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Breve História Do Protestantismo - Alderi de Souza Matos
Breve História Do Protestantismo - Alderi de Souza Matos
Nos séculos 16 e 17, duas regiões do Brasil foram invadidas por nações
européias: a França e a Holanda. Muitos dos invasores eram protestantes, o que
provocou forte reação dos portugueses numa época em que estava em pleno curso a
Contra-Reforma, ou seja, o esforço da Europa católica no sentido de deter e mesmo
suprimir o protestantismo. O esforço pela expulsão dos invasores fortaleceu a
consciência nacional, mas ao mesmo tempo aumentou o isolamento do Brasil.
Os holandeses criaram sua própria igreja estatal nos moldes da Igreja Reformada
da Holanda. Durante os 24 anos de dominação, foram organizadas 22 igrejas e
congregações, dois presbitérios e um sínodo. As igrejas foram servidas por mais de 50
pastores (“predicantes”), além de pregadores auxiliares (“proponentes”) e outros
oficiais. Havia também muitos “consoladores dos enfermos” e professores de escolas
paroquiais.
4. Protestantismo de imigração
O historiador Boanerges Ribeiro observa que “ao iniciar-se o século XIX, não
havia no Brasil vestígio de protestantismo” (Protestantismo no Brasil monárquico, p.
15). Em janeiro de 1808, com a chegada da família real ao Rio de Janeiro, o príncipe-
regente João decretou a abertura dos portos do Brasil às nações amigas. Em novembro,
um novo decreto concedeu amplos privilégios a imigrantes de qualquer nacionalidade
ou religião.
Robert Reid Kalley (1809-1888) era natural da Escócia. Estudou medicina e foi
trabalhar como missionário na Ilha da Madeira (1838). Oito anos depois, escapou de
uma violenta perseguição e foi com seus paroquianos para os Estados Unidos. Fletcher
sugeriu que ele fosse para o Brasil, onde Kalley e sua esposa Sarah Poulton Kalley
(1825-1907) chegaram em maio de 1855. No mesmo ano, fundaram em Petrópolis a
primeira escola dominical permanente do país (19 de agosto). Em 11 de julho de 1858,
Kalley fundou a Igreja Evangélica, depois Igreja Evangélica Fluminense (1863), cujo
primeiro membro brasileiro foi Pedro Nolasco de Andrade. Kalley teve importante
atuação na defesa da liberdade religiosa (1859). Sua esposa foi autora do famoso hinário
Salmos e hinos (1861). A Igreja Fluminense aprovou sua base doutrinária, elaborada por
Kalley, em 2 de julho de 1876. No mesmo ano, o missionário voltou em definitivo para
a Escócia. Os estatutos da igreja foram aprovados pelo governo imperial em 22 de
novembro de 1880.
A Igreja Metodista Episcopal (do sul dos Estados Unidos) enviou Junius E.
Newman para trabalhar junto aos imigrantes (1876). O primeiro missionário aos
brasileiros foi John James Ransom, que chegou em 1876 e dois anos depois organizou a
primeira igreja no Rio de Janeiro. A professora Martha Hite Watts iniciou uma escola
para moças em Piracicaba (1881). A partir de 1880, a I.M.E. do norte dos EUA enviou
obreiros ao norte do Brasil (William Taylor, Justus H. Nelson) e ao Rio Grande do Sul.
A Conferência Anual Metodista foi organizada em 1886 pelo bispo John C. Granbery,
com a presença de apenas três missionários.
7. Católicos e protestantes
8. Progressistas x conservadores
Os ingleses fundaram missões para atuar na América do Sul: Help for Brazil
(criada em 1892 por iniciativa de Sarah Kalley e outros), South American Evangelical
Mission (Argentina) e Regions Beyond Missionary Union (Peru). Após a Conferência de
Edimburgo (1910), essas missões vieram a constituir a União Evangélica Sul-
Americana – UESA (1911). Dos seus esforços, surgiu no Brasil a Igreja Cristã
Evangélica.
Essa igreja surgiu em 1903 como uma denominação totalmente nacional, sem
qualquer vinculação com igrejas estrangeiras. Resultou do projeto nacionalista de
Eduardo Carlos Pereira (1856-1923). Em 1907 tinha 56 igrejas e 4.200 membros
comungantes. Fundou um seminário em São Paulo. Em 1908 foi instalado o Sínodo,
inicialmente com três presbitérios. Mais tarde, em 1957, foi criado o Supremo Concílio,
com três sínodos, dez presbitérios, 189 igrejas locais e 105 pastores. Seu jornal oficial
era O Estandarte, fundado em 1893. Após o Congresso do Panamá (1916), a IPI
aproximou-se da IPB e das outras igrejas evangélicas. A partir de 1930, surgiu um
movimento de intelectuais (entre eles o Rev. Eduardo Pereira de Magalhães, neto de
Eduardo Carlos Pereira) que pretendia reformar a liturgia, certos costumes eclesiásticos
e até mesmo a Confissão de Fé. A questão eclodiu no Sínodo de 1938. Um grupo
organizou a Liga Conservadora, liderada pelo Rev. Bento Ferraz. A elite liberal retirou-
se da IPI em 1942 e formou a Igreja Cristã de São Paulo.
A IPI inicialmente teve uma postura menos rígida que a IPB, mas a partir de
1972 tornou-se mais inflexível quanto ao ecumenismo e à renovação carismática. Em
1978 admitiu aos seus presbitérios os três primeiros missionários da sua história,
Richard Irwin, Albert James Reasoner e Gordon S. Trew, que antes colaboravam com a
IPB. Em 1973, um segmento separou-se para formar a Igreja Presbiteriana Independente
Renovada, que depois se uniu a um grupo semelhante egresso da IPB, formando a Igreja
Presbiteriana Renovada.
(b) Assembléia de Deus: teve como fundadores os suecos Daniel Berg (1885-
1963) e Gunnar Vingren (1879-1933). Batistas de origem, eles abraçaram o
pentecostalismo em 1909. Conheceram-se numa conferência pentecostal em Chicago.
Assim como Luigi Francescon, Berg foi influenciado pelo pastor batista William H.
Durham, que participou do avivamento de Los Angeles (1906). Sentindo-se chamados
para trabalhar no Brasil, chegaram a Belém em novembro de 1910. Seus primeiros
adeptos foram membros de uma igreja batista com a qual colaboraram.
(c) Igreja Evangélica Pentecostal O Brasil Para Cristo: fundada por Manoel de
Mello, um evangelista da Assembléia de Deus que depois tornou-se pastor da IEQ.
Separou-se da Cruzada Nacional de Evangelização em 1956, organizando a campanha
“O Brasil para Cristo”, da qual surgiu a igreja. Filiou-se ao CMI em 1969 (desligou-se
em 1986). Em 1979 inaugurou seu grande templo em São Paulo, sendo orador oficial
Philip Potter, secretário-geral do CMI. Esteve presente o cardeal arcebispo de São
Paulo, Paulo Evaristo Arns. Manoel de Mello morreu em 1990.
(d) Igreja Deus é Amor: fundada por David Miranda (nascido em 1936), filho de
um agricultor do Paraná. Vindo para São Paulo, converteu-se numa pequena igreja
pentecostal e em 1962 fundou sua igreja em Vila Maria. Logo transferiu-se para o
centro da cidade (Praça João Mendes). Em 1979, foi adquirida a “sede mundial” na
Baixada do Glicério, o maior templo evangélico do Brasil, com capacidade para dez mil
pessoas. Em 1991 a igreja afirmava ter 5.458 templos, 15.755 obreiros e 581 horas
diárias em rádios, bem como estar presente em 17 países (principalmente Paraguai,
Uruguai e Argentina).
(e) Igreja Universal do Reino de Deus: fundada por Edir Macedo (nascido em
1944), filho de um comerciante fluminense. Trabalhou por 16 anos na Loteria do
Estado, período no qual subiu de contínuo para um posto administrativo. De origem
católica, ingressou na Igreja de Nova Vida na adolescência. Deixou essa igreja para
fundar a sua própria, inicialmente denominada Igreja da Bênção. Em 1977 deixou o
emprego público para dedicar-se ao trabalho religioso. Nesse mesmo ano surgiu o nome
IURD e o primeiro programa de rádio. Macedo viveu nos Estados Unidos de 1986 a
1989. Quando voltou ao Brasil, transferiu a sede da igreja para São Paulo e adquiriu a
Rede Record de Televisão. Em 1990 a IURD elegeu três deputados federais. Macedo
esteve preso por doze dias em 1992, sob a acusação de estelionato, charlatanismo e
curandeirismo.
Bibliografia
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Gordon, Amy Glassner. “The first Protestant missionary effort: why did it fail?”.
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ed. Em História geral da Igreja na América Latina. Tomo II/1. Petrópolis e São Paulo:
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Hauck, João Fagundes, Hugo Fragoso, José Oscar Beozzo, Klaus Van Der Grijp
e Brenno Brod. História da Igreja no Brasil: ensaio de interpretação a partir do povo,
segunda época – a igreja no Brasil no século XIX. 3ª ed. Em História geral da igreja na
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Rocha, João Gomes da. Lembranças do passado. 3 vols. Rio de Janeiro: Centro
Brasileiro de Publicidade, 1941-1946.
1. A França Antártica
Após o descobrimento do Brasil, Portugal demorou a interessar-se pela ocupação
e a colonização dos novos domínios. Por isso, outras nações européias voltaram os seus
olhos para o Brasil, atraídas por suas riquezas naturais. Entre essas nações estava a
França. Na primeira metade do século 16, esse país, cujo rei era Francisco I,
experimentava conflitos em duas frentes. Externamente havia a antiga rivalidade com o
Sacro Império Germânico, governado por Carlos V. No interior do país, surgia um
fenômeno novo e inquietante: o protestantismo.
Foi então que um aventureiro francês teve a idéia de fundar uma colônia no
Brasil, em região já bem conhecida pelos franceses: a baía da Guanabara. Nicolas
Durand de Villegaignon (1510-1571) era vice-almirante da Bretanha (noroeste da
França) e cavaleiro da Ordem de Malta, também conhecida como Ordem de São João de
Jerusalém.
Por sua vez, Calvino e seus colegas escolheram alegremente para acompanhar o
grupo os pastores Pierre Richier (50 anos) e Guillaume Chartier (30 anos). Richier era
doutor em teologia e ex-frade carmelita. Depois da estadia no Brasil residiu em La
Rochelle, onde faleceu em 1580. Chartier, natural da Bretanha, também estudou em
Genebra. Mais tarde foi capelão de Jeanne D’Albret, mãe do futuro rei Henrique IV.
Em seguida, o pastor Richier pregou um sermão com base no Salmo 27:4: “Uma
coisa peço ao Senhor e a buscarei: que eu possa morar na casa do Senhor todos os dias
da minha vida, para contemplar a beleza do Senhor e meditar no seu templo”. Após o
culto, os huguenotes tiveram a sua primeira refeição brasileira: farinha de mandioca,
peixe moqueado e raízes assadas no borralho. Dormiram em redes, à maneira indígena.
Por ordem de Villegaignon, passaram a realizar-se preces públicas noturnas após
o trabalho diário, devendo os pastores pregar diariamente e duas vezes aos domingos. A
Santa Ceia segundo o rito reformado foi celebrada pela primeira vez no domingo 21 de
março de 1557. Em todos os cultos entoavam-se salmos, segundo o uso das igrejas
reformadas.
