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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS


DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS

JOÃO ANGELO OLIVA NETO

Dos Gêneros da Poesia Antiga


e Sua Tradução em Português

São Paulo
2013
ii

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO


FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS

JOÃO ANGELO OLIVA NETO

Dos Gêneros da Poesia Antiga


e Sua Tradução em Português

Tese Apresentada ao Departamento de Letras


Clássicas e Vernáculas da Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo para Obtenção do
Título de Livre-Docente

São Paulo
2013
iii

a Guilherme, GUI,
como tudo, como sempre;

a Silvana, SI,

“Toda a realidade olha para mim como um girassol com a cara dela no meio”.

(Fernando Pessoa)
iv

Let the midnight special, shine a light on me


Let the midnight special, shine a ever lovin’ light on me

(canção folclórica do sul dos Estados Unidos da América)


v

Agradecimentos

Paula da Cunha Corrêa, Giuliana Ragusa, Rupert Bozen II, Rafael Brunhara, Robson Tadeu
Cesila, Marcelo Vieira Fernandes, Guilherme Gontijo Flores, Alexandre Pinheiro Hasegawa,
Marcos Martinho dos Santos, Paulo Martins, Érico Nogueira, Adriano Machado Ribeiro,
Adriano Scatolin ignotoque comiti.
vi

Resumo
A tese toca primeiro o conceito de “gênero” da poesia a partir do período Arcaico das
letras gregas, discute suas instâncias compositiva e receptiva para tratar dos limites,
confinidades, semelhanças, diferenças de alguns gêneros em particular, como lírica, épica,
elegia e epigrama. Em seguida, em cada um deles a tese trata da transformação que
subseqüentemente sofrem na Antigüidade em outras duas fases, o Período Helenístico e a
apropriação romana. A perspectiva, sendo sempre a transformação, é histórica.
A segunda parte trata de como a tradução literária poderia integrar os Estudos
Clássicos brasileiros, principalmente em função das particulares necessidades que temos, que
não são as mesmas dos países de que emana a filologia que aqui praticamos. A proposta de
estudar os clássicos segundo nossa agenda é inclusiva. Na Segunda Parte, com o exame da
prática tradutória de Carlos Alberto Nunes e o hexâmetro dactílico que pratica, exemplifica-
se também o que há de ser um dia a história da tradução poética dos autores clássicos em
português. Os dois capítulos finais não deixam também de exibir, não mais que isso, uma
prática recente de tradução, que é a do autor.

Palavras-chave: gêneros poéticos; lírica; épica; elegia; epigrama; tradução poética.


vii

Abstract

As its first concern, the thesis approaches the concept of poetic genre in the Archaic
Period of Greek Poetry, and then discusses both the compositive and the receptive instances of
poetry provided by genres so that to make possible to deal with the limits, boundaries,
similitudes, differences existing in a few ones, such as epic, lyric, elegy and epigram. Each of
them is discussed through the continued changing they undergo in two phases, the Hellenistic
Period and the Roman appropriation. Since the perspective is the changing itself, one may say
it is mainly historical.
Part II begins by considering how poetic translation could have a more important role
in Brazilian Classical Studies, mainly in regard to the specific needs we have, which are quite
different, off course, of those existing in full developed countries from which comes the very
Philology we practice. “Brazilian” Classical Studies are suggested just as an alternative. After
that, by investigating the Portuguese dactylic hexameter as it has been employed by Brazilian
translator Carlos Alberto Nunes, an exemple is given of the history, yet to be done, we hope,
of the poetic translations of classical authors into Portuguese. The two final chapters are not
more than a sample of the author’s recent translational practice.

Keywords: poetic genre; lyric; epic; elegy, epigram; literary translation.


viii

ÍNDICE
Antelóquio 1

PRIMEIRA PARTE
DOS GÊNEROS DA POESIA ANTIGA

Capítulo 1 Questões Gerais (mas Também Genéricas, em que se Discutem “Eu”,


Lírica, Transformação do Gênero, Alexandrinos, Oralidade e Algumas
Inconseqüências Dela) .............................................................................. 8
1.1
O Eu Profundo Que Persiste ....................................................... 8
1.2
Coralismo, Monodismo e o Romantismo que Perdura ............... 12
1.3
De Poética Helenística e Sua Porosidade ..................................... 16
1.4
Oralidade e Outras Inconseqüências ........................................... 23
1.5 Reassunção, Certo Aprofundamento e Algumas Conclusões ...... 28
Notas do Capítulo 1 ................................................................................... 34

Capítulo 2 De como o Gênero Épico Teve Raptadas as Espécies Ditas “Didácticas”:


Genealógica, Agrícola, Astronômica, Bucólica, Filosófica, Haliêutica,
Cinegética e Quiçá Outras ......................................................................... 41
2.1 Suetônio (Diomedes) ou do “Gênero” Didáctico ........................... 41
2.2 Aristóteles e Horácio ...................................................................... 45
2.3 A Outra Teoria .............................................................................. 46
2.3. a) Proclo ................................................................................. 46
2.3. b) Suetônio ............................................................................. 47
2.3. c) Quintiliano ......................................................................... 50
2.3. d) Suda ..................................................................................... 52
2.4 Função Crítica e Efeito do “Cânon” na Composição .................... 54
2.5 Efeito do “Cânon” na Recepção .................................................... 56
2.6 Algumas Conclusões e Outras Conseqüências .............................. 64
2.7 A Termos que. . . ........................................................................... 66
Apendículo ................................................................................................. 68
Notas do Capítulo 2 ................................................................................... 70

Capítulo 3 De como um Bando de Poetas Abusou da Elegia Arcaica e Ela Acabou


Se Emprenhando de Diferentes Sujeitos .................................................... 77
3.1 Uma História por Fazer .............................................................. 77
3.2 De ἔλεγος, ἐλεγεῖον, ἐλεγεῖα: Considerações sobre Elegia Grega
Arcaica ......................................................................................... 78
3.3 O Uno e o Vário ......................................................................... 89
3.4 Da Elegia Helenística .................................................................. 98
3.4. a) Acerca de Calímaco de Cirene .......................................... 100
3.4. b) Acerca de Filetas de Cós .................................................... 108
3.4. c) Acerca de Fânocles ............................................................ 109
3.4. d) Acerca de Hernesíanax de Cólofon ................................... 110
3.4. e) Comparação do Carácter entre Gêneros da Poesia .......... 115
3.4. f) Comparação do Carácter na Elegia Grega Arcaica ......... 115
3.5 Da Elegia Latina ................................................................................ 116
3.5. a) Acerca de Catulo .............................................................. 116
3.5. b) Acerca dos Elegíacos Augustanos e Suas Estratégias ....... 122
3.5.b.1. Olha o Nível!: Elegia Baixa nos Elegíacos Augustanos ......... 129
ix

3.5.b.2. Paulo Maiora Canamus: Elevação na Elegia Augustana ........... 132


3.5.b.3. Comparação do Carácter na Elegia Augustana .................... 136
Notas do Capítulo 3 ................................................................................... 137

Capítulo 4 O Coliseu no Centro do Mundo: o Livro dos Espetáculos, de Marcial, e


Epigramas em que Se Narram Combates, Naumaquias e até como
alguns Infelizes Foram Cruelmente Jogados às Feras ................................ 150
4.1. Espetáculos Jogos ......................................................................... 150
4.2. Anfiteatro e os Antigos Sacrifícios Fúnebres .................................. 151
4.3. O Livro dos Espetáculos ...................................................................... 154
Notas do Cruel Capítulo 4 ......................................................................... 161

Capítulo 5 Da Paródia: como Priapo Se Fez Homerista, seguido de como Catulo


Enfim Virou Vidraça ................................................................................. 164
5.1 Estado da Questão Priápica ou “Meu Mundo Caiu” ..................... 164
5.2 Priapéia Latina, 68: o que É Isso? ...................................................... 168
5.3 Uma Vera Paródia: Catalepton, 10 ................................................... 176
Notas do Capítulo 5 ................................................................................... 184

SEGUNDA PARTE
DE TRADUÇÃO

Capítulo 1 Entrevista com João Angelo Oliva Neto Cadernos de Tradução .................. 189

Capítulo 2 Quem Somos? O que Não Somos? Tradução Literária e Estudos


Clássicos Brasileiros ................................................................................... 200
Notas do Capítulo 1 ................................................................................... 205

Capítulo 3 Como Carlos Alberto Nunes Veio a Ser o Primeiro Tradutor Lusófono a
Verter Inteiras a Ilíada, a Odisséia e a Eneida em Hexâmetro Dactílico
Português .................................................................................................... 206
3.1 Anamnese ........................................................................................ 206
3.2 Metro Antigo em Língua Moderna: o Hexâmetro Dactílico .......... 211
3.3 Tradutor: Humano, Demasiadamente Humano ............................ 214
3.4 Mínimo Florilégio ........................................................................... 215
3.5 Bônus: o Tradutor e sua Linhagem ................................................ 219
Notas do Capítulo 3 ................................................................................... 223

Capítulo 4 A Musa Pederástica de Marcial: 53 Epigramas Traduzidos e Muitas


Notas por Fazer .......................................................................................... 224
Notas Muito Incompletas do Capítulo 4 .................................................... 237

Capítulo 5 Elegias Incompletíssimas de Propércio: Livro I, 1-11 ...................... 242

Bibliografia 254
1

ANTELÓQUIO

As duas partes da tese podem sem total inexatidão ser tomadas como teórica, a
primeira, e prática, por assim dizer, a segunda. Na primeira, trato do que tem guiado desde o
Doutoramento minhas reflexões sobre poesia antiga, que é a questão dos gêneros, como é
evidente pelo curso de Pós-Graduação que tenho cadastrado, FLC 5864, LÍRICA LATINA E

SEUS GÊNEROS CONFINS: ELEGIA, IAMBO E LÍRICA. Os gêneros funcionam a um “tempo”


como instância compositiva e como instância receptiva dos poemas, o que não deve fazer
supor rigidez de regras. O rigor que os evidencia como território demarcado não evita a
existência de passagens, que os poetas descobrem ou que lhes criam, quando julgam que é
preciso. A confinidade dos gêneros, a permeabilidade entre eles e as transformações que ela
lhes causa discuto no Capítulo 1, onde comento a inflação da lírica ensejada pela tumidez do
“eu” e de todos os egos. Transformações no gênero e sua virtual possiblidade é problema
anterior teoricamente à discussão dos próprios gêneros, de molde que o Capítulo 1 não tem o
mesmo estatuto dos que se seguem, mas é como o princípio pelo qual se. Um dos meios pelo
qual um gênero se transforma é o aparecimento de espécies, agenciadas ao longo de tempo
por poetas in(ter)ventores. As espécies diferem entre si mas assemelham-se o bastante para
coabitar território genérico. A especificação creio que provém da necessidade de adaptar os
poemas de dado gênero a novas exigências e responde ao mesmo tempo pela tensão entre
semelhança e diferença, o mesmo e o outro, ipseidade e alteridade, não importam os nomes,
2

porque, por variadas razões, mas diferentes segundo a época, não há lugar para o totalmente
outro, porque a demanda é por algo que ainda se reconheça, nem tampouco há lugar para o
todo igual porque já não é suficiente. Lá na Odisséia, que ocupa a mais importante posição
para quem quer discutir metamorfose, a segunda, talvez tenha sido essa passagem ou mesmo
sua virtual possibilidade (os aedos itinerantes faziam isso tempo todo) que este aedo
“Homero” tenha ilustrado quando Penélope admoesta Fêmio e lhe pede que deixe de cantar
retornos e passe a cantar gestas. Não vêm ao caso a suposta cronologia ou facto de já existir a
espécie “retorno”, mas urgia ali no palácio cantar segundo certas condições. Toda vez que
não houvesse canto adequado, adaptavam-se os que havia. Creio que algo semelhante ocorre
nos poetas, que sempre querem ver reconhecido seu valor. Não queriam repetir-se, mas criar
o totalmente diverso tornaria desfuncional e ininteligível o poema, fosse arcaico, helenístico ou
romano, porque circunstâncias coercitivas sempre havia, pois o poeta integrava uma rede. Se
os poetas conseguissem novidade no interior da tradição de dado gênero poderim mostrar, ali
no visível contraste entre o igual e inaudito, quão engenhosos foram. Advirto, por isso, que os
termos “espécie”, “transformação” e “história” serão recorrentes no Capítulo 1 (e nos
demais).
A partir dele proponho-me a comentar sob a perspectiva de contínua metamorfose
alguns gêneros da poesia: épica no Capítulo 2, e no 3 elegia, a cuja especificação concorreu a
desejada mudança na elocução. No quarto Capítulo, abordo o epigrama com o Livro dos
Espetáculos, de Marcial. Incluí-o na Tese primeiro porque creio que é o único livro de
epigramas da Antigüidade que apresenta unidade temática, indicada até no título; segundo,
porque Marcial decanta no mais breve gênero de poesia o maior anfiteatro do mundo antigo,
o Coliseu. O Capítulo 5, a propósito de comentar paródia, que é poesia relacional por
excelência, discuto algo de imitação e emulação. Como trato do forçoso rebaixamento que a
paródia faz na elocução do texto parodiado, o capítulo há de acrescentar elementos ao quanto
já se discutira no Capítulo 3, sobre a elegia.
A Segunda Parte dedico à tradução, não sem algum tratamento teórico, pelo que não
é de todo exato dizer que é apenas “prática”. Abordo menos os “aspectos teóricos da
tradução”, “problemas teóricos da tradução”, como se têm feito, do que o quanto ela releva
para certas questões não menos teóricas, como conhecer recepção de um autor antigo no
Brasil e em Portugal; com que abrangência se relaciona com as obras originais vernáculas, já
que não só muitos tradutores e poetas eram as mesmas pessoas, senão que compor e traduzir
tinham balizas semelhantes.
3

Não deixo ademais de comentar a relevância que verter os antigos, principalmente


inéditos, assume na educação “clássica” do mesmo grupo do qual sairão os filólogos, que
amiúde têm tradução em desapreço. Este corpo selectíssimo e numericamente insignificante,
ao qual pertencemos, não responde agora nem jamais respondeu pelo prestígio e importância
que há séculos obras antigas têm. A grandeza delas certo precisa de filólogos, mas merece
mais do que eles, merece ser amplamente lida, e para tanto, mais do que filólogos, aproveitam
os tradutores, que se aproveitam do nobre trabalho filológico. As dívidas se pagam. Mas não é
essa a ordem das coisas na Filologia. Contudo é a urgência que creio a tradução tem nos
Estudos Clássicos realizados no Brasil, mercê de nossas necessidades. Ainda que não exista
formalmente, acredito na existência virtual de Estudos Clássicos no Brasil, para o Brasil,
brasileiros. Existem para mim, pelo que trato disso nos dois primeiros capítulos da Segunda
Parte. No terceiro, comentando o hexâmetro dactílico vernáculo de Carlos Alberto Nunes,
pratico um pouco de história da tradução poética de autores gregos e latinos em nossa língua,
como consta no Grupo de Pesquisa – VerVe: Verbum Vertere – Estudos de Poética,
Tradução e História da Tradução de Textos Latinos e Gregos – que tenho cadastrado no
CNPq. Pratico um pouco de crítica também. Os dois últimos capítulos exemplificam o Em
Obras ou Homens Trabalhando que todos em algum momento habitamos, trabalho
incompleto que se vai, chi lo sà, perfazer: a musa pederástica de Marcial e em 11 poemas de
Propércio o meio pelo qual gostaria de crer que devo ainda continuar a traduzir poesia antiga.
Nem sequer pude tratar disso ali ou alhures, mas já não creio que o que tenho feito seja mais
do que de facto traduzir poesia antiga em versos. Sempre têm serventia, ainda que nada
tenham de poesia.
Dos dez capítulos desta Tese, sete são inéditos. Foram publicados:
→ o Capítulo 5 da Primeira Parte. Revejo agora análise do poema 68 da Priapéia
Latina, que consta na Tese de Doutoramento de 1999 e publiquei como artigo (OLIVA NETO,
J. A., “O Riso Antigo: a Priapéia Latina e uma Paródia da Ilíada e da Odisséia”. Phaos
(Campinas), v. 5, pp. 64-74, 2005). Todavia, nem o Capítulo 5 consta só da análise, nem a
análise que agora contém é a mesma que eu publicara;
→ o Capítulo 1 da Segunda Parte. Reproduzi-o tal qual foi publicado nos Cadernos de
Tradução (OLIVA NETO, J. A.; GUERINI, A.; COSTA, W. “Entrevista com João Angelo Oliva
Neto”. Cadernos de Tradução (UFSC), v. 25, pp. 261-277, 2010). Integra a Tese porque esclarece
quase tudo que penso sobre traduzir poesia antiga, revela por que decidi tornar-me tradutor,
indica procedimentos técnicos e práticos que adoto e propõe nomenclatura para alguns deles;
4

→ o subseqüente Capítulo 2, excerpto de prefácio que fiz para o livro Ritmo e Sonoridade
na Poesia Grega Antiga, de Leonardo Antunes (“Tradução Literária e Estudos Clássicos
Brasileiros”. São Paulo, 2011), em que falo dos “Estudos Clássicos Brasileiros”.
Menciono meus colegas classicistas, porque no dialogar com eles frente à frente ou
mentalmente ao lê-los ou ouvi-los, aprendo e ensino. Como se sabe, é no dissenso que
fazemos sentido para nós, antes do quê qualquer assentimento é perversão. Eu como que
converso com eles porque, mais do que fazem as outras sumidades que nos visitam e escrevem
a bibliografia que lemos, eles são também os protagonistas da ação, ou melhor, do agón no
teatro pedagógico em que interagimos, docentes discentes. Assim também cito longamente as
autoridades que vêm à baila, porque se possa ouvir nas suas próprias palavras, ali mesmo, o
argumento que vem ao caso, como se vozes estivessem na cena, em vez das infinitas remissões
– OLIVA (2018): 33 –, impossíveis de verificar, que hoje pululam em ensaios, teses e
dissertações. A bem dizer, assim faço, porque eu preciso ouvir suas vozes. Cito longamente sim,
mas cito poucos autores.
Escrevi deliberadamente segundo o velho desacordo ortográfico, porque em tudo e
nas pequenas diferencas era melhor do que o novo. Escolhi a variante lusitana, que é mais
precisa, ao discriminar na grafia palavras de étimo diferente. Legalmente adiou-se por dois
anos a obrigatoriedade de seguir o novo acordo.
5

PRIMEIRA PARTE:

DE GÊNEROS

 
6

CAPÍTULO 1

Questões Gerais
(mas Também Genéricas, em que Se Discutem “Eu”, Lírica,
Transformação de Gêneros, Alexandrinos, Oralidade e
Algumas Inconseqüências Dela)

1) O EU PROFUNDO QUE PERSISTE

Que as letras antigas gregas e romanas, e entre elas a poesia, fossem concebidas e
reguladas pelo conceito de gênero é facto conhecido de sobejo1. O que me parece mister
relembrar é que, o conceito mesmo de gênero, como conjunto, e a relação que mantém com
espécies, entendidas como subconjuntos, não é sempre o mesmo na Antigüidade, isto é, não
são necessariamente os mesmos os critérios segundo os quais os poemas são compostos e
classificados genericamente. Em outras palavras – pouco menos que truísmo, talvez – os
gêneros da poesia, tomada aqui como composição em verso, ora têm ampliados, ora restritos
aqueles critérios; os gêneros então transformam-se ao longo dos 1200 anos que a Antiguidade
compreende desde o século VIII a.C. até o VI d.C. e assim têm história, que é parte da história
grega e da história romana com a tradicional periodização: períodos arcaico, clássico e
helenístico para a primeira, períodos arcaico, clássico, pós-clássico e tardio para a segunda. A
historicidade dos gêneros da poesia pode ter importante corolário teórico se lembrarmos que
desde cedo nas letras gregas sempre se refletiu sobre a atividade poética, fosse ela própria e no
seio do próprio poema, como, para nossa retrospecção, é o caso necessário de Homero2 e
todos os poetas arcaicos, que não dispuseram da relação contemporânea nem com a
preceptiva nem com a crítica, fosse ela alheia, como é o caso arbitrário dos poetas gregos dos

 
7

períodos clássico e helenístico e de todos os romanos, que, além de produzir as suas reflexões,
implícitas ou explícitas, dispunham também das reflexões sobre poesia feitas por rétores,
filósofos, críticos, gramáticos e os próprios poetas: o corolário é que é possível pensar sobre a
poesia antiga, seus gêneros e a transformação que sofreram não mais apenas segundo nossas
atuais concepções acerca deles, operantes que possam ser, como logo veremos que às vezes
são, mas a partir das considerações que lhes são contemporâneas, que o não são menos. É o
que escolho. Para minha escolha, como arbítrio sobre a melhor perspectiva teórica para
compreender a poesia antiga na sua presença, no dizer de T.S. Eliot3, assumir a historicidade
dos gêneros poéticos antigos, que por força é ação retrospectiva no tempo, implica, contudo,
admitir primeiro a consideração sincrônica deles, isto é, a perspectiva contemporânea que dos
gêneros tinham, digamos, seus agentes imediatos: os poetas, o público e, quando é o caso, os
filósofos, os rétores, os críticos e os gramáticos. Por amor da sentença: “eles por eles”.
Lembro, a modo preliminar aqui, que segundo os antigos, sobretudo a partir do
período helenístico, mas não exclusivamente a partir dele, a maior parte dos gêneros mistos4
da poesia antiga – elegia, iambo, lírica e epigrama, (excetuo por ora a épica) – e nos
puramente narrativos, como ditirambo, por mais que pudessem compartilhar a mesma
matéria – v.g., amorosa ou religiosa – e, assim, se bem que relevassem o indivíduo, o sujeito,
não perdiam os limites genéricos e não eram confundidos num gênero só pelo critério da
subjetividade e da interioridade e seus correlatos principais, como particularidade, disposições
da alma e dos sentimentos: elegia, iambo, lírica e epigrama não eram, pois, como se tornaram
desde o Romantismo e como são até hoje, possibilidades, partes, espécies da lírica. Permita-se-
me citar longo excerto da Estética, de Hegel, em que trata do caráter que tinham no seu tempo
a lírica e suas espécies5:
(p. 221-225):
O lirismo restringe - se ao homem individual e, conseqüentemente, às
situações e aos objectos particulares. O conteúdo da poesia lírica é, pois, a
maneira como a alma com seus juízos subjectivos alegrias e admirações dores e
sensações toma consciência de si mesma no âmago deste conteúdo. Graças a tal
carácter de particularidade [Besonderung, Partikularität] e de individualidade
[Einzelheit] que constitui a base da poesia lírica, o conteúdo pode oferecer uma
grande variedade e ligar-se a todos os assuntos da vida social, mas, sob este
aspecto, difere essencialmente do conteúdo da poesia épica sem confusão possível
[...].
À esfera do geral como tal, agrega-se, em segundo lugar, o aspecto da
particularidade [Besonderheit]. Esta, com efeito, pode combinar-se com essas
verdades substanciais, quando tal situação particular, tal sentimento , tal
representação isoladas estão apreendidas na sua profunda essencialidade e
expressos de uma maneira substancial. É o que se verifica em Schiller, por
exemplo, não só nas poesias líricas propriamente ditas, como também nas

 
8

baladas, a propósito das quais me contentarei com recordar a grandiosa descrição


do coro das Euménides nos Grous de lbicus. Este fragmento não é dramático nem
épico, mas lírico. Por outro lado, esta união pode operar-se de tal modo, que uma
grande variedade de traços, de estados, de disposições e de casos particulares
forneçam uma base real para a expressão lírica de concepções muito vastas e
compreensivas, totalmente penetradas desta realidade. Esta união é por vezes
utilizada na elegia e na epístola , e, de uma maneira geral, em todas as
considerações que encerram reflexões sobre a vida e o estado do mundo.
Como na poesia lírica quem se exprime é o indivíduo, este pode muito bem
contentar-se com o conteúdo mais insignificante. Com efeito, o que interessa
antes de tudo é a expressão da subjectividade como tal , das disposições da
alma e dos sentimentos , e não a de um objecto exterior, por muito próximo que
esteja. O estado de alma mais instantâneo, os anelos do coração, os relâmpagos
de alegria, a tristeza e a melancolia, as lágrimas, enfim toda a gama de sentidos
nos seus movimentos mais rápidos e acidentes mais variados, permanecem fixos e
eternizados mediante a expressão verbal. Verifica-se aqui, no domínio da poesia,
um facto análogo ao que tive já ocasião de referir a propósito da pintura. Os
objectos, o tema são completamente acidentais; a importância reside na conexão
e na expressão artísticas cujo encanto no que se refere à poesia lírica pode
consistir o terno perfume que a alma exala, na novidade e na originalidade das
idéias nos aspectos surpreendentes do pensamento, etc.
A forma da poesia lírica
Pelo que concerne à forma mediante a qual um conteúdo subjectivo passa a ser
uma obra de arte lírica, diremos que também aqui é o indivíduo , com as suas
representações mentais e sentimentos í ntimos quem constitui o centro. Tudo
emana do coração e da alma ou, mais exactamente, das disposições e situações
particulares do poeta . Sendo assim, o conteúdo (e o laço unitivo dos diferentes
aspectos que tal conteúdo vai revestindo no seu desenvolvimento) não tem, como
na épica, a objectividade de um conteúdo substancial, e não extrai significação de
se ter manifestado exteriormente, na qualidade de acontecimento individual
autossuficiente; o conteúdo permanece puramente subjectivo e tem origem
ou ponto de apoio no pensamento íntimo d o próprio poeta . É por isso que o
lírico deve ser dotado de uma natureza essencialmente poética, ter uma rica
fantasia, possuir grande sensibilidade e profundos pensamentos, enfim, ser
portador de um mundo interior completo, sem a mínima relação de dependência
com a prosa. Estas circunstâncias conferem ao poema lírico uma unidade
completamente diferente da o bra épica; a unidade proveniente da reflexão
e das íntimas disposições do espírito; depois de se ter expandido
interiormente, o poeta projecta a sua alma no mundo exterior, sob a forma
d e quadros descritivos, ou então interessa - se por um objecto qualquer e ,
dado o carácter puramente subjectivo deste interesse, adquire o direito de
começar ou acabar onde, quando e como lhe aprouver . Horácio, por
exemplo, suspende uma descrição no momento em que a deveria ter começado,
se obedecesse ao gosto vulgar. Tomando por assunto uma festa, descreverá
apenas os seus sentimentos, ordens e preparativos sem nada nos dizer acerca do
resultado ou êxito da mesma. Do mesmo modo, a natureza das disposições
psíquicas, o estado de alma individual, os impulsos, transportes e intensidade da
paixão ou a serenidade da alma e da contemplação, fornecem à marcha e coesão
interiores as regras mais variadas. Por isso, dada a multiplicidade das causas de
que as variações interiores dependem, é impossível estabelecer princípios gerais e
regras fixas.

 
9

Entre as várias diferenças que distinguem a poesia lírica da poesia épica,


limitar-me-ei a indicar as seguintes. Encontramos na poesia épica certos gêneros
que se aproximam do tom lírico; também na poesia lírica, por seu turno,
encontramos por seu tema um acontecimento, épico pelo conteúdo e carácter
exterior, e apresentado sob uma forma igualmente épica: cantos heróicos,
baladas, romances, etc., fazem parte desta categoria. A forma de um tal conjunto
é então, por um lado, a de uma narrativa, posto que [= porque] relata o curso de
uma situação, de um acontecimento, a mudança brusca nos destinos de uma
nação, etc. Mas, por outro lado, o tom fundamental permanece essencialmente
lírico, porque se trata acima de tudo, não da descrição ou da pintura impassível
de um acontecimento real, mas da expressão do modo de conceber e de sentir, do
estado de alma alegre ou melancólico, corajoso ou deprimido do poeta e, além
disso, porque a acção para a qual a obra lírica foi escrita é também de natureza
lírica. Com efeito, o que o poeta se propõe evocar no auditor ou no leitor é uma
disposição de alma semelhante à que nele fez nascer o facto que relata e que
integrou, por assim dizer, na exposição. Exprime a melancolia, tristeza, alegria ou
o ardor do seu patriotismo, de uma tal maneira, que não é já o acontecimento
provocador ou evocador de um ou de outro destes sentimentos que constitui a
fonte central da obra, mas justamente o seu reflexo i nterior 6. Assim se explica a
razão por que escolhe os pormenores mais bem harmonizados com os seus
próprios movimentos interiores. Se, pois, o tema é épico, o estilo ou modo do seu
tratamento é lírico. Entre os géneros englobados nessa categoria, citaremos
em primeiro lugar o epigrama na medida em que não é uma simples inscrição
ou gravura em pedra que, por breves letras, proclama o que é uma dada coisa,
mas faz a ligação deste enunciado com um sentimento e transfere assim o
conteúdo da realidade positiva para a interioridade [ins Innere]. O poeta não se
anula ante o objecto, confunde-se com ele; com ele relaciona os seus desejos e
descobertas inesperadas. A Antologia Grega compreende já um grande número
destes epigramas, cheios de humor, mas destituídos de tom épico e, nos tempos
modernos, encontramos algo parecido nas cópias picantes das revistas francesas,
assim como nas poesias satíricas alemãs. Até as próprias inscrições funerárias,
com as expressões lapidares do sentimento que as inspiram, podem ser
incluídas na classificação geral do carácter lírico .
[...]
(p. 261):
Outro grupo deste vasto domínio lírico é constituído pelos sonetos, sextilhas,
elegias, epí stolas etc. [...] A elegia,
elegia pelo contrário, aproxima-se mais do
género épico, tanto pela medida das sílabas como pelas reflexões que por vezes
comporta e pela apresentação puramente descritiva dos sentimentos.
(Itálicos do texto original; colchetes e sombreamentos meus).

A lírica antiga – a lírica “propriamente dita”7, como amostrarei adiante – já era


múltipla, mas, múltipla, era ainda menos ampla do que a lírica romântica, a pós-romântica e
a moderna. Para eles, antigos, elegia, iambo e epigrama, confins que fossem com lírica, jamais
com lírica se confundiam. Pode-se sempre lembrar, e é justo que se faça, que, assumida por
um momento a perspectiva dos próprios românticos, todos os gêneros citados, elegia, iambo,
lírica e epigrama, que Platão chama mistos, a despeito da mistura, são preponderantemente
narrativos e a narrativa põe em relevo um sujeito, que por razões importantes para os

 
10

românticos, foi guindada a critério genérico, tomando tais gêneros como se tivessem a
“pureza” narrativa do ditirambo. A indistinção produzida pelos românticos não deveria
obliterar, principalmente nos filólogos pós-românticos e modernos, a distinção que havia para
os antigos.
Mas, pós-românticos e modernos, nós não soemos fazer assim. Exemplifico não mais
que de passagem com títulos de publicações estrangeiras e brasileiras – menos e mais recentes,
menos e mais importantes – o “eles por nós”, isto é, o que eles, antigos, fizeram segundo
nossas idéias e contemporâneas palavras, que sublinho: Le Lyrisme a Rome (1978), de Pierre
Grimal, em que trata da elegia de Galo a Ovídio, da bucólica, de Virgílio a Calpúrnio da Sicília
e do epigrama latino8; “Storicità della Lirica Greca” (1979), de Bruno Gentili9, que ali trata de
elegia e iambo arcaicos. El Mundo de la Lírica Griega Antigua (1981), de Francisco Rodrigues
Adrados, em que analisa uma elegia de Arquíloco e discute reconstrução dos epodos10; Greek Lyric
Poetry (1993), de Martin West, em que reúne e traduz, conforme diz no subtítulo, “os poemas e
fragmentos dos poetas iâmbicos, elegíacos e mélicos”11; Greek Iambic Poetry (1999), de Douglas
Gerber, que inclui as elegias de Arquíloco12; a antologia Poesia Lírica Latina, organizada por
Maria da Glória Novak e Maria Luiza Neri (1989), que seleciona bucólicas de Virgílio, epodos de
Horácio, elegias de Tibulo, Propércio e Ovídio, epigramas de Marcial e Ausônio13; Lírica e Lugar-
Comum: Alguns Temas de Horácio e Sua Presença em Português (1994), de Francisco Achcar14, que
afirma:

Por razões puramente musicais (que, naturalmente, têm relação com a métrica), a
elegia e a poesia iâmbico - trocaica, que não hesitamos em classificar como
líricas, por seu caráter subjetivo e pessoal, não faziam parte da mélica ,
embora se destinassem a situações semelhantes às da lírica monódica.

(Sombreados meus).

Além desses, a primeira edição de O Livro de Catulo, de minha autoria, em que emprego
“lírica” para caracterizar a matéria iâmbica do poema 9315; Armas e Varões: a Guerra na Lírica de
Arquíloco (1998), de Paula da Cunha Corrêa, que com detença discute, entre outros, o
fragmento iâmbico 20 (W) e os fragmentos elegíacos (W) 1, 2, 3 , 4, 5, 6, 7 e 7a, 9, 1516. Ora,
repito, nem os poetas arcaicos, clássicos e helenísticos gregos nem poeta e crítico romano
algum, a despeito das transformações que ao longo da Antiguidade sofre cada um dos gêneros
da poesia mencionados, consideravam que iambos, elegias, epodos, epigramas e depois
também bucólicas, eram “lírica”, como se faz hoje. Não o consideraram tampouco os filólogos
Friedrich G. Schneidewin (1838), que em Delectus Poesis Graecorum; Elegiacae, Iambicae, Melicae17
discrimina os três gêneros. Nem Herbert Weir Smyth (1900), que Greek Melic Poets trata apenas

 
11

dos poetas líricos / mélicos, tal como fariam depois Denys Page (1960), que no livro Poetae
Melici Graeci sob a rubrica “melici” (melicus, é latinização de μελικός, depois substituído por
λυρικός, “lírico”, como se verá), arrolou também apenas poetas propriamente líricos18,
Malcolm Davies (1991) em Poetarum Melicorum Graecorum Fragmenta19 e o mesmo Martin West,
que no livro Iambi et Elegi Graeci ante Alexandrum Cantati analogamente não listou nenhum poeta
lírico mas só iâmbicos e elegíacos20.
Embora em todos os outros exemplos nem sempre se trate só de conveniência
pedagógica, a aparente contradição existente nos critérios do filólogo Martin West para
intitular Iambi et Elegi Graeci ante Alexandrum Cantati, adrede para especialistas, e o já
mencionado Greek Lyric Poetry, decerto dirigido a não-especializados, pode sugerir tal escopo
também nos outros livros. Com efeito, Lucia Athanassaki em resenha de livro21 sobre poesia
antiga afirma:
The main body of the book is divided into four parts according to genre
and mode of performance : Elegy: Callinus, Tyrtaeus, Solon, Mimnermus, and
Theognis (pp. 13-76); Iambus: Archilochus and Hipponax (pp. 77-118); Monodic
Lyric: Sappho, Alcaeus, and Anacreon (pp. 119-230); and Choral Lyric: Alcman,
Stesichorus, Ibycus, Simonides, Pindar, and Bacchylides, concluding with
Euripides' epinician for Alcibiades (231-366). The metrical, linguistic, and
interpretive commentary of the selected poems is prefaced by a general
introduction to the life and repertoire of each poet. The inherent difficulties of
such a classification are of course notorious. The decision of the authors to
privilege genre/performance mode has led to inevitable contradictions:
the poetry of Archilochus, for instance, is classified under ‘Iambus’ but the
anthology of his poetry opens w ith the elegiac fragments 1, 4, 2, 5, and
11W . Similarly, Sappho's poetry is classified under “Monody”, but as the authors
observe in their introduction (p. 124) she composed songs for both solo and choral
performance. Likewise, Simonides' Plataea elegy forms part of the category of
“Choral Poetry”. This classificatory principle has certainly precedents, e.g.
Douglas Gerber’ s Loeb edition of Elegiac and Iambic Poetry , and the
authors certainly clarify matters in the prefaces of each category or author. Yet
since the primary audience of the Gentili-Catenacci anthology are beginners,
classification by author, as in Campbell’s (1967, rev. 1982) or Hutchinson’s (2001)
anthologies, for instance, would have been pedagogically much more effective.
(Sombreamentos meus).

Tendo ali notado a mesma contradição – um conjunto de poemas reunidos por gênero
incluir poemas de outro – e reconhecendo na incipiência do público-alvo haver didatismo no
livro resenhado, Lucia Athanassaki aponta solução diferente da utilizada nos exemplos que
arrolamos: sugere, apoiada em exemplos, reunir poemas por autor em vez de desrespeitar o
critério de gêneros. A sugestão “teria sido muito mais eficiente” vale menos pela virtude da
proposta do que pelo vício que evita, o que só faz relevar a importância do critério. A solução
impede justo que iniciantes tomem um gênero por outro, ou venham a crer dali em diante

 
12

que a diferença deles não importe. Em outras palavras, melhor ainda do que só reunir sob o
nome do autor poemas incongêneres é não reuni-los sob o nome de um gênero que não é
comum a todos, que é precisamente o que ocorre nos exemplos que arrolamos.
É bem verdade, por outro lado, haver dificuldade para designarmos, nós modernos, a
poesia não-épica e não-dramática22, que é aquela de que todas as publicações mencionadas
tratam. Substituir “lírica” por “poesia” tornaria imprecisos os títulos e textos de Adrados,
West e Novak & Neri, pois em cada caso, grego arcaico e latino, não se excluiria a épica23. A
dificuldade ou, a bem dizer, o problema, sendo pedagógico, é de certo modo também
editorial, pois, afora especialistas e especializados, o argumento é quem sabe, quem deveria
saber o que é “poesia iâmbica”, o que é “poesia mélica”? Quando estudiosos usam o termo
“lírica”, entre dar ao público leigo uma idéia aproximada ou deixar que da matéria não
tenham idéia nenhuma, preferiram a primeira alternativa. Tornaremos à questão. Apenas
Grimal, mercê do “lirismo” com que trata a poesia romana, mesmo a propriamente lírica, é
causa perdida.
A dificuldade, como disse, é nossa, não dos antigos, que, embora pudessem admitir
haver confinidade entre elegia, iambo e lírica – devida ao eventual compartilhamento de
matéria e do foco da consideração, que é a pessoa – não parece que se preocupavam em
possuir critério que designasse conjuntamente, ou seja, num único gênero, a poesia não-épica
e não-dramática, quer no período arcaico grego, quando preponderavam para taxonomia o
momento e a situação da execução, quer no período helenístico e na poesia romana, quando
preponderava a adequação (prépon) entre matéria e metro no que já era texto escrito.

2) MONODISMO E CORALISMO E O ROMANTISMO QUE PERDURA

A dificuldade, pareço repetir-me, não é dos antigos, é nossa, estudiosos de hoje,


porque a nós, leitores pós-oitocentistas, parece ainda importar-nos subjetividade e
interioridade. Como é evidente que os autores citados e outros mais, que não são românticos,
conhecem muito bem poesia greco-romana e sabem que a lírica antiga difere muito da
romântica24, tarefa adequada pareceu-me, reconhecida a imprecisão taxonômica, partir dela,
assumi-la efetivamente como problema e objeto de estudo com a mesma efetividade com que
foi assumida como solução, e precisar por que ocorre ou ao menos, limite de meu
atrevimento, em que medida ocorre, para quiçá sugerir solução diferente e trilhar senda
diversa. Esta precisão, que discutirei doravante, tem sido o objetivo ulterior do curso de pós-
graduação FLC-5864 “LÍRICA” LATINA E SEUS GÊNEROS CONFINS: ELEGIA, IAMBO E LÍRICA, que,

 
13

cadastrado no Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas em 2001 ministrei em 2002,


2004 e 2007, e foi questão importante no livro Fragmentos de uma Deusa, de Giuliana Ragusa,
oriundo da Dissertação de Mestrado homônima25:

Uma vez que Safo se insere entre os líricos gregos arcaicos cuja produção chegou
aos nossos tempos e sua poesia foi associada, quase sempre, a uma idéia de
lírica “romântica” ou “hegeliana”, é preciso desembaraçar, tanto quanto
possível, essa d esignação – tornada sinônimo de emocional, subjetivo,
confessional, pessoal – da pesada carga semântica que lhe foi lançada às costas
para que estejamos aptos a considerar a lírica sáfica com olhos menos
comprometidos e sugestionados, mais limpos, distanciados e cônscios de conceitos
em nós introjetados e que podem levar a uma visão redutora, deslocada ou
até equivocada da lírica grega arcaica. Não pensamos como os antigos, nem
devemos fazê-lo. Justamente por isso é necessária, no mínimo, a consciência
de q ue até mesmo o conceito de “literatura”, tão natural para nós,
somente se especializa a partir no século XVIII; ele nem sempre existiu e,
quando existiu, nem sempre foi único. Assim, esclareço desde já que o uso
aqui feito de palavras como “literatura”, “l iterário” e “poema” em
referência às composições da lírica grega arcaica – geradas num contexto
histórico em que prevaleciam a cultura oral e audição sobre a escrita e a
leitura – pretende expressar apenas que tais composições têm propriedades
específicas de forma e de linguagem que as diferenciam irremediavelmente
de outros textos .

(Sombreados meus).

Aqui Giuliana Ragusa ratifica a percepção, presente em Achcar, de que a lírica


arcaica grega difere da lírica romântica moderna pois que esta é sinônimo de “emocional,
subjetivo, confessional, pessoal” (o que equivale ao que chamei “subjetividade, interioridade e
seus correlatos”), conceitos que equivocam, deslocam e até reduzem nossa visão da lírica grega
arcaica, como bem diz. Contudo, diz melhor quando avança em relação à percepção de
Achcar ao incorporar explicitamente a noção de que “literatura” é conceito estranho ao
mundo antigo. A consciência estou convicto de que é de todo correta, porém insuficiente,
como tentarei mostrar. Antecipo por ora que não poderíamos pensar como os antigos nem
que assim quiséssemos, simplesmente porque não somos antigos, o que nos não empeça de
querer saber como os antigos pensavam.
Se há algum tempo sabemos que a lírica grega arcaica se intumesceu, por que então,
dado que os classicistas somos seus doutores, teima em não se desintumecer? O primeiro
motivo da tumidez que a lírica sofre parece-me ser que, não sendo embora românticos, não
querendo ser românticos, não nos atrevemos ainda hoje a conceber que individualidade e
interioridade não sejam algo ontologicamente uno. A suposta inseparabilidade de lírica,
elegia, iambo e epigrama como gêneros é mera decorrência da hoje ainda suposta mas

 
14

indevida inseparabilidade da coisa una que seria o individual e o interior, já com ou sem seus
correlatos, tomados em si, como tais, ontologicamente. Em perspectiva mais refinada, tal
inseparabilidade, que para o Romantismo era princípio, hoje persiste como resíduo romântico
e, portanto, anacrônica. É residual porque comentadores contemporâneos não acolheram a
concepção inteira dos gêneros românticos nem a de indivíduo; o que acolheram, ou antes
fizeram remanescer, foi o conceito de que são unos os gêneros que “contenham”
individualidade e/ou interioridade, e a entronização delas como critério taxonômico. Pois
bem, elas, assim encarecidas, importam aos estudiosos contemporâneos a tal ponto, que
muitos não se atrevem a tratar em separado elegia, lírica e o iambo antigos, não se atrevem a
deixar de tratá-los necessariamente juntos, como se tal tratamento, por não incluir toda a
poesia subjetiva, fosse por força incompleto. Observem-se dois exemplos da pertinácia do
conceito a despeito do conhecimento do que era a poesia antiga. Volto ao livro de Francisco
Achcar:

Por razões puramente musicais (que, naturalmente, têm relação com a métrica), a
elegia e a poesia iâmbico - trocaica, que não hesitamos em classificar como
líricas, por seu caráter subjetivo e pessoal, não faziam parte da mélica ,
embora se destinassem a situações semelhantes às da lírica monódica. Esta era
canto solo, geralmente executado pelo próprio poeta, acompanhado de
instrumentos de cordas e às vezes de flauta. A outra espécie da mélica era a lírica
coral, canto de muitas vozes em uníssono, em que os coreutas cantavam e
dançavam com acompanhamento musical que, além da lira, habitualmente
incluía a flauta26.
(Sombreamentos meus).

Francisco Achcar bem sabe que a elegia e a poesia iâmbico-trocaica não faziam parte da mélica
(entenda-se lírica; notar o uso do termo em Achcar), isto é, sabe muito bem que os antigos não
as integravam à mélica por razões que, diz, são “puramente musicais”, como se música fosse
pouco para a mélica ou até lhe fosse extrínseco, mas não hesita ele em classificá-las como líricas
por causa do caráter subjetivo e pessoal, assumindo além disso como perspectiva crítica a
subdivisão em que se opõem as modalidades monódica e coral, subdivisão que, conforme
vimos em Lesky e Malcolm Davies, tinha menos importância para os antigos do que para nós,
e que na verdade ocorreu só em tempos recentes por agenciamento nada mais nada menos do
que os irmãos Schlegel, dois ases do Romantismo. Em outras palavras, o viés teórico
aparentemente antigo e intrínseco que distingue monodia e coro na lírica / mélica grega
arcaica não é senão mais um legado romântico e o excessivo apreço que recebe hoje dos
classicistas, aliado ao acolhimento inconseqüente da condição oral e performativa daqueles

 
15

três gêneros, é, creio, o segundo motivo da tumidez da lírica27. Às preocupações musicais de


Achcar subjaz a maior autoridade de Bruno Gentili:

Nella cultura greca il termine “lirica” designò in senso tecnico la poesia cantata
con l’acompagnamento musicale della lira (lyra) o di analoghi strumenti a corda
(màgadis, bàrbiton, phorminx). Questa accezione è confermata dal canone
alessandrino dei poeti lirici che comprendeva soltanto lirici monodici e
cor ali, escludendo la poesia giambica ed elegiaca, che era acompagnata
dall’ aulós . Anche se la attual e tendenza a comprendere sotto l a
denominazione di “lirica” greca la poesia elegiaca e giambica non è
corretta nei confronti della terminologia poetica ellenistica, non è tuttavia
impropria sotto il profilo dei contenuti conessi con situazioni reali e del
suo rapporto con l’ uditorio .

(Sombramentos meus).

Gentile vê, conhece mas só resvala o que creio que importa, porque justo para explicar
a palavra “lírica” e mostrar a semelhança musical, a semelhança “lírica” entre os gêneros
indicada no fim do excerto, aduz o testemunho dos alexandrinos, cujo cânone de poetas
líricos só continha poetas . . . líricos, a julgar pela importância que os antigos davam à
distinção entre monodia e coro, como vimos nas palavras de Malcolm Davies. Em melhores
palavras, Gentile mostra estupendamente aqui, sem que lhe pareça grande coisa, que foi bem
por causa de um elemento musical – o instrumento a cujo som os aedos se faziam
acompanhar – que os alexandrinos não uniram o que nunca fora uno nem deveria ser unido.
Mas o mais notável é que o elemento por causa do qual os alexandrinos discriminavam os três
gêneros foi o mesmo que Gentile usou para uni-los indiscriminadamente. Gentile quase atinge
o ponto, pois chega até a admitir que a unificação é incorreta segundo a terminologia poética
dos gramáticos da Biblioteca de Alexandria, mas acaba indo, que pecado!, para a direção
oposta, pois a ambage final, de ausônica abastança, “sotto il profilo dei contenuti conessi con
situazioni reali e del suo rapporto con l’uditorio”, creio que significa apenas “lírica, elegia e
iambo são todos lírica porque são todas cantadas para um auditório”, embora Gentile não
esclareça qual é “a ligação dos conteúdos com situações reais nem sua relação com o
auditório”. Como quer que seja, apesar da diferença instrumental mais refinada, específica
que vislumbrara, impôs-se-lhe à visão que os três gêneros são unos por comungar da
performance musical e que entre conteúdos dos três há o mesmo perfil, certa unidade, que é o
“eu” do poeta, como revela em artigo posterior, “L’ ‘Io’ nella Poesia Lirica Grega”28:

La poesia greca arcaica e tardo arcaica si configura come un fenomeno


radicalmente diverso dalla poesia moderna nei contenuti, nelle forme e nei modi
della comunicazione. Il suo carattere fu preminentemente pragmatico per il suo

 
16

stretto rapporto con la vita sociale e politica. Espresse vicende esistenziali dei
poeta stesso e di altri, ma non fu intimista nel senso moderno . L’universo
delle figure dei suo linguaggio, ovvero le immagini, le metafore, le similitudini,
non furono indipendenti dai visibile e tali da consentire la percezione di un
mondo non esistente, astratto e fittizio come nel linguaggio simbolico della
moderna letteratura di finzione, ma furono, non diversamente che nell'arte
figurativa, ancorate alla realtà fenomenica. Ebbe come contenuto ricorrente il
mito, che costitui l'oggetto esclusivo della narrazione epica e del teatro
drammatico e il termine costante di riferimento paradigmatico per la poesia
lírica.
(Sombreados meus).

Agora sabe-se: “situações reais” dizem respeito a experiências existenciais particulares do


próprio poeta e de outrem, e “relação com o auditório” refere-se à vida social e política de
que a poesia arcaica participa, o que ratifica a obviedade de que Gentili conhece a diferença
entre lírica antiga e moderna, e esclarece a propósito que existir “eu” na elegia, no iambo e na
lírica não implica serem intimistas como a lírica moderna, com o que concordamos. Nem por
isso, porém, o filólogo deixa de reunir os três gêneros sob o nome de “lírica”, e ele o faz em
parte por possuírem um sujeito em primeira pessoa – isto é, a já tratada questão da
subjetividade ontológica –, em parte por serem todos executados ao vivo – isto é, a questão da
performance oral e musical. Gentile, assim, é nos Estudos Clássicos talvez o maior taxidermista
da inteireza ontológica que o eu assumiu no Romantismo pois embalsama-a com o elemento
musical performático comum a nossos três gêneros e ajuda-a perdurar serôdia nos Estudos até
hoje. Pois bem, dada a permissão, dele dissinto quanto à subjetividade, pois ainda que a
intenção de tratar do “eu” o obrigue a tratar de todos aqueles três gêneros, por neles comparecer a
primeira pessoa, não necessariamente o compele, como já ponderei acima, a uni-los, bem
entendido, a unificá-los, nem muito menos a chamar “lírica” a união produzida. E, assentindo
com os filólogos alexandrinos, dissinto de Gentile ainda quanto à performance, pois a
comumunidade do elemento musical nos três gêneros não elide a diferença entre eles nem
obriga, aqui também, a que ele (e qualquer comentador moderno) os designe “lírica”.

3) DE POÉTICA HELENÍSTICA E SUA POROSIDADE

Assenti com os poetas-críticos alexandrinos: passo então a tratar deles. Não priorizar o
desempenho musical não os levou a infringir limites e desconsiderar diferenças ao classificar
por gênero os “poemas” que receberam. Sabiam que, quando aqueles dizeres singularmente
existiram no ali e então dos cantores e seu público, existiram, funcionaram, como canto,
enquanto para o que os próprios alexandrinos eram – bibliotecários-críticos-poetas – os

 
17

dizeres naquela conjuntura eram já poemas que eles liam, estudavam, criticavam, classificavam e
imitavam; eram, como se sabe, já letra escrita sobre papiro e pergaminho, independentes da
melodia e da circunstância imediata da execução, as quais deixaram assim de ser critério
obrigatório de classificação genérica (ainda que as designações fossem amiúde as mesmas),
para ceder posto aos únicos elementos que lhes restavam em mãos diante dos olhos: um texto
em verso e seu tema. Fica evidente por que, justamente com a autoridade dos aedos arcaicos,
a matéria e o metro a ela decoroso é o principal critério genérico dos poetas-críticos-
bibliotecários de Alexandria. Contudo, o desempenho musical e até coreográfico, axial que
tenha sido à lírica, elegia e iambo do período arcaico, não era axial à lírica, elegia e iambo do
período helenístico, e aqui chega-se à encruzilhada que aos estudiosos nos tem extraviado,
não mais, porém, do que nos pode aviar. É facto que aos helenistas contemporâneos
dedicados a tudo que respeita à atuação os critérios helenísticos de classificação e edição em
livro dos poemas arcaicos ou são insuficientes ou são impertinentes, mas é factual outrossim
que tais critérios eram efetivos já não apenas ao juízo que, como críticos, os alexandrinos
faziam dos poemas arcaicos e ao modo gráfico, inelutável, que então se impôs para divulgá-los
no lugar da transmissão oral, senão que também eram efetivos à concepção com que eles
mesmos, como poetas, compunham os próprios poemas e julgavam os de contemporâneos,
concepção essa que foi conscientemente acolhida pelos romanos, e destes – por meio destes, bem
entendido – passou à posteridade ocidental. Esta “concepção”, passiva no ajuizar e ativa no
compor, outra coisa não é do que uma Poética, a assombrosa porém sombria Poética
Helenística, cujo universo primeiro de consideração é ironicamente toda poesia anterior, dos
períodos arcaico e clássico. No bívio em que as vias se dividem, professo aqui que meu objeto
é a Poética Helenística, ela mesma em seu tempo com os próprios agentes, e também o modo
como foi praticada depois pelos teóricos e poetas latinos. Com professá-la e assumi-la por
objeto, cabe-me discriminar com mais discrime que, no inoportuno confronto entre helenistas e
helenísticos, isto é, entre helenistas de hoje dedicados aos poetas arcaicos, de um lado, e, de
outro, poetas-bibliotecários-críticos alexandrinos do período helenístico que sobre tais poetas
se haviam debruçado, por maior relevância, vá lá, por maior veracidade que haja no que os
helenistas, histórica, antropológica, científica e mui convictamente constatam hoje sobre
poetas arcaicos e todas as circunstâncias atinentes à poesia arcaica, para quem estuda poética
helenístico-romana ainda é mais relevante o que os próprios poetas-bibliotecários
alexandrinos julgaram acerca de seus antecessores arcaicos, não porque, singelo, o estudioso
dará mais crédito ao que disseram os poetas que investiga, mas porque o julgamento que
fizeram, errado que cientificamente possa ser hoje (nem sempre é), se converteu, para os

 
18

poetas, em matriz ativa de composição de novos poemas, e para o público (helenístico e


depois romano), em parâmetro de apreciação, entenda-se o preço poético (o valor poético das
composições) e o resultante apreço ou desapreço de que os ouvia ou lia. Conquanto pareçam
compartilhar, embora pareçam disputar o mesmo objeto, que é a poesia arcaica, afigura-se-
me de todo absurdo helenistas arcaístas contemporâneos ombrear com os críticos
alexandrinos e gramáticos latinos antigos como se lhes fossem pares – toda éris, disse
Vernant29 sobre Hesíodo, supõe relações de igualdade –, para corrigi-los, em vez de,
tomando-os como extensão de seu objeto, antigos que os helenísticos são, ponderar com
detimento para então interpretar as considerações que fizeram sobre os poetas arcaicos.
Permito-me exemplificar a atitude com recente publicação sobre o iambo:

Given that literary genres are the result of categorization, the very concept of
categorization is at issue for us. The classical theory of categorization states that
category judgements depend on necessary and suficient attributes, that categories
are discrete, invariant , and that an item either belongs or does not belong to a
single category. If we apply the classical theory of categorization to iambos as a
literary genre, the question ‘is this specific poem an instance of iambos?’ can only
be answered by checking the necessary and suficient attributes of all iambic
poems. Thus, following Diomedes’ definition: Iambus est carmen maledicum plerumque
trimetro versu et epodo sequente compositum (‘Iambus is a maledictory poem, mostly
composed of a trimeter and a following epode’, Diom. de poem., GL I p. 485), the
necessary and suficient features would be those of invective and iambic metres.
Consequently, a fragment such as Archil. 19W, which in its fragmentary state
does not show any traces of invective, would be out of the group. Similarly, the
two extant fragments of Eucleides (see Chapter 2, sect. 2), which are written in
hexameters, would be ruled out. Only a poem such as Archil. 21W (or 22W),
which displays both invective elements and iambic metre, would be considered an
instance of iambos, and consequently would be ruled out from membership of
any other genre. This essentialist view of categorization, when applied to
literary genres, creates the illusion of a very neat grid, what we may call the
‘checklist theory of genres ’, on which Aristotle conferred immense credit . This
theory, however, poses a fallacy that has been inherited by literary criticism for
far too long: that genres are analysable in terms of necessary and suficient
features shared by all members . This classical view of genres, although
economical and with a long tradition in Western cultures, proves inadequate
when applied to historical data, because it cannot account for fuzzy areas30.
(Sombreados meus).

