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Original: Guillaume Groen van Prinsterer.

“Ongeloof en revolutie: Eene reeks van historische


voorlezingen”. S. en J. Luchtmans, Leiden 1847.
Traduzido do espanhol: Incredulidad y Revolucion: una serie de conferencias de historia. Tr.
Humberto Casanova. Disponível em: <http://www.felire.com/descargas/incredulidad-y-
revolucion.pdf>.
Traduzido para o português por Lorrayne Oliveira, Luiz Henrique, Matheus Feliciano, Samara
Ruana e Waldomiro Neto.
Atenção! Esta é uma tradução não oficial, provisória, pendente de revisão, disponibilizada aos
participantes do Núcleo Althusius de Estudos em Cosmovisão Cristã com a finalidade exclusiva de
facilitar o acesso às leituras propostas.
Os tradutores não autorizam que este material seja divulgado. Ele será disponibilizado
exclusivamente no grupo do Núcleo Althusius no facebook
(https://www.facebook.com/groups/althusius/).

Incredulidade e Revolução:
Uma série de palestras de
história
Guillaume Groen Van Prinsterer

Prólogo
Guillaume Groen Van Prinsterer (1810-1876), importante historiador e
estadista, estudou direito e os clássicos em Leiden (Países Baixos).
Como secretário do rei Guillermo I, foi um observador próximo da revolução
belga de 1830, a qual suscitou importantíssimas questões no constitucional e no histórico.
Neste tempo, Groen foi levado a uma sincera fé evangélica pelo ministério cristão de Merle
d’Aubigné, que também lhe introduziu às obras de Edmund Burke. A leitura destas
fortaleceu as crescentes convicções políticas antirrevolucionárias de Groen.
Mais adiante, Groen ingressou no parlamento, onde se tornou o maior dos
oponentes do movimento liberal no século XIX e do seu eminente porta-voz, Johan
Thorbecke. Os debates Thorbecke – Groen Van Prinsterer constituem um capítulo distinto e
crucial na história parlamentária dos Países Baixos. Groen defendia a monarquia
constitucional e os direitos parlamentares, e se opunha às tendências totalitárias da
democracia liberal. Mesmo quando estava cada vez mais isolado, a dissidência sistemática

1
de Groen e o seu harmonioso testemunho evangélico resultaram no fortalecimento do
governo parlamentar e no crescimento da liberdade.
Entretanto, Groen serviu durante várias décadas como arquivista da família real,
adquirindo justa fama através da Europa como editor de Archives de la Maison d’Orange-
Nassau, de vários volumes. Foi o pioneiro da historiografia científica nos Países Baixos e
estava em contato profissional com historiadores tão importantes como Guizot, Gachard e
Ranke.
Groen foi o líder da luta pela liberdade de ensino em seu país, onde na
atualidade as escolas paroquiais e as escolas cristãs privadas estão em pé de igualdade com
as estaduais. Por isso e por seus esforços para evitar que o modernismo tomasse os púlpitos
e seminários, se tornou muito famoso. Daí que nos surpreenda que fora extraordinariamente
bem vindo como orador na quinta conferência internacional da Aliança Evangélica,
celebrada em Amsterdan, em 1867.
Groen Van Prinsterer conduziu novamente o partido político evangélico dos
Países Baixos, a que se envolveu ativamente na vida pública. Ele foi o vínculo entre o
avivamento evangélico da década de 1820 e o despertar espiritual da década de 1880, entre
Bilderdijk e Da Costa, os poetas e Abraham Kuyper, o emancipador.
O livro Ongeloof em Revolutie, publicado no verão de 1847, é uma declaração
clássica do pensamento cristão antirrevolucionário. Sua tese central é que a revolução de
1879 foi preparada por uma revolução no pensamento europeu que se produziu durante o
século anterior, uma revolução que o autor identifica como fruto da incredulidade. A nova
filosofia política, argumenta Groen, que não reconhecia autoridade mais alta que o homem
e sua razão, foi uma consequência natural do ceticismo total por meio do qual a ilustração
se rebelou contra Deus e suas ordenanças para a vida humana. Neste livro, Groen apresenta
como a revolução, que finalmente surge à superfície visível em 1789, nasce com todo o
entusiasmo, determinação e rigor de um movimento apóstata que está no auge. Toda
interpretação da revolução francesa e suas repercussões que não examine o caráter religioso
dos acontecimentos os considera fundamentalmente desequilibrados.
Cabe destacar que as apreciações de Groen antecedem por toda uma década o
estudo de De Tocqueville sobre o Ancien Régime et la Révolution, no qual escreve que o
curso da revolução francesa estava influenciado preponderantemente pela rejeição que o
século XVIII teve na antiga religião. Mas onde De Tocqueville acrescentou: “sem por outra
em seu lugar”, Groen comenta: “A outra religião era a de Rousseau”1. Se tivesse conhecido
o livro de Groen, Carl Becker provavelmente não teria escrito o que escreveu em 1932:
“Não foi até o nosso tempo que os historiadores se têm desligado bastante da religião para

1
“A outra revolução era a de Rousseau!” Esta é a leitura atual de um comentário no manuscrito
de Groen que se encontra na pág. 229 de sua cópia de L’Ancien Régime et la Revolution, agora na
biblioteca real em La Haya. A publicação do livro de De Tocqueville aconteceu em 1856, enquanto que as
palestras de Groen eram ouvidas entre 1845-46.

2
entender que a revolução, especialmente em suas etapas posteriores, adquiriu o caráter de
uma cruzada religiosa”2.
Groen explica que devido às suas profundas raízes religiosas, a Revolução não
havia terminado com a Restauração, mas apenas tinha entrado noutra fase. Entretanto, os
homens não quiseram romper com o espírito da Revolução, que continuaria minando os
fundamentos da sociedade, e ainda faria com que eles fossem inevitáveis erupções como a
de 1830. A percepção do seu caráter permanente é, pois, inerente à visão de Groen acerca
da revolução. É desta percepção que Revolução e Incredulidade deriva seu tom profético3.
O autor não se surpreendeu pelos acontecimentos explosivos de 1848, no ano seguinte da
publicação destas palestras, porque cria que o único antídoto efetivo contra a Revolução é o
Evangelho. Revolução e Incredulidade nega que seja benéfica a secularização dos
assuntos públicos e chama os cristãos a não “ficar fora” da política.
Groen previu o deslizamento da política ocidental em direção à esquerda.
Apontou a solidez ideológica do socialismo comunista e previu seus triunfos. Considerava
que o radicalismo e o liberalismo eram dois ramos da mesma árvore, com uma raiz comum,
e advertiu contra a debilidade de uma oposição conservadora baseada somente em um
cauteloso interesse próprio. Groen não podia encontrar alternativas significativas dentro do
espectro político existente, onde, desde seu ponto de vista, a esquerda tinha crentes radicais,
o centro, crentes moderados ou resignados, e a direita, descrentes, que, ao não entender as
causas da tendência, somente podiam reagir contra seus efeitos desagradáveis. Para a
eleição entre essas alternativas era só escolher a velocidade de aplicação dos princípios da
revolução. Groen passou sua vida intentando traçar um novo curso para a política, em
conformidade com as linhas históricas cristãs antirrevolucionárias.
Nunca antes se havia publicado uma obra de Groen Van Prinsterer em inglês
(tampouco em castelhano). Porém, o leitor familiarizado com o inglês pode consultar o
artigo de G. H. Hospers, “Groen Van Prinsterer and his book”, no Evangelical Quartetly,
tomo VII (1935), páginas 267-286.
Desde seu começo em 1955, a tradução de Ongeloof em Revolutie para o
inglês (Unbelief and Revolution) tem sido um projeto de cooperação sob a direção geral
do professor Evan Runer. O trabalho foi iniciado por membros da Groen van Pristerer
Society, clube de estudantes em Grand Rapids, Michigan (U.S.A). Mais adiante, a maior
parte de uma primeira redação foi completada pelo professor Henry Van Zyl. Em 1963,
todo o manuscrito foi entregue a este editor.
A versão inglesa está baseada na primeira edição de 1847 com o fim de reter os
muito úteis resumos, as frases mais explícitas e de conexão, os parágrafos de transição, e as

2
Carl L. Becker, The Heavenly City of the Eighteenth-century Philosophers (edição em pale
Yale, 1959), Pág. 155.
3
Em um discurso político de 1860, Groen diagnosticou explicitamente seu tempo como um de
“permanente revolução”. Cf. Le Parti anti-revolutionnaire et confessionnel dans I’Eglise Réformée des
Pays-Bas (Amsterdam, 1860, pág. 31: “a Revolução permanente”.

3
acaloradas referências pessoais ao ambiente original da palestra, todos os quais o autor
suprimiu ao revisar seu livro em 1868. Todavia, da edição revisada retemos as notas de
rodapé de páginas adicionais, que estão marcadas com uma cruz e que são melhores quanto
ao estilo, ajudando a evitar as repetições desnecessárias. Também se indicam as variações
significantes no texto. Até onde têm sido praticadas, as citações de referência e outros
dados bibliográficos foram adaptados ao uso moderno.
Esta publicação é possível graças a um presente do Fundo Groen Van
Prinsterer, e é parte de uma série que, através de Deus, apresentará em forma completa
Incredulidade e Revolução. As páginas seguintes contém um dos capítulos chaves do
livro, junto com os prefácios do autor, que servem para apresentá-lo. As referências a
capítulos que ainda não estão disponíveis se incluem em forma provisória (por exemplo,
“veja acima, p. 00”). A bibliografia e a cronologia, feitas pelo editor, pertencem apenas ao
capítulo presente.
A primeira redação da Palestra XI foi preparada por Aadert Mennega há mais
de 15 anos. Agradecemos ao professor H. Smitskamp (já falecido) pela permissão de usar
algumas das notas explicativas de sua edição moderna em Holandês, de 1951.
Amsterdam, setembro de 1973.
Harry Van Dyke
O EDITOR.

Prefácio (extrato)
As seguintes palestras buscam demonstrar por meio da história que há uma
relação natural e necessária entre a incredulidade e a revolução; que a escola de
pensamento que, como resultado da auto exaltação do homem, domina atualmente no
direito constitucional e no saber –embora não sem oposição- surgiu de uma rejeição do
evangelho.
Tentei esclarecer, a partir da experiência passada, que esta perniciosa escola
transtornou sistematicamente os fundamentos da verdade e do direito a erigir castelos no ar;
que seu progresso, que comumente é exaltado até os céus, guia os homens pelo caminho da
dedução legítima ao radicalismo e ao ateísmo consumado; que seu princípio, tão pronto
como é adotado, deixa seus advogados sem defesa contra uma aplicação consistente, salvo
a interrupção violenta de seu desenvolvimento totalmente lógico.
A partir da natureza mortal do fruto, concluí – sem forçar o argumento – que a
árvore em que esse fruto cresce não é árvore de vida. A meta seria não cultivar a planta
venenosa, mas erradicá-la. Em outras palavras, cheguei à conclusão de que também no
campo da política o homem não pode colher senão o que semeou; e assim como uma

4
diferença de terreno não pode mudar o caráter peculiar da semente, o alterar as
circunstâncias não pode produzir mudanças na colheita revolucionária. Muito pelo
contrário, o inevitável do fracasso provém da natureza mesma do experimento. Como a
negação do Deus vivo está relacionada com a desordem, a injustiça e a escravidão, assim a
união da liberdade com a lei e a ordem, como a pedra filosofal, se busca em vão fora da
submissão ao maior Legislador e Rei. Mas, chega! De antemão, poderia declarar fácil e
ousadamente o que se apresenta cuidadosa e gradualmente no livro mesmo; seria-me fácil
assegurar que, introduzindo seu conteúdo de forma muito abrupta, o livro poderia ser
julgado inadequado e inconveniente para ser lido; que o trabalho no qual escrevi pela
primeira vez com certa extensão a totalidade do meu ponto de vista histórico-cristão seria
descartado com desprezo e indignação.
Excetuando umas poucas mudanças secundárias, estou apresentando o texto tal
como foi apresentado oralmente durante o inverno de 1845-46, na biblioteca de minha casa,
ante um pequeno número de amigos cujo interesse na tese e sua boa vontade para com o
orador foram assegurados. Inicialmente, não propus uma publicação rápida; mas planejei
revisar cuidadosamente estas palestras, mesmo quando já era o resultado de uma extensa
investigação e madura reflexão, e, atendendo ao provérbio Nonum prematur in annum
(“reter (o manuscrito) nove anos”, Horacio), levá-las à sua grande consumação através da
reflexão e investigação continuas. Entretanto, fiquei convencido de que nem o tema deste
estudo, nem a crise do nosso tempo faziam que tais planos fossem aconselháveis, nem
permissível seu trânsito. Quando um se arrisca a tratar questões de peso, nada tende à
perfeição no que diz respeito ao campo dos desejos insatisfeitos.
Também aqui em nosso país se está travando uma batalha acerca da História e
do Direito Constitucional. Esse é um debate do qual não desejo permanecer fora. Esse
conflito alcança aos mais apreciados e sagrados interesses de nossa pátria e da humanidade,
e, direta ou indiretamente, relega a um e a outro o reconhecimento ou a rejeição da Luz do
Mundo e, por conseguinte, da salvação das almas imortais.
Portanto, em vista do peso do problema e da urgência do momento, não me foi
permitido desprezar, deixando de lado os escrúpulos egoístas com relação à publicidade
que na hora do perigo não é hora de preparação: que quando a espada do inimigo reluz por
todos os lados, não se deve afiar e polir suas armas, mas fazer uso delas.
Concluo com a declaração de que, frente a toda a sabedoria do homem e
consciente de minha fragilidade, tenho como lema duas frases que sinalizam vitória: Está
escrito! e Aconteceu!: Uma base que prevalecerá contra qualquer artilharia, uma raiz que
se sustentará ante todo vento de incredulidade filosófica. Aconteceu! Esta é a História a
qual também é carta flamejante do Deus santo. Está escrito! Isto é Santa Escritura, na qual
evento e doutrina têm sido inseparáveis, porque é, ademais, Escritura histórica. A História,
que está formada não simplesmente pela sucessão de atos, mas especialmente pelo
desenvolvimento de ideias. A História, que recebe seus princípios, significado, direção e
unidade dos atos da Revolução. A Santa Escritura, que dita suas próprias leis aos seus

