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Emergência e Desenvolvimento

do Welfare State:
Teorias Explicativas*

Marta T. S. Arretche

Fenômeno do século XX, a provisão de Muitos autores se dedicaram à tarefa de


serviços sociais, cobrindo as mais variadas explicar a origem e desenvolvimento do wel­
formas de risco da vida individual e coletiva, fare state. A bibliografia sobre o assunto é
tornou-se um direito assegurado pelo Estado imensa. A controvérsia sobre as razões, o sig­
a camadas bastante expressivas da população nificado e as perspectivas do fenômeno não é
dos países capitalistas desenvolvidos. Ainda menos complexa. No entanto, creio ser pos­
que alguns países — como a Alemanha, por sível ordenar de algum modo esse debate e
exemplo — tenham dado origem a progra­ compreendê-lo melhor. É esta minha princi­
mas de seguro social já no final do século pal preocupação: extrair desta vasta produ­
passado e que políticas de proteção a idosos, ção teórica e analítica argumentos explicati­
mulheres, incapacitados etc. se tenham de­ vos acerca deste fenômeno nos países desen­
senvolvido em vários países já no início deste volvidos.
século, é certo que o fenômeno do welfare É preciso dizer, desde logo, que o orde­
State experimentou incontestável expansão e namento de tal discussão não é tarefa fácil, e
até mesmo institucionalização no período do por várias razões. A principal delas diz res­
pós-guerra. É a partir de então que se gene­ peito ao critério mais adequado para fazê-lo.
raliza e ganha dimensões quase universais Em primeiro lugar, ao longo do tempo,
nesses países um conjunto articulado de pro­ e devido sobretudo aos avanços obtidos com
gramas de proteção social, assegurando o di­ base no acúmulo de conhecimentos e no de­
reito à aposentadoria, habitação, educação, senvolvimento das pesquisas comparativas,
saúde etc. O fenômeno é de tal magnitude e sofisticaram-se crescentemente as variáveis
importância que levou um importante autor, analíticas utilizadas. Assim, os trabalhos da­
que identifica políticas sociais com social-de- tados da década de 50 e 60, baseados essen­
mocratização da sociedade, a afirmar: cialmente no indicador “volume do gasto so­
“Q uando nos dam os conta de que a social- cial”, deram lugar, na década de 80, a análi­
democracia não é um absoluto, quando ses bastante mais sofisticadas, nas quais dis­
nossa sensibilidade percebe que o mundo tintos indicadores relativos à “forma e natu­
não teria sido o mesmo sem ela, então, há reza deste gasto” permitem uma abordagem
necessidade de um a nova teoria.” (Esping- teórica qualitativamente superior. A sofisti­
Andersen, 1985a, p. xiii). cação na abordagem do fenômeno implicou

* Este artigo beneficiou-se de várias contribuições. O curso “Teorias Explicativas do Welfare State", de
Argelina Cheibub Figueiredo, bem como a classificação das várias correntes ali propostas e seus co­
m entários à versão prelim inar deste trabalho foram de inestimável ajuda. Agradeço também os co­
m entários à mesma versão feitos por Sônia Miriam D raibe e M arcus A ndré Mello. No entanto, são
de minha inteira responsabilidade as opiniões aqui expressas.

BIB, Rio de Janeiro, n. 39,1.° sem estre 1995, pp. 3-40 3


maior sofisticação na explicação das razões princípios analíticos, de modo a constituir
de sua existência. Em outras palavras, são teorias explicativas, supôs excluir esses e ou­
muito variadas, em diversidade e grau de re­ tros trabalhos semelhantes, escolha que im­
finamento, as categorias analíticas e os indi­ plicou perdas no escopo de abrangência des­
cadores utilizados pelos autores, entre si e ao ta resenha, mas que apresenta a enorme
longo do tempo. vantagem de clarificar a exposição.
Além disso, e certamente apresentando Uma terceira dificuldade para o orde­
dificuldades muito maiores para um ordena­ namento deste debate diz respeito à evolu­
mento do debate, temos a tarefa da seleção ção e conseqüente mudança da reflexão de
dos textos e autores a ser incluídos em um autores que se tornaram uma referência pa­
trabalho deste tipo. As obras que nos habi­ ra os estudiosos do tema. Todos os grandes
tuamos a consultar são de natureza bastante pensadores apresentam evidentemente ama­
distinta. Alguns trabalhos que aportam uma durecimento, revisões e alterações em sua
enorme contribuição em termos de informa­ trajetória. Em maior ou menor grau, autores
ção empírica, histórica ou até mesmo clas- que permaneceram produzindo sobre o as­
sificatória da morfologia dos sistemas de pro­ sunto durante um largo período de tempo
teção social naqueles países, ou não apresen­ apresentam mudanças importantes em sua
tam necessariamente uma explicação parti­ reflexão. No entanto, alguns autores apre­
cular da origem e expansão destes sistemas, sentam mudanças muito significativas, mu­
ou não são “o” trabalho no qual uma deter­ danças estas que, em certa medida, negam
minada explicação está mais explicitamente peremptoriamente suas afirmações anterio­
desenvolvida. res ou até mesmo implicam a filiação a uma
É o caso, por exemplo, do monumental outra corrente teórica. Em outros casos, tra-
trabalho organizado por Peter Flora, Growth ta-se apenas de refinamentos de um argu­
to Limits, no qual distintos autores exami­ mento anteriormente apresentado.1
nam a evolução histórica, os resultados e os Em outras palavras, a opção por orde­
problemas contemporâneos do welfare State nar o debate segundo autores relevantes im­
em 12 países capitalistas avançados. A diver­ plicaria o problema posto pelas mudanças de
sidade e importância dos autores e o caráter argumento explicativo decorrentes da evolu­
quase enciclopédico desta obra conferem-lhe ção destes próprios autores. Além disso, or­
um statiis de consulta obrigatória sobre o as­ denar a partir dos autores imporia que cada
sunto, mas não exatamente de um trabalho um deles constituísse um item, dada a im­
de referência para a explicação das condições portância de cada um justamente pela singu­
da emergência e desenvolvimento dos pro­ laridade de sua análise.
gramas sociais. É o caso, também, do traba­ A escolha de um princípio de ordena­
lho de Titmuss, Social Policy, no qual, em mento — repetimos, o do argumento — per­
sua introdução, o autor apresenta uma clas­ mitiu contornar vantajosamente este proble­
sificação dos sistemas de política social, clas­ ma, vantagem esta que consiste na clareza da
sificação esta que influenciou enormemente exposição. A desvantagem que a acompanha
as pesquisas de tipo comparativo. De nature­ é a da perda da riqueza da produção dos au­
za, portanto, classificatória, esta contribuição tores selecionados, perda que, em alguns ca­
não trata explicitamente de teorizar sobre as sos, chega a ser mesmo injusta.
razões do surgimento e expansão de tais mo­ Por essas razões, esta resenha não trata
delos, ainda que seja possível, em outro de ordenar as teorias do welfare state de mo­
trabalho do mesmo autor, identificar sua fi­ do classificatório.2 Este trabalho pretende
liação teórica. tão-somente organizar a produção teórica
Delimitar o campo de abordagem deste sobre o welfare state, ordenando-a segundo
trabalho em torno de argumentos que, na argumentos analíticos selecionados. Como
verdade, hierarquizam internamente alguns afirmei mais acima, tais argumentos hierar-

4
quizam internamente algumas categorias do a razões de ordem política ou institucio­
analíticas, constituindo, portanto, correntes nal. Para estas, uma vez dadas determinadas
teóricas de explicação do fenômeno. Procu­ condições econômicas, seja o surgimento dos
rei identificá-las, de um lado, por sua in­ programas de proteção social, seja suas for­
fluência sobre as pesquisas e debates acerca mas de expansão, seja ainda suas variações
da natureza deste fenômeno e, de outro la­ têm como razão causal fatores relacionados
do, porque permitem revelar a evolução, no à luta de classes, a distintas estruturas de po­
tempo, da natureza desse debate.3 der político, ou ainda a distintas estruturas
Assim, trata-se, aqui, de organizar di­ estatais e institucionais.
versas contribuições, de modo neces­ Ainda que a intenção do trabalho seja
sariamente não exaustivo, dispondo os argu­ buscar explicitar argumentos explicativos —
mentos apresentados quanto à origem e de­ e foi a partir deles que a exposição foi orga­
senvolvimento do welfare State. Algumas cor­ nizada —, a escolha de autores mais repre­
rentes tratam distintamente as razões do sur­ sentativos de cada corrente era inevitável.
gimento desse fenômeno, vale dizer, as cau­ Este recurso permitirá também identificar
sas mais diretas de sua origem — o que de­ determinados trabalhos, de maior peso e im­
nominamos de sua emergência —, e as ra­ portância, no interior dos trabalhos de cada
zões de sua expansão ou desenvolvimento. autor em particular. Por outro lado, dado
Procurarei distinguir estas duas ordens de que o fio condutor é a identificação de distin­
preocupação dos autores.4 Creio que esta tas construções lógicas, evidentemente não
distinção tem importantes impactos para a seria possível, por razões de clareza dos ar­
identificação de hipóteses de trabalho. Con­ gumentos, deixar de recorrer a outros auto­
fundir razões da emergência e razões do de­ res ou até mesmo apontar mudanças no ar­
senvolvimento de um determinado fenôme­ gumento dos autores selecionados.
no histórico — como o das atividades sociais
do Estado contemporâneo — 6 fonte eviden­ Argumentos segundo os quais os
te de confusão para a análise, dado que, uma condicionantes da emergência e
desenvolvimento do welfare state
vez consolidado, todo fenômeno passa a ter
são predominantemente de ordem
uma dinâmica própria de desenvolvimento, econômica
conformando instituições e interesses parti­
culares. O welfare state é um desdobramento
Procurarei também distinguir, neste or­ necessário das mudanças postas em
denamento que se segue, os tipos de causa- marcha pela industrialização das
ções que orientam os argumentos explicati­ sociedades
vos identificados. Vale dizer, algumas cor­ São certamente alguns trabalhos de Ha-
rentes, por exemplo, dão maior peso a causa- rold Wilensky, Richard Titmuss e T.H.
ções de natureza econômica. Neste caso, o Marshall que melhor representam essa con­
fenômeno do welfare State seria um resulta­ cepção explicativa. Ainda que haja distinções
do ou subproduto necessário das profundas entre eles, sobretudo no que diz respeito às
transformações desencadeadas a partir do razões do desenvolvimento do welfare state
século XIX, sejam elas o fenômeno da in­ — não às razões de sua emergência —, há
dustrialização e modernização das socieda­ um núclco comum em sua argumentação,
des ou o advento do modo capitalista de pro­ relativo aos impactos do processo de indus­
dução. O peso das variáveis econômicas na trialização sobre as formas de intervenção e
hierarquia causal do argumento explicativo atuação do Estado.
proposto tem, certamente, filiações episte- Mesmo que explicitamente convencido
mológicas que são conhecidas. O mesmo po­ das premissas da teoria da convergência,5
de ser dito em relação a correntes para as Harold Wilensky realizou dois importantes
quais o fenômeno do welfare state é atribuí­ trabalhos em que procura explicar as varia­

5
ções internas no interior do processo mais nacional suficiente para financiá-los (Wi­
geral de convergência entre os países: Indus­ lensky, 1975, p. 24).
trial Society and Social Welfare, com Charles “No século passado, o welfare State desen­
Lebeaux em 1955,6 e The Welfare State and volveu-se em todos os países urbano-indus-
Equality em 1975.7 triais. Em bora esses [os países] variem
Assim, seja para explicar (em 1955) a enorm em ente em term os de direitos e li­
“exceção” (ou excepcionalidade) do caso berdades civis, os países ricos variam pouco
norte-americano, seja para explicar (em em sua estratégia geral de construção de
um piso abaixo do qual ninguém pode es­
1975) as razões da existência de países mais tar. Os valores invocados para defender o
avançados e países mais atrasados no desen­ welfare state — justiça social, ordem políti­
volvimento de programas de proteção social, ca, eficiência ou igualdade — dependem do
Wilensky acaba por revelar uma determina­ grupo que articula sua defesa. Mas a ação
da concepção teórica da origem e do desen­ final produziu uma das mais importantes
volvimento dos programas de welfare.8 uniformidades estruturais das sociedades
De acordo com sua visão, as razões do modernas. Quanto mais ricos os países se
tornam , mais semelhantes eles são na am ­
surgimento de programas sociais é a mesma pliação da cobertura da população e dos
em todos os países de alto nível de desenvol­ riscos (...)” (Wilensky, 1975, pp. 15-6).
vimento industrial. Ele o dirá claramente a
partir da comparação extensiva realizada no De outro lado, os problemas sociais
com os quais os serviços sociais têm de lidar
trabalho de 1975: “Eu concluí que o cresci­
mento econômico e seus resultados demo­ são resultado das mudanças sociais (sobretu­
do demográficas) desencadeadas pela indus­
gráficos e burocráticos são a causa funda­
trialização. A consolidação da fábrica como
menta] da emergência generalizada do welfa­
núcleo central da atividade produtiva implica
re state.” (Wilensky, 1975, p. xiii)9
uma transformação radical das sociedades,
O surgimento de programas sociais é,
determinando o surgimento de novos meca­
pois um desdobramento necessário de ten­
nismos de garantia da coesão e integração
dências mais gerais postas em marcha pela
sociais. Nada melhor do que uma citação dos
industrialização. Quais seriam, então, essas
próprios autores para clarificar a sua visão so­
tendências gerais, as quais explicariam o sur­
bre o papel central e determinante desempe­
gimento do welfare state?
nhado pelo desenvolvimento industrial no sur­
Segundo os autores, o surgimento de gimento dos programas sociais.
“padrões mínimos, garantidos pelo governo,
“Tudo que nós querem os destacar é que to­
de renda, nutrição, saúde, habitação e edu­
das as sociedades industriais enfrentam
cação para todos os cidadãos, assegurados problem as semelhantes; suas soluções a es­
como um direito político e não como carida­ tes problemas, embora variadas, são fre­
de” (Wilensky e Lebeaux, 1965, p. xii), está qüentem ente prescritas em maior medida
associado aos problemas e possibilidades pela industrialização em si mesma do que
postos pelo desenvolvimento da industriali­ por outros elementos culturais.”(Wilensky
zação. De um lado, os gastos com programas e Lebeaux, 1965, p. 47).
sociais somente são possíveis porque a indus­ Neste sentido, não haveria diferenças en­
trialização permite um vasto crescimento da tre países como o Japão, os Estados Unidos e
riqueza das sociedades (Wilensky e Lebeaux, a URSS, dado que, independentemente de
1965, p. 14). Haveria, pois, uma correlação seus regimes políticos e das diferenças nacio­
entre as variáveis crescimento industrial e nais, estes diferentes países estariam igualmen­
gastos sociais, sendo a primeira uma condi­ te submetidos à lógica da industrialização.
ção necessária para a segunda. Dito de outro A industrialização tem efeitos sobre a
modo, os programas sociais ou não apare­ estrutura da população, sobre a estrutura da
cem ou permanecem insignificantes em so­ estratificação social, sobre a estrutura de
ciedades que não produzam um excedente renda e a distribuição do poder, sobre os me­

6
canismos através dos quais se realizará a so­ critérios de especialização para o trabalho.
cialização, mudanças estas tão radicais que Nessas circunstâncias, o surgimento de leis
exigiriam novas formas de integração social. de proteção do trabalho infantil parece ser
Vejamos: a atividade industrial (na fábrica) um “resultado natural” (Wilensky e Le­
exige um novo tipo de trabalhador, com no­ beaux, 1965, p. 71), tornando a criança uma
vos hábitos, uma nova disciplina, diferente impossibilidade produtiva ao mesmo tempo
daquela compatível com a atividade produti­ que se lhe garante a possibilidade de educação.
va do camponês. Ao mesmo tempo, a meca­ Em suma, a industrialização opera
nização do processo produtivo pode signifi­ transformações inevitáveis na estrutura so­
car perda da importância de um conjunto de cial (Wilensky e Lebeaux, 1965, p. 79), tais
habilidades profissionais ou mesmo o surgi­ como a ênfase na família nuclear e o enve­
mento do desemprego técnico (ou seja, a ob­ lhecimento da população. A rapidez das mu­
solescência definitiva de determinadas habili­ danças sociais, outro de seus desdobramen­
dades). A industrialização implica ainda tos, tende a acelerar o surgimento de proble­
maior complexidade da divisão social do mas. O desenvolvimento de programas de
trabalho. À divisão natural sobrepõe-se o re­ cobertura contra os riscos postos por estas
crutamento no mercado de trabalho segun­ mudanças constitui seu correlato necessário.
do habilidades altamente complexas e diver­ Assim, por exemplo, o fato de que a maior par­
sificadas. Finalmente, a industrialização im­ te dos gastos com serviços de welfare nos Esta­
plica a competição no mercado de trabalho, dos Unidos seja destinada aos velhos constitui
a entrada da mulher neste mercado etc. Em um correlato do fato do envelhecimento da po­
suma, este conjunto de mudanças no que pulação, propiciado pela industrialização (Wi­
respeita ã dependência do trabalhador em lensky e Lebeaux, 1965, p. 79).
relação à situação do mercado de trabalho, à Essa série de determinações — in-
natureza e bases da especialização do traba­ dustrialização-mudanças sociais/demográfi-
lho, a uma significativamente crescente pos­ cas-surgimento de serviços de welfare — é,
sibilidade de mobilidade social teria implica­ assim, o núcleo do argumento, indutivamen­
ções profundas sobre o sistema familiar, isto te construído com base nas correlações esta­
é, sobre o tamanho das famílias, as formas tísticas identificadas pelos autores. A partir
de educação das crianças, as modalidades de da constatação empírica de regularidades,
reprodução social etc. Tais mudanças exigi­ concluem os autores: “Estas mudanças mas-
riam uma resposta, uma solução sob a forma sivas na sociedade americana são os determi­
de programas sociais, os quais visariam ga­ nantes principais dos problemas sociais, os
rantir a integração social, contornando os quais, por sua vez, criam a demanda por serviços
problemas de ajustamento do trabalhador e de welfare.” (Wilensky e Lebeaux, 1965, p. 17).
das famílias. Nas palavras dos próprios auto­ Essa correlação será confirmada na pes­
res: “Muitos dos serviços de welfare na Amé­ quisa sobre 64 países publicada no trabalho
rica podem ser vistos como uma resposta ao de 1975. Neste trabalho, Wilensky demons­
impacto da industrialização sobre a vida das tra que o sistema político (seja ele liberal-de-
famílias.” (Wilensky e Lebeaux, 1965, p. 67). mocrático, totalitário, oligárquico ou popu­
Os efeitos da industrialização sobre o lista) tem fraca correlação com o desenvolvi­
sistema familiar implicam também um novo mento do welfare stnte.10 Também o sistema
papel para as crianças: de auxiliares na ativi­ econômico (seja ele capitalista ou comunis­
dade agrícola (e, portanto, de fonte de ren­ ta) é absolutamente irrelevante para explicar
da), eles passam a ser unicamente fonte de o desenvolvimento de programas de prote­
gastos, ao mesmo tempo em que se consti­ ção social. Concomitantemente, o resultado
tuem como possíveis concorrentes no merca­ do trabalho é demonstrar a existência de
do de trabalho, uma vez que a seleção para uma altíssima correlação entre as variáveis
este mercado é feita predominante segundo nível de desenvolvimento econômico e esfor­