Como disse, é cabível que a autora ponha na berlinda o próprio conceito de


categorização e o substitua pelo de “idéia”, como anuncia o título do livro, e que não
pretenda entender os antigos “eles por eles”, senão propor ela mesma um conceito que na
descontinuidade abarque todos os poemas iâmbicos. O que não cabe é a pretensão de julgar
os antigos e decretar que, ingenuamente falaciosos, criaram a ilusão de uma grade genérica

 
19

muito regular, a que Aristóteles – quem diria? – deu enorme crédito. Tampouco é cabível
que, tendo citado o testemunho de Diomedes, em que se lê plerumque, e depois de bem traduzi-
lo – mostly (“na maioria das vezes”, “quase sempre”, muito diverso de dizer semper, “sempre”) –
afirme que “a teoria clássica [sic] da categorização (de que dependem os gêneros literários)
postula que categorias são “invariantes”, verdadeira “lista de checagem”, “que os gêneros são
analisáveis segundo as características necessárias e suficientes compartilhadas por todos os
membros”, que é bem o contrário do que quis dizer Diomedes com o evidente modalizador
plerumque: “O iambo é um canto de maldizer, quase sempre composto em verso trímetro
seguido de epodo”31, o que significa, primeiro, que para Diomedes havia iambos compostos
em outros metros que não o trímetro seguido de epodo, e, segundo, que sabia e atestava que
tal característica não era compartilhada por todos os membros. Porém, o que descabe de vez é
o passo:

If we apply the classical theory of categorization to iambos as a literary genre, the


question ‘is this specific poem an instance of iambos?’ can only be answered by
checking the necessary and suficient attributes of all iambic poems.

Em primeiro lugar, se a autora já admite que há um conjunto de todos os poemas iâmbicos –


o que é verdadeiro, aliás é conjunto pequeno – então, para verificar se um poema é exemplo
de iambo, basta simplesmente verificar se ele pertence ao conjunto. Em segundo lugar, para
quem encarece a historicidade dos gêneros, não é problema algum verificar os atributos
necessários e suficientes de todos os poemas iâmbicos. O que responde a pergunta “este
poema em particular é exemplo de iambo?” não é, como diz, o exame dos atributos
necessários e suficientes de todos os poemas iâmbicos, mas o exame de todos os critérios
segundo os quais os antigos em determinada época consideravam que um poema era iâmbico.
Esses critérios, temos repetido, têm história, modificam-se, surgem em certa época somando-
se aos preexistentes, podem deixar de existir. E estabelecer esses critérios, agora sim, decorre
da indagação sobre que atributos são necessários e suficientes de todos os poemas que os antigos
em cada época consideravam iâmbicos. Essa seria a melhor pergunta, cuja resposta, segundo as
fontes, não é uma lista de checagem imutável, mas o registro de conceitos mutáveis. O
equívoco de Andrea Rotstein é crer que os antigos possuíam conceito fixo de gênero. A
rigidez que projeta ao conceito mesmo de gênero culmina com dizer que a visão antiga da
categorização é “essencialista”. A essencialidade está na sua perspectiva, não no objeto
“gênero”. Mas ao mesmo entrevê que há mais de um critério para iambo ao longo do tempo,
segundo as fontes que com muito brilho recolhe e analisa. A conseqüência é um curto-
circuito: como algo que deve ser sempre o mesmo, imutável como uma essência, rígido como

 
20

uma “grade” ou uma “lista de checagem”, pode alterar-se? Podendo bem abandonar só a
fixidez que projetava em gênero, preferiu admitir tudo o que dinamicamente nele havia,
apenas substituindo “gênero” por “idéia”.
Como tenho insistido no argumento “história do gênero”, não devo denegar exemplo
do conceito entre os antigos e cito a Arte Poética de Horácio (vv. 73-92):

Res gestae regumque ducumque et tristia bella As gestas de reis e de chefes, as tristes guerras
quo scribi possent numero, monstrauit Homerus; em que ritmo podem ser descritas Homero mostrou.
uersibus inpariter iunctis querimonia primum, 75 Em versos desiguais unidos primeiro esteve o lamento;
post etiam inclusa est uoti sententia compos; depois, neles incluiu-se também a expressão de um voto cumprido.
quis tamen exiguos elegos emiserit auctor, Mas sobre que autor, enfim, divulgou elegias tênues
grammatici certant et adhuc sub iudice lis est; disputam os gramáticos e até agora o litígio está sub judice.
Archilochum proprio rabies armauit iambo; A raiva armou Arquíloco com o iambo que lhe é próprio.
hunc socci cepere pedem grandesque cothurni, 80 Os tamancos da comédia e os grandes coturnos da tragédia
alternis aptum sermonibus et popularis adotaram este pé, apto às falas alternadas e a superar os rumores
uincentem strepitus et natum rebus agendis; da platéia, nascido para a ação que se interpreta.
Musa dedit fidibus diuos puerosque deorum A Musa deu à lira cantar os deuses e filhos de deuses,
et pugilem uictorem et equum certamine primum o pugilista vencedor e o primeiro cavalo na corrida,
et iuuenum curas et libera uina referre: 85 os cuidados dos jovens e o vinho que liberta.
descriptas seruare uices operumque colores Se conservar as funções distintas e as cores dos gêneros
cur ego si nequeo ignoroque poeta salutor?
eu não posso e não sei, por que sou saudado como poeta?
Cur nescire pudens praue quam discere malo?
Por que, envergonhado sem razão, prefiro ignorar a aprender?
Versibus exponi tragicis res comica non uolt;
A matéria cômica não quer ser exposta em versos trágicos;
indignatur item priuatis ac prope socco 90
o repasto de Tiestes indigna-se igualmente por ser narrado
dignis carminibus narrari cena Thyestae:
em versos familiares, dignos quase de Comédia.
singula quaeque locum teneant sortita decentem.  
Cada matéria tenha adequadamente seu lugar conforme sua sorte.  

A passagem é vera história concisa da épica, elegia, iambo, lírica, e ainda toca a tragédia e a
comédia. Trataremos da elegia com detença exemplificação no Capítulo 3, mas adianto aqui
que ela é historiada entre os versos 75 e 78 e Horácio aponta-lhe três etapas, a que
correspondem, sendo o metro invariável, três matérias ao longo do tempo: primeiro (primum,
v. 75), que afirmo tratar-se da época arcaica, a matéria da elegia era o lamento (querimonia, v.
75), principalmente o lamento fúnebre, como vemos am Arquíloco. Depois (post etiam, v. 76),
incluiu-se no dístico elegíaco (não se sabe quem foi) a exibição do cumprimento de um voto,
entenda-se, um desejo (uoti, v. 76) e a respectiva promessa (o mesmo vocábulo uoti, v. 76): trata-se
do epigrama votivo, que, escrito desde o período clássico mormente mas não apenas em
dísticos elegíacos, Horácio assimila à elegia. Enfim, isto é, em terceiro lugar32, Horácio,
assumindo ele mesmo elocução de gramático, indaga, porque não sabe, quem foi o primeiro a
escrever elegias tênues (exiguos elegos, v. 77), que interpreto ser elegias amorosas, como as que
em Roma bem no tempo do poeta escreviam seus amigos Propércio, Tibulo e, pouco depois,
Ovídio. Em outras palavras, a elegia tratava de certa matéria, o lamento, e depois ao longo do
tempo passou a tratar também de outras: modificou-se por inclusão, como o próprio Horácio afirma
(inclusa est, v. 76), e assumiu matéria que na origem não era sua, como os casos amorosos,
ficticiamente verdadeiros, supostamente vividos pelos próprios elegistas. Numa palavra, os

 
21

critérios, segundo fonte antiga, têm história, ou seja, mudam. Se mudam, o gênero elegia
nunca pode ser essencialista.
À autoridade antiga de Horácio aponho a contemporânea de M. A. Harder:

Genre in the Aetia


Generically speaking Callimachus' Aetia is a complex poem. In its overaIl
structure one could regard it as aetiological narrative in catalogue-form,
providing the reader with information on a variety of related subjects, and hence
as a poetic work standing in the tradition of Hesiod's Theogony and the pseudo-
Hesiodic Catalogues. This, however, is not the end of the story: within this
framework one can distinguish sev eral kinds of generic allusions –
including experim ents with forms of presentation – , which seem to cl ash
with expectations based on the idea of the Aetia as a poem in the Hesiodic
tradition . Thus, at a meta-poetic level, the Aetia may be regarded as a kind of
generic dialogue in which the old literary ge nr es are an object of reflection .

(Sombreamentos meus)

Ora, se dado gênero poético (no caso, a elegia mesma, a que pertencem os Áitia) admite
espécimes contendo “experimentações que parecem quebrar expectativas” baseadas na
tradição e “um tipo de diálogo em que os antigos gêneros literários são objeto de reflexão”,
não pode ele, ratifico, ser essencialista, porque experimentar e pôr xeque os antigos gêneros –
isto é, os antigos critérios de gêneros que, como se sabe, ainda existiam no período helenístico
– implicam novidade, implicam que o gênero já está necessariamente a transformar-se. Aqui a
transformação é discutida no próprio gênero por ele mesmo, que não era o caso do excerto de
Horácio, que discutiu elegia e outros cinco gêneros numa epístola poética hexamétrica,
diferente de todos eles; em outras palavras, a metapoética genérica é um dos factores da
transformação dos gêneros. Assim, talvez não seja casual que reflexão de tal jaez, embora
incida antes em espécies ou subgêneros, tenha ocorrido não na Ilíada, mas na Odisséia, como
pudemos ver, a segunda epopéia da linhagem do gênero, aquela que supõe a existência da
primeira, da arché, poema anterior de cuja espécie pode tratar. Já pude dizer que nas letras
gregas sempre se refletiu sobre a atividade poética. Pois bem, tal reflexão, depois de Homero,
praticaram-na entre vários poetas e em outros gêneros, Píndaro e Aristófanes, no período
clássico, e Calímaco, no helenístico. A metapoética perpassa, pois, os períodos da história das
letras gregas sem embargo das diferenças intrínsecas entre eles e, embora obviamente não seja
ela o único assunto de metapoemas antigos, distingue-se em meio à matéria vasta que
contenham, porque revelava àquele público procedimentos compositivos e ainda no-los revela
a nós; metapoética patenteia o laboratório poético e o labor do poeta, locução que é apenas um
modo de explicitar hoje o que implicavam outrora os termos poetiké e poiên. Assim sendo, o

 
22

engessamento do conceito específico de gênero e a substituição dele por qualquer outro


conceito elidem aqui o tipo de metapoesia crítica, ou, se se preferir, a reflexão metapoética
acerca de gêneros, que é elemento precípuo e é a virtude mesma dos Áitia, de Calímaco, e é
virtude não-pequena de várias odes de Píndaro e comédias de Aristófanes, e da passagem já
citada da Odisséia: escuro que vez ou outra seja o objeto, na citação de Rotstein é o olhar que
embaça o olhado. Não afirmo apenas que sem a mediação do conceito de gênero se
neutralizam a qüididade e a qualidade dos metapoemas metagenéricos, que é óbvio, mas
confirmo apoiado em Harder o contrário, que a reflexão metapoética inegavelmente presente
nos poemas mencionados, que é uma de suas principais virtudes, só existe porque preexiste –
não os poemas anteriores, igual obviedade – porém o próprio conceito de “gêneros
permeáveis”, isto é, gêneros que se manifestam como conjuntos firmes sim, cujos critérios,
porém, podem modificar-se. É o que afirma Chris Carey33:

As recent scholars have repeatedly emphasised, it is unwise to reify literary


genres to the point of envisaging a set of objectiv e rules – especially for the
archaic and early classical periods . Though the tendency to categorise exists
from the earliest period, the formulation of an explicit grammar of genres
postdates the performance culture of archaic and early classical Greece. E qually,
it is a mistake to view genres as completely homogeneous and distinct. The
boundaries are not fixed but elastic, por ous, negotiable and provisional .
Literary g e nres are best seen not as fixed categories but as tendencies, firm
eno ugh to allow affinities and infl uences to be discernible and to generate a
set of audience expectations, but sufficiently flexible to allow and even tacitl y
invite frustration and redefinition of those expectations. Literary forms exist
and evolve within a dynamic proc ess whereby individual exponents stake a
claim to their own space with in the larger terrain of the genr e; they add, omit,
mix, expand and contract. Genres come into being and pass away . Thus the
victory ode has its origins in the sudden explosion of interest in athletics in the
sixth century BCE and is almost inconceivable before that. The dithyramb
underwent major change during the fifth century, becoming (in the eyes of
contemporary commentators) verbally more ornate and both freer and more
complex musically, with a consequent shift from choral to solo performance.
Though genre boundaries are always imprecise, the case for caution is especially
strong when we attempt to grasp the classification of lyric by those who
composed, performed and experienced it in the archaic and classical periods.
Generic boundaries have none of the neatness they developed in later ages.
Whatever discriminators we use – verse form, civic or individual, solo or group,
spoken or sung, religious or secular – we find overlaps and imprecisions. Paeans
are most commonly performed by groups but are sometimes performed by
individuals; hymns to the gods can be performed in large civic celebrations but
also at symposia. 'Secular' forms such as the victory ode inevitably have a religious
content in a society where sacred and secular always to some degree coexist. The
names of genres attested for the classical period also overlap; categories are
not exclusive. This does not invalidate the attempt to distinguish different
kinds of composition; it does however mean that the borders are imprecise, as
will be immediately appare nt from the discussion which fol lows .

 
23

(Sombreamentos meus)
Este conceito de gênero importou entre outros a Homero, Píndaro, Aristófanes, Calímaco,
Horácio, Harder, Carey ainda que, parecendo equivocado, não tenha importado a Andrea
Rotstein.

4) ORALIDADE E OUTRAS INCONSEQÜÊNCIAS

A permeabilidade mais ampla dos gêneros creio que advém da permeabilidade pontual dos
poemas devida às condições e circunstâncias da performance oral. Gregory Nagy, que em Poetry
as Performance não trata de gêneros, mas da performance de cantos particulares da épica e da
lírica, percebe, creio com perspicácia, que as variantes textuais nos poemas arcaicos não se
devem à incúria ou à interpolação arbitrária dos editores alexandrinos, mas a ser apenas
variantes, possibilitadas pela oralização daqueles “textos”, que na performance recebiam
improvisação dos aedos, virtualmente prevista na partitura, que é o que tais “textos” antes
eram. Ora, se é reapreciado o trabalho dos alexandrinos como filólogos, indissociável dele é
igualmente apreçado seu ofício como críticos e poetas. Afirma Nagy (pp. 137-138):

The credibility of all Alexandrian editors, Aristarchus included, was already


seriously questioned in the eighteenth century by Friedrich August Wolf. In
recent times the work of Marchinus van der Valk is most prominently cited for
sustained polemics against the credibility of all major Alexandrian scholars. [...]
I disagree, arguing that van der Valk's efforts to discredit in general the
reliability of the Alexandrian scholars and in particular the value of the variant
readings that they report must be systematically juxtaposed with the efforts of
earlier scholars like Arthur Ludwich, and even earlier ones like Karl Lehrs, whose
work persuades me that variant readings attributed by later ancient sources to
editors like Aristarchus were just that, variants attested in the extant manuscripts
or manuscript traditions available to these editors, and that these variants did not
as a rule stern from conjectures supposedly made by these editors or by their
predecessors. […]
Further support for the thesis that the Alexandrian editors of Homer
preserved authentic variants come from the work of M. J. Apthorp, who argues
the the editon of Aristarchus, taken as whole, contained practically the sum total
of gebuine Homeric verses.
 
Tendo em mente a performance, Nagy detém-se no problema das variantes textuais e questiona
a perspectiva filológica assumida por Martin West, a quem cita, e de outros filólogos segundo
a qual interpolações e “embelezamentos” distorcem a versão original34 de poemas
pertencentes a certos gêneros, principalmente os poemas homéricos, a tragédia grega e a
comédia plautina. Do modo como procedem tais filólogos, afirma Nagy, as tradições textuais
desses gêneros não estão organicamente relacionadas às tradições de performance: “É como se as
tradições da performance fossem imposições ao texto, em vez de antecedentes históricos do

 
24

texto. Assim, as variações textuais são explicadas segundo as condições textuais e não segundo
as condições performáticas, mesmo quando o meio em questão é evidentemente
performático”. Para tais filólogos, acrescenta, “não é a performance em si mesma que é
responsável pela variação textual, mas o texto usado pelo executor [performer]”. West crê que a
variante advém de um desvio e é problema. Nagy sabe que a variedade advém de circunstâncias
concretas da performance e não é problema algum: é antes a condição mesma do “texto”. Vai
além: apóia-se em Albert B. Lord35, segundo quem a dinâmica da tradição oral ocorre na
tensão entre o canto que se canta em dado momento e os usos prévios que teve. O costume
está oculto, mas é percebido. Surge das profundezas da tradição, passa pela ação de etapas
tradicionais até uma expressão inevitável. Ser insensível a uma consciência deste tipo é perder
o significado não apenas do método oral de composição e transmissão, mas também o
significado da própria épica. Sem tal consciência, as nuances do passado, que dão à tradição a
riqueza do diapasão de um órgão completo, não podem ser percebidas pelo leitor da épica
oral. A audiência natural do aedo a aprecia porque ela é parte da tradição tanto quanto o
próprio cantor”36. Nagy logo percebeu a implicação do que afirma Lord: “Desse ponto de
vista, cada ocorrência de um tema (no nível do conteúdo) ou de uma fórmula (no nível da
forma) em uma dada composição-na-performance refere-se não só ao seu contexto imediato,
mas também a todos os contextos análogos de que o executor ou qualquer integrante da
audiência se lembra”. Ora, evidencia-se, portanto, que à canção arcaica, como espécimen, e à
épica, como gênero, não inere a imutabilidade decorrente de um sentido conservador e
iterativo da tradição – o mesmo único que se repete eternamente – mas a variedade de
matéria e sobretudo de forma: matéria e forma integram o conceito de gênero, e da variedade
delas é que consiste a permeabilidade deste. Nagy admite que deve confrontar sérias objeções
dos classicistas: como uma interpolação feita por um rapsodo qualquer pode equiparar-se às
mesmíssimas palavras de Homero? A resposta reside na dicotomia foucautiana dos conceitos
de autoria e de autoridade, mormente quando se trata de composições orais37. Agora traduzo-o:

o que é, enfim, ser autor numa tradição em que é necessária performance para que
uma canção tenha vida? Aplicando os conceitos de [Milman] Parry e [Albert]
Lord38 de que composição e performance são aspectos do mesmo processo na
tradição oral, penso que autoridade na performance é a chave do próprio conceito de
autoria na composição.
(Itálicos de Nagy)

Nagy lembra39 que o aedo homérico começa a canção orando à Musa e o que cantará é
exatamente o que delas ouve, guardiãs que são das mesmíssimas palavras vindas da idade

 
25

heróica. As palavras de Homero são as que lhe recordaram as Musas, que, filhas de Zeus e
Memória, viram e sabem o que se passou in illo tempore, de modo que aquilo que Homero
narra é exatamente o que as Musas viram, e as falas que Homero cita no que narra é
exatamente o que as Musas ouviram. O que Homero narra e cita não são representações do que
se fez e se falou, são as próprias coisas feitas e faladas. Isto que Nagy disse em 1996 é
importante e, digamo-lo orgulhosamente, não é novidade nos Estudos Clássicos realizados no
Brasil40. Mas ainda não é tudo, e o que segue, como o próprio Nagy salienta, é crucial:
“quando o rapsodo diz ‘contai-me, Musas’ (Ilíada, 2, 484) ou ‘conta-me, Musa’ (Odisséia, 1, 1),
este ‘eu’ não é representação de Homero, é Homero. Meu argumento é que o rapsodo reativa
[re-enact] Homero ao desempenhar [by performing] Homero, que ele é Homero enquanto se
efetua a mímese, enquanto dura a performance. [...] No que toca à mímese, o rapsodo é um
executor recomposto: recompõe-se em Homero toda vez que executa Homero”.
O que Nagy afirma não vale menos para Homero do que para os outros aedos
arcaicos “orais”, e de imediato cabem duas observações: a primeira é que o nome deles,
Arquíloco, Safo, Tirteu etc, se um dia nomeou um aedo – e não há razões para crer que não
tenha nomeado – passou, porém, ainda no período arcaico e de então em diante, a nomear a
autoridade que o nome instaurava no gênero de canções em questão no momento da
performance, de modo que já não faz mais sentido segundo esta perspectiva, que me parece
absolutamente significativa, considerar que os poemas hoje subscritos com o nome de
Arquíloco, por exemplo, tenham sido todos compostos por um aedo da ilha de Paros, nem
sequer excogitar quais seriam do próprio autor, quais não. É de desesperar, contudo, que em
breve tempo vingue a perspectiva, pois que, se os estudiosos ainda têm fixação pela
invidualidade e/ou interioridade em si mesmas, autônomas, como critério teórico, bem
entendido, como poderiam logo desapegar-se da incarnação delas em avatares bem-
apessoados, com nome e endereço certos?
A segunda observação refere-se ao tropo da variedade, que se dá aqui como
matização. Os antigos já no período arcaico chamavam-na poikilía, que, assim como alguns
cognatos, talvez já tivesse acepção técnica. Em Hesíodo o cognato  ποικιλόδειρον  vem aplicado
ao rouxinol41, ave canora que é aqui por sinédoque o cantor, o aedo:

Hesíodo (Trabalhos e Dias, vv. 203-208):


ὧδ' ἴρηξ προσέειπεν ἀηδόνα ποικιλόδειρον Assim o gavião disse ao rouxinol de variegado 42 canto,
ὕψι μάλ' ἐν νεφέεσσι φέρων ὀνύχεσσι μεμαρπώς· ao mais alto das nuvens levando-o preso nas garras,
ἣ δ' ἐλεόν, γναμπτοῖσι πεπαρμένη ἀμφ' ὀνύχεσσι, que, miseravelmente varado por recurvas garras,
μύρετο· τὴν ὅ γ' ἐπικρατέως πρὸς μῦθον ἔειπεν· chorava. Prepotente dizia-lhe estas palavras:
“δαιμονίη, τί λέληκας; ἔχει νύ σε πολλὸν ἀρείων· “Desaventurado, que gritas? Retém-te alguém muito mais forte;
τῇ δ' εἶς ᾗ σ' ἂν ἐγώ περ ἄγω καὶ ἀοιδὸν ἐοῦσαν·   irás aonde eu te levar, mesmo que sejas cantor”.  

 
26

Em Píndaro, já no Período Clássico, o verbo   ποικίλλειν   e o adjetivo   ποικίλον é aplicado à


poética, e o conceito que encerra é encarecido (Píticas, 9, 76-78):

ἀρεταὶ δ' αἰεὶ μεγάλαι πολύμυθοι· Grandes virtudes são sempre muito faladas,
βαιὰ δ' ἐν μακροῖσι ποικίλλειν mas variegar pequenas entre grandes coisas

ἀκοὰ σοφοῖς· ὁ δὲ καιρὸς ὁμοίως é o que ouvem os sábios. O oportuno igualmente


παντὸς ἔχει κορυφάν.   é de tudo o remate.  

(Olímpicas, 6, 85-87):

πλάξιππον Θήβαν ἔτικτεν, τᾶς ἐρατεινὸν ὕδωρ Tebas, domadora de cavalos, cuja amável
πίομαι, ἀνδράσιν αἰχματαῖσι πλέκων onda bebo, enquanto aos varões guerreiros vou tecendo
ποικίλον ὕμνον. variegado hino.  

  Mas em Aristóteles, ainda que tenha ocorrido uma só vez nessa acepção, o próprio
substantivo ποικιλίᾳ já é com efeito termo técnico de poética43:
Aristóteles, Poética, XIII, 1459a, 34:

διὸ ὥσπερ εἴπομεν ἤδη καὶ ταύτῃ θεσπέσιος Por isso, como já dissemos, Homero por este aspecto
ἂν φανείη Ὅμηρος παρὰ τοὺς ἄλλους, τ ῷ parece elevar-se maravilhosamente acima de todos
os outros poetas. Não quis ele poetar sobre toda a
μηδὲ τὸν πόλεμον καίπερ ἔχοντα ἀρχὴν κα ὶ
guerra de Tróia, se bem que ele tenha princípio e fim
τέλος ἐπιχειρῆσαι ποιεῖν ὅλον· λίαν γ ὰρ ἂν (o argumento teria resultado vasto em demasia e,
μέγας καὶ οὐκ εὐσύνοπτος ἔμελλεν ἔσεσθαι ὁ portanto, não teria sido compreendido no conjunto;
μῦθος, ἢ τῷ μεγέθει μετριάζοντα ou então, se fosse moderadamente extensa, também
seria demasiado complexa pela variedade dos
καταπεπλεγμένον τῇ ποικιλί ᾳ .
acontecimentos.

(Tradução de Eudoro de Sousa).

Variações na execução da partitura eram intrínsecas à perfomance, e a variedade, ou


matização (poikilía), era inerente aos poemas e seus gêneros. Entrementes sabemos que a Suda
(s.v. Πολυειδής), com a lexicográfica e habitual brevidade, identifica poikilía a polyéideia,
“pluraridade de gêneros”:

Πολυειδής: πολύμορφος. καὶ Πολυειδία, ἡ Polyéides: polimorfo. Há também a forma


ποικιλία. polyeidía: equivale a poikilía.

Sabemos que πολυειδής   é   formado de πολύ,   “vários”, e   εἴδος,   “gênero”, significa


“multígeno”, “relativo a vários gêneros”. Como termo técnico de poética ocorre numa diegesis,
isto é, num comentário antigo, a um verso do Iambo 13 de Calímaco (frag. 203, Pfeiffer), que é
o seguinte:

 
27

Μοῦσαι καλαὶ κἄπολλον, οἷς ἐγὼ σπένδω· Belas Musas e Apolo, aos quais faço libações!

O comentário na Diegesis 9, 32-35 diz:


Ἐν τούτῳ πρὸς τοὺς καταμεμφομέ- Neste [poema], [dirigindo-se] aos que o repro-
νους αὐτὸν ἐπὶ τῇ πολυειδεί ᾳ ὧν vam pela pluralidade de gêneros de todos poemas
γράφει ποιημάτων ἀπαντῶν φησιν ὅτι que escreve, [Calímaco] diz
Ἴωνα μιμεῖται τὸν τραγικόν·
que imita o tragediógrafo Íon:
ἀλλ' οὐδὲ τὸν τέκτονά τις μέμφεται πολυειδ ῆ
mas ninguém, de facto censura o artífice que faz
σκεύη τεκταινόμενον.
multígenos utensílios.  

 
Ora, como “variedade”, que entendemos ocorrer em cada gênero, quero dizer, no
interior de cada gênero isoladamente, pode equivaler à pluralidade de gêneros? Embora não se saiba
que campo semântico particular a Suda tinha em mente ao abonar a identificação entre poikilía
e polyéideia, se é que tinha algum, creio não ser ilícita a hipótese de que o desejo de variar
devido às sucessivas performances dos cantares nas respectivas reativações que suas autoridades
sofriam podia ensejar que aedos/poetas extrapolassem os limites internos, porosos que fossem,
de cada gênero e agenciassem elementos tópicos ou “regras” ou “leis” de outros gêneros,
vizinhos ou não. A hipótese pressupõe que tais aedos e poetas dominassem as leis de mais de
um gênero – ainda que não os praticassem – possibilidade nada improvável nem mesmo no
período arcaico a julgar pela conhecida presença de Homero nos outros poetas do período. Se
assim for, polyéideia, em perspectiva histórica, de possibilidade avançada que poetas oralmente
versados detinham de variar segundo circunstâncias da performance, veio no período helenístico
bem ao encontro da atividade de poetas-bibliotecários escrituralmente doutos, que não
separavam, já se disse, o ofício crítico, taxonômico – quando refletiam sobre os gêneros,
julgavam a excelência das composições e ponderavam em quais deles elas deviam ser inseridas
– do mester compositivo, poético – quando podiam eles mesmos fazer experimentações com o
cabedal que possuíam – e tornou-se ali então valor explícito, tão apreciado que levou poetas a
não apenas continuar inserindo variações nos poemas que compunham em cada gênero –
tornando-os ainda mais porosos e permeáveis – mas os levou também a ostensivamente praticar
vários gêneros, como prova do próprio engenho, como testemunha a Diegesis. Entenda-se: poikilía
é tropo e, portanto, primeiramente atributo do poema, enquanto polyéideia, primeiro, é
atributo do poeta, “a prática de vários gêneros”, que por extensão predica o poema que
compõe, “poema dotado de, isto é, variegado com elementos de vários gêneros”, e assim então
pode dar-se a sinonímia. Poikilía e polyéideia não são invenção helenística e, assim, não são
exclusivas do Helenismo, mas este foi o período em que elas foram de modo evidente mais
apreciadas. A explicitação emblemática de valores poéticos é particularmente significativa

 
28

quando um período e um autor são eleitos como modelo de imitação, porque esses valores
emblemáticos, imitados ou de algum modo referidos, serão eles mesmos os distintivos com
que os imitadores poderão exibir a própria autoridade, o pedigree poético que possuem: foi este
o caso do período helenístico e de Calímaco para os romanos.

5) REASSUNÇÃO, CERTO APROFUNDAMENTO E ALGUMAS CONCLUSÕES:

1) A aparente facilidade de refletir sobre a poesia mediante conceito de gêneros


começa a desvanecer-se quando se percebe que gêneros têm história – o que implica admitir
que os critérios de pertencimento se transformam ao longo do tempo – e desaparece de vez
quando se reconhece que até mesmo numa determinada época gêneros e seus critérios são
permeáveis, ou, para usar termo de Chris Cary, “porosos”. O termo “lírica” e cognatos
perseveraram, mas não os critérios pelos quais um poema é lírico hoje e foi lírico na
Antigüidade. Assim, o que é axial na definição de lírica desde o Romantismo até hoje –
subjetividade, interioridade e particularidade – não se aplica nem deve aplicar-se ao estudo da
poesia não-épica e não-dramática grega arcaica, conjunto que inclui de imediato três gêneros
– lírica, elegia e iambo – vizinhos entre si todos eles por compartilhar vez ou outra a mesma
matéria e por sempre receber performance vocal e musical, mas diferentes pelos distintos afetos
que afetam e pelos ritmos divergentes em que se embalam. Iambo, como gênero,
desapareceu, assimilado hoje sobretudo pela lírica e pela sátira, e elegia tornou-se espécie
nomeada do gênero lírico. Como então designá-los? Postulamos que já não convém nem é
cabível dizer “lírica” da lírica, da elegia e do iambo antigos, embolados. Malgrado serem
executados musicalmente e compartirem semelhantes senão iguais condições de performance;
não obstante a inexperiência em textos antigos por parte de estudantes neófitos e até do
público culto, mas não especializado; apesar da dificuldade taxonômica didática e até
editorial; sem embargo do facto de que tudo isso conceda uma possibilidade empírica,
acreditamos, contudo, que tratar a poesia antiga a partir do conceito da lírica romântica é
virtualmente uma impossibilidade teórica, porque projeta no tempo e nos homens antigos,
eles mesmos vários e diversos já entre si, princípios, condições, meios, fins, valores e
circunstâncias históricas de um tempo que não é o seu e de homens que lhes não são iguais.
Por conseqüência, a quem utiliza o expediente, em qualquer âmbito pedagógico, mormente
se propedêutico, advertir estudantes e mais leitores sobre a diferença e a decorrente
precariedade do artifício só pode ser obrigatório nos Estudos Clássicos. Mas ainda subsiste a
questão: como designar aqueles três gêneros? Propomos que, dada a advertência, se faça o
que aqui se tem feito: à elegia chamar-lhe apenas “elegia”; iambo chamá-lo só “iambo”, lírica

 
29

chamar-se “lírica” ou “mélica”, quando se trata do período arcaico e clássico, e apenas


“lírica” quando se trata do período helenístico e da poesia romana. Quanto a isso, vimos que
Franscisco Achcar em 1992 utilizou o substantivo “mélica”. Mais tarde, em 2008, Giuliana
Ragusa em Tese de Doutoramento dedica dois capítulos ao problema, “A lírica: desarmando
as armadilhas da nomenclatura” (pp. 8-15) e “A mélica: dificuldades de classificação e
abordagem” (pp. 16-34). Giuliana Ragusa, para tratar da lírica grega arcaica, acolhendo
proposta de Smyth, também utiliza “mélica” e explica:

Se perguntarmos, então, qual a vantagem de “mélica” sobre “lírica”, a resposta


será: o primeiro termo indica, de imediato, um objeto diverso da lírica
moderna, um objeto não-familiar que precisa ser apresentado, conhecido,
percebido. Se o nome “lírica arcaica” leva a pensar em algo que deve ser
semelhante ou igual à lírica moderna, gerando, desse modo, expectativas e
projeções errôneas, o nome “mélica” identifica um objeto desconhecido ao
leitor ou ouvinte não-especializado, para o qual um olhar deve ser constituído.
Daí porque nesta tese, para marcar a diferen ciação de “lírica” nas acepções
antiga e moderna, empregarei “mélica” em lugar de “lírica” na acepção
antiga, evitando, em prol da precisão, o termo substantivo “lírica” em sua
acepção moderna, ou seja, como designação de um conjunto de (sub)gêneros
não - he xamétricos e não - dramáticos de poesia grega antiga que exclui,
certamente, a lírica moderna.
(Sombreados meus).

Com efeito, assim faz e faz bem a meu ver, sobretudo porque logra oportunamente
propor que se incorpore ao português o substantivo “mélica” (p. 12). Faço duas observações
ao texto de Giuliana Ragusa: se substitui “lírica” “na acepção antiga”, como bem diz, por
“mélica”, não pode evitar dizer uma frase como “o termo substantivo ‘lírica’ em sua acepção
moderna”. O problema é a frase “em sua acepção moderna”. Ora, se existe uma lírica
moderna, que é diferente da antiga, não se pode evitar o uso, por quem quer que seja, do
termo para designar, como já faço ao dizer, a “lírica moderna”. Creio que idéia é “empregar
‘mélica’ em lugar de ‘lírica’ na acepção antiga, evitando, em prol da precisão, que o termo
‘lírica’, que deve ser entendido como designação de (sub)gêneros não-hexamétricos e não-
dramáticos de poesia grega antiga, seja entendido na acepção moderna”. É afortunado que
exista um termo como “mélica”, que nos permita referir a lírica antiga sem confundi-la com a
moderna, mas é só feliz acidente, pois que termo moderno há para diferenciar a “épica” de
Homero da “épica” de Camões, que é muito diferente; ou a tragédia de Ésquilo da tragédia
de Corneille? São diferentes, mas têm semelhanças. A segunda observação é mais relevante
porque revela o limite de sua preocupação e o início do nosso dissenso, ou pelo menos, quanto
às afirmações da tese. Quando diz, no fim da passagem, “(sub)gêneros não-hexamétricos e
não-dramáticos de poesia grega antiga” para designar por exclusão a elegia, o iambo e a

 
30

mélica, reproduz a mesma imprecisão genérica que havia com o uso indiscriminado do termo
“lírica”, porque, se são subgêneros, serão subgêneros do quê, senão da mélica, que é aquilo de
que trata, como equivocadamente eram da lírica? Por mais subalternos que sejam os diferentes
subgêneros do mesmo gênero, são sempre congêneres por pertencer a um único gênero, de
modo que, também segundo Giuliana Ragusa, não é incorreto dizer que elegia, iambo e mélica
propriamente dita sejam subgêneros ou espécies da “mélica”. Fica claro que a preocupação dela
na tese é apenas diferenciar a lírica antiga da lírica moderna e não, além desta diferenciação,
diferenciar também elegia e iambo e mélica antigas entre si, embora tivesse aduzido
argumentos suficientes para isso e pudesse perceber justamente o que há de particular no
objeto único que estuda, a mélica de Safo, campioníssima autoridade nesse gênero, quiçá o
único que praticou. Apesar da consciência que Giuliana Ragusa tem da inflação do indivíduo
havida no Romantismo a julgar pela advertência que fez, em si mesma procedente, parece
não querer desonerar-se da unidade que parece haver em tudo que é subjetivo/ interior/
particular, que outra coisa não é do que a “pesada carga semântica que foi lançada às costas”
da lírica, como ela mesma diz. Acabam por ser inconseqüentes seu anti-hegelianismo e anti-
Romantismo. Entretanto, pouco mais tarde, Giuliana Ragusa faz publicar num belo livro –
Lira, Mito e Erotismo (Campinas: Editora da Unicamp, 2011 – obrigatório para quem estuda
mélica e Safo e para quantos gostam de poesia – e muda de opinião. Apresenta tradução do
epigrama 9, 571 da Antologia Palatina, em que faz catálogo dos poetas líricas, e diz:

Diante das dificuldades, penso ser adequada a terceira opção terminológico-


semântica, em geral menos adotada: mélica, em substituição à lírica no sentido
antigo, que mantém a distinção entre esse gênero e a elegia, o jambo e epigrama.
Note-se que o adjetivo “mélico” foi escolhido para os títulos das edições mais
importantes do corpus da mélica.

Ainda que deseje marcar a diferença entre “mélica” e “lírica”, o importante é que distingue
qualquer uma delas de um lado e de outro elegia, iambo e epigrama. Menciona o artigo de
Davies sobre monodismo e coralismo (p. 41), embora mantenha a distinção pela utilidade (p.
42).
2) A variedade, poikilía, e a polyéideia, “cultivo de vários gêneros”, de costume
consideradas tão helenísticas, são de facto arcaicas e já desfrutavam de bom apreço no
período. O termo ποικιλία, tendo sido empregado com seus cognatos como sinédoque do
aedo – tropo que, creio, deve implicar tecnicidade poética – torna-se explícito termo técnico
em Aristóteles: já não é sinédoque de aedo, senão o próprio tropo da variedade e, assim
sendo, é, primeiro, atributo do poema. Polyéideia no período arcaico, conjecturo, é o potencial
que o aedo tem de praticar vários gêneros, ainda que não os pratique, que lhe acarreta a

 
31

possibilidade de inserir nas composições de determinado gênero variações mediante inclusão


de elementos de outros gêneros. Nesse sentido, seria a extrapolação das possibilidades de
variação internas de determinado gênero. No Período Clássico e sobretudo no Helenístico
polyéideia é já a ostensiva prática de vários gêneros, para ostender a própria excelência poética.
3) Historicidade e permeabilidade dos gêneros conseguem-lhes que não sejam
“essencialistas”, o que por seu turno implica que não é necessário substituir “gênero” por
outro conceito que atenda à permeabilidade. Procurando refletir a respeito de suas causas,
encontramos as ponderações de Nagy sobre as implicações que a performance tem no “texto”
original do autor e correlativamente na autoria. Nagy, apoiado em nada menos do que
Millman Parry e Albert Lord, postula que no momento da execução o aedo, o intérprete,
justamente por ser imprescindível para a existência da canção como tal ali e então, reativa o
“autor”, isto é, torna ativo o “autor” naquele momento e assim torna-se ele mesmo,
intérprete, habilitado e autorizado não só a desempenhar o canto como também inserir
variações que julgar pertinentes, de modo que nem o “autor” é autor, mas “autoridade”,
como já advertia Michel Foucault, nem as variações / variantes são desvios do “texto”
original, como quer West, mas, no dizer de Nagy, tecidos de canção que são costurados nas
versões anteriores sem que se percam na unidade as partes constituintes. Não é outro, como
argumenta, o sentido de “rapsodo”, senão “costurador”, nem o de “texto”, senão o de
“tecido”. As reflexões ainda hoje basilares de Michel Foucault, sobre que se apoiam os pilares
mais importantes do edifício argumentativo de Nagy, já não sobre “autor”, mas sobre “obra”
e principalmente sobre “escrita” são por demais pertinentes aos problemas de “autoria”,
“texto”, “versão original”, “interpolação” (sobremodo porque tais problemas estão sob a égide
da oralidade), para ser ignoradas por nós classicistas quando tratamos do Período Arcaico das
letras gregas. Por incrível que pareça, não tratava de oralidade nem do Período Arcaico
grego, quando apontava que a noção de “obra” e a materialização que lhe dá a escrita é que,
concorrendo para que se transcendentalizem e se fixem o “autor”, “obra” e o estilo, acabam
por demandar que se interprete e se comente este “autor”, que, creio, é exatamente o que
fazemos quando atribuímos “autoria” em vez de “autoridade”. Não seria difícil: se com o
“próprio Homero” não se conseguiu deixar de enfim perceber que, como autor, ele jamais
existiu nem assim compôs a Ilíada nem a Odisséia, por que não estender o critério a todos os
poetas arcaicos. Como diz Paul Veyne sobre outra questão, porém atinente aos Estudos
Clássicos, simplesmente está tudo por fazer.
4) Quanto a isso, pois, nos Estudos Clássicos brasileiros e estrangeiros a oralidade da
poesia arcaica, posta em evidência por Milman Parry, recebe historicamente particular e justo

 
32

apreço e responde no Brasil pelo prestígio dos próprios poetas arcaicos nos cursos de
graduação e pós-graduação, muitas vezes em injusto detrimento da poesia helenística, tão
escritural, bibliófila e bibliômana. Entretanto, de modo deveras curioso, assume-se a oralidade
de bom grado e com justeza, mas não se assumem ulteriores implicações dela, como, a meu
ver, a inexistência de autor, autoria e “texto” autêntico, tal como hoje entendidos. A isso
chamei acima “acolhimento inconseqüente da condição oral e performativa” da elegia, do
iambo e da mélica arcaicos. Assim, como há apego ao eixo unificado subjetividade /
interioridade / particularidade, há outrossim apego a autor e sua suposta autoria original e
originária: não se trata de coincidência e não se pode negar haver coerência no equívoco,
pois, se se admite que subjetividade / interioridade / particularidade não podem existir senão
naquele suposto único gênero lírico, tão una e única é a pessoa em que habitavam, é
compreensível que não se consiga conceber que essa pessoa única não seja o único autor de
tudo aquilo que é entendido como a unicamente possível expressão da própria subjetividade /
interioridade / particularidade. Bem pelo carácter originário, isto é, pela condição de começo,
de arché, mesmo que eterna e potencialmente provisório (nunca se sabe o que se há de achar) e
pela conseqüente fundamentalidade para o estudo de poesia antiga, estudo que não se detém
naquele período, mas extravasa e invade a consideração de toda produção posterior, grega e
romana, a consideração teórica de toda poesia antiga grega e latina na pós-graduação e
sobretudo na graduação (que é também arché) está a merecer ao menos a oportunidade para a
perspectiva de Gregory Nagy, que, como ele mesmo diz, radica nas reflexões de Michel
Foucault. Assim ocorreu no curso de Literatura Brasileira da USP, cuja pluralidade de
perspectivas só aumentou quando se acolheu a tese de João Adolfo Hansen, ela mesma
fundamentada em Foucaut, para considerar a produção poética do Seiscentos em Portugal,
Espanha e Brasil, ainda que debruçada sobre Gregório de Matos e Guerra. A desarticulação
das noções de autoria, obra e escritura que a tese comprova possibilitou reconsiderar, entre
outras coisas, as condições em que se produziu a poesia do Seiscentos, seus meios e fins.
Lemos e vemos de outro modo tal poesia, veríamos de modo menos pessoal, autoral e
escritural a poesia antiga, mesmo a escrita, como a romana, cuja “autoria” é certa.
Assumiríamos em maior grau mais elementos da (im)pertinência da produção antiga para nós
hoje, quer pela reeduçação do olhar sobre os antigos, quer pela admissão de que o que
possuímos deles, mormente os arcaicos, é só fixação de um momento em meio a uma sucessão
de mudanças, adaptações e apropriações, que necessariamente obriga, por assim dizer, não
um olhar fotográfico, que taxidermiza um dos 24 quadros, mas um olhar cinematrográfico
que não acha incômodo que o objeto se mova.

 
33

5) Desse modo, só pode ser com alvoroço no coração ver Homero Múltiplo, de André
Malta Campos (São Paulo: Edusp, 2012), quer pela perspectiva dinâmica que o título
anuncia, quer em particular pelo capítulo sete, “O Tradutor e o Rapsodo Redivivo”, em que
propõe apanhar mediante tradução momentos (“quadros?”) diferentes de um poema, como a
Ilíada e Odisséia. O ensaísta acolhe, enfim, a perspectiva de Gregory Nagy e Albert Lord para
analogamente propor para o que chama “retradução”, que funcionaria “mimetizando as
possibilidades que se abriam ao cantor épigo grego” (p. 256). As retraduções de André Malta
Campos seriam análogas, digo eu, às reedições de Leaves of Grass, de Walt Whitman. Cita
excerpto da resenha, feita por Nagy, de uma tradução da Ilíada, em que propõe que a
diagramacão do que seria o multitexto de Homero apresente as variantes verticais (alternância
do número de versos) e horizontais (variantes textuais).

 
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Notas do Capítulo 1
                                                                                                               
1 Marylin Skinner (2003, p. xxxiv): “Genre is the quintessential means for monitoring the procress of
reading a Latin text”. Acredito que o seja também para a leitura de textos gregos. Dois artigos de L. E.
Rossi são quintessencias “I Generi Letterari e Loro Leggi Scritte e non Scritte nelle Letterature
Classiche e “La Letteratura Alessandrina e il Rinovamento dei Generi Letterari della Tradizione”.
2 Menciono na tradução de Carlos Alberto Nunes (2004, p. 37) a distinção que pela voz de Penélope

Homero (Odisseia, I, 325-344) já fazia no epos heroico entre a espécie bélica, ela mesma subdividida
entre gestas de herois, que própria Ilíada é, e gestas de deuses, como é qualquer Titanomaquia [βροτῶν
ἔργ' ἀνδρῶν τε θεῶν] e os cantos de retorno [νόστοι]:

τοῖσι δ' ἀοιδὸς ἄειδε περικλυτός, οἱ δὲ σιωπῇ 325 Todos, em volta, escutavam silentes o aedo famoso,
εἵατ' ἀκούοντες· ὁ δ' Ἀχαιῶν νόστον ἄειδε que lhes cantava o retorno [νόστον] funesto que Palas Atena
λυγρόν, ὃν ἐκ Τροίης ἐπετείλατο Παλλὰς Ἀθήνη. houve por bem decretar ao voltarem de Tróia os Aquivos.
τοῦ δ' ὑπερωϊόθεν φρεσὶ σύνθετο θέσπιν ἀοιδὴν Dos aposentos de cima escutou a cantiga divina
κούρη Ἰκαρίοιο, περίφρων Πηνελόπεια· a virtuosa Penélope, filha de Icário. Resolve,
κλίμακα δ' ὑψηλὴν κατεβήσετο οἷο δόμοιο, 330 sem  mais  demora,  baixar  pelas  longas  escadas  da  casa,    
οὐκ οἴη, ἅμα τῇ γε καὶ ἀμφίπολοι δύ' ἕποντο. mas não sozinha, que duas criadas ao lado a acompanhavam.
ἡ δ' ὅτε δὴ μνηστῆρας ἀφίκετο δῖα γυναικῶν, Quando a divina mulher o lugar alcançou onde estavam
στῆ ῥα παρὰ σταθμὸν τέγεος πύκα ποιητοῖο, os pretendentes, no umbral se deteve de bela feitura,
ἄντα παρειάων σχομένη λιπαρὰ κρήδεμνα· tendo as feições escondidas num véu de lavor admirável.
ἀμφίπολος δ' ἄρα οἱ κεδνὴ ἑκάτερθε παρέστη. 335 De cada lado lhe fica uma serva de espírito casto.
δακρύσασα δ' ἔπειτα προσηύδα θεῖον ἀοιδόν· Lágrimas verte copiosas e ao divo cantor se dirige:
“Φήμιε, πολλὰ γὰρ ἄλλα βροτῶν θελκτήρια οἶδας “Fêmio, canções diferentes tu sabes, que os homens encantam
ἔργ' ἀνδρῶν τε θεῶν τε, τά τε κλείουσιν ἀοιδοί· gestas [ἔργα] de heróis e de deuses, que os vates gloriosos propagam.
τῶν ἕν γέ σφιν ἄειδε παρήμενος, οἱ δὲ σιωπῇ Dessas, lhes canta qualquer, e que todos te escutem silentes,
οἶνον πινόντων· ταύτης δ' ἀποπαύε' ἀοιδῆς 340 vinho a beber. Não prossigas, porém, nessa história tão triste,
λυγρῆς, ἥ τέ μοι αἰὲν ἐνὶ στήθεσσι φίλον κῆρ que o coração se me aperta no peito ao ouvir-te a cantiga,
τείρει, ἐπεί με μάλιστα καθίκετο πένθος ἄλαστον. o que acontece dês que a incomportável saudade me aflige,
τοίην γὰρ κεφαλὴν ποθέω μεμνημένη αἰεὶ pela querida cabeça, que sempre à memória me ocorre,
ἀνδρός, τοῦ κλέος εὐρὺ καθ' Ἑλλάδα καὶ μέσον Ἄργος.”
pelo varão, cuja fama em toda Hélade e em Argos se estende”.

(Texto grego: Homeri Odyssea; ed. von der P Mühll. Basel: Helbing & Lichtenhahn, 1962. Tradução de
Carlos Alberto Nunes).
3 Ainda que trate dos poetas, a asserção de Eliot no ensaio “Tradição e Talento Individual” (1989, p.
38-39) é atinente aos Estudos Clássicos: “Todavia, se a única forma de tradição, de legado à geração
seguinte, consiste em seguir os caminhos da geração imediatamente anterior à nossa graças a uma
tímida e cega aderência a seus êxitos, a ‘tradição’ deve ser positivamente desestimulada. Já vimos
muitas correntes semelhantes se perderem nas areias; e a novidade é melhor do que a repetição. A
tradição implica um significado muito mais amplo. Ela não pode ser herdada, e se alguém a deseja,
deve conquistá-la através de um grande esforço. Ela envolve, em primeiro lugar, o sentido histórico,
que podemos considerar quase indispensável a alguém que pretenda continuar poeta depois dos vinte
e cinco anos; e o sentido histórico implica a percepção, não apenas da caducidade [pastness] do
passado, mas de sua presença”. (Tradução de Ivan Junqueira).
4 Todos estes gêneros são aqueles cuja elocução (λέξις) Platão, depois Aristóteles, chama “mista”,
porque parte é narrada pelo poeta (hoje diríamos “narrador”), parte é falada pelas próprias
personagens, isto é, é a reprodução, a imitação da própria fala das personagens:

 
35

                                                                                                               
 
Platão, República, 3, 392c: Quanto às fábulas, ponhamo-lhes fim. A
–Τὰ µὲν δὴ λόγων πέρι ἐχέτω τέλος· τὸ seguir, deve estudar-se o que concerne à
δὲ λέξεως , ὡς ἐγὼ οἶµαι, µετὰ τοῦτο elocução , como creio, e então teremos
σκεπτέον, κα ὶ ἡµῖν ἅ τε λεκτέον καὶ examinado por inteiro o que se diz [ἅ, “as
ὡ ς λεκτέον παντελῶς ἐσκέψεται.
coisas”, isto é, a matéria, os temas] e como
[...]
[literalmente ὡς].
Platão, República, 3, 392d: [...]
− Ora, tudo que dizem os prosadores e
– ἆρ' ο ὐ πάντα ὅσα ὑπὸ µυθολόγων ἢ
ποιητῶν λέγεται διήγησις οὖσα poetas não é narração do que foi ou do que é
τυγχάνει ἢ γεγονότων ἢ ὄντων ἢ ou do que será ?
µελλόντων; − Que mais poderia ser ?
– Τί γάρ, ἔφη, ἄλλο; − E não é facto que eles a executam por meio
– Ἆρ' ο ὖν ο ὐχὶ ἤτοι ἁπλῇ διηγήσει ἢ de simples narrativa ou por meio da
διὰ µιµήσεως γιγνοµένῃ ἢ
δι' ἀ µφοτέρων περαίνουσιν;
imitação, ou por meio de ambas ?