5
estudantes, confundindo na loucura da cruz a profundidade do filósofo ou sofista, com a fé
humilde das pequenas crianças. A Santa Escritura, que dá testemunho do Cordeiro que foi
imolado, da vara do tronco de Jessé e Leão invencível da tribo de Judá, filho de Davi,
Senhor de Davi, Deus e homem, Mediador e Juiz, que depois de estender o cetro da graça
em vão, tem em sua mão uma vara de ferro para quebrar a gente soberba. A História e A
Escritura, que, em uníssono, ante a benção legalmente perdida de uma medida de
longanimidade que excede todo o esperado, dirige o pecador convertido até Ele, o qual
revelou a si mesmo em toda a glória de suas perfeições – também em solo holandês – e cuja
promessa e ameaça – “Honrarei aos que me honram, e os que me desprezam serão
desprezados” (1 Sam. 2:30) – se cumpriu na magnitude da benção, através da qual uma
nação que dificilmente era nação foi elevada a um primeiro lugar entre as potências, e na
magnitude da humilhação e miséria que a negação de Seu Nome santo trouxe sobre uma
posteridade ingrata...
Agosto 1847.

Prefácio da segunda edição


Para esta segunda edição, simplesmente umas curtas frases a modo de
introdução.
Apenas Incredulidade e Revolução havia feito sua aparição pública quando
explodiu a Revolução de 1848 na França e Europa.
O texto é virtualmente o mesmo; porém, nas notas, por meio de referências
adicionais aos meus escritos subsequentes, esforcei-me por converter em útil a experiência
de vinte anos em uma época excepcionalmente revolucionária.
Por conseguinte, se fará evidente que minha convicção, que se cristalizou numa
perspectiva cristão-histórica ou antirrevolucionária do mundo, não permaneceu
precisamente igual, mas se fortaleceu: com todos seus méritos, a sociedade moderna, tendo-
se escravizado à teoria da incredulidade, está sendo guiada de forma crescente a uma
negação sistemática do Deus vivo.
Julho de 1869
Groen van Prinsterer.

6
Palestra XI:
História da Revolução em
sua primeira fase:
a preparação (até 1789)
Para benefício dos que estão conosco pela primeira vez esta noite, me permita
começar com umas poucas palavras acerca do ponto de vista, do objetivo e do
desenvolvimento destas palestras.
Nosso ponto de vista é o do cristão que não deseja gloriar-se senão em Cristo e
este crucificado. Na religião, na moralidade e na justiça, no lar e no estado, o cristão não
reconhece sabedoria alguma nem verdade que não comece com a submissão de mente e
coração à revelação. Não apenas encontra e nota a direção de Deus na história, como o
deísta, mas, fiel e dedicado ao Evangelho, reconhece e espera a solução dos enigmas da
história da humanidade na primeira vinda de Cristo e na segunda vinda triunfante do
salvador. Ama a vinda do Redentor porque discerne nela, nas palavras do historiador Von
Muller, “o cumprimento de todas as esperanças, a culminação de toda filosofia, a
explicação de todas as revoluções, a chave de todas as contradições aparentes do mundo
físico e moral, a vida e a imortalidade”1.
Quanto ao nosso objetivo, a cada um de nós veio esta palavra: “Cada um
administre aos outros o dom que recebeu, como bons administradores da multiforme graça
de Deus”2. Depois de tudo que trabalhei no estudo da história, considero que fui chamado
para ser testemunha neste terreno da verdade que está em Cristo. Este desejo também é para
estas reuniões. Propus-me demonstrar, em traços largos, que a história dos últimos sessenta
anos (o autor ministra esta palestra em 1845), com seus derrapes de iniquidade, foi o fruto e
a manifestação da sistemática incredulidade.
O desenvolvimento das palestras foi o seguinte: começamos examinando o
antigo direito constitucional positivo, e alegamos a conclusão de que a Revolução não se
pode explicar como uma simples reação contra certos princípios, formas de governo ou
abusos. Em seguida, encontramos que a perversão do direito constitucional não foi em si a
fonte da Revolução Francesa. Desde modo, preparamos o caminho para descobrir a
verdadeira causa. Encontramo-la na apostasia do Evangelho. Vimos como a decadência
religiosa havia começado já a ameaçar a dissolução dos estados quando a benção da
Reforma enfrentou a corrente. Todavia, também vimos como a verdade, posta sobre o
candelabro no século dezesseis, foi posta debaixo do alqueire por meio da apatia e da
degeneração moral quando o século dezessete chegava ao seu fim. Como resultado, a

1
Johann von Muller, citado em minha Proeve, pp. 47-76
2
1Pedro 4:10

7
filosofia do século XVIII, essa negra noite de incredulidade, conseguiu que seu fogo fátuo
passasse pela luz solar.
Nas três últimas palestras, trarei de demonstrar que a incredulidade, como
germe do erro e corrupção, deve, como teoria e prática, culminar no ateísmo e no
radicalismo, duas realidades que de costume, mas equivocadamente, são tidas como
simples excessos da doutrina incrédula da liberdade.
Agora, me voltarei à história, para encontrar a confirmação na prática do
princípio da Revolução que até aqui deduzi somente a parti de sua lógica.
Assim que nesta noite começaremos com a história3 da Revolução. Primeiro,
quero referir-me a algumas características que capto através da era revolucionária. Logo,
explicarei como divido a síntese histórica. Finalmente, na última e maior parte da palestra,
quero refletir acerca da Revolução em sua primeira fase, a Preparação.
Desejo começar, como disse, com algumas características gerais. Devido ao
nosso tempo limitado, contento-me em fazer uma lista dessas poucas características
recorrentes e discuti-las brevemente:
a. A Revolução é única em seu gênero.
b. Direta ou indiretamente influenciou sobre todo o Cristianismo.
c. Destrói os fundamentos do direito.
d. Nunca foi posta em prática em forma total.
e. Sempre teve sua identidade, apesar de aparentes conflitos de formas.
f. Não encontrou oposição, exceto em seu próprio seio.
g. Perde seu poder quando é confrontada com o Evangelho.
a. A Revolução é única. Em sua origem teórica e em seu curso não a podemos
comparar com evento algum de tempos anteriores.
Uma mudança de regentes, uma redistribuição do poder, uma mudança na
forma de governo, o conflito político e a luta religiosa nada têm em comum na esfera da
ação e dos princípios com uma revolução social cuja natureza está dirigia contra todo
governo e toda religião. Nada têm em comum com uma revolução social, ou mais
exatamente antissocial, que mina e destrói a moralidade e a sociedade; com uma revolução
anticristã, cuja ideia principal se desenvolve numa rebelião sistemática contra o Deus
revelado.
A revolução holandesa foi comparada com ela, como tem sido a revolução
americana. Com respeito aos Países Baixos, simplesmente referem-se ao que muitos,

3
Para ajuda do leitor, foi incluído uma cronologia da Revolução ao final deste volume.

8
inclusive eu, têm dito repetidas vezes a respeito; quanto aos Estados Unidos, apelo ao
notável trabalho de Baird4. Tampouco posso admitir que as revoluções inglesas sejam
comparáveis à revolução francesa. Se encontras algo parecido entre as revoluções de 1688 e
1789, deverias ler Burk sobre a semelhança no aspecto externo e o contraste na essência e
no princípio.5 Em sua ideia principal a Revolução europeia não se pode comparar sequer
com a de 1640 nem às correntes democráticas e à tirania dos dias de Cromwell6.
b. A revolução é uma revolução europeia, uma derrubada do Cristianismo7.
Também isso, mesmo quando é evidente a partir da natureza mesma do caso, se confirma

4
Quanto à revolução Holandesa, veja-se meu livro Handboek. Parágrafo 131: “O objetivo
principal da guerra era a liberdade de culto cristão, assim como a supressão do Evangelho havia sido sua
causa principal. Sobretudo, a luta começou por razões religiosas, e, às vezes, exclusiva e unicamente, a luta
continuou por causa da religião”. Quando à revolução americana: “A separação das colônias do domínio de
Gran Bretanha e a reorganização de seus respectivos governos produziram mudanças menos essenciais que à
primeira vista poderia supor. O Rei, o Parlamento e o Juiz Maior da Inglaterra foram excedidos pelo
Presidente, o congresso e a Corte Suprema da América, permanecendo essencialmente sem mudanças a
natureza do governo”. Baird, Religión in the United States of America, p. 62 (Groen cita a tradução
francesa de Burnier, De la religion aux Etats-unis d’Amérique, I, 63).
5
“Nestes dois períodos (o da restauração de 1660 e o da Revolução de 1688), a nação havia
perdido o vínculo de união em seu antigo edifício. Porém, não dissolveram toda a trama. Pelo contrário, em
ambos os casos regeneraram a parte deficiente da velha constituição através das partes que não estavam
deterioradas. Mantiveram essas partes antigas exatamente como estavam, para que as partes reestruturadas
fossem adequadas. Atuaram por meio dos estados antigos organizados na forma de sua antiga organização, e
não pela organização molecular de pessoas debandadas. Talvez em nenhum momento a legislatura soberana
tenha manifestado uma consideração mais tenra a esse princípio fundamental da política constitucional
britânica que no tempo da Revolução, quando se desviou da linha direta da sucessão hereditária... quando a
legislatura desviou a direção, mas manteve o princípio, mostrando que os consideravam invioláveis”. Burk,
Reflections on the Revolution in France: em Works. V. 59. Heeren fala justamente da assim chamada
Revolução de 1688, descrevendo-a como “um estabelecimento mais preciso das formas que ademais eram,
em sua maior parte, as formas antigas”. Haandbuch, p. 263. A Revolução de 1688 (que foi realizada sob seu
lema de luta Je maintiendrai (manterei) em mais de um aspecto foi uma restauração. “A atual revolução na
França me parece de um caráter e descrição completamente distintos, e que tem pouca semelhança ou
analogia com quaisquer das que se produziram na Europa, sobre princípios puramente políticos. É uma
revolução de doutrina e de dogma teórico”. Burk, Thoughts on French Affaris etc. etc., Whritren in
December 1791; en Works, VII, 13.
6
“Não há eventos na história que mais comumente sejam considerados paralelos que a grande
rebelião na Inglaterra e a revolução francesa. Na realidade, com certos pontos de semelhança, não existem
outros que sejam mais distintos”. Alison, History of Europe, I, 32, Cf. Tocqueville: “Não há dois eventos
que sejam mais distintos que vossa revolução de 1640, e nossa grande revolução de 1789... Em minha
opinião, são completamente incomparáveis”. Tocqueville a Lady Thereza Lewis, 6 de Maio de 1857;
Correspondance, II, 381 s. Pense nas palavras de Stahl: “A liberdade da Inglaterra e da América respira o
espirito dos puritanos; a liberdade da França, o espírito dos enciclopedistas e jacobinos”. Parlamentarische
Reden, p. 87s. Para uma resposta à pergunta: “Por que a revolução inglesa teve Êxito?” Leia-se Guizot,
Pourquoi la Revólution d’Angleterre a-t-elle réussi? E quanto a uma réplica a uma pergunta tão
frequentemente repetida com arrogante sofisticação, se nós, os antirrevolucionários, nos opomos então a todas
e a cada uma das revoluções, veja-se meu Ter Nagedachtenis van Stah, p.27 (“Por certo nós somos opostos
a cada revolução. Também conhecemos as datas 1752 e 1688. À que nos opomos é a Revolução... o
derrocamento sistemático das ideias por meio do qual o estado e a sociedade, a justiça e a verdade se fundam
na opinião humana e na arbitrariedade, e não nas ordenanças divinas”).
7
“Esta grande revolução foi preparada simultaneamente quase em toda Europa continental”.
Tocqueville, L’Ancient Régime, p.XI “O sistema revolucionário é aplicável a todas as nações”. Mallet du
Pan, Memoires, II, 134. A Revolução é, por assim dizer, cosmopolita.