Os cinco homens foram parar em uma praia, onde vários indígenas vieram ao
seu encontro. Resolveram voltar para o forte Coligny. Villegaignon os recebeu de modo
cordial. Doze dias depois, mudou radicalmente de atitude: concluiu que os calvinistas
haviam mentido e eram traidores e espiões. Decidiu executá-los por heresia. Como
representante do rei Henrique II, podia exigir que eles declarassem publicamente a sua
fé. Formulou um questionário sobre questões doutrinárias que já havia levantado
anteriormente e deu-lhes doze horas para responderem por escrito.
O texto faz diversas referências aos concílios da igreja antiga e aos pais da
igreja, revelando os conhecimentos históricos dos seus autores. Os parágrafos 1 a 4
utilizam uma linguagem tirada do Credo Niceno-Constantinopolitano (ano 381) e da
Definição de Calcedônia (ano 451). As expressões “o Filho eternamente gerado do Pai”
e “o Espírito Santo, procedente do Pai e do Filho” (Filioque) são bem conhecidas na
história da teologia. O parágrafo 3 se refere ao “símbolo”, ou seja, o Credo dos
Apóstolos ou algum dos outros credos antigos. O parágrafo 5 se refere explicitamente
ao Concílio de Nicéia (ano 325).
Condenado à morte, a execução foi suspensa por algum tempo. Finalmente foi
levado ao Rio de Janeiro, para ser executado no lugar onde começara a pregar as suas
“heresias”. Foi enforcado na época da expulsão dos últimos franceses, pouco após a
fundação da cidade do Rio de Janeiro. No momento da execução, revelando-se inábil o
carrasco, foi auxiliado pelo padre José de Anchieta, que julgara haver convertido o
calvinista e temia que a demora da execução o fizesse voltar atrás. Esse fato contribuiu
para a demora do processo de canonização de Anchieta.
O Jacques e seus passageiros só chegaram à França em fins de maio de 1558,
após quase cinco meses de viagem. Algumas pessoas que voltaram para a França quatro
meses depois contaram ao senhor Du Pont, em Paris, que haviam testemunhado as
execuções. Trouxeram consigo não só a Confissão de Fé, mas todo o processo
instaurado contra os calvinistas por Villegaignon, entregando-o a Du Pont, de quem
mais tarde o obteve Jean de Léry.
Segundo a doutrina de São Pedro Apóstolo em sua primeira epístola, todos os cristãos
devem estar sempre prontos para dar a razão da esperança que neles há, e isso com toda
a doçura e benignidade. Nós, abaixo assinados, Senhor de Villegaignon, unanimemente
(segundo a medida de graça que o Senhor nos concedeu) damos razão a cada ponto,
como nos haveis apontado e ordenado, começando no primeiro artigo:
Cremos que é mister somente adorar e perfeitamente amar, rogar e invocar a majestade
de Deus em fé ou particularmente.
II. Adorando nosso Senhor Jesus Cristo, não separamos uma natureza da outra,
confessando as duas naturezas, a saber, divina e humana, nele inseparáveis.
III. Cremos, quanto ao Filho de Deus e ao Santo Espírito, o que a Palavra de Deus, a
doutrina apostólica e o Símbolo[1] nos ensinam.
IV. Cremos que nosso Senhor Jesus Cristo virá julgar os vivos e os mortos, em forma
visível e humana como subiu ao céu, executando tal juízo na forma em que nos predisse
em São Mateus, vigésimo quinto capítulo, tendo, enquanto homem, todo o poder de
julgar, a ele dado pelo Pai. E, quanto ao que dizemos em nossas orações, que o Pai
aparecerá enfim na pessoa do Filho, entendemos por isso que o poder do Pai, dado ao
Filho, será manifestado no dito juízo, não, todavia, que queiramos confundir as pessoas,
sabendo que elas são realmente distintas uma da outra.
Distinguimos, todavia, este pão e vinho do outro pão que é dedicado ao uso comum,
sendo que este nos é um sinal sacramental, sob o qual a verdade é infalivelmente
recebida.
Ora esta recepção não se faz senão por meio da fé e nela não convém imaginar nada de
carnal, como quem prepara os dentes para o comer, como santo Agostinho nos ensina,
dizendo: “Porque preparas tu os dentes e o ventre? Crê, e tu o comeste”.
O sinal, pois, nem nos dá a verdade, nem a coisa significada; mas nosso Senhor Jesus
Cristo, por seu poder, virtude e bondade, alimenta e preserva nossas almas, e as faz
participantes de sua carne, de seu sangue e de todos os seus benefícios.
Vejamos a interpretação das palavras de Jesus Cristo: “Este pão é o meu corpo”.
Tertuliano, no livro quarto contra Marcião, explica estas palavras assim: “Este é o sinal
e a figura do meu corpo”.
Santo Agostinho diz: “O Senhor não evitou dizer: Este é o meu corpo, quando dava
apenas o sinal de seu corpo”.
Neste sentido podíamos juntar o artigo da Ascenção, com muitas outras sentenças de
Santo Agostinho, que omitimos temendo ser longas.
VI. Cremos que, se fosse necessario pôr água no vinho, os evangelistas e São Paulo não
teriam omitido uma coisa de tão grande conseqüência.
VII. Cremos que não há outra consagração que a que se faz pelo ministro, quando se
celebra a Ceia, recitando o ministro ao povo, em linguagem conhecida, a instituição
desta Ceia literalmente, segundo a forma que nosso Senhor Jesus Cristo nos prescreveu,
admoestando o povo da morte e paixão de nosso Senhor. E mesmo, como diz Santo
Agostinho, a consagração e a palavra de fé que é pregada e recebida em fé. Pelo que,
segue-se que as palavras secretamente pronunciadas sobre os sinais não podem ser a
consagração como aparece da instituição que nosso Senhor Jesus Cristo deixou aos seus
apóstolos, dirigindo suas palavras aos seus discípulos presentes, aos quais ordenou
tomar e comer.
VIII. O Santo Sacramento da Ceia não é alimento para o corpo, como o é para as almas
(porque nós não imaginamos nada de carnal, como declaramos no artigo quinto),
recebendo-o por fé, a qual não é carnal.
Quanto aos exorcismos, renúncia a Satanás, crisma, saliva e sal, nós os registramos
como tradições dos homens, contentando-nos só com a forma e instituição deixada por
nosso Senhor Jesus.
Por esta causa, diz São Paulo que o homem sensual não entende as coisas que são de
Deus. E Oséias clama aos filhos de Israel: “Tua ruína vem de ti, ó Israel”.
Ora isto entendemos do homem que não é regenerado pelo Santo Espírito.
O homem predestinado para a vida eterna, embora peque por fragilidade humana,
todavia não pode cair em impenitência. A este propósito, São João diz que ele não vive
pecando, porque a eleição permanece nele.
XI. Cremos que pertence só à Palavra de Deus perdoar os pecados, da qual, como diz
Santo Ambrósio, o homem é apenas o ministro; portanto, se ele condena ou absolve,
não é ele, mas a Palavra de Deus que ele anuncia.
Santo Agostinho neste lugar diz que não é pelo mérito dos homens que os pecados são
perdoados, mas pela virtude do Santo Espírito. Porque o Senhor dissera a seus
apóstolos: “Recebei o Santo Espírito”; depois acrescentara: “Se perdoardes a algum
seus pecados”, etc.
Cipriano diz que o servidor não pode perdoar a ofensa contra o Senhor.
XII. Quanto à imposição das mãos, essa serviu em seu tempo, e não há necessidade de
conservá-la agora, porque pela imposição das mãos não se pode dar o Santo Espírito,
porquanto isto só a Deus pertence.
No tocante à ordem eclesiástica, cremos no que São Paulo dela escreveu na Primeira
Epístola a Timóteo, e em outros lugares.
XIII. A separação entre o homem e a mulher legitimamente unidos por casamento não
se pode fazer senão por causa de adultério, como nosso Senhor ensina em Mateus,
capítulo dezenove, verso cinco. E não somente se pode fazer a separação por essa causa,
mas ainda, bem examinada a causa perante o magistrado, a parte não culpada, não
podendo se conter, pode casar-se, como Santo Ambrósio diz sobre o capítulo sete da
Primeira Epístola aos Coríntios. O magistrado, todavia, deve nisso proceder com
madureza de conselho.
XIV. São Paulo, ensinando que o bispo deve ser marido de uma só mulher, não diz que
lhe seja lícito tornar-se a casar, mas o santo apóstolo condena a bigamia a que os
homens daqueles tempos eram muito afeitos; todavia, nisso deixamos o julgamento aos
mais versados nas Santas Escrituras, não se fundando a nossa fé sobre esse ponto.
XV. Não é licito consagrar a Deus, senão o que ele aprova. Ora, é assim que os votos
monásticos só tendem à corrupção do verdadeiro serviço de Deus. É tambem grande
temeridade e presunção do homem fazer votos além da medida de sua vocação, visto
que a Santa Escritura nos ensina que a continência é um dom especial (Mateus quinze e
a I Epístola de São Paulo aos Coríntios, sete). Portanto, segue-se que os que se impõem
esta necessidade, renunciando ao matrimônio toda a sua vida, não podem ser
desculpados de extrema temeridade e confiança excessiva e insolente em si mesmos.
E por este meio tentam a Deus, visto que o dom da continência é em alguns apenas
temporal, e o que o teve por algum tempo não o terá pelo resto da vida. Por isso, pois,
os monges, padres e outros tais que se obrigam e prometem viver em castidade, tentam
contra Deus, por isso que não está neles cumprir o que prometem. São Cipriano, no
capítulo onze, diz assim: “Se as virgens que se dedicam de boa vontade a Cristo
perseverarem em castidade sem defeito, sendo assim fortes e constantes, podem esperar
o galardão preparado para a sua virgindade; se não querem ou não podem perseverar
nos votos, é melhor que se casem do que serem precipitadas no fogo da lascívia por seus
prazeres e delícias”. Quanto à passagem do apóstolo São Paulo, é verdade que as
viúvas, tomadas para servir à Igreja, se submetiam a não mais casar, enquanto
estivessem sujeitas ao dito cargo, não que por isso se lhes reputasse ou atribuisse
alguma santidade, mas porque não podiam bem desempenhar os seus deveres sendo
casadas, e, querendo casar, renunciassem à vocação para que Deus as tinha chamado,
contudo, que cumprissem as promessas feitas na Igreja, sem violar a promessa feita no
batismo, na qual está contido este ponto: “Que cada um deve servir a Deus na vocação
em que foi chamado”. As viúvas, pois, não faziam voto de continência, senão que o
casamento não convinha ao ofício para que se apresentavam, e não tinham outra
consideração que cumpri-lo. Não eram tão constrangidas que não lhes fosse antes
permittido casar-se que abrasar-se e cair em alguma infâmia ou desonestidade.
Ademais, para evitar tal inconveniente, o apóstolo São Paulo, no capítulo citado, proíbe
que sejam recebidas para fazer tais votos sem que tenham a idade de sessenta anos, que
é uma idade comumente fora da incontinência. Acrescenta que os eleitos só devem ter
sido casados uma vez, a fim de que, por essa forma, tenham já uma aprovação de
continência.
XVI. Cremos que Jesus Cristo é o nosso único Mediador, Intercessor e Advogado, pelo
qual temos acesso ao Pai, e que, justificados no seu sangue, seremos livres da morte, e
por ele já reconciliados teremos plena vitória contra a morte.
Quanto aos santos falecidos, dizemos que desejam a nossa salvação e o cumprimento do
Reino de Deus, e que o número dos eleitos se complete; todavia não nos devemos
dirigir a eles como intercessores para obtermos alguma coisa, porque desobedeceríamos
o mandamento de Deus. Quanto a nós, ainda vivos, enquanto estamos unidos como
membros de um corpo, devemos orar uns pelos outros, como nos ensinam muitas
passagens das Santas Escrituras.
