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DANIEL CORNU

Série
ECUMENISMO E HUMANISMO
Volume 26

Dirigida por MOACYR FÉLIX E FAUSTO CUNHA

Tradução de CARLOS NELSON COUTINHO

PAZ E TERRA
índice

Introdução 7
Título do original francês: Primeira Parte:
A TEOLOGIA CONTRA o NAZISMO
KARL BARTH ET LA POLITIQUE
Copyright 1968 by Labor et Fides, Geneve Cap. 1. O Ano 1933 11
Cap. 2. Theologische Existenz heute 21
Capa: RAGNAR LAGERBLAD 31
Cap. 3. O Caminho de Barmen
Diagramação e sup. gráfica:
ORLANDO FERNANDES Cap. 4. Barmen e a Igreja Confessante 39
Cap. 5. Barth é Expulso da Alenianha 49
Direitos para a língua portuguêsa adquiridos pela
EDITôRA PAZ E TERRAS. A. Cap. 6. A Evolução da Situação Eclesiástica na
Av. Rio Branco, 156 - 129 andar - si 1222 Alemanha 55
RIO DE JANEIRO
que se reserva a propriedade desta tradução Segunda Parte:
OPOSIÇÃO POLÍTICA
1971
Cap. 1. Em Direção a uma Oposição Política 65
Impresso no Brasil
Printed in Brazil Cap. 2. Um Serviço Político de Deus 71
Cap. 3. Carta a Hromadka 81
Cap. 4. A Segunda Guerra Mundial 89
Ca p. 5. A Queda do Terceiro Reich 103

Cap. 6. Comunidade Cristã e Comunidade Civil 113


Terceira Parte:
INTRODUÇÃO
A LUTA PELA PAZ

Cap. 1. O Rearmamento da Alemanha 129


Cap. 2. A Viagem à Hungria e o Debate com
Brunner 143
Cap. 3. A Igreja entre o Leste e o Oeste 161
Cap. 4. A Carta a um Pastor da RDA 171
Cap. 5. A Paz e a Bomba Atômica 179

CONCLUSÃO 191
Ao CONSAGRAR ÊSTE ESTUDO A KARL BARTH, tivemos a
intenção de prestar homenagem a um teólogo que não teme
enfrentar as realidades dêste mundo. Necessita-se uma -singular
coragem para descer do púlpito para as ruas. Necessita-se, tam-
bém, uma inquebrantável confiança n' Aquêle que nos impele
a isso. Barth teve essa coragem e essa confiança. Não hesitou
em arriscar seu imenso trabalho teológico numa aventura que
não poderia deixar de fazer pesar sôbre êle e sôbre sua obra
a suspeita que hoje se constata em certos meios eclesiásticos.
Recusando desde o início de sua luta contra o nazismo a sepa-
rar sua atividade política de sua indagação teológica, Barth
engajou-se plenamente e retirou previamente de seus adversá-
riso o direito de dissociar o "político" e o "teológic~:'.
Com nossa exposição das' tomaâasde posiÇãO e das refle-
xões políticas de Karl Barth, acreditamos iluminar um aspecto
particularmente importante de sua vida e de sua obra. Com
efeito, entre 1906 e 1955 (meio século sôbre o qual se efetuou
uma completa recensão de seus escritos), podemos encontrar
mais de uma centena de textos consagrados a problemas que
se referem mais ou menos diretamente à política, ou seja, pouco
menos de um quarto do número total de seus livros, artigos e

7
conferências. Pareceu-nos útil reuni-los numa só e mesma obra.
Esforçamo-nos no sentido de extrair as grandes linhas de sua
atitude política, que foi tão vivamente combatida, e de respon-
der assim àqueles que o acusaram periodicamente de cultivar
prazerosamente as viravoltas e a incoerência. Acreditamos tê-lo i.

feito de maneira objetiva, isto é, compreensiva: evitamos atrair


Karl Barth para um terreno que não seja aquêle onde êle pre-
tende se situar. Se todos os seus adversários teológicos e polí-
ticos tivessem tomado essa precaução, teria sido possível, pro-
vàvelmente, evitar vários mal-entendidos.

Genebra, outubro de 1967.

PRIMEIRA PARTE
A Teologia Contra o Nazismo

8
Capítulo I

O ANO 1933

ÜuRANTE CATORZE ANOS, a Alemanha tentou inutilmente


tornar-se uma democracia. A República de 1Weimar extingiu-se
num clima de intrigas e de conspirações, quando, em 30 de
janeiro de 1933, o Presidente Hindenburg confiou a Hitler a
chancelaria do Reich.
Os nacionais-socialistas subiram ao poder, mas ainda não
o detinham. Sobretudo porque, à exceção da chancelaria, êles
não dispunham de postos importantes. O vice-chanceler von
Papen e os conservadores, fortalecidos pelas suas oito pastas,
estavam certos de poder controlar Hitler e seus dois colegas,
Wilhelm Frick e Hermann Goering, o qual, ademais, foi no-
meado Ministro do Interior da Prússia.
Todavia, os dois partidos que formavam o gabinete de
coalizão não possuíam senão 247 cadeiras das 583 que forma-
vam o Reichstag. Para obter a maioria, Hitler decidiu dissol-
ver a Assembléia e convocar novas eleições. Tranqüilizou os
nacionalistas, prometendo-lhes que a composição do govêrno
não seria alterada. As novas eleições foram marcadas para
5 de março.
Começa a campanha eleitoral. No início do mês de feve-
reiro, Hitler proíbe os comícios e a imprensa comunistas. As

11
"tropas de assalto" (S.A. ou Sturm-A bteilung) do Partido Na-
cional-Socialista perturbam as reuniões do Partido Social-De- rais. As reuniões dos partidos democráticos são proibidas ou
mocrático e inclusive as do Partido Centrista Católico. Tra- interrompidas. Tão-somente os nazistas e seus aliados naciona-
vam-se choques, que fazem numerosos feridos e, algumas vêzes, listas podem encaminhar sem perigos sua campanha eleitoral.
até mesmo mortos. Segundo Shirer, cinqüenta e um antinazistas Apesar do espectro do comunismo, que tão hàbilmente
são assassinados; os nacionais-socialistas dizem ter perdido de- brandiram, apesar do terror e das perseguições, apesar de uma
zoito adeptos 1• Goering aproveita-se dêsse período para apo- propaganda em grande estilo, os nacionais-socialistas não con-
derar-se da polícia prussiana, na sua qualidade de Ministro do seguem mais do que uma vitória modesta: 44% dos sufrágios.
Interior. A Prússia contava, por si só, com dois terços da po- Ainda necessitam dos 8% obtidos pelos nacionalistas para obte-
pulação do Reich; assim, Goering passa a controlar a ,,....~...~ rem maioria no Reichstag. Ora, Hitler esperava obter uma
da polícia alemã. Duas buscas realizadas por seus homens na maioria de dois terços a fim de poder estabelecer sua ditadura
Casa Karl Liebknecht, centro do Partido Comunista, permi- com o consentimento dos deputados. Todavia, consegue atin-
tem-lhe apoderar-se de "documentos" que provam estarem os gir seus propósitos fazendo com que o Reichstag aprove ( êle
comunistas prestes a desencadear uma revolução. O incêndio proibira a entrada dos 81 deputados comunistas e de alguns
do Reichstag, na noite de 27 de fevereiro, dissipa as últimas social-democratas), em 23 de março, um "decreto de habili-
dúvidas existentes ainda na opinião pública quanto a essas pre- tação" que confere a seu gabinete o poder legislativo exclusivo
tensas maquinações. Os historiadores concordam, hoje, em durante quatro anos. Apenas 84 social-democratas se opõem
responsabilizar os nacionais-socialistas, particularmente Goe- aos partidários convictos ou intimidados dêsse decreto, intitu-
ring, por êsse incêncio que serviu tão oportunamente a seus lado "Lei para minorar o infortúnio do povo e do Reich" ( Ge-
interêsses, uma semana antes das eleições. setz zur Behebung der Not von Volk und Reich).
No dia seguinte ao incêncio, em 28 de fevereiro, Hitler Êsse texto retira ao Reichstag seu poder legislativo, inclu-
obtém do Presidente Hindenburg um decreto, "Para a prote- sive o contrôle do orçamento do Reich, a aprovação de trata-
ção do povo e do Estado". Êsse decreto suspende as sete seções
dos internacionais e a iniciativa de emenda constitucional. Esti-
da Constituição de Weimar que asseguram a liberdade de
opinião, a liberdade de reunião e a liberdade de imprensa. Por pula, por outro lado, que os textos das leis promulgadas pelo
outro lado, autoriza o Reich a substituir as autoridades dos gabinete devem ser redigidos pelo Chanceler e podem se afas-
Liinder e a legislar em seu lugar, nos casos em que elas se tar da Constituição.
recusem a tomar as indispensáveis medidas de segurança pú- Hitler está com as mãos livres, inclusive juridicamente,
blica. Finalmente, prevê a pena de morte para um certo número para governar como lhe agrade. A autoridade do Presidente
de crimes, entre os quais se incluem os atentados graves à Hindenburgo não é mais do que uma palavra. Os antigos par-
segurança do Estado por pessoas arma<las. tidos políticos, até mesmo os de direita, desagregam-se. Nessa
A aplicação do decreto não se faz esperar. Cêrca de reviravolta política, é tolerado apenas o Partido N acional-So-
4. 000 dirigentes comunistas, bem como um grande número de cialista, que substitui o Estado: a lei de 14 de julho de 1933
dirigentes social-democratas e liberais, são presos. Entre êles transforma-o no único partido político autorizado e qualifica
estão membros do Reichstag, apesar dêsses, segundo a lei, goza- como crime a tentativa de manter um partido existente ou de
rem de imunidade parlamentar. Ê o início do terror nazista. formar um nôvo.
Os caminhões dos S . A. semeiam o pânico em todo o país. Quinze dias após a aprovação do Reichstag, os dezessete
Após a proibição da imprensa comunista, é a vez de serem Liinder são absorvidos pelo Reich. O Reichsrat, onde os Liinder
suspensos os jornais social-democratas e numerosos jornais libe-
estavam representados, é abolido. A centralização será concluída
em janeiro de 1934.
1. William Schirer, Ascensão e Queda do Terceiro Reich, Ed. Ci· Em 19 de abril de 1933, Hitler proclamou um boicote na-
vilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1962, vol. 1, cap. 6. cional contra as lojas judias.
12
Karl Barth, que ensinava na Universidade de Bonn desde
1930, viveu êsses eventos de perto. Todavia, é uma outra as razões para acompanhá-los nesse caminho. Durante os dois
situação que o preocupa em 1933, quando aparece o seu fa- últimos séculos, a teologia liberal buscara uma síntese entre
moso manifesto "A existência teológica hoje" (Teologische () cristianismo e as concepções modernas. Ela se declarara favo-
Existenz heute): a· da Igreja Evangélica da Alemanha. r~vel aos ideais do nacional-socialismo desde sua aparição no
Até 1918, as igrejas protestantes alemãs submetiam-se ao seculo XIX. Um de seus mais ilustres representantes Richard
chamado .X~g@e "de soberania": os monarcas hereditários e Rothe\ ~hegou mesmo ª. dizer que a Igreja e o Estado deviam
os pequenos senhores eram, ao mesmo tempo, bispos de seus necessariamente se fu_nd1r n~ma só unidade, no seio da qual 0
respectivos territórios. Quando os reis e príncipes são derru- Est~do se encarregana, mais ou menos, de tôdas as funções
bados, após a Primeira Guerra Mundial, as Igrejas são desli- ha~1tualmente confiadas à Igreja; um Estado perfeito encar-
gadas de quase tôdas as suas obrigações para com o Estado. nana a noção do Reino de Deus 1.
Elas enfrentaram assim uma situação inteiramente nova, que !ara Martin Niemóller, como para muitos dos pastôres
as obrigava a um aprendizado de. sua autonomia em circuns- alemaes, os catorze anos da República de Weimar haviam sido
tâncias muito pouco favoráveis. Com efeito, elas mantinham ~'anos de obscuridade" 4 • E o próprio Niemoller acrescentará
de sua ligação com o regime dinástico uma concepção muito a sua autobiografia, "Do submarino ao púlpito" (Vom U-Boot
conservadora da política eclesiástica. Por outro lado, seu nôvo s,
zur Kanzel~ um~ nota q~e expressa a sua satisfação pelo fato
associado, a República de Weimar, era um exemplo de inse- da revoluçao nazista ter f111almente triunfado e de ter provo-
gurança e de instabilidade. Finalmente, demasiadamente com- cado essa "resistência nacional" pela qual êle mesmo havia
prometidas outrora com um regime que caíra em desgraça, esta- no batalhão do qual tantos chefes nazistas emana-
vam sendo abandonadas pelas massas. ram 6.
Em 1922, a Federação Alemã das Igrejas Evangélicas _ Por trás dessa renovação do nacionalismo, que penetrou
(Deutscher Ev. Kirchenbund) tentara se impor como repre- ta~ profundamente na Igreja Evangélica alemã, encontra-se
sentante única do protestantismo alemão. As vinte e oito igre- ey1~ent~m~°:te a r~ação política, suscitada por uma longa tra-
jas luteranas, reformadas ou unidas, que a compunham manti- d~ç~o ~1stonca foqada por Frederico II e Bismarck, nas con-
veram, todavia, uma independência absoluta nos domínios con- d1çoes impostas ~ Alemanha pelo Tratado de Versalhes. Mas
fessional e constitucional. A mais importante delas era a Igreja des~obre-se tambem. uma corrente quase religiosa, µma mito-
da Velha União prussiana, que contava com 18 milhões de lo~1a d? ~Povo, nascido do Solo, do Sangue e da Raça, uma
membros. ~1toiogia do. J?'.s.tado-Deus preparada pela filosofia alemã do
A tradição luterana não preparara as igrejas alemãs para a seculo X~, m1cialmente por Fichte e Hegel, depois por Treits-
democracia. A reviravolta política lhes fizera perder sua segu- chke e N1etzsch~ e por estrangeiros, tais como o francês Joseph-
rança e seus privilégios e a República de Weimar tinha seu Arthur de Gobmeau e o inglês Houston Stewart Chamberlain.
sustentáculo principal nos católicos do Centro e nos socialis- Isso sem falar na influência de um Richard Waaner. Os "filó-
tas. Essas condições conduziram, finalmente, à substituição do sofos" do Terceiro Reich, como Alfred Rosemb:i_.g, retomaram
nacionalismo (das Nationale) no trono, na tradicional relação por sua cont~, sob uma fo.rma ao mesmo tempo terrível e ingê-
entre o trono e o altar, os quais há muito faziam causa comum 2 • nua, ~ mov1m~nto anunciado pelo famoso Discurso à Nação
Foram então os círculos mais conservadores que se voltaram Alema, que F1chte pronunciou em 1807 na Universidade de
com maior resolução para o nacional-socialismo, acreditando
descobrir nêle a prom.~§.§a de uma Igreja forte através de uma
nova união C()m_o_E_stadÜ..Õs prótestantes liberais tinham tôdas 3. Arthur Frey, Le culte de l'Etat et le témoignage de l'Eglise Ge-
nebra, 1942, p. 15. '
4. L~o Stein, I w~s in hell with Niemoller, New York, 1942, 30
2. Religion in Geschichte und Gegenwart, 3~ edição, art. Kirchen- Citado por Schrrer, op. cit., vol. 1, p. 351. p. ·
kampf 2, Tubinga. 5. Ma~tín Niemõller, Vom U-Boot zur Kanzel, Berlim, 1934.
6. Schirer, op. cit., vol. 1, p. 351.
14 KARL BARTH 2
15
Berlim, após a humilhante derrota infligida à Prússia por Napo- Est(ldp 11ão serão modificadas" 9 • Mas, no mesmo dia,
leão, em lena. tambem assegurara aos deputados que nem a existência do
Arthur Frey, em sua obra O culto do Estado e o teste- Reichstag ne~ .ª do Reichs;at estavam ameaçadas, que a po-
munho da Igreja, esboça um quadro muito completo de tôdas s1çao e os drreitos do Presidente permaneceriam intocáveis e
as tendências político-religiosas que se multiplicaram na Ale- ~in~Ii:nente, que não sofreria nenhuma alteração a existênci~
manha desde antes da Primeira Guerra Mundial, durante os md1v1dual dos Estados da Federação. Já vimos o que ocorreu
anos da República de Weimar e na época do regime hitleriano. com tôdas essas promessas.
Essas diversas tentativas de definir "a fé alemã", todavia, serão Em 27 de agôsto de 1933, por fim, Hitler declara a Go-
amplamente dominadas - durante a primeira época do nazis- desberg: "A unidade dos alemães deve ser garantida por uma
mo - pelo poderoso "Movimento dos Cristãos Alemães". Barth nova concép'ÇãO do mundo, pois o cristianismo - sob a forma
se gporá violentamente, desde junho de 1933, ªêsse movi- atual ::-- não mais está à altura das exigências que é preciso
mentg e à sua tentativa de germanizar - ou melhor, "hitle- agora impor aos elementos que asseguram a unidade alemã" 10.
iizar" - a Igreja. Nessa época, Karl Barth ensina dogmática em Bonn. Antes
"Durante um século, escreve Frey, enquanto crescia o de s~r nomeado para a cidade renana, êle já havia ensinado em
mito da Nação, a Igreja fechara os olhos; ela também os féchou Gottmgen e em Münster. Durante uma dezena de anos êle
em 1933. Podemos mesmo dizer que a Igreja não pecou somente seguiu os passos de um protestantismo liberal. Aluno de '
por ausência de vigilância, mas que ela favoreceu o naciona- Herrrnann em Marburgo, foi um leitor atento de Schleiermacher
lismo até o dia em que se transformou em sua vítima, sacri- assim, , é un; ~arl Barth alimentado de teologia liberal qu~
ficada no altar do Mito" 7• c.hega a paroquia de Madalena, em Genebra, como eleitor, nos
Em 1933, as Igrejas protestantes, portanto, estavam pre- fms de 1909. Mas, durante seus primeiros anos de
dispostas a aceitar a mensagem do Terceiro Reich. Veremos em. Safenwil, no cantão de Argóvia, desde 1911, o problema
que tão-somente uma minoria, à qual Niemoller ràpidamente social passa à frente das preocupações teológicas: Barth 15e toma
se juntou, saberá denunciá-la como uma mensagem enganosa. socialista cristão. Êle sofre, então, a influência de dois teólogos
Até 1930, o Partido Nacional-Socialista evita misturar "s~ciais".: , f!e~rmann Kutter e Léonard Ragaz. Em sua paró-
diretamente as igrejas regionais à sua luta política. Mas, a quia, ongmanamente apenas rural, três usinas fornecem o
partir de 1931, êle começa a mobilizá-las em sua oposição "ao ganha-pão à maioria de seus paroquianos. Barth toma contato
sistema de Weimar, ao marxismo, ao judaísmo e ao Centro" 8 • com o~ pr_?bl~mas sociais colocados pela presença de uma impÓr-
Formações do Partido se introduzem nos círculos eclesiásticos !ante .mdustna. ?corre-lhe, em mais de uma oportunidade,
e se esforçam para ganhar eleitores para o nacional-socialismo. mterv~ n_,os conflitos e3tre_ ºJ?erários e patrões. Participa na
Agrupamentos influenciados pela nova doutrina penetram tam- o~ga~1za5ao de ~~a açao ~md1c~l e empresta seu apoio a rei-
bém nos sínodos. Os Liinder de Nassau e de Bade são os pri- v11:1d1caçoe~ salana1s 11 • Apos hesitar durante algum tempo, ter-
meiros atingidos. Quando das eleições eclesiásticas da Prússia, mma por mgressar - em 1915 - no Partido Social-Democra-
em 1923, o Partido apóia os "Cristãos Alemães", chefiados !ª· "!Je ~ua experiê1:1ci.a na paróquia argoviana, conserva uma
pelo pastor J. Hossenfelder, que obtém um têrço das cadeiras. mclmaçao pelo socialismo que não tentará jamais dissimular
No curso da sessão do Reichstag de 23 de março de embora sempre mantendo uma atitude crítica. '
1933, quando a assembléia demite-se de suas prerrogativas em A Primeira Guerra Mundial se inicia. Barth é abalado em
favor do Chanceler do Reich, Hitler prometeu solenemente: "Os ~ua fé liberal e em suas esperanças socialistas. É então· que
direitos das Igrejas não serão atingidos. Suas relações com···º· ele se volta para a esperança escatológíca. Escreve suas duas

9. Theologische E~ste1!z heuteJ, Munique, 1933, p. 10 ..


7. Frey, op. cit., p. 22. 10. Edmond Ver~ell, Hitler: et le christianisme, Pari.s, 1940, p. 48.
8. Religion in Geschichte unà Gegenwart, art . .Kirchenkampf 3. 11. Georges Casabs, Portrazt àe Karl Barth, Genebra, 1960, pp. 21-22.

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radicalismo: em primeiro plano, Emil Brunner, Friedrich Go-
edições sucessivas do Comentário sôbre a Epístola aos Roma- garten e Rudolf Bultmann.
nos. A segunda marca o advento que é designado pela Desde o fim de seus estudos, Barth manifestou um vivo
expressão "te~logia. da crise.". . interêsse pelos problemas da civilização e pelas questões so-
Essa teologia, com efeito, Er?clama a cnseA do tempo pela ci~is. Deixamos de lado os primeiros escritos que êle consa-
eternidade: Deus proclama um 3ulgamento sobre o homem, grou a tais questões. Consideramos, com efeito, que uns tra-
iliia· cultura, sua civilização. A existência humana é ligad~ .à tam de temas sem maior importância, enquanto outros corres-
temporalidade, ao pecado e à morte. O conjunto de suas ativi- pondem a uma concepção política muito embrionária ou ema-
dades inclusive suas atividades religiosas, são aquelas de uma nam de uma teologia destinada a uma transformação bastante
criatu~a pecadora. Entre o homem e a diferença qualita- radical. Todavia, não nos parece sem interêsse citar alguns
füra é infinita. O homem não pode atingir Deus por si mesmo. títulos: "Para a dignidade de Genebra" ( 1911), "Jesus Cristo
"A relação não se estabelece senão pela revelação de Deus em e o Movimento Social" (Jesus-Christus und die soziale Bewe-
Jesus Cristo, e esta toca o mundo sem penetrá-lo, como a tan- gung, 1911), "Discurso sôbre os aviões militares"
gente em relação ao círculo", escreve Henri Bouillard. "~esmo betreffend Militiirflugzeuge, 1913), artigos sôbre os cassinos
comunicado, Deus não é jamais possuído: sempre obieto de e os jogos de roleta (Spielbankinitiative e Die Gewinnchancen
esperança, sempre a vir, sua presença é a cada insta~te ~nn beim Rosslispiel, , "Advertência à burguesia de
futuro eterno. Escatologia e transcendência fundem-se mteira- Wort an das Bürgertum!, 1919), "O cristão
mente. É tão-somente na linha da morte, no ponto em que nossa na sociedade" Christ in der Gessellschaft,
existência se curva diante do não divino, que êsse não se revela tões de fundo da ética social cristã"
como um sim, o juízo como uma graça. É no rigor de seu juízo chen Sozialethik, 1922), "O problema ético na época atual"
que atingimos a realidade de Deus. Mas aí, no milagre da (Das Problem der Ethik in. der Gegenwart, 1923) e, finalmen-
re·ssurreicão e da fé nós a atingimos verdadeiramente" 12 • te, após anos de pesquisas em teologia pura, "O
Porém Karl Ba~th evolui. Tornado professor, elabora uma blema da ética teológica" Arbeit als Problem der
teologia da palavra de Deus, centrada não mais sôbre a crise gischen Ethik, 1931).
do tempo e da eternidade na ressurreição, mas sôbre o evento Em 1933, todavia, o interêsse que Barth sempre empres-
que os liga na encarnação. Submetida inicialmente a uma certa tou às questões políticas está nitidamente dominado por aquêle
influência kierkegaardiana, a teologia da Palavra liberta-se, que o leva a afirmar uma teologia desvinculada de qualquer
desde 1929 de qualquer fundamento e de qualquer justificação traço de liberalismo. É por essa razão, em parte, que sua pri-
tomadas de' empréstimo a uma filosofia autônoma da existência, meira reação à instauração da nova Alemanha será !eológica
à. uina antropologia geral. A Palavra de Deus, soberana e livre, antes de ser política. E ela não visará tanto à situação interior
é dirigida ao homem na ressurreição de Jesus Cristo. É uma do Terceiro Reich quanto à ameaça que a propagação de uma
graça, e o homem que recebe essa Palavra reveste-se de uma nova crença faz pesar sôbre a fé cristã e a Igreja Evangélica
nova dignidade. Essa dignidade, que o homem reconhece em Alemã.
seus semelhantes . c;onstitui a base de sua ética. Radicàlmente
oposta a tôd~ t~ol~gia natural, essa teologia da Palavra deve
ser considerada como uma cristologia, já que repousa inteira-
mente sôbre a vitória de Deus em Jesus Cristo.
A rejeição da teologia natural implicará numa ruptura entre
Karl Barth e seus amigos, os quais, nesse ponto, recusarão seu

12. Henri Bouillàrd, Karl Barth, I. Genese et évolution àe la théo-


logie àialectique, Paris, 1957, p. 259.
19
18
Capítulo II

THEOLOGISCHE EXISTENZ HEUTE

CoM A ASCENSÃO DE HITLER AO PODER, os eventos ecle-


siásticos se precipitam. Enquanto os "Cristãos Alemães"
buscam criar uma Igreja do Reich nacional-socialista
proclamando uma "revolução" no interior da Igreja, o Chan-
celer nomeia - em 25 de abril de 1933 - o pastor Ludwig
Müller, seu amigo e capelão militar em Konigsberg, para o cargo
de conselheiro munido de plenos podêres para os assuntos rela-
tivos à Igreja Evangélica. E, para evitar a "revolução" ecle-
siástica projetada pelos "Cristãos Alemães" (que podem pro-
vocar uma reação muito forte no seio da Igreja), êle a desa-
prova, adotando por sua conta o princípio de uma Reichskir-
che<.
Durante êsse tempo, Herrmann Kapler - presidente do
Conselho Superior da Igreja Evangélica (Evangelischer Ober-
kirchenrat) da Prússia e do Comitê da Igreja Evangélica Alemã
(Deutsche Ev. Kirche) - prepara, em ligação com as Igrejas
regionais, a transformação da Federação das Igrejas (Kirchen-
bund) numa Igreja Evangélica Alemã (Deutsche Ev. Kirche).
Em 25 de abril de 1933, um sínodo geral delega a um triun-
virato formado por Kapler, pelo bispo August Marahrens (pe-
los luteranos) e por Albert Hesse (pelos reformados) seus po-

21
dêres para elaborar um projeto d_e constituição~ ~anife~t,ª1:1ªº provar que é a Igreja do povo alemão "ajudando" êsse último
sua alegria agradecida pelo renascimento do espmto patnotlco, "a reconhecer e a realizar a missão de que foi encarregado por
0 sínodo afirma sua decisão de manter a independência da
Deus", e que "é também o objetivo supremo do atual Govêr-
Igreja contra qualquer envolvimento ?º Est~do 1 •. ~r~s ?ias no". Para os "Cristãos Alemães", "a grandeza do Estado na-
mais tarde, o triunvirato lança o segumte apelo s1gmhcatlvo: cional-socialista" não é apenas uma questão de civismo ou de
"Um poderoso movimento nacional dominou e levantou nosso convicção política, mas um objeto de fé. Reclamam uma Igreja
povo alemão. Uma transformação profunda e geral e~tá em que compartilhe de seus pontos de vista a respeito. O Evan-
curso no seio da alemã despertada de seu sono. Dizemos gelho não deve ser anunciado no futuro senão enquanto "Evan-
um 'sim' agradecido a essa reviravolta da história. Foi Deus gelho no Terceiro Reich" (Evangelium im Dritten Reich). A
que nô-la deu. Glória a Êlel Ligados à Palavra de reco- confissão de fé deve ser mantida, mas deve se desenvolver no
nhecemos nesse evento de nosso tempo uma nova sentido de uma "defesa incondicional" (Scharf A bwehr) contra
ordem do Senhor sua Igreja ... " 2 • "o mamonismo, o bolchevismo e o pacifismo não cristão". A
A nova constituição preparada pelo triunvirato a nova Igreja será "a Igreja dos cristãos alemães, ou seja, dos
criação de um pôsto de bispo do Reich, estendendo assim ao cristãos de raça ariana". Ela "fornecerá armas para o combate
domínio eclesiástico o "princípio do chefe" contra tudo o que é não-cristão e destruidor do povo" 4 •
já aplicado ao domínio político. Ela não entrará em Compreende-se que, com um tal programa, os "Cristãos
no mês de julho; mas, já en1 26 e 27 de maio, em D'"'"uª"'·'· a Alemães" desejassem um bispo mais resoluto do que Bodelsch-
maioria dos representantes das Igrejas Regionais o wingh. Durante três semanas, empregam todos os meios para
pastor Friedrich von Bodelschwingh para assumir êsse cargo. derrubá-lo. Organizam reuniões às quais os estudantes de teo-
O pastor Bodelschwingh é um homem modera~o. sem logia são obrigados a assistir. Os que são ameaça-
dissimular sua estima por mais tarde o fato dos de serem expulsos da universidade. Em 2 de os
de ter por vêzes carecido de firmeza e de clareza em suas toma- "Cristãos Alemães" publicam as razões de sua oposição ao
das de posição teológicas 3 • Essa nomeação, tod~via, é um mal pastor Bodelschwingh: o bispo foi escolhido sem que o homem
menor. Pois Ludwig Müller, o homem de confiança do Chan- de confiança do Chanceler, o capelão Müller, fôsse informado.
celer, tornado "protetor" dos "Cristãos Alemães", também Ora, deveria ter havido um acôrdo entre o triunvirato e Müller.
apresentara sua candidatura. _ A nomeação de Bodelschwingh, portanto, é ilegal s.
Müller protesta violentamente contra a sua exclusao, Em 21 de junho, Kapler se afasta e o superintendente
apoiado por seus "Cristãos Alemães". A partir do momento geral da Renânia é nomeado comissário, com o encargo das
em que obtiveram a caução do poder, êsses últimos comp~een­ questões presidenciais. O Ministro dos Cultos da Prússia, Ber-
deram que era de seu interêsse definir u~ pro~rama ?e lmhas nhard Rust, considera que essa nomeação constitui urna viola-
mais moderadas, pois era evidente que Hitler _nao desejava urna ção do tratado de Estado. Com êsse pretexto, denuncia o apa-
"revolucão". O manifesto dêles de 5 de ma10, e sobretudo o
0
relho dirigente da Velha União prussiana e é Müller quem se
de 16 d e maio, enunciam concepções e definem objetivos menos apodera do cargo deixado vago por Kapler. O antigo capelão
românticos, portanto, do que os que haviam sido enunciados de Konigsberg modifica imediatamente a composição do comitê
e definidos um mês antes. "Parece-nos que o povo alemão, bus- encarregado de elaborar a constituição.
cando voltar às fontes profundas de sua vida e de sua fôrça, Por seu turno, o ministro Rust nomeia ainda para a Prús-
quer também reencontrar o camin?o da Igr?jª· As _Igrejas sia um Comissário de Estado encarregado de colocar a Igreja
alemãs devem fazer tudo para que isso ocorra . A Igre1a deve nos trilhos. Isso significa retirar à Igreja a iniciativa e a direção

1. Cf. Foi et Vie, Paris, 1933, p. 615.


2. Citado por Barth, em Theologische Exi.st~nz heut_e!, p. 10. 4. Extratos citados por Barth, em Theologische Existenz heute!, pp.
3. Offenbarung, Kirche, Theologie, Prefac10, Mumque, 1934, pp. 22-23.
11-13. 5. Foi et Vie, 1933, p. 618.

22 23
da reorganização projetada. Êsse comi~sá~i? chama-se Au~~st dãos, como pensadores, como portadores de um coração perpe-
Jager. Institui, por seu turno, um com1ssano em c~da regrao, tuamente inquieto, etc.), a Palavra de Deus represente o que
geralmente o chefe local dos "Cristãos A:Iemães", _dispondo de ela é (quer se queira ou não) e o que somente ela pode ser
plenos podêres para tomar tôdas as medidas que JU}ga~ n~~es­ para nós; e que, em particular, ela conquiste nossa vocação de
sárias e para depor os pastôres recalcitrantes. O propno J ag~r pregadores e de doutôres como somente ela tem o poder e o
dá o exemplo, demitindo os principais superintendentes gera:s. direito de fazê-lo" 9.
O pastor-bispo . Bodelschwingh não tem out:a soluçao Para Barth, a violenta tentação dêsses primeiros meses de
senão afastar-se. O dia é 24 de junho de 1933. Ele escreve regime nacional-socialista é "que desconheçamos, sob a pressão
então duas cartas nas quais afirma que o exercício de seu de outras reivindicações de nosso tempo, as exigências da Pa-
cargo se lhe torn~u impossível, em virtude d~ instit_uii;:,ão ~e lavra de Deus no que elas têm de imperioso e de exclusivo e
um Comissário de Estado e que êle deve pedir demissao ofi- que, no mesmo momento, cessemos de compreender a própria
cialmente; que êle não re~uncia à missão que lhe foi confiada; significação dessa Pafavra" 10. É que, no tumulto que fazem
que a situação é grave e q~e a I~;ej~ deve se preparar p~ra a certas "potências, principados e domínios", os pregadores e os
resistência. Mas Bodelschwmgh Ja nao tem nenhum me10 de doutôres da Igreja busquem "Deus em outro lugar que não em
atuar sôbre a Igreja. Nenhum jornal publica suas i:iensagens. sua Palavra, sua Palavra em outro lugar que não em Jesus
Ele se vê reduzido a enviá-las através de cartas pnvadas 6 • Cristo e Jesus Cristo em outro lugar que não na Sagrada Escri-
E no momento da demissão de Bodelschwingh, na noite tura" 11 •
de 24 para 25 de junho, que Karl Barth escr~ve seu :nanifesto Malgrado sua formulação rigorosamente teológica, êsse
"A existência teológica hoje". Numa breve mtroduçao, Barth apêlo tem um conteúdo eminentemente político. As primeiras
explica que amigos e alunos pressionaram-no para que se pro- declarações dos "Cristãos Alemães" já anunciam a pretensão,
nunciasse. Mas - êle concretiza imediatamente - "o essen- que o regime nacional-socialista formulará de um modo cada
cial do que tenho a dizer sôbre isso não poderia ser, para vez mais claro, de transformar êsse regime numa nova reve-
mim, objeto de uma comunicação oc~sio1!-~~' estranha P?r. su~ lação de Deus na Alemanha. A colocação de Karl Barth nega
natureza às minhas preocupações habituais .. Pelo c~ntrano, e previamente qualquer legitimidade ao Estado-deus ou ao Es-
como teólogo que êle deseja falar, acreditan~? ~ssim .toi:iar tado-igreja, isto é, a essa espécie de Estado totalitário muito
posição, por sua vez, "em face da questão ecles1astica e, mdire- peculiar à Alemanha nazista, o qual tentará não somente englo-
tamente, da questão política" 7 • • , • bar o homem e suas múltiplas atividades (como todos os Esta-
Em plena agitação, Karl Barth considera necessano. lem- dos totalitários), mas também Deus e sua revelação. Nessas
brar aos pregadores e aos dout?res da IgrejaA--: o mamfesto primeiras páginas de Theologische Existenz heute!, Barth já
dirige-se, em primeiro lugar, a eles - a ex1gencia da ~alavra ataca indiretamente, portanto, o Estado nacional-socialista.
de Deus. Pois a pretensão dessa palavra de ser anunciada e Ele tenta, em seguida, trazer alguns esclarecimentos sôbre
ouvida "é mais imperiosa do que tudo no mundo" 8 • três assuntos, estreitamente ligados, que preocupam a Igreja
"E é isso que eu chamo nossa 'existência teológica': o Alemã nesse fim do mês de junho de 1933: a questão da refor-
fato de que, em meio a nossa existência comum (por exemplo, ma eclesiástica, a da nomeação de um bispo do Reich e a
como homens, como pais e filhos, como alemães, como c1da- existência do movimento dos "Cristãos Alemães".
Uma reforma da Igreja, mesmo exterior, deve emanar das
necessidades profundas da vida da Igreja e da sua vontade de
6 o conteúdo dessas cartas é mencionado em Foi et Vie, 1933, pp.
obedecer à Palavra de Deus. Em caso contrário, não se trata
623-624. -
7. Theologische Existenz heute!, p. 3. (Uma; traduçao franc.esa
parcial foi publicada, com o título "Un avert1sseme;it aux Eghses
d'Allemagne", em Les Cahiers protestants, Neuchatel, 1933, pp. 9. Op. cit., p. 5.
257-274.) 10. Op. cit., pp. 5-6.
8. Op. cit., p. 4. 11. Op. cit., p. 6.

24 25
absolutamente de uma reforma da l greja. Ora, ~~rth acredita
enxergar nas motiv~ções profunda: ~e cer~o.s dmgentes ecle- obra de Deus se realizam quando os homens - e tam-
siásticos mais entusiasmo ou prudencia poht1cas do que obe- bém o povo alemão - são alimentados por sua Palavra",
diência à Palavra. "Com efeito, escreve, não se um 4 "A Igreja crê na instituição divina do Estado como repre-
princípio inteiramente nôvo na ~greja evangélica quando, aber- sentante e portador da ordem legal. Mas ela não crê nem
tamente, afirma-se ter reconhecido 'uma nova or_dem de Nosso em um Estado particular - e, portanto, tampouco no
Senhor à sua Igreja', e não na Sagrada Escritura, mas no Estado alemão - nem em nenhuma forma de Estado -
'grande evento do tempo presente'?" 12 • Portanto, é num e, portanto, tampouco no regime nacional-socialista. Ela
equívoco que a Igreja se pôs ~ realizar s~a reforma. anuncia o Evangelho em todos os impérios do mundo.
A idéia de um bispo do Re1ch nasceu, m:1mres,ta- Ela o anuncia também no Terceiro Reich, mas não sob
mente do desejo de imitar o Estado nacional-socialista, esten- êsse últinw, nem em seu espírito."
dendo' à Igreja o Barth não rejeita o 5, "A confissão de fé da Igreja, quando ela deve ser corri-
de uma "direção" em mas não a gida e desenvolvida, o é segundo a Sagrada Escritura, e
enquanto evento. Se existisse nesse momento na Igreja jamais segundo afirmações e negações de uma W eltans-
um Calvino ou um um homem que a vontade de Deus chaaung política ou de qualquer outra natureza, acredi-
impusesse como Fiihrer da o teria tada em certa época, mesmo se se trata das posições do
sentido . . . e não seria necessário recorrer à instituição de um nacional-socialismo. A Igreja não deve 'fornecer armas',
pôsto especial de bispo do Reich. J_"odavia, ,ª. arbitrária decisão nem a nós, nem a quem quer que seja".
de criar um tal cargo conduz a Igre1a evangehca a um "A comunidade dos que pertencem à Igreja não é consti-
o episcopado no sentido católico romano. Por isso, tuída pelo sangue, nem portanto pela raça, mas pelo Espí-
que a única solução consiste em voltar atrás. .. rito Santo e pelo batismo. Se a Igreja evangélica alemã
Cabe aos "Cristãos Alemães" a responsab1hdade de ter devesse banir do seu seio os cristãos de origem judaica ou
desencadeado a reforma da Igreja e de ter levantado a considerá-los como cristãos de segunda classe, então ela
do episcopado. Barth refuta detalhadamente suas teses teria deixado de ser uma Igreja cristã".
"Se o cargo de bispo do Reich pudesse ser reconhecido no
cipais: seio da Igreja evangélica, sua atribuição - como a de
1. "Não é para 'que o povo alemão reencontre o caminho da qualquer função eclesiástica - não deveria depender de
Igreja' que a Igreja deve 'fazer tudo', mas par.a que êsse pontos de vista e de métodos políticos, mas deveria ser
povo encontre na Igreja a lei e a promessa da livre e pura preenchida pelos representantes regulares das comunida-
Palavra divina". des e não levar em conta senão qualidades requeridas pela
2. "O povo alemão recebe sua vocação de Cristo e por Cristo Igreja".
através da Palavra de Deus anunciada segundo a Sagrada :8. "A formação dos pastôres deve ser modificada não 'em
Escritura. Essa pregação é a tarefa da Igreja. Não é ta- vista de um contato mais íntimo com a vida de sua paró-
refa da Igreja ajudar o povo alemão a realizar uma 'voca- quia', mas no sentido de uma melhor disciplina e de uma
ção' estr~nha à vocação que vem de Cristo, visando a maior aplicação na realização da única tarefa que lhes é
Cristo". confiada e ordenada, a saber, a da pregação da Palavra
3. "Ademais, a Igreja não tem de servir ao ~ornem, i:e.m, segundo a Escritura".
por conseguinte, ao povo alem~?· A I~re1a evangeh~a. 9 ~ 13

alemã destina-se ao povo evangehco alemao, mas ela nao


é a servidora senão da Palavra de Deus. A vontade e a Mas a intenção de Karl Barth não é tanto a de refutar as
teses dos "Cristãos Alemães", ou de convencer seus partidá-
12. Op. cit., p. 12.
13. Op. cit., pp. 24-25. As reticências estão no texto alemão.

26
27
rios. Como dissemos, é aos pregadores e aos doutôres da Igreja a um Deus, a Escritura basta para guiar a Igreja no sentido
que êle se dirige, e é a autenticidade da mensagem dêles que o da verdade, a graça de Cristo basta para regular nossa vida 16 •
preocupa. "Não pecamos somente contra Deus, mas também Reprochar-se-á ao professor de Bonn, antes de mais nada, mais
contra o povo alemão, quando corremos atrás de outras tare- ainda do que anteriormente, o fato de negligenciar o engaja-
fas e de outros ideais que não nos são prescritos". E por isso, mento prático. Diante da nova situação criada pelos eventos
aduz Barth, nosso mandato "exige ser executado, quer o povo de 1933, como podia êle se limitar a essa difícil "existência teo-
o deseje ou não, quer o compreenda ou não, quer o aprove ou lógica"?
não" 14 • Mas é precisamente a pressão das circunstâncias exterio-
"Para onde foi tudo aquilo que se chamava, há um ano e res que vai emprestar a seu manifesto uma importância muito
antes disso durante cem anos, liberdade, direito e espírito? precisa. O próprio Barth a explicará: "Não fui eu que mudei
Decerto, trata-se de bens temporais e terrestres. Tôda carne - escreverá - mas o espaço e a ressonância do espaço no
é como a erva. . . Não há dúvida: muitos povos, na antigüi- qual eu devia falar. A repetição conseqüente dessa doutrina,
dade e nos tempos modernos, já tiveram de (e, portanto, pude- aprofundada simultâneamente nesse nôvo espaço, tornou-se por
ram) passar sem tais bens, quando a audaz emprêsa do 'Estado si mesma praxis, decisão, ação" 11.
totalitário' assim o exigia. Mas a Palavra de nosso Deus per- Essa ação vai se concretizar, inicialmente, numa partici-
manece 'eternamente'. Por isso, ela é todos os dias - pois pação cada vez mais estreita nas peripécias da política ecle-
cada dia se ~irige para a eternidade - verdadeira e indispen- siástica.
sável. Por isso, a Igreja não pode, mesmo num Estado totali- 17. 000 exemplares de Theologische Existenz heute! são
tário, deixar que lhe imponham uma moratória ou um alinha- vendidos em um mês. O título dêsse manifesto empresta seu
mento. Ela é o limite natural de todo Estado, mesmo totali- nome a uma série de cadernos teológicos, da qual 22 números
tário. Pois o povo, mesmo no Estado totalitário, vive da Pala- são publicados em dois anos, alcançando difusão no mundo
vra de Deus, cujo conteúdo é: 'remissão dos pecados, ressur- inteiro. Além de Karl Barth, são colaboradores dos cadernos
reição da carne e vida eterna'. É essa Palavra que a Igreja e a Hans Asmussen, Eduard Thurneysen e alguns outros teólogos
teologia devem oferecer ao povo. Por isso é que elas são o da mesma tendência.
limite do Estado. Elas o são para a salvação do povo, para a
salvação que nem o Estado e nem mesmo a Igreja podem pro-
porcionar, mas que a Igreja tem a vocação de anunciar. Essa
deve poder e querer conservar-se fiel ao seu objetivo próprio.
No encargo especial que lhe foi confiado, o teólogo deve se
conservar desperto, pássaro solitário sôbre o telhado, - sôbre
a terra, portanto, - mas sob o céu aberto, ampla e absoluta-
mente aberto. O teólogo evangélico alemão deve querer con-
servar-se desperto, ou, se está adormecido, acordar hoje mes-
mo, sim, desde hoje" 1s.
Num texto autobiográfico, publicado alguns anos mais
tarde, Barth observará que êle não fazia mais do que repetir
nesse então suas teses essenciais: devemos adorar tão-somente

14. Op. cit., p. 39. 16. How my mind has changed, 1928-1938 (publicado em inglês no
15. Op. cit., p. 40. Citamos essa passagem segundo a tradução dada The Christian Century, 13 e 20 de setembro de 1939, e em ale-
em Karl Barth, I. Genese et évolutíon de la théologie dia~ecti­ mão no Der Gõtze wackelt, Berlim, 1961, p. 187).
que, pp. 158-159. 17. Op. cit., pp. 187-188.