7
ço de seguridade social (este medido pelo mais atrasados no desenvolvimento de pro­
gasto estatal em serviços de consumo públi­ gramas sociais (em 1975).
co) (Wilensky, 1975, p. 2). Em 1955, a forma particular de desen­
Tal correlação, contudo, é mediada por volvimento do welfare state nos EUA é expli­
duas variáveis: em primeiro lugar, a propor­ cada por razões internas aos sistemas cultu­
ção de velhos na população, estabelecida co­ ral e político daquele país. Dito de outro mo­
mo causa direta mais forte; em segundo lu­ do, o surgimento do welfare state nos EUA
gar, a idade da população e a idade do siste­ estaria inserido no conjunto de mudanças so­
ma de proteção social. 1 A proporção de ve­ ciais desencadeadas pela industrialização, fe­
lhos na população seria um subproduto do nômeno que é mais ou menos invariante en­
nível de desenvolvimento econômico. Ou se­ tre os países onde esta ocorreu. Contudo, a
ja, o desenvolvimento econômico implica existência de fortes resistências internas ao
uma queda da taxa de natalidade; tal redu­ desenvolvimento destes programas é as­
ção implica um aumento da proporção de sociada a um desenvolvimento particular da
velhos no universo populacional (isto é, a de­ cultura do capitalismo ocorrido nos EUA.
senvolvimento econômico correspondem Tais resistências fariam com que o país fosse,
mudanças demográficas). Essa população, em certa medida, uma exceção às tendências
em situação objetiva de necessidade, fará mais gerais de desenvolvimento do welfare
pressão por programas sociais e estes neces­ state, tal como ocorrido nos demais países al­
sariamente surgirão (dada a possibilidade do tamente industrializados como, por exemplo,
excedente econômico, propiciada pelo mes­ os países da Europa Ocidental. Nas palavras
mo desenvolvimento econômico). Tal de Wilensky e Lebeaux (1965, pp. ix-x):
processo é demonstrado pelo fato de que os “A té hoje, e por razões dem onstradas ao
maiores beneficiários dos programas sociais longo deste livro, quanto mais industrializa­
são os velhos (Wilensky, 1975, pp. 26-7). da uma nação, maior a fatia de sua renda
nacional que é gasta em serviços de welfare.
Entretanto, essas duas ordens de variá­
(...) E ntretanto, em relação à sua capacida­
veis — proporção de velhos e idade da popu­ de de gasto, os países ricos têm increm enta­
lação/idade dos sistemas — constituem, co­ do seus gastos com welfare, embora os Es­
mo veremos a seguir, elementos de explica­ tados Unidos, o mais rico deles, tenha se
ção para a diversidade nos níveis de gasto e movido bastante lentamente no interior
nos sistemas de administração dos progra­ dessa tendência geral.”
mas sociais entre os países nos quais tais pro­ Se a explicação para a origem dos pro­
gramas adquiriram significado, ou seja, no gramas sociais está no desenvolvimento in­
interior do grupo de 22 países ricos (contem­ dustrial, sua expansão, contudo, é fortemen­
plados em sua análise) nos quais existiria efe­ te associada a traços da cultura nacional. Os
tivamente o welfare state. valores e crenças dominantes nos EUA, a
Uma vez^ admitida a existência de varia­ existência de razões objetivas para tais cren­
ções internas à tendência mais geral, expres­ ças e um sistema político-administrativo ba­
sas pelo caso norte-americano e/ou pela exis­ seado na descentralização seriam os mais
tência de diferentes níveis de gasto e diferen­ fortes obstáculos ao desenvolvimento do
tes estilos e tipos de organização administra­ welfare state nesse país tal qual ele se desen­
tiva entre os 22 países mais ricos, Wilensky volveu nos países da Europa Ocidental.
se preocupa em explicar as razões destas va­ Em primeiro lugar, porque o individua­
riações. Assim, procurando complementar o lismo econômico (o imperativo de vencer na
trabalho de Cutright (1967), busca explicar vida por seus próprios esforços), o individua­
as diferentes formas de desenvolvimento dos lismo como regra de conduta social, a crença
sistemas de welfare, isto é, busca as razões da na propriedade privada e no livre mercado, a
“exceção” norte-americana (em 1955) e do crença na iniciativa individual e na competi­
fato da existência de países mais avançados e ção são elementos-chave da cultura norte-

8
americana. Tais valores constituiriam fortes produto do grau de desenvolvimento indus­
obstáculos ao desenvolvimento de progra­ trial). Por que é este o fator principal? Por­
mas sociais contra os riscos inerentes ao que é este indicador que apresenta uma cor­
processo de industrialização. Em segundo lu­ relação positiva mais elevada com o indica­
gar, existem nos EUA bases objetivas para o dor “esforço de gasto”.
florescimento de tais valores, dado que se Em segundo lugar, como elementos de
observa concretamente um enriquecimento diferenciação no gasto e no estilo administra­
geral do conjunto da população e tendências tivo entre os países, estariam a idade da po­
de longo prazo no sentido da equalização da pulação (dado que os programas cor­
renda. Ou seja, observadas as tendências de respondem às necessidades demográficas) e
longo prazo, toda a população tem crescen­ a idade dos sistemas. Os sistemas amadure­
temente padrões de vida mais elevados e hâ cem, uma vez constituídos, exercendo pres­
um crescimento permanente e progressivo são para uma ampliação progressiva dos gas­
das dimensões da classe média em relação à tos sociais. Esta ampliação é resultado, so­
população total (Wilensky e Lebeaux, 1965, bretudo, da natureza das burocracias direta­
pp. 90-114). Finalmente, a heterogeneidade mente envolvidas nos programas sociais. Nas
social, étnica e religiosa característica dos palavras de Wilensky,
EUA, reforçada pela acentuada fragmenta­ “(...) o nível econômico é a causa funda­
ção política propiciada pela descentralização, mental do desenvolvimento do welfare state,
impede o desenvolvimento de programas na­ mas seus efeitos são sentidos principalm en­
cionais, de natureza abrangente, característi­ te nas mudanças demográficas do século
passado e no impulso dos programas em si
cos da ação social na Europa e especialmen­
mesmos, uma vez estabelecidos. Com a
te nos países escandinavos (Wilensky e Le­ modernização, as taxas de natalidade decli­
beaux, 1965, pp. xviii). naram e a proporção de velhos, associada
Portanto, dado que “os valores dos ho­ ao declínio do valor econômico das crian­
mens conformam sua abordagem dos proble­ ças, exerceram pressão no sentido da ex­
mas postos pela industrialização” (Wilensky pansão do gasto. Uma vez estabelecidos, os
e Lebeaux, 1965, p. 349), a cultura america­ programas amadurecem, movendo-se em
na afeta a forma dos serviços sociais presta­ todo lugar em direção a uma m aior cober­
tura e mais elevados benefícios. O cresci­
dos nos EUA, ou seja, a quantidade de re­
mento do gasto com seguridade social co­
cursos destinados aos programas de welfare, meça como uma conseqüência natural do
a ênfase em agências privadas, a divisão en­ crescimento econômico e seus efeitos de­
tre agências locais e federais, o baixo grau de mográficos e é acelerado pela interação das
efetividade dos programas implementados percepções políticas das elites e das pres­
(Wilensky e Lebeaux, 1965, p. 15). sões das massas e das burocracias do welfa­
No trabalho de 1975, Wilensky demons­ re:’ (Wilensky, 1975, p. 47).12
tra uma posição bastante distinta. Afirma É importante chamar aqui a atenção
que é tentador atribuir a diversidade entre os para o fato de que a conclusão de Wilensky é
países ricos a elementos de ordem cultural resultado da metodologia por ele emprega­
(Wilensky, 1975, pp. 28-30), mas que, na da. Na verdade, o autor torna-se “prisionei­
verdade, os fatores de diferenciação são de ro” das variáveis e correlações estatísticas
outra ordem, de ordem estrutural. Vejamos: por ele adotadas. Ao adotar como variável
Ao observar uma fortíssima correlação dependente exclusivamente o indicador “vo­
entre proporção da população com mais 65 lume de gasto em programas sociais”13 e co­
anos de idade e esforço de welfare, o autor mo variáveis independentes indicadores eco­
afirma, como desenvolvido mais acima, que nômicos e demográficos, Wilensky está fada­
o primeiro seria o principal fator de diversi­ do a obter conclusões a partir das regularida-
dade no gasto (portanto, um fator de ordem des encontradas na correlação destas variá­
demográfica, o qual é, por sua vez, um sub­ veis, estabelecendo como fator mais impor-
tante aquele que apresenta maior correlação (quer individuais, quer sociais), que visam
positiva e assim por diante. Como veremos garantir a sobrevivência das sociedades. As
mais adiante, as análises mais recentes do necessidades da Inglaterra, por exemplo, em
welfare state exigirão indicadores e tratamen­ 1950 não são as mesmas que em 1900. Logo,
to analíticos mais sofisticados. a modificação e, sobretudo, a ampliação dos
Professores da London School of Eco- serviços sociais revelam a crescente amplia­
nomics, T.H. Marshall e Titmuss foram, en­ ção de necessidades ocorrida na sociedade
tre os anos 40 e 60, responsáveis pela discipli­ inglesa naquele período.
na de Administração Social daquela escola. Para Titmuss, nestes 50 anos que
Preocupados sobretudo com o desenvolvi­ testemunharam a construção de um conjun­
mento do Estado de Bem-Estar na Inglater­ to mais ou menos articulado de programas
ra, desenvolveram, contudo, uma corrente de proteção social, a Inglaterra viveu a “era
de explicação que se situa no interior dessa das expectativas crescentes” (Titmuss, 1963,
explicação mais geral a respeito do fenôme­ p. 43),15 expectativas essas que implicaram
no. Ou seja, ainda que essencialmente preo­ um desenvolvimento do escopo e variedade
cupados com o caso inglês, sua abordagem dos serviços sociais.
inscreve-se nessa vertente que articula positi­ Tais expectativas, contudo, passam a ser
vamente a industrialização como fenômeno necessidades, porque estas últimas são cultu­
causal dos programas sociais. ralmente construídas. Os homens enfrentam
Titmuss14, em um ensaio escrito em distintos “estados de dependência” (Titmuss,
1954, tratando do caso inglês, afirma que a 1963, p. 42), tais como a fragilidade das
origem dos programas do welfare está na crianças, dos velhos, dos doentes, estados es­
crescente complexidade da divisão social do tes em que os cuidados se constituem em
trabalho propiciada pelo desenvolvimento da necessidades físicas. As necessidades às quais
industrialização. “Na ampliação dos progra­ se destinam os programas sociais, contudo,
mas sociais”, diz ele, “o fator operativo do­ não se limitam apenas às necessidades físi­
minante foi a crescente divisão do trabalho cas. O desemprego, o subemprego, a apo­
na sociedade e, simultaneamente, um grande sentadoria, por exemplo, revelam estados de
crescimento na especificidade do traba- dependência culturalmente estabelecidos
lho”(Titmuss, 1963, p. 43). (“man-made dependencies”) (Titmuss, 1963,
Esta afirmação é explicitamente as­ p. 430). A ampliação progressiva dos progra­
sumida pelo autor como a aceitação da tese mas sociais, portanto, o desenvolvimento do
durkheimniana segundo a qual o homem se welfare state é o resultado da ampliação
tornaria mais socialmente dependente na progressiva do campo de necessidades cultu­
mesma medida em que se tornasse mais in­ ralmente construídas. Assim, com o rompi­
dividualizado e mais especializado. Assim, a mento gradual da Lei dos Pobres (conceito
especialização do trabalho, fruto da indus­ que equivale ao de dissolução progressiva da
trialização, implicaria o crescimento da de­ Lei dos Pobres, em Marshall), foram-se defi­
pendência individual em relação à sociedade. nindo e reconhecendo novos “estados de de­
Deste modo, a origem dos programas de pendência”, dinâmica à qual está subordina­
proteção social estaria localizada, para do o desenvolvimento dos programas sociais.
Titmuss, na industrialização e em seu cor­ Em Política Social, escrito em 1965,
relato necessário: a crescente especialização Marshall procura dar conta da origem do Es­
da produção. tado de Bem-Estar Social na Inglaterra, bem
Contudo, dado que sua origem consiste como de sua evolução no pós-guerra, nota-
numa resposta a essas necessidades, seu de­ damente na década de 50 e início dos anos
senvolvimento está associado à dinâmica da de 60.16 Para o autor, o Estado de Bem-Es­
mudança dessas mesmas necessidades. Os tar Social naquele país tem início em meados
serviços sociais são respostas a necessidades da era vitoriana, ou seja, no último quartel

10
do século XIX. Uma era de prosperidade e jamos como o autor examina o processo evo­
confiança teria marcado, pois, o início da lutivo do fenômeno.
adoção de medidas de política social: leis de Originado naquelas medidas de prote­
assistência aos indigentes, leis de proteção ção aos indigentes e pobres em geral acima
aos trabalhadores da indústria, medidas con­ mencionadas (notadamente, a Lei dos Po­
tra a pobreza etc. Em tais medidas estaria o bres e seus desdobramentos posteriores), o
embrião daquilo que, mais tarde, após a Se­ processo em curso teria tomado impulso no
gunda Grande Guerra, seria conhecido co­ começo do século XX, a partir de um
mo welfare State. progressivo movimento de dissolução da Lei
A razão para o surgimento dessas medi­ dos Pobres. As medidas de proteção aos po­
das, as quais legariam à sociedade inglesa do bres foram progressivamente deixando de
século XX um aparelho estatal administrati­ tratá-los indistintamente, isto é, passaram a
vamente preparado para garantir o bem-es- surgir políticas de atenção à heterogeneidade
tar social a seus cidadãos, está, segundo da pobreza. Cria-se, assim, um significativo
Marshall, no impulso dado às sociedades pe­ dispositivo de proteção que atendia de forma
la industrialização: distinta a crianças, velhos, desempregados,
“A Revolução industrial, qualquer que seja indigentes etc.
a verdade sobre sua origem, sem som bra de A adoção de tais medidas é acompa­
dúvida, não teve fim. Pois é da essência da nhada de uma profunda discussão entre as
industrialização que, uma vez que se ‘pega forças políticas organizadas do período. Há
impulso’, e se está inteiram ente com prom e­ mesmo a criação de uma comissão para es­
tido com o modo de vida industrial, o movi­ tudar o assunto, a Comissão Real sobre a
m ento nunca cessa e (com toda a probabi­
Lei dos Pobres e Auxílio aos Necessitados,
lidade) o ritm o se torna mais frenético.”
(Marshall, 1967, p. 12).
nomeada pelo governo conservador. No en­
tanto, as medidas tomadas o foram inde­
Uma vez re-harmonizada e readaptada pendentemente dos trabalhos desta Comis­
ao novo “modo de vida”, após a pacificação são. Com efeito, estas foram implementadas
dos conflitos que haviam acompanhado a pelo governo conservador antes mesmo que
origem da produção em escala industrial, a a Comissão concluísse seus trabalhos. Assim,
sociedade inglesa “(...) abraçou essa tarefa conclui o autor:
de desenvolver suas potencialidades [e] colo­
“A verdade é que durante os anos em que a
cou em movimento forças inerentes ao pró­ Comissão esteve em funcionamento a cor­
prio sistema que levaram, por processos lógi­ rente da mudança social começou a fluir
cos e naturais, à sua transformação em algo livremente e a Comissão foi parte desta
totalmente imprevisto e incomum.” (Mars­ corrente, não a origem da mesma. A outra
hall, 1965, p. 13; grifos meus). parte mais saliente foi o governo liberal
Este é um conceito central nessa expli­ que subiu ao poder (...)” (Marshall, 1965,
cação: a origem e desenvolvimento do Esta­ p. 56).
do de Bem-Estar Social fazem parte de um Assim, ainda que a ação política tenha
processo que é definido, fundamentalmente, alguma importância para a explicação do
pela evolução lógica e natural da ordem so­ surgimento da política social, ela apenas im­
cial em si mesma (Marshall, 1965, p. 27). Tal plementa aquela que é a lógica inexorável
processo é, em parte, realizado pela ação po­ das forças evolutivas em operação no sistema
lítica. Assim, o autor identifica correntes de social. Tais forças, que atuam de forma inde­
pensamento e suas propostas a cada período pendente, lógica e naturalmente, dão curso a
de evolução da política social. Mas a ação polí­ um processo evolutivo sobre o qual os atores
tica está condicionada a um processo de auto- sociais não têm controle. Uma vez liberadas,
desenvolvimento da política social, processo es­ tais forças ganham impulso; num movimento
te ao qual os atores sociais são submissos. Ve­ de autopropulsão que lhes é inerente.