XVII. Quanto aos mortos, São Paulo na 1 Epístola aos Tessalonicenses, quarto capítulo,
nos proibe entristecer-nos por eles, porque isto convém aos pagãos, que não têm
esperança alguma de ressuscitar. O apóstolo não manda e nem ensina orar por eles, o
que não teria esquecido, se fosse conveniente. Santo Agostinho, sobre o Salmo quarenta
e oito, diz que os espíritos dos mortos recebem conforme o que tiverem feito durante a
vida; que, se nada fizeram, estando vivos, nada recebem, estando mortos.
Esta é a resposta que damos aos artigos por vós enviados, segundo a medida e porção da
fé que Deus nos deu, suplicando que lhe praza fazer que em nós não seja morta, antes
produza frutos dignos de seus filhos, e assim, fazendo-nos crescer e perseverar nela, lhe
rendamos graças e louvores para sempre jamais. Assim seja.
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3. O primeiro culto
Em seguida, o pastor Richier pregou um sermão com base no Salmo 27:4: “Uma
coisa peço ao Senhor e a buscarei: que eu possa morar na casa do Senhor todos os dias
da minha vida, para contemplar a beleza do Senhor e meditar no seu templo”. Após o
culto, os huguenotes tiveram sua primeira refeição brasileira: farinha de mandioca,
peixe moqueado e raízes assadas no borralho. Dormiram em redes, à maneira indígena.
A Santa Ceia segundo o rito reformado foi celebrada pela primeira vez no domingo 21
de março de 1557.
4. Eventos posteriores
Introdução
Apesar de Kalley ter se tornado uma figura quase lendária na história do protestantismo
brasileiro, alguns aspectos da sua vida, obra e peculiaridades são ainda pouco
conhecidos. Daí a oportunidade e relevância de reconsiderar esse pioneiro, visto ter
transcorrido recentemente o sesquicentenário da sua chegada ao Brasil (2005). O artigo
começa por mostrar as circunstâncias que levaram Kalley da sua Escócia natal à
pequena Ilha da Madeira, no Oceano Atlântico. Em seguida, observa-se como a
tremenda oposição surgida contra o missionário e seus conversos teve um desfecho não
antecipado nem pretendido pelos perseguidores: a difusão da fé evangélica em outras
terras. São apontados os fatores que trouxeram Kalley ao Brasil, bem como as
influências sofridas e as mudanças experimentadas por ele ao longo da sua
caleidoscópica história de vida. Conclui-se com uma avaliação das principais
contribuições do personagem, bem como de algumas de suas idiossincrasias pessoais e
teológicas.[1]
Kalley sentiu que a morte de Morrison representava um desafio e um chamado para ele.
Ofereceu os seus serviços à Junta de Missões da Igreja da Escócia como médico
missionário e evangelista, mas a junta não o aceitou pelo fato de a China não estar
incluída entre os seus campos missionários. Buscou então a Sociedade Missionária de
Londres[4], que em fins de novembro de 1837 o admitiu como médico missionário para
a China. Foi instruído a embarcar para o campo em 1839, devendo fazer, no ínterim,
novos estudos médicos, além de estudos teológicos. Fechou o seu consultório médico e
matriculou-se na Universidade de Glasgow, obtendo o grau de doutor em medicina em
abril de 1838. Todavia, dois meses após a sua nomeação como missionário, ele havia
ficado noivo de Margaret Crawford, de Paisley, cuja frágil saúde a desqualificava para o
trabalho na China. A nomeação foi suspensa até uma ocasião oportuna.
Embora a China ainda estivesse nos seus planos, a deterioração da saúde da esposa fez
com que Kalley planejasse levá-la por uns tempos para a Ilha da Madeira, cujo clima o
havia encantado. Chegaram a Funchal no dia 12 de outubro de 1838. Naquela cidade
havia uma grande colônia de escoceses ligada à indústria do vinho e mais tarde Kalley
foi eleito presbítero da Igreja Presbiteriana Escocesa ali existente. Logo que chegou,
sentiu-se desafiado a empregar as suas aptidões e recursos para auxiliar a população
pobre e analfabeta da ilha, e anunciar-lhe o evangelho. Resolveu estudar a língua
portuguesa e seguiu para Lisboa, onde, em 17 de junho de 1839, depois de ter sido
examinado pela Escola Médico-Cirúrgica daquela cidade, foi habilitado para exercer a
medicina nos territórios de Portugal. Seguiu então para Londres, para contatos com a
Sociedade Missionária, à qual pedira que o ordenasse pastor e o nomeasse como seu
agente na Ilha da Madeira. A Sociedade aprovou a sua ordenação, mas não o aceitou
como agente por ainda não ter trabalho naquela ilha. Apesar de não ter feito estudos
formais de teologia, sendo aparentemente um autodidata nessa área, Kalley foi aprovado
nos exames e ordenado no dia 8 de julho de 1839 por seis ministros presbiterianos
ligados à Sociedade. Estes agiram em sua capacidade individual, sem representar uma
denominação.[5] Em outubro do mesmo ano, ele retornou à Ilha da Madeira.
Em 1840, Kalley abriu um pequeno hospital com doze leitos em Funchal, com farmácia
e consultório grátis para os pobres. Quase cinqüenta pessoas o consultavam diariamente.
As consultas eram precedidas por um pequeno culto em que ele lia e explicava as
Escrituras e fazia uma oração. Seguia a mesma prática quando visitava os pacientes nos
seus lares. Ao mesmo tempo, utilizando recursos próprios e de amigos, abriu escolas
diurnas para as crianças e noturnas para os adultos em vários pontos da ilha, nas quais
as pessoas aprendiam a ler e eram instruídas nas Escrituras. Nessas escolas mais de
2000 pessoas aprenderam a ler, nos seis anos em que elas funcionaram. Nesse período,
Kalley compôs os seus primeiros hinos e escreveu os seus primeiros tratados
evangélicos para o povo. Milhares de exemplares das Escrituras foram distribuídos. Aos
domingos, grandes grupos reuniam-se nas montanhas para ouvir a pregação do
Evangelho e cantar os apreciados “hinos calvinistas”.[6]
2. O espectro da perseguição
No dia 2 de agosto, um bando chefiado pelo cônego Telles atacou a casa de algumas
senhoras inglesas onde cerca de quarenta madeirenses, na maior parte mulheres, haviam
se reunido para o culto. Vidros e portas foram quebrados, mas a chegada da polícia
impediu que fosse causado dano físico às pessoas reunidas. Nos dias seguintes, muitos
“calvinistas” no interior da ilha tiveram suas casas atacadas e sofreram toda sorte de
indignidades. O Rev. Kalley tornou-se o alvo principal dos perseguidores e
multiplicaram-se ferozes ameaças de morte contra ele. Seus apelos ao cônsul britânico e
às autoridades locais foram recebidos com frieza. Na manhã do dia 9, um domingo, a
Sra. Kalley foi levada sob disfarce para a residência do cônsul, que havia ido para a sua
casa de campo. Disfarçado como uma mulher enferma, o Dr. Kalley foi conduzido em
uma rede para uma chácara e dali, antes do raiar do dia 9, foi levado para o navio inglês
“Forth”, ancorado na baía de Funchal. Sua casa, móveis, equipamento médico,
biblioteca e manuscritos foram todos destruídos em um incêndio, cuja fumaça ele pôde
ver do navio. O hospital foi saqueado e muitas das escolas do interior foram queimadas,
bem como todas as Bíblias e literatura evangélica que foram encontradas.
Naquela mesma noite, o navio partiu para Trinidad, nas Antilhas (Caribe), onde o Dr.
Kalley encontrou a esposa e, juntos, seguiram para a Inglaterra. Nas semanas seguintes
à partida do missionário, seus discípulos, acossados, ameaçados e maltratados, também
tiveram de fugir para salvar a vida. Os incidentes da Madeira coincidiram com um plano
inglês de recrutar trabalhadores para as ilhas de Trinidad, Antigua e St. Kitts, e alguns
navios ingleses em busca de trabalhadores haviam chegado a Funchal naquele mesmo
mês. No dia 23, duzentos refugiados religiosos partiram a bordo do “William”, levando
apenas a roupa do corpo. Dias depois, mais de quinhentos os seguiram no “Lord
Seaton” e nos meses seguintes muitos outros abandonaram os seus lares, buscando
liberdade de culto do outro lado do oceano. Estima-se que mais de dois mil evangélicos
deixaram a sua ilha na perseguição de 1846.
De agosto de 1855 a maio de 1856, o Rev. Kalley escreveu várias cartas aos irmãos de
Illinois, convidando-os para virem ajudá-lo no Brasil. Em dezembro de 1855 chegou
William D. Pitt, que havia sido aluno de escola dominical de D. Sarah na Inglaterra, e
em agosto de 1856 vieram Francisco da Gama, Francisco de Souza Jardim e Manoel
Fernandes, com suas famílias. No dia 10 de agosto daquele ano, na casa alugada por
esses crentes no morro da Saúde, o Rev. Kalley oficiou pela primeira vez a Ceia do
Senhor, com a presença de dez pessoas. O missionário viu desde o início a importância
da literatura e convidou o Sr. Gama para trabalhar como colportor, o que este fez com
muita eficiência, vendendo Bíblias e livros evangélicos. Algumas publicações foram
encomendadas de Lisboa e outras produzidas pelo próprio Dr. Kalley. Ele também
traduziu a famosa obra de John Bunyan, “A Viagem do Cristão” (O Peregrino),
publicando-a no Correio Mercantil (outubro a dezembro de 1856) e depois em forma de
livro. Também escrevia artigos religiosos nesse periódico. Ao mesmo tempo, desde que
chegou a Petrópolis, Kalley procurou relacionar-se com as autoridades civis, inclusive
com o imperador Pedro II, do qual se tornou amigo. Como seu vizinho, este foi visitá-lo
várias vezes para ouvir sobre as suas viagens através da Palestina.
O casal Kalley partiu para a Inglaterra no dia 17 de janeiro de 1857, a fim de visitar uma
tia de Sarah que se achava gravemente enferma. De Londres, onde ficaram por alguns
meses, o Rev. Kalley enviou para o Rio de Janeiro uma grande quantidade de literatura.
Chegaram de volta ao Brasil em 9 de outubro. Extremamente cauteloso após as
perseguições sofridas na Ilha da Madeira, Kalley trabalhou dentro dos limites impostos
pela lei brasileira, adotando como modelo básico de evangelização o “culto
doméstico”.[19] No dia 8 de novembro, foi batizado o primeiro crente em Petrópolis, o
português José Pereira de Souza Louro. No Rio, havia reuniões em português na casa de
Francisco da Gama e em inglês na residência de William Pitt. Nos meses seguintes,
começaram a surgir artigos na imprensa do Rio revelando preocupação com a
propaganda protestante e a distribuição de “Bíblias falsas”. Um motivo a mais de
inquietação para os líderes católicos eram as discussões sobre a instituição do
casamento civil e outras medidas liberalizantes do governo imperial.
4. O congregacionalismo brasileiro
Outro marco importante do ministério do Dr. Kalley foi o batismo de duas senhoras de
alta posição, Gabriela Augusta Carneiro Leão e sua filha Henriqueta Soares do Couto,
ocorrido em Petrópolis no dia 7 de janeiro de 1859. Dona Gabriela era irmã do Marquês
do Paraná e do Barão de Santa Maria. Elas haviam sido evangelizadas pelo crente
pioneiro José Pereira de Souza Louro e mais tarde se transferiram para a igreja
presbiteriana, na qual permaneceram até o final da vida. Esse batismo parece ter
contribuído para o surgimento de pressões contra o trabalho do missionário, que em 26
de maio daquele ano foi proibido de clinicar pelo subdelegado de Petrópolis.
