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Isabel Cristina Ferreira Fernandes

(Coord.)

Mil Anos de Fortificações


na Península Ibérica e no Magreb (500-1500)

Actas do Simpósio Internacional sobre Castelos

Edições Colibri

Câmara Municipal de Palmeia
BIBLIOTECA NACIONAL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO

Simpósio Internacional sobre Castelos 2000, Palmeia

Mil anos de fortificações na Península Ibérica e no


Magreb (500-1500) : actas / do Simpósio Internacional
Sobre Castelos 2000 / coord. Isabel Cristina Ferreira
Fernandes. - (Extra-colecção)
ISBN 972-772-308-X

l — Fernandes, Isabel Cristina Ferreira, 1957-

CDU 725.18(4ó9 + 460)"500/1500"


725.1 8(61 )"500/1 500"
94(469)"500/1500"
94(460)"500/1500"

Título Mil Anos de Fortificações na Península Ibérica e no Magreb (500-1500)


Coordenação Isabel Cristina Ferreira Fernandes
Editor Fernando Mão de Ferro
Edição Edições Colibri / Câmara Municipal de Palmeia

Grafismo e Paginação Albertino Calamote


Revisão de texto
de português M. Fernanda Araújo
Foto l í tos Arte Mágica
Capa e logotipo Paulo Curto
Execução gráfica Colibri - Artes Gráficas
Depósito Legal 175 522/02
Tiragem 1 500 exemplares
Lisboa Janeiro de 2002
Castelos e território omíada na kura de Ocsonoba

Resumo
Depois de uma rápida análise sobre a conquista islâmica no Algarve e a transformação da diocese visigótica de Ossonoba
numa das primeiras coras (ituwar) militarizadas de al-Andalus, faz-se uma síntese sobre o que, no estado actual da investigação,
é possível reconhecer sobre o período omíada nesta região.
Tendo por base as sub-unidades geográficas actuais (Barlavento, Algarve Ce n trai/Ba r roca l e Sotavento), tenta explicar-se
a evolução do povoamento rural e a emergência de recintos fortificados, num território onde se estabeleceram Árabes ieme-
nitas, depois da conquista, bem como grupos sírios (Junde do Esipto), na segunda metade do século VIII.
Para além das duas principais cidades emirais/califais (Faro e Silves), comentam-se algumas fortificações de origem ante-
rior, como Monte Molião e Vila Velha de Alvor, e a formação de castelos-território (nusutri), sobretudo desde o século IX.
Neste caso, descrevem-se, em particular, os resultados obtidos nas escavações do Castelo Velho de Alcoutirn e do Castelo
das Relíquias, centros de distritos rurais que tiveram a sua fase de maior desenvolvimento durante o califado.

Uma abordagem ao território Antiguidade tardia para o período islâmico. Se obser-


varmos, inclusivamente, o mapa de distribuição dos
sítios arqueológicos, com a respectiva percentagem

A
pesar de a investigação arqueológica no Algar-
ve ter mais de um século, merecendo espe- por períodos cronológíco-culturais (MARQUliS,
cial referência os trabalhos de Bstácío da 1997: 95), somos mesmo levados a considerar que,
Veiga {1886-1891; 1910: 209-233), a verdade é que após o período romano (com 30% de sítios), existiu
há ainda um longo caminho a percorrer, sobretudo uma verdadeira "hccatombe", dada a escassa infor-
no que diz respeito ao desenvolvimento de uma mação sobre os períodos visigótico e islâmico (res-
arqueologia extensiva ao estudo do povoamento pectivamente 1% e 8%). No entanto, a edição, por
rural c dos recintos fortificados, na transição da parte do I1TAR, do inventário arqueológico do

Fig.1. Distrito do Algarve, com a localização das "civitates" romanas e dos castelos omíadas comentados no texto

Mil Anos de Fortificações na Península Ibérica e no Magreb (500-1500): Actas do Simpósio Internacional sobre Castelos.
Lisboa, Edições Colibri / Câmara Municipal de Palmeia, 2001, pp. 29-44.
30 HELENA CATARINO

Algarve e os resultados de escavações, antigos e inclusivamente, que Ossonoba esteve, ainda que por
recentes (lamentavelmente nem sempre publicados), poucos anos, sob o domínio bizantino, facto difícil
são o ponto de partida essencial para se tentar com- de comprovar no estado actual da investigação.
preender o processo de islamização, ainda que a aná- No entanto, seguindo as hipóteses apresentadas por
lise aqui apresentada não passe do formular de meras P. Goubert (1950), F. Lopes (1958-59) e D. Fernando
hipóteses de estudo, com a necessária aferição num de Almeida (1962), dá-sc como exemplo o facto de
trabalho de campo, que se desejaria mais minucioso. Cesário, derrotado por Sisebuto, em 624, se ter refu-
Extremo sul do Conventus Pacensis, o actual giado e mandado fortificar Ossonoba (Faro). Do
Algarve correspondeu à antiga diocese tardo-roma- mesmo modo, a ausência de bispos ossonobenscs
na/visigótica de Ossonoha, posteriormente kura islâ- nos concílios visigóticos, entre 589 e 653, pode ser
mica - distrito militarizado omíada do Garhe al- outro indicador da presença bizantina nesta região.
Andalus. Deve ter mantido aproximadamente os mes- Em todo o caso, não parece que Faro tenha sofrido
mos limites desde a Antiguidade, não obstante a destruições, mantendo-se a única urbe que volta a ter
existência de uma separação pouco rígida com o bispo, na segunda metade do século VII. As outras
Alentejo: a ocidente, na zona montanhosa entre o rio cidades tardo-romanas podem, no entanto, ter sido
Mira e a ribeira de Odeceixe (hoje ao longo dessa afectadas por uma certa decadência da vida urbana e
ribeira), seguindo pela Serra de Monchique; para por alterações topográficas. Tal como a arqueologia
oriente, pelos cumes da Serra do Caldeirão c, depois, tem mostrado noutras regiões, sobretudo no Sudeste
ao longo da ribeira do Vaseão, que desagua no espanhol - domínio bizantino e território do Pacto de
Guadiana, fronteira oriental do território. Teodomiro (GUTIERREZ LLORET, 1993: 13-35;
Região próspera durante o período romano e com 1996) - é provável que também no Algarve, com o
várias cidades, em estreita relação com o litoral avanço de trabalhos arqueológicos, venham a com-
(Btiesuris, Balsa, Qssonoba, Ipses, Clipes e Laco- provar-se estratigraficamente os vestígios que tor-
briga], aqui surgiu uma das primeiras dioceses cris- nem mais consistentes as hipóteses de ocupação
tãs peninsulares, tendo o bispo Viccncio (ou Vicente) bizantina e continuidade visigótico/emiral.
de Ossonoba participado no 1." concílio de Elvira, Na segunda metade do século vil, a Diocese é
logo nos inícios do século IV (303-306). O segundo indicada na nova divisão administrativa, atribuída ao
bispo, Ithacio, esteve presente no Sínodo Episcopal rei Vamba (672-680). A Divisio Wamba, autêntica
de Saragoça, em 380, onde foi um dos principais ou não, é o único documento que indica todas as dio-
opositores dos movimentos heréticos, incluindo segu- ceses e seus limites, com topónimos que devem ter
ramente o de Prisciliano, o que permite considerar correspondido a paróquias ou a simples lugares peri-
que Ossonoba era uma diocese fortemente romani- féricos, hoje difíceis de identificar no terreno. Para o
zada e cristianizada. actual Algarve, o documento especifica o seguinte:
Nos séculos v a VII, com a crescente evangeliza- Exonoba teneant de Ambia usque Saiam. De Ipsa
ção a partir da sede de bispado, é natural que algu- usque Turrem (VAZQUEZ DE PARGA, 1943: 80).
mas das outras civitates se tornassem paróquias, com Ambia c Sala são de localização desconhecida,
presbítero (como aconteceu com Mcrtola), enquanto sendo possível que se situassem, respectivamente,
que certas villae, com igreja e baptistério, devem ter- no limite norte/ocidental e na zona oriental, perto do
-se transformado em paróquias rurais visigóticas. De Guadiana, eventualmente numa paróquia que fosse
facto, apesar das escassas informações arqueológi- herdeira de parte do território de Balsa. Ipsa, apesar
cas, é de crer que parte das civitates tardo-romanas de ter sido interpretada, por Almeida Fernandes
tenham continuado habitadas, muito embora com (1997: 116), como Isirpa (Scrpa), c mais natural que
alterações topográficas, tendo apenas Faro muralhas coincidisse com a civitas de Ipses, identificada em
atribuídas ao Baixo Império. Também as villae tardo- Vila Velha de Alvor, sobre o litoral. Turre, por opo-
-romanas se mantiveram activas na Antiguidade tar- sição a Ipsa, é de crer que ficasse para norte, algures
dia, permanecendo os contactos comerciais com a na Serra do Caldeirão, ou mesmo na de Monchique,
bacia do Mediterrâneo e a importação de sigillata do região com um amplo domínio visual sobre a costa,
Norte de África (sigillata clara D) e da Fócia (sobre- onde não faltam os vestígios arqueológicos tardo-
tudo a forma 3 de Haycs), nomeadamente no Cerro romanos/visigóticos e muçulmanos.
da Vila, Loulé Velho, Torrinha, Milreu, Quinta de A diocese de Ossonoba foi conquistada, em 713,
Marim, Quinta do Muro, Álamo e Montinho das sob o comando de 'Abd al-'Aziz: "Quando Musa
Laranjeiras, para dar apenas alguns exemplos. pediu ao guia cristão para lhe indicar território não
O território mantevc-sc relativamente afastado das percorrido por Tãrique, aquele assinalou-lhe Niebla,
lutas suevo-visigóticas do século V c com grande Beja, Ocsonoba e Mérida. Musa seguiu para Scvilha
aproximação económica com os portos mercantis do e depois para Mérida. Durante o cerco a Mérida, os
Mediterrâneo. Algumas fontes escritas referem, cristãos de Sevilha revoltam-se, ajudados pelos de
31