li
Tanto é assim que, nos anos 20 e 30, bros da sociedade, representam o- encontro
observa-se um movimento de acentuada definitivo da sociedade inglesa com o bem-
convergência entre os países em que a políti­ estar. Tal produto, cujos traços centrais se
ca social era uma realidade (Marshall, 1965, encontram acabados, ainda que sujeito a
p. 78). Existe, segundo o autor, consenso contínuo movimento, não é dependente de
quanto à natureza e extensão da responsabi­ correntes de pensamento ou partidárias. As
lidade governamental pelo bem-estar social. sucessivas alternâncias no poder entre os
Há, entre os países, convergência quanto ao Partidos Trabalhista e Conservador têm pe­
público-alvo dos programas previdenciários, quena influência no curso do processo, ainda
quanto à bagagem metodológica e à máqui­ que possam ter influência sobre a ênfase no
na administrativa a ser utilizada nos progra­ caráter estatal ou privado, voluntário ou
mas, quanto aos riscos a serem cobertos. Há compulsório de determinados programas.
ainda convergência no sentido da unificação Assim, não é o governo trabalhista no poder,
dos programas, no sentido de envolver os as­ por exemplo, que explica o advento do Esta­
salariados e, finalmente, no surgimento da do de Bem-Estar Social em 1946, mas as for­
temática da distribuição da renda como um ças sociais propulsadas pela guerra. As duas
elemento constitutivo da política social. Tal guerras (bem como a depressão) são, contu­
convergência é reveladora das forças postas do, incidentes que vieram a acelerar a evolu­
em prática pelo capitalismo democrático. ção lógica do sistema, dado que criaram um
Ainda que haja divergências entre os países sentimento nacional de solidariedade propí­
quanto aos métodos mediante os quais se cio ao desenvolvimento de programas de
operaria o gradual processo de dissolução da proteção social.17
Lei dos Pobres, o movimento de convergên­ Evidentemente, os indicadores analíti­
cia é altamente significativo. cos utilizados por Wilensky e Lebeaux, bem
Embora o período entre guerras tenha como a metodologia por eles empregada,
sido importante para a consolidação das me­ não são os mesmos dos trabalhos de Mars­
didas criadas anteriormente, é o período pos­ hall e Titmuss. Na verdade, é preciso situar o
terior à Segunda Guerra Mundial que repre­ contexto no qual estes últimos produziram
sentará seus trabalhos. Estes foram escritos em um
“(...) a fase final do processo (...) pelo qual
contexto de ataque liberal aos programas so­
o desenvolvimento lógico e a evolução na­ ciais na Inglaterra, o que explica, em parte, a
tural das idéias e instituições conduziram, ênfase na idéia de que tais programas corres­
em última análise, a uma transform ação do pondiam a uma nova era das sociedades,
sistema. A transform ação, ou revolução, sendo, portanto, intrínsecos a ela. Por outro
consistiu na fusão das medidas de política lado, reduzir seus argumentos a um contexto
social num todo que, pela primeira vez, ad­ de acirrado debate político seria reduzir o ca­
quiriu, em conseqüência, uma personalida­
ráter de sua contribuição.
de própria e um significado que, até então,
Na verdade, a partir de metodologias e
tinha sido apenas vagam ente vislumbrado.
Adotamos a expressão ‘Estado de Bem-Es- recursos analíticos distintos, os autores aci­
tar Social’ para denotar esta nova entidade ma analisados, nestes trabalhos menciona­
composta de elem entos já conhecidos. A dos, partilham de uma mesma concepção
responsabilidade derradeira total do E sta­ quanto à origem dos programas sociais, con­
do pelo bem -estar de seu povo foi reconhe­ cepção esta originária das teorias da moder­
cida mais explicitam ente do que jamais o nização e da industrialização das sociedades.
fora." (Marshall, 1965, p. 97). Ainda que as razões da expansão dos siste­
A adoção do seguro social compulsório mas de proteção possam ser distintas entre
e a implantação do Serviço Nacional de Saú­ eles, estes autores partilham da idéia de que
de, cobrindo, com garantia estatal, os riscos estas são mais um subproduto de forças ine­
inerentes à vida coletiva para todos os mem­ rentes ao processo de industrialização e me­

12
nos o resultado de conflitos e decisões po­ acumulação de capital arrisca-se a secar a
líticas. fonte de seu próprio poder, a capacidade
de produção de excedentes econômicos e
O welfare state é uma resposta às os impostos arrecadados deste excedente (e
necessidades de acumulação e de outras formas de capital).” (O ’Connor,
legitimação do sistema capitalista 1977, p. 19; grifos meus).

Em seu livro USA: A Crise Fiscal do Es­ Esta citação é lapidar da visão de
tado (1977), James O ’Connor faz um estudo O’Connor. Não existe, para ele, distinção en­
da política fiscal norte-americana. Analisa a tre o fato de o Estado dever desempenhar
crise fiscal do Estado, definindo-a como uma uma determinada função, ou ainda, o fato de
propensão para que os gastos estatais sejam que exista, no plano econômico e político,
superiores ao volume das receitas fiscais. As­ uma determinada demanda para o Estado, e o
sim, o trabalho não aborda diretamente a te­ fato de que o listado venha efetivamente a de-
mática da origem e desenvolvimento do Es­ sempenhá-la. Em outras palavras, a necessida­
tado de Bem-Estar. Na verdade, ao exami­ des societais corresponderiam funções estatais.
nar os fundamentos sociológicos das finanças Assim, às duas funções estatais (acumu­
governamentais e, portanto, a dinâmica do lação e legitimação) correspondem diferen­
gasto estatal, o autor está analisando o fenô­ tes tipos de gasto estatal, quais sejam: (a) ca­
meno, particular do pós-guerra, do substan­ pital social, isto é gastos destinados a garan­
cial crescimento do volume do gasto estatal. tir a acumulação de capital, que se subdivi­
Apresentada como a “teoria da crise fiscal”, dem em dois tipos: investimento social, des­
a análise do autor, ainda que centrada nos tinado a aumentar a produtividade dos tra­
EUA do pós-guerra, pode, segundo ele, ser balhadores, e consumo social, destinado a
generalizada aos países de capitalismo adian­ rebaixar os custos de reprodução da força de
tado. Com efeito, ao longo do trabalho Ja­ trabalho; (b) despesas sociais, que são gastos
mes O’Connor apresenta exemplos de casos destinados a lidar com os efeitos do processo
europeus para demonstrar seus argumentos. de acumulação e, portanto, a garantir a har­
Assim, é possível depreender da análise de monia social e a legitimação.
James O’Connor, voltada para a compreen­ Deste modo, embora seja difícil estabe­
são da dinâmica das finanças governamen­ lecer uma relação direta entre cada rubrica
tais, uma determinada concepção acerca da de gasto estatal e cada uma das funções que
origem e desenvolvimento dos programas o Estado tem de desempenhar, é certo que
sociais no pós-guerra. todas as despesas estatais têm este caráter,
Em que consiste, portanto, a “teoria da isto é, responder às necessidades do capital,
crise fiscal”? O argumento é bastante sim­ seja para garantir diretamente a acumula­
ples. Parte-se da premissa de que ção, via capital social, seja para corrigir os
efeitos sociais da acumulação de capital, via
“(...) o E stado capitalista tem de tentar de­
despesas sociais. Mesmo esta última função
sem penhar duas funções básicas e muitas
vezes contraditórias: acum ulação e legiti­
estatal é exposta como uma das condições
mação (...). Isto quer dizer que o Estado necessárias à acumulação. Enfim, legitima­
deve tentar m anter, ou criar, as condições ção do Estado e harmonia social são elemen­
em que se faça possível uma lucrativa acu­ tos necessários à acumulação de capital.
mulação de capital. E ntretanto, o Estado Para O’Connor, o gasto estatal sob a
também deve m anter ou criar condições de forma de capital social é indispensável à ex­
harmonia social. Um Estado capitalista que pansão do investimento e consumo privados.
em pregue abertam ente sua força de coação
Por sua vez, o aumento da atividade privada,
para ajudar uma classe a acum ular capital à
custa de outras classes perde sua legitimi­
por seu caráter irracional, gera a demanda
dade e, portanto, abala a base de suas leal- por gasto estatal sob a forma de despesas so­
dades e apoios. Porém, um Estado que ig­ ciais. Neste sentido, o processo de ampliação
nore a necessidade de assistir o processo de e crescimento das despesas estatais está dire-

13
ta e indiretamente associado a um único mo­ vimento dos demais setores econômicos (o
vimento: aquele que diz respeito às necessi­ setor competitivo e o setor estatal). De acor­
dades do capital, fundamentalmente do setor do com este suposto, O’Connor afirma que o
monopolista da economia. Diz o autor: crescimento do setor monopolista tende a
“(...) a causa geral do crescim ento do setor gerar, de um lado, um excedente de produ-
m onopolista tem sido a expansão do setor tos 18 e, de outro, uma população exceden­
estatal (...) o efeito geral do crescim ento do te19. Segundo ele, a população excedente no
setor m onopolista tem sido o crescimento setor monopolista tende a ser absorvida por
do setor estatal. [Assim,] o crescimento dos empregos gerados pelo setor estatal e com­
setores m onopolista e estatal são um único
petitivo, ao mesmo tempo em que a disponi­
processo.” (O ’Connor, 1977, p. 40).
bilidade de mão-de-obra tende a rebaixar os
“O orçam ento estatal pode ser visto como salários no interior do setor competitivo, fa­
um mecanismo complexo que redistribui zendo com que os trabalhadores deste setor
rendas para trás e à frente, no seio da clas­
sejam, relativamente, cada vez mais pobres.
se trabalhadora — tudo para m anter a har­
monia político-social, expandir a produtivi­ Esse movimento implica o crescimento das
dade e acelerar a acum ulação e a lucrativi­ despesas sociais e do funcionalismo estatal,
dade no setor m onopolista.” (O ’Connor, porque “tais operários [do setor competitivo]
1977, p. 167). dependem cada vez mais do Estado para sa­
Vejamos, portanto, o argumento do au­ tisfazer suas necessidades” (O’Connor, 1977,
tor: o setor privado é o impulsionador do p. 44), as quais serão satisfeitas sob a forma
crescimento da economia; no interior do se­ de programas sociais (logo, do emprego de
tor privado, o setor monopolista é o setor- mais funcionários públicos). Por outro lado,
chave. No entanto, o setor monopolista não o problema do excedente de produtos é solu­
paga os custos do investimento social (gastos cionado pela expansão do comércio e do in­
necessários ao aumento da produtividade), vestimento no exterior; portanto, gastos mili­
custos que são necessários à sua expansão. tares (aos quais o autor denomina de gastos
Logo, este gasto recai sobre o Estado. Ora, sociais de produção).
uma vez que os recursos utilizados pelo Es­ Assim, segundo O’Connor, a uma dis­
tado para custear os investimentos sociais função social gerada no interior do setor mo­
são arrecadados do conjunto da população, nopolista (desemprego/população exceden­
isto quer dizer que os investimentos sociais te) corresponde uma solução sob a forma de
necessários à expansão do setor monopolista gasto estatal, lógica esta que explica a origem
são socializados via Estado. Com efeito, se­ e crescimento das despesas sociais.20 O uso
gundo o autor, “o setor monopolista sociali­ do termo “disfunção” aqui é proposital: tra­
za cada vez mais os custos da produção” ta-se de designar a idéia subjacente, no pen­
(O’Connor, 1977, p. 41). Esta seria, portan­ samento deste autor, da existência de uma
to, a dinâmica do gasto estatal sob a forma relação de funcionalidade entre Estado e se­
de capital social. tores do capital.
Espero que tenha ficado evidente, na Esta premissa o impede de observar va­
exposição acima, a circularidade do argu­ riações extremamente importantes nas for­
mento: a expansão do Estado (seja de seu mas de atuação do Estado nos países capita­
volume de gasto, seja na criação de institui­ listas avançados. Para ele, os gastos militares
ções) e o crescimento do setor monopolista e previdenciários são resultado de um único
são um mesmo e único fenômeno, comple­ processo, qual seja, aquele derivado do exce­
mentar e auto-alimentador. dente de população e de produtos, exceden­
É importante que fique claro que, no te este que, repetimos, é resultado da dinâ­
argumento do autor, a dinâmica do cresci­ mica de expansão do setor monopolista. Por
mento e das necessidades de acumulação do esta razão, O’Connor considera que o Esta­
setor monopolista determina a lógica do mo­ do do pós-guerra é o Estado previdenciário-

14
militar}1 Ora, este não é um atributo apenas dente, que tem relativamente baixo poder
dos EUA. A natureza bélica e previdenciária aquisitivo; e o estado belicista tende a cres­
cer devido à expansão do capital excedente,
do Estado no pós-guerra é uma característi­
que não encontra aplicação internam ente
ca comum aos países capitalistas adiantados. (em parte devido ao aum ento da população
Contudo, ainda que este seja um fenômeno excedente).” (O ’Connor, 1977, p. 154).
geral, cada país dará mais ênfase ao elemen­
Assim, em sua explicação acerca da ori­
to previdenciário ou militar, de acordo com
gem e desenvolvimento dos programas so­
seu desenvolvimento histórico específico. As­
ciais, O’Connor privilegia a lógica da expan­
sim, no caso norte-americano hâ uma forte
são do capital, lógica que presidiria estas
ênfase no aspecto militar, ao passo que no
duas dimensões do fenômeno indistintamen­
caso sueco, por exemplo, há forte ênfase no
te. Ainda que a questão das classes sociais
aspecto previdenciário. Em outras palavras,
não haveria, para O’Connor, diferenças seja mencionada, a luta de classes não é con­
substanciais entre distintas modalidades ins­ siderada um elemento explicativo da dinâmi­
titucionais de prestação de serviços sociais, ca do fenômeno analisado. Em essência, são
condicionantes de natureza econômica que
dado que
determinam a forma de desenvolvimento do
“(...) qualquer que seja a conjuntura especí­ welfare, bem como sua emergência. Mesmo
fica de forças, em qualquer m om ento e em
que a dimensão de legitimação seja uma di­
qualquer sociedade, a dinâmica subjacente
à expansão das despesas com o bem -estar
mensão da análise, ela o é do ponto de vista
ou com as operações militares é o processo da necessidade de acumulação de capital pe­
de acum ulação de capital nas atividades lo setor monopolista.
m onopolistas.” (O ’Connor, 1977, p. 46). Os autores que se filiam a essa interpre­
tação estabelecem uma relação direta entre,
Portanto, o processo de acumulação de
de um lado, necessidades postas pelo proces­
capital no interior do setor monopolista ex­
so de acumulação capitalista e, de outro la­
plica ao mesmo tempo a origem e o desen­
do, funções desempenhadas pelo Estado,
volvimento do gasto com programas sociais,
ou seja, do elemento previdenciário do Esta­ sem demonstrar os mecanismos e processos
pelos quais tais necessidades e funções trans­
do do pós-guerra.22 Dito de outro modo, Ja­
formam-se em políticas (policies), ou, dito de
mes O’Connor considera que a origem do
outro modo, sem demonstrar por quais ra­
gasto social está associada à existência de
zões o Estado capitalista efetivamente de­
uma população excedente gerada pelo setor
sempenha tais funções. Este é também o ca­
monopolista; por sua vez, o crescimento des­
so de Cia us Offe.
te gasto (que é, na verdade, a lógica de seu
Ainda que a produção de Offe a propó­
desenvolvimento) é explicado pelo cresci­
sito do welfare state possa ser considerada
mento desta população. Tomemos as pala­
tão ampla quanto heterogênea, uma parte
vras do próprio autor:
significativa do seu trabalho situa-se no mes­
“As despesas previdenciárias e militares mo campo que o de O’Connor, guardadas,
são determ inadas pelas necessidades do se­ efetivamente, determinadas distinções, as
tor m onopolista e pelas relações de produ­
quais pretendo demonstrar. Optei por apre­
ção no seu seio. A capacidade produtora
excedente (ou o capital excedente) cria sentar os trabalhos nos quais Offe argumen­
pressões políticas no sentido da expansão ta que o welfare state é funcional às exigên­
econômica agressiva no exterior. E a força cias da reprodução ampliada do capital. 23
de trabalho excedente, por sua vez, gera Para tanto, analisarei fundamentalmente
pressões políticas em prol do crescim ento três trabalhos deste autor: um artigo publica­
do sistema previdenciário.” (O ’Connor, do na revista Politics & Society, em 1972; um
1977, p. 154).
conjunto de artigos escritos em diferentes
“O estado previdenciário tende a se expan­ períodos, mas publicados em 1984 no livro
dir devido ao aum ento da população exce­ Problemas Estruturais do Estado Capitalista