O Dr. Kalley partiu definitivamente para a Escócia no dia 10 de julho de 1876, vindo a
falecer em Edimburgo em 17 de janeiro de 1888.[25] Até o seu falecimento, não deixou
de corresponder-se com freqüência com os líderes de suas igrejas no Brasil e em outros
lugares de língua portuguesa (Portugal, Madeira, Trinidad, Illinois). Foi o pai espiritual
e o mentor de toda uma geração de ministros e missionários que imitaram a sua visão,
zelo e dedicação. Sentiu o desejo de criar uma sociedade missionária não-
denominacional para enviar obreiros ao Brasil, desejo esse cumprido por sua esposa
anos mais tarde, com a criação da sociedade “Help for Brazil” (Auxílio para o Brasil),
precursora da União Evangélica Sul-Americana (UESA).[26]
5. Kalley e os presbiterianos
Como já foi observado, Kalley nasceu na Igreja da Escócia e manteve ligações com o
presbiterianismo durante boa parte da sua vida. As igrejas que resultaram do seu
trabalho na Ilha da Madeira, onde seus discípulos eram conhecidos como “calvinistas”,
bem como aquelas fundadas por refugiados madeirenses no Caribe e nos Estados
Unidos, foram todas presbiterianas.[27] No Brasil, embora ele tenha sido o introdutor
do congregacionalismo, suas ligações com os presbiterianos e suas contribuições diretas
e indiretas à obra presbiteriana são dignas de nota.[28]
Kalley também contribuiu com a obra presbiteriana em um sentido mais amplo, através
de pessoas originalmente ligadas ao seu trabalho. Quatro líderes das igrejas portuguesas
de Illinois foram notáveis missionários presbiterianos no Brasil: Emanuel N. Pires
(1866-1869), Hugh Ware McKee (1867-1870), Robert Lenington (1868-1886) e João
Fernandes Dagama (1870-1891).[32] Pires e McKee foram dois dos primeiros pastores
da Igreja Presbiteriana de São Paulo, por breve tempo. Todavia, Lenington e Dagama
tiveram longos ministérios, evangelizando extensamente o interior de São Paulo e, no
caso de Lenington, também o Paraná e o sul de Minas. Outro pioneiro extremamente
operoso foi William Dreaton Pitt, um inglês que estudou na escola dominical de Sarah
Kalley em Torquay, trabalhou junto aos portugueses em Illinois e foi a primeira pessoa
a vir para o Brasil em resposta a um apelo de Kalley. Foi um dos fundadores da Igreja
Evangélica Fluminense e um dos quatro primeiros presbíteros daquela igreja. Mudando-
se para São Paulo, onde trabalhou no comércio, associou-se aos presbiterianos,
tornando-se um valioso cooperador do Rev. Alexander Blackford. Faleceu em 1870,
poucos meses após a sua ordenação ao ministério. O ministro presbiteriano Rev. José
Manoel da Conceição (1822-1873), ex-sacerdote e primeiro pastor protestante de
nacionalidade brasileira, trabalhou durante oito meses em 1867 e 1868 nas igrejas
portuguesas de Illinois, com as quais se correspondeu até o final da sua vida.
Outros elementos ligados a Kalley que prestaram o seu concurso à obra presbiteriana no
Brasil foram colportores, os mais destacados dentre eles tendo sido Manoel Pereira da
Cunha Bastos, que precedeu o Rev. Blackford em São Paulo, e Manoel José da Silva
Viana, fundador da igreja congregacional em Recife e colaborador do Rev. John
Rockwell Smith. O português Bastos, um ex-diácono da Igreja Evangélica Fluminense,
tornou-se colportor da Sociedade Bíblica Americana e foi enviado a São Paulo pelo
Rev. Simonton, poucos meses antes da chegada de Blackford. Evangelizou um patrício,
José Maria Barbosa da Silva, seu vizinho à rua Aurora, que por sua vez foi instrumento
para a conversão dos jovens portugueses Antônio Bandeira Trajano e Miguel Gonçalves
Torres, dois dos primeiros pastores presbiterianos nacionais.[33] Um último exemplo de
contribuição congregacional ao presbiterianismo brasileiro foram alguns membros das
igrejas de Kalley que se filiaram à igreja presbiteriana, dentre os quais se destacam as já
citadas Gabriela Augusta Carneiro Leão e sua filha Henriqueta Soares do Couto.
Henriqueta veio a casar-se com o irlandês William Esher e foi membro sucessivamente
das Igrejas do Rio e de São Paulo. Foi mãe do Dr. Nicolau Soares do Couto Esher
(1867-1943), conhecido médico e primeiro presidente da Associação Cristã de Moços
do Rio e de São Paulo.[34] As ligações entre congregacionais e presbiterianos no Brasil
se explicam pelo fato de, por muitos anos, esses terem sido os únicos representantes do
protestantismo missionário no país, bem como pelas suas afinidades históricas e
doutrinárias.
Outra razão para o pequeno crescimento da obra congregacional foi o isolamento inicial
das comunidades, ciosas do princípio da plena autonomia da igreja local. Cinqüenta e
cinco anos após a criação da Igreja Evangélica Fluminense (1858) havia somente treze
igrejas organizadas no país. Foi só então, em 1913, que os congregacionais começaram
a criar uma estrutura nacional, realizando a sua primeira convenção geral. Em termos de
comparação, os presbiterianos, cuja primeira igreja foi organizada em 1862, já possuíam
cerca de sessenta comunidades por ocasião da criação do Sínodo (1888) e em 1910,
época da organização da Assembléia Geral, o número de igrejas haviam subido para
150, apesar das grandes perdas sofridas com o cisma independente de 1903.
Seu uso da medicina e da educação como meios de serviço cristão e instrumentos para a
evangelização continua válido até hoje. Outras estratégias que utilizou também se
revelaram muito eficazes e exerceram uma influência duradoura sobre o protestantismo
luso-brasileiro: reuniões informais nos lares; distribuição ampla das Escrituras (na
tradução católica do padre Figueiredo) e de literatura cristã; uso da imprensa diária para
a publicação de artigos e livros (como fez no Rio de Janeiro ao publicar O Peregrino, de
John Bunyan); produção de hinos visando a instrução dos crentes e a evangelização
(hinos esses utilizados por muitas gerações de evangélicos)[40]; treinamento de líderes
leigos como colportores e evangelistas. Os esforços de Kalley no sentido de ter um bom
relacionamento com as autoridades civis e outros líderes destacados, especialmente no
Brasil, onde chegou a fazer amizade com o próprio imperador, expandiram os limites da
liberdade religiosa e ajudaram a preparar as condições para a introdução e rápido
crescimento do protestantismo.
A teologia de Kalley pode ser descrita como um tipo de evangelicalismo amplo. Duas
expressões significativas das suas idéias teológicas são os hinos que ele e sua esposa
escreveram e a “Breve Exposição das Doutrinas Fundamentais do Cristianismo”. O
professor Antonio Gouvêa Mendonça sintetizou as concepções do casal Kalley
expressas em seus hinos: Deus ama todos os seres humanos, apesar dos seus pecados; a
resposta a esse amor é individual e voluntária (em contraste com a doutrina calvinista da
predestinação); a salvação não é definitiva, como no calvinismo ortodoxo, mas está
sujeita a quedas; isso requer uma ética rigorosa que traça uma nítida linha divisória
entre o fiel e o mundo.[42] O referido autor conclui que Kalley era um legítimo
representante do puritanismo escocês mesclado com o wesleyanismo metodista. A
“Breve Exposição” declara em seu artigo 19 que a igreja de Cristo é composta “de todos
os sinceros crentes no Redentor, os quais foram escolhidos por Deus, antes de haver
mundo, para serem chamados e convertidos nesta vida, e glorificados durante a
eternidade”.[43] Todavia, a maior parte dos artigos poderiam ser aceitos por qualquer
evangélico, reformado ou não. Os elementos específicos do calvinismo, tais como a
soberania de Deus, a eleição divina e a perseverança dos santos, não são
enfatizados.[44]
Apesar das deficiências que possa ter tido, Kalley ocupa um lugar de honra na história
das modernas missões protestantes. No que diz respeito ao Brasil, ele estabeleceu a
primeira igreja protestante permanente entre os brasileiros de língua portuguesa e foi
instrumento para a abertura das portas para a evangelização do povo brasileiro. Através
de sua amizade com elementos destacados da sociedade, dos seus métodos de trabalho,
de suas consultas a juristas respeitados e de suas reações a tentativas de intimidação por
parte do clero, ele contribuiu para a ampliação da liberdade religiosa no Brasil, que veio
a ser usufruída por outros missionários e igrejas. Através de suas práticas evangelísticas,
dos cultos domésticos e da escola dominical, do uso da hinologia, literatura e imprensa,
de seus colportores e conversos que depois se tornaram presbíteros, pastores e
evangelistas em outras igrejas, Kalley exerceu uma profunda influência sobre os mais
diferentes aspectos do protestantismo nacional. Em especial, seu modelo de
evangelização e culto exerceu uma influência profunda e duradoura na cultura
evangélica brasileira. A venda de Bíblias e Novos Testamentos de casa em casa, a
distribuição de folhetos, as conversas com amigos e colegas de trabalho sobre Cristo e
os convites para participar dos cultos domésticos diários foram formas não-agressivas e
criativas que permitiram a inserção da nova opção religiosa num período em que ainda
existiam diversas restrições legais à propaganda protestante.
English Abstract
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[1] Uma versão resumida deste artigo, sob o título “Robert Kalley: De goede engelse
dokter” (Robert Kalley: O bom doutor inglês) foi publicada na revista holandesa
Terdege (23/10/2002), 28-29, 31.
[2] A Igreja da Escócia foi criada por ato do Parlamento em 1560, graças os esforços do
reformador John Knox (c.1514-1572). Conhecida popularmente como “Kirk”, ela tem
sido sempre presbiteriana, à exceção de dois períodos de episcopalismo modificado na
época dos reis Stuart (século 17).
[3] A principal fonte dos dados históricos/biográficos deste artigo é Michael P. Testa,
“The Apostle of Madeira: Dr. Robert Reid Kalley”, Journal of Presbyterian History 42/3
(Setembro 1964), 175-197, e 42/4 (Dezembro 1964), 244-271. A versão eletrônica do
texto pode ser encontrada em:
http://freepages.genealogy.rootsweb.com/~klondike98/Exiles/apostle/Apostle%20of%2
0Madeira.rtf . Um estudo mais recente é a obra de William B. Forsyth, The Wolf from
Scotland: The Story of Robert Reid Kalley, Pioneer Missionary (1988). Um texto
bastante sucinto pode ser encontrado em Ruth A. Tucker, “Até aos Confins da Terra”.
Uma História Biográfica das Missões Cristãs, 2ª ed. (São Paulo: Vida Nova, 1996), 503-
507.
[5] Quanto à Ata da Comissão de Exame, ver Testa, “The Apostle of Madeira”, I:177.
Quanto à ordenação, ver Esboço Histórico da Escola Dominical da Igreja Evangélica
Fluminense: 1855-1932 (Rio de Janeiro, 1932), 27, 30s. O diploma de ordenação,
escrito em latim, declara: “Por esta carta, fazemos saber a todos que o Sr. Robert Reid
Kalley, versado em ciências e letras, e aprovado pela piedade da sua vida para o
sacrossanto ministério cristão, foi ordenado, tendo sido oferecidas preces com
imposição de mãos, por nós... (seguem os nomes dos seis ministros). Londres, 18 de
julho de 1839 A.D.”
