Você está na página 1de 5

Marcelo Coelho (/colunas/marcelocoelho/)

coelhofsp@uol.com.br (mailto:coelhofsp@uol.com.br)

RACISMO (HTTPS://WWW1.FOLHA.UOL.COM.BR/FOLHA-TOPICOS/RACISMO)

Pode ser chato saber disso, mas Monteiro Lobato


era de um racismo delirante
Não é o caso de censurar seus livros infantis, mas também não há escândalo em
adaptá-los como se faz com 'Moby Dick'

19.jan.2021 às 17h00

EDIÇÃO IMPRESSA (https://www1.folha.uol.com.br/fsp/fac-simile/2021/01/20/)

Devo muito aos livros infantis de Monteiro Lobato


(https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2020/12/bisneta-de-monteiro-lobato-quer-apagar-o-racismo-de-sua-obra-com-

novas-edicoes.shtml), e entendo o esforço dos que, por afeição, querem defendê-lo


das acusações de racismo (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2019/02/obra-infantil-de-monteiro-
lobato-e-tao-racista-quanto-o-autor-afirma-autora.shtml).

O problema é que, apesar de suas qualidades como escritor, de sua


extraordinária coragem política e de suas simpatias à esquerda, Lobato era
tremendamente, monstruosamente, escandalosamente racista.

Lê-se muito pouco da sua obra para adultos. Lembro o conto “Negrinha”
(https://www1.folha.uol.com.br/colunas/bruno-molinero/2019/11/quem-tem-medo-de-negrinha-de-monteiro-lobato.shtml),

em que pelo menos se mostravam as crueldades de uma sinhá branca em


cima de uma “menina de criação”.
Ilustração de André Stefanini para a coluna de Marcelo Coelho de 20 de janeiro de 2021 -
André Stefanini/Folhapress

Fui ver o que Monteiro Lobato escreve em “O Presidente Negro”, romance de


1926 que, mesmo depois da ascensão de Hitler, ele não viu problema em
reeditar.

No livro, o narrador da história começa falando mal dos Estados Unidos, mas
muda de opinião quando ouve de Jane, a bela filha de um cientista, o
seguinte argumento: “Que é a América, senão a feliz zona que desde o início
atraiu os elementos eugênicos das melhores raças europeias?”.

Ayrton, o narrador, observa que os Estados Unidos não tiveram tanta sorte
racial assim. “Entrou ainda, à força, arrancado da África, o negro.” Jane
concorda: “Entrou o negro e foi esse o único erro inicial cometido naquela
feliz composição”. Ayrton acha que o problema pode ser solucionado.

No Brasil, graças à mestiçagem, “dentro de cem ou 200 anos terá


desaparecido o nosso negro”.
Ao contrário de Ayrton, Jane não acha “felicíssima” essa saída; na verdade,
“estragou as duas raças, fundindo-as. O negro perdeu as suas admiráveis
qualidades físicas de selvagem e o branco sofreu a inevitável piora de caráter,
consequente a todos os cruzamentos de raças díspares”.

A separação entre as raças, ocorrida nos Estados Unidos, não desagrada a


Jane: “O ódio criou na América a glória do eugenismo humano”.

Não se pense que o narrador fique horrorizado. Apaixonara-se pela loura


filha do cientista e comenta: “Como era forte o pensamento de Miss Jane!”.

Ela contará a Ayrton o que vai acontecer nos Estados Unidos. Primeiro, a
população negra começará a crescer, enquanto os brancos praticam o
controle da natalidade. Mais que isso: graças ao ministério da eugenia,
decidiram matar os defeituosos de nascença e esterilizar os deficientes
mentais, os “tarados” etc.

Os negros americanos também vão esbranquiçando, apesar de manterem o


“cabelo carapinha”. Ficam com “um pouco desse tom duvidoso das mulatas
de hoje que borram a cara de creme e pó de arroz”, diz Jane. “Barata
descascada, sei”, responde Ayrton.