15
e, finalmente, um artigo publicado em 1979 “(...) padrões ideológicos não são apenas
em uma coletânea organizada por Leon ausentes, mas eles seriam inaplicáveis mes­
Lindberg e outros. mo se existissem, porque a margem para
No trabalho de 1972, Offe dirá que o políticas alternativas ‘viáveis’ é muito pe­
welfare state é essencialmente um fenômeno quena para perm itir escolhas baseadas em
das sociedades capitalistas avançadas e que princípios. É exatamente esta situação que
m elhor descreve o desenvolvimento do wel-
estas sociedades (sem exceção) criam estru­
fare State. Plataformas dos partidos e resul­
turalmente problemas endêmicos e necessi­ tados eleitorais parecem não ter influência
dades não atendidas. Neste contexto, o wel­ na porcentagem do orçam ento estatal que é
fare state seria uma tentativa de compensar gasto para fins de welfare ou em novos pro­
os novos problemas criados por estas socie­ gramas de welfare que são criados. Muito
dades. Assim, a emergência dos Estados de mais importantes como determ inantes das
Bem-Estar nâo apenas não representa uma políticas (policies) são variáveis econômicas
mudança estrutural das sociedades capitalis­ tais como o crescimento da produtividade,
a extensão da mobilidade social, o nível tec­
tas, mas seria essencialmente uma resposta nológico das indústrias básicas, o tamanho
funcional a seu desenvolvimento. Diz o au­ e composição da força de trabalho, a estru­
tor: tura de idade da população e outros indica­
“O welfare state não pode lidar diretam ente dores macroeconômicos e macrossociológi-
com as necessidades hum anas fundam en­ cos." (Offe, 1972, p. 484).
tais; ele pode apenas tentar com pensar os
Deste modo, o autor nega explicitamen­
novos problem as que são criados na vaga
do crescimento industrial.” (Offe, 1972, p.
te determinantes de ordem política na emer­
482). gência dos programas sociais, dizendo que “a
decisão política no welfare state está fadada a
Segundo Offe, o desenvolvimento do ser bastante reduzida” (Offe, 1972, p. 484).
capitalismo gera problemas sociais tais como
Ao contrário, aqueles programas expressam
a necessidade de moradia para os trabalha­ a natureza do welfare state, qual seja, um
dores concentrados pela indústria, a necessi­ contínuo processo de adaptação aos proble­
dade de qualificação permanente da força de mas sociais postos pelo desenvolvimento do
trabalho, desagregação familiar etc. Ou seja, capitalismo. Diz Offe:
em seu desenvolvimento, o capitalismo des-
trói formas anteriores de vida social (ou ins­ “A lógica do welfare state não é a realização
de algum objetivo humano intrinsecamente
tituições sociais), gerando disfuncionalida-
válido, mas antes a prevenção de um pro­
des, que se expressam sob a forma de pro­ blema social potencialmente desastroso.
blemas sociais. Para o autor, neste caso “o (...) Esta maneira tecnocrática e absoluta­
Estado tem de assumir o encargo destes no­ mente apolítica de reagir a pressões sociais
vos problemas de ‘welfare’.” (Offe, 1972, p. emergentes condena o welfare state a um in­
483) O welfare state representa, portanto, findável e errático processo de auto-adap-
formas de compensação, um preço a ser pa­ tação.” (Offe, 1972, p. 485).
go pelo desenvolvimento industrial.24 Em resumo, em um de seus primeiros
Mais que funcional, o welfare state é um trabalhos sobre o assunto (em 1972), Claus
desdobramento necessário da dinâmica de Offe defendia uma concepção funcionalista
evolução dessas sociedades, uma vez que há do welfare state, funcionalidade esta em rela­
pequena margem para opções. Isto é, segun­ ção ao modo de produção capitalista: os pro­
do o autor, a emergência de programas so­ gramas sociais seriam fundamentalmente
ciais não é resultado de escolhas, posto que uma forma de corrigir/compensar dísfuncio-
as alternativas de políticas são pequenas. São nalidades, expressas no plano social, da ope­
as condições econômicas e sociais que deter­ ração do sistema capitalista. O mesmo argu­
minaram a emergência do welfare state, e mento estará presente no artigo de 1979.
não opções no campo do político. Neste trabalho, Offe não trata explicita-

16
mente do welfare state, mas da natureza do ça, esclarecendo que, com este argumento, o
Estado intervencionista, fenômeno plena­ autor quer distinguir-se, seja das correntes
mente emergente no pós-guerra e que se marxistas ortodoxas, para as quais não have­
manifesta no fato de que, a partir de então, ria nas sociedades capitalistas avançadas
o Estado passou a desempenhar atividades uma mudança essencial nas funções desem­
produtivas no campo econômico e no campo penhadas pelo Estado capitalista, seja das
social. Na fase liberal do século XIX, era correntes social-democratas, para as quais a
possível ao Estado garantir a manutenção do novidade do pós-guerra seria uma substan­
processo de acumulação capitalista apenas cial alteração da essência do Estado capitalis­
por meio de atividades alocativas, vale dizer, ta. No entanto, Offe limita-se a estabelecer
distribuindo recursos do próprio Estado, tais uma relação de funcionalidade e dependên­
como taxação, tarifas, repressão, subsídios cia entre Estado e processo de acumulação,
etc. No entanto, o novo estágio do desenvol­ cabendo ao primeiro a função de criar as ex-
vimento capitalista tornou as atividades es­ ternalidades necessárias à manutenção do
sencialmente alocativas do Estado insuficien­ segundo. Argumentando deste modo, o au­
tes para a manutenção do processo de acu­ tor está, na verdade, bem mais distanciado
mulação, exigindo que o Estado passasse a das correntes social-democratas que do mar­
desempenhar atividades de tipo produtivo. xismo ortodoxo.
Passemos ao próprio Offe: Essa análise em termos funcionais esta­
“A fim de m anter o processo de acum ula­ rá ainda presente em um trabalho mais sofis­
ção (seja em uma firma, uma indústria, ou ticado publicado posteriormente.26 Neste tra­
nos níveis nacional e regional), é necessário balho, escrito juntamente com Gero Lenhardt,
algo mais e diferente da alocação de recur­ Offe dará maior consistência à sua explica­
sos e bens que o E stado já tinha sob seu ção da funcionalidade do welfare state ao mo­
controle. A fim de criar e m anter as condi­ do de produção capitalista. A relação de fun­
ções de acumulação, a form a alocativa de
cionalidade é anunciada já no início da análi­
ação estatal (...) é insuficiente. (...) alguns
se como uma premissa de trabalho. Os auto­
insumos físicos à produção são exigidos, de
modo a m anter a acumulação. (...) Na si­ res dizem que, para bem analisar as políticas
tuação particular que estam os descrevendo, estatais no âmbito de uma elucidativa teoria
e à qual corresponde a forma produtiva de do Estado, é necessário avançar em termos
ação estatal, o m ercado é incapaz de um a de “(...) hipóteses sobre a relação funcional
oferta quantitativa e qualitativam ente su ­ entre a atividade estatal, por um lado, e os
ficiente de capital constante e variável.” problemas estruturais de uma formação so­
(Offe, 1979, pp. 129-30). cial (no caso, a capitalista), por outro.” (Len­
Portanto, a um novo estágio do desen­ hardt e Offe, 1984, p. 12).
volvimento capitalista, em que novos desa­ Assim, para os dois autores, a questão
fios e ameaças são colocados à manutenção central a ser respondida no âmbito deste tra­
do processo de acumulação, corresponde balho é saber como surge a política estatal a
uma nova forma de Estado — o Estado in­ partir dos problemas específicos de uma es­
tervencionista —, que é qualitativamente dis­ trutura econômica de classes, estrutura esta
tinta da forma anterior.2 Dito de outro mo­ que é baseada na valorização privada do ca­
do, esses novos desafios constituem a razão pital e no trabalho assalariado livre. Portan­
da emergência, a origem das atividades pro­ to, explicar a origem das políticas sociais sig­
dutivas do Estado. Por outro lado, em qual­ nifica definir quais são as funções que lhes
quer fase do desenvolvimento capitalista, o competem, considerando-se essas estruturas.
Estado terá a mesma essência: “funcionalmen­ Qual seria, portanto, a função da política so­
te relacionado e dependente do processo de cial? “(...) A política social é a forma pela
acumulação capitalista” (Offe, 1979, p. 125). qual o Estado tenta resolver © problema da
Na verdade, é necessário fazer-lhe justi­ transformação duradoura de trabalho não-

17
assalariado em trabalho assalariado:'’ (Len- mas contribui de forma indispensável para
hardt e Offe, 1984, p. 15). a constituição dessa classe. A função mais
Os autores distinguem dois conceitos: a im portante da política social consiste em
regulamentar o processo de proletariza­
proletarização passiva — que se refere ao
ção.” (Lenhardt e Offe, 1984, p. 22).
processo pelo qual um indivíduo é destituído
dos meios próprios de subsistência — e a A origem dos programas sociais é expli­
proletarização ativa — que se refere à dispo­ cada, portanto, como uma resposta funcio­
sição para que este indivíduo venda sua força nal à necessidade de constituição da classe
de trabalho no mercado. Ainda que funda­ operária, condição essencial para o desenvol­
mental para a consolidação das relações de vimento do capitalismo. Essa função (de so­
produção capitalistas, a passagem da proleta­ cialização da classe operária no capitalismo)
rização passiva para a proletarização ativa só pode ser cumprida por um poder estatal,
não seria de modo algum automática ou na­ pois o processo de integração daquela classe
tural. supõe a existência de uma associação política
Para organizar a sociedade nos termos de dominação: o poder estatal.
da industrialização capitalista — ou ainda, Por outro lado, a dinâmica de desenvol­
para que a passagem da condição de proletá­ vimento das políticas sociais diz respeito a
um processo, interno à esfera estatal, de
rio passivo à de proletário ativo se realize de
compatibilização de duas exigências contra­
forma permanente — portanto, para que a
ditórias: as exigências da classe trabalhadora
industrialização se torne possível, é necessá­
e as necessidades da acumulação de capital.
rio solucionar três problemas fundamentais:
Na verdade, a esfera estatal reage a estas
(a) a força de trabalho precisa estar disposta
duas ordens de pressões, levando em conta
a vender-se no mercado e a assumir os riscos
os pré-requisitos de uma economia do tra­
inerentes a esta condição; (b) é preciso asse­
balho e as possibilidades orçamentárias. Di­
gurar as condições materiais da reprodução
zem os autores:
da força de trabalho; e (c) é preciso garantir
“(...) a política estatal não está ‘a serviço’
uma certa adequação quantitativa entre a
das necessidades ou exigências de qualquer
força de trabalho passiva e a força de traba­ grupo ou classe social, mas reage a proble­
lho ativa. mas estruturais do aparelho estatal de do­
Os dois primeiros problemas dizem res­ minação e de prestação de serviços.” (L en­
peito à integração da força de trabalho à for­ hardt e Offe, 1984, p. 37).
ma de trabalho assalariado. A consolidação Isto significa que o Estado gera políticas
do trabalho assalariado supõe que o Estado reagindo a seus próprios problemas internos,
seja bem-sucedido na estratégia empregada relativos à integridade de seus meios de or­
para esta integração. Isto porque apenas o ganização — institucionais, fiscais e legais.
Estado pode fazê-lo, dado que tal estratégia Tal movimento, contudo, ocorre no interior
é fundamentalmente uma estratégia de con­ de uma sociedade de classes, contexto que
trole político e ideológico. impõe as duas ordens de pressões acima
Ora, nestes termos, a política estatal é mencionadas.
funcional ao processo de consolidação do Ora, nestes termos, a dinâmica de de­
modo de produção capitalista, uma vez que senvolvimento das políticas sociais diz respei­
garante a formação e consolidação daquela to a uma estratégia estatal que busca realizar
que é sua característica essencial: as relações ao mesmo tempo a integração social (conci­
de produção entre capital e trabalho. Na ver­ liando interesses antagônicos) e a integração
dade, a função da política social consiste em sistêmica (relativa à consistência interna da
criar as condições de existência da classe administração estatal).27 Nesta perspectiva, o
operária. Dizem os autores: Estado (e as políticas sociais) já não é mais
“(...) a política social não é mera reação do uma resposta automática (num contexto de
Estado aos problem as da classe operária limitadas margens de escolha) às necessida-

18
des do modo de produção capitalista, como poder de determinação substancial, seja so­
o autor afirmava em 1972. No trabalho pu­ bre a capacidade do Estado de perceber pro­
blicado no Brasil em 1984, o Estado é visto blemas, seja sobre a natureza das políticas
como tendo uma dinâmica própria, que diz (policies) formuladas e implementadas.
respeito a um processo de elaboração inter­ Ora, nesta perspectiva, ainda que a
no à esfera estatal, a um processo de media­ emergência de determinadas atividades no
ção de necessidades e exigências no interior interior da esfera estatal diga respeito a exi­
do Estado. gências do processo de acumulação, sua for­
Este argumento já está, de certo modo, ma de desenvolvimento está estreitamente
presente naquele trabalho de 1979 analisado relacionada a uma dinâmica que é mais pro­
mais acima. Neste trabalho, ao tratar das dis- priamente de tipo institucional, vale dizer,
crepâncias entre as funções externas do Es­ que está no âmbito das estruturas estatais.
tado capitalista (aquelas relativas à manuten­ Como mencionei antes, é difícil analisar
ção das condições de reprodução das unida­ o trabalho de Claus Offe, dada sua heteroge­
des privadas de acumulação capitalista) e sua neidade ao longo do tempo. Pode-se afirmar,
estrutura interna, o autor apresenta uma contudo, que inicialmente este autor estava
análise da estrutura institucional específica à mais voltado para as questões relativas às
esfera estatal. É certo que, ao fazê-lo, Offe condições de emergência dos programas so­
afasta-se das análises tipicamente marxistas, ciais; nestas, a relação de funcionalidade en­
posição esta que lhe confere um espaço par­ tre welfare state e necessidades da acumula­
ticular no debate acadêmico. ção de capital é central. Por esta via, o autor
Para Offe, uma das razões pelas quais o aproxima-se claramente de O’Connor, ope­
Estado deve garantir as condições da repro­ rando em um nível de abstração no qual não
dução ampliada do capital diz respeito à sua cabe a análise da variedade de formas esta­
dependência estrutural dessa reprodução, tais sob os quais se opera a prestação de ser­
fundamentalmente porque a “saúde finan­ viços sociais.
ceira” do Estado depende da “saúde da eco­ No entanto, para expor de forma mais
nomia”. Faz parte do cálculo econômico da adequada o trabalho de Offe, é preciso escla­
burocracia estatal considerar que sua estabi­ recer que suas preocupações quanto ao cará­
lidade e expansão dependem da manutenção ter sistêmico do Estado apontam para uma
problemática de tipo político-institucional,
da acumulação, argumento este, aliás, tam­
bém apresentado e não desenvolvido por segundo a qual as formas institucionais de
tomada de decisão influem no resultado des­
O’Connor. Segundo Offe, essa dependência
tas mesmas decisões (nas policies), preserva­
seria um princípio seletivo no processo de
da a necessidade de acumulação de capital.
decisão, interno ao Estado, para a definição
Essa perspectiva, que indicaria a possibilida­
de políticas estatais.
de de variações nas formas estatais do welfa­
No entanto, Offe vai além disto. Segun­
re state, não é, contudo, desenvolvida pelo
do ele “(...) os procedimentos formais, ou o
autor.
método institucionalizado pelo qual são pro­
cessados os problemas com os quais o Esta­
Os condicionantes da emergência e
do deve se defrontar, são igualmente deter­
desenvolvimento do welfare state são
minantes da atividade estatal” (Offe, 1979, preponderantemente de ordem política
p. 135).
Em outras palavras, ao enfrentar deter­ O welfare state é resultado de uma
minados problemas, o Estado o faz segundo ampliação progressiva de direitos:
sua estrutura interna de operação. Esta, cuja dos civis aos políticos, dos políticos
expressão consiste em um conjunto institu­ aos sociais
cionalizado de procedimentos formais para a É certamente T.H. Marshall, em seu
tomada de decisões, tem, por sua vez, um clássico trabalho “Cidadania e Classe Social”,

19
publicado originalmente em 1950 (Mars­ madas sociais que a eles tinham acesso. Ve­
hall, 1967), a grande fonte intelectual da ex­ jamos o que diz o autor:
plicação que se baseia na idéia da ampliação “(...) os direitos civis surgiram em primeiro
progressiva da noção de cidadania. É certa­ lugar e se estabeleceram de modo um tanto
mente também pelo conteúdo deste trabalho semelhante à forma moderna que assumi­
que Jens Alber o classifica como um autor ram antes da entrada em vigor da primeira
Lei de Reforma, em 1832. Os direitos polí­
cujo trabalho se orienta por um modelo ana­
ticos se seguiram ao civis, e a ampliação de­
lítico de tipo conflitualista.28 les foi uma das principais características do
Preocupado com a relação entre desi­ século XIX, embora o princípio da cidada­
gualdade econômica e crescente igualdade nia política universal não tenha sido reco­
política, o autor toma o caso inglês para de­ nhecido senão em 1918. Os direitos sociais,
monstrar que, por meio da política social, a por outro lado, quase que desapareceram
crescente igualdade política modifica as desi­ no século XVIII e princípio do XIX. O res­
surgimento destes começou com o desen­
gualdades econômicas. Para fazê-lo, argu­
volvimento da educação primária pública,
menta que a análise histórica revela que se mas não foi senão no século X X que eles
assistiu naquele país a um desenvolvimento atingiram um plano de igualdade com os
do conteúdo da noção de cidadania que tem outros dois elementos da cidadania.”
seu início no século XVII. Para ele, a noção (Marshall, 1967, p. 75).
de cidadania compreende três tipos de direi­ Ora, portanto, a origem das “políticas
tos: os direitos civis (relacionados aos direi­ igualitárias do século XX” (Marshall, 1967,
tos necessários à liberdade individual, o que p. 84) encontra-se nesta roda da história, na
compreende inclusive direitos no campo das qual o escopo dos direitos alarga-se progres­
relações de trabalho); os direitos políticos sivamente. E esta ampliação ocorre no plano
(relacionados ao direito de participação no da sociedade e no plano do Estado, sobretu­
exercício do poder político); e, finalmente, os do pela ação das classes altas.
direitos sociais (relacionados à participação Mas Marshall fez escola. E o fez sobre­
na riqueza socialmente produzida). Fundi­ tudo na França. Publicado em 1981, La Cri­
dos no feudalismo medieval — embora aí es­ se de 1’Etat-Providence é um trabalho volta­
tivessem distribuídos de modo desigual entre do fundamentalmente à explicação da natu­
as classes —, estes distintos campos da noção reza dessa crise e de suas possibilidades futuras.
de direitos foram separados na sociedade in­ Para fazê-lo, seu autor, Pierre Rosanvallon,
dustrial e, nesta, evoluíram de modo distinto. busca definir a natureza do Estado de Bem-
Diz Marshall: Estar, permitindo-nos apreender sua explica­
“O divórcio entre eles era tão com pleto
ção para a origem e desenvolvimento desse
que é possível, sem distorcer os fatos histó­ fenômeno.
ricos, atribuir o período de form ação da vi­ Para o autor, o Estado de Bem-Estar
da de cada um a um século diferente — os tem uma positividade própria, nascida do
direitos civis ao século XVIII, os políticos movimento do Estado-nação moderno. O
ao X IX e os sociais ao XX. Estes períodos, Estado moderno, tal como forjado do século
é evidente, devem ser tratados com uma XIV ao século XVIII, definiu-se como Esta-
elasticidade razoável, e há algum entrelaça­ do-protetor. Esta é a característica funda­
mento, especialm ente entre os dois últi­ mental que o distingue das formas políticas
mos.” (M arshall, 1967, p. 66).
anteriores. O contrato social que institui o
Não somente a noção de cidadania é ex­ Estado-nação moderno, cuja arquitetura in­
plicada pela ampliação progressiva de seu telectual é forjada nas obras de Locke e
conteúdo, como a evolução de cada dimen­ Hobbes, está fundado na realização de uma
são dos direitos — vale dizer, a civil, a políti­ dupla tarefa: a produção da segurança e a
ca e a social — é explicada pela universaliza­ redução da incerteza. Nesta concepção, não
ção, isto é, a ampliação progressiva das ca­ existe Estado sem que este cumpra as fun­