Beja e Ocsonoha; então 'Ahd al-Aziz h. Musa é Mértola, e que Bakr b. Yahyâ b. Bakr se torna senhor
enviado a conquistar as cidades ocidentais de Scvi- de Ocsonoba. Estabelecido em Santa Maria do Oci-
Iha, Niehla, Ocsonoha c Beja" (CHALMETA, 1994: dente (datará desta altura a alteração do nome da
176-177). Dominada pela força das armas, esta dio- cidade), aí reforçou as muralhas, dotou-as com por-
cese passou u ser uma comarca administrativa, cer- tas de ferro, fez várias construções e manteve uma
tamente mantendo os mesmos limites territoriais, boa administração, obrigando os seus súbditos a
conforme se depreende na divisão de AI-Bakri, que zelar pela segurança dos caminhos, o que revela uma
coincide totalmente com a anterior divisão eclesiás- certa estabilidade e desenvolvimento do território.
tica (MONÈS, 1957: 91-92). Como aconteceu com Após ter subido ao poder, 'Abd al-Rahmân III
outras regiões também ocupadas pela força, ficou empreende, como c de conhecimento geral, várias
como governador de Ocsonoha um general árabe, campanhas militares contra os revoltosos da Fitna.
neste caso um icmenita, de nome Abíi Sabah al- Em 929, depois de destituir o governo de Ibn Máli-
Yamâni, que se transferiu depois para Scvilha que, que se mantinha em Beja, dirige-se para Ocso-
(DOMINCiUra, 1997: 70). noba, onde permaneceu sete noites. Jalaf b. Bakr
A partir de 740/741, perante as revoltas locais pro- prestou-lhe obediência, pagou os impostos de aloja-
vocadas principalmente por grupos berberes descon- mento, os tributos c pedíu que lhe confirmasse o
tentes, foram enviados para al-Andalus novos refor- posto, donde seria leal. Perante a boa organização
ços, os contingentes ou jundcs, que chegaram em em que se mantinha o território, o califa confirma-
743/744, vindos da Síria, c foram distribuídos pelas -Ihe, de facto, o governo da província (CASTIIJ.A
províncias militarizadas. Data desta altura, concrcta- L3RAZALES, 1992: 210-212). Só mais tarde voltamos
mente a partir de 752, a primeira divisão da Penín- a ter indicação de outros governadores: em 935/936,
sula em circunscrições militares ou Coras (Kuwar), Lubb b. Abdallah sai de Ocsonoba em favor de
instalando-se vjunde do Egipto nos distritos de Beja/ Musa b. Hakam; sabe-se igualmente que Muham-
/Ocsonoha e em parte do território de Tcodomiro. mad b. Ahmad foi deposto, em 941, em favor de
Mas terá sido com a chegada de 'Abd al-Rahmân l, Muhammad b. Sulayman (IBN HAYYAN, 265, 319).
após aniquilar as revoltas pró-abássidas nesta região, Durante a guerra civil que leva à formação dos
que devem ter-se verificado algumas alterações na reinos de taifa, o novo governador que chega a Santa
distribuição espacial dos primeiros estabelecimentos Maria do Ocidente é Sa'id b. Harun, a quem o cali-
de Muçulmanos, ainda difíceis de identificar no terre- fa Sulayman concede, cm 1016, o governo da kura,
no, à mingua de escavações e prospecções minucio- gratificando-o pelo apoio dado ao califado. Os Banu
sas. Harun, naturais de Mcrida c de origem berbere, tor-
No emirato de 'Abd al-Rahmân II (822-852), as nam-se independentes, formando o principado de
fronteiras marítimas do Garbe começam a ser con- Santa Maria de Harun, cujos territórios se estendem
frontadas com a chegada de barcos normandos que, sobre o Algarve Central e Oriental. Segundo a Crónica
em 844, provocam unia razia em Lisboa, em 859 Anónima dos Reinos de Taifa, o governo de Sa'Íd b.
chegam ao litoral de Ocsonoba e, segundo Al- Harun "foi o melhor dos reinados, cm razão da sua
Makkari, terão subido o Guadiana, para atacar o política, das suas boas acções, da sua energia e jus-
território da kura de Beja (LEVI-PROVENÇAL, tiça" (MAILLO SALGADO, 1991: 36). Entretanto,
1950a: 224). Terá sido a partir desta altura, c princi- também Silves se tornou independente, sob o gover-
palmente durante o governo de Muhammad l (852- no de Muzayn b. Musa, de família árabe aí estabele-
-886), que se inicia uma verdadeira política constru- cida desde o século VIII, o qual "organizou a cidade
tiva, quer na recuperação de antigas muralhas urba- c consolidou as suas defesas" (ibidem: 33), forman-
nas, quer na edificação de torres de atalaia, vigilan- do uma taifa com domínio sobre o Algarve ociden-
tes sobre a costa, ou cm novas fortificações, por tal/Barlavento.
vezes de carácter religioso-militar (ribat/rubut), já Pelo exposto, entre momentos conturbados por
assinaladas por Juan Souto, a partir de informações ataques externos e revoltas internas, desde a segun-
colhidas nas fontes escritas (SOUTO, 1994: 351-360). da metade do século IX, começam a edificar-se sis-
Nos finais do século IX, as sublevações de índole temas defensivos litorais, fortificações urbanas e
indcpendentista atingem também a kura de Ocsonoba. castelos, relacionados com o reordenamento do
Ibnc Marwan, o rebelde de Mérida e Badajoz, ataca povoamento rural. É natural que a organização
Scvilha, o castelo de Taliata e atravessa a região de administrativa da kura se fosse consolidando, princi-
Niebla. Entrou depois cm Ocsonoba, devastou as palmente desde 'Abd al-Rahmàn II e Muhammad I,
serranias do Algarve c apoderou-se de Munt Saqir de modo a tornar-se estável em época califal. De um
(Monte Sacro, provavelmente na Serra de Monchi- modo geral, a extensão do território ter-sc-á mantido
que). Neste contexto da 1.- Fitna, sabe-se que Ibnc sem grandes oscilações, embora se saiba que, nos
Málique se torna senhor de Beja e se fortifica em inícios do século X, Ibn Bakre possuía domínios em
32 HELENA CATARINC

Ourique, pois a crónica de 'Arih indica que 'Abel Al- início da conquista. Mas, à medida que a islamízação
Rahmân III se apoderou do castelo d&Ál-Wiq (ou al- se foi consolidando, surgiu uma nova organização
RUfti}, onde os seus mercenários e soldados haviam do território: perderam-se os nomes das anteriores
saqueado propriedades, material c armas pertencen- civitates, permanecendo apenas o de Cilpes/SÚvss',
tes ao senhor de Ocsonobu (CASTILLA líRAZALES, esses espaços terão sido assimilados pela criação de
1992: 211-212). outras subunidadcs regionais, por vezes com nova
No século X, AI-Rasis descreve a kura de Ocsono- localização; algumas villae que, aparentemente, não
ba como tendo limites com a de Lisboa, o que pode- tiveram hiato de ocupação, podem ser agora meras
ria ser reminiscência dos tempos visigóticos, pois propriedades fundiárias com casas (day'a, pi. í//y«');
também alguns estudos sobre a Divisio Wamba indi- surgem novas povoações rurais, umas vezes funda-
cam esses limites, sendo o nome Ambia comum às das cx nihilo, outras instalando-se sobre antigos
duas dioceses (VASQUEZ DE PARCA, 1943: 80). É, lugares abandonados, ou em vici e civitates, que pas-
porém, mais credível a interpretação de Almeida sam a designar-se por alçarias (qarya, qurà). Por
Fernandes, pois não parece lógico que Lisboa tives- outro lado, paralelamente a estabelecimentos de
se uma paróquia isolada, a sul da diocese de Évora, altura (sobretudo na Serra), que parecem ter povoa-
no território da qual estava Setúbal {FERNANDES, mento visigótico/emiral, devem ter surgido, possi-
1997: 119 c nota 341). Em todo o caso, embora o velmente a partir do século IX, diversas torres de ata-
dissidente da Fitna, nos inícios do século X, possuísse laia e novos castelos/territórios (hiisun), correspon-
um senhorio em Ourique, a separação seria entre dendo ao aparecimento de outras pequenas comar-
Ocsonoba c Beja e devia fazer-se, como ainda hoje, cas, algumas de tipo yuz', com predomínio para as
pelas Serras do Caldeirão c de Monchique, sendo o actividades de pastoreio c de explorações mineiras.
Guadiana a separação natural com a kura de Niebla.
Território com grande extensão do litoral, boas terras
agrícolas, de pastoreio, com minas e montanhas Fortificações omíadas
arborizadas, Ocsonoba tinha no seu território vilas e nas actuais sub-regiões do Algarve
castelos, infelizmente não especificados, sendo
Silves a cidade califal mais desenvolvida, conforme De momento, não existem informações históricas
se depreende no texto de Al-Rasis. c arqueológicas suficientes para permitirem uma
Apesar de não existir uma lista completa das sub- definição, com o devido pormenor, das característi-
divisões administrativas das kitwar muçulmanas, cas de todos os recintos fortificados omíadas do
sabe-se que cada uma se dividia cm várias comarcas, Algarve e respectivos territórios. Assim, apenas se
designadas habitualmente por iqlim ou clima. Um indicam algumas das fortificações que, por comodi-
texto de al-'Udri, sobre a divisão dos 15 aqalim de dade no agrupamento do tema, se distribuíram pelo
Córdova, é o melhor exemplo conhecido, porque território de anteriores civilales, para o que se tomou
indica o número de alçarias, castelos e torres tributá- como ponto de partida o mapa da localização de
rias que existiam no respectivo termo (MONÉS, Cilpes, Ossonoba e Balsa (ALARCÃO, 1990: 31). De
1957: 118-1 19 e VALLVÉ, 1986: 254-256). De acor- facto, os seus territórios coincidem, aproximada-
do com as fontes árabes, cada província ou Kura mente, com as três sub-regiõcs que, ainda hoje, defi-
tinha um número variável de distritos ou comarcas nem o Algarve. Esta província apresenta uma certa
(iqlim/aqalim) e de partidos (yuz'/ayzâ), embora diversidade, de Ocidente para Oriente, cujas caracte-
existissem ainda outras designações, por vezes mais rísticas se baseiam no clima, no relevo e tipo de
imprecisas (VALLVÉ, 1992: 20-28). Sabe-se também vegetação:
que cada iqlim possuía no seu termo castelos/povoa-
1. O Barlavento, ou Algarve Ocidental, é uma sub-
ção (hisn/husun), com funções militares e económi-
região que se estende para poente de Albufeira,
cas regionais, tinha alçarias, outros povoados mais
sobe pelo "corredor" de S. Bartolomeu de Mcs-
pequenos c um território. Na realidade, o hisn é "não
sincs para S. Marcos da Serra, seguindo pela
apenas um castelo no sentido material do termo, mas
Serra de Monchique e Espinhaço de Cão, até à
designa um conjunto mais complexo, por sua vez
Costa Vicentina. Os seus limites naturais, a nor-
territorial c social, definido pela jurisdição que exer-
oeste, são definidos pela ribeira de Odeccixc e
ce (castelo, lugar habitado) sobre os habitantes desse
região sul do Mira. Para além de um certo
espaço" (BAZZANAt-f alii, 1988; 32).
número de castelos e respectivas comarcas,
No estado actual da investigação, pode depreen-
tinha a capital em Silves, herdeira da Cilpes
der-se que, no Algarve, os primeiros aqalim tenham
romana (Cerro da Rocha Branca).
mantido uma certa coincidência com os territórios
de anteriores civitates e v/c/, que ainda conservavam 2. O Algarve Central, com os melhores terrenos do
um povoamento, ainda que reduzido e periférico, no Barrocal, estendc-se para nascente do "corre-
33