28 29
Capítulo_JII

O CAMINHO DE BARMEN

14 DE JULHO DE 1933, o Reichstag reconheceu


oficialmente a criação da Deutsche Ev. Kírche. A nova consti-
tuição da Igreja foi adotada na qualidade de "lei do Reich"
(Reichsgezetz) e novas eleições eclesiásticas são marcadas para
23 de julho.
O segundo caderno de Theologische Existenz heute! con-
tém o texto de uma conferência pronunciada por Karl Barth,
em Bonn, no dia 22 de julho, IIB véspera da eleição, sob o
título "Para a Liberdade do Evangelho" (Für die Freiheit des
Evangeliums). Barth não teme emprestar, desde logo, uma
grande significação a essas eleições. "Uma eleição eclesiástica,
escreve, é um ato da confissão de fé" 1• Ela é uma manifestação
da fé numa certa face da Igreja. Através de um voto, exprime-
se que tal ou qual pessoa é escolhida por Deus. O critério que
se impõe, nessa véspera da eleição, é o da liberdade do Evan-
gelho. Essa liberdade significa a liberdade de considerar como
Nosso Senhor o Senhor que o Evangelho faz conhecer. Se ela
obedece ao mandamento de Deus, que a criou, a Igreja deve

1. Für die Freiheit des Evangeliums, Munique, 1933, p. 3.

KARL BARTH - 4
31
manifestar, portanto, sua própria liberdade preservando a liber- herança do liberalismo. Barth voltará, mais de uma vez, a êsse
dade do Evangelho. ponto.
A Igreja é a comunidade humana que ouve o Evangelho. Concluindo sua conferência, Karl Barth solicita a seus
Sob êsse aspecto, ela toma parte nas configurações da natu- ouvintes que não percam a confiança, a despeito de tudo o que
reza, da cultura e da história. Ela é a Igreja dêsse ou daquele puder resultar das eleições. A liberdade do Evangelho não se
povo, situada no interior dessa ou daquela forma de Estado. liga ao resultado de uma eleição, mas depende da liberdade do
Sua liberdade consiste, então, precisamente, em interpretar a próprio Deus. Ele lembra a promessa de Cristo: "Onde dois
Palavra de Deus no Estado, de acôrdo com a Sagrada Escri- ou três estiverem reunidos em meu nome, estarei no meio dêles".
tura. E não de acôrdo com uma outra fonte, de acôrdo com Reunidos pela liberdade do Evangelho.
êste "livro", que tão zelosamente se cita nesse ano de 1933: O conteúdo de Für die Freiheit des Evangeliums é muito
aquêle da "hora histórica". Admitir uma outra revelação que similar ao de Theologische Existenz heute!: Barth aplica à
não a de Deus, uma outra senhoria que não a de Jesus Cristo, Igreja como um todo o que antes dissera aos pregadores e aos
uma outra autoridade que não a da Sagrada Escritura, signi- doutôres da Igreja. A "existência teológica", para a Igreja,
fica - para a Igreja Evangélica - que o Evangelho deixou de consiste em viver "para a liberdade do Evangelho".
ser livre (e, portanto, de ser Evangelho) e que ela mesma Hitler esperava, inicialmente, que novas eleições permiti-
deixou de ser evangélica e Igreja. Não existe, a êsse respeito, riam eliminar os "Cristãos Alemães" muito radicais e freiar
um qualquer "tanto isso quanto aquilo" (Sowohl-als-auch), mas um pouco a política de fôrça do nôvo Comissário de Estado,
tão-somente um "ou isso, ou aquilo" (Entwerder-oder). Jager. Êle pretende assimilar a Igreja sem atritos. Mas os
E, para manifestar a liberdade do Evangelho, a Igreja "Cristãos Alemães" já são muito fortes e muito numerosos.
não deve somente conservar a independência de seu ser "invi- Levado pela massa de seus próprios partidários, o Chanceler
sível", mas também a autonomia de seu ser "visível". Em intervém finalmente em favor dêles, numa alocução difundida
outras palavras: conservar a liberdade de sua ordem exterior. pelo rádio. Ésse apoio é decisivo: as listas dos "Cristãos Ale-
Pois o Evangelho se manifesta, de maneira concreta, no tempo mães" obtêm mais de 75% dos sufrágios. Ludwig l\1i.iller é
e no espaço, e não apenas nos "espaços vazios" (im luftleerem inicialmente nomeado bispo regional (Landesbischof) da Prús·
Raum). sia; posteriormente, em 27 de setembro, é eleito bispo do
É por isso que as eleições eclesiásticas são importantes, Reich pelo sínodo nacional de Wittenberg. Na Prússia, uma
ou seja, porque elas vão decidir quanto à ordem exterior da "lei eclesiástica estabelecendo o estatuto legal dos pastôres e
Igreja. Ora, Karl Barth crê que a liberdade do Evangelho está dos funcionários religiosos" faz com que a Igreja passe do
ameaçada no seio da própria Igreja: por um ataque aberto (os sistema "parlamentar" para um regime de autoridade. O Kirs-
"Cristãos Alemães") e por um ataque dissimulado (os candi- chenministerium, que representa a mais alta autoridade da
datos incluídos na lista da Igreja Evangélica, cuja fraqueza em Igreja, compreende cinco personalidades, apenas uma das quais
face do êrro e das pressões dos "Cristãos Alemães" lhe parece não faz parte dos "Cristãos Alemães". Com efeito, a vitória
mais perigosa do que o próprio êrro) . Mas essa ameaça não dos "Cristãos Alemães" nas eleições de julho provoca, em tôda
surgiu de repente: a grande miséria da Igreja Evangélica é o parte, uma profunda modificação das estruturas eclesiásticas.
fruto de dois séculos, durante os quais sempre se estêve mais "Colaborar numa tal administração, escreve Barth, significaria
preocupado em extrair Deus do homem do que o homem de dar sua adesão essencial à heresia surgida e à usurpação agora
Deus, em ligar Deus ao homem ao invés de ligar o homem consumada ( ... ) . Ainda não se pode - e até nova ordem -
a Deus. "A Igreja não sabe mais, de modo alguma, o que trabalhar no seio da Igreja existente senão nos limites da paró-
é a liberdade do Evangelho", escreve Barthes, "porque quia local e de suas funções, também no terreno da teologia, o
ela não sabe mais o que significa: ter um Senhor" 2 • É a qual continua a ser hoje tão inalienàvelmente livre quanto outro-
ra em seu ensino e em sua pesquisa científica. Nesses domínios,
2. Op. cit., p. 14. é preciso continuar a cooperar. Enquanto êsse mínimo não nos

32 33
fôr retirado por uma fôrça superior, considero imperdoável pela Igreja saxã, demonstrando seu desejo de se manterem
falar em 'deixar a Igreja e fundar uma Igreja livre'" 3• fiéis ao cristianismo, embora colocando-se no terreno do na-
Os "Cristãos Alemães" extremistas, apoiados pelo Partido cional-socialismo. Os extremistas se separam e constituem o
Nacional-Socialista, desejam a "realizaçi!_o nacional" da Refor- "Movimento Nacional dos Cristãos Alemães de Turíngia".
ma, a interdição do culto e da confissão a todo cristão que não Todos êsses eventos não deixaram de provocar uma
pertenç~ à raça alemã e a "desjudaização" (Entjudung) do Evan- sição bastante viva no seio da Igreja Evangélica. Um
gelho e da Igreja. Organizam em Berlim, no dia 13 de novem- mento decisivo no nascimento dessa resistência foi, incontestà-
bro, uma vasta manifestação no Palácio dos Esportes. Rei- velmente, a introdução na constituição eclesiástica do famoso
nhardt Krause, Gauleiter dos "Cristãos Alemães" da capital "parágrafo ariano", que operava uma discriminação entre os
do Reich, pede a supressão do Antigo Testamento, "com suas cristãos de raça ariana e os judeus convertidos. Em 21 de se-
histórias de mercadores de gado e de proxenetas", e a revisão tembro, formava-se sob a égide de Martin Niemõller - curado
do Nôvo, a fim de que o ensinamento de Jesus "corresponda de suas esperanças nacionalistas - a "Associação dos Pas-
inteiramente às exigências do nacional-socialismo". Krause tôres na Aflição" (Pfarrernotbund).
demonstra um anti-semitismo agressivo: "Repugna-nos com- No curso do outono de 1933, Karl Barth três
prar uma gravata na loja de um judeu; com mais razão ainda, textos: "A Reforma: uma decisão suprema" als
teríamos vergonha de tomar de empréstimo a um judeu as Entscheidung), conferência pronunciada em 30 de outubro na
nossas convicções religiosas vitais". Resoluções são redigidas, Singakademie de Berlim; "Jubileu luterano 1933"
pedindo "um· Povo, um Reich, uma Fé'', exigindo dos pastôres 1933), por ocasião do 45 09 aniversário do nascimento de
um sermão de fidelidade a Hitler, e, de tôdas as Igrejas, que Martinho Lutero; e "A Igreja de Jesus Cristo" (Die Kirsche
sejam exclusivamente arianas e que recusem os judeus conver- Jesu Christi) . Todos os três apareceram na coleção Theolo-
tidos. Krause pede, finalmente, que se deixe de falar de um gische Existenz heute! Nenhum refere-se diretamente à ~A""~~
Jesus humilde e alquebrado, apresentando-o agora, pelo con- mas deve-se lê-los em relação com os eventos. Karl
trário, como uma figura gloriosa, à imagem dos heróis nór- Barth escreveu para cada um dêles um prefácio, nos quais trata
dicos 4 • da situação da Igreja Evangélica e de suas relações com o
Os "Cristãos Alemães" foram muito longe. Mais uma vez, govêrno do Reich. No prefácio que anexou ao último dêsses
o poder recusa acompanhá-los até o fim. Suas conclusões pe- três escritos, êle inclusive se estende longamente a respeito de
cam por excesso e, sobretudo, são prematuras. Em todos os sua própria posição em face do regime. Após ter observado
meios protestantes, foi uma indignação geral. Só se fala no que se lhe deixara fazer, até aqui, "em pleno Terceiro Reich,
"escândalo do Palácio dos Esportes". Müller é obrigado a tudo o que eu queria e devia fazer", Barth escreve essas linhas
suspender Krause de suas funções e a desautorizá-lo. A Co- muito importantes:
missão Executiva Permanente da Igreja (a Kirchenministerium) "Meu trabalho e minha oposição, bem como os de muitos
é forçada a pedir demissão. Uma nova comissão é eleita no outros, pretendem ser eclesiásticas e não políticas, ainda que
início de dezembro. Ela jamais entrará em funcionamento. Os o Estado não o reconheça ou não o reconheça mais em conse-
"Cristãos Alemães'', então, tentam corrigir o tiro: modificam qüência de uma evolução qualquer. Oponho-me a uma teo-
seu aparelho dirigente e os mais moderados dentre êles, sob logia que busca apoio, hoje, junto ao nacional-socialismo. Mas
a chefia de seu nôvo líder, Kinder, adotam 28 teses, redigidas não me oponho à constituição nacional-socialista do Estado
e da SO<?iedade. Decerto, não por indiferença monástica em
face das questões relativas à constituição do Estado e da so-
3. "A Reforma: uma decisão suprema" (Refonnation als Entscheià-
ung, Munique, 1933). Prefácio, p. 4. Foi et Vie, 1933. ciedade, mas simplesmente porque tenho a convicção de que,
4. Frey, op. cit., pp. 54-55; e Shirer, op. cit., p. 260. Reinhardt diante do Estado e da sociedade, a Igreja é o domínio superior,
Krause resumiu mais tarde, em alguns pontos, o essencial de sua
"doutrina" (cf. Frey, op. cit., p. 55). colocado à parte, de que as decisões verdadeiras, mesmo que

34 35
relativas ao Estado e à sociedade, não são tomadas no âmbito segunda fonte de revelação, manifestando-se assim como cren-
dêsses últimos, mas na Igreja" 5• tes de um "outro Deus" 8 •
Durante os primeiros meses, portanto, Barth não se opõe No outono de 1933, Karl Barth rompe ainda com Zwischen
ao regime nacional-socialista como tal; veremos que êle evo- den Zeiten, revista que êle fundou em 1922 na companhia de
luirá. Por outro lado, êle adianta uma justificação de sua ati- Friedrich Gogarten, Eduard Thumeysen e Georg Merz, cuja
tude política: a Igreja pertence a um domínio superior àquele finalidade era lutar contra a teologia neoprotestante e procla-
do Estado. É uma afirmação que êle matizará, que comple- mar uma teologia da Palavra de Deus. Trata-se de um artigo
mentará (notadamente ao introduzir a noção de co-responsa- extremamente firme, publicado inicialmente com o título de
bilidade da Igreja). Todavia, é ela que Barth colocará no "Separação" (Abschied) na própria revista 9 , e posteriormente
centro de "Comunidade cristã e comunidade civil': a comu- republicado num dos cadernos de Theologische Existenz heu-
nidade cristã funda a comunidade civil, pois ela compreende te! 10 •
o que a torna necessária, sabe que os homens têm necessidade Barth vê na evolução de Gogarten um grave compro-
de "reis" que, durante o tempo da graça, projetam o gênero misso com a teologia dos "Cristãos Alemães". Na primeira
humano contra a irrupção do caos . parte de sua "Dogmática", êle já indagava a Gogarten até
O fascículo Lutherfeier 1938, além do escrito que lhe em- que ponto sua infra-estrutura antropológica da teologia pre-
presta o contém dois textos apresentados sob a forma tendia se distinguir da teologia natural do catolicismo ro-
de teses. O primeiro é uma refutação detalhada das "Teses mano e do neoprotestantismo. Êle diz não ter recebido res-
de Rengsdorf'' (Rengsdorferthesen), elaboradas por uma con- . Ao contrário, artigos de Gogarten aparecidos em 1932
ferência de dez pastôres e laicos convocados pelo bispo Ober- em Zwischen den Zeiten (Staat und Kirche e Schopfung und
"no curso de uma discussão aprofundada, séria e unâ- , bem como sua "Ética Política" Ethik) 11 ,
nime", e "enviadas a tôdas as paróquias evangélicas da Re- constituem para Barth sinais bastante claros da impossibilidade
nânia" 6 • de encontrar êsse terreno de concordância que Gogarten e êle
Barth apresentou essa refutação quando de uma pastoral próprio sempre procuraram, apesar de suas orientações dife-
pronunciada em Bonn, em 6 de novembro de 1933. "Sem rentes, no curso de muitos anos de colaboração e amizade 12 •
equívoco possível, conclui, a teologia das teses de Rengsdorf A separação torna-se inevitável. E quando, ~o curso do ano
não é uma teologia, mas um espécime da gnose atualmente de 1933, Gogarten adota publicamente a tese essencial dos
em voga, elaborada por meio de noções cristãs" 7. "Cristãos Alemães" - "a lei ( Gesetz) de Deus é idêntica,
O segundo texto inserido no fascículo é um pequeno me- para nós, à lei (Nomos) do Terceiro Reich" 13 - Barth con-
morando redigido "apressadamente" e apresentado com o tí- suma a ruptura. Essa frase constitui, escreve êle, "uma traição
tulo de "Oposição eclesiástica 1933" (Kirchliche Opposition praticada para com o Evangelho" 14 • Como a sua atitude não
1933) aos dirigentes da Associação dos Pastôres na Aflição, é partilhada pelo dfretor, pelo editor e pela maioria dos lei-
reunidos em Berlim, no dia 15 de novembro. Em alguns pon- tores de Zwischen den Zeiten, que toleram artigos favoráveis
tos, Barth delimita o êrro fundamental dos "Cristãos Alemães":
manter ao lado da Sagrada Escritura, única fonte de revela-
ção, o povo alemão, sua história, seu presente político como 3. Op. cit., PP. 20-21.
9. Zwfschen den Zeiten, 1933, pp. 536, ss.
10. Gottes Wille und unsere Wünsche, pp. 31-39.
11. Friedrich Gogarten, Politische Ethik. Versuch einer Grundlegung,
5. "A posi.ção de Karl Barth e a Alemanha atual", traducão do pre- rena, 1932.
fácio de Die Kirche Jesu Christi (Munique, 1934), em, Foi et Vie, 12. Um excelente resumo do pensamento de Gogarten e das razões
1934, PP. 93-94. que levaram à ruptura pode ser encontrado em Henri Bouillard,
6. O texto das Rengsdorferthesen apareceu in Evangeliums im J{arl Barth I. Genese et évolution de la théologie dialetique, Pa-
Dritten Reich, n9 45. Citado por Barth em Lutherjeier, 1933, pp. ris, 1957, pp. 161-175 e 203-211.
17-19. 13. Gottes Wille und unsere Wünsche, p. 34.
7. Op. cit., p. 19. 14. Op. cit., p. 35.

36 37
à teses dos "Cristãos Alemães", Barth afasta-se da revis~a e
d~clara que sua fundação e e.xist~ncia foram umA mal-entend1do.
Não é por razões confess10na1s (p~r se~ ele refor~ado),
políticas (por experimentar poucas simpatias pelo naz~smo)
ou nacionais (por estar na Suíça) que êle se separa de Zwischen
den Zeiten, mas por fidelidade ao Evangelho. ,
Thurneysen, pelo mesmo motivo, e~cerra tambem s~a co-
laboracão. O diretor, Georg Merz, considerando que Zwischen Capítulo
den Z~iten não tem razão de ser senão como o
órgão do grupo que a decide BARMEN A
çâo da revista.

4 DE JANEIRO DE 1934, Ludwig Müller - sem


pedir a opinião da Comissão Executiva Permanente da Igreja,
reduzida ao estado de comissão-fantasma, nem a dos sínodos
ou dos bispos - promulga um singular decreto: tôda par-
ticipação de um pastor na política da Igreja será considerada
como uma infração à disciplina eclesiástica e o faltoso será ime-
diatamente suspenso de suas funções.
No mesmo momento, um sínodo oficioso reúne em Bar-
men 320 conselheiros sinodais e pastôres representando 167
Igrejas reformadas. O objetivo dessas reuniões, que se pro-
cessaram nos dias 3 e 4 de janeiro, era estudar a confissão
de fé. Karl Barth faz, nessa ocasião, duas exposições: "De-
claração a respeito de uma justa compreensão das confissões
de fé dos Reformadores na Igreja Evangélica alemã contempo-
rânea (Erklarung über das rechte Verstiindnis der reforma-
torischen Bekenntnisse in der Deutschen Evangelischen Kirche
der Gegenwart) e "Vontade de Deus e desejos dos homens"
( Gottes Wille und unsere W ünsche) 1 • Barth pronunciará ainda

1. ll:sses dois textos, como também Abschied, foram reunidos sob o


título geral de Gottes Wille und Unsere Wünsche, Munique, 1934.

39
38
esta segunda conferência no dia seguinte, em Bochum, e dois tende a ser verdadeiramente a Igreja que ela está a
dias depois, em Lübeck. serviço do povo, da cultura. A Igreja desune o povo e tra-
Introduzindo sua primeira exposição, Barth declara que balha contra a nação no momento em que pratica o nacio-
não se deve esperar dela uma "summa doctrinae", um ensina- nalismo. Não deve isolar-se na indiferença ou na oposição, mas
mento doutrinal completo, nem um resumo dos elementos fun- :sim constituir uma presença para o Estado e a nação" 3
damentais da fé cristã. Ao contrário, deve-se esperar dessa Após um quarto capítulo sôbre "A Mensagem da Igre-
declaração "um ato concreto da Igreja Cristã numa situação ' Barth aborda, no quinto e no último capítulo, a questão
histórica precisa, uma tentativa de responder às questões que sôbre "A Forma da Igreja". As duas teses que a concluem
hoje se colocam, um esclarecimento das coisas relativas à referem-se à situação da Igreja sob o Terceiro Reich, e cons-
Igreja Evangélica alemã atual" 2 • tituem o ponto alto da exposição.
Barth engaja seus ouvintes na luta, vital para urna Igreja A mensagem e a forma da Igreja são universais. São
que pretende permanecer verdadeiramente evangélica, contra as mesmas em todos os tempos, para tôdas as raças, todos
o êrro da teologia natural \; ·ofessada pelos "Cristãos Ale- os povos, todos os Estados e tôdas as civilizações. Se existem
mães". Êle evoca a lembrat:ça dos Reformadores, que ti- entre as diversas formas eclesiásticas, a legitimi-
veram de travar um combate semelhante contra Roma e contra dade dessa diversificação depende exclusivamente de sua con-
o do Renascimento. Diante da unidade com a qual o formidade à unidade da mensagem e dâ forma da Igreja. Esta
êrro natural dos "Cristãos Alemães" tenta se impor na Ale- permite a Barth atacar a doutrina dos "Cristãos
tôdas ·as comunidades evangélicas são chamadas a re- em duas frentes: em primeiro lugar, é falso pre-
conhecer novamente a soberania do único Senhor da única a legitimidade dessas diferenciações momentâneas,
Igreja. Barth lhes pede para esquecer suas origens, luterana, ou locais, da forma eclesiástica seria resultado de
reformada ou unida, bem corno suas respectivas responsabili- divinas, históricas e particulares; em segundo, é
dades, a fim de se ligarem a uma confissão de fé comum e a falso reservar a qualidade de membro e a aptidão para o ser-
uma ação comum "contra o êrro e pela verdade". eia Igreja aos componentes de uma determinada raça.
É êsse o conteúdo das três primeiras teses agrupadas sob Barth rejeita assim a pretensão dos "Cristãos Alemães" de
o título "A Igreja na época atual". O segundo e o terceiro a revoluçã:o hitlerista como uma revelação divina,
capítulos ("A Igreja submetida à Sagrada Escritura" e "A a forma e a mensagem da Igreja, revelação que
Igreja no mundo") dizem o que a Igreja representa e quais se deveria acrescentar à de Deus através de Jesus Cristo, e
são seu lugar e sua missão no mundo. "A Igreja, escreve sua ambição de constituir uma Igreja exclusivamente alemã
notadamente Barth, está no mundo submissa às Santas Es- e ariana.
crituras. Serve ao homem e ao povo, ao Estado e à cultura, Enfim, diante do Estado nazista totalitário, Barth sus-
precisamente através do seu esfôrço para ser, no que concerne tenta a seguinte tese:
à sua mensagem e à sua forma, obediente a Deus, à sua Pa- "A Igreja, fundamentando-se nas indicações da Palavra
lavra e ao seu Espírito." E êle acrescenta ainda, no comen- de Deus, reconhece no Estado a disposição da ordem e da
tário dessa tese: "A Igreja é mais fiel ao mundo no momento paciência divina, em virtude da qual o homem, no quadro de
em que permanece fiel a si mesma ( ... ) . É precisamente sua inteligência, da razão e da história, sendo responsável
diante do Senhor dos senhores, pode e deve procurar a jus-
2. O texto completo da "Declaração" feita por Barth em Barmen tiça, estabelecê-la e mantê-la pela fôrça. A Igreja não pode
(dezessete teses divididas em cinco capítulos e seus comentários! tirar do Estado essa função particular. Tampouco pode dei-
apareceu em francês em Textes S'ymboliques (Genebra, 1960, fora
do comércio), publicação esta da série dos "Cadernos de do- xar-se despojar pelo Estado da sua própria função, nem deixar
cumentação da Igreja reformada ecumênica confessional". O
texto alemão, que apareceu em Gottes Wille und Unsere Wünsche,
trata apenas das teses, sem os comentários. Nós citamos a tra-
dução publicada em Textes Symboliques. Aqui: p. 56. 3. Op. cit. pp. 68-69.

40 41
que o Estado fixe a sua forma e a sua mensagem . Se bem curar coincidir com ela. Porém aquêles que souberem reconhe-
que ligada por sua missão, a Igreja é fundamentalmente livre cer a vontade de Deus, saberão também que essa vontade en-
em um Estado que, por mais que permaneça ligado à sua volve todos os seus desejos humanos, e assim, igualmente, seus
tarefa, é também fundamentalmente livre. desejos políticos.
Assim fica afastada a opinião segundo a qual o Estado O primeiro encontro de Barmen estabelece a base teoló-
seria a mais elevada, ou mesmo única (total) forma de rea- gica da oposição aos "Cristãos Alemães". Uma segunda reu-
lidade histórica, visível e temporal, que, pois, teria de 'alinhar', nião é realizada algumas semanas mais tarde, nos dias 18 e 19
subordinar ou filiar a Igreja com sua mensagem e sua for- de fevereiro de 1934, também em Barmen. A assembléia se
ma"4. compõe de conselheiros sinodais e de pastôres pertencentes a
Ê a esta definição das relações entre a Igreja e o 30 sínodos, que não mais representam somente as Igrejas re-
muito atual nesse início do ano de que conduz o exame formadas, mas também as Igrejas luteranas e unidas da Renâ-
crítico da heresia dos "Cristãos Alemães". nia. Êste sínodo retoma as teses do de janeiro. Nega qualquer
Em "Vontade de Deus e Desejos dos Homens", confe- autoridade legítima à nova direção da Igreja do Reich e se opõe
rência pronunciada por êle algumas horas após a sua decla- ao Führerprinzip. Solicita-se aos pregadores que prossigam seu
ração sôbre a confissão de fé, Karl Barth diz ainda que os ministério em sua paróquia. O movimento de oposição ganha
acontecimentos políticos de 1933 tiveram pelo menos o mé- tôda a Igreja.
rito de exigir, da parte dos cristãos evangélicos, uma decisão A Igreja Unida da Prússia convida seus membros (mais
clara. Barth , vê nisso uma oferta de Deus . Ora, os de 19 milhões e meio) a que engrossem as fileiras do grupo
onde uma semelhante "abertura" se faz não são longos . constituído em Barmen. Outros sínodos se reúnem, em Dort-
são "freqüentemente determinantes para todo um período" 5• mund, para a Vestfália, em Ulm, para a Baviera e o Wurtem-
A revolução nacional-socialista e o entusiasmo que suscitou berg. Finalmente, essa vasta corrente chega à convocação de
em grandes meios eclesiásticos colocam assim a Igreja diante um sínodo geral. Desta vez, a Igreja Evangélica de todo o Reich
de uma grande responsabilidade histórica. está representada, da Pomerânia à Suábia, de Baden a Hols-
Barth define assim a alternativa: devem os homens se sub- tein, de Hanover à Silésia.
meter apenas à vontade de Deus, ou procurar fazer com que Foi o Sínodo de Barmen o primeiro sínodo confessante.
coincidam esta vontade e os seus próprios desejos? Em outras Realizou-se do dia 29 a 31 de maio, promulgando uma confis-
palavras: aceitam êles uma teologia do primeiro mandamento são de fé em seis teses, as quais enunciam as verdades da fé
(Não terás outros deuses diante de minha face'), ou uma teo- cristã diante dos erros dos "Cristãos Alemães". Essa declaração
logia natural, que faz ressoar, ao lado da revelação de Deus atra- teológica foi preparada por três teólogos: Breit, Barth e As-
vés de Jesus Cristo, a voz da razão, da consciência moral, da mussen. Mas foi Barth o diretamente responsável pelo texto,
tradição, da história ou do sangue, isto é, o eco de sua própria tendo, segundo o testemunho de um dos seus companheiros,
voz? "focalizado em algumas horas" o projeto de confissão de fé 6 •
Para Barth, a resposta é simples: a vontade de Deus se si- Essa confissão de Barmen está na base da Igreja confes-
tua acima de tudo. Somente ela merece ser escutada. Mas essa sante (Bekennende Kirche ou Bekenntniskirche) 7 • Não se trata
vontade, uma vez reconhecida em sua qualidade de absoluta,
não exclui, e sim, pelo contrário, inclui os desejos dos ho-
mens. No contexto político de 1934 é, pois, a vontade de Deus 6. Barth acrescentou à mão, em um dos exemplares dêsse artigo:
"Enquanto os outros dormiam a sesta!" Asmussen, Karl Barth
que se deve impor aos homens. Os desejos políticos dos ale- nnd die Be,kennende Kirche, em Die Freheit der Gebundenen,
mães não poderiam suplantar essa vontade, nem mesmo pro- livro em homenagem a Barth pelo seu 509 aniversário, Munique,
1936. Citado por G. Casalis: Portrait de Karl Barth, Genebra,
19'60, PP. 35-36.
7. Já se traduziu algumas vêzes êsse têrmo por "Igreja confessio-
4. Op. cit., p. 75. nal". Renunciamos a esta expressão (salvo quando a mesma era
5. Gottes Wille und Unsere Wünsche, p. 18. utilizada em citações ou títulos de artigos publicados em fran-

42 43
de uma nova Igreja, nem de uma forma de Igreja livre, mas sim e podêres, outros fenômenos e verdades, além da revelação
de uma comunidade de cristãos que, pertencendo à Igreja Evan- divina" 9 •
gélica alemã, recusam-se a conceder qualquer legitimidade ao ~o segundo volume da sua "Dogmática", consagrada à
regime eclesiástico em vigor. Essa comunidade se esforça para doutnna de Deus, Barth retomará longamente essa tese que
definir novas estruturas, mais evangélicas que o Führerprinzip representa "o primeiro documento extraído de uma confronta-
do bispo Muller. Coloca em funcionamento os Conselhos Fra- ção séria da Igreja Evangélica com o problema da teologia
ternais (Bruderrat) e um conselho fraternal do Reich (Reichs- natural" 10 • Não se poderá encontrar em qualquer outra parte,
bruderrat). Ernst Wolf assinala muito justamente que o síno- na obra de Karl Barth, explicação melhor sôbre a ação da
do de Bannen tem como conseqüência uma situação de direito luta da Igreja Confessional no seio do Terceiro Reich.
particularmente importante: os princípios constitucionais da "A Ateolo~ia e as confissões de fé na época da Reforma,
Igreja são proclamados à maneira de uma confissão de fé, dan- escreve ele, tmham deixado a questão em aberto. Ela só se
do assim uma orientação inteiramente nova ao direito ecle- tornou aguda no decurso dêsses últimos séculos onde a teo-
siástico na Igreja Evangélica 8 • logia natural, após ter existido durante muito tempo em es-
Deve-se destacar que a Igreja Confessante não se afasta tado latente, ameaçou subitamente tornar-se o critério e o
juridicamente da Igreja alemã. Os fiéis, as paróquias, os oonteúd~ manifesto da pregação e da teologia da Igreja em
res, são os da Deutsche Evangelische Kirche. Mas o que os dis- seu con1unto. Mas ela se aguçou inteiramente no momento
tingue dos outros é que, no interior da Igreja existente, êles re- em que a Igreja evangélica da Alemanha se encontrou brutal-
conhecem (e, 'conseqüentemente, confessam) a autoridade úni- mente diante de uma forma inédita dessa mesma teologia na-
ca de Jesus Cristo sôbre a Igreja, rejeitando a autoridade ecle- tural: exigiam peremptoriamente que ela reconhecesse, nos
siástica instalada pelo Terceiro Reich. acontecimentos políticos de 1933 e, em particular, na pessoa
Do ponto de vista teológico, a confissão de fé de Barmen de Adolf Hitler, o nôvo Messias, uma nova revelação ligando
é de importância capital, particularmente a sua primeira tese~ a pregação e a teologia cristãs, ao lado daquela atestada pelas
"Eu sou o caminho, a verdade, e a vida; ninguém chega Sagradas Escrituras. Sabe-se que o combate da Igreja alemã
até o Pai, senão através de mim" (João 14: 6) . foi determinado por essa primeira intimação, que encontrara
"Em verdade, em verdade eu vos digo: aquêle que não um eco favorável em círculos muito extensos. Desde então
entra pela porta do curral de ovelhas, mas sobe por outra descobriu-se que, por detrás dela, de acôrdo com o dina-
parte, é ladrão e salteador. . . Eu sou a porta; se alguém mismo político que arrastava as massas, se propunha, se bem
entrar por mim, salvar-se-á" (João 10: 1,9) . que essa intenção fôsse ainda pouco clara, proclamar a nova
"Jesus Cristo, tal como nos atestam as santas escrituras, revelação como a única e exclusiva revelação que se devia
é a única Palavra de Deus que devemos escutar, à qual nos levar em conta, transformando assim a Igreja Evangélica em
devemos confiar e obedecer, na vida e na morte. um elevado lugar dedicado ao culto do mito alemão da na-
"Rejeitamos a falsa doutrina segundo a qual, além dessa tureza e da história" ll.
única Palavra de Deus, a Igreja poderia e deveria reconhecer Barth demonstra que o êrro dos "pobres Cristãos Ale-
igualmente, como fonte de sua pregação, outros acontecimentos mães" não passa de resultado de dois séculos de compro-
missos, de uma longa tradição da teologia do "e" (revelação
"e" razão, revelação "e" história, revelação "e" humanidade;
cês), que nos pareceu mais ambíguo que o de "Igreja confessan- e, finalmente, revelação "e" Alemanha); que êsse êrro não é
te". Uma Igreja confessante é uma Igreja cujos membros con-
cordam em confessar expllcitamente uma fé comum. A palavra
confissão é tomada aqui em seu sentido dogmático. Uma Igreja 9. As declarações teológicas do sínodo de Barmen em Textes Sym-
confessional é a de uma confissão (reformada, metodista, etc.) , boliques, p. 77.
no sentido eclesiológico. 10. Dogmática. Segundo volume I (Kirchliche Dogmatik II/3 Zol-
8. RGG, 3'> ed., art. Kirchenkampf 6. Ernst Wolf é o autor dêsse likon-Zurique, 1940), Genebra, 1956, p. 173. '
artigo. 11. Ibid.

44 45
especificamente alemão, mas que somente a Grundlichkeit ger- dizer a verdade permanente do Evangelho, em um contexto
mânica, levando-o a limites extremos, concedeu-lhe uma apa- limitado no tempo e no espaço. Não tôda a verdade, nem
rência mais monstruosa do que a assumida pelos seus para- todo o Evangelho, porém êste ou aquêle aspecto particular
lelos na Inglaterra, na Holanda, na Suíça e na Escandinávia. cuja proclamação se tornou necessária por êsse mesmo con-
"Que se tenha podido elaborar em 1934 o protesto fun- texto. Confessar a sua fé quer dizer levar o Evangelho ao
damental contido nessa primeira tese de Barmen e que, desde encontro da realidade . Realidade eclesiástica, teológica e es-
então, a despeito de tôdas as incertezas e de todos os reveses, piritual, mas também social, econômica, cultural e política.
êsse protesto tenha podido permanecer como motor da Igreja Uma afirmação como a de Barmen está em relação direta
confessional, em meio às mais duras provas, é fato que se com a situação política: "Nós seríamos mudos como carpas
pode considerar desde agora, e não importa que caminho to- - declarou Karl Barth no comentário da quarta tese do ca-
mem os fatos, como um dos mais notáveis acontecimentos da pítulo de sua "Declaração" consagrado à "Forma da Igreja"
história eclesiástica contemporânea" 12 • - se pretendêssemos estabelecer uma confissão de fé refor-
Onde se encontra a política, em tudo isso? A intenção mada sem nada dizer sôbre o Estado totalitário. O Estado
de Barth, nesse início de ano e na primavera de 1934, não não pode se apropriar do homem em sua totalidade, não pode
é a de tomar uma posição política. Contudo, neste plano, a querer definir a forma e a mensagem da Igreja. Se reco-
situação se tornou dramática. No dia 20 de dezembro de nhecemos isso, devemos também confessá-lo" 14 •
1933, Ludwig Müller decidiu incorporar o Movimento da Ju- É efotivamente inevitável, escreverá ainda o teólogo, que
ventude Evangélida à juventude hitlerista dirigida por Baldur semelhante advertência, "no espaço do nacional-socialismo,
von Schirach. O conselheiro jurídico do bispo Müller, fager, não signifique apenas uma decisão religiosa, não somente um
prossegue as suas tentativas de centralização das Igrejas não convite à reforma da Igreja, mas também, ipso facto, uma de-
prussianas. Enfim, a Igreja vê-se constrangida a se alinhar. Em cisão política: a decisão contra um Estado que, como Estado
tudo se impõe o regime: a cultura, a imprensa, o rádio, o totalitário, não pode reconhecer uma tarefa, uma mensagem,
cinema, o ensino, a organização econômica, a justiça, cedem uma ordem, a não ser as suas, um Deus que não êle próprio,
todos à pressão dos nazistas. e que, por conseguinte, à medida de seu desenvolvimento, de-
A situação política é particularmente grave, e a Igreia verá cada vez mais oprimir a Igreja como tal, e desdenhar com-
está perigosamente ameaçada. Entretanto, a propósito da pletamente a justiça e a liberdade humanas" 1s.
confissão de Barmen, Barth escreve: "O nôvo totalitarismo
político, e os métodos que utilizava para com um país que
fôra colocado em estado de sítio, não significaram nada nesse
acontecimento" 11.
O sínodo de Barmen e as suas declarações não podem,
todavia, permanecer sem eco no domínio político. As pre-
tensões de um regime que revela cada vez mais seu caráter
totalitário e seu sistemático recurso à arbitrariedade vão, pois,
pela fôrça das coisas, conceder à confissão de Barmen e à
constituição da Igreja Confessante uma importância igualmente
política.
Para Karl Barth, confessar a sua fé significa tentar res-
ponder às questões que se colocam em um dado momento,
14. Textes Symboliques, p. 76.
12. Op. cit., p. 176. 15. How Mind Has Changed 1928-1938 (publicado em 1939 em Der
13. Op. cit., p. 177. Gotze wackelt, p. 188).

46 KARL BARTH - 4 47
Capítulo V

BARTH É EXPULSO DA ALEMANHA

E M POLÍTICA INTERIOR, o expurgo de 30 de junho de


1934, essa famosa "noite dos longos punhais", permite de
início ao chanceier do Reich desembaraçar-se de milhares de
adversários de direita e de esquerda, entre os quais figuram
vários de seus primeiros companheiros de luta. No dia 2 de
agôsto, a morte do Presidente Hindenburg, que malgrado tudo
representava uma fôrça real, não somente como chefe supremo
do Estado mas também como o da Reichswehr, faz de Hitler
o chefe único da Alemanha. O título de presidente é abolido.
Hitler é "Führer o chanceler do Reich". Uma vasta campa-
nha espalha a notícia mentirosa de que, por testamento, Hin-
denburg teria designado Hitler como seu sucessor. Em 19 de
agôsto um plebiscito assegura a Hitler o apoio maciço do
povo alemão: 95% dos eleitores inscritos vão às umas e 90%,
mais de 38 milhões, aprovam essa usurpação do poder ab-
soluto. No início do mês de setembro, o Führer triunfa em
Nuremberg, diante do congresso do Partido Nacional-Socia-
lista.
No sínodo de Wittenberg, realizado em 9 de agôsto de
1934, fager tenta conseguir legalmente a centralização da
Deutsche Evangelische Kirche ., Mas encontra forte oposição

49
e seu projeto finalmente fracassa, ante a resistência das comu- repente o prestígio dos bispos e dos moderados cresce em de-
nidades de Wurtemberg e da Baviera. Os bispos luteranos de trimento do dos Conselhos Fraternais e dos radicais. No dia
Stuttgart e de Munique são postos em prisão domiciliar. 20 de novembro, a Igreja Confessante institui um govêrno pro-
Em 23 de setembro, Müller é solenemente entronizado visório da Igreja (V orlêiufige Kirchenleitung) sob a direção do
bispo do Reich, na catedral de Berlim. bispo de Hanover, Marahrens. O partido dos moderados tri-
O segundo sínodo confessante da Igreja Evangélica se unfa. 1 O próprio Marahrens só fala em "movimento confes-
reúne nos dias 19 e 20 de outubro em Dahlem, bairro de sante" (Bekenntnisbewegung) . Todavia, os radicais não se
paróquia de Martin Niemõller. Proclama um "direito dão por vencidos . A resistência prossegue . O princípio de
eclesiástico d~ urgência" (das kirchliche N otrecht), já apli- uma Igreja Confessante subsiste.
cado n~ Prússia, para tôda a Igreja Evangélica alemã. No decurso dêsse ano de 1934, Karl Barth concentrou
Diante dessa tenaz resistência, mesmo não representando seus esforços sôbre os sínodos e sôbre a reflexão teológica, o
seus autores senão uma frágil minoria, o Estado decide re- que é sintomático de sua atitude política. Ocupa-se estrita-
vogar tôda a legislação da Deutsche Ev. Kirche. fager reti- mente apenas de política eclesiástica, particularmente nos pre-
ra-se em 26 de outubro e Müller dá início ao seu processo fácios dos cadernos da série Theologische Existenz heute!. 2
de demissão. De fato, o antigo capelão militar permanecerá Isto contudo será suficiente para desencadear a oposição ofi-
no cargo até o fim do ano seguinte. Mas durante seu último cial. As autoridades nazistas proíbem que êle fale em pú-
ano de "episcopado" o papel que representa é bastante mar- blico. Êle se submete apenas parcialmente. Recusa a curvar-se
ginal. O partido dos "Cristãos Alemães' perde tôda consis- ao decreto que impõe a todo professor começar seus cursos
tência. Os bispos são postos em liberdade. com a saudação hitlerista. Em novembro de 1934, recusa-se
Essas medidas conciliadoras enfraquecem a oposição . As ainda a prestar juramento de obediência absoluta ao Führer,
Igrejas do Sul, cujas queixas contra o govêrno desapareceram juramento exigido a todos os funcionários do Estado. É sus-
com a libertação dos bispos e com o retôrno da situação an- penso e, em junho de 1935, destituído de sua cátedra na
terior às tentativas de centralização de Müller e fager, en- Universidade de Bonn. Deve partir da Alemanha. Refugia-se
caram a possibilidade de uma retomada amigável das relações em Bâle.
entre a Igreja e o Estado. E influenciam nesse sentido tô- Nessa época, Barth experimenta a necessidade de mer-
da a Igreja Confessante. Os e1ementos moderados começam gulhar em uma reflexão sôbre a natureza e a forma da Igreja
a achar que a evolução foi rápida demais, que se acentuaram em suas relações com o Estado . A evolução da situação ecle-
as divergências em lugar de as remover, que se inovou de- siástica e política faz necessária uma tal reflexão . Barth a
mais. Esta última objeção é emitida particularmente pelos lu- inicia na Alemanha, durante os últimos anos passados neste
t~rai:~s que pretendem manter absolutamente as Igrejas pro- país, prosseguindo-a na Suíça.
vmcia1s. Os luteranos se perguntam também - êste foi sem- Em face de um Estado que cada dia se impõe mais em
pre um de seus principais escrúpulos - se é permitido re- todos os setores da vida pública e privada, que tenta assi-
sistir à . autoridade civil, já que esta é instituída por Deus. milar ou esmagar a Igreja, é importante, com efeito, en-
Enfim, desejam êles confiar a direção da Igreja Confessante contrar a essência da Igreja e redefinir as suas estruturas. Foi
antes aos bispos que aos sínodos. A tendência radical de Bar- assim que alguns problemas foram colocados em evidência
men e. de Dahlem dá lugar a uma tendência mais moderada
e conserv?dora. Entretanto, os moderados ainda não obtêm
êxito. E uni acontecimento imprevisto que lhes. dará a van- 1. Barth dirá mais tarde, sôbre a Vorlaufige Kirchenleitung, que
tagem. ela se assemelha mais a uma comissão de liquidação que a um
comitê executivo. Die Deutsche Bekenntniskirche 1935-1936
Ap~i; ter eliminado a equipe Müller-Jager, Hitler recebe (Zwingli-Kalender 1937) em: Karl Barth zum Kirchenlcampf,
Munique, 1956, p. 36.
com efeito, em 30 de outubro, os bispos Meiser, Wurm e 2. Offenbarung, Kirche, Theo!ogie, Munique, 1934, pp. 3-14, e Der
Marahrens, para discutir com êles a situação eclesiástica. De Gute Hirte, Munique, 1934, pp. 3-5.

50 51
pelo Kirchenkampf, problemas que anteriormente as pessoas quais pode-se chegar em situações históricas concretas: Igreja
não se tinham dado conta: notadamente o da vida e da or- nacional, Igreja livre e Igreja confessante. 6 Estudo precioso
ganização das paróquias e da Igreja, e o da forma das rela- pelo útil esclarecimento que traz, sobretudo no período con-
ções dessas paróquias e dessa Igreja com o mundo exterior, o turbado em que foi escrito.
povo, a sociedade e o Estado, de acôrdo com a fé confes- Depois de um definição do Estado como poder, cuja au-
sada. "Tudo isso que, há apenas alguns anos, era tido como toridade, provisória e limitada, depende da reconciliação esta-
evidente, ou como pràticamente intocável, encontrou-se de belecida em Jesus Cristo (e não como poder instituído pela
súbito colocado em questão na Alemanha de hoje, não ape- criação!), Barth examina as três formas possíveis da Igreja no
nas teoricamente mas de fato, exigindo novas soluções e res- inter1or e em face do Estado. Sua tese central é a de que
postas". 3 - :nenhuma dessas formas "é em princípio melhor adaptada ou
A política exerce uma influência sôbre a forma da Igreja. absolutamente estranha à essência da Igreja". 7
A obra de Deus passa pela história. Ê por isso que "a es- Se uma Igreja deve aceitar ser ou permanecer nacional,
trutura da Igreja não se constrói no vazio, mas sim no con- é unicamente por fidelidade às Sagradas Escrituras . E não
texto da história política, econômica, cultural e espiritual". 4 devido a razões de ordem ou de tradição, a motivos históricos
E Barth vai ainda mais longe quando escreve: "Existem ou políticos, ou por patriotismo. E tampouco para obter maior
acontecimentos, contextos, instituições, catástrofes e revira- consideração exterior ou influência pública e social ou, ainda,
voltas aos. quais aquêles que levam consigo uma responsa- para aumentar as suas possibilidades de ação e sua se-
bilidade eclesiástica - a comunidade cristã, os servidores da gurança material. Um critério importante da pureza de uma
Palavra de Deus - são, êles próprios, passiva ou ativamente, Igreja nacional será a sua capacidade de criticar abertamente
associados em tôda sua existência. Não levar em conta essas o Estado, sua coragem de manifestar sua oposição profética a
realidades seria dar prova de irreflexão e despreocupação - êsse Estado, a exemplo dos Jeremias e dos Isaías do Antigo
ou, digamo-lo claramente: de impiedade. Pois Deus é o Cria- Testamento.
dor de tôdas as coisas e, assim, o Senhor de tôda a reali- Se uma Igreja quer tornar-se livre, deve evitar transfor-
dade, conseqüentemente de tôda a história, inclusive a do sé- mar-se em "sociedade religiosa" de caráter privado, esquecendo
culo XX. Deseja Êle ser ouvido e escutado como tal, antes que o Estado é instituído por Deus e ela deve assumir, por
que nós, os filhos d'êste século, tenhamos a pretensão de que- êsse motivo, sua parcela de responsabilidades no Estado. Ê
rer edificar a sua Igreja". s esta a forma de Igreja pela qual Barth visivelmente tem me-
Significa isso ser necessário permanecer à escuta da his- nos simpatia. Pois parece-lhe grande o risco da fuga diante
tória e esperar perceber nela a vontade de Deus? Não, pois das realidades políticas, e, finalmente, diante da realidade em
isto seria cometer o mesmo êrro dos "Cristãos Alemães". Seria si. Como essa Igreja, pergunta êle, poderá rezar pelo Estado,
ficar exposto a uma confusão entre a obra de Deus na se não se preocupa por êle, e se não tem esperanças nêle?
história, fonte de bênção e de julgamento, e algumas teorias e Como poderá subtrair-se a seu dever de lembrar ao Estado que
ideologias graças às quais cumprimos essa obra à nossa ma- êle tem responsabilidades impostas por Deus? Como poderá
neira. A história nos remete a uma reflexão sôbre a Igreja. se furtar à oposição profética da Igreja ao Estado? "Uma Igre-
Mas não poderia, por si própria, ditar as conclusões. ja livre, que é verdadeiramente uma Igreja, poderá ser outra
Barth consagrou um estudo importante às três formas coisa que não uma Igreja nacional livre?" s
da Igreja, considerada em suas relações com o Estado, às
6. A Igreja e o Estado, ontem, hoje e amanhã (Volkskirche, Frei-
kirche, Be,kenntnis1kirche, Evang. Theologie III, 1936, pp. 411-
3. ~s pressupostos teológicos das estruturas da Igreja (Die theolo- 422) em Les Cahiers protestants, N<? 2, março de 1937. Reprodu-
gische Voraussetzung kirchlicher Gestaltung Munique 1935), em zido em L'Eglise, Genebra, 1964, pp, 155-168. Referimo-nos, aqui,
L'Eglise, Genebra, 1964, pp. 126-127. ' ' a esta última obra.
4. Op. cit., p. 132. 7. Op. cit., p. 159.
5. Op. cit,; p. 134. 8. Op. cit., p. 164.

52 53
A Igreja se toma confessante, enfim, quando o Estado a
afasta deliberadamente, quando a oprime abertamente e de-
seja modificá-la de maneira direta ou indireta. Tornando-se
confessante, a Igreja quer permanecer fiel à sua essência e
afirmar a sua existência. Mas, acrescenta Barth, "aqui tam-
bém é necessário dizer que a Igreja não pode nem almejar
nem recusar tornar-se confessante". 9 Só o será por fidelidade
ao Evangelho. A Igreja deve em primeiro lugar reconhecer Capítulo VI
sua culpabilidade. Pois "se a Igreja tivesse sido mais fiel à
sua missão, os Estados não se teriam tornado mais o que são A EVOLUÇÃO DA SITUAÇÃO
hoje em dia: aberta ou secretamente anticristãos". 1º A passa-
gem da Igreja ao estatuto de Igreja confessante será provàvel- ECLESIÁSTICA NA ALEMANHA
mente doloroso: os cristãos serão tentados por uma outra
Igreja, forte e bela, de acôrdo com a nação ou o mundo am-
biente (como na Alemanha nazista); a Igreja será abando-
nada por muitos daqueles com os quais acreditava poder contar.
Mas a comunidade confessante não será dispensada, por isso,
de obedecer ao Estado ou de interceder pelo mesmo. Será
sofredora, com a certeza de que Deus lhe é fiel .

A SuíçA, Karl Barth continua seguindo a evolução


do combate da Igreja na Alemanha. Mas é mais difícil para
êle exercer uma influência. Tornou-se, como êle próprio es-
creve, "uma espécie de inimigo público nf9 l". 1 Todos os seus
escritos são colocados no índex. Mas, deixando a Alemanha,
perdendo o contato direto com a política eclesiástica alemã,
Barth descobre também uma dimensão nova: não são mais
somente a Igreja alemã e a fé dos alemães evangélicos que es-
tão ameaçados pelo regime hitlerista, mas também as Igrejas
e os povos de tôda a Europa. O nacional-socialismo mani-
festa cada vez mais seu caráter inumano e anticristão. A ati-
vidade de Karl Barth daí em diante adquire um aspecto nitida-
mente mais político. Êle não vai mais lutar apenas contra a
contaminação da Igreja por uma ideologia estrangeira, mas
contra o próprio nacional-socialismo e o Estado totalitário hi-
tlerista.
Desde 1935, o Estado nazista já deixou de esperar uma
assimilação pacífica da Igreja Evangélica. De outro lado, a

9. Op. cit., p. 166. 1. How my mind has changed em: Der Gõtze wack.elt, Berlim, 1961,
10. Op. cit., p. 166. p. 189.

54 55
propaganda por uma "religião germânica", dirigida pelos seus Para numerosos membros da Igreja Confessante, o afas-
dois principais teóricos - Alfredo Rosenberg e William Hauer tamento de Müller e de Jager, a nomeação de um homem
- torna-se cada vez mais maciça e agressiva em relação às nôvo aparentemente preocupado com a conciliação, a criação
comunidades cristãs . 2 de comitês eclesiásticos de orientação moderada constituem
Após o fracasso do sistema Müller-fager, o Estado faz uma vitória, mesmo subsistindo justos motivos de protesto,
uma nova tentativa. Hitler nomeia, em 16 de junho de 1935, notadamente contra a interferência do Estado nas finanças da
um jurista nacional-socialista, Hans Kerrl, para o pôsto de Igreja. 4 Mas Karl Barth não vê as coisas por êsse prisma.
Ministro do Reich para assuntos eclesiásticos. Kerrl tem como Em um artigo publicado pelos Basler Nachrichten, o teó-
missão realizar por sua vez a unidade da Deutsche Ev. Kirche. logo de Bâle adverte a Igreja alemã contra as medidas tomadas
Em 24 de setembro, proclama uma "Lei para a segurança por Kerrl. "O nôvo decreto, escreve êle, representa um ataque
da Igreja Evangélica alemã" (Gezetz zur Sicherung der DEK), do nacional-socialismo contra a substância da Igreja Evan-
cujas 17 ordens de execução vão constituir o fundamento de gélica tal como estabelecida até aqui, pelo menos em teoria
tôda a política eclesiástica do Estado no decurso dos anos e do ponto de vista jurídico. Em outras palavras, trata-se de
seguintes. um ataque contra a fé e a confissão de fé". 5 Falar da liber-
A Igreja não poderá mais nomear os pastôres nem os dade de pregação é absurdo. Pois subtrair à Igreja tudo o
outros titulares de funções eclesiásticas, examinar ou consagrar que ordenam as medidas tomadas por Kerrl significa subtrair-
os candidatos em teologia, proceder à inspeção das paróquias, lhe precisamente sua liberdade de pregação. Mas a despeito
publicar os mandamentos a serem lidos em púlpito, receber da influência dos moderados e da do ministro Kerrl, Barth
ou administrar as contribuições eclesiásticas, emitir instruções pensa que a Igreja Confessante poderá resistir, e que conti-
relativas às assembléias paroquiais e à convocação dos sí- nuará mantendo-se firme.
nodos. E, ao mesmo tempo, declara-se que tôdas essas dis- De fato, a Igreja Confessante apresenta-se muito divi-
posições não poderiam de forma alguma prejudicar a "liber- dida. Reúne-se ela em sínodo, de 17 a 22 de fevereiro de
dade da pregação" nem referir-se aos artigos de fé propria- 1936, em Oeynhausen. 6 Após seis dias e seis noites de deli-
mente ditos! > berações, os delegados decidem, em grande maioria, recusar as
Kerrl confia um papel conciliador a um nôvo organismo, proposições do govêrno. O bispo Marahrens, que advogava a
o "Comitê Eclesiástico do Reich" ( Reichskirchenausschuss), colaboração, demite-se honradamente do Govêrno provisório
colocado sob a direção do antigo superintendente, W. Zõllner, da Igreja ( Vorliiufige Kirchenleitung). Êste último é dissol-
homem respeitado por todos os partidos eclesiásticos . Êsse co- vido. Um segundo govêrno é logo constituído e entra ime-
mitê, que representa as três principais tendências (cristãos diatamente em atividade, em estreita ligação com os Conselhos
nazistas, confessantes e moderados), compõe-se na maior parte Fraternais e os sínodos.
de elementos moderados. Assume a direção efetiva da DEK. Esse nôvo govêrno se notabiliza por um explosivo memo-
Constituem-se comitês eclesiásticos regionais em tôdas as Igre- rial que endereça ao próprio Hitler, em fins da primavera de
jas, salvo nas da Turíngia e do Mecklemburg, ferozmente 1936, e no qual condena, pela primeira vez de modo claro e
prêsas às idéias extremistas dos "Cristãos Alemães". Desta
vez, Müllerse se vê forçado a retirar-se definitivamente.
4. Aceitando oficialmente colaborar com o comitê eclesiástico do
Reich, algumas Igrejas de tendência confessante declararam
mesmo, por ocasião de uma convenção realizada em 20 de no-
2. Em um artigo publicado na Neue Zürcher Zeitung, de 14 de fe- vembro de 1936: "Nós nos alinhamos com o Reichskirchenauss-
vereiro de 1937, sob o título de Der .Kampf gegen die Evangelis- chuss sob a vanguarda do Führer na luta vital do povo alemão
che Kirche in Deutschland, Barth citará êsse slogan significa- contra o bolchevismo". RGG art. Kirchenkampf 7.
tivo: "Christentum ist .Judentum, .Judentum ist Bolschewismus 5. Kerrl und die Bekennde Kirche em: Basler Nachrichten, de-
Bolschewismus ist Volksjeindschaft. Also fort mit dem Christen~ zenibro, 4, 1935.
tum!" 6. Trata-se do quarto sínodo da Igreja Confessante. O terceiro se
3. "A Crise Eclesiástica Alemã", in Foi et Vie, 1935, p. 714. realizara em Augsbourg t4-6 de junho de 1935).