Aqui “misto” é dito “por meio de ambas” (δι'ἀµφοτέρων). Logo adiante, Platão ratificando a distinção
já com exemplos, de novo utiliza:

Ὀρθότατα, ἔφην, ὑπέλαβες, κα ὶ οἶµαί σοι


−   Percebeste muito bem, e creio que já te é
ἤδη δηλο ῦνὃ ἔµπροσθεν ο ὐχ ο ἷός τ' ἦ, evidente o que antes não pude demonstrar-
ὅτι τ ῆς ποιήσεώς τε κα ὶ µυθολογίας ἡ te; que da poesia e da prosa há uma toda por
µὲν δι ὰ µιµήσεως ὅλη ἐστίν, ὥσπερ σ ὺ imitação , como dizes que é a tragédia e a
λέγεις,τραγῳδία τε κα ὶ κω µῳδία, ἡ δὲ comédia, uma por meio de narração do próprio
δι' ἀπαγγελίας α ὐτοῦ τοῦ ποιητοῦ –
εὕροις δ' ἂν α ὐτὴν µάλιστά που ἐν poeta − tu a encontras sobretudo nos
διθυράµβοις – ἡ δ' αὖ δι' ἀ µφοτέρων ἔν ditirambos − e uma por meio de ambas,ambas na
τε τῇ τῶν ἐπῶν ποιήσει, πολλαχοῦ δὲ καὶ poesia épica e em muitos outros lugares, se
ἄλλοθι, εἴ µοι µανθάνεις.
me me compreendes.  

(Tradução de Carlos Alberto Nunes).


5 Estética. Poesia. Tradução de Álvaro Ribeiro.
6 Consta “anterior” na edição utilizada. Trata-se de evidente lapso de grafia.
7 A locução lírica “propriamente dita” eu a li no Paula da Cunha Corrêa, p. 56, que, porém, não está
ali a tratar da oposição entre lírica, elegia e iambo.
8 Grimal, pp. 115, 143 e 217 respectivamente.

9 In Bandinelli (org.), Storia e Civiltà dei Greci. Vol. 2, pp. 383-384.


10 Adrados, pp. 172 e 182 respectivamente.
11 West (1993, p. iii), itálicos meus.
12 Gerber, p. 76.
13 Novak & Neri, pp. 39 (bucólica); 91 (epodo); 105, 125, 131 e 161 (elegia); 231 e 261 (epigrama).
14 Francisco Achcar (33, nota 23); logo adiante, transcrevo mais longamente e comento este excerto. O
livro é oriundo de Tese de Doutoramento homônima (1992), que é a primeira pesquisa brasileira em
Letras Clássicas a pôr em tela o problema da diferença entre as líricas antiga e romântica.
15 Oliva Neto (1996), p. 43: “Assim, aos feitos de César, reconhecidos no poema 11, porém já
exorbitantes a ponto de atrair soez adulação, o poeta – função da lírica ab origine – os recoloca no lugar
ao dizer: ‘pouco me importa, César, querer te agradar/ nem quero saber se és grego ou troiano
(poema 93)’.
16Paula da Cunha Corrêa, Armas e Varões: a Guerra na Lírica de Arquíloco. São Paulo Fundação Editora da
Unesp, 1998, pp. 183, 77, 93, 166, 101, 112, 256, 248, 264 e 156 respectivamente; sublinhado meu.

 
36

                                                                                                               
17 Friedrich G. Schneidewin, Delectus Poesis Graecorum Elegiacae, Iambicae, Melicae. Sectio II et III Poetae
Iambici at Melici. Edidit Friedrich G. Schneidewin. Gottingae: apud Vandehoeck et Ruprecht, 1838.
18 Denys Page, Poetae Melici Graeci. Alcmanis, Stesichori, Ibyci, Anacreontis, Simonidis, Corinnae, Poetarum

Minorum Reliquias, Carmina Popularia et Convivialia Quaeque Adespota Feruntur. Oxford: Clarendon Press,
1962.
19 Malcolm Davies, Poetarum Melicorum Graecorum Fragmenta. Volumen I: Alcman, Stesichorus, Ibycus.
Oxford University Press, 1991.
20 Martin West, Iambi et Elegi Graeci ante Alexandrum Cantati. Vol. 1. Archilochus, Hipponax, Theognidea.

Oxonii: E Typographeo Clarendoniano, 1971. Vol. 2, Callinus, Mimnermus, Semonides, Solon, Tyrtaeus,
minora adespota, 1972.
21O título da resenha, que traz o título do livro, é: “Bruno Gentili, Carmine Catenacci, Polinnia: Poesia
Greca Arcaica. Terza edizione. Firenze: G. D'Anna Casa, 2007”. Bryn Mawr Classical Review, 2008.04.23
em http://bmcr.brynmawr.edu.
22 Excluo a poesia hexamétrica romana epistolar e satírica, como as Epístolas de Horácio e as Sátiras
dele, de Juvenal e Pérsio, primeiro porque não existiam os gêneros Epístola e Sátira no período arcaico
e no helenístico, e, segundo, porque o próprio Horácio, sem embargo de ser em verso, não as
considera poesia.
23 Com exceção do livro de Paula da Cunha Corrêa, o qual, com tratar apenas de um autor, a
coincidir com o critério de Lucia Athanassaki, poderia no título prescindir do termo “lírica”.
24 Entre livros que não mencionei cabe salientar passagens de quem cava a diferença:
a) Albin Lesky, Historia de la Literatura Griega (pp. 132-133):
Lo lírico como idea que aspira a realizarse dentro de una forma determinada de la creación poética
aún está ausente de la antigua teoría de arte. Si en el helenismo se afianza la expresión “lírico”
(λυρικός), ésta tiene un sentido bien concreto: una poesía que se cantaba al son de la líra. Y si, en
el canon de los nueve poetas líricos, los alejandrinos reúnen a los maestros de la lírica monódica,
Alceo, Safo y Anacreonte, con los poetas corales, Alcmán, Estesícoro, Íbico, Simónides, Baquílides
y Píndaro, se trataba ciertamente de creaciones en las que se suponía como acompañamiento un
instrumento de cuerdas (λύρα, φόρμιγξ, κίταρις), ya solo, ya con flauta. En este sentido escribió
sobre los líricos (περὶ λυρικῶν) Dídimo, también aquí intermediario entre los alejandrinos y el
período del Imperio Romano. Lo dicho nos enseña que el concepto antiguo de la lírica abarcaba
dos tipos importantes: la lírica coral y el canto individual, sin que esta separación, tan
esencial para nosotros, se hubiera manifestado en la antigua teoría de arte. Pero al mismo
tiempo reparamos en el hecho de que no estaban inc luidos dos tipos que hoy en dia
consideramos líricos: la elegía y el yambo . Podemos suponer que, en estos dos, ya en épocas
tempranas había enmudecido el canto, mientras que, en el sentido antiguo, la lírica como
género musical daba por sentado el canto. A esta se agregaba otra diferencia de
importancia, al menos para la elegía. Su instrumento de acompañamiento era la flauta
( ἀ υλός ) , lo cual la excluía de la lírica en el sentido más estricto de la palabra.

(Itálicos do original, sombreados meus).


b) Hermann Fränkel, “IV, Ancient Lyric”, Early Greek Poetry and Philosophy (p. 133, nota 4):
Here, deviating from the ancient usagem by ‘lyric’ we mean short poems of various sorts and in
various meters, including elegiac.
O livro, cujo título original é Dichtung und Philosophie des fruhen Griechentums, foi iniciado em 1921 e
concluído em 1948.
25 Orientada por Paula da Cunha Corrêa. São Paulo, DLCV / FFLCH / USP, 2008.
26 Francisco Achcar (p. 33, nota 23).  

 
37

                                                                                                               
27 Malcolm Davies (p. 52): “Open any history or hand-book of Greek literature in general, or Greek
lyric in particular, and you will very soon come across several references to monody and choral lyric as
important divisions within the broader field of melic poetry. And the terms loom larger than the mere
question of handy labels: they permeate and pervade the whole approach to archaic Greek poetry.
Chapters or sub-headings in literary histories bear titles like ‘Archaic choral lyric’ or ‘Monody’. Indeed
it is possible to write a whole book and call it Early Greek Monody. Diehl’s Anthologia Lyrica Graeca was
structured around this distinction, which it adopted in preference to the chronological arrangement
that is the obvious alternative. Indeed, it went so far as ‘to invent Greek titles ‘μονοιδίαι’ and
‘χωροιδίαι’ (sic). Most scholars would now agree that this is to go too far. But most would also continue
to accept the validity and importance of the division, which a scholar has recently termed ‘the most
fundamental generic distinction within ancient lyric poetry’”. Na mesma página aborda o inescapável
problema do “eu”: “Two separate sets of reasons have started to cast doubt on the orthodoxy outlined
above: our increased knowledge of the poetical output of the early lyrics, especially Stesichorus; and
an increased sen sitivity about the significance of the first person singular references in
allegedly choral poets , especially Pindar”. E enfim escava a origem romântica distinção entre
monodia e coro (pp. 58-60):
“III. THE NINETEENTH CENTURY AND THE ORIGIN OF THE DISTINCTION
In the context of German scholarship the distinction appears as a self-evident truth in the influential
writings of the brothers Schlegel. Thus in lectures originally delivered in Berlin in 1802/3 we find
August Wilhelm Schlegel stating ‘es ist ausgemacht, dass das Chorische einen eignen Styl in der
lyrischen Poesie der Alten ausmacht’ .This forms part of an elaborate subdivision of Greek lyric
whereby choral poetry is assigned to the Dorians, ‘melic’ (here equivalent to monody) to the Aeolians,
elegy and iambus to the Ionians, and dithyramb to Attic poets. Such oversimplifications are, of course,
very helpful for the composition of lucid literary history, and even more useful for the delivery of (and
note-taking at) lectures. The younger Friedrich Schlegel had already committed very much the same
distinction to print in writings that are still influential upon the general view of Greek literature held by
beginners, writings whose brilliance evoked the admiration of so stern a judge as Wilamowitz.
As far as classical scholarship in its narrower sense is concerned, the distinction was
incorporated into K. O. Muller's History of the Literature of Ancient Greece. The first volume of this famous
work was begun in England in 1836 and published, after its author's premature death in Greece, in
1840. Chapter XIII is entitled ‘The Aeolic School of Lyric Poetry’, its first section ‘Difference between
the Lyric Poetry of the Aeolians, and the Choral Lyric Poetry of the Dorians’. Here the familiar
distinction appears fully-blown and in complete outline: the Lesbian school and the Doric ‘differ
essentially in every respect, as much in the subject, as in the form and style of their poems’. The
alleged contrasts between the two types of composition are expressed in practically identical terms to
those found in, for instance, Bowra's Greek Lyric Poetry: the greater length of stanza, the elaborateness of
the metre, the triadic structure, the relatively public (rather than personal) tone and content which
supposedly identify choral lyric and set it apart from monody: all receive their mention here as there.
No-one who has read Bowra's brief summary of the purported facts and then turns to Muller's diffuser
treatment will doubt for a moment that the latter's doctrine, however indirectly and whatever the
intermediate stages of transmission, is the ultimate source for the former’s. This is hardly surprising,
since Muller's History was both successful and respected. Wilamowitz writing in the year 1921, called
is ‘not only the most readable [history of Greek literature] in existence but the only one that is genuine
history’”. (Sombreados meus).
Reconhecendo que a questão mereça aprofundamento, creio que a bibliografia de Bowra
tenha sido a porta pela qual a mais-valia da oposição entre monodia e coro tenha ingressado na USP,
a julgar pelos cursos de Literatura Grega que ali freqüentei na segunda metade dos anos 1980, e na
Universidade Brasileira, mercê da centralidade do Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas
da USP nos Estudos Clássicos brasileiros desde 1971, quando foi criado até a criação de Programas
semelhantes em Minas Gerais, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul.
28 Bruno Gentile (1990: 9), Annali dell’Istituto Universitario Orientale di Napoli, XII (1990), p. 9.

29 Vernant, p 32; HES. Op. 25-26.

 
38

                                                                                                               
30 Rotstein, pp. 6-7.
31 Tradução de Izabella Lombardi Garbellini. DIOMEDES, “Dos Poemas” (Arte Gramatical, Livro III).
Letras Clássicas, 9 (2005). São Paulo: Humanitas, pp. 231-243.
32
“Quando viene preso in considerazione anche il tempo, [tamen] è da tradursi con però, finalmente,
ma finalmente”. C. E. Georges / Calonghi (2634, s. v. tamen, II). Negrito e itálico do original.
33 Chris Carey, “Genre, Occasion and Performance”, pp. 21-22.
34 Gregory Nagy (28-29): “From a survey of Martin West’s handbook on textual criticism, we see from
the precise wording of his descriptions that the most likely candidates are 1) Greek tragedies, ‘which
suffered extensively from interpolations by actors (or at any rate for their use), probably more in the
fourth century BCE than at any later time [Textual Criticism and Editorial Tecnique; Stuttgart, 1973, p. 16,
citando Page, Actors Interpolations in Greek Tragedy, Oxford, 1934], 2) the comedies of Plautus, ‘which may
have undergone something of the sort on a smaller scale in the second century [ibidem] and 3) the
Homeric poems, through the ‘embellishment’ of rhapsōidoí ‘rhapsodes’ as reflected in quotations by
authors of the fourth century and in the attested papyri, especially those dated before the middle of the
second century [ibidem, citando Stephanie West, The Ptolemaic Papyri of Homer, Papyrologyca
Coloniensia 3, Colônia / Opladen, 1967].
In West’s descriptions here, as also in most accounts written by Classicists, the textual
traditions of ancient tragedy, comedy, and epic are not organically related to the performance
traditions of these three forms. It is as if the performance traditions were impositions on the text, rather
than historical antecedents of the text. Thus textual variations are explained in terms of textual rather
than performative conditions even when the medium in question is overtly performative. It is not the
performance itself that is held accountable for textual variation, but the text that is used by the
performer. Thus the so-called ‘actors’ interpolations’ are invoked to explain textual change in drama.
Where epic, too, is concerned, West explains the existing patterns of textual variation in terms of
textual causes: the ‘embellishment’ of rhapsodes, he notes, is primarily characterized by ‘additional
lines of an inorganic nature often borrowed from other contexts’.
35Albert B. Lord, The Singer of Tales. Cambridge, Massachussets: Harvard University Press, 1960, pp.
66 e 94-97.
36 Albert B. Lord (1960: 94), citado por Nagy (50): “Where the association is not linear, it seems to me
that we are dealing with a force or ‘tension’ that might be termed ‘submerged.’ The habit is hidden,
but felt. It arises from the depths of the tradition through the workings of the traditional processes to
inevitable expression. And to be numb to an awareness of this kind of association is to miss the
meaning not only of the oral method of composition and transmission, but even of epic itself. Without
such an awareness the overtones from the past, which give tradition the richness of diapason of full
organ, cannot be sensed by the reader of oral epic. The singer’s natural audience appreciates it
because they are as much part of the tradition as the singer himself”.
37 Gregory Nagy (19): “what is it, in any case, to be an author in any tradition where performance is
needed to make a song come to life? Applying the observation of Parry and Lord that composition and
performance are aspects of the same process in oral traditions, I suggest that authority in performance is
a key to the very concept of authorship in composition”.
38O livro de Milman Parry citado é The Making of Homeric Verse: The Collected Papers of Milman Parry; org.
de A. Parry, Oxford, 1971.
39 Gregory Nagy (60-61): “The singer of Homeric poetry begins the song by praying to his Muse:
‘sing!’ (Iliad I, 1) or ‘tell me!’ (Odyssey, I, 1). What he then tells his audience is supposed to be exactly
what he hears from the Muse or Muses, goddesses of memory, who are conceived as the infallible
custodians of the ipsissima verba emanating from the Heroic Age. The words of Homer are supposed to
be the recordings of the Muses, who saw and heard exactly what had happened in that remote age;
therefore, what Homer narrates is exactly what the Muses saw, and what Homer quotes within his
narrations is exactly what the Muses heard. When a Homeric hero is quoted speaking dactylic
hexameters, it is to be understood that heroes ‘spoke’ in dactylic hexameters, not that they are being
represented as speaking that way. Further, and this is crucial for the argument at hand, when the

 
39

                                                                                                               
rhapsode says ‘tell me, Muses!’ (Iliad, II, 484) or ‘tell me, Muse!’ (Odyssey, I,1), this ‘I’ is not a
representation of Homer: it is Homer. My argument is that the rhapsode is re-enacting Homer by
performing Homer, that he is Homer so long as the mimesis stays in effect, so long as the performance
lasts. In the words of T. S. Eliot (The Dry Salvages, 1941), ‘you are the music / While the music lasts’.
From the standpoint of mimesis, the rhapsode is a recomposed performer: he becomes recomposed
into Homer every time he performs Homer. (Itálicos de Gregory Nagy).
40 Refiro-me ao professor José Antônio Alves Torrano, da Universidade de São Paulo, que muito
tempo antes de Nagy, em 1980, aprofundando reflexões de Walter Friedrich Otto, postulava em
pioneira dissertação de mestrado estas mesmas idéias (1981: 15-16): “Nesta comunidade agrícola e
pastoril anterior à constituição da pólis e à adoção do alfabeto, o aedo (i.e. o poeta-cantor) representa o
máximo poder da tecnologia de comunicação. Toda a visão de mundo e consciência de sua
própria história (sagrada e/ou exemplar) é, para este grupo social, conservada e transmitida
pelo canto do poeta. É através da audição deste canto que o homem comum podia romper os
restritos limites de suas possibilidades físicas de movimento e visão, transcender suas
fronteiras geográficas e temporais, que de outro modo permaneceriam infranqueáveis, e
entr ar em contacto e contemplar figuras, fatos e mundos que pelo poder do canto se tornam
audíveis, visíveis e presentes. O poeta, portanto, tem na palavra cantada o poder de
ultrapassar e superar todos os bloqueios e distâncias espaciais e temporais, um poder que só
lhe é conferido pela M emória ( Mnemos ý ne ) através das palavras cantadas (M usas). Fecundadas
por Zeus pai, que no panteão hesiódico encarna a Justiça e a Soberania supremas, a Memória gera e
dá à luz as Palavras Cantadas, que na língua de Hesíodo se diz Musas. Portanto, o canto (as Musas) é
nascido da Memória (num sentido psicológico, inclusive) e do mais alto exercício do Poder (num
sentido político, inclusive). O aedo (Hesíodo) se põe ao lado e por vezes acima dos basilêis (reis), nobres
locais que detinham o poder de conservar e interpretar as fórmulas pré-jurídicas não-escritas e
administrar a justiça entre querelantes e que encarnavam a autoridade mais alta entre os homens. Esta
extrema importância que se confere ao poeta e à poesia repousa em parte no facto de o poeta ser,
dentro das perspectivas de uma cultura oral, um cultor da Memória (no sentido religioso e no da e
eficiência prática), e em parte no imenso poder que os povos ágrafos sentem na força da palavra e que
a adoção do alfabeto solapou até quase destruir. Este poder da força da palavra se instaura por uma
relação quase mágica entre o nome e a coisa nomeada, pela qual o nome traz consigo, uma vez
pronunciado, a presença da própria coisa”. Assim também (19): “Durante milênios, anteriores à
adoção e difusão da escrita, a poesia foi oral e foi o centro e o eixo da vida espiritual dos povos, da
gente que, – reunida em torno do poeta numa cerimônia ao mesmo tempo religiosa, festiva e mágica,
– o ouviam. Então, a palavra tinha o poder de tornar presentes os fatos passados e os fatos futuros
(Teogonia, vv. 32 e 38), de restaurar e renovar a vida (idem, vv. 98-103).
Mas sobretudo a palavra cantada tinha o poder de fazer o mundo e o tempo retornarem à sua
matriz original e ressurgirem com o vigor, perfeição e opulência de vida com que vieram à luz pela
primeira vez. A recitação de cantos cosmogônicos tinha o poder de pôr os doentes que os ouvissem em
contacto com as fontes originárias da vida e restabelecer-lhes a saúde, tal o poder e impacto que a
força da palavra tinha sobre seus ouvintes”. (Sombreados meus).
41Homero, servindo-se da mesma sinédoque do rouxinol, emprega sinonimicamente o adjetivo
πολυδευκέα:

Odisséia, 19, 518-523:

ὡς δ' ὅτε Πανδαρέου κούρη, χλωρηῒς ἀηδών, Do mesmo modo que Aédona, a fila de Pandareu quando
καλὸν ἀείδῃσιν ἔαρος νέον ἱσταμένοιο, a primavera nos chega, entre a copa folhuda das árvores
δενδρέων ἐν πετάλοισι καθεζομένη πυκινοῖσιν, um canto triste e variado,
variado que muda, constante, de ritmo,
ἥ τε θαμὰ τρωπῶσα χέει πολυηχέα φωνήν,
a se carpir pelo filho que teve de Zeto potente
παῖδ' ὀλοφυρομένη Ἴτυλον φίλον, ὅν ποτε χαλκῷ Ítilo caro, que a bronze matara, do senso sendo privada.  
κτεῖνε δι' ἀφραδίας, κοῦρον Ζήθοιο ἄνακτος·

 
40

                                                                                                               

– palavra assim glosada por Cláudio Eliano (De Natura Animalium, 5, 38):

ἤδη μέντοι τινὲς κα ὶ πολυδευκέα φωνὴν Alguns já escrevem   πολυδευκέα, “voz que imita
γράφουσι τ ὴν ποικίλως μεμιμημένην, ὡς variegadamente” [em vez πολυηχέα, “voz de muitos sons”],
τὴν ἀδευκέα τ ὴν μηδ' ὅλως ἐς μίμησιν assim como em sentido oposto foi derivada a palavra  
παρατραπεῖσαν. ἀδευκέα, “voz que absolutamente nada imita”.  

Friedrich Jacobs em 1832 assim traduziu para o latim para a edição (Jena: Impensis Friderici
Frommani, Bibliopolae et Typographi, MDCCCXXXII):
In his non πολυηχέα id est, “multisonam”, sed πολυδευκέα scribunt nonnulli, et interpretantur
“vocem varie imitantem”; ut ἀδευκέα contra, quae “ad nullam prorsus imitationem” sit composita.
Registro que algumas edições (Homeri Odyssea; ed. P. Von der Mühll, Basel: Helbing & Lichtenhahn,
1962; Homer, Odyssey; 2 vol. with an English translation by A. T. Murray revised by George E.
Dimock, Cambridge, Massachussets / London England, 1998) já trazem a lição πολυδευκέα.
42Acolho leitura de Nagy (p. 59), que seguira argumento de E. Irwin, Colour Terms in Greek Poetry.
Toronto: A. M. Hakkert Limited, 1974, pp. 72-73.
43 Ver importante discussão de David C. Young (“Pindar, Aristotle, and Homer: A Study in Ancient
Criticism”) sobre duas acepções de poikilía, ambas técnicas, “ornamento” e “variedade”,
particularmente pp. 168-170 e notas 40 e 41, em que entre outras ocorrências arroladas menciona
excertos dos escólios antigos a Homero, que posteriores a Aristóteles, ou seja, em época helenística ou
às suas vésperas, testemunham o emprego técnico de poikilia como “variedade”: “As a literary or
rhetorical term, poikilía doe not occur elsewhere in Aristotle’s extant works. Our passage, therefore,
may lie behind the appearance of the term poikilía in later hand books and scholia, e.g., the scholia to
the Iliad, which Richardson shows to be heavily Aristotelian (p. 266). Some examples have an
unmistakably Aristotelian flavor: ‘But the poet creates length and variety [μῆκος ἃμα καὶ ποικιλίαν]
by the inactivity of Zeus (BT, 13, 1)’. Richardson cites many occurrences of poikilía and poikílein in these
scholia and associates passages that speak of ‘relieving the monotony’ (ὁμοειδές, BT 7, 17)”. O artigo
citado de N. J. Richardson é “Literary Criticism in the Exegetical Scholia to the Iliad: A Sketch”. Na
mencionada página 266, Richardson aponta passagem muito significativa em que o escoliasta (BT, 13,
219) afirma que Homero é philopóikilos, “afeito à variedade” e elenca todas ocorrências de poikilía no
escólio BT de Homero.

 
41

CAPÍTULO 2

De como o Gênero Épico Teve Raptadas as Espécies Ditas


“Didácticas”: Genealógica, Agrícola, Astronômica, Bucólica,
Filosófica, Haliêutica, Cinegética e Quiçá Outras

1) SUETÔNIO (DIOMEDES) OU DO “GÊNERO” DIDÁCTICO

Se, ao considerar a amplitude da poesia épica para os antigos gregos e latinos, nos
restringirmos, mercê do peso com que solitariamente têm preponderado na crítica e na
historiografia das letras gregas e latinas desde então, aos critérios de Aristóteles e de Horácio em
suas Poéticas, não haverá território genérico demarcado com termos antigos para poemas e poetas
como Teogonia e Trabalhos e Dias, de Hesíodo, e assim também as Geórgicas, de Virgílio; Os
Fenômenos de Arato de Solos, e assim também as Astronômicas, de Manílio; Da Natureza das Coisas, de
Lucrécio, as Metamorfoses, de Ovídio, entre outros. No entanto, os testemunhos de Diomedes (ou
Suetônio), por um lado, e por outro, da Crestomatia, de Proclo; das Instituições Oratórias, de
Quintiliano; da Biblioteca, de Fócio e dos Escólios em Teócrito, atribuem àqueles poemas um
lugarzinho ao sol entre os gêneros e as espécies da poesia, embora o façam diferentemente.
Enquanto para Diomedes / Suetônio os poemas em tela são didácticos, para Proclo, Quintiliano,
Fócio e o escoliasta de Teócrito, eles são simplesmente épicos, desde que em português passemos
a entender adjetivo “épico” como aquilo que diz respeito ao gênero do epos. A grande maioria dos
42

estudiosos modernos acolheu o critério aristotélico para não considerá-los épicos, associando-o ao
critério de Diomedes / Suetônio para sim considerá-los didácticos. Se esta posição na absoluta
maioria dos estudiosos modernos é pacífica, devo dizer também que é pacificada, porque sugere
haver unanimidade onde não há, sugere haver pacto onde há dissenso. Só o facto de haver entre
os antigos uma opinião desviante e inconseqüente sobre qualquer questão legitimaria, por amor
da precisão, pensá-la. Mas nem a opinião é desviante, a não ser façamos hoje de Aristóteles o
aiatolá Khomeíni da teoria poética antiga, nem é inconseqüente. Assim como é justo que a
grande maioria dos comentadores modernos não se dedique à questão por ser irrelevante às
prioridades deles, assim também não é injusto que outros se ponham a investigá-la quando
percebem que é fundamental para as suas. Segundo o conjunto das fontes – Proclo, Quintiliano,
Fócio e o escoliasta de Teócrito – Teogonia, Trabalhos e Dias, Geórgicas, Os Fenômenos, Da Natureza das
Coisas, Idílios, são inequivocamente épicos, o que não bastou, porém, a que se admitisse mais
explicitamente haver certo dissenso entre as teorias antigas, e muito menos a que se dispusesse a
investigar em que radica esse dissenso. Para ser exato, veremos que segundo o conjunto das fontes
os Idílios de Teócrito e as Bucólicas, de Virgílio, também são épicos, o que implica incluir
Calpúrnio da Sicília e Nemesiano entre autores de epos. Pondo a questão em outras palavras, uma
postura é não aceitarmos, nós hoje, a validade da teoria dos gêneros, outra é crer que os antigos
não a tenham aceitado. Assim também, uma postura é não aceitar que aqueles poetas sejam
épicos, quer porque não admitimos que épica inclua matéria não-bélica – que me parece ser o nó
górdio da questão –, quer simplesmente porque Aristóteles e Horácio não os consideravam
épicos, numa espécie de aristotelismo e horacianismo hegemônicos; outra é não admitirmos, a
despeito de nossas imposturas, que aqueloutros teóricos antigos os classificavam como épicos,
conforme veremos.
“Poesia didáctica”, assim como em Diomedes / Suetônio, é o termo ainda hoje utilizado
para designar não só a matéria agrária de Hesíodo, senão ainda a matéria astronômica de Arato
em grego e Manílio em latim, e a matéria filosófica de Lucrécio1. Seja a terra, sejam estrelas, seja
a filosofia, “canta-se” para ensinar o que é digno de saber. Mas encontraram-se alternativas
taxonômicas. Uma delas foi designar aqueles poemas como “literatura sapiencial”2 (“Wisdom
Literature”3), termo consagrado por Martin West no estudo a Trabalhos e Dias, e assim
preponderantemente voltado aos poemas hesiódicos. Embora seja inegável que os poemas de
Hesíodo se inserem em antiga tradição sapiencial do Levante, não é de negar tampouco que as
43

circunstâncias imediatas do processo de composição, já em contexto helênico, em grande medida


são ainda as mesmas dos poemas de Homero, com quem, além disso, mais de uma vez Hesíodo
emulou, e que a recepção coeva do poema, cujo metro é o mesmo, apresenta os mesmos
protocolos dos poemas homéricos, o que veio a determinar, pois, segundo a posterior teoria dos
antigos, congeneridade entre uns e outros poemas a despeito de toda diferença. Assim, por
correta e adequada que seja a consideração moderna de West sobre Hesíodo, voltada
diretamente aos próprios poemas e sua organicidade, ao compará-los antes, e ironicamente, a
similares no Leste, fora do âmbito grego, ele passa ao largo de certa teorização genérica que deles
os antigos fizeram, segundo a qual os poemas de Hesíodo são épicos a despeito de Aristóteles e
Horácio. Martin West simplesmente não está preocupado com o epos.
Outra solução, mais recente, foi o termo “didactic epic”, que não sendo designação
vicária intra muros, já que empregada em importantes obras gerais, talvez seja – para quem
pretende, como espero, tomar a questão pela raiz – designação, por assim mineiramente dizer,
supra murum, menos porque revela pavor de tomar partido, senão porque, como aquela Helena,
mulher de Menelau e Páris, tem o condão de (querer) contentar gregos e troianos: os poemas em
tela não deixam de ser didácticos, nem deixam de ser épicos4, além de servir para incluir num
subconjunto só uma série de espécies sui generis que tenderiam ao infinito5. Facécia à parte, não é
pequena a importância do termo porque pressupõe enfim que Hesíodo, Arato, Opiano, Lucrécio
e Manílio, são épicos. Integrarão uma “épica didáctica”, que não seria nome ruim se isonômica,
necessária e complementarmente sempre se opusesse a uma “épica heróica”, mas é ainda
imperfeito porque pode com duas palavras opor-se a uma “épica propriamente dita”, ou seja “a”
épica. Outro argumento é que, embora épos e didascalikós sejam ambos termos antigos, a locução
épos didascalikón não é.
Como o adjetivo “didáctica” ocorre numa designação antiga modernamente utilizada e
numa designação recentemente surgida, começo por tratar do termo didaskalikós, que as
fundamenta. Passo em seguida a Aristóteles e Horácio, que subjazem ao mainstream dos estudos
contemporâneos sobre teorização poética dos gêneros antigos, e depois ao que chamo “outra
teoria”.
Suetônio / Diomedes6:

Poematos genera sunt tria. aut enim Três são os gêneros de poema. Um é o ativo ou
actiuum est uel imitatiuum, quod Graeci imitativo, que os gregos chamam dramatikón ou
dramaticon uel mimeticon; aut enarratiuum mimetikón; outro é o narrativo ou enunciativo, que os
44

uel enuntiatiuum, quod Graeci exegeticon gregos chamam exegetikón ou apangeltikón; o terceiro é
uel apangelicon dicunt, aut commune uel o comum ou misto, que os gregos chamam koinón ou
mixtum, quod Graeci κοινὸν uel micton miktón. É dramatikón ou ativo aquele em que só as
appellant. dramaticon est uel actiuum in personagens agem, sem nenhuma interlocução do
quo personae agunt solae sine ullius poetae poeta, como ocorre nas fábulas trágicas e cômicas;
interlocutione, ut se habent tragicae et neste gênero foram escritas a primeira Bucólica e
comicae fabulae; quo genere scipta est aquela cujo início é “Aonde teus pés te levam,
prima bucolicon et ea cuius initium est: ‘quo Mero?”7. É exegetikón ou narrativo aquele em que o
te Moeri pedes?’ exegeticon est uel próprio poeta fala, sem nenhuma interlocução de
enarratiuum in quo poeta ipse loquitur sine personagens, como ocorre nas três primeiras Geórgicas
ullius personae interlocutione, ut se habent e na primeira parte da quarta, e também no poema de
tres georgici et prima pars quarti; item Lucrécio e em outros que lhes são semelhantes. É
Lucreti carmina et cetera his similia. κοινὸν koinón ou comum aquele em que o próprio poeta fala
est uel commune in quo poeta ipse loquitur e se introduzem personagens que falam, conforme
et personae loquentes introducuntur, ut est foram compostas toda Ilíada e a Odisséia, de Homero,
scripta Ilias et Odyssia tota Homeri et a Eneida, de Virgílio, e outros que lhes são
Aeneis Vergilii et cetera his similia. semelhantes.

Até aqui Suetônio, assim como Aristóteles, não fez mais do que repetir o critério platônico para
dividir a poesia em gêneros segundo o sujeito da fala: se apenas o poeta fala (dizemos hoje o
narrador), se só falam as personagens, se os dois falam. É discussão cabível, mas não aqui, por
que o critério que era útil em Platão foi reutilizado sem as mesmas finalidades por outros
pensadores. A vertente “didáctica”, que terá imensa fortuna nos comentadores contemporâneos,
enfim, aparecerá como espécie do gênero narrativo:

(Poematos) exegetici uel narratiui species As espécies do gênero de poema exegético ou


sunt tres, angeltice, historice, didascalice. narrativo são três: premonitória8, histórica e didáctica.
angeltice est qua sententiae scribuntur, ut Premonitória é a aquela em que se escrevem
est Theognidis liber, item chriae. historice máximas, como o livro de Teógnis e as coletâneas de
est qua narrationes e genealogiae sentenças. Histórica é aquela em que se compõem
conponuntur, ut est Ησιόδου γυναικῶν narrativas e genealogias, como o Catálogo das
κατάλογος et similia. didascalice est qua Mulheres, de Hesíodo, e semelhantes. Didáctica é
comprehenditur philosophia ut Empedoclis aquela que abarca a filosofia, como a de Empédocles e
et Lucreti, item astrologia, ut phaenomena a de Lucrécio, e também a astrologia, como Os
Ἀράτου et Ciceronis, et georgica Vergilii et Fenômenos, de Arato e de Cícero, e as Geórgicas, de
his similia. Virgílio, e o que lhes é semelhante.
Κοινοῦ uel communis poematos Do gênero comum a primeira espécie é a
species prima est heroica ut est Iliados et heróica, como a Ilíada e a Eneida, a segunda é a lírica,
Aeneidos, secunda est lyrica ut est Archiloci como os poemas de Arquíloco e Horácio.
et Horatii.

Reparo apenas que a epopéia em sentido estrito, entenda-se, como narração de gesta heróica, é
uma subespécie do gênero comum. Suetônio mantém o critério platônico da repartição dos
gêneros e aprofunda-o ao especificá-los tematicamente. Seu mérito é que, percebendo que todos
esses poemas são apenas exegéticos, reserva-lhes lugar em vez de omiti-los ou de excluí-los.
45

Entretanto, cabe lembrar aqui que o caráter didáctico não é exclusivo daquela espécie de
poemas, já que, em ambiente arcaico grego, anterior à constituição da Filosofia como prática e da
Retórica como arte, era uma das funções mesmas do poeta (“o poeta ensinou a Grécia”, diz
Platão de Homero9) e após o advento da Retórica, quando explicitamente se pôde considerar
poema como discurso, pois que implicitamente sempre fôra, ensinar (διδάσκειν, docere) era também
uma das funções de qualquer discurso, prescrita na elocução. Assim, Homero, Apolônio de Rodes
e Virgílio da Eneida, que são épicos, não tiveram menos intenção de ensinar do que os
didascálicos Arato de Solos, Manílio, Lucrécio e até Teócrito, que, conforme aquela parte da
teoria, não eram menos. No caso de Suetônio percebe-se que astrologia e filosofia estar
constituídas como saberes específicos pesa de modo particular, tanto é que vêm nomeadas.

2) ARISTÓTELES E HORÁCIO

Diz Aristóteles na Poética (1447a, 13-16)10:

ἐποποιία δὴ καὶ ἡ τῆς τραγῳδίας ποίησις ἔτι A epopéia e a poesia trágica, bem como a comédia, a
δὲ κωμῳδία καὶ ἡ διθυραμβοποιητικὴ καὶ τῆς poesia ditirâmbica, a aulética e a maior parte da
αὐλητικῆς ἡ πλείστη καὶ κιθαριστικῆς πᾶσαι citaródica são todas em geral imitações:
τυγχάνουσιν οὖσαι μιμήσεις τὸ σύνολον·

Em suma epopéia é imitação. Em seguida, indicará sobre quê incide a imitação:

1448a, 27:

μιμοῦνται γὰρ ἄμφω σπουδαίους ambos [Homero e Sófocles] imitam homens virtuosos;

1449b,10:
μίμησις εἶναι σπουδαίων. é imitação de homens vituosos.

E dizendo por completo é imitação de ações e caracteres superiores a nós (1448a, 1-5):
Ἐπεὶ δὲ μιμοῦνται οἱ μιμούμενοι πράττοντας, Mas como os imitadores imitam homens que paraticam
ἀνάγκη δὲ τούτους ἢ σπουδαίους ἢ φαύλους alguma ação, e estes, necessariamente, são indivíduos
εἶναι (τὰ γὰρ ἤθη σχεδὸν ἀεὶ τούτοις de elevada ou baixa índole (porque a variedade de
ἀκολουθεῖ μόνοις, κακίᾳ γὰρ καὶ ἀρετῇ τὰ ἤθη
caracteres só se encontra nestas diferenças [e, quanto a
caráter todos os homens se distinguem pelo vício ou
διαφέρουσι πάντες), ἤτοι βελτίονας ἢ καθ'
pela virtude]), necessariamente também sucederá que
ἡμᾶς ἢ χείρονας ἢ καὶ τοιούτους, ὥσπερ οἱ os poetas imitam homens melhores, piores ou a nós,
γραφεῖς. como os pintores.

Ora, percebe-se que o critério prioritário com que Aristóteles visa à matéria da epopéia, e
não só dela, pode-se propriamente chamar “ético”11, pois que em substância é virtude ou vício, e
46

como ele mesmo diz sempre e apenas virtude ou vício, de que ações e caracteres são só
manifestações. Embora a sombra de Homero e os exemplos da Ilíada e da Odisséia estejam sempre
presentes, ou talvez, para ele, por isso mesmo, Aristóteles não indica12, dentre essas ações e
caracteres virtuosos e superiores, quais são aqueles adequados, senão próprios da épica, como
fará Horácio (Ars, vv. 72-73), com epistolar brevidade:

Res gestae regumque ducumque et tristia bella As gestas de reis e de chefes, as tristes guerras
quo scribi possent numero, mostrauit Homerus. em que ritmo podem ser descritas Homero mostrou13.

Ora se assim é, é assim inferível que para Aristóteles poemas como Trabalhos e Dias, e as
Geórgicas, Da Natureza das Coisas, Os Fenômenos, Astronômicas não só não seriam épicos, como nem
sequer seriam poesia, porque não são imitação de ações e caracteres de homens superiores. No
caso do poema de Hesíodo, que lhe é anterior, os diligentes trabalhos da terra, designados
embora por ἔργα, que poderiam ser tomados como um tipo de ação, por piedosos que fossem, são
tão obrigatórios e imediatos, que não caracterizam ação de homens superiores, mas iguais.
Aristóteles ratifica seu critério pelo que diz acerca do tratado de física de Empédocles, versificado
em hexâmetros, e dos textos historiográficos de Heródoto14, de modo que excluiria analogamente
os tratados da terra, de astronomia e de filosofia epicurista15, porque eles, tratando do que é
particular, não se inserem, apesar da versificação, no seu critério de poesia.
Quanto a Horácio, é preciso cautela. Na Poética segue a seu modo algo da doutrina de
Aristótetes16, de modo que a matéria épica que ele sim indica, bélica (tristia bella), exclui ali, na
Poética, os poetas e poemas mencionados. Entretanto, Horácio reverencia Virgílio e as Geórgicas, e
reconhece na Sátira 1 (veremos adiante) as Bucólicas como epos. A brevidade com que na Poética
Horácio por razões próprias tratou da epopéia talvez explique por que escolheu no gênero apenas
a espécie mais elevada, a heróica, e Homero, que é o inventor. Como quer que seja, o
incensamento que receberam as Poéticas concorreu para que se consagrasse o critério e para que
identificando-se o mais elevado, retórico-poéticamente falando, ao melhor, se considerasse menor
os poemas das espécies menos elevadas.

3) A OUTRA TEORIA

a) Proclo / Fócio (Biblioteca, 319a, 8-21)17:


Καὶ ὅτι τὸ ἔπος πρῶτον μὲν ἐφεῦρε Φημονόη ἡ E que a epopéia foi descoberta por Femônoe,
Ἀπόλλωνος προφῆτις, ἑξαμέτροις χρησμοῖς profetisa de Apolo, que proferia oráculos em
hexâmetros; como os acontecimentos 'seguiam'
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χρησαμένη· καὶ ἐπειδὴ τοῖς χρησμοῖς τὰ [εἵπετο = “seguir”] seus oráculos, e se


πράγματα εἵπετο καὶ σύμφωνα ἦν, ἔπος τὸ ἐκ harmonizavam com eles, o que se compunha nesse
τῶν μέτρων κληθῆναι. Οἱ δέ φασιν ὅτι διὰ τὴν metro foi chamado epos, [ἔπος]. Dizem outros que
κατασκευὴν καὶ τὴν ἄγαν ὑπεροχὴν τὴν ἐν τοῖς
por causa da boa ordenação e da grande
superioridade observada nos hexâmetros, o
ἑξαμέτροις θεωρουμένην τὸ κοινὸν ὄνομα
hexâmetro se apropriou da designação comum de
παντὸς τοῦ λόγου τὸ ἑξάμετρον ἰδιώσατο καὶ qualquer palavra, [isto é, épos] e foi chamado épos =
ἐκλήθη ἔπος καθάπερ καὶ Ὅμηρος τὸν ποιητὴν epopéia [“a palavra”, por excelência], exatamente
καὶ ὁ Δημοσθένης τὸν ῥήτορα ᾠκειώσατο, ἐπεὶ como Homero foi chamado “o poeta”, e
καὶ τὰ τρίμετρα ἔπη προσηγόρευον. Γεγόνασι Demóstenes, “o orador”, pois também se chamavam
épos os trímetros [iâmbicos]. Os melhores poetas
δὲ τοῦ ἔπους ποιηταὶ κράτιστοι μὲν Ὅμηρος,
épicos são Homero , Hesíodo , Pisandro 1 8 ,
Ἡσίοδος, Πείσανδρος, Πανύασις, Ἀντίμαχος.
Paníase 1 9 , Antímaco 20. Proclo estuda cada um
Διέρχεται δὲ τούτων, ὡς οἷόν τε, καὶ γένος καὶ
deles, indicando na medida do possível, família,
πατρίδας καί τινας ἐπὶ μέρους πράξεις.
pátria e alguns feitos particulares.

b) Suetônio (De Poetis, Reifferscheid, p. 17, 1-15):


epos dicitur Graece carmine hexametro Em grego diz-se épos do canto hexamétrico que
diuinarum rerum et heroicarum contém ações divinas, heróicas e humanas, que os
humanarumque comprehensio; quod a Graecis gregos dizem exatamente assim: ἔπος ἐστὶν περιοχὴ
ita definitum est, ἔπος ἐστὶν περιοχὴ θείων τε θείων τε καὶ ἡροικῶν καὶ ἀνθρψπίνων πραγμάτων.
καὶ ἡροικῶν καὶ ἀνθρψπίνων πραγμάτων. Em latim, é mais comum usar a palavra carmen. O
Latine paulo communius carmen auditur. epos primeiro a escrever em latim um epos digno desse
Latinum primus digne scripsit Ennius, qui res nome foi Ênio21, que em dezoito livros reuniu as
Romanorum decem et octo complexus est libris gestas dos romanos e deu-lhes o título de Anais, bem
qui et annales scribuntur, quod singulorum fere porque contêm eventos praticamente ano a ano (tal
annorum actus contineant, sicut publici annales como os anais públicos que os pontífices e os
escribas elaboram), ou Romaida porque narram
quos pontifices scribaeque conficiunt, uel
gestas de romanos. Mas, como preferem dizer os
Romais, quod Romanorum res gestas declarant.
gregos “epos deriva de seguirem-se as partes
epos autem appellatur, ut Graecis placet, παρὰ
posteriores às primeiras”. Mas na verdade, o verso
πό ἕπεσθαι 
ἐν αὐτῷ

 ἑξῆς μέρη τοῖς πρώτοις.
hexâmetro é chamado precipuamente epos, porque
pracipue vero hexameter versus epos dicitur,
foi com este verso que o deus vate primeiro
quoniam quidem hoc versu verba responsi in exprimiu as palavras da resposta que, por assim
mutuam, ut sic dixerim, consequentiam primus assim dizer, se seguiam na sua vez de falar; daí mais
deus vates conprehendit, unde postea abusive tarde por catacrese decorre o sentido de “palavra”, e
verbum et solutae orationis ipsa scriptura “epos” depois por outros veio a designar a própria
consequens an aliis epos dictum. escrita do texto em prosa.

Reparo em Proclo e Suetônio as seguintes semelhanças: primeiro a ligação etimológica, que


sabemos falsa22, entre ἔπος e o verbo ἕπομαι, voz média de ἕπω, “seguir”, cognato do latino
sequor, com que ambos traduzem ou explicam em latim o verbo grego; segundo, a idéia de que as
antigas respostas oraculares eram hexamétricas, e, terceiro, a posterior utilização trópica do
termo para designar “palavra”. Diferem porque Proclo nomeia a sacerdotisa e Apolo, ao passo
que Suetônio nem a menciona, e designa Apolo por perífrase (“o deus vate”, deus vates). Enquanto
em Proclo a generalização de ἔπος até significar “palavra” se deu por antonomásia, que ele não
48

explicita, mas indica, em Suetônio deu-se por catacrese (abusive, OLD s.v. 1). Mas as diferenças
importantes são as seguintes: Suetônio, citando fonte grega anônima, sugere outra ligação
etimológica, agora entre o advérbio ἑξῆς, hexês (“um depois do outro) e hexameter, que é termo
grego só escrito em latim, que ocorre logo na linha seguinte. O significado de ἑξῆς é praticamente
o mesmo de “seguir”, ἕπω. Com isso, Suetônio, na sua peculiar etimologia, logra, porém,
relacionar ontologicamente – para ele, bem entendido – o epos e o hexâmetro mediante a mesma
noção de “seguimento” que crê haver em ambos. Chega até a definir epos nas duas línguas: épos é
o “canto hexamétrico que contém ações divinas, heróicas e humanas” (epos […] carmine hexametro
diuinarum rerum et heroicarum humanarumque comprehensio / ἔπος ἐστὶν περιοχὴ θείων τε καὶ ἡροικῶν καὶ
ἀνθρψπίνων πραγμάτων). Proclo não chega a tanto, mas arrola enfim entre os poetas de epos, a
bem dizer, entre poetas simplesmente épicos, o “didáctico” Hesíodo – e o que é pior!, oh céus! – a
ladear, entre outros, também aquele vetusto, heróico, guerreiro e sanguinário Homero. Permito-
me agora – que é esse, afinal, o escopo de reunir e pensar as fontes –, pelo mútuo esclarecimento
entre Proclo e Suetônio, interpretar que as ações divinas (θείων πραγμάτων, diuinarum rerum) são
aquelas que os deuses realizam nas gigantomaquias e teogonias, como a de Hesíodo; as ações
heróicas (πραγμάτων ἡροικῶν, rerum heroicarum) são aquelas que os heróis realizam, como na Ilíada,
Odisséia, Argonáuticas, a Eneida; e as ações humanas (ἀνθρψπίνων πραγμάτων, rerum humanarum) são
aquelas que homens como nós realizam ou podem realizar, como nos Trabalhos e Dias, de
Hesíodo; Da Natureza das Coisas, de Lucrécio, nas Bucólicas e Geórgicas, de Virgílio. Parece-me
evidente que na seqüência “ações divinas”, “ações heróicas” e “ações humanas” há o contrário da
gradação, isto é, a degradação. Assim sendo, tomando o caso de Virgílio, já não se é obrigado a
apelar para os termos da arte retórica, que não é arte poética, como mostra Aristóteles, para dizer
que a Eneida é mais elevada do que as Geórgicas, que são mais elevadas que as Bucólicas. É bem
verdade que Aristóteles assim faz na própria Poética quando, comparando ações e caráter dos
seres imitados, os divide em “melhores do que nós” e “piores do que nós” e exemplifica utilizando
epopéia e tragédia para os primeiros, e comédia e drama satírico para os segundos. Aristóteles
exemplifica com gêneros diferentes. Mas se quisermos manter-nos num único gênero, como o
épico, e também quisermos discriminar espécies que contenha, segundo caráter e ações de
personagens, não é na Poética aristotélica que encontraremos essa teorização explícita, voltada
para a poesia: ou encontramos alguma teorização na Poética, mas não explícita, e então teremos
que inferir, que é o que se tem feito, ou encontraremos mais distante ainda na Retórica, e então
49

teremos que proceder por analogia. Porém, temos em Suetônio (ou Diomedes, que seja) essa
teorização, explícita e voltada para a poesia, pelo que Suetônio por isso e para isso é mais
adequado que o aiatolá Aristóteles. Não impugno (como, pois?) a inferência e a analogia, só
proponho que no estudo de poesia esgotemos primeiro os recursos da poética antes de apelar para a
retórica. Já se percebeu que alguns conceitos de poética se mantiveram por muito tempo e foram
reproduzidos pelos tratadistas posteriores (adiante tornarei a isso). Todavia, outras vezes não
foram, o que mostra, no mínimo, circulação sim, mas também embate de idéias, a estraçalhar de
vez o conceito de clássico como sistema coeso, que funcionaria como aqueles antigos relógios
suíços, na poética, na retórica e em toda parte. Torno a Horácio, por quem passei de passagem, e
retorno primeiro ao mesmo passo da Poética (vv. 82-83):

Res gestae regumque ducumque et tristia bella As gestas de reis e de chefes, as tristes guerras
quo scribi possent numero, mostrauit Homerus. em que ritmo podem ser descritas Homero mostrou.

Suetônio não reproduziu Horácio. Sendo evidente que conhecia a Arte Poética, o que, pois, está em
Horácio que Suetônio quis completar? Ou por outro viés, propondo que tratados de poética
sobre o mesmo gênero épico possam outra vez e sempre iluminar-se, mesmo retrospectivamente,
que discriminação de epos há no verso 82 de Horácio? Pois creio que seria banalíssimo truísmo
entender que Horácio esteja a falar apenas de Homero; que ducum, “chefes”, seja aposto de regum,
“reis”, muito embora os chefes na Ilíada sejam reis em seus países. Na história do gênero épico, as
espécies têm importância diferente: a epopéia histórica tem mais relevância entre romanos do que
entre gregos. Horácio tem muito atrás de si Homero e os heróis míticos do começo mesmo da
épica, mas tem logo atrás de si no próprio começo da épica romana duas epopéias de matéria
histórica, o Bellum Punicum, de Névio, e os Anais, de Ênio. Parece-me, portanto, que, ao falar de
reis, Horácio fala só daqueles que são reis, como são os heróis de Homero, e está a referir-se,
então, ao que chamamos hoje “epopéia mitológica”, porque estes reis, ainda que sejam chefes, só
estão no mito. E parece-me também que Horácio, ao falar de chefes, fala daqueles que só podem
ser chefes, que jamais são reis, como são os generais da república romana, e está a referir-se,
então, ao que chamamos hoje “epopéia histórica”, porque estes chefes, ainda que alguém os
queira fazer míticos, foram antes históricos. Na história da épica romana há a Odisséia latina, de
Lívio Andronico, em versos satúrnios, o que me parece implicar que Horácio alfim está a criticá-
lo, pois diz que o metro para épica, seja mitológica, seja histórica, é o hexâmetro dactílico.
50

Torno a Horácio também para exemplificar muito brevemente uma semelhança e outra
vez tirar alguma alguma centelha, quiçá uma chama, do atrito, digamos assim, entre os
testemunhos. Diz ele na Poética (vv. 83-85), pouco adiante:

Musa dedit fidibus diuos puerosque deorum A Musa deu à lira cantar deuses e filhos de deuses
et pugilem uictorem et equom certamine primum o vencedor pugilista e o cavalo primeiro na corrida
et iuuenum curas et libera uina referre. os cuidados dos jovens e o vinho que liberta.

Embora a lírica não seja assunto deste capítulo, lembro que Horácio em três versos descreve com
aquela torturante brevidade cinco espécies líricas:

→ lírica hínica no cantar deuses (referre diuos, v. 83) mediante hinos;

→ lírica laudatória ou encomiástica no cantar filhos de deuses, isto é, reis, príncipes


ou heróis (referre pueros deorum, v. 83) mediante encômios.

→ lírica epinícia no cantar os vencedores (pugilem uictorem et equom certamine primum, v.