dor" de S. Barlolomeu de Messines e S. Marcos região mantiveram o nome anterior, sendo natural
da Serra, ocupa as encostas sul da Serra do que já as primeiras muralhas existissem, tendo sido
Caldeirão, desde o Cerro do Malhão, e desce até utilizadas ainda durante os séculos V I I I - I X .
ao litoral, sensivelmente entre os concelhos de A segunda muralha está assente sobre a anterior c
Albufeira e Olhfio. A este espaço corresponde totaliza, somada à primeira, cerca de 2 m de espes-
outra subunidadc regional, com capital em sura, atribuindo-se-lhe um contexto cronológico do
Santa Maria do Ocidente ou de Ocsonoha, século IX ou dos primeiros anos do século X (ibiãem:
tendo a mesma localização da civitas romana. 289). Esta muralha pode coincidir com o crescente
3. O Sotavento, ou Algarve Oriental, é uma sub- desenvolvimento urbano e a necessidade de protec-
região que pode ser definida aproximadamente ção perante os ataques normandos. No século X, é
para oriente da Serra do Caldeirão, a partir do natural que 'Abd al-Rahmân III tenha convertido
meridiano do Ameixial, com as áreas monta- Silves em madina, graças à importância que o porto
nhosas do Cachopo, da Serra de Alçaria do do Aradc tinha atingido. A sua alcáçova torna-se um
('ume e Alçaria Alta, ale ao vale do Guadiana e centro importante e, em meados do século XI, toda a
ao litoral. Este espaço terá sido herdeiro da civi- região do Barlavento passa a fazer parte do reino
tas de Balsa, possivelmente com um novo cen- taifa de Silves, informando-nos as fontes escritas
tro urbano no hisn de Caceia c com Ta vira, que Ibn Muzainc reforçou as muralhas, o que não
embora esta, nos inícios do século XII, seja impediu os ataques e a anexação a Sevilha.
ainda designada por alçaria e Edrici não faça Para sudoeste de Silves, a cerca de 18 km (medidos
referência a nenhum castelo. em linha recta), as escavações realizadas na década
de 80, cm Vila Velha de Alvor, levaram à identifica-
ção de Ipses, cidade que, como Cilpes, cunhou moeda
Castelos do período omíada no Barlavento no século l a.C. Situa-se num promontório sobre o
litoral (Baía de Alvor), que revelou amuralhado e
Silves foi, sem dúvida, o centro urbano mais ocupação correspondente à Idade do Ferro e inícios
importante desta região, onde se terão estabelecido, da romanização, assim como vestígios visigóticos e
desde o século VIII, populações árabes, incluindo islâmicos (GAMITO, 1994:213-218; 1997:257-263).
grupos de origem icmenitu que chegaram com Ibn Estas escavações tiveram o mérito de, para além da
Musa e 'Abd al-Aziz. Mas os Muçulmanos terão identificação de uma nova civitas algarvia, que no
ocupado áreas já anteriormente habitadas, pelo que, período romano se deve ter expandido para a actual
ao abordarmos os sistemas defensivos omíadas da zona urbana de Alvor, possibilitarem uma melhor
cidade, devemos ter em atenção as diferenças de compreensão da Divisio Wamba, que colocava Ipsa
localização dos vestígios. No Cerro da Rocha Branca, como um dos limites da Diocese de Ossonoba.
a cerca de l km para poente da actual área urbana, Embora o espólio associado aos diferentes contex-
foi identificada a civitas de Clipes, com ocupação tos cstratigráficos ainda não tenha sido divulgado,
desde os finais da Idade do Bronze até ao período lambem aqui se encontraram estratos dos períodos
tardo-romano, onde também se encontraram algu- visigótico e islâmico, o que me leva a considerar a
mas cerâmicas islâmicas c tardo-mcdievais/moder- seguinte hipótese de trabalho: no período visigótico,
iiíis (GOMES et alii., 1986: 77-83). é natural que Ipsa fosse uma paróquia com escassa
As escavações efectuadas na actual área urbana, população, localizada preferencialmente no esporão
junto da muralha almóada que cerca a medina, per- sobre o litoral e em reduzidos núcleos de habitai dis-
mitiram identificar um tramo de muralha, atribuída à perso; também as escavações na luxuosa villa roma-
primeira metade do século VIII, formada por peque- na de Abicada, situada nas proximidades, revelaram
nos blocos irregulares de arenito vermelho, arga- cerâmicas tardias, nomeadamente sigillata clara D,
massados com terra, tendo l m de espessura. Nos assim como edifícios mais recentes, encontrando-se
alicerces foram encontrados vestígios da Antiguidade paredes de taipa (VIANA et alii, 1953: 10 c 17); no
tardia, como fragmentos de cerâmica comum c sigi- primeiro momento de ocupação islâmica, é possível
llata clara D, nomeadamente um fundo, onde se que a população autóctone que permaneceu em Ipsa
notam os vestígios de um cordeiro impresso, com se concentrasse no cabeço, onde se tinha localizado
cronologia de meados do século VI (GOMES c o antigo oppidum pré-romano; entretanto, deve ter
GOMES, 1989: 288-289). Deste modo, é natural que, surgido também uma nova povoação, certamente
durante os períodos tardo-romano e visigótico, se uma alçaria, no antigo núcleo romano, em direcção
tenha observado um deslocamento da população que ao interior e ao Vale da Zorra (de Zuhral).
habitava no Cerro da Rocha Branca para a actual Pela sua localização litoral, sobre o porto e a baía
área urbana, transferindo-se o topónimo para a nova de Alvor, é possível que a insegurança, sobretudo a
localidade. Quando os Muçulmanos chegaram a esta partir do século IX, levassem à necessidade de cons-
34 HELENA CATARINO