9
por meio de uma consideração atenta da história. Evidentemente, junto com a identidade de
princípios e de direção, os desenvolvimentos diferem de país para país. Alguns de vocês me
perguntaram até que ponto a sucessão de fases, como esbocei à priori, se pode observar,
por exemplo, na Inglaterra. Esta pergunta é legítima, posto que meu modelo, se é correto,
deveria ser válido onde quer que chegasse a dominar o princípio da Revolução. Entretando,
surgiram diferenças que dependem de se o princípio da Revolução chegou a ser dominante,
e , nesse caso, em que medida.
Alguns países, como a França, e os Países Baixos tiveram revoluções; aqui
encontramos em forma completa nosso modelo. Outros países em certos aspectos foram
conduzidos sob a influência das ideias da Revolução; aí a situação é mais complicada. Em
alguns países a teoria seguiu ganhando terreno mesmo quando a prática, talvez devido a
eventos vistos noutros lugares, pulou uma fase ou parte dela: assim a ação revolucionaria
chegou a ser a pedra angular da política nos estados onde o desenvolvimento apenas havia
começado. Em breves palavras, o fato de que a Revolução seja universal não significa que
suas fases ocorram em todas as partes ao mesmo tempo. Pois bem, a Inglaterra, a julgar
pelas modificações que experimentaram as ideias revolucionarias nas mentes de muitos de
seus estadistas, alcançou já um período de desânimo e decrepitude, ainda quando seu estado
e sociedade não haviam sido transtornados. A luta contra o jacobinismo parou
temporariamente o progresso lógico da Revolução. Não obstante, a fase de preparação
interna está agitando até agora a Inglaterra. Já não há ali uma mão firme que mantenha o
direito público tradicional. Entretanto, enquanto sua constituição permanecer em vigor, a
Inglaterra continuará sendo rica em privilégios e desigualdades, que continuarão
fomentando a mentalidade revolucionária. Pelo que se pode dizer que a Inglaterra ainda
permanece no umbral da agitação política8.
c. A doutrina da Revolução minava e destruía os fundamentos do direito.
Onde quer que a Revolução tenha agido, foi feito manifesto que considera o
direito como uma simples convenção, produto da vontade humana. Desse modo, sempre
variável em sua origem, o direito é entregue à arbitrariedade. A legalidade é substituída
pela “formalidade nos trâmites”, a legitimidade, pela “ordem legal”9.
Como vocês sabem, alguns pensam que pertenço a uma agrupação de
legitimistas parisienses ou que pelo menos simpatizo com eles10. Isso não impedirá que eu
expresse meu completo acordo com o princípio de legitimidade mostrado nas seguintes
linhas:

8
Desde 1847 a Inglaterra aproximou-se ainda mais, como se se desprendesse de sua política
interna e externa.
9
“O oposto da soberania popular e, portanto, a verdade básica da política é o princípio de
legitimidade, isto é, da autoridade da ordem existente quando ao direito e o governo... O conceito de
legitimidade e de governo de Deus é nada menos que absolutista. Exatamente o oposto”. Stah, Die
Revolution und die consstitutionelle Monarchie, pp. 18, 20. Veja-se também meu Grondwetherziening,
pp. 338ss., 472.
10
Cf. acima, pp. 000.

10
Existem matérias sagradas, invioláveis, legítimas, que, colocadas sob os
escudos da justiça reconhecida universalmente, não devem jamais ser mudadas, e não
podem ser sacrificadas por nenhuma vontade humana. Este é o princípio de legitimidade
em sua mais alta universalidade.
Não existe a justiça universal. Nada é sagrado, inviolável, legítimo. Todas as
leis podem ser mudadas à vontade do soberano, e o mais forte é o soberano. Todos os
direitos podem ser sacrificados em prol do bem estar geral, que é aquilo que definimos ao
nosso gosto. Aí você tem o princípio da ilegitimidade, o da Revolução em todo seu alcance
colossal11.
d. A teoria revolucionaria nunca se levou a cabo em forma completa.
Esta tese é apoiada sem exceção pela história. Em 1816 Haller escreveu acerca
do experimento na França e em outros lugares: “Na realidade, não houve contrato social,
nem soberania do povo, nem separação de poderes, senão somente uma luta de partidos
para tomar possessão do poder supremo”. E o que se pode dizer em 1816 é igualmente
inegável em 1846: “todo intento de pôr em prática o sistema filosófico fracassou
amplamente”. A teoria jamais se levou a cabo porque sua realização era uma
impossibilidade. “Fracassou porque tinha que fracassar, devido a que o sistema mesmo era
falso, impraticável e contrário à razão, e porque a força onipotente da natureza resiste a sua
execução”12.
Todavia, alega-se que esse fracasso foi ocasionado por desvios ou excessos,
pela falta de maturidade dos povos, por uma desgraçada conjunção de circunstâncias, por
erros e deslizes pessoais.
Não houve desvios nem excessos, mas aplicação. A aplicação foi imposta sem
consideração da humanidade, é verdade; mas sempre seguindo o caminho projetado. Na
verdade, o horrível experimento sequer chegou ao topo, mas ao abismo do seu
desenvolvimento puro e completo. “Não se pode alegar”, escreve Haller.
“que os princípios se têm esticado em demasia, que são estranhos, ou que têm
sido mal aplicados quando os resultados se derivam rigorosamente das premissas. Se os
preceitos são saudáveis como as leia naturais, devem ficar mais firmemente estabelecidos,
bem como autenticar-se por seus resultados e efeitos. Não é verdade que estes princípios
foram demasiado grandes; pois bem, tudo fracassou porque os princípios eram falsos. Na
realidade, seria fácil demonstrar que, dos princípios, fluíram em forma por demais rigorosa
as consequências mais desastrosas, que fizeram agitar a mais de um dos seus partidários, e
que ainda muitos outros males e horrores resultariam se o coração do homem e os

11
Journal des débats, 1819.
12
Haller, Restauration, I, 332, 321, 332s. “O grande sinal e julgamento sobre a teoria da
Revolução é que suas constituições não somente careceram de durabilidade, mas que quase todas ela sequer
puderam chegar a realização. Nenhuma constituição da França, para usar a célebre expressão, chegou a ser
verdade”. Stah, Philosophie des Rechts, III, 364 (“llegó a ser verdade”: alusão à expressão “la charte-verité”;
veja-se abaixo, p. 000n0. Nota de H. Smitskamp)

11
sentimentos naturais menos corruptos que os sistemas prevalecentes, de vez em quando,
não se revelasse contra os erros da mente para deter sua aplicação.13
Foi dito que os povos não estavam maduros. Singular pretensão! Em meio ao
som de trombeta do progresso e a ilustração, uma vez que tinha de pensar em adágio:
“agora ou nunca”. Se esta geração, que dá lições à humanidade, não está madura, quando
então, por favor, diga-me, maturaram os povos? Aliás, este pretexto está dificilmente em
harmonia com o que temos dito acerca da verdade do princípio e da excelência das formas
derivadas dela.
Descreves-me uma teoria que promete a perfeição do homem no estado e
sociedade, e quando me alegro e desejo a realização da promessa, apontas para um futuro
distante, e exigis que o fruto, com o fim de se beneficiar dos raios quentes, amadureçam
com antecedência. Pensei que seu novo sol iria acariciá-lo a amadurecer!
Rousseau escreveu: “Se houvesse uma nação de deuses, poderia ser governada
democraticamente. Um governo tão perfeito é impróprio do homem”14. Eu prefiro dizer:
um governo tão imperfeito. Depois de tudo, a excelência de uma doutrina é proporcional às
dificuldades que supera. Observa a doutrina que os cristãos professam. Na verificação
experimental das palavras: “Estando nós ainda mortos em nossos delitos e pecados, nos deu
vida juntamente com Cristo”15, no desenvolvimento e florescimento da moralidade no
plano da doutrina evangélica, está a evidência duradoura do poder divino. Mas quando a
sabedoria terrena inverte a ordem, e diz: “Primeiro, que o povo seja bom, e depois iniciará
sua melhoria; primeiro, viva, e depois poderá ver o fruto de minhas lições”, então
reconhecemos que esta é uma confissão de impotência e uma contradição à expectativa
indicada. Então decidimos com muita ousadia: os povos nunca estarão suficientemente
maduros para encontrar a felicidade por meio desta doutrina, pois sua natureza é perniciosa.
Mas se afirma que a causa e o defeito está nas circunstâncias ou nas pessoas.
Deste modo, por meio de todo tipo de evasivas, se ignora o caráter único da raiz. Com igual
direito um poderia culpar a aridez do solo, a instabilidade do tempo, a multiplicação dos
bichos ou a incompetência do vinicultor, pelo fato de que um não pode colher uva dos
espinheiros ou figos dos abrolhos. Com igual direito um poderia elogiar as qualidades de
uma árvore, da qual sempre se colheu frutos mortais. Um se queixa das circunstâncias ainda
que todas sejam favoráveis. Um se queixa dos desvios e aberrações dos homens, e
esquecem que sob a influência das ideias da revolução, a livre escolha fica restringida
exclusivamente a variedade de caminhos que produzem perda.
Em todo lugar, o princípio da Revolução retêm sua identidade.
Os homens estão obcecados com uma anarquia que chamam de liberdade, ou
com uma arbitrariedade que se gaba de ser uma administração forte e brilhante, ou com as

13
Haller, Restauration, I, 326s.
14
Rousseau, Do Contrato Social; em Oeuvres, II, 88 Cf. acima, p. 000n.
15
Ef. 2:5

12
instituições representativas do liberalismo que ocultam a vã busca de um equilíbrio
inalcançável. O jacobinismo, o bonapartismo, o constitucionalismo16 são todos ramos de
uma mesma árvore, ou melhor novos brotos de um mesmo ramo: prolongações da linha que
o princípio da Revolução projetou para si na forma (para usar a expressão de Goethe) de
um espiral, um caminho de autoaperfeiçoamento. Não são três filosofias políticas, mas uma
e a mesma filosofia tripartida17.
Me parece que esta observação lança muita luz, não apenas sobre as
características dos acontecimentos, mas também sobre a conduta das pessoas.
Somos irritados pela carreira camaleônica de quem começou sendo jacobino,
depois se voltou para o bonapartismo e terminou se opondo a toda administração legal. Nos
sentimos irritados, e com razão, quando a paixão criminal, a ambição e o egoísmo
conseguem se moldar a fim de estar em dia com a moda:
“Em tempos de revolução sempre aparece uma raça de seres perversos, a quem
resulta agradável o mal, e que o amam por amor ao mal. Somente na cúpula das ruínas
podem respirar livremente, e quando lhes permitem ter o poder, o crime flui de suas almas
como larva de um vulcão. Outros, ocupados com seus interesses pessoais, e
indiferentemente a qualquer outra coisa, fomentam a desordem com o propósito de criar
oportunidades favoráveis para seu benefício pessoal. Se vendem a quem queira que lhes
pague. Hoje se encontram em clubes revolucionários exigindo a cabeça de reis; amanhã
serão vistos ajoelhados ao pés do menor dos tiranos, adorando seus caprichos e justificando
seus crimes”18.
Assim é, mas o personagem descrito por Lamennais não é aplicável em todos
os casos. Houve quem fez mudar suas convicções ao mesmo passo que muda a prática da

16
“A monarquia constitucional em seu verdadeiro significado é o progresso moral”. Sthal,
Diegagenwärtige Parteien, p. 173. A monarquia constitucional nada tem em comum com o
Constitucionalismo, a doutrina da separação de poderes, de controle e equilíbrio, no qual o papel do rei se
dissolve convertendo-se em poder executivo.
17
“O que caracteriza a atitude prevalecente do homem europeu ainda na atualidade é a crença
persistente em um estado absoluto que está por cima de toda lei existente. As três principais formas de
governo, o republicanismo, o constitucionalismo e o imperialismo, em essência estão baseados no mesmo
princípio, não importa quão diferentes possam ser em sua aparência externa. Quando se trata de combater a
Verdade, os seguidores das três escolas sempre cooperavam, não importa quão veementemente se combatem
depois da vitória”. Berliner politisches Wochenblatt, 1832, p. 222. Enquanto a imagem que Goethe tem de
espiral, ver meu Proeve, p. 55 (“Como pode um sistema desmentido pela história e pela Escritura – Isto é, a
doutrina da perfectibilidade – haver-se feito tão popular? Havia necessidade de coerência e unidade, o que a
incredulidade não pode encontrar em outra forma... se falou extensamente de melhorias, real ou imaginária,
sem fazer exame algum da fonte (se era homem ou de Deus, por impulso humano ou por um poder superior).
O estancamento e a regressão foram considerados caminhos indiretos para o progresso, rodeios necessários
para alcançar a meta (Madame de Stael disse: Acerca da perfectibilidade da mente humana Goethe disse uma
palavra cheia de sabedoria: “Está sempre avançando, mas em uma linha espiral”. Dada esta via de escape,
não há evidência histórica que possa silenciar estes defensores da perfectibilidade). Assim, toda a história foi
distorcida em uma forma arbitrariamente escolhida. Esta doutrina penetrou aonde o homem não tem um
conhecimento decente da história ou das Escrituras...”!
18
Lamennais, Oeuvres completes, II, 247.