20
ções da proteção e sem que este permita a análise precedente. Se o Estado-previden­
realização de um indivíduo portador de direi­ ciário progride por saltos, especialmente
por ocasião das crises, é porque estes perío­
tos (direito à vida e direito à propriedade). Lo­
dos constituem tempos de prova, a favor dos
go, a forma política específica do Estado mo­ quais há urna reformulação mais ou menos
derno é a do Estado-protetor (Rosanvallon, explícita do contrato social." (Rosanvallon,
1981, pp. 20-2). 1981, p. 29).
O Estado de Bem-Estar é um prolonga­
A experiência da guerra é particular­
mento e uma extensão (ou ainda, uma radi­
mente significativa nesta direção. Ao fim de
calização) do Estado protetor clássico. Este cada guerra, parece ter ocorrido um ato de
processo de radicalização ocorre a partir do refundação social e, portanto, de reafirma­
século XVIII, sob o efeito do movimento de­ ção cada vez mais acentuada da natureza do
mocrático e igualitário. As noções de prote­ Estado protetor/Estado de Bem-Estar. Tra-
ção da propriedade e da vida (como atribu­ tava-se de renovar os laços sociais que cons­
tos do Estado) sofrem uma ampliação: am- tituem a nação e, portanto, de dar vazão ao
plia-se o campo dos direitos civis. “Os direi­ movimento de democratização das relações
tos econômicos e sociais aparecem natural­ sociais através do Estado, movimento este
mente como um prolongamento dos direitos que vai dos direitos civis aos direitos sociais,
civis.” (Rosanvallon, 1981, p. 23). passando pelos direitos políticos.
É evidente, aí, sua proximidade da expli­ François Ewald, em belíssimo e exausti­
cação marshalliana. Mas retomemos o que vo trabalho sobre a evolução dos direitos so­
diz o autor. Segundo Rosanvallon, o movi­ ciais no campo jurídico, publicado em 1986
mento democrático reivindicará os direitos (L ’Etat Providence), demonstrará em termos
completos da cidadania para todos os indiví­ documentais as premissas esboçadas em
duos: o direito de voto, mas também o direi­ grandes linhas por Rosanvallon.29 Seu trabalho
to de proteção econômica, como atributos consiste em demonstrar o movimento ocorri­
da atividade do Estado. E é este movimento do ao longo do século XIX, que implicou a
de ampliação do conjunto de direitos a ser gestação da lei que inaugurará o Estado de
atendidos pelo Estado que dará origem ao Bem-Estar na França.3 Este movimento
Estado-previdenciário. representou um longo trabalho de rompi­
O Estado de Bem-Estar revela uma mento epistemológico, de construção de
versão do contrato social celebrado entre os uma nova racionalidade que superará aquela
indivíduos e entre estes e o Estado. Tal con­ dominante no século XIX: a racionalidade li­
trato revela a formação progressiva de uma beral. Esta teria sido responsável pelas resis­
representação ampliada do indivíduo, con­ tências à emergência de um contrato social
templando suas dimensões econômica e so­ mais completo que o contrato social de
cial. Sob o signo da economia política e da Rousseau: o contrato de solidariedade, em
laicização da sociedade, o Estado de Bem- que a vida civil se tornou objeto do Estado, o
Estar exprime a idéia de substituir a incerte­ Estado de Bem-Estar. Para identificar o sur­
za da proteção religiosa pela certeza da pro­ gimento deste novo contrato social, o autor
teção estatal (Rosanvallon, 1981, p. 25). trata, portanto, de estudar a evolução do di­
Originado nesse movimento de ampliação reito civil ao direito social (Ewald, 1986, pp.
dos direitas democráticos, o Estado de Bem- 27-8).
Estar progrediu do século XIX ao século XX Segundo Ewald, para o diagrama libe­
por meio de saltos, de forma descontínua, por ral, a possibilidade de que o indivíduo esteja
ocasião das grandes crises, tenham sido elas so­ sujeito a acidentes e, portanto, a riscos im­
ciais, econômicas ou internacionais. Contrário previstos é um elemento constitutivo da vida
às teses marxistas, diz Rosanvallon: social, mas o acidente é sobretudo o produto
"E u sugiro uma outra explicação, mais filo­ da sorte, do destino, diante do qual o indiví­
sófica e política, coerente com a minha duo deve cultivar a virtude moral da previ­

21
dência (prevoyance). Neste caso, a responsa­ responsabilidade (anteriormente, individual)
bilidade pelos danos sofridos é individual. passa a ser social, dado que o fato de viver
Logo, os riscos que o trabalhador pode so­ em sociedade representa um risco. Há um
frer não podem ser descarregados sobre a todo social, uma riqueza coletiva, que é o re­
sociedade. Cabe a ele dar conta de sua po­ sultado do trabalho das gerações preceden­
breza, de sua condição de trabalho e dos ris­ tes, do qual nós — da geração presente —
cos nela implicados. Não se trata, contudo, devemos repartir a carga e as vantagens. O
na episteme liberal, de se negar a encarar o critério dessa repartição, por sua vez, será
problema da pobreza, de negar socorro objeto de permanente discussão política
àqueles que estejam sujeitos a riscos como o (Ewald, 1986, pp. 367-70).
da fome, da doença, da invalidez etc. “A re­ Deste modo, para Ewald, a passagem
sistência é apenas contra a idéia de que os do século XIX para o século XX é teste­
deveres de assistência da sociedade em rela­ munha do advento do diagrama da solidarie­
ção aos pobres correspondam a direitos dos dade, é reveladora de uma mudança episte-
pobres.” (Ewald, 1986, p. 55). mológica que dá suporte às mudanças no do­
É esta noção liberal da responsabilidade mínio do Direito e dos mecanismos de regu­
que teve de ser fundamentalmente repensa­ lação social. Uma verdade inteiramente no­
da com o advento da industrialização e de va, absolutamente distante daquela dos libe­
sua correlata, a pobreza. A experiência jurí­ rais (Ewald, 1986, pp. 342-51).
dica do século XIX é a da evidência progres­ Trata-se, portanto, na versão destes au­
siva de que as sociedades industriais são es­ tores, de conferir uma racionalidade à vida
sencialmente causadoras de danos. Socieda­ social e política, racionalidade à qual os ato­
des em que se observará ao mesmo tempo res sociais estão submetidos. O movimento
condutas corretas e regularidade de aciden­ de gênese do VEtat-providence ocorre inde­
tes, sociedâdes onde o homem virtuoso so­ pendentemente da existência de conflitos po­
frerá danos. Nestas condições, o diagrama li­ líticos conscientes, operando no plano da
episteme, da concepção filosófica do ser so­
beral revela-se progressiva e crescentemente
cial. É um movimento natural que supõe a
um instrumento inadequado de regulação
evolução progressiva do campo dos direitos:
social.
de direitos civis a políticos, de políticos a so­
“(...) as sociedades industriais desenvol-
ciais. Consiste, na verdade, em um movimen­
viam-se pondo em questão a m aneira pela
to lógico e natural de ampliação da concep­
qual se havia pensado a regulação da socie­
dade, isto é, o princípio geral de responsa­
ção de democracia, que tem sua expressão
bilidade. A necessidade de um a reform a es­ no plano dos referenciais políticos de uma
tava inclusa no processo industrial em si sociedade.
mesmo.” (Ewald, 1986, p. 225).
Assim, como resultado da inadequação O welfare state é resultado de um
acordo entre capital e trabalho
do diagrama liberal ã sociedade industrial, o
organizado, dentro do capitalismo
direito civil e o princípio da responsabilidade
serão substituídos pelo direito social e o prin­ Ainda que explicitamente situado no
cípio da solidariedade como elementos regu­ campo da abordagem marxista, Ian Gough
ladores da vida social. Os mecanismos do se­ desenvolve uma explicação para a origem e
guro e as possibilidades inscritas pela desco­ desenvolvimento dos programas sociais —
berta do cálculo das probabilidades estarão creio eu — bastante distinta daquela desen­
na base desse processo. volvida por O’Connor. É preciso ressaltar,
Desse modo, a adoção da lei sobre aci­ contudo, que Gough afirma explicitamente
dentes de trabalho de 1898 testemunha a he­ estar de acordo com O’Connor. Como vere­
gemonia da doutrina da solidariedade, novo mos, isto é em parte verdade; no entanto, co­
diagrama de regulação que estabelece que a mo pretendo demonstrar, a análise desenvol­

22
vida por Gough ieva em consideração variá­ está constrangido pelos imperativos do pro­
veis analíticas não consideradas na aborda­ cesso de acumulação” (Gough, 1979, p. 44).
gem da “teoria da crise fiscal”, variáveis essas Assim, ainda que o aparato estatal seja
que apontam para uma abordagem particu­ relativamente autônomo nas sociedades ca­
lar do fenômeno do welfare state. pitalistas, ele deve agir para responder aos
Por outro lado, é importante ainda es­ imperativos do processo de acumulação de
clarecer que, para Ian Gough, o welfare state capital. Seja porque os funcionários do Esta­
significa uma das facetas do Estado capitalis­ do são de origem burguesa e, portanto, par­
ta contemporâneo, sua faceta social. Segun­ tilham da ideologia da classe dominante; seja
do o autor, existe o Estado e suas atividades porque a burguesia tem recursos econômi­
de welfare: os programas sociais. O welfare cos para exercer pressão política; seja ainda
state, portanto, ainda que qualifique a natu­ porque ignorar a acumulação de capital po­
reza do Estado nos países de desenvolvimen­ de implicar a evasão de capitais das econo­
to capitalista avançado, diz respeito essen­ mias nacionais e, portanto, minar as bases
cialmente àquelas atividades estatais referen­ fiscais do Estado-nação; enfim, fundamental­
tes à reprodução da classe trabalhadora ou â mente, a economia capitalista tem uma ra­
manutenção daquela parcela da população cionalidade à qual o Estado deve submeter-se.
que não produz diretamente, qual seja, a po­ Até aqui, portanto, Gough está bastan­
pulação não-trabalhadora.31 Assim, o espec­ te próximo de O ’Connor. Para ele, as políti­
tro do welfare state é bastante reduzido: ele cas sociais desempenham funções relativas ã
diz respeito aos programas de corte social, os garantia da acumulação de capital, à repro­
quais garantem as condições de reprodução dução da força de trabalho e à legitimação
do conjunto da população. social. A partir daí, contudo, Gough — ao
Feitas estas ressalvas, vejamos então em criticar as teorias correntes — rejeita uma vi­
que consiste a abordagem de Ian Gough, tal são marxista estreita, segundo a qual o Esta­
como desenvolvida no livro The Political do seria essencialmente uma criatura do ca­
Economy o f the Welfare State. pitalismo e, neste sentido, inteiramente sub­
Ao criticar as teorias correntes sobre o misso à classe dominante e sua dinâmica de
welfare state, Gough rejeita as abordagens de acumulação. Para o autor, dado o fato de
cunho funcionalista, segundo as quais um fe­ que os avanços sociais ocorrem no interior
nômeno é produzido como resposta às ne­ do modo de produção capitalista, não há co­
cessidades que o geraram. Situando-se no mo evitar o dado da existência de uma classe
campo do marxismo, afirma que o welfare dominante que objetiva maximizar lucros. Is­
state é um fenômeno do capitalismo em um to implica que o processo de acumulação ca­
estágio particular de seu desenvolvimento e, pitalista estabelece um limite para a expan­
mais especificamente ainda, das sociedades são das políticas sociais. Deste modo, no li­
capitalistas avançadas. Ao situar a crescente mite, a expansão do welfare state é barrada
expansão do Estado no campo social como pelas possibilidades postas pela acumulação
um fenômeno do capitalismo, Gough quer e pela própria capacidade de financiamento
dizer que é o processo de acumulação capi­ dos programas sociais.
talista que gera incessantemente “necessida­ No entanto, as “exigências funcionais”
des” ou “demandas” para a política social; a ou “constrangimentos” impostos pelo pro­
resposta do Estado sob a forma de políticas cesso de acumulação de capital não são sufi­
sociais representa uma resposta a necessida­ cientes para explicar a origem dos programas
des geradas no e pelo modo de produção ca­ sociais. Tais demandas (ou necessidades)
pitalista, mais especificamente, pelo processo constituem apenas o ponto de partida da
de acumulação de capital. Do ponto de vista análise. E é precisamente neste ponto que
daqueles que formulam as políticas estatais Gough começa a se afastar de O’Connor:
“(...) quem quer que seja que ocupe tais posições “(...) Nós observamos aqui o m odo pelo

23
qual o desenvolvimento capitalista cria no­ capacidade de pressão da classe trabalhado­
vas ‘exigências’ para a intervenção estatal ra. Como ele diz:
no cam po do welfare. E ste é apenas o ponto
“O papel de pressão das classes subordina­
de partida; entretanto, disto não decorre
das, e outros grupos organizados de pres­
que estes requerim entos serão necessaria­
são a elas associados, é de reconhecida im­
m ente traduzidos em legislação social e
portância na explicação da introdução das
provisão social." (Gough, 1979, p. 17). medidas de welfare.” (Gough, 1979, p. 58).
Ou ainda: Este papel de pressão da classe traba­
“Uma implicação que pode ser extraída é lhadora organizada pode assumir várias for­
que o m odo de produção gera certas exi­ mas (pressão de massa extraparlamentar,
gências funcionais no cam po das políticas força no parlamento, reação ao desenvolvi­
de welfare, os quais o E stado ou outro cor­
mento de um movimento de massa inde­
po externo à atividade econômica deve ne­
cessariam ente atender. Enfaticam ente, esta
pendente etc.). A história dos distintos países
não é nossa posição. E proveitoso e útil é reveladora das diferentes formas por meio
analisar as m utantes exigências funcionais das quais a classe trabalhadora inseriu suas
das econom ias capitalistas como o fizemos, reivindicações no campo da atuação estatal.
mas disto não se segue que o E stado neces­ Diferentes formas e graus de intensidade
sariam ente desem penhará tais funções.” dessa capacidade de pressão implicariam, se­
(Gough, 1979, pp. 37-8). gundo o autor, distintas modalidades de
Segundo o autor, a separação entre as prestação de serviços sociais — portanto,
esferas política e econômica, própria do capi­ uma certa variação na morfologia dos pro­
talismo, e, portanto, a relativa autonomia do gramas adotados.
Estado permite a existência de uma significa­ Historicamente, a emergência de regi­
tiva margem de manobra no campo das deci­ mes democráticos, notadamente a consolida­
sões de âmbito estatal. O Estado não age de ção do sufrágio universal e da liberdade de
maneira nenhuma como um instrumento organização — os quais, são, segundo o au­
passivo de uma classe. Há espaço para que tor, uma conquista da classe trabalhadora —,
foi acompanhada do surgimento de partidos
os vários órgãos do Estado possam dar ori­
de base operária ligados a sindicatos operá­
gem a políticas, para que possam revertê-las,
rios de massa. Nas circunstâncias do pós-
ou fazer escolhas, e mesmo para cometer
guerra, consolidou-se um movimento social
erros. Isto não significa, contudo, aceitar a
forte e coeso que gerou como seu contra­
abordagem pluralista — outra corrente de ponto a consciência e organização de classe
análise criticada pelo autor. Obviamente, a por parte dos capitalistas. Este movimento se
premissa de um Estado inserido no modo de expressa — e aqui novamente o autor se
produção capitalista, submetido aos cons­ apóia em O’Connor — na reestruturação do
trangimentos explicitados anteriormente, im­ aparelho estatal em direção a uma crescente
plica conclusões bastante distintas daquelas concentração decisória no Executivo. É por
desenvolvidas pelos pluralistas, para os quais isto que, para ele, a forma estatal na vigência
o aparelho estatal é encarado como neutro. do welfare state 6 o Estado centralizado. A
Para Gough, no interior do aparelho de centralização seria, portanto, uma reação
Estado, há espaço para que a luta de classes, consciente e organizada da classe capitalista
que se expressa sob a forma de lutas sociais, à intensidade dos conflitos de classe.
possa dar origem a programas que melho­ Em outros termos, o autor mantém a
rem as condições de vida da classe trabalha­ perspectiva marxista, segundo a qual o Esta­
dora. Esta visão conflitualista do aparelho de do age essencialmente na defesa dos interes­
Estado permite ao autor distinguir um se­ ses da classe capitalista. No entanto, é a
gundo importante elemento explicativo da ameaça de um movimento social forte (sob a
origem do welfare state. Este diz respeito à forma de greves, derrotas eleitorais, movi-