trução de defesas, por exemplo um pequeno hisn ou 2,20 m. Este sítio corresponderá a um enorme cas-
uma torre (Al-bury'1), nos finais do cm irado ou em trum, onde são também visíveis, à superfície, frag-
inícios do califado, época em que deve ter-se verifi- mentos de cerâmica da Idade do Bronze, para além
cado a alteração do topónimo para Alvor. A povoa- de escassas cerâmicas islâmicas.
ção islâmica desenvolveu-se e teve castelo-fortc, que Apesar de não existir uma investigação sistemática
foi tomado aquando da primeira conquista de Silves, sobre a Serra de Monchique, é notável a quantidade
por D. Sancho l, em l Í 89, sendo recuperado pelos c qualidade dos vestígios arqueológicos romanos e
Almóadas. A conquista definitiva deu-sc no reinado visigóticos encontrados: de Alfercc há notícia de
de D. Afonso III, em 1250, embora os vestígios indi- achados de moedas, nomeadamente um áureo de
cados nos resultados das escavações constem apenas Honório, procedente do castelo, um soldo de Vitiza,
de derrubes e cerâmicas "datáveis dos séculos X a cujo local de achado se ignora, e um aureus bizanti-
XII" (GAMITO, 1997a: 261). no, do reinado de Justiniano, na posse de um parti-
Em frente da baía de Alvor eleva-se Monte Molião, cular; na Foia, a mais de 800 m de altura, existiu
junto a Lagos, onde ficaria o oppiduin pré-romano uma necrópolc tardo-romana; nas Caldas de Mon-
úeLacobriga. Ultrapassando a polemica em torno da chique, a 7 km de Alferce, para além das termas c
sua localização, podemos, a partir de escavações edifícios romanos, há indícios de vestígios posterio-
esporádicas e achados avulsos (SANTOS ROCHA, res; uma via secundária, com calçada, passava junto
1895: 93-212; VIANA et alii, 1953), sugerir que o do Cerro da Vigia, em direcção a Alçaria, de onde se
processo de islamízação coincidiu, também aqui, conhece um bom conjunto de espólio visigótico
com alterações topográficas de habitat. Numa pri- (VIANA et alii, 1948: 227-233, FORMOSINHO et alii,
meira fase, Monte Molião teve ocupação da Idade do 1953).
Ferro c romana, sobretudo do período republicano, Perante a distribuição dos achados, pode colocar-
embora deva consíderar-sc que o núcleo urbano se se a hipótese de ter existido, nesta zona, um núcleo
desenvolveu depois para Lagos. Durante o período visigótico/cmiral importante, eventualmente com
visigótico e islâmico, voltamos a ter vestígios de uma lorrc, sendo o castelo de Alfercc uma constru-
ocupação em Monte Molião, conforme pode obser- ção já claramente omíada que, sobrepondo-se a ves-
var-se pela cisterna, alinhamentos de paredes e cerâ- tígios anteriores, parece ser contemporâneo do
micas expostas no Museu da cidade, onde também Castelo das Relíquias e do Castelo Velho de Alcou-
existem dirhames do Emirado, de proveniência inde- tim. Nos arredores do hisn foram crescendo povoa-
terminada. Uma intervenção de emergência recente ções rurais, nomeadamente Alçaria c Monchique,
revelou igualmente um reduzido tramo de "possível onde se terá edificado, mais tarde, o castelo de
muralha de pedra seca, com 1,10 m de largura" Marjiq, referido na primeira conquista de Silves.
(ESTRELA, 1999: 205). A existência de muralha e Também no território de Silves, a cerca de 18 km
cerâmicas visigótlcas e islâmicas em Monte Molião para nordeste, o distrito agrícola (nawâhi) de Massâ-
deve significar que, também aqui, habitava popula- na, citado por Yaqut (ABD AL-KARIM, 1974: IV,
ção indígena no momento da conquista. Entretanto, 523), poderia ter uma fortificação rural, ou castclo-
foi crescendo o porto e a alçaria (Halq al-Zawiya), -refúgio, relacionada com a respectiva povoação,
na baía de Lagos, povoação indicada, mais tarde, no que corresponderá a Messines (freguesia de S. Bar-
itinerário de Edrici, onde não aparece qualquer refe- tolomeu de Messines), certamente num ponto vigi-
rencia a fortificação. lante sobre o principal eixo viário - o "corredor" S.
Para nordeste de Alvor (cerca de 24-25 km em Marcos da Serra/S. Bartolomcu de Messines. Se
linha recta), já em plena Serra de Monchique, o Cerro tivermos em consideração o topónimo Massâna,
do Castelo de Alfercc ocupa uma extensa área num com o sufixo -anã, podemos estar perante uma das
cabeço elevado, que tinha domínio visual até ao lito- alçarias de fundação cmiral, do mesmo tipo de
ral, mas era protegido, ao mesmo tempo, pelo ondu- outras, distribuídas por Al-Andalus, c onde se esta-
lado dos montes circundantes. No cimo, para além beleceram elementos dos jundes, como já indicou
de afloramentos da rocha, que parecem ter sido com- Acién Almansa (1999: 75-76). Neste caso, já nada
pletados por amplos circuitos amuralhados cm plata- resta do castelo, indicado na primeira conquista de
formas, são ainda visíveis, na zona mais alta, alinha- Silves, ora por Marsusa, ora por Mussiene: ficou
mentos de muralhas pétreas, aparentemente com apenas o topónimo Castelo, escassos vestígios de
cerca de 2 m de espessura, que formam um fortim paredes e sepulturas medievais, escavadas na rocha.
(possível alcácer), de planta quadrangular, seme- Entre os principais recintos fortificados do Barla-
lhante ao do Castelo das Relíquias. No interior, vento, também o castelo de Aljczur (de Al-Jazía/Ai-
pouco afastada do tramo leste da muralha, cncontra-sc .luzurl) deve ter sido edificado no período omíada,
a abertura de uma cisterna, com aparelho bem arga- sobrepondo-se a ruínas do Bronze Final c Idade do
massado de cal, visível na sua largura interna, com Ferro. Esta fortificação, de planta octogonal, com
35

duas torres, sofreu várias reconstruções e as recentes respectivo espólio, que permitam uma boa síntese
escavações (apresentadas a este Simpósio) revela- sobre a evolução da topografia urbana durante a
ram, para além dos estratos pré-romanos, construçõ- Antiguidade tardia e o período islâmico.
es posteriores ao século X. No entanto, a distribuição A localização litoral de Ossonoba favoreceu sem-
dos vestígios, incluindo silos, na actual área urbana, pre uma forte relação cultural e mercantil com o
pode estar relacionada com o facto de Aljczur ter Mediterrâneo c, como indicou Vasco Mantas, "a
começado por ser uma alçaria, com possível torre constituição de um bispado em Faro em período tão
defensiva, ou mera cerca rural (al-ma'qil\- remoto demonstra a importância da comunidade
da na parte mais elevada do cabeço. cristã local e, simultaneamente, aponta para a proe-
A povoação islâmica de Aljezur devia estender-se minência administrativa da cidade no século III"
para nascente c sul, cm núcleos de habitat ate Arrifes (MANTAS, 1993: 530), facto que permite deduzir
do Poço e Vale da Maia, a cerca de 600 m do caste- uma continuidade urbana, sem grande retrocesso
lo. Daqui provêm artefactos de metal e cerâmicas económico na Antiguidade tardia. Como já referi,
islâmicas, depositadas no Museu de Lagos, algumas embora não existam resultados arqueológicos que
de características omíadas, como as decorações inci- comprovem a presença bizantina, a cidade já estaria
sas, em ondulado e ziguezague, as aplicações plásti- amuralhada quando Cesário, em 624, se fortificou
cas digitadas c alguns dos fragmentos com pintura em Faro. Assim, os tramos de muralhas que ainda
(VIANA et alii, 1953: 5-7, Lám. V. 62 a 67). A rique- subsistem poderão corresponder ao traçado do perí-
za agrícola da região, podendo estar também asso- metro urbano tardo-romano, com sucessivas recons-
ciada a sistemas hidráulicos, infelizmente por estu- truções c acrescentos bizantino/visigóticos, islâmi-
dar, terá justificado a dispersão do povoamento rural cos c medievais posteriores à Reconquista, consu-
pelos vales cm torno do castelo c ao longo de ribei- mada em 1249 por D. Afonso III.
ras, como a de Alfambras, junto da qual se situa A muralha, pormenorizadamente descrita por
Alçaria, também com vestígios islâmicos. Pinheiro e Rosa (1975: 59-129), tem perímetro ova-
Finalmente, a completar a vigilância sobre a ampla lado, torres quadrangulares e semicirculares, é corta-
faixa litoral do Barlavento, devem ter-sc construído, da por três portas antigas, conectadas com o traçado
sobretudo a partir de finais do século IX e no seguin- do cardus e decumanus, c conserva na base um bom
te, várias torres de atalaia, certamente com função de aparelho pétreo, com forte argamassa, cujos alicer-
alerta, ou rebate (ribat), em caso de ataques maríti- ces devem ser fundos. Como relatou Abel Viana
mos, não se esquecendo o mosteiro-fortaleza de (1952: 23), durante a abertura de um poço junto da
Arrifana, no alfoz de Rayhâna, a cerca de 7 km de muralha, no extremo sudoeste do castelo, encontra-
Aljczur. Entre alguns dos pontos fortificados, apa- vam-se cerâmicas romanas a 6/7 m, não indicando,
rentemente com vestígios omíadas, indica-sc a Ponta porém, se a muralha descia a tal profundidade. Em
da Atalaia, a norte de Arrifana, e a Ponta do Castelo, alguns tramos, o aparelho revela reutilização de
a sul, na Carrapateira. Embora a maioria dessas materiais romanos e de um fragmento de inscrição
torres litorais se tenham transformado cm torres c cristã que, segundo Vasco Mantas, devia pertencer à
fortalezas de ópoea tardo-medieval/moderna, não "necrópole situada no sector nordeste da área demar-
deve deixar de referir-se a necessidade de vigilância cada pela muralha medieval" (MANTAS, 1993: 537).
sobre a zona do Cabo de S. Vicente (Tarafal-'Urf) c Para além de torres quadrangulares adossadas às
no distrito rural de Sagres (qariyat al-Shaqrash), muralhas, há que referir as de planta semicircular,
assim como possíveis antecedentes islâmicos no bem visíveis no tramo leste da fortificação, onde se
forte de Almádena (onde, segundo a tradição, terá observam reparações: a face exterior em arco passa
existido uma mesquita) c no castelo de Budens, com subitamente a ser facetada na forma heptagonal, pos-
vestígios romanos e medievais (GOMES et alii, 1987: sivelmente coincidindo com o período visigótico/
26, 43, 46). /bizantino (GAMITO, 1977b: 355-356). De facto,
pode colocar-se a hipótese de terem sido reconstruí-
Castelos do período omíada no Algarve Central das nesta época, visto que, para além da cidade de
Cartagena, com grande torreão semicircular e lápide,
No Algarve Central, onde se encontram as melho- de 589/590, que comemora a construção do recinto
res terras do Maciço Calcário do Barrocal, pode afir- amuralhado, também algumas pequenas fortificaçõ-
mar-se que a civitas romana, diocese paleocristã/ es bizantinas do Norte de África têm torres do
/visigótica, e primeira capital da kura de Ocsonoba, mesmo tipo. Dá-se como exemplo o fortim de Borj
conservou a mesma localização, sob a actual cidade Younga, de domínio sobre a costa de Ifríquia, com
de Faro. Mas, apesar das várias intervenções arqueo- torres rectangulares a meio dos quatro panos de
lógicas (antigas e recentes), são nulas as informações muralha e torres circulares ou hcptagonais, neste
estratigráficas associando restos de edifícios com o caso apenas nos ângulos. Esta fortificação, donde se
36 HELENA CATARINO