[7] Uma obra importante escrita por uma testemunha ocular é: João Fernandes Dagama,
Perseguição dos Calvinistas da Madeira: Subsídios para a História das Perseguições
Religiosas (Rio Claro: Tipografia Magalhães e Gerlach, 1896). O Rev. Dagama (1830-
1906), um dos conversos de Kalley, foi missionário e pastor presbiteriano no Brasil por
mais de trinta anos.
[8] Ver Richard P. McBrien, Os Papas – Os Pontífices: de São Pedro a João Paulo II
(São Paulo: Loyola, 2000), 343-345, e Eamon Duffy, Santos e Pecadores: História dos
Papas (São Paulo: Cosac & Naify, 1998), 218-221.
[9] No seu valioso estudo, Michael Testa destaca a extraordinária contribuição do Rev.
Hewitson para a obra ligada a Kalley, tanto na Ilha da Madeira como no Caribe. Ver
“The Apostle of Madeira”, I:187-193; II:248s.
[11] No dia 25 de janeiro de 1999, em uma cerimônia ecumênica que contou com a
presença de representantes de todas as confissões cristãs existentes na Ilha da Madeira,
o bispo de Funchal, D. Teodoro de Faria, se penitenciou em nome da igreja católica
pelos episódios de intolerância contra os calvinistas ocorridos mais de um século e meio
antes. Ver http://www.presbiterianismo.com.br/Historia/Funchal.htm.
[12] O rigor do clima dessa região levou alguns dos imigrantes a se dirigirem para
Massachusetts e Nova Jersey. Émile-G. Léonard, O Protestantismo Brasileiro: Estudo
de Eclesiologia e História Social, 2ª ed. (Rio de Janeiro e São Paulo: JUERP/ASTE,
1981), 50.
[13] Testa, “The Apostle of Madeira”, II:256.
[14] Para maiores informações sobre a família de Sarah Kalley, ver Carl Joseph
Hahn, História do Culto Protestante no Brasil (São Paulo: ASTE, 1989), 138s (e notas).
[16] Segundo Hahn, Sarah havia ido com o pai ao Egito e à Síria para
acompanhar o irmão, que veio a morrer de tuberculose em Beirute, sendo sepultado no
Cemitério de Estrangeiros. A primeira esposa de Kalley morrera alguns dias antes e eles
se encontraram no cemitério. História do Culto Protestante no Brasil, 149 (nota 385).
[17] Para valiosas informações sobre Fletcher, ver David Gueiros Vieira, O
Protestantismo, a Maçonaria e a Questão Religiosa no Brasil, 2ª ed. (Brasília: Editora
Universidade de Brasília, 1980), 61-94.
[18] Entre 1842 e 1846, quando ainda na Ilha da Madeira, o Rev. Kalley escreveu sete
hinos (“Louvemos todos ao Pai do céu”, “Todos que na terra moram”, “O meu fiel
Pastor”, “Jesus Cristo já morreu”, “Alma! escuta ao bom Senhor!”, “Cá sofremos
aflição” e “Tem compaixão de mim, Senhor”). Esses provavelmente foram os primeiros
hinos evangélicos cantados no Brasil, sendo posteriormente incorporados ao hinário
Salmos e Hinos. Henriqueta Rosa Fernandes Braga, Música Sacra Evangélica no Brasil:
Contribuição à sua História (Rio de Janeiro: Livraria Kosmos Editora, 1961), 109.
[19] Duncan Alexander Reily, História Documental do Protestantismo no Brasil (São
Paulo: ASTE, 1993), 103.
[24] Sobre o controvertido Holden, ver o rico material reunido por Vieira,
Protestantismo, Maçonaria e Questão Religiosa, 163-207.
[26] Braga, Música Sacra Evangélica no Brasil, 119. As igrejas que se organizaram
como fruto do trabalho da UESA se filiaram a dois grupos distintos com base na forma
adotada para o batismo: União das Igrejas Evangélicas Congregacionais (aspersão) e
Igreja Cristã Evangélica do Brasil (imersão). Os dois grupos se uniram em 1942,
surgindo a União das Igrejas Evangélicas Congregacionais e Cristãs do Brasil. Quanto
às dificuldades encontradas pelos congregacionais brasileiros para definir a sua
identidade denominacional, ver Reily, História Documental do Protestantismo no
Brasil, 219-222.
[30] Ibid., 134-135 (19/12/1859). Alguns meses depois, Simonton passou duas semanas
em Petrópolis, participando todas as tardes dos cultos realizadas na residência dos
Kalley, que o convidaram a ficar com eles no final da sua estadia. Ver anotações de
11/04/1860.
[36] Diz o artigo: “O Batismo com água foi ordenado por nosso Senhor Jesus Cristo
como figura do Batismo verdadeiro e eficaz, feito pelo Salvador quando envia o Espírito
Santo para regenerar o pecador. Pela recepção do Batismo com água, a pessoa declara
que aceita os termos do pacto em que Deus assegura aos crentes as bênçãos da
salvação”. Reily entende que essa rejeição implícita do batismo infantil distingue os
congregacionais brasileiros dos demais congregacionais do mundo. Ver História
Documental do Protestantismo no Brasil, 113s, 158 (n. 212).
[37] Testa, “The Apostle of Madeira”, II:268, citando Eduardo H. Moreira, Vidas
Convergentes (Lisboa, 1958). Testa conclui que, caso isso pudesse ser comprovado,
representaria um afastamento significativo da posição anterior de Kalley quanto ao
batismo por imersão. Ver Rocha, Lembranças do Passado, vol. 2, p. 37.
[39] Ibid., 153. Segundo Hahn, Kalley tornou-se mais propenso ao legalismo no Brasil
do que havia sido na Ilha da Madeira, onde possuía uma sortida adega de vinho. No Rio,
chegou a proibir seus adeptos de alugarem uma carruagem no domingo para irem a um
funeral. Ibid., 139. É importante lembrar que o “sabatarianismo” (observância estrita do
dia do Senhor segundo Êxodo 20.8) foi característico de todos os primeiros evangélicos
brasileiros.
[45] Erasmo Braga e Kenneth G. Grubb, The Republic of Brazil: A Survey of the
Religious Situation (Londres: World Dominion Press, 1932), 57. Para reflexões
adicionais sobre a vida, pensamento e práticas pastorais de Kalley, ver as obras de
Douglas Nassif Cardoso, Robert Reid Kalley: Médico, Missionário e Profeta (São
Bernardo do Campo, São Paulo, 2001) e Práticas Pastorais do Pioneiro na
Evangelização do Brasil e de Portugal (São Bernardo do Campo, 2002).
1. Situação geral
1.2 Conflitos
Em 1846, havia sido criada na Inglaterra a Aliança Evangélica, uma frente unida
contra o catolicismo. Esse movimento foi iniciado nos Estados Unidos em 1867. No
Brasil, os problemas iniciais do período republicano levaram os protestantes a criar uma
organização semelhante, cuja primeira reunião verificou-se em São Paulo em julho de
1903. Seu primeiro presidente foi o Rev. Hugh Clarence Tucker (metodista) e seu
primeiro secretário, o pastor F. P. Soren (batista).
Para complicar ainda mais um quadro já tão confuso, surgiu ainda outro
movimento nos anos 60 que teve grandes repercussões nas igrejas evangélicas: o
movimento carismático ou de renovação. À semelhança de outros movimentos vindos
para o Brasil, esse também surgiu inicialmente nos Estados Unidos, quando tanto
católicos quanto membros de igrejas protestantes tradicionais começaram a ter
experiências carismáticas semelhantes às dos pentecostais do início do século 20. No
Brasil, esse movimento dividiu algumas igrejas e causou o surgimento de novas
denominações.
Outros grupos evangélicos existentes nessa época eram os seguintes: (a) igrejas:
Irmãos, Igreja Cristã, Igreja Batista Independente, Exército da Salvação, Congregação
Cristã no Brasil, Adventistas; (b) missões: União Evangélica Sul-Americana; (c)
entidades interdenominacionais: Sociedade Bíblica Americana, Missão Evangélica
Caiuá, Comissão Brasileira de Cooperação, Associação Cristã de Moços, Associação
Cristã Feminina.
Os ingleses fundaram algumas missões para atuar na América do Sul: Help for
Brazil (criada em 1892 por iniciativa de Sarah Kalley e outros), South American
Evangelical Mission (Argentina) e Regions Beyond Missionary Union (Peru). Após a
Conferência de Edimburgo (1910), essas missões vieram a constituir a União
Evangélica Sul-Americana (UESA, 1911). Dos seus esforços, surgiu no Brasil a Igreja
Cristã Evangélica.
Em 1910 foi criada a Assembléia Geral, sendo eleito seu primeiro moderador o
Rev. Álvaro Reis, pastor da I. P. do Rio de Janeiro, por muitos anos a maior igreja
evangélica do Brasil (quando Reis faleceu, em 1925, a igreja tinha mais de 2.600
membros). Em 1917, foi firmado com as missões norte-americanas um acordo
conhecido como Modus Operandi ou Brazil Plan, mediante o qual os missionários
começaram a retirar-se dos presbitérios brasileiros. Até cerca de 1925, a IPB foi a maior
denominação evangélica do Brasil, tendo grande crescimento em regiões como o leste
de Minas Gerais. Seus principais órgãos eram a Revista das Missões Nacionais (1887) e
especialmente O Puritano (1899).
Nesse período, que vai do Estado Novo de Getúlio Vargas até o início do regime
militar em 1964, as igrejas protestantes em sua maior parte já haviam se tornado
independentes das suas igrejas-mães estrangeiras. Nessas décadas, a situação relativa
dos diferentes grupos sofreu uma alteração radical, com o acelerado crescimento das
igrejas pentecostais, que ultrapassaram em muito as denominações históricas.
Os estudiosos falam em três ondas do pentecostalismo brasileiro: (a) Décadas de
1910-1940: chegada simultânea da Congregação Cristã no Brasil e da Assembléia de
Deus, que dominaram o campo pentecostal por 40 anos; (b) Décadas de 1950-1960: o
campo pentecostal se fragmentou, surgindo novos grupos – Evangelho Quadrangular,
Brasil Para Cristo, Deus é Amor e muitos outros (contexto paulista); (c) Anos 70 e 80:
surge o neopentecostalismo – Igreja Universal do Reino de Deus, Igreja Internacional
da Graça de Deus e outras (contexto carioca). Vejamos os principais grupos das duas
primeiras “ondas” pentecostais:
(a) Congregação Cristã no Brasil: foi fundada pelo italiano Luigi Francescon
(1866-1964). Radicado em Chicago, foi membro da Igreja Presbiteriana Italiana e
aderiu ao pentecostalismo em 1907. Em 1910 (março-setembro) visitou o Brasil e
iniciou as primeiras igrejas em Santo Antonio da Platina (PR) e São Paulo, entre
imigrantes italianos. Veio 11 vezes ao Brasil até 1948. Em 1940, o movimento tinha
305 “casas de oração” e dez anos mais tarde 815.
(c) Igreja do Evangelho Quadrangular: foi fundada nos Estados Unidos pela
evangelista Aimee Semple McPherson (1890-1944). O missionário Harold Williams
fundou a primeira IEQ do Brasil em novembro de 1951, em São João da Boa Vista, São
Paulo. Em 1953 teve início a Cruzada Nacional de Evangelização, sendo Raymond
Boatright o principal evangelista. A igreja enfatiza quatro aspectos do ministério de
Cristo: aquele que salva, batiza com o Espírito Santo, cura e virá outra vez. As mulheres
podem exercer o ministério pastoral.