24
mentos revolucionários) que faz com que a cassez de mão-de-obra, criou uma consciên­
classe capitalista pense e aja de forma coesa cia de classe entre os capitalistas, implicando
e estratégica e, portanto, reestruture o apa­ a reformulação do Estado, reformulação es­
rato estatal para esta finalidade. Diz o autor: ta que explica a emergência de um Estado
“(...) os fatores que influenciam o desenvol­ com face social. Ainda que o caráter contra­
vimento de políticas sociais são: (1) a luta e ditório das relações entre capital e trabalho
influência da classe trabalhadora; (2) a cen­ no capitalismo implique que a harmonia apa­
tralização do Estado; e (3) a influência dos rente de interesses se rompa rapidamente, é
primeiros sobre este últim o (...) E stes fato­ inegável o fato de que, nesse período, oco­
res não são de m odo algum exaustivos, mas
rreu um acordo entre aquelas duas classes
constituem (...) os principais determ inantes
fundamentais e a classe trabalhadora incor­
do welfare state.” (Gough, 1979, p. 68).
porou-se ao capitalismo. Diz Ian Gough:
Ou ainda: “ O papel dos governos trabalhistas e social-
“Nós distinguimos dois fatores im portantes dem ocratas no desenvolvimento do welfare
na explicação do crescimento do welfare state, bem como no Estado intervencionis­
State: o grau de conflito social, e especial­ ta, tem sido crucial. Ele reflete a progressi­
m ente a força e form a de luta da classe tra ­ va incorporação da classe trabalhadora, por
balhadora, e a habilidade do E stado capita­ interm édio de seus sindicatos e partidos, às
lista em form ular e im plem entar políticas sociedades capitalistas avançadas (...)”
de m odo a assegurar no longo prazo a re­ (Gough, 1979, p. 67).
produção das relações capitalistas de p ro ­
Ou ainda:
dução.” (Gough, 1979, p. 64).
“A emergência do welfare state, como uma
Neste sentido, mesmo a reformulação parte do acordo do pós-guerra entre capital
do Estado em direção a formas mais centra­ e trabalho, e de uma estrutura geralmente
lizadas de formulação de políticas — ainda mais intervencionista foi um fenômeno ge­
que sua gestão possa ser delegada ãs instân­ neralizado deste período (...)” (Gough,
cias locais — foi essencialmente uma reação 1979, p. 70).
da classe capitalista, ameaçada em sua repro­ Assim, segundo o autor, no pós-guerra
dução pela força do movimento social orga­ consolida-se uma aliança entre capital e tra­
nizado. No caso do welfare state, isto impli­ balho, a qual seria a base do boom econômi­
cou, no período do pós-guerra, a coincidên­ co ocorrido nas duas décadas seguintes. Nes­
cia de interesses entre capital e trabalho, ain­ ta estratégia mais geral, as políticas sociais
da que por diferentes razões. Isto é, nos pe­ ocuparam um lugar destacado.
ríodos de inovação e crescimento das políti­ Em resumo, para explicarmos a origem
cas sociais, ambas as classes fundamentais do fenômeno do welfare state nos termos de
(burguesia e proletariado) viam tais políticas Ian Gough, é necessário considerá-lo como
como sendo de seu interesse, ainda que por um fenômeno do modo de produção capita­
razões absolutamente distintas. A classe tra­ lista. De um lado, seus limites estão postos
balhadora, porque qualquer política que ate­ pela dinâmica de acumulação de capital e
nue as dificuldades e modifique o jogo cego pelas estratégias destinadas a preservá-la. De
das forças de mercado é bem-vinda. A classe outro lado, os programas sociais têm sua ori­
capitalista, porque isto reduz o descontenta­ gem na força e forma de pressão da classe
mento da classe trabalhadora, provê novas trabalhadora organizada que, na defesa de
modalidades de integração e controle sobre seus interesses de classe, coloca crescente­
esta classe e oferece ainda benefícios ideoló­ mente novos desafios à dinâmica da explora­
gicos e econômicos. ção de classe. No caso específico do welfare
Em outras palavras, em uma conjuntu­ state, fenômeno do pós-guerra nas econo­
ra específica — a do pós-guerra —, a capaci­ mias capitalistas avançadas, o enfrentamento
dade de pressão dos movimentos sociais, for­ histórico das duas classes antagônicas assu­
talecida pelo crescimento econômico e a es­ miu a forma de um movimento social organí-

25
zado e de uma resposta da classe capitalista, neste autor e neste seu trabalho específico,
sob a forma do Estado centralizado. Naque­ como, para explicar a expansão dos serviços
la conjuntura, esse enfrentamento histórico e suas formas de desenvolvimento, foram
(a luta de classes) implicou a consolidação de adotadas variáveis analíticas pouco comuns
um compromisso de classe, acordo este que às análises marxistas e, na verdade, mais pró­
será, contudo, provisório, dados os limites colo­ ximas daqueles autores por ele chamados de
cados pelo modo de produção capitalista. funcionalistas.
Se a origem do welfare state é explicada
Há diferentes welfare states: e/es são
nos termos acima mencionados, seu desen­ resultado da capacidade de mobilização
volvimento (ou sua expansão) é visto em ter­ de poder da classe trabalhadora no
mos essencialmente incrementais. Com efei­ interior de diferentes matrizes de poder
to, a expansão dos programas sociais é medi­
Em um trabalho seminal datado de
da pelo significativo crescimento do gasto es­
1985, baseado em uma análise comparativa
tatal desde a Primeira Guerra Mundial, mas,
sobre 18 países capitalistas desenvolvidos,
sobretudo, porque neste movimento a ex­
Gosta Esping-Andersen analisa os condicio­
pansão do gasto em programas sociais foi
nantes da existência de distintas formas de
mais do que proporcional ao crescimento
desenvolvimento do welfare state. É impor­
dos demais setores. Sáo quatro, segundo tante destacar a importância de sua contri­
Gough, as razões do brutal crescimento dos buição para as pesquisas comparadas no
gastos sociais: campo do welfare state. Mais do que distin­
(a) a elevação dos custos relativos dos guir a existência de três distintos regimes de
programas. Caracterizados pelo uso intensi­ distribuição de serviços sociais — esforço,
vo de mão-de-obra, a ampliação dos serviços aliás, já enunciado por Titmuss —, Esping-
implica a ampliação das contratações. Este Andersen articula sua existência às condições
movimento, associado a um fortalecimento de sua emergência, vale dizer, à matriz de
dos sindicatos de servidores püblicos, impli­ poder que os tornam viáveis.
cou substantiva elevação dos custos das polí­ O autor parte da hipótese, desenvolvida
ticas sociais, essencialmente em termos de em um outro trabalho, de que a “(...) refor­
custos salariais; ma social foi uma questão vital desde o início
(b) mudanças populacionais: alterações do processo de organização da classe traba­
na estrutura etária da população, notada- lhadora, quer esta tenha ocorrido sob lide­
mente, o crescimento da população depen­ ranças reformistas ou revolucionárias” (Es­
dente (velhos e/ou crianças); ping-Andersen, 1985a, p. 146).
(c) ampliação dos serviços, quer sob a Assim, segundo ele, a defesa das políti­
forma de extensão da cobertura a novas ca­ cas sociais fez parte do próprio processo de
tegorias populacionais, quer sob a forma de constituição da classe trabalhadora enquanto
melhorias no nível dos serviços; classe “para si”. Dito de outro modo, a classe
(d) ampliação das necessidades sociais: trabalhadora tem objetivos históricos de
alterações na estrutura de necessidades da emancipação, quais sejam, a desmercadori-
população como resultado do desenvolvi­ zação da força de trabalho e do consumo, a
mento do capitalismo, isto é, mudanças na reestratificação da sociedade de acordo com
sociedade e na estrutura familiar em conse­ o princípio da solidariedade, correções redis-
qüência da dinâmica de acumulação de capital. tributivas das desigualdades produzidas pelo
Assim, segundo Ian Gough, uma vez es­ mercado e a institucionalização do pleno em­
tabelecidos os direitos sociais que dão ori­ prego. O debate em torno da possibilidade
gem ao welfare state, abre-se um canal para de que a adoção das políticas sociais viesse a
obter incrementos aos programas, movimen­ constituir-se em um instrumento da constru­
to este que explica o desenvolvimento dos ção e fortalecimento destes objetivos fez par­
programas sociais. É interessante observar, te da formação mesma dos movimentos ope­

26
rários. Progressivamente, a concepção social- tre essas variáveis, é preciso, no entanto,
democrata de que a reforma social contribui­ melhor qualificá-la, dado que essa relação
ria para o fortalecimento da capacidade de não é linear, isto é, não se pode afirmar que
pressão da classe trabalhadora viabilizou-se quanto maiores os recursos de poder da clas­
como uma alternativa real de política. se trabalhadora, maiores foram os resultados
“A política social, portanto, tornou-se uma (re)distributivos das políticas sociais. Diz o
arena para a acum ulação de recursos de autor:
poder da classe trabalhadora, cujo princí­ “(...) é im portante reconhecer que esta re­
pio de atuação seria substituir as trocas via lação [entre a força do movimento popular
m ercado pela distribuição social e os direi­ e resultados distributivos] não pode ser es­
tos de propriedade por direitos sociais.” tritam ente linear. Níveis similares de m obi­
(Esping-Andersen, 1985b, p. 228). lização da classe trabalhadora podem dar
Além disto, historicamente, para além lugar a resultados substancialmente dife­
do ponto de vista teórico ou ideológico, a im­ rentes, dada a estrutura de poder.” (E s­
plementação de políticas sociais foi expres­ ping-Andersen, 1985b, p. 223).
são de conflitos distributivos que opuseram a Em outras palavras, os resultados distri­
esquerda e a direita em cada país analisado. butivos das políticas sociais são distintos,
Nestes termos, a implementação (ou não) de mesmo entre países com níveis similares de
políticas sociais regidas por princípios ligados capacidade de pressão da classe trabalhado­
aos interesses emancipatórios da classe tra­ ra. Para avançar na compreensão da diversi­
balhadora é, na verdade, reveladora da for­ dade dessa relação, é preciso, de um lado, es­
ma pela qual se resolveu em cada país o con­ tabelecer uma forma de medir os recursos
flito distributivo. de poder dessa classe, construindo indicado­
É por isto que seu livro chama-se Poli- res que permitam evidenciar aquela varia­
tics against Markets; precisamente, porque se ção. De outro lado, é necessário contextuali-
trata de observar, para cada país, a forma zá-los em uma matriz de poder que permita
pela qual a politics, entendida como uma explicar seu poder de impacto. É da combi­
matriz de poder, traduz-se em policies, cujo nação de graus distintos de expressão daque­
conteúdo revela a solução de conflitos distri­ la capacidade de pressão em distintas matri­
butivos. Tais soluções são, por sua vez, nada zes de poder político que se pode explicar a
mais nada menos que distintas modalidades variação das formas institucionais de presta­
de relação com os princípios de mercado. ção de serviços sociais, isto é, os distintos re­
Como decorrência destas premissas, ob­ gimes de política social.
serva Esping-Andersen, as variáveis analíti­ Os recursos de poder político da classe
cas a serem consideradas são de corte políti­ trabalhadora são avaliados pelo grau de or­
co e institucional. São elas: a capacidade de ganização sindical e pela força da esquerda
pressão da classe trabalhadora na defesa de no parlamento. Esta é medida, para efeitos
seus objetivos históricos e as características comparativos, pelo peso das cadeiras dos
institucionais do w elfare State. A questão partidos socialistas e pelo controle do gabi­
central a ser respondida é “(...) se, e sob nete no parlamento em um período relevan­
quais condições, a mobilização de recursos te de tempo, para cada país. A hipótese do
de poder político da classe trabalhadora afe­ autor é a de que os recursos de poder dos di­
ta as características distributivas e institucio­ versos interesses organizados em uma dada
nais do desenvolvimento do welfare State.” sociedade traduzem-se em disputas eleitorais
(Esping-Andersen, 1985, p. 223). pelo controle do Legislativo e do Executivo.
Na análise dos 18 países capitalistas Por sua vez, as maiorias eleitorais assim
avançados selecionados em sua amostra, es­ construídas somente podem traduzir seus in­
sa correlação é altamente positiva. Se é ver­ teresses em políticas efetivas, (policies) caso
dade que existe uma correlação positiva en­ os representantes destes interesses permane­

27
çam um período significativo de tempo no se pode afirmar haver distintos regimes de
poder. Justifica-se, assim, o uso de indicado­ welfare state, os quais constituem, na verda­
res tais como “tempo de controle socialista de, diferentes soluções políticas para o con­
do gabinete parlamentar” e “peso dos socia­ flito distributivo no interior das sociedades.
listas no parlamento, medido pelo número Tais diferenças são explicadas por distintas
de cadeiras” para avaliar os recursos políti­ matrizes de poder, no interior das quais os
cos de poder da classe trabalhadora.32 movimentos de trabalhadores conseguem in­
Por outro lado, a necessidade de con- serir de modo distinto os interesses emanci-
textualizar tais indicadores em uma matriz patórios da classe operária.
de poder é fundamental, dado que o poder é Três são os regimes de welfare State
um fenômeno relacional. Dois são os indica­ identificados pelo autor em sua pesquisa:34
dores centrais para a composição dessa ma­ (a) regime social-democrata, desenvolvi­
triz: o grau de unidade política dos partidos do fundamentalmente no norte da Europa,
não-socialistas (ou da “direita”) e o padrão mais especificamente, nos países escandina­
de construção de alianças dos partidos da vos. Nestes, o movimento operário foi capaz
classe trabalhadora. Assim, em termos bas­ de traduzir seus objetivos históricos em polí­
tante simplificados, uma vez que a “esquer­ ticas sociais de um certo tipo, dado que foi
da” esteja no poder, a possibilidade de obter capaz de expressar-se politicamente através
mudanças radicais aumenta quanto maior de partidos social-democratas, os quais man­
for a tendência ao fracionamento da “direi­ tiveram o controle parlamentar por significa­
ta” e, portanto, menor for a possibilidade de tivos períodos de tempo. Países nos quais os
mobilização de forças contrárias às iniciativas partidos não-socialistas tendem a fracionar-
do gabinete socialista. Contrariamente, a se e onde os socialistas foram capazes de for­
tendência ao isolamento em partidos operá­ jar alianças com a pequena burguesia e os
rios de tipo ghetto dificulta a composição das proprietários rurais conseguiram implemen­
maiorias necessárias à aprovação de medidas tar políticas sociais caracterizadas pelos prin­
de caráter fortemente conflitivo.33 cípios social-democratas. O welfare state as­
Os três modelos de welfare State propos­ sim construído caracterizar-se-ia por um sis­
tos por Esping-Andersen são construídos a tema de proteção social abrangente, com co­
partir de distintas composições dessas variá­ bertura universal, e com benefícios, garanti­
veis. Em outras palavras, as características dos como direitos, cujo valor é desvinculado
institucionais e distributivas dos sistemas de do montante de contribuição efetuado pelo
prestação de serviços sociais dos países sele­ beneficiário. Trata-se de assegurar padrões
cionados permitem agrupá-los segundo dis­ mínimos vitais, distribuídos segundo critérios
tintos regimes ou modelos de política social. de equalização, e não de mérito.
A explicação, seja para a diversidade encon­ (b) regime ou modelo conservador, pre­
trada entre os 18 países, seja para a seme­ dominante na Europa continental, em países
lhança que permite falar em modelos, estaria como Alemanha, Áustria, França, Japão,
nas trajetórias históricas similares. Bélgica e Itália. Trata-se de países nos quais
Portanto, para Esping-Andersen, dife­ a Igreja teve um poderoso papel nas refor­
rentemente do que previam os defensores da mas sociais e onde o absolutismo era forte,
convergência, no processo mesmo de emer­ sendo portanto lentamente abolido; países,
gência dos programas sociais — desenvolvi­ portanto, nos quais a revolução burguesa foi
mento este que ocorre fundamentalmente fraca, incompleta ou mesmo ausente. Mar­
no pós-guerra — os países analisados ten­ cado pela iniciativa estatal, este modelo favo­
dem a divergir quanto às características insti­ receu um ativo intervencionismo estatal des­
tucionais sob as quais prestam serviços so­ tinado a promover lealdade e subordinação
ciais. Esta divergência, contudo, está subme­ ao Estado e deter a marcha do socialismo e
tida a algumas regularidades, de forma que do capitalismo. Presente em países onde os

28
movimentos operários foram influenciados formas de intervenção do Estado na área so­
pelo catolicismo, tais sistemas de proteção cial já indicado por alguns autores porém
são fortemente marcados pelo corporativis­ pouco desenvolvido. Em segundo lugar, ao
mo e por esquemas de estratificação ocupa- demonstrar a existência de uma correlação
cional. A promoção de marcadas diferenças entre distintos regimes de welfare state e dis­
de status na distribuição das contribuições e tintas condições políticas para sua emergên­
benefícios estaria submetida ao objetivo polí­ cia e desenvolvimento, ele fornece uma via
tico de consolidar divisões no interior da clas­ extremamente fértil e original para a explica­
se trabalhadora. Em vários países, o legado ção do fenômeno, seja pelos indicadores uti­
conservador representou um forte obstáculo lizados, seja pelo tratamento dado a estes in­
ãs reformas de orientação social-democrata dicadores.
quando este partido veio a assumir o poder;
por exemplo, no caso da Alemanha e Áus­ O welfare state é resultado de
tria. configurações históricas particulares de
(c) regime ou modelo liberal, predomi­estruturas estatais e instituições políticas
nante nos países de tradição anglo-saxônica, Ainda que construída mediante um diá­
como os Estados Unidos, Austrália, Canadá,
logo intelectual com autores de diversos paí­
Suíça e, em certa medida, a própria Grã- ses, são sobretudo autores americanos que
Bretanha. Trata-se de países nos quais os produziram a parte mais significativa dos tra­
movimentos operários são fracos eleitoral­ balhos que se orientam pelos princípios ana­
mente e o impulso burguês foi especialmen­ líticos da assim chamada análise neo-institu-
te forte na constituição da sociedade. Con­ cionalista. Theda Skocpol, Ann Shola Orloff
trariamente ao modelo social-democrata, as e Margareth Weir são autoras que segura­
políticas sociais no regime liberal são dese­ mente desenvolveram, para os casos norte-
nhadas de modo a maximizar o status de americano, inglês e canadense, as pesquisas
mercadoria do trabalhador individual. As po­ mais importantes dessa corrente analítica.
líticas implementadas caracterizam-se siste­ No entanto, as próprias autoras admitem
maticamente pela seleção via testes-de- que um dos trabalhos pioneiros nessa pers­
meios, de modo a distinguir os beneficiários pectiva é de autoria de Hugh Heclo, Modem
segundo um critério caro aos padrões libe­ Social Politics in Britam and Sweden.
rais: o mérito. Financiados, basicamente, pe­ Em termos bastante gerais, para os neo-
la contribuição individual e vinculando con­ ínstitucíonalistas, a variável analítica funda­
tribuição a benefício, tais regimes tendem a mental para a compreensão da emergência e
estabelecer estreitos limites para a interven­ desenvolvimento dos modernos sistemas de
ção estatal e máximo escopo para o mercado proteção social está associada à natureza, ca­
na distribuição dos serviços. Ainda que se pacidades e estrutura das instituições do Es­
possa ter, sob tais regimes, princípios univer- tado. Seguindo a tradição weberiana, o pres­
salistas, trata-se fundamentalmente de uni­ suposto da análise é de que o Estado é autô­
versalizar as oportunidades — e não os re­ nomo em relação à sociedade civil, o que
sultados —, de modo a estimular a capacida­ permite analisar a lógica de ação das buro­
de do indivíduo de se autoproteger. cracias públicas, sejam elas indicadas ou elei­
A contribuição de Esping-Andersen es­ tas, como uma variável independente. A tra­
tabeleceu uma espécie de “ponto de não-re- dição weberiana sustenta que o Estado tem
torno” no debate sobre as origens e a evolu­ funções próprias, vale dizer, o Estado é uma
ção do welfare state. Em primeiro lugar, ao organização que busca exercer controle so­
operar analiticamente com as formas institu­ bre determinado território, que estabelece
cionais de prestação de serviços sociais e seu relações geopolíticas de comunicação, domi­
caráter distributivo, o autor propõe um ca­ nação e competição com outros Estados e
minho de classificação da variabilidade das que deve manter a ordem interna. Por esta