84), isto é, mediante epinícios;

→ lírica erótica no cantar os cuidados de amor juvenil (iuuenum curas, v. 85), mediante
odes;

→ lírica convivial ou simpótica no cantar o prazer dos banquetes e o refrigério de


males que é o vinho (libera uina, v. 85) mediante escólios.

Posto que lírica e épica sejam gêneros diferentes, o critério subjacente em Horácio para
descrever as espécies líricas, porém, é o mesmo com que Suetônio degradativamente descreve as
espécies épicas: o item a), lírica hínica no cantar deuses (referre diuos) corresponde ao canto de ações
divinas (comprehensio diuinarum rerum); o item b), lírica laudatória ou encomiástica no cantar filhos

de deuses, reis, príncipes e heróis (referre pueros deorum) corresponde ao canto de ações heróicas; o
item c), lírica epinícia no cantar os vencedores (pugilem uictorem et equom certamine primum); o item d),
lírica erótica no cantar os cuidados de amor juvenil (iuuenum curas), e o item e), lírica convivial ou
simpótica no cantar o prazer dos banquetes e o refrigério de males no vinho (libera uina)
correspondem, os três, ao canto de ações humanas (rerum et heroicarum humanarumque comprehensio).

c) Quintiliano

c. 1) Instituições Oratórias, 10, 1, 51-57:


Verum hic omnis sine dubio et in omni Mas Homero sem dúvida superou, em todo gênero
genere eloquentiae procul a se reliquit, epicos de eloqüência, a quantos o sucederam, sobretudo os
tamen praecipue, uidelicet quia durissima in épicos, principalmente porque a comparação é a
51

materia simili comparatio est. Raro adsurgit mais difícil quando a matéria é semelhante. Hesíodo
Hesiodus magnaque pars eius in nominibus raramente se ergue, e a maior parte de seus poemas
est occupata, tamen utiles circa praecepta é ocupada por nomes; são, porém, úteis máximas
sententiae, leuitasque uerborum et com que reveste os preceitos morais, é de aprovar o
compositionis probabilis, daturque ei palma polimento das palavras e se lhe dá a palma no
in illo medio genere dicendi. Contra in gênero médio de discurso. Por outro lado, em
Antimacho uis et grauitas et minime uulgare Antímaco merecem louvor a força, a gravidade e o
eloquendi genus habet laudem. Sed quamuis gênero de discurso nada vulgar. Mas por mais que
ei secundas fere grammaticorum consensus quase todos os gramáticos lhe confiram o segundo
deferat, et adfectibus et iucunditate et lugar, é de todo deficiente nos afetos, na graça, na
dispositione et omnino arte deficitur, ut plane disposição e carente de técnica, o que mostra que
manifesto appareat quanto sit aliud uma coisa é nestar próximo ao melhor, outra é
proximum esse, aliud secundum. Panyasin, apenas estar em segundo, depois dele. Paníase
ex utroque mixtum, putant in eloquendo consideram que é um misto dos dois anteriores: é
neutrius aequare uirtutes, alterum tamen ab incapaz de igualar-lhes as virtudes no discurso, mas
eo materia, alterum disponendi ratione supera Hesíodo pela matéria, e Antímaco pela
superari. Apollonius in ordinem a disposição. Apolônio23 não é arrolado pelos
grammaticis datum non uenit, quia gramáticos, porque Aristarco e Aristófanes24, juízes
Aristarchus atque Aristophanes, poetarum de poetas, não incluíram nenhum contemporâneo.
iudices, neminem sui temporis in numerum Sua obra, porém, não deve ser desprezada, pela
redegerunt, non tamen contemnendum edidit regularidade com que ocupa o gênero médio. A
opus aequali quadam mediocritate. Arati matéria de Arato carece de movimento, pois que não
materia motu caret, ut in qua nulla uarietas, há nela nenhuma variedade, nenhum afeto,
nullus adfectus, nulla persona, nulla nenhuma personagem, nenhum discurso de quem
cuiusquam sit oratio; sufficit tamen operi cui quer que seja. Dá conta, contudo, da espécie a que se
se parem credidit. Admirabilis in suo genere acreditava capaz. Admirável em sua espécie é
Theocritus, sed musa illa rustica et pastoralis Teócrito, mas aquela musa rústica e pastoral tem
non forum modo uerum ipsam etiam urbem medo não só do fórum, como também da própria
reformidat. Audire uideor undique cidade. Acho que ouço meus leitores sugerir nomes
congerentis nomina plurimorum poetarum. de muitos poetas. O quê? Pisandro não contou bem
Quid? Herculis acta non bene Pisandros? os feitos de Hércules? Macro25 e Virgílio imitaram
Quid? Nicandrum frustra secuti Macer atque Nicandro26 em vão?
Vergilius?
(Negritos meus).

c. 2) Instituições Oratórias, 10, 1, 85-93:


Idem nobis per Romanos quoque auctores Passo agora aos romanos e devo seguir a mesma
ordo ducendus est. Itaque ut apud illos ordem. Tal como Homero para os gregos, assim
Homerus, sic apud nos Vergilius também Virgílio proveu-nos do mais auspicioso
auspicatissimum dederit exordium, omnium exórdio todos os poetas de seu gênero. Sem dúvida,
eius generis poetarum Graecorum dentre os poetas gregos e dentre os nossos ele é o
nostrorumque haud dubie proximus. Vtar que mais se aproxima de Homero. Usarei as mesmas
enim uerbis isdem quae ex Afro Domitio palavras que, ainda jovem ouvi de Domício Afro,
iuuenis excepi, qui mihi interroganti quem que à pergunta que fiz sobre quem ele achava que
Homero crederet maxime accedere 'secundus' mais se aproximava de Homero, respondeu-me:
inquit 'est Vergilius, propior tamen primo “Virgílio vem em segundo, porém mais próximo do
quam tertio'. Et hercule ut illi naturae caelesti primeiro que do terceiro”. E ainda que
atque inmortali cesserimus, ita curae et reconheçamos a natureza imortal e celeste de
diligentiae uel ideo in hoc plus est, quod ei Homero, há em Virgílio mais cuidado e exatidão,
fuit magis laborandum, et quantum principalmente pelo facto de que lhe era preciso
elaborar mais. Talvez compensemos em
eminentibus uincimur, fortasse aequalitate
regularidade o quanto somos superados nas
52

pensamus. Ceteri omnes longe sequentur. passagens notáveis. Macro e Lucrécio são de facto
Nam Macer et Lucretius legendi quidem, sed dignos de ler, mas não pelo fraseado que forjam, isto
non ut phrasin, id est corpus eloquentiae, é, o corpo da eloqüência: são elegantes, cada um em
faciant, elegantes in sua quisque materia, sed sua matéria, uma humilde, a outra, difícil. Varrão
alter humilis, alter difficilis. Atacinus Varro Atacino27 naquelas obras com que obteve renome
in iis per quae nomen est adsecutus interpres como tradutor da obra alheia não é mesmo de
operis alieni, non spernendus quidem, uerum desprezar, mas é dotado de poucos recursos para
ad augendam facultatem dicendi parum desenvolver as possibilidades do discurso. Ênio28
locuples. Ennium sicut sacros uetustate lucos devemos cultuar como aos bosques que pela
adoremus, in quibus grandia et antiqua antigüidade são sagrados, nos quais a beleza dos
robora iam non tantam habent speciem imensos carvalhos não é tão grande quanto a
quantam religionem. Propiores alii atque ad religiosa veneração que nos despertam. Há outros
hoc de quo loquimur magis utiles. Lasciuus mais próximos e, para aquilo de que falo, mais úteis.
quidem in herois quoque Ouidius et nimium Ovídio é lascivo até mesmo nos versos heróicos e
amator ingenii sui, laudandus tamen muito amante do próprio engenho; é louvável,
porém, em certas partes. Cornélio Severo29, embora,
partibus. Cornelius autem Seuerus, etiam si
como dizem, seja melhor versificador que poeta, se
est uersificator quam poeta melior, si tamen
tivesse escrito A Guerra da Sicília assim como
(ut est dictum) ad exemplar primi libri bellum
escreveu o primeiro livro, poderia revindicar para si
Siculum perscripsisset, uindicaret sibi iure
o segundo lugar. A morte prematura, porém, não
secundum locum. Serranum consummari
permitiu a Serrano30 consumar-se como poeta, mas
mors inmatura non passa est, puerilia tamen
suas obras de juventude revelam o maior engenho e
eius opera et maximam indolem ostendunt et a maior disposição de praticar o gênero correto,
admirabilem praecipue in aetate illa recti coisa admirável na sua idade. Perdemos muito com
generis uoluntatem. Multum in Valerio a morte recente de Valério Flaco31. O engenho de
Flacco nuper amisimus. Vehemens et Saleio Basso32 foi poético e veemente mas não
poeticum ingenium Salei Bassi fuit, nec atingiu a maturidade porque o poeta não chegou à
ipsum senectute maturuit. Rabirius ac Pedo velhice. Rabírio e Pedão33 não são indignos de
non indigni cognitione, si uacet. Lucanus conhecer se houver tempo. Lucano é ardente,
ardens et concitatus et sententiis clarissimus arrebatado, preclaríssimo pelas sentenças e, para ser
et, ut dicam quod sentio, magis oratoribus franco, deve ser imitado mais pelos oradores que
quam poetis imitandus. Hos nominamus quia pelos poetas. Nomeei só estes, porque o governo do
Germanicum Augustum ab institutis studiis mundo desviou Germânico Augusto das atividades
deflexit cura terrarum, parumque dis uisum poéticas e porque aos deuses pareceu pouco que
est esse eum maximum poetarum. fosse o maior poeta de todos.
(Negritos meus).

d) Suda s.v. Θεόκριτος (theta, 166, 1-10):

Θεόκριτος, Χῖος, ῥήτωρ, μαθητὴς Μητροδώρου Teócrito, era de Quios, rétor, aluno de Metrodoro, o
τοῦ Ἰσοκρατικοῦ. ἔγραψε Χρείας·
isocrático. [...] Há outro Teócrito, filho de Praxágoras
ἀντεπολιτεύσατο δὲ Θεοπόμπῳ τῷ ἱστορικῷ.
φέρεται αὐτοῦ ἱστορία Λιβύης καὶ ἐπιστολαὶ e Filine, ou de Simico, segundo alguns. Era de
θαυμάσιαι. ἔστι καὶ ἕτερος Θεόκριτος, Siracusa, mas outros dizem que nasceu em Cós e
Πραξαγόρου καὶ Φιλίννης, οἱ δὲ Σιμμίχου· mudou-se para Siracusa. Escreveu os chamados
Συρακούσιος, οἱ δέ φασι Κῷον· μετῴκησε δὲ ἐν
Συρακούσαις. οὗτος ἔγραψε τὰ καλούμενα epos bucólicos em dialeto dórico. Alguns atribuem-
Βουκολικὰ ἔπη Δωρίδι διαλέκτῳ. τινὲς δὲ lhe também as seguintes obras: As Prétides, As
ἀναφέρουσιν εἰς αὐτὸν καὶ ταῦτα· Προιτίδας, Esperanças, Hinos, As Heroínas, epicédios líricos,
Ἐλπίδας, Ὕμνους, Ἡρωΐνας, Ἐπικήδεια μέλη,
ἐλεγείας καὶ ἰάμβους, ἐπιγράμματα. ἰστέον δὲ elegias, iambos, epigramas. É preciso saber também
ὅτι τρεῖς γεγόνασι Βουκολικῶν ἐπῶν ποιηταί,
53

Θεόκριτος οὑτοσί, Μόσχος Σικελιώτης καὶ que houve três poetas de epos bucólicos, este
Βίων ὁ Σμυρναῖος, ἔκ τινος χωριδίου Teócrito, Mosco da Sicília e Bíon de Esmirna, de
καλουμένου Φλώσσης.
uma aldeia chamada Flosse.
(Negritos meus).

Os dois excerptos de Quintiliano e o verbete da Suda suscitam várias questões: para o que
aqui discuto importa de imediato ratificar que, de acordo com eles, são indubitavelmente
“épicos” entre os gregos:

→ Teogonia de Hesíodo, que de facto arrola nomes de deuses.

A julgar pela inclusão dos poemas de Nicandro, As Serpentes e Os Antídotos, sem dúvida
“didácticos”, é lícito concluir que Quintiliano, mencionando Hesíodo, mas aludindo à Teogonia ao
falar do catálogo de nomes, não terá excluído os não menos didácticos:

→ Trabalhos e Dias, de Hesíodo, no rol dos poemas épicos.


→ Os Fênomenos, de Arato de Solos.
→ Os Idílios de Teócrito de Siracusa.

Sobre Téocrito – que de todos é aquele que, por ser bucólico, mais dificilmente se poderia
considerar épico, o testemunho da Suda é decisivo. Abordaremos adiante o problema desse poeta,
“admirável em sua espécie” (ou “gênero”), ao tratar do seu rival Virgílio nas Bucólicas. Antes de
passar aos romanos, proponho-me a atritar os testemunhos sobre Hesíodo e Arato de Solos que
acabamos de ver com importante epigrama 27 do poeta bibliotecário e filólogo Calímaco de
Cirene:
Ἡσιόδου τό τ' ἄεισμα καὶ ὁ τρόπος· οὐ τὸν ἀοιδῶν Canto é o de Hesíodo, o feitio. Não se moldou
ἔσχατον, ἀλλ' ὀκνέω μὴ τὸ μελιχρότατον o Sólio no menor aedo e sim
τῶν ἐπέων ὁ Σολεὺς ἀπεμάξατο· χαίρετε λεπταί no que em épica há de mais melífluo. Salve
ῥήσιες, Ἀρήτου σύμβολον ἀγρυπνίης.
gráceis linhas, vigília e afã de Arato.

Nesse epigrama notável, miniarte poética alexandrina, além da designação de Hesíodo e


Arato como épicos (ἐπέων, v. 3), encontram-se explícitas emulação e imitação valorizadas pelos
poetas-críticos alexandrinos como obrigatória instância compositiva: É Hesíodo, não Homero, o
paradigma antigo do canto (ἄεισμα, v. 1), bem entendido, canto épico; nele está o feitio, o modo
(τρόπος, v. 1) que se deve imitar, e Arato é poeta contemporâneo que se moldou (ἀπεμάξατο, v. 3)
em Hesíodo, isto é, o poeta que imita à sua maneira o poema de Hesíodo e, com imitá-lo, faz-se
êmulo de Hesíodo. A significância do epigrama será tanto maior, quanto mais se perceber a
54

oposição tácita a Aristóteles, expressa na substituição de Homero por seu congênere Hesíodo
como paradigma da épica, o que vale dizer que Calímaco está a propor que se façam poemas
épicos não-guerreiros.
Entre os romanos, são épicos:

→ Da Natureza das Coisas, de Lucrécio.


→ Geórgicas, de Virgílio, pois que imitou Nicandro.
→ Bucólicas, de Virgílio pois que foi arrolado Teócrito, que Virgílio imitou.
→ Metamorfoses de Ovídio, único poema que fez em hexâmetros, ou heróicos, como se
disse.

Repasso o primeiro excerpto de Quintiliano, porque nos permite outras conclusões:


quando menciona nominalmente Aristarco da Samotrácia e Aristófanes de Bizâncio, deixa claro
também que aquela teia de teóricos da poesia posteriores a Aristóteles, teóricos helenísticos, bem
entendido, e nesse caso, alexandrinos, além de enredá-lo a si mesmo enreda ainda Proclo34 e até
Fócio, já no século IX d.C, haja vista denunciarem todos exatamente a mesma ordem de gêneros
(épica, elegia, iambo, lírica35) e, segundo o que a cronologia permite, praticamente o mesmo rol
de poetas. Mais importante é que, mantida a divisão genérica que já havia em Aristóteles, há
sempre em cada um dos gêneros da poesia narrativa, a presença de uma lista de autores
escolhidos, amiúde chamada “cânone”36, isto é, a presença de rol e de crivo segundo o qual
poetas e poemas são sim comparados, julgados e decrescentemente avaliados: τοῦ ἔπους ποιηταὶ

κράτιστοι, “os melhores poetas épicos”, diz Proclo; iudices poetarum, “juízes de poetas” diz
Quintiliano, sobre Aristarco e Aristófanes de Bizâncio; quem Homero crederet maxime accedere
“secundus”, “quem ele achava que mais de perto secundava Homero”, dizia Domício Afro.

4) FUNÇÃO CRÍTICA E EFEITO “CÂNON” NA COMPOSIÇÃO.

A importância dos πίνακες, destes tipos de lista, ou modernamente dos “cânones” de


poetas se verifica pelo facto mesmo de que não são para os latinos outra coisa que as “classes”,
aquilo, pois, que em âmbito pedagógico determinará, gostemos ou não, o que é “clássico”.
A presença do cânon nos teóricos ou filólogos ou críticos ou bibliotecários ou poetas
críticos pós-Aristotélicos, não obstante a importância do estagirita na racionalidade da Biblioteca,
é a manifestação mesma da primeira diferença com que poesia é tratada por um e por outros: “a
relação da nova geração com o passado diferia completamente da de Aristóteles: a perspectiva da
55

crítica literária estava mudada por inteiro”, diz Pfeiffer37. De todas essas listas, αs mais
importantes para o que trato são αs de Calímaco:
Πίνακες τῶν ἐν πάσῃ παιδείᾳ διαλαμψάντων, καὶ ὧν συνέγραψαν, ἐν βιβλίοις κʹ καὶ ρʹ

Índices em 120 Livros dos Autores que Foram Eminentes em cada Disciplina e do que Escreveram.

Estão evidentes a seriação em “ramos”, “disciplinas” – παιδεία – e a graduação em seu


interior – διαλαμψάντων, de διαλάμπω – literamente “dos que brilharam em meio a” outros
autores. Essas disciplinas, por sua vez, recobrem os gêneros da prosa e da poesia, e nesta, entre
outros, a poesia épica38.
Os poetas-bibliotecários, querendo revigorar a poesia, precisavam, além de fisicamente
conservá-la, organicamente estudá-la, comparando no acervo da Biblioteca inúmeros poemas e
poetas. Era mister, então, a admissão prévia da semelhança ou potencial equivalência dos objetos
que iam comparar: é assim que a partir da anterior existência de gêneros atestada em Aristóteles
e Platão, equivalência foi então a congeneridade39, isto é, a imperiosa necessidade de pertencer ao
mesmo gênero as obras e os autores a ajuizar.
Na atividade dos poetas-críticos alexandrinos em particular e helenísticos em geral, no
poetar que, unos, põem em funcionamento sem poder nem querer eximir-se do ser filólogos, a
seriação genérica, de que o cânon é parte necessária, abalizou a composição de seus próprios
poemas, porque nela estavam judicados os melhores poetas, que tinham sido assim julgados por
eles mesmos, críticos-poetas. Em outras palavras, criticavam poemas alheios e seus autores e,
juízes, decidiam quem eram os melhores. Quando, poetas, compunham os seus próprios poemas,
era compreensível que procurassem fazer como fizeram os que haviam considerado ser os melhores,
tomados então modelo (παράδειγμα, dizem os gregos, exemplar, dirão logo os latinos)40.
Percebe-se assim que a mediação do conceito de gênero poético e de suas leis – ainda
quando pressupusessem e viessem de facto a ser transgredidas, combinadas, misturadas41 – e da
graduação no interior de cada um deles tenham na verdade entronizado de vez, na composição
de novos poemas, os processos de imitação e emulação. Poetas, imitando poemas, emularam
outros poetas que julgaram excelentes, e os desejavam igualar e superar, e assim dialeticamente
estabeleceram uma tradição e, mais que isso, um repertório em domínio público, como dirá
Horácio, para a invenção de vindouros poetas. Em mais um capítulo do agonismo helênico e
depois latino, o território genérico é arena da disputa diacrônica entre auctores, bem entendido,
56

entre as autoridades reconhecidas daquele gênero, e em qualquer disputa a excelência, a areté, a


palma, como diz Quintiliano, está necessariamente em jogo. Recorro outra vez a Gustavo
Guerrero42, que, não obstante a quimera alexandrina de querer conciliar a oralidade primordial
dos poemas arcaicos e sua atual condição de textos escritos, diz deles o seguinte:

Interpretado em relação ao futuro, o esforço dos alexandrinos com suas edições, seus
cânones e suas classificações é indubitavelmente muito mais importante [do que essa
tentativa], não só porque permite a sobrevivência dos textos como tais, mas sobretudo
porque se converte em factor dinâmico que influi de modo decisivo na evolução das letras.
Com efeito os trabalhos sobre os poetas líricos e a poesia mélica se integram, com a
recepção romana, a esse fênomeno de produção e interpretração textual que Schaeffer
chamou “a lógica pragmática da generecidade”. Pois o agrupamento proposto pelos
filólogos sob a forma de um modelo genérico há de transformar-se em Roma em uma
matriz de escritura”43.

O que se vê é que da condição passiva de mero conjunto, gênero com sua necessária
gradação canônica passou à condição ativa de “genericidade”, da capacidade de gerar outros
textos, que em verdade ocorreu entre os poetas romanos só porque ocorrera antes entre os poetas
alexandrinos e helenísticos por eles emulados e imitados. Se verificarmos a passagem de Schaeffer
mencionada, veremos outra repercussão do conceito ativo de gênero e do cânon:

Penso que é preciso ir mais longe: os gêneros teóricos, isto é, efetivamente os gêneros
tais como são definidos por este ou aquele crítico fazem parte, eles mesmos, do que se
poderia chamar a lógica pragmática da generecidade, lógica que é indistintamente um
fênomeno de produção e de recepção textual44.

Guerrero, mencionando Schaeffer, escrevera “interpenetração textual”, que contempla


antes a inter-relação de autores, de que tratava – que na Antigüidade é a imitação ou mimese –
do que a relação entre autor / texto e público, mais de acordo, a meu ver, com a frase “recepção
textual”, ali presente.

5) EFEITO DO CÂNON NA RECEPÇÃO


Desde o assim dito período clássico das letras gregas, mas principalmente a partir do
período helenístico a poesia chegava ao público não só, mas preponderantemente escrita em rolos
57

de papiro e pergaminho. Não cabe aqui reinvestigar a transformação das condições históricas
conjunturais que possibilitaram a introdução da escrita nem mesmo tratar da alteração de
perspectiva psicológica e temporal do ouvinte de poema cantado ou recitado para o leitor de
texto escrito, apenas lembro que na dinâmica da leitura solitária e mesmo da leitura pública a
relação entre texto e destinatário não é direta, e sim permeada entre outras coisas pela
expectativa que ele tem do que receberá, o que necessariamente aciona, ativa o potencial das
inter-relações entre o poema e o gênero a que pertence e suas leis; a matéria que os auctores
praticaram ou deixaram de praticar e a adequação com que o fizeram os dotados de mais
autoridade. Florence Dupont analisou com perspicácia a interpenetração do público e do autor
ao mostrar o papel da recitatio no fim da República e no Império45, que em Plínio, o Jovem vemos
documentada (5, 3, 7-11):

7. Recito tamen, quod illi an fecerint nescio. 7. Eu recito meus poemas, é verdade, e não sei se
Etiam: sed illi iudicio suo poterant esse eles o fizeram. Sim, mas eles podiam estar contentes
contenti, mihi modestior constantia est quam com seu próprio julgamento, e, quanto a mim,
minha certeza é muito medíocre para que eu
ut satis absolutum putem, quod a me considere perfeitamente acabado o que eu venha a
probetur. 8. Itaque has recitandi causas aprovar. 8. Por isso, tenho as seguintes razões para
sequor, primum quod ipse qui recitat recitar: em primeiro lugar, quem recita se aplica com
aliquanto acrius scriptis suis auditorum muito mais atenção a seus escritos em consideração
reuerentia intendit; deinde quod de quibus aos ouvintes e, em segundo lugar, quem tem alguma
dúvida sobre algo em seus escritos resolve-a, por
dubitat, quasi ex consilii sententia statuit. 9. assim dizer, a partir da opinião implícita num
Multa etiam multis admonetur, et si non conselho. 9. Ademais, muito se sugere numa reunião
admoneatur, quid quisque sentiat perspicit ex de muitas pessoas e, se não se sugere
uultu oculis nutu manu murmure silentio; explicitamente, o que cada um sente transparece no
quae satis apertis notis iudicium ab rosto, nos olhos, no gesto, nas mãos, no murmúrio e
no silêncio, que com sinais muito mais claros
humanitate discernunt. 10. Atque adeo si cui distinguem o que é opinião do que é gentileza. 10. E
forte eorum qui interfuerunt curae fuerit isto chega a tal ponto, que se acaso algum dos
eadem illa legere, intelleget me quaedam aut presentes tiver o cuidado de ler o que ouviu,
commutasse aut praeterisse, fortasse etiam ex perceberá que algumas passagens eu mudei ou
suo iudicio, quamuis ipse nihil dixerit mihi. suprimi, quem sabe até por causa de sua própria
opinião, ainda que não me tenha dito nada. 11. Mas
11. Atque haec ita disputo quasi populum in eu discuto como se me dirigisse ao público num
auditorium, non in cubiculum amicos auditório e não, numa salinha, aos amigos, que ter
aduocarim, quos plures habere multis em grande quantidade é glorioso para muitos e para
gloriosum, reprehensioni nemini fuit. Vale. ninguém foi motivo de repreensão. Adeus.

Em outra espístola, por fim, Plínio patenteia precisamente o papel do gênero e do cânone na
recepção (4, 14. 7):
7. Praeterea sapiens subtilisque lector debet 7. Além disso, o leitor inteligente e sutil não deve
58

non diuersis conferre diuersa, sed singula comparar passagens de caráter que divergem entre
expendere, nec deterius alio putare quod est si, mas avaliá-las cada uma em si mesma e não
in suo genere perfectum. considerar que é pior que outra aquela que está
perfeita em seu gênero.

Nos πίνακες, ou cânones ou índices, os poetas-críticos arrolam por gênero os auctores,


criticam-nos, selecionam-nos e os graduam em cada gênero. Com isso, estabelecem paradigmas
para imitação e emulação, que vêm a alterar a composição mesma de poemas próprios e alheios,
e também a recepção por um público douto, pois doutrinado no mesmo critério de gênero e
cânon, já com o concurso da escrita, que, como é claro, concorrera nas Bibliotecas para o próprio
labor crítico e poético. Em cada uma dessas fases – crítica, composição e recepção – é
absolutamente necessário assumir a existência de semelhança prévia, de equivalência
preambular dos objetos que se comparam, criticam e avaliam, pois do contrário não poderiam
jamais ser objeto de comparação crítica e valorativa. Tal semelhança e equivalência prévia é a
congeneridade dos poetas e poemas que se hão de avaliar, o que não exclui a possibilidade de
haver diferenças no interior do gênero, que devem ser entendidas como espécies. É bem um tipo
de avaliação retrospectiva das espécies do mesmo gênero – epos – aquilo que faz Manílio nos 81
magníficos versos iniciais do canto 2 das Astronômicas:

Maximus Iliacae gentis certamina uates O maior dos vates cantou as lutas da nação ilíaca;
et quinquaginta regum regemque patremque e de cinqüenta reis o rei e pai;
Hectoraque Aeacidae uictamque sub Hectore Troiam e Heitor, vencido pelo Eácida; e Tróia, vencida sob Heitor;
erroremque ducis totidem, quot uicerat, annis e o error de anos tantos quantos os de vitória do chefe
<infestum experti dominum maris atque renato> 4a que sofreu a inimizade do senhor do mar, que com renascida 5
instantem bello geminataque Pergama ponto 5 guerra o perseguiu; e no mar repetida Pérgamo;
ultimaque in patria captisque penatibus arma e na pátria, tomados os penates, os últimos combates
ore sacro cecinit; patriam cui turba petentum, cantou com sua palavra sagrada; a multidão dos que lhe reclamavam a pátria,
dum dabat, eripuit, cuiusque ex ore profusos dando-lha, sem nenhuma o deixava; e de sua boca
omnis posteritas latices in carmina duxit toda a posteridade as profusas águas levou para sua própria poesia,
amnemque in tenuis ausa est deducere riuos 10 e ousou seu rio conduzir por estreitos regatos, 10
unius fecunda bonis. sed proximus illi fecundada pelos dons dum só. Mas, em seguida a ele,
Hesiodus memorat diuos diuumque parentes Hesíodo memora os divos e os pais dos divos;
et chaos enixum terras orbemque sub illo e o caos que pariu a terra; e sob este o mundo ainda criança;
infantem et primos titubantia sidera cursu e as estrelas a hesitar no primeiro curso;
Titanasque senes, Iouis et cunabula magni 15 e os velhos Titãs; e o berço do podero so Júpiter; 15
et sub fratre uiri nomen, sine matre parentis, e, sendo irmão, seu nome de marido, e, sem uma mãe, o de pai;
atque iterum patrio nascentem corpore Bacchum, e Baco a nascer de novo do corpo de seu pai;
siluarumque deos secretaque numina Nymphas. e os deuses das florestas; e as Ninfas, ocultos numes.
quin etiam ruris cultus legesque notauit Além disso, falou do cultivo do campo, de suas leis,
militiamque soli, quod colles Bacchus amaret, 20 da milícia do solo; que Baco amava as colinas; 20
quod fecunda Ceres campos, quod Pallas utrumque, que fértil Ceres, os plainos; que Palas, a ambos;
atque arbusta uagis essent quod adultera pomis; e que plantas havia que enxertadas produziam frutos diferentes;
omniaque immenso uolitantia lumina mundo, e as luzes todas a voarem pelo imenso céu,
pacis opus, magnos naturae condit in usus. obra de paz, reuniu em conformidade com os grandes planos da natureza.
astrorum quidam uarias dixere figuras, 25 Alguns falaram das variadas formas dos astros; 25
signaque diffuso passim labentia caelo e as constelações que se espalham deslizando pela extensão do céu,
in proprium cuiusque genus causasque tulere; eles as referiram ao gênero particular de cada uma e a suas causas:
59

Persea et Andromedan poena matremque dolentem Perseu, a libertar da pena Andrômeda e sua mãe, que sofria,
soluentemque patrem, raptamque Lycaone natam e seu pai; e a filha raptada a Licaão;
officioque Iouis Cynosuram, lacte Capellam 30 e Cinosura, por seu cuidado com Júpiter; por seu leite, a Cabra; 30
et furto Cycnum, pietate ad sidera ductam e, pelo empréstimo do disfarce, o Cisne; e Erígone, conduzida às estrelas em
Erigonen ictuque Nepam spolioque Leonem virtude da pia devoção; e, por seu golpe, o Escorpião; e, pelo espólio, o Leão;
et morsu Cancrum, Pisces Cythereide uersa, pela mordida, Câncer; os Peixes, pela transformação da deusa de Citera;
Lanigerum uicto ducentem sidera ponto, o Lanígero, a conduzir os signos pelo mar conquistado;
ceteraque ex uariis pendentia casibus astra 35 e as restantes constelações, que derivam de variadas origens, 35
aethera per summum uoluerunt fixa reuolui. os poetas imaginaram que se revolviam fixas no sumo éter.
quorum carminibus nihil est nisi fabula caelum Em seus poemas, o céu nada é senão fábula,
terraque composuit mundum quae pendet ab illo. e a terra é que compôs o céu, do qual ela, porém, é que depende.
quin etiam ritus pastorum et Pana sonantem Ademais, os ritos dos pastores e Pã a soar
in calamos Sicula memorat tellure creatus, 40 em suas flautas aquele nascido na terra siciliana memora; 40
nec siluis siluestre canit perque horrida motus e para as florestas ele canta um canto não rústico,
rura serit dulcis Musamque inducit in aulas. e pelos rudes campos semeia doces emoções e traz a Musa para seu curral.
ecce alius pictas uolucres ac bella ferarum, Eis que outro coloridas aves e lutas de feras,
ille uenenatos angues aconitaque et herbas outro venenosas serpentes, acônitos e plantas refere
fata refert uitamque sua radice ferentis. 45 que a vida e a morte trazem em sua raiz. 45
quin etiam tenebris immersum Tartaron atra Também há os que o Tártaro imerso em trevas
in lucem de nocte uocant orbemque reuoluunt invocam da negra noite para a luz, e o mundo voltado
interius uersum naturae foedere rupto. para dentro revolvem para fora, quebrando-se a lei da natureza.
omne genus rerum doctae cecinere sorores, Todo gênero de coisas as doutas irmãs cantaram,
omnis ad accessus Heliconos semita trita est, 50 todo caminho de acesso ao Hélicon foi trilhado, 50
et iam confusi manant de fontibus amnes e já misturados manam das fontes os rios
nec capiunt haustum turbamque ad nota ruentem. e não dão conta do sorvo e da turba que se precipita ao já conhecido.
integra quaeramus rorantis prata per herbas Intactos prados busquemos entre orvalhadas plantas
undamque occultis meditantem murmur in antris e a onda que exercita seu murmúrio dentro de ocultas cavernas,
quam neque durato gustarint ore uolucres, 55 a qual nem as aves tenham provado com seu duro bico, 55
ipse nec aetherio Phoebus libauerit igni. nem o próprio Febo tenha libado com seu fogo etéreo.
nostra loquar, nulli uatum debebimus orsa, Coisa nossa falarei, a nenhum vate deveremos as palavras,
nec furtum sed opus ueniet, soloque uolamus e não furto, mas obra própria é que virá; e num solitário carro voamos
in caelum curru, propria rate pellimus undas para o céu, em nosso próprio barco impelimos as ondas
namque canam tacita naturae mente potentem 60 Pois cantarei o deus senhor da natureza, 60
infusumque deum caelo terrisque fretoque de mente silenciosa, espalhado pelo céu, pela terra e o mar,
ingentem aequali moderantem foedere molem, a governar com igual lei a ingente máquina;
totumque alterno consensu uiuere mundum e cantarei que o universo inteiro vive por um consenso recíproco
et rationis agi motu, cum spiritus unus e é guiado pelo movimento da razão, já que um só espírito
per cunctas habitet partes atque irriget orbem 65 habita em todas as suas partes, irriga o mundo,voando 65
omnia peruolitans corpusque animale figuret. através de todas as coisas, e lhe dá a forma de um corpo animado.
quod nisi cognatis membris contexta maneret Mas, se a máquina toda não permanecesse firme, compacta pelos membros
machina et imposito pareret tota magistro de mesma espécie, e não obedecesse ao mestre a ela imposto,
ac tantum mundi regeret prudentia censum, e a providência não regesse a tamanha riqueza do céu,
non esset statio terris, non ambitus astris, 70 não haveria morada firme para a terra, nem órbitas para os astros; 70
erraretque uagus mundus standoue rigeret, o céu erraria, indeciso, ou enrijeceria, parado;
nec sua dispositos seruarent sidera cursus nem suas constelações manteriam seus cursos ordenados;
noxque alterna diem fugeret rursumque fugaret, nem a noite alternadamente fugiria do dia e, em troca, o poria em fuga;
non imbres alerent terras, non aethera uenti as chuvas não alimentariam a terra, nem os ventos o éter,
nec pontus grauidas nubes nec flumina pontum 75 nem o mar as pesadas nuvens, nem os rios o mar, 75
nec pelagus fontes, nec staret summa per omnis nem o pélago as fontes; nem a soma de tudo permaneceria sempre
par semper partes aequo digesta parente, igual em todas as suas partes, distribuída com justeza por seu criador,
ut neque deficerent undae nec sideret orbis de modo que as ondas não faltassem, nem se afundasse nelas a terra,
nec caelum iusto maiusue minusue uolaret. nem voasse o céu mais, ou menos, do que a justa medida.
motus alit, non mutat opus. sic omnia toto 80 O movimento alimenta, não altera a obra. Assim por todoo universo 80
dispensata manent mundo dominumque sequuntur. repartidas as coisas todas permanecem e obedecem a seu senhor.

(Tradução de Marcelo Vieira Fernandes46, inédita, a quem agradeço aqui a fidalguia).


60

Não me cabe discutir por que deixou para o canto segundo uma passagem tão crítica e
programática como esta. Trata-se de brevíssima história do epos. A proposição é adiada para o
verso 57 para que nos 56 anteriores arrolasse com a sólita brevidade das poéticas e dos
metapoemas o gênero epos e várias espécies. É breve, mas não conheço rol de espécies épicas tão
longo quanto este nas fontes antigas:

vv. 1-3:
O maior dos vates cantou as lutas da nação ilíaca;
e de cinqüenta reis o rei e pai; Ilíada
e Heitor, vencido pelo Eácida; e Tróia, vencida sob Heitor;

vv. 4-8:
e o error de anos tantos quantos os de vitória do chefe
que sofreu a inimizade do senhor do mar, que com renascida 5
guerra o perseguiu; ; e no mar repetida Pérgamo;
e na pátria, tomados os penates, os últimos combates
Odisséia
cantou com sua palavra sagrada; a multidão dos que lhe reclamavam a pátria,
dando-lha, sem nenhuma o deixava.

vv. 8-10:
e de sua boca
toda a posteridade as profusas águas levou para sua própria poesia,
e ousou seu rio conduzir por estreitos regatos, 10
elogio de Homero.
fecundada pelos dons dum só.

vv. 11-18:
Mas, em seguida a ele,
Hesíodo memora os divos e os pais dos divos;
e o caos que pariu a terra; e sob este o mundo ainda criança;
e as estrelas a hesitar no primeiro curso; Hesíodo, Teogonia.
e os velhos Titãs; e o berço do podero so Júpiter; 15
e, sendo irmão, seu nome de marido, e, sem uma mãe, o de pai;
e Baco a nascer de novo do corpo de seu pai;
e os deuses das florestas; e as Ninfas, ocultos numes.
vv. 19-23:
Além disso, falou do cultivo do campo, de suas leis,
da milícia do solo; que Baco amava as colinas; 20
que fértil Ceres, os plainos; que Palas, a ambos; Hesíodo, Trabalhos e Dias.
e que plantas havia que enxertadas produziam frutos diferentes;
e as luzes todas a voarem pelo imenso céu,
obra de paz, reuniu em conformidade com os grandes planos da natureza.

vv. 25-36:
Alguns falaram das variadas formas dos astros; 25
e as constelações que se espalham deslizando pela extensão do céu,
eles as referiram ao gênero particular de cada uma e a suas causas:
Perseu, a libertar da pena Andrômeda e sua mãe, que sofria,
e seu pai; e a filha raptada a Licaão; Arato de Solos (Fenômenos) e outros
e Cinosura, por seu cuidado com Júpiter; por seu leite, a Cabra; 30
e, pelo empréstimo do disfarce, o Cisne; e Erígone, conduzida às estrelas em
61

virtude da pia devoção; e, por seu golpe, o Escorpião; e, pelo espólio, o Leão; autores de catesterismos.
pela mordida, Câncer; os Peixes, pela transformação da deusa de Citera;
o Lanígero, a conduzir os signos pelo mar conquistado;
e as restantes constelações, que derivam de variadas origens, 35
os poetas imaginaram que se revolviam fixas no sumo éter.

vv. 37-38:
Em seus poemas, o céu nada é senão fábula, Crítica a tais autores.
e a terra é que compôs o céu, do qual ela, porém, é que depende.

vv. 39-42:
Ademais, os ritos dos pastores e Pã a soar
em suas flautas aquele nascido na terra siciliana memora; 40 Teócrito, Idílios.
e para as florestas ele canta um canto não rústico,
e pelos rudes campos semeia doces emoções e traz a Musa para seu curral.

v. 43:
Boeu, poeta (ou poetisa) autor da
Eis que outro coloridas aves Ornitogonia, que Emílio Macro
imitou.

v. 43:

Haliêuticas, como de Opiano,


apresentam luta entre os seres do
e lutas de feras.
mar (2, 43-55) e as várias Cinegéticas,
entre cães e os animais caçados.

vv. 44-45:
outro venenosas serpentes, acônitos e plantas refere
que a vida e a morte trazem em sua raiz. 45
Nicandro, Teríacas e Alexifármacas.

vv. 46-48:
Também há os que o Tártaro imerso em trevas Entre outros, Virgílio no canto
invocam da negra noite para a luz, e o mundo voltado
para dentro revolvem para fora, quebrando-se a lei da natureza. sexto da Eneida.

vv. 49-56:
Todo gênero de coisas as doutas irmãs cantaram, A diversidade do epos na história do
todo caminho de acesso ao Hélicon foi trilhado, 50
e já misturados manam das fontes os rios gênero e a disposição de cantar
e não dão conta do sorvo e da turba que se precipita ao já conhecido.
Intactos prados busquemos entre orvalhadas plantas matéria inaudita, que é preceito de
e a onda que exercita seu murmúrio dentro de ocultas cavernas,
a qual nem as aves tenham provado com seu duro bico, 55 Calímaco.
nem o próprio Febo tenha libado com seu fogo etéreo.
62

Para aqueloutras fontes, portanto, são épicas, isto é, pertencem ao epos, as seguintes espécies
que se têm chamado “poesia didáctica”, que não exaustivamente arrolo47:

 poemas teogônicos (Hesíodo, Teogonia; Ovídio, Metomorfoses);


 poemas agrícolas (Hesíodo, Trabalhos e Dias; Virgílio, Geórgicas);
 poemas filosóficos (Empédocles Da Natureza; Lucrécio, Da Natureza das Coisas; O
Poema de Parmênides);
 poemas astronômicos ou catesterismos (Arato, Os Fenômenos; Manílio, Astronômicas);
 poemas bucólicos (Teócrito de Siracusa, Idílios; Virgílio, Calpúrnio da Sicília,
Nemesiano, Bucólicas);
 poemas teríacos (Nicandro de Cólofon, Teríacas);
 poemas alexifármacos (Nicandro de Cólofon, Alexifármacas).
 poemas ornitológicos (Boeu; Emílio Macro, Ornitogonia);
 poemas haliêuticos (Opiano de Córico48, Haliêuticas; pseudo-Ovídio, Heliêuticas);
 poemas cinegéticos (Opiano de Apaméia49; Nemesiano e Grátio Falisco,
Cinegéticas).

Com isso em mente devemos, pois que era dívida, falar de Teócrito e os Idílios. Talvez bucólica
seja espécie épica mais difícil de engolir. Quintiliano disse que Teócrito é “admirável em seu
“gênero mas aquela musa pastoral tem medo não só do fórum, como também da própria
cidade”. Quintiliano emprega genere para designar “aquela musa pastoral”, e o emprego não
significa absolutamente que bucólicas, idílios, éclogas ou como quer que se chamem aqui sejam
outro gênero, e que essoutro gênero não é epos. Explico: vimos que Quintiliano está a arrolar
primeiro em grego uma precisa e tradicional ordem de gêneros – épica, elegia, iambo lírica – e no
interior deles uma gradação de poetas, de modo que a inserção de gênero diferente seria ali
totalmente estranha. No rol latino, a ordem é a mesma (“devo seguir a mesma ordem, ordo ducendus
est), e Quintiliano omite as Bucólicas de Virgílio, porque evidentemente a musa pastoral de Virgílio
também temeria o fórum e a cidade. Assim, deve-se entender o termo genus como “espécie” (OLD,
6a), que no caso seria a espécie de epos, de que Quintiliano vem falando, dotada de materia
pastoral, inadequada para a educação oratória, por ser alheia ao fórum e à cidade. Não
descartamos a possibilidade de entrever que o tratamento de Quintiliano, porque explicita a
matéria pastoral (musa pastoralis), flagra como que processo de autonomização da bucólica, que de
espécie de epos está a tornar-se gênero bucólico independente, exemplificando aquela mesma
genericidade mencionada por Schaefer: em hexâmetros Teócrito, ἑυρητῆς, inventa combinando
63

epos e matéria, lugar e personagens pastoris, com os mesmos três modos: narrativo, mimético
(dialogado ou amebeu) e misto que o epos heróico possuía.
Sobre bucólicas ainda há duas passagens notáveis que ilustram, cremos, a projeção de
conceito que épica e epopéia têm hoje sobre o emprego de epos em textos antigos. Dissemos que
em latim se diz epos, mas não exemplificamos, pois Quintiliano não empregara a palavra. Horácio
a emprega na Sátira 1, 10, 43-45:

forte epos acer Vário, áspero como ninguém,


ut nemo Varius ducit, molle atque facetum tece o epos forte. O epos suave e gracioso
Vergilio adnuerunt gaudentes rure Camenae. a Virgílio concederam as Camenas que se comprazem com o campo.

Epos forte, “epos forte”, que, por anfibologia do adjetivo forte, é também o “epos corajoso” – bem
entendido, o epos em que a coragem é protagonista – só pode ser a épica bélica. Todas as
traduções, tendo entendido corretamente que epos forte é a épica guerreira, não relacionam, ao
contrário do uso mais corriqueiro do latim, os adjetivos molle e facetum, a despeito da perfeita
concordância de gênero, número e caso, a epos, neutro singular acusativo, mas entendem que
estejam substantivados, “o que é suave”, e “o que é faceto”. E o fazem, mesmo que, quanto à
sintaxe, seja mais evidente que, tendo falado do epos belicoso, que é acerbo – qualidade
tripicamente atribuída ao poeta, Vário – Horácio fale em seguida do “epos suave e faceto”, com
decorosa elipse de epos, para evitar repetição, e mesmo que, quanto ao sentido, contrastivamente
seja mais eficaz ressaltar a diferença de espécie, precisamente por isolá-la no meio da restante
semelhança, que é a congeneridade. Para desapontamento de quem aduziu aqui o Oxford Latin
Dictionary, encontram-se lá abonados suaue e facetum exatamente como fazem as traduções, sobre
que falaremos logo adiante.
A segunda passagem é dos Remédios do Amor, vv. 395-396, de Ovídio:

Tantum se nobis elegi debere fatentur, A elegia confessa que deve tanto a mim
quantum Vergilio nobile debet epos. quanto o epos nobre deve a Virgílio.

No contexto Ovídio reivindica para si no gênero da elegia a mesma autoridade que Virgílio
possui na épica bélica, que é o que designa epos nobile, em oposição, precisamente a outras espécies
de epos, como por exemplo, facetum, suaue, como diz Horácio, ou até βουκολικὰ ἔπη como duas
vezes diz o escoliasta de Teócrito. Ora, se epos, “epopéia”, já significa necessariamente, como se
crê, a épica bélica, que sabemos por Aristóteles, corresponder ao gênero elevado da imitação,
teríamos de supor que Ovídio emprega o adjetivo nobile epexegeticamente como mera explicação
64

apositiva, que, sendo possível, não estaria, porém, em consonoância com o emprego que na
equação faz de elegia, nobis, Vergilio, palavras únicas. Se se entender nobile como adjetivo restritivo,
o sintagma nobile epos, ainda que formado por mais de uma palavra, tem, como sintagma, a
mesma unicidade de elegia, nobis, Vergilio, que parece coerente com o que quer Ovídio.
Se a convição apoiada só nas fontes de que existe épica bucólica comprazia na paúra, vê-
la depois compartilhada ou, melhor dizendo, saber-se partícipe de uma opinião preexistente, traz
sossego, com um pouco de sorna, todavia. Havia rodinhas na bicicleta. John Van Sickle, em
resenha50 do capítulo “Green Politics: The Eclogues”, de Charles Martindale, no volume The
Cambridge Companion to Virgil51, dispara:

Martindale compartilha (sem admitir, porém) a visão minoritária segundo a qual


Horácio classifica as Bucólicas como espécie do epos, não forte, mas molle atque facetum,
que assim foi lido também por Farrell52, Leclerq53, por mim e Fraenkel54.

6) ALGUMAS CONCLUSÕES E OUTRAS CONSEQÜÊNCIAS

Parece-nos, em verdade, que a maioria das traduções e a abonação de um dicionário


como o OLD só revelam inexistir a mera possibilidade de que os filólogos admitam a acepção
irrestrita de ἔπος, epicus e epos a despeito das fontes mencionadas, que, fontes que são, são mais
eloqüentes do que projeções, por exemplo, da acepção mais restrita que poesia épica veio a ter
nas várias artes poéticas que surgiram a partir do Renascimento, que, sabemos, influíram
indiretamente na formação desses filólogos. Se desconsiderarmos a projeção de conceito moderno
sobre textos antigos, parece-me, então, em termos mais precisos, que o maior prestígio teórico e
crítico que Aristóteles e Horácio têm para esses estudiosos obliterou a consideração meramente
lingüística e textual das outras fontes, que é a filologia, para a qual essa “superioridade” crítica
nesse plano nada importa. A relativização com que supomos se deve ler qualquer teoria antiga,
inclusive Aristóteles e Horácio, pode ser exemplificada pelo cotejo entre o que eles prescrevem e a
efetiva “desobediência” dos poetas antigos. O próprio Aristóteles, tratando da unidade do poema,
ao aconselhar que da inteireza do mito referente a uma personagem se escolham apenas os
episódios organicamente pertinentes à narração, e não todos, denuncia que poetas houve que não
procederam assim55. O mesmo vale para Horácio, que, censurando o escritor cíclico, prescreve
que se trate a matéria in medias res56.
65

Não concordarmos hoje com o que pensava parte dos antigos não pode equivaler a deixar
de admitir que essa parte pensava o que pensava, e que seu pensamento veio a repercutir na
composição de poesia. Para exemplificar, vejamos sob a perspectiva que tenho proposto os quatro
versos iniciais do Idílio 16, de Teócrito:

Αἰεὶ τοῦτο Διὸς κούραις μέλει, αἰὲν ἀοιδοῖς, Sempre cuidam as filhas de Zeus, sempre cuidam cantores
ὑμνεῖν ἀθανάτους, ὑμνεῖν ἀγαθῶν κλέα ἀνδρῶν. deuses louvar, louvar a glória de homens valentes.
Μοῖσαι μὲν θεαὶ ἐντί, θεοὺς θεαὶ ἀείδοντι· Musas são deusas e, deusas, aos deuses decantam;
ἄμμες δὲ βροτοὶ οἵδε, βροτοὺς βροτοὶ ἀείδωμεν. nós, mortais que nós somos, cantemos, mortais, os mortais.

O pastor de rebanhos é ele mesmo o cantor do seu epos bucólico e das respectivas ações humanas,
em oposição a outros cantores cujas Musas lhes inspiram matéria superior, quer seja “louvor aos
deuses” (ὑμνεῖν ἀθανάτους), quer seja “a glória de homens valentes” (ἀγαθῶν κλέα ἀνδρῶν). Ora,
o que temos aqui, senão a mesma discriminação de Suetônio, que, sabemos, remonta aos críticos
da Biblioteca de Alexandria?

epos dicitur Graece carmine hexametro diuinarum


rerum et heroicarum humanarumque Em grego diz-se épos do canto hexamétrico que
comprehensio; quod a Graecis ita definitum est,
contém ações divinas, heróicas e humanas.
ἔπος ἐστὶν περιοχὴ θείων τε καὶ ἡροικῶν καὶ
ἀνθρψπίνων πραγμάτων.

Uma vez mais, o que em Teócrito é “deuses louvar” (ὑμνεῖν ἀθανάτους), em Suetônio é “canto
hexamétrico que contém ações divinas” (carmine hexametro diuinarum rerum comprehensio/ περιοχὴ

θείων πραγμάτων); o que em Teócrito é “glória de homens valentes” (ὑμνεῖν ἀγαθῶν κλέα

ἀνδρῶν), em Suetônio é “canto hexamétrico que contém ações heróicas” (carmine hexametro rerum
heroicarum comprehensio/ περιοχὴ θείων ἀνθρψπίνων πραγμάτων); o que em Teócrito é “nós,
mortais que nós somos, cantemos, mortais, os mortais” (ἄμμες δ ὲ βροτοὶ οἵδε, βροτοὺς βροτοὶ

ἀείδωμεν), em Suetônio é canto hexamétrico que contém ações humanas (rerum humanarum
comprehensio/ περιοχὴ ἀνθρψπίνων πραγμάτων).
Teócrito procede aqui como procedera Calímaco no Epigrama 27: um e outro não
recusam a epopéia elevada para em cada caso praticar e exortar outro gênero necessariamente menor
(em termos poético-retóricos, bem entendido), assim como fazem, por exemplo, Horácio, na Ode
1, 6, em que recusa a elevada épica heróica em favor da lírica amorosa, e Ovídio, na elegia 1, 1
dos Amores57, ao recusar a mesma épica guerreira elevada em pró da elegia. Não. Calímaco e
Teócrito recusam a elevada épica bélica para exortar (Calímaco) e praticar (Teócrito), no mesmo
66

gênero que é o epos, uma espécie menor, a saber, o epos astronômico n’ Os Fenômenos, de Arato de
Solos, e o epos bucólico dos próprios Idílios.

7) A TERMOS QUE...