(d) Igreja Evangélica Pentecostal O Brasil Para Cristo: foi fundada por
Manoel de Mello, um evangelista da Assembléia de Deus que depois tornou-se pastor
da IEQ. Separou-se da Cruzada Nacional de Evangelização em 1956, organizando a
campanha “O Brasil para Cristo,” da qual surgiu a igreja. Filiou-se ao Conselho
Mundial de Igrejas em 1969 e desligou-se em 1986. Em 1979 inaugurou seu grande
templo no bairro da Água Branca, em São Paulo, sendo orador oficial Philip Potter,
secretário-geral do Conselho Mundial de Igrejas. Na inauguração, esteve presente o
cardeal arcebispo de São Paulo, D. Paulo Evaristo Arns. Manoel de Mello morreu em
1990.
3.1 Congregacional
3.2 Presbiteriana
3.4 Metodista
O primeiro bispo metodista brasileiro foi César Dacorso Filho (1891-1966),
eleito em 1934, que por doze anos (1936-1948) foi o único bispo da Igreja. A Igreja
Metodista foi a primeira denominação brasileira a filiar-se ao Conselho Mundial de
Igrejas, em 1942. Seu órgão oficial era O Expositor Cristão. O crescimento dessa
denominação foi pequeno, sendo uma de suas principais ênfases a educação.
3.5 Luterana
3.6 Episcopal
Dois eventos de grande impacto marcaram o início deste período: (a) O Concílio
Vaticano II (1962-65), que assinalou a abertura da Igreja Católica para os protestantes
(“irmãos separados”) e revelou novas concepções sobre o culto, a missão da igreja e a
relação com a sociedade. O ecumenismo tornou-se alvo de muitas controvérsias. (b) O
movimento de 1964 e o regime militar. Na realidade, esse período foi marcado pelo
surgimento de ditaduras militares e movimentos de esquerda em toda a América Latina.
Na área religiosa, um dos resultados foi o surgimento da Teologia da Libertação.
Vejamos alguns eventos desse período conturbado:
4.1 Igreja Presbiteriana
Com o passar dos anos, surgiram alguns grupos dissidentes, como o Presbitério
de São Paulo e a Aliança de Igrejas Reformadas (1974), e a Federação Nacional de
Igrejas Presbiterianas (FENIP), organizada em Atibaia, em setembro de 1978. Esta
federação eventualmente constituiu-se em uma nova denominação, a Igreja
Presbiteriana Unida do Brasil, que possuindo uma orientação teológica fortemente
progressista. Em 1999, faleceu um de seus líderes mais conhecidos, o Rev. Jaime
Wright, que foi muito atuante na área de direitos humanos.
Com uma postura inicialmente menos rígida que a IPB, a partir de 1972 a IPI
tornou-se mais inflexível quanto ao ecumenismo e à renovação carismática. Em 1978,
essa denominação admitiu aos seus presbitérios os três primeiros missionários
estrangeiros da sua história, Richard Irwin, Albert James Reasoner e Gordon S. Trew,
que antes colaboravam com a IPB.
Em 1973, um segmento da IPI separou-se para formar a Igreja Presbiteriana
Independente Renovada, que depois se uniu a um grupo semelhante egresso da IPB,
formando a Igreja Presbiteriana Renovada, de orientação carismática.
Nos últimos anos, a IPI tem abraçado uma postura teológica mais aberta,
estreitando os seus laços com a Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos e aceitando o
ministério feminino. Há alguns anos, um documento denominado Ordenações
Litúrgicas produziu tantas controvérsias que precisou ter a sua aplicação suspensa pela
igreja.
Conclusão
A história do protestantismo brasileiro no período republicano é uma história de
notável crescimento e crescente visibilidade social. Nesse longo período, as igrejas
evangélicas deram importantes contribuições a indivíduos, famílias e à sociedade nas
áreas evangelística, educacional e ética. Infelizmente, é também uma história de
lamentáveis divisões e, particularmente nos últimos anos, de um testemunho
questionável e valores distorcidos. Trabalhemos e oremos para que a fé evangélica
produza em nosso país os seus melhores frutos no século 21.
Sugestões bibliográficas
Almeida, Abraão de, ed. História das Assembléias de Deus no Brasil, 2ª ed. Rio
de Janeiro: CPAD, 1982.
Braga, Erasmo e Kenneth Grubb, The Republic of Brazil: A Survey of the Religious
Situation (Londres: World Dominion Press, 1932).
Conde, Emílio. História das Assembléias de Deus no Brasil. Rio de Janeiro, 1960.
Crabtree, A.R. História dos Batistas do Brasil: Até o Ano de 1906. Rio de Janeiro: Casa
Publicadora Batista, 1937.
Fanstone, James. Missionary Adventure in Brazil: The Amazing Story of the Anapolis
Hospital. Worthing, Inglaterra: Henry E. Walter, 1972.
Feitosa, José Alves. Breve História dos Batistas do Brasil: Memórias. Rio de Janeiro,
1978.
Hahn, Carl Joseph, História do Culto Protestante no Brasil. São Paulo: ASTE, 1989.
Igreja Evangélica Fluminense. Esboço Histórico da Igreja Evangélica Fluminense:
1855-1932. Rio de Janeiro, 1932.
Kennedy, James L., Cinquenta Anos de Metodismo no Brasil. São Paulo: Imprensa
Metodista, 1928.
1. Experiências iniciais
2. Um ponto de transição
Desde o início do seu ministério, Erasmo Braga vinha observando com interesse
alguns movimentos do protestantismo anglo-saxão voltados para missões e cooperação
intereclesiástica. Em 1910, quando a Conferência Missionária Mundial se reuniu em
Edimburgo, na Escócia, as missões na América Latina não foram contempladas por se
entender que esse continente já era cristão. Em reação a isto, foi criado três anos mais
tarde o Comitê de Cooperação na América Latina (CCAL), que promoveu em 1916 o
célebre Congresso da Obra Cristã na América Latina, na Cidade do Panamá. Essa foi a
primeira vez que os protestantes ibero-americanos se reuniram para discutir o seu
trabalho. Erasmo Braga participou desse encontro e foi profundamente impactado pelo
mesmo.
3. Visão missiológica
Havia alguns requisitos para que as igrejas pudessem cumprir esse papel. Elas
deviam desfazer-se do seu complexo de inferioridade e atitude de isolamento,
irmanando-se umas às outras e criando laços com as igrejas mais antigas do hemisfério
norte; elas deviam dispor-se a ter uma presença forte e envolvente na comunidade; elas
precisavam atualizar os seus métodos e falar uma linguagem com que as pessoas
pudessem se identificar. Durante alguns anos, os apelos de Erasmo receberam diferentes
graus de receptividade nas denominações protestantes históricas: presbiterianos,
metodistas, congregacionais, episcopais. Porém, com o passar do tempo a mentalidade
paroquial, as diferenças doutrinárias, o temor do envolvimento na sociedade e outros
fatores levaram a um certo esfriamento do trabalho cooperativo. Problemas ocorridos
nos Estados Unidos também tiveram um impacto negativo: a crise econômica de 1929,
a controvérsia modernista-fundamentalista e novas percepções acerca da missão da
igreja.
4. Avaliação e contribuições
Erasmo Braga viveu apenas 55 anos, tendo a sua morte prematura resultado em
parte do desgaste sofrido no trabalho cooperativo. O lema de sua vida e ações foi o texto
de Romanos 14.7: “Nenhum de nós vive para si mesmo, nem morre para si”. Seu caráter
nobre e idealista, dedicação a Cristo e espírito conciliador o qualificaram para criar um
ambiente mais fraterno e generoso no protestantismo brasileiro da época. Seu desejo
intenso de que o evangelho redimisse os indivíduos e a sociedade motivou as igrejas a
se envolverem de modo coerente, altruísta e criativo com o seu país e o seu povo. Ele
pode ter sido um tanto ingênuo em algumas de suas expectativas, excessivamente
otimista em relação a certos problemas, mas ninguém jamais questionou a seriedade,
sinceridade e dedicação com que buscou os seus objetivos.
Introdução
O objetivo deste estudo é refletir sobre um fenômeno recente e controvertido do cenário
religioso do Brasil que é o movimento neopentecostal. Esse movimento é importante
por causa do grande impacto que tem causado e pela visibilidade que tem adquirido nos
últimos anos na sociedade brasileira. Os métodos arrojados e agressivos da Igreja
Universal do Reino de Deus, o estilo de vida sofisticado do casal que dirige a Igreja
Renascer em Cristo, os onipresentes programas de televisão das igrejas neopentecostais,
os testemunhos de fé de artistas, atletas e outras celebridades, tudo isso e muito mais
tem contribuído para tornar esse movimento conhecido e discutido.
Por outro lado, essa reflexão deve conduzir-nos a uma séria autocrítica e ao
reconhecimento de que o novo movimento tem ocupado espaços que já deveriam ter
sido ocupados pelas igrejas mais antigas, inclusive a presbiteriana. Portanto, o propósito
desta análise é tríplice: conhecer melhor o neopentecostalismo em seus diferentes
ângulos; identificar os seus pontos fracos nas áreas já aludidas; apontar maneiras como
melhor se pode enfrentar esse desafio e quais as áreas em que as igrejas reformadas
devem progredir.
É importante ressaltar que não se pretende nem é possível neste breve estudo fazer uma
análise profunda e exaustiva do neopentecostalismo. Para tomar apenas a área da
doutrina, existem dezenas de questões altamente complexas sobre os quais muitos livros
têm sido escritos. O interesse primordial é dar uma visão ampla do movimento e
destacar os seus aspectos mais relevantes no que diz respeito à igreja presbiteriana.
Inicialmente será feita uma breve abordagem histórica, destacando alguns exemplos
interessantes de movimentos “carismáticos” ao longo da história da igreja até se chegar
ao pentecostalismo brasileiro. Em seguida, se fará um apanhado das principais
peculiaridades desse movimento nas áreas da teologia, culto, métodos, liderança e ética.
Procurar-se-á avaliar esses pontos à luz das Escrituras e da fé reformada.
1. Aspectos históricos
1.1.1 Corinto
Já nos dias da igreja primitiva houve a ocorrência de manifestações que hoje chamamos
de carismáticas. O exemplo clássico é o da comunidade cristã de Corinto. Como todos
sabem, naquela igreja apostólica houve manifestações extraordinárias de línguas,
profecias e outros fenômenos. Todavia, tais manifestações estavam diretamente
associadas com muitos dos problemas e conflitos vividos por aquela comunidade. Era
como se os dons do Espírito, ao invés de serem um fator de união, estivessem sendo um
fator de divisão no corpo de Cristo. Portanto, desde o início os fenômenos carismáticos
foram um elemento tanto de vitalidade quanto de controvérsia no seio da cristandade.
Curiosamente, tais fenômenos espetaculares parecem ter estado especialmente ligados à
igreja de Corinto. Pouco se diz a respeito dos mesmos nos outros documentos do Novo
Testamento (por exemplo, as línguas são mencionadas apenas em Mc 16.17; At 2.3-11;
10.46; 19.6; e 1 Co 12-14). Parece que nas outras igrejas apostólicas, essas
manifestações eram inexistentes, moderadas ou exercidas de modo mais equilibrado e
menos egocêntrico do que em Corinto.