56 57
detalhado as medidas tomadas contra a Igreja e todos os danos Mais uma vez a reação de Hitler poderá parecer sur-
causados 'ao direito e à humanidade no Terceiro Reich. Bur- preendente. O sistema dos "comitês eclesiásticos" foi à fa-
lando a censura, êsse memorial é publicado em tôda a Eu- mas Kerrl foi longe demais. No dia 15 de fevereiro,
ropa. O Ministro do Interior: Frick, é r~sponsável por u_:n dois dias depois do discurso de seu ministro, o Führer de-
ato brutal: 7 centenas de pastores da Igreja Confessante sao clara que o povo da Igreja se exprimirá com tôda a liberdade
presos ~· um dos ~-i~atári,?.s do ~emoria}, Weissler, chefe do pelo voto e escolherá um sínodo nacional com a responsa-
escritóno da V orlaufzge Kzrchenleztung, e acusado de ter au- bilidade de lhe dar uma nova constituição. Durante três meses,
torizado a publicação. Não se aponta nenhuma prova contra de março a junho, desfruta a Igreja Confessante de uma li-
Weissler, nem se instaura nenhum processo. No dia 19 de berdade relativa para sua campanha eleitoral. Organiza gran-
fevereiro de 1937, é. ê1e assassinado no campo de concentra- des reuniões. Niemolkr fala tôdas as noites diante de mi-
ção de Oranienbourg. Disfarça-se o assassinato em suicídio. lhares de pessoas e as igrejas ficam superlotadas. Mas as
\Veissler era um judeu converso. eleições não se realizarão jamais.
O Comitê Eclesiástico do Reich esforça-se para conse- Os órgãos diretores do Estado colocam todo seu pêso
guir um acôrdo . Mas as divisões são por demais profundas, administrativo no sentido de fazer com que o decreto do
não somente entre as diferentes tendências, como também no Führer caia no esquecimento, decreto êste um pouco impulsivo
seio de cada uma delas. Barth indica, mais de uma vez, as demais em sua opinião. Kerrl, comprometido de modo dema-
divergências entre os membros da Igreja Confessante, entre os siadamente forte e publicamente desacreditado, é deixado de
moderados e os radicais fiéis à linha de Barmen; também de- lado. É o Secretário de Estado do Ministério dos Cultos, Muhs,
nuncia a excessiva prudência dos luteranos . 8 Os "Cristãos que o substitui. Para frear a ascensão da Igreja Confessante,
Alemães" tampouco apresentam uma frente unida: têm tam- retira-se tôda a autoridade dos Conselhos Fraternais. Muhs
bém seus radicais, levados pelo movimento da Turíngia, que dirige-se diretamente às paróquias. As finanças da Igreja são
querem a todo custo chegar à criação de uma verdadeira definitiva e completamente estatizadas. Proíbem-se as coletas.
Igreja Nacional Alemã, isto é, de uma Igreja nazista. Em caso de infração, são confiscadas. Qualquer reunião ou
O Reichskirchenausschuss é impotente para a solução agrupamento fora dos templos é banido. Os exames dos futuros
dessas divergências. Tendo.;Ihe a Gestapo proibido de se pastôres e sua consagração caem solidamente nas mãos do
dirigir a Lübeck, onde tinham sido presos nove pastôres, o Estado.
presidente Zollner se demite, e todo o seu comitê se retira Inicia-se também uma onda de prisões. Em 19 de julho
com êle. Isto acontece em 12 de fevereiro de 193 7. No dia de 1937, Martin Niemêiller é prêso e pôsto na prisão de Moabit,
seguinte, Kerrl pronuncia um discurso tumultuado, no qual bairro de Berlim. Após oito meses de detenção, vai a julga-
censura Zollner por não ter sabido promover a doutrina na- mento, no dia 2 de março de 1938, diante de um Sondergericht,
zista da Raça, do Sangue e da Terra no seio da Igreja Evan- um dêsses "tribunais especiais" instaurados pelos nazistas com
gélica. Pede que as Igrejas adotem enfim um "cristianismo o fito de julgar os delitos cometidos contra o Estado. O pro-
positivo". Quando se tornar necessário, o Estado saberá forçá- cesso tem lugar a portas fechadas . A acusação lançada contra
la a isso, através de medidas administrativas. 9 Niemoller - de clandestinamente ter atacado o Estado -
não é reconhecida. Mas condenam-no a uma pesada multa e a
7. Frick fazia já parte do primeiro gabinete de Hitlei: en:i 1933. sete meses de prisão, por "abuso da palavra" e por coletas
8. Díe Deutsche Bekenntnískirche 1936-1977, Zwingli-Kalender feitas em sua igreja. Como já passara tempo superior ao de
1938 (Bâle, 1937) em: Karl Barth ZU1n Xírchenkampf, p. 48, e:
L'Eglise confessionelle allemande, em: Les Cahiers protestants,
abril-maio, 1936, pp. 141-143. .
9. Eis alguns excertos eloqüentes dêsse famoso discurso: "O Pa;rt~do presentado pelo partido, e o povo alemão é hoje chamado pelo
se apóia sôbre o princípio do Cristianismo Positivo, ~ ~ Cns~1a­ partido e especialmente pelo Führer a praticar um Cristianismo
nismo é o nacional-socialismo ( ... ) . O nacional-socialismo e o real (. .. ). O Führer é o arauto de uma nova Revelação". Shirer,
efeito da vontade de Deus ( ... ) . O verdadeiro Cristianismo é re- op. cit., p. 261.

58 59
sua pena em prisão preventiva, o tribun~~ o~dena, a s~a liber- Mundial, seria indispensável mostrar, mesmo que brevemente,
tação. Mas, na saída da sala de aud1encias, e preso pela a evolução da situação eclesiástica propriamente dita. Com
Gestapo, colocado sob "guarda protetora" e enviad~ ao can:- efeito, só guardando-se no espírito essa sucessão de interven-
po de concentração de Sachsenhausen, perto de Berlim, depms çõ~s, depois de medidas repressivas sempre mais graves, de
a Dachau, perto de Munique, onde permanecerá durante sete pnsões, pode-se compreender porque Barth, tendo já passado
anos, antes de sua libertação pelas tropas aliadas. 1º de uma oposição exclusivamente teológica para a luta no ter-
A partir do verão de 1937, a Igreja alemã irá conhecer reno da política eclesiástica, julgar-se-á autorizado a encora-
momentos cada vez mais sombrios: incapaz de encontrar um jar as Igrejas e os povos da Alemanha e da Europa a uma
acôrdo em seu interior, submetida ao contrôle e à ameaça resistência política. Lançando ataques cada vez mais pre-
incessantes do Estado, ela se esgotará em discussões que, de cisos contra a Igreja, transformando-se, através das persegui-
crise em crise, acabam por conduzi-la à ruína. A comunidade ções e de um anti-semitismo de princípio, no que Barth chama
confessante vê-se perseguida de forma sistemática. 800 pas- de uma "contra-Igreja", o próprio Estado nazista favoreceu
tôres e laicos eminentes são presos em 1937, e centenas de essa evolução do teólogo de Bâle .
outros nos anos seguintes. 18 entre êles encontrarão a morte
entre 1937 e 1945. 11
Um único acontecimento importante interessará ainda
particularmente Karl Barth: a instituição, pelo nôvo chefe da
Deutsche Ev., Kirche, Werner, de um "juramento de fidelida-
de" dos pastôres (Treneid der Pfarrer) ao Führer, na pri-
mavera de 1938, um mês depois do Anschluss. Barth consi-
dera êsse juramento (devido apenas à iniciativa de Werner,
e que não foi nem reclamado pelo Estado) como um alinha-
mento incondicional com o nacional-socialismo, absolutamente
incompatível com a obediência à lei de Deus. 12
:Esse juramento, segundo Barth, distingue-se claramente
daqueles anteriormente prestados ao Kaiser ou à Constituição
de Weimar, pois exige de quem jura um engajamento total, de
corpo e alma, ao Estado nazista e ao povo alemão. B
Barth acompanhou a luta eclesiástica na Alemanha, passo
a passo, até o ano de 1939. Para compreender a marcha de
Barth durante êsses anos que prepararam a Segunda Guerra

10. Shirer: op. cit., pp. 261-262 e X: Martin Niemõller. Le témoi-


gnage diun pasteur sous la croix, Genebra, 1938, pp. 61-66,
11. Cifras fornecidas por Shirer: op. cit., p. 262 e RGG, art. Kirch-
enkampf 8.
12. Consilium zur Frage des "Treueides" der "Geistlichen" (1938).
Inédito até 1956. Reproduzido em: Karl Barth zum Kirchenkampf,
Munique, 1956, pp. 75-79. Ver também, na mesma obra: Offener
Brief an die 6. Bekenntnissynode der Ev. Kirche der Altpreussis-
che Union (1938), pp. 79-83.
13. Die Deutsche Bekenntniskirche 1937-1938. Zwingli-Kalender 1939,
Bâle, 1938, em: .Karl Barth zum Kirchenkampf, p. 53. :tl:le re-
tornará ainda a êsse assunto no ano seguinte: Die Bekennende
Kirche in Deutschland im Jahre 1938-1939. Zwingli-Kalender
1940, Bâle, 1939, na mesma obra (p. 51!).

60 61
SEGUNDA PARTE
Oposição Politica

KARL BARTH - 5
Capítulo I

EM DIREÇÃO A UA1A OPOSIÇÃO

URANTE os DOIS ANOS que se seguem ao seu retôrno


à Suíça, Barth publica, a respeito dos acontecimentos rela-
tivos à Igreja alemã, tão-somente textos de pequeno porte.
Nenhum dêles obterá o pêso ou a ressonância de Theologische
Existenz heute! ou do seu Erklarung da primeira reunião de
Barmen. 1 Não obstante, êsses textos são importantes por três
razões.
Em primeiro lugar, o seu número: aproximadamente 25
artigos, conferências ou cartas foram publicadas até êsse dia,
relativos a êsse período.
Em segundo, pela intenção que anima a maioria dêsses
textos: desde que o regime hitlerista opera uma censura seve-
ríssima sôbre tudo que concerne à Igreja, Barth esforça-se por
obter informações e comunicá-las a seus leitores europeus. Êste
trabalho de informação constitui ao mesmo tempo uma adver-
tência às Igrejas e uma manifestação de solidariedade para com
o punhado de resistentes que continuam a lutar na Alemanha.

1. 1': significativo que Boulliard, que nada omitiu de essencial, não


cite nenhum trabalho dêste período e passe diretamente à fa-
mosa carta a Hromadka, datada de 19 de setembro de 1938.

65
Em último, pelo seu conteúdo: a exposição que oferecem de maneira mais precisa, a essa vontade da Igreja Confessante
sôbre os acontecimentos permite que se compreenda melhor de permanecer dentro de certos limites, ou antes, ao seu receio
como a oposição de Barth se tornou mais diretamente política, de os ultrapassar 5• "Lutou-se pela doutrina e pela
Quando ainda se encontrava em Bonn, Karl Barth, lem- eclesiásticas. Mas a Igreja ainda não tomou posição diante do
manifestava-se regularmente sôbre a situação eclesiás- ~u~ se passa na Alemanha e que, no estrangeiro, provoca tanta
tica em seus prefácios aos cadernos de Theologische Existenz md1gnação: os meios empregados pelos dirigentes atuais para
heute! Na Suíça, é sobretudo o Zwingli-Kalender que, ano após chegar ao poder e manter-se nêle, o amordaçamento da impren-
ano e até a Segunda Guerra Mundial, lhe permite expor e co- sa, a perseguição dos judeus, a supressão quase total do direito
mentar os últimos eventos do Kirchenkam,pj 2, (o direito é o que é útil à Alemanha), os campos de concen-
Essa publicação anual lhe pede, aliás, um texto sôbre êsse tração, etc., etc." 6,
assunto quando de seu retôrno a Bâle, em 1935 3 • A primeira Barth explica também, nessa mesma ocasião, as razões
vista, êste curto artigo nada contém de muito nôvo: Barth lem- dêsse mutismo. No início, como todos os alemães, os mem-
bra as questões colocadas à Igreja alemã em 1933, a ameaça bros da Igreja Confessante acreditaram em Hitler e em sua
da teologia natural levada aos limites extremos pelos "Cristãos missão. Foi-lhe preciso tempo, e não foi fácil, para se separa-
Alemães", o alinhamento do povo alemão, em todos os setores rem da ideologia nacional-socialista. A imprensa escrita ê fa-
de sua existência, com a ideologia nacional-socialista; os síno- lada transmitia-lhes apenas informações censuradas. A Igreja,
dos e a resistência da Igreja Confessante. Mas ao final dêsse por seu turno, nada podia fazer antes de ter tomado consciên-
artigo, Barth eniite, pela primeira vez em semelhante modo, a cia de si mesma e das suas tarefas. Em seguida, precisou apa-
idéia de que a luta de_ Igreja alemã poderia dirigir-se para um relhar-se o mais urgentemente possível: defender a sua própria
outro terreno além do da teologia ou da plítica eclesiástica. existência e sua liberdade. "Não se deve subestimar a luta da
"A Igreja Confessante, escreve êle, combateu muito seriamente Igreja no terreno eclesiástico, conclui Barth. A Igreja se opôs
pela liberdade e pureza de sua pregação, mas se calou, por ao Estado em um ponto. Foi esta a única oposição que o Esta-
exemplo, a respeito da ofensiva desencadeada contra os judeus, do encontrou até aqui" 1.
a respeito do espantoso tratamento dado aos adversários polí- Em um outro texto, datado também da primavera de
ticos, a respeito da opressão da verdade na imprensa da nova 193?, Barth cita ainda "a perseguição contra os judeus'', o "30
Alemanha e a respeito de muitos outros pontos, de que os pro- de Junho de 1934" e os "campos de concentração" s como
fetas do Antigo Testamento teriam certamente falado" 1• questões sôbre as quais a Igreja Confessante faria bem em se
Barth é ainda moderado: não fala nem de "perseguições" pronunciar.
nem de "campos de concentração'', nem de "terror". Mas já Mas êsses não passam de indícios de uma orientação nova.
deixa entrever que a defesa da liberdade do Evangelho e da O próprio Karl Barth se mostra, aliás, mais explícito sôbre
Igreja, pela qual lutou na Alemanha ao lado de Martin Nie- êsse avanço no sentido de uma oposição política. A pressão
moller e de alguns outros, poderá um dia conduzir as Igrejas
da Alemanha e da Europa a uma oposição política sem disfar-
ces ao nacional-socialismo. 5. Die Bekennende Kirche im heuügen Deutschland. Tratava-se de
uma exposição livre, que jamais apareceu em alemão. Tem-se,
Quando de uma conferência pronunciada alguns meses entretanto, uma adaptação francesa de um texto estenografado
mais tarde, em março de 1936, em Schaffhouse, volta êle, mas de J. L. Le:uba sob o título: L'Eglise Confessionelle Allemande,
em Les Cahiers protestants, abril-maio 1936.
6. Op. cit., p. 149.
7. ~P cit:, p. 150. Barth visa aqui às censuras dirigidas na Suíça
2. Nossa exposição da luta eclesiástica alemã deve muito a êsses a IgreJa Confessante por se ter mostrado demasiadamente con-
textos, freqüentemente curtos, mas complexos. ciliadora e ter guardado silêncio sôbre os monstruosos excessos
3. BeJcennende Kirche im National-sozia:listichen Deutschland. do Terceiro Reich.
Zwingli-Kalender 1936, Bâle, 1935. Em: Karl Barth zum Kirch- 8. Die Deutsqhe Kirchenstreit als Frage an den Schweizerischen
enkampf. Citamos desta última obra. Protestantismus, Die Nation IV/13, 26 de março de 1936, Berna.
4. Op. cit., p. 34. Em: Karl Barth zum Kirchen:kampf, pp. 61-66.

:66
67
exercida pelo Estado sôbre a Igreja é tão total que a opos1çao que a resistência da Igreja possa ser francamente política. Pa·
da Igreja contra o Estado não pode senão revestir-se, por seu rece admitir sobretudo, estimando que a ameaça de um Estado
turno do mesmo aspecto de totalidade. Contudo, não po- totalitário obriga a Igreja a uma resistência total, que a Igreja
deria 'tratar-se de "oposição" no sentido tradicional. A situação possa se opor ao regime em outros pontos além dos que tocam
da Igreja Confessante não é a mesma de um partido de oposi- diretamente à sua mensagem e sua forma, para retomar os dois
ção. Aos que se perguntam, no estrangeiro, se a Igreja Con- têrmos da confissão de Barmen. Acha êle que a Igreja tem não
fessante não é sustentada por pessoas que dela se servem para somente o direito como o dever de condenar todos os ataques
fins políticos, Barth responde o seguinte: "Quando o Estado contra o direito e contra a humanidade, ataques êstes erigidos
se torna Igreja - o que constitui o caso do nazismo - nin- em sistema no Terceiro Rei eh 12 • Mesmo se êle não o diz expl'i-
guém deve se espantar ·ao ver a Igreja contra êle. É, necessà- citamente, deixa claro que essa condenação não é estranha à
riamente, seu inimigo, e a resistência da Igreja assume necessà- mensagem da Igreja, já que é em nome de uma certa noção
riamente uma significação política. Mas cair-se-ia em um do direito e da humanidade, contida nessa mensagem, que êle
grande engano pensando-se que a Igreja é sustentada por um incita a Igreja a tomar posição.
partido político, conservador ou socialista". E acrescenta: "O Desde a chegada de Barth à Suíça, a natureza anticristã
grande perigo que a Igreja corre não é o de soçobrar na polí- e, pois, inumana, do nacional-socialismo, revelou-se de maneira
tica; é o de temer enfrentar as necessárias oonseqüências de cada vez mais evidente. Mas, ao mesmo tempo, sua influência
ordem política" 9 • e seu poderio se reforçaram de forma inquietante em tôda a
Para Barth, · a atitude do Estado nazista totalitário acarreta Europa. "A ameaça e a brutalidade, escreve Barth, mas tam-
e mesmo justifica uma resistência política da parte da Igreja. bém a estupidez e o mêdo crescentes espalharam-se há muito
Alguns meses mais tarde, êle completa· essa tese com sua recí- além das fronteiras da Alemanha. E a Europa não compreende
proca: "O combate da Igreja alemã não tem apenas um valor o perigo em que vive. Por quê? Porque ela não compreende o
eclesiástico. Quando uma coisa tem verdadeiramente um valor primeiro mandamento, pmque não vê que o nacional-socialis-
eclesiástico, tem também, necessàriamente, uma importância mo significa precisamente a transgressão consciente, fundamen-
secular" 10 • Em outros têrmos: quando a Igreja quer ser a tal e sistemática do primeiro mandamento. E porque não vê
Igreja no seio de um Estado como o Estado nazista, sua auto- que essa transgressão, na qualidade de pecado contra Deus,
afirmação assume necessàriamente o sentido de um desafio traz consigo a perda dos povos" 13.
político. É isto também que Barth escreve a seus antigos estu- É pois, finalmente, essa transgressão fundamental - ma-
dantes, membros da Igreja Confessante: "Êste Estado se mostra nifestada pelos acontecimentos do Kirchenkampf e pelos obje-
cada vez mais decidido a utilizar o poder autoritário que lhe tivos expansionistas do nacional-socialismo - que justifica uma
foi concedido por Deus, a atribuir-se e a garantir para si pró- oposição política. Não deve causar espanto que, no momento
prio a potência divina. Quanto mais isso se torna evidente, mais em que Barth empresta a seu "não" ao nazismo uma coloração
a possibilidade de tomar uma decisão cristã que não envolva cada vez mais política, esforce-se ao mesmo tempo para fazer
uma decisão política (contra o abuso do poder autoritário!) com que seus leitores e ouvintes suíços ou estrangeiros com-
torna-se confusa e ilusória" 11 • preendam que a Kirchenkampf lhes coloca antes de mais nada
Barth parece assim admitir já, na véspera dos aconteci- uma questão de ordem eminentemente teológica, uma questão
mentos decisivos que anunciarão a Segunda Guena Mundial, de fé. Com efeito, alguns dentre êles reprovaram a princípio os
membros da Igreja Confessante, e particularmente Martin Nie-
9. L'Eglise Confessionelle allemande, in Les Cahiers protestants,
abril-maio 1936, pp. 150-151.
10. "Por que interessa o conflito eclesiástico alemão à Igreja intei-
ra?" (Der Deutsche lí:irchenkampf, Bâle, 1937), em: ln Extremis, 12. Díe Deutsche Beilcenntniskirehe 1936-1937. Zwingli-Kalender 1938,
1937, N9 1, p. 12. Bâle, 1937, em: Karl Barth zum Kircheríkampf, p. 47.
11. An meine ehemalige Schiller in der Bekennenden deutschen 13. How my mind has changed (Perergon 1928-1938. 1939). Em: Der
evangelischen Kirche (maio, 10, 1937) . Carta inédita até 1956. Gotze wackelt, pp. 188-189.
Reproduzida em: Karl Barth zum Kirchenkampf, p. 73.

68 69

j
moller, por permanecerem confinados a uma por
demais estritamente eclesiástica 14 • Outros acusaram-nos mais
tarde, pelo contrário, de querer "politizar" demasiadamente a
sua luta 1s. Mas todos tinham dificuldades em se sentir impli-·
cados no combate da Igreja na Alemanha. Ora, um dos pontos
principais sôbre que Barth insistirá, no decurso de três ou
quatro anos antes da guerra, será precisamente o de fazer com-
preender a uns e a outros que aquêle assunto coloca-os em Capítulo
causa. Convidará de forma premente seus leitores a meditarem
sôbre o núcleo teológico da Kirchenkampf: a Igreja Cristã UM SERVIÇO
ameaçada é capaz de resistir e de se recriar inteiramente, se
DEUS
retirar sua vida das Sagradas Escrituras e se entregar à onipo-
tência de Deus. E a questão que colocará cada vez mais a seus
interlocutores é a seguinte: seria vossa própria Igreja capaz de
uma tal resistência, fundamentada em uma séria abordagem
das Sagradas Escrituras e da teologia? Seria ela capaz, em cir-
cunstâncis semelhantes, de confessar sua fé com tanta fôrça
quanto a Igreja Confessante? Se êste não é o caso, seria de seu
interêsse preparar-se desde agora ' 6 •
"Talvez, declarou Karl Barth concluindo a sua mais per-
cuciente conferência s bre a Kirchenkampf, terá a Europa a
mesma sorte que a Alemanha. Talvez um dia apareça clara- E SSA OOLOCAçko EM EVIDÊNCIA do desafio teológico
e político da Kirchenkampf desemboca em dois textos essen-
mente que todo Estado é, no fundo, um Estado totalitário.
Talvez a luta da Igreja Confessional não passe de um prelúdio cia~s: u~a conferência pronunciada na primavera de 1938, na
da grande luta, da luta européia entre a Igreja e o Estado. Se Umvers1dade de Aberdeen, sôbre o artigo 24 da Confissão de
fôr assim, a Igreja será de nôvo, como nos tempos antigos, o Fé escocesa ("Do poder civil") e uma primeira obra verda-
único asilo da liberdade, do direito e do espírito humanos. Ela deira de teologia política, "Justificação divina e justiça humana"
é, decerto, infinitamente mais que tudo isso. Mas pode tam- (Rechtfertigung und Recht), publicada em junho do mesmo
bém ser isso. Somente ela o pode ser na Alemanha" 11. ano.
Na primavera de 1937 e no ano seguinte à mesma época,
Karl Barth dá duas séries de cursos na Universidade de Aber-
14. L'Eglise Confessionelle allemande. Em: Les Cahiers Protestants, deen sôbre a Confissão de Fé escocesa de 1560 1 • É à segunda
abril-maio 1936, pp. 149-150.
15. Die Be1kennende Kirche in Deutschland im Jahre 1938-1939. série, a de 1938, que pertence seu comentário sôbre o artigo
Zwingli-Kalender 1940, Bâle, 1939. Karl Barth zum Kirchen·· 24. Apresentou-o sob o título de "O serviço político de Deus"
k.ampf, p. 56. (Der Politische Gottesdienst). A doutrina reformada conhece,
16. Não é possível mencionar aqui todos os textos onde Barth aborda
a questão do valor geral da KirchenJcampf. Citamos entretanto: além do serviço da vida cristã e do culto, uma terceira forma
Das Evangelium in der Gegenwart (Munique, 1935), Die Deittsche de serviço: o serviço político. Tal é a afirmação central dêsse
Kirchenstreit als Frage an den Schweizerischen Protestantismus
Wie Nation IV /13, Berna, 1936), Der deutsche Kirchenkampf texto.
<Bâle, 1937) e Le combat de l'Eglise en Allemagne (inédito em
alemão, Foi et Vie, 1937) .
17. L'Eglise confessionele allemande. Em: Les Cahiers protestants, 1. ll:sses cursos foram publicados em duas partes igualmente: Syl-
abril-maio 1936, pp. 152-153. labus of Gifford Lectures 1937. Part one. University oj Aberdeen,
1937 e idem, part two, 1938. Referimo-nos à tradução francesa:
Connaitre Dieu et le servir, Neuchâtel, 1945.

70 71
A vida cristã e a vida da Igreja se lançam no quadro de lesem e destruam o direito, a paz e a liberdade em lugar
um mundo que ãinda não ouviu a Palavra ?e J?eus, n~as q;1c garanti-las, que seu poder degenere em tirania. Neste caso,
pode e deve ouvir essa ~alavra. O mundo e ~01~ o objeto e.a o significado da ordem política como serviço de Deus torna-se
missão da Igreja. A IgreJa que cumpre sua m1ssao no mundo confuso, problemático, até desprezível, por culpa dos homens
santifica o mundo. Esta santificação é provisória, pois não no poder. O Estado deve cumprir seu dever de Estado para
pode ser confundida com a santificação de um mundo que que seu significado como serviço de Deus se torne claro. Mas
tivesse, êle próprio, ouvido essa Palavra e aceito a fé, que se não se trata para êle de alardear preocupações excessivas a
tornasse Igreja. Mas ela é, contudo, real, pois constitui igual- respeito da Igreja, preocupações estranhas ao seu domínio espe-
mente a obra do Espírito Santo, obra dirigida para o exterior, cífico. Pelo oontrário. A corrupção espiritual, afirma Barth,
aoindo em todo o domínio do que ainda não foi concluído. deve ser vencida por uma fôrça espiritual e não política. Em
P~rque essa santificação é provisória, é falso querer-se .edificar troca, é justo afirmar que "o significado da ordem política a
0 reino dos santos na terra, a exemplo de alguns movimentos serviço de Deus se torna claro quando o Estado outorga e man-
do século XVI. Mas, porque ela é real, é também falso desin- tém a liberdade da Igreja" 4 • A Igreja, diz ainda Barth, tem
teressar-se e retirar-se do mundo, como o recomendavam outros necessidade de espaço para proclamar sua mensagem em nome
movimentos da mesma época. O artigo 24 da Confissão esco- de seu Senhor. O Estado deve conceder êsse espaço à Igreja.
cesa se opõe também aos que querem reconhecer, com os lute- Seu significado como servidor de Deus se toma obscuro no
ranos, uma certa autonomia do mundo em relação ao reino do momento em que êle lho recusa, ou o limita, no momento em
Cristo. Segundo' o ensinamento reformado, êsses dois reinos que exige dela que se adapte e se submeta aos seus próprios
são distintos e, não obstante, formam uma unidade. Jesus Cristo objetivos.
não é somente o Senhor da Igreja, mas também o do mundo, A tomada de posição concreta do cristão no seio da ordem
e, assim, da ordem política 2 • política depende assim da resposta dada a esta pergunta: encon-
A organiza.ção política é uma organização autêntica e salu- tra-se o Estado a ponto de se tornar um servidor de Deus, se-
tar para a própria vida humana. Não se trata ainda da orde.m gundo Rom. 13, ou a bêsta do abismo, segundo Apoc. 13?
da fé e do amor. Trata-se, como a sombra dos bens por vrr, Questão que assume todo seu pêso na época do nazismo. Karl
da ordem do direito, da paz e da liberdade exteriores. A Igreja Barth precisa que essa tomada de posição tem lugar, decerto,
reivindica também a ordem política do mundo como sendo no seio da ordem política. A organização política como tal e
igualmente "uma ordem a serviço de Deus, na qual os que sua necessidade não são colocadas em questão, qualquer que
governam e os que são governados são chamados a obedecer seja a atitude do poder.
a Deus, a lhe dar graças e a se arrepender" 3• Nenhuma exigência cristã nos prescreve, de uma vez por
A significação do poder polítioo definido como serviço tôdas, colaborar positivamente com o Estado. Sem dúvida, o
de Deus se manifesta de maneira ao mesmo tempo clara e con- poder político permanece a serviço de Deus, mesmo quando
fusd. Mas não se trata de confiar aqui nas aparências. Ela seus detentores o torna.111 desprezível. Mas não podemos, então,
não· será clara porque os detentores do poder confessarão sua partilhar da sua responsabilidade, nem encorajar suas intenções,
ligação à fé cristã ou porque serão conhecidos por sua piedade ainda menos perseguir os mesmos objetivos que êle. Inversa-
pessoal. Inversamente, ela não será necessàriamente confusa mente, os cristãos tampouco têm o dever ou mesmo o direito
porque êles não manterão nenhuma relação, ou apenas rela- de recusar ao Estado a sua colaboração positiva, a participação
ções muito moderadas, com a Igreja. A verdadeira questão é na sua responsabilidade, durante todo o tempo em que a signi-
a de saber o que êsse poder político quer e o que faz. Pode ficação do Estado se manifestar de maneira clara como ser-
acontecer que seus detentores não cumpram com seu dever, viço de Deus. Recusando-nos a cumprir nossas obrigações de

2. Op. cit., p. 196.


3. Op. cit., p. 197. 4. Op. cit., p. 200.

72 73
cidadãos, não renegaríamos meno_s ~· Deus do que se nos r~­ constantemente, em evidência, o do Estado em
cusássemos a confessá-lo com a IgreJa. nossa seia LV'"""'''v à Igreja. A um ponto no qual não se poderia conservar
ativa ou passiva, trata-se, nos dois casos, ?e_ uma decisão. re__s- senão a de um Estado cuja única e exclusiva função
ponsável, concernente à fé e a~ amorA cr~stao. A C~nf.:ss~o seria a de deixar o campo livre à pregação do Evangelho. Uma
Escocesa admite, segundo as circunstancias, uma res1stencia tão exclusiva deve ser afastada. O Estado desem-
legítima ao poder político. Torna-a mesmo uma ordem de Deus. também um papel muito positivo, como potência da
Essa resistência ativa supõe a intervenção da fôrça contra a ordem instituída por Deus. Não é pois sem razão que Barth
fôrça. "A obediência, não à organização política, mas aos seus escreverá: "A razão de ser, o sentido e o dessa comu-
representantes, pode algumas vêzes se tornar impossível para nidade tarefa da a tarefa política) é de garantir aos
nós, se quisermos permanecer fiéis à fé e ao amor, escreve indivíduos uma liberdade exterior, relativa e provisória, a fim
Barth. Poderia acontecer que não pudéssemos permanecer obe- de garantir assim aos quadros da vida individual e coletiva um
dientes a determinado soberano a não ser desobedecendo a Deus caráter de humanidade. Os três principais meios que permitem
e, de fato, à própria ordem política" 5 • Neste caso, a oração à comunidade civil cúmprir essa função são: as leis que têm
em favor dêsse govêrno, sem cessar de subir a Deus, pela con- objetivo fixar a ordem válida para todos; o govêrno e a
versão e pela salvaçãÓ das pessoas, não deveria tornar-se urna que têm como missão assegurar a aplicação
oração na qual se pediria simplesmente que elas fôssem afasta- das leis em questão; o aparelho judiciário, encarregado
das do poder? E não seríamos nós então obrigados, pergunta decidir em caso de dúvida ou de conflito" 7 •
ainda Barth, a· agir de acôrdo com essa oração? f;: no mesmo muito exatamente, que se deve inter-
Uma derradeira questão se coloca: podemos nós, como a explicação dos primeiros versículos de Rom. 13, no
cristãos, participar do poder? Viver neste mundo que ainda não capítulo da "Dogmática" (publicado cinco anos depois do
foi salvo, e assim nêle obedecer a Deus, responde Barth, já comentário da Confissão Escocesa) dedicado ao mandamento
significa estar implicado direta ou indiretamente no exercício de Deus 8 • O Estado, portador do gládio, é apresentado como
de um poder. Em outras palavras: participamos de qualquer um instrumento ímpiedoso da piedade de Deus. Mais precisa-
forma e sem escapatória do exercício de um poder no momento
mente, é um instrumento da paciência de Deus, uma ordem que
em que obedecemos à organização política, segundo o manda-
mento de Deus. E mesmo quando julgamos dever escolher a :me estabeleceu para que os cristãos possam manifestar a sua
posição intermediária da simpatia passiva. Quanto à resistência graça a todos os homens e para que êsses homens possam viver
à tirania, devemos rezar para que essa solução nos seja pou- em comum. A autoridade política é estabelecida por Deus,
pada, sobretudo na sua forma última: a resistência violenta. mesmo onde a graça não se manifesta de modo claro, lá onde
Mas, conclui Barth, "uma coisa é de qualquer modo ex- permanecem os sinais de cólera. É por isso que a ordem polí-
cluída: não nos pertence orar nem desejar que nos seja pou- tica é a ordem do gládio. Mas o próprio gládio exprime a
pada a obediência a Deus nesse domínio profano, que sejamos tarefa positiva do Estado em relação à humanidade: proteger
isentos do serviço político de Deus, com as decisões que acar- os indivíduos e a comunidade.
reta. E já que êsse serviço nos é reclamado, não nos será É essencial conservar no espírito essa definição "humana"
permitido fugir diante de nehuma das suas conseqüências" 6 • se se pretende evitar a deformação do conceito barthiano de
No têrmo dessa primeira apreciação das relações entre a Estado, em razão do comentário mais longo sôbre a sua defi-
Igreja e o Estado, convém lembrar de imediato um elemento nição "cristã".
muit0 importante da teologia política de Karl Barth: o lado
positivo e humano do Estado. O exame dessas relações coloca
7. "Comunidade Cristã e Comunidade Civil" <Christengemeinde und
Bürgergemeinãe, Zollikon-Zurique, 1946)), Genebra, 1958, pp. 9-10.
5. Op. cit., p. 203. 8. "Dogmática II/2*•" (Kirchliche Dogmatik II/2, Zollikon-Zurique,
6. Op. cit., p. 205. 1942), Genebra, 1959, pp. 216-222.

74 75
Jesus Cristo é ao mesmo tempo Senhor da Igreja e do cias extremas. Lutero e Calvino não notaram suficientemente
mundo. A ordem política pertence também ao seu Reino. Existe que essa disposição se prendia à graça do Cristo e entrava no
assim um serviço político de Deus. Barth retoma essa tese e plano da redenção. Isso leva Barth a constatar uma certa lacuna
desenvolve-a em "Justificação Divina e Justiça Humana", fun- no ensinamento de ambos 10.
damentando·-se não mais em uma confissão de fé, mas em Depois dessa nota preliminar, Karl Barth examina uma
textos do Nôvo Testamento. série de textos neotestamentários concernentes às relações entre
No início do seu estudo, Karl Bartb coloca o problema da Jesus e Pôncio Pilatos e os que dizem respeito aos "podêres".
seguinte forma: "Existirá uma relação entre a realidade da Este exame permite-lhe afirmar: "Quando o Nôvo Testa-
justificação do pecador pela fé, justificação realizada d~ u:11a mento fala do Estado, estamos fundamentalmente no domínio
vez por tôdas por Deus no Cristo, e o problema da JUStlça cristológico; em outro plano, que não o da Igreja, mas parale-
humana, o problema elo direito?" 9 lamente e em ligação com as afirmações relativas à Igreja, no
Os Reformadores - tanto Lutero em seu "Texto Sôbre mesmo e único domínio, o domínio cristológico" 11. Ou seja, o
as Autoridades Dêste Mundo" (Von weltlicher Obrigkeit) da justificação.
quanto Calvino no último capítulo da sua "Instituição" - c.om- Uma outra razão permite afirmar a relação entre o Estado
preenderam que justificação divina e direito humano, ou amda e o plano da redenção. A ordem do "século por vir" é designada
Igreja e Estado, constituíam domín1os distintos, e que cada um no Nôvo Testamento como uma ordem p1olítica. Não é uma
à sua maneira dependia do mesmo Deus. Porém êles se conten- Igreja, mas uma cidade, a cidade celeste, que representa o
taram em simplesmente justapor êsses dois domínios sem desta- século por vir.
car a relação interior e necessária que os une. Se nos ativermos Nessa relação, é essencial que a Igreja e o Estado perma-
à sua doutrina, o risco de uma separação estéril e perigosa é neçam cada um em seu lugar. Pois se o Estado tentasse tornar-
constante. Este risco é duplo. Ou desliga-se o conhecimento se Igreja, poderia apenas tornar-se uma Igreja de ídolos. E a
da justificação divina de suas relações "demasiadamen~e mu~­ Igreja cessaria de ser Igreja se pretendesse tornar-se Estado ou
danas" com a justiça humana - e não se pode constrmr senao se pretendesse estabelecer o direito (Recht) pela fôrça, enquan-
uma Igreja exclusivamente espiritual, incapaz de estabelecer to sua única tarefa é a de anunciar a justificação (Rechferti-
uma relação entre o Reino de Deus, o perdão dos pecados e gung). Mas essa relação antagonística entre a Igreja e o Estado
a santificação, de um lado, e o mundo das questões humanas não exclui - ao contrário, inclui - o fato de que o Nôvo
do direito e da justiça, de outro. Ê o risco representado pelo Testamento não considera de forma alguma a ordem do Estado
pietismo. Ou então leva-se a sério a questão do direito humano, e o respeito que lhe é devido como uma questão exteríor à
sem indicar sua relação com a justificação realizada pelo Cristo vida da comunidade cristã. O Estado constitui, em certo sen-
(mesmo se se toma ainda a precaução de ligá-la à obra de uma tido, "uma espécie de anexo, situado de fora, no mundo, da
Providência Divina geral). Constrói-se apenas, então, uma vida cristã da Igreja" 12 • Existe pois um certo caráter político
Igreja secular. Ê o risco representado pelo Século das Luzes. da Igreja, como existe um certo caráter eclesiástico do Estado,
O êrro dos Reformadores, ou antes, sua insuficiência, é o que a Igreja deve reconhecer e reverenciar. Barth, aqui, vai
de terem fundado o direito e o Estado não sôbre a senhoria de muito longe: os representantes do Estado pertencem de certa
Jesus Cristo, mas sôbre uma disposição da Providência Divina: forma à ordem sagrada, não como membra praecipua, mas
o direito e o Estado teriam se tornado necessários somente como ministri extraordinarií Ecclesiae 13 • Não retomará êle essa
pelo pecado e apenas serviriam para evitar as suas conseqüên- afirmação no estudo, mais elaborado, mais amadurecido, que

9. Rechtertigung und Recht, Zollikon-Zurique, 1938. Reproduzido 10. Eine Schweizer Stirmne, pp. 13~19.
em: Eine Schweizer Stimme, p. 13. Tradução francesa em: Les 11. Op. cit., p. 30.
Cahiers bibliaues de Foi et Vie, Paris, 1938. Citamos do texto 12. Op. cit., p. 43.
alemão de Eine Schweizer Stimme. 13. Op. cit., p. 44.

76 77
sob o título de "Comunidade Cristã e Comunidade para êles, nenhuma possibilidade de evasão fora
político; os cristãos, permanecendo orientados intei-
Orespeito das autoridades é assim baseado no respeito a ram~nte no sentido da cidade a vir, são responsáveis para com
uma ordem estabelecida por Deus. Essa submissão significa a c1dade terrestre, chamados a trabalhar e eventualmente a
que os cristãos nada deverão recusar ao Estado do que a êste lutar por ela. Cada um dêles é responsável pelo caráter do
pertence necessàriamente enquanto representante do direito pú- Estado enquanto Estado justo. A Igreja deve garantir ao Estado
blico, enquanto poder da ordem, num sentido eminentemente moderno essa participação is.
Trata-se de "dar a César o que é de César". Mesmo . A. exortação neotestamentária concernente ao Estado cul-
se o Estado degenera, o poder instituído por Deus subsiste. mma finalmente .na afirmação de que os cristãos devem dar a
Mas para que a Igreja seja e permaneça a Igreja, os cristãos César o que lhe pertence "fazendo o bem". Não se trata aí, diz
deverão velar também para "dar a Deus o que é de Deus". A Bart~, de a~guma ~i:tude moral. Isso significa, pelo contrário,
pregação da justificação continua em tôdas as circunstâncias. ~ue o serviço dec1s1vo que a Igreja presta ao Estado consiste
E não é contra o Estado, mas como um serviço cumprido para s1mp1e.smente ~m ~.ante_: e ?c~par seu lugar de Igreja ( ... ) . É
êle que a comunidade cristã realizará seu dever. Compreende- anun~iando a JUshflcaçao d1vma que a Igreja serve, da melhor
se a importância de uma tal afirmação para os cristãos d§J- Ale- maneira, ao estabelecimento e à manutenção do direito huma-
manha. no. Ne1~hu~a ação direta, semipolítica ou inteiramente política
Só a Igr,eja no mundo reconhece as razões que tomam o da .Igreja, fosse ela processada com o mais fervoroso zêlo, po--
Estado legítimo e necessário. "Os Estados podem nascer e pas- dena, fe ~onge, compa~a.r-se com a ação positiva na qual, de
sar, escreve Barth, as concepções políticas podem se modificar, m?~º mteiramente apohtico, sem nenhuma intervencão no do--
a própria política pode interessar ou não os homens; mas existe, m1~10 do Estado, essa Igreja anuncia o reino de Cristo que
em todo caso, um fator que sempre mantém e sempre funda o esta por e, pois, a justificação pela fé" 16.
Estado, que é, através de todos os desenvolvimentos históricos
e de tôdas as modificações, a Igreja cristã ( ... ) . Assim como
a justificação divina constitui o elemento de continuidade da
justiça humana, a Igreja constitui o elemento de continuidade
da política" 14 •
O dever político não se limita mais para nós, como no
tempo do apóstolo Paulo, a pagar os impostos e a se submeter
à legislação. Paulo considerava os cristãos como súditos do
Estado, e não como cidadãos responsáveis. Em um Estado
moderno democrático, o cidadão elege as autoridades, partici-
pa do estabelecimento das leis, vela pela sua execução. Não é
mais, pois, um súdito submisso. Seus deveres para com o Esta-
do se ampliaram. Sua responsabilidade cresceu. Karl Barth julga
ser permitido ver na concepção democrática ·ao Estado, impli-
cando nessa participação responsável dos cidadãos, um legítimo
prolongamento da concepção neotestamentária do Estado justo.
Os cristãos devem assim participar de seu estabelecimento e
da sua manutenção através de sua ação como cidadãos. Não

15. Op. cit., p. 54.


14. Op. cit., pp. 49-50. 16. Op. cit., p. 55.

78 KARL BARTH - 6
79
Capítulo

A CARTA A HROMADKA

1938. EM MARÇO, é o Anschluss: a .Áustria é absor-


vida pela Alemanha, Viena torna-se uma capital de província.
Mas Hitler não se detém aí: outros alemães vivem ainda fora
das fronteiras do seu Reich. Tôda sua política estrangeira é
doravante dirigida no sentido da integração das regiões germâ-
nicas da Tchecoslováquia. Empreendem-se discussões dramá-
ticas entre as potências européias. A Grã-Bretanha quer a todo
custo evitar o recurso à fôrça, pregando um acôrdo pacífico.
A França, aliada da Tchecoslováquia em virtude de um tratado
assinado em 1925, mostra-se incapaz de lhe fornecer mais que
um apoio verbal. A Itália apóia as reivindicações alemãs, da
mesma forma que deu sua bênção ao Anschluss. Diante da
inconsistência das democracias ocidentais e da pressão das dita-
duras fascistas, a vontade de resistência da Tchecoslováquia
tem um pêso demasiadamente débil. Em 30 de setembro de
1938, o Tratado de Munique entrega o território dos sudetos à
Alemanha 1•

1. Por mais de uma vez Barth se indignará contra a assinatura


dêsse acôrdo. Eis o que dirá êle, notadamente em 1942: "Para
mim e alguns outros, o mais grave dia dêsses últimos· anos não

81
Uma dezena de dias antes da assinatura do acôrdo, em a Confissão Escocesa e sôbre a "Justificação Divina e
19 de setembro, numa atmosfera carregada de incertezas, Karl Humana". É verdade que êsses dois estudos representam um
Barth dirige ao Prof. Hromadk~, de Praga, uma carta que pro- desenvolvimento nôvo na sua teologia. Pela primeira vez, Barth
duzirá grande alarde. A evoluçao processada desd~ seu ret?r~o se lançou ao problema das relações entre a Igreja e o Estado 4 •
à Suíca atin cre aqui seu tênno: o Evangelho autonza o cnstao Mas êsse desenvolvimento não contradiz absolutamente as suas
a um~ oposfção política ativa ao nacional-socialismo. Ordena- concepções anteriores. Em um texto publicado no ano seguin-
lhe mesmo uma resistência armada. "Todo soldado tcheco, te 5, Barth fornece aliás longas explicações sôbre essa pretensa
escreve Barth visualizando a eventualidade de um engajamento modificação. A transcendência de Deus, a espera escatológica,
que então combaterá e sofrerá, irá fazê-lo também por a pregação do puro Evangelho, guardam para êle seu lugar cen-
nós _ e eu o digo hoje sem reservas, êle irá fazê-lo também tral. Mas nunca significaram ser necessário desinteressar-se do
pela Iareja de Jesus Cristo que, na atmosfera dos Hitler e dos homem e do presente, separando por um abismo a Igreja do
Mussolini, não pode senão sucumbir no ridículo ou no exter- Estado e da sociedade. Se existia antes - já que se preteàde
mínio. tempos singulares, meu caro colega, êstes em que falar hoje de uma "modificação" - uma transcendência abstra-
0 homem sensato pode somente dizer uma coisa: que a fé ta (Deus é tudo, o homem não é nada), uma escatologia abs-
ordena aue se deixe resolutamente em segundo plano o mêdo trata (o presente não conta) e uma Igreja unicamente preo-
da violêl;cia e o amor à paz, colocando resolutamente em pri- cupada, de maneira abstrata, com a transcendência de Deus
meiro o mêdo da injustiça e o amor à liberdade" 2 • (A Igreja não se preocupa com o Estado e a sociedade), isto
Um resume} desta carta aparece primeiro na P'rager Presse não acontece, diz Barth com humor, "na minha cabeça, mas
de 25 de setembro. Depois, seu conteúdo é amplamente divul- somente na de muitos de meus leitores, e singularmente nos
aado em tôda a Europa. Por onde surge, espanta, surpreende. que escreveram a meu respeito relatórios e livros inteiros" 6 •
Na Alemanha, provoca escândalo. Os protestos não partem A propósito das relações entre a Igreja e o Estado, Barth acres-
somente dos meios nazistas, mas também dos da Igreja Con- centa ainda que jamais aprovou a doutrina luterana segundo a
fessante, onde nem sempre se compreende que a fé cristã possa qual a vida do Estado proviria de uma lei totalmente indepen-
ordenar uma tomada de posição tão clara. A segunda V orliiufige dente da mensagem evangélica. A única "modificação" sobre-
Kirchenleitung rejeita a carta a Hromadka como "política", sem vinda é que o evento do nacional-socialismo deu-lhe a ocasião
procurar compreendê-la do ponto de vista teológico 3 • Acusa-se de manifestar o significado prático da sua teologia. É já a razão
Barth de ter sacrificado sua doutrina ~s suas inclinações polí- que êle havia dado para explicar a sua "passagem" da teologia
ticas. pura (Theologische Existenz heute!) à política eclesiástica
Porém, pretender então que a posição teológica de Barth (Barmen e a Igreja Confessante): as verdades teológicas per-
se modificou significa ignorar inteiramente seu comentário sôbre manecem as mesmas; o que muda é o meio no qual elas res-
soam. Segundo a natureza dêsse meio, vimos que as mesmas
verdades teológicas podem desembocar, concretamente, em uma
foi o da derrota da França em 1940, ou o da conquista de Creta
em 1941 ou o do incidente de Pearl Harbour, mas sim o dia de luta contra os danos causados à mensagem da Igreja, à sua
Muniqu~ em 1938, quando os Estados responsáveis pela paz de forma e, mesmo, ao direito e à humanidade.
Versalhes foram forçados a confessar sua incapacidade em pre-
servar a ordem estabelecida em 1919, e quando os sinos de tôdas
as Igrejas repicaram na Europa, que os cristãos acreditaram de- 4. o próprio Barth reconhece essa evolução (Kirchliche Dogmatik
ver agradecer a Deus por ter evitado a guerra através dêsse II/l, Zurique, 1940) : "Foi necessário falar, nesses últimos tem-
vergonhoso tratado de paz". Briej an einen amerikanischen pos, de maneira mais clara e positiva, sôbre as relações entre a
Kirchenmann, em: Eine Schweizer Stimme, Zurique, 1945, pp. Igreja e o Estado do que nos fôra possível durante todo o pe-
273-274. ríodo em que tivemos de combater as estreitezas e os abandonos
2. Brief an Prof Hromadka in Prag (1938), em: Eine Schweizer do neoprotestantismo. Dogmatique I/1, Genebra, 1957, p. 393.
Stimme, Zurique, 1945, pp. 58-59. Uma tradução francesa dessa 5. How my mind has changed 1928-1938 (1939), em: Der Gotze
carta foi publicada em: Foi et Vie, 1938, pp. 385-386. wackelt, pp. 189-190.
3. RGG, art. Kirchenkampf 8. 6. Op. cit., p. 189.