recolheram cerâmicas bizantinas e muçulmanas, palmente junto do litoral e nas terras férteis do Barro-
pode ser considerada um edifício do período aglábi- cal, propícias a hortas e pomares onde não faltariam
da assente sobre um anterior fortim bizantino engenhos hidráulicos. Carecemos, contudo, de um
(MAJOR GONZÁLEZeí «///., 1993: 367-371). melhor conhecimento sobre a zona serrana deste
Após a conquista islâmica de Ossonoba, e durante território.
todo o século VIII, não deve ter havido quaisquer No que diz respeito ao povoamento rural cm torno
alterações no amuralhado, que só volta a sofrer repa- da cidade, parece verificar-se uma certa continuida-
rações c acrescentos a partir da segunda metade do de de ocupação cm villac ou, pelo menos, recupera-
século IX, durante o governo de Yahyà h. Bakr. As ção de alguns espaços, como acontece no Cerro da
crónicas aludem ao facto de este dissidente da Fitna Vila (Vilamoura, Loulé), onde um conjunto de silos
ter reforçado as muralhas e provido a cidade com cortou pavimentos de mosaicos da domas romana e
portas de ferro. Assim, pode depreender-se que as algumas construções tardo-romanas/visigóticas pare-
primeiras obras de fortificação, em época omíada, cem ter sofrido remodelações posteriores (MATOS,
ocorrem no século IX: a medina, agora com o nome 1997: 459-467). Quanto à villa de Milreu (Estói,
de Santa Maria de Ocsonoba ou do Garbe, conser- Faro), com basílica paleocristã e baptistério, é possí-
vou o mesmo perímetro amuralhado e respectivas vel que se tornasse, no período visigótico, uma
torres, embora uma ou outra possa ter-se acrescenta- pequena paróquia rural dos arredores da sede de bis-
do, o que c difícil comprovar no estado actual da pado. A ocupação islâmica está comprovada, não só
investigação; a alcáçova ou castelo (hoje unidade pela ocorrência de cerâmicas, nomeadamente de
fabril em ruínas), sendo o espaço destinado ao aloja- época emiral (TEICHNF.R, 1994: 89-100), mas por
mento do governador, penso que se tenha edificado inscrições árabes, em colunas da basílica, e indíca-
nesta época e ocupava uma pequena área rectangu- Ção de um bairro dos banhos (hatnmaii], seguramen-
lar, adossada ao tramo leste da muralha, perto de te remodelando-sc uma das termas romanas (SIDA-
uma reentrância da mesma e da zona onde estaria o RUS e TEICHNER, 1997: 177-189). Aparentemente,
porto {Poço das Naus); das portas chapeadas a metal, tal como aconteceu, por exemplo, em Casa Hcrrera,
segundo Garcia Domingues, "parece haver vestígios também é possível que o templo de Milreu se tenha
na porta do arco de ferradura, entaipada, do Arco da convertido em mesquita (HAUSCHILD, 1995: 381).
Vila de Faro, à direita de quem entra na vila-adcntro" Mas, para além de villae, agora propriedades fun-
(DOMINGUES, 1984: 78). diárias com instalação agrícola, sobretudo as que
Nos inícios do século X, Santa Maria do Ocidente conservavam infra-estruturas hidráulicas tardo-
era uma praça-fortc, certamente com certo desenvol- -romanas, vão surgindo novas fundações islâmicas
vimento económico e boa administração, por parte na periferia das primeiras. Tornam-se grandes alça-
de Jalaf b. Bakr, que se submete a Abd al-Rahmân III rias, como Loulé (al~'Uliã), só mais tarde provida de
c se mantém como governador da kura. Não haven- muralhas e elevada à categoria de cidade. Bcnafim,
do informações sobre novas construções defensivas Querença ou Salir são outras tantas alçarias, a última
durante o califado, é natural que neste período ape- localizada perto da villa romana da Torrinha que,
nas se tenham mantido as anteriores. Os seus muros pelos achados de superfície, se deve ter mantido
eram banhados pelas águas na maré cheia e o seu habitada ale ao período visigótico. O povoamento
porto frequentado por navios, sendo uma cidade islâmico antigo cm Salir parece corresponder a
mediana mas próspera que, nos inícios do século XI, núcleos de construções dispersas pelas terras de cul-
se torna a sede do reino taifa de Santa Maria de tivo, em torno da povoação actual, onde também foi
Harun, com jurisdição sobre um amplo território, encontrada uma lápide funerária, com epitáfio a Ibn
que abrangia o Algarve Central e o Sotavento até ao Sa'Íde, falecido em 1016/1017. Nas proximidades, o
Guadiana, fronteira com o reino taifa de Niebla. cabeço do Porto das Covas terá começado por pos-
O estado actual da investigação não permite reco- suir um amuralhado simples, de tipo celeiro fortifi-
nhecer nesta região do Algarve outras fortificações cado, se tivermos em consideração o número de silos
emirais/califais, a não ser que coloquemos a hipótese aí identificados. Só no século Xll se terá reforçado a
de o hisn de Portela (Biirtala), indicado por Edrici a muralha: foi entaípada uma porta estreita e acres-
uma etapa curta de Santa Maria, se localizar em centaram-se torres de taipa. A população rural, até aí
Alportel (cerca de 18 km para norte de Faro), a estabelecida em espaços abertos, passa a procurar
pouca distância da alçaria de Xambras (S. Brás de protecção no recinto amuralhado c o albacar de Salir
Alportel), terra natal de Ibne Amar. Aparentemente, torna-se, no período almóada, uma fortificação de
a islamização do território da antiga civitas de taipa com densa trama urbana no interior (CATARI-
Ossonoba, com forte componente de moçárabes c NO, 1997/98:452-517).
muladis, parece coincidir com um povoamento dis-
perso e não fortificado, cm sítios localizados princi-
37

Castelos do período omíada no Sotavento o prova a ajuda prestada a D. Paio Peres Correia pelo
mercador moçãrabc Garcia Rodrigues, natural desta
O território islâmico do Sotavento foi herdeiro do cidade. Aliás, embora se atribua a Caceia, a lápide
da civitas de lia l sã, embora nesta região tenha exis- com epitáfio ao bispo Julião, falecido em 987 ou em
tido outro oppidum da Idade do Ferro: a civitas de 991 (DIAS, 1999: 11-18 c BARROCA, 2000, vol. II,
Baesuris (Castro Marim), onde ainda não c possível n.- 9), foi na realidade encontrada no sítio da Fonte
traçar a evolução do povoamento, dada a ausência de Sagrada, a escassos 4 km de Tavira, o que reforça
vestígios de ocupação visigótica/emiral na vila esta ideia da importância dos moçárabes na região e
actual. Podemos, contudo, afirmar que esta região a manutenção de um bispo de Ocsonoba que, em
sofreu alterações no ordenamento espacial do habi- pleno período califal, foi precisamente sepultado nos
tat e dos recintos fortificados, à semelhança do que arredores de Tavira.
terá acontecido no Barlavento. Apesar de ainda se Quanto à existência de muralhas de época omíada,
manter uma certa ambiguidade em torno da localiza- os vestígios não permitem reconhecê-las. Estou em
ção de Balsa - Quinta de Torre d'AÍres ou Tavira -, crer que poderia haver, na parte mais elevada da
questão recentemente comentada (ARRUDA, 1999: cidade, uma torre de atalaia, dada a localização de
25-26, l-ABIÃO, 1999: 36-37), o certo é que as fontes Tavira c a necessidade de defender-se a fronteira
árabes não referem nenhum hisn omíada em Tavira marítima; ou existiria apenas uma cerca-refúgio, de
que, como Lagos, é indicada por Edrici como sendo tipo ma'qil, neste caso para protecção da população
uma alçaria. Também Yaqut ('ABD AL-KARIM, 1974: local, provavelmente com amuralhado simples c
217) a refere como povoação ou aldeia (balda), ocupação visigótica/emiral. Contudo, só com o con-
embora nos séculos XI1/XIII já fosse seguramente um tributo das escavações, que se espera venham a reve-
núcleo urbano desenvolvido. lar boas informações estratigráficas, se poderá con-
Assim, c com base na dispersão dos achados firmar ou refutar esta hipótese, na medida em que os
arqueológicos, da Idade do Ferro, romanos e islâmi- Iramos de muralhas e torres hoje visíveis são nitida-
cos, podemos inferir o seguinte: o oppidum pré- mente almorávidas/almóadas, com reconstruções c
-romano de Balsa estaria cm Tavira, onde escava- acrescentos posteriores à Reonquista.
ções recentes identificaram, inclusivamente, uma Entre Tavira e Castro Marim existiu uma villa roma-
muralha da Idade do Ferro, existindo também vestí- na de grandes dimensões, cujos vestígios se esten-
gios deste período num cabeço próximo (Cerro do dem pela Quinta do Muro, perto de Caceia Velha,
Cavaco); a cidade romana estendeu-se depois para área que se tornará a Qastalla do período muçulma-
poente, na área de Torre d'Aires/Luz de Tavira; a sua no. Caceia Velha tornou-se, provavelmente, o pri-
decadência tcr-se-á acentuado, porém, na Antiguida- meiro centro de um iqlim omíada do Sotavento, que
de tardia, podendo deduzir-se que, no momento da se estendia ate ao Guadiana, pelas terras férteis do
conquista islâmica, já estaria abandonada ou apenas litoral, onde também tinham existido vlUae tardo-
com uma população residual; com o abandono pro- -romanas. É natural que algumas delas se mantives-
gressivo de Balsa, na zona de Torre d'Aircs, c natu- sem habitadas, certamente por moçárabes; enquanto
ral que, desde o período visigótico, a população bal- que outras, como Vale do Boto, seriam reocupadas
sense voltasse a habitar preferencialmente no espaço por muçulmanos, o mesmo podendo ter acontecido
do antigo oppidum, onde crescerá a Tabira de época em torno de Santa Rita, onde ainda se conserva a
islâmica, desaparecendo assim o topónimo anterior barragem romana.
(como aconteceu com IpsesllpsalAlvor). Pequena urbe banhada pelo mar e bem defendida
No estado actual dos conhecimentos, não c possí- pelo seu castelo, Qastalla aparece citada nas fontes
vel afirmar que a alçaria de Tavira seja uma funda- árabes, umas vezes como madina, outras como hisn
Ção islâmica ex nUiilo; pelo contrário, a partir do (MAZZOLI-GUINTARD, 1996: 316, Doe. n. L> 1),
achado de uma lápide funerária nos arredores da O núcleo urbano teria já uma certa importância nos
cidade, com epitáfio a um clérigo, Adultcus, faleci- séculos X e XI, embora hoje apenas subsistam restos
do a l l de Janeiro de 729 (BARROCA, 2000, vol. I l l , da muralha almóada, de taipa, em parte camuflada
n.- 72), entende-se que a povoação já existia e man- pela construção da fortaleza de época moderna.
tinha, escassos anos após a conquista islâmica, a sua Os vestígios arqueológicos, incluindo cerâmicas
comunidade cristã, sendo certamente uma paróquia califais, estendem-se pelos campos de cultivo nos
com clérigo. Este facto leva-me, inclusivamente, a arredores da povoação actual, sobretudo por uma
questionar a hipótese de aqui se localizar a povoação plataforma que desce até à ribeira de Caceia. Terra
designada por Sala na Divisão de Vamba, a qual natal de Abú Amcr Ahmede ibne Mohâmede Ibne
seria uma paróquia oposta a Ipsa, nos limites orien- Darraguc Alcacetali, poeta e secretário da chancela-
tais do bispado. A permanência de moçãrabes em ria, na época de Almançor (COELHO, 1972: 49), é de
Tavira foi forte até ao período da Reconquista, como crer que o seu castelo tenha fundação omíada. Pode
38 HELENA CATARINO