Nas eleições de 2228, os brancos se dividem: há um partido de mulheres


feministas e outro, de homens. Sai vencedor o líder dos negros já
“esbranquiçados”.

Situação grave. Não necessariamente porque os brancos podem tentar um


golpe ao estilo de Trump (https://www1.folha.uol.com.br/folha-topicos/donald-trump/), mas porque
a “massa negra” despertava de sua submissão “e tremia de narinas ao vento,
como tigre solto na jungle”.

Para se defender, os brancos inventam um raio que “alisa a carapinha”, de


modo que “o tipo africano melhorava”. Acontece que o raio também era
capaz de...

Não conto o final. Registre-se apenas que “armado de mais cérebro”, “o


nobre, o duro” branco irá superar o obstáculo para o “ideal da
supercivilização ariana”, impondo “um manso ponto final étnico ao grupo
que ajudara a criar a América”.
É ficção? Passemos então a um artigo de crítica de arte, publicado nas
“Ideias de Jeca Tatu” (https://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff250924.htm), livro de 1919.
Chama-se “A Caricatura no Brasil”.

Durante a época colonial, diz Lobato, os portugueses “despejavam” no Brasil


tudo quanto fosse “elemento antissocial” do reino. “E como o escravo
indígena emperrasse no eito”, continua o autor, “para aqui foi canalizada de
África uma pretalhada inextinguível”.

Basta? Tem mais. Numa carta de 1928, Lobato diz que “um dia se fará justiça
ao Ku Klux (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2020/09/pinturas-dos-encapuzados-do-ku-klux-klan-detonam-
a-mais-nova-polemica-na-arte.shtml)Klan (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2020/09/pinturas-dos-encapuzados-

do-ku-klux-klan-detonam-a-mais-nova-polemica-na-arte.shtml);
tivéssemos aí uma defesa desta
ordem, que mantém o negro em seu lugar, e estaríamos hoje livres da peste
da imprensa carioca —mulatinho fazendo jogo do galego, e sempre
demolidor porque a mestiçagem do negro destrói a capacidade construtiva”.

Não é o caso de censurar seus livros infantis. Mas também não há escândalo
em adaptá-los. Faz-se isso o tempo todo: “Moby Dick”
(https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2019/07/moby-dick-fala-sobre-o-odio-de-um-homem-a-sua-propria-

limitacao.shtml), “As Viagens de Gulliver” (https://m.folha.uol.com.br/folhinha/2011/03/885979-peca-


aventuras-de-gulliver-reconta-com-bonecos-um-classico-da-literatura.shtml),
“Pinóquio” foram inúmeras
vezes reescritos e facilitados para as crianças; o próprio Lobato fez isso, com
“Dom Quixote” (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2018/06/dom-quixote-ensina-a-lutar-contra-
injusticas-e-preconceitos-diz-tostao.shtml), por exemplo.

Mas não dá para ignorar, desculpar e fingir que não existe racismo em
Monteiro Lobato. Mais fácil perdoar o Trump.

Marcelo Coelho
Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

sua assinatura pode valer ainda mais


Você já conhece as vantagens de ser assinante da Folha? Além de ter
acesso a reportagens e colunas, você conta com newsletters exclusivas
(conheça aqui (https://login.folha.com.br/newsletter)). Também pode baixar nosso
aplicativo gratuito na Apple Store (https://apps.apple.com/br/app/folha-de-s-
paulo/id943058711?utm_source=materia&utm_medium=textofinal&utm_campaign=appletextocurto) ou na
Google Play (https://play.google.com/store/apps/details?
id=br.com.folha.app&hl=pt_BR&utm_source=materia&utm_medium=textofinal&utm_campaign=androidtextocurto)

para receber alertas das principais notícias do dia. A sua assinatura nos
ajuda a fazer um jornalismo independente e de qualidade. Obrigado!

ENDEREÇO DA PÁGINA

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/marcelocoelho/2021/01/pode-ser-
chato-saber-disso-mas-monteiro-lobato-era-de-um-racismo-delirante.shtml

Você também pode gostar