13
Revolução, mas, não obstante, sempre estavam trabalhando com o mesmo zelo pelo mesmo
objetivo: a realização prática da teoria revolucionária.
Nos sentimos ofendidos por muitos estadistas cujo liberalismo resplandeceu
quando estavam fora do governo, mas que, havendo tomado responsabilidade do governo,
se destacaram por sua arbitrariedade. Nos sentimos ofendidos, e repito, às vezes com razão.
Às vezes, é inconfundível a falta de honra e de boa fé. Não obstante, poderíamos ir
demasiadamente longe com a desconfiança, e retirar o respeito a homens que o merecem.
Ao menos, em alguns dos casos em que sua conduta irresponsável e traiçoeira, estes
instrumentos úteis da doutrina da Revolução, somente estavam sendo fieis a teoria, que,
através de todas suas mudanças, poderia tê-los desapontados em seus resultados, mas não
em suas promessas.
Estamos indignados com quem foi servil com a mesma prontidão a todos os
goverbos, e não vacilou em jurar ou aceitar um cargo distinguido ou bem remunerado . nos
sentimos indignados, e aqui novamente digo: os muitos casos, nos quais os homens são
motivados pelo interesse pessoal e a ambição, justificam nossa indignação. Mas não
percamos de vista ainda as concepções alteradoras de estados e governos. Foi sempre um
estado revolucionário o que sobreviveu e seguiu vivendo. As diversas revoluções somente
foram mudanças de poder revolucionário, no sentido de que cada administração, a sua vez,
era reconhecida como resultado da onipotente vontade da maioria. Assim, segundo esse
ponto de vista, o governo não era, como anteriormente, um monarca ou uma corporação
soberana cuja existência independentemente do estado permanece ou cai. Mas, o governo
era uma encarnação passageira do estado, uma manifestação transitória do povo soberano,
designado para ser somente servo da nação, mandatário do país. Por isso, apoiar ou se opor
ao governo passou a ser um assunto centrado em pessoas, questões que se solucionavam em
nome da opinião pública logo que o partido mais forte conseguia o poder. Em
consequência, longe de ser considerada uma lealdade digna de elogio, a adesão a um
governo caído passou a ser um prejuízo, quiçá alta traição 19. Assim, Falleyrand alegava que
ao servir a cada governo e ao abandoná-lo, sempre havia permanecido fiel ao seu país, e
consequentemente a si mesmo20.

19
Pátria e Nação se identificam com o estado, com um governo. Então, o país de um consiste
em “a esmagadora unidade do poder central entronizado como símbolo da unidade nacional”. Guizot,
Mémoires, III, 217 (a ênfase foi acrescentada). Esta confusão dos conceitos gradualmente levou a ver a pátria
em todo regime estabelecido com êxito (cf. acima, PP.00s,000s). Assim o juramento se converteu
simplesmente em um compromisso com a forma em que a vontade do povo encontrava-se organizada em
qualquer momento; onde a lealdade a qualquer governo caído, ainda que da dinastia mais nativa, se converteu
em delinquência de estreiteza mental e abandono do dever.
20
(Charles Maurice de Talleyrand-Pèrigord (1754-1838), consumidor de oportunidades,
intrigou para servir e abandonar quantos homens e causas mortais fossem necessárias. Primeiro, desempenhou
um papel na Revolução e logo teve elevados cargos sob o domínio de Napoleão, Luis XVIII e Luis Felipe.
Em 1789/90 esteve entre os primeiros prelados em advogar pela constituição das terras das igrejas para
benefício da nação, e concordar com a constituição civil do clero. Depois de um breve exílio político passado
na América serviu como ministro das relações exteriores sob direção, mas com lealdade provisória. Ajudou
Napoleão ascender ao poder quando sua estrela estava em ascensão, mas o abandonou quando seus dias

14
Como toda aquela grande geração a que pertenceu, Talleyrand, amava
sinceramente sua pátria e, jamais perdeu sua afeição pelas ideias de sua juventude e os
princípios de 1789 permaneceram com ele através de todas as mudanças de sucesso ou de
fortuna. Sem nenhuma vergonha, podia falar dos governos aos quais serviu e havia
desejado. Dizia não ter servido aos governos, mas ao país, sob a instituição política que lhe
pareceu mais adequada no momento, e que nunca quis sacrificar o interesse de alguém que
esteve no poder...21.
Sem responder a pergunta se é ou não aplicável, realmente, a desculpa ao astuto
egoísta que a sistematizou, não se pode duvidar que este ponto de vista, tipicamente
revolucionário, teve grande influencia nas ações de muitos.
f. A história da Revolução também confirmará a seguinte tese, a qual atribuo
um especial importância: Em meio a muita controvérsia, nunca foi expresso um desacordo
com a essência da Revolução como tal.
Muitos esforços que foram considerados como tais não foram de modo algun
antirrevolucionários. Não houve uma guerra que não fosse civil e fratricidas, uma luta
constante entre os revolucionários. A falsa teoria, resistida em seu desenvolvimento, nunca
foi atacada em sua origem e raiz22. Nem sequer pelo eruditos. Haller escreve:
Por respeito à verdade há que dizer que os ataques feitos pelos eruditos nunca
foram suficientemente firmes e completos, e que careciam, especialmente, da forma sólida
e sistemática necessária para se opor ao erro. Me parece que a mesma falta é comum ao
numerosos autores, que durante a revolução francesa combateram a mesma revolução ou
seus princípios e consequências. Empregando somente as armas da história contra o sistema
filosófico, alguns demonstraram que nunca existiu o contrato social, não obstante, não
puderam demonstrar que não poderia nem deveria existir. Outros atacarm somente as
consequências perigosas, não os princípios; os frutos ruinosos, mas não a raiz do erro.
Finalmente, demonstraram ser incapazes de edificar um sistema rival que foi satisfatório
em todos os aspectos e adequados para explicar de um modo legítimo e completo a origem,
natureza e o exercício da autoridade soberana. Não conseguiram apresentar as coisas como

pareciam contados. Incitou a restauração dos Borbones, a quem representou no Congresso de Viena por parte
da França, mas logo se uniu à posição da esquerda liberal, e ajudou a preparar o golpe orleanista de 1830.
Ainda quando os motivos de Talleeyrand estiveram sujeitos a muita expeculação, seus êxitos substanciais
como estadista são um fato estabelecido.).
21
Mignet, Etudes et portraits politiques, I, 159.
22
Cf. meu Verspreide Geschriften, I, 124-134 (Reimpresso de Nederlandsche Gedachten
(27 de setembro a 19 de novembro de 1831): “Causa principal de muitas revoluções que flagelam o mundo
civilizado é a falsa filosofia de que a incredulidade é a fonte e os eternos conflitos. Essa doutrina fatal deve
ser atacada em sua origem, no princípio da qual brota. Isso foi feito? Dificilmente. Não se fez em 1789 nem
em 1815, nem em 1830. Não houve conflito sobre a doutrina, mas somente em grau de desenvolvimento e no
modo e oportunidade da aplicação... ainda quando a doutrina foi resistida em muitas formas a medida que se
desenvolvia na história, ninguém a atacou ao coração: o princípio foi aceito e rejeitaram as consequência,
ainda quando o princípio era falso e as consequência corretas”).

15
realmente são, em seu aspecto verdadeiro. Advertiram contra o veneno, mas não puderam
oferecer um antídoto eficaz23.
Atuaram como o médico incompetente que ataca os sintomas, mas não
reconhece a causa da doença.
Considero importante este último ponto, pois nos tranquiliza em relação a
suposta insuperabilidade do erro. Porque se o princípio é a incredulidade, o remédio está na
crença, na fé.
Não há razão para desanimar, no entanto não foi provada a cura infalível, e ela
ainda está disponível. O que se pode aprender da experiência da era revolucionária? Que o
homem, sem Deus, ainda que as circunstâncias estejam a seu favor, nada pode fazer a não
ser trabalhar para sua própria destruição. O homem deve romper o círculo vicioso
revolucionário: deve voltar-se para Deus cuja verdade pode resistir ao poder do erro. Se
alguém considera que esta lição transcendental da história é mais um lamento sentimental
que um conselho para a política está esquecendo que o poder do evangelho para a
realização da ordem, a liberdade e prosperidade foi demonstrado pela história do mundo.
Tenha por certo que tudo o que é útil e traz benefício ao homem é promovido pelo temor de
Deus, e é frustrado pela negação de Deus. Deve-se ter por certo, especialmente, que a teoria
revolucionária foi um desenvolvimento do germe da incredulidade, e que a planta
peçonhenta cultivada pela apostasia murchará em uma atmosfera de avivamento da fé.
A estas características da história da Revolução, permita-me acrescentar agora a
arbitrariedade da autoridade estatal revolucionária, que foi discutida até o final da
conferência anterior. O estado revolucionário, em que se une a Vontade Geral e o governo,
tem seu princípio fundamental nesse erro inevitável, cuja origem encontramos na perversão
do direito constitucional e nos escritos dos maquiavelistas e monarquistas, os erros dos
quais, descobrimos logo, era inesperáveis da teoria revolucionária: o erro de supor uma
liberdade e igualdade originais, como tudo o que lhes envolve. Este erro forma o eixo ao
redor do qual giram as rodas da máquina estatal. A máquina pode ser operada por diversos
regimes, com maior ou menor quantidade de energia, como o propósito de obter diversos
fins em harmonia com fluxo das circunstância e da diversidade de pontos de vistas e
simpatias. Não obstante, estrutural e operacionalmente, a máquina segue imutável, tanto
depois de 1813 como depois de 1789, tanto depois de 1840 como depois de 1830. Então,
seja sob o domínio dos tiranos ou governantes benevolentes, representantes que resistem ou
que cedem ante um regime democrático ou autocrático, o resultado é que as liberdades mais
essenciais , as memórias mais amadas e os valores mais sagrados da nação serão
respeitados, protegidos, tolerados e concedidos somente até onde podem ser adequados e
sujeitados às demandas do estado, ist é às demandas de quem direta ou indiretamente dirige
o governo. Isto chamei de o depotismo do estado revolucionário.

23
Haller, Restauração, I, 339.

16
Passando agora ao esquema histórico, devo indicar como penso dividi-lo. Me
parece que a divisão mais simples é que lhes dão cinco fases, descritas pela última vez em
relação ao curso lógico das ideias da Revolução, Preparação (até 1789), Desenvolvimento
(1789-1794), Reação (1794-1813), Nova Experimentação (1813-1830), Resignação com
desânimo (desde 1830).
Com muita frequência terei que chamar vossa atenção, quase exclusivamente, à
França. Ali mais que em qualquer outro lugar a doença teve um curso sem impedimentos.
Não obstante, por esta mesma razão, mais uma vez, devo adverti-los que não deveis
considerar a Revolução como uma doença nacional que deve-se explicar só ou
especialmente como proveniente da natureza frívola dos franceses24. Ao contrário, a doença
era mais epidêmica que contagiosa. Ao longo do tempo houve turbulência e agitação em
todo lugar. Se o fogo encontrou um escape na França, não devemos esquecer que todo o
solo europeu era vulcânico25. Ainda a prolongada superioridade das armas francesas deve
explicar em sua maior parte pela universalidade da corrupção revolucionária: a resistência
contra a violência franco-revolucionária foi vã, porque o ódio da França ficou escondido
baixo as sombras do amor pelo experimento iniciado em solo francês. A revolução não se
deve atribuir à nação francesa: Foi obra de uma facção, de uma seita, de uma escola
filosófica que usou os poderes do governo centralizado para conduzir a nação – e a toda
nação a medida que foram revolucionadas – a submeter-se ao jugo das sucessivas
personificações do seu principio.26
Posto que a revolução francesa naturalmente constituirá uma parte importante
das conferência que seguem, gostaria que tomássemos nota do valor das principais sobre o
tema. Certamente, o ponto de vista da maioria de quem escreve sobre a revolução francesa
tem sido derivado das mesmas ideias revolucionárias, de modo que devemos, a respeito
dessas obras, ter o máximo de cuidado com julgamento errado dos princípios que
rechaçamos. Não tenho tempo para fazer uma síntese crítica da literatura, se é que posso
fazer. Não obstante, não seria mais apreciado um breve comentário se se toma em relação
com a o que disse na segunda conferencia acerca de diversos livros antirrevolucionários.