ter correspondido, inicialmente, a um mero fortim de tipo da torre omíada do sítio de Mesas do Castclinho,
controlo sobre a costa, que se transforma em caste- cm Almodôvar (apresentada a este simpósio).
lo/território (hisri), onde se estabelecem principal- Também em plena serra algarvia, a cerca de 25 km
mente berberes, nomeadamente a linhagem dos para norte de Altamora, o Cerro do Castelo das Relí-
Banu Darrague, que, segundo Ibn Hazm, eram des- quias situa-se sobre uma curva da ribeira do Vascão,
cendentes da tribo Sinhaya (FELIPE, 1997: 114-115). na fronteira com o Baixo Alentejo. De momento,
O hisn Qastalla foi a primeira povoação actualmen- não foram assinalados vestígios anteriores ã época
te portuguesa a ser indicada no itinerário de Edrici, islâmica, pelo que considero esta fortificação de fun-
no século XII, sendo o seu castelo centro de um dis- dação omíada. As escavações permitiram individua-
trito rural (iqlini} bem povoado e com boas terras de lizar uma fortaleza superior, ou alcácer, c segunda
hortas e pomares. É provável que alguns micro topó- linha de muralha, ambas protegidas por torres qua-
nimos ainda hoje conservados na região, como drangulares e rectangulares. A fortaleza superior, de
Quinta do Drago, sejam a memória de terras perten- planta trapezoidal, tem aproximadamente 40 m por
centes às elites fundiárias berberes que aí permane- 34/35 m de lado, ocupando uma área interna de
ceram, mesmo depois da Reconquista. l 400 nr. A segunda cintura amuralhada apresenta
A cerca de 17,5/18 km para norte de Caceia, tam- traçado rectilíneo, formando, aparentemente, um
bém os castelos de Altamora, sobre a ribeira do grande recinto rectangular, ou trapezoidal, que envol-
Beliche, são seguramente de fundação emiral/califal. ve o fortim principal e desce para as encostas volta-
As prospecções de superfície revelaram, para alem das à ribeira, protegendo assim o núcleo urbano.
de abundantes fragmentos de cerâmica, um forte sis- As sondagens arqueológicas realizadas abarcam
uni espaço ínfimo do conjunto: ainda não se escava-
tema defensivo, nas duas margens da ribeira. O cas-
ram as áreas correspondentes a portas; as estruturas
telinho, na margem esquerda, ó uma pequena estru-
habitacionais postas a descoberto não permitem
tura sub-rcctangular, com torres quadrangulares, pos-
estabelecer com pormenor o tipo de edifícios que
sivelmente o fortim mais antigo. Na margem direita,
existiam no interior do fortim, à parte alguns com-
o castelo principal corresponderia a uma grande for-
partimentos, uma latrina c a cisterna, que foi irreme-
tificação rectangular, delineada por taludes e derru-
diavelmente destruída no século passado. De momen-
bes, que escondem, em parte, uma muralha com
to, a estratigrafia aponta para a seguinte diacronia de
cerca de 1,80 m de espessura. No interior, notarn-se
ocupação:
vestígios de estruturas habitacionais e de uma cister-
na. No exterior do recinto superior, certamente para 1. A primeira fase corresponde genericamente ao
proteger o núcleo urbano, são também perceptíveis período emiral, talvez de Mohàmadc l (852-
alinhamentos de muralhas, que descem pelas encos- -886), e manteve-se ainda nos inícios do califa-
tas voltadas à ribeira e se prolongam, aparentemente, do. A esta fase podem associar-se restos de
para o Cerro do Castelo das Correntezas, onde pode- estruturas habitacionais afastadas das muralhas
ria ter existido uma torre. c espólio cerâmico do século IX e inícios do
Esta fortificação, de amuralhado complexo, seria o seguinte, onde se inclui um pequeno fragmento
centro de um distrito rural, de fundação omíada, em vidrado a verde sobre decoração incisa, de tipo
torno da qual se distribuem várias povoações rurais, Pechina.
normalmente situadas entre 2 e 5 km em torno do 2. Seguem-sc, durante o califado, reconstruções
castelo. Dão-se como exemplos os sítios arqueológi- nos edifícios anteriores, que se conservam ainda
cos de Alçaria da Arraia, Alçaria Grande, Alçarias durante o período dos reinos de taifas, época a
do Marroquil e Corte Gago. Nesta última, para além que corresponde a maioria do espólio recolhido.
de materiais de construção e fragmentos de cerâmi- Pelo facto de não ter encontrado cerâmicas típicas
ca, foram encontradas moedas califais, datadas dos da época almóada, a pequena área escavada não per-
períodos de Abd al-Rahmân III e Al-Hakam II mite garantir que o castelo tenha sido abandonado
(LOPES, 1895: 97-98). Para noroeste do castelo, rcfi- antes desse período. No entanto, pode colocar-sc a
ra-se também, a 3 km, um povoado de altura (Cerro hipótese de a sua decadência ter começado no perío-
da Formiga, junto da Funchosa), com vestígios de do almorávida, sofrendo, eventualmente, destruiçõcs
cerâmicas e escórias, que apontam para cronologia seguidas de abandono durante a revolta dos muridi-
visigótico/cmiral; a cerca de 6,5 Km fica o sítio do nes (l 144/45), comandada por Ibn Caci, que deve ter
Fortim, também com cerâmica omíada à superfície, atingido esta região, a partir de Mértola, localizada a
onde podem ver-se, numa elevação junto do povoa- 25 km para noroeste das Relíquias.
do, os restos de uma estrutura defensiva, pertencen- Este castelo, como o anterior, dominaria um amplo
do aos alicerces de uma torre de atalaia, de planta distrito rural, neste caso com planaltos propícios à
rectangular irregular, com 16/18 m de comprimento produção de cereais, zonas montanhosas de pastorí-
por 10/14 m de largura, aparentemente do mesmo cia c áreas de exploração mineira. Entre as alçarias
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do seu alfoz, distando 3 a 7 km, podem citar-sc, a nadas com fases de construção, reconstruções e
título de exemplo, Alçaria Chã, Casa do Galaxo ou acrescentos, assim como espólio, sobretudo cerâmi-
Catacho, Cerca das Oliveiras do Lotão, Cerca das cas (CATARINO, 1999: 113-132), com a seguinte
Oliveiras de Clarines, Cerro do Major, Cerca das periodização:
Oliveiras do Tesouro, Alcanais das Velhas, Alçarias
1. O primeiro momento corresponde à construção
de M a ri m c Cerca das Alçarias do Lahorato. Embora
do castelo e de casas afastadas das muralhas,
estes sítios tenham ocupação contemporânea do cas-
deixando um adarvc. O espólio associado a
telo, há que referir, em particular, a povoação de
estas construções tem características cmirais,
Clarines, que inclui vestígios romanos e visigóticos,
pertencendo ao último período frisos com decoração podendo algumas cerâmicas filiar-se na tradi-
ção visigótica. Pelos vestígios encontrados,
em quadrifólios, que fariam parte de um edifício
religioso. Quanto à Cerca das Alçarias do Laborato, deve colocar-se a hipótese de estarmos perante
terá substituído um povoado de altura (o Cerro do um fortim militar edificado em meados do sécu-
Lírio), com ocupação visigótico/cmiral, situado nas lo IX, talvez no emirado de Abd al-Rahmân II
proximidades da alçaria, cm estreita relação com as ou de Mohâmade l, e que sofrerá uma remode-
minas do Cerro da Mina, também com exploração de lação em época califal.
época romana. 2. Durante o califado verifica-se uma reestrutura-
Implantado num cerro sobre o Guadiana, o Castelo ção no interior do fortim, agora com edifícios
Velho de Alcoutim é outro hisn omíada da Serra, dis- adossados às muralhas, sobrepondo-se aos ante-
tando 25 km para nordeste de Altamora c cerca de 22 riores, mas deixando ainda livre o espaço cen-
km para leste das Relíquias. As escavações permiti- tral do pátio de armas. Do espólio associado a
ram a identificação de um fortim superior, no topo estas construções destacam-se as peças decora-
de uma crista rochosa previamente nivelada. Tem das a verde e manganês e a corda seca parcial,
planta rectangular, de 32 m por 22 m de lado, ocu- datadas genericamente dos séculos X/XI.
pando uma área interna com 704 m2. Uma segunda 3. Finalmente, alguns acrescentos datarão já do
cintura amuralhada apresenta igualmente traçado período dos reinos de taifa, mormente o edifício
regular, formando um recinto rectangular que envol- central, que ocupa o anterior pátio de armas, de
ve o fortim principal, excepto na encosta para o onde se recolheu, sob a parede leste, um frag-
Barranco da Mina que, sendo abrupta, não necessi- mento de ataifor decorado a verde e manganês.
tava de muralha; uma terceira linha de defesa, quase Também foi remodelada a porta principal,
na base da ladeira norte e leste, c perceptível entre tcndo-sc encontrado, igualmente, um fragmento
derrubes, taludes de terra e arbustos ainda não des- de cerâmica califal no enchimento entre a
maiados. muralha c a torre. O progressivo abandono deve
Embora de dimensões variáveis, as torres postas a ter-se verificado entre finais do século XI e
descoberto, quer no fortim superior, quer na segunda inícios do século XII, se tivermos cm atenção a
muralha, são de planta quadrangular e rectangular, total ausência de espólio do período almóada.
sempre adossadas às muralhas. No recinto superior Vigilante sobre a importante via fluvial do
foram encontrados os vãos de duas portas. Uma Guadiana e implantado na faixa pirítica que, descen-
localiza-se perlo do ângulo noroeste da muralha, está do do Alentejo, se prolonga para o Andévalo
lateralmente protegida por unia das torres voltadas a Onubensc, o Castelo Velho de Alcoutim foi um hisn
norte e devia ser, aparentemente, um postigo, com omíada com núcleos de povoamento rural c estabe-
cerca de l m de largura, sobrelevado cm relação ao lecimentos mineiros. O Cerro da Horta do Brejo, a
solo ou a um fosso que ladeava este lado da fortale- cerca de l km do castelo, corresponde a um povoa-
za. A porta principal foi reformulada no século XI, do mineiro, implantado precisamente sobre os filões
tendo-se acrescentado um torreão cm L, de modo a da falha do Brejo. Tem uma área de habitat pequena
que a entrada passasse a cotovelo simples. Localiza- e contemporânea do castelo, aparentemente sem
se no ângulo da muralha voltada para o Guadiana e ocupação anterior. Entre 500 m a l ,5 km estende-se
tem 1,50 m de vão exterior, definido por duas saliên- o Vale da Lourinhã, junto do Guadiana, com grande
cias, onde assentavam os batentes da porta. dispersão de vestígios romanos (possivelmente de
Sensivelmente a meio, abre-se um átrio, com peque- uma vi l Ia) e um núcleo mais pequeno e elevado,
na habitação que servia de sala da guarda, onde se onde aparecem à superfície algumas cerâmicas islâ-
registaram cerca de uma centena de pontas de lança micas. Outros povoados situavam-se entre 4 e 6 km
c uma candeia decorada a corda seca parcial. do castelo, por exemplo, Alçaria das Pegas.
A ampla área já escavada - totalidade do fortim Montinho de Corte da Seda, Cerca das Oliveiras do
superior e sondagem exterior - permitiu individuali- Cerro do Lobo e S. Martinho Velho de Cortes
zar a cisterna, latrina c diversas habitações, relacio- Pereiras.
40 HELENA CATARINO