82 83
Essas verdades podem finalmente incitar aquêle que as "A Igreja de Jesus Cristo não pode considerar com indi-
reconhece a defender a integridade de um Estado, com as armas ferença a questão da ordem e da liberdade políticas na Euro-
na mão. São pois essas mesmas verdades, que Barth procla- pa. Prega ela a exigência totalitária da Palavra de Deus. Nos
mava em 1933 (e antes!), que o incitaram a escrever a Hro- países ditat01iais, não tem senão duas possibilidades: ou a de
madka. renunciar a essa exigência e lançar-se assim no ridículo perante
As implicações práticas de sua reflexão teológica são postas Deus e o mundo, ou a de mantê-la e assim se expor ao exter-
em evidência, de forma menos implícita que na carta a Hro- mínio por parte da ditadura" 12. A Igreja deve estar pronta a
madka, em outra carta escrita um mês depois a um pastor enfrentar o dilema. Mas não deve aprovar ou apoiar espontâ-
holandês, e na qual Barth fornece algumas explicações breves neamente uma política que a coloque diante de tal escolha. A
sôbre a frase que desencadeou tão grande emoção na Europa: Igreja pode precisar sofrer com a ditadura. Porém a única polí-
"Todo soldado tcheco que combaterá e sofrerá ... " 7 tica que pode admitir, aprovar e pretender é a da ordem e a da
Barth começa por admitir que a questão do território dos liberdade" ll.
Sudetos merecia uma solução. "Parece que ó Tratado de Ver- Se a ordem e a liberdade estão ameaçadas, esta ameaça
salhes criou ali condições insuportáveis, e que o govêmo tcheco se refere imediatamente à Igreja. E se um Estado engaja-se na
ainda não encontrou até agora o meio de dominar a situação" 8 • defesa dessa ordem e dessa liberdade, a Igreja está diretamente
De fato, precisa Barth, a confrontação entre a Alemanha e a engajada nessa defesa. Existe um liame de solidariedade entre
Tchecoslováquia não se referia sômente à regulamentação de o combate e os sofrimentos da Igreja e o combate e os sofri-
uma questão territorial e nacional. Mas, desde que a questão mentos do Estado no momento em que êste último, agindo
foi colocada nesses têrmos, a resposta deveria levar em consi- como Estado justo, intervém pela ordem contra uma dinâmica
deração os seguintes pontos: cega e pela liberdade contra uma tirania brutal. Em conclusão,
- O único remédio para semelhante situação é a solução Barth escreve essas palavras que anunciam e resumem tôda a
de direito, elaborada por negociações e decisões internacionais, sua posição durante a Segunda Guerra Mundial: "A frase. sôbre
das quais devem tomar parte tôdas as partes interessadas. Ora, o soldado tcheco significa, em sua aplicação concreta, muito
como, em realidade, foi um "diktat" o que se impôs à Tchecos- simplesmente o que I Tim. 2: 1-3 indica como fundamento da
lováquia 9 , êsse Estado tinha o direito de resistir militarmente. oração cristã pelas autoridades: "A fim de podermos levar uma
"Tinha o dever de se auto-afirmar assim, rebus sic sta!ndibus, vida pacífica e tranqüila, com tôda piedade e honestidade".
por uma questão de ordem política na Europa" 10. É por isso que existe o Estado justo. E é por isso que, infeliz-
- Não é um remédio, mas um mal muito maior o de mente, enquanto houver pessoas que violem a ordem e arruínem
entregar a Tchecoslováquia, representante de uma política de- a liberdade, os soldados serão necessários; e, então, é preciso
mocrática, a um sistema ditatorial. Agindo assim, forneceu-se verdadeiramente que exista um elogio cristão do soldado" 14 •
a êsse sistema um prestígio nôvo e uma fôrça nova. A Tchecos- Seus estudos sôbre as relações entre a Igreja e o Estado
lováquia estava então no direito de se defender pelas armas. conduziram Karl Barth à descoberta de uma noção extrema-
"Tinha o dever de se auto-afirmar assim, rebus sic standibus, mente importante, que se encontra no centro de todos os seus
por uma questão de ordem política na Europa" 11. escritos da Segunda Guerra Mundial: _a do Estado justo (der
E eis aqui como Barth justifica êsses dois pontos: rechte Staat), baseada em uma concepção cristológica do Es-
tado. O Estado justo é o Estado querido por Deus, A luta deve
7. Briej an Pjarrer G. J. Derksen (Holland), datado de 26 de ou-
então ser conduzida contra tudo o que o ameace. A guerra é
tubro de 1938. Reproduzido em: Eine Schweizer Stimme, pp. preferível a uma submissão pacífica à ditadura, pois não pode
66-68. Traduzido em francês em: Foi et Vie, 1938, pp. 387-389.
8. Op. cit., p. 66.
9. No momento em que Barth escreve essa carta, o acôrdo de Mu-
nique é assinado. · 12. Ibid.
10. Ibid. 13. Ibid.
11. Op cit., p. 67. 1. Op. cit., p. 68.

84 85
existir paz autêntica senão em um Estado justo. É o sentid? será que o nacional-socialismo irá impor, amanhã ou depois
de uma carta dirigida por Barth a uma representante do movi- de amanhã, seu "estilo de vida" (Lebensform) à Europa inteira,
mento "Igreja e Paz", nos Países Baixos, em outubro de 1938 15 • decidindo assim a sorte e o lugar da Igreja nesse Continente?
"A Igreja deve rezar, escreve êle, e deve também trabalhar A Igreja não pode ficar indiferente a essa questão. O
para que o Estado seja, no interior e no exterior, um Estado Estado nazista totalitário reivindica o homem em sua integri-
justo. A êste Estado justo compete também proteger a paz: dade, suprime sua humanidade, anula a sua liberdade. Não
mas, precisamente, protege a paz o Estado que serve à justiça coloca, no final das contas, a Igreja diante de uma questão
e à liberdade e que se realiza na justiça e na paz. Não é senão apenas política, mas também diante da questão de Deus e da
nessa paz que o Evangelho pode ser anunciado. Em qualquer fé cristã: "Essa ditadura não pode mais ser compreendida como
outra paz, o Evangelho será destinado à opressão ou ao escár- o exercício de um encargo confiado por Deus; não pode, pois.
nio" 16 • continuar a ser compreendida como uma 'autoridade', no sen-
Barth exclui assim todo pacifismo de princípio. No mo- tido de Rom. 13" 20.
mento em que se trata de preservar ou de estabelecer uma paz Por outro lado, o nacional-socialismo não é somente uma
justa, a Igreja não deve impedir o Estado de se servir do gládio. instituição política; é também um movimento religioso, aná-
Isso significa que o Estado democrático, que Barth considera logo ao antigo Islã: eleva a si próprio ao grau de mito. Como
como a forma de Estado mais aproximada da do Estado justo 17 , uma nova Igreja, reivindica a fé. Assim, a Igreja cristã não
deve defender-se por todos os meios contra a ditadura, regime pode ficar neutra. Deve escolher entre a fé em Jesus Cristo
declarado de injustiça e negação da liberdade. Nesses tempos e a fé em Hitler, profeta de uma contra-Igreja essencialmente
críticos, o papel da Igreja é o de dizer a seus membros, por anticristã. Este caráter anticristão, manifesta-o o nazismo atra-
fidelidade ao Evangelho que ela proclama, que existe algo pior vés das suas perseguições e, de forma ainda mais radical, atra-
do que morrer e matâr: "Aprovar de forma deliberada a ver- vés do seu anti-semitismo. Quem procura destruir o povo de
gonha da dominação do Anti-Cristo" 18 • Israel lança-se contra as raízes da Igreja. "Aquêle que reprova
A evolução de Barth em face do nacional-socialismo está e persegue os judeus, reprova e persegue Aquêle que morreu
pràticamente concluída. Referindo-se às mesmas constantes pelos pecados dos judeus e pois, também, em primeiro lugar,
teológicas, vimos que sua oposição se tornou sempre mais total, pelos nossos pecados" 21 • O inimigo de Israel é inimigo do
mais política. Em dezembro de 1938, exprime êsse resultado Cristo. O anti-semitismo significa a rejeição da graça de
por ocasião de uma conferência pronunciada diante da assem- Deus 22 •
bléia da Associação Evangélica Suíça de Ajuda à Igreja Con- Como instituição política, o nacional-socialismo significa
fessante na Alemanha (Schweizerisches ev. Hif/swer:k für die a dissolução radical do Estado justo. Ele não é mais o servidor
Bekennende Kirche in Deutschland) 19 • A questão política colo- de Deus, a serviço do bem, a serviço dos oprimidos, concedendo
cada à Igreja é a do nacional-socialismo. Em outras palavras: lugar para a livre pregação do Evangelho. Destrói tôda ordem,
todo direito, tôda liberdade. Barth cita fatos: o incêndio do
Reichstag; a permanência no poder de uma "pequena clique",
15. Brief an eine Vertreterin des Vereins "Kirche und Frieden" in
Holland, 24 de outubro de 1938. Em: Eine Schweizer Stimme, pp. 63-56. como a chama êle, graças ao amordaçamento da imprensa, a
16. Op. cit., p. 63. eleições notoriamente falsificadas, ao terror; a conservação de
17. Earth se recusa a identificar o Estado democrático com o Esta-
do justo. A democracia não é forçosamente cristã, nem as outras
formas de Estado, como a monarquia, são necessàriamente anti- 20. Op. cit., p. 84.
cristãs. Brief an einen amerikanischen Kirchenmann. Em: Eine 21. Op. cit., p. 90.
Schweizer Stimme, p. 292. 22. Ba,-th se estenderá mais longamente sôbre o problema judeu em
18. Op cit., p. 64. uma alocução pronunciada na Rádio de Bâle em 13 de dezembro
19. Die Kirche und die politische Frage von heute, Zurique, 1939. de 1949, sob o título: Die Jundenjmge und die christliche Beant-
Em: Eine Schweizer Stiinme, pp. 69-107. As oito teses desta wortung. Texto reproduzido em: Kirchenblatt für die reforrnierte
conferência foram traduzidas em: Les Cahiers protestants, janei- Schweiz, janeiro, 19 1 1950. Tradução francesa em: Les Cahiers
ro-fevereiro de 1939. protestants, janeiro de 1950, e Foi et Vie, 1951, pp. 264-270.

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um clima de permanente insegurança, as pnsoes arbitrárias, as
execucões sumárias por bandos excitados representando pre-
tensa~ente o "sentimento popular". Para Barth, o Estado ale-
mão "não é um Estado" 23 • A Igreja não se desvia do seu papel
ao condená-lo. Ela tem o direito e o dever, diante do Estado,
de chamar bom o que é bom e mau o que é mau. Temos aí
uma decisão política? "Sim, escreve Barth, uma decisão polí-
tica! Uma decisão na qual eu prefiro dizer 'não' em companhia Capítulo
do mais primitivo concidadão, mas fiel a um pensamento demo-
crático, do que dizer 'sim' ou 'sim e não' em companhia do mais SEGUNDA GUERRA MUNDIAL
piedoso dos meus correligionários! Que é então uma decisão da
fé se ela não se torna jamais, se hoje precisamente, nesta
situação, ela não se torna política, esta decisão política?" 24
A Igreja deve interceder pela destruição do nacional-so-
cialismo, como já rezou pelo "aniqüilamento dos bastiões do
falso profeta Maomé" 2 s. Deve interceder pela restauração e
pela conservação do Estado justo. Deve estar solidária através
de seus membros com o Estado que, como Estado justo, defen-
de-se contra a anarquia e a tirania que projetam a sua des-
truição. Poís um tal Estado, ao mesmo tempo em que defende
a sua existência, defende indiretamente a da Igreja cristã.
Tal é a posição de Karl Barth nas vésperas da guerra 26 . TÉ. o ANIQUILAMENTO DA ALEMANHA, Barth ficará
fiel às teses expressas em Die Kirche und die politische Frage
von heute. Retomá-las-á sob formas diversas, segundo a natu-
reza dos seus escritos e a qualidade dos seus correspondentes
ou de seus ouvintes. Escreve três espécies principais de textos:
cartas às Igrejas de países submetidos à ocupação ou à ameaça
nazista; reflexões sôbre a situação da Suíça na Europa em
guerra; e diferentes trabalhos de ·ordem mais geral como "O
Cristão sob as Armas" (Des Christen Wehr und Waffen), a
"Carta a um Homem de Igreja Americano" (Brief an einem
amerikanischen Kirchenmann), "As Igrejas Protestantes na
Europa no Presente e no Futuro" (Die protestantischen Kir-
chen in Europa, ihre Gegenwart und ihre Zukunft), ou ainda
23. Op. cit., PP. 91-92.
"Esperança e Responsabilidade da Igreja" (Verheissung und
24. Op. cit., PP. 93-94. Verantwortung der christlichen Gemeinde im heutigen Zeit-
25. Op. cit., p. 94. geschehen).
26. Em conferências pronunciadas em alemão, em Oltingen e Gelter-
kirchen (Bâle-Campo), em 15 de janeiro de 1939. e em francês. As cartas aos protestantes da França, da Grã-Bretanha,
em Môtiers (NeuchâteD, em 18 de maio, Barth retomará, sob
uma forma mais livre, as teses fundamentais de Die Kirche und da Alemanha, da Noruega e dos Países Baixos apresentam um
die politische Frage von heute. J.-L. Leuba publicou uma adap- ar quase apostólico, se bem que Barth constantemente evite
tação francesa do estenograma alemão em: ln Extrebmis, 1939,
pp. 73-87. isso. "Não sou um apóstolo!", exclama, em sua carta aos pro-

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testantes britânicos 1 • ''Nenhum traço de exaltação nessas car- foi necessário escolher a guerra no outono passado, foi
tas", assinala com justeza Casalis, "mas sim bom-senso, um não havia outra paz a não ser a que teria consaorndo o
realismo tão simples que parece ser espontâneo, e ali uma dêsse espírito demoníaco" 1. º
ponta de humor e em seguida uma fé inteiramente Barth vai muito longe na sua descrição do Estado hitle-
porém de tal modo firme e estável que parece concreta e quase rista demoníaco. Acontecê-lhe mesmo, como na famosa "Carta
materialista. Uma característica dominante em tôdas essas car- aos Protestantes da França", fazer alusão ao Anti-Cristo ou à
tas é também o tom no qual são escritas: nenhum sinal de "bêsta do abismo" 4.
julgamentos severos, incisivos, indiretos; mas é a misericórdia Mas a ideologia hitlerista não passa da expressão derra-
seu colorido fundamental; em nome do amor do Cristo, ven- deira de uma perigosa mistura, especificamente germânica: a
cedor da morte, um pai escreve a seus filhos; exorta-os, conso- mistura da herança de um paganismo profundo com a da dou-
la-os, corrige-os, chama-os à coragem, à paciência, à lucidez, trina luterana da Lei e do Evangelho. Barth acha com efeito
ao martírio se fôr necessário" 2 • gue o luteranismo favoreceu, em certa medida, o ressurgimento
Quando se dirige aos seus concidadãos suíços, Barth es- nazista do paganismo alemão reservando-lhe, com sua sepa-
força-se sobretudo, como veremos, para discernir o papel da ração do poder temporal e espiritual, "uma espécie de espaço
Suíça na Europa devastada, para definir em particular a sua sagrado". Assim, é possível ao alemão descrente utilizar a dou-
posição em face da Alemanha, de onde lhe vêm tantas tenta- trina luterana da autoridade do Estado como justificação cristã
ções. Procedendo com um método que lhe é caro, Barth não do nacional-socialismo, e o alemão cristão pode sentir-se con-
acusa à maneira de um polemista ou de um tribuno polític;o. vidado pela mesma doutrina a reconhecer o nacional-socia-
Mas levanta questões, com muita firmeza, às autoridades e lismo 5•
cidadãos do seu país. "Todos os povos têm seus sonhos maus", escreve Barth.
Seus escritos gerais, enfim, surgem como etapas de uma "O hitlerismo é hoje o sonho mau do pagão alemão, cristiani-
reflexão prática sôbre a posição política dos cristãos e das zado tardiamente sob a forma luterana" 6.
Igrejas confrontados com o totalitarismo nazista conquistador, O povo alemão está doente. Barth sabe que a guerra o
sôbre a guerra e a paz, e sôbre os fundamentos de uma oposição. ira ferir, mas essa ferida será talvez salutar. "O povo alemão
O Anschluss, o desmembramento da Tchecoslováquia, não é mau, em todo caso, não é pior que os outros povos, e
finalmente a queda da Polônia, em setembro de 1939, arrasta- não será nem cristão nem humano querer puni-lo pelo fato de
ram a Europa a uma guerra contra o Estado nazista. Desde existir. Não obstante, o nacional-socialismo hitlerista exprime
as primeiras horas, no mesmo espírito de sua carta a Hromad- uma das suas perigosas fraquezas: a loucura, a desordem a
ka, Barth considera essa guerra como necessária. "A paz ofe- miséria extraordinárias da sua política"7. E essa fraqueza ~ue
recida no outono passado aos povos da Europa", escreve, êle denuncia na ligação suspeita do paganismo com o lutera-
"significava o crescimento redobrado da potência de um espí- nismo. A guerra feita ao povo alemão se justifica, pois, não
rito que, na verdade, é um mau espírito, um demônio: espí- na medida em que é feita contra êle, mas na medi--:a em que
rito de mentira consciente, de ilegalidade voluntária, de des- é feita para êle, com o objetivo de curá-lo.
prêzo e violência sistemáticos para com os homens. Êsse espí-
rito teve sete anos para se revelar. Hoje, não se pode mais
duvidar da sua verdadeira natureza, qualificando-o de outra 3. "O Cristo Sob as Armas' (Des Christen Wehr und Waffen Zu-
rique, 1940), em: ln Extremis, 1946, p. 27. '
forma que não demônio. A sua dominação é pior que a guerra, 4. "Carta aos protestantes de França" (1939), em: Une Voix Suisse,
Genebra, 1944, p. 13.
5. Brief an Pfarrer Kooyman (Hollandl. (Algemeen Weekblad voar
1. Ein Briej aus der Schweiz nach Grossbritanien (abril de 1941; Kerk ~n Chr!stendom, 8 de março de 1940, Amsterdã). Em: Eine
proibida pela censura em 31 de julho de 1941) , in Eine Schwei- Schweizer Stimme, p. 122.
zer Stimme, p. 179. 6. "Carta aos protestantes de França", op. cit., p. 11.
2. Georges Casalis, Portrait de Karl Barth, Genebra, 1960, p. 40. 7. Op cit., pp. 10-11.

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O mal é tão grande, está tão disseminado na Alemanha, própria existência, e têm fundamento para reclamar a obediên-
que mesmo um homem como Martin Niemõller, por exemplo, cia de cada um, malgrado os erros de que podem, por outro
apesar de ter sido visto à frente do combate travado pela Igreja lado, tornar-se culpadas. "No meio do pecado e da vergonha
Confessante, foi atingido. Niemoller, como nos lembramos, tinha ligados à vida de todos os povos subsiste, pela bondade de
sido oficial de submarino durante a Primeira Guerra Mundial. Deus, um resto de ordem e de direito, e sobretudo ( ... ) um
Quando a Alemanha entrou em guerra, em 1939, e se bem resto de liberdade para a pregação do Evangelho. Lá onde
que fôsse "prisioneiro pessoal" de Hitler, o pastor de Dahlem manda Hitler, estinguiu-se até mesmo êsse resto" 9. É por isso
quis oferecer seus serviços à marinha alemã. Depois de ter que a ameaça nazista sôbre os povos é intolerável. Existem con-
retirado uma primeira vez a sua proposição, renovou-a algum dições que se pode suportar, por mais pesadas que sejam, desde
tempo mais tarde. Recebeu então uma resposta negativa, muito que não oprimam as consciências e não degradem a dignidade
sêca, da parte do Almirante Rader. daqueles que as sofrem. Existem outras, em troca, inaceitáveis,
Barth examina o caso de Niemoller, que não pode deixar porque não se tem o direito de fazê-lo, porque a vida em tais
de considerar como um produto característico do luteranismo condições constitui uma vergonha; submeter-se a elas é se
alemão. "O luteranismo", escreve êle a respeito ao Bispo de tomar cúmplice do pecado de outro. :Êste sentido da dignidade
Chichester, "permite e requer que se acredite na existência de humana, tão profundo em Karl Barth, não é uma noção abstra-
um verdadeiro abismo entre a atitude eclesiástica e a atitude ta, um princípio retirado das fontes do direito natural. O homem
puramente poiítica. Bem no fundo do estranho ato de Niemõl- é amado por Deus. Daí provém a sua dignidade. Deus fêz
ler ireis encontrar o dualismo luterano entre o Reino dos Céus do homem o parceiro de sua aliança em Jesus Cristo. Reconhe-
e o reino do poder terrestre, entre o Evangelho e a Lei, cer essa aliança significa respeitar o homem. É por isso que
entre Deus revelado em Cristo e Deus agindo pela natureza e êsse respeito se torna infinitamente necessário "para um empe-
pela história. O luteranismo é muito adaptável à alma natural nho com convicção no sentido de uma ordem de vida na qual
dos alemães. Anima germanica naturaliter est lutherana" 8 • cada um tenha seus direitos e deveres, e contra a dominação
A Alemanha em guerra apresenta-se assim sob um aspecto do mais forte, que recusa ao mais fraco o seu direito a uma:
duplo: um govêrno portador de uma ideologia demoníaca e existência independente, suprimindo-o pela única razão de ser
um povo gravemente doente, o bastante para tê-lo suscitado. êle mais fraco" 10.
A guerra, espera Karl Barth, deverá permitir abater o primeiro Conduzida em nome dêsse respeito pela dignidade hu-
e curar o segundo. mana restaurada pelo Cristo, a guerra contra a Alemanha
Em sua "Carta aos protestantes da França", define a ati- deve impedi-la de impor ao mundo a sua evidente inumani-
tude das Igrejas em face dessa guerra. Não se trata, para as dade, de estabelecer essa "nova ordem" na qual o Evan-
mesmas, de pregar uma "cruzada" contra Hitler. Sua missão gelho não pode mais se fazer ouvir, de fazer triunfar por tôda
não é a de fazer a guerra. É de orar, de crer, de amar, de parte a "revolução do niilismo", retomando a célebre expres-
esperar, de anunciar e de escutar o Evangelho. Mas as Igrejas são de Rauschning 1 1.
não podem calar seu testemunho. Devem afirmar que a von- Ao Estado hitlerista opõe-se então o Estado justo. A
tade de Deus é a de estabelecer sôbre a terra uma justiça huma- soberania de J csus Cristo ressuscitado, a vontade vitoriosa de
na que seja aceitável. Devem afirmar que as autoridades polí- Deus possuem também um aspecto político "caracterizado por
ticas que procuram proteger essa justiça legitimam assim a sua uma organização pública da vida humana conforme o direito,

8. "Carta ao bispo de Chichester" (8 de dezembro de 1939), frag- 9. "Carta aos protestantes da França'', op. cit., p. 7.
mentos publicados em: Les Cahiers protestants, 1939, p. 506. 10. "A Igreja e a Suíça nos tempos atuais" (Unsere Kirche und die
Barth diz ainda, nesta mesma carta (op. cit., p. 507) : Niemõller Schweiz in der heutigen Zeit, St.-Gall, 1941), em: Une voix
"é capaz de se fazer matar por Hitler pela causa do Cristo. Mas suisse, PP. 31 e 48.
também é capaz de ser oficial a bordo de um navio do mesmo 11. Hermann Rauschnung: Die Revolution des Nihilismus. Kulisse
Hitler". und Wirklichkeit im Dritten Reich, Zurique e Nova Iorque, 1938.

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pela existência de um Estado justo", a fim de que possamos uma política que não era "nem honestamente idealista nem
viver uma vida pacífica e tranqüila em tôda piedade e hones- honestamente r e a 1 is ta, mas simplesmente atabalhoada
tidade" (I Tim. 2:2) 12 • É por isso que Barth pode afirmar ( kop#os) "? Ou mais culpado, ainda, que os pacifistas de prin-
em sua "Carta da Suíça para a Grã-Bretanha" (Ein Brief aus cípio e todos os que contribuíram para tornar o mundo prà-
der Schweiz:nach Grossbritannien): "Nós, cristãos de todos os ticamente sem defesa no momento do lance inesperado de
países, encontramo-nos em face da guerra atual numa situação 1933? 15
inteiramente diversa da que vivíamos há um quarto de século: Diante de Deus, todos os homens participam na mesma
não a assumimos apenas como um mal necessário, mas de- rebelião. Não podem, pois, ter a pretensão de se acusar uns
vemos aprová-la como uma guerra justa, não somente tole- aos outros por uma falta qualquer. Podem apenas perdoar-se
rada por Deus, mas ordenada por Ele" 13. mutuamente. Não é senão tendo consciência disso que a guer-
Barth não justifica aqui a guerra como tal. Justifica a ra pode ser conduzida, esta guerra que não é o instrumento
guerra conduzida pelos democratas contra o totalitarismo hi- da vingança divina colocado entre as, mãos dos Aliados, mas
tlerista . Mas tem consciência dos limites da causa que de- sim um julgamento de todos os homens. Se existe na guerra
fende. De modo algum pode-se tratar de uma "guerra santa", um "inimigo" que se chama hoje Hitler (e também, infeliz-
que colocasse face a face o bom e o ruim, o justo e o cul- mente, Alemanha), isto significa somente que a doença da
pado. As democracias levam seu pêso de responsabilidade no qual todos os homens sofrem se manifestou ali, e que não
conflito atual. As potências signatárías do Tratado de Ver- se pode curá-la senão através de uma operação cirúrgica.
salhes impuõeram à Alemanha uma paz demasiadamente dura. Todo niilismo acumulado no mundo, sob tantas formas diver-
Se tivessem ditado uma paz razoável, "o hitlerismo não pas- sas, nutriu o tumor hitlerista.
saria talvez de uma seita política no interior da Alemanha, Êsses limites nada retiram à necessidade de resistir a
e não uma ameaça de guerra contra a Europa inteira" 14 • Será Hitler de armas na mão. Pois o prêmio da Segunda Guerra
que o funesto Hitler é mais culpado do que aquêles que pre- Mundial continua a ser a vitória do Estado justo sôbre a
sidiram os destinos da Europa entre 1919 e 1933, praticando ditadura. Mas êsses limites concedem a êsse combate uma
significação relativa: não é senão um combate humano, levado
12. "Em Nome de Deus Todo-Poderoso! 1291", 1941 (Jm Namen a efeito com armas humanas, por uma causa humana.
Gottes des AllmiichtigenJ 1291, St.-Ga11 1941), em Une voix Porém ao situar, por outro lado, a guerra contra Hitler
suisse, p. 64. Em Brief an einen ameri,kanischen Kirchenmamn, na perspectiva do grande combate final que todo cristão é
Barth se detém muito longamente sôbre esta questão do Estado
justo. Dá, notadamente (Eine Schweizer Stimme, p. 292) , as de- chamado a travar no "dia mau" (Ed. 6: 13), Barth vê nela
terminacões seguintes. Ao procurar a ordem, o Estado justo de- já um sinal precursor da "liquidação total do Demônio, defi-
finido ségundo o Evangelho opõe-se à tirania e à anarquia polí-
ticas, sociais e econômicas. )j: por isso que a democracia situa-se nitivamente desmascarado". "Não seria necessário", escreve
mais na linha do Estado justo do que uma ditadura aristocrá- êle, " ( ... ) lutar para defender a vida e aquilo que vale mais
tica ou monárquica; o socialismo, mais do que a economia libe- que a vida - sua dignidade, um mínimo de direito, de ordem
ral (migebunden) e do que o sistema que esta implica no domí-
nio social e no do trabalho; uma federação de Estados livres (e e liberdade sôbre a terra - se não fôsse o mundo chamado
se possível libertos do princípio das nacionalidades!) , mais do
que a justaposição de Estados nacionais independentes e rivais.
pelo próprio fim ao qual tende, a ser o teatro das contra~
Mas, dito isto, a noção cristã do Estado justo comporta a exi- <lições e das decisões humanas e provisórias nas quais se
gência absoluta da ordem, do direito e da liberdade, mas não anuncia o resultado milagrosamente triunfante da guerra do
dos aspectos concretos, estabelecidos sôbre essa base, que esta ou Messias, no último dia" 16.
aquela forma de Estado possa assumir. A democracia, o socia-
lismo e a federação de Estados não são necessàriamente cristãos. Barth situa a luta contra Hitler na perspectiva do com-
E não é excluída a possibílidade da ditadura, da economia libe-
ral, e da justaposição de Estados nacionais refletirem a ordem, bate travado pelo Cristo contra as fôrças do mal. Essa luta
o direito e a liberdade esquecidos por um Estado justo.
13. Ein Brief aus der Schweiz nach Grossbritannik em: Eins
Schweizer Stimme, p. 181. 15. Brief an einen amerikanischen Kirchenmann, op. cit., p. 278.
14. Brief an Pfarrer Kooyman, op. cit., p. 120. 16. "O cristão sob as armas", ln Extremis, 1946, pp. 32-33.

KARL BARTH - 7
94 95
surge então como testemunho da vitória do Cristo sôbre a pital de "Esperança e Responsabilidade da Igreja", diretamente
morte . E é a ressurreição do Cristo que justifica finalmente inspirada em seu comentário sôbre a Confissão escocesa e em
a guerra contra o nazismo. Nessa confrontação com um Es- "Justificação Divina e Justiça Humana". Demasiadamente já
tado engendrado pela "bêsta do abismo", as Igrejas da Europa ela se deixou intimidar, e calou-se, enquanto deveria ter fa-
têm a garantia de uma vitória já obtida pela morte do Cristo lado ( ... ) . Sem dúvida, o papel da Igreja não é o de fazer
na cruz e pela esperança de sua vitória definitiva no derra- política e querer governar. Mas ela pode e deve testemunhar,
deiro dia. Opondo-se ao Estado demoníaco, elas manifestam diante dos povos e dos governos, que a política é um serviço
essa segurança e essa esperança. Ê por isso que Barth pode de Deus e que a justiça e a liberdade são dons de Deus . Ela
lembrar sem acréscimos o que havia dito em Barmen em 1934: pode e deve, com tôda ~ranqueza e caridade, interrogar, cha-
a única coisa que se pode, em última instância, opor a Hi- mar, convidar e advertir o Estado, sempre que o mesmo ma-
tler é a seguinte: "Jesus Cristo, tal como nos é atestado nas nifestar tendências a se dissolver ou, pelo contrário, a se afir-
Sagradas Escrituras, é a única Palavra de Deus que temos de mar em demasia, sempre que manifestar tendências a usurpar
escutar, na qual podemos confiar e que podemos obedecer na a justiça, a liberdade, sempre que pretender atentar contra a
vida e na morte" (primeira tese de Bannen) 17 • soberania de Deus ou contra os direitos do homem, ou con-
Pode-se constatar aqui mais uma vez a vontade de Karl tra ambos ao mesmo tempo. A comunidade cristã, neste sen-
Barth de reconduzir constantemente sua oposição política à tido, é responsável pelo que o Estado faz e pelo que não faz" 18 •
afirmação central da sua teologia. Contudo, não ignora êle Nesta guerra que as Igrejas devem aprovar, sem dúvida
que em uma oposição à Alemanha podem entrar numerosos como uma ultima ratio, mas como uma ultima ratio absoluta-
outros componentes: a defesa da liberdade individual, da li- mente vital para elas, Barth vê assim uma ocasião para tomar-
berdade da pesquisa, do respeito pela pessoa humana, a von- se consciência da responsabilidade que têm para com o Es-
tade de salvaguardar a civilização ocidental ou ainda a von- tado, porque êste Estado está, da mesma forma que elas, sub-
tade de estabelecer a fraternidade humana e a justiça social. metido ao mando de Jesus Cristo. "A esfera política, na
Ele se recusa a considerar essas noções como justificações úl- qual tomamos nossa responsabilidade", escreve êle ainda, "não
timas de uma resistência cristã. Mas não esconde que as toma constitui uma esfera estranha. Enquanto cristãos, não nos pode
em seu sentido mais positivo, quando se trata de opô-las às ser indiferente ou preferível virar-lhe as costas, abandonando-a
palavras-de-ordem do Terceiro Reich, tais como "Povo", "Ra- às suas próprias leis e ao seu próprio destino. E Jesus Cristo
ça", "Militarismo" (Solda~entum), "Espaço vital" etc. Defi- não habita em uma província longínqua, mística, cultual, pie-
nindo o Estado justo como um sinal da vontade de Deus de tista, em uma província da moral individual ou da teologia,
estabelecer a justiça sôbre a terra, Barth aliás mostra que a para além da esfera política ( ... ) " 19.
maior dessas noções, mesmo se expressam realidades muito im- Es.sas duas citações essenciais constituem a pedra de
perfeitas, são testemunho dessa vontade. Significa que, fazendo toque de tôda a posição de Karl Barth . Porque o domínio po-
apêlo à liberdade individual, à justiça social ou ao respeito pela lítico está indissolUvelmente ligado ao domínio eclesiástico
pessoa humana, Barth não funde a sua oposição com o di- por uma submissão comum à senhoria de Jesus Cristo, a Igre-
reito natural, com princípios gerais que cada homem seria ja, para ser fiel a si mesmo, deve assumir uma posição política.
capaz de descobrir por si próprio, fora do Evangelho. Êle só Esta responsabilidade encontra sua justificação no acontecimen-
os leva a sério, pelo contrário, na medida em que atestam to central da mensagem evangélica: a ressurreição de Jesus
que o Estado e as estruturas sociais e econômicas às quais Cristo.
se aplicam pertencem também ao reinó de Jesus Cristo.
"A comunidade cristã não tem o direito de se desinte- 18. Esperança e responsabilidade da Igreja (Verheissung und Verant-
ressar dessas questões", escreve Barth em uma passagem ca- wortung der christlichen Gemeinde im heutigen Zeitgeschehen,
Zurique, 1944), em: Une voix suisse, pp. 136-137.
19. Ein Briej aus der Schweiz nach Grossbritannien, op. cit., pp.
17. Ein Brief aus der Schweiz nach Grossbritannien, op. cit., p. 191. 192-193.

96 97
Desde as primeiras horas do conflito, Karl Barth expres- a um exame lúcido e desmistificador da situação política, a
sou sua certeza de assistir a vitória dos povos democráticos uma tentativa de apreender a realidade profunda de um epi-
sôbre a Alemanha hitlerista. Em nenhum momento esta cer- sódio; um segundo permite-lhe considerar as repercussões mo-
teza 0 abandonou. E tôdas as suas cartas às Igrejas estran- rais dessa situação ou dêsse acontecimento; num terceiro "tem-
aeiras dão prova dessa confiança inquebrantável de que os po", enfim, êle ilumina tudo com a luz da fé, de maneira
~aus dias iriiam terminar Todavia, reconhece êle que essa decisiva 22 • É com efeito o mesmo método que acabamos de
confiança é a de um homem, e que todo homem pode se equi- utilizar para expor as grandes linhas de seu pensamento po-
vocar. Não exclui, pois, a eventualidade de uma vitória final lítico durante a Segunda Guerra Mundial.
de Hitler. Se a guerra devesse culminar com a derrota dos Essa posição merece alguns comentários. O primeiro
povos democráticos, tal seria de fato a justa retribuição de "tempo" é o da aquisição de um conhecimento claro da si-
uma soma de insuficiências. Seria a prova de que "o emprêgo tuação. Para Barth, a realidade tem uma importância deter-
que fizemos dêsse dom de .D~us, que er~ .para nós êste resto minante. Êle não gosta de falar de maneira geral, abstrata.
de humanidade livre, de direito democratlco e sobretudo de Toma posição apenas a propósito de acontecimentos precisos.
liberdade do Evangelho, não foi de natureza a permitir que Já vimos como no decurso dos sete anos que precederam a
Deus nô-lo conservasse" 2º. guerra, sua oposição politizou-se na medida em que os acon-
Seria também a ocasião de nos lembrarmos que Deus não tecimentos o exigiam. É o acontecimento que comanda. Cons-
está ligado a nenhuma bandeira (mesmo que se tratasse da tata-se isso ainda na leitura da nota muito significativa que
de um Estado' democrático. . . e até da bandeira suíça!), que Barth acrescentou à edição de sua "Carta à Holanda" (Brief
Ele não tem compromissos conosco, mas sim nós é que os te- nach Holland) em Eine Schweizer Stimme 23 carta escrita em
mos com Ele. Deus é o mestre da história. Nosso futuro, e, novembro de 1942: "Não é por acaso que não se encontrará
pois, também nosso futuro político, depende unicamente da aqui nenhuma publicação da época entre o fim de 1942 e
graça livre de Deus. "Mesmo quando Ele se mostrasse con- meados de 1944. Em 22 de janeiro de 1943, Trípoli caiu; em
tra nós pelo resultado infeliz dessa guerra, teríamos o dever, 31, Stalingrado. Em 6 de junho de 1944, começou a invasão
e muito' mais, o privilégio, de perseverar na obediência, de hon- da França. Foi a época da reviravolta da Segunda Guerra
rá-1'0 e de O amar também nessas circunstâncias, em vista Mundial, no decorrer da qual preferi calar-me até que novas
do derradeiro dia, onde Êle se mostrará muito mais para questões se impusessem" (bis neue Fragestellungen sich
nós" 21 . aufdrangten) .
Acabamos de ver a maneira pela qual Barth encarou Hi- Barth não propõe uma filosofia ou uma teologia da his-
tler e a Alemanha nazista; as razões humanas (defesa da tória. Não procura definir, numa linguagem estritamente po-
justiça, do direito, da liberdade) que faziam a guerra necessá- lítica, as constantse de um engajamento cristão. Não diz que
ria a seus olhos e que, por serem verdadeiramente humanas, a Igreja aceita a guerra; mas sim: a Igreja está a favor desta
tornavam-na uma guerra comandada por Deus; a perspectiva guerra. Não diz: a Igreja se opõe à ditadura; mas sim: a Igreja
teológica última, enfim, na qual êle situava o conflito: a res- se opõe a esta ditadura . Sua posição refere-se sempre a um
surreição de Jesus Cristo, sua vitória sôbre as fôrças do mal acontecimento concreto, a uma realidade concreta.
e a soberania de Deus sôbre a história. Mas, para se deixar interpelar pelo acontecimento, para
É interessante examinar, para concluir, o método aplica- apreender a realidade, é preciso lançar-se a um exame lúcido
do por Karl Barth no plano concreto, no c.a~o mui~~ prático e sem camplacência dêsse acontecimento e dessa realidade:
de uma tomada de posição ou de uma dec1sao pohtlca. Sua
posição se efetua em três "tempos": um primeiro é consagrado
22. o texto de Barth mais límpido sôbre o plano do método é "A
Igreja e a Suíça nos Tempos Atuais" <Unsere Kirche und die
20. "Carta aos protestantes da França", op. cit., p. 14. Sch:weiz in der heutigen Zeit, St-Gall, 1941), op. cit., pp. 27-52.
21. "O cristão sob as armas'', ln Extremis, 1946, p. 37. 23. Op. cit., p. 306.

98 99
A posição em três "tempos" definida mais acima é essencial- O segundo diz respeito ao aspecto moral da situação con-
mente dinâmica. De fato, apenas na perspectiva do terceiro siderada. É neste estágio que Barth evoca a justiça, a fra-
"tempo", o das coisas derradeiras, Barth pode dar provas, já ternidade, a liberdade, etc. É ainda em função dêsses valôres
no primeiro, de verdadeira lucidez. É por esta razão que a que êle fornece uma primeira indicação sôbre a posição po-
sua análise de situações políticas parece ainda hoje corajosa. lítfoa que convém adotar: defender o direito contra a ilega-
Constitui uma emprêsa salutar de desmistificação. Barth es- lidade, a justiça contra a injustiça, a liberdade contra a opres-
força-se sempre para recolocar as coisas em seu verdadeiro são, a ordem contra a anarquia, a humanidade contra a desu-
lugar: diante do perigo representado pela Alemanha nazista, manidade, a democracia contra a dítadura, ou ainda a Suíça
por exemplo, esta análise permite-lhe demonstrar que alguns (ou a Tchecoslováquia, ou a França) contra a Alemanha.
receios são exagerados, mas também que certas certezas são Este segundo 'tempo" só pode sobrevir após o primeiro.
vãs . A certeza da fé fornece essa verdadeira coragem neces- Pois é preciso saber que há justiça e injustiça, humanidade
sária para encarar de frente uma situação, em sua realidade e desumanidade, etc., para justificar "o sobressalto moral ne-
crua e despojada. cessário em semelhante situação" 2 6. Se Barth se limitasse a
Constatando que papel Barth concede a êsse conhecimento isto, juntar-se-ia aos defensores do direito natural. Mas êste
do real e à desmistificação dos fatos políticos, não se pode segundo "tempo" não pode ser considerado por si próprio, e
surpreender com a importância que êle dá à informação. "Os são ainda uma vez as coisas últimas que baseiam êsse sobres-
cristãos que não puderam participar diretamente dessa guer- salto moral, da mesma forma que baseavam a análise prece-
ra", escreve êle', por exemplo, "devem ter dormido tanto sô- dente. É porque Deus disse, nas Sagradas Escrituras, o que
bre a Bíblia quanto sôbre seu jornal" 24 • Êste constitui mesmo significa um Estado justo, o que significam humanidade e li-
um dos principais temas de sua oposição ao govêrno suíço e berdade, que o cristão pode considerá-los, com conhecimento
da sua política durante a guerra. Barth não pode admitir que de causa, como critérios de sua ação política.

-
o Conselho Federal aja de forma a que a neutralidade mi- Este segundo "tempo", diz ainda Barth, constitui "o úni-
litar da Suíça acarrete a neutralidade da opinião. Eis porque co intermediário necessário e normal entre as primeiras e as
protesta contra tôdas as limitações impostas à imprensa. "Des- últimas coisas" 27 • Mas não é tudo, "porque justamente a rea-
de muito, e não sem pressão diplomática estrangeira, nossa lização prática do que é moral não é inevitável" 2s. É neces-
censura trabalha para transformar em inofensivas tôdas as no- sário o terceiro "tempo", no qual intervém o elemento deter-
tícias e tôdas as opiniões que pudessem, por qualquer mo- minante: a fé da Igreja em Jesus Cristo, 'fonte de tôdas as
tivo, ser desagradáveis à potência que nos envolve" 25 • compreensões leais e de tôdas as decisões corajosas" 29.
Um conhecimento lúcido da realidade exige, pois, uma É esta fé que ilumina tudo, que explica tudo, que dirige
informação honesta. .É o primeiro "tempo". tudo. Ela é a verdade. "Para nós, cristãos", escreve Barth
de maneira impressionante, "um mar de realidade - por exem-
24. Ein Brief aus der Schweiz nach Grossbritannien, op. cit., p. 189.
plo, um mar de sucesso inimigo e de nossa derrota - não
25. "Em nome de Deus Todo-Poderoso!" (lm Namen Gottes des All- representa ainda uma gôta de verdade"'º· E mais: "Quem
miichtigen! St-Gall, 1941) , op. cit., p. 75. É aliás no mesmo
sentido que Barth condena a política de neutralidade aplicada
pelo Conselho Federal. Ficando fiel à neutralidade militar, o conhecimento de alg~uns documentos relativos à posição da Suíça
Conselho Federal respeita o direito internacional. Mas a neutra- durante a guerra. Esses documentos ainda são, muito curiosa-
lidade de sentimento que exige de si próprio e do povo suíço é mente, inacessíveis; os arquivos não podem ser abertos antes de
uma atitude "impossível do ponto de vista cristão, sem funda- decorridos cinqüenta anos.
mento do ponto de vista histórico, duvidoso do ponto de vista 26. L'Eglise et la Suisse dans les temps actuels, op. cit., p. 36.
moral e falso do ponto de vista político".( Eine Schweizer Stimme, 27. Ibid.
prefácio, p. 10). As passagens em que Barth ataca a política 28. Op cit., p. 45.
oficial do govêrno helvético são muito numerosas (a mais ex- 29. Op. cit., p. 46.
plícita se encontra em "Os alemães e nós", pp. 72-83, Neuchâtel- 30. "Uma Pergunta e um Pedido aos Protestantes da França" (Eine
Paris, 1945; Barth aqui qualifica especialmente a Suíça de "ca- Frage und eine Bitte an die Protestanten in Frankreich, outu-
tavento neutro") . Para poder discuti-las seria necessário ter-se bro, 1940), em: Une voix suisse, p. 19.

100 101
1, 1
não crê, preferirá antes fechar ~s ~ois_ olh~s do que ver o que
se tem a ver na Suíça, em me10 a s1tuaçao atual do mundo;
tomará também todo o aspecto moral, que nós salientamos,
de idéias belíssimas, porém utópicas. Não é suficiente, en-
tretanto, nutrir essa ou aquela fé; é a verdadeira fé que é ne-
cessária para que se veja claramente hoje, para que se queira
e se faça o que é direito" 31 •
Esses três "tempos", não os encontramos sempre tão dis- Capítulo V
tintos e com tanta clareza senão na "Igreja e na Suíça nos
tempos atuais". Não obstante, estão presentes em todos os QUEDA DO TERCEIRO REICH
textos prôpriamente políticos de Karl Barth. Suas relações
dinâmicas fazem com que repercutam freqüentemente uns nos
outros e superponham-se estreitamente. Sua interdependência
é tão forte que Barth poderá mesmo se permitir deixar de lado
um ou outro, sobretudo o terceiro, sem que se possa sus-
peitar de não ter sido o mesmo levado em consideração. O
julgamento e a, decisão prática não se fazem compreender sem
a intervenção explícita ou implícita da fé.

PÓS MAIS DE CINCO ANOS DE GUERRA, o Terceiro


Reich conhece uma rápida agonia. No dia 14 de janeiro de
1945, os soviéticos desencadeiam sua última ofensiva. Liber-
tam Varsóvia, depois Cracóvia. Em fevereiro, entram em
Budapeste. Na frente ocidental, os aliados penetram na Ale-
manha. O Luxemburgo é libertado em fevereiro. Trêves, Co-
lônia, Mayence, Francfurt e Duisburg são ocupados em março.
Em 26 de abril fazem junção, em Torgau, sôbre o Elba, com
o exército vermelho. Os soviéticos ocupavam Viena desde 6
de abril. Dirigem-se à Baviera, enquanto ao norte desenrola-
se a batalha por Berlim. Sob os assaltos de Jukov e de Koniev,
a capital tomba em 2 de maio. Anuncia-se o suicídio de
Hitler. Por tôda parte os alemães entregam as armas. O
dia 7 de maio é o dia da assinatura da capitulação geral, in-
condicional, do exército alemão, em Reims.
Barth, por muito tempo, aguardou essa derrota. Mas,
uma vez consumada, sua primeira preocupação será a de pre-
gar pelo estabelecimento de uma paz razoável que conceda à
Alemanha a possibilidade de recuperar a saúde política. Logo
no início da guerra, já êle se inquietava com as condições que
31. L'Eglise et la Suisse dans les temps actuels, op. cit., p. 46. se deveriam impor à Alemanha quando tudo estivesse termí-

102 103
nado. "Do ponto de vista político e militar'', escrevia êle, "a se associaram ou dêles se abstiveram, da parcela de responsa-
paz deverá ser mais dura, talvez, que a de Ver~alhes. Mas, a bilidade que pesa sôbre êles. Pretendeu-se ver no nazismo
menos que mais uma vez tudo tenha apenas servido para nada, a explosão violenta de um subconsciente ancestral e selvagem,
ela há de ser mais justa e sábia, isto é, há de testemunhar um delírio de ditadura e de servilismo, a manifestação final
mais solicitude e mais previdência" 1 • das abominações do capitalismo, a desforra de um povo jo-
Pouco depois do desembarque de 6 de junho de 1944, vem ávido de espaço vital, ou ainda uma atração doentia e
quando se sentia a aproximação do desfecho final, êle dizia satânica pela morte. Ter-se-ia mesmo podido emitir uma teo-
ainda: "Tivemos de protestar e de nos defender contra as ria "cristã". Os alemães teriam compreendido, mais profunda-
usurpações cometidas em nome dêste povo e com a sua apro- mente que todos os outros, o sentido específico do cristianis-
vação. Mas, se foi justa a nossa atitude, não a sustentemos mo: a graça de Deus na pessoa do judeu Jesus; desde o mo-
somente contra, mas também a favor dêsse povo, por seu ver- mento em que recusaram essa graça, sua recusa deveria tomar
dadeiro bem ( ... ) . Não poderemos diminuir sua responsa- uma forma muito mais categórica que a dos outros.
bilidade, nem alijar suas conseqüências. Mas, ao mesmo tem- Mas Barth julga que tôdas essas teorias são suspeitas .
po, mostrar-lhes-emos que a grande promessa de reconciliação Os cristãos devem se conceder a liberdade de se lançarem a
que oferece Jesus Cristo é válida para êles, embora a tenham uma descoberta inteiramente nova dos alemães. E, em par-
combatido de forma tão violenta e inconsiderada ( ... ) . Mos- ticular, os cristãos suíços, aos quais êle se dirige. Êstes devem
trando-lhes isso, não devemos esquecer as nossas próprias ser os primeiros a reconhecer que o tempo da cólera, que
culpas. Deveremos, antes, confessar-lhes que sabemos dos foi necessário, deve cessar, êles que mal foram tocados pelo
nossos próprios pecados, nossos honestos pecados de suíços en- flagelo alemão e que não têm nada nem ninguém a vingar.
durecidos" 2 • Através das duras condições materiais que enfrenta após
Todos os elementos que constituem a posição de Barth
após a derrota da Alemanha já estão presentes nessas duas a guerra, a Alemanha terá a possibilidade - possibilidade sin-
passagens: necessidade de uma paz razoável, que não esma- gular, estima Barth - de recomeçar tudo, de retomar tudo
gue a Alemanha, mas lhe conceda uma oportunidade honesta; a partir de zero, em todos os domínios. Trata-se verdadeira-
perdão e reconciliação com o povo alemão; crítica da boa cons- mente de uma nova construção (Neuaufbau) e não apenas de
ciência dos pretensos justos, dessa Selbstgerechtigkeit tão tipica- uma simples reconstrução ( Wiederauf bau) 3• Os cristãos suíços
mente helvética. "Os alemães e nós" (Die Deutschen und wir) podem ajudar os alemães nessa tarefa, oferecendo-lhes aquilo
e "Cura dos Alemães?" (Wie konnen die Deutschen gesund de que mais têm necessidade hoje: amizade.
werden?) não dirão, no fundo, nada mais que isso. Em uma carta a teólogos alemães, Barth indica em que
O objeto de uma decisão política por parte dos cristãos perspectiva 3e situa essa nova partida: o desenlace econômico
não é mais, em 1945, o nacional-socialismo nem a Alemanha. e político do após-guerra deve conduzi-los ao despojamento
É o homem alemão. Ora, pergunta Barth, que sabemos nós de Job, de Lázaro, dÓ porteiro do Templo. E a única coisa
sôbre êle? Temos muito pouca informação para que nos seja que pode ser útil à Alemanha é precisamente esta oração
possível fazer sôbre os alemães de hoje um julgamento de- do porteiro: "ó Deus, sê calmo para comigo, que sou um pe-
finitivo. Se conhecemos bem os crimes do nacional-socialis- cador". É esta mensagem que cabe aos teólogos alemães
mo, pouca coisa e freqüentemente nada sabemos dos próprios transmitir a todo o povo 4.
alemães, da medida na qual participaram dêsses crimes, da
maneira pela qual o fizeram, do espírito com o qual a êles
3. Die geistige Vorau3setzung für den Neuaufbau in der Nach krieg
zeit (conferêncía feita em maio de 1945), em: Eine Schweizer
1. Lettre aux protestants de France, op. cit., p. 12. Stimme, p. 414.
2. Espérance et responsabilité de l'Eglise, op. cit., pp. 139-140. Tra~ 4. Brief an die deutschen Theologen in der Keiegsgefangenschaft
dução revista segundo o texto alemão. (1945), em: Karl Barth zum Kirchenkampf, p. 92.