Épica e epopéia os gregos, como Aristóteles, dizem ἐποποιία; Calímaco, Proclo e o


escoliasta de Teócrito, ἔπος. Épica e epopéia os latinos latinos dizem epos. Calímaco emprega a
palavra para Hesíodo e Arato; Proclo, para Hesíodo, e o escoliasta para Teócrito. Assim,
entende-se que o grego ἔπος e o latino epos, indubitavelmente pelo prestígio do nome de Homero
e da Ilíada em particular, podem ter vindo a designar por “excelência”, bem propriamente aqui, a
narração de gesta heróica e guerreira, como parece ter feito Horácio no verso 82 da Poética, que é
mais prestigiosa como preceptística de poesia do que a Sátira 1, 10, em que, porém, discriminara
as epécies de epos. Ler os só poemas mais conhecidos (“clássicos”) tem suas conseqüências. Mas
não foi o caso de Proclo e de Suetônio, para quem foi a excelência do hexâmetro oracular, não a
do hexâmetro homérico, que justificou nomear o gênero épico com o termo; não foi tampouco o
caso de Calímaco, que o emprega para referir Hesíodo e Arato, nem do escoliasta, que o
emprega para Teócrito.
Há em grego o adjetivo ἐποποιικός atestado em Aristóteles, e em latim epicus, atestasdo
em Quintiliano. Analogamente, pelo adjetivo deve-se em princípio entender que algo é relativo a
todo epos, não só ao subconjunto bélico, à espécie guerreira da épica. Assim Quintiliano usa o
termo, que emprega para Hesíodo, Teócrito e Lucrécio, a despeito de considerar supremos
Homero e Virgílio. Vemos que épica tem para ele abrangência maior do que a narração da gesta
guerreira, por mais que esta supostamente contasse os melhores autores e poemas. Quanto à
leitura e compreensão dos termos antigos há, pois, que distinguir a abrangência da acepção dos
termos no uso antigo: ἐποποιία, ἔπος e seu equivalente latino epos, em princípio implicam narração,
mas não necessariamente narração de gesta bélica ou heróica, por mais que consideremos, com
Aristóteles e Horácio, que os melhores exemplos de épica tenham tido essa matéria e por mais
que prefiramos hoje acolher outras teorias segundo as quais épica, epopéia são necessariamente
narração de gesta heróica e guerreira. Portanto, se por disposições teóricas, por costume, por
evitar confusão não queremos hoje relacionar “epopéia”, “épica” e “épico” àqueles poetas
“didácticos”, não precisamos fazê-lo. Talvez não devamos de facto, pois que o sentido restrito já
se impregnou aos termos como abonam os dicionários modernos, o que não significa, insisto, que
67

contra toda evidência devamos recusar que os termos gregos e latinos dos quais os nossos derivam
foram assim empregados em outras línguas, por outras pessoas em outros tempos. A alternativa
“épica didáctica”, pelo menos em português, boa que seja como admitimos ser, obriga também a
admitir que, além de não ter, como sintagma, apoio nas fontes, traz outro problema: se aceitamos
que ao substantivo “épica” a acepção restrita já se impregnou irreversivelmente em nossa língua,
então “épica didáctica” é uma contradição. Se se aduzir como argumento para tal designação o
facto de que o heroísmo é didáctico (ele é), então será obrigatório admitir que existe a mesma
congeneridade antiga que defendo, só que agora sob a designação “épica didáctica” ou mesmo
“poesia didáctica”. E por outro lado, se “épica didáctica” se consolidar, como creio que ocorrerá,
então temos que admitir que “épica” nesse caso voltou a ser usada no sentido antigo, isto é, o
amplíssimo epos, que é restringido pelo adjetivo “didáctico”. Agora pode? Ora, se é assim, ou bem
ampliamos o espectro de acepções do substantivo “épica” e do adjetivo “épico” para incluir o
sentido técnico antigo, ou bem, quando se impuser teoricamente a questão, empregamos o
latinismo epos ou o aportuguesamento “epos”, sem itálico, para qualquer epos não-heróico
especificando-o, “epos bucólico”, por exemplo; tratamos analogamente o adjetivo epicus, se se
referir a epos não-heróico, traduzindo-o por “autor (escritor) de epos”. Assim, o período inicial de
Quintiliano em 10, 1, 51 (item 3. b. 1) ficaria “Mas Homero sem dúvida superou, em todo gênero
de eloqüência, a quantos o sucederam, sobretudo os autores de epos, principalmente porque a
comparação é a mais difícil quando a matéria é semelhante”. E “Épica”, “épico” mantêm a
acepção vernácula.
68

APENDÍCULO
a) Horácio, Odes, 1, 6:
(Uso a tradução não expurgada de José Augusto Cabral de Melo, Odes de Q. Horacio Flacco. Traduzidas em
verso na língua portugueza por José Augusto Cabral de Mello. Angra do Heroismo: Typ. do Angrense, do
Visconde de Bruges, 1853, pp. 31-32.):

Scriberis Vario fortis et hostium Só Vário, cisne em os meônios versos,


uictor Maeonii carminis alite, pode, Agripa, cantar tua bravura,
teu braço triunfador dos inimigos,
quam rem cumque ferox nauibus aut equis
E essas façanhas sobre o mar e a terra
miles te duce gesserit. que os soldados soberbos 5
sob o teu mando obraram.
nos, Agrippa, neque haec dicere nec grauem 5 Eu não me atrevo a tanto: eu sou mui débil
Pelidae stomachum cedere nescii para ousar descrever a invicta cólera
do fero Aquiles e os trabalhos longos
nec cursus duplicis per mare Ulixei
que nos mares sofreu o astuto Ulisses 10
nec saeuam Pelopis domum e os trágicos furores
da casa de Pélops.
conamur, tenues grandia, dum pudor A Musa que me afana a branda lira
inbellisque lyrae Musa potens uetat 10 cantar me veda bélicas proezas;
nem permite o respeito que eu de César 15
laudes egregii Caesaris et tuas
os louvores publique e os teus sublimes,
culpa deterere ingeni. porque os não diminua
o meu engenho escasso.
quis Martem tunica tectum adamantina Quem pintaria dignamente a Marte
digne scripserit aut puluere Troico armado de lorica adamantina? 20
nigrum Merionen aut ope Palladis 15 Quem a Mérion envolto em pó troiano?
Quem ao grande Diomedes, que, igualado
Tydiden superis parem?
pelo auxílio de Palas,
foi aos divos supremos?
nos conuiuia, nos proelia uirginum
Eu os ledos festins apenas canto, 25
sectis in iuuenes unguibus acrium e as pelejas das ríspidas donzelas
cantamus uacui, siue quid urimur, que tentam beliscar cortando as unhas
os audazes mancebos: ou sou livre,
non praeter solitum leues. 20
ou ardo em viva chama,
qual costumo, versátil. 30

b) Ovídio, Amores, 1, 1

Arma graui numero uiolentaque bella parabam Armas em ritmo grave e a bruta guerra estava
edere, materia conueniente modis. por cantar, apta ao metro era a matéria.
Par erat inferior uersus; risisse Cupido Ao primeiro o outro verso era igual: riu Cupido
dicitur atque unum surrupuisse pedem. e conta-se que um pé ele roubou.
“Quis tibi, saeue puer, dedit hoc in carmina iuris? 5 “Quem te deu, mau menino, este jus nas canções?
Pieridum uates, non tua turba sumus. Piério vate sou, não sou teu sócio!
Quid, si praeripiat flauae Venus arma Mineruae, E se Vênus à loira Palas furte as armas,
uentilet accensas flaua Minerua faces? e acesos fachos Palas loira agite?
Quis probet in siluis Cererem regnare iugosis, Que Ceres reine, quem aprova, em selvas, montes?
lege pharetratae uirginis arua coli? 10 Que à lei da Sagitária se are a terra?
Crinibus insignem quis acuta cuspide Phoebum A Febo, bel cabelo, a aguda lança quem
instruat, Aoniam Marte mouente lyram? lhe dera enquanto Marte tange a lira?
Sunt tibi magna, puer, nimiumque potentia regna; Grandes, menino, são teus reinos, poderosos:
cur opus adfectas, ambitiose, nouum? por que ambicionas tanto nova empresa?
An, quod ubique, tuum est ? Tua sunt Heliconia tempe? 15 É tudo teu? São teus os vales Helicônios?
Vix etiam Phoebo iam lyra tuta sua est. A custo Febo guarda a própria lira!
69

Cum bene surrexit uersu noua pagina primo, Quando o verso inicial desponta em nova página,
attenuat neruos proximus ille meos. o seguinte atenua meu vigor.
Nec mihi materia est numeris leuioribus apta, E apto não tenho assunto a ritmos mais ligeiros:
aut puer aut longas compta puella comas.” 20 moça ou rapaz, penteados, longas mechas...”.
Questus eram, pharetra cum protinus ille soluta Queixei-me assim. Cupido, abrindo logo a aljava,
legit in exitium spicula facta meum escolhe setas, feitas por perder-me:
lunauitque genu sinuosum fortiter arcum curva com força o arco em meia lua e diz
“quod”que “canas, uates, accipe”, dixit, “opus!” “tens aqui, vate, assunto que cantar”.
Me miserum! Certas habuit puer ille sagittas! 25 Ai de mim: flechas tinha o menino certeiras.
Vror, et in uacuo pectore regnat Amor. Ardo e em meu peito livre reina Amor.
Sex mihi surgat opus numeris, in quinque residat! Comece com seis pés o canto e acabe em cinco:
Ferrea cum uestris bella ualete modis! adeus, guerras cruéis e seu compasso!
Cingere litorea flauentia tempora myrto, De mirto ribeirinho cinge as loiras têmporas,
Musa, per undenos emodulanda pedes 30 Musa, que entoarei com onze pés.
70

Notas do Capítulo 2

1 Bruno Gentili (1987), “Letteratura Didascalica, Scientifica e Tecnica”, p. 442.


2 West (1978) usa para o que trata o termo “didactic”, p. 5; p. 25; “moral-didactic”, p. 13, etc.
3 West (1978), “Wisdom Literature”, pp. 3-25.
4 Monica Gale, Lucretius and the Didactic Epic. A mesma estudiosa assina o capítulo 32, “Lucretius” (pp. 440-
451) do livro A Companion to Ancient Epic; Oxford: Blackwell, 2005, organizado por John Miles Foley.
Nesse livro lemos no capítulo 36, “Quinto of Smyrna” (pp. 364-373), que Alan James chama “didactic
epic” o poema Haliêuticas, de Opiano (p. 369), que mencionaremos adiante. No capítulo 41, “Epic and
Other Genres in the Roman World” (pp. 562-573), R. Jenkyns lembra que “precisamos perceber a
diferença entre o epos didáctico [“didactic epos”] e a épica elevada para avaliar como Lucrécio alarga os
limites da poesia didáctica” (p. 565). No livro similar e contemporâneo, organizado por Stephen Harrison,
A Companion to Latin Literature, a mesma Monica Gale assina o capítulo sete “Didactic Epic” (pp. 101-115).
Lemos a mesma designação nas páginas 8 (índice, com referência a Ovídio), 31, 38, 39 (cap. 2, “The Late
Republican/Triumviral Period: 90–40 BC”, de D. S. Levene, pp. 31-43). Lemos também “didactic epos”
na página 66 (Roland Mayer, “The Early Empire: AD 14–68, pp. 58-68). Antes destes livros, A. Schiesaro;
P. Mitsis e J. S. Clay (orgs.) Mega Nepios: il Destinatario nell’Epos Didascalico / The Addressee in Didactic Epic; Pisa:
Giardini, 1993.
5 Ver nota 46.
6 O excerpto tem sido atribuído a Diomedes. Augustus Reifferscheid p. 16, atribui a Suetônio. Izabella
Lombardi Garbellini e seu orientador, Marcos Martinho dos Santos, endossam a autoria de Diomedes.
Sigo Reifferscheid pela preocupação, digna de ulterior investigação especializada, de restaurar o tratado
De Poetis, de Suetônio, servindo-se de várias fontes, entre as quais os gramáticos latinos, como explica nas
páginas VIII-XX. Os dois excerptos estão nas páginas 482 e 483 da edição de Keil.
7 VERG. Buc. 9, 1.
8 PREMONITÓRIA: uso o termo na acepção daquilo “que serve de advertência” (Houaiss, s.v., 3); a
anteriordade implícita no prefixo não é a do “pressentimento” do futuro, mas a da advertência para
cuidar de agir no presente em vista de um futuro melhor. Como Teógnis é mencionado, exemplifico a
advertência com versos dele (fr. 8, 145-448):
Βούλεο δ' εὐσεβέων ὀλίγοις σὺν χρήμασιν οἰκεῖν Prefiras, Cirno, ser com poucos bens piedoso,
ἢ πλουτεῖν ἀδίκως χρήματα πασάμενος. a enriquecer com bens injustamente.
ἐν δὲ δικαιοσύνηι συλλήβδην πᾶσ' ἀρετή 'στι, Toda justiça está inteira na excelência
πᾶς δέ τ' ἀνὴρ ἀγαθός, Κύρνε, δίκαιος ἐών.
e todo homem sendo justo é bom.
Tradução minha.
9 Rep. 606e. Veja-se Marcel Detienne, p. 27: “Tradicionalmente a função do poeta é dupla: ‘celebrar os
Imortais e celebrar as façanhas dos homens intrépidos’. O exemplo de Hermes pode ilustrar o primeiro
registro: ‘elevando a voz, tangendo harmoniosamente a cítara, cujo amável canto o acompanhava, tornou
efetivos (κραίνων), mediante seus louvores, os Deuses Imortais e a Terra tenebrosa; dizia o que no
princípio foram e que atributos recebeu cada um deles na partilha’. Estamos no plano dos mitos de
aparição e ordenamento, das cosmogonias, das teogonias”. Esse plano, que evidentemente diz respeito a
Hesíodo, o mais antigo representante da “poesia didáctica”, conviria perfeitamente a tal nomenclatura,
mas note-se como prossegue Detienne: “Mas ao lado das histórias divinas, existe também em toda tradição
grega uma palavra que cel ebra as façanhas individuais dos guerreiros ”, o que nitidamente diz respeito a
Homero, que assim não deixaria de ser igualmente poeta didáctico. (Sombreado meu).
10 A tradução é sempre de Eudoro de Sousa.
71

11O critério ético permeia o pensamento de Aristóteles, como se pode aferir por ser o mesmo com que na
Retórica discrimima as espécies do gênero demonstrativo (1, 3, 3; 1358b, 12-13):
ἐπιδεικτικοῦ δὲ τὸ μὲν ἔπαινος τὸ δὲ ψόγος No gênero epidítico temos tanto o elogio, quanto a
censura;

depois (1, 3, 5; 1358b, 27-28):


τοῖς δ' ἐπαινοῦσιν καὶ ψέγουσιν τὸ καλὸν καὶ Para os que elogiam ou cesnuram, o fim é o belo e o
τὸ αἰσχρόν. feio.
e ainda (1, 9, 1; 1366a, 23-26):
μετὰ δὲ ταῦτα λέγωμεν περὶ ἀρετῆς καὶ Depois disto, falemos da virtude e do vício, do belo e
κακίας καὶ καλοῦ καὶ αἰσχροῦ· οὗτοι γὰρ do vergonhoso; pois estes são os objetivos de quem
σκοποὶ τῷ ἐπαινοῦντι καὶ ψέγοντι· elogia ou censura. Com efeito, sucederá que ao
συμβήσεται γὰρ ἅμα περὶ τούτων λέγοντας
mesmo tempo que falarmos destas questões,
estaremos também a mostrar aqueles meios pelos
κἀκεῖνα δηλοῦν ἐξ ὧν ποιοί τινες
quais nós deveremos ser considerados como pessoas
ὑποληφθησόμεθα κατὰ τὸ ἦθος. de um certo caráter;
e finalmente (1, 9, 32; 1367b, 22-24):
ἐπεὶ δ' ἐκ τῶν πράξεων ὁ ἔπαινος, ἴδιον δὲ Ora como o elogio provém das ações, e é próprio do
τοῦ σπουδαίου τὸ κατὰ προαίρεσιν, homem honesto agir por escolha, é preciso
πειρατέον δεικνύναι πράττοντα κατὰ empenharmo-nos em mostrar que ele agiu por
προαίρεσιν. escolha.
Tradução de Manuel Alexandre Júnior, Paulo Farmhouse Alberto, Abel do Nascimento.
12 Aristóteles, com efeito, não deixa de apontar esparsamente outros elementos da epopéia, por exemplo:
a) que o metro é invariável (1449b, 11): τὸ μέτρον ἁπλοῦν ἔχειν b) que é narração, empregando para
“narração” dois termos, ἀπαγγελία (1459b, 26) ἐν δὲ τῇ ἐποποιίᾳ διὰ τὸ διήγησιν, e διήγησις (1449b,
10): τῷ δὲ τὸ μέτρον ἁπλοῦν ἔχειν καὶ ἀπαγγελίαν εἶναι; c) que é arte mimética em hexâmetros (1449b,
21): ἐν ἑξαμέτροις μιμητικῆς; d) que, por não ter atores, admite o irracional e o maravilhoso (1460a, 13-14):
ἐποποιίᾳ τὸ ἄλογον, δι' ὃ συμβαίνει μάλιστα τὸ θαυμαστόν, διὰ τὸ μὴ ὁρᾶν εἰς τὸν πράττοντα. Mas
esses elementos, com toda adequação que apresentem, subordinam-se ao critério ético, como se verá pelo
que diz de Empédocles e Heródoto.
13 Horácio, conquanto persiga a direção aristotélica (ver abaixo comentário de Rostagni), trilha, por assim
dizer, sentido oposto, pois, partindo da matéria – que para a épica diz ser “ações realizadas, de reis e
chefes, e as tristes guerras” – chega ao gênero que, mencionado Homero, nem precisa nomear. Horácio
descreve épica, elegia, iambo e lírica nessa ordem, e em cada um desses gêneros sempre aponta matéria
(res, v. 82); ritmo (numerus, v. 74), e, quando possível, o inventor (Homerus, v. 74, Archilocum, v. 79),
deixando evidente que entre matéria e ritmo há adequação (decenter, v. 92) estabelecida na origem pelo
inventor (auctor, v. 77, correspondente aqui a ἑυρηθῆς; cf. Rostagni, v. 73). É de notar que, assim
procedendo, Horácio a) parece querer poeticamente mimetizar o processo pelo qual as matérias ocupam
adequadamente o lugar que lhes cabe pela acaso (v. 92); b); indigita precisamente as diferentes matérias
dos diferentes gêneros de poesia, enquanto Aristóteles as designa pelo acusativo neutro plural: do pronome
ἕτερα, “coisas diferentes” (1447a, 17); do artigo ἃ, “as coisas” (1448a, 25); do pronome τὰ αὐτὰ, “as
mesmas coisas” (1448a, 20). (Ao dizer que a matéria ou argumento da Odisséia é breve, emprega o termo
λόγος (455b, 17) Ὀδυσσείας οὐ μακρὸς ὁ λόγος ἐστίν. Faz o mesmo em 1455a, 34 para tragédia.
14 Poet. 1447b, 13-20:
72

πλὴν οἱ ἄνθρωποί γε συνάπτοντες τῷ μέτρῳ Porém, ajuntando à palavra “poeta”, o nome de


τὸποιεῖν ἐλεγειοποιοὺς τοὺς δὲ ἐποποιοὺς uma só espécie métrica, aconteceu denominaram-se
ὀνομάζουσιν, οὐχ ὡς κατὰ τ ὴν μίμησιν ποιητὰς a uns de “poetas elegíacos”, a outros de “poetas
ἀλλὰ κοινῇ κατὰ τὸ μέτρον προςαγορεύοντες· καὶ
épicos”, designando-os assim, não pela imitação
praticada, mas unicamente pelo metro usado. E se
γὰρ ἂν ἰατρικὸν ἢ φυσικόν τι διὰ τῶν μέτρων
explicarem um tema de medicina ou de física em
ἐκφέρωσιν, οὕτω καλεῖν εἰώθασιν· οὐδὲν δὲ verso, é costume aplicar-lhe este nome, mas nada
κοινόν ἐστιν Ὁμήρῳ καὶ Ἐμπεδοκλεῖ πλὴν τὸ têm em comum Homero e Empédocles com exceção
μέτρον, διὸ τὸν μὲν ποιητὴν δίκαιον καλεῖν, τὸν δὲ do metro. Por isso, é justo chamar àquele “poeta” e
φυσιολόγον μᾶλλον ἢ ποιητήν· a este “fisiólogo” mais que “poeta”.

E em 1451a, 36-40:
Φανερὸν δὲ ἐκ τῶν εἰρημένων καὶ ὅτι οὐ τὸ τὰ Pelas precedentes considerações se manifesta que
γενόμενα λέγειν, τοῦτο ποιητοῦ ἔργον ἐστίν, ἀλλ' não é ofício de poeta narrar o que aconteceu; é, sim,
οἷα ἂν γένοιτο καὶ τὰ δυνατὰ κατὰ τὸ εἰκὸς ἢ τὸ o de representar o que poderia acontecer. Com
ἀναγκαῖον. ὁ γὰρ ἱστορικὸς καὶ ὁ ποιητὴς οὐ τῷ ἢ efeito, não diferem o historiador e o poeta por
ἔμμετρα λέγειν ἢ ἄμετρα διαφέρουσιν (εἴη γὰρ ἂν escreverem verso ou prosa (pois que bem poderiam
τὰ Ἡροδότου εἰς μ έτρα τεθῆναι καὶ οὐδὲν ἧττον ser postas em verso as obras de Heródoto, e nem
ἂν εἴη ἱστορία τις μετὰ μέτρου ἢ ἄνευ μέτρων)· por isso deixariam de ser história, se fossem em
ἀλλὰ τούτῳ διαφέρει, τῷ τὸν μὲν τὰ γενόμενα verso o que eram em prosa) – diferem, sim, em que
λέγειν, τὸν δὲ οἷα ἂν γένοιτο. διὸ καὶ
diz um as coisas que sucederam, e outro as que
poderiam suceder. Por isso a poesia é algo de mais
φιλοσοφώτερον καὶ σπουδαιότερον ποίησις
filosófico e mais sério do que a história, pois refere
ἱστορίας ἐστίν· ἡ μὲν γὰρ ποίησις μᾶλλον τὰ
aquela principalmente o universal, e esta o
καθόλου, ἡ δ' ἱστορία τὰ καθ' ἕκαστον λέγει.
particular.
15 Da Teogonia poder-se-ia conjecturar que Aristóteles a considerasse épica pela superioridade do caráter
dos deuses e pela conversibilidade em tragédia de parte do argumento, que se vê pelo Prometeu Prisioneiro,
de Ésquilo.
16 Cf. Rostagni, p. vii (tradução nossa): “as fontes que confluem em Horácio estão em grande parte
perdidas (com exceção da Poética de Aristóteles e de outros poucos fragmentos)”. Outras fontes de Horácio
são um tratado peripatético Περὶ Ποιητικῆς, de Neoptólemo de Pário (entre fim do séc. IV e início do III
a.C), do qual se reconheceram fragmentos citados no tratado Περὶ Ποιημάτων, de Filodemo, e Dídimo de
Alexandria, (filólogo que viveu em Roma no século I a.C., contemporâneo de Augusto e de Horácio) autor
de Περὶ Ποιητῶν. Pode-se reconstruir, assim, como que uma teia entretecida pelo tocar-se de alguns
teóricos da poesia, posteriores a de Aristóteles: Neoptólemo de Paros, Filodemo, Dídimo de Alexandria e até
aqui Horácio. O que importa ressaltar é que, mercê da mudança de perspectiva teórica dos teóricos
alexandrinos, a que concorreram a criação das bibliotecas e, pois, o tipo de filologia escrita lá praticada, ao
critério de Aristóteles – centrado no conceito mesmo de mimese de ações e caracteres de homens
superiores, que se encontram, enfim, no mito e na natureza – soma-se ao quase de substituir, o conceito de
imitação que, mediante a emulação de autores (bem entendido, poetas dotados de autoridade), incide agora
em seus poemas, tomados assim como modelos. Dada vênia ao didatismo, Aristóteles registra e prescreve
que o poeta imita a natureza, os teóricos helenísticos, de que Horácio em parte é representante,
prescrevem que o poeta imite a imitação feita pelos poeta anteriores. Para ilustrar a afirmação, atente-se
para esta extraordinária passagem da Poética (1459b, 31-35):
73

τὸ δὲ μέτρον τὸ ἡρωικὸν ἀπὸ τῆς πείρας Quanto à métrica, prova a experiência que é o verso
ἥρμοκεν. εἰ γάρ τις ἐν ἄλλῳ τινὶ μέτρῳ heróico o único adequado à epopéia; efetivamente se
alguém pretendesse compor uma imitação narrativa,
διηγηματικὴν μίμησιν ποιοῖτο ἢ ἐν πολλοῖς,
quer em metro diferente do heróico, quer servindo-se
ἀπρεπὲς ἂν φαίνοιτο· τὸ γὰρ ἡρωικὸν de metros vários, logo se aperceberia da incoveniência
στασιμώτατον καὶ ὀγκωδέστατον τῶν μέτρων da empresa. Na verdade, o verso heróico é o mais
ἐστίν (διὸ καὶ γλώττας καὶ μεταφορὰς δέχεται
grave e o mais amplo, e, portanto, melhor que
qualquer outro se presta a acolher vocábulos raros e
μάλιστα. metafóricos.
1460a, 2-5:
διὸ οὐδεὶς μακρὰν σύστασιν ἐν ἄλλῳ eis porque ninguém se serviu de verso que não fosse o
πεποίηκεν ἢ τῷ ἡρῴῳ, ἀλλ' ὥςπερ εἴπομεν heróico para compor um poema extenso. Como
αὐτὴ ἡ φύσις διδάσκει τὸ ἁρμόττον αὐτῇ dissemos, a própria natureza nos e nsinou a escolher
αἱρεῖσθαι. o metro adequado .

(Sombreados meus). Horácio, na passagem citada, alude evidentemente à sentença final de Aristóteles,
mas altera-a: a Aristóteles, quem lhe ensina o metro adequado é a natureza, enquanto a Horácio, quem
lho mostra primeiro é Homero.
17 Photius = Severyns, p. 34.

18 Pisandro de Rodes (séc. VII–VI a.C), autor de uma Heracléia.


19 Paníase de Halicarnasso (séc. V a.C.), autor de uma Heracléia.
20 Antímaco de Cólofon (c.405) autor de uma Tebaida.
21 ÊNIO: Ennius; como lê Reifferscheid. Keil não insere o nome do poeta.
22O vocábulo ἔπος provém de ϝέπος com digama, da raiz *wekw_, em que o fonema /w/ sofreu aférese,
mas em latim se manteve na palavra cognata uox, “voz”, sentido que não deixa de estar muito próximo da
acepção de “palavra” por excelência no âmbito oral das respostas oraculares.
23 Apolônio de Rodes (séc. III a.C.), autor das Argonáuticas.
24 Aristarco da Samotrácia (c.217–145 a.C.), bibliotecário, gramático e filólogo alexandrino. Aristófanes
de Bizâncio (c.247–180 a.C), bibliotecário de Alexandria, editor da Ilíada e da Odisséia.
25 Emílio Macro, amigo de Ovídio, imitou Nicandro (ver nota seguinte) no poema Teríacas; é autor da
Ornitogonia (“origem das aves”), que é tradução ou imitação da Ὀρνιθογονία do poeta e gramático grego
Boeu; cf. ATH. 9, 49.
26Nicandro de Cólofon (séc III a.C.), compôs 1) Teríacas (θηριακά, do adjetivo θηριακός, relativo a θήρ,
“animal selvagem”), que se poderia traduzir por “mordeduras de animais venenosos”: é poema
hexamétrico sobre tais ferimentos; 2) Alexifármacas (de ἀλέξω, “repelir” e φάρμακον, “droga”), traduzível
por “antídotos”, é poema hexamétrico sobre a cura daquelas mordidas; 3) Metamorfoses (Ἑτεροιούμα, mais
propriamente Alterações), em que descreve a transformação de personagens mitológicas em pássaros. Foi
imitado por Ovídio nas Metamorfoses, e Virgílio nas Geórgicas. Nicandro deveria ser patrono do Instituto
Butantã.
27 Varrão Atacino (82–37 a.C.), tradutor das Argonáuticas, de Apolônio de Rodes, e autor de poemas
épicos.
28 Quinto Ênio (239–169? a.C), entre outras obras é autor dos Anais, epopéia histórica.
29 Cornélio Severo, amigo e contemporâneo de Ovídio. A guerra da Sícilia foi contra Pompeu e seu
poema talvez integrasse uma obra maior sobre as guerras civis. Sêneca nas Suasórias preservou fragmento
de seu poema.
74

30 Serrano, poeta desconhecido.


31 Caio Valério Flaco (morto por volta de 95 d.C), autor de umas Argonáuticas, que deixou incompletas.
32Saleio Basso: protegido de Vespasiano, elogiado por Tácito no Diálogo dos Oradores; nada restou de sua
obra.
33 Rabírio, Pedão. Rabírio, contemporâneo de Ovídio, supostamente autor de um fragmento sobre a
batalha de Ácio, achado em Herculano. Caio Albidovano Pedão é autor de poema sobre a viagem de
Germânico ao norte da Germânia.
34 “A fonte mais segura que chegou até nós sobre a ubicação da categoria [de lírica] nas classificações
alexandrinas é a Crestomatia de Proclo, possivelmente um gramático do século II de nossa era, cuja obra foi
resumida por Fócio, na Biblioteca. Trata-se de um manual de literatura que examina as diferentes espécies
poéticas e que se apresenta sob a forma de uma classificação em árvore. Em geral, considera-se que o
verdadeiro autor da repartição é Dídimo, o grande compilador dos estudos do Museu, que sintetiza e
difunde as teses alexandrinas até o século I a.C. [...] As [...] genealogias, com efeito, apontam claramente
para Alexandria e dão crédito a raiz alexandrina de uma classificação que, pela freqüência com que foi
reproduzida, gozou de sem dúvida de certo prestígio durante a Antigüidade.” Gustavo Guerrero, Teorías de
la Lírica, México: Fondo de Cultura, 1998, p. 38, tradução nossa).
35 Esta ordem da poesia narrativa está presente no seguimento dos excerptos de Horácio: épica, v. 73-74;
elegia, v. 75-78; iambo, v. 79; excurso sobre iambo na tragédia e na comédia: v. 80-82; lírica, v. 83- 85.
Em Quintiliano, sempre no livro 10, capítulo 1, o rol de poetas gregos começa pela épica, 46-58; elegia,
58-59; iambo, 59-61 e lírica, 61-64. O rol de poetas latinos começa pela épica, 85-92; elegia, 93; sátira, 93-
96, a qual, sendo a seu ver exclusivamente romana (tota nostra), não tem correspondente entre os gregos, o
que não desfaz, pois, a ordem; iambo, 96; e lírica, 96. Proclo, embora anuncie o iambo antes da elegia (§
12), apresenta-o na ordem usual: épica, 13-23; elegia, 24-27; iambo, 28-31; lírica, 32-99. Severyns, p. 81,
conjectura possível lapso. Fócio, por fim, anuncia os gêneros da poesia narrativa na ordem usual, 319a, 5-8,
e assim os apresenta: épica, 319a, 17-319b, 5; elegia, 319b, 6-14; iambo, 319b, 15-31; lírica, 319b, 32-322a,
40.
36 Ensina Pfeiffer (1973), p. 324 (tradução minha): “O termo grego para “escolher” autores e “indicar” os
seus nomes em listas escolhidas era γκρίνειν e esses autores foram chamados γκριθέντες. Temos uma
atestação disso só para oradores, mas deve ser aplicada também aos poetas, pois quando Horácio concluía
a primeira ode do primeiro livro com uma expressão florida quod si me lyricis uatibus inseres aludia com
certeza a este termo e acariciava a esperança de que Mecenas o pusesse no grupo dos nouem lyrici. O termo
de Quintilino, ordo, transferido da terminologia das classes sociais à esfera literária, não foi o que os autores
posteriores preferiram. Mas em Cícero encontramos uma distinção de classes quando, ao compará-lo com
Demócrito, arrola um filósofo estóico na quinta classe (Acad. 2, 73); e tornou-se habitual em Roma chamar
os γκριθέντες, classici, que significa escritores da primeira classe, primae classis na linguagem militar e
política. Mais tarde ouviremos muito este termo, que se nos tornou familiar porque o adotaram os
filólogos do Renascimento. Os repertórios completos foram chamados πίνακες, indices; mas não havia uma
palavra grega ou latina correspondente para as listas escolhidas. Em 1768 o termo “cânon” foi cunhado
por David Runken (Historia Critica Oratorum Graecorum, ed. Rutilio Rupo, 1768, p. 386), quando escreveu Ex
magna oratorum copia tamquam in canomen decem dumtaxat rettulerunt (sc. Aristarchus et Aristophanes Byzantius). Então,
Runken deixou escapar o cuidadoso tamquam e continuou a chamar todas as listas escolhidas canones”.
37 Op. cit. p. 158.
38 Frag. 452-453 (Pf).
39O critério era geral (Cantarela, p. 172, tradução minha): “a ele [Aristófanes de Bizâncio] e a Aristarco
remontam alguns 'cânones', ou seja listas, em que fixavam os nomes dos autores mais importantes em cada
gênero”; Mesmo que se argumente que Aristóteles compare épica e tragédia (1449b, 9-16; 1462a-b),
75

gêneros diferentes, ele os compara porque parte do facto de que ambos pertencem ao conjunto de poemas
cujas personagens são superiores.
40 Gustavo Guerrero (op. cit. p. 35) sublinha bem o efeito ativo do cânon: “como todo cânon, o cânon
alexandrino implica seleção valorativa que se impõe com força de autoridade e aspira a modelar de forma
duradoura a compreensão da herança literária. Alastair Fowler [Kinds of Literature: an Introduction to the Theory
of Genres and Modes; Oxford University Press, 1982] demonstrou sua importância no plano genérico como
fonte permanente de exemplos dignos de imitar. Neste sentido, pode dizer-se que o cânon dos nove líricos,
por exemplo, constitui um modelo de escritura, ao fixar as pautas que há de seguir a poesia romana.
Ademais, oferece retrospectivamente uma imagem unificada do grupo que pressupõe a existência da classe
e confere um estatuto genérico, pois não se pode esquecer que os cânones alexandrinos, diferentes dos
medievais, são também cânones de gêneros (εἴδη)”.
41 Refiro-me às reflexões de Rossi, pp. 69-94.

42 Op. cit. p. 41.


43 Gustavo Guererro, p. 42.
44 p. 68, tradução minha, itálico do autor.
45 Florence Dupont (1994, p. tradução minha): “O recitator tem absoluta necessidade da presença dos
ouvintes, que participam ativamente da leitura, são eles que a solicitam – ele não lhé dá início a não ser a
pedido do público –, são eles que com seu aplauso o farão continuar e que por fim lhe farão críticas. A
recitatio é tão importante na vida de um nobre romano, que assistir a ela é um dos deveres do cliente, um
dever moral e social. Não se trata somente de assistir à leitura, mas de emitir juízos sobre a qualidade do
texto. O evento põe à prova as virtudes amicais dos participantes: o rigor intelectual, a honestidade, a
franqueza de cada um serão apreciados entre os ouvintes, assim como no recitator a lucidez e a modéstia,
aceitando as críticas e em conseqüência corrigindo seu texto”.
46 É autor de Manílio, Astronômicas: Tradução, Introdução e Notas. Dissertação de mestrado, 2006, e de As Faces
da Razão: Instrução e Mimese nas Astronômicas de Manílio, orientadas por Zélia de Almeida Cardoso,
infelizmente ainda inéditas.
47 A possibilidade de estender indefinidamente essas espécies decorre do desejo que os poetas têm de tratar
de matéria inaudita. Não entro no mérito da tendência infinita nem do desejo de inauditismo, mas deixo
registrado aqui que uma paródia como a Batracomiomaquia, “a batalha das rãs contra os ratos” pode não
querer alvejar precipuamente os poemas homéricos, ainda que seja inevitável que o faça, mas bem essas
espécies zoofílicas.
48 Opiano de Córico leu as Haliêuticas a Marco Aurélio em 169 d.C.
49 Opiano de Apaméia dedicou as Cinegéticas a Caracala, no início do século III d.C.
50 Bryn Mawr Classical Review (1998), 11, 39; http://bmcr.brynmawr.edu/1998/1998-11-39.html.
“Martindale shares (although not acknowledging) the minority view that Horace classified the Bucolics as a
species of epos not forte but molle atque facetum (p. 113): read similarly by, e.g., Farrell, Leclerq, myself, and
Fraenkel.”
51 Cambridge: Cambridge University Press, 1997, pp. 107-124.
52 Joseph Farrell, pp. 61-63.
53 R. Leclerq, pp. 266 e 405, nota 710.
54 Eduard Fraenkel, p. 130.
55 Poética (1451a, 17-21):
76

πολλὰ γὰρ καὶ ἄπειρα τῷ ἑνὶ συμβαίνει, ἐξ ὧν Muitas são as ações que uma pessoa pode praticar, mas
ἐνίων οὐδέν ἐστιν ἕν· οὕτως δὲ καὶ πράξεις não por isso elas constituem uma ação una. Assim,
ἑνὸς πολλαί εἰσιν, ἐξ ὧν μία οὐδεμία γίνεται parece-me que tenham errado todos os poetas que
πρᾶξις. διὸ πάντες ἐοίκασιν ἁμαρτάνειν ὅσοι
tenham composto uma Heracleida, ou uma Teseida, ou
τῶν ποιητῶν Ἡρακληίδα Θησηίδα καὶ τὰ
τοιαῦτα ποιήματα πεποιήκασιν· οἴονται γάρ, outros poemas que tais, por entenderem que, sendo
ἐπεὶ εἷς ἦν ὁ Ἡρακλῆς, ἕνα καὶ τὸν μῦθον εἶναι Héracles um só, todas as ações haviam de constituir
προσήκειν. uma unidade.
56 Poética (vv. 136-152), particularmente vv. 136-137:
nec sic incipies, ut scriptor cyclicus olim não iniciarás como outrora o escritor cíclico:
'fortunam Priami cantabo et nobile bellum’. “a fortuna de Príamo cantarei e a famosa guerra”.
É notável o contraste com o proêmio da Aquileida (vv. 1-7), de Estácio, por cujo mero título já se vê que o
poeta não acede à prescrição de Aristóteles nem à de Horácio (os grifos são meus):
Magnanimum Aeaciden formidatamque Tonanti O magnânimo eácida e a formidável raça,
progeniem et patrio uetitam succedere caelo, que o Tonante vedou subir ao pátrio céu,
diua, refer. Quamquam acta uiri multum inclita cantu conta, deusa. Embora gestas do varão vão afamadas no canto
Maeonio (sed plura uacant), nos ire per omnem meônio, muitas faltam: percorrer toda a vida do herói
sic amor estheroa uelis Scyroque latentem – assim desejo – e narrar com trombeta dulíquia que ele
Dulichia proferre tuba nec in Hectore tracto em Ciros se ocultou em véus, e em Heitor arrastado
sistere, sed tota iuuenem deducere Troia. não parar, mas despojar de Tróia inteira a juventude.
57 Poemas e tradução no “Apendículo” no fim do capítulo.
77

Capítulo 3

De como um Bando de Poetas Abusou da Elegia Arcaica


e Ela Acabou Se Emprenhando de Diferentes Sujeitos

1) UMA HISTÓRIA POR FAZER

Desde a origem no Período Arcaico das letras gregas, até chegar à espécie erótico-
amorosa praticada por Catulo no fim do período republicano em Roma, e logo depois por
Propércio, Tibulo e Ovídio, no começo do período imperial, a elegia transforma-se, o que
significa dizer que tem história: referir com funcional brevidade a teorização antiga sobre elegia
para conjecturar como os gregos helenísticos a entendiam (não são muitas as fontes) e entender
(atrevo-me) como os romanos se apropriaram dela no processo mesmo daquela transformação é o
que pretendo neste capítulo. A bem dizer, não são duas instâncias a) a transformação que a elegia
vinha sofrendo e b) a apropriação da elegia pelos romanos; antes, a apropriação romana é apenas
uma etapa das transformações que a elegia sofre ao longo da (sua) história. No âmbito das letras
antigas, a apropriação romana é a última etapa. Creio que o todo dinâmico e metamórfico da
elegia, ensejado pela unidade métrica, que só encontra similar na épica, ao qual se somam a
referência integradora que os poetas elegíacos helenísticos fazem de seus predecessores, a que os
romanos fazem de ambos e por último os testemunhos de gramáticos e escoliastas, justificam que
se faça um dia a história da elegia antiga, que, mais importante, como todo, do que suas partes
78

arcaica, helenística e romana, reclama, assim, mais a afeição inteira de verazes classicistas do que
a paixão sectária de helenistas e latinistas.

2) DE ἔλεγος, ἐλεγεῖον, ἐλεγεῖα: CONSIDERAÇÕES SOBRE ELEGIA GREGA ARCAICA

Apoiando-me primeiro no texto que Martin West publicou em 1974, que ainda é
referencial, confrontando-o com os mais recentes de Bowie e Aloni, procedo não exaustivamente
às três palavras-chave referentes à elegia em grego: ἔλεγος, ἐλεγεῖον e ἐλεγεῖα, que a partir do
Período Helenístico se tornaram quase equivalentes. A mais antiga é ἔλεγος, a mais recente é
ἐλεγεῖα. Começo por esta, porque é a menos problemática e menos importante. Ἐλεγεῖα é
atestada pela vez primeira em Aristóteles (Ath. 5, 2):

ἰσχυρᾶς δ ὲ τῆς στάσεως ο ὔσης καὶ πολὺν Como as facções eram violentas e como permaneciam
χρόνον ἀντικαθημένων ἀλλήλοις, ε ἵλοντο κοινῇ obstinadas em oposição uma à outra por muito
διαλλακτὴν κα ὶ ἄ ρχοντα Σόλωνα, καὶ τὴν tempo, elas em comum escolheram Sólon como
πολιτείαν ἐπέτρεψαν α ὐτῷ, ποιήσαντι τ ὴν
árbitro e arconte, e confiaram-lhe o governo, a ele que
ἐλεγείαν ἧς ἐστὶν ἀρχή:
compôs a elegia que começa assim:
γιγνώσκω, καί μοι φρενὸς ἔνδοθεν ἄλγεα κεῖται, percebo e dentro de meu peito jaz a dor
πρεσβυτάτην ἐσορῶν γαῖαν Ἰαονίας κλινομένην·
ao ver que a terra mais antiga da Jônia jaz tombada.
(Tradução minha)1.

Teofrasto (H.P. 9, 15, 1), citando Ésquilo, fornece a segunda ocorrência:

καὶ γὰρ Α ἰσχύλος ἐν τα ῖς ἐλεγείαις ὡς Ésquilo nas elegias fala de Tirrênia como abundante
πολυφάρμακον λέγει τὴν Τυρρηνίαν: em fármacos:
Τυρρηνὸν γενεάν, φαρμακοποιὸν ἔθνος. raça de Tirrênia, gente fazedora de fármacos.

West (p. 3) adverte que o verso citado pode integrar epitáfio e atesta que o uso posterior do termo
é quase o mesmo: no singular designa a) longo poema em metro elegíaco e b) o gênero elegíaco;
no plural designa a) quaisquer poemas elegíacos e eventualmente o título dos poemas e b) versos
elegíacos. Em suma, para designar gênero ocorre apenas o singular ἐλεγεῖα.
O segundo termo é ἐλεγεῖον (derivado de ἔλεγος) cuja diferença para com ἐλεγεῖα os
gramáticos e comentadores antigos já haviam percebido, como o escoliasta em Dionísio da
Trácia2, (p. 172, 13-15):

Ἰστέον δ ὲ ὅτι ἐλεγεῖον ἐλεγείας διαφέρει· É visível que elegêion difere de elégeia. Dizemos
ἐλεγεῖον γάρ ἐστιν, ὅταν ε ἷς στίχος ὑπάρχῃ καὶ elegêion toda vez que nos referimos a um único verso
πεντάμετρος, ἐλεγεία δέ, ὅταν ὅλον τ ὸ ποίημα que seja também pentâmetro; diz-se elegêia quando
ἀμοιβαῖα ἔχῃ τὰ μέτρα, ἑξάμετρον κα ὶ um poema inteiro tem, alternados, os metros
πεντάμετρον. hexâmetro e pentâmetro.
79

Ἐλεγεῖον em suma designa precisamente o verso pentâmetro, assim como hoje em português,
notamos, ora aqui, ora acolá, usarem a palavra “elegíaco” para designar apenas segundo verso do
dístico. Passo ao testemunho de Élio Herodiano3 (Boissonade, p. 30, 6), que no meu rol soma ao
termo um conteúdo temático, o lamento. A matéria lamentosa será importante para discutir o
termo principal ἔλεγος, que, adianto aqui, se tornará para os poetas críticos de Alexandria e para
os poetas e gramáticos romanos o termo técnico por excelência para designar o gênero “elegia”.

ἔλεγος, ὁ θρῆνος, ὅθεν καὶ ἐλεγεῖον, μέτρον élegos: o mesmo que treno; daí que elegêion é o metro
θρηνητικόν· próprio do treno.

Aqui ἐλεγεῖον é vinculado a treno, “lamento” e designa o pentâmetro dactílico como sinédoque
do dístico elegíaco. É compreensível: quanto à sucessão contínua (“catástica”?) de hexâmetros
dactílicos, o pentâmetro dactílico é o elemento diferencial e, nesse “universo” dactílico e
hexamétrico, é o que identifica elegia. Assim é usado por Luciano de Samósata (Tim. 46, 6)4:

Καὶ μὴν ἐλεγεῖά γε ᾄσῃ μάλα περιπαθῶς ὑπὸ Cantarás um lamento com todo o afeto sob este
ταύτῃ τῇ δικέλλῃ. enxadão bigúmeo.

E pelo tardio Sinésio de Cirene elogiando a calvície (Calv. 2, 14), em que o relaciona a θρῆνος:

ἐλεγεῖα ποιῶ θρῆνον ἐπὶ τῇ κόμῃ. Farei versos elegíacos como lamento pela a cabeleira.

É, todavia, mais oportuno o testemunho de pseudo-Teodósio, o Gramático, no tratado Περὶ

Γραμματικῆς (“Da Gramática”, p. 59, 8-12)5 porque menciona os três termos que estamos a
discutir:

ἐχρῶντο το ῖς ἐλεγείοις ἐπὶ τοὺς θρήνους· Usa-se nos trenos o pentâmetro elegíaco, isto é, o
ἐλέγους γ ὰρ ἐκάλουν το ὺς θρήνους ο ἱ παλαιοί. elegêion pois os antigos chamavam “elegias” [ἔλεγος]
Εἴρηται δ ὲ τὸ ἐλεγεῖον ἀπὸ τοῦ αἴ αἴ καὶ aos trenos. A palavra elegêion provém de dizer “ai, ai”
ἐπαινεῖν ἐπιταφίους τοὺς τεθνηκότας. Διαφέρει
e do elogio aos mortos diante do túmulo. Difere a
δὲ ἐλεγεῖον ἐλεγείας· ὅτι τὸ μὲν ἐλεγεῖον εἷς ἐστι
στίχος πεντάμετρος· ἐλεγεία δ ὲ ἔστι τ ὸ ὅλον palavra elegêion de elegêia porque, enquanto elegêion é
ποίημα ἔχον ἀμοιβαῖον τ ὸ μέτρον, καὶ só o verso pentâmetro, elegêia é o poema inteiro que
πεντάμετρον καὶ ἑξάμετρον. possui metros alternados: hexâmetro e pentâmetro.

O gramático ratifica o que se disse de ἐλεγεῖα e ἐλεγεῖον, e, para nós, traz à baila, enfim, ἔλεγος e
lhe apresenta etimologia que, além de o vincular à lamentação fúnebre, é recorrente nos
gramáticos gregos e latinos6, como se lê na Suda (s.v. ἔλεγος, epsilon 774,1-3):

Ἔλεγος: θρῆνος. ἀπὸ τοῦ ἒ ἒ λέγειν. ἢ οἱ Elegos: lamento. A palavra provém de “ê, ê légein”, isto é,
πρὸς α ὐλὸν ᾀδόμενοι θρ ῆνοι· τ ὸν γ ὰρ “falar ê!, ê!”. Ao som do aulo cantam-se lamentos, pois,
αὐλὸν πένθιμον ὑπειλῆφθαι. ἢ ὅτι πρὸς supõe-se, trata-se de oboé lúgubre. Ou porque ao som do
αὐλὸν ᾔδοντο ο ἱ θρῆνοι, τουτέστιν ο ἱ
80

ἔλεγοι. oboé se cantavam lamentos, isto é, as elegias [élegoi].

A mais antiga ocorrência é documentada por Pausânias (10, 7, 6), referindo o certame
aulódico de 586 a.C.:

Ἐχέμβροτος Ἀρκὰς θῆκε τῷ Ἡρακλεῖ Equêmbroto da Arcádia dedicou a Hércules


νικήσας τόδ' ἄγαλμ' Ἀμφικτυόνων ἐν ἀέθλοις, este dom quando venceu nos jogos dos Anfictiões
Ἕλλησι δ' ἀείδων μέλεα καὶ ἐλέγους. cantando aos gregos canções e lamentos [elegias ] [?].

(Sombreados meus).

West pondera como seria a apresentação, se triste, se alegre, mas acaba por admitir que o
termo ἔλεγος significa “lamento”. Em seguida, afirma que no século V o termo aparece seis
vezes7 entre 415–408 a.C. e “em todos esses passos”, diz ele, “significa ‘lamento cantado’ sem
implicações métricas” (p. 5). Na poesia posterior, continua West, ocorre no plural de quando em
quando com o sentido de “lamento”8.Quanto a Bowie, afirma que

Nossos fragmentos supérstites incluem alguns que “se poderiam descrever como
lamento”. Mas um exame mais detido revela que integram poemas cujo teor
principal é consolatório e não trenódico9.

E aponta os dois únicos poemas arcaicos que podem ser candidatos (p. 23) à elegia lamuriosa.
Trata-se de dois fragmentos de Arquíloco de Paros, o fragmento 13 (West):

κήδεα μὲν στονόεντα Περίκλεες οὔτέ τις ἀστῶν Ninguém se alegrará nas festas, Péricles,
μεμφόμενος θαλίηις τέρψεται οὐδὲ πόλις· nem nos há de exprobrar este agro luto.
τοίους γὰρ κατὰ κῦμα πολυφλοίσβοιο θαλάσσης Perdemos que varões no mar sonoro!
ἔκλυσεν, οἰδαλέους δ' ἀμφ' ὀδύνηις ἔχομεν E túmidos de dor os pulmões temos.
πνεύμονας. ἀλλὰ θεοὶ γὰρ ἀνηκέστοισι κακοῖσιν 5 Sem cura e eterno é o mal. E por leni-lo
ὦ φίλ' ἐπὶ κρατερὴν τλημοσύνην ἔθεσαν foi que aos mortais, meu caro, os deuses deram
φάρμακον. ἄλλοτε ἄλλος ἔχει τόδε· νῦν μὲν ἐς ἡμέας a forte paciência. A má fortuna
ἐτράπεθ', αἱματόεν δ' ἕλκος ἀναστένομεν, ora um, ora outro fere. Cruenta chaga
ἐξαῦτις δ' ἑτέρους ἐπαμείψεται. ἀλλὰ τάχιστα abriu-nos desta vez. Em outros, doutra.
τλῆτε, γυναικεῖον πένθος ἀπωσάμενοι. 10 Ânimo! E seque este femíneo pranto.

(Tradução de Aluísio de Faria Coimbra10).

E o fragmento 11 (W):

οὔτέ τι γὰρ κλαίων ἰήσομαι, οὔτε κάκιον Choro não vai curar a dor, nem vai torná-la
θήσω τερπωλὰς καὶ θαλίας ἐφέπων. pior festas, prazeres procurar.

