criados por Pessoa é um poeta diferente dos outros, por isso precisamos nos reportar ao conceito de realidade como
complexidade: se a realidade é complexa, compreendê-la exige um determinado esforço e uma multiplicidade de olhares, uma vez que nenhum olhar
consegue abarcá-la em sua totalidade. Partindo desse princípio, Fernando Pessoa cria arquétipos, sintetização de diferentes perfis espirituais sob uma
única personalidade, com o objetivo de observar, analisar e tentar compreender a realidade. Nascem daí os heterônimos: Alberto Caeiro, Ricardo Reis e
Álvaro de Campos.
Álvaro de Campos nasceu em 15 de outubro de 1890, em Tavira, extremo sul de Portugal. Era engenheiro naval formado na Escócia, mas viveu na
ociosidade, mais por não sujeitar-se à rotina de um emprego do que por falta de oportunidades para consegui-lo: bater ponto, ficar confinado no escritório,
debruçar-se sobre uma prancheta e manipular instrumentos de cálculo eram atividades que não o entusiasmavam.
Poeta futurista, homem do século XX, das fábricas, da energia elétrica, das máquinas, da velocidade, Álvaro de Campos é um inadaptado, vive à margem
de qualquer conduta social. Por isso, é considerado o poeta do “não”. Isso, no entanto, não implica que fosse só emoção, sistema nervoso, febre. Álvaro de
Campos é, sobretudo, lucidez, razão. Falando de si mesmo, esse poeta futurista revela:
A marginalização social e a defesa intransigente da lucidez são os dois principais aspectos explorados nesse poema, o que justifica a inadaptação em que
vive o poeta e sua perspectiva existencial, orientada não pelo coração, mas pela razão, uma vez que ele insiste que é lúcido.
Álvaro de Campos é um poeta inquieto. Sua trajetória vai de uma fase decadentista (início de sua carreira), passa por aventuras futuristas (influência do
poeta americano Walt Whitman) e chega a uma poesia intimista, com marcas profundas de angústia e melancolia. Na base de todos esses momentos está
o sensacionismo, a noção de que a vida é sensação e de que a única realidade em arte é a consciência dessa sensação, uma vez que toda arte
fundamenta-se nela (na sensação). Isso fica mais ou menos revelado no trecho a seguir do poema Passagem das Horas:
[…]
Sentir tudo de todas as maneiras,
Viver tudo de todos os lados,
Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo,
Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos
Num só momento difuso, profuso, completo, longínquo.
[…]
O momento decadentista da poesia de Álvaro de Campos revela, como é da natureza do Decadentismo, a sensação que o “eu-poético” tem da decadência
do mundo, não de sua própria decadência: ele reage em face das vicissitudes que marcam o momento de sua existência, numa atitude subjetivista, que
pode ser detectada neste fragmento do poema Opiário:
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[…]
É antes do ópio que a minha alma é doente.
Sentir a vida convalesce e estiola
E eu vou buscar ao ópio que consola
Um Oriente ao oriente do Oriente.
[…]
Apesar de trazer saudade dos tempos de menino, Álvaro de Campos é um homem voltado para o presente, é um poeta da modernidade que canta, em
grandes odes, a era contemporânea, num tom exaltado, elétrico e permeado pela emoção e numa fala destravada e coloquial. O verso eleito por ele é o
verso livre, constituído por meio de uma fala que se derrama, sem disciplina aparente, marca registrada do heterônimo mais afinado com o Futurismo.
O verso de Campos expressa uma energia explosiva que procura transmitir o espírito do mundo moderno: um mundo de máquinas, multidões e velocidade,
que fazem da poesia desse heterônimo uma manifestação febril, plena de gritos que exclamam e interrogam. No fragmento do poema Ode Triunfal,
construído a partir das sensações da vida urbana e industrial, você perceberá esses traços característicos do engenheiro de Glasgow:
[…]
Eia comboios, eia pontes, eia hotéis, à hora do jantar
Eia aparelhos de todas as espécies, ferros, brutos, mínimos,
Instrumentos de precisão, aparelhos de triunfar, de cavar,
Engenhos, brocas, máquinas rotativas!
Eia! eia! eia!
Eia eletricidade, nervos doentes da Matéria!
Eia telegrafia-sem-fios, simpatia metálica do Inconsciente!
Eia túneis, eia canais, Panamá, Kiel, Suez!
Eia todo passado dentro do presente!
Eia todo o futuro já dentro de nós! eia!
Eia! eia! eia!
Frutos de ferro e útil da árvore-fábrica cosmopolita!
Eia! eia! eia, eia-hô-ô-ô!
Nem sei que existo para dentro. Giro, rodeio, engenho-me.
Engatam-me em todos os comboios.
Içam-me em todos os cais.
Giro dentro das hélices de todos os navios.
Eia! eia-hô eia!
Eia! sou o calor mecânico e a eletricidade!
[…]
A poesia intimista de Álvaro de Campos, como o próprio título sugere, revela as angústias particulares do “eu-poético”, decorrentes de seu desajuste ao
mundo das conquistas técnicas, utilitário e, as mais das vezes, insensível aos valores humanos mais substantivos. O poema a seguir trata do
inconformismo do “eu-poético”, em face do ridículo das aparências, tão natural ao mundo capitalista:
E eu, tanta vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
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30/10/2019 Álvaro de Campos: o “eu” futurista de Fernando Pessoa – (En)Cena – A Saúde Mental em Movimento
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
A heteronímia de Fernando Pessoa resulta da fragmentação do eu, num mundo marcado pelos avanços tecnológicos e pelas consequentes
especializações.