1.1.2 Montanismo
1.2 O século 19
1.3 O século 20
1.3.1 O pentecostalismo
Um importante pioneiro foi Charles Fox Parham (1873-1929), que fora criado em
igrejas metodistas e “holiness,” e passou a ensinar aos seus alunos no Kansas e no
Texas que os crentes deviam esperar um batismo “com o Espírito Santo e com fogo”. O
evangelista R. A. Torrey (1856-1928), outrora companheiro de Dwight L. Moody, fez
uma turnê mundial de reavivamento que teve o efeito de aproximar muitas pessoas que
mais tarde iriam participar do movimento pentecostal. Finalmente, o evento decisivo
ocorreu em um reavivamento iniciado em 1906 na Missão Fé Apostólica, na Rua Azusa,
em Los Angeles, onde um ex-aluno de Parham, o pregador negro William J. Seymour
(1870-1922) iniciou uma longa série de reuniões que enfatizavam o falar em línguas
como evidência do batismo com o Espírito Santo, a marca registrada do
pentecostalismo. Logo, o movimento difundiu-se para outras cidades norte-americanas
(especialmente Chicago) e para outros países.
Pouco tempo depois do seu surgimento nos Estados Unidos o movimento pentecostal
chegou ao Brasil. Quase que simultaneamente, duas igrejas pentecostais iniciaram suas
atividades em solo brasileiro, uma no sul e a outra no norte do país. Em poucas décadas,
esse movimento haveria de transformar de modo permanente e profundo a face do
protestantismo nacional.
A segunda onda pentecostal ocorreu na década de 50 e início dos anos 60, quando o
campo pentecostal se fragmentou e surgiram, entre muitos outros, três grandes grupos
ainda ligados ao pentecostalismo clássico: a Igreja do Evangelho Quadrangular (1951),
a Igreja Evangélica Pentecostal O Brasil para Cristo (1955) e a Igreja Pentecostal Deus
é Amor (1962), todas elas acentuando de maneira especial a cura divina. Essa segunda
onda começou quando a urbanização e o surgimento de uma sociedade de massas
possibilitam um crescimento pentecostal que rompeu com as limitações dos modelos
existentes, especialmente em São Paulo. Freston argumenta que o estopim foi a chegada
da Igreja Quadrangular, com seus métodos arrojados, forjados precisamente no berço
dos modernos meios de comunicação de massa, a Califórnia do período entre as duas
guerras mundiais.[9] Todavia, quem lucrou com o novo modelo, no primeiro momento,
não foi a Igreja Quadrangular, excessivamente estrangeira, e sim a sua criativa
dissidência nacionalista, a Igreja O Brasil para Cristo.
A Igreja do Evangelho Quadrangular foi fundada nos Estados Unidos pela controvertida
evangelista Aimee Semple McPherson (1890-1944) e chegou ao Brasil através do
missionário Harold Williams, um ex-ator de filmes de faroeste, que fundou a primeira
igreja em novembro de 1951 em São João da Boa Vista, São Paulo. Em 1953 teve início
a Cruzada Nacional de Evangelização, sendo Raymond Boatright o principal
evangelista. Desde então a Igreja Quadrangular tem crescido constantemente, sendo
uma de suas peculiaridades a forte ênfase dada ao ministério feminino.[10]
Um dos primeiros pastores da Igreja Quadrangular brasileira foi um ex-evangelista da
Assembléia de Deus chamado Manoel de Mello. Em 1956, ele separou-se da Cruzada
Nacional de Evangelização, organizando a campanha “O Brasil Para Cristo”, da qual
eventualmente surgiu a igreja de mesmo nome. Manoel de Mello surpreendeu o mundo
evangélico em 1969, quando filiou a sua igreja ao Conselho Mundial de Igrejas, filiação
essa que perdurou até 1986.[11] Em 1979, a Igreja Evangélica Pentecostal O Brasil Para
Cristo inaugurou o seu gigantesco templo em São Paulo, sendo orador oficial Philip
Potter, secretário-geral do CMI, e estando entre os presentes o cardeal arcebispo de São
Paulo, D. Paulo Evaristo Arns.[12]
Outra importante denominação da segunda onda pentecostal, a Igreja Deus é Amor, foi
fundada por David Miranda (nascido em 1936), filho de um agricultor do Paraná. Vindo
para São Paulo, converteu-se numa pequena igreja pentecostal e em 1962 iniciou a sua
igreja em Vila Maria. Pouco depois, a igreja transferiu-se para o centro da cidade e em
1979 foi adquirida a “sede mundial” da Baixada do Glicério, um dos maiores templos
evangélicos do Brasil, com capacidade para dez mil pessoas.[13]
2. Características do neopentecostalismo
Obviamente, o neopentecostalismo ou “pentecostalismo autônomo”[23] partilha das
mesmas convicções, valores e práticas do pentecostalismo clássico: ênfase nos dons
espirituais, especialmente os mais extraordinários (línguas, profecias, curas); forte
emotividade, especialmente nos cultos; ênfase à pessoa e atividade do Espírito Santo;
valorização da figura do líder (o “ungido do Senhor”); preocupação constante com as
forças do mal; e grande ênfase ao conceito de “poder.”
A questão básica, da qual decorrem todas as demais, tem a ver com o lugar ocupado
pelas Escrituras na teologia das igrejas neopentecostais. Três fatores, entre outros,
contribuem para tornar relativo o valor das Escrituras em muitas igrejas:
(b) O apelo a revelações: obviamente, se alguém acredita que Deus continua a revelar-se
de maneira direta, imediata, isso tende a relativizar as Escrituras; elas não mais são a
revelação final de Deus, a única regra de fé e prática para o crente. Quando um pregador
diz “o Senhor me revelou ou o Senhor me mostrou isso ou aquilo”, tudo pode acontecer,
e é proibido questionar, pois é palavra do Senhor.
(c) Uso questionável das Escrituras: quando as Escrituras são utilizadas, muitas vezes
isso é acompanhado de interpretações tendenciosas, uso seletivo de certas passagens ou
ênfases inadequadas. Muitos ensinos e práticas neopentecostais têm alguma
fundamentação bíblica, mas recebem uma ênfase muito maior do que se vê nas próprias
Escrituras, no ensino de Cristo e dos apóstolos ou na prática da igreja primitiva.
Veremos adiante alguns exemplos disso.
Em terceiro lugar, mostrando que não se deve fazer separação entre o Espírito e a
Palavra. Sendo o Espírito Santo o autor último das Escrituras, ele não pode dizer uma
coisa na Bíblia e outra coisa através de revelações especiais que conflitam com a
Escritura. Por exemplo, ele não pode dizer na Bíblia que ninguém sabe o dia da volta de
Cristo e depois revelar a alguém que Cristo vai voltar no ano tal e tal.
Neste último ponto, Calvino foi muito enfático em suas Institutas (Livro I, Capítulo IX),
ao condenar os “entusiastas” ou “libertinos” que queriam chegar a Deus por outros
meios que não as Escrituras. O reformador aponta para a reverência demonstrada pelos
primeiros cristãos para com a Escritura e mostra a contínua importância, necessidade e
validade da Palavra de Deus escrita (2 Tm 3.16-17). O Espírito Santo foi enviado, não
para revelar coisas novas, mas para lembrar aos cristãos o que Cristo havia ensinado (Jo
14.26). Qualquer “revelação” que vá além do evangelho bíblico deve ser rejeitada como
mentirosa (Gl 1.6-9). O Espírito Santo sempre atua em consonância com as Escrituras,
que dele provêm. Por outro lado, é o testemunho interno do Espírito que nos permite
reconhecer a Escritura como Palavra de Deus e experimentar a sua eficácia.
(a) Confissão positiva: esse ensino também é conhecido como “palavra da fé”. Segundo
o mesmo, se o cristão crê firmemente em algo e o declara de modo convicto e explícito,
aquilo que ele confessa irá acontecer, pelo poder da fé. Assim, a fé é vista como um
poder que tem eficácia em si mesmo. A idéia é que Deus já nos deu as suas bênçãos, as
suas promessas. A única coisa que temos a fazer é nos apropriar das mesmas, pela fé. A
fé libera o poder e as bênçãos de Deus. Sem essa fé, Deus nada pode fazer. E o que ativa
essa força ou poder da fé são as palavras. Se alguém fala palavras de fé, obtém bons
resultados e vice-versa (confissão positiva ou negativa). Tudo o que nos acontece é
conseqüência direta das nossas palavras. (Esses ensinos foram emitidos por autores
como Kenneth Copeland e Kenneth Hagin.)[24]
Associada com a confissão positiva está a idéia de posse, herança, como nas palavras de
um conhecido corinho: “Tudo que o Senhor conquistou na cruz, é direito nosso, é nossa
herança”. Assim, o crente deve “exigir” que Deus conceda as bênçãos e cumpra as
promessas. Com isso, o relacionamento com Deus deixa de ser baseado na sua livre e
soberana graça para concentrar-se em direitos e exigências.
(b) Saúde e prosperidade: essa é outra criação norte-americana que tem exercido um
fascínio tremendo em um país carente de recursos como o Brasil. Na realidade, essa
ênfase está mais de acordo com os valores da cultura americana do que com os valores
do evangelho. Certamente Deus promete bênçãos materiais aos seus filhos, entre as
quais se incluem saúde física e prosperidade financeira. Todavia, isso nunca foi uma
parte central da mensagem pregada por Cristo ou pelos apóstolos. Esses temas nunca
tiveram nos ensinos e na pregação deles o destaque que ocupa no culto e na vida de
tantas igrejas modernas.
A Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) é a que mais se destaca nessa área, pois
que toda a sua atividade gira em torno do trinômio exorcismo-cura-prosperidade. Daí
vermos, pela TV ou em outros ambientes, cenas desagradáveis de pregadores que
condicionam o recebimento de bênçãos à entrega das maiores ofertas possíveis, ou,
como costumam dizer, ao “sacrifício” dos fiéis. Esse não é o evangelho da graça
anunciado por Cristo e pregado pela igreja apostólica, um evangelho que não se baseia
em merecimentos humanos ou conquistas humanas, mas que se fundamenta no amor de
Deus oferecido gratuitamente em Cristo. (“De graça recebestes, de graça daí” – Mt
10.8b; ver 1 Co 2.12). Jesus ensinou claramente os seus discípulos a não buscarem
prioritariamente bênçãos materiais, e sim a buscarem em primeiro lugar o reino de Deus
e a sua justiça, “e todas estas coisas [alimento, vestes, saúde] vos serão acrescentadas”
(Mt 6.33).
(c) Batalha espiritual:[25] dentre as várias correntes de batalha espiritual, uma das mais
populares no Brasil é aquela liderada por C. Peter Wagner, diretor e professor da Escola
de Missões Mundiais do Seminário Fuller, na Califórnia. Wagner é também um dos
principais expoentes do “movimento do crescimento da igreja”. Um ensino
característico dessa corrente é a noção de “espíritos territoriais”, isto é, demônios que
mantêm determinadas regiões geográficas sob o domínio da incredulidade e do pecado.
No Brasil, uma das principais divulgadoras dessas idéias é a autora Neuza Itioka, que já
escreveu vários livros sobre o assunto.
Novamente, o problema com esse ensino não é o seu caráter extrabíblico. A Escritura
certamente fala, e muito, sobre o conflito entre Deus (e seus filhos) e as hostes do mal,
como na conhecida passagem de Efésios 6.10-20. O problema está em certas
implicações ou conclusões, nem sempre fundamentadas de modo claro nas Escrituras,
mas derivadas da imaginação fértil dos autores. Alguns exemplos: demônios territoriais,
cristãos possuídos pelo demônio, demônios com nomes fantasiosos, demônios coloridos
ou mal-cheirosos e assim por diante. Nada disso é apoiado pelas Escrituras.