O magnífico poema 1 revela sim o vínculo entre lamentação e consolo, que é o argumento de
Bowie. Leiamo-lo: os dois primeiros versos apresentam de imediato o luto, primeira palavra do
81

poema, (κήδεα, v. 1), cuja gravidade se afere porque é ratificada por στονόεντα (v. 2, “que causa
soluços”, ou “agro” na tradução) e pelo facto de que nenhum cidadão poderá censurá-lo (οὔτέ τις
ἀστῶν / μεμφόμενος, vv. 1-2) nem a cidade (οὐδὲ πόλις, v. 2): o sofrimento é, pois, decoroso
porque se entende que a catástrofe é coletiva e propriamente pública por causa da perda ou de
homens públicos ou de soldados a serviço do bem comum, homens cujo valor é indicado apenas
por τοίους substantivado (v. 3, “quais”, “que qualidade de homens!”, ou “que varões” na
tradução). Informam-nos que os cidadãos morreram num naufrágio o terceiro verso, κατὰ κῦμα

πολυφλοίσβοιο θαλάσσης (“a onda do mar que largo ressoa” ou “no mar sonoro”, na tradução),
e no quarto verso o oportuno cavalgamento de ἔκλυσεν (“tragou”), a relevar por adiamento a
catástrofe. A este encavalgamento responde o que ocorre simetricamente com πνεύμονας

(“pulmões”) no quinto verso, indicando o equivalente e cabível sofrimento dos cidadãos, que “têm
pulmões cheios de dor” (οἰδαλέους δ ' ἀμφ' ὀδύνηις ἔχομεν, v. 5), assim como (infere-se) os
pulmões dos náufragos estão cheios d’água, o que torna patético e oportuno o paralelismo. Uns
afogaram-se na água, outros afogam-se nas lágrimas. Meio do poema: no limiar do que seria
imódica e perigosa prostração, acaba o lamento e começa o consolo com a conjunção “mas”
(ἀλλὰ, v. 5), seguida de uma espécie de máxima, literalmente “os deuses deram, como remédio de
incuráveis males, a forte paciência” (θεοὶ γὰρ ἀνηκέστοισι κακοῖσιν / ὦ φίλ' ἐπὶ κρατερὴν

τλημοσύνην ἔθεσαν / φάρμακον, vv. 5-6). No gnoma o discurso se faz de todo sapiencial, e o poeta
ou, modernosamente, a persona loquens, já não sofre e prossegue adagiando. Reparo que pela
terceira vez ocorre debordamento, agora incidente na palavra φάρμακον, convidando-nos a lê-la
segundo aquela mesma simetria: o tragar do naufrágio, ἔκλυσεν (v. 4) inunda-lhes de dor os
pulmões, πνεύμονας (v. 5), cujo remédio, φάρμακον (v. 7), é a forte paciência, κρατερὴν

τλημοσύνην (v. 6). O poeta consola com sabedoria e o argumento do consolo é a inevitabilidade
dos males (ἀνηκέστοισι κακοῖσιν, v. 5), a que se soma a incerteza do acaso. Esta é indicada duas
vezes: a primeira, patente na tradução (v. 7), é, porém, só latente em grego: ἄλλοτε ἄλλος ἔχει

τόδε (v. 7, “ora um tem isto [esta sorte], ora outro”). A fortuna, que é incerta, fortuita, desta vez
desafortunadamente mostrou-se como infortúnio: νῦν μὲν ἐς ἡμέας / ἐτράπεθ' (vv. 7-8, “agora
contra nós voltou-se”). Dispenso-me de comentar o quarto enjambement, de ἐτράπεθ'. Segue-se
então a segunda indicação de que o acaso é incerto e padecido alternadamente por todos:
“cruenta chaga lamentamos, que depois por seu turno passará a outros” (αἱματόεν δ' ἕλκος

ἀναστένομεν / ἐξαῦτις δ' ἑτέρους ἐπαμείψεται, v. 9). Aqui o verbo ἐπαμείψεται – de ἐπᾰμείβω,
82

“ocorrer alternadamente” – coroa a consolação porque sugere e apenas sugere, amenizando o


truísmo, a igualdade da condição humana na alternância do revés, ou, em outras palavras, diz
que aquilo pode ocorrer com todas as pessoas. Hora de encerrar: a conjunção adversativa ἀλλὰ

articula a apóstrofe mediante a qual o poeta já não se dirige só ao ignoto Péricles, mas antes,
como é provável, exorta toda cidade, incluída no “vós”, sujeito de τλῆτε (v. 10), “suportai”,
“aguentai”, que têm praticamente valor interjectivo, algo como “força!”, “coragem!”. Neste
ponto a tradução peca porque o singular “seque” faz que o destinatário seja apenas Péricles, e
não todos os cidadãos. O imperativo torna parenético o último verso na exortação a cessar o
choro (ἀπωσάμενοι, v. 10): se imediatamente após a notícia da morte afogar-se em lágrimas é
decoroso (sofre-se na proporção direta do amor pelo morto), como no início, agora, após o
lamento e a consolação, o choro já é demasiado, é “coisa de mulher” (πένθος γυναικεῖον, v. 10),
pelo que o poeta exorta a cessá-lo o mais rapidamente possível (τάχιστα, v. 10): a vida continua.
O capítulo deve continuar.
O discurso do fragmento 11 dispensa síntese: tal como o do fragmento 13, menciona em
dísticos a dor e deixa entrever qual é o comportamento que se considera adequado na situação; bem
aqui desdiz o discurso do fragmento 13, pelo menos nos primeiros versos, segundo os quais,
segundo o poeta, é mister guardar luto e guardar-se de festas. Pode-se conjecturar que a diferença
se deve a que no fragmento 13 o poeta se refira à morte de várias figuras e ainda públicas, e no 13
– a confiar no testemunho de Plutarco, responsável aliás por que se tenha conservado – se refira à
morte de uma só pessoa – o marido da irmã –, que concerne ao âmbito privado. Entretanto, o
estado fragmentário, se nos permite usá-lo como máxima, impede que abusemos dele para
ulterior interpretação. Ambos, enfim, atestam a dor e mencionam um comportamento, bem
entendido, uma postura ética, diferente em cada caso, o que não me importa aqui. Penso ter
acabado de mostrar que a segunda metade do fragmento 13 é consolatória, o que não suprime o
carácter lamentoso da primeira metade. Para Bowie a consolação é mais importante (“primary
character”, p. 22), e ele pode ter razão. Ora, que poema “literário” há que tenha só a parte
trenódica? Mesmo a lírica trenódica acaba por assumir a consolação e a postura sapiencial, como
Adrados (p. 107) apontara há muito, muito tempo atrás:

A lírica não tem carácter propriamente ritual, de celebrar um morto particular,


mas dá mais ampla margem ao tema da dor causada pela morte [...]. Até mesmo
os trenos de Píndaro e Simônides, de resto muito mal conhecidos por nós, ainda
que se destinem às honras fúnebres de um morto particular, superaram a etapa
83

puramente ritual, em que o pranto e a dor eram o primordial. Alçam-se a uma


consideração geral, a uma filosofia da vida e da morte, que naturalmente se
mescla ao tema da debilidade do homem diante de deus. Buscam também
consolar os familiares do morto: esta é provavelmente a intenção do conhecido
fragmento 542 de Simônides, transmitido pelo Protágoras de Platão, em que se
discorre sobre os limites da areté, ou virtude humana.

Pode ser que a matéria lamentosa fúnebre, mercê da gravidade, seja o critério para identificar um
conjunto importante no interior das elegias consolatórias. Antes, porém, de tratar dessa
conjectura, lembro que nos três estudiosos a relação ἔλεγος / lamento é problemática. Um dos
problemas adianto aqui: por um lado ἔλεγος no século V designa elegia e designa “lamento”,
porém, por outro, a matéria que as elegias arcaicas efetivamente apresentam na maior parte dos
casos, como dissemos, não é fúnebre nem lamentosa. Vejamos ao vivo como nossos três
comentadores tratam da relação ἔλεγος / lamento; Bowie:

That a significant proportion of early Greek elegy was lamentatory is a necessary


condition for two propositions: (a) that in the archaic period élegos actually meant
“lament” and (b) that elegy was performed at funerals. All our evidence, however,
lamentatory Our surviving
suggests that little or no early Greek elegy was lamentatory.
fragments include a few which “might be described as laments”. But on closer
examination these turn out to be from poems whose primary character was
consolatory and not threnodic . Two of the poems are by Archilochus. From one,
composed on the death of his sister’s husband at sea, Plutarch indeed quotes a
couplet and describes Archilochus’ activity as θρηνῶν, and had the papyrus which
supplements it been more generous we might have been able to test that
description. As it is, neither Plutarch’s couplet nor the papyrus demonstrates that
this section of the poem was threndic, and we must be influenced by the other
lines from the same poem quoted by Plutarch later in the same work.
(Sombreados meus).

Para Bowie, ser consolatória faz que a elegia deixe de ser trenódica. Os poemas que cita são os
fragmentos 11 e 13 de Arquíloco, que leremos logo adiante. West, por seu turno, apoiando-se na
relação etimológica entre ἔλεγος e ἐλεγεῖον, crê que ἔλεγος significa sim “lamento”, e que ἐλεγεῖον
derive de ἔλεγος, mas impugna que o amplo gênero da elegia tenha surgido do lamento (pp. 6-7):

Ἐλεγεῖον, then, can only be derived from ἔλεγος which happens to be the only
form from this root that is attested earlier. We are bound to infer (a) that the
metre was characteristic of ἔλεγοι, though not necessarily the sole metre used for
them, (b) that there was no other named genre of which it was more
characteristic. “Named” is a crucial qualification. For suppose one were to argue,
“we know what genre the elegiac metre was characteristic of; it is that genre
which we call “elegy”, represented by Tyrtaeus & Co.; so their poems must have
84

been known in the fifth century as ἔλεγοι”, that would indeed sound like good
sense: but it would be impossible to reconcile with the facts that (a) none of those
poems is ever so called, either by its author or by anyone else – the only terms
applied to them, until they become ἐλεγεῖα, are the very general ones ἔπη (TH.
20, 22, 755?, 1321?; SOL. 1, 2; HDT. 5, 113, 2), ἀοιδή (SOL. 1, 2?; DION. ELEG. 1,
4?, ΙON ΕLEG. 27, 7?), ποίησις (DION. ELEG. 1, 2); (b) wherever ἔλεγος is used in
the fifth century, it has the very distinct meaning “lament”. It is possibl e to find
one or two elegiac poems that might be described as laments ( A RCHIL . 9 - 13,
S IMON . 16, A RCHEL . 1; Antimachus’ Lyde ) , but elegiac poetry generally cannot
have been known by a word that retained that meaning to the end of the fifth
century and beyond. The fact is, it was not known by any collective name: and
therefore, conspicuous though it was as a body of verse , it was not possible
to name the metre after it. It was not known by any collective name because it
had no single occasion or function. In archaic Greece it was the occasion, not the
metre, that conferred a name – paean, dithyramb, hymenaeus, partheneion,
skolion.
For the occasion of loss and bereavement there was evidently a kind of
lament, sung to pipe accompaniment, called ἔλεγος or ἔλεγο ι . This was what
Echembrotus sang before the Amphictions at their first great festival after the
Sacred War: he did it movingly, and was duly rewarded. At the time of the
metrician, probably something over a century later, its characteristic metre was
the e1egiac couplet. The fact that singer and piper had a traditional nome to
guide them may mean that the metre was more or less fixed, but we do not know
enough about the nature of nomes to be sure. Perhaps the elegiac laments of
Archilochus, Simonides and A rchelaus (if not the Lyde) were true specimens of the
genre. Or perhaps, as Denys Page 11 argued in 1936, the Doric elegy in Euripides’
Andromache (vv. 103 - 116) is the sole surviving representative of a special
Peloponnesian tradition going back to Clonas, S acadas and Echembrotus.
However this may be, the elegos lament is at best no more than one type of
compositlon for which the “elegiac” metre was used. There is no reason to seek
the origin of elegiac poetry generally in this one type, just because the metr e was
named after it.

(Sombreados meus).

Ora bem: Bowie crê que pouco ou nada da elegia grega arcaica seja lastimosa, enquanto segundo
West “os dois ou três poemas que poderiam ser classificados como lamento”, que de facto
chegam a oito (um dos quais Lide, deveras longo), envolvendo pelo menos quatro poetas, talvez
fossem verdadeiros espécimes do gênero. Com efeito, West não tem nenhuma restrição quanto à
possibilidade ou mesmo a probabilidade de ter havido elegia lamentosa e até concede que tenha
sido espécie ou gênero, só não admite que o amplo gênero elegíaco arcaico, cujo espectro
temático é muito vário, tenha surgido a partir da espécie trenódica. Ademais, aventa a antiga
hipótese de Page, rejeitada por Bowie, de ter existido uma tradição elegíaca peloponésia que,
radicada em Clonas, Sacadas e Equêmbroto, tenha sido lastimosa, a julgar pelo lamento elegíaco
85

em Andrômaca, de Eurípides, que é deveras notável:

Ἰλίωι αἰπεινᾶι Πάρις οὐ γάμον ἀλλά τιν' ἄταν À íngreme Ílion Páris não trouxe núpcias, mas ruína,
ἀγάγετ' εὐναίαν ἐς θαλάμους Ἑλέναν. ao levar Helena ao seu tálamo como esposa.
ἇς ἕνεκ', ὦ Τροία, δορὶ καὶ πυρὶ δηϊάλωτον Por causa dela, ó Tróia, por ferro e fogo prisioneira,
εἷλέ σ' ὁ χιλιόναυς Ἑλλάδος ὠκὺς Ἄρης tomou-te o ágil Ares de mil naus gregas
καὶ τὸν ἐμὸν μελέας πόσιν Ἕκτορα, τὸν περὶ τείχη e – pobre de mim! – ao meu marido Heitor, ao redor dos muros
εἵλκυσε διφρεύων παῖς ἁλίας Θέτιδος· o filho da marinha Tétis arrastou em seu carro;
αὐτὰ δ' ἐκ θαλάμων ἀγόμαν ἐπὶ θῖνα θαλάσσας, eu mesma, do tálamo fui levada às margens do mar,
δουλοσύναν στυγερὰν ἀμφιβαλοῦσα κάραι. com a escravidão odiosa a cingir-me a fronte.
πολλὰ δὲ δάκρυά μοι κατέβα χροός, ἁνίκ' ἔλειπον Do rosto verti copioso pranto, quando deixei
ἄστυ τε καὶ θαλάμους καὶ πόσιν ἐν κονίαις. cidade, leito e marido na poeira.
ὤμοι ἐγὼ μελέα, τί μ' ἐχρῆν ἔτι φέγγος ὁρᾶσθαι Ai, pobre de mim! Porque eu deveria ainda ver a luz do sol,
Ἑρμιόνας δούλαν; ἆς ὕπο τειρομένα como escrava de Hermíone? Oprimida por ela,
πρὸς τόδ' ἄγαλμα θεᾶς ἱκέτις περὶ χεῖρε βαλοῦσα abracei essa estátua da Deusa, como suplicante,
τάκομαι ὡς πετρίνα πιδακόεσσα λιβάς. e esvaio em lágrimas, qual fonte manando das pedras.

(Tradução de Rafael Brunhara)12

Aqui não há como Bowie dizer que se trata de consolo, não de lamento, pois Andrômaca, falando
consigo mesma, não está a consolar ninguém, nem a si mesma. Esta é a razão por que Antonio
Aloni matiza a opinião do colega, embora endosse outras, para desenvolver a hipótese de que a
elegia é um “meio de comunicação” que se mostrou adaptável a uma série de circunstâncias e
temas (p. 182). Diz Aloni (pp. 169 e 170):

Ewen Bowie understands ἔλεγος as “the sort of song usually accompanied by the
aulos, that was sung chiefly at symposia”. This interpretation seems to prevail, but
it is hard to deny that it is problematic in some instances. First, there is the use of
elegiac couplets in Euripides’ Andromache (vv. 103-116), when the protagonist
laments her own fate, as a continuation of the mourning that culminates in
Hector’s death and Troy’s ruin. Moreover Euripides frequently employs the term
ἔλεγος, without exception referring to a sad and mournful song. Since we can
hardly consider complaint as a dominant characteristic of elegy at the time of
Euripides, this characterisation of ἔλεγος must be explained in other ways: it may
be wrong to postulate a regional tradition or to assume that elegy ha d its origin in
lament, but there must have been some forms of elegy in which complaint and
mourning prevaile d . […]

Elegy is performed in two different contexts: private or sympotic and public. At


the symposion, elegy is usually sung, accompanied by an aul os. Public elegy is
more problematic. Bowie, in an influential essay, assigned elegiac performance
almost exclusively to the symposion; the only exceptions were the very long
narrative elegies which had a different setting: “these narratives were intended for
performances in competition at public festivals”. When Bowie wrote this, long
narrative elegiac poems were no more than a shadow: only titles reported in very
late sources and some fragments attributed hypothetically to these elegies. The
1992 publication of the fragments of Simonides’ Plataea elegy broadly confirmed
86

Bowie’s hypotheses, and has altogether changed our understanding of elegy.


Simonides’ elegy is not simply narrative, but it is also celebratory, exhortatory and
funerary because at the core of the preserved texts is the commemoration of those
who fell at Plataea. It is conceivable that the aulos also accompanied public
elegiac performances. However, the remarkable ability of elegy to adapt itself to
different performance contexts and to diff erent kinds of subject matter should
make us hesitate before excluding a priori all modes of performance other than
song accompanied by the aulos .

(Sombreados meus).

Aloni compartilha com Bowie que não houve a tradição peloponésia (“regional tradition”)
sugerida por Page e compartilha com West a dupla asserção de que elegia não nasceu no
lamento, mas deve ter havido formas de elegia em que queixume e lamento foram característicos.
Todavia, ao avançar a interessante hipótese de que elegia é um “meio de comunicação (“medium
of communication”, p. 169), creio que leva adiante e patenteia uma idéia que A. E. Harvey tivera
no distante ano de 1955, exposta num ensaio capital. (pp. 170-171):

The point is important in connexion with the old controversy about the origin of
the elegy. It is well known that the “elegy” was believed by the ancients to have
been originally a lament. The earliest occurrence of the word ἔλεγος is in the
dedicatory inscription of Echembrotus at Delphi, where the context in Pausanias,
who quotes it (10, 7, 4), shows that it must have been some kind of lament; and
from the time of Aristophanes and Euripides ancient opinion was unanimous in
connecting it with mourning. The great objection to the ancient theory has always
been that the remains of archaic elegiac poetry simply do not bear it out: none of
the surviving elegies are dirges. But if the θρ ῆ νος was, or could be, a philosophic
reflection on the conditions of human life, or a message of consolation to the
bereaved; if, that is, its mood was not one of passionate lamentation but of sober
contemplation, this objection becomes less cogent. It becomes possible, for
example, to take the words of Plutarch (de aud. poeto 23a) τὸν ἄνδρα […]
ἠφανισμένον ἐν θαλάττῃ […] θρηνῶν, at their face value as introducing a θρῆνος,
since the elegiac fragment of Archilochus which is quoted is a perfectly
respectable example of the gnomic style of θρῆνος and moreover genuine
threnodic elegies may probably be discerned (as Friedlander, Epigrammata, pp. 66
ff., shrewdly observes) in Archilochus (?) 16 D, Anacreon 100 D, Simonides 84 D.
It becomes possible to understan d how the non - threnodic elegy may have grown out of
the threnodic: the mood of both is similar, that of advice, exhortation, and reflection.
The whole family of elegiac poetry becomes an intelligible entity. One can see how the
elegiac grave - epigram may ha ve grown out of the elegiac dirge; for why did Plutarch
so often call the grave - epigram an ἐπικήδειον , if not because it resembled the elegiac
ἐπικήδεια performed (according to Diomedes ad Dion. Thrax p. 20, 22 Hilg.) at
funerals. One can see the affinities of Euripides’ elegiacs in the Andromache with the
rest of the elegiac tradition; and if o ne postulates, with Professor Page, a forgotten
school of Dorian elegists, who used the form for a kind of lament (cf. the
87

σκυθρωπότατα μέλη of Echembrotus, the ἐπικήδεια of Olympus) something becomes


available to fill the curious gap between Homer and Sim onides; for otherwise, what
happened to θρ ῆ νος the during all that time?It is no longer necessary to assume
that the word ἐλεγεῖον stands only for the metrical form, which was used, quite by
coincidence, for two different types of composition: θρῆνος and elegy are
sufficiently alike to bear, without undue harshness, the same name. It is at last
possible to accept the testimony of Horace (who was only voicing the accepted
ancient view) that the one grew out ofthe other (A.P. 77 ff.):
Versibus impariter iunctis querimonia primum,
post etiam inclusa est voti sententia compos.

(Sombreados meus).

Harvey crê que a elegia se tenha originado no lamento, e ciente, como todos, de que as poemas
elegíacos que nos chegaram têm grande variedade temática, aventa a hipótese muito interessante
segundo a qual a variedade de temas tenha se desenvolvido a partir da unidade temática, que é o
lamento. Mas o mais importante é que, segundo sua hipótese, a instância que justamente
permitiu a diversificação foi “a mensagem de consolo” (“message of consolation”) e a “reflexão
filosófica” (“philosophic reflexion”) que se seguem a todo lamento. Ora, como espero termos visto
no poema de Arquíloco (a tanto visava a análise, afinal!), a morte implica dor, cujo consolo se
apóia em máximas gnômico-sapienciais. Sendo assim, o carácter meramente consolatório não
implica excluir o trenódico, como quer Bowie, mas, antes, segundo Harvey, decorre dele e tem
conseqüências. Com efeito, não foi o lamento em si mesmo que diretamente permitiu que a
unidade temática do lamento se tenha multiplicado na variedade de temas que as elegias arcaicas
apresentam: foram o consolo e as reflexões filosóficas que o lamento enseja. Harvey, citando
Horácio, percebeu que a elegia tem história, que ela se modifica e se transforma. Fez mais,
reconhecera haver na elegia espaço, por assim dizer, para uma parte importante de todo discurso,
que é a exortação e o conselho. Se discriminarmos com muita acuidade todos matizes em etapas
subseqüentes, temos até aqui o seguinte:

→ 1) lamento fúnebre, o lamento por excelência;


→ 2) seção gnômico-sapiencial consolatória;
→ 3) exortação e conselho;
→ 4) multiplicidade temática.

Bem aqui, sem por força concordar com a total posição de Aloni, sirvo-me do conceito
88

dele para dar meu aparte: não negando certo apreço heraclitiano à idéia de Harvey (“tudo é
um”), sempre me pareceu evidente que a elegia arcaica, a despeito da diferença de temas,
apresenta em comum a parênese. Pois bem, meu vislumbre é que na fase três – exortação e
conselho – a elegia tenha se tornado o meio de comunicação que Aloni com perspicácia nela vê, e
que aquilo que comunica é a parênese, a exortação moral, já desprendida e independente da motivação
fúnebre originária. Se na origem, a oportunidade para o discurso parenético era dada pela dor da
morte e pelo luto, em certo momento (que acredito ser aquele mesmo em que as inscrições
tumulares, que amiúde contêm consolo, passaram a ser feitas em dísticos elegíacos) a
oportunidade já não era tão ritual, mas “social”, ou melhor dizendo, a oportunidade já não eram
só as etapas das exéquias, mas outros momentos da vida coletiva da pólis, eles mesmos, a sua
maneira, rituais. Nessoutros momentos igualmente significativos da vida dos cidadãos, o discurso
exortativo agregou-se de tal modo ao gênero elegíaco, ao discurso cantado ou recitado em versos
alternados, pública ou privadamente, que a elegia se independeu da motivação fúnebre primeira,
para tornar-se por excelência espaço de exortação, embora paralelamente tenha continuado a ser
o que era na origem, isto é, tenha continuado a ser lamento fúnebre e qualquer lamento, o que
então explicaria, de um lado, a apropriação que dela Eurípides faz em Andrômaca e, de outro, as
ocorrências do termo ἔλεγος em suas tragédias, e ainda o facto de que do século VI a.C. em
diante a grande maioria das inscrições tumulares é em dísticos elegíacos. Atualizando, pois, os
todos matizes temáticos e as etapas cronológicas, temos o seguinte:

→ 1) lamento fúnebre, o lamento por excelência: “a vida é dura” ou “oh vida, oh azar”;
→ 2) seção gnômico-sapiencial consolatória: a vida continua;
→ 3) desprendimento da origem: exortações e conselhos sobre quaisquer assuntos: “faz
assim, não vai lá não”.
→ 4) conseqüente multiplicidade temática.

A elegia arcaica, ela mesma, tem história e é cheia de vicissitudes. A fase três é o divisor de
águas porque é lá que assistimos, pois temos tudo documentado, a cada poeta e, de certo modo,
mesmo num conjunto pequeno, a cada cidade aconselhar os cidadãos segundo os valores que
naquele tempo são caros à cidade e ao poeta. Assim é que, enquanto Arquíloco no poema que
lemos pode ter sido aquele continuador paralelo da velha tradição trenódica, vemos e veremos
agora Calino e Tirteu publicamente exortar espartanos à correta conduta na guerra; veremos a
89

seguir Sólon de Atenas discursar sobre a boa lei e exortar a respeitá-la; veremos Teógnis, ele
mesmo e seus êmulos teognídeos, advertir privadamente sobre justiça, comedimento, juízo.
Veremos o mesmo Arquíloco exortar a que se preserve a própria existência antes de tudo. E
veremos Mimnermo, equiparando velhice à morte, lamentar aquela como no velho lamento
fúnebre, para depois aconselhar, bem antes de Horácio, a que se aproveite o dia e a juventude;
Até mesmo a Elegia de Platéia, de Simônides13, que, como o mesmo Aloni repara (p. 121), além de
narrativa, é celebratória, exortativa e funerária. A matéria é diversa, mas sobre a diversidade
incide uma unitária voz exortativa: a quem se detiver na imediatez do assunto, a elegia arcaica,
como gênero, lhe parecerá vária, como majoritariamente parece a muitos; a quem perceber a voz
parenética vazada nos mesmos dísticos, o gênero elegíaco há de parecer uno, como me parece a
mim.

3) O UNO E O VÁRIO

a) Exortação à Coragem.

a. 1) Calino de Éfeso (séc. VIII – VII a.C.), fragmento 1 (West):


μέχρις τ<έο> κατάκεισθε; κότ' ἄλκιμον ἕξετε θυμόν, Até quando essa inércia? Quando, ó jovens
ὦ νέοι; οὐδ' αἰδεῖσθ' ἀμφιπερικτίονας valor tereis? De ignávia, ante os vizinhos,
ὧδε λίην μεθιέντες; ἐν εἰρήνηι δὲ δοκεῖτε
pois, não corais? Dir-se-ia que a paz reina,
ἧσθαι, ἀτὰρ πόλεμος γαῖαν ἅπασαν ἔχει
não que a esta terra toda a guerra ocupa,
………
καί τις ἀποθνήσκων ὕστατ' ἀκοντισάτω. 5
...........
τιμῆέν τε γάρ ἐστι καὶ ἀγλαὸν ἀνδρὶ μάχεσθαι
Morrendo o bravo atire o último golpe.
γῆς πέρι καὶ παίδων κουριδίης τ' ἀλόχου Combater pela pátria, esposa e filhos
δυσμενέσιν· θάνατος δὲ τότ' ἔσσεται, ὁππότε κεν δὴ honra e nobreza traz. Quando o fiarem
Μοῖραι ἐπικλώσωσ'. ἀλλά τις ἰθὺς ἴτω as Moiras é que a morte há de colher-te.
ἔγχος ἀνασχόμενος καὶ ὑπ' ἀσπίδος ἄλκιμον ἦτορ 10 Vá pois cada um brandindo a lança e, forte
ἔλσας, τὸ πρῶτον μειγνυμένου πολέμου. o coração do escudo protegido,
οὐ γάρ κως θάνατόν γε φυγεῖν εἱμαρμένον ἐστὶν seu posto ocupe ao rebentar da pugna
ἄνδρ', οὐδ' εἰ προγόνων ἦι γένος ἀθανάτων. já que ninguém do termo certo escapa
πολλάκι δηϊοτῆτα φυγὼν καὶ δοῦπον ἀκόντων embora seja de Imortais progênie
ἔρχεται, ἐν δ' οἴκωι μοῖρα κίχεν θανάτου, 15 O que, fugindo à luta e aos dardos, volta,
ἀλλ' ὁ μὲν οὐκ ἔμπης δήμωι φίλος οὐδὲ ποθεινός· muita vez é no lar que o fim depara,
τὸν δ' ὀλίγος στενάχει καὶ μέγας ἤν τι πάθηι· Mas o estrênuo varão, pobres e ricos,
λαῶι γὰρ σύμπαντι πόθος κρατερόφρονος ἀνδρὸς qual semideus, enquanto vivo, o encaram
θνήσκοντος, ζώων δ' ἄξιος ἡμιθέων·
e, saudosos, o exício lhe pranteiam,
ὥσπερ γάρ μιν πύργον ἐν ὀφθαλμοῖσιν ὁρῶσιν· 20
lembrando-lhes excelsa e rija torre,
ἔρδει γὰρ πολλὼν ἄξια μοῦνος ἐών.
pois, sendo um homem só, valeu por muitos.

(Tradução de Aluísio de Faria Coimbra14).


90

a. 2) Calino de Éfeso, fragmento 10 (West):


τεθνάμεναι γὰρ καλὸν ἐνὶ προμάχοισι πεσόντα É belo que, lidando pela pátria,
ἄνδρ' ἀγαθὸν περὶ ἧι πατρίδι μαρνάμενον· tombe o valente na primeira fila;
τὴν δ' αὐτοῦ προλιπόντα πόλιν καὶ πίονας ἀγροὺς mas seu berço deixar e os ricos campos
πτωχεύειν πάντων ἔστ' ἀνιηρότατον, e, mendigo, ir errar com o pai longevo,
πλαζόμενον σὺν μητρὶ φίληι καὶ πατρὶ γέροντι 5 a cara mãe, a esposa e os tenros filhos,
παισί τε σὺν μικροῖς κουριδίηι τ' ἀλόχωι. das penas há de ser-lhe esta a mais dura.
ἐχθρὸς μὲν γὰρ τοῖσι μετέσσεται οὕς κεν ἵκηται, Odioso ele será por onde o levem
χρησμοσύνηι τ' εἴκων καὶ στυγερῆι πενίηι,
a penúria e a indigência aborrecida.
Aviltando-lhe a raça e o nobre vulto,
αἰσχύνει τε γένος, κατὰ δ' ἀγλαὸν εἶδος ἐλέγχει,
desonra e pecha de covarde o seguem.
πᾶσα δ' ἀτιμίη καὶ κακότης ἕπεται. 10
Se apreço não lhe dão, mas só desdouro
†εἶθ' οὕτως ἀνδρός τοι ἀλωμένου οὐδεμί' ὤρη
O êxul depara e quantos dele nascem,
γίνεται οὔτ' αἰδὼς οὔτ' ὀπίσω γένεος.
por esta terra com vamor lutemos,
θυμῶι γῆς πέρι τῆσδε μαχώμεθα καὶ περὶ παίδων em defesa dos filhos dando a vida.
θνήσκωμεν ψυχ<έω>ν μηκέτι φειδόμενοι. Cerrando as filas, combatei, mancebos,
ὦ νέοι, ἀλλὰ μάχεσθε παρ' ἀλλήλοισι μένοντες, 15 deslembrados da fuga e pavor torpe,
μηδὲ φυγῆς αἰσχρῆς ἄρχετε μηδὲ φόβου, e, investindo o inimigo, tende n’alma
ἀλλὰ μέγαν ποιεῖτε καὶ ἄλκιμον ἐν φρεσὶ θυμόν, desprezo pela vida e heróico assomo.
μηδὲ φιλοψυχεῖτ' ἀνδράσι μαρνάμενοι· Não fujais, na corrida atrás deixando
τοὺς δὲ παλαιοτέρους, ὧν οὐκέτι γούνατ' ἐλαφρά, os velhos, cujos membros são mais lerdos.
μὴ καταλείποντες φεύγετε, τοὺς γεραιούς. 20 Pois é vergonha ver-se, antes dos jovens,
αἰσχρὸν γὰρ δὴ τοῦτο, μετὰ προμάχοισι πεσόντα jazer, prostrado nas primeiras filas,
κεῖσθαι πρόσθε νέων ἄνδρα παλαιότερον, um bravo, de alvas cãs, barba grisalha,
ἤδη λευκὸν ἔχοντα κάρη πολιόν τε γένειον, exalando, por terra, a nobre vida,
às mãos, nu, tendo os genitais sangrentos:
θυμὸν ἀποπνείοντ' ἄλκιμον ἐν κονίηι,
torpeza e para vista quadro horrendo!
αἱματόεντ' αἰδοῖα φίλαις ἐν χερσὶν ἔχοντα – 25
Nada destoa ao moço, ao qual adorna,
αἰσχρὰ τά γ' ὀφθαλμοῖς καὶ νεμεσητὸν ἰδεῖν,
brilhante, a flor da juventude amável.
καὶ χρόα γυμνωθέντα· νέοισι δὲ πάντ' ἐπέοικεν,
Vivo, olhado é dos mais, caro às mulheres,
ὄφρ' ἐρατῆς ἥβης ἀγλαὸν ἄνθος ἔχηι, e sempre belo, na vanguarda morto.
ἀνδράσι μὲν θηητὸς ἰδεῖν, ἐρατὸς δὲ γυναιξὶ As plantas, pois, cada um firme no solo,
ζωὸς ἐών, καλὸς δ' ἐν προμάχοισι πεσών. 30 morda os lábios e, impávido, resita.
(Tradução de Aluísio de Faria Coimbra15).

a. 3) Tirteu de Esparta (séc. VIII–VII a.C.), fragmento 12 (West):


οὔτ' ἂν μνησαίμην οὔτ' ἐν λόγωι ἄνδρα τιθείην Em conta eu não tivera, nem citara
οὔτε ποδῶν ἀρετῆς οὔτε παλαιμοσύνης, a quem na luta excele ou na corrida,
οὐδ' εἰ Κυκλώπων μὲν ἔχοι μέγεθός τε βίην τε, nem que alto e forte qual Ciclope fosse,
νικώιη δὲ θέων Θρηΐκιον Βορέην, fosse inda mais veloz que o Bóreas trácio
οὐδ' εἰ Τιθωνοῖο φυὴν χαριέστερος εἴη, 5 e até mais belo que Titão, mais rico
πλουτοίη δὲ Μίδ<εω> καὶ Κινύρ<εω> μάλιον, que Ciniras ou Midas, ou tivesse
οὐδ' εἰ Τανταλίδ<εω> Πέλοπος βασιλεύτερος εἴη, mais poder que o Tantálida rei Pélope,
γλῶσσαν δ' Ἀδρήστου μειλιχόγηρυν ἔχοι, ou de Adrasto o falar dextro e melífluo,
οὐδ' εἰ πᾶσαν ἔχοι δόξαν πλὴν θούριδος ἀλκῆς· as glórias todas, se não tem coragem.
οὐ γὰρ ἀνὴρ ἀγαθὸς γίνεται ἐν πολέμωι 10 Para a guerra apto ser alguem não pode,
εἰ μὴ τετλαίη μὲν ὁρῶν φόνον αἱματόεντα, se a sangrenta peleja olhar não ousa
καὶ δηίων ὀρέγοιτ' ἐγγύθεν ἱστάμενος. e o ardor não sente de atacar de perto.
91

ἥδ' ἀρετή, τόδ' ἄεθλον ἐν ἀνθρώποισιν ἄριστον Mais alta esta é dos homens a virtude
κάλλιστόν τε φέρειν γίνεται ἀνδρὶ νέωι. e florão, para os jovens, o mais belo.
ξυνὸν δ' ἐσθλὸν τοῦτο πόληΐ τε παντί τε δήμωι, 15 Lucro à cidade e ao povo traz aquele
ὅστις ἀνὴρ διαβὰς ἐν προμάχοισι μένηι que no combate à frente se coloca,
νωλεμέως, αἰσχρῆς δὲ φυγῆς ἐπὶ πάγχυ λάθηται, constante, e, sem lembrar-lhe a torpe fuga,
ψυχὴν καὶ θυμὸν τλήμονα παρθέμενος, arrisca a vida e a alma valente e anima,
θαρσύνηι δ' ἔπεσιν τὸν πλησίον ἄνδρα παρεστώς· com palavras, a quem lida ao seu lado:
οὗτος ἀνὴρ ἀγαθὸς γίνεται ἐν πολέμωι. 20 tal o homem valoroso e util na guerra.
αἶψα δὲ δυσμενέων ἀνδρῶν ἔτρεψε φάλαγγας Repele do inimigo as duras filas
τρηχείας· σπουδῆι δ' ἔσχεθε κῦμα μάχης, e as ondas da batalha, bravo, enfreia.
αὐτὸς δ' ἐν προμάχοισι πεσὼν φίλον ὤλεσε θυμόν, Quem na vanguarda cai, perdendo a vida,
ἄστυ τε καὶ λαοὺς καὶ πατέρ' εὐκλεΐσας, ilustrando a cidade, o pai, seu povo,
πολλὰ διὰ στέρνοιο καὶ ἀσπίδος ὀμφαλοέσσης 25 rota a couraça e o umbilicado escudo,
καὶ διὰ θώρηκος πρόσθεν ἐληλάμενος. tendo no peito golpes mil de frente,
τὸν δ' ὀλοφύρονται μὲν ὁμῶς νέοι ἠδὲ γέροντες, choram-no a par os velhos e os mancebos:
ἀργαλέωι δὲ πόθωι πᾶσα κέκηδε πόλις, todos se afligem pelo grave luto.
καὶ τύμβος καὶ παῖδες ἐν ἀνθρώποις ἀρίσημοι Famosos entre os homens são seus filhos,
καὶ παίδων παῖδες καὶ γένος ἐξοπίσω· 30 seu túmulo, seus netos e a progênie
οὐδέ ποτε κλέος ἐσθλὸν ἀπόλλυται οὐδ' ὄνομ' αὐτοῦ, que é por vir. O louvor seu nome guarda.
ἀλλ' ὑπὸ γῆς περ ἐὼν γίνεται ἀθάνατος, Embora sob a terra, vive eterno
ὅντιν' ἀριστεύοντα μένοντά τε μαρνάμενόν τε o que o ardente Ares mata em luta, enquanto
γῆς πέρι καὶ παίδων θοῦρος Ἄρης ὀλέσηι. feitos obrava pela pátria e filhos.
εἰ δὲ φύγηι μὲν κῆρα τανηλεγέος θανάτοιο, 35 E, se ao pungente fim da morte escapa
νικήσας δ' αἰχμῆς ἀγλαὸν εὖχος ἕληι, e, vencedor, da guerra os louros colhe,
πάντες μιν τιμῶσιν, ὁμῶς νέοι ἠδὲ παλαιοί, honram-no por igual moços e velhos.
πολλὰ δὲ τερπνὰ παθὼν ἔρχεται εἰς Ἀΐδην, Encanecendo na cidade, muitos
γηράσκων δ' ἀστοῖσι μεταπρέπει, οὐδέ τις αὐτὸν terá prazeres antes de ir ao Hades,
βλάπτειν οὔτ' αἰδοῦς οὔτε δίκης ἐθέλει, 40 sem lesão nos direitos e no lustre;
πάντες δ' ἐν θώκοισιν ὁμῶς νέοι οἵ τε κατ' αὐτὸν igualmente o lugar todos lhe cedem
εἴκουσ' ἐκ χώρης οἵ τε παλαιότεροι. os novos, os como ele e os mais idosos.
ταύτης νῦν τις ἀνὴρ ἀρετῆς εἰς ἄκρον ἱκέσθαι Sem medo à guerra e com valor, a glória
πειράσθω θυμῶι μὴ μεθιεὶς πολέμου. dessa viutude cada qual procure.

(Tradução de Aluísio de Faria Coimbra16).

b) Exortação coletiva à Justiça.

Sólon de Atenas (séc. VIII–VII a.C.), fragmento 4 (West):

ἡμετέρη δὲ πόλις κατὰ μὲν Διὸς οὔποτ' ὀλεῖται Nossa cidade, Zeus deseja, nunca irá morrer,
αἶσαν καὶ μακάρων θ<εῶ>ν φρένας ἀθανάτων· nem por querer de beatos deuses imortais,
τοίη γὰρ μεγάθυμος ἐπίσκοπος ὀβριμοπάτρη que magnânima, vígil, filha de pai poderoso,
Παλλὰς Ἀθηναίη χεῖρας ὕπερθεν ἔχει· Palas Atena tem sobre ela suas mãos:
αὐτοὶ δὲ φθείρειν μεγάλην πόλιν ἀφραδίηισιν 5 mas querem destruir, sandeus, a grã cidade
ἀστοὶ βούλονται χρήμασι πειθόμενοι, os próprios cidadãos, movidos por riqueza,
δήμου θ' ἡγεμόνων ἄδικος νόος, οἷσιν ἑτοῖμον e dos guias do povo a mente sem justiça: aguarda-os
ὕβριος ἐκ μεγάλης ἄλγεα πολλὰ παθεῖν· por tanta desmedida muita pena e dor.
οὐ γὰρ ἐπίστανται κατέχειν κόρον οὐδὲ παρούσας Não sabem refrear a cupidez, nem desfrutar
εὐφροσύνας κοσμεῖν δαιτὸς ἐν ἡσυχίηι 10 no gozo do banquete a própria alegria.
............................................................................... ...............................................................................
πλουτ<έου>σιν δ' ἀδίκοις ἔργμασι πειθόμενοι movidos por ações injustas, eles enriquecem
............................................................................... ...............................................................................
92

οὔθ' ἱερῶν κτεάνων οὔτε τι δημοσίων não poupando nenhum sagrado bem nem os bens públicos;
φειδόμενοι κλέπτουσιν ἀφαρπαγῆι ἄλλοθεν ἄλλος, roubam por rapinagem, cada qual o que puder.
οὐδὲ φυλάσσονται σεμνὰ Δίκης θέμεθλα, Não guardam o fundamento santo da justiça,
ἣ σιγῶσα σύνοιδε τὰ γιγνόμενα πρό τ' ἐόντα, 15 que silente conhece o que se faz e o que de fez
τῶι δὲ χρόνωι πάντως ἦλθ' ἀποτεισομένη, e vem enfim cobrar a paga que é devida:
τοῦτ' ἤδη πάσηι πόλει ἔρχεται ἕλκος ἄφυκτον, tal golpe, inevitável, atinge toda a cidade,
ἐς δὲ κακὴν ταχέως ἤλυθε δουλοσύνην, que depressa chegou à escravidão dorida,
ἣ στάσιν ἔμφυλον πόλεμόν θ' εὕδοντ' ἐπεγείρει, que desperta do sono a guerra e no clã a discórdia
ὃς πολλῶν ἐρατὴν ὤλεσεν ἡλικίην· 20 que de muitos destrói a amável juventude.
ἐκ γὰρ δυσμενέων ταχέως πολυήρατον ἄστυ Por obra de inimigos logo a amorável cidade
τρύχεται ἐν συνόδοις τοῖς ἀδικ<έου>σι φίλους. se estraçalha em facções que aos injustos apraz.
ταῦτα μὲν ἐν δήμωι στρέφεται κακά· τῶν δὲ πενιχρῶν Estes males campeiam entre o povo, e dentre os pobres
ἱκν<έον>ται πολλοὶ γαῖαν ἐς ἀλλοδαπὴν muitos chegam em terra estranha agrilhoados,
πραθέντες δεσμοῖσί τ' ἀεικελίοισι δεθέντες 25 vendidos como escravos em grilhões tão torpes.
............................................................................... ...............................................................................
οὕτω δημόσιον κακὸν ἔρχεται οἴκαδ' ἑκάστωι, Assim o mal comun à casa vai de cada qual
αὔλειοι δ' ἔτ' ἔχειν οὐκ ἐθέλουσι θύραι, e no pátio os portões já não logram detê-lo:
ὑψηλὸν δ' ὑπὲρ ἕρκος ὑπέρθορεν, εὗρε δὲ πάντως, o alto num salto sobrepassa muro e sempre encontra
εἰ καί τις φεύγων ἐν μυχῶι ἦι θαλάμου. até quem na mais funda câmara se oculta.
ταῦτα διδάξαι θυμὸς Ἀθηναίους με κελεύει, 30 Eis quanto o coração me ordena ensine aos atenienses:
ὡς κακὰ πλεῖστα πόλει Δυσνομίη παρέχει· males o não ter lei traz muitos à cidade,
Εὐνομίη δ' εὔκοσμα καὶ ἄρτια πάντ' ἀποφαίνει, mas tudo em ordem bela e certa mostra a boa lei
καὶ θαμὰ τοῖς ἀδίκοις ἀμφιτίθησι πέδας· e peias muita vez impõe aos criminosos,
τραχέα λειαίνει, παύει κόρον, ὕβριν ἀμαυροῖ, o hirto apara, dá fim no excesso, põe termo à violência;
αὑαίνει δ' ἄτης ἄνθεα φυόμενα, 35 murcha as flores do mal no só desabrochar,
εὐθύνει δὲ δίκας σκολιάς, ὑπερήφανά τ' ἔργα retortos julgamentos retifica, e ações soberbas
πραΰνει· παύει δ' ἔργα διχοστασίης, aplaca e faz parar atos de sedição;
παύει δ' ἀργαλέης ἔριδος χόλον, ἔστι δ' ὑπ' αὐτῆς o ódio de rixas turbulentas também pára e torna
πάντα κατ' ἀνθρώπους ἄρτια καὶ πινυτά. tudo que os homens fazem preciso e prudente.

c) Exortação à vida sábia.


c. 1) Teógnis de Mégara (séc. VII–VI a.C.), vv. 1222-1224:
Οὐδέν, Κύρν', ὀργῆς ἀδικώτερον, ἣ τὸν ἔχοντα Nada é mais injusto, Cirno, do que a ira: lesa
πημαίνει θυμῶι δειλὰ χαριζομένη. a quem a traz no peito e apraz-lhe com o que vil.

c. 2) Teógnis de Mégara, vv. 1171-1176:


Γνώμην, Κύρνε, θεοὶ θνητοῖσι διδοῦσιν ἀρίστην· Juízo é o dom melhor que aos homens, Cirno, os deuses
ἄνθρωπος γνώμηι πείρατα παντὸς ἔχει. deram. Juízo é a perfeição de tudo.
ὢ μάκαρ, ὅστις δή μιν ἔχει φρεσίν· ἦ πολὺ κρείσσων Feliz de quem o traz no peito. É mais, decerto,
ὕβριος οὐλομένης λευγαλέου τε κόρου·
do que o funesto orgulho e o triste excesso.
ἔστι κακὸν δὲ βροτοῖσι κόρος, τῶν οὔ τι κάκιον·
πᾶσα γὰρ ἐκ τούτων, Κύρνε, πέλει κακότης. Excesso é nos mortais um mal, não há pior:
que, Cirno, todo mal disso provém.

c. 3) Teógnis de Mégara, vv. 335-336:


Μηδὲν ἄγαν σπεύδειν· πάντων μέσ' ἄριστα· καὶ οὕτως, Não te apresses: de tudo o meio é o melhor, Cirno:
Κύρν', ἕξεις ἀρετήν, ἥντε λαβεῖν χαλεπόν. mérito assim terás, que é tão difícil.
93

c. 4) Teógnis de Mégara, vv. 337-340:


Ζεύς μοι τῶν τε φίλων δοίη τίσιν, οἵ με φιλεῦσιν, Que Zeus me dê pagar o amor de meus amigos
τῶν τ' ἐχθρῶν μεῖζον, Κύρνε, δυνησόμενον. e ter que os inimigos mais poder.
χοὔτως ἂν δοκέοιμι μετ' ἀνθρώπων θεὸς εἶναι, Assim parecerá que deus sou entre os homens,
εἴ μ' ἀποτεισάμενον μοῖρα κίχηι θανάτου. se minha morte me encontrar vingado.

d) Exortação à existência: este lugar, esta hora.

d. 1) Arquíloco de Paros (VII a.C.), fragmento 4 (West):


ἀλλ' ἄγε σὺν κώθωνι θοῆς διὰ σέλματα νηὸς Vai de caneco através das fileiras da célere nau!
φοίτα καὶ κοίλων πώματ' ἄφελκε κάδων, Vai e, dos cavos tonéis, torna a arrancar-lhes as tampas!
ἄγρει δ' οἶνον ἐρυθρὸν ἀπὸ τρυγός· οὐδὲ γὰρ ἡμεῖς Caça o rúbido vinho até mesmo na borra,
νηφέμεν ἐν φυλακῆι τῆιδε δυνησόμεθα. pois nós Não poderemos ficar sóbrios nesta vigília!
(Tradução de Leonardo Antunes)17

d. 2) Arquíloco de Paros, fragmento 5 (West)


ἀσπίδι μὲν Σαΐων τις ἀγάλλεται, ἣν παρὰ θάμνωι, O escudo um Saio dele se orgulha, numa moita
ἔντος ἀμώμητον, κάλλιπον οὐκ ἐθέλων· arma impecável deixei-o sem querer,
αὐτὸν δ' ἐξεσάωσα. τί μοι μέλει ἀσπὶς ἐκείνη; mas eu mesmo o fim da morte evitei; aquele escudo
ἐρρέτω· ἐξαῦτις κτήσομαι οὐ κακίω. que se vá; de novo um comprarei não pior.
(Tradução de José Cavalcante de Souza)18

d. 3) Arquíloco de Paros, fragmento 17 (West)


πάντα πόνος τεύχει θνητοῖς μελέτη τε βροτείη. Tudo ao homem vem do esforço e humana lida.

d. 4) Arquíloco de Paros, fragmento 14 (West):

Αἰσιμίδη, δήμου μὲν ἐπίρρησιν μελεδαίνων Dando ouvidos à lingua do povo, Esimides,
οὐδεὶς ἂν μάλα πόλλ' ἱμερόεντα πάθοι.
ninguém muita alegria há de sentir

e) Exortação ao desfrute da juventude.

e. 1) Mimnermo de Cólofon (VII a.C.), fragmento 1 (West):


τίς δὲ βίος, τί δὲ τερπνὸν ἄτερ χρυσῆς Ἀφροδίτης; Que vida, que prazer sem a áurea Cípria?
τεθναίην, ὅτε μοι μηκέτι ταῦτα μέλοι, Que eu morra quando já não me inflamarem
κρυπταδίη φιλότης καὶ μείλιχα δῶρα καὶ εὐνή, o recatado amor e os meigos gozos
οἷ' ἥβης ἄνθ<εα> γίνεται ἁρπαλέα do leito! Os dons sós de Hebe são jucundos
ἀνδράσιν ἠδὲ γυναιξίν· ἐπεὶ δ' ὀδυνηρὸν ἐπέλθηι 5 aos homens e às mulheres; pois, mal chega
γῆρας, ὅ τ' αἰσχρὸν ὁμῶς καὶ κακὸν ἄνδρα τιθεῖ, a ácida senectude e aqueles torna
αἰεί μιν φρένας ἀμφὶ κακαὶ τείρουσι μέριμναι, maus e deformes, sempre crus pesares
οὐδ' αὐγὰς προσορῶν τέρπεται ἠελίου, torturam-1hes a mente; não os alegra
ἀλλ' ἐχθρὸς μὲν παισίν, ἀτίμαστος δὲ γυναιξίν· o sol; mulheres, moços os desamam:
οὕτως ἀργαλέον γῆρας ἔθηκε θεός. 10 tão lastimosa um deus fez a velhice!
(Tradução de Aluísio de Faria Coimbra19)
94

e. 2) Mimnermo de Cólofon, fragmento 2 (West):


ἡμεῖς δ', οἷά τε φύλλα φύει πολυάνθεμος ὥρη Como as folhas da flórea primavera,
ἔαρος, ὅτ' αἶψ' αὐγῆις αὔξεται ἠελίου, quando aos raios do sol uma hora viçam,
τοῖς ἴκελοι πήχυιον ἐπὶ χρόνον ἄνθεσιν ἥβης um só fugaz momento a juventude
τερπόμεθα, πρὸς θεῶν εἰδότες οὔτε κακὸν gozamos, sem que o bem e o mal saibamos
οὔτ' ἀγαθόν· Κῆρες δὲ παρεστήκασι μέλαιναι, 5 dos deuses. Logo, ao nosso lado, as negras
ἡ μὲν ἔχουσα τέλος γήραος ἀργαλέου, Queres20 nos trazem, esta, a atroz velhice,
ἡ δ' ἑτέρη θανάτοιο· μίνυνθα δὲ γίνεται ἥβης e aquela, a morte. Tanto tempo dura
καρπός, ὅσον τ' ἐπὶ γῆν κίδναται ἠέλιος. da mocidade o pomo quanto à vista
αὐτὰρ ἐπὴν δὴ τοῦτο τέλος παραμείψεται ὥρης, da terra brilha o sol. Finda essa quadra,
αὐτίκα δὴ τεθνάναι βέλτιον ἢ βίοτος· 10 muito mais que o viver vale o estar morto.
(Tradução de Aluísio de Faria Coimbra21)

f. Elegia narrativa, e também funerária, exortativa e celebratória.

Simônides de Ceos (séc. VI–V a.C.)


A ELEGIA DE PLATÉIA.

Fragmento 10-11 (West)


Ó filho da jovem marinha [que tens] esplêndida fama
(…)
abateu (...) e tu caíste, como quando um lariço
ou solitário um pinho no vale da montanha,
lenhadores cortam (…)
e muito (…)
imensa dor sobre a tropa se abateu, porque deveras te honravam
e, junto de Pátrodo, num único jarro, te guardaram.
Sem dúvida não foi efêmero um mortal que, sozinho, te domou,
mas, golpeado pela mão de Apolo, vencido caíste.
Perto dali, tomou Palas a famosa cidade e a destruiu
com a ajuda de Hera, agastadas com os filhos de Príamo,
por causa de Alexandre de infesto intento; assim ao criminoso,
ainda que tardeie, divina o carro da justiça alcança.
Aqueloutros, após terem queimado a decantada cidade, à casa foram,
os mais valorosos dos heróis, Dânaos que lutam face à face,
e sobre eles é vertida imorredoura fama graças ao varão
que, das filhas da Piéria coroadas de violetas, recebeu
toda a verdade. e mui-conhecida fez aos mais jovens guerreiros
a brevifadada geração dos semideuses.
Mas já a ti, adeus, ó filho da mui reverente deusa,
da donzela do marinho Nereu. Ao passo que eu
te invoco como um meu auxílio, ó Musa de muitos nomes,
se ao menos dos homens cuidas que te invocam.
Harmoniza também este nosso melífluo arranjo de canções
a fim de que outra vez alguém se lembre no porvir
dos homens que, por Esparta e pela Hélade os pés fincando,
livraram-nas de claramente o dia ver da escravidão.
da coragem jamais se olvidaram e sua fama atinge o céu;
sua glória, dentre os homens, será imorredoura.
Eles, portanto, o Eurotas e a cidade de Esparta deixando,
marcharam com os domadores filhos de Zeus,
os heróis Tindaridas, e Menelau de vasta força,
95

aqueles perfeitos generais da pátria cidade,


os quais guiou nobilíssimo o filho do divino Cleômbroto.
(...)
Logo chegaram ao Istmo e à esplêndida cidade de Corinto
nos confins da ilha de Pélops, o filho de Tântalo,
e à vetustíssima Mégara, cidade de Nisso. Lá os outros
(...) raça dos habitantes vizinhos.
(...) confiantes nos sinais dos deuses, seguiram marcha
e chegaram à amável planície de Elêusis
expulsando os Medos por completo da terra de Pandião
com a sabedoria de Iamos, adivinho par dos deuses (...)
(...) domando

Fragmento 15-16 (West)


(...)
os que habitam no centro do Epiro de muitas fontes
experientes em todas as virtudes da guerra,
e aqueles que residem na cidade de Glauco, Corinto,
(os quais) belíssima testemunha de sua lida obtiveram,
um que vale como ouro no céu e para eles faz crescer
sua vasta e própria fama, bem como a de seus pais […]

(Tradução de Robert de Brose)22

g) Elegia narrativa, e também consolatória.