104 105
"Passeando corajosamente", como diz êle próprio 5, sua solutamente que os alemães impeçam qualquer renascimento
conferência "Os alemães e nós" através da metade _d~ Suíça, do nacionalismo alemão; que anulem definitivamente a herança
Barth exorta assim os cristãos dêsse país a que participem da de Frederico, o Grande, de Bismark, de Fichte, de Treitschke,
obra de renovação que a Alemanha agu~rda. Não lhes pede Pois o verdadeiro inimigo da Alemanha não é Hitler nem o
que sejam professôres de moral, mas s~mplesmente m~1Jg~s. Terceiro Reich, mas sim êsse espírito nacional alemão que en-
Pois faltou sobretudo aos alemães acreditar que a sohdane- carnaram da maneira mais monstruosa.
dade e a amizade são possíveis. Deve-se mostrar-lhes o que E, depois de haver indicado o caminho, é preciso que os
é ser 0 "próximo" de alguém. Isso não quer dizer que seja aliados orientem os alemães por êle. "Organizando a admi-
necessário encorajar a Alemanha a se justificar e a se recons- nistração da Alemanha ocupada, jamais será suficientemente
truir tal e qual fôra até então. Nem que se deva esquecer cedo para fazer o povo alemão participar da responsabilidade
nem esconder aos alemães quem êles são. Trata-se de se co- da condução de seus negócios ( ... ) . É necessário que, ao
locar honesta e resolutamente de seu lado: "Não do lado de ouvir as palavras 'comuna' ou 'Estado', cada um dêles apren-
alemães imaginários, ideais, futuros e melhorados, mas do lado da a pensar logo de início em seu próprio dever cívico, em sua
dos verdadeiros, cheios de todo o lixo e de tôda vergonha na- própria responsabilidade política, e não nas ordens de uma
cional-socialista de que os vemos cobertos. Pois Jesus Cristo autoridade anônima" 9 .
está também a favor dêles, sem reserva. Compreendamos bem: É isto que Bart.h chama também de "obrigar os alemães
Ele está a favor dêles exatamente como está a nosso favor" 6 • à liberdade" 10 , ou ainda, mostrar-lhes que existe "um dever
Eis porque, s'e os suíços podem oferecer aos alemães u~a mais elevado, mais vasto que a obediência, o da liberdade" 11 •
amizade que os ajude a se emendar, uma amizade que saiba Barth tem muitas esperanças nos aliados. Mas coloca so-
ser também severa, devem evitar todo farisaísmo. Que não bretudo a sua confiança na ação salutar da Igreja Evangélica
digam: "Que Deus tenha piedade dos alemães!" sem que te- alemã, que milagrosamente sobreviveu ao nacional-socialismo.
nham dito antes: "Miserere nobis!" 7 • A existência dessa Igreja constitui a garantia de "que a his-
Nesta obra de construtores, Barth conta também com os tória do povo alemão ainda não está no fim ( ... ) , que Deus
aliados ocidentais e com a Igreja Evangélica. Espera que os não rejeitou nem abandonou êsse povo" 12 A Igreja Evangélica
mesmos saibam levar a ajuda política, moral e espiritual à alemã deve dizer o seguinte, hoje: reconhecer a soberania de
Alemanha desamparada. É preciso, diz, que os aliados sai-· Jesus Cristo significa que o Estado pertence também ao seu
bam mostrar-lhe a via de uma política sã: "É de tôda impor- Reino, e não a um outro reino. E reconhecer a dependência
tância que, pela maneira pela qual exercerão o pode~ n~. Ale- absoluta de cada homem a êsse Senhor significa que se deve
manha, pela conduta de seus soldados, de seus fui:c1onanos e procurar estabelecer um Estado justo a fim de chegar um dia
de seus juízes, pelas medidas tomadas para garantu ª. or~em à responsabilidade livre de cada cidadão e, assim, à do povo
pública e para restabelecer pouco a P?uco a~ co~umcaçoes, inteiro. Vale dizer: chegar à democracia u. Estará ali a sua
a economia, as escolas, as Igrejas, a vida social e mtelectual, participação na obra comum. Neste sentido, Karl Barth pode
os vencedores desta ouerra ( ... ) saibam mostrar aos ven- concluir: "Se nós oramos pela Igreja Evangélica na Alema-
cidos como, fora da Alemanha, no Ocidente em particular, nha ( ... ) , oramos na verdade pelos alemães em geral, e é
compreende-se e pratica-se a democracia, a liberdade, a ~eal­
dade a humanidade, a prudência, o fair play, o saber-viver,
justi~a e a firmeza viris" s. Em outras palavras, é preciso ab- 9. Op. cit., pp. 10-11.
10. Op. cit, p. 12.
11. Ein Wort an die Deutschen, Stuttgart, 1945. Em: Der Géitze
5. Correspondência <Zwei Briefwechsel, 194[\), em: Guérison des wac.kelt, p. 96.
Allemands?, Neuchâtel-Paris, 1945, p. 62. 12. Die Ev: Kirche in Deutschland nacht dem Zu::ammenbruck des
6. Les Allemands et nous, Neuchâtel-Paris, 1945, p. 55. Dritten Reiches, Zollikon-Zurique, 1945, p. 25.
7. Op cit., p. 87. 13. Op.cit., p. 41.
8. Guérison des Allemands, pp. 8-9.

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nisto precisamente que deveria consistir a ação decisiva da que Barth considera tão nefastos para a Alemanha. A única
, . at ual" i4 .
Igreja na questo po1itlca ~uestão 9.~e verdadeiramente lhes concerne é a que se refere
Barth conta com a sabedoria dos aliados e com a fide- a culpabilidade geral de que se imbuíram, cada um à sua ma-
lidade da Igreja. Mas é evidente que os próprios ale~~es ~fo neira, todos os grupos sociais existentes, inclusive os comunis-
os primeiros responsáveis por esta obra de .nova ed1flcaç~o; tas e as Igrejas. Esta questão é a seguinte: "Qual é a minha
Que êles se decidam a preocuparem-se exclusivamente, no im- cont_ribuição específica - e a de minha classe, e a do meu
cio e por longo tempo, com as suas próprias responsabilidades, partido - para a catástrofe que todos causamos e que temos
tanto no que se refere aos seus erros passados quanto às todos de padecer?" i6.
suas tarefas futuras! "Êles possuem uma fatal propensão a se Enfim, terceira exigência, a obra de renovação reclama
voltar para outrem, a acusá-lo de cumplicidade, a lançar-lhe dos alemães que os mesmos aprendam a colaborar entre si.
tôda a responsabilidade, a reclamar-lhe concessões e reparações Não se trata de pôr em prática o programa de um partido i7,
em circunstâncias nas quais as únicas questões importantes nem de fazer triunfar tal princípio econômico, ideológico ou
para êles são as que deveriam col.ocar para. si próprios" 15 • confessional, mas simplesmente de aprender a se sentar na
Barth pensa que os alemães devenam se retirar de alguma mesma mesa para discutir e procurar em conjunto as me-
forma da história universal, como o fizeram os suíços no sé- lhores soluções possíveis.
culo XVI, em seguida à batalha de Marignan. Barth, pois, logo em seguida à guerra, esperava uma li-
Uma segunda condição para a cura dos alemães é que ção de democracia por parte dos aliados, uma pregação viva
o problema dos responsáveis seja bem colocado .. Os alemães por, parte ~a Igreja Evangélica e uma conversão para uma
não têm ainda por que se lançarem aos ressentimentos que P?hhca sadia por J?arte dos próprios alemães. Não se pode
experimentam uns para com os out_ros . Que_ ~eixem aos dizer que essa tríplice esperança tenha sido inteiramente con-
ocupantes estrangeiros a tarefa de castigar os cnmmosos !. De- firmada pelos fatos.
vem evitar também recair nas lutas de classes ou de partidos, Os vencedores, diz Barth em fins de 1945, "fizeram ain-
da demas~adamente pouco, sobretudo na Alemanha, para pro-
14. Op. cit., p. 59.
var atraves de seus atos que a causa pela qual combateram
15. Guérison des Allemands?, p. 13. Em "Os Alemães e Nós', Barth era verd_adeiramente a boa" 18 • A boa ·causa é, para êle, o
já mencionara tendências dêste tipo, tão tipicamente germâni- estabelecimento de uma ordem na qual as pequenas nações
cas (pp. 65-67) : "Inicialmente, é preciso levar em conta q~e,.
segundo tudo indica, a maior parte dos al.emães, mesm~ hoJe, possam encontrar seu lugar e o respeito aos seus direitos e à
dificilmente põe em dúvida a loucura coletiva em que viveram
por tanto tempo ( ... ) . Em seg;:iida, dev·~-se levar em conta !"?ta
capacidade singularmente alema de enfeitar um passado polltlco 16. Op cit., p .. 17. Barth acredita que a Igreja Evangélica alemã
desagradável com as côres mais brilhantes e emprestar-lhe, pos- deva tambem confessar sua responsabilidade e formular esta con-
teriormente uma interpretação exatamente contrária aos fatos fissão no~ seguintes têrmos: "O povo alemão colocou-se no cami-
( ... ) . Também se deve recordar que, em política, os alemães ni:o do err? quando, em 1933, colocou seu destino político nas
gostam de devolver a acusação aos que os acusam e de não res- maos de Hitle~. ~ desgraça que, em seguida, abateu-se sôbre a
ponder senão através da indignação e d:e novas pretensões. ( ... ) Europa e a P!?Prla Alemanha é uma conseqüência dêste êrro. A
Depois, é preciso levar em consideração o romantismo histórico Igreja Evangel!ca na Alemanha tornou-se responsável e solidária
e filosófico dos alemães. í!:les gostam de se colocar ora corr1D exe- coi;n êst~ êrro, através. de falsas palavras-de-ordem e de falsos
cutores, ora como vítimas das grandes necessidades históricas do s1lenc1os (Dze Evangelzsche Kirche in Deutschland nach dem
destino. Ser-lhes-ia difícil, evidentemente, retornar a uma con- Zusammenbruch des Dritten Reiches, p. 37) .
cepção real das coisas, a um pensamento responsável, a pontos 17. Ba!th mpst!a-se. ~uito ~evero para com o regime dos partidos,
de vista sadios, a decisões livres. Finalmente, há que lembrar o ~UJa falencra fo1 _tao evidente durante a República de Weimar.
papel desempenhado pela metafísica religiosa dos alemães. Apraz- Pobre povo alemao, exclama, se a velha mania dos partidos tiver
lhes eludir a confissão de suas culpas, invocando, erradamente, de recomeçar mais intensa de que nunca! Lembramos com hor-
esta grande verdade: a de que, no fim das contas, todos os ho- ror 9s. 23 ou 37 partidos, sei lá quantos, do antigo Reichstag"
mens, todos os povos, são igualmente culpados diante de Deus e <Guerzson des Allemands?, p. 19).
que todos têm necessidade do perdão, da qual êles concluem, as- 18. A propósito do ano 1945 (Ein Rückblick auf das Jahr 1945 dis-
tuciosamente, que um arrependimento especificarnent2 alemão curso ra~iofônico, Schweizerische Radio-Zeitung, n9 2, 1946)'. etn:
não é nem útil nem necessário". Les Cahzers protestants, 1946, p. 7.

108
109
sua dignidade . E a separação da Europa em dois blocos não
Barth pedia enfim um esfôrço aos próprios alemães. De-
é precisamente a melhor garantia possível a se oferecer às
plora que se tenham mostrado incap~zes de cumpri-lo ,at~ o
pequenas nações . fim. Como previa, a Alemanha Ocidental 22 soube rapida-
No que concerne à Igreja Evangélica, Karl Barth con-
mente colocar-se na posição de vítima da Segunda Guerra
fessa uma desilusão semelhante. Volta para a Alemanha desde
Mundial e acusar os outros pela divisão da Alemanha de an-
0 outono de 1945. Participa da reconstituição do "Conselho
tes da guerra. E se seu próprio papel em política internacional
Fraternal da Igreja Confessante" (Bruderrat der Bekennenden
é bastante limitado, não se pode dizer que ela se tenha "re-
Kirche) em Francfort-sôbre-o-Meno e da "Igreja Evangélica
tirado", como o desejava Barth, da história universal. Apenas
na Alemanha" (Evangelische Kirche in Deutschland), em
substituiu uma política de poder político por uma política de
Treyza. Mas manifesta sua surprêsa por encontrar nessa
poder econômico.
Igreja (abstração feita ao desaparecimento dos "Cristãos Ale-
Discutir sôbre a responsabilidade e o sentimento de culpa-
mães") mais ou menos a mesma estrutura e as mesmas ten-
bilidade na Alemanha nos levaria muito longe. Dizemos ape-
dências que, em 1933, tinham-na levado à perda. Descobre,
nas que a tomada de consciência do povo alemão foi menos
além disso, um confessionalismo e um clericalismo reforçados
profunda do que seu dom para esquecer 3• Quanto à cola-
e um gôsto florescente pela liturgia. Salvo para u_ma pe9uena
boracão entre cidadãos, Barth lamenta que se tenha querido
minoria essas tendências constituem correntes mmto mais po-
resta~rar os antigos partidos políticos neste país onde o par-
derosas' do que a preocupação em "renovar a mensagem cristã
tido não constitui um movimento, mas "uma metafísica". To-
a partir de suas fontes e aplicá-la à situação nova que acaba
davia seus receios baseados nos acontecimentos anteriores a
de se criar" 19 •
1933' não serão confirmados pela evolução política: a Alema-
Isto quer dizer que Karl Barth não encontra na Ale- nha desfrutou durante vinte anos de uma estabilidade bem
manhã o eco que havia desejado. Êle volta ali, entretanto, grande.
muitas vêzes. Dá em particular dois cursos na Universidade
Esta discussão, cujos têrmos o próprio Barth definiu em
de Bonn durante os semestres de verão de 1946 e 194 7.
seus textos de após-guerra, tem uma sonoridade muito polí-
Estabelede nessas ocasiões contatos frutuosos. Mas se dá
tica. Será isso o sinal de que as exigências colocadas por êle
conta de que a influência de um estrangeiro permanecerá sem- em vista da cura dos alemães são o testemunho de um relaxa-
pre muito limitada 20 • A tarefa de reconstrução é, por outro mento teológico? Não. Sua posição política em face da Ale-
lado, tão considerável que éle deve escolher entre duas so- manha vencida é a de reclamar o restabelecimento de um Es-
lucões: ou retornar definitivamente à Alemanha e consagrar tado justo e democrático, tal corno o concebe o pensamento
o , tempo e as fôrças que lhe restam às tarefas alemãs, ou neotestamentário. Sua oposição ao nazismo, desde os pri-
dedicar-se a seu próprio trabalho, isto é, continuar sua "Dog- meiros dias, dirigia-se para êsse objetivo. É natural que êle
mática" e reduzir sua intervenção direta na Alemanha a al- não tenha julgado necessário defini-lo novamente no momento
gumas ocasiões isoladas, como o fêz em outros países. Es- em que o mais urgente era demonstrar como o atingir.
colhe esta segunda solução 21 •
É, mais uma vez, porque o Estado atesta a soberania
de Jesus Cristo, que devemos aceitar o Estado justo definido
19. How m'Y mind has changed, 1938-1948, em: Der Gotze wackelt,
p. 195. ' ' .
20. Assinalemos como lembrete, que ele travou uma polem1ca contra 22. Barth examina, sobretudo, o caso da Alemanha Ocidental. Fala
os que, tal ~orno Eugen Gerster:maier, futuro presi~e?te d~ !Jund- apenas incidentalmente da zona soviética.
estag, buscaram retinir posteriorll1:ente um benef1cw pollt1co do 23. No curso da primeira troca de cartas da "Correspondência' (op.
Kirchenkampf sem te-lo, verdaderramente,, combatido: (Neues?e cit. pp. 20-44) , Barth opõe-se vivamente a um professor alemão
Nachrichten zur neueren Deutschen Kirchengeschichte?, m muito inclinado a desculpar 99% dos alemães, os cidadãos mé-
Kirchenblatt für die reformierte Schweiz, 12 de julho de 1945, dios que não foram nem heróis da resistência nem criminorns
em Karl Barth zum Kirchenkampf, pp. 84-89). nazistas. A êste respeito, a discussão que se travou na Alemanha,
21. How my mind has changed, 1938-1948, op4 cit., p. 196. na primavera de 1965, sob a prescrição dos crimes nazistas, foi
tristemente significativa.
110 KARL BARTH - 8
111
pelo Nôvo Testamento. E é também (aspecto particularmente
importante no caso concreto da Alemanha) porque Deus nos
perdoou em Jesus Cristo que o perdão às ofensas é "a reali-
dade cristã por excelência" e que é "uma fôrça capaz de cons-
tituir o mais seguro fundamento de uma política tão forte quan-
to sábia" 24 •
E não se pode dar melhor conclusão a êste capítulo do
que as últimas linhas da "Cura dos Alemães?": "Como os Capítulo VI
alemães podem curar-se, e a Europa com êles? Tôdas as res-
postas que proponho convergem para isto: que no meio de COMUNIDADE CRISTÃ E COMUNIDADE
tôdas as opiniões humanas, tanto do lado aliado quanto do
alemão, uma presença se afirma, a qual finalmente citarei: o CIVIL
realismo cristão. Mas seria desejável que nos detivéssemos
menos, para julgar, no nome do que na coisa" 2 s.

E TODOS os TRABALHOS DE KARL BARTH sôbre polí-


tica, tanto os artigos ocasionais como os estudos de caráter
exegético ou dogmático, o mais conhecido e o mais complexo
é, incontestàvelmente, "Comunidade Cristã e Comunidade Ci-
vil" (Christengemeinde und Bürgergemeinde). Publicado em
1946, logo depoi~ da guerra, êste texto era, na época, a suma
de sua teologia política 1 • É necessário, portanto, dedicar-lhe
largo espaço.
Barth usa as designações "comunidade cristã" e "comuni-
dade civil" de preferência às expressões clássicas "Igreja" e
"Estado". O conceito de "comunidade" indica, com efeito,
que não nos deparamos propriamente com instituições, mas
com homens concretos, reunidos em uma "entidade comum"
para elaborar e levar a bom têrmo tarefas comuns.
Essas duas comunidades, começa Karl Barth por afir-
mar, apresentam a mesma característica de fragilidade. A co-
munidade civil engloba todos os cidadãos: cristãos, cristãos in-

1. Barth previa retomar todo o problema do direito e do Estado


24. Les Allemands et Naus, p. 52. em sua ética da reconciliação, mas é pouco provável que esta
25. Op cit., p. 20. importante parte da Dogmática seja um dia publicada.

112 113
certos e não cristãos. Não pode, portanto, conscientizar de atividade, conhece também os podêres legislativo, executivo e
modo homogêneo sua relação com Deus. Não lhe cabe in- judiciário; embora não reúna senão os cristãos, tende a en-
vocar a proteção de. Deus pa_ra co.n~tituir a ordem que tem por globar todos os homens; enfim, como vimos na "Justificação
tarefa estabelecer e impor. E espmtualmente cega e ignorante. Divina e Justiça Humana', o objeto da promessa e da espe-
Tem de recorrer, por definição, a métodos estranhos. à co- rança cristãs não é uma Igreja eterna, mas uma Cidade. "Par-
n:i1:1nidade cristã: o poder das armas, expressão da vfolência tindo dessa constatação, não se pode ocultar o largo alcance
flSlca. Falta-lhe o que constitui a essência da comunidade político de que se reveste, em última instância, a existência
cristã: a perspectiva ecumênica e a liberdade. da comunidade cristã no mundo" 3 •
A comunidade cristã, por seu lado, "neste mundo ainda Como demonstrou amplamente em suas obras anteriores,
sem r~mis~ã~", com? diz. ? quinta tese de Barmen, é incapaz, Karl Barth lembra que cabe à comunidade cristã compreender
por s1 propna, de ident1fICar os fiéis, de distinguir com se- a necessidade da comunidade civil. Destinada a proteger o
g~ranç~ ?s crentes sinceros dos incertos e até os cristãos dos homem contra o caos, a comunidade civil pertence ao "tempo
nao cn~taos. Crê em Deus, mas a Palavra e o Espírito de da graça" concedido por Deus. A comunidade cristã vive,
Deus nao I~e são mais acessíveis que à comunidade civil. Re- pois, ao abrigo da comunidade civil, "como um círculo menor
corre tan:bem, a seu modo, à coerção, e a preocupação com inscrito no interior de outro mais amplo" 4 • Por isso, ela re-
que Ac~ltiva certos particularismos afasta-a da perspectiva conhece na existência do Estado o efeho de uma determina-
ecumemca de que deveria ser dotada . ção divina, um instrumento da graça de Deus. "A comuni-
Mas a· relação entre as duas comunidades tem também dade civil partilha, dêste modo, com a comunidade cristã, sua
um lado positivo: os elementos constitutivos da comunidade origem e seu centro".
~ivil p~;tencem .igua;m~nte à comu~i~ade cristã. A expressão Ê essencial que a Igreja permaneça fiel à sua missão:
IgreJ.ª ( ek~lesrn) e tirada do dommro político; a comunidade anunciar a soberania de Jesus Cristo e a esperança no futuro
possui tambem uma ordem legal, um "direito eclesiástico 2; a Reino de Deus. Deve contentar-se em ser o círculo menor,
exemplo da comunidade civil, possui autoridades, setores de inscrito no interior do reino de Jesus Cristo. Pois é precisa-
mente ao executar fielmente sua tarefa particular que a co-
munidade cristã participa da tarefa da comunidade civil. Rea-
2. A respeito dê~te. direito ~.cle.siásti90,. Barth distinguirá, mais tar-
de, entre o direito eclesiast1co publico, ou seja, o direito elábo- lizando essa missão dentro do círculo mais vasto da comu-
rado pelo E~tado visando à Igreja, e o direito eclesiástico tal nidade civil, os cristãos são também responsáveis pela esta-
como. a IgreJa o concebe para si mesma. O primeiro reflete a bilidade da sociedade. Esta "co-responsabilidade' (Mitverant-
manerra pela qual o Estado compreende a Igreja e não poderia
de n~nhurn modo, corresponder ao segundo, ainda que a maiori~ wortlichkeit) não significa que a Igreja deva propor ou impor
dos .c1dadao~ e_ alguns de seus r~present.antes sejam mais ou me- a doutrina cristã do Estado. Nenhuma concepção política -
nos bo_ns cnst:;tos: A ~ompi:eensao de s1, de sua essência, que a
a IgreJa possl.!1, J~ma1s .~era plena!lle~te expressa no direito que incluindo a democrática - pode representar o sistema cristão.
º. _Es~ado lhe impo~ (artigos const1tuc10nais, decretos de lei ecle- Pois se o Estado faz parte do reino de Cristo, enquanto ma-
i;:iast1cos) ou que fixa em acôrdo com ela (concordatas) A Igre-
Ja, por ser ~ma coletividade humana entre outras, e por se en- nifestação de uma disposição divina, permanece limitado, como
contrar, assim, ~o. campo das atribuições do Estado, não pode tôdas as realizações humanas. Diante das concepções políticas
contestar êste. ~ilr~1to que_ Barth chama de jus circa sacra. Mas do momento, a Igreja, que anuncia o Reino de Deus e espera
ela tem cons91encia de nao $er o que êste direito afirma sôbre
ela; ui;n~ sociedade, um su~eito .de direito público. Por isto, es- "a cidade de sólidos alicerces" (Hebr. 11: 10), tem o dever
~ara y1g1lante para que o 1us czrca sacra definido pelo Estado de fazer prevalecerem suas esperanças e também de formular
Jamais se. tor_ne, aberta ou seci:et~me_nte, um jus sacra, evolução
que autonz~na o !Estado a se l!:,Il!Scuir na ordem eclesiástica, ao suas perguntas. "É precisamente nos quadros desta liberdade
prete:ider dispor: s9bre a pregaçao, o ensino, a teologia, até mes-
mo sobr~ a prof1ssao. de fe e suas aplicações práticas (Kircheliche
Dogma_tik IV /2, Zolllkon-Zurique, 1955, pp. 778-781) . Estas ob-
s~rvaço~s coincidem perfeitamente com o que Barth acaba de
3. "Communauté chrétienne et communauté civile" (Christgemeinede
und Bürgergemeind, Zollikon-Zurique, 1946), Genebra, 1958, p. 16.
d.1z~r sobre a cegueira e a ignorância espiritual da comunidade
ClVll. 4. Op. cit., p. 18.

114 115
para com os sistemas políticos que a comunidade cristã pode natural. Mas a c-omunidade cristã não deve invocar o Reino
tornar-se responsável pela forma e pela realidade da comu- de Deus para buscar introduzir na comunidade civil uma or-
nidade civil, não de um modo acidental, mas de modo extre- ganização política à imagem dêste Reino. O Estado é esta-
mamente preciso" 5 ; distinguindo entre o Estado justo e o in- belecido por Deus por causa "dêste mundo ainda não redi-
justo, o de Rom. 13 e o do Apoc. 13, julgando, escolhendo mido". Negar-se-ia a si mesmo caso agisse como se lhe cou-
e desejando um determinado regime, engajando-se finalmente besse edificar o Reino de Deus. Por seu lado, se a Igreja pos-
em determinada causa e opondo-se a outra. tulasse o advento do Reino dentro do Estado, estaria prati-
Essas decisões cristãs, que se impõem no plano político, cando uma política idealista, pois deveria saber que o mundo
"não se inspiram em uma idéia, em um sistema, em um pro- não foi ainda redimido. Substituiria, por sua vez, a mensagem
gra~a, mas em umà orientação geral, em uma que é do Reino por uma utopia tirada do direito natural.
preciso reconhecer e manter em tôdas as circunstâncias" 6. Está Mas como tomar esta decisão de acôrdo com o critério
fora de questão o recurso ao direíto natural 7. Assim agindo, autêntico? Como descobrir esta orientação geral, que deveria
a Igreja estaria se apropriando dos métodos próprios da co- ser a atitude política cristã? Que forma "política" assumirá
munidade civil, identificando-se com ela e não estaria mais em o anúnóo do Reino de Deus 110 seio da comunidade civil?
condições de cumprir sua missão espe~ífica, que é a de dar Neste ponto, Karl Barth faz intervir o princípio da analogia,
à comunidade civil o que lhe falta. E se, na realidade, os re- essencial dentro de sua teologia política, como de tôda sua teo-
sultados de uma política baseada sôbre a filosofia do direito logia.
?ª'.ural nem sempre são absolutamente negativos, isto decorre O Estado possui, ao mesmo a faculdade de for-
umcamente do fato de que a comunidade civil pertence tam- necer e a necessidade de receber uma imagem analógica do
bém ao reino de Cristo. Reino de Deus anunciado pela Igreja. Já vimos que não tem
Ê em função de sua fé em Jesus Cristo que a comuni- cabimento identificá-lo à Igreja ou ao Reino. Mas não ca-
dade cristã deve tomar suas decisões políticas. Apenas o co- beria também falar de uma diferença absoluta entre a socie-
nhecimento dêste critério verdadeiro lhe dá a liberdade de se dade humana e a Igreja, por um lado, ou entre a sociedade
engajar, com a consciência pura, em uma atividade que lhe humana e o Reino de Deus, por outro, como Barth já de-
é estranha. Não será pois por si própria, para fazer valer seus monstrou amplamente. "Não resta, portanto, senão uma pos-
próprios "negócios", que a comunidade cristã intervirá no sibilidade: do ponto de vista cristão, o Estado e sua justiça
plano político. Não visará à "centralização" eclesiástica da são uma parábola, uma analogia, uma correspondência do Rei-
sociedade, não reivindicará também os favores do Estado. "A no de Deus, que é o objeto da fé e da pregação da Igre-
Igreja que desce dêsse modo à arena política, para defender ja. ( ... ) A sociedade humana é capaz de refletir indireta-
sua própria causa, será sempre uma Igreja que desconhece o mente, corno em um espelho, a verdade e a realidade do Reino
verdadeiro alcance do Estado, uma Igreja sem arrependimen- de Deus anunciado pela Igreja. Mas ( ... ) o Estado, reflexo
to, em suma, uma Igreja que perdeu sua liberdade espiritual s. da verdade e da realidade cristãs, não possui justiça e, con-
A Igreja chama os homens ao Reino de Deus, conhece-o seqüentemente, existência intrínseca e definitiva. ( ... ) É ne-
anuncia-o. A sociedade nada sabe do Reino de Deus: tem co~ cessário que lhe sejam lembradas, ininterruptamente, as exi-
nhecimento, no máximo, das utopias decorrentes do direito gências dessa justiça que lhe compete representar. A comu-
nidade civil tem, pois, necessidade de analogia, na medida em
5. Op. cit., p. 19. que é capaz de formar analogias" 10 • O papel da comunidade
6. Op. cit., p. 29. cristã é precisamente lembrar-lhe o verdadeiro critério de sua
7. Op. cit.; PP. 31-32.
8. Barth dá a seguinte definição do direito natural (op. cit. pp. justiça e incliná-la a executar as tarefas dessa justiça. Nisso
32-33) : "Ei;tei;ide-se por 'direito natural' tudo o que o ho~em,
por sua propna naturez.a, ou seja, de uma maneira geral e uni-
versal, considera como Justo e injusto, como objeto de um man- 9. Op. cit., p. 39.
damento, de uma permissão ou de uma proibição". 10. Op. cit., PP. 42-43.

116 117
consiste o exerc1c10 de wa "co-responsabilidade política". po", o das coisas últimas, sôbre os dois primeiros, em par-
Concretamente, os cristãos saberão sempre discernir e esco- ticular sôbre o da decisão moral.
lher, entre as diversas possibilidades políticas do momento, Os exemplos são os seguintes:
aquela cuja realização lhes apareça claramente como uma ana- - Uma vez que a comunidade cristã repousa sôbre o
logia, um reflexo do conteúdo de sua fé e de sua mensagem. conhecimento do único Deus eterno tornado homem, preo-
Apesar da infinita distância que separa a política humana da cupar-se-á, em primeiro lugar, com o homem, opondo-~e, com
divina, a Igreja pede que "a graça de Deus, revelada do alto tôdas as suas fôrças, a tudo o que o esmague, em particular o
e atuante aqui em baixo, reflita-se no conjunto das medidas Estado-deus .
exteriores, relativas e provisórias adotadas pela comunidade - Sendo testemunha da justiça divina, defenderá uma
civil, nos limites das possibilidades dêste mundo". por- política baseada no direito, constituindo, ao mesmo tempo, uma
tanto, diante de Deus que ela tem responsabilidade política. proteção e uma obrigação para os cidadãos.
Suas decisões têm o valor de um testemunho. Compreende-se - Corno Cristo veio salvar o que estava perdido, a co-
melhor agora porque Barth, como vimos na primeira parte munidade cristã intervirá, de preferência, em favor dos pe-
dêste livro, reiaciona a ação política da Igreja com a confissão quenos e dos fracos; combaterá pela justiça social e saberá es-
de fé. Intervindo na política, a Igreja faz confissão de fé, ma- colher, concretamente, entre as diferentes soluções socialistas.
nifesta sua fidelidade ao seu Deus e à missão de que a in- - Já que é a comunidade dos que são chamados à liber-
cumbiu neste mundo. dade dos filhos de Deus, velará pelo respeito à liberdade de
Baseand,o-se neste princípio de analogia, Karl Barth dá cada cidadão .
então tôda uma série de indicações práticas sôbre a ação polí- - Porque os cristãos fazem parte do mesmo corpo, o
tica da Igreja. Não são mais que exemplos, mas mostram com de Cristo, a comunidade cristã não pode compreender e inter-
clareza suficiente como a comunidade cristã, seguindo a di- pretar a liberdade política senão à luz da responsabilidade
retriz traçada pela ressurreição e pela volta definitiva de Je- que esta implica para cada um; recordando esta dimensão co-
sus Cristo, pode fazer de sua atividade política uma parábola munitária, ultrapassa o individualismo e o coletivismo.
do Reino de Deus, objeto de sua fé e de sua pregação. Não - Sendo uma reunião dos que vivem sob a autoridade
se trata, pois, de regras estritamente definidas, de um sistema, de um mesmo Senhor, a comunidade cristã intervirá em favor
de uma casuística . Ê uma diretriz muito geral, que exige da da igualdade na liberdade e responsabilidade de todos os ci-
Igreja cristã, quando diante de situações concretas, um dis- dadãos e cidadãs .
cernimento espiritual e profético sempre renovado. - Conhecendo em seu próprio campo a diversidade dos
Os exemplos dados por Barth permitem descobrir tôdas dons do Espírito Santo, a comunidade cristã reconhecerá a ne-
as vêzes as duas faces da mesma questão, a que corresponde cessidade da separação dos podêres.
à comunidade cristã e a que corresponde à comunidade civil. - Como recebe sua vida da revelação do verdadeiro
Indicam a relação, ou melhor, a passagem, entre a explicação Deus, que a ela se apresentou como a luz atrav~s, da qual, em
e a aplicação. Reconhecemos sem esfôrço a dinâmica que Jesus Cristo, as obras das trevas serão destrmdas, a comu-
anima a marcha em três "tempos". Apenas a dinâmica, pois nidade cristã será adversária declarada de tôda política e de
é evidente que os três "tempos" em si não podem ser evo- tôda diplomacia secretas.
cados no curso de uma reflexão teórica como esta. Para que - Já que repousa sôbre a livre Palavra de Deus e qu.e
haja possibilidade de análise lúcida de uma situação, ou do esta Palavra lhe é anunciada pelo verbo humano, a comum-
engajamento ético diante dela, seria preciso estarmos situados dade cristã deve considerar que êste mesmo verbo humano,
num terreno concreto. Mas êstes exemplos de analogia ilus- quando repercute livremente no campo da comunidade civil,
tram perfeitamente a influência determinante do terceiro "tem- contém uma promessa rica de significado positivo e edificante;
velará para que seja pronunciada, em um momento dado, a
11. Op.cit., p. 45. palavra apropriada; buscará fazer da comunidade civil um ter-

118 119
reno de discussão visando a um trabalho comum; recusar-se-á evíta distanciar-se do que chamou de "diretriz" das decisões
a aceitar tôda ameaça visando a dirigir, controlar e censurar cristãs em matéria de política. Vez por outra, seus exemplos
a opinião pública. fazem pensar em Rousseau. Barth não contesta essa coin-
- Como é um instrumento de serviço, seguindo o exem- cidência. Para êle, o fato de que o Estado resulte de uma
plo de Jesus Cristo, a comunidade cristã considerará sempre instituição divina possibilita inteiramente que se chegue a co-
como anormal todo exercício do poder que não seja, em pri- nhecimentos e decisões justas, mesmo sendo necessário consi-
meiro lugar, um serviço. derar sua fonte, o direito natural, como suspeita. "Se, final-
- Porque é ecumênica, a comunidade cristã buscará ul- mente, encontramo-nos de acôrdo com as teses baseadas no
trapassar os interêsses de ordem puramente local, regional ou direito natural, esta constatação não faz senão confirmar o
nacional; estará sempre pronta a intervir em favor de um en- fato de que a sociedade (polis) pertence ao reino de Jesus
tendimento e de uma colaboração em plano mais vasto. Cristo, mesmo que seus representantes não o saibam ou pre-
- Finalmente, já que a comunidade cristã conhece a tendam ignorar o fato, deixando de ver assim, o uso que po-
cólera de Deus e seu julgamento - mas sabe, também, que deriam fazer da verdade sôbre a essência do poder político
esta cólera passa, enquanto sua graça dura eternamente - que Deus colocou ao alcance do homem" 1J.
aprovará, apoiará e mesmo estimulará, se necessário, a solu- As críticas profundas e os comentários extensos sôbre a
ção através da fôrça de conflitos políticos (medidas policiais, doutrina política de Karl Barth são relativamente pouco nu-
decisões penais, levantes contra um regime ilegítimo, guerra merosos. Mas quase todos tratam do ensaio "Comunidade
defensiva) . Mas não poderá admitir as soluções violentas se- cristã e comunidade civil" e, em particular, do problema do
não como ultima ratio regis; tudo deverá fazer para salvaguar- direito natural. Os comentaristas católicos romanos acreditam,
dar a paz, menos aceitar a supressão do legítimo Estado, o com efeito, que é impossível passar da fé cristã à decisão ou
que significaria negar a ordem estabelecida por Deus. à ação política sem recorrer à mediação do direito natural.
Tôdas essas indicações convergem para uma forma de E que, em suma, a noção barthiana de analogia não pode se-
Estado muito precisa: a democracia. Isto não quer dizer que não dissimular, nos fatos, o que chamam de mediação da
as atuais democracias correspondam, necessàriamente, ao Es- xazão.
tado justo, como é entendido pela fé cristã. O Estado justo Por quê? O Padre Henri Bouillard, que escreveu notável
pode muito bem tomar o aspecto de uma monarquia, de uma obra sôbre o teólogo protestante, estende-se longamente sôbre
aristocracia e, eventualmente, de uma ditadura. "Reconhece- êste ponto 14. Coloca a questão da seguinte maneira: como
mos, igualmente, acrescenta Karl Barth, que o têrmo 'demo- pode a Igreja, em nome do Evangelho, expor diretrizes e
cracia' (govêrno pelo povo) é incapaz de expressar, mesmo tomar posições políticas? Ou, ainda mais precisamente: como
aproximativamente, aquilo em que consiste, no conhecimento pode um cristão determinar, detalhadamente, seus julgamentos
cristão, esta sociedade cuja constituição e permanência corres- e escolhas? O Reino de Deus e a vida do Estado não são
pondem a uma disposição da graça divina . Mas não se pode homogêneos. É preciso, portanto, passar de um para outro.
minimizar o fato de que os cristãos, que exercem no plano Esta passagem não pode efetuar-se sem mediação. E que
político suas faculdades de discernimento, de julgamento, de será esta mediação, senão o direito natural? Bouillard não
escolha, de vontade e de engajamento, inclinam-se, em tôda define o direito natural como "uma espécie de código univer-
linha, na direção desta forma de Estado. ( ... ) E podemos, sal, antecipadamente inscrito em cada espírito e efetivamente
realmente, falar de uma afinidade entre a comunidade cristã reconhecido em tôda sociedade", mas como "a exigência ra-
e a civil existente nos povos livres" 12 • cional de justiça que, dentro de uma situação histórica con-
A demonstração de Karl Barth identifica-se, também, em
mais de um ponto, com as teses do direito natural. Mas êle
13. Op. cit., p. 63.
14. Bouillard, .Karl Barth Il]: Parole de Dieu et existence humaine,
12. Op. cit., pp. 64-65. pp. 271 ss.

120 121
ereta, impõe-se aos esp~ritos razoáveis" 15 . O Estado pode Barth acredita que esta mediação é supérflua. O Evan-
compreender as posições políticas da Igreja na medida em gelho liga-se à natureza, que é assumida e restaurada por
que forem expostas como exigências racionais. "O Evangelho Cristo na encarnação. O Evangelho atinge a natureza, mesmo
pode inspirar a política, porque implica e sanciona a exigên- desviada ou corrompida. Não acompanhará, necessàriamente,
cia racional de justiça que mede o acêrto das determinações nenhuma de suas expressões políticas, econômicas ou cultu-
políticas" 16 . Basear julgamentos e opções políticas no Evan- rais ainda que em nome da exigência racional de justiça"!
gelho implica, pois, em recorrer ao direito natural 17 • Mas poderá alcançá-las, através do homem, em alguns de
seus aspectos concretos. No domínio do político, por exemplo,
não pode servir de caução, no nível dos princípios (justiça,
15. Op. cit., p. 280.
16. Ibid. liberdade, igualdade, etc. ) , nem ao comunismo, nem ao so-
17. Várias obras ou artigos recentes examinam a nocão de direito cialismo, nem ao capitalismo, nem à monarquia, nem mesmo
natural, em geral ou em relacão com a obra dé Karl Barth à democracia. Mas, em alguns casos concretos, pode êle estar
Vejamos alguns que nos parecem particularmente significativos:.
Do lado católico. - J. - Y. Calvez e J. Perrin, Église et so- - porque assume verdadeiramente tôda a realidade - de
ciété économ.ique, Paris, 1959, p. 77: "Indicando as duas fontes acôrdo com uma ou outra dessas ideologias, com um ou outro
paralelas (da Revolução e do direito natural), cujo conteúdo é dêsses regimes. "Os resultados de uma política baseada sôbre
em última instância idêntico, a Igreja pretende precisamente
lembrar que suas próprias afirmações, feitas com uma autoridade a filosofia do direito natural falam por si mesmos! Se não
e Faças a uma luz incomparáveis, são todavia de significação foram sempre, e não são, totalmente negativos, se, no plano
umversal e conservam-se em perfei.ta continuidade com as ver-
dades que ·podem ser descoberts,s a partir desta luz mais fraca político, o melhor e o pior aproximam-se ( ... ) , isto não
que é a razào humana". acontece porque se teria conseguldo, aqui ou acolá, descobrir
- Claude Tresmontant, Morale chrétienne et morale mar- e aplicar os princípios do direito natural autêntico, mas sim-
xiste, Paris, 1960. Para êste autor. a moral cristà não pode ser
fundada unicamente sôbre a revelação histórica de Deus. Pois plesmente porque a comunidade civil, ignorante, neutra e pagã
isso significaria a impossibilidade dé qualquer confrontação com como é, pertence também ao reino de Cristo, e tôda atividade
os que, como os marxistas, recusam esta revelação. Portanto, o
catolicismo tem razão - acredita êle - de fundaT a moral, em política baseia-se, como tal, na disposição misericord~osa atra-
primeira instância, sôbre a realidade objetiva, sôbre a natureza vés da qual Deus mantém a existência humana ( ... )" ls.
sôbre a criação. '
- N. Jacob, J.-M. Aubert, A. Dumas, M. Villey, J.-L. Gar-
Mesmo o recurso aos critérios de um direito natural ideal,
dies, Pratique du droit et conscience chrétienne, Paris, 1962. por parte do Estado e - o que é mais grave - por parte
Do lado protestante. - André Dumas, Karl Barth et le droit da comunidade cristã, "não poderia, absolutamente, impedir
naturel, estudo que figura na obra coletiva supracitada. O autor
demonstra muito bem que a concepção católica do direito natu- Deus, todo-poderoso, de continuar a mudar o mal em bem".
ral tem sua fonte na criação, enquanto a analogia cristológica Karl Barth constata a coincidência de alguns de seus
proposta por Karl Barth refere-se à destinação da natureza hu- exemplos de analogia com as teses baseadas no direito natural.
mana; p. 90: "O lugar da convergência das duas comunidades,
cristã e civil, é escatológico e não cri acional". Esta identificação não justifica o recurso ao direito natural,
- Heinz Horst Schrey, Die Wiedergeburt des Naturrechts, mas confirma que o Evangelho é a favor da natureza, que a
1951, pp. 193-207. O autor expõe o pensamento de Earth e dis-
cute-o atendo-se a quatro questões principais: a validade do prin-
cípio de analogia, a doutrina dos dois reinos (a imagem dos doi~
cfrculos concêntricos) , o caráter da senhoria de Cristo sôbre o 18. Communauté chrétienne et comm.unauté civile, pp. 33-34.
mundo e, finalmente, o problema do direito (a justificação cria 19. Op cit., pp. 34-35. 11: interessante relacionar esta frase com uma
o direito ou permite tão-sàmente compreender um direito pré- passagem significativa de suas "Reflexões sôbre o Concílio Va-
existente desde a criação?). ticano II" (Thoughts on the Second Vatican Council, The Oecu-
- Helmut Simon, Die Kritische Frage Karl Barth an die menical Review, julho de 1963), Genebra, 1963. Barth escreve,
moderne Rechtstheologie, Antwort, Zollikon-Zurique, 1956. Entre efetivamente, a respeito da encíclica Pacem in Terrís de João
o direito natural (ética do ser que precede) e a analogia cristo- XXIII (de conteúdo claramente político) : "Malgrado seu estilo,
lógica (ética da destinação que espera), o autor intercala a inspirado no direito natural e em sua abstratividade, esta encí-
doutrina barthiana doo dois reinos como sendo uma ética tran- clica tem mais o caráter de uma m.ensagem. do que nossas publi-
sitória da manutenção, enquanto durar o mundo em sua nativi- cações ecumênicas até hoje" (p. 26). Mensagem: isto é, signifi-
dade pecadora. cação espiritual profunda e percuciente, a despeito do direito
natural que lhe serve de suporte.
122
123
sociedade (como a natureza!) pertencem ao reino de Jesus fato de terem inspiração cristã, mas apenas pela sua possível
Cristo, ainda que seus representantes o ignorem ou preten- superioridade política, se se revelarem melhores, com tôda
dam ignorá-lo. Barth rejeita, portanto, o direito natural, en- objetividade, para consolidar e manter a comunidade huma-
quanto autoridade prévia e autônoma. Mas êle o redescobre a na" 22 •
partir do Evangelho, o único capaz de pôr em evidência a ver- A posição da Igreja no círculo mais vasto da sociedade
dadeira natureza. implica uma pregação firmemente política. Uma paróquia cons-
Karl Barth conclui seu estudo sôbre as relações entre ciente de suas responsabilidades deve esperar e exigir uma pre-
as duas comunidades examinando alguns aspectos concretos gação "política" e saber interpretá-la politicamente, mesmo
das decisões cristãs e, principalmente, a importante quando não encontrar nela nenhuma alusão direta à política.
de um "partido cristão". É também à comunidade cristã, através da voz de seus órgãos
É preciso recorrer à formação de um "partido cristão"? presbiterianos ou sinódicos, que cabe tomar posição, publica-
Para Karl Barth (o exemplo alemão lhe está muito próximo!), mente, sôbre questões determinadas, em momentos que lhe pa-
os partidos constituem, em si, um dos fenômenos mais equí- recerem particularmente críticos. Karl Barth pede-lhe então
vocos da vida política. A comunidade cristã, portanto, não que evite três empecilhos, diante dos quais a Igreja tem tantas
poderia aceitar, em nome da intenção de assumir suas res- vêzes fracassado. Ela não deve dar a impressão de sair de sua
ponsabilidades políticas, aumentar ainda mais o número des- existência habitualmente apolítica tão-somente quando trata de
sas duvidosas agremiações. questões ditas "religiosas e morais" (jogos, alcoolismo, profa-
Nas lutas políticas, as alianças e as negociações de um nação do domingo, etc.), questões que se encontram, segundo
"partido cristão" não poderiam senão comprometer, de todos Barth, absolutamente à margem da verdadeira vida política.
os lados, a comunidade cristã e sua mensagem. Se esta co- Deve cuidar também para não se pronunciar sempre com atra-
munidade quer ser a "nata política" que tem o dever de ser, so, quando sua tomada de posição já não encerra mais nenhum
esperará de seus membros decisões políticas de acôrdo com a risco ... e já não tem qualquer efeito. Deve evitar, enfim, re-
diretriz que sua mensagem indica, e não a adesão a qualquer forçar ainda mais a idéia de que a Igreja representa e defende
"partido cristão" cujo fundamento não seja o Evangelho, mas as concepções e a moral de uma certa classe.
"uma mistura de filosofia e moral humanas". A ação política Mas a contribuição mais importante da comunidade cristã
da comunidade cristã não será, pois, no sentido da criação de para a edificação da comunidade civil é o exemplo que consti-
um partido, mas visando à pregação, em tôda sua amplitude, tui sua existência, "ou seja, o fato de que a Igreja, pelo sim-
do Evangelho da graça de Deus, que constitui a única jus- ples fato de existir e viver, é a fonte de onde o Estado tira sua
tificação do homem integral, incluindo o homem político" 21 • fôrça de renovação e duração" 23 •
Barth acrescenta o seguinte, que é essencial: "No plano Dêste modo, se a Igreja é verdadeiramente uma comuni-
político, a comunidade cristã não pode, com efeito, transmitir dade cristã, nada terá a fazer com um partido cristão. Os fiéis
diretamente a mensagem que lhe é própria, não pode senão não devem temer o isolamento, nem pertencer a partidos dife-
refleti-la no espelho de suas decisões cívicas. E estas decisões rentes, "não cristãos". Em cada agremiação, saberão pronun-
não se imporão nem triunfarão, em qualquer medida, pylo ciar-se "contra o partido e em favor da sociedade em seu con-
junto; é precisamente nesse sentido primitivo que serão homens
políticos" 24 • Através dêles, a Igreja assumirá, então, de ma-
20. Op cit., p. 69. Na descontiança pi;ofunda de B1;t!th. em f~?e dos
partidos "cristãos", intervem tambem ~ua experrenc1~ p~llt~c~ do neira mais direta, sua co-responsabilidade.
início dos anos 50. Ocorreu, com efeito, que os tres pars da
Europa (Konrad Adenauer, Alcide de Gaspari e Robert Schu-
manl pertenciam à democracia cristã e temeu-se então viva-
mente - tanto nos meios liberais quanto nos socialistas - que
se constituísse uma Europa católica no modêlo ela velha Santa 22. Op. cit., p. 67.
Aliança. 23. Op. cit., p. 73.
21. Op. cit., p. 69. 24. Op. cit., p. 76.