24
Por exemplo, toma-se a seguinte interpretação: “A revolução francesa, que sempre foi
considerada um evento universal na história do mundo (ainda Hegel comentou esse erro), no fundo era um
fato completamente peculiar da França. Foi um ato francês. Foi o resultado, se posso ousar dizer, da vaidade
que capacita ao francês para suportar tudo, menos a desigualdade no plano social, e dessa lógica absoluta que
o leva a reformar a sociedade segundo um modelo abstrato, sem levar em conta a história nem o direito
sagrado”. Assim explica Ernesto Renán em um artigo publicado na Revue dês deux mondes, 28, (1858), xiv,
519 (grifo meu). Ainda que pareça divertido, Renán está equivocado. A lógica e a paixão entram em jogo para
a realização da falsa doutrina somente depois que os homens descartaram os princípios verdadeiros. Ver
também acima p. 000n.
25
Muito depois, em 1848, Tocqueville escreve: “Estamos em meio a uma revolução geral dos
povos civilizados, e creio que, a longo prazo, nenhum deles escapará”. Oeuvres completes, VI. 141. “Há
somente uma revolução, a qual ainda está vigente com toda a sua força e que perdurará por longo tempo”.
Ibid., VII, 198.
26
“Desde 1789 nenhuma das crises que ocorreram na França foram desejadas pelo povo”.
Madame Stael, Considèrations, II, 57. Sempre e em todo lugar a nação foi escrava dos porta-vozes do povo
soberano.

17
As obras de Thiers e de Mignet, excelentes em forma, o primeiro com um relato
continuado, e o segundo como um esboço compacto,27 chega ao ponto de defender a
revolução ainda em seus horrores, que segundo estes homens eram pré-requisitos para o
triunfo, enquanto por outra parte ignoram ou distorcem os argumentos e a evidência
documentária da parte oposta28. Há muitos anos, Necker e Madame de Stael29 foram
considerados como os melhores historiadores da revolução francesa por Heeren30, e quiçá
ainda estejam entre os melhores, sempre que lembrarmos que o pré-julgamento põe
obstáculo aos gênios, e que tanto no pai como na filha se apresenta um inequívoco cor de
anglomania. A História da França na Era da Revolução31, de Wachsmuth, com sua estampa
de vago liberalismo, é importante por sua exatidão e vivacidade, pelo menos até o
Consulado; por outra parte, a Restauração a trata com uma parcialidade que parece sátira e
uma superficialidade que parece crônica da contrapartida de um almanaque. A História da
Europa32, de Alison, se destaca por sua erudição e imparcialidade, por suas elevadas
reflexões desde a perspectiva da religião, a moral e a justiça, ainda que minha objeção é que
o autor confunde a revolução com um conflito sobre a forma democrática de governo. A
Historia do Século Dezoito33, de Schlosser, julgando-a pelos volumes que apareceram até
agora, pode ser contada entre as contribuições mais importantes para o estudo da
Revolução, ainda que sua falta de familiaridade com o espírito e o poder do evangelho lhe
atrai com ideias defeituosas e juízos severos.34
Poderia por muitos outros livros na lista35, mas já é hora de dedicar o resto do
tempo para mostrar a preparação da revolução no período anterior a 1789.
A reparação da Revolução foi dupla, seja que consideremos a Europa em geral,
ou França em particular. Em primeiro lugar, vejamos como ganhou terreno em toda Europa
o espírito da Revolução, e logo como, especialmente na França, fez-se inevitável um
transtorno do estado desde muito antes de 1789.
Em relação a Europa, serei breve. Careço do talento para apresentar uma
história do século XVIII em um quarto de hora. Ademais, todo o conteúdo dessa
conferência está relacionado direta ou indiretamente como este tema. A partir do que já
consideramos anteriormente acerca da natureza tanto do direito constitucional histórico
como do direito constitucional revolucionário, se evidência imediatamente que para que o
segundo possa prevalecer sobre o primeiro, era completamente necessária a preparação e
iniciação de uma imensa revolução. A natureza do caso assinala que a vitória da segunda

27
A. Thiers, Histoire de la rèvolution française (2ª ed., 10 vols., Liège, 1828-29), F. –A
Mignet, Histoire de la revolution française, depuis 1789 jusqu’ en 1814 (5ª ed., 2 vols., Paris, 1833).
28
XXX
29
XXX
30
XXX
31
XXX
32
XXX
33
XXX
34
XXX
35
XXX

18
equivale a destruição da primeira. Tenho que provar somente uma coisa: Esta falsa teoria,
prenha de tantas calamidade, entrou em campo, ganhou ascendência e logrou o domínio.
Mas, pergunto, quem de nós ignora isto? É evidente em todo lugar e em todas as coisas.
Plantado mais uma vez a árvore da vida no solo europeu pela Reforma, o
terreno ficou preparado para receber a semente fatal. A nova doutrina penetrou na teologia,
a teoria política, a literatura e a educação. Este fermento leveda a massa toda. Ao estalar a
revolução francesa, virtualmente toda Europa estava a ponto para levantamento. Mais de
um prelúdio ia observar nos estados inferiores. Praticamente em todo lugar a maioria de
quem se destacava em capacidade e nobreza de espírito tinham uma mentalidade
revolucionária36.
O que Madame de Stael escreve da revolução francesa é geralmente aplicável:
“Todas as coisas e nada é culpa da revolução: cada ano do século a conduzia por todos os
caminhos”37. Não obstante, se queres que discuta, ao menos, um traço da fisionomia
europeia, escolho o modo de pensar e de atuar dos monarcas. Praticamente todos eles
acreditavam na nova filosofia, e a obediência fiel a seus preceitos revela que sua crença era
uma fé sincera e viva. Por estranho que pareça, isso se pode explicar a partir do entusiasmo
geral que alguns caíram ainda que contrário aos seus próprios interesses, e porque um álibi
ocultava deles os dardos das falsas ideias: isto é, a atrativa noção de que sua autoridade
pessoal, independentemente, não alcançava sequer a metade do poder que poderia surgir,
seja por cálculos astutos ou boa fé, da teoria da onipotência do estado revolucionário.
Aqui é importante as observações feitas por Haller sobre esta matéria. Os
filósofos, ou sofistas, gozavam da confiança dos grandes do mundo:
É sabido que na Espanha o conde de Aranda, o duque de Alba e o conde de
Villahermosa, ministros do rei; em Portugal, o famosíssimo Pombal, e na Itália grandes
senhores eram contados entre os discípulos e patronos dos sofistas franceses. O rei Cristián
VII da Dinamarca, Gustavo III da Suécia, agora já caído pelo ferro assassino, e antes dele
sua mãe Ulrica, o rei Stanislas Poniatowski da Polônia e a imperatriz Catalina II da Rússia,
compartilharam, privadamente, correspondência com os filósofos franceses38 e

36
Parecia que havia amanecido uma nova era sobre o mundo... Quem sustentava essa opinião
não era apenas os facciosos, rebeldes e ambiciosos, mas, também, muitos dos melhores e mais sábios homens
compartilhavam da mesma opinião. E na Inglaterra com verdade própria poderia dizer o que um eloquente
historiador (C. G. Botta), observou da Europa em geral: que os amigos da revolução francesa incluía nesse
tempo ao mais ilustrado e generoso da comunidade”. Alison, History, I 260. “Sob todos os grandes
movimentos que agitam os espíritos, sempre se encontram intrigas ocultas. Formam o que poderia denominar:
o subsolo das revoluções. Mas, a mudança de ideias que terminou na mudança de atos, foi efetuada a plena
luz do dia pelo esforço conjunto de todos: autores, nobres, e príncipes, todos que abandonaram a antiga
sociedade sem saber em que tipo de sociedade estavam entrando”. Tocqueville al Conde de Gircourt, 14 de
Junho de 1852; Correspondência, II, 187.
37
. Madame de Stael, Consideração, I, 88.
38
(Estes governantes e estadistas da segunda metade do século XVIII, conhecidos como os
“Ilustres Despostas”, queriam aplicar as ideias do Iluminismo enquanto conservavam o poder absoluto em
conformidade com o lema: tudo para o povo, nada pelo povo”. (Nota por H.smitskamp).

19
manifestaram o completo acordo, se não com seus dogmas políticos, ao menos com seus
dogmas antirreligioso39.
Pronto foram conquistadas suas ideias do estado. A perspectiva de ganhos
incalculáveis era deslumbrante.
Eles as ajustavam – observa Haller – apara apresentar os novos princípios
filosóficos aos soberanos como propícios para aumentar poder e os liberar de todas as
limitações que até aqui havia tido sua autoridade na justiça natural e nas convenções
positivas. Ainda que seja lindo e agradável, por um lado, ser amo e senhor e dar ordens em
nome próprio, bem como em virtude do próprio direito, por outro lado, é proveitoso
aparecer, às vezes, como o funcionário ou empregado do mais alta patente, unir à
autoridade pessoal a autoridade delegada, e, em caso de necessidade, atuar em virtude de
mandato que ninguém pode criticar ou revogar. O empregado é pago: a suposta vontade do
seu patrão constitui uma desculpa sempre pronta para todas as ações do servidor. O
interesse próprio e todo tipo de injustiça ficam cobertas com a túnica denominada a
felicidade do povo. No mesmo momento em que os reis passam a ser o primeiro
funcionário da nação, suas guerras se convertem em guerras da nação, suas dúvidas são
dúvidas nacionais, suas necessidades se convertem em necessidades do estado. O
recrutamento, os impostos arbitrários e todo tipo de serviço forçado se justificam de forma
completamente conveniente, pelos conceitos de uma classe governante pública e a
soberania do povo. Os direitos privados e os acordos feitos com indivíduos ou corporações
já não têm valor algum desde o momento em que tudo deve servir aos fins do estado, aos
interesses da maioria, ou a suposta vontade do povo, a qual se apresenta até como a fonte
de toda justiça.
Esse é o canto da sereia que ofereceram para que os monarcas crédulos fossem
seduzidos e submergidos no abismo. Mas os aduladores sabiam bem que não deviam
mostrar o lado oposto destes princípios, segundo os quais um empregado pode ser
destituído, despedido ou ter seu salário reduzido. Muito menos, deixaram de dizer que o
povo, esse soberano imaginário, naturalmente queria dar ordens a seus servidores, decidir
sobre a guerra e a paz, em uma palavra, governar – de forma direta ou de outro modo –
todos os assuntos, os quais de todos os modos eram seus próprios assuntos... assim pode ser
explicado, como é que em nosso tempo se viu que poderosos príncipes são desviados pelos
princípios do direito constitucional filosófico, minando eles mesmos sua autoridade e
cavando o abismo que irá os tragar40.
Adiante teremos a oportunidade de mostrar as ideias alteradas acerca do direito
internacional. Agora nossa preocupação tem que estar no governo local. A fraseologia
revolucionária se fez comum. Como nota Haller:

39
Haller, Restauração, I, 145.
40
Ibid, I, 200-202.

20
O sistema político dos filósofos, a ideia antinatural de uma autoridade derivada
do povo, se espalhou durante os últimos vinte anos do século XVIII. Criou raízes quase em
cada cabeça. Predominou, quase sem exceção, tanto nos escritos literários como nos
populares. Aqui ou ali, perto ou longe, se ouvia alguma palavra de verdade, pronunciada
débil e timidamente por uma voz desfalecente no deserto. A linguagem do novo sistema
penetrou gradualmente no estilo das chancelarias, onde mais que em qualquer outro lugar,
deveriam ter se preservado com o mais devoto respeito as antigas expressões e apelações
que havia derivado da natureza. Em lugar da linguagem antiga e paternal, cheio de força e
cordialidade, impregnado com a consciência dos seus próprios direitos e dos direitos dos
demais, na leis e ordenanças reais publicadas nos últimos trinta anos do século XVIII se
ouvia falar somente de associação civil, de autoridade delegada pelo povo, de poderes
executivo e legislativo, de servidores do estado ou funcionários públicos, do propósito do
governo, do destino da humanidade, de constituições e organizações, das obrigações do
soberano, dos direitos do povo, etc., expressões e locuções que, originadas na escola da
filosofia moderna, necessariamente teve que agravar a confusão geral das ideias e apagar a
memória das corretas relações anteriores41.
As palavras produzem fatos. Uma vez que os monarcas foram constituídos
como cabeças de um estado definido – segundo a teoria que eles também sustentavam –
pelo caráter absoluto da soberania popular, já não foram retidos pelo sagrado dos direitos
de que haviam sido investidos, nem pelas liberdades históricas, mas se puseram a trabalhar
com soberana onipotência como os coroados representantes do povo soberano. A
regularização geral, a centralização e a codificação se converteram na ordem do dia. O
despotismo, ilegal e odioso quando se exerce em nome próprio, agora estava disfarçado
como dever e benevolência praticada em nome da liberdade e da ilustração e por amor ao
bem comum.
Poderia fazer uma busca das principais figuras nesta luta. Entre os portugueses
encontramos Pombal, altamente elogiado, pois era inimigo do clero, e de quem Schlosser
testifica que, a pesar das reformas filosóficas, merece ser o menos contrariado que um
Danton ou um Marat42. Na Rússia estava a homicida adultera43. Saudada por seus amigos
parisiense , como a Semiramis do norte, quiçá, entre outras razões, porque ela teve, diremos
o astuto ou estranho, o capricho de convocar em Moscou uma assembleia de todas as
classes, de todas as línguas, de todas as religiões para a formação de um Código Geral de
Direito: Assembleia que na verdade convocou, recebeu uma Instrução em nome da
imperatriz, miserável mistura da sabedoria de Motesquieu e Rousseau 44, que não deixou

41
Ibid. I, 254
42
“A horrível represália de Pombal, por si só, foi suficiente para fazer que suas reformas
fossem tão detestáveis como as de um Dantón e um Marat”. Scholosser, Geschichte, III, 29.
43
(A referência é à czarina Catalina II).
44
“A lastimável mistura de um amador que, em nome da imperatriz, queria apresentar e
implementar uma sabedoria tomada de Montesquieu e Rosseau”. Haller, Restauration, I, 120. Nesta
Instruction of her Imperial Majesty of the Commissioners for Composing a New Code of Laws (San
Petersbuggo, 1767) se lê (no parágrafo 158): “Um código que contenha todas as leis, deve ser um livro de
tamanho médio, que, como o catecismo, possa ser comprado a baixo preço, e se possa aprender de memória”.

21
nenhuma outra mostra de vida que não fosse a designação de quinze comitês para a
constituição, as finanças, os assuntos militares, a legislação e outros por estilo. Comitês que
depois de sete anos de trabalho também voltaram a suas casas sem ter feito nada. Na Prusia
temos Frederico II que, cativado pela filosofia e amigos dos filósofos, deu um forte impulso
ao avanço do liberalismo (ainda que, evidentemente, estivesse dotado de muita energia
antifilosófica quando suas prerrogativas estavam em jogo). Seu sucessor, Frederico
Gullermo II, brinquedo do iluminismo45 e dos jacobinos, apenas subiu ao trono quando
pensou em fazer feliz o povo da noite para manha, promulgando um código geral de leis em
quatro partes, segundo a moda dos filósofos. Na Áustria vemos José II, verdadeiro aprendiz
de filósofo, rei que tinha boa intenção, que pensava que suas ideias eram boas, que estava
convencido da tendência benéfica da filosofia incrédula, e que sua intenção de fazer os
demais felizes, prescreveu e pela força das armas o que para ele mesmo – e assim para
todos – era completamente cristão e suficientemente religioso; que via na destruição dos
estados e na demolição das antigas instituições a primeira condição para elevar a sociedade;
que pensava que poderia lançar no cadinho revolucionário todas as peculiaridades étnicas,
as leis e costumes, que, finalmente, havendo chegado a possuir em sua ascenção ao poder
países prósperos e em desenvolvimento, em pucos anos os fez retroceder deixando-os na
confusão, a guerra civil e a defecção, de modo que a morte do despótico de projetos chegou
como uma mensagem de alívio universal, o único remédio possível no momento preciso.46
Basta dizer que os reis e magistrados que quase cada nação se encontravam “na
cabeça do movimento”. Napoleão uma vez fez a observação (a qual a respeito é obvia para
todo observador atento) que “ uma revolução na França sempre é seguida, logo ou
tardiamente, por uma revolução na Europa”47. Naturalmente porque ainda nos dias de sua
preparação o movimento era europeu, de modo que em alguns lugares, por exemplo, os
Países Baixos48, o surto duramente reprimido precedeu a 1789.

Enquanto, “note-se que a mesma Instrução inclui uma tabela de conteúdo, e chega a quase a trezentas
páginas”. Haller, Ibid., I, 211.
45
Quanto aos iluministas, ver p. 000s).
46
“ Vemos ao coroado “amigo do homem”, como o chamam afetuosamente seus
contemporâneos, que não só se destrui arbitrariamente os privilégios prejudiciais ao interesse comum da
nobreza e do clero, mas que ataca com força bruta os fundamentos mais profundos da vida humana: a religião,
o idioma e o amor pela pátria”. Sybel, Geschichte, I, 165. A doutrina da soberania do povo era confessada por
quem quisesse se gabar de que poderia ser o amo ou o órgão do Soberano; cf. Verscheidenheden, PP. 104 ss
(Federico II... certamente estava a favor da soberania popular, sempre que ele seguir sendo o amo do
Soberano. Estava feliz de ser servidor do amo coletivo sempre que este Soberano, fosse igual aos reis
medievais que nada faziam, e que sua própria servidão fosse a de um mordomo do palácio, a doutrina da
soberania popular era ratificada por quem quisesse imaginar que poderia ser órgão do povo soberano”). Não
somente os monarcas eram culpáveis, ainda naqueles tempos os governantes só “representavam fielmente
seus tempos”. Ibid. p. 330.
47
Citado em Alisón, History, 257, O, como disse Metternich: “Quando França resfria, Europa
espirra”.
48
(Referência aos sucessos de 1786-87, quando o movimento patriótico para a reforma
democrática foi reprimido pela força depois que recorreram as armas. Em 1875, como resultado de uma
incomoda aliança entre os regentes aristocratas que estavam tradicionalmente zelosos da influência da casa de
Orange e dos patriotas burgueses cujos porta-voz pregava a soberania popular, o príncipe de Orange havia

22
Ainda tenho que demonstrar de forma mais especifica que a revolução francesa
esteve em preparação por longo tempo. Não é esta uma conclusão prevista? Depois do que
se disse sobre a Europa, não há razão para supor que a França era uma exceção. Quase
poderia me contentar em citar a observação da Madame de Stael sobre a chegada da
revolução na França: “Todas as palavras e todas as ações, todas as virtudes e todas as
paixões, todos os sentimentos e todas as vaidades, o espírito público e a moda tendia
igualmente para o mesmo fim”.49
Não obstante, algo da elaboração dos meus próprio pontos de vista sobre a
questão não parece supérfluo. E verdade, a estreiteza mental que fazia confusão entre a
ocasião a causa passou em parte. Os autores já não atribuem a caída da monarquia francesa
à difícil situação econômica. Agora muitos reconhecem a verdade da declaração com que
Madame de Stael inicia sua obra: “A revolução francesa marca uma das grandes épocas da
ordem social. Quem a considera um evento acidental não prestou atenção no passado nem
no futuro. Confundiram os atores com o drama, e para satisfazer seus pré-julgamentos
culparam os homens do momento pelo que os séculos havia preparado”50.
Enquanto, um se pergunta o que queria dizer esta inteligente mulher, e com ela
muitos autores ainda hoje em dia, com “pelo que os séculos haviam preparado”, o que quer
dizer a preparação, não dos jacobinos, mas de uma empresa mais saudável: a reforma de
instituições antiquadas e degeneradas em conformidade com as exigência do sentido
comum, e para o bem estar das nações. Passando por cima da natureza das falsas teorias,
afirmam que até 1789 houve um firme deslocamento para uma meta desejável, que não
houve desvios deploráveis, devido ao mal entendido. Deste modo estes autores, sem dar
conta ou sem intenção, são levados a distorcer a história. O resultado é que julgam mal o
verdadeiro curso, o caráter verdadeiro, ou a importância relativa dos acontecimentos. Com
uns poucos exemplos de tais distorções gostaria de terminar esta conferência.
Um exemplo de julgar mal o verdadeiro curso dos acontecimentos é a queixa de
que Luis XVI resistiu soberbamente aos desejos e necessidades da população, ou pelo
menos que cedeu ante eles com pouca prontidão.

sido despojado de muitos de seus poderes como Stadtholder. Com a república holandesa dividida em
regentes democratas e orangistas, a guerra civil parecia iminente. Não obstante, 1787, Wilhelmina, a esposa
do príncipe, com a ajuda de seu irmão o rei da Prússia que estava respaldado por diplomáticos ingleses,
fiadores conta a França, conseguiu castigar os regentes, dispersando diversos patriotas e debandando as
sociedades patriota, cujos dirigentes fugiram a França. Foram retiradas as limitações ao ofício de Stadtholder,
e se restaurou um aspecto de ordem. Ver também p. 000).
49
Madame de Stael, Considerações, I, 47 s.
50
Ibid., I, 1.

23
Não é possível ser um pioneiro da Revolução com uma simpatia mais serviçal e
mais zelosa que a exercida por este jovem rei. A metade de seu reinado foi uma constante
antecipação dos desejos dos revolucionários.51
Mignet escreve: "Ele sucumbiu por causa de seus esforços de reforma... Até a
reunião dos Estados Gerais seu reinado não foi outra coisa do que uma grande empresa por
melhoramentos”52. Se você quiser uma exposição mais extensa, a encontrará no primeiro
volume da obra alemã anônima que recomendei anteriormente53, mas uma análise rápida
agora será o suficiente. Não pretendo medir os talentos e méritos de Malesherbes, Turgot e
Necker. Digo somente isto: estes homens tinham uma sincera mente revolucionária.
Malesherbes foi um apaixonado defensor da nova filosofia. Turgot não reconheceu direito
algum de corporação na medida em que isto lhe parecia prejudicial ao bem comum; porque
a lei mais alta era o bem comum, e todo respeito por este direito de corporação era
superstição54. No mesmo sentido, Necker escrevia que o bem comum – isto é, o que é bom
para a maioria – deveria ser o guia para a administração pública55. Entretanto, estes dois
conselheiros da corte, com propósito de amor à liberdade, recomendavam a mais completa
arbitrariedade: Necker considerava que a liberdade só era saudável até onde fosse
compatível com o bem56, e Turgot afirmava que as medidas para o bem de uma nação
deveriam ser executadas mesmo em oposição à opinião dos representantes de sua livre
eleição57. Não poderia elencar aqui a larga cadeia de editos reais por meio dos quais se
intentou levar à realidade estas teorias. Os editos são notáveis especialmente pela
destruição de incontáveis regulações que tinham sido inerentes nos direitos de propriedade
dos povos e territórios durante séculos58, por sua eliminação das distinções provinciais em
benefício da individualidade revolucionária59. Sua característica comum é fazer tudo novo,
organizar tudo à moda de Rousseau, e assim reformar a monarquia como que para levar,
mantendo o reinado, a uma república revolucionária.
E assim, deixando-se guiar por seus ministros, o calmo e modesto Luis XVI foi
persuadido a realizar ações similares ao do turbulento e presunçoso José II. Se converteu
em aliado dos revolucionários, e de forma enérgica. Somente quando soube por experiência

51
Necessitaria todo um volume se quisesse escrever detalhadamente todos os esforços de
reforma desde a ascensão de Luis ao poder até o estouro da revolução”. Sybel, Geschichte, I. 33. Cf.
Tocqueville, L’Ancien Régime, p. 288.
52
Mignet, Historie, I, 16.
53
Geschichte der Staatsveränderung in Frankreich unter König Ludwing XVI (5 tomos;
Leipzig, 1827-30).
54
Ibid., I, 162 (de onde se faz referência ao artigo de Turgot “Fundação” na Enciclopédia, VII
(1ª Ed. Paris 1757), pp. 72-75). + “Em um sentido, Turgot prefigurou “a revolução”. Jules Simón, De la
liberte politique, p. 122.
55
Geschichte der staatveränderung, I, 179 [de onde de faz referência a Necker, Sur la
législation et le commerce des grains (2ª Ed. Paris, 1775), I, 12; II, 155, 170].
56
Ibid., I, 183 (cf. Necker, Ibid., I. 174-177, 181-183).
57
Ibid., I, 233.
58
Veja acima, p. 00.
59
(A primeira edição disse: “... séculos; pela divisão do governo de tal forma que parecia
possível o autogoverno do povo”).