Mas não podemos nos esquecer de um fato: a obra de Fernando Pessoa (ortônima e heterônima) traz a marca da diversidade sem excluir a unidade, como
podemos ver no poema seguinte.
Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.
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30/10/2019 Álvaro de Campos: o “eu” futurista de Fernando Pessoa – (En)Cena – A Saúde Mental em Movimento
O poema Lisbon Revisited (1923) traz a irritação do poeta consigo mesmo e com os outros, o ceticismo e a angústia.
No poema em questão, a irritação consigo mesmo e com o mundo pode ser encontrada desde os primeiros versos: “NÃO: Não quero nada./Já disse que
não quero nada./Não me venham com conclusões!/A única conclusão é morrer.”.
Já o ceticismo é visto em “Não me tragam estéticas!/Não me falem em moral!/Tirem-me daqui a metafísica!/Não me apregoem sistemas completos, não me
enfileirem conquistas/Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) — /Das ciências, das artes, da civilização moderna!/ Que mal fiz eu aos deuses
todos?/Se têm a verdade, guardem-na!”.
De acordo com Saraiva e Lopes (2001, p.1000), “o espírito reflexivo de Pessoa, acaba, em certos momentos, por desvalorizar a sua própria razão
humana”. Um exemplo do que ocorre no poema Tabacaria. Neste poema, o eu-lírico vê a realidade que o circunda e reflete sobre ela.
O eu-lírico olha, da janela de seu quarto, uma tabacaria. Uma tabacaria qualquer, de qualquer cidade em que se podem ser observados carros, pessoas,
animais.
A partir daí, reflete sobre a existência, sobre sua existência, a aparente banalidade da cena da tabacaria sendo vista pelo eu-lírico é cenário para reflexões
filosóficas que são iniciadas pela negação:
[…]
Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
[…]
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(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente
A presença de contrastes entre sensações e pensamentos, do binômio vida-conquista vivida e vida-conquista pensada (sonhada), ser e não ser, realidade
e sonho, o eu e as coisas, dúvida e certeza, negações e afirmações, consciência e inconsciência, racionalidade e irracionalidade. Além disso, há muitos
paradoxos, o que demonstra que a verdade das coisas está longe de ser estanque. Há também experiências abundantes e sensações marcantes: o eu
poético viveu, amou, estudou e até creu, sonha e sonhou todos os sonhos e conquistou o mundo, ainda que deitado numa cama, mas as suas conquistas
passadas foram máscaras que ele vestiu e hoje lhe parecem destituídas de sentido. No momento presente ele vivencia a realidade de uma sensação
absoluta do fracasso de sua vida e da inutilidade das coisas, desconfiado e desesperançado de qualquer futuro pessoal ou nacional; contrapõe a realidade
das coisas banais com a metafísica (NEGREIROS, 2010). A consciência pode ser entendida como sensação: a sensação de estar existindo. E, com isso,
“uma terrível estranheza de existir, um acordar para a misteriosa importância de existir, que preludia o existencialismo de meados do século” (SARAIVA &
LOPES 2001, p. 1000).
Você encontrará muitos poemas de Fernando Pessoa (poesia ortônima e heterônima) em <http://www.secrel.com.br/jpoesia/pessoa.html
(http://www.secrel.com.br/jpoesia/pessoa.html)>
Fontes Bibliográficas:
ABDALA JÚNIOR, Benjamin; PACHOALIN, Maria Aparecida. História social da Literatura Portuguesa. São Paulo: Ática, 1990.
GARCEZ, Maria Helena Nery. O Tabuleiro Antigo. São Paulo: Edusp, 1990.
GOMES, Álvaro Cardoso. Fernando Pessoa: as muitas águas de um rio. São Paulo: Pioneira/Edusp, 1987.
LOPES, Óscar; SARAIVA, A. J. História da literatura portuguesa. 17. ed. Porto: Porto, 2001.
MOISÉS, Massaud. Fernando Pessoa: o espelho e a esfinge. São Paulo: Cultrix, 1988.
MONTEIRO, Adolfo Casais. A poesia de Fernando Pessoa. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda.
NEGREIROS, Carlos Augusto de. Entre a realidade e o sonho: uma leitura de “Tabacaria” de Fernando Pessoa e sua relação com o Eclesiastes. In:
Revista Crioula. Disponível em: <http://www.fflch.usp.br/dlcv/revistas/crioula/edicao/08/Artigos%20e%20Ensaios%20-
%20Carlos%20Augusto%20de%20Negreiros.pdf (http://www.fflch.usp.br/dlcv/revistas/crioula/edicao/08/Artigos%20e%20Ensaios%20-
%20Carlos%20Augusto%20de%20Negreiros.pdf)
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30/10/2019 Álvaro de Campos: o “eu” futurista de Fernando Pessoa – (En)Cena – A Saúde Mental em Movimento
SIMÕES, João Gaspar. Itinerário Histórico da Poesia Portuguesa: de 1189 a 1964. Lisboa: Arcádia.
PESSOA, Fernando. Cartas de Amor. Introdução e Seleção de Walmir Ayala. São Paulo: Ediouro.
___. Ficções do Interlúdio/2-3: Odes de Ricardo Reis/3: Para além do outro oceano de Coelho Pacheco/Fernando Pessoa. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1983.
___. Poemas de Álvaro de Campos. Edição de Cleonice Berardinelli. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
SEABRA, José Augusto. Fernando Pessoa ou o Poetodrama. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda.
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