124 125
TERCEIRA PARTE
A Luta pela Paz

KARL BARTH - 9
Capítulo I

REARMAMENTO DA ALEMANHA

ATÉ AQUI, BARTH MANIFESTOU-SE, antes de mais nada,


sôbre os diferentes aspectos da política alemã a partir de 1933:
o exercício do poder pelos nazistas, seus objetivos e seus méto-
dos na Alemanha, suas pretensões expansionistas na Europa,
a guerra e a queda do Terceiro Reich. A partir de 1945, pro-
nunciar-se-á a respeito das mais variadas questões: sempre a
Alemanha, mas também a questão do rearmamento, o conflito
entre Leste e Oeste, a situação das Igrejas nos países comu-
nistas, a bomba atômica, etc.
A reflexão de Barth orienta-se cada vez mais na direção
das relações entre história, acontecimentos políticos e a atitude
da Igreja cristã. O mundo sofreu imensos abalos: a derrota da
Alemanha coloca novamente em evidência a questão do equi-
líbrio europeu; a União Soviética começa a ganhar, pela fôrça
ou pela persuasão, os Estados da Europa Oriental para o co-
munismo que herdou de Marx e de Lênin. Diante da Alemanha
nazista, a situação poderia parecer bastante clara para a Igreja
cristã. Mas, para que lado voltar-se no fim dos anos 40, a
quem resistir, com quem colaborar?
Em alguns artigos ou conferências, Karl Barth esforçou-
se para esclarecer um pouoo a confusão. Um primeiro artigo,

129
publicado em outubro de 1946 no The Listener, sob o título
The Christian Church and the Living Reality 1, confronta a ou uma saída de nossa situação miserável" 3 • O presidente da
realidade imediata - a que descobrimos nos jornais, nos dis- Igreja Evangélica alemã, Gustav Heinemann, era então, é bom
cursos dos homens públicos, etc. - com a realidade escon- especificar, Ministro do Interior do Govêrno de Bonn.
dida, subjacente em tôdas as relaçães de poder - a soberania No mês de agôsto, por ocasião de uma grande reunião
de Deus sôbre a história, ou seja, Jesus Cristo. "Vivemos ilu- eclesiástica em Essen, o Conselho da Igreja Evangélica alemã
didos; os povos e os indivíduos, os homens públicos e as massas pronunciava-se sôbre esta mesma questão. Mas, desta vez, o
enganam-se em suas decisões, na utilização ou não utilizacão rearmamento da Alemanha era condenado sem ambigüidade:
das possi_?ilidades e. das ocasiões que lhes são oferecidas h~je, "Não podemos falar em favor de um rearmamento alemão, nem
porque t~m, para isto, outros pontos de partida que não o no que diz respeito ao Leste nem no que concerne ao Ociden-
reconhec1mento desta verdadeira realidade" 2. te" 3 •
. . ~ste 1:econhe:_i~en~o fundamental, acredita Barth, permi- No mês seguinte, Heinemann apresentava sua demissão
tma a Igre1a alema hqmdar o velho sonho germânico e recons- ao Chanceler Adenauer. Êste recusou-a. Mas Heinemann insis-
truir uma nova Alemanha; às Igrejas do Leste comunista mos- tiu e efetivamente abandonou a direção de seu Ministério, no
trar uma .face sôbre a qual poderíamos reconhecer, sem ' equí- mês de outubro. Nesse ínterim, o Conselho fraternal da Igreja
voc~, a h?erda~e de Jesus Cristo e, portanto, do homem; às Evangélica alemã declarara que se opunha tanto a um rearma-
Igreps. ocidentais, acabar de uma vez por tôdas com o ateísmo mento puramente alemão como à constituição de unidades
potencial dos representantes da já morta "civilização cristã". alemãs nos quadros das fôrças armadas ocidentais. Enfim, o
Encontrafi?-os, ma!s uma vez, neste texto: o lugar da Igreja pastor Martin Niemõller havia enviado ao chanceler, em 4 de
ll_? Estado .~A d1.ante .dele, suas reações às ocorrências políticas outubro, uma carta onde declarava que se opunha absoluta-
sao consequencias diretas de sua obediência. mente a qualquer rearmamento e solicitava a organização de
A oposição de Karl Barth ao rearmamento da Alemanha um plebiscito na Alemanha Ocidental. Esta carta provocou
é ~ma conseqüênci~ lógica de sua atitude para com êste país uma indignação geral contra seu autor. E, para confundir Nie-
apos a queda de Hitler. Os alemães, disse êle, deveriam com- moller e seus amigos, saídos principalmente dos meios da Igreja
preender que a única atitude decente e razoável seria retirar-se Confessante, o periódico Christ und Welt publicou a carta
da política mundial. Ora, um rearmamento representa seu desejo escrita por Karl Barth em 1938 ao Professor Hromadika. Os
de permanecer nela. No clima de guerra fria dos anos 50 isso editôres acreditavam que esta carta serviria de argumento em
constituía grave ameaça para a paz. ' favor do rearmamento da Alemanha. Bastava substituir "sol-
"Nãp temais!" (Fürchtet euch nicht!) foi publicado no dado tcheco" por "soldado do mundo livre" (e, portanto, tam-
outono de 1950, depois de acontecimentos que convém lem- bém "soldado alemão") e substituir a ameaça nazista pela
brar brevemente. comunista! Foi então que Barth, por solicitação da Revista
No mês de abril de 1950, o sínodo da Igreja Evangélica Unterwegs, de tendência católica, escreveu em 17 de outubro
alemã, reunido em Berlim, redigia uma declaração de paz na a carta "Não temam!". Foi publicada a 19 de novembro, em
qual, sem falar explicitamente do rearmamento tomava uma Berlim, numa edição especial da revista.
atitude muito clara a respeito da guerra. O sfuodo exortava Karl Barth mostra, nesta carta, a impossibilidade de com-
p~ncipa~ente, os "governos e representantes de nosso povo ~ parar as circunstâncias presentes com as que envolveram o
na? s~ deixarem arrastar, por qualquer potência mundial, para acôrdo de Munique e a redação da carta ao professor tcheco-
a dusao de que uma guerra poderia representar uma solução eslovaco. Sua demonstração contém três partes.
Lembra inicialmente que, em 1938, os povos da Europa
e suas Igrejas! - recusavam-se a encarar a realidade de
1. The Christian Church and the Living Reality, in The Listener,
31 de outubro de 1946.
2. Op. cit., pp. 129-130. 3. Jean Base, "L'l!:glise évangelique allemand et le problême du
réarmement", in Foi et Vie, 1951, p. 64.
4. Ibid.
130
131
frente. Fechavam deliberadamente os olhos à ameaça de guerra, cientes" de hoje são os que ainda não compreenderam isto. E
e a assinatura do Acôrdo de Munique foi saudada em tôdas as êste deve ser, precisamente, o tema da mensagem cristã no
igrejas com serviços de ação de graças. Barth acredita que as mundo atual.
palavras de advertência por êle pronunciadas então, se ouvi- Finalmente, e êste é o último ponto, Barth havia encora-
das, teriam talvez podido evitar os sangrentos massacres da jado o soldado tcheco a defender-se, como encorajou mais
Segunda Guerra Mundial. Ê necessário, hoje, um grito de alar- tarde o soldado suíço a defender suas fronteiras. Trata-se,
ma semelhante? Não, responde Barth: "A resolução (bem ou agora, de uma questão completamente diferente: a do rearma-
mal fundada) de defender-se contra o comunismo stalinista mento da Alemanha, e, em particular, da Alemanha de Bonn.
ameaçador, que está atualmente em questão, é um lugar comum Êle não se opõe ao princípio de uma defesa armada, mas cri-
no Ocidente. Fortificá-la ou intensificá-la com uma palavra tica o renascimento do militarismo alemão. "Esta questão não
cristã é algo supérfluo. Ninguém está, hoje, inconsciente. Muito deveria ser confundida nem com o problema geral do pacifis-
pelo contrário: impera, no tocante ao assunto, uma vigilância mo, nem com a da preparação defensiva do resto do Ocidente.
excessiva, um nervosismo, uma angústia e uma excitação uni- A lógica não pode, de modo algum, exigir que quem rejeita o
versais" 5• - pacifismo e aprova a preparação defensiva ocidental deva, por
~ palavra cristã que é preciso proclamar hoje não é, pois, esta razão, dar igualmente seu apoio à formação de um nôvo
um gnto de alarma, mas uma palavra tranqüilizadora. Não é exército alemão, dentro dos quadros de uma futura fôrça oci-
preciso ter mêdo. Êste é o melhor meio de afrouxar a tensão dental" 8 •
política e de diminuir os riscos da guerra. Barth expõe então os motivos precisos de sua oposição
Por outro lado - e é êste o segundo ponto de sua demons- ao rearmamento da Alemanha propriamente dita: êste país foi
tração - o apêlo a uma resistência armada era necessária em completamente dessangrado pelos dois primeiros conflitos mun-
1938, devido à indecisão e ao imobilismo das democracias diais, e não podemos pedir-lhe, pela terceira vez, um tal sacri-
européias. Mas, atualmente, todo o Ocidente (incluindo a pe- fício; uma nova guerra tomaria necessàriamente, para a Ale-
quena Suíça!) prepara-se espontâneamente para a eventuali- manha dividida, o caráter de uma guerra civil; rearmar a Ale-
dade de uma agressão soviética, sem que seja necessária urna manha significaria introduzir novamente o militarismo que se
exortação cristã particular para êsse fim. Barth não pretende tentou extirpar; dotar a Alemanha Ocidental de armas seria
negar o aspecto ameaçador da União Soviética, nem o caráter uma provocação direta, talvez fatal, à União Soviética; um
agressivo de sua propaganda. Mas duvida muito que esta exército alemão só poderia ser uma retaguarda sacrificada, no
grande potência busque, verdadeiramente, deflagrar um con- caso de uma busca de defesa séria da Alemanha, entre o Elba
flito. Há ainda outros meios de solucionar a oposição entre e o Reno, pelos estrategistas ocidentais; a Alemanha faria me-
Leste e Oeste. "Antes de se esgotarem os recursos como ocorreu, lhor preparando uma defesa positiva contra o comunismo, no
de fato, no outono de 1938, ninguém no Ocidente tem o direito sentido acima mencionado; enfim, é preciso levar bem em
de esperar a guerra, ou mesmo de acreditar nela e, conseqüen- conta o risco certo que representa a criação de um nôvo exér-
temente, de tratar a Rússia como naquela época era necessário cito na Alemanha, neste país onde o homem torna-se, tão ràpi-
tratar Hitler" 6 • Além disso, a União Soviética não lançou ainda damente, um "soldado integral".
nenhum ultimatum comparável ao do Führer. De fato, a melhor Karl Barth conclui sua carta a Unterwegs garantindo a
defesa contra o comunismo não é preparar-se militarmente Heinemann e Niemõller seu apoio total.
para a guerra, mas criar, no Ocidente, uma situacão social su- A propósito do rearmamento da Alemanha, Barth publi-
portável para tôdas as camadas da população 1.º Os "incons- cou ainda um estudo de caráter bem mais teológico, em 1952,
na nova série dos cadernos de Theologische Existenz heute,
5. "Ne craignez pas!", in Foi et Vie 1951, p. 67. Revimos a tradu- "Decisão política na unidade da fé" (Politische Entscheidung
ção francesa em alguns pontos. '
6. Op. cít., p. 69.
7. Op. cit., p. 70. 8. Op. cit., p. 71.

132 133
111der Einheit des Glaubens) 9 • Não aborda o tema do rearma- adquirem sua convicção política pesando, completamente cons-
mento em si, mas trata da questão de princípio colocada por cientes, os prós e contras. Em seguida escolhem. Alguns,
êste caso particularmente crítico: quais são as condições de sionados com a ameaça soviética, defendem um plano
uma decisão política na Igreja? Êste estudo teve, na Alema- sivo que compreenda a Alemanha Orcidental. Outros opõem-se
nha, repercussão comparável à das suas primeiras publicações, a êle, duvidando da deflagração de uma guerra da qual a Ale-
na época do nazismo. manha seria a primeira vítima e de um renascimento do mili-
O que interessa nêle não é o rearmamento propriamente tarismo que a arrastou, tão recentemente, para um abismo
dito, mas a divisão que esta questão causou no seio da Igreja fatal. Argumentos políticos: nenhum dêles encontra-se na Bí-
Evangélica. Divisão bastante grave, a julgar pelas palavras de blia ou no catecismo. Invocá-los, pesá-los, .não é ainda dar
Karl Barth. Pois o que provocou os protestos da maioria dos provas desta verdadeira lucidez solicitada por Karl Barth. O
protestantes alemães (e da maioria de seus bispos) não foi cristão não se limitará a uma simples confrontação ao nível da
tanto a decisão política de resistir ao rearmamento da Alema- razão: esforçar-se-á também, e sobretudo, por sondar o espí-
nha. Foi o fato de que Niemõller e seus amigos apresentavam rito que se dissimula por detrás dos argumentos aparentemente
esta decisão como um ato de obediência ao Evangelho, como objetivos de uns e de outros. Não é a história feita pelo con-
uma decisão da fé. Os adversários do Chanceler Adenauer não flito entre bons e maus espíritos? Será precisamente dar prova
manifestavam uma oposição política superficial, não exprimiam de lucidez cristã saber distingui-los. Por isso, o cristão não
um simples ponto de vista negativo. Ligavam sua decisão ao decidirá unicamente em função do melhor e do pior, mas tam-
núcleo de sua· fé e lançavam, dêste modo, uma espécie de de- bém segundo a analogia da fé (Rom. 12:6) e no sentido do
safio aos outros membros da Igreja, que diziam ter a mesma Deuteronômio: entre a vida e a morte, entre Deus e os ído-
fé, mas que aderiam à política do Chanceler. tinha los 11 •
razão? Mas nem todos os cristãos estão preparados para tomar
Para Karl Barth, a questão é clara: quando a necessidade sua decisão neste nível. Muitos dentre êles preferem reservar-se
de tomar uma decisão política torna-se premente, a Igreja, se a possibilidade de permanecer neutros ou a de decidir-se, segun-
se julga envolvida, não pode permanecer silenciosa. Mas como do seu livre arbítrio, por um ou outro partido. A dificuldade
e quando deve falar? Deve esperar a votação unânime de um principal criada por uma decisão política na Igreja não decorre,
sínodo? A experiência mostrou que êste tipo de tomada de portanto, dos mornos ou dos irresponsáveis. Decorre do fato
posição chega, em geral, demasiado tarde. O aparelho eclesiás- de que alguns membros da Igreja, acreditando e dizendo esta-
tico não é nem mais rápido nem mais flexível que qualquer rem seguros de sua fé, tomam uma decisão contrária à de
outro. E o tempo passa. Quando tomada, sua decisão é, fre- outros cristãos, que também acreditaram basear sua fé sôbre
qüentemente, apenas formal, vã e sem efeito. Causa espanto, uma tomada de consciência cristã autêntica. Devido a essas
então, que dentro do próprio seio desta Igreja, homens parti- divergências, "a unidade da fé e de sua confissão, a unidade
cularmente vigilantes elevem sua voz e manifestem sua con- da Igreja, é indubitàvelmente posta em questão" 12 •
vicção de que a vontade de Deus consiste em que seja tomada Tal é a situação da Igreja alemã no que toca à remilitari-
determinada decisão, rápida e firmemente? Assim se passavam zação 1i. Que ocorre então? Os partidários de Adenauer acusam
as coisas no tempo dos Apóstolos, afirma Barth 10. os adversários do rearmamento de quererem dividir a Igreja.
Já vimos tôda importância dada por Karl Barth a um Acusação singular, diz Karl Barth, porque os próprios parti-
exame lúcido e realista da situação política, como prelúdio de dários da política governamental poderiam ser responsabíliza-
tôda decisão. O mesmo fenômeno ocorre aqui. Os cristãos dos, neste caso específico, por uma divisão no seio da Igreja.

11. Op. cit., p. 8.


9. Politische Entscheidung in der Einhheit des Glaubens, Munique, 12. Op. cit., p. 9.
1952. 13. E também a situação das igrejas suíças, no fim dos ancv:; 50 e
10. Op. cit., p. 5. no início dos anos 60, a propósito do armamento nuclear.

134 135
Na verdade, não parecem, de modo algum, ter levado em conta esta dificuldade, nem a eventualidade de uma crise devem,
a Palavra de Deus nem a obediência à fé, em sua decisão de entretanto, fazê-lo recuar. Mesmo grave, uma crise não pode-
apoiar Konrad Adenauer. É estranho, observa Barth, não sem necessàriamente, deixar de ter uma solução. E que seria
ironia, que tenha havido entre êles outro Niemoller, defen- uma Igreja com mêdo? A experiência do Kirchenkampf mos-
dendo, com a mesma fôrça e a mesma convicção, o chanceler trou que a Igreja é capaz de recuperar-se das divisões e de
de Bo11n. A verdade não está, forçosamente, ao lado do maior encontrar um caminho mais autêntico. E, acima de tudo, agora
número. como sempre, o cristão sabe que Deus, através das crises mais
Mas a questão do rearmamento da Alemanha é apenas o profundas, guia Sua Igreja com a mesma segurança com que
ponto de partida para uma reflexão muito mais geral. O que se apresenta a ela como o Senhor da História.
importa a Karl Barth é dizer que a unidade da Igreja - mes- Em "Decisão Política na Unidade da Fé", Karl Barth
mo a de uma só Igreja e de uma só religião - não é um fim sustenta, portanto, a mesma atitude que teve em tôdas as suas
em uma qualidade que seja abgolutamente necessário buscar tomadas de posição políticas. Afirmar que a Igreja não deve
ou oonservar. Os meios eclesiásticos parecem freqüentemente ter outras normas além da revelação divina e de seu comando,
aterrorizados com a idéia de uma eventual divisão. Estão erra- não significa que o cristão não precise pesar, tal como os não
dos. Em uma Igreja que não está morta, que vive, é até indis- cristãos, as desvantagens e inconvenientes de um ponto de vista
pensável que surjam pontos de vista novos. Isto é válido no puramente político. Deverá, "para falar como Kant", ter a
plano da pregação, da profissão de fé e da teologia. Vale coragem de servir-se de seu próprio entendimento" 15 • Entre-
também para o plano da política. Tornar a pôr em questão, tanto, diferentemente de seus concidadãos não cristãos, fará sua
dizer ou voltar a dizer uma verdade, comporta um risco: o de apreciação diante de Deus, diante do Deus que fala no Evan-
dividir a Igreja, o de mergulhá-la em uma crise. Mas esta divi- gelho de Cristo, e decidirá em obediência aos seus preceitos.
são é mais grave do que o êrro? Esta crise é mais temível que Assim, no próprio plano da reflexão política, o fiel está colo-
o torpor? No domínio político, "a Igreja pràticamente só tem cado diante da questão da obediência. Isto significa que, ba-
mna alternativa: ou reconhece sua responsabilidade política e seando seus julgamentos e escolhas políticas na obediência
se expõe, assim, ao risco de uma crise dêste tipo, ou evita esta exclusiva ao Evangelho, e sendo a fé o critério final, os cris-
crise e negligencia sua responsabilidade política" 14 . tãos colocam em questão, quase obrigatoriamente, com as
Assumir essa responsabilidade exige dela, e dos que levam divergências de opinião política, a unidade de sua fé.
as coisas ao pé da letra, quatro virtudes essenciais: sobriedade Por ocasião do Volkstrauertag de 1954, cerimônia em
na avaliação dos fatôres políticos; inteligência na descoberta memória das vítimas da guerra e do nazismo, Barth foi convi-
de uma visão global -- representando estas duas primeiras qua- dado pelo govêrno de Hesse para pronunciar um discurso pú-
lidades a verdadeira lucidez cristã; coragem no relaciomento blico em Wiesbaden, em 11 de novembro. f:sse discurso teve,
de uma esperança terrestre com a esperança celestial; humil- também, grande repercussão na Alemanha e na Europa Oci-
dade, enfim, no conhecimento do caráter profundamente duvi- dental 16 •
doso, frágil, provisório e relativo de tôda decisão humana. Depois de lembrar o que foi o nacional-socialismo, que
Karl Barth acrescenta que esta decisão não pode ser um crédito e tolerância encontrou na Alemanha (e na Europa!),
verdadeiro testemunho, que não pode ser clara senão na me- que irresponsabilidade geral cercou êste trágico episódio da
dida em que manifesta esta dialética da certeza que a fé dá, e história mundial, Karl Barth declarou que o mais importante
da dúvida que atinge tôda decisão humana. hoje é evitar, a qualquer preço, um nôvo conflito. Entretanto,
Barth reconhece que o cristão que quer fazer de sua constatou êle, há atualmente certos empreendimentos, certas
decisão política um testemunho fica freqüentemente numa po-
sição difícil, desconfortável, que muitas vêzes se isola. Nem 16. o texto dêste disclU'SO apareceu, com títulos diversos, em: Die
stimme der Gemeinde, 1:9 de dezembro de 1954; Ev. Theologie,
n\> 12, 1954; Kirchenblatt für die reformierte Schweiz, 6 de ja-
14. Op. cit., p. 14. neiro de 1955.

136 137
É bom fazer aqui uma constatação importante, que con-
correntes de pensamento, que colocam no mais grave firmará tôda a atitude de Karl Barth para com o comunismo e
a paz mundial: os países do Leste: suas tomadas de posição não se baseiam
- "A reconstituição de um Estado alemão autoritário jamais em princípios políticos imutáveis, válidos em tôdas as
( Obrigkeitsstaat) 17 no qual novamente os cidadãos a circunstâncias. Indicam, pelo contrário, de maneira muito prag-
ter apenas a possibilidade de aprovar, de obedecer e mar- mática, o caminho a seguir em cada caso específico. Eis por-
char, uma vez que sua sorte é decidida do alto, não sem pres- que uma indicação dada em 1933 poderá revelar-se claramente
sões econômicas diretas e indiretas". insuficiente ou mesmo completamente falsa e inoportuna em
- "O rearmamento da Alemanha Ocidental nos quadros 1945 20. Esta concepção é uma aplicação direta da teologia polí-
de uma aliança militar colocada sob a égide americana e diri- tica desenvolvida em "Comunidade Cristã e Comunidade Ci-
gida contra o Lesté. Esta medida é, em uma ameaça de vil".
guerra, pois é impossível que o partido contrário não se sinta Barth permanece fiel às mesmas constantes teológicas.
ameaçado de modo agressivo". Mas as conseqüências que delas retira para sua ação política
- "Relacionado com isso: a divisão da Alemanha e, por- variam segundo o tempo e o lugar. Na época da guerra fria,
tanto, do centro da Europa, divisão que só uma nova guerra, nas pediram-lhe, em suma - é o sentido da manobra de Christ
atuais circunstâncias, poderia eliminar" rs. und W elt - que escrevesse a um de seus amigos alemães uma
Barth acredita que é uma ilusão querer estabelecer uma carta semelhante à que escrevera antes ao Professor Hromadka.
ordem europ~ia dividindo o continente em duas partes. Que é Barth recusou-se a fazê-lo, pelos motivos que já expusemos.
uma ilusão acreditar que se possa fazer frente ao comunismo Mas dedicou-se a um trabalho de esclarecimento que se asse-
com divisões blindadas e obuses atômicos, ao invés de pro- melhava exatamente ao que realizou em 1938: procurou dis-
ceder a uma renovação ou uma reforma no domínio social. Que tinguir a realidade por trás da propaganda desenvolvida por
é uma ilusão, enfim, pretender restituir à Alemanha um status uma e outra parte, por trás do excessivo "nervosismo" alimen-
honroso voltando a uma daquelas tendências nacionais que tado pela tensão internacional . Esta realidade é, então, a
circulavam entre as duas guerras e que se uniram em seguida, seguinte: a União Soviética tomou, depois da guerra, uma po-
muito naturalmente, ao nacional-socialismo. sição ameaçadora, provàvelmente por mêdo de um nôvo con-
O ano de 1954, é preciso lembrar, marcou a entrada da flito; mas não ameaça a paz no mundo como Hitler em 1938;
Alemanha na Aliança Atlântica. Não foi, pois, sem razão, não deseja, ela própria, a guerra; o realismo cristão ordena que
que Karl Barth recordou, concluindo a conferência, a decla- sejam melhoradas as condições econômicas da Europa Oci-
ração feita em 19 de janeiro de 1947 por Konrad Adenauer: dental.
"Estamos de acôrdo com nosso desarmamento completo, com Karl Barth recusa-se, portanto, a pronunciar as palavras
o fato de que nossa indústria especializada de guerra seja des- de condenação ou de alerta que todos esperam dêle. Não cabe
truída e que nos submetamos, pelos dois lados, a um longo ao cristão uivar com os lôbos. Sua missão é tentar ver as coisas
contrôle. Sim, quero ir ainda mais longe: acredito que a maio- com clareza. E, em um mundo onde reina a confusão, esclare-
ria do povo alemão concordaria em que nos tornássemos neu- cer é, muitas vêzes, contradizer. Se quisermos reduzi-la à sua
tros como a Suíça, do ponto de vista do direito internacional" 19. expressão mais simples, a atitude política de Karl Barth apa-
É evidente que Barth não necessitaria jamais pronunciar-se
rece corno um signo permanente de contradição. Existe nisso
sôbre o rearmamento se a Alemanha e seus aliados tivessem
20. Imediatamente após o fim da guerra, Barth respondeu negativa-
mantido tal posição. mente a um jovem pastor que lhe pedia que escrevesse uma
Theologische Existenz heute 1945, semelhante àquela de 1933. l'i:
falso voltar ao passado, diz êle, preten'crer reencontrar uma si-
tuação anterior. Uma simples repetição do que foi escrito em
17. Barth faz alusão agul a República Democrática Alemã. 1933 é inconcebível. 1l:le pede aos teólogos alemães que não fi-
18. Op. cit., pp. 173-174. quem nisso (Karl Barrth zum Kirchenkampf, pp. 94-95).
19. Op. cit., pp. 175.
139
138
um indício de não-conformismo em princípio? Uma deliberada A contradição que Karl Barth pode levar a qualquer con-
vontade de "épater le bourgeois"? 21 Seus adversários assim texto político inspira-se, pois, na contradição apontada. O cris-
quiseram crer, êles que tanto desejaram unir um nome de tão tão e a Igreja no Estado refletem, por analogia, a situação do
grande prestígio à sua cruzada contra o comunismo. Evangelho no mundo.
As razões desta atitude são bem diferentes. Já teríamos Foi dessa contradição e dessa liberdade que êle deu teste-
podido expô-las a propósito de Harmen e dos inícios da luta munho em Barmen, em sua carta a Hromadka, em "Os alemães
contra o nazismo. Esperamos, para fazê-lo, um primeiro con- e nós', e, agora, a propósito do rearmamento da Alemanha.
traste que melhor as ressaltasse. A comparação entre a carta Estas duas analogias revestem-se de tôda sua significação no
a Hromadka e aquela que escreveu à Revista Unterwegs nos for- problema comunista e no das relações entre Leste e Oeste.
nece uma oportunidade. Vamos nos referir, além disso, inten-
cionalmente, a duas conferências de antes da guerra: "O Evan-
gelho no Tempo Atual" (Das Evangelium in der Gegenwart),
pronunciada em 1935, e "A Igreja e a Questão Política de
Hoje", pronunciada em 1939.
Em "O Evangelho no Tempo Atual", Barth mostra que o
Evangelho de Cristo não depende do cristianismo e, muito
menos, da cristandade, mas é soberanamente livre. O Evan-
gelho não vive ou não morre em conseqüência do fato do cris-
tianismo ter a seu favor, ou contra si, a evolução da civilização,
o núcleo dos líderes políticos, os intelectuais, a juventude ou a
massa. A fôrça do Evangelho é capaz de afirmar-se com tôda
liberdade, a despeito do enfraquecimento do cristianismo. Em
seu aspecto histórico, o Evangelho afirma-se pela confissão de
fé. E é porque vem "do alto", porque é, de algum modo, o
Evangelho encarnado, que a confissão de fé é sempre "contra
a maré" (gegen den Strom), em contradição com o "fluido"
espiritual em voga, com as conclusões das análises históricas,
com os mais fortes batalhões e, antes de tudo, contrária às ten-
dências "daquilo que se denomina atualmente cristandade" 22 •
A confissão de fé, que exprime a inserção do Evangelho
no tempo, reveste-se, pois, da mesma liberdade do próprio
Evangelho. E em "A Igreja e a Questão Política de Hoje" Karl
Barth acrescenta ainda isto: proclamando a verdade eterna,
soberana e livre do Evangelho, em meio às vicissitudes da
época, a Igreja estará também, necessàriamente, "em oposição
ao mundo onde vive" 23 •

21. How my mind has changed 1948-1958, op. ci.t., p. 204, em fran-
cês no texto.
22. Das Evangelium in der Gegenwart, in 'l'heologische Existen;a
heute, n\l 25, Munique, 1935, pp. 21 ss.
23. "L'Église et la question polítique d'aujourd'lmi", ln Extremis,
1939, p. 74.

140 141
Capítulo

VIAGEM HUNGRIA
DEBATE COM BRUNNER

ELHOR QUE QUALQUER OUTRA, a questão do comu-


nismo coloca, pois, cm evidência, os dois elementos funda-
mentais da atitude política de Barth: a liberdade e a contra-
dição. O teólogo de Bâle é, com efeito, forçado pelos seus inter-
locutores a explicar porque sua posição com relação ao comu-
nismo não se assemelha à oposição radical que sustentou no
tempo do nazismo. É por isso que êle se detém nesta questão
mais longamente do que até então, nas condições de sua ati-
tude política.
No curso do período que já analisamos, Karl Barth não
fêz senão algumas alusões ao comunismo. Inicialmente, parece
considerar o nazismo e o comunismo como duas formas de um
mesmo mal. "As características do nacional-socialismo, escre-
veu em 1939 ( ... ), são idênticas às do oomunismo. Uma das
maiores mentiras da história universal consiste em pretender
que o nacional-socialismo salvou a Alemanha e a Europa do
comunismo. O nacional-socialismo é, pelo contrário, a forma
alemã do bolchevismo, e poderá tornãr-se a forma européia
ocidental. Nacional-socialismo e comunismo não são senão
irmãos inimigos, e sua hostilidade explica-se por esta razão" 1•

1. "L'Eglise et la question politique d'aujourd'hui", op. cit., p. 76.

KARL BARTH - !O
143
Entretanto, pouco menos de um ano antes do da ao Ocidente com relação ao assunto é que sem de-
Barth começou a estabelecer uma entre os mora a reforma social de necessita.
regimes: "Qualquer outro Em de 1948, Barth foi convidado,
zação comunista do mundo, Reformada, a à Hungria, onde fêz, em Sarospatak e em
certamente é impossível o que os tentaram" 2. pest, uma conferência sôbre "A Comunidade Cristã nas Trans-
E em "Os alemães e nós", afirmou que, do mesmo modo como formações das Instituições Políticas" (Die christliche
os cristãos suíços deveriam ser capazes de ver os sob im W echsel der , na qual lembra o
uma nova necessitavam reservar-se "a mesma liberdade essencial da Igreja, "que consiste em proclamar, em
para com êste outro enigma: a 2 circunstâncias e, portanto, através de sua palavra
O próprio Barth fêz uso, únicamente a boa nova de Jesus Cristo, sua promessa e suas
invés de incitar a Igreja a engajar-se, como fêz no advertências" 6.
nazismo, aconselhou-a a abster-se, quando a posição da ,_,,.~~~- 0 Barth expõe seu pensamento nesta conferência, em
entre os dois gigantes do Leste e do Oeste tornou-se o pro- grafos extremamente densos, que contêm o resultado do seu
blema político número um. Eis o que êle disse, ""''""-""""-''-"U<'- exame da situação da Igreja em face das circunstâncias histó-
no primeiro texto onde aborda a ricas e dos acontecimentos políticos, unido a seu trabalho "Os
sagem Cristã na Europa Atual" Pressupostos Teológicos das Estruturas da Igreja" e ao
im heutigen Europa). A Europa, escreve sôbre as três formas eclesiásticas (Igreja Nacional, Livre ou
cada entre o. Leste e o Oeste como entre mós de um
moinho. Está seriamente ameaçada, tanto de um lado como de A comunidade cristã está plenamente engajada, como cole-
~u~ro. Onde estará seu futuro? Não cabe à Igreja tomar po- tividade e através de cada um de seus nas transfor-
s1çao quanto a esta questão. Não deve esperar nem um reco- mações das instituições políticas. Mas, no meio dessas trans-
nhecimento cristão do mundo, nem temer um desmoronamento formações, é-lhe pelo menos permitido ser e permanecer uma
final da Europa. Deve limitar-se à sua missão principal, que é comunidade cristã e viver para sua própria causa. Há, com
a de anunciar o Reino de Deus. efeito, para ela, uma transformação infinitamente mais deci-
A confrontação com o comunismo pode ser positiva, pois siva e mais importante do que tôdas as mudanças de regime
o "comunismo significa, qualquer que seja nossa atítude pes- político: é a representada por Jesus Cristo, sob o duplo aspecto
soal, uma solução radical desta questão social que se vem de sua morte na cruz e de sua volta, glorificado. A Igreja vive
alongando na Europa" 4 • É uma advertência, talvez a última, no tempo delimitado por êsses dois acontecimentos. E é por-
mas também uma esperança, "desde que a Europa tenha ainda que as transformações políticas pertencem a êste período e
a fôrça de compreender esta posição de alerta e recuperar seu estão submetidas a êstes limites que se tomam significativas
atraso, modelando um socialismo em estilo próprio" s. para a comunidade cristã.
Já estão, neste primeiro trabalho sôbre o problema do Recordando a grande transformação que ocorreu, e espe-
Oriente e Ocidente, os dois principais aspectos de sua posição: rando sua revelação final, a Igreja vive nos quadros das insti-
não se pode comparàr o comunismo ao nazismo e a Igreja não tuições políticas. Considera a existência do Estado como uma
deve engajar-se (nem do lado oriental nem do ocidental) na disposição da sabedoria e da paciência de Deus. Mostra-se
luta anticomunista; a única coisa que a Igreja pode aconselhar agradecida e descobre-se responsável por êle, dentro da liber_,
dade que lhe dá sua missão. A Igreja reconhece, pois, nas insti-

2. "Espérance et responsabilité de l'Eglise", op. cit. p. 129. 6. "La communauté chrétienne dans les transformations des insti-
3. Les Allemands et nous, pp. 31-32. tutions politiques", em.: L'Eglise, Genebra, !96~; p. 1~8. Ba;rth
4. "Le message chrétien dans l'Europe actuelle", em: Les Cahiers pronunciou na Hungna uma outra conferencia, mais estrita-
Protestants, 1947, p. 9. mente teológica: "L'Eglise véritable" (Die wtrlcliche Kirche),
5. Ibid. trad. francesa em: L'Eglise, pp. 57-76 .

144 145

.1
.•.
::,
tuições do Estado (ainda que imperfeitas, provisonas e limi- de todos os homens. A liberdade da Palavra de Deus pode cha-
tadas quanto a seus objetivos) a ordem, a vontade, a interven- má-la para outra parte, quando ocorre determinado aconteci-
ção e a administração do Senhor. Devido a essa natureza imper- mento, e para decisões e tomadas de posição particulares.
feita, provisória e limitada do Estado, sua responsabilidade "A Igreja poderá sempre reivindicar, em determinados
para com êle traduzir-se-á em uma atitude de colaboração, momentos, sua neutralidade sagrada, sua situação de 'tercei-
mas também de crítica. ro', acima dos partidos; mas, por trás desta reivindicação, escon-
A ordem política transforma-se continuamente. Cada des- de-se sempre não sua liberdade, mas sua impotência: sua inca-
moronamento de uma ordem social e sua substituição por pacidade de ver, de compreender, de esclarecer e de interpretar
ouíra põe em evidência a fragilidade, o caráter caduco e a situação política - sua abdicação ao papel profético para o
limitado - em suma: a injustiça - de tôda emprêsa humana qual teria sido chamada e estava preparada" 8 • Ê por isso, acres-
dêste tipo. Esta manifestação de uma injustiça crônica lem- centa Barth, que, "se existe uma liberdade necessária da Igreja
bra-nos que vivemos em um mundo que necessita ser salvo do cristã com relação às mudanças de regime político, há, nesta
mal e que precisa esperar a revelação, através da bênção de própria liberdade, uma participação também inteiramente ne-
Deus. Nenhuma mudança política permitirá que seja edificado cessária à concretização dessas mudanças" 9 •
um mundo diferente dêste. A Igreja considerará tôda mudança Tôda mudança política dá à comunidade cristã uma oca-
política como um nôvo oferecimento da solicitude divina para sião de se deixar renovar pela Palavra de Deus. Ela
com todos os homens. Aproveitará esta oportunidade para arre- poderá atribuir, então, um valor profético à história que pre-
pender-se (tendo também sua responsabilidade envolvida no cedeu esta transformação e às conseqüências daí decorrentes.
fracasso do regime deposto), para revisar os fundamentos de Mas esta palavra profética está, em tôdas as circunstân-
sua ação, refletir, reagrupar-se e buscar uma nova forma de cias, ligada à sua missão particular: am:nc~ar a boa ~~va ~e
testemunho que corresponda à perturbação do momento. Jesus Cristo, sua promessa e suas advertencias. A partic1paçao
A comunidade cristã tem como fundamento a Palavra de da Igreja nas transformações políticas vai até êstes limites. A
Deus e é obrigada a obedecer apenas a si mesma. Permanece, Igreja não deve desejar participar a qualquer preço, e em
pois, livre e independente quando ocorre uma transformação todos os casos, elas mudanças: sua ação política pode ser apenas
política. Não pode ver, em uma instituição antiga ou nova do um aspecto de sua vida mais específica.
Estado, mais de que uma tentativa humana imperfeita, amea- Qual é o aspecto político da proclamação evangélica? "É
çada e temporária, que não poderia desviá-la de sua própria tornar visível o fato de que Deus é a favor do homem e, por-
missão, nem pela vantagem que disso pudesse retirar, nem tanto, contra sua destruição - responde Karl Barth. É, em
pelos prejuízos que pudesse sofrer. tôdas as circunstâncias, em pleno meio das transformações po-
A Igreja pode viver em todos os regimes políticos. "O líticas, tomar a si a causa do homem, que Deus reconciliou
que não pode fazer é servir a deuses estrangeiros. Não pode consigo mesmo" 10 •
ligar-se definitivamente a nenhum sistema, antigo ou nôvo, A Igreja que permanece fiel à sua missão não ~ef~n~e
como não pode opor-se completamente a nenhum regime. Não nem ataca nenhuma norma, nenhum ideal, nenhuma lei h1sto-
pode concordar com nenhum tipo de obediência absoluta, com rica nenhuma concepção política ou social ºde natureza abs-
nenhuma resistência abstrata; não pode obedecer ou resistir traí~. Não pode assumir a responsabilidade de nenhum "ismo",
senão relativamente, na medida em que assim ordene a Pala- como diz Barth, e não pode rejeitar nenhum. Isto se ap~ica não
vra de Deus" 7. apenas às doutrinas políticas, mas também aos partido~. A
Mas liberdade e independência não significam demissão. Igreja, escreve ainda Barth, "vive sempre por outra razao e
A Igreja não pode pretender conservar as mãos limpas. Toma o
parte na justiça e na injustiça, na felicidade e na infelicidade '·li
8. Op. cit., p. 185.
9. Op. cit., p. 186.
7. Op. cit., p. 182. 10. Op. cit., p. 188.

146 147
sua fidelidade não é aos de direita ou esquerda, com que em princ1p10, adepto do nôvo regime.
os quais pode hoje colaborar, mas contra os quais deverá, tal- resiste, entretanto, à tentação (mais forte que a do
vez, lutar amanhã. A política cristã deverá sempre parecer ao ~<>•.vrncv ) de juntar-se aos católicos romanos em sua opo-
mundo algo estranho, incompreensível e surpreendente, sob s1çao de princípio. Está demasiado cônscia dos êrros do pas-
pena de não ser uma política cristã 11. sado para tomar tal atitude. É, por outro lado, demasiado aber-
Esta última definição da ação política da Igreja é, sem ta à social para rejeitar totalmente o comunismo e
dúvida, uma das melhores que Barth já e sua base é a conhece as fraquezas do Ocidente o suficiente para não se
de contradição e contestação contida no Evangelho. acreditar obrigada a apoiá-lo. Barth acrescenta que não encon-
A Igreja Cristã, manifestando sua independência com rela- trou também nenhum reformado responsável que considerasse
às mudanças políticas e, ao mesmo tempo, participando do ponto de vista cristão, a escolha do cami-
delas, não perderá de vista a meta essencial de sua missão: resistência política. Teve, não obstante, a impressão
levar os participantes da velha e da nova ordem a se arrepen- de que não se calariam quando tivessem de falar. Entre a
a louvarem a Deus e a mostrarem-se humanos em sua e a direita, o caminho da Igreja reformada húngara
fé na grande mudança representada por Jesus Cristo e na espe- um caminho estreito, e os riscos de acidente são
rança de sua revelação final. - Mas recusar a alternativa não demonstra forçosa-
:Êste texto é digno de figurar ao lado de grandes traba- mente falta de caráter. Talvez seja, muito pelo contrário, prova
lhos como "Justificação Divina e Justiça Humana" e "Comu- de retidão. O que mais me convenceu, escreve Karl Barth, foi
nidade Cristã ,e Comunicação Civil". Karl Barth resumiu nêle o fato de que não encontrei reformados húngaros preocupados
o essencial de seu pensamento político. Foi a instauracão do primordialmente com a questão Leste-Oeste, com a lembrança
oomunismo na Hungria, e as perguntas muito concreta~ feitas do "horror russo" e com a questão da legitimidade ou ilegiti-
então pelos protestantes húngaros, que provocaram sua refle- midade de seu govêrno atual, mas, simplesmente, com a pró-
xão. pria tarefa positiva de sua Igreja 12 •
De volta à Suíça, publicou também um artigo sôbre o Êste artigo, publicado no Kirchenblatt für die reformierte
que viu e ouviu na Hungria, sob o título: "A Igreja Reforma- Schweiz, provocou numerosos ataques na imprensa suíça. Barth
da atrás da 'Cortina de Ferro"' (Reformierte Kirche hinter dem foi criticado por desconhecer a nova forma do perigo totalitá-
eisernen Vorhang). O artigo provocou escândalo. rio, e foi-se até o extremo de escrever que êle se declarou "ine-
A situação na Hungria não é boa, e ninguém exigiu que quivocamente em favor do comunismo russo e do bolchevis-
eu a achasse boa, escreveu Barth. Não é nem fácil nem agra- mo" 13 • Emil Brunner endereçou-lhe uma carta aberta, no mes-
dável viver atrás da "cortina de ferro". Mas o teólogo diz que mo jornal que publicou seu artigo, sob o título: "Como Deve-
encontrou lá pessoas mais calmas e mais serenas do que em mos Compreendê-lo?" (W~e soll man das verstehen?) É con-
Bâle. E as viu preocupadas com questões verdadeiras, sérias e veniente dedicar aqui largo espaço às objeções de Brunner. Elas
candentes. Os reformados húngaros não se detêm no passado resumem perfeitamente as razões da oposição a Karl Barth
nem em estabelecer culpabilidades. Estão decididos a sofrer a que se manifestou na Suíça, a partir de sua volta da Hungria.
sua ligação com o bloco oriental sem queixas nem rancor, e a Eis o que escreve Bfunner (que, nesta carta aberta, trata
só pensar no futuro. Isto não significa que a Igreja Reforma- Barth por você).
da húngara se manifeste em favor do regime. Embora se pro- "Ainda que suas motivações básicas sejam diferentes, e
nunciasse, aberta e sinceramente, em favor de certas medidas embora a doutrina comunista pareça conter certos postulados
do nôvo Estado, como a reforma agrária, conservou sua liber-
dade para, no caso de um fracasso, não aprovar outras deci-
sões. Karl Barth disse que não viu ninguém, entre os reforma- 12, Rejormierte Kirche hinter dem "einsernen Vorhang", in Kirch-
enblatt für die refonnierte Sclvweiz, 29 de abril de 1948, pp.
135-136. Tradução francesa parcial em: Réforme, 8 de maio de
1948.
11. Op. cit., PP. 189-190. 13. How my mind has changed 1938-1958, op. cit., p. 197.

148 149
de justiça social, o nacional-socialismo e o bolchevismo são Esta injustiça existe, é verdade. Mas não deveríamos esquecer
apenas variedades diferentes de uma mesma espécie: o totali- que, no Ocidente, já está sendo empreendida a luta contra
tarismo. Minha pergunta é, pois, a seguinte: a Igreja não de- injustiça social e que certos resultados já foram alcançados.
verá dizer um "não" convicto, absoluto e inequívoco ao totali- - Se estou bem informado, você continua socialista.
tarismo como tal, exatamente como disse "nãó", em sua época, o socialismo está engajado em uma luta de morte contra
ao hitlerismo, quando você apelou à Igreja para que dissesse "comunismo", na medida em que se opõe, precisamente, ao
êsse "não" absoluto? Minha pergunta implica algumas obser- totalitarismo. Os cristãos deveriam, pois, recusar-se a partici-
vações. par da luta frontal que a burguesia e o socialismo travam con-
- Sempre me espantou o fato de que, mesmo no mo- tra o comunismo totalitárfo?
mento mais crucial de sua luta contra o nazismo, você tivesse - O Estado totalitário significa a negação dos direitos
sempre evitado o problema do totalitarismo, enquanto, segun- do homem, ou seja, a perda dos direitos originais que lhe
do entendo, o Estado totalitário é, eo ºipso, injusto, desumano haviam sido conferidos por Deus quando da citação. O Estado
e ateu (gottlos). totalitário é, pois, ateu e antidivino per definitionem, pois
- Estou igualmente espantado com o modo pelo qual reivindica para si a totalidade do homem. É de sua essência,
você e seus amigos substituem o problema do Estado totalitá- fundamentalmente atéia e antidivina, que decorrem tôdas as
rio por duas outras questões, nas quais posso enxergar apenas atrocidades do totalitarismo.
uma camuflagem do verdadeiro problema: a questão do Leste- - Dizer que o Estado totalitário comunista cumpre cer-
Oeste e a do comunismo. Se se tratasse, com efeito, apenas de tos postulados sociais que o cristão pode aprovar é repetir o
um "problema Leste-Oeste", a Igreja faria melhor não se mesmo discurso que se fêz, antigamente, sôbre o nacional-so-
imiscuindo demasiado ostensivamente nas discussões dos polí- cialismo, quando se desejava que os cristãos aprovassem o re-
ticos. Pois é uma questão sôbre a qual a Igreja, como tal, não gime devido às suas "magníficas conquistas sociais". Mas não
é obrigada certamente a pronunciar uma palavra decisiva. Mas sabemos, como cristãos, que o diabo dá sempre um jeito de
não se trata aqui de uma oposição entre Oriente e Ocidente. misturar à mentira elementos de verdade?
Trata-se, isto sim, do fato de que um sistema po1ítico escraviza - Seu amigo Hromadka pretende que o comunismo é
os povos da Rússia, do Báltico, da Polônia e dos Bálcãs, man- uma necessidade histórica, pois a democracia prova sua inca-
tendo-os sob seu guante, graças a governos fictícios (Scheinre- pacidade de sobreviver, e é por isso que a Igreja deveria apro-
gierungen) . vá-lo. Foi exatamente o que escutamos nos piores momentos
A substituição do verdadeiro problema (o do totalita- do regime hitlerista. Êste determinismo histórico conduz a uma
rismo) pelo "problema comunista" tem fundamentos um pouco demissão da ética diante da realidade. Desde quando o cristão
melhores, embora não seja menos perigosa. É verdade que o capitula diante da "necessidade histórica"?
cristão, que acredita na communio sanctorum e celebra a co- - Dizem também, você e seus amigos, que o combate de
munhão, não pode opor-se, pura e simplesmente, ao comunis- princípio contra o "comunismo" é empreendido pela Igreja
mo. Entre as numerosas variantes dêste, pode haver as de Católica. Isto seria uma razão para que os protestantes não
cunho cristão. Mas tratamos atualmente de um "comunismo" participassem dêle. É verdade que a Igreja romana leva a cabo,
que é a hipóstase (Erscheingungsform) do Estado totalitário. dêste modo, uma política de poder. Mas, por declarar ela que
O Estado totalitário conseqüente deve ser "comunista", o Estado totalitário, seja vermelho ou marrom, é incompatível
pois é inerente à sua natureza uma sujeição da totalidade dos com a fé cristã, a Igreja Evangélica deve colocar-se de parte,
homens e da vida. A questão que se coloca à Igreja não é saber simplesmente porque é a Igreja Católica quem o diz? Durante
se deve recusar o "comunismo", mas se deve dizer um "não" o Kirchenkampf, católicos e protestantes alemães não se colo-
fundamental ao Estado totalitário. caram lado a lado? -
- Você baseia sua recusa a uma rejeição fundamental do - Finalmente, há na Hungria um grande número de bons
"comunismo" na existência da injustiça social no Ocidente. reformados que se opõem à colaboração com o regime".