29
razão, os atores vinculados ao Estado, mais sistema de partidos políticos (Skocpol, 1992,
especificamente, as burocracias podem for­ p. 41). Portanto, mais do que autônoma, a
mular e perseguir objetivos próprios, que ação do Estado tem influência sobre a cultu­
não são um reflexo nem um subproduto dos ra política, sobre a ação política coletiva e so­
interesses presentes e organizados na socie­ bre a formação de questões políticas.
dade civil. Por exemplo, é interessante observar a
Baseados nessa premissa, os autores fi­ crítica que esses autores fazem aos trabalhos
liados a essa corrente opõem-se a todas as que, segundo eles, estão orientados pela
demais correntes que vêem a ação do Estado perspectiva da luta de classes. Tais trabalhos
(e, portanto, a formulação e implementação teriam como pressuposto um determinado
de políticas sociais) como o resultado de fa­ modelo de estrutura estatal e partidária.
tores exógenos à esfera estritamente estatal, Mais especificamente, suporiam a existência
vale dizer, apenas como um subproduto seja de um Estado burocrático e centralizado e
da urbanização, seja do desenvolvimento de uma estrutura partidária na qual foi pos­
econômico, seja ainda da ação de grupos de sível a emergência de partidos parlamentares
interesses ou da luta de classes. Diferente­ e programáticos vinculados à classe operária.
mente, ainda que admitam que todos esses A existência de tais estruturas políticas e par­
fatores tenham um impacto na emergência tidárias, típicas do contexto europeu, é resul­
dos sistemas de proteção social, tado de configurações históricas específicas,
“(...) os institucionalistas argum entam que não generalizáveis. O fato de que não se te­
a capacidade estatal (state capacity) para nha considerado este dado deu substância à
planejar, adm inistrar e extrair recursos é hipótese de que a classe operária pode tra­
uma precondição para a emergência de m o­ duzir seus interesses em políticas sociais sem­
dernos program as sociais, tais como pen­
pre que seu partido se conserve nacional­
sões e seguridade social, e que o contexto
institucional — o caráter, capacidade e es­
mente no poder por um longo período de
trutura do E stado e das instituições políti­ tempo. Em outras palavras, não seria apenas
cas — afeta as orientações, a capacidade e a existência de uma determinada matriz de
organização política popular e das elites e, poder (nos termos de Esping-Andersen) que
portanto, a form ação de coalizões políticas explicaria a emergência do welfare state de
entre as classes.” (Orloff, 1993, p. 83). tipo europeu, mas — o que é qualitativa­
Enfim, as burocracias públicas têm inte­ mente distinto -r- a formação histórica de
resses próprios;35 tais burocracias consoli­ um determinado tipo de Estado (burocrático
dam-se em condições históricas particulares e centralizado) e de uma determinada estru­
e, além disso, sua emergência é uma pre­ tura partidária (com partidos de tipo progra­
condição para a emergência dos modernos mático) é que explicariam as condições de
sistemas de provisão de serviços sociais. existência de tal “matriz de poder”. O caso
Um segundo pressuposto analítico é o norte-americano seria, assim, uma evidência
de que as estruturas institucionais do Esta­ clara da insuficiência desse argumento, dado
do, tais como se conformaram historicamen­ que ali se conformou historicamente um ou­
te em cada país, influenciam a formação e o tro tipo de Estado e partidos de outra natu­
desenvolvimento dos interesses e das modali­ reza (Weir,Orloff e Skocpol, 1988, pp. 16ss).
dades de ação dos grupos da sociedade civil. Antes, contudo, de examinar mais deta­
Assim, se as origens e transformações dos lhadamente o conjunto de premissas que
sistemas nacionais de provisão de serviços orientam os trabalhos dessa corrente, é ne­
sociais são explicadas pelo sistema político (o cessário fazer um parêntese para esclarecer
que compreende o conjunto das instituições o percurso pelo qual os autores a ela ligados
decisórias), a atividade política (de políticos e efetuaram um certo deslocamento de uma
grupos de pressão) é condicionada peias con­ perspectiva state-centered para uma perspec­
figurações institucionais dos governos e pelo tiva polity-centered. Com efeito, o primeiro

30
grande trabalho — uma espécie de livro fun­ mular e implementar políticas públicas de
dador — da corrente neo-institucionalista forma mais ou menos autônoma das pres­
chama-se Bringing the State Back in, publica­ sões societais.
do em 1985, no qual Peter Evans, Dietrich (3) Os recursos de poder das burocra­
Rueschemeyer e Theda Skocpol organizam cias são, por sua vez, derivados do processo
um conjunto de textos de vários autores em de formação do Estado, particularmente, do
que os pressupostos acima explicitados fo­ fato de que tenha ocorrido (ou não) a conso­
ram desenvolvidos. lidação de estruturas burocráticas previa­
Na introdução ao livro, Theda Skocpol mente ã plena liberalização e democratiza­
alinhava os pressupostos analíticos que, se­ ção dos sistemas políticos nacionais. A se­
gundo ela, já orientavam uma quantidade qüência histórica democratização/burocrati-
muito grande de trabalhos, mas que não ti­ zaçâo é fundamental na análise proposta pe­
nham sido até então apresentados como tal. los neo-institucionalistas, dado que ela condi­
Tratava-se, naquele momento, de rejeitar os ciona a natureza das burocracias públicas, o
argumentos de correntes de tipo society-cen- ator central da análise. Vejamos.
tered, segundo as quais a ação estatal seria A liberalização do voto anteriormente ã
resultado de fatores exógenos ã dinâmica in­ plena consolidação de estruturas burocráti­
terna das instituições estatais. Por esta razão, cas (no sentido weberiano do termo) tende­
conforme este texto, a variável explicativa ria a reduzir o grau de bureaucratic insula­
central para a emergência e desenvolvimento tion, porque, nessas circunstâncias históricas,
do welfare state é o papel das burocracias es­ os partidos tenderiam a consolidar-se diante
tatais e dos reformadores sociais. As variá­ do eleitorado utilizando os recursos estatais
veis explicativas ali propostas são um desdo­ como moeda de troca. As estruturas admi­
bramento dessa premissa: nistrativas seriam, portanto, prisioneiras da
(1) As burocracias públicas desempe­ patronagem política. Ao contrário, o desen­
nham um papel central nas reformas sociais, volvimento e consolidação das burocracias
um papel de liderança. O conteúdo de sua — ou, ainda, o sucesso de reformas adminis­
ação é explicado pela avaliação que têm das trativas visando à sua autonomia — anterior­
políticas anteriormente estabelecidas. A mente ã plena liberalização do voto daria a
aprendizagem social de tais políticas ocorre elas maior capacidade de resistência às pres­
no âmbito da opinião pública e dos partidos sões pela prestação de serviços sociais de ti­
políticos, mas é avaliada de uma determina­ po “clientelístico”, condicionando, assim, a
da forma pelos formuladores das políticas, formação de partidos políticos de tipo pro­
condicionando o conteúdo das políticas pú­ gramático, dado que o apelo ao eleitorado
blicas propostas. O conceito de policy feed- não poderia ser feito mediante a concessão
back diz respeito a este efeito de retorno das de favores. Este seria, por exemplo, o caso
políticas prévias sobre as políticas futuras. de países europeus nos quais a existência
Observe-se que, dado o papel estratégico das prévia de monarquias constitucionais viabili­
burocracias nos processos de inovação em zou a consolidação de burocracias públicas
políticas públicas, é essencialmente neste anteriormente à universalização do sufrágio.
âmbito que se operam os processos de Portanto, nesse estágio da reflexão neo-
aprendizagem política e de policy feedback . instituçionalista, são sobretudo os “órgãos
(2) As capacidades estatais — uma pre- administrativos do Estado” que constituem o
condiçâo para a emergência de modernos foco central da análise. Ainda que os interes­
sistemas de proteção social — são medidas ses societais e suas formas de representação
pelo grau de burocratização e centralização sejam uma variável analítica, o são sobretu­
do Estado, mais especificamente ainda, pelo do do ângulo do exame das capacidades es­
grau de bureaucratic insulation. Esta diz res­ tatais e, portanto, da relação.das burocracias
peito à capacidade das burocracias de for­ com atores não-estatais.

31
Em seus trabalhos mais recentes, as au­ das demais correntes, os neo-institucionalis-
toras ampliam o escopo da análise para a es­ tas argumentam que mudanças econômicas
trutura político-institucional. Se na perspecti­ e demográficas, mudanças ideológicas e
va state-centered a reconstituição da forma­ pressões políticas do movimento popular ti­
ção do Estado nacional é importante para veram impacto na origem dos modernos sis­
que se observe dominantemente a natureza temas de provisão de serviços sociais, mas
das burocracias estatais, na perspectiva po- seus efeitos ocorreram no interior de estru­
lity-centered há alterações importantes nas turas institucionais e políticas específicas.
variáveis analfticas adotadas: (a) as burocra­ Tais dimensões do Estado e do sistema polí­
cias passam a ser tanto as eleitas quanto as tico condicionam decisivamente o timing e o
indicadas; (b) a análise da formação histórica caráter das políticas sociais implementadas,
do Estado nacional torna-se importante para dado que é no interior dessas estruturas que
que se observe o caráter e a natureza do as políticas são formuladas e “aprovadas”.
conjunto das estruturas políticas (estatais e Diz Ann Shola Orloff:
partidárias); (c) as formas históricas de inte­
“(...) analistas devem com eçar a explorar a
ração entre estrutura estatal e instituições extensão em que os funcionários públicos
políticas explicam a natureza das instituições agem autonom am ente no desenvolvimento
presentes e, finalmente, (d) a forma pela das políticas, bem como as formas pelas
qual tais estruturas condicionam as identida­ quais as instituições políticas e estatais con­
des, objetivos e capacidades dos grupos so­ formam a evolução das políticas. (...) inves­
ciais envolvidos na formulação de políticas tigações em profundidade do processo de
policy-making revelam que o caráter, as es­
passa a ser relevante.36
truturas e capacidades do E stado e das or­
É interessante observar que Theda ganizações políticas — bem como os fato­
Skocpol, em seu trabalho mais recente Pro­ res socioeconômicos — são importantes
tecting Soldiers and Mothers (1992), amplia a para que se entenda as políticas.” (Orloff,
noção de instituições, para incluir até mesmo 1993, p. 23).
a forma pela qual são selecionadas as elites
no interior do sistema político. Diz ela: Assim, a formação do Estado nacional
e, portanto, das estruturas políticas de cada
“Instituições governam entais, regras eleito­
país constitui variável central na análise. Ain­
rais, partidos políticos e as políticas públi­
cas anteriores — todas estas [variáveis], e
da que essa história não seja isolada, isto é, a
suas transform ações ao longo do tempo, formação do Estado nacional é explicada
criam m uitos dos limites e oportunidades concomitantemente por fatores de ordem
no interior das quais as políticas sociais são externa e interna, “cada caso é um caso”. E,
concebidas e m odificadas pelos atores poli­ pois, na história particular de cada país que
ticamente ativos no curso da história de um podem ser encontradas as variáveis específi­
país.” (Skocpol, 1992, p. 527; grifos da au­ cas de explicação de uma determinada forma
tora). de desenvolvimento dos sistemas de prote­
Assim, observe-se que mesmo as regras ção social.
eleitorais, entendidas como instituições polí­ Em outras palavras, se mudanças eco­
ticas, podem condicionar as formas pelas nômicas, demográficas e ideológicas e, fun­
quais organizam-se os interesses da socieda­ damentalmente, a capacidade do Estado pa­
de civil. É com base em tais regras que estes ra planejar, administrar e extrair recursos
logram inserir-se no sistema decisório e, por­ são uma precondição para a emergência dos
tanto, formulam suas estratégias e seus obje­ programas sociais modernos, a forma de seu
tivos. desenvolvimento está estreitamente relacio­
Feita esta introdução, vejamos então nada à formação do Estado nacional, à natu­
quais são as hipóteses centrais e o caminho reza das instituições políticas e aos processos
analítico indicado por esta corrente. de policy feedback, processos estes que são
Tentando incorporar as contribuições absolutamente particulares.

32
Ainda que Ann Shola Orloff, no seu Para esta corrente, a formação do Esta­
The Politics o f Pensions opere com a noção do nacional é uma variável independente;
de regime de política social (conceito este, uma vez consolidado em determinadas ba­
aliás, fortemente apoiado no conceito de mo­ ses, o Estado condicionará o caráter das ins­
delo de política social de Esping-Andersen), tituições políticas.
este é um recurso para que a autora com­
preenda as especificidades de distintos países 2. O contexto institucional:
no interior de um determinado regime de O processo de formulação e sustenta­
polftica social.37 ção política de uma determinada inovação
Três, são, portanto, os elementos cen­ política ocorre em um determinado contexto
trais da análise: institucional. Este nada mais é que o conjun­
to das organizações estatais e partidárias e
1. A formação do Estado nacional: dos procedimentos políticos existentes em
É na formação do Estado nacional que um determinado momento histórico. Em ou­
se definem as capacidades estatais e o grau tras palavras, a natureza e a forma das insti­
de autonomia do Estado. Esta formação é, tuições estatais e partidárias, tal como exis­
de um lado, condicionada por fatores de or­ tentes no momento histórico sob análise, es­
dem externa, relativos à posição do país no tabelecem os limites e as possibilidades para
sistema de relações internacionais, o que in­ a ação política dos atores interessados na
clui relações geopolíticas, ameaças de guerra, aprovação e implementação de uma deter­
necessidade de competição econômica; por minada proposta de inovação institucional.
outro lado, a formação do Estado é condi­ Essa combinação de elementos tem resulta­
cionada por fatores de ordem interna, tais dos decisivos sobre a natureza das policies,
como a seqüência burocratização/democrati- ou, dito de outro modo, sobre os resultados
zação, o interesse das elites e dos setores po­ das decisões políticas. Assim, essas variáveis
pulares na democracia e o grau de comercia­ constituem um elemento fundamental da
lização da economia.38 análise, uma vez que é em determinado con­
Distintas modalidades de combinação e texto institucional (que deve necessariamen­
evolução histórica dessas variáveis analíticas te ser contemplado na análise) que os fun­
explicariam a emergência de Estados nacio­ cionários públicos — eleitos ou indicados —
nais com características estruturais distintas, e os grupos politicamente ativos perseguirão
as quais, como já vimos, condicionam as ca­ seus objetivos.
pacidades estatais, vale dizer, a possibilidade Em suma, os mecanismos institucionais
estatal de formulação e implementação de (sejam eles regras formais ou estruturas con­
políticas. No caso norte-americano, por solidadas) no interior dos quais as políticas
exemplo, diferentemente do ocidente euro­ são formuladas e sustentadas politicamente
peu, não teria ocorrido um movimento de são essenciais para que se entenda a forma
burocratização do Estado (seja pela ausência das próprias políticas, porque uma determi­
de guerras no território, seja pela inexistên­ nada política (policy) 6 resultado da forma
cia de uma monarquia absolutista anterior) de ação dos grupos interessados em imple-
que conferisse identidade nacional â buro­ mentá-la, no interior de um contexto cujas
cracia. A massificação eleitoral foi anterior à regras de operação são específicas.
burocratização do Estado, o que condicio­ Ora, neste sentido, um dos elementos-
nou a formação de um sistema partidário chave da análise consiste no exame da ade­
de base regional e assentado sobre a patro- quação — ou não — entre os objetivos e ca­
nagem política. Este padrão de formação pacidades dos vários grupos politicamente
do Estado teria condicionado o ritmo e os ativos e os pontos de acesso e/ou alavanca­
padrões da social policy making do século gem de seus interesses que tais grupos en­
XIX até hoje (cf. Weir, Orloff e Skocpol, contram no interior das instituições políticas
1988). nacionais. Por exemplo, ao analisar as condi­