A preocupação desmedida com as forças malignas não reflete o ensino equilibrado das
Escrituras, cria temores desnecessários nas pessoas e pode ser um instrumento de
manipulação emocional. Por outro lado, pode minimizar a responsabilidade individual
ou coletiva por muitos pecados e erros: é mais fácil justificar certas coisas atribuindo-as
à ação do inimigo. A obsessão pelo diabo também pode obscurecer a glória de Deus.
Ainda que o maligno seja poderoso, ele não é todo-poderoso, como às vezes se imagina.
Somente Deus é o Senhor supremo de todas as coisas. O próprio demônio está debaixo
da sua autoridade.
Certamente, não devemos subestimar as forças espirituais do mal. O Senhor mesmo nos
ensinou a orar: “Livra-nos do mal”. Mas nessa luta temos de usar as armas oferecidas
pelo próprio Deus e não os artifícios humanos e as práticas supersticiosas que têm sido
apregoados por tantos.
(d) Maldição hereditária: essa é outra área de sérias distorções. Toma-se um texto
isolado como Êxodo 20.5, onde Deus afirma que castiga a maldade dos pais nos filhos
até a terceira e quarta gerações, e se constrói toda uma doutrina a partir daí, uma
doutrina que nunca foi ensinada por Cristo e pelos apóstolos. Para a libertação ou
quebra da maldição seria necessário fazer uma árvore genealógica da família, identificar
as pragas, maldições, pecados e pactos com demônios feitos pelos antepassados e anulá-
los, quebrando-os e rejeitando-os em nome de Jesus Cristo.
Porém, qual é o ensino mais amplo das Escrituras sobre o assunto? Se é verdade que os
pecados de uma geração podem ter sérias conseqüências para os seus descendentes,
existem outras passagens sobre o assunto que devem ser levadas em consideração. É o
caso de Ezequiel 18, em que Deus mostra que a responsabilidade moral é pessoal e
individual: “A alma que pecar, essa morrerá; o filho não levará a iniqüidade do pai...”
(vv. 4b, 20). Pela conversão e retidão de vida, o indivíduo está livre da “maldição” dos
pecados de seus antepassados (vv. 14-19). O segundo mandamento (Êxodo 20.5) prevê
a visitação do juízo divino sobre os descendentes de ímpios que também aborrecem a
Deus como seus pais. Além disso, o Novo Testamento nos ensina que Cristo resgatou os
crentes da maldição da lei (Cl 2.13-15; Gl 3.13) e que nenhuma condenação resta para
os que estão em Cristo Jesus (Rm 8.1).
Isso nos leva a um outro ponto importante, que é a tendência de muitos neopentecostais
de tirarem conclusões apressadas de passagens do Antigo Testamento, sem procurar
entendê-las à luz da revelação mais plena de Deus em Jesus Cristo e no Novo
Testamento. É preciso lembrar sempre que o Novo Testamento é a chave para a
interpretação do Antigo. Como Jesus disse: “Ouvistes que foi dito aos antigos... eu,
porém, vos digo...”.
(f) Profecias: outra prática comum de certos grupos neopentecostais são as profecias,
supostamente recebidas mediante revelações. Com freqüência, tais profecias expressam
meros desejos ou expectativas do “profeta” em relação a uma pessoa ou grupo, mas são
proferidas em tom dogmático, como se fossem tão inspiradas quanto a Bíblia. Muitas
vezes, as profecias não se cumprem, os seja, são falsas profecias, o que faz de seus
anunciadores falsos profetas, mas ninguém se lembra de pedir desculpas, de reconhecer
que errou, que não estava falando a palavra do Senhor.
Em seu livro Evangélicos em crise, Paulo Romeiro cita uma profecia feita por Benny
Hinn no dia 16 de março de 1994, quando falava na Igreja Renascer, em São Paulo.[26]
Ele começou, dizendo: “O Deus Todo-Poderoso está me dizendo que esta cidade de São
Paulo vai se dobrar ao nome de Jesus”. A seguir, ele afirmou que brevemente ocorreria
a destruição dos poderes satânicos que controlavam a cidade e que dentro de seis meses
a atmosfera espiritual de São Paulo iria começar a mudar. Como prova disso uma
mulher muito conhecida, que estava enfeitiçando milhares de pessoas, iria morrer.
Líderes políticos nasceriam de novo. Dentro de dois anos (1996), os crentes iriam dizer:
“Deus tem feito grandes coisas”. Por fim, ele afirmou que Deus iria usar Estevam
Hernandes para ser uma influência poderosa sobre os líderes políticos do Brasil, e
concluiu: “Marquem minhas palavras. Não é Benny Hinn quem está falando. Assim diz
o Senhor!”
(g) Questões éticas: outra área que tem gerado preocupação quanto a algumas igrejas e
líderes neopentecostais refere-se ao aspecto ético. É claro que todo e qualquer cristão
está sujeito a cair, a cometer erros de maior ou menor gravidade. Todavia, certas
práticas são difíceis de justificar à luz dos padrões bíblicos. Alguns exemplos: (1) Área
financeira: existem igrejas e ministérios que não são transparentes quanto à maneira
como recolhem e gastam as contribuições dos fiéis. Há alguns anos atrás, nos Estados
Unidos, houve alguns casos notórios de desonestidade que resultaram até na prisão de
um conhecido líder carismático, Jim Baker. Um caso famoso de chantagem na área
financeira foi protagonizado pelo conhecido evangelista Oral Roberts. Será que no
Brasil seria diferente? As práticas da IURD e o estilo de vida do casal Hernandes não
têm contribuído para projetar uma boa imagem dos evangélicos junto à sociedade
brasileira. (2) Área política: o crescente envolvimento dos neopentecostais com a
política partidária não tem sido salutar para o testemunho evangélico em nosso país.
Apesar do discurso de defesa dos interesses da comunidade evangélica ou da sociedade
em geral, o que provavelmente está em vista é a defesa de agendas bem mais específicas
e menos edificantes. Os precedentes nessa área não são nada animadores, como a troca
de votos por concessões de rádio na época do presidente Sarney e a triste participação
de evangélicos nas falcatruas do orçamento do Congresso, há alguns anos. (3) Área
moral: o culto à personalidade que caracteriza certos movimentos e a noção de que não
se pode tocar no “ungido do Senhor,” abre as portas para que certos líderes caiam em
pecado e continuem a encontrar seguidores.
Conclusões
Muito mais poderia ser dito sobre o movimento neopentecostal. Estes são apenas alguns
pontos salientes, que obviamente não esgotam o assunto. Por uma questão de justiça, é
preciso reconhecer que há muitos pastores, crentes e igrejas neopentecostais que são
íntegros, bem-intencionados e fiéis ao Senhor. Esses irmãos têm sido instrumentos para
a conversão e transformação de vidas de milhares de brasileiros, muitos deles
anteriormente escravizados pelos vícios, vivendo em miséria e violência. Um número
incontável de pessoas tem encontrado nas igrejas pentecostais e neopentecostais um
ambiente de calor humano, dignidade e valorização pessoal que jamais haviam
experimentado até então. As igrejas neopentecostais têm trabalhado entre grupos não
alcançados pelas igrejas tradicionais: de um lado, favelados, viciados, aidéticos,
presidiários e outras pessoas marginalizadas; de outro lado, atletas, artistas e outros
grupos mais elevados na escala social. Todavia, por mais que admiremos estes
elementos positivos e sejamos gratos a Deus por eles, não podemos fechar os olhos para
os aspectos preocupantes apontados anteriormente.
Há 250 anos viveu nos Estados Unidos o notável servo de Deus que foi Jonathan
Edwards (1703-1758).[28] Um legítimo descendente dos puritanos, esse pastor e
teólogo calvinista foi um dos instrumentos do Grande Despertamento ocorrido nas
décadas de 1730 e 1740. Edwards foi um atento observador e crítico desse grande
reavivamento, deixando suas impressões nos diversos livros que escreveu sobre o
assunto. Ele constatou que o avivamento tinha aspectos positivos e negativos. De um
lado, conversões, consagração de vidas, mudanças nos relacionamentos, atuação social;
de outro lado, emocionalismo exacerbado, superficialidade, manipulação por pregadores
inescrupulosos, atração por fenômenos espetaculares. Ele mesmo e a sua esposa tiveram
experiências que consideraríamos incomuns. Sua conclusão geral sobre o assunto é que
existem certos sinais, evidências ou frutos visíveis que demonstram se uma determinada
experiência religiosa é genuína ou não: convicção de pecado, seriedade nas coisas
espirituais, preocupação com a glória de Deus, apego às Escrituras, mudança no
comportamento ético, relações pessoais transformadas e influência regeneradora na
comunidade.
--------------------------------------------------------------------------------
[2] Ver Alderi S. Matos. Edward Irving: precursor do movimento carismático na igreja
reformada. Fides Reformata 1:2 (Jul-Dez 1996), p. 5-12.
[5] Paul Freston. Breve história do pentecostalismo brasileiro. Em: Alberto Antoniazzi e
outros. Nem anjos nem demônios: interpretações sociológicas do pentecostalismo.
Petrópolis: Vozes, 1994, p. 70-71.
[7] Freston faz uma observação interessante sobre a Assembléia de Deus: no período em
questão (1910-1950), ela tornou-se a igreja protestante nacional por excelência, sendo a
única grande igreja evangélica a implantar-se e irradiar-se fora do eixo Rio-São Paulo.
“Breve História”, p. 70-71.
[11] Ibid., 376-378; Freston, “Breve História”, p. 124-25. Freston opina que a filiação
foi um “casamento de conveniências”. O CMI precisava de pentecostais e Manoel de
Mello, embora discordasse da teologia do CMI, queria publicidade e auxílio para
projetos sociais.
[13] A Igreja Deus é Amor até hoje não utiliza a televisão, mas é proprietária de uma
rede de emissoras de rádio e transmite os seus programas para toda a América Latina.
Ver Leonildo S. Campos, O milagre no ar: levantamento de técnicas persuasivas num
programa radiofônico em São Paulo. Simpósio – Revista Teológica da ASTE 5/2
(dezembro de 1982).
[15] Nesse sentido, designa aqueles grupos pentecostais que surgiram fora das grandes
denominações brasileiras, pentecostais ou protestantes, fundados e liderados por
empreendedores religiosos que preferiram estabelecer-se por conta própria, sem
vínculos, inclusive, com missões estrangeiras. Ver Leonildo Silveira Campos, Teatro,
templo e mercado: organização e marketing de um empreendimento neopentecostal.
Petrópolis e São Paulo: Vozes/Simpósio/UMESP, 1997, p. 18.
[19] Sobre a relação entre a IURD e a teologia da prosperidade, ver Freston, “Breve
História”, p. 146-153.
[20] Freston, “Breve História”, 153-56. Para uma análise completa da IURD em toda a
sua complexidade, ver a obra de Leonildo S. Campos, Teatro, Templo e Mercado.
Campos é professor da Universidade Metodista de São Paulo, no programa de Ciências
da Religião.
[21] A revista Veja publicou uma entrevista com o bispo Von Helde na sua edição de 1º
de novembro de 1995, p. 50-53. O episódio do “chute na santa” exacerbou ainda mais
uma confrontação entre a IURD e a Rede Globo que vinha ocorrendo há vários meses.
[24] Ver Hank Hanegraaff. Christianity in crisis. Eugene, Oregon: Harvest House
Publishers, 1993, p. 61-102.
[25] Sobre esse tema, ver o excelente estudo do Dr. Augustus Nicodemus Lopes. O que
você precisa saber sobre batalha espiritual. 2ª ed. revisada e ampliada. São Paulo:
Editora Cultura Cristã, 1998.
[28] Ver Alderi S. Matos. Jonathan Edwards: teólogo do coração e do intelecto. Fides
Reformata 3/1 (Jan-Jun 1998), p. 72-87.