150 151
Em suma, Emil Brunner denuncia a incoerência da posi- Na como no resto da o "monstro
de Karl Barth, e pede-lhe "uma resposta clara". oriental", como o denomina Brunner, não provoca senão mêdo,
Duas semanas mais tarde, surgiu a resposta de no- ~'"''"'v~cu e com exceção dos membros dos partidos comu-
vamente no Kirchenblatt fiir die reformierte Tinha o não constitui uma tentação para ninguém. Ninguém,
mesmo título que seu célebre manifesto teológico-político de é tentado a aprovar seus atos e a colaborar com êk
1933: Theologische Existenz heute! is "ª'.lla~oau é, portanto, muito diferente da de 1939-1945. Não
Barth começa por uma afirmação de ordem geral: pronun- é necessário que a Igreja consigne em uma profissão de fé o
ciar-se na forma de profissão de em uma situação política todo cidadão pode ler diàriamente em seu jornal, e o que
é exigido à Igreja tão-somente quando há urgên- muito bem o Papa e o presidente Truman! "Não,
cia e quando sua responsabilidade espiritual está envolvida. escreveu Karl Barth, quando a Igreja faz profissão de
Não é forçada a pronunciar-se de modo intemporal sôbre deter- avança com temor e tremor contra a corrente, e não em seu
minado sistema ( êsses "ismos" que Barth recusa em mais de favor" l<í,
uma , mas sôbre realidades históricas consideradas Além disso, para que e a quem serviria hoje tal declara-
luz Não tem compromisso com nenhum direito natu- ção? Seria inútil aos europeus ocidentais e aos americanos, que
mas unicamente com seu Senhor vivo. Por isso, a Igreja não têm necessidade da voz da Igreja para se sentirem seguros
não fala em nome de "princípios". Faz julgamentos espirituais, em sua disputa com o comunismo. Também não serviria para
em casos específicos. Recusa tôda sistematização da histórica instruir os pobres russos e comunistas em geral, que não com-
e de sua própria participação nesta história. Conserva que a Igreja ocidental, que aceitou em todos os
sempre a liberdade de apreciar de maneira nova uma situacão um tão grande número de "totalitarismos", erga agora
nova. Se falou ontem, pode calar-se hoje. A melhor forma, da sua voz contra o dêles. Finalmente, não serviria como socorro
Igreja preocupar-se com a unidade e a continuidade de sua algum às igrejas orientais, para as quais nossas declarações,
existência teológica consiste em perseverar em sua vontade de por mais "apaixonadas" que fôssem, como o desejava Brunner
viver sempre de modo nôvo uma existência teológica "de hoje". terrivelmente gratuitas.
Essa urgência, condição de tôda tomada de posição polí- Tôdas essas razões explicam porque a Igreja deve man-
tica da Igreja, existiu em 1933 e nos anos seguintes. Não de- ter-se tranqüila diante do conflito atual. Pelo menos no mo-
corria do fato de que o nacional-socialismo era totalitário nii- mento. Pois se uma "desgraça espiritual concreta" (eine kon-
lista, bárbaro, anti-semita, ou por ser êle a última ma~ifes­ krete geistliche Bedriingnis) se manifestar novamente, nós nos
tação do militarismo obcecante da Alemanha, desde 1870. Se questionaremos de modo concreto e pegaremos nossa resposta
a Igreja teve de tomar posição contra o nazismo foi porque com nossa própria pessoa. Será tempo, então, de fazer nossa
êste exercia um encanto mágico ( Zauber), com a finalidade profissão de fé, em tais circunstâncias. Não se tratará, absolu-
de dominar nossas almas, de fazer-nos crer em mentiras e par- tamente, de seguir regras intemporais (zietlose Richtigkeiten)
ticipar de sua injustiça. Diante dêste ateísmo disfarçado (mas- como desejava Emil Brunner. Esta é a resposta de Karl
kierte Gottlosigkeit), escreveu Karl Barth, tratava-se, para a Barth 17.
Igreja, de uma questão de vida ou de morte. Barth reserva-se, pois, a possibilidade de falar ou de se
Há urgência semelhante, hoje, em face do comunismo? A calar, segundo as circunstâncias, e de um ponto de vista pura-
história repete-se tão depressa que basta aplicar hoje a receita mente espiritual. Recusa-se a condenar o comunismo, a "uivar
de ontem? com os lôbos". É interessante saber, a propósito disso, que
menos de três anos mais tarde, em uma carta datada de 30 de

14. Wie soll man das verstehen?, in l(irchenblatt für die reformierte
Schweiz, 10 de junho de 1948, pp. 180-184. 16. Theologische Existenz "heute", in KirchenbZatt für die reform-
15. Quase o mesmo título, porque o heute é intencionalmente pôsto ierte Schweiz, 24 de junho de 1948, p. 196.
entre aspas. 17. Op. cit., PP. 195-197.

152 153
abril de 1951 e dirigida a Frédéric Joliot-Curie, êle recusou-se, rios do direito natural, êle é incapaz de incluí-lo, verdadeira-
do mesmo modo, a endossar as metas e métodos do Conselho mente, em uma visão teológica das realidades políticas, ou seja,
da Paz, que se caracterizava por uma atitude antiamericana em uma visão que traduzisse a unidade cristológica do Evan-
tão sistemática quanto a do anticomunismo que desejava com- gelho e da natureza, da Igreja e do Estado. Detém-se no tot?-
bater. Não aceitou, entretanto, que o documento fôsse publi- litarismo, examina-o em si, como um princípio oposto à fé
cado: os que conheciam e compreendiam sua posição não cristã. Compara, de certa forma, os dois princípios, os dois
tinham necessidade de uma tal declaração; seus adversários "ismos", como os chama Barth. Segundo sua concepção bi-
não eram dignos dela. É interessante saber também que, numa polar, êle os cmitrapõe, como teria aproximado, em outra cir-
carta datada de 17 de outubro de 1950 e dirigida ao pastor cunstância, por exemplo, humanismo e cristianismo.
Wolf Dieter Zimmermann, de Berlim, que lhe solicitava um Karl Barth, pelo contrário, rejeita esta visão dupla. O
pronunciamento sôbre o rearmamento da Alemanha, Barth Evangelho é favorável à natureza. Cristo assumiu a natureza,
escreveu que compreendia muito bem que as autoridades dos julgou-a e reconciliou-a consigo mesmo. O Evangelho, englo-
Estados Unidos, da Grã-Bretanha ... e também da Suíça, aspi- bando a natureza, tomou-se o único pólo da realidade. Veículo
rassem à melhor defesa militar possível contra uma eventual da reconciliação autêntica, a Igreja anuncia a inserção do Evan-
agressão soviética 18. gelho no mundo, e, portanto, também no Estado. Em tôdas as
A argumentação de Brunner impresiona, à primeira vista, formas de Estado, mesmo a comunista!
pela sua coerência. No plano puramente político, parece mes- Esta concepção é a mais ampla, a mais generosa que se
mo bastante eonvincente e compreendemos que seu ponto de possa imaginar: nada no mundo, na natureza e no Estado,
vista tenha sido análogo ao da imprensa em geral, da opinião opõe-se, em principio, ao Evangelho. Nada é mau em si, pois
pública e das autoridades suíças. Mas seria resumir demais o Cristo veio restaurar tudo. Não há razão alguma, pois, para
parar neste ponto. Pois a polômica Barth-Brunner relaciona-se combater o comunismo porque é totalitário e porque êste tota-
com uma divergência fundamental. Não política, mas teoló- litarismo é contrário a alguns valôres (apenas alguns!) do di-
gica. Pois não é apenas a aceitação e a recusa da experiência reito natural definido pel~ civilização ocidental.
comunista que estão em jôgo nesta disputa, mas a compreensão Mas se o Estado quer dominar o Evangelho e arrastar a
das realidades mundanas (o homem, a ciência, a sociedade, a Igreja atrás de si (o que ocorreu no tempo do nazismo), cria-
economia, a cultura ou a política) expressas pelas duas teolo- se uma tensão, uma "desgraça espiritual concreta" manifesta-
gias diferentes. Brunner não pode desfazer-se de uma con- se: diante dêste Estado, a Igreja faz sua profissão de fé. Em
cepção bipolar: de um lado a natureza, elo outro o Evangelho. outros têrmos, coloca as coisas em seus devidos lugares. Não
A natureza tem uma existência autônoma. É significativo que se trata, mais uma vez, de uma tomada de posição de prin-
Brunner diga que o Estado totalitário acarreta a perda dos cípio (contra o oomunismo, ou o capitalismo, ou o imperia-
direitos originais, conferidos por Deus ao homem quando da lismo), mas de uma profissão ele fé proclamada em uma de-
criação. Quando é ao homem reconciliado, ao homem restau- terminada situação. O Evangelho não se opõe nem se amolda
rado, que Barth visa! a nenhum "ismo" . Pode ser possível a um cristão viver sua
É verdade que Brunner esforça-se para aproximar a natu- fé em um Estado totalitário, pode parecer impossível fazê-lo
reza do Evangelho. Mas os dois pólos se conservam autônomos em um Estado dito democrático. Isto depende das realidades
nesta tentativa. Podemos verificar o modo muito político, muito históricas. Foi isso que Barth quis dizer em sua resposta a
natural ou racional, como se preferir que êle utiliza para desen- Emil Brunner.
volver sua argumentação. Brunner isola, assim, o fenômeno É preciso mencionar, ainda, dois textos relativos à situa-
"comunismo". Submetendo-o, enquanto totalitário, aos crité- ção da Igreja na Hungria. O primeiro é resposta a um ar-
tigo assinado "Thomasius", publicado no Basler Nachrichten.
Esta resposta, assinada conjuntamente por Karl Barth, Walter
Carta citada por Arthur Frey: Kirchenkam.pf?, Zurique, 1951, Lüthi, de Berna, e Eduard Thurneysen, apareceu em 9 de
pp. 23-24.

155
dezembro nas colunas do diário de "As manifestamente o comunismo. Sabeis que, quanto a êste
Igrejas e o regime comunista da político, não desejo vigiar-vos; mas, de
kommunistiches Regime in sob podemos discuti-lo, como cristãos . Creio
a forma de nove teses, que retomam certos pontos lem- que estais fazendo de vossa
brados a propósito da polêmica com Brunner. As comunida- -~unuuurn"-' um elemento da mensagem cristã, um
des húngaras, diz o texto, não se preocupam com o interêsse que (como sempre aconteceu com a introdução de
de uma "colaboração" nem com o problema de uma "resis- trinas estrangeiras") começa a afastar tôdas as outras,
tência", mas com o melhor conhecimento da Es- reis agora interpretar a partir dela todo o Credo e
critura. O que Thomasius chama Bíblia. Em outras palavras: estais a ponto de cair na forma
vontade da Igreja de apagar um passado durante o de ideologia que foi outrora (com outras características) dos
estreitamente ligada às potências e classes sociais no "cristãos alemães". O resultado dêste procedimento foi um
e de proceder à sua própria renovação interior; é também êrro evidente: a afirmação de que havia uma manifestação
seu esfôrço visando à autonomia e à de uma de Deus nos acontecimentos da História, que foi
forma de vida comum (Zusammenleben), exteriormente supor- considerada no mesmo plano da Palavra de Deus em Jesus
tável, da Igreja com o Estado comunista Cristo, e interligada a esta. Estou persuadido de que não
compreender tudo que vai além disso . Acreditamos, entre- isto que desejais, nem o que vossos amigos desejam.
tanto, que as palavras e as expressões - como , com a melhor disposição de espírito, não posso
precisamente · - que nos espantam, na circunstân- estais, prestes a fazê-lo E é apenas vossa
cia, um sentido e uma significação incontestáveis. relativa de nossas experiências na Europa Ociden-
Mas esta vontade de compreender, de não condenar a e, especialmente, na Alemanha, que vos impede de aper-
priori, não priva Karl Barth de sua lucidez. Embora acredi- ceber-se disso ... "
tando ser inútil juntar sua voz a inúmeras que, no Ocidente, Esta é a essência da carta ao bispo Berecky. Suscita duas
condenam o comunismo, considerou aconselhável dirigir, certa rápidas observações. A primeira diz respeito ao sentido da
feita, ao arcebispo húngaro Albert Berecky, uma carta que missiva: apesar de sua recusa em participar de uma cruzada
constitui séria advertência . anticomunista, Barth não é um "teólogo progressista" 21 , assim
Karl Barth observa que o comunismo termina por exercer, como não foi um "cristão alemão". Predomina aqui a mesma
tanto na Europa Oriental como na Ocidental, uma forte se- preocupação que o animou durante o nazismo: salvaguardar
dução sôbre muitos milhares de cristãos, operários ou intelec- a pureza do Evangelho .
tuais. Esta sedução conseguiu perturbar, em alguns, a pureza A segunda refere-se às circunstâncias que cercaram a
da fé. Foi sôbre isto que escreveu ao bispo Berec:ky 2o. Veja- publicação do texto. Escrita a 16 de setembro de 1951, esta
mos o que lhe disse . carta era pessoal, e deveu-se a uma indiscrição sua publica-
"Protesto, aqui no Ocidente, contra a crítica que vos fa- ção, seis meses mais tarde, na revista !unge Kirche. Não
zem de servilidade diante do regime comunista. Faço isto não portanto, o próprio Barth quem a divulgou 22 • Isto nos parece
apenas porque sei que não é esta vossa intenção, mas tam- em perfeito acôrdo com sua atitude política. Sua tomada de
bém porque acredito que a pergunta que vos .deve ser feita posição foi uma advertência, que não poderia ser feita senão
é muito mais séria. Ei-la: não estareis prestes a incorrer em na Hungria. Pois foi apenas na intenção desta Hungria re-
sério êrro teológico'? Não quero dizer com isso que aproveis formada (para a qual êle tivera, até então, tantas palavras
de encorajamento), que tomou um dia a liberdade de redigir
19. Barth é o autor desta resposta. Charlotte von Kirschbaum con-
signou-a dêste modo em sua Bibliographia Barthiama, Zurique,
1957. 21. "Lettre à un pasteur de la RDA", Genebra, 1959, p. 14.
20. Junge Kirche, in Protestantisches Monatsheft, Oldenburgo 15 de 22. 11: interessante observar que não figura na Bibliographia Barth-
março de 1952, pp, 141-142. iana.

156 157
êste ale.rta teológico. A divulgação da mensagem na Europa Horva.t~ manifestando a inquietação das Igrejas com a notícia
Ocidental teria podido dar a impressão de um alinhamento p~1sao de pastôres reformados. Em uma resposta datada
seu à opinião política unânimemente professada. O próprio de b de_ março, o ministro húngaro, chefe do Departamento
significado da carta mudaria: ela perderia sua fôrça de con- de. Questoes Eclesiásticas, declarou que, por intervencão
testação . E mais uma última palavra relativa à Hungria. Karl d.ms dos pastôres voltariam às suas famílias num p~azo su;,
Barth calou-se por ocasião do levante de 1956. Interrogado, v111te e quatro horas 2s . ' e
a propósito disto, no sínodo jurassiense de Tavannes, 110 ou-
tono de 1956, respondeu que não acreditava ter chegado o
momento de fazer uma declaração 23 • Foi acusado de ser um
"impenitente", ao contrário de um Jean-Paul Sartre "ane-
pendido" 24 •
Foi um momento crucial no itinerário político de Barth.
Tratava-se, para êle, de saber se, mesmo em um caso limite
como o da Hungria, permaneceria fiel à sua atitude política
de sempre. Ou se a brutalidade da repressão soviética o in-
citaria a uma espécie de rejeição, que permitiria a seus adver-
sários desacreditar quase tudo o que tinha dito e feito até
então ...
De uma atitude política de alcance profético, não per-
maneceria senão uma inverossímil confusão. Achamos que
Barth não se calou de bom grado e que seu silência foi ainda
mais penoso para êle do que para os que esperaram do teó-
logo um julgamento semelhante ao do filósofo Sartre.
Este silêncio não exclui, todavia, a possibilidade de in-
tervenções no domínio prático. Assim sendo, a 11 de março
de 1957, por exemplo, Karl Barth uniu sua assinatura à do
pastor Marcel Pradervand, secretário-geral da Aliança Refor-
mada Mundial, em um telegrama dirigido ao ministro J anos

23. Jean-Marc Chappius, "Karl Barth et la Hongrie", in La Vie


Protestante, 8 de fevereiro de 1957.
24. Haw my mind has changed 1938-1958, op. cit., p. 204. Na "Carta
a um Pastor da RDA", Barth recorda (p. 10) que um teólogo
americano lhe colocara publicamente a seguinte questão: "Why
is Karl Barth silent about Hungary?" Eis o que êle escreveu a
respeito: "Nada respondi na época. Estávamos no momento em
que a tempestade Leste-Oeste provocava mais uma vez, entre
nós, violentos abalos. oro tôda evidência, não se tratava de uma
pergunta sincera. Não era ditada pela ansiedade de um cristão
em busca de comunhão com um outro cristão. Emanava de um
astucioso político do Ocidente que buscava, ao modo dos políti-
cos, preparar uma armadilha para um adversário, querendo ou
me abrigar a professar seu anticomunismo primário, ou desmas-
carar em mim um cripta-comunista, a fim de me desacreditar 25. Entrev.ista com Karl Barth, in La Vie p ro t es t an t s,
enquanto teólogo. O que podia eu responder?". O teólogo em de rn5,.7. 22 ele março
questão era Reinhold Niebuhr.
KARL BARTH - 11
158 159
Capítulo III

A IGREJA ENTRE LESTE E O OESTE

KARL BARTH PUBLICOU EM 1949 seu trabalho mais


importante sôbre o problema do comunismo: "A Igreja entre
o Leste e o Oeste" (Die Kirche zwischen Ost und West), de-
senvolvido a partir de uma conferência pronunciada na cate-
dral de Berna, por convite do conselho sinódico, em 6 de fe-
vereiro de 1949 .
O antagonismo entre Leste e Oeste, diz Barth, teve ini-
cialmente o caráter de um conflito de poder, afetando a polí-
tica internacional. As duas potências em questão são os Es-
tados Unidos e a União Soviética, ambas cercadas por uma
zona intermediária, uma espécie de cinturão de segurança,
formado por outros Estados mais ou menos importantes, em
p1incípio independentes . Amos e senhores de nossa velha Eu-
ropa, e, com isso, de todo o planêta, 1 os Estados Unidos e
União Soviética falam muito da "comunidade livre dos povos"
e da "paz". E, embora não se possa ver muito bem o que se
deve entender, em um e outro, por essa "comunidade livre dos

1. Seria preciso levar em conta, mais tarde, evidentemente de modo


muito diverso, a dupla contestação gaullista e chinesa, bem como
o advento dos países do Terceiro Mundo.

161
povos", não há nenhuma razão, pelo menos no momento, para
não crer que ambos querem a paz e não a guerra. 2
1
Que pensa a Igreja de tudo isso? Acontece que habitamos
Como cristãos, podemos nos assustar com a evolução
na z?na intermediária dominada pela América . Deus quis que
política atual. Mas ela não poderia verdadeiramente nos sur-
nascessemos na Suíça, na Europa Ocidental. Mas isto não
:r:reen_de~ .e horrorizar~ acontecimentos como êstes fazem parte
significa que Êle nos peça que cedamos diante dos precon-
aa h1stona natural deste mundo, onde o Reino de Deus e a
ceitos ocidentais e, em particular, diante da pressão de nosso
soberania de Jesus Cristo foram proclamados mas não se tor-
meio social. Pois, quando se pretende que a Igreja deveria
naram evidentes nem manifestos.
escolher entre os dois sistemas antagônicos, exprime-se uma
_Por o~tro lad?, deve~os nos recusar a tomar parte neste opmmo ocidental, mas não, certamente, uma opinião cristã.
conflito. Nao nos diz respeito, absolutamente. A única coisa que
Passou-se o tempo em que o Mundo Ocidental estava de
p~de1:11os ~azer .é enéorajar tôdas as medidas capa:ces de di-
adotar atitude semelhante, e seguia, sem resistência as in-
mmmr a mtens1dade da tensão atual. Ainda que esta tensão junções precisas da Igreja. E desenvolve-se, no Leste, 'um zêlo
a,carretasse as piores con~eqüências para a Suíça, não pode-
se~elhante para tentar persuadir a Igreja a adequar sua ma-
namos defender outra coISa senão a neutralidade helvética e
neira de pensar e sua opinião às idéias, tendências e aspira-
ao mesmo tempo, nossa liberdade cristã: a causa de Deus ~
ções do comunismo.
do homem, pisoteada na vida dos povos .
A Igreja não deve deixar-se encerrar em um falso di-
Finalmente, será dar prova de lucidez cristã examinar
lema . A causa de Deus não é nem a do Ocidente nem a
conservando no espírito êste primeiro aspecto do conflito Les-
do Oriente. s
te~Oeste - s.e º. aspecto ideológico desta confrontação per- . P.or ~ue, perguntam a Karl Barth, não falais agora, como
mite-nos, vere1ade1ramente, explicar a oposição dos dois gran-
flzeste1s ha dez anos contra o nazismo? Há dez anos, responde
des colocando-a em têrmos de branco e prêto, de anjo de luz
o teólogo, tratava-se de uma verdadeira ameaça política e
e cúmplice de Satã! i
espiritual, de uma doutrina que procurava impor-se, sob o as-
O conflito entre Leste e Oeste não é, com efeito, apenas
p.ecto de um . cristianismo falsificado. Naquela época, é pre-
de potências, mas também entre duas concepções diferentes
ciso que se diga dêste modo, era necessário que a Igreja dis-
~o home~ e, em particular, da organização econômica, polí-
sesse um "não' decidido. Querem fazê-la repetir hoje êste
tica e social onde êle vive: o conflito entre dois poderosos
"não", aplicando-o aos países comunistas. Como se, na his-
princípios e sistemas espirituais, entre duas ideologias. O Oci-
tória, os acontecimentos se repetissem de modo tão simnlista.
dent~ critica o Oriente pelo seu materialismo, sua destruição 1
"A I greJa
. e,' e deve permanecer, a Igreja, e, conseqüente~
da hberdade, seus métodos policiais, em suma: por sua desu-
mente, não lhe é permitido calar-se de maneira incompatível
manidade, baseada sôbre uma falsa fé. O Oriente critica o
com sua fé, dizíamos há dez anos. Hoje, declaramos: a Igreja
O~idente por submeter o homem ao domínio do dinheiro, hipõ-
é, e deve permanecer, a Igreja e, conseqüentemente, não lhe
cntamente camuflado sob princípios morais e relioiosos e sob
é permitido falar de modo incompatível com sua fé. Dizemos
uma democracia formal; em suma, por sua des:manidade e
isto hoje precisamente pelas mesmas razões de ontem". 6
sua fé hipócrita . 4
Vermelhas ou marrons, argumentam também, todos os
totalitarismos se equivalem. Mas aquêles que toleram o dita-
2. "L'Eglise entre l'Est e l'Ouest" (Die Kirche zwischen Ost unà dor Franco e participam, de bom grado, dêste totalitarismo,
11rest, Hl49), Genebra, 1949, pp. 7-12.
3. Op. c~t .. pp. 12-17. Em How my minà has changed 1938-1948 nas combinações estratégicas de sua futura frente contra o
(?P· c.1t., p. 203), Barth retoma a mesma idéia: "Que gênero de Leste, não podem endereçar-nos suas censuras. Para ter valor
f~losof1a ocidental e ~e ética política (e infelizmente de teolo- cristão, uma condenação ao totalitarismo deveria ser dirigida
g.ia) eram aquelas CUJa sabedoria transformava 'o homem cole-
tivo' d(I Leste em anjo das trevas e o organization man do Oeste contra tôdas as suas formas.
em anJO da luz?"
4 .. Op. cit., pp. 17-23.
5. Op. cit., pp. 23-27.
6. Op. cit., p. 30.
162
163
Sim, pode-se dizer muitas coisas contra o Leste, por causa Finalmente, há uma última diferença entre a situação atual
de seu totalitarismo e dos métodos que implica. Mas lembre- e os acontecimentos de 1933: ninguém disse, até aqui, em
mo-nos de que temos uma tendência a responsabilizar a Rússia que deveria exatamente consistir a tomada de posição cristã
moderna (devido ao seu comunismo!) por um despotismo contra o Oriente. Não poderia consistir, hoje, senão numa
oriental secular. E não esqueçamos, também, as atrocidades declaração barata, supérflua e inútil. "Barata porque a sim-
da Revolução Francesa, nem os horrores da Idade Média. ples repetição das queixas do Ocidente contra o comunismo
Pois, se sabemos estabelecer distinções a propósito da Revo- Oriental não exige nenhum esfôrço espiritual, nem custa nada;
lução e de nosso passado "cristão", é normal que aprendamos porque o caráter profundamente desagradável da
também a fazê-las, a propósito do comunismo. Diferente- causa do Leste salta de tal modo aos olhos que não vale a
mente do nacional-socialismo, o comunismo soviético é ani- pena, verdadeiramente, dizer novamente, do ponto de vista
mado por uma idéia construtiva: trata-se de resolver, Barth cristão, o que todos os nossos jornais repetem à exaustão,
faz lembrar novamente aqui, uma questão séria e candente, todos os dias que Deus dá; e, finalmente, inútil, porque to-
à qual não nos dedicamos ainda com energia bastante: a mando esta posição não causaríamos a menor impressão no
questão social. "Enquanto existir, no Ocidente, uma 'liber- feroz parceiro do Leste, nem levaríamos qualquer ajuda aos
dade' que é usada para provocar crises econômicas, uma 'li- que sofrem as conseqüências do problema, e porque tal to-
berdade' que permite lançar trigo ao mar quando as pessoas mada de posição é exatamente a última coisa que as Igrejas
morrem de foip.e, nós não temos o direito, como cristãos, de do Leste esperam de nossa parte". io
dizer um não incondicional ao Oriente". 7 Há dez anos, tomar posição contra o nazismo era fazer
Por outro lado, ao contrário do nazismo, o comunismo uma profissão de fé cristã legítima e necessária. Hoje, con-
russo e oriental proclama-se abertamente ateu. Não procura denando o comunismo, poderíamos apenas nos tornar in-
alterar o cristianismo para cobrir-se com uma máscara cristã. térpretes duvidosos de certas opiniões políticas confusas e con-
Nada tem da falsa profecia. Não é anticristão, é friamente testáveis do Ocidente. A nossa profissão de fé cristã, nas atuais
"acristão" . 8 circunstâncias, consiste em nos recusarmos a tomar êste ca-
Que deve a Igreja fazer? "Jamais ouvi dizer que, diante minho. 11
dos 'sem Deus' e em resposta ao desprêzo, à opressão e à Mas isto não significa que a Igreja deva permanecer in-
perseguição, a cristandade deva reagir à fôrça de protestos, e diferente à evolução política atual. Já que o momento não é de
fazendo apelos à luta política". 9 Onde está, além disso, o partir para a guerra, a Igreja deve desempenhar seu papel na
"Ocidente cristão", que poderia, com boa consciência, fitar nos construção e na reconstrução do Ocidente. Êste papel é ca-
olhos o Oriente não cristão? Onde o Oriente hauriu seu ateís- pital, se consideramos que, num campo como no outro, há
mo, senão em nossa filosofia? Será que êste ateísmo difere quem manifeste intenções positivas e construtivas. Dos dois
grandemente, no fundo, desta filosofia do homem das ruas lados fala-se de "humanidade'', pois há acusações mútuas de
que impregna tôda nossa mentalidade, que é exposta em qual- desumanidade! Fala-se de "democracia", de "liberdade", de
quer um dos nossos jornais e que penetrou, profundamente, "justiça", de "paz". Contudo, parece que o Oriente fala de
sob uma forma atenuada, é verdade, até no seio de nossas uma justiça ainda dificilmente conciliável com a liberdade, e
Igrejas? Nada autoriza a Igreja, portanto, a falar do Ocidente que o Ocidente fala de uma liberdade ainda dificilmente con-
cristão e a pregar a cruzada contra o Oriente. ciliável com a justiça" . 12
Neste diálogo, onde uma paz explosiva é invocada por
ambas as partes, a Igreja Cristã tem o privilégio de anunciar,
7. Op. cit., pp. 34-35.
8. Na "Dogmática" (I/1, p. 72), Barth escreve assim: "Não se po-
deria ver no primitivismo asiático da ideologia bolchevique uma
concorrência qualquer, mesmo de longe, com a pregação da 10. Op. cit., p. 40.
Igreja". 11. Op. cit., 11P· 27-41.
9. Op.cit., p. 36. 12. Op. cit., p. 43.

164 165
em conformidade com sua fé, a paz de Deus, dêste Deus que gundo ponto é sua intolerância, e a de seus amigos de ten-
vela pela paz humana total. Conservando sua liberdade para dência confessante, para com as correntes de pensamento di-
anunciar esta paz, a Igreta é talvez a última oportunidade que ferentes ou opostas à teologia dialética. Ê verdade que buscar
temos de ver uma Europa orientada não para Leste ou Oeste; livremente o significado do Evangelho, para saber o que é
mas, uma Europa livre . "ser cristão" (e proclamá-lo!)' seria arriscar-se, necessària-
Neste diálogo, onde há acusações de falsa fé de parte a mente, a entrar em conflito com a Igreja e a teologia esta-
parte, a Igreja só pode comprometer-se com a verdadeira fé. belecidas, sobretudo em uma Igreja de Estado como a de
O conflito entre Leste e Oeste só deixa uma saída para a Berna: uma profissão de fé contra uma lei eclesiástica!
Igreja: que aprenda a viver da autêntica e verdadeira fé, a fim A situação deteriorou-se ao ponto do conselheiro ber-
de proclamá-la, com tôda boa consciência, dos dois lados da nense Markus Feldmann, chefe do Departamento de Instrução
barricada. 13 Pública e dos Cultos, registrá-la no relatório de sua gestão,
Este é o conteúdo de "A Igreja contra o Leste e o Oeste". durante o exercício de 1949. 16 Êste relatório foi discutido, a
Aí encontramos vários pontos já mencionados a propósito da 13 de setembro de 1950, no Grande Conselho. Feldmann res-
polêmica com Emil Brunner. Não tememos repeti-los, para pondeu, então, a quatro interpelações de deputados relativas
não privar esta exposição de sua coerência e lógica. Mas o às questões eclesiásticas. Sua resposta 17 coloca diretamente
ponto alto do trabalho, um passo avante com relação aos textos em questão Karl Barth, ao qual recrimina principalmente por
precedentes, é· quando diz que a Igreja deve intervir no sentido sua "surpreendente reverência a Stálin" (em "A Igreja contra
de uma aproximação entre os dois blocos, em favor da paz o Leste e o Oeste", Barth havia, com efeito, declarado: "Seria
mundial. Ela deve lembrar ao Ocidente que "o anticomu- preciso ter perdido todo o bom-senso para colocar em pé de
nismo de princípio é um mal maior que o comunismo em igualdade ( ... ) um homem como Joseph Stálin e os charla-
si". 14 Para falar de modo ainda mais positivo: deve defender tões que dirigiram a Alemanha nazista". is)
"o socialismo contra o Ocidente e o individualismo contra o Mas êste ataque não é o mais grave. Pois a intervençáo
Oriente". 15 Mas não poderia contribuir para o estabelecimento de Feldmann visa ainda a marcar os limites da confissão de
da paz entre os povos, da justiça social e da liberdade humana fé e da teologia. Colocando-se em defesa da tolerância re-
se não anunciasse precisamente a paz de Deus, sua justiça ligiosa, e invocando o respeito à Constituição bernense, êle
e sua liberdade, fundamentos de tôda paz, de tôda justiça e combate de fato, tôda tentativa para afirmar a Igreja de Jesus
de tôda liberdade . Cristo. . . além dos limites definidos pelo Estado. É verda-
Esta conferência provocou um vivo mal-estar no seio do deiramente da competência de um magistrado dizer à Igreja o
protestantismo suíço e, em particular, no cantão de Berna. que deve ser? Pela bôca de Feldmann, a democracia bernense
Houve verdadeiras polêmicas . As posições cristalizam-se em manifesta, no fundo, pretensões que lembram estranhamente
tômo do pensamento de Karl Barth e do que Emil Brunner as do Estado alemão no meio da década de 30. É certamente
havia exposto, após a viagem à Hungria. Os adversários de o esbôço de um verdadeiro Kirchenkampi suíço.
Barth atacam-no, sobretudo, em dois pontos. O primeiro (o Barth tomou conhecimento destas declarações através da
mais evidente), é sua indulgência para com o comunismo e imprensa bernense. Reagiu imediatamente e, a 16 de setem-
a União Soviética. Mas suas palavras têm sido, freqüente- bro, enviou a Maikus Feldmann uma carta, 19 na qual mani-
mente, deformadas e exageradas: fizeram dêle um admirador
de Stálin e um perigoso agente comunista no Ocidente, sus- 16. Todos os textos citados a propósito dêste conflito foram publi-
peitando até que fôsse membro do Partido Operádo! O se- cados pela Chancelaria de Estado de Berna em urna brochura
destinada aos membros do Grnx1de Conselho, sob o título Kirche
und Staat im ,Kanton Bern, Berna, 1951. Extrato do relatório,
p. 11.
13. Op. cit., pp. 41-48. 17. Oç. cit., pp. 12-18.
14. How rny mind has chainged 1938-1948, op. cit., p. 201. 18. "L'Eglise entre l'Est et l'Ouest", pp. 33-34.
15. Hurnanisrnus, in Theol. Studien, n<? 28, 1950, p. 9. 19. Kirche und Staat im Kanton Bern, pp. 21-23.

166 167
festa o desejo de encontrar o magistrado e discutir com êle, os dois homens. Quanto ao conflito eclesiástico, desapareceu
"de homem para homem". Feldmann respondeu nove dias mais pouco a pouco, graças, principalmente, à ação conciliató~·ia
tarde, 20 declarando aceitar a discussão, com a condição de de Adolphe Kuenzi, futuro presidente da Federação das Igreias
que seus principais temas fôssem fixados por escrito. Pela Protestantes da Suíça. . . e com o ingresso de Feldmann no
volta do correio, Barth fêz então aos conselheiros de Estado Conselho Federal, em 19 51 . 26
sete perguntas relativas aos ataques pessoais de que foi alvo, É preciso que digamos ainda algumas palavras, concluin-
a propósito de sua posição política e do direito à expressão do êste capítulo, a respeito de um texto que não aborda dire~a­
de uma tendência "não oficial" (mas talvez bíblica!) no seio mente a essência do problema Leste-Oeste, mas que analisa
da Igreja bernense. 21 Uma certa intolerância espiritual e teoló- como o cristão pode contribuir para o estabelecimento da paz
gica pode conceber-se; especifica Barth, quando se trata de dizer mundial. Trata-se de uma curta conferência, quase um apêlo,
claramente, na Igreja, sim ou não, ou quando se percebe que feita através da Rád1o Bâle no verão de 1952, em plena guer-
um elemento da fé cristã foi deixado de lado ou está sendo ra fria.
contestado, implícita ou explicitamente, pelas outras "tendên- "Que devemos fazer então?" sollen wir denn tun?),
cias". pergunta Karl Barth. A paz depende da ~asa B~anca ~ do
A resposta de Feldmann demorou. Quase quatro meses Kremlin. Os grandes homens que a decidem nao pediram
mais tarde, a 5 de fevereiro de 19 51, chegou finalmente . 21 nosso conselho, ainda que nossas intenções sejam as melhores
Não era uma resposta, rpas uma verdadeira censura. O do- do mundo. Nossa primeira contribuição para a paz mundial
cumento original tem nada menos de 39 páginas! Feldmann será, então, rezar para que Deus "ponha no cora~ão dês~es
fala longamente sôbre as questões políticas. Mostra a Barth homens, e dos que os ouvem, sabedoria, compreensao e mmta
o hábil uso que a imprensa comunista suíça ("Vorwiirts" e a piedade para com os povos confiados à sua liderança". 27
Voz Operárid') fazia de suas declarações e das pregações en- Decorre também daí que aquêle que se recusa a dar
gajadas de seus amigos Lüthi e Leuenberger. Critica as prin- sua colaboração pessoal não pode também rezar corretamente.
cipais afirmações contidas em "A Igreja contra o Leste e o Os grandes homens dependem certame1.1t~ tanto de seu~ po.vos
Oeste". Sua oposição situou-se completamente, na mesma li- quanto os povos dependem de seus dmgentes. . Isto imphca,
nha que a de Brunner, mas com maior acrimônia e agres- nortanto, que os povos devem velar, verdadeiramente, pela
sividade. ~az. Para isto é preciso uma contribuição individual. Ocorre
Quando aborda as relações entre a Igreja e o Estado, tal coisa atualmente? Barth duvida.
Feldmann prende-se às suas primeiras declarações e se entrin- Que podemos fazer, então, para melhorar .esta situação?
cheira, freqüentemente, por detrás de textos legais. A teo- Primeiro, não ter tanto mêdo. Nada conduz mais seguramente
logia, a profissão de fé, a Igreja, devem permanecer em seu
lugar, diz êle. Pois a Suíça é "uma democracia, e não uma Arthur Frev diretor-responsável da Evang·elische Verlag A. G.,
26.
pouco a pouco, graças, principalmente, à ação conciliatória Zollikon editôra de Karl Barth, fêz uma recensão desta polêmi-
O tom da carta e seu estilo acusador desencorajam Karl ca. Neste escrito, intitulado Kirchenlwmpf? (Zm!que, 1951), Frey
responde a Feldmann sôbre os P?ntos .em que ~le ataca Barth,
Barth. Uma discussão franca e aberta é impossível. Escreve, notadamente sôbre as pretensas simpatias do teologo pelo comu-
a 10 de fevereiro, a Feldmann, 24 que acusa o recebimento da nismo. Por outro lado, precisa que as cartas trocadas por Barth
correspondência. 25 As coisas permaneceram neste ponto entre e pelo Conselheiro de Estado de Berna foram publicadas sem
que o teólogo tivesse sequer sido C<?_nsultad?, e q?e_ nen1'.um
exemplar de Kirche und Staat lhe fora enviado. Vanos artigos
de jornal falaram desta polêmica. Citamos: ftmile Marion, "Ten-
20. Op. cit., PP. 24-25. sion entre l'Eglise et l'Etat dans le canton de Berne", in Gazette
21. Op. cit., pp. 26-29. de Lausanne, 11 de agôsto de 1951, e Jacques de Senarclens, "Un
22. Op. cit., :QJ2. 30-71. conflit délicat" Journal de Geneve, 12 de setembro de 1951.
23. Op. cit., p. 69. 27. was sollen wi; denn tun?, in Kirchenblatt jür die reformierte
24. Op. cit., pp. 72-73. Schweiz, 3 de julho de 1952. Reproduzido em: Der Gotze wackelt,
25. Op. cit., pp. 74-75. p. 159.

168 169
à guerra que o mêdo recíproco. 28 Segundo, quem não quer
ter mêdo deve manifestar a firme resolução de ver com seus
próprios olhos, de ouvir com seus próprios ouvidos e de pensar
com sua própria cabeça. Não deve tornar-se um de
massa, sob a influência da opinião pública e da propaganda.
A paz está ameaçada porque há tão poucos homens livres. Capítulo IV
Finalmente, o homem livre e verdadeiramente desejoso de paz
está aberto à preocupação e à desgraça de seu irmão. É
A CARTA A UM PASTOR DA RDA
ciso passar à frente de seus próprios princípios êste
e amor fraternos. O fato de tantos homens levarem-se a
sério é que os faz seguirem cegamente as regras, aumentando
o perigo.
É preciso olhar o alto se quisermos verdadeiramente
a paz aqui em baixo.

ANTES DE FALAR DA "Carta a um Pastor da República


Democrática Alemã", o mais recente dos escritos importantes
de Karl Barth sôbre a Igreja e o comunismo, é conveniente
fazer uma rápida menção a outra carta escrita por Barth, em
2 de março de 1953 e endereçada ao Ministro da Segurança
Estado, Zaisser, a respeito das prisões de pastôres na RDA.
A Igreja na RDA, escreve Barth, tinha até agora a liber-
dade de viver sua própria vida no interior do Estado socia-
lista, de seguir o caminho que lhe foi determinado e de anun-
ciar a Palavra de que é depositária . Posso compreender que,
sob o ângulo político de um Estado, nem sempre seja dese-
jável que a Igreja faça ouvir seu testemunho, como o fizeram,
muito abertamente, os que foram presos agora. Mas, se um
govêrno como o da RDA responde a esta liberdade com me-
didas como aquelas, pode-se supor que não deseja tolerar,
senão com muita dificuldade, ou mesmo de modo algum, a
28. Tampouco é preciso ter mêdo do diálogo e do livre confronto. existência de uma Igreja livre.
Quando dos preparativos do 5009 aniversário da Universidade de
Bále, discutiu-se bastante para saber se se devia convidar tam- Algumas das acusações mais duras feitas no Ocidente
bém os representantes de universidades orientais. A pedido do pelos adversários declarados dos regimes comunistas parecem,
National Zeitung, Barth tomou posição, em um artigo aparecido pois, corresponder à realidade: ou seja, a de que na RDA
em 4 de outubro de 1959, opondo-se àqueles que rejeitavam sis-
temàticamente qualquer contato com o Leste. Artigo reproduzido (como no Estado hitlerista) apenas uma Igreja de acôrdo
em Junge Kirche, 1959, pp. 547-549.
29. Op. cit., pp. 159-161.
171
170
com a ideologia oficial pode subsistir. Ora, uma Igreja que timo escrúpulo, Barth teme dar fôrças ao anticomunismo: "Co-
não tem liberdade não é mais cristã. Em outras palavras, uma mo escrever-vos sem deixar transparecer que minha desapro-
Igreja que deseja permanecer livre e cristã na RDA é forçada vaçã? ao espírito e à linguagem, aos métodos e aos processos
a retirar-se para "catacumbas". do sistema que predomina entre vós é tão grande quanto às
Esta é a nova imagem da política eclesiástica do Leste prepotências e aos constrangimentos de que somos vítimas no
que nascerá, necessàriamente, das medidas de prisão tomadas Ocidente?". 1
recentem.ente. "Não posso conceber, Sr. Ministro, que o sur- Dito isso, Barth acrescenta entretanto que, ao menos por
gimento desta imagem ( ... ) sirva à paz, que deve ser hoje uma vez, vai deixar de lado êsses argumentos e abrir seu
defendida por todos os homens sérios do Leste ou do Oeste . coração.
Não posso conceber, além disso, que ela exista no verdadeiro Citando I Pedro 5: 9, lembra inicialmente que os cristãos
interêsse da RDA e do socialismo". devem "resistir permanecendo firmes em sua fé" . Resistir a
Em conclusão, portanto, Barth solicita ao Ministro Zais- quem? "A vosso adversário, o diabo". O comunismo apre-
ser que recue e liberte os presos. 1 senta, sem dúvida, muitos traços comuns com êste "adversá-
Os que acusaram Barth de silêncio cúmplice ou de com- rio", mas apenas na medida em que toma a forma e o poder
promisso, não contavam, de modo algum, com uma intervenção ~e um tentador que ipcita os homens e os cristãos, em par-
como esta, como não contaram com o alerta ao Bispo Berecky, ticular, a adotarem, com relação a êle, posições e atitudes
que seria útil lembrar. falsas. .Êste adversário é "tudo o que impele as pessoas a uiva-
Em sua ','Carta a um pastor da RDA", Karl Barth res- rem. com os lôbos, por mêdo de serem devoradas por êles, a
ponde a um pastor que lhe fizera algumas perguntas a res- praticarem o colaboracionismo ou a obstrução, a usarem ma-
peito da situação da Igreja na Alemanha Oriental. Começa nobras e expedientes aos quais têm recorrido os homens de
por dizer porque demorou tanto a dar sua opinião. Esta breve tôdas as partes, sob o pêso da ansiedade". 4 O comunismo
introdução está cheia de ensinamentos sôbre o modo como é o "adversário" quando dá lugar a esta tentação de ateísmo
entende sua atividade política. "Quanto mais avanço, explica, prátioo, a única que merece o nome de ateísmo.
menos estou disposto a dar meu conselho quando nada me Sem dúvida, a carta enderaçada a Barth pelo seu cor-
força diretamente a isto, ou quando não sinto a obrigação respondente alemão menciona a "hostilidade" crescente do Es-
interior de emitir uma determinada opinião". 2 Considera, por- tado com relação a Cristo. Mas esta hostilidade encontra-se
tanto, a solicitação que lhe acabava de ser feita, para respon- também, sob outras formas, no Ocidente. Ao totalitarismo
der a oito perguntas concretas, como a primeira intimação ver- de Estado (partido todo-poderoso, propaganda, polícia), opõe-
dadeiramente peremptória para que se pronunciasse sem de- se o criptototalitarismo do Ocidente (imprensa do mesmo mo-
mora. Êle declarou duvidar, entretanto, da oportunidade do do poderosa, pressão da economia privada, do arrivismo, da
que poderia dizer sôbre uma situação que não conhecia senão opinião pública). O problema não tem, portanto, apenas uma
de longe. Acreditava também, já que não tinha mais a fôrça facêta. Um fardo é igualmente impôsto aos cristãos ociden-
para conduzir, como há quinze ou vinte e cinco anos, as tais. Mas também uma alegria, garantida a todos os que de-
duas atividades na linha de frente, que seria mais lucrativo sejarem carregá-lo. Nada mais resta fazer senão voltar ao que
para as Igrejas do Leste que se consagrassem à sua Dogmá- constitui a razão primeira e última do cristão: acreditar séria
tica, deixando de lado as mensagens diretas. Finalmente, úl- e alegremente no Deus do qual recebeu o mandato de ser tes-
temunha, no Leste como no Oeste. Deus, acima de tudo, sig-
nifica engajar pràticamente sua vida individual e social na
1. Brtef an Staatminister Zaisser, Berlin-Lichtenberg, vom 2 Miirz
1953 betreffend Verhaftung von Pfarren in der DDR, reproduzi-
aventura de não esperar todos os benefícios senão d'Êle.
da em: Bekennende Kirche auf dem Wege, 15 de abril de 1953,
Darmstadt. Traduzida em: La Vie protestante, 8 de maio de 1953.
2. "Lettre à un pasteur de la RDA" <Brief an einen Pfarrer in del' 3. Op. cit., p. 14
DDR, 1958), Genebra, 1959, p. 12. 4. Op. cit., p. 17.