24
do caráter prejudicial da violência reformista, lhe escapou o dolorido reconhecimento: “O
despotismo não é bom para nada, nem sequer para obrigar o povo a ser feliz”60.
Em segundo lugar, é evidente que o caráter dos eventos tem sido mal julgado,
como mostra a mesma ilustração.
Como colheita por seu zelo, Luís de pronto recebeu repugnância e resistência. E
agora que ele, diferentemente de José II, não seguiu adiante no caminho da arbitrariedade,
qual o tom que se dá ao seu louvável “pensar de novo”? Mignet escreve que ele não teve
vitalidade para “submeter as classes privilegiadas às reformas”61. Sua falta de docilidade
em seguida exagera, como se o problema fosse disciplinar um grupo de opressores do povo.
Se esquece o fato que a assim chamada resistência das classes privilegiadas era só o
descontentamento de homens cujos direitos haviam sido prejudicados, e que, também, na
linguagem dos revolucionários, denominam privilégio tudo aquilo que não se enquadra no
sistema de igualdade de nova estampa, e, por último, que a violação dos privilégios
atropelou direta ou indiretamente a todo o povo62.
Permitam-me mais uma ilustração, especialmente porque é importante julgar os
acontecimentos subsequentes. Me refiro à interpretação da extensa discussão dos meses
prévios à reunião da Assembleia Nacional. Se diz que era irrepreensível a atitude daqueles
que olhavam desejosos a chegada de mudanças. Era o sublime “movimento de 1789”. Os
homens falavam de reforma, não de revolução. “A revolução de 1789”, se nos disse, “teria
como sua única meta regularizar os limites da autoridade que sempre houve na França” 63. E
você quer saber em que esta baseada esta declaração? Está baseada nos cahiers de
doléances (cadernos de queixas), as instruções para os delegados aos Estados Gerais dadas
pelos colégios eleitorais da Nobreza, do Clero e do Terceiro Estado. Estes cadernos, se
afirma, dão testemunho em todo lugar de um genuíno espírito monárquico. Tenho aqui um
excelente folheto que se intitula Appel à la France contre la división des opinions,
magistral síntese da revolução publicada em forma de artigos na Gazette de France durante
1831; nele se lê uma exuberante exaltação de lá unanimidade de 1789 em prol da
manutenção dos direitos adquiridos e da forma histórica de governo:
Quando se dá uma olhada nos cahiers desta reunião que se celebra
simultaneamente através de todo o reino, ele é admirado por sua profunda sabedoria e o
sentido de ordem e equidade que o presidem em suas deliberações. Unidade de desejos –
uma quase milagrosa harmonia nas indicações dos mesmos abusos e das mesmas reformas,

60
Correspondance de Louis XVI, I, 58.
61
Mignet, Historie, I, 16.
62
Schlosser, ainda quando não era antirrevolucionário, escreve: “O povo se agarrou ao antigo, e
os governantes e ministros despóticos os derrubaram. O sentido de justiça e tradição que por natureza é
característica do povo (mas que, infelizmente, deve ser ofendido em cada revolução, se é para conseguir
algum benefício perdurável) (Assumo a responsabilidade da autoria da oração que está entre parênteses – Gr.
v. Pr.) se opôs tanto à violência doutrinal como à violência física. Por conseguinte, a resistência contra
Pombal, José II, Struensee, Gustavo III. Não somente as classes privilegiadas lutaram contra estes ministros e
monarcas, se não também o povo”. Geschichte, III, 3.
63
Madame de Stael, Consisderations, I, 145.

25
unanimidade em sentimento e conduta –, isto é o que se encontra em cada um dos relatórios
destas assembleias locais. Em toda parte, o mesmo amor e gratitude em relação ao pai
comum de todos os franceses, o mesmo respeito pelos direitos adquiridos e pelos princípios
fundamentais da sociedade. Dificilmente se pode entender como se poderia surgir tal
unanimidade nos desejos e expressões de assembleias tão diversas e entre populações tão
apartadas geograficamente. Todas as classes sociais concordam com o que seria melhor
para a pátria. Todos os interesses se fundiram em um interesse comum. Por uma parte, a
completa negação de si mesmo, e por outra, respeito e cordialidade, e em ambos lados uma
confiada expectação de virtude e equidade por parte do rei. Isto é o que se pode ler em cada
uma das linhas deste monumento à sabedoria e boa vontade do povo. Nada se encontra
nestes cahiers que não seja francês, que não seja nacional, isto é, que não esteja inspirado
pelo patriotismo mais puro e verdadeiro, que não pudera ter realizado um grande
aperfeiçoamento da sociedade para França e ter iniciado para ela uma era de liberdade, paz
e felicidade64.
Porém, quando analisamos mais detidamente os cahiers, de que natureza é o
altamente elogiado espírito dos eleitores? Querem a monarquia, sim, mas que monarquia?
A histórica ou a revolucionária? Uma monarquia em que o rei é soberano de seus súditos,
ou uma em que ele é servidor de um povo soberano? Considere-se e veja-se o que se afirma
unanimemente nos cahiers da Nobreza: o rei é o primeiro funcionário e possui o poder que
lhe foi delegado65.
Você quer mais amostras dos cahiers, de seu assim chamado apego à lei
constitucional histórica? A nação deve ser consultada em tudo que é de importância para
ela. Todas as leis gerais devem ser feitas e sancionadas pelos Estados. O poder legislativo
pertence à nação, o executivo ao monarca. O Terceiro Estado exige dupla representação e o
voto por cabeça66. O seguinte juízo67, com toda sua concisão, não é demasiadamente

64
Appel à la France contra la división des opinions, p. 7.
65
Cf. acima, p. 000.
66
Que incorreta é a afirmação: “Os cahiers não se encontram apegados às ideias de Rousseau:
não começam a circular até que a revolução estivesse em marcha”! (O autor, que anonimamente é refutado
aqui, é Robert Fruin (1823- 99), historiador de reputação que mais tarde fez sua estréia no mundo intelectual
atacando Groen em um estudo tanto incisivo como arrogante: Het antirevolutionaire straatregt van Mr.
Groen van Prinsterer ontvouwd en beoordeeld (Amsterndã, 1853); a oração citada por Groen se encontra
na página 17, ou em Verspreide Geschriften X, 90), Tocqueville escreve: “Estes cahiers, os manuscritos
originais do que formam uma larga série de volumes, permanecerão como o testamento da antiga sociedade
francesa, a expressão final de seus desejos, o autêntico anúncio de sua última vontade”. L’Ancien Régime. p.
VIII. Sim, a última vontade, mas ao mesmo tempo me parece o programa de uma nova sociedade, o
programa que produziria o contrário do que a nação em seguida todavia queria. Tocqueville mesmo, depois de
tudo, também escreve: “Quando fiz uma lista com todas estas proposições, reparei com alguma consternação
que o que se estava pedindo era a abolição simultânea e sistemática de todas as leis e todos os costumes
vigentes no pais. Imediatamente me dei conta que seria uma das revoluções mais vastas e perigosas que o
mundo jamais houvera visto”. Ibid., p. 219 f.
67
(A primeira edição disse: “Deixando de lado a questão de se em vários aspectos as
instituições históricas não se identificavam equivocadamente, de boa-fé, com os conceitos teóricos, em todo
caso, o seguinte juízo...”)

26
severo: “os cahiers eram uma dupla declaração de guerra: dos três estados contra o
monarca, e do Terceiro Estado contra a nobreza e o clero”68.
Negligenciando, assim, o problema principal, muitos autores se perdem, em
terceiro lugar, exagerando a importância de assuntos secundários.
Desta vez, tenho uma série de exemplos que foram tomados de uma só página
69
de Ancillón . Este talentoso escrito disse o seguinte:
Longe de haver considerado a revolução como inevitável, pode-se argumentar
uma quantidade de fatos que por sua presença ou ausência poderiam havê-la evitado ou
havê-la dado um curso diferente. A estes pertencem: (a) o convite que se fez a todos os
franceses em certo sentido a que discutirem a forma em que estariam representados; (b) o
grande intervalo entre a convocatória e a realização dos Estados Gerais; (c) a duplicação do
Terceiro Estado; (d) a fixação do lugar de reunião em Versailles, perto do vulcão
parisiense, ao invés de sê-lo em Blois, Tours, Compiègne ou outra cidade similar; (e) a
timidez da corte, que lhe impediu de solucionar as questões de maior envergadura antes que
os delegados tivessem tempo de obter a um entendimento mútuo. Se a declaração de 20 de
junho tivesse sido feita em 5 de maio, havia alterado toda situação da França70.
Contudo, Ancillón certamente pertence ao grupo de autores que têm direito,
quando se discorda deles, a que seus pontos de vista sejam submetidos a prova, tanto em
relação à sua premissa básica, quanto aos fatos aduzidos.
A premissa básica é clara. Ancillón reconhece que a revolução não era
inevitável, pelo menos antes de junho de 1789:
Decidir que a revolução era inevitável é decidir que a debilidade do governo e a
impertinência criminal da assembleia eram necessárias e inevitáveis. Aquele que quer
adotar este ponto de vista: é tão contrário à liberdade do homem como à sua dignidade, e o
humilha absolvendo-o de responsabilidade por tudo o que faz e por tudo o que tolera71.

68
“Se se satisfaziam as demandas dos três estados, o rei mesmo se encontraria despojado
simultaneamente de todos os privilégios reais do poder supremo e de todos os meios necessários para
sustentá-los. Depois de ser o amo, se converteria em súdito de seu povo. Se o Terceiro Estado levar a cabo o
desejo de seus cahiers com respeito aos outros dois estados, o destinos deles teria ficado completamente em
suas mãos: e suas declarações os teriam deixado poucas esperanças de indulgência. Em essência, os cahiers
eram uma declaração de guerra dupla: dos três estados conta o monarca, e do Terceiro Estado contra a
nobreza e o clero”. Geschichte der Staatsveränderung, II, 263.
69
(A segunda edição adiciona: “publicistas e estadistas que gozavam de uma bem merecida
reputação e cujas publicações extensamente lidas continham muitas declarações dignas de chegar ao
coração”. A isto se agrega uma nota de pé de página: “O Sr. Ancillón, publicista, historiador, moralista e
filósofo, sem muita originalidade ou poder nestas diversas áreas, mas sempre judicioso, ilustre e
conciliatório”. Guizot, Mémoires, IV, 19).
70
Ancillón, Nouveaux Essais, I, 98. Apresenta pontos de vista muito similares em uma síntese
muito significativa: “Ansicht der französischen Revolution” (“Vista da Revolução Francesa” – nota do
tradutor para português), ao final de seu livro Ueber veränit und Staats-Verfassungen, pp. 76-102.
71
Ancillón, Nouveaux Essais, I, 96.

27
Esta passagem não me alarma. Baseando-se em que anularia a responsabilidade
humana, Ancillón rechaça o ponto de vista que a revolução fora inevitável. Persisto no meu
ponto de vista de que em junho de 1789, assim como anteriormente, a revolução francesa
era inevitável, mas protesto contra a inferência. Meu ponto de vista nada tem em comum
com o fatalismo72, com a absolvição do crime ou dos criminosos. Ou não está escrito: “É
inevitável que venham escândalos, mas ai do homem pelo qual vem o escândalo!”?73 O fato
de que o erro sedutor que corrompeu o coração humano se manifesta nesse térreo fértil de
abundante colheita de falsos conceitos e feitos maus, não significa que a culpa e
responsabilidade do homem sejam anuladas. E quanto ao que eu tolero: o fato de que eu
não posso evitar o mau que vem de homens cujos princípios condeno, não me abriga a
ajuda-los ou a aplaudi-los.
No entanto, não impressionado pelo caráter irresistível dos princípios, Ancillon
busca uma explicação somente nos erros daqueles que, pelo menos nominalmente, estavam
“no poder”. Entretanto separa o templo da atmosfera que viviam o rei e seus companheiros.
Em tempos normais é praticamente certo que o erro estimula a rebelião, e que as
concessões parciais provenientes da fraqueza são o meio mais seguro de se ver humilhado e
ceder completamente. Porém, esses não eram tempos normais. Aqueles de quem se exige
tal firmeza, como poderiam tê-la possuído se eram igualmente filhos de seu tempo? E
quando eles tiveram tal firmeza em virtude de uma exceção que seria difícil de explicar,
como poderiam ter a oportunidade de impor sua vontade contra praticamente à vontade de
toda a gente?
Não se pode esperar que uma pessoa mantenha-se num passo seguro quando a
intoxicação universal está no ar. E quando um individuo de algum modo trata de resistir a
febre de opinião, um não deveria imaginar que em meio aos gritos apaixonados e do
aprisionamento de todos, precisamente esse indivíduo, que permanece calmo e sóbrio (para
indignação de todos), será capaz de permanecer no controle de tudo e triunfar. Madame de
Stael tinha razão quando faz sua observação a respeito de um homem como Lafayette: “
Qualquer que tenham sido suas convicções políticas, seu poder fora quebrado se quis se
opor ao espírito de seu tempo. Nessa época governam as ideias, não os indivíduos. A
tremenda vontade de Bonaparte nada podia contra a direção geral das mentes dos
homens”74. Então, é possível que uma geração que havia absorvido as ideias de
Montesquieu e Rousseau tenha desejado ser impedida por algum ato ou decisão, por
deliberação sábia ou por uma manobrada corte, marchar no ritmo de uma teoria
revolucionária?75 E desde esse ponto de vista que devemos considerar os textos aduzidos
por Ancillon.