Arquíloco, Elegia de Télefo (Papiro de Oxirrinco, LXIX)23:

ei) de\] .[....] .[.]. i? qeou= kraterh=?[j u(p” a)na/gkhj, mas, se] . [….] . [.] [sob] forte [compulsão] do deus,
ou) dei= a)n]a?l?[kei/h]n? k?ai\ kako/thta le/gei[n. não é necessário] falar [de fr]aqu[ez]a e covardia.
[]h?m? . . .[..ei(/m]eq’ a)/r?[h]a fugei=n: feu/g[ein de/ tij w(/rh: Apress]amo-nos em fugir ao com[ba]te. [Há uma hora para] fug[ir.
k?a?i\? p?o?t?[e m]ou=n?oj? e)?w\n? Th/lefoj )A)?rka?[si/dhj 5 Certa vê[z s]ó, Télefo, da estirpe de Arc[as,
)Argei/wn e)fo/b?hse polu\n stra?t?o?/ [n,] o?[u)d” e)ge/nonto aterrou o vasto exércit[o] argivo, e eles n[ão foram
a)/lk?m?[oi - e)]j? t?o/sa? Dh\ moi=ra qew=n e)?fo/be?i? valen[tes] – tanto o Fado divino os aterrava –
ai)xmht?a?i/ per? e)o/nte[j:] e)u+rrei/t?hj de\ K[a/i+koj embora fossem lanceiros. O C[aico] de belas correntes
p]i?p?t?o/?n?twn neku/wn stei/neto kai\ [pedi/on abarrotava-se de cadáveres [t]ombados, e a [planície
Mu/s?i?o?n?, oi)\d e)pi\ q?i=?n?a? polufloi/sboi[o qala/sshj 10 mísia. Rumo à praia do políssono mar,
xe/rs”] u(p” a)meili/ktou fwto\j e)nairo/[menoi pela [mão] implacável do mortal trucidados,
pro]t?ropa/dhn a)p?e/?klinon e)u+kn?h/m?[idej )Axaioi/: rá]pido retornavam os [aqueus] de belas grev[as.
a)]s?pa/sioi d” e)j ne/aj w)[k]u?p?o/r[o]u?j? [e)/fugon F]elizes para as naus de c[é]ler[e]s vias [fugiram
pai=de/j t?” a)qana/twn k?ai\ a)delfeoi/, [ou(\j )Agame/mnwn filhos e irmãos de imortais [que Agamêmnon,
I)?lion ei)j i(erh\n h)=]ge maxhsome/no?[uj. 15 à sagrada Ílion, conduzia para combate[rem.
o]i?)\ de\ to/t?e? b?lafqe/ntej o(dou= para/ q[“ o)/rmon e)/lassan, Naquele tempo, desviados do caminho e [ ....
Te]u/qrantoj? d” e)rath\n pr?o\j po/lin [ei)sane/ban, e à amável cidadela de [Te]utras [ascenderam,
. .]..[m]e/?no?j pnei/ontej? o(mw=j au)to?[i/ te kai\ i(/ppoi .......soprando [a]rdor, eles [e os cavalos] igualmente,
a)?f?[radi/]hi, mega/lwj qumo\n a)khxe?/[menoi: sem s[ab]er, muito no coração se aflig[indo.
f]a/?n[to] g?a\r u(yi/p?ulon Trw/wn po/lin? ei)s[anabai/nein, 20 Pois [j]ulga[vam] asc[ender] à cidadela de Tróia de altos portais,
k]a?l?li?[g]u/?h?n? d” e)pa/teun Musi/da purofo/ro?[n. mas pisavam na Mísia de [b]elas [l]avras, produtora de trig[o.
(Hrakl]e/?h?j? d?” h)/?n?ths?[e], bow=n? tal?[a]ka/rdion [ui(o/n, Hérac]les os defront[ou], bradando com [o filho] de rob[ust]o coração,
ou)]ron a)?m[e]i/?l?k?[ton] dhi/wi e)n [pol]e/?m?[wi, ba]stião im[p]lacá[vel] na [gu]erra cruenta,
T]h/lefon, o(\j? D?a?[n]a?oi=si kakh\n? [t]o/?[te fu/zan )no/rsaj T]élefo, que [e]ntão à vil [fuga] os Dâ[n]aos [constrangindo,
h)/]r?eide[n mo]u=?n?oj?, patri\ xarizo/?m?[enoj. 25 d]etev[e-os s]ó, agracia[ndo] o pai.
96

(Tradução de Paula da Cunha Corrêa)24

Na elegia atribuída a Arquíloco, lemos de novo o tema da fuga, que, vergonhosa em princípio,
agora é objeto do consolo do poeta a alguém que, por assim dizer, teve que dar no pé. A
exortação é comum todas as elegias arcaicas, quer sejam longas, quer sejam breves, quer sejam
narrativas, quer não sejam:

Para melhor compreender as narrativas de guerra de Arquíloco no quadro da


poesia grega arcaica, talvez seja útil compará-las às de Mimnermo e de
Simônides. Nesses poemas, a linguagem é, em grande medida, poesia, o tom é
elevado e os deuses atuam como em Homero. Como notamos, a diferença é que
cantam vitórias mais recentes. Quanto à sua função e ocasião de performance, West
(1974, p.14) supunha que talvez estivessem mais próximos da elegia exortativa
cantada antes das batalhas, ou em banquetes (como skólia). O fragmento 89W de
Arquíloco, por exemplo, poderia ter sido uma parênese militar, como as elegias
de Calino e Tirteu. Por outro lado, as narrativas de Mimnermo e Simônides
eram, aparentemente, bastante longas. O Esmirnéida, com suas centenas de versos,
ocupava um livro inteiro, e os poemas de Simônides sobre a batalha de Artemísio
e de Platéia (fr.3 , 11, 13, 14, 17 W?) não seriam muito menores. Estruturalmente,
o Smyrneis e a narrativa da batalha de Platéia eram “pequenos épicos elegíacos”:
ambos se iniciavam com um proêmio e invocações às Musas, e o Smyrneis, pelo
menos, era tão extenso que chegava a incluir diálogos. A ocasião de performance
desses versos seria ainda o banquete25.

Creio sim que a diversidade temática que a elegia veio a ter a partir de uma origem trenódica e
também laudatória é precisamente o que referem dois gramáticos, um dos quais é Proclo, que
viveu talvez no século I d.C. A teoria de Proclo pertence, como vimos no Capítulo II, sobre o
epos, a uma teoria poética mais antiga, que radica na filologia praticada pelos poetas críticos da
Biblioteca de Alexandria e se estende por todo o Período Imperial e até mesmo o Período
Bizantino, quando foi resumida por Fócio, futuro Patriarca, no século IX (239, 319b, 6-14):

Τὴν δὲ ἐλεγείαν συγκεῖσθαι μὲν ἐξ ἡρῴου καὶ [Diz Proclo] que a elegia é formada de um verso
πενταμέτρου στίχου, ἁρμόζειν δὲ τοῖς heróico e um pentâmetro e que convém aos mortos.
κατοιχομένοις. Ὅθεν καὶ τοῦ ὀνόματος ἔτυχε· τὸ Daí decorre ter esse nome, pois os antigos
γὰρ θρῆνος ἔλεγον ἐκάλουν οἱ παλαιοὶ καὶ τοὺς
chamavam elegos ao treno e por meio dele
τετελευτηκότας δι' αὐτοῦ εὐλόγουν. Οἱ μέντοι γε
elogiavam os mortos. Os autores posteriores,
μεταγενέστεροι ἐλεγείᾳ πρὸς διαφόρ ους
porém, abusaram da elegia para diferentes
ὑποθέσεις ἀπεχρήσαντο . Λέγει δὲ καὶ ἀριστεῦσαι
τῷ μέτρῳ Καλλῖνόν τε τὸν Ἐφέσιον καὶ Μίμνερμον temas. Diz que exceliram neste metro Calino de
τὸν Κολοφώνιον, ἀλλὰ καὶ τὸν τοῦ Τηλέφου Éfeso e Mimnermo de Cólofon, mas também o filho
Φιλίταν τὸν Κῷον καὶ Καλλίμαχον τὸν Βάττου. de Télefo, Filetas de Cós, e Calímaco, filho de Bato;
Κυρηναῖος οὗτος δ' ἦν. este era de Cirene.

(Sombreados meus).
97

O testemunho, em especial a notável passagem grifada, resume o que se tentou aqui mostrar
quanto à diversificação de temas da elegia arcaica. O verbo ἀπεχρήσαντο, de ἀποχράω,

“abusar”, “usar totalmente”, flagra a meu ver bem o uso abusivo, catacrético, de um gênero
desviado, por assim dizer, de seu fim primeiro, o treno aos mortos, enunciado antes, ao passo que
πρὸς διαφόρους ὑποθέσεις, “para diferentes temas”, aponta em quê incide o uso extensivo do
gênero, sem, porém, arrolar quais são eles. Proclo aponta, como era costume entre os poetas
filólogos de Alexandria, os melhores no gênero, dois dos quais segundo outras fontes, como se
verá logo a seguir, seriam também os inventores. Lembremos que apontar os inventores e os que
foram excelentes no gênero visava também dizer quem eram os poetas dignos de emular, quais
eram os poemas dignos de imitar.
O outro gramático é Dídimo Calcêntero26 (c. 63–10 a.C.), que ensinou em Alexandria e
Roma. O testemunho dele como texto de gramático é tão estranho, quão notável (épsilon, 58, 7-
14):

Ἔλεγος, ὁ θρῆνος. διὰ τὸ δι’ αὐτοῦ τοῦ θρήνου εὖ Elegos: treno, porque se elogiavam por meio do
λέγειν τοὺς κατοιχουμένους. ε ὑρετὴ δὲ τοῦ próprio treno os mortos. O inventor do metro
elegíaco uns dizem ter sido Arquíloco, outros
ἐλεγείου. οἱ μὲν τὸν Ἀρχίλοχον, οἱ δὲ Μίμνερμον, οἱ
Mimnermo, outros, Calino, mais remotamente. Daí
δὲ Καλλῖνον παλαιότερον. ὅθεν πεντάμετρον τ ῷ
vem que passaram a unir o pentâmetro ao heróico,
ἡρωϊκῷ συνῆπτον· ο ὐχ ὁμοδραμοῦντα τ ῇ τοῦ por não correr com a mesma potência do primeiro,
προτέρου δυνάμει· ἀλλ’ οἷον συνεκπνέοντα, καὶ mas, por assim dizer, exalar o último suspiro e
συσβεννύμενον ταῖς τοῦ τελευτήσαντος τύχαις. οἱ conformar-se à condição do morto. Outros, mais
tarde, de modo diverso crêm que isso ocorre em
δὲ ὕστερον πρὸς ἅπαντας διαφόρως. ο ὕτω
relação a todas as pessoas, como Dídimo, no
Δίδυμος ἐν τῷ περὶ Ποιητῶν. tratado Sobre os Poetas.

Dídimo exibe a prática comum de gramáticos e filólogos alexandrinos que consiste em apresentar
o inventor do gênero (εὑρετὴ), resumido no caso da elegia à invenção apenas do pentâmetro, pois
que o hexâmetro já tinha existência. Para eles, ninguém dominava melhor as leis do gênero do
que o inventor. Dídimo primeiro atesta a oportunidade que no passado (παλαιότερον, “mais
remotamente”) a elegia ensejava de elogiar os mortos e o faz com argumentos etimológicos: por
meio (δι’ α ὐτοῦ) do respectivo treno (elegia é treno, ἔλεγος = ὁ θρῆνος) o morto era elegiado
(ἔλεγος provém de εὖ λέγειν, “falar bem”, “elogiar”). A seguir descreve trópica e brevemente que
o pentâmetro está para o hexâmetro, tal como o morto está para o saudável (“não se mantém na
corrida com a força do primeiro”, οὐχ ὁμοδραμοῦντα τῇ τοῦ προτέρου δυνάμει). Ao empregar a
palavra ἡρωϊκῷ, “heróico”, para o hexâmetro depois de falar de “força” e “corrida”, de pronto se
evidencia que está a referir-se à épica guerreira, quer propriamente porque diz “heróico”, quer
98

por sinédoque porque enuncia a própria locução “força na corrida”: a épica heróica é o espaço
da força viril, da pugna, da corrida a pé ou a cavalo, que não deixa de possibilitar outrossim a
morte, a perda de varões excelentes. Para esta perda, para esta falta, segundo Dídimo, destina-se
com muito azo e poética conveniência (falo do πρέπον e do aptum) o verso que é justo a variação
do hexâmetro construída pela falta, pela perda de duas sílabas. O “pentâmetro”, o hexâmetro
dicataléctico, contendo os mesmos seis ictos em seqüência dactílica, evoca sim o hexâmetro pleno,
mas não é o mesmo hexâmetro pleno, assim como, se me é lícito dizer, o corpo morto, a estela e o
túmulo evocam na própria falta o herói quando vivo. O elogio do morto, que veio a integrar
inscrições tumulares elegíacas, não visa só a mitigar a dor dos próximos, senão a presentificar ali
na celebração da ausência a areté, a excelência, que obteve em vida. A elegia, articulada pelo único
verso que lhe é próprio, o hexâmetro duplamente cataléctico, é o local, é o território genérico
aptíssimo para lastimar a falta de alguém importante. Se a sequência de hexâmetros convém à
gesta do herói, ao que o herói um dia fez, a seqüência de dísticos convém à falta que ele agora
faz. Por fim, Dídimo afirma que mais tarde (ὕστερον) o procedimento, isto é, o elogio (e por
conseguinte, a respectiva virtude) incidia em todas as pessoas (virtuosas), não apenas o morto.
Como remate da seção, conjecturo que a diversidade de argumentos assumida pela elegia
tenha sido o que irritou Aristóteles na Poética, quando, segundo seu conceito de mimese, buscava,
sem encontrar, a relação biunívoca entre o gênero elegíaco e a imitação (entenda-se, o
argumento, a matéria) que lhe era própria (1447b):

οὐδὲν γ ὰρ ἂν ἔχοιμεν ὀνομάσαι κοινὸν το ὺς Efetivamente, não temos denominador comum que
Σώφρονος καὶ Ξενάρχου μίμους καὶ τοὺς designe os mimos de Sófron e de Xenarco, os
Σωκρατικοὺς λόγους ο ὐδὲ εἴ τις διὰ τριμέτρων ἢ diálogos socráticos e quaisquer outras composições
ἐλεγείων ἢ τῶν ἄλλων τινῶν τ ῶν τοιούτων imitativas, executadas mediante trímetros jâmbicos
ποιοῖτο τ ὴν μίμησιν. πλὴν ο ἱ ἄνθρωποί γε ou versos elegíacos ou outros versos que tais.
Porém, ajuntando à palavra "poeta" o nome de uma
συνάπτοντες τ ῷ μέτρῳ τὸ ποιεῖν ἐλεγειοποιοὺς
só espécie métrica, aconteceu denominarem-se a
τοὺς δὲ ἐποποιοὺς ὀνομάζουσιν, οὐχ ὡς κατὰ τὴν
uns de “poetas elegíacos”, a outros de “poetas
μίμησιν ποιητὰς ἀλλὰ κοινῇ κατὰ τὸ μέτρον épicos", designando-os assim, não pela imitação
προςαγορεύοντες· praticada, mas unicamente pelo metro usado.
(Tradução de Eudoro de Souza)27

4) DA ELEGIA HELENÍSTICA

Bowie, ao tempo que impugna o carácter trenódico da elegia grega arcaica, admitia-o na
elegia helenística, de que indica as ocorrências28, e na romana. Ironicamente, como bem lembra
Jackie Murray29, não é exatamente assim, ou não é apenas isso. (A bem dizer, postulo que a elegia
99

romana dos séculos I a.C–I d.C. – Catulo, Propércio, Tibulo e Ovídio – suponha vínculo
primordial e necessário com o lamento, mesmo quando desenvolve temas não trenódicos). A
elegia helenística, segundo penso, acolhe exatamente o mesmo espectro temático que a elegia
possuía no século V a.C.: a saber, a antiga vertente fúnebre trenódica, a vertente parenética com
a multiplicade de valores que exorta em cada caso, e a vertente “narrativa”, que acabamos de
ver. Nesse espectro, o elemento trenódico já não é axial, embora ainda esteja presente. Pois é
justamente a articulação dos três elementos o que parece ter feito o tão guerreado Antímaco de
Cólofon no poema Lide bem na passagem do século V para o IV a.C. Diz Plutarco (Consolatio ad
Apollonium (106b9-106c3 = ANTIM. t7):

Ἐχρήσατο δ ὲ τῇ τοιαύτῃ ἀγωγῇ καὶ Ἀντίμαχος ὁ Serviu-se Antímaco de Cólofon do seguinte meio
ποιητής. ἀποθανούσης γ ὰρ τ ῆς γυναικὸς α ὐτῷ para consolar-se: ao falecer Lide, sua mulher, por
Λύδης, πρὸς ἣν φιλοστόργως ε ἶχε, παραμύθιον quem tinha grande afeição, como consolo para dor,
τῆς λύπης α ὑτῷ ἐποίησε τ ὴν ἐλεγείαν τ ὴν
compôs a elegia a que chamou Lide, e enumerando
καλουμένην Λύδην, ἐξαριθμησάμενος τὰς ἡρωικὰς
συμφοράς, τοῖς ἀλλοτρίοις κακοῖς ἐλάττω τ ὴν as desditas dos heróis, narrando dores alheias,
ἑαυτοῦ ποιῶν λύπην. tornou menor sua própria dor.

Temos aqui: longa narrativa de dores alheias, porém de heróis, e o consolo. Antímaco, a despeito
da censura dos poetas calimaquianos de Roma, é em certa medida precursor da prática poética
poetas de Alexandria, é o elo entre a elegia dos Períodos Arcaico e Clássico e a elegia helenística.
O mesmo acolhimento é visível pelos títulos de poemas elegíacos perdidos, que adiante veremos.
Como tem sido o caso mais de uma vez, uma coisa é o que percebemos modernamente ser a
elegia arcaica ou helenística, outra é o que os romanos acreditavam que ela fosse e a apropriação
que dela fizeram. Por mais que estejamos seguros de que aquilo que pensavam teoricamente
sobre elegia não se compatibiliza com nossa percepção científica e muito filológica do gênero, o
pensamento teórico deles é funcional para a compreensão histórica que eles tinham da elegia e é
genericamente produtivo para a elegia que eles mesmos vieram a produzir, de modo que,
incompatível que fosse, não é desprezível para quem se interessa histórica e inclusivamente por
elegia grega (arcaica e helenística) e por elegia romana, que é por força o caso dos latinistas. Aos
ptolomeus o que é dos ptolomeus, porque agora é de mister falar dos elegíacos gregos
helenísticos.
Para tanto, proponho examinar as fontes teóricas helenísticas sobre elegia das quais a
mais importante é o excerpto elegíaco, sobre o gênero e sobre poética em geral conhecido como
“Aos Telquines”, de Calímaco de Cirene. O passo integra os Áitia (“Origens”, “Causas”), longo
poema etiológico, como o nome diz, que talvez seja o maior poema elegíaco do Período
100

Helenístico. Lembrando que o excepto, sendo metapoético, teve de ser antes poesia, propus-lhe
tradução em verso, para cuja leitura poética não dispensei as suplementações das lacunas
propostas pelos filólogos indicados. Procurei não estender a interpretação às conjecturas, embora
não descaiba o exercício de fazer hipóteses.

4. a) ACERCA DE CALÍMACO DE CIRENE:

4.a) 1. AOS TELQUINES


30
Οἶδ’ ὅτ]ι μοι Τελχῖνες ἐπιτρύζουσιν ἀοιδῇ, Vogl. Sei que os Telquines contra meu cantar estrilam –
νήιδες οἳ Μούσης οὐκ ἐγένοντο φίλοι, Hu. néscios, da Musa amigos não nasceram –
εἵνεκε]ν οὐχ ἓν ἄεισμα διηνεκὲς ἢ βασιλ[ῆας Hu./Hu. porque um contínuo canto33 à glória, aos reis, heróis34
[κλῇσ]ας ἐν πολλαῖς ἤνυσα χιλιάσιν Hu. em versos mil, milhares nunca fiz35:
ἢ προτέρ]ους ἥρωας, ἔπος δ' ἐπὶ τυτθὸν ἑλ[ίσσω Wil. 5 mínimo, um epos desenvolvo36 qual menino,
παῖς ἅτε], τῶν δ' ἐτέων ἡ δεκὰς οὐκ ὀλίγη. Hu. não tendo embora de anos poucas décadas.
[φημὶ δ]ὲ και Τελχῖσιν ἐγὼ τόδε· ‘φῦλον ἀ[κανθές Hu./Pf. E aos Telquines37 eu digo então: raça espinhosa
[μοῦνον ἐὸν] τήκειν ἧπαρ ἐπιστάμενον, Hu. que sabe apenas corroer o fígado!
[ἤν, ἔξοιδ’ ἄρ] ἐών [ὀλ]ιγόστιχος· ἀλλὰ καθέλκει Hu. De poucas linhas38 sei-me aedo, mas a alma
[Δρῦν πο]λὺ τὴν μακρὴν ὄμπνια Θεσμοφόρο[ς· Hu. 10 Legisladora39 vence O Roble imenso,
[τοῖν δὲ] δυοῖν Μίμνερμος ὅτι γλυκύς, α[ἱ κατὰ λεπτόν Hous. e, entre dois mais , ensinam que Mimnermo é doce40
[ῥήσιες] ἡ μεγάλη δ' οὐκ ἐδίδαξε γυνή. Rost. os Versos Tênues41, não a Mulher Grande42.
κλαγγ]ὸν ἐπὶ Θρήϊκος ἀπ' Αἰγύπτοιο [πέτοιτο] Pf. Do Egito à Trácia voe com seu grito o grou43
[αἵματ]ι Πυγμαίων ἡδομένη [γ]έρα[νος, Pf. que se compraz com sangue de Pigmeus44.
[Μασσα]γέται καὶ μακρὸν ὀϊστεύοιεν ἐπ' ἄνδρα L.& Pf.15 De longe contra o Medo45 o Massageta46 as setas
[Μῆδον]· ἀ[ηδονίδες] δ' ὧδε μελιχρ[ό]τεραι. Pf. lance: mais doce47 é o rouxinol48, qual é49.
ἔλλετε Βασκανίης ὀλοὸν γένος· αὖθι δὲ τέχνῃ Hu. Parti, nefanda raça da Inveja50: a mestria
[κρίνετε,] μὴ σχοίνῳ Περσίδι τὴν σοφίην· Hous. julgai da arte, não do alqueire Persa.
μηδ' ἀπ' ἐμεῦ διφᾶτε μέγα ψοφέουσαν ἀοιδήν Hu. Não vinde a mim pedir que eu gere altissonante
τίκτεσθαι· βροντᾶν οὐκ ἐμόν, ἀλλὰ Διός.’ Hu. 20 canto: o trovão não é meu, mas de Zeus”.
[καὶ γὰρ ὅτ]ε πρώτιστον ἐμοῖς ἐπὶ δέλτον ἔθηκα Hu. Pois quando por primeiro pus tabuinhas céreas51
31
[γούνασι]ν, Ἀ[πό]λλων εἶπεν ὅ μοι Λύκιος· Hu nos joelhos, Apolo Lício52 disse-me:
[ἦ δέον α]ἰέν, ἀοιδέ, τὸ μὲν θύος ὅττι πάχιστον Hu. “o incenso, aedo, o mais espesso é o que convém
[ἄμμι φέρει]ν Μοῦσαν δ' ὠγαθὲ λεπταλέην· Wil. me dar, a Musa, amigo, delicada53.
πρὸς δέ σε] καὶ τόδ' ἄνωγα, τὰ μὴ πατέουσιν ἅμαξαι Hu. 25 Ordeno-te, não vás por onde os carros trilham
[τὰ στείβε]ιν, ἑτέρων ἴχνια μὴ καθ' ὁμά Hu. nem sobre o mesmo alheio rasto a roda
[δίφρον ἐλ]ᾶ̣ν μηδ' οἷμον ἀνὰ πλατύν, ἀλλὰ κελεύθους Hu. leves nem vás à larga via mas a estrada
[ἀτρίπτο]υς, εἰ καὶ στε[ι]νοτέρην ἐλάσεις.’ Hu./ Hu. não batida, por mais que estreita, sigas”.
[τῷ πιθόμη]ν· ἐνὶ τοῖς γὰρ ἀείδομεν οἳ λιγὺν ἦχον Wil. Aceito e canto em meio aos que amam som agudo
τέττιγος, θ]όρυβον δ' οὐκ ἐφίλησαν ὄνων. L. 30 de cigarras, não zurros de jumento.
[θηρὶ μὲν ο]ὐατόεντι πανείκελον ὀγκήσαιτο Hu. Igual a orelhuda besta vocifere
[ἄλλος, ἐγ]ὼ δ' εἴην οὑλ̣[α]χύς, ὁ πτερόεις, Hu. outro, que eu seja o leve, o ser alado,
ἆ πάντως, ἵνα γῆρας ἵνα δρόσον ἣν μὲν ἀείδω Hu. ah,! que a velhice, que o orvalho eu cante e viva
πρώκιο]ν ἐκ δίης ἠέρος εἶδαρ ἔδων, Hu. dele, gratuito dom do ar divino,
αὖθι τὸ δ' [ἐκ⌋δύοιμι, τό μοι βάρος ὅσσον ἔπεστι Hu. 35 e dela me despoje, que me pesa quanto
[τριγ]λώ[χι]ν ὀλοῷ νῆσος ἐπ' Ἐγκελάδῳ. Hu. a ilha de três pontas54 sobre Encélado.
[οὐ νέμεσις· Μοῦσαι γ]ὰρ ὅσους ἴδον ὄθματι παῖδας Hu. E é justo: a quem, menino, as Musas viram – não
32 de oblíquo olhar – não deixam quando em cãs.
[μὴ λοξῷ, πολιοὺς] οὐκ ἀπέθεντο φίλους.

Aos inimigos poéticos, ignaros de poesia (νήιδες οἳ Μούσης οὐκ ἐγένοντο φίλοι, “néscios, da Musa
amigos não nasceram”, v. 2, ), pois é disso que se trata, Calímaco lhes chama “Telquines”,
demônios que habitam Rodes, dedicados à metalurgia e à mágica, capazes de lançar maus-
olhados. O ofício metalúrgico revela que a natureza da inveja dos Telquines, explicitada só no
101

verso 17 (Βασκανίης), se refere à capacidade técnica, que é também poética, de forjar. Calímaco é
censurado porque não compôs (οὐχ... ἤνυσα, vv. 3-4) “um contínuo canto” (ἓν ἄεισμα διηνεκὲς, v.
3), isto é, “um canto único”, bem entendido, “um canto uno e unitário”. Ἄεισμα é termo indistinto,
também empregado para designar poema hexamétrico narrativo no Epigrama 27, 1 (Ἡσιόδου τό τ'
ἄεισμα, “o canto de Hesíodo”), restrito aqui por ἢ βασιλ[ῆας / [κλῇσ]ας ἐν πολλαῖς ἤνυσα χιλιάσιν ἢ
προτέρ]ους ἥρωας (ao pé da letra, “glorific]ando reis, heróis em milhares de versos”, vv. 4-5). O
passo diz respeito à épica heróica e aristotelicamente unitária. É nessa passagem, como apenas
mencionei, que Calímaco declara não seguir o conceito peripatético de unidade, o que é boa
advertência, mormente aos fundamentalistas aristotélicos, que havia, como é óbvio, dissenso na
Antigüidade. Mas não fica claro a que específico poema de sua autoria Calímaco se refere, quero
dizer, não fica claro que poema de Calímaco foi impugnado. Nem mesmo os versos subseqüentes
esclarecem (ἔπος δ' ἐπὶ τυτθὸν ἑλ[ίσσω / παῖς ἅτε], τῶν δ' ἐτέων ἡ δεκὰς οὐκ ὀλίγη, “um epos
desenvolvo qual menino, / não tendo embora de anos poucas décadas”, vv. 5-6). Massimilia crê
que sejam os próprios Áitia, argumentando, primeiro, que ἔπος no Período Arcaico incluía elegia
e, argumentando melhor, que seria de esperar que Calímaco se referisse ao próprio poema em
que faz a defesa de sua poesia, de molde que o poema censurado, que não é longo nem trata da
glória de reis e heróis seriam os Áitia. Se ἔπος não se restringe no Período Helenístico à poesia
hexamétrica mas continua a designar poesia elegíaca, de que seria prova o emprego do termo pelo
próprio Calímaco no v. 5 deste poema, que é elegíaco, deve-se concluir que Calímaco nos versos 4-
5 não só fazia referência a elegias cuja matéria é heróica, como de facto parecem ser a Esmirneida e os
fragmentos de Arquíloco recentemente reconstituídos, mas também a elegias cuja extensão é ao
mesmo tempo muito grande, a ponto de atingir milhares de versos, talvez como hipérbole para
depreciar o que considera grande extensão. Assim ἔπος designaria apenas “narração”, e até mesmo
“narratividade”, o caráter narrativo.
Creio, todavia, que Calímaco se refere aos epos hexamétricos que compôs: os cinco hinos
– A Zeus, A Apolo, A Ártemis, A Delos, A Deméter – e o epílio Hécale. Crinágoras (AP 9, 545, 1) chama
ἔπος ao poema Hécale de Calímaco e usa o mesmo verbo ἀείδω para designar a voz do poeta. Por
mais que ἔπος no Período Arcaico possa designar genericamente “poesia” (LSJ, s.v. IVa) a partir do
sentido de “palavra” (LSJ, Ia), argumento eu que isso não significa que não tenha assumido
acepção técnica e restrita mais tarde, seja nos tratados de poética, mormente a de Aristóteles, seja
na teoria helenística e naquela por ela enformada mais tarde, como vimos, seja na poesia teórica
102

dos autores alexandrinos, como o próprio Calímaco no decisivo Epigrama 27, seja nos poeta e
gramáticos latinos, cuja teoria tem raiz na teoria helenística. A questão não é verificar se ἔπος

designa elegia no Período Arcaico – pode designar à vontade – mas verificar se a designa nos
Períodos Clássico e Helenístico. Assim, sem mesmo aprofundar a questão de que nos exemplos
arcaicos a generalidade de ἔπος na verdade não designa elegia, mas apenas não a exclui, a tecnicidade
do termo ἔπος, que é posterior à época arcaica, restringe-o nas fontes teóricas apenas às
composições hexamétricas, quer sejam heróicas, como as de Homero e Apolônio de Rodes, quer
sejam não-bélicas, isto é, “didácticas”, como as de Hesíodo e Arato de Solos, e às que hoje
chamamos “epílio”. É mais provável, portanto, que Calímaco – poeta, crítico, filólogo e
bibliotecário – tenha empregado tecnicamente “epos” referindo-se apenas a poema épico
hexamétrico, quer heróico, quer didático, quer de outras espécies. Falar tecnicamente de epos em
elegia ou em versos elegíacos não deve estranhar, pois já o fizera no mesmo Epigrama 27, quando
trata de Hesíodo e de Arato de Solos. É bem possível que Calímaco – cultor de vários gêneros e
polemista inveterado – tendo sido interpelado pelos adversários sobre epos, lhes tenha respondido
sobre ele também no seu poema mais ambicioso, os Aítia, que calham de ser elegíacos e que o
tenha feito nesse epílogo do poema que é Aos Telquines (e aqui concordo com Massimilia), em que
praticamente faz como que derradeiro balanço de sua poesia. No seu juízo final, dá exemplos
positivo e negativo de poemas também elegíacos, nos quais, como sempre, independentemente do
gênero55, considera igualmente viciosas elocução grandíloqua e excessiva extensão, como se
observa nos versos seguintes e pela censura semelhante a estes mesmos vícios no excerpto final do
Hino a Apolo, que não é elegíaco. Pois bem, nos versos 9-10 Calímaco, tratando da tão grata
brevidade, exemplifica-a enfim com poetas e poemas e elegíacos. A locução τοῖν δὲ δυοῖν (“entre
dois mais”, v. 11) pode interpretar-se de dois modos: conforme o primeiro, Calímaco opõe no
interior da produção de Mimnermo, explicitamente mencionado, e de Filetas, composições breves e
longas de cada um, sendo aquelas consideradas superiores a estas. De Mimnermo é poema longo o
que Calímaco chama jocosamente A Mulher Grande (Μεγάλη Γυνή), que pode designar ou Nano
(Ναννώ) ou Esmirneida (Σμυρνεῖς) e são breves os Versos Tênues, αἱ κατὰ λεπτόν [ῥήσιες (v. 12)
abreviados para Κατὰ Λεπτόν, designação que veio a nomear poemas breves de Arato de Solos e,
latinizada para Catalepton, nomeou depois poemas atribuídos a Virgílio. De acordo com a segunda
tendência, Calímaco apreciaria por inteiro a produção de Mimnermo e a de Filetas, às quais oporia
terceiro poeta, Antímaco de Cólofon, do século IV, cujo poema Lide (Λύδη), longo e túmido (A
103

Mulher Grande), merece a rejeição não só de Calímaco, mas até de seus imitadores latinos, como
Catulo, no poema 95, na proporção inversa em que Mimnermo e Filetas, além do próprio
Calímaco, são reverenciados56. De todo modo, restringindo a leitura do poema ao que cabe agora
discutir, Calímaco, tendo recebido as três vertentes elegíacas – a antiga vertente fúnebre trenódica,
a vertente parenética e sua multiplicade de valores, e a vertente narrativa “heróica” – rejeita,
quanto à matéria o tema heróico para o epos e para a elegia, e quanto à disposição, rejeita o poema
longo. Mas para elegia o que propõe? E como conciliar o repúdio à longura com a extensão dos
Áitia, que não é pequena?
A resposta para as duas perguntas não está no excerpto, mas no que sabemos dos Áitia: para
a longura, a resposta de Calímaco não é o número absoluto de versos, mas a quantidade de versos
que cada episódio do poema ocupa, o que responde em parte à outra pergunta. Os Áitia são uma
série de pequenas narrativas etiológicas sobre a origem de costumes, nomes, práticas de vários
povos, de modo que pouco importa a extensão total, ainda mais para um poeta bibliotecário,
douto, que deseja pré-borgianamente dar conta de tudo, mas a extensão dos vários anéis da
corrente total. Não é um poema longo, mas vários poemas pequenos. Se por um momento
deixarmos de lado o facto de que as Metamorfoses de Ovídio são hexamétricas (Ovídio quis superar
Virgílio, fazendo o epos total, do começo do mundo até o momento presente da história romana;
aliás, quis assim superar Hesíodo e o próprio Calímaco) e que o desenlace de cada episódio é uma
transformação, sobra-nos exatamente o que imitou dos Aítia: a sucessão de pequenas narrativas
etiológicas com aparente unidade, vale dizer, dotadas de uma unidade que não é aristotélica, ou, para os
peripatéticos de sempre, vá lá, não dotadas de unidade. Pode-se concluir, creio, que o critério da
censura dos Telquines era aristotélico: o poema de Calímaco (fosse Hécale, como penso, fossem os
Aítia) não é heróico, nem uno. E por causa do apreço por Hesíodo e da própria condição dos Áitia,
Calímaco prescreve então que, independentemente da matéria imediata, a narrativa da elegia deve
ser etiológica. Mas não é tudo: no poema Áitia Calímaco narra a descoberta de uma nova
constelação – que não deixa de ser uma forma de origem – pelo astrônomo Cônon de Samos
(fragmento 110 Pfeiffer). Segundo o poema57, a constelação outra coisa não é do que a trança de
Berenice II, esposa de Ptolomeu III, Filadelfo, transformada em estrela. Logo após casarem,
Ptolomeu partiu para atacar a Síria, e Berenice prometeu votar a bela trança à Afrodite Arsínoe se
o marido voltasse vitorioso, o que de facto ocorreu. Paga a promessa, no dia seguinte descobre-se
que o ex-voto desapareceu do templo. Para acalmar Ptolomeu, Cônon diz que a trança ofertada
104

estava entre as estrelas, ali posta pela própria deusa. Ora bem; Calímaco funde etiologia,
catasterismo e encômio. O episódio evidencia a variedade, a chamada ποικιλία, que o próprio
Calímaco preceitua nos Iambos. Assim tabém, Calímaco em meio a quatro epos hínicos (quatro
hinos hexamétricos), insere o Banho de Palas (Εἰς Λουτρὰ Παλλάδος) que não é epos, mas continua a
ser hino, um hino elegíaco e etiológico:

4.a) 2. HINO 5: AO BANHO DE PALAS

Ὅσσαι λωτροχόοι τᾶς Παλλάδος ἔξιτε πᾶσαι, Vós, que preparais o banho de Palas, saí todas,
ἔξιτε· τᾶν ἵππων ἄρτι φρυασσομενᾶν saí! O relinchar sagrado da cavalaria
τᾶν ἱερᾶν ἐσάκουσα, καὶ ἁ θεὸς εὔτυκος ἕρπεν· já ouvi. Também a deusa já está disposta a vir.
σοῦσθέ νυν, ὦ ξανθαὶ σοῦσθε Πελασγιάδες. Apressai-vos, então, apressai-vos, louras filhas de Pelasgo.
Jamais Atena banhou seus braços fortes
οὔποκ' Ἀθαναία μεγάλως ἀπενίψατο πάχεις, 5
sem antes banir a poeira dos flancos de seus cavalos,
πρὶν κόνιν ἱππειᾶν ἐξελάσαι λαγόνων·
nem quando, carregando sua armadura toda manchada
οὐδ' ὅκα δὴ λύθρῳ πεπαλαγμένα πάντα φέροισα de sangue e poeira, veio dos sem justiça, os nascidos da terra;
τεύχεα τῶν ἀδίκων ἦνθ' ἀπὸ γαγενέων, mas, primeiro, após desatar o pescoço dos cavalos
ἀλλὰ πολὺ πράτιστον ὑφ' ἅρματος αὐχένας ἵππων da atrelagem, lavou nas águas correntes do Oceano
λυσαμένα παγαῖς ἔκλυσεν Ὠκεανῶ 10 o suor e as nódoas, e limpou toda a espuma coagulada
ἱδρῶ καὶ ῥαθάμιγγας, ἐφοίβασεν δὲ παγέντα das bocas que corroem o freio.
πάντα χαλινοφάγων ἀφρὸν ἀπὸ στομάτων. Vinde, Aquéias, mas nem óleos perfumados nem alabastros
ὦ ἴτ' Ἀχαιιάδες, καὶ μὴ μύρα μηδ' ἀλαβάστρως (escuto o ruído dos cubos das rodas contra os eixos)
nem óleos perfumados, vós que preparais o banho, nem alabastros para Palas
(συρίγγων ἀίω φθόγγον ὑπαξόνιον),
(pois Atena não gosta de misturas com fragrâncias)
μὴ μύρα λωτροχόοι τᾷ Παλλάδι μηδ' ἀλαβάστρω 15 não levareis, nem um espelho: seu rosto é sempre belo.
(οὐ γὰρ Ἀθαναία χρίματα μεικτὰ φιλεῖ) Mesmo quando, no Ida, o Frígio julgou a contenda,
οἴσετε μηδὲ κάτοπτρον· ἀεὶ καλὸν ὄμμα τὸ τήνας. a grande deusa não se olhou no oricalco
οὐδ' ὅκα τὰν Ἴδᾳ Φρὺξ ἐδίκαζεν ἔριν, nem nas ondas translúcidas do Simoente;
οὔτ' ἐς ὀρείχαλκον μεγάλα θεὸς οὔτε Σιμοῦντος também não o fez Hera, mas Cípris, segurando o bronze brilhante
ἔβλεψεν δίναν ἐς διαφαινομέναν· 20 alterou duas vezes, com freqüência, o mesmo arranjo do cabelo.
οὐδ' Ἥρα· Κύπρις δὲ διαυγέα χαλκὸν ἑλοῖσα Já ela, após ter corrido duas vezes sessenta diaulos,
tais quais, à beira do Eurotas, as estrelas Lacedemônias,
πολλάκι τὰν αὐτὰν δὶς μετέθηκε κόμαν.
untou-se de maneira arguta, aplicando o unguento simples
ἁ δὲ δὶς ἑξήκοντα διαθρέξασα διαύλως,
que brota de sua própria árvore,
οἷα παρ' Εὐρώτᾳ τοὶ Λακεδαιμόνιοι meninas! e o rubor subiu-lhe as faces,
ἀστέρες, ἐμπεράμως ἐτρίψατο λιτὰ βαλοῖσα 25 tal qual a pele da rosa matinal ou da semente da romã.
χρίματα, τᾶς ἰδίας ἔκγονα φυταλιᾶς, Agora também, trazei somente um óleo viril,
ὦ κῶραι, τὸ δ' ἔρευθος ἀνέδραμε, πρώϊον οἵαν com o qual Cástor e Héracles se ungem;
ἢ ῥόδον ἢ σίβδας κόκκος ἔχει χροϊάν. levareis também um pente todo em ouro, para que arrume
τῷ καὶ νῦν ἄρσεν τι κομίσσατε μῶνον ἔλαιον, seus longos cabelos, depois de limpar as tranças luzentes.
ᾧ Κάστωρ, ᾧ καὶ χρίεται Ἡρακλέης· 30 Sai, Atena! Junto a ti há uma tropa concorde,
as jovens filhas dos grandes Arestoridas.
οἴσετε καὶ κτένα οἱ παγχρύσεον, ὡς ἀπὸ χαίταν
Atena! A tropa também leva o escudo de Diomedes,
πέξηται, λιπαρὸν σμασαμένα πλόκαμον.
como Eumedes ensinou este hábito antigo
ἔξιθ', Ἀθαναία· πάρα τοι καταθύμιος ἴλα, dos Argivos, ele, o teu sacerdote favorito,
παρθενικαὶ μεγάλων παῖδες Ἀρεστοριδᾶν· que, certa vez, sabendo da morte bem urdida
ὠθάνα, φέρεται δὲ καὶ ἁ Διομήδεος ἀσπίς, 35 que lhe preparava o povo, fugiu, levando
ὡς ἔθος Ἀργείως τοῦτο παλαιοτέρως tua sacra imagem, e no monte Creion se instalou,
Εὐμήδης ἐδίδαξε, τεῒν κεχαρισμένος ἱρεύς· sim, no monte Creion, postou-te, deusa, nas pedras
ὅς ποκα βωλευτὸν γνοὺς ἐπί οἱ θάνατον escarpadas, hoje chamadas Palatides.
δᾶμον ἑτοιμάζοντα φυγᾷ τεὸν ἱρὸν ἄγαλμα Sai, Atena, destruidora de cidades, de elmo de ouro,
tu que te apraz com o estrondo de cavalos e escudos.
ᾤχετ' ἔχων, Κρεῖον δ' εἰς ὄρος ᾠκίσατο, 40
Hoje, portadoras d’água, não mergulheis; hoje, Argos,
Κρεῖον ὄρος· σὲ δέ, δαῖμον, ἀπορρώγεσσιν ἔθηκεν
bebei das fontes, mas não do rio;
ἐν πέτραις, αἷς νῦν οὔνομα Παλλατίδες. hoje, escravas, levai os cântaros para a Fisadia
ἔξιθ', Ἀθαναία περσέπτολι, χρυσεοπήληξ, ou para a Amimone, a Danaide.
ἵππων καὶ σακέων ἁδομένα πατάγῳ. Pois, misturando em suas águas ouro e flores,
105

σάμερον, ὑδροφόροι, μὴ βάπτετε – σάμερον, Ἄργος, 45 Ínaco virá dos montes de pasto fértil
πίνετ' ἀπὸ κρανᾶν μηδ' ἀπὸ τῶ ποταμῶ· conduzindo o belo banho para Atena. Mas, Pelasgo,
σάμερον αἱ δῶλαι τὰς κάλπιδας ἢ 'ς Φυσάδειαν sê atento para que, mesmo sem querer, não vejas a rainha.
ἢ ἐς Ἀμυμώναν οἴσετε τὰν Δαναῶ. Quem vir Palas, a protetora da cidade, nua,
contemplará Argos pela última vez.
καὶ γὰρ δὴ χρυσῷ τε καὶ ἄνθεσιν ὕδατα μείξας
Veneranda Atena, sai tu! enquanto isso, eu, a essas jovens,
ἡξεῖ φορβαίων Ἴναχος ἐξ ὀρέων 50
farei um relato: a história não é minha, mas de outros.
τἀθάνᾳ τὸ λοετρὸν ἄγων καλόν. ἀλλά, Πελασγέ, Meninas! Atena, certa vez, em Tebas, amava
φράζεο μὴ οὐκ ἐθέλων τὰν βασίλειαν ἴδῃς. uma ninfa muito mais que as outras companheiras,
ὅς κεν ἴδῃ γυμνὰν τὰν Παλλάδα τὰν πολιοῦχον, a mãe de Tirésias, e dela nunca se separava:
τὦργος ἐσοψεῖται τοῦτο πανυστάτιον. mas, fosse até a antiga Téspias,
πότνι' Ἀθαναία, σὺ μὲν ἔξιθι· μέσφα δ' ἐγώ τι 55 [..........................................] ou a Haliarto que guiasse
ταῖσδ' ἐρέω· μῦθος δ' οὐκ ἐμός, ἀλλ' ἑτέρων. seus cavalos, atravessando os campos lavrados da Beócia,
παῖδες, Ἀθαναία νύμφαν μίαν ἔν ποκα Θήβαις ou até Coronéia, onde o seu bosque odoroso
e seus altares se encontram, à beira do rio Curálio,
πουλύ τι καὶ πέρι δὴ φίλατο τᾶν ἑταρᾶν,
sempre a deusa a fazia subir em seu carro.
ματέρα Τειρεσίαο, καὶ οὔποκα χωρὶς ἔγεντο·
Nem os gracejos das ninfas, nem os coros
ἀλλὰ καὶ ἀρχαίων εὖτ' ἐπὶ Θεσπιέων 60 vinham a ser agradáveis quando Cariclo não os conduzia.
[.......................] ἢ εἰς Ἁλίαρτον ἐλαύνοι Mas muitas lágrimas ainda a aguardavam,
ἵππως, Βοιωτῶν ἔργα διερχομένα, embora fosse, para Atena, a companheira concorde.
ἢ 'πὶ Κορωνείας, ἵνα οἱ τεθυωμένον ἄλσος Pois, certa vez, após desatarem os broches de seus peplos
καὶ βωμοὶ ποταμῷ κεῖντ' ἐπὶ Κουραλίῳ, à beira da fonte do cavalo, que sobre o Hélicon flui belamente,
πολλάκις ἁ δαίμων νιν ἑῶ ἐπεβάσατο δίφρω, 65 banhavam-se; o monte detinha o silêncio do meio-dia.
οὐδ' ὄαροι νυμφᾶν οὐδὲ χοροστασίαι Ambas se banhavam, era a hora do meio-dia,
aquele monte retinha o silêncio profundo.
ἁδεῖαι τελέθεσκον, ὅκ' οὐχ ἁγεῖτο Χαρικλώ·
Sozinho, com seus cães, Tirésias, cuja barba ainda começava
ἀλλ' ἔτι καὶ τήναν δάκρυα πόλλ' ἔμενε,
a escurecer, passeava pelo espaço sagrado.
καίπερ Ἀθαναίᾳ καταθύμιον ἔσσαν ἑταίραν. Como tinha uma sede inefável, aproximou-se do fluxo da fonte,
δή ποκα γὰρ πέπλων λυσαμένα περόνας 70 desafortunado!, sem querer, viu o que não é lícito ver.
ἵππω ἐπὶ κράνᾳ Ἑλικωνίδι καλὰ ῥεοίσᾳ Embora colérica, Atena disse-lhe:
λῶντο· μεσαμβρινὰ δ' εἶχ' ὄρος ἁσυχία. “Quem, Everida, tu que jamais serás restituído dos olhos,
ἀμφότεραι λώοντο, μεσαμβριναὶ δ' ἔσαν ὧραι, qual das divindades te conduziu a este caminho funesto?”
πολλὰ δ' ἁσυχία τῆνο κατεῖχεν ὄρος. Ela falou e a noite se apoderou do olhar da criança.
Τειρεσίας δ' ἔτι μῶνος ἁμᾶ κυσὶν ἄρτι γένεια 75 Ele permaneceu estático, mudo; o pesar fixou-lhe
os joelhos e a impotência detinha sua voz.
περκάζων ἱερὸν χῶρον ἀνεστρέφετο·
A ninfa gritou: “Que fizestes a meu menino,
διψάσας δ' ἄφατόν τι ποτὶ ῥόον ἤλυθε κράνας,
veneranda? É deste modo que vós, divindades, sois amigas?
σχέτλιος· οὐκ ἐθέλων δ' εἶδε τὰ μὴ θεμιτά.
Tu retirastes o olhar do meu filho. Ó filho insofrível,
τὸν δὲ χολωσαμένα περ ὅμως προσέφασεν Ἀθάνα·
‘τίς σε, τὸν ὀφθαλμὼς οὐκέτ' ἀποισόμενον, 80 vistes o peito e as costas de Atena,
ὦ Εὐηρείδα, χαλεπὰν ὁδὸν ἄγαγε δαίμων;’ mas não irás rever o sol. Ó infeliz de mim,
ἁ μὲν ἔφα, παιδὸς δ' ὄμματα νὺξ ἔλαβεν. ó monte, ó Hélicon para mim inacessível,
ἑστάκη δ' ἄφθογγος, ἐκόλλασαν γὰρ ἀνῖαι exigistes muito em face de pouco: por ter perdido
γώνατα καὶ φωνὰν ἔσχεν ἀμαχανία. não muitas gazelas e cabritos, tens a luz dos olhos da criança”.
ἁ νύμφα δ' ἐβόασε· ‘τί μοι τὸν κῶρον ἔρεξας 85
Após envolver seu filho com ambos os braços,
πότνια; τοιαῦται, δαίμονες, ἐστὲ φίλαι;
a mãe propagava a sorte funesta dos gementes rouxinóis,
ὄμματά μοι τῶ παιδὸς ἀφείλεο. τέκνον ἄλαστε,
εἶδες Ἀθαναίας στήθεα καὶ λαγόνας, chorando em tom grave, e a deusa se apiedou da companheira.
ἀλλ' οὐκ ἀέλιον πάλιν ὄψεαι. ὢ ἐμὲ δειλάν, Atena, então, disse-lhe estas palavras:
ὢ ὄρος, ὢ Ἑλικὼν οὐκέτι μοι παριτέ, 90 “Divina mulher, retira logo tudo o que falastes
ἦ μεγάλ' ἀντ' ὀλίγων ἐπράξαο· δόρκας ὀλέσσας por causa da ira. Não fui eu quem fez de teu filho um cego.
καὶ πρόκας οὐ πολλὰς φάεα παιδὸς ἔχεις.’ Não é agradável, para Atena, arrebatar o olhar de crianças.
ἁ μὲν <ἅμ'> ἀμφοτέραισι φίλον περὶ παῖδα λαβοῖσα
Mas assim dizem as leis de Cronos:
μάτηρ μὲν γοερᾶν οἶτον ἀηδονίδων
quem observar um dos imortais sem que o próprio deus
ἆγε βαρὺ κλαίοισα, θεὰ δ' ἐλέησεν ἑταίραν. 95
καί νιν Ἀθαναία πρὸς τόδ' ἔλεξεν ἔπος· concorde, paga alto por tê-lo visto.
’δῖα γύναι, μετὰ πάντα βαλεῦ πάλιν ὅσσα δι' ὀργάν Divina mulher, o ato, quando se cumpre, não é mais revogável:
εἶπας· ἐγὼ δ' οὔ τοι τέκνον ἔθηκ' ἀλαόν. pois assim teceram os fios das Moiras,
οὐ γὰρ Ἀθαναίᾳ γλυκερὸν πέλει ὄμματα παίδων desde o começo quando o deste à luz; agora acolhe,
ἁρπάζειν· Κρόνιοι δ' ὧδε λέγοντι νόμοι· 100 ó Everida, o tributo devido.
ὅς κε τιν' ἀθανάτων, ὅκα μὴ θεὸς αὐτὸς ἕληται,
106

ἀθρήσῃ, μισθῶ τοῦτον ἰδεῖν μεγάλω. Quantas vítimas a filha de Cadmo mais tarde queimará na pira!
δῖα γύναι, τὸ μὲν οὐ παλινάγρετον αὖθι γένοιτο quantas Aristeu, suplicando para ver
ἔργον, ἐπεὶ Μοιρᾶν ὧδ' ἐπένησε λίνα, o único filho, o adolescente Actéon, cego!
ἁνίκα τὸ πρᾶτόν νιν ἐγείναο· νῦν δὲ κομίζευ, 105
Ele será o companheiro de corrida da grande Ártemis,
ὦ Εὐηρείδα, τέλθος ὀφειλόμενον.
mas as corridas e as flechas no monte lançadas
πόσσα μὲν ἁ Καδμηὶς ἐς ὕστερον ἔμπυρα καυσεῖ,
πόσσα δ' Ἀρισταῖος, τὸν μόνον εὐχόμενοι em comum neste momento não o salvarão,
παῖδα, τὸν ἁβατὰν Ἀκταίονα, τυφλὸν ἰδέσθαι. quando, também sem querer, vir o agradável banho
καὶ τῆνος μεγάλας σύνδρομος Ἀρτέμιδος 110 da deusa; mas, desta vez, os próprios cães
ἔσσεται· ἀλλ' οὐκ αὐτὸν ὅ τε δρόμος αἵ τ' ἐν ὄρεσσι jantarão seu mestre; e a mãe, percorrendo todos os bosques,
ῥυσεῦνται ξυναὶ τᾶμος ἑκαβολίαι, recolherá os ossos do filho.
ὁππόταν οὐκ ἐθέλων περ ἴδῃ χαρίεντα λοετρά
Ela dirá que tu és a mais feliz e afortunada
δαίμονος· ἀλλ' αὐταὶ τὸν πρὶν ἄνακτα κύνες
ao receber dos montes um filho cego.
τουτάκι δειπνησεῦντι· τὰ δ' υἱέος ὀστέα μάτηρ 115
λεξεῖται δρυμὼς πάντας ἐπερχομένα· Ó companheira! Não te lamentes por isso; a ele,
ὀλβίσταν δ' ἐρέει σε καὶ εὐαίωνα γενέσθαι por teu favor, muitos outros prêmios estão, por mim, reservados:
ἐξ ὀρέων ἀλαὸν παῖδ' ὑποδεξαμέναν. farei dele um adivinho digno de ser cantado pelas gerações futuras,
ὦ ἑτάρα, τῷ μή τι μινύρεο· τῷδε γὰρ ἄλλα decerto, muito mais notável do que os outros.
τεῦ χάριν ἐξ ἐμέθεν πολλὰ μενεῦντι γέρα, 120 Conhecerá os pássaros, os de bom augúrio, os que voam
μάντιν ἐπεὶ θησῶ νιν ἀοίδιμον ἐσσομένοισιν,
em vão e os que fazem presságios não favoráveis.
ἦ μέγα τῶν ἄλλων δή τι περισσότερον.
Muitos oráculos aos Beócios, muitos a Cadmo
γνωσεῖται δ' ὄρνιχας, ὃς αἴσιος οἵ τε πέτονται
ἤλιθα καὶ ποίων οὐκ ἀγαθαὶ πτέρυγες. irá proferir e, mais tarde, aos grandes Labdácidas.
πολλὰ δὲ Βοιωτοῖσι θεοπρόπα, πολλὰ δὲ Κάδμῳ 125 Dar-lhe-ei um grande bastão, que conduzirá seus pés aonde lhe convier;
χρησεῖ, καὶ μεγάλοις ὕστερα Λαβδακίδαις. dar-lhe-ei também um termo da vida que por muito tempo se adia.
δωσῶ καὶ μέγα βάκτρον, ὅ οἱ πόδας ἐς δέον ἀξεῖ, E será o único que, após morrer, vagará consciente
δωσῶ καὶ βιότω τέρμα πολυχρόνιον, entre os mortos, honrado pelo grande Hagesilau”.
καὶ μόνος, εὖτε θάνῃ, πεπνυμένος ἐν νεκύεσσι Depois que assim falou, fez um sinal com a cabeça: o que Palas aprova
φοιτασεῖ, μεγάλῳ τίμιος Ἁγεσίλᾳ.’ 130
é consumado, pois Zeus somente a Atena,
ὣς φαμένα κατένευσε· τὸ δ' ἐντελές, ᾧ κ' ἐπινεύσῃ
de todas as filhas, concedeu possuir todos os atributos paternos.
Παλλάς, ἐπεὶ μώνᾳ Ζεὺς τόγε θυγατέρων
δῶκεν Ἀθαναίᾳ πατρώια πάντα φέρεσθαι, Vós que preparais o banho!, nenhuma mãe deu à luz a deusa,
λωτροχόοι, μάτηρ δ' οὔτις ἔτικτε θεάν, mas a cabeça de Zeus. A cabeça de Zeus não aprova
ἀλλὰ Διὸς κορυφά. κορυφὰ Διὸς οὐκ ἐπινεύει 135 falsidades [............................................] filha.
ψεύδεα [........................] αι θυγάτηρ. Chega Atena, precisamente agora; recebei a deusa,
ἔρχετ' Ἀθαναία νῦν ἀτρεκές· ἀλλὰ δέχεσθε ó jovens, a quem a tarefa ocupa,
τὰν θεόν, ὦ κῶραι, τὦργον ὅσαις μέλεται,
com louvor, com súplicas e com clamores!
σύν τ' εὐαγορίᾳ σύν τ' εὔγμασι σύν τ' ὀλολυγαῖς.
Deleita-te, deusa, e vela por Argos de Ínaco;
χαῖρε, θεά, κάδευ δ' Ἄργεος Ἰναχίω. 140
χαῖρε καὶ ἐξελάοισα, καὶ ἐς πάλιν αὖτις ἐλάσσαις deleita-te, enquanto sais e avanças outra vez
ἵππως, καὶ Δαναῶν κλᾶρον ἅπαντα σάω. sobre teus cavalos, e guarda todos os domínios dos Dânaos!