Refira-se ainda, neste caso entre as povoações que para as cerâmicas encontradas c a escassa ou nula
ficavam a mais de 7/8 km, o Montinho das Laranjei- visibilidade de muralhas, não permitem classifica-
ras (MACIHL, 1996: 91-100), a 8,25 km para sul. dos com maior precisão.
Trata-sc de uma villa romana onde se construiu igre-
ja visigótica, de planta cruciforme, que terá sofrido
reconstruções, algumas parecendo-m e já de época Castelos e território: uma síntese possível
islâmica. Sendo uma igreja com baptistério e necró-
pole, é natural que tenha existido aqui uma paróquia Estou consciente de que é temerário tentar analisar
rural, com continuidade de ocupação por moçárahes. as fortificações na transição da Antiguidade tardia
ou mesmo mu l adi s. Junto da igreja (ibidem: 92, para o processo de islamizaçào na kura de Ocsonoba,
Fig. 1), foi crescendo a povoação islâmica, com unicamente com base nas escassas informações de
casas de pátio, associadas a cerâmicas que aíingem o documentos escritos c restos arqueológicos pontuais,
período almóada. na maior parte dos casos sem as devidas análises
Os trabalhos que tenho desenvolvido no Algarve estratigráficas, conjugadas com os respectivos vestí-
Oriental, sobretudo nas zonas de Serra (OATARINO, gios materiais. Mas o esboço aqui apresentado pre-
1997/98), levam-me a colocar a hipótese de algumas tendeu ser apenas um ponto de chegada possível e, ao
das villae tardo-romanas terem continuado habitadas mesmo tempo, uma motivação para futuras investiga-
sem hiatos. Aí se teria mantido uma comunidade, em ções, que desejo venham a tornar-se mais elucidativas.
princípio moçárabc, embora essas populações pos- No estado actual dos conhecimentos, nada permi-
sam tcr-sc convertido ao Islão, habitando em torno te afirmar que, no século VIII, se tenham construído
da basílica palcocristã e igreja visigótica, por exem- novos recintos fortificados, emanados pelo poder
plo, no Montinho das Laranjeiras e em Clarines. No "estatal" ou regional; nem sequer há conhecimento
entanto, outras villae já estariam abandonadas, da existência de acampamentos militares ou de gran-
sendo substituídas por reduzidos habitais visigóti- des fortalezas (qa'la, pi. qila") dos primeiros anos da
co/emirais, verifícando-sc também a existência do conquista. Contudo, o topónimo Alcalar, entre a baía
sítios interpretados como povoados de altura. de Portimão, Silves e a Serra de Monchiquc, a norte,
O Cerro do Castelo de Odcleiíe (Castro Marim), pode sugerir a existência de algum acampamento
hoje complctamente arrasado, tinha muralhas que baladi (qa'la), rapidamente abandonado cm substi-
circundavam uma plataforma com três lados inclina- tuição de Silves e, por isso, não se conservando,
dos abruptamente para a ribeira de Odclcite. Enquan- aparentemente, quaisquer vestígios. Como já tem
to que nas várzeas, junto da ribeira, se encontraram evidenciado Acién Almansa (1995a: 14-17; 1995b:
habitais com ocupação plenamente romana, no cimo 11-14), os qila\o Alcalá Ia Real (a Qal 'aí
do Cerro recolheram-se cerâmicas tardo-romanas, Yahsub, estabelecimento de 713), correspondem às
designadamente sigillata clara D, fundos de ânforas primitivas instalações dos conquistadores, preferen-
tipo Almagro 51C, assim como cerâmica comum cialmente de árabes, tom uma certa semelhança com
grosseira de características visigólicas/emirais. Nas cidades-acampamentos e são rapidamente abando-
proximidades surgirá depois a alçaria de Odelcite, a nadas ou transformadas cm cidades ou castelos,
sudeste da povoação actual. A lápide funerária de como no caso de Calatayud (Qul'aí Abi Ayyub), a 4
Abdallah Alad Ibn Tumar (?), encontrada no século km da cidade romana de Rilbilis. Também cm fontes
passado, nas margens da ribeira de Odeleite (BARRO- escritas que comentam os percursos da conquista de
CA, 2000: 111, n.- 57), estará possivelmente relacio- Musa Ibn Noçair, aparece mencionada uma QaVat
nada com a necrópolc desta alçaria. Ragwal, identificada com Alcalá dei Rio, a pouca
O Cerro dos Mouros, no Cachopo (Tavira), o Cerro distância de Sevilha (CHALMRTA, 1994: 176-177).
do Lírio, no Laborato (Alcoutim) c a Cerca do Xarcz, Sendo omissas as fontes escritas sobre acampa-
em Fonte Zambujo (Alcoutim) apresentam caracte- mentos da conquista no actual Algarve, devemos
rísticas topográficas idênticas ao anterior, embora à considerar que, durante as primeiras décadas de pre-
superfície não sejam perceptíveis muralhas, mas sença muçulmana, o controlo do território deve ter-
apenas amontoados de pedras, grandes quantidades se restringido à sede de bispado, já amuralhada na
de telhas decoradas e fragmentos de cerâmicas Antiguidade tardia, e à presença de grupos de povo-
comuns grosseiras, não se registando nem sigillafa adores baladis, que se instalam nos núcleos urbanos
nem cerâmicas islâmicas vidradas. Estes sítios herdeiros das dvitates, estando estas certamente
devem ter pertencido a estabelecimentos de peque- com escassa população, como seria o caso de Silves.
nas comunidades rurais c mineiras, eventualmente Porque Ossonoba foi conquistada pela força, é natu-
protegidas por uma cerca amuralhada rudimentar. ral que o primeiro governador aí tenha ocupado
Pelos achados de superfície, a ocupação poderá ser algum edifício, hoje impossível de identificar no
do período visigóUco/cmiral; mas a falta de inter- terreno. Esses chefes árabes ter-sc-ão mantido até à
venções arqueológicas, a cronologia pouco precisa revolta pró-abássida de ai-Alá b. al-Mugit al-Yudamí
41