72
Cf. acima, p. 000.
73
Mateus 18:7
74
Madame de Stael, Considerações, I, 378
75
“Ancillon deplora “A impertinência criminal da Assembleia” e a” debilidade do governo” em
particular a respeito de que os estados gerais haviam se auto constituído em assembleia nacional. Porém aqui
também ouvida a chave de tudo que está se passando. Desde o ponto de vista de uma doutrina dominante, não

28
Os estados gerais, sugere, deveriam ser convocados como em 1614. Um
conselho muito bom, porém impraticável. Na base anterior o rei era autocrata. Os súditos
só eram ouvidos. Pode-se pensar conscientemente que a opinião pública, consciente de seu
poder, tenha sido apaziguada por tal burlagem às suas demandas?
Pelo menos se nos disse, poderiam ter tido o cuidado de dobrar o número de delegados do
terceiro estado, que automaticamente conduziram a eleição por cabeça, e por tanto, a vitória
do princípio democrático. De certo, para impedir a revolução, nada seria mais adequado
que fazer com que cada estado deliberasse separado, ou pelo menos se preocupassem em
fazer com que a sessão do terceiro estado fosse sempre superada pela nobreza e pelo clero.
No entanto, esses inteligentes cálculos teriam um empecilho: era muito obvio que um é
menos que dois muito simples; o terceiro estado também sabia essa aritmética. Agora que o
clero e a nobreza eram derrotáveis, agora que todos sabiam, segundo o que se presumia ser
a boa política, de que o número de representantes deveria ser proporcional ao número de
representados, poderia agora o terceiro estado, que tinha um maior poder de número e a
teoria, concordar pacificamente em ser superado pelos votos de uma odiada minoria, uma
minoria de nenhuma significância se comparado com o resto da população? Madame de
Stael tem dúvidas. Ela escreve: Se não houvera concedido a dupla representação, não havia
dúvidas de que o terceiro estado, não contente por não ter alcançado o resultado almejado,
havia enviado um número maior de delegados aos estados gerais... Esta era a moda. Era o
resultado de todo o século XVII76. Logo, a tradição também se considera em conflito com o
direito e a razão a fazer assim as contas. Estava em conflito com a mesma base da lei
natural: A representação estritamente proporcional. Como expressa Thiers: “Por uma parte
se aderiu à velha tradição e o direito natural a razão” 77
Voltemos agora à timidez da corte. Outros autores dizem exatamente o
contrário daquilo que é sugerido por Ancillon quanto ao que se poderia fazer de forma
preventiva: Madames Stael e Thiers dizem que a França poderia ter se salvado não por
inflexibilidade, mas por uma indulgência mais generosa. A primeira disse:
Os estados gerais se inauguram com os mais auspiciosos presságios,
indubitavelmente há pontos de discórdia entre a nação e as classe privilegiadas, porém o rei
agora poderia ter sido o árbitro, se voluntariamente tivesse reduzido seu poder a uma
monarquia sabiamente limitada78.
Assim, uma “monarquia sabiamente limitada” poderia ter evitado uma
revolução. No entanto, diga-me, por favor, o que significa essa expressão? O adjetivo
sabiamente está aberto a um grande leque de interpretações. Em todo caso, permita-me que
o recorde que as aspirações da filosofia daqueles dias não eram a limitação do poder do
monarca, mas sim a obtenção do poder para o povo soberano.

se havia tomado como uma miserável debilidade que a assembleia tivesse tomado uma atitude diferente e a
resistência do rei não se havia tomado como uma “impertinência criminal” ?
76
Madame de Stael, Considerações, I, 170, 172
77
Thiers, História, I, 22
78
Madame Stael, Considerações, I, 179.

29
Thiers considera que as concessões reais foram estéreis devido a terem sido
poucas e tardias.
Depois que a nação recebeu a promessa de reunião dos estados gerais, exigiu
que as convocações e adiantassem. Feito isso, queriam dominar a assembleia. Se isto lhes é
negado, porém os meios para preponderância haviam sido postos às mãos para dobrar sua
representação. Assim as concessões nunca foram feitas senão em partes, somente quando a
resistência havia se tornado impossível. Porém a esse tempo o poder da nação havia se
tornado palpável e queria ter tudo o que pensava poder ter. A resistência contínua que
estimulou a ambição iria fazer com que a ambição se tornasse insaciável. Porém, se um
grande ministro, infundindo um pouco de força para o rei, ganhando-o para o seu lado e
endossando a classe privilegiada, de uma plumada havia sobressaído e saciado o desejo da
nação, convocando-a de imediato, não para discutir a constituição do estado, mas para
discutir seus verdadeiros interesses em um estado já conquistado. Quiçá a luta havia apenas
começado79
É verdade que, quando há causa para que alguém se sinta ofendido, um por
iniciativa própria e sem demora deve fazer as exigências que lhe são justas, de modo que
possa ser firme contra as demandas injustas. E é verdade que as paixões que vêm
apaziguadas por concessões oportunas e generosas, vêm aumentadas pelas concessões pela
metade, conseguidas pela força. Não tenho objeções contra essa sabedoria tradicional, só
que não a considero aplicável nesse caso. Porque em 1789 a corte foi confrontada por uma
doutrina segundo a qual, tudo o que o povo exigia parecia ser seu direito indiscutível, e
tudo que ele recebia parecia uma conta paga, uma redenção parcial de uma dívida em
aberto. No caso do espirito da revolução é inconcebível a sociedade, porque tem o poder
para devora-lo todo. A vastidão de água é insuficiente para uma vasilha sem fundo.
Parece que Madame de Stael está perfeitamente correta quando observa:
Ao examinar a conduta de Luís XVI, certamente se pode encontrar erros nela,
inclusive quando alguns o censuram por não haver defendido seu poder ilimitado com
maior habilidade, enquanto outros o acusam por não ter cedido sinceramente às ideias
ilustradas. Porém seus erros foram tais na natureza das circunstâncias, de modo que
reapareceram quase tão frequentemente como se repetiu a mesma combinação de
circunstâncias.80
No entanto, a partir desta última observação não se deve buscar mais outra
desculpa: isto é, que os erros de Luís se devem às circunstâncias. Ante circunstâncias
diferentes, o resultado não teria sido melhor. Não, as circunstâncias não poderiam ter sido
mais favoráveis. Ou melhor, na atmosfera de seu tempo toda as circunstâncias se fizeram
desfavoráveis. Não importa o que fizera ou não fizera o rei, uma vez que a Revolução tinha

79
Thiers, História, I, 25
80
XXX

30
conquistado as mentes ia sujeitar a si mesma todas as circunstâncias, e ia reforçar
igualmente por meio da resistência ou por meio da indulgência.
Esta conquista das mentes foi inequívoca, e a história trouxe como resultado o
que se havi consumado na esfera do pensamento. É desde esta perspectiva que há que se
avaliar os eventos quanto à sua origem, natureza e importância. Os exemplos são
numerosos.
Tome-se por exemplo o formoso panfleto de Sieyes sobre O Terceiro Estado.
Com perguntas e respostas tais como “O que tem sido? Nada. “O que é? Tudo. O que é que
pode ser?”81 Teve uma influência incalculável. Porém, por quê? Porque era um resumo
sucinto dos raciocínios largamente aplaudidos acerca da supremacia do povo. Tome-se a
reunião dos Estados na Assembléia Nacional. A caracterização que se faz da Madame de
Stael não é demasiado forte: “Este decreto foi a mesma revolução”82. No entanto, a
promulgação da revolução, este desvanecimento dos estados privilegiados em um corpo
que representa o povo como um todo, não era senão o primeiro passo na aplicação de uma
teoria que já havia triunfado.
XXX83
Porém, continuar deste modo nos introduziria à fase do Desenvolvimento, para
o qual reservei a conferência seguinte. Falei bastante sobre se eu tivesse mostrado como em
1789 a Preparação, que agora estava completa, tinha que ser sucedida pelo
Desenvolvimento. Até Ancillón, de uma forma um tanto incongruente, reconhece:
Quanto a seus princípios, a revolução foi consumada no dia que o Terceiro
Estado se proclamou Assembléia Nacional, quanto a seus meios, a revolução foi
consumada no dia que o povo derrubou a Bastilha. No primeiro dia decretou-se a soberania
popular. No segundo dia empregou-se o poder do povo. Agora toda revolução não é outra
coisa senão o desenvolvimento deste princípio e deste meio, o qual devia conduzir
necessariamente à soberania da multidão.84

81
XXX
82
XXX
83
Repetidamente se diz: Se tivesse ocorrido isto ou aquilo, o se não tivesse ocorrido isto ou
aquilo, a revolução poderia ter sido sufocada. Há exemplos sem fim. Se em 1775 Luís XVI tivesse feito caso
a Turgot, que só buscava a formação de um corpo de representantes do povo que tivesse o caráter consultivo!
Resposta: “O alcance de tal medida e o espírito da época não poderiam ter sido julgados de
forma mais equivocada. É verdade fazia o final das revoluções com frequência ter sido possível fazer com
impunidade o proposto por Turgot: conceder uma sombra de liberdade, mas sim uma substância. Porém nas
primeiras etapas de uma revolução tais métodos sempre fracassam, não logram outra coisa que estimular o
apetite do povo sem satisfazê-lo.” Tocqueville, L’Ancien Regime, p. 221. Veja também acima, p. 000. Se o
duqeu de Brunswick não tivesse proclamado seu manifesto em 1792, o trono não teria caído. Resposta:
“Segundo o testemunho de contemporâneos, o manifesto praticamente não causoi impressão alguma ao povo
francês. Foi um revés de muitíssimo significado precisamente porque ficou completamente sem efeito. Sybel.
Geschicte, l. 501.
84
XXX

31
Ancillón fecha a inevitabilidade da revolução francesa no decreto pelo qual se
autoconstituiu a Assembléia Nacional85, e lembra que este mesmo feito era inevitável: a
teoria da supremacia do povo, ama das mentes devido ao espírito da era, não podia ser
detida em sua busca de um estado correspondente. A erupção de um vulcão é inevitável
muito antes que a montanha se rompa em pedaços. A revolução francesa era inevitável
muito antes que explodisse.
O que vemos em 1789 é a Revolução. Não é “uma reforma política que apesar
de seus maus concomitantes pertence em objetivo e em resultado aos eventos saudáveis da
história mundial”, como pretendem alguns autores. É mais que uma revolução política que
desemboca na democracia, como se poderia deduzir da formulação de Ancillón. É a
Revolução com sua funesta influência que, embora suavizada em seus aspectos perniciosos,
pelas bênçãos de uma providência superior, segue ainda, hoje em dia, frustrando as
operações de princípios verdadeiramente sãos. É a Revolução, com sua sistemática
aplicação da filosofia da incredulidade, com suas atrocidades e seu caráter destrutivo, com
sua autodeificação e a adoração da Razão sobre as ruínas de um estado antigo.
Em vista do predomínio de uma falsa filosofia, isso poderia ter sido anunciado.
E foi predito. Por exemplo, já em 1770 o clero havia dito ao rei: “A impiedade vê com
maus olhos a Deus e ao homem. Não ficará satisfeita até que tenha destruído toda
autoridade, divina e Humana.

85
Desde esse momento a revolução desatada, também segundo Ancillón, teve que ter via livre.
“Desde o momento em que o rei reconheceu a Assembléia Nacional, tudo o que se seguiu ocorreu em forma
natural e como que tivesse que ocorrer desse modo... A revolução não foi corrompida por coincidências,
senão que foi desde o princípio uma terrível corrupção da luta inerente do homem pela perfeição, e um
exagero louco de todas as emoções e ideias, e o resultado, especialmente, de um falso conceito, de um
grandicíssimo e básico erro crônico. Porque, no momento em que a Assembléia Nacional se levantou
onipotente das cinzas dos Estados Gerais, trouxe consigo como suposto princípio de vida o princípio da morte
política, e como fundamento da obra que ia iniciar a mesma mina que se inevitavelmente ia voar em pedaços:
A SOBERANIA POPULAR levantou sua poderosa cabeça, esse gigante omnidestruidor que derrubou,
enquanto se levantava, a estrutura mesma que se pretendia que se poderia sustentar, e que manteve em um
turbilhão incessante aquele sobre o qual supostamente devia trazer repouso com sua presença”. Ancillón,
Ueber Souveranitat, pp. 81s.

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