172 173
Quem sabe se o socialismo na RDA não evoluirá em
melhor sentido? Mas é também possível que nada haja a cidirá, para confusão nossa, mas para sua honra e para a sal-
esperar por êsse lado. "Em compensação, ninguém que viva vação dos homens, pôr fim a uma maneira de existir cuja in-
na esfera dêsse socialismo depositará em vão sua esperança fidelidade e infecundidade são demasiado evidentes". 6 Esta
em Deus, que, servindo-se dela, dá prosseguimento à sua perspectiva nova, para a qual a Igreja deve preparar-se, será
obra". 5 talvez ocasião para os cristãos da Alemanha e do Leste darem
Deus situa-se verclaclciramente acima do ateísmo e do aos outros o exemplo concreto de uma comunidade, engajando-
materialismo, que a RDA parece levar à extravagância. E se no caminho de uma Igreja para o povo (e não do povo)
êste ateísmo (ou o que se faz passar por isso) não deverá ser e tornando-se assim, na zona Oriental, a comunidade pre-
levado a sério, na medida em que procede de mal-entendidos dileta de Deus.
para os quais a cristandade, por sua doutrina, seu comporta- Dito isto, Karl Barth começa a responder às oito per-
mento e seu modo de agir, contribuiu em granpe parte? O cris- guntas práticas que lhe foram feitas. Suas respostas caracte-
tão deve ir ao encontro do descrente com um alegre descré- rizam-se por uma grande liberdade .
dito para com o sucesso da emprêsa dêste último . É uma desobediência ao Evangelho ter a nostalgia de
Deus coloca-se igualmente acima do totalitarismo lega- uma pátria unificada, gozando do bem-estar da liberdade ao
lista da RDA. Não há, pois, nenhuma razão de temer êste modo ocidental? Êste sentimento é perfeitamente compreensí-
totalitarismo. Pela mesma razão, diante do legalismo do Es- vel. Mas é preciso saber o lugar que cabe a essa nostalgia
tado, a Igreja não precisa apresentar outro legalismo próprio; com relação à obediência ao Evangelho.
vivendo sob' a graça e não sob a lei, não precisa responder É preciso prestar a declaração de fidelidade que o Es-
ao materialismo dialético com uma filosofia cristã, à moral e tado requer de todo cidadão? Sim, se a fidelidade significa
à política socialistas com um contraprojeto cristão. A fôrça aprovação da ordem estatal, e não da ideologia sôbre a qual
da Igreja é a livre e poderosa graça de Deus manifesta em se baseia esta ordem; sim, se esta declaração implicar duas
Jesus Cristo. reservas: a liberdade de pensamento em face desta ideologia,
Deus, finalmente, está acima dos pensamentos, das no- e até mesmo a oposição a certas aplicações do regime político
ções e das tradições ditas "cristãs", que o Ocidente conside- em questão. Pois pode haver uma oposição legal!
rava como úteis à sua honra e à salvação dos homens: a ga- É preciso rezar pelo desaparecimento da RDA? Ao invés
rantia da Igreja pelo Estado, o respeito ao domingo, as grandes de orar por seu desaparecimento, ou seja, contra ela, não se-
festas e cerimônias religiosas; em suma: a influência da Igreja ria mais fecundo, pergunta Barth, rezar para ela, e solicitar
no seio da sociedade. a luz e a fôrça necessárias para levá-la a uma existência au-
Na imagem que o socialismo oriental tem do mundo e tênticamente cristã?
da humanidade, a cristandade, em sua forma tradicional, tem, A Igreja deve protestar contra sua expulsão da vida pú-
claramente, um lugar cada vez mais reduzido. Dentro de prazo blica? A Igreja não tem, sob êste aspecto, qualquer direito a
mais ou menos breve, não terá mais nenhum. Tempo virá em. invocar. Tem como tarefa transmitir sua mensagem, como um
que a Igreja será para o Estado e a sociedade uma coisa es- serviço fiel e desinteressado. "Mas a ação que esta mensa-
tranha, desprezível e suspeita. E não nos enganemos: o mesmo gem exercerá sôbre a vida pública não poderá ser senão um
processo esboça-se também no Ocidente. dom da graça imerecida de Deus" . 7
Mas não é certo, de modo algum, que a cristandade não A Igreja da RDA deve aceitar ser dividida pela tensão
possa verdadeiramente desempenhar sua missão senão através atual? Trata-se de um falso problema. Lembremos "Decisão
da forma que até então parecia natural. "Poderá chegar a Política na Unidade da Fé"! O que importa é voltar à Pa-
hora, ou mesmo já chegou, escreve Barth, em que Deus de- lavra de Deus e buscar o que o Evangelho poderia ter a dizer,

5. Op. cit., p. 24. 6. Op. cit., p. 37.


7. Op. cit., p. 44.
174
KARL BARTH - 12 175
aqui e agora . Pode ser que isto provoque divisões . Mas é a estas poucas intervenções. Barth não acreditou, com efeito,
certo que êste será o preço por descobertas que serão feitas, que os regimes comunistas, ao contrário do hitlerista, justifi-
úteis na situação atual, e a coerência dos cristãos da RDA cassem uma oposição total e permanente por parte da Igreja.
será mais. verdadeira. De modo realista, contudo, Karl Barth reservou a pos-
A Igreja deve defender-se a fim de preservar o espaço sibilidade de uma resistência futura. Escreveu, especificamen-
reservado à sua pregação? A Igreja não tem a obrigação ou te, que, embora a exortação cristã para que seja preparada a
a permissão de tomar sua própria defesa, como não pode pre- defesa militar contra o Leste seja, atualmente, supérflua, "po-
tender uma espécie de direito público. Proclamar livremente derá um dia tornar-se novamente muito necessária, se houver,
a mensagem evangélica não é um direito, mas uma possibili- de repente, necessidade de usar, num engajamento de corpo e
dade que a Igreja deve utilizar com gratidão. alma, todos os armamentos que se preparam agora, e de trans-
É necessário almejar agora uma reconstrução total da formar tôdas as excitações em atos". E acrescentou, com a
Igreja? A hora para isso não parece ter soado. Mas. convém experiência que lhe deram, outrora, na Alemanha e na Eu-
permanecer vigilante, o que não é concebível sem a prece. ropa, tantos silêncios e temores cúmplices: "Veremos quem
Que devemos pensar da demissão dos pastôres que fogem sabe então falar a linguagem mais clara e a mais decidida". 9
da RDA? Uma fuga equivale a um abandono. O exercício É verdade que êle escreveu essas linhas antes que a pro-
do direito disciplinar, por parte da autoridade eclesiástica, é liferação das armas atômicas modificasse profundamente os
apenas, neste caso, a sanção do abandono, pelo pastor, do ser- dados do problema.
viço de sua co~unidade e de sua Igreja. Resta, entretanto, o fato de que, num contexto completa-
A conclusão da "Carta a um pastor da RDA" é a se- mente diferente do da época hltlerista, a Igreja não deve unir-se
guinte: não nos encontramos, hoje, diante de uma situação de modo irresponsável à massa dos adversáüos ocidentais ou
tão excepcionalmente clara como na época de Hitler; nada ao núcleo dos resistentes orientais. Deve preocupar-se com
justifica uma oposição tão nítida, tão total, por parte da Igre- sua própria fidelidade à mensagem que está encarregada de
ja; em compensação, tudo justifica, no Leste como no Oeste, pregar. No Oeste como no Leste, deve permanecer vigilante
uma atitude vigilante. para com os regimes, os sistemas e as sociedades, que têm
Lembremo-nos que Karl Barth, de certa forma, deu "uma uma tendência cada vez maior, abertamente ou de modo dis-
oportunidade" a Hitler em 1933. Criticara a heresia dos simulado, para desafiá-la, desprezá-la ou ignorá-la. Esta é a
"Cristãos Alemães", mas não fizera nenhuma condenação di- grande lição da "Carta a um pastor da RDA". E, por isso
reta e precisa de sua política, embora essa experiência já lhe mesmo, a missiva poderia ser igualmente dirigida, mudando-
fôsse, "pessoalmente, bastante antipática e suspeita". 8 Havia se apenas pequenos detalhes, a um pastor da Suíça, da Ale-
esperado antes de intervir. E fôra necessário que as causas nha Ocidental ou dos Estados Unidosl
da intervenção se tornassem cada vez mais graves e repetidas
para que sua oposição se tornasse, por sua vez, total e per-
manente.
Para com os países do Leste, sua atitude foi, no fundo,
a mesma. Karl Barth recusou-se a condenar em princípio os
regimes comunistas. Quis também dar-lhes uma oportunidade.
Depois interveio: houve a carta ao Bispo Berecky, por exem-
plo, e depois a que dirigiu ao Ministro Zaisser, ou, ainda, o
breve telegrama ao Ministro Horvath. Mas sua ação limitou-se

8. Die .Kirche und die politische Frnge von heute, "Eine Schweizer
Stimme", p. 82. 9. "Ne craignez pas !'', in Foi et Vie .. 1951, p. 69.

176 177
Capítulo V

A PAZ E A BOMBA ATÔMICA

BARTH JÁ TINHA MENCIONADO o horror da "invenção


nova", quando foi pela primeira vez utilizada pelos Estados
Unidos contra o Japão em 1945 . 1 Mas foi, sobretudo, no fim
da década de 50 que se ocupou da bomba atômica. Esta ques-
tão de datas é importante. Suas declarações recentes tornam a
colocar em questão, com efeito, certo número de afirmações
anteúores, contidas principalmente no terceiro volume de sua
Dogmática, no capítulo que trata da guerra e da paz. Esta
parte da dogmática foi publicada em 1951. Sente-se nela
a marca da Segunda Guerra Mundial e das primeiras expe-
riências da guerra fria. Mas os problemas da guerra e da
paz não se colocavam ainda em têrmos nucleares. Por isso, é
necessário começar por examinar o ponto de vista expresso
em 1951. Para constatarmos, em seguida, que os escritos con-
cernentes à bomba atômica matizam fortemente certas afirma-
ções, como as sôbre a guerra justa, ou invalidam, em parte,
o que Barth escreveu a propósito do serviço militar obrigatório
ou da objeção de consciência.
Karl Barth aborda o problema da guerra na parte de sua
Dogmática consagrada à proteção da vida . Estuda depois o

1. "A propos de l'année 1945", in Les Cahiers protestants, pp. 6 ss.

179
suicídio, a eutanásia, o abôrto, a pena de morte, questões im- no caw de ocorrer uma guerra e sendo-se obrigado a parti-
plícitas no sexto mandamento: "Não matarás". cipar dela, é preciso fazê-lo com a mais extrema reserva. E
Antes de abordar o núcleo do problema, Barth acredita isto por três razões:
ser necessário dissipar quaisquer ilusões - que não mais se - A guerra é uma emprêsa. na qual a comunidade é
pode alimentar hoje - sôbre o problema da guerra. inteiramente engajada; todos são, pois, diretamente responsá-
A guerra é um problema de todos. "Os Estados e todos veis diante da pergunta: é um homicídio comandado ou um
os seus cidadãos são agora, como desde muito tempo, os res- assassinato protegido?
ponsáveis pela guerra. Não poderíamos retirar esta responsa- - O ato de matar aplica-se, em tempo de guerra, a ho-
bilidade das coletividades para lançá-la sôbre a pátria que mens que servem à sua comunidade e que são inimigos pelo
convoca, sôbre o povo que se ergue, sôbre o Estado que co- simples fato de cumprirem seu dever.
manda, pois cada indivíduo é, em si mesmo, a pátria, o povo, - O ato de matar na guerra coloca em questão, para
o Estado, aquêle, conseqüentemente, que faz a guerra: é êle milhões de homens, todo o problema morâl, a própria obe-
quem age quando uma guerra faz vítimas, e é a êle que é diência às ordens de Deus, em tôdas as suas dimensões: não
feita a pergunta sôbre a justiça ou injustiça de sua ação". 2 somos obrigados, na guerra, a cumprir quase tudo que Deus
A finalidade da guerra é essencialmente material. Não proíbe?
há luta pela honra, direito, liberdade e grandeza de uma na- Karl Barth distancia-se, aqui, muito claramente, das éticas
ção, mas pelos interêsses econômicos que essas nações en- cristãs tradicionais desde o Imperador Constantino . A guerra
cobrem. Ê a segunda ilusão que convém denunciar . A guerra não poderia ser reconhecida como "um elemento normal, du-
revela, de modo crítico, a desordem profunda do homem, sua radouro e, de certo modo, necessário para o Estado, consi-
impotência em dar à sua vida uma orientação que não o con- derado do ponto de vista cristão, como uma constante da or-
duza ao assassinato e ao suicídio. Esta desordem é perma- dem política desejada por Deus". 4
nente; existe, portanto, em tempo de paz, e a guerra faz Pois a tarefa normal do Estado, executada também em
com que estoure abertamente. Barth vê nessa permanência tempos de guerra, consiste, em seu interior como exterior, não
uma razão determinante para não se dissociar o problema da em destruir a vida humana, mas em conservá-la, em permitir
guerra do da paz. A única possibilidade para o homem de que desabroche. Deve, portanto, esforçar-se para manter a
estabelecer um pouco de ordem seria substituir o adágio Si paz, a fim de servir à vida .
vis pacem, para bellum! por Si non vis bellum, para pacem! Ou Quando a paz não é justa, a guerra torna-se inevitável.
seja, dar à sua vida uma orientação que não a conduza mais A primeira coisa que a Igreja deve dizer ao Estado a propó-
necessàriamente a fazer a guerra. sito da guerra é precisamente que êle trabalhe por uma paz
A terceira ilusãü consiste em pretender que a guerra visa que não conduza a uma explosão bélica. Ê uma tarefa posi-
a neutralizar a potência combativa do inimigo. Na realidade, tiva, na qual o aspecto militar da questão passa para o se-
trata-se, muito mais brutalmente, da destruição premeditada do gundo plano, mas onde tôda atenção é dada ao advento de
maior número possível dos indivíduos que constituem o poder uma sociedade que possibilite a justiça e a humanidade .
de combate do inimigo. Trata-se de "fazer a morte sem gló- O engajamento que Karl Barth propõe à Igreja é, antes
ria, sem dignidade, sem nada de cavalheiresco, sem limitação de mais nada, o de uma missão dentro de cada Estado. Ape-
nem reserva de qualquer espécie".> nas quando tiver feito tudo para o estabelecimento de uma
Despojada das ilusões que se procurou ter a seu res- paz justa dentro de seu próprio Estado, a Igreja intervirá para
peito, a guerra aparece em todo seu horror. Ê por isso que, a manutenção de uma paz justa entre os povos. Reivindicará
então que reinem a boa-fé e a confiança em suas relações mú-
2. "Dogmatique. Troisiême volume 4" (Kirchliche Dogmatik III/4,
Zollikon-Zurique, 1951), Genebra, 1965, p. 140.
3. Op. cit., p. 142. 4. Op. cit., p. 145.

180 181
tuas, e uma sólida compreensão recíproca, em conformidade conseqüentemente, dissolver-se, a fim de continuar a viver den-
com os tratados, arbitragens e pactos internacionais. tro de um complexo político maior" 6 •
Karl Barth não acredita que seja da alçada da Igreja pre- É apenas, portanto, quando um povo e um Estado não
gar o pacifismo. Sua missão é fazer ouvir, em cada caso, a tiverem nenhuma razão séria para se expor a perder sua inde-
voz da razão, enquanto houver uma possibilidade de solução pendência que poderá ocorrer o caso limite: uma guerra legí-
e a fim de que todos os meios de que se dispõe hoje para tima. Êste motivo é o único que pode ser levado em conta pela
evitar a guerra sejam colocados em ação honestamente, até o ética cristã. Por quê? Pelo fato de que a responsabilidade de
fim, até se esgotarem, verdadeiramente·. tôda a vida física, moral e espiritual de um povo, incluindo a
A ação da Igreja tem duplo aspecto: estabelecimento e responsabilidade das relações de seus membros com Deus, pode
manutenção de uma paz justa no interior dos Estados e in- ser posta em questão por uma ameaça contra sua independên-
tervenção em favor de tôdas as medidas capazes de evitar a cia. "Pode acontecer, portanto, que Deus proíba a certos
guerra entre nações. povos renunciarem à independência de seu Estado e lhes ordene,
Mas existe a possibilidade, infelizmente, de que um Es- conseqüentemente, que a defendam, sem considerar sua própria
tado seja forçado por outro a resolver a alternativa: subme- vida ou a dos que ameaçam" 7 •
ter-se ou se defender. Barth mostra-se extremamente prudente A intervenção armada de um Estado será igualmente legí-
na exposição das razões que podem justificar uma agressão ou tima quando se tratar de auxiliar outro Estado, mais fraco que
uma resistência armada . A guerra constitui sempre um caso êle, que se encontre na situação que acabamos de descrever.
limite ( Grenzfall), uma solução absolutamente extrema. Tudo isto mostra bem que a ética cristã não poderia ser abso-
"Pode ocorrer que um Estado deseje estender-se política, lutamente pacifista e que não poderia opor-se, em princípio e
geográfica e económicamente, para alargar, dêste modo, suas completamente, a tôda ação e, portanto, a tôda preparação
fronteiras e aumentar seu poder. Poderia parecer-lhe necessá- militar. Mas o que distinguirá a Igreja cristã é que ela saberá
rio, também, colocar em ordem seus negócios, através de uma intervir, quando isto lhe fôr exigido, em favor de uma ação
ação externa, para alcançar, por exemplo, sua unidade polí- militar determinada, sem considerar o sucesso ou insucesso da
tica. Poderia sentir-se ferido, em sua honra e dignidade, pelo emprêsa, sem considerar a relação das fôrças envolvidas. A
comportamento de outro Estado. Pode ainda ocorrer que se guerra, considerada como caso limite, coloca-a em uma situa-
sinta ameaçado pelas rupturas de equilíbrio entre os outros ção espiritual em que os riscos não são medidos mais através
povos, ou inquietar-se com acontecimentos internos (revolu- de critérios ou normas políticas e estratégicas.
cionários ou reacionários) de uma outra nação. Poderia mes- O indivíduo não pode abdicar de sua própria responsabi-
mo acreditar-se investido de uma missão histórica, de uma lidade na ação do Estado. O Estado não é, portanto, uma espé-
vocação - consistindo, por exemplo, em dirigir e dominar cie de hipóstase estranha, longínqua e muito poderosa, que
os outros povos. Tudo isso é possível. Mas estas não são, domina os indivíduos e tudo decide por êles. A vontade do
certamente, razões suficientes para pôr em movimento a gran- Estado é a soma da dos cidadãos. O Estado coincide, na reali-
de ou pequena máquina de guerra de que dispõe, para enviar dade, com a responsabilidade que cada indivíduo assume. E é
seus homens para matar e deixar-se matar". s dêste modo que a guerra é um ato de Estado. O Estado, fazen-
Mesmo a existência de um povo não constitui, em todos do a guerra, estará atuando através de cada indivíduo.
os casos, motivo justo de guerra. "É bem possível que um Esta- "A questão da guerra deve ser colocada também como
do seja forçado a desaparecer, através da perda da forma que uma questão pessoal ( ... ) ; como tal deverá receber uma res-
tinha até então, que sua vida independente não tenha mais posta. Talvez a contribuição mais importante da ética cristã
sentido nem razão de ser, e que valha mais a pena para êle, para a questão consista em tirá-la, decididamente, de tôda dis-

6. Ibid.
5. Op. cit., p. 151. 7. Op.cit., p. 152.

182 183
cussão política e moral puramente geral e sem fôrça coercitiva, "O objetante deveria ainda estar pronto a suportar sem
para fazê-la passar ao domínio pessoal, perguntando: que fêz queixas ou lamentações as conseqüências de sua fidelidade a:o
você até agora pela causa da paz? Que deixou de fazer? Que Estado na forma desta oposição, ou seja, a aceitar que o
faz e deixa de fazer agora? E que pensa que deve fazer ou Estado e a maioria que combate defendam-se contra êle: subme-
não, no futuro?" s. ter-se-á, portanto, à punição que a constituiçã_o e a lei prevêem
É nesse contexto que Karl Barth examina ainda duas ques- para a transgressão dêste tipo. Não deve pedir ao Estado, que
tões precisas, concluindo seu capítulo sôbre a guerra: o serviço considerou como mal informado, que se conduza como se
militar obrigatório e a objeção de consciência. fôsse já o Estado mais bem informado de amanhã" 11 •
Barth reconhece no serviço militar obrigatório uma virtude um'a objeção de consciência decidida com plena e verda-
essencial: a de colocar cada um diante da questão da guerra deira responsabilidade política está sempre ~ígada a circuns~â_:i­
e de fazer, de um problema concernente ao Estado, um pro- das concretas. Isto significa que não podena ser uma pos1çao
blema pessoal. "A abolição do serviço militar obrigatório libe- de princípio, definitiva. Deve, pelo contrá~io, da:_ ª<? objetante
raria os que não mais estivessem forçados a cumpri-lo desta a possibilidade de renunciar, eI_TI out_r~s circunsta:icias, a esta
grave decisão político-pessoal. Tal medida não favoreceria, oposição, e de fazer o seu serv1ço m1htar. A. Igreia tei:i de .se
seguramente, a análise séria e a solução do problema da guerra; mostrar vigilante, também neste cas_o: é p;ec~so que s~1ba dis-
por isso, os pacifistas deveriam ser os últimos a preconizá-la" 9. cernir, em primeiro lugar, que circunstancias autonzam,. e
Não fica t'.xcluída, entretanto, a possibilidade do indivíduo mesmo exigem, a recusa em servir, mas também que saiba
se ver forçado, em algumas circunstâncias muito particulares, reconhecer os casos, muito raros, é verdade, em que a guerra
a se recusar a servir ao Estado. Mas êle deve saber que, agindo é necessária e exigida, e quando o serviço militar concerne a
dêste modo, coloca-se "fora da lei", que sua oposição comporta todos e deveria ser cumprido por todos 12 •
um risco e o torna passível de punição. Uma das formas desta O desenvolvimento das armas nucleares modifica as con-
oposição é a objeção de c_onsciência, ou seja, a recusa a subme- ,ª
dições de uma meditação sôbre guerra e ~ I?az? O primeir?
ter-se ao dever de servir, impôsto pelo govêrno ou pela maio- texto dedicado por Karl Barth a bon;ba ato~nc~ data ~~ pn-
ria, a recusa em participar diretamente da guerra do Estado ou mavera de 1957 u. O teólogo de Bale havia sido solicitado,
em sua preparação. pelo jornal SOS, de Berlim Ocidental, .ª divulg~r sua ~osição
Karl Barth impõe à objeção de consciência duas condi- quanto ao assunto 14. Depois de denunciar.º pe,~1~°. te~~1vel da
bomba atômica (e mesmo das bombas ditas taticas ! ) e o
ções fundamentais:
das experiências nucleares, Barth escreveu essencialmente isto:
"O objetante deveria manifestar sua recusa na unidade não resta senão a possibilidade, para os que dispõem de pode~
de sua vida individual, pessoal, e de sua existência como cida- político e que podem manifestar-se pub_licamente; de apelar a
dão. Não poderia simplesmente querer tranqüilizar sua cons- humanidade. "É preciso que tomem a s1 a questao, que façam
ciência privada, em conflito com a sociedade e o Estado do compreender, por todos os meios, a seus governos e à imprensa
qual é membro. ( ... ) O objetante deveria estar, ao contrário,
completamente convencido de que intervém e trabalha, com
sua recusa, em favor da comunidade política desejada e esta- 11. ™d. . .
12. Barth mostra-se extremamente claro a respeito da Su1ça, cuJa
belecida por Deus, e assim, 1onge de renegar o Estado, aprova-o neutralidade constitui um dêstes raros casos em que a defesa
embora em contradição com seu govêrno e sua maioria, com armada é autorizada e recomendada.
sua constituição e suas leis" 10. 13. Renunciamos a citar textos menores, em geral muito breves, como
Atom-Verbot in der Verfassung Ain uürcher Woche, 23 de março
de 1962), que não fazem mais do que retomar as teses dos es-
critos que aqui analisamos . .
8. Op. cit., p. 156. 14. Esta tomada de posição foi reproduzida pelo Schweiz Evang.
9. Op. cit., p. 157. Pressendienst do 19 de maio de 1957. Tradução francesa em La
10. Op. cit., p. 159. Vie protestarnte, 10 de maio de 1957.

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184
de seus países, que não querem nem exterminar outrem nem
serem exterminados, nem mesmo para a defesa do socialismo". Embora o perigo atômico esteja claramente estabelecido,
Devem gritar "Alto!" aos responsáveis pelo assunto no Leste escreveu Barth, os governos estão decididos a perseguir e exe-
e no Oeste, até que lhes doam os ouvidos. Pois, diz Barth, "não cutar sua emprêsa fatal, a maioria das populações não está
são os princípios, as ideologias e os sistemas que estão em pronta a passar a uma oposição ou mesmo a uma resistência
causa, nem questões de poder. Trata-se da vida da humani- decidida e os círculos intelectuais e grande parte dos eclesiás-
dade. Antes que seja demasiado tarde, é preciso ajudar a razão ticos discutem muito mas se esquivam, obstinadamente, a tomar
mais elementar a triunfar". qualquer decisão concreta contra as armas atômicas. A razão
No ano seguinte, Barth participou da redação do relatório desta situação: todos têm mêdo do adversário político e ideo-
minoritário da comissão teológica da Federação das Igrejas lógico. Não se acredita que a ameaça possa ser conjurada senão
Protestantes da Suíça, sôbre o problema das armas atômicas. com o recurso à contra-ameaça, que é a arma atômica.
Este relatório foi apresentado por ocasião da assembléia extra- Portanto: "Se não se chega a extirpar esta oposição ideo-
ordinária dos delegados, em Berna, a 27 de novembro de 1958. lógica e política, bem como a angústia recíproca decorrente
Segundo o depoimento de um dos quatro signatários, o Pro- dela, não se poderá vencer a contradição que existe entre o
fessor Jacques Courvoisier, de Genebra, a participação de bom conhecimento e a má prática de nossos governos, da maio-
Barth na elaboração dêste texto foi preponderante 15. ria de nossas populações, de nosso mundo civilizado e de nossas
O relatório minoritário apresentado em Berna sublinha Igrejas" 18 •
que, se a guerra já era considerada até então como o último Também neste caso, o verdadeiro remédio é um trabalho
meio para resoiver conflitos entre povos e Estados, a prepa- positivo em favor da paz e da compreensão entre os novos. A
ração e realização de uma guerra atômica são "a negação for- única solução realista é empenhar um esfôrço nôvo, livre de
mal e manifesta da vontade de Deus criador, de sua fidelidade qualquer preconceito, para vencer esta oposição ideológica e
e de sua graça para com os homens". Por isso, a "obediência política.
a Jesus Cristo exclui tôda participação ativa na guerra atômica Lendo tudo o que Barth escreveu sôbre a bomba atômica,
e em sua preparação" 16. percebemos quanto parece difícil pretender uma guerra justa
O perigo atômico é medonho, a distinção entre bombas com o emprêgo de armas nucleares. É claro que, para êle, o
táticas e estratégicas é ilusória, as experiências nucleares repre- caso da Suíça deveria ser inteiramente reexaminado, se o país
sentam, em si mesmas, um perigo para a humanidade. decidisse adquirir armas desta natureza. Tal aquisição colo-
Todos os homens responsáveis (e as Igrejas!) devem pro- caria também em questão, certamente, o princípio do ser-
testar com a máxima energia contra a proliferação desta arma viço militar obrigatório: criaria as condições requeridas para
que ameaça as gerações atuais e futuras e, de modo geral, todos uma recusa em servir, recusa que poderia ser generalizada, e
os sêres vivos. Protestar e lutar contra as armas atômicas é não mais excepcional, como Barth indicava em sua dogmática,
obedecer, em última instância, à vontade do ser criador, é ates- onde tratava apenas do caso de um exército dotado de armas
tar sua fidelidade e sua graça para com nossa humanidade. convencionais.
Também nesta perspectiva situa-se, implicitamente, a carta É, aliás, nesse sentido que conclui sua carta ao Congresso
mais "mundana", que Barth enviou, a 7 de janeiro de 1959, Europeu contra Armas Atômicas. Em mais de uma ação geral
ao Congresso Europeu contra Armas Atômicas 17. para derrubar os. obstáculos ideológicos . e .restabelecer 1:1m
clima de confiança, êle não hesitou em md1car, com efeito,
15. Os dois outros signatários foram os professôres E. Grin, de Lau- que a resistência poderia tomar também, de modo concreto, a
sanne, e J. J. Stamm, de Berna. forma de um convite aberto à objeção em tôdas as unidades
16. Atas da assembléia, pp. 22-23.
17. Der Europiiische Kongress gegen atomare Aufrüstung. Brief von equipadas com armas atômicas.
Professor Karl_ Barth an den Kongress, in Junge Kirche, 1959,
p. 98. Traduçao francesa em Georges Casalis, Portrait de Karl
Barth, Genebra, 1960, pp. 58-60. Citamos dêste texto.
18. Op. cit., p. 59.
186
187
CONCLUSÃO
CONCLUSÂO

EM UM TEXTO DE CARÁTER AUTOBIOGRÁFICO, publicado


em 1960, Barth escreveu estas poucas linhas: "Já me imagino
lendo necrológios, nos quais se dirá um dia de mim que prestei
alguns serviços à renovação da teologia e, em rigor, durante
a luta da Igreja na Alemanha. Mas, no tocante à política, dir-
se-á que não fui senão um suspeito fogo-fátuo ( ein bedenkli-
ches lrrlicht)" 1.
Singular clarividência! Pois a aparente incoerência de sua
atitude política (expressa, sobretudo, na recusa em condenar
o comunismo) valeu-lhe - em amplos círculos sociais e tam-
bém da Igreja - esta estranha reputação de "fogo-fátuo".
Como ousava êle distinguir entre o totalitarismo nazista e o
totalitarismo soviético? E uma liberdade que nunca se perdoou
a Karl Barth, particularmente na Suíça, onde o anticomunismo
fêz parte, pràticamente, durante vários anos, das virtudes na-
cionais ... Desde então, quando Barth fala de política, escutam-
no, mas desconfiam. As pessoas "razoáveis" não deixam de pôr
em dúvida a autenticidade evangélica de suas posições polí-

1. How my mind has changed 1948-1958. Em: Der Gõtze wackelt,


p. 204.

KARL BARTH - 13 191


ticas. O teólogo não se deixará levar, simplesmente, pelas suas como é expressa pela Igreja Confessante constituída em Bar-
simpatias esquerdizantes, simpatias que reconhece, aliás, mais men, inscreve-se em uma situação política precisa. Não pode,
de uma vez? Tôdas as suas justificativas teológicas não serão, pois, deixar de ter repercussões igualmente sôbre êste plano,
no fundo, meras explicações a posteriori? Um estudo objetivo pois o Evangelho dirige-se ao homem encarado dentro da reali-
dos textos destrói estas objeções. dade e a profissão de fé concerne a êle.
Em cada etapa de sua evolução política, os escritos de De volta à Suíça, Barth dá à sua oposição uma expressão
Karl Barth (mesmo os mais concretos, os mais intimamente cada vez mais política, mas sem nunca esvaziá-la de seu con-
ligados aos fatos) demonstram que sua atitude repousa sôbre teúdo teológico. E, quando acaba por exortar a Tchecoslová-
uma base imutável: a pessoa e a obra de Jesus Cristo, objeto quia à resistência armada, na célebre carta ao Professor Hro-
da fé da Igreja. É a prüneira tese de Barmen: "Jesus Cristo, madka, de Praga, seu apêlo baseia-se ainda sôbre a concepção
como nos atesta a Sagrada Escritura, é a única palavra de cristã do Estado justo. É preciso defender o Estado justo amea-
Deus que devemos escutar, à qual devemos nos entregar e çado pelo Estado nazista totalitário, que não poderia mais ser
obedecer, na vida e na morte". Esta base resulta claramente considerado como uma "autoridade" no sentido de Rom. 13. É,
dos textos dedicados às três grandes passagens da história do portanto, permitido, e mesmo exigido, o recurso às armas. Foi
século XX vividas por Barth: a ascensão do nazismo, a Se- necessário que uma terrível "urgência" nascesse da pressão
gunda Guerra Mundial e a guerra fria. Cada um dêsses períodos cada vez maior do regime hitlerista sôbre a Igreja, sôbre o
permitiu-nos pôr em evidência três aspectos essenciais de seu povo alemão, sôbre a Europa, enfim, para que seu protesto
pensamento político, diretamente ligados à base evangélica que inicial tomasse também o aspecto de um protesto político. Face
acabamos de invocar. · ao nazismo que ameaçava a Igreja e sua fé, na Alemanha e na
O que espanta o leitor, nos textos escritos durante o nazis- Europa, tôda decisão cristã implicava, necessàriamente, uma
mo, é a vontade várias vêzes manifestada por Karl Barth de decisão política. Mas o relacionamento é perfeitamente límpido:
ser um teólogo, apenas um teólogo. É como teólogo que fala por ser cristã é que é política.
e quer ser ouvido. Está na origem de sua oposição política Segundo período: a guerra. Vê-se melhor ainda a fórmula
uma oposição teológica, a luta contra a heresia dos "Cristãos que se encontra na origem das posições políticas de Karl Barth.
Alemães". Tudo parte daí. Karl Barth afirma que a Igreja Êle próprio a descreveu da maneira mais clara em "A Igreja
não deve buscar Deus senão em sua Palavra, exclusivamente e a Suíça na atualidade". Trata-se de três "tempos", que pode-
através de Jesus Cristo e, a êste, apenas na Sagrada Escritura. remos, aliás, descobrir sem esfôrço na maior parte de seus
Recusa-se a considerar os acontecimentos históricos de 1933 escritos: exame lúcido e desmistificação da situação política
(a revolução nacional-socialista) como uma espécie de segunda (os cristãos não são sonhadores, a leitura da Bíblia se faz junto
revelação de Deus na história. Contesta, pois, as pretensões com a do jornal!); avaliação das repercussões morais desta
totalitárias do nôvo regime, na medida em que êste deseja situação (os cristãos não vivem em uma tôrre-de-marfim:
englobar não apenas o homem em suas múltiplas atividades, vivem, escolhem e agem no mundo); as justificações finais da
mas também Deus e sua revelação. Esta oposição teológica fé, que permitem conhecer a realidade e engajar-se além das
provoca uma oposição eclesiástica, a partir do instante em aparências de verdade e realismo (os cristãos não se determi-
que o sínodo de Barmen deu-lhe a forma de uma profissão de nam em função de qualquer teoria social ou política, mas
fé. Esta profissão de fé foi um ato concreto da Igreja cristã ouvem a Palavra de Deus). Vê-se - e isto é confirmado pela
em uma situação histórica dada. É um engajamento em favor prioridade do teológico sôbre o político - que esta fórmula
da verdade e contra o êrro. No início de 1934, o êrro é o nôvo é dinâmica: os dois primeiros "tempos" situam-se na perspec-
avatar da teologia natural, representada, pela doutrina dos tiva do terceiro. São impossíveis sem êle, que é, ao mesmo
"Cristãos Alemães": tentar um compromisso entre a revelação tempo, fundamento e justificação final de tôda posição política.
de Deus em Jesus Cristo e a Alemanha de Hitler. Esta contes- Imediatamente após o fim da guerra, Barth descreveu esta fór-
tação do caráter totalitário do regime nacional-socialista, tal mula de modo mais teológico, através do princípio da analogia,

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em "Comunidade Cristã e Comunidade Civil": "Entre as di- vador, nem progressista. Jesus não foi um homem ele partido.
versas possibilidades políticas do momento, os cristãos saberão Pelo contrário, colocava em questão todos os programas e
sempre escolher aquelas cuja realização apareça-lhes clara- todos os princípios. Manifestava uma liberdade principesca
mente como uma analogia, um reflexo do conteúdo de sua fé e para com todos os sistemas humanos, para com todos êsses
de sua mensagem" 2 • _ "ismos" de que Barth sempre desconfiou profundamente. Não
O terceiro aspecto do pensamento político de Karl Barth tinha em suma, necessidade de apoiar-se sôbre êles nem de
evidencia-se durante o período da guerra fria. Ressalta, com destr~í-los. Vivia, simplesmente, no meio dêles, sem participar,
efeito, de modo notável, graças ao contraste provocado pela mas sem experimentar também a necessidade de engajar-se em
mudança de situação entre a época nazista e o após-guerra. Po- uma ação para fazê-los desaparecer. Parecia admitir perfeita-
demos defini-lo com duas palavras: contradição e liberdade. mente, por exemplo, a administi;_ação religiosa que dependia
Traduzem esta vontade de Karl Barth de "remar contra a cor- do Templo de Jerusalém, mas também a a?mi~istraç~°: ro-
rente", livremente, sem referência a princípios, mas em função mana, no país e em Roma. Aceitava a orgamzaçao ~am1har e
de sua fé. Como o indicam muito bem seus conflitos com Emil a existência de ricos e pobres. Nunca pretendeu que todas essas
Brunner e Markus Feldmann, a propósito do comunismo, esta ordens humanas não existissem ou que não devessem existir.
atitude política liga-se diretamente à sua teologia e testemunha, Não tentou substituí-las por outras organizações. Não seguiu
a seu modo (segundo o princípio da analogia), a liberdade e o movimento de reforma proposto pelos essênios. Contentou-se
o caráter contraditório do Evangelho no mundo. Nesta refe- em marcar os limites de todos êsses organismos, limites que
rência constante ,ao Evangelho aparece uma coesão que per- lhes são atribuídos pela liberdade de Deus. Foi dentro dessa
manece oculta para aquêles que, como Brunner, tentam desco- liberdade que viveu, para que outros fôssem chamados à mesma
bri-la através de uma lógica exclusivamente política, baseando- liberdade. Jesus aparece, pois, a Karl Barth, como um revolu-
se em uma moral natural. Contradição e liberdade: o segundo cionário de tipo muito especial: não um guerrilheiro empe-
dêstes têrmos é, inegàvelmente, o mais importante. Insistir no nhado profundamente em mudar tudo o que existe, mas um
primeiro acarretaria o risco de fazer ver em Barth uma espécie homem livre, que não preconiza soluções, vivendo em sua inde-
de vontade de "épater le bourgeois". Alguns não hesitaram em pendência e contentando-se em condenar certa servidão ditada
usar êste argumento um tanto curto. Pois, se há contradições, pelos sistemas. Utilizou-os para si mesmo e para seus discípulos,
é porque há verdadeiramente lib~r~ade, liberdade a~so~uta ..Que não ao modo de um guerrilheiro, mas escolhendo nêles o que
é mais vigorosamente contestatono que uma autentica hber- lhe convinha. Apresentou a si mesmo como o limite de suas
dade? Em um capítulo particularmente brilhante de sua dogmá- pretensões. Não os pôs em questão, portanto, por princípio,
tica 3 Karl Barth aborda a humanidade de Cristo e sua atitude mas apenas na medida em que procuravam ultrapassar sua
diant~ das realidades humanas. Nada melhor que a descrição justificação relativa, quando buscavam poder e sucesso. En~ro-:1-
dêste "Homem Real" - é o título da passagem - para expri- em conflito com êles pelo simples fato de que êle mesmo rn a
mir a liberdade cristã. procura dos fracos e dos pobres. Seu despojamento volun~ári;:>
Para descrever a atitude de Cristo, Barth não pode evitar opunha-se, portanto, totalmente, a todos os costumes, prm~1-
o qualificativo de "revolucionário". Sua oposição nada tinha, pios e, finalmente, às autoridades dêste mundo. J~~us sabt_?-
entretanto, de sistemático. Jesus não foi um reformador orga- que, malgrado seus defeitos, Deus os tolerava.~ os utilizava ate,
nizado. Não constituiu partido ou frente. Não agiu em virtude em seu valor relativo, mas sem lhes permitir, em nenhuma
de um programa preparado com antecipação, fôsse de ordem hipótese, enunciar pretensões totali~árias. P,?r isso, quis n;iani-
política, moral, econômica ou religiosa. Não foi nem conser- festar como um sinal entre as autondades deste mundo, a liber-
dade daqueles que estão submetidos a outro Reino, o de Deus.
Ê difícil, depois de tal descrição (como após uma leitura
2. Communauté chrétienne et communauté civile, Genebra, 1958,
p. 45. compreensiva de todos os seus artigos, manifestos e estudos),
3. Kirchlische Dogmatik IV/2, Zollikon-Zurique, 1955, pp. 191-200. transformar Karl Barth em um homem determinado por suas

194 195
opções políticas. Se o socialismo lhe parece, em conjunto, mais e a Alemanha Nazista 4, mostra que não faltam exemplos de
de acôrdo com a linha geral de uma ética cristã, é impossível padres que aceitaram o martírio. E que, também entre os cató-
catalogá-lo sob a etiquêta de "socialista", no sentido partidário licos, alguns souberam elevar a voz contra as atrocidades do
ou filosófico da palavra. Isto seria inverter os têrmos: Barth nazismo, como o Pe. Alfred Delp ou Bernard Lichtenberg,
é um teólogo cujas tomadas de posição coincidem, com bas- vigário-geral da .Catedral de Santa Hedwige, em Berlim. Depois
tante freqüência, com as dos socialistas ou socializantes. Mas elas primeiras ondas de prisões, das quais foram vítimas padres
nem sempre: o exemplo mais impressionante é a sua atitude e pastôres, o abade Lichtenberg foi, escreve Lewy, "o único
para com os comunistas, quando êstes aparecem como os irmãos eclesiástico conhecido por ter protestado contra as brutalidades
inimigos dos socialistas ocidentais! de que eram vítimas os prisioneiros. Na primavera de 1935,
Antes de tudo teólogo, homem que se esforça primordial- submeteu a Gõring um relatório sôbre o tratamento inflingido
mente para viver sua "existência teológica hoje"! Como expli- aos detidos do campo de Esterwege. Seu ato corajoso perma-
car de outro modo a imensa repercussão que seus escritos neceu isolado" 5• Por ocasião do terrível pogrom de 1938, que
tiveram entre os cristãos da Alemanha e nas Igrejas dos países entrou na história com o nome de Kristallnacth (A Noite de
ocupados? Vinte ou trinta anos mais tarde, é difícil representar Cristal), soube-se, por fonte fidedigna, que um homem protes-
exatamente o alcance político de suas declarações e avaliar a tou: o deão Lichtenberg, ainda êle. Na manhã que se seguiu
coragem que lhe foi necessária para erguer a voz. Mas como ao pogrom, êle rezou pelos cristãos não arianos e pelos judeus
ignorar que Theologische Existenz heute! e o Sínodo de Bar- perseguidos e acrescentou: "O que se passou ontem, nós sabe-
~1e:i fizeram surgir o prin:-eiro moviment.o de verdadeira opo- mos; o que se passará amanhã, ignoramos; mas somos teste-
s1çao na Alemanha hrtlensta? Um movimento cujo prestígio munhas do que acontece hoje; muito perto (desta igreja) a
foi tão grande que, no fim da guerra, o próprio Presidente do sinagoga está em chamas, e ela é igualmente uma das Casas
Bundestag, Gerstenmaier, pretendeu (sem dúvida por razões de Deus" 6 •
políticas) ter tomado parte ativa nêle. Quándo quase todos se O deão Lichtenberg pagou com a vida sua oposição. Eis
calavam, houv_e ~uem falasse: os membros da Igreja Confes- o que escreveu ainda Guenter Lewy: "Houve, entretanto, pelo
sante e, na pnmeira linha, Karl Barth. menos um eclesiástico católico na Alemanha para quem o amor
E não se imagine que a posição de Barth tornou-se mais pelo próximo era algo diferente de uma piedosa fórmula: o
fácil quando voltou para a Suíça! O tempo era de prudência . deão Lichtenberg, de Berlim, homem de 66 anos, que se obsti-
Falava-se de neutralidade, de não intervenção. Uma neutrali- nava em rezar diàriamente uma prece para os judeus, no auge
dade que freqüentemente se desejava mais ativa. Karl Barth
da intensa agitação anti-semita. Foi prêso a 23 de outubro de
e;a um homem perigoso: atacava o Acôrdo de Munique, cujos
1941, uma semana depois da primeira deportação em massa
termos eram de molde a tranqüilizar tôdas as boas consciên-
cias; incitava a Tchecoslováquia a pegar em armas. E durante de judeus. No curso dos interrogatórios a que foi submetido
pelos homens de Himmler, o deão afirmou que as deportações
a gi;eri:a, foi ai?da pior. Enqu~nto. a Suíça estava cerc~da pelas
P?tencias do Eixo, ele descrevia Hitler como um espírito demo- de judeus eram inconciliáveis con1 a lei moral cristã e solicitou
maco, declarava que a guerra levada a cabo contra êle era permissão para acompanhar os deportados a fim de servir-lhes
?ecess_ária. N~o llma gucr~a santa, mas uma guerra justa. E de conselheiro espiritual. Condenado a dois anos de prisão por
i~to nao era dito as escondidas, nos círculos fechados da Igreja. ter abusado de suas prerrogativas de pregador, o abade Lich-
Ele pr?c~amava s~us pensamentos em praça pública, escrevia tenberg foi capturado pela Gestapo à saída da prisão, em outu-
~os ,~nstaos de toda a Europa. Uma comparação nos vem
unecuatamente ao espírito: Pio XII e a Igreja Romana. Que
fizeram durante êste período? A comparação é perigosa. Pois 4. "L'Egfü;e Catholique et l'Allemagne nazie" (The Catholic Church
and Nazi Germany, Nova York, 1964), Paris, 1965.
falar do Vaticano não é falar de todos os católicos romanos 5. Op. cit., p. 154.
A leitura do notável livro de Guenter Lewy, A Igreja Católic~ 6. Op. cit., p. 2'±6.

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bro de 1943, e encaminhado para o campo de Dachau. Morreu Pode-se discutir esta maneira de apresentar as coisas, bem
durante a viagem, a 5 de novembro de 1943" 7 • como sua aceitação de um direito natural subjacente (fonte,
Seria impossível falar aqui da Igreja Católica sem evocar, precisamente, de tôdas essas confusões). Dizer também, com
pelo menos, êste homem excepcional, sua coragem, sua pro- Alfred Grosser, no excelente posfácio que escreveu para o livro
funda caridade. Os 326 padres que as tropas americanas encon- de Friedlander: "A Igreja ataca o totalitarismo essencialmente
traram em Dachau, a 26 de abril de 1945, e todos os que mor- porque é totalitária, ou seja, porque invade o domínio reli-
reram nos campos, testemunham, com êle, a existência de uma. gioso e a vida privada. A dupla condenação de 1937, a do
resistência 110 seio da Igreja Católica da Alemanha. E resis- nazismo, com a encíclica Mit brennender Sorge, e a do comu-
tentes como êles houve em todos os países ocupados, na França, nismo, com Divini Redemptoris, atingia sobretudo o paganis-
na Bélgica, na Polônia. . . Como comunidade de cristãos, a mo de um e o ateísmo de outro, ambos militantes e atentató-
Igreja Católica teve, do mesmo modo que as Igrejas protes- rios à liberdade religiosa e aos direitos do crente e do pai de
tantes, seus bravos e seus covardes. família. A supressão das liberdades públicas, o monolitismo
Não se trata, portanto, de silenciar a fôrça ou a influência político, e mesmo o emprêgo da coação contra os opositores,
dêsses homens que souberam dizer "não" num momento em passam para o segundo plano 10.
que isto pode:r:ia custar-lhes a vida. Mas é impossível, também, É exato. Mas deve-se reconhecer que Pio XI, que morreu
deixar passar em silêncio a atitude da Igreja Católica Romana a 9 de fevereiro de 1939, foi menos "prudente" de que seu
enquanto instituição. Historiadores sérios, que recentemente sucessor. Algumas semanas depois da publicação da encíclica,
empenharam-se em estudar o papel do Vaticano durante a apoiou ainda abertamente o Cardeal Mundelein, de Chicago,
Segunda Guerra Mundial (em particular depois do escândalo que havia lançado um ataque de extrema violência contra
provocado pela peça de Rolf Hochhut, O Vigário), não apre- Hitler 11. Por ocasião do Anschluss, finalmente, obrigou o chefe
sentaram ainda conclusões claras e definitivas. Não obstante, do episcopado austríaco, o Cardeal Innitzer (que tinha dado
que pensar dos documentos reunidos por um Saul Friedlander, ordem aos bispos e ao clero local para votar em favor da ane-
por exemplo, sôbre as relações entre Pio XII e a Alemanha xação), a uma retratação pública humilhante 12 •
hitlerista? 8 • Desde sua eleição como soberano pontífice, a 2 de março
Relações bem diferentes, de qualquer modo, das mantidas ele 1939, Pio XII deu uma direção completamente diferente
por Pio XI, seu antecessor. Em sua famosa encíclica Mit bren- à política do papado. A 15 de março, os alemães (após terem
nender Sorge, de 14 de ~arço de 1937, êste pronunciou-se cla- recebido o território elos sudetos na Conferência de Munique)
ramente: "Quem quer que tome a raça, ou o povo, ou o Esta- ocuparam também a Boêmia, que se tomou "protetorado da
do, ou a forma de Estado, ou os depositários do poder, ou todo Boêmia-Morávia". A 22, Diego von Bergen, embaixador da
outro valor fundamental da comunidade humana - tôdas as Alemanha junto à Santa Sé, enviou a Berlim o seguinte comu-
coisas que têm, na ordem terrestre, lugar necessário e honroso nicado: "Para informação confidencial. Soube de fonte certa
- quem quer que se utilize dessas noções para retirá-las desta que foram feitas tentativas, especialmente por parte dos fran-
escala de valôres, inclusive religiosos, e divinizá-las com um ceses, para levar urgentemente o Papa a associar-se aos pro-
culto idólatra, estará invertendo e falsificando a ordem das testos dos Estados democráticos contra a anexação da Boêmia
coisas, criada e determinada por Deus: estará longe da verda- e da Morávia ao Reich. O Papa recusou-se, muito firmemente,
deira fé em Deus e de uma concepção de vida correspondente a atender a êsses pedidos. Deixou entender aos seus auxiliares
a esta fé ... " 9. que não via razão para intervir em um processo histórico, no

7. Op. cit., p. 253. 10. Saul Friedlander, Pie XII et le Troisieme Reich, p. 228.
l:l. Pie XII et le Troisieme Reich, Paris, 1964. 11. Op. cit., p. 21.
9. Jacques Nobécourt, Le Vicaire et l"Histoire, Paris, 1964, anexos. 12. Op. cit., pp. 29-30.

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qual, do ponto de vista político, a Igreja não estava interes- Duas concepções da Igreja foram postas à prova no curso
sada" 13 • do período hitlerista. E foi do seio da Igreja Reformada, mal-
Alguns meses antes, às vésperas da Conferência de Mu- grado seu defeitos e fraquezas, bem como suas tentações para
nique, Karl Barth escrevia sua carta ao Professor Hromadka ... seguir também no sentido da grande corrente que arrastou a
Não se pode deixar de desembocar nas duas perguntas que Alem~mha, que nasceu uma Igreja de oposição. E não apenas
Friedlander faz, na conclusão de seu estudo: "Como podemos um movimento (Bewegung), mas uma verdadeira Igreja (Kir-
conceber que, ainda em fins de 1943, o Papa e os mais altos che). A fôrça profética de alguns, e de Barth em particular,
dignatários da Igreja desejassem uma resistência vitoriosa dos fêz compreender às comunidades confessionais que, além das
alemães no Leste e, portanto, parecessem aceitar, implicita- estruturas e das instituições, encontravam-se verdades evangé-
mente, a manutenção 7 mesmo que temporária, da máquina licas que era proibido calar ou apenas cochichar. Os reforma-
nazista de extermínio? Como explicar as manifestações de pre- dos estavam mais bem preparados para ouvirem esta mensagem
dileção particular que. o Soberano Pontífice continuava a pro- que os luteranos, presos aos seus bispos e a uma concepção da
digalizar aos alemães, até em 1943, conhecendo completamente Igreja afastada das preocupações sociais. Naturalmente rígida,
a natureza do regime hitlerista?" 14 e ainda mais emperrada e imobilizada pela atitude de Pio XII,
Para Barth, Hitler era a "bêsta do abismo"; para Pio a Igreja Católica foi incapaz de ouvi-la e, muito menos, de
a mais segura muralha contra o bolchevismo. Êste êrro de proferi-la.
julgamento, não apenas humano ou político, mas teológico, A palavra profética é sempre um risco. Barth não des·-
acarretou a extraordinária incapacidade de Pio XII de se pro- conhecia isto. :É, freqüentemente, fator de divisão na Igreja,
nunciar sem ambigüidade, e sua atitude evasiva ("A Igreja não como foi para os Judeus do Antigo Testamento. Mas que
está interessada"), sua fraqueza limítrofe da cumplicidade. Re- importa a unidade, que 4nporta a fachada, quando devem ser
sultado de seu silêncio: a terrível omissão de uma Igreja cristã, lembradas verdades que alcançam o centro da fé evangélica!
numa situação histórica em que todos os seus membros esta-
vam diretamente envolvidos, em sua existência física, moral e
espiritual. Barth, sabendo ver a ligação entre política e fé, deu.
pelo contrário, considerável apoio aos cristãos das Igrejas opri-
midas.
A coragem e o discernimento espiritual não são privilégio
da autoridade estabelecida. Um homem, uma Igreja! O homem
pode enxergar com maior justeza que a Igreja. E o "homem"
não foi apenas Barth. Houve também o abade Lichtenberg, o
pastor Niemoller (apesar de certos erros!), o padre jesuíta
Ddp. Houve, entretanto, grandes diferenças entre êsses homens
oorajosos. Os protestos individuais dos padres católicos foram
esmagados pelo pêso de uma hierarquia silenciosa. Enquanto
os opositores protestantes constituíram uma Igreja evangélica
autêntica (Igreja Confessante), desde o instante em que os
órgãos dirigentes da Deutsche Evangelische Kirche (da qual
continuavam formalmente a fazer parte), deixaram-se seduzir
ou coagir pelos nazsitas.

13. Citado por Friedlander, op. cit., p. 29.


14. Op. cit., J;J. 220.

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