(que hasteia as bandeiras negras precisamente em elevados, vieram depois implantar-se novas povoa-
Beja/Ocsonoba)3 mas serão substituídos por linha- ções, como, por exemplo, as Alçarias de Odeleite,
gens muladis, como os Bakríes e outros, que acabam perto do Cerro do Castelo de Odeleite, a Cerca das
por entrar na órbita dos Yilliqíes (ACIÉN ALMANSA, Alçarias do Laborato, junto do Cerro do Lírio, ou a
1999: 56). Cerca do Barranco do Landeiro c Alçarias de Fonte
Com o dinamismo económico que deve ter-se Zambujo, nos arredores da Cerca do Xarcz.
incrementado a partir do em irado independente, Para alem desses povoados de altura, terão surgido
rccuperam-sc seguramente algumas estruturas agrí- também outras povoações onde, para além de cerâ-
colas de época anterior. O povoamento rural começa micas omíadas recolhidas cm prospecções, se regis-
a rccstruturar-se, sobretudo nas terras férteis do taram achados monetários, dos séculos IX e X, nome-
Barrocal, junto do litoral e nos vales irrigados pelos adamente em Almada de Ouro (moedas do cmirado
cursos de ribeiras, precisamente onde ficavam as de Muhammad I) e Corte Gago (moedas de Abd al-
melhores villae tardo-romanas, É nestas regiões que Rahmân III c Al-Hakam II). Os sítios com maior dis-
surgem as primeiras alçarias, onde se tinham estabe- persão de achados conservaram normalmente o
lecido preferencialmente os elementos dos jiindc.s, topónimo Alçaria c ("érea das Oliveiras, por vezes,
"que ocupam bens (al-amwâl) dos indígenas, o que com cerâmica verde e manganês recolhida à superfí-
foi facilitado por estes os terem abandonado" (ACIÉN cie; enquanto que os sítios mais pequenos são habi-
ALMANSA, 1995a: 17-18). Se tivermos em atenção tualmente designados por Alcarial e Corte. Sendo a
que essas primeiras alçarias tinham normalmente voz "Corte" (de Kitrí}, com o significado de diyar
topónimos latinos com sufixo -anã, podemos pensar (casas), indicada em textos árabes, desde o século IX
que alguns dos distritos agrícolas de Ocsonoba, mais (AI.-IDRISI, 115, f. 142,144), c natural que alguns
tarde mencionados por Yaqut, já existiam desde época desses topónimos conservados no Algarve Oriental
emiral, nomeadamente o distrito (nawahi) de Tarta- (como Corte (Jago, Corte da Seda, etc.) tenham ocu-
nas, o iqlim de Dimyana (ABD AL-KAKIM, 1974: I I I . pação desde essa época.
528 e 606), ambos de localização desconhecida, para Também serão de origem emiral algumas torres de
além de Arrifana (Rayhânu) c de Messincs (Massâ- atalaia, localizadas cm estreita ligação com povoa-
na}, já acima referidos. ções rurais. Neste caso, cita-sc o exemplo do sítio do
Sendo as alçarias comunidades rurais em espaços Hbrtim, na periferia dos Castelos de Allamora (a cerca
abertos, considero pouco verosímil que os Muçul- de 6/7 km para noroeste), onde as prospecções reve-
manos as tivessem dotado de fortificações no século laram uma estrutura sub-rectangular, aparentemente
VIM. Mas se tivermos cm atenção a existência de tra- de base maciça, c cerâmicas idênticas às recolhidas
mos de muralhas grosseiras, por exemplo, cm Silves no Castelo Velho de Alcoutim, sobretudo as de pasla
e Monte Moliào, feitas com aparelho de pedra irre- grosseira, decoradas com cordões plásticos digitados.
gular, respectivamente com I m c 1,10 m de espes- Parece do mesmo tipo da torre identificada no sítio de
sura, esses amuralhados simples coincidiriam com Mesas do Castclinho, cm Almodôvar (G U LR RA c
povoações já existentes, herdeiras de anteriores civi- FAB1ÃO, 1993: 85-102), cujas escavações revelaram
tates. No caso de Silves, os Árabes instalam-se na uma fortificação omíada, com fosso envolvente e
própria cidade, que vai crescendo e acrescentando as silos para armazenamento de cereais, seguramente
suas defesas desde o século IX, tornando-se o centro junto de uma alçaria.
urbano calilal mais importante da região; nas proxi- Bmbora não tendo vestígios que assegurem ori-
midades de Monte Molião, irá crescer a alçaria de gem omíada, também o castelo de Salir deve ter
Lagos (Halc] al-Zawiya). começado por ser apenas um celeiro fortificado rela-
Quanto a alguns núcleos de habitai, localizados na cionado com uma alçaria dispersa pelos campos de
Serra (CATARINO, 1997/98: 540-555), é possível que cultivo, localizados nos arredores de uma anterior
correspondessem a povoados de altura, eventual- villa romana, precisamente com o topónimo Torri-
mente com muralhas grosseiras e genericamente nha, o que pode sugerir a existência de uma torre de
atribuídos ao período visigótico/emiral. De facto, o origem vísigótica. Mas só no período alinorãvida/al-
próprio historiador Ibne Muzayyn, natural de Silves, móada se reforçam as muralhas de Salir e se acres-
refere que os cristãos (em tempos da conquista) se centam as torres, passando a ser uma fortificação de
encontravam nos seus redutos montanhosos e fron- taipa com habitações no interior.
teiriços (MONÈS, 1957: 85); mas só as escavações Desde meados do século IX, em parte devido aos
poderão vir a confirmar ou refutar esta hipótese. No ataques normandos, o poder central e os governos
entanto, pelas cerâmicas encontradas à superfície, já provinciais devem ter começado o reforço de defesas
alguns desses sítios estariam habitados nos inícios urbanas c inicia-se, com Abdcrramão II (822-852) c
do século VIII, sendo eventualmente abandonados a Muhammad I (852-886), uma intensa actividade
partir do século X, antes da difusão das cerâmicas construtiva de fortificações c, seguramente, também
vidradas. Nas suas proximidades, em locais menos de torres de atalaia c rubut de vigilância sobre o
42 HELENA CATARINO

vasto litoral algarvio. No contexto da Fitna, as fon- na de Faro, sendo estas certamente de origem tardo-
tes escritas referem o facto de Yahyâ b. Bakr ter refor- -romana ou bizantina, com sucessivas reparações.
çado as muralhas de Santa Maria do Garbo, sendo Como as fontes escritas são praticamente omissas
certamente desta época a construção do alcácer onde e não se conhecem no terreno todas as fortificações
habitava o governador. Nos inícios do século X, esta emirais/califais da Kura de Ocsonoba, não é possível
kura estava bem administrada e organizada, havendo fazer-se uma análise espacial, do mesmo tipo do
já uma rede de hitsun que estruturava o povoamento. excelente trabalho sobre a Campina de Jaén, em
Os vestígios arqueológicos, embora por vezes ainda época emiral (CASTILLO AKMHNTEROS, 1998). Mas
muito fluidos, por falta de escavações em extensão, os castelos até agora identificados parecem obedecer
permitem considerar que, para além de torres e sim- a uma estratégia de distribuição, estando normal-
ples cercas rurais, foram construídas várias fortifica- mente entre 17/18 km a 24/25 km de distância entre
ções complexas. Uma sequência de povoamento si. Por exemplo, no Barlavento, Silves está a cerca
fortificado que parece semelhante ao da kura de de 18 km de Alvor, distância semelhante para
Ocsonoba é documentado para o Sliarq al-Andalus: Mcssincs c para o Cerro do Castelo do Alferce,
o primeiro povoamento rural fortificado relaciona-se enquanto que deste a Aljczur são cerca de 25 km. No
com comunidades estabelecidas em sítios de altura, Sotavento, o liisn de Caceia está a 17,5 km dos
na maior parte dos casos a partir de época pouco pre- Castelos de Altamora e daqui para os hiisiin das
cisa, por ser difícil isolar fases cronológicas entre o Relíquias e de Alcoutim são cerca de 25 km, distân-
século VI e o VIII; só depois surgem os estabeleci- cia idêntica também para Mértola.
mentos muçulmanos, já de funções claramente mili- Em estreita relação com estes castelos/territórios
tares, com cronologias que podem recuar, cm alguns existiam seguramente torres de atalaia, algumas com
casos, aos séculos Vli/VIll, mas com ocupação cen- topónimos localizados entre 7 km c 10 km de dis-
trada nos séculos 1X/X (BAZZANA, 1992: 273-314). tância do hisn. No respectivo a l foz se distribuía o
Os recintos fortificados claramente omíadas até povoamento rural, cm alçarias, por vezes com um
agora conhecidos no Algarve possuem amuralhado recinto fortificado comunitário e várias explorações
complexo. Partindo dos resultados das escavações agrícolas, assim como casais ou pequenos conjuntos
de casas. Assim, durante o califado, já estes castelos
no Castelo das Relíquias, no Castelo Velho de Alcou-
tim e nas prospecções efectuadas nos Castelos de seriam centros de distritos rurais (iqlim, aqalitri) e de
outras pequenas comarcas, ou concessões de territó-
Altamora e no Cerro do Castelo de Alferce podemos
rios (ynz\o os que dominavam
considerar que as duas primeiras fortificações foram
espaços pastoris e mineiros, como seria o caso do
construídas a partir do século IX, não revelando ocu-
Castelo Velho de Alcoutim. No entanto, é arriscado
pação anterior, enquanto que a última terá sido edi-
determinar o papel socíoeconómico que desempe-
ficada sobre uma povoação pré-exístenle, pois aí se
nharam perante o poder político-militar central c
encontrou uma moeda tardo-romana. Essas fortifica-
regional, sendo igualmente quase impossível demons-
ções foram construídas com aparelhos de pedra, cm
trar, corno já alertou Acién Almansa (1989: 77), qual
blocos de tamanho irregular, travados com argamas- a correspondência exacta - e muito menos perma-
sa de argila, sendo as faces externas rebocadas a cal, nente - entre as divisões administrativas muçulma-
conforme pode observar-se cm vestígios conserva- nas e os diferentes tipos de estruturas defensivas.
dos no Castelo Velho de Alcoutim. Finalmente, no estado actual da investigação, sou
Estes humn possuem um reduto fortificado supe- de opinião que o ordenamento administrativo do
rior, com cisterna c habitações, correspondendo a território, já plenamente estabelecido no período
uni fortim, ou pequeno alcácer, de planta sub-qua- califa], se terá mantido sem grandes alterações
drangular (Alferce c Relíquias) ou claramente rec- durante os reinos de taifas, embora se possa consi-
tangular (Alcoutim), tendo muralhas que oscilam derar que, neste período, alguns castelos tenham
entre 1,60 m a 2 m de espessura, protegidas por sofrido reforços defensivos ou remodelações, como
torres maciças, de planta rectangular e/ou quadran- foi seguramente o caso do Castelo Velho de Alcou-
gular, colocadas a Iramos regulares. Algumas dessas tim. Porém, desde a segunda metade do século XI,
torres defendem as portas, inicialmente de entrada primeiro com o fim dos reinos de taifas de Silves e
directa, mas podendo transformar-se cm portas de de Santa Maria de Harun ou do Ocidente, anexados
cotovelo simples, como aconteceu no Castelo Velho à taifa de Sevilha, c principalmente com a chegada
de Alcoutim. Possuem sempre, pelo menos, uma dos Almorãvidas e dos Almóadas, uma nova reali-
segunda cintura de muralhas, também de traçado dade administrativa parece delinear-se: alguns dos
regular, de aparelho pétreo e com torres quadrangu- castelos emirais/califais lendem a ser abandonados;
lares adossadas ao amuralhado, que protegia as habi- grandes alçarias, como Loulé e Tavíra, ascendem ao
tações de uma pequena urbe. No estado actual dos estatuto de cidade e passam a estar dotadas de defe-
conhecimentos apenas pode constatar-se a presença de sas urbanas; surgem novos castelos e distritos rurais
torres semicirculares, ou hcplagonais, na defesa urba- que, obviamente, não serão aqui comentados.
43

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