33
ções do sucesso da aprovação de uma mo­ como a política (polities) cria as políticas (po­
derna legislação de proteção às mães, nos licies), as políticas também recriam a políti­
EUA no início deste século, Theda Skocpol ca.” (Skocpol, 1992, p. 58).
argumenta ter ocorrido uma adequação en­ Em outras palavras, as políticas preexis­
tre a estrutura do movimento de mulheres tentes influenciam o debate político, a for­
que o propugnava (clubes de mães distribuí­ mação de coalizões e o desenvolvimento de
dos em todo o território nacional pressionan­ capacidades administrativas específicas; estas
do corpos legislativos de âmbito estadual) e são decisivas na moldagem das característi­
o contexto político-institucional no qual se cas da inovação institucional, seja do ponto
tomou aquele decisão naquele momento (a de vista do conteúdo das políticas propostas,
estrutura federativa norte-americana) (cf. seja na conformação das coalizões políticas
Skocpol, 1992) Em outras palavras, o suces­ de apoio e oposição a tais inovações. Por
so na obtenção de uma determinada policy
exemplo, a morfologia das políticas sociais
foi resultado da adequação entre as formas
dos EUA do século XIX teria desencorajado
de ação dos clubes de mães (grupo politica­
os liberais progressistas a imitar o sistema de
mente ativo interessado na implementação
pensões britânico. Nestas, havia uma forte
de um determinado programa social) e a for­
subordinação da distribuição dos benefícios
ma institucional no interior da qual era possí­
vel, naquele momento, aprovar uma deter­ ao sistema de patronagem dos partidos polí­
minada inovação em política social. ticos. Este sistema, avaliado negativamente
Segundo os autores, portanto, tais con­ pelos reformadores sociais, pela opinião pú­
textos institucionais, que podem alavancar blica e pelas burocracias, explicaria o forte
ou barrar as possibilidades de ação política apoio ao estabelecimento de regulamenta­
dos grupos politicamente organizados, são ções locais, com a finalidade de tirar o poder
historicamente mutantes. Para Skocpol (1992), das cortes e partidos (Wcir, Orloff e Skoc­
o sucesso de uma determinada inovação po­ pol, 1988). Por este processo, portanto, as
lítica depende, de um lado, da existência de políticas prévias, rejeitadas por seus traços
uma coalizão política interclasses sob a lide­ clientelísticos, teriam uma influência decisiva
rança de elites burocráticas e partidárias e, na resistência norte-americana à implanta­
de outro, da adequação de suas formas de ção de políticas sociais de caráter abrangente
ação política ao contexto institucional vigen­ e destituídas de critérios meritocrâticos de
te cm um determinado país no momento his­ avaliação.
tórico sob análise. Em direção oposta, o in­ A contribuição dessa corrente, assim co­
sucesso de programas de reforma ou de ten­ mo sua influência sobre os estudos mais re­
tativas de inovação política estaria relaciona­ centes, tem sido bastante significativa. É ine­
do a inadequações entre estas variáveis. gável a importância dos argumentos apre­
sentados por esses autores. No entanto, em
3. Os processos de policy feedback:
Segundo estes autores, as ideologias e seu estágio atual, a metodologia de análise
os valores culturais influenciam o discurso proposta é bem mais útil para estudos de ca­
político, mas este também é iijfluenciado pe­ so do que para trabalhos comparados que in­
las características das políticas existentes. Es­ cluam um número significativo de países em
tas conformam o entendimento dos proble­ sua amostra. Dado que esse método de in­
mas a serem solucionados, conformam os in­ vestigação é fortemente apoiado em variá­
teresses a serem preservados ou destituídos veis analíticas de natureza histórica, trata-se
e, sobretudo, conformam as capacidades ins­ de reconstituir, para cada país, o conjunto
titucionais de ação das burocracias. É deste particular de circunstâncias que explicam
modo que as políticas sociais previamente es­ uma configuração específica de estruturas es­
tabelecidas afetam a ação política subse­ tatais e instituições políticas. Mais que isto: da­
qüente. Conforme Theda Skocpol, “assim do que tais estruturas e instituições são histori­

34
camente mutáveis, ainda que a velocidades cada autor ou conjunto de autores no inte­
distintas, no limite, “cada caso é um caso”. rior de correntes interpretativas mais gerais,
Evidentemente, é possível fazer compa­ correntes estas das quais os autores selecio­
rações entre países, como o fez Orloff em nados me parecem ser também os mais re­
seu trabalho. No entanto, no estágio atual da presentativos.
metodologia proposta, há um limite para o Parece evidente, contudo, ter ocorrido,
número de países analisados, a partir do qual dos anos 50 até nossos dias, um amadureci­
o trabalho de comparação tornar-se-ia vir­ mento significativo da análise sobre o welfare
tualmente impossível. Em outras palavras, state, seja do ponto de vista das variáveis
ou se perde em especificidade histórica, ou analíticas utilizadas, seja dos indicadores
se perde em abrangência da análise. Dado adotados para a medição de tais variáveis,
que o eixo central de análise consiste na “inte­ seja ainda com relação à qualidade e riqueza
ração entre ações e contextos estruturais e, das informações disponíveis.
portanto, em situar a explicação para a evolu­ Evidentemente, alteraram-se significati­
ção das políticas no tempo e no espaço” (Or­ vamente os padrões de investigação, e não
loff, 1993, p. 26), o espaço para comparação apenas em direção à sofisticação da análise
restringe-se à “case-oriented comparison”. quantitativa: abandonou-se uma metodolo­
Por outro lado, é preciso esclarecer que gia de análise fortemente centrada no volu­
esta é seguramente a corrente mais recente me de gastos em políticas sociais, caraterísti-
do debate sobre as razões da origem e ex­ ca das primeiras pesquisas neste campo, em
pansão dos modernos sistemas de proteção direção à análise da forma e natureza deste
social e, mais que isto, que se trata de auto­ gasto. Neste movimento, as imensas diferen­
res cuja produção se encontra em pleno pro­ ças nas formas institucionais de provisão de
cesso de desenvolvimento. Neste sentido, serviços sociais impuseram, até mesmo de
ainda é cedo para se afirmar que esta é uma um ponto de vista empírico, a questão da va­
limitação do método proposto; é mais seguro riabilidade dos sistemas de proteção social.
afirmar que esta é uma limitação do estágio Colocou-se, portanto, a necessidade de clas­
atual das pesquisas apresentadas ao público. sificar de algum modo tais diferenças, bem
como de explicar as razões de suas distin­
Considerações finais ções. A explicação dessa variação deu origem a
argumentos de ordem política, institucional e
Não foi minha intenção aqui realizar
histórica, de forte presença nas pesquisas mais
um balanço crítico das diversas correntes e
recentes. Tais argumentos acentuam o welfare
argumentos apresentados. Esta tarefa estaria
state como um campo de escolhas, de solução
muito além de minhas possibilidades. O es­
de conflitos no interior de sociedades (capitalis­
forço consistiu em sistematizar e interpretar
tas avançadas), conflitos nos quais se decide a
os trabalhos examinados de acordo com al­
redistribuição dos frutos do trabalho social e o
guns argumentos explicativos para a emer­ acesso da população, à proteção contra riscos
gência e desenvolvimento do welfare state, os
inerentes â vida social, proteção concebida co­
quais constituem as correntes mais influen­
mo um direito de cidadania.
tes do debate contemporâneo sobre o tema.
Assim, a intenção aqui foi tão-somente (Recebido para publicação
de organizar este debate, de modo a inserir em novembro 1994)

Notas
1. Quando possível, e por razões de clareza da exposição, procuraremos apontar tais mudan­
ças ao longo deste trabalho.
2. Trabalho exaustivo a este respeito foi realizado por Jens Alber. Consultar Aureliano e
Draibe (1989).

35
3. Esta última razão estará refletida na forma de exposição dos argumentos e seleção dos
autores, dc modo a revelar os termos da evolução deste debate, de meados da década de
50 a nossos dias.
4. Aliás, diga-se de passagem, tal distinção constitui outro fator de dificuldade para a clas­
sificação dos autores. Como poderá ser observado ao longo desta resenha, um autor po­
de, por exemplo, explicar as razões da emergência do welfare state usando categorias de
origem marxista e explicar as razões de sua expansão usando categorias originárias das
teorias da modernização. Este é o caso de Ian Gough (1979).
5. “(...) a idéia de que quaisquer que sejam seus regimes políticos, quaisquer que sejam
suas histórias e culturas particulares, as sociedades ‘afluentes’ tornam-se mais seme­
lhantes tanto em termos de sua estrutura social como de sua ideologia(...).” (Wilensky,
1975, p. xii) Segundo esta teoria, portanto, as sociedades tenderiam a convergir em dire­
ção a formas semelhantes, estivessem elas sob regimes capitalistas ou socialistas, dado o
impulso da industrialização.
6. Industrial Society and Social Welfare é o resultado de um trabalho realizado por Harold
L. Wilensky e Charles N. Lebeaux sob encomenda do United States Committee of the
International Conference of Social Work a Russell Sage Foundation. Realizado durante
o ano de 1955, o trabalho visava realizar um balanço do processo de industrialização
ocorrido nos EUA e seus efeitos sobre a ação social no campo dos programas de as­
sistência às famílias e à comunidade. O livro foi publicado pela The Free Press em 1965.
7. Escrito em 1975, The Welfare State and Equality. Stmctiiral and Ideological Roots o f Pu­
blic Expenditiires 6 o resultado de uma pesquisa que envolveu um estudo sobre 64 países,
entre estes, aqueles considerados os 22 países mais ricos.
8. É preciso considerar que o próprio conceito de welfare varia significativamente entre os
autores. Neste caso existe, mesmo entre os dois trabalhos mencionados, diferentes con­
cepções quanto ao fenômeno observado. No trabalho realizado com Charles Lebeaux
em 1955, Wilensky refere-se a welfare como um conjunto de programas de assistência so­
cial dirigidos à população mais carente incapaz de prover por si mesma sua própria so­
brevivência e/ou de seus dependentes nos Estados Unidos. No trabalho comparativo de
1975, Wilensky refere-se a welfare state como um conjunto de programas governamen­
tais que envolvem ação estatal no campo da atenção à saúde, previdência, assistência so­
cial, excetuando-se educação e habitação, por razões expostas pelo próprio autor. (Wi­
lensky, 1975, pp. 2-10). Essa distinfão, contudo, refere-se ao fenômeno observado em
cada um dos livros, e não â definição de welfare state adotada pelo autor, a qual se man­
tém inalterada nos dois trabalhos.
9. Este e os demais textos citados de originais cm inglês e francês foram traduzidos pela autora.
10. O autor afirma que o fato de que a maior parte dos países que desenvolveram sistemas
mais abrangentes de proteção social estejam enquadrados, na classificação por ele construída,
como liberal-democráticos significa apenas que os países ricos têm sistemas políticos de tipo
liberal-democrático, ao passo que os países pobres tendem a desenvolver sistemas políticos de
tipo oligárquico. Assim, no limite, mesmo o tipo de sistema político de um país é um subpro­
duto de seu niVel de desenvolvimento econômico (Wilensky, 1975, p. 22).
11- Para Wilensky, o equívoco de Cutright (1967), um autor também filiado aos princípios
da convergência, teria sido o de não haver estabelecido a proporção de velhos na popula­
ção como uma causa interveniente no esforço de welfare. Neste texto de 1967, Cutright, utili­
zando o mesmo método de Wilensky, conclui haver uma correlação necessária entre nível de
desenvolvimento econômico, idaòe dos sistemas de proteção social e esforço de welfare, não
trabalhando, portanto, com a variável proporção de velhos na população.

36
12. O autor atribui também importância a outras variáveis na explicação das tendências de
diversificação entre os países, tais como heterogeneidade social e clivagens internas; mo­
bilidade e estratificação sociais; tamanho da classe trabalhadora e natureza de sua orga­
nização e influência militar (Wilensky, 1975. pp. 50 ss). Contudo, tais variáveis não têm
em seu trabalho o peso explicativo das variáveis acima mencionadas.
13. Para uma crítica da insuficiência deste indicador, ver Esping-Andersen (1985b).
14. “The Social Division of Welfare”, in Titmuss (19ó3).
15. O crescimento das expectativas de consumo material e a adoção da mudança social como
uma valor/norma social são, para Titmuss, algumas das características centrais das socie­
dades industrializadas. Ver Titmuss (1963, pp. 105-6).
16. Note-se, aqui, que a opção pelo ordenamento por argumentos explicativos conduziu-me
a inscrever trabalhos de T.H.Marshall produzidos em períodos distintos em duas cor­
rentes também diferentes. Ver, mais adianle, o item “O welfare stale é resultado da am­
pliação progressiva...”.
17. É significativa a presença da temática da guerra na literatura deste período. Ver Wi­
lensky, H., “The Military, War, and the Welfare State”, in Wilensky (1975), e Titmuss,
Richard, “War and Social Policy” in Titmuss (1974). As guerras permanecem, contudo,
fenômenos marginais como elemento explicativo da análise.
18. Dados os incrementos em produtividade, o setor monopolista tende a produzir mais pro­
dutos do que a capacidade do mercado (no caso, o mercado de consumo norte-america-
no) para consumi-los.
19. Dado o emprego de tecnologias poupadoras de mão-de-obra no interior do setor mo­
nopolista, este tende a produzir formas progressivas de desemprego tecnológico e outras
formas de desemprego que acompanham o crescimento do capitalismo.
20. “A necessidade de desenvolver e manter uma ordem social ‘responsável’ também levou à
criação de órgãos e programas orientados para controlar politicamente a população
excedente e para opor resistência à tendência às crises de legitimação.” (O’Connor,
1977, p. 79).
21. Na tradução brasileira os dois termos são utilizados. A expressão do autor é “warfare-
welfare state ”.
22. A contradição essencial no capitalismo norte-americano não é enIre capilal e trabalho,
mas entre setor monopolista e setor competitivo. Com efeito, o acordo do pós-Segunda
Guerra entre sindicatos e indústrias do setor monopolista nos EUA — no qual os ganhos
em produtividade passaram a ser incorporados automaticamente aos salários em troca
da colaboração dos trabalhadores — implicou a “harmonia” das relações enlre capital e
trabalho organizado no interior do setor monopolista e, como conseqüência, a divisão da
classe trabalhadora. A contradição consiste no fato de que os benefícios do progresso
técnico não são apropriados eqüitativamente pela população, mas ficam “retidos” no se­
tor monopolista, o qual compreende o capital monopolista e os trabalhadores organiza­
dos em sindicatos.
23. Esta é uma seleção arbitrária da contribuição de Claus Offe. Mas, volto a repetir, tratei
de extrair de seus trabalhos aqueles que servem para demonstrar este argumento de que
o welfare state 6 uma resposta às necessidades do capitalismo.
24. Não é difícil observar aí uma certa familiaridade com a explicação de Wilensky, ainda que
o autor chegue a conclusões semelhantes a partir de variáveis analíticas distintas.
25. “Através das atividades produtivas estatais, o Estado cumpre sua função como Estado
capitalista (criar e manter as condições de acumulação) não apenas em-um escopo mais
amplo, mas sob nova forma.’'' (Offe, 1979, p. 132).

37
26. Lenhardt e Offe, 1984. O original alemão foi publicado em 1977.
27. Com este argumento, o autor aponta numa direção que será bastante desenvolvida, de acor­
do com outras variáveis analíticas, por autores filiados à corrente neo-institucionalista, segun­
do os quais os atores estatais têm interesses próprios, distintos dos interesses organizados da
sociedade civil. Voltarei a este ponto na última seção desta resenha.
28. Ver, a este respeito, Aureliano e Draibe (1989, pp. 93-4). Eis aqui, novamente, um
exemplo das dificuldades de classificação desses autores. Como vimos, um outro traba­
lho de T.H.Marshall, Política Social, datado do início da década de 60, confere menor
importância a fatores de tipo político na explicação da origem do Estado de Bem-Estar
Social.
29. Eis aqui mais um exemplo de que o esforço de ordenamento deste debate segundo argu­
mentos explicativos permite agrupar autores de filiação teórica distinta. Na verdade, as
“fontes” intelectuais de François Ewald, assistente de Foucault no College de France, são
distintas dos demais. No entanto, minha intenção aqui, repito, é de ordená-los segundo
princípios explicativos da emergência e desenvolvimento do welfare state e, neste sentido,
a argumentação destes autores é muito semelhante.
30. Lei sobre acidentes de trabalho de 9 de abril de 1898, que estabelece o direito dos traba­
lhadores a uma indenização sobre todos os acidentes de trabalho.
31. Para o autor, o welfare state compreende dois tipos de atividades estatais: provisão estatal
de serviços sociais e regulação estatal de atividades privadas. Tais atividades abarcariam,
fundamentalmente, a seguridade social, a regulação das condições de trabalho, a escola­
ridade da população e a legislação urbana.
32. Por exemplo, o autor encontrou, nos 18 países analisados, uma correlação fortemente
positiva entre estas variáveis e a existência de indicadores de desmercadorização, tais co­
mo salário social e formas de consumo coletivo. Ao mesmo tempo, encontrou uma fraca
correlação entre as mesmas variáveis e sistemas de proteção social associados à privatiza­
ção e formas de prestação dos serviços pautadas por critérios individualistas.
33. Para o autor, por exemplo, a adoção do princípio do universalismo como critério de ele­
gibilidade para as políticas sociais nos países de regime social-democrata foi, além do ob­
jetivo de fortalecimento da unidade e solidariedade entre a classe trabalhadora, uma for­
ma de ampliar as bases de apoio às políticas propostas.
34. Em trabalho posterior (Esping-Andersen, 1990), o autor não altera essa tipologia. Neste li­
vro, ele faz basicamente uma análise das formas de estratificação social produzidas pelos di­
versos welfare states, bem como do papel das classes médias na evolução desses sistemas. Um
capítulo deste livro pode ser encontrado em português. Ver Esping-Andersen (1991).
35. Afirmam os autores de um dos trabalhos fundantes desta corrente: “Não se trata de afir­
mar que a ação das burocracias — indicadas ou eleitas — seja desinteressada: ela tende­
rá a reforçar o poder daqueles que a formularam. O ponto central é que as políticas pro­
postas serão diferentes daquelas demandadas pelos atores societais.” (Evans, Ruesche-
meyer e Skocpol, 1985, p. 15).
36. (a) Weir, Orloff, e Skocpol (1988); (b) Skocpol (1992); (c) Orloff (1993).
37. Neste livro, Orloff compara momentos e formas distintas de emergência dos programas
previdenciários na Grã-Bretanha, Estados Unidos e Canadá entre 1880 e 1940. Caracte­
rizados, segundo a autora, por um regime de tipo liberal e por condições socioeconômi-
cas semelhantes para a emergência de sistemas de aposentadorias e pensões, cada país
teria, contudo, sofrido processos distintos de desenvolvimento destes programas, dadas
as distintas características nacionais.
38. Esta última condiciona a possibilidade de obtenção de recursos fiscais para o Estado.
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