(Tradução de Agatha Pitombo Bacelar58).

No quadro maior da narração sobre o banho de Palas, insere-se digressivamente do verso 71 ao


130 a narrativa etiológica sobre a origem da cegueira de Tirésias, em que se sobressaem o diálogo
patético entre a deusa e Cariclo, a desesperada mãe do futuro adivinho ainda rapaz (vv. 85-92).
Aqui, tal como Bowie apontava para as elegias arcaicas, além de narração mitológica ocorrem: a)
lamento, mormente nos versos 89-90 (ὢ ἐμὲ δειλάν, / ὢ ὄρος, ὢ Ἑλικὼν οὐκέτι μοι παριτέ, “Ó
infeliz de mim, / ó monte, ó Hélicon para mim inacessível”; b) exortação: Cariclo deve
conformar-se aceitar a lei de Cronos e o quinhão das Moiras, exortação articulada no argumento
107

de que a paga poderia ser pior, poderia ser como a de Actéon, que, pelo mesmo delito, mas
contra Ártemis, foi transformado em cervo e devorado pelos próprios cães: os pais de Actéon bem
quereriam o filho cego, porém vivo (vv. 103-119). E há também consolo, materializado na
previsão que a deusa faz a Cariclo sobre o futuro glorioso de Tirésias (vv. 97-130): será adivinho
(vv. 121-122), conhecerá o augúrio das aves (vv. 123-124), fará previsões a Beócios e Labdácidas
(vv. 125-126), terá longa vida e após morrer será o único honrado por Hagesilau (vv. 128-130). E
no entanto a elegia é muito diferente das elegias arcaicas que lêramos.
A diferença estou convencido que reside na deliberada proposta de executar poesia mais
tênue, mais delicada, mais refinada, como vimos, que, por um lado, só pode ser exeqüível mediante
correlata brevidade, como também vimos, e mediante argumento supostamente mais agradável, e
necessariamente menos grave, como pretendo fazer ver. A proposta de Calímaco consiste em
substituir como regra os argumentos mais graves e elevados que caracterizam a grande maioria das
elegias arcaicas por argumentos mais chãos, o que obriga que a elocução elevada seja substituída
por elocução média. Dizer “menos elevados” não deve levar à idéia de inferioridade do poeta nem
da poesia nem do próprio argumento, porque, como disse, é a injunção imposta pela matéria e
elocução mais tênues, que supõe um público culto desejoso de novidade, apto a acolher, mas não
necessariamente aprovar, experimentos. Ainda que se possa aventar e descobrir a existência de
elegias arcaicas menos elevadas e até baixas, que se dariam como alternativa às mais graves,
Calímaco está a preceituar que as primeiras, as elegias médias, sejam a prática no tempo dele. Nem
é necessário postular uma “invenção helenística” para o rebaixamento da elegia (como creio,
porém, ocorre no epos); bastará perceber que se trata de escolha, de uma decisão. Assim, é muito
coerente que da gama poetas elegíacos arcaicos e dos respectivos temas que trataram, Calímaco
mostre explicitamente que está a escolher, e que está escolhendo Mimnermo59, cujo lamento motivado
pela fim da juventude e da beleza, e a conseqüente carência amorosa, com dizer respeito antes à
pessoa do que à coletividade, isto é, por referir-se a menos pessoas e por se lhes referir na sua
condição particular, não é ação igual à de sábio nem à de herói, mas é de alguém como nós, igual a
nós. Pois bem, tendo visto o incensamento que Calímaco faz da brevidade, é bastante razoável crer
que Antímaco, embora tenha posto em prática a estratégia na Lide, não acolheu, contudo, a
oligostiquia, o que lhe custou caro quando foi avaliado segundo esse critério.
O maior poema elegíaco helenístico integral é o Banho de Palas, mas o exame de alguns
outros fragmentos e até mesmo do títulos e testemunhos que nos chegaram não deixa tampouco de
108

ser revelador. Filetas de Cós (c.340–c.285 a.C.) escreveu a elegia Deméter (Δημήτηρ), em que,
desviando-se da concorrida via tradicional do mito, o poeta vai pela viela não batida e na
errância da deusa em busca da filha faz que pela primeira vez visite Cós, onde foi bem acolhida
pelos reis merópides60. Nos fragmentos seguintes quem se queixa é Deméter:

4. b) ACERCA DE FILETAS DE CÓS

4. b) 1. FRAGMENTO 5 (Sbardella = 1 Powell):

νῦν δ᾿αἰεὶ πέσσω· τὸ δ᾿ἀέξεται ἄλλο νεωρὲς Assim eu sempre nutro a dor, mas surge nova
πῆμα, κακοῦ δ᾿οὔπω γίνεται ἡσυχίη. pena e do mal jamais vem o descanso.

4. b) 2. FRAGMENTO 6 (Sbardella = 3 Powell):

τῷ οἴμοι πολέω γαίης ὕπερ ἠδὲ θαλάσσης Assim, ai, eu percorro sobre terra e mar,
ἐκ Διὸς ὡραιων ἐρχομένων ἐτέων. e de Zeus segue o ciclo de estações.
οὐδ᾿ ἀπὸ μοῖρα κακῶν μελέῳ φέρει, ἀλλὰ μένουσιν Dum pobre a Moira não adia os males: sempre
ἔμπεδ᾿ ἀεί, καὶ τοῖς ἄλλα προσαυξάνεται. perduram firmes, e outros inda aumentam.
(Tradução de Guilherme Gontijo Flores)61

4. b) 3. FRAGMENTO 7-8 (Sbardella = 2, 1-4 Powell):

ἀλλ᾿ ὅτ᾿ ἐπὶ χρόνος ἔλθε, ὃς ἐκ Διὸς ἄλγεα πέσσειν Mas quando o tempo passa, aplaca os sofrimentos
ἔλλαχε, καὶ πενθέων φάρμακα μοῦνος ἔχει. que Zeus manda, único remédio às dores.
καὶ γάρ τις μελέοιο κορεσσάμενος κλαυθμοῖο Pois quando alguém se farta do inútil lamento,
κήδεα δειλαίων εἷλεν ἀπὸ πραπίδων.
colhe o luto dos peitos miseráveis.
(Tradução de Guilherme Gontijo Flores)42

Em apenas dez versos vemos um rosário de dor, males, queixa, mostrar, como dissemos, que o
lamento perdura como traço elegíaco, ainda que possa não ser dominante, como parece ser o
caso dos Áitia, de Calímaco.

De Filetas cabe registrar que compôs poemas elegíacos amorosos ou quiçá uma elegia
amorosa ao que parece ter sido sua esposa, Bítis.
Fânocles (c.III séc. a.C.) compôs Os Amores ou os Belos (Ἐρωτες ῆ Καλλόι), título que se deve
entender assim: Amores: Rapazes Bonitos, porque canta o amor pederástico, a μοῦσα παιδική, “musa
pederástica”. A bem dizer Fânocles, praticando, ele também, elegia narrativa e etiológica, trilhou
a senda menos freqüentada ao narrar a origem da tatuagem das mulheres trácias, a pederastia na
Trácia, a própria pederastia e Lesbos como berço da poesia lírica62:
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4. c) ACERCA DE FÂNOCLES

4. c) 1. FRAGMENTO 1 (Powell)

Ἢ ὡς Οἰάγροιο πάϊς Θρηΐκιος Ὀρφεὺς Ou como o que nasceu de Eagro, Orfeu treício,
ἐκ θυμοῦ Κάλαϊν στέρξε Βορηϊάδην, no peito o filho amou de Bóreas: Cálais!
πολλάκι δὲ σκιεροῖσιν ἐν ἄλσεσιν ἕζετ' ἀείδων Pois sentava-se amiúde nos umbrosos bosques
ὃν πόθον, οὐδ' ἦν οἱ θυμὸς ἐν ἡσυχίῃ, cantando sem ter paz no peito o afã,
ἀλλ' αἰεί μιν ἄγρυπνοι ὑπὸ ψυχῇ μελεδῶναι 5 que, insones, sem cessar, lhe a alma torturavam
ἔτρυχον, θαλερὸν δερκομένου Κάλαϊν. inquietudes ao ver o belo Cálais.
Τὸν μὲν Βιστονίδες κακομήχανοι ἀμφιχυθεῖσαι A maquinar o mal cercaram-no as Bistônides
ἔκτανον, εὐήκη φάσγανα θηξάμεναι, e o mataram a fio de espada insanas,
οὕνεκα πρῶτος ἔδειξεν ἐνὶ Θρῄκεσσιν ἔρωτας porque o primeiro trácio foi que teve amor
ἄρρενας, οὐδὲ πόθους ᾔνεσε θηλυτέρων. 10 por homem sem desejo de mulher.
Τοῦ δ' ἀπὸ μὲν κεφαλὴν χαλκῷ τάμον, αὐτίκα δ' αὐτὴν Cortaram-lhe a cabeça a bronze e incontinente
εἰς ἅλα Θρηϊκίῃ ῥῖψαν ὁμοῦ χέλυϊ ao mar lançaram à lira trácia bem
ἥλῳ καρτύνασαι, ἵν' ἐμφορέοιντο θαλάσσῃ pregada porque sobre as ondas fossem ambas
ἄμφω ἅμα, γλαυκοῖς τεγγόμεναι ῥοθίοις. levadas, úmidas de glaucos roucos.
Τὰς δ' ἱερῇ Λέσβῳ πολιὴ ἐπέκελσε θάλασσα· 15 Encanecido à Lesbos sacra o mar levou-as
ἠχὴ δ' ὣς λιγυρῆς πόντον ἐπέσχε λύρης, e o som qual de maviosa lira apanha
νήσους τ' αἰγιαλούς θ' ἁλιμυρέας, ἔνθα λίγειαν águas, ilha, a salina praia onde a cabeça
ἀνέρες Ὀρφείην ἐκτέρισαν κεφαλήν, de Orfeu canora à terra os homens deram
ἐν δὲ χέλυν τύμβῳ λιγυρὴν θέσαν, ἣ καὶ ἀναύδους e à campa a lira que canora comovia
πέτρας καὶ Φόρκου στυγνὸν ἔπειθεν ὕδωρ. 20 pedras mudas e rios de Forco horrendos.
Ἐκ κείνου μολπαί τε καὶ ἱμερτὴ κιθαριστὺς Daí canções e o som da cítara aprazível
νῆσον ἔχει, πασέων δ' ἐστὶν ἀοιδοτάτη. habitam Lesbos, ilha mais que todas mélica.
Θρῇκες δ' ὡς ἐδάησαν ἀρήϊοι ἔργα γυναικῶν Trácios viris, do feito ao saber das mulheres
ἄγρια, καὶ πάντας δεινὸν ἐσῆλθεν ἄχος, medonho, imana dor tomou a todos.
ἃς ἀλόχους ἔστιζον, ἵν' ἐν χροῒ σήματ' ἔχουσαι 25 Tatuaram as esposas, que na pela a marca
κυάνεα στυγεροῦ μὴ λελάθοιντο φόνου· negra lhes recordasse o torpe crime.
ποινὰς δ' Ὀρφῆϊ κταμένῳ τίνουσι γυναῖκες E as mulheres ainda hoje pagam pena
εἰσέτι νῦν κείνης εἵνεκεν ἀμπλακίης. pelo delito de matar Orfeu.

A fórmula ἢ ὡς (v. 1 “ou como”), é típica dos catálogos, de que o Catálogo das Mulheres, atribuído a
Hesíodo, é o modelo da imitação por mais de um poeta helenístico. Fânocles, depois de explicar
por que as mulheres trácias são tatuadas, não apenas relata a origem do amor pederástico, como
depois arrola, cataloga, essa modalidade de amor que há nos mitos. O fragmento 3 começa com
a mesma fórmula:

4. c) 2. FRAGMENTO 3 (Powell):

Ἢ ὡς θεῖον Ἄδωνιν ὀρειφοίτης Διόνυσος Ou como a Adônis, divo, Dioniso montês


ἥρπασεν, ἠγαθέην Κύπρον ἐποιχόμενος. raptou, quando seguia à sacra Chipre.

Não se sabe se Fânocles rebuscou uma versão desconhecida da lenda ou se, de modo análogo ao
de Filetas com Deméter a visitar Cós, inventou um Orfeu pederástico, como áition dos outros
amores tais que cataloga e relata.
110

4. d) ACERCA DE HERNESÍANAX DE CÓLOFON

Hermesíanax de Cólofon (nascido em 340 a.C.) compôs a elegia Leóntion (Λεόντιον), cujo
título é epônimo da amada. Fragmentos foram conservados por Ateneu de Náucratis, Antonino
Liberal e Partênio de Nicéia.

4. c) 1. FRAGMENTO63 7 Powell (= 3 Lightfoot)

ATH. 13, 597b64: Ateneu de Núcratis, Banquete dos Sofistas 13, 597b:
...ὧν ἐν τῷ τρίτῳ κατάλογον ποιεῖται ἐρωτικῶν, οὑτωσί No terceiro livro, Hermesíanax faz um catálogo amoroso,
πως λέγων· assim dizendo:
Οἵην μὲν φίλος υἱὸς ἀνήγαγεν Οἰάγροιο Tal como à que levara o rebento de Eagro:
Ἀργιόπην Θρῇσσαν στειλάμενος κιθάρην com a cítara tirou a Trácia Agríope65
Ἁιδόθεν· ἔπλευσεν δὲ κακὸν καὶ ἀπειθέα χῶρον, do Hades. Pois navegou à dura terra hostil,
ἔνθα Χάρων κοινὴν ἕλκεται εἰς ἄκατον onde Caronte embarca comumente
ψυχὰς οἰχομένων, λίμνῃ δ' ἐπὶ μακρὸν ἀϋτεῖ 5 as almas de quem parte; e no lago ele brada
ῥεῦμα διὲκ μεγάλων ῥυομένῃ δονάκων. por entre o forte fluxo e imensos juncos.
Ἀλλ' ἔτλη παρὰ κῦμα μονόζωστος κιθαρίζων Sofreu nas ondas, solitário, o citarista
Ὀρφεύς, παντοίους δ' ἐξανέπεισε θεούς, Orfeu, mas convenceu diversos deuses:
Κωκυτόν τ' ἀθέμιστον ὑπ' ὀφρύσι μειδήσαντα· o ilícito Cocito, rindo sob o cenho;
ἠδὲ καὶ αἰνοτάτου βλέμμ' ὑπέμεινε κυνός, 10 e suportou o olhar do horrendo cão,
ἐν πυρὶ μὲν φωνὴν τεθοωμένου, ἐν πυρὶ δ' ὄμμα com sua voz afiada em fogo, em fogo os olhos
σκληρόν, τριστοίχοις δεῖμα φέρον κεφαλαῖς. temíveis sobre a tríplice cabeça.
Ἔνθεν ἀοιδιάων μεγάλους ἀνέπεισεν ἄνακτας Então venceu por canto os grandes soberanos,
Ἀργιόπην μαλακοῦ πνεῦμα λαβεῖν βιότου. pra Agríope reviver o seu frescor.
Οὐ μὴν οὐδ' υἱὸς Μήνης ἀγέραστον ἔθηκε 15 Nem o filho de Mene, o guardião das Graças,
Μουσαῖος Χαρίτων ἤρανος Ἀντιόπην, Museu, deixou sem dons a sua Antíope66:
ἥ τε πολὺν μύστῃσιν Ἐλευσῖνος παρὰ πέζαν que para os iniciados, nas margens de Elêusis,
εὐασμὸν κρυφίων ἐξεφόρει λογίων, bradava seus oráculos secretos,
Ράριον ὀργειῶνα νόμῳ διαπομπεύουσα guiando a Rária procissão segundo o rito
Δημήτρᾳ· γνωστὴ δ' ἐστὶ καὶ εἰν Ἀΐδῃ. 20 de Deméter – famosa mesmo no Hades.
Φημὶ δὲ καὶ Βοιωτὸν ἀποπρολιπόντα μέλαθρον E digo que, ao abandonar seu lar Beócio,
Ἡσίοδον πάσης ἤρανον ἱστορίης Hesíodo, o guardião de toda história,
Ἀσκραίων ἐσικέσθαι ἐρῶνθ' Ἑλικωνίδα κώμην· amoroso rumou para a Helicônia Ascra
ἔνθεν ὅ γ' Ἠοίην μνώμενος Ἀσκραϊκὴν e a fim de seduzir a Ascraide Eóia67
πόλλ' ἔπαθεν, πάσας δὲ λόγων ἀνεγράψατο βίβλους 25 muito sofreu, compondo os livros dos catálogos
ὑμνῶν, ἐκ πρώτης παιδὸς ἀνερχόμενος. de hinos, a começar pela garota.
Αὐτὸς δ' οὗτος ἀοιδός, ὃν ἐκ Διὸς αἶσα φυλάσσει Mesmo o aedo a que os planos de Zeus decretaram
ἥδιστον πάντων δαίμονα μουσοπόλων o mais suave nume da poesia,
λεπτὴν ᾗς Ἰθάκην ἐνετείνατο θεῖος Ὅμηρος o divo Homero desdobrou a ínfima Ítaca
ᾠδῇσιν πινυτῆς εἵνεκα Πηνελόπης, 30 em versos por Penélope prudente.
ἣν διὰ πολλὰ παθὼν ὀλίγην ἐσενάσσατο νῆσον, Por ela suportou viver naquela ilhinha,
πολλὸν ἀπ' εὐρείης λειπόμενος πατρίδος· após deixar sua espaçosa pátria.
ἔκλεε δ' Ἰκαρίου τε γένος καὶ δῆμον Ἀμύκλου Louvou a gente Icária e a aldeia de Amiclas
καὶ Σπάρτην, ἰδίων ἁπτόμενος παθέων. além de Esparta, só por seu sofrer68.
Μίμνερμος δέ, τὸν ἡδὺν ὃς εὕρετο πολλὸν ἀνατλὰς 35 Mimnermo, após as dores, descobriu o doce
ἦχον καὶ μαλακοῦ πνεῦμα τὸ πενταμέτρου, eco e o frescor gentil que há no pentâmetro;
καίετο μὲν Ναννοῦς, πολιῷ δ' ἐπὶ πολλάκι λωτῷ ardeu por Nano, e com sua flauta senil
κημωθεὶς κώμους εἶχε σὺν Ἐξαμύῃ, celebrava festins junto de Exâmias69.
ἤχθεε δ' Ἑρμόβιον τὸν ἀεὶ βαρὺν ἠδὲ Φερεκλῆν Mas detestava o sempre grave Hermóbio e a Férecles,
ἐχθρόν, μισήσας οἷ' ἀνέπεμψεν ἔπη. 40 seu inimigo, odiava pelas réplicas.
Λυδῆς δ' Ἀντίμαχος Λυδηίδος ἐκ μὲν ἔρωτος Lide da Lídia fora amada por Antímaco,
111

πληγεὶς Πακτωλοῦ ῥεῦμ' ἐπέβη ποταμοῦ· que atordoado passou no rio Pactolo;
†δαρδανη δὲ θανοῦσαν ὑπὸ ξηρὴν θέτο γαῖαν ... morta a sepultou em terra firme
κλαίων, αιζαον† δ' ἦλθεν ἀποπρολιπὼν num lamento e, ao partir . . chegou
ἄκρην ἐς Κολοφῶνα, γόων δ' ἐνεπλήσατο βίβλους 45 ao monte Colofão e encheu de pranto os livros
ἱράς, ἐκ παντὸς παυσάμενος καμάτου. santos, quando acabou seu sofrimento70.
Λέσβιος Ἀλκαῖος δὲ πόσους ἀνεδέξατο κώμους O Lésbio Alceu passou muitos festins cantando
Σαπφοῦς φορμίζων ἱμερόεντα πόθον, junto ao forminge seu afã por Safo
γιγνώσκεις· ὁ δ' ἀοιδὸς ἀηδόνος ἠράσαθ', ὕμνων tu bem sabes. O aedo amava o rouxinol
Τήϊον ἀλγύνων ἄνδρα πολυφραδίῃ. 50 e com hinos irritava o homem Teio:
Καὶ γὰρ τὴν ὁ μελιχρὸς ἐφημίλλητ' Ἀνακρείων por ela disputava o mélico Anacreonte
στελλομένην πολλαῖς ἄμμιγα Λεσβιάσιν· enquanto ela vagava com outras Lésbias:
φοίτα δ' ἄλλοτε μὲν λείπων Σάμον, ἄλλοτε δ' αὐτὴν por vez vinha de Samos e por vez da própria
οἰνηρῇ δειρῇ κεκλιμένην πατρίδα pátria já barrancada de videiras,
Λέσβον ἐς εὔοινον· τὸ δὲ Μύσιον εἴσιδε Λεκτὸν 55 para a vinosa Lesbos; e assim via a Mísia
πολλάκις Αἰολικοῦ κύματος ἀντιπέρας. Lectos, quando singrava o mar Eólio.
Ἀτθὶς δ' οἷα μέλισσα πολυπρήωνα Κολωνὸν E como a abelha da Ática, ao deixar Colono
λείπουσ' ἐν τραγικαῖς ᾖδε χοροστασίαις montanhosa, entre dança e coro trágicos
Βάκχον καὶ τὸν Ἔρωτα Θεωρίδος <. . . . . cantava Baco e seu amor por Teóris [...]
ἥν ποτε γηραιῷ Ζεὺς ἔπορεν Σοφοκλεῖ. 60 que Zeus determinara ao velho Sófocles71.
Φημὶ δὲ κἀκεῖνον τὸν ἀεὶ πεφυλαγμένον ἄνδρα Digo que mesmo do homem multiprecavido,
καὶ πάντων μῖσος κτώμενον ἐκ †συνοχῶν odiado por todos por suas †críticas†
πάσας ἀμφὶ γυναῖκας, ὑπὸ σκολιοῖο τυπέντα contra as mulheres: foi ferido pelo arco
τόξου νυκτερινὰς οὐκ ἀποθέσθ' ὀδύνας· curvo e não se livrou da dor noturna;
ἀλλὰ Μακηδονίης πάσας κατενίσατο λαύρας 65 mas vagava por toda a Macedônia Egeia
Αιγάων, μέθεπεν δ' Ἀρχέλεω ταμίην, perseguindo a criada de Arquelau;
εἰσόκε <σοι> δαίμων Εὐριπίδῃ εὕρετ' ὄλεθρον até que um deus urdiu a tua ruína, Eurípides,
Ἀρριβίου στυγνῶν ἀντιάσαντι κυνῶν. quando enfrentaste os feros cães de Arríbio72.
Ἄνδρα δὲ τὸν Κυθέρηθεν, ὃν ἐθρέψαντο τιθῆναι E aquele de Citera, que as Musas nutriram
Βάκχου καὶ λωτοῦ πιστότατον ταμίην 70 pra ser o mais fiel servo da flauta
Μοῦσαι παιδευθέντα Φιλόξενον, οἷα τιναχθεὶς e de Baco: Filóxeno e como, abalado,
Ὀρτυγίῃ ταύτης ἦλθε διὰ πτόλεως em Ortígia correu pela cidade.
γιγνώσκεις, ἀΐουσα μέγαν πόθον ὃν Γαλατείη Tu bem sabes que Galatéia grande dor
αὐτοῖς μηλείοις θήκαθ' ὑπὸ προγόνοις. dava até nos filhotes cabritinhos73.
Οἶσθα δὲ καὶ τὸν ἀοιδόν, ὃν Εὐρυπύλου πολιῆται 75 E conheces o aedo, que o povo de Eurípilo
Κῷοι χάλκειον στῆσαν ὑπὸ πλατάνῳ em Cós gravou em bronze, sob um plátano,
Βιττίδα μολπάζοντα θοήν, περὶ πάντα Φιλίταν cantando a ágil Bítis: Filetas que todo
ῥήματα καὶ πᾶσαν τρυόμενον λαλιήν. assunto dominava, e toda forma74.
Οὐδὲ μὲν οὐδ' ὁπόσοι σκληρὸν βίον ἐστήσαντο Nem mesmo aqueles homens que seguiram vida
ἀνθρώπων, σκοτίην μαιόμενοι σοφίην, 80 dura na busca de um saber sombrio,
οὓς αὐτὴ περὶ πυκνὰ λόγοις ἐσφίγξατο μῆτις, oprimidos nas falas pela densa astúcia
καὶ δεινὴ μύθων κῆδος ἔχουσ' ἀρετή, e pela hábil virtude dos discursos;
οὐδ' οἵδ' αἰνὸν ἔρωτος ἀπεστρέψαντο κυδοιμὸν nem eles afastaram o clamor amoroso
μαινομένου, δεινὸν δ' ἦλθον ὑφ' ἡνίοχον. e louco, afeitos ao cruel auriga75.
Οἵη μὲν Σάμιον μανίη κατέδησε Θεανοῦς 85 Essa loucura por Teano prende o Sâmio
Πυθαγόρην, ἑλίκων κομψὰ γεωμετρίης Pitágoras, que vira as elegantes
εὑρόμενον, καὶ κύκλον ὅσον περιβάλλεται αἰθὴρ espirais geométricas e o ciclo do éter
βαιῇ ἐνὶ σφαίρῃ πάντ' ἀποπλασσάμενον. configurado na pesquena esfera76.
Οἵῳ δ' ἐχλίηνεν ὃν ἔξοχον ἔχρη Ἀπόλλων
ἀνθρώπων εἶναι Σωκράτη ἐν σοφίῃ, 90 Também ardeu àquele que Apolo indicara
Κύπρις μηνίουσα πυρὸς μένει· ἐκ δὲ βαθείης como um superior dos sábios – Sócrates –
ψυχῆς κουφοτέρας ἐξεπόνησ' ἀνίας, furiosa Cípria em fogo forte e fatigou-lhe
οἰκί' ἐς Ἀσπασίης πωλεύμενος· οὐδέ τι τέκμαρ o fundo d’alma de aflições levianas,
εὗρε, λόγων πολλὰς εὑρόμενος διόδους. ao visitar o lar de Aspásia; e não achou
remédio quem achava duplas vias77.
Ἄνδρα <δὲ> Κυρηναῖον ἔσω πόθος ἔσπασεν Ἰσθμοῦ 95
δεινός, ὅτ' Ἀπιδανῆς Λαΐδος ἠράσατο Ao Cirenaico uma paixão cruel levara
112

ὀξὺς Ἀρίστιππος, πάσας δ' ἠνήνατο λέσχας no Istmo, amando a Apidânia Laís,
φεύγων, †ουδαμενον εξεφορησε βίῳ. o afiado Aristipo recusou conversas
em sua fuga, †levando vida insana†78.

Desse notável fragmento reparo primeiro quanto à matéria que é quase ubíquo o
sofrimento com implicação patente ou implícita de lamento. Já não é novidade: no tocante a
Orfeu, lê-se o verbo τλάω (v. 9, ἔτλη, “sofreu”); em Hesíodo, lemos πόλλ' ἔπαθεν (v. 25, “muito
sofreu); quanto a Homero, lê-se ἰδίων παθέων (v. 34, “suas próprias dores”); de Mimnermo,
lemos πολλὸν ἀνατλὰς (v. 25, “muito sofreu”); sobre Antímaco, lêem-se κλαίω (v. 44, κλαίων,

“sofrendo”) e γόων (v. 45 γόος “pranto”); a respeito de Alceu e Filóxeno lemos de novo o mesmo
termo πόθος, (vv. 48 e 73); para Sócrates, lê-se ἀνίας (v. 92, ἀνία, “angústia”). Reparo melhor
que Mimnermo, tal como vimos fazer alguns gramáticos antigos, é chamado “inventor” do
pentâmetro, descobridor do som e da respiração, ambos doces, que o suave metro metro possui
(vv. 35-36, ὃς εὕρετο πολλὸν ἀνατλὰς / ἦχον καὶ μαλακοῦ πνεῦμα τὸ πενταμέτρου): aqui, o poeta,
assumindo voz filológica, não só utiliza o mesmo verbo εὑρίσκω que os gramáticos, como entrevê
no pentâmetro a elocução tênue, adequada ao sofrimento amoroso por Nano (πολλὸν ἀνατλὰς,

v. 35, literalmente “tendo muito sofrido”, e καίετο μὲν Ναννοῦς, “arder por Nano”, v. 37),
piorado pela velhice (πολιῷ λωτῷ, “flauta encanecida”, v. 37), que não é a propícia estação para
amor. Mas destaco a menção que Hermesíanax faz de Hesíodo, citado logo depois dos míticos
Orfeu e Museu, mas antes do divino Homero! Saliento quão encarecido é por causa da matéria
mitológica não-heróica: o poeta chama-lhe “guardião de toda história”, ou talvez “de todo
conhecimento” (v. 22, πάσης ἤρανον ἱστορίης). Se Homero é protocolarmente “divino”, Hesíodo
é oportunamente sábio, bem ao gosto dos poetas doutos do Período Helenístico, alguns dos quais
bibliotecários. Assim sendo, a informação mais relevante ao que se tem discutido sobre a elegia
do período é o facto de Hesíodo ser considerado, ele também, compositor, registrador de
catálogos (πάσας δὲ λόγων ἀνεγράψατο βίβλους, v. 25), que ao fim e ao cabo é o que o próprio
Hermesíanax está a fazer no poema.
Sabemos que Alexandre da Etólia (floruit 280 a.C., ativo sob Ptolomeu Filadelfo) no
poema elegíaco Apolo (Ἀπόλλων) narra as profecias de amores infelizes feitas pelo deus, e no
poema elegíaco as Musas (Μοῦσαι) apresenta breves retratos de poetas.
Que Nicêneto de Samos (ou Abdera, século III a.C.) escreveu Catálogo das Mulheres
(Κατάλογος Γυναικῶν), provavelmente em hexâmetros79.
E que Partênio de Nicéia80 (séc. I a.C.– começo do séc. I d.C.) compôs Epicédio de Arete
113

(Ἀρετῆς Ἐγκώμιον) ou Encômio de Arete (Ἀρετῆς Ἐγκώμιον), elegias em memória da esposa e


epicédios em memória de amigos. Pelo significado do termo ἀρετῆς, “virtude”, é possível que
trate de pseudônimo, que já é o próprio elogio da esposa. Compôs também Metamorfoses
(Μεταμορφώσεις), talvez em metro elegíaco, modelo do congênere poema hexamétrico de Ovídio.
A elegia helenística assumiu a vertente narrativa presente na elegia arcaica, cujas
personagens eram ora fabulosos (Banho de Palas, Deméter, Os Amores ou os Belos, Apolo) ora históricos e
ao que parece pessoais, perseguindo a tradição da Nano arcaica, de Mimnermo, e da Lide pré-
helenística, de Antímaco (Epicédio de Arete, Leôntion, Bítis). É de presumir que o carácter das
mulheres amadas enaltecidas nos poemas seja virtuoso. A matéria dominante, mas não exclusiva
(inverto a precedência) foi amor que, quando malfadado, ensejou lamentação, já não tão grave
como a fúnebre, porém menor, respeitante também a nós, ainda quando se trata do mito.
Entretanto, um procedimento perdeu importância, justamente a parênese, e dois procedimentos,
que já existiam, passaram a ser estupendamente valorizados, como nunca antes naquele país: a
etiologia (os Áitia, em particular, guindaram o procedimento à condição de título do poema) e o
catálogo, o que esclarece de vez por que Hesíodo para Calímaco e seus seguidores era “o modo”
de compor, como se lê no importate Epigrama 27 (os jovens hoje diriam “Hesíodo é o cara!”), pois
foi o primeiro a compor epos etiológico e foi primeiro a isolar das naus o catálogo homérico e
aplicá-lo a argumento menos grave e mais gracioso no Catálogo das Mulheres: que os Telquines
reencarnados em alguns filólogos contemporâneos nos deixem em paz, pois para os poetas
helenísticos o Catálogo das Mulheres era de Hesíodo!
Antes de prosseguir, proponho, como forma de compreender sinopticamente a elegia,
aplicar-lhe a teoria aristotélica dos níveis (também “gêneros”) de elocução articulada à teoria que ele
mesmo desenvolve sobre a diferenciação da poesia em gêneros (Poética, 4, 1448b 23), que feita
dessa maneira81 é a mais antiga que possuímos. Lembro que, se por um lado os conceitos
aristotélicos jamais estiveram no horizonte dos poetas arcaicos e clássicos (porque são posteriores
ao Período Clássico das letras gregas), não é de descartar, por outro, que houve a possibilidade de
estar no horizonte dos helenísticos. Ainda que sejam ociosas para um poeta como Mimnermo,
por exemplo, que não precisou delas para praticar elegia de matéria e elocução menos elevadas
(como sabemos, é bem o contrário: Aristóteles é que teorizou depois de ler os poetas), os conceitos
dele podem não ter sido ociosos para que os poetas helenísticos se munissem de um modelo
teórico para controlar, por assim dizer, as intervenções que viriam a fazer no gênero. Por amor
114

da verdade, não se pode comprovar nada disso, só se pode conjecturar que é muito improvável
que não conhecessem as idéias peripatéticas. Entretanto, não ocorre o mesmo quanto aos poetas
romanos, cuja formação retórica conhecemos o bastante para nos atrever a formular a hipótese
de que se serviram das idéias peripatéticas produtivamente nas intervenções que fizeram no
legado poético grego. Todavia, penso que nos aproveita ver desde já como os poetas elegíacos
helenísticos intervieram na elegia, manipulando por rebaixamento a matéria (mais o espaço e as
personagens decorrentes) e, como disse, a elocução que lhe é adequada.
Conforme o critério com que Aristóteles no capítulo II da Poética classifica composições
miméticas segundo o objeto − que no caso são os caracteres (ἤθη, 1448a, 3) e as ações
(πράττοντας, “agentes”, “seres que agem”, 1448a, 1) − distinguem-se a imitação de ações de seres
que pelos hábitos nos são superiores (ἤτοι βελτίονας ἢ καθ' ἡμᾶς, 1448a, 4), a imitação de ações
vis de seres inferiores (χείρονας, 1448a, 4) e a imitação de seres que nos são semelhantes
(τοιούτους,1448a, 5). Pouco adiante, no capítulo IV, empregando então o termo “ações”
(πράξεις, 1448b, 25), afirma Aristóteles que no começo (ἐξ ἀρχῆς, 1448b, 22) as imitações
diferiam segundo o carácter (o termo é ainda ἦθος, 1448b, 24) do poeta, na condição de poeta: os
mais sérios (σεμνότεροι, 1448b, 25) imitavam ações belas (τὰς καλὰς, 1448b, 25) ou de homens
tais (τοιούτων, 1448b 26) e os mais vulgares (εὐτελέστεροι,1448b 26) imitavam as ações de
homens vis (τῶν φαύλων, 1448b, 25). O uso do termo ἦθος e sua relação com o teor da imitação
causam certo embaraço por fazer parecer o poema resultar mais da disposição moral do autor,
como pessoa, do que da atenção do poeta aos ingredientes de cada gênero, que parece ser o
propósito de Aristóteles estabelecer82. Como desembaraço, convém pensar que tal relação, se
existente, se deve ao que há de propriamente incipiente no começo, ou, o que é melhor, que éthos
seja interno ao próprio universo da imitação, isto é, pertença ao poeta como tal, ministro de seu
mister, que é a poesia, e não, uma vez mais, à sua pessoa não-poética, por mais histórica que seja.
A expressão κατὰ τὰ οἰκεῖα ἤθη (1448b, 24) designaria, assim, a disposição particular do poeta
como criador para exercer um dado “tipo” de imitação, designaria sua inclinação e até mesmo seu
talento, como artífice, poietés mas não a projeção do seu carácter nos próprios poemas. Todavia, o
que chama a atenção na mesma passagem é que não há mais a tripartição “superior”/ “igual” /
“inferior”, mas somente a bipartição “superior”/ “inferior”, e a identificação exemplificativa do
que é elevado com hinos, encômios e epopéias, e do que é baixo, com sátiras e poemas iâmbicos.
Falta precisamente o que é o grau médio da imitação, aquela que tem por objeto os seres iguais a
115

nós, ou, na expressão de Aristóteles, a que se dá καθ' ἡμᾶς (1448a, 4), “segundo nós”, entenda-se,
“tendo por critério pessoas como nós, que não somos nem vis nem nobres, mas médios”. Não
cabe nem seria aqui viável determinar os motivos pelos quais Aristóteles apresenta a alteração,
mas é oportuno lembrar que o bívio da Poética corresponde, na Retórica (I, 3, 1-13 e I, 9, 23-27) ao
bívio do gênero deliberativo de discurso, caracterizado pelo elogio à virtude e ao virtuoso e pela
censura ao vício e ao vicioso (1358b, 8-10). Ora, o critério que subjaz à classificação dos poemas
miméticos quanto ao objeto na Poética é exatamente o mesmo que subjaz à classificação dos
discursos deliberativos na Retórica: uma vez mais o éthos da pessoa em mira em cada caso, ou seja,
lá as personagens de epopéias, tragédias, iambos, comédias e drama satírico; aqui o homem
público. O próprio Aristóteles destaca que os três ou dois “níveis” de imitação ocorrem nos
diversos gêneros poéticos, num esquema que, dada a permissão, poderia ser assim exposto:

4. e) COMPARAÇÃO ENTRE GÊNEROS DA POESIA (TABELA 1):

caráter das personagens gênero da poesia


elevado: melhores do que nós → épica, tragédia;
médio: iguais a nós → lírica e elegia amorosa83;
baixo: piores do que nós → comédia, drama satírico, iambo.

4. f) COMPARAÇÃO NO INTERIOR DA ELEGIA GREGA ARCAICA84 (TABELA 2):


Elegia:
elevada: elegia fúnebre e elegia exortativa Arquíloco, fr. 13; Calino fr. 1 e 10; Tirteu, fr. 12;
pública →
Sólon, fr. 4; Eurípedes, Andr. 103-116.
média: elegia amorosa → Arquíloco, fr. 5; Mimnermo, fr. 1 e 2.
baixa: não há até agora na elegia grega arcaica nem na helenística.

Duas observações são obrigatórias: primeiro, que o estado fragmentário das elegias arcaicas
desautoriza a classificação peremptória do poema inteiro; podemos falar só do fragmento, e do
poema inteiro só podemos conjecturar. Uma vez mais, o mesmo não ocorre com as elegias
romanas, que estão praticamente intactas. Segundo, que visar isoladamente à elegia como gênero
não é fazer mais do que fez Dionísio de Halicarnasso (Tratado da Imitatação)85 em relação à
tragédia: em vez de tomá-la, qual Aristóteles, como um dos gêneros (o outro é épica heróica)
cujas personagens têm carácter e ações superiores às nossas, Dionísio de Halicarnasso, tomando a
tragédia como universo, discrimina no interior dela os três tragediógrafos gregos – Esquilo,
116

Sófocles e Eurípides – segundo o caráter e as paixões, classificando-os como representantes dos


estilos elevado, médio e humilde, respectivamente.

5) DA ELEGIA LATINA

5. a) ACERCA DE CATULO

Três são as gerações dos poetas elegíacos romanos: a de Catulo (84-54 a.C), da qual
sobraram apenas poemas dele; a de Cornélio Galo (c. 70– 26 a.C.), de que sobraram só oito
versos seus; a dos poetas augustanos: Propércio, Tibulo e Ovídio, praticamente integrais. Todos
imitaram os poetas elegíacos arcaicos e imitaram também os poetas elegíacos helenísticos. Mas
sabemos também que 1) os romanos imitaram os helenísticos mais intensamente do que imitaram
os gregos arcaicos e 2) mesmo quando imitaram os arcaicos, imitaram-nos como os helenísticos os
haviam imitado, o que significa, na elegia, que o agregado elegíaco que os romanos herdaram
inclui, além dos poemas tomados como modelo, a perspectiva teórico-poética com que os poetas
helenístiscos modificaram o gênero herdado dos poetas arcaicos. Parece jogo de palavras, mas é
só história e suas camadas de tempo, que demandam escavações e reclamam discriminação. Pois
bem, a elegia helenística, que foi o horizonte imediato dos elegíacos romanos, apresenta a
proposta ampla de tratar de matéria menos grave, menor, e correlativamente, por adequação
poética (aptum), apresentar elocução mais baixa. Considerando agora de miúdo, a elegia
helenística tem, independemente das combinações, os seguintes pilares, como já se viu: lamento,
narração mitológica, amor mitológico malogrado; amor pessoal malogrado; unidade não-
aristotélica, etiologia; catálogo. Vejamos que intervenções lhes fizeram os romanos.
O poeta crítico Horácio é posterior a Catulo, não escreveu elegias, mas foi o primeiro a
trata dela teoricamente, pelo que lhe dou precedênia (Ars 75-78):

Res gestae regumque ducumque et tristia bella 73 Gesta de reis e chefes, tristes guerras
quo scribi possent numero, mostrauit Homerus. em que ritmo se podem escrever Homero mostrou.
Versibus impariter iunctis querimonia primum 75 Em versos desiguais unidos primeiro houve lamento.
post etiam inclusa est uoti sententia compos; depois, incluiu-se também a expressão de um voto satisfeito.
quis tamen exiguos elegos emiserit auctor, Sobre que autor, no entanto, primeiro compôs tênues86 elegias,
grammatici certant et adhuc sub judice lis est. disputam os gramáticos, e até agora o litígio está sub judice.

Assumindo o discurso filológico, chegando a mencionar os gramáticos, trata da elegia também


historicamente: considera a elegia logo após a épica – uma razão certa é que o metro elegíaco,
como já dissemos, é variação dicataléctica do hexâmetro – e o faz em três etapas articuladas, a
evidenciar o facto de que para ele a elegia se transforma ao longo do tempo: a primeira (primum,
117

v. 73) é mais um testemunho antigo que liga elegia (o termo é elegi, latinização do termo agora
mais do que técnico ἔλεγος, v. 77) ao lamento fúnebre (querimonia, “queixume”, v. 75). Como está a
fazer história, só pode começar do começo (primum = “no princípio”, OLD 5) de modo que a
elegia a que se refere na primeira etapa só pode ser a arcaica, e sua matéria, para Horácio, é
lamento, e é tão evidente que seja fúnebre, que nem precisa dizer. Em seguida (post, v. 76), aborda
o epigrama votivo (uoti sententia compos, v. 76), como manifestação de agradecimento por um voto
realizado pelos deuses. São aspectos notáveis o vínculo entre elegia e epigrama, devido aos
dísticos elegíacos, e o facto de não mencionar, depois da elegia fúnebre, epigrama fúnerário,
como era de esperar. Todavia, parece-me que Horácio o sugere, ao patentear dois dos principais
ingredientes do epigrama tumular – matéria fúnebre e caráter adscritivo – indicados
respectivamente no lamento lutuoso apenas referido e no carácter epigráfico que está a referir.
Talvez não mencione, justamente porque lhe basta sugerir, deixando ao leitor douto a tarefa de
preencher as lacunas: em outras palavras, por amor da brevidade (Ars é poema em que brevidade
calimaquiana importa) e da informação (Ars é tratado), Horácio, ao falar de epigrama em dísticos
elegíacos, pode restringir-se agora, entre duas das espécies mais antigas de epigrama, só àquela
menos previsível na situação, que é a votiva. Em suma, ao historiar a elegia, Horácio incluiu
epigrama, que é um gênero que, rigorosamente falando, é posterior a ela e diferente dela, mas
compartilha com ela o metro. Ao dizer inclusa est, “incluir”, ou seja, inserir algo que era externo,
creio que Horácio declara saber da diferença dos gêneros. Ademais, quando efetivamente inclui o
epigrama na história da elegia, está a dizer que muitas vezes, mercê da identidade de metro e da
deliberada ποικιλία, não sabemos se estamos diante de elegia ou de epigrama.
A terceira etapa da brevíssima história da elegia segundo Quinto Horácio Flaco respeita
precisamente à elegia amorosa e já no tempo dele era incerto quem fora o inventor da espécie.
Mas digno de reparar é como ele se refere ao que há muito tem sido chamado “elegia amorosa”:
exiguos elegos, v. 77, elegias “pequenas” “tênues”. Designa-a não diretamente pela matéria, como
fizera até aqui, mas pela inserção dela nos gêneros de discurso, já que a pequenez não concerne à
extensão. O adjetivo exiguus, não sendo próprio da designação latina de nenhum nível de discurso
– os termos latinos usuais são [genus] humile, summissum, tenue, subtile, gracile – serve, porém, para
marcar aqui a oposição ao estilo elevado. Rostagni87 afirma que exiguos significa “tênues em
confronto com a proverbial grandeza e magnificência da Epopéia”. Não deixa de ser bem
verdadeiro, visto que a epopéia é elevada, mas a oposição parece tocar primeira e precisamente
118

ao que se vinha tratando no próprio contexto – elegia fúnebre e epigrama elegíaco votivo –, que
correspondem, na elegia (i.e. poemas em dísticos elegíacos), à mesma elevação e sublimidade da
epopéia guerreira em hexâmetros datílicos (ver TABELA 3 nas notas de fim). Também por isso
Horácio trata elegia logo após a épica. Nesse sentido, o termo trópico exiguus e os termos próprios
referidos, empregados em elegias ou em poemas referentes a elas, não designam absolutamente a
espécie baixa delas, mas designam relativamente uma espécie mais baixa do que as elevadas, isto é,
mais baixa do que lamentos e exortações éticas públicas. No interior do gênero da elegia, portanto,
a espécie elevada na retrospecção de Horácio é a que reúne lamento; a média, a amorosa. Não
indica a espécie baixa, mas sabemos de Aristóteles que é aqula que agencia o ridículo ou o
vitupério.
Em suma, Horácio admite existir uma história da elegia, na qual o legado helenístico foi o
rebaixamento, a inserção do epigrama e a eventual (con)fusão, poikilía, com elegia.
Passo a Catulo, o primeiro poeta elegíaco romano (é também o primeiro lírico e o
primeiro iâmbico), e do que parece ter sido o seu livro de elegias88, o poema 65 é a abertura
programática do primeiro livro de elegias latinas e pelo menos funcionalmente é a primeira elegia
latina:
Etsi me assiduo confectum cura dolore Embora89, ó Hórtalo90 me abale dor assídua
seuocat a doctis, Ortale, uirginibus, e cuidado me afaste as virgens doutas,
nec potis est dulces Musarum expromere fetus e das Musas bom fruto91 a mente não consiga
mens animi (tantis fluctuat ipsa malis; gerar (que já deriva em tantos males
namque mei nuper Lethaeo gurgite fratris 5 pois a onda a manar pelo abismo Leteu,
pallidulum manans alluit unda pedem, há pouco os alvos pés banhou de meu
Troia Rhoeteo quem subter litore tellus irmão, em quem, roubado a meus olhos, na praia
ereptum nostris obterit ex oculis; Retéia areias pesam de Tróia, ah!
alloquar, audiero nunquam tua facta loquentem não mais falar-te nem te ouvir contar teus feitos
numquam ego te, uita frater amabilior, 10 jamais te ver de novo, irmão amável
aspiciam posthac; at certe semper amabo, mais que a vida, mas sempre hei de te amar, cantar
semper maesta tua carmina morte canam, tristes meus cantos, que morreste, quais
qualia sub densis ramorum concinit umbris à sombra densa da ramagem a Daulíade92
Daulias, absumpti fata gemens Ityli) cantou, gemendo o fim fatal de Ítilo),
sed tamen in tantis maeroribus, Ortale, mitto 15 em tanta dor porém, ó Hórtalo, te envio
haec expressa tibi carmina Battiadae, estes versos vertidos do Batíada93,
ne tua dicta uagis nequiquam credita uentis que teus ditos, em vão ao vago vento enviados,
effluxisse meo forte putes animo, não creias que voaram de meu peito,
ut missum sponsi furtiuo munere malum como a maçã – furtivo dom do namorado –
procurrit casto uirginis e gremio, 20 que foge ao casto colo da menina
quod miserae oblitae molli sub ueste locatum, que infeliz o esqueceu sob a veste macia:
dum aduentu matris prosilit, excutitur: chega a mãe, ela pula, o faz cair!,
atque illud prono praeceps agitur decursu, e ele corre no chão inclinado, e se espalha
huic manat tristi conscius ore rubor. um culpado rubor num rosto triste.
119

O poema tem três grandes secções: a primeira vai do verso 1 até o 14, mas não continuamente,
pois é interrompida por todo trecho parentético, que vai do verso 4 até o 16, que é a segunda
secção. A terceira vai do verso 17 até o verso 24. A primeira começa com uma oração concessiva
(Catulo está abalado pela morte do irmão), cuja principal aparece só depois da digressão
parentética (mesmo abalado, fará o poema pedido por Hórtalo, v. 15): a elegia romana começa
sob a égide do lamento fúnebre. A segunda parte, que é o trecho parentético dedicado ao irmão,
tem ela mesma três subpartes: a que informa que o irmão morreu e foi enterrado na Tróade (vv.
4-8); a apóstrofe ao irmão falecido, em segunda pessoa (vv. 9-12); e, introduzido por qualia (v. 13),
o breve símile mitológico de Filomela (vv. 13-15), cuja matéria é outra vez (que posso fazer?)
lamento fúnebre. A terceira parte tem duas subpartes: uma que informa por que Catulo decide
mandar o poema a Hórtalo (vv. 17-18), introduzida pela conjunção final negativa ne (v. 17); outra
que apresenta mais um símile (vv. 19-24), introduzido agora por ut (v. 19), símile cujas
personagens não são mitológicas e conhecidas, mas um anônimo par de amante e uma severa
matrona.
Catulo parece-me dar a amostragem quase completa do que estar por vir nos poemas
seguintes do livro de elegias e de certa forma nos livros dos poetas elegíacos da geração seguinte.
Dá um trailer de uma malfadada história de amor mitológico; um trailer de uma difícil história de
amor de gente anônima como nós; e utiliza a unidade não-aristotélica. Mas o que é mais
importante é o que ele soma: a elegia pode ser também epistolar. Sob este prisma até aqui são poemas
representativos de Catulo:

POEMA 75: ποικιλία de epigrama amoroso e elegia amorosa 1:

Dicebas quondam solum te nosse Catullum, Outrora só Catulo conhecer dizias,


Lesbia, nec prae me uelle tenere Iouem. Lésbia, e a mim não preferir ter Júpiter.
Dilexi tum te non tantum ut uulgus amicam, Então te quis , não como o povo quer amantes
sed pater ut gnatos diligit et generos. mas como o pai os filhos quer e os genros.
Nunc te cognoui: quare etsi impensius uror, 5 Agora te conheço e bem que muito eu queime,
multo mi tamen es uilior et leuior. muito mais vil me és, mais leviana
Qui potis est? inquis. Quod amantem iniuria talis “Como?”, indagas. Injúria tal leva quem ama
cogit amare magis, sed bene uelle minus. a mais amar, e menos bem-querer.

POEMA 72: ποικιλία de epigrama amoroso e elegia amorosa 2:

Huc est mens deducta tua mea, Lesbia, culpa, Tanto errou pensamento por tua culpa, minha
atque ita se officio perdidit ipsa suo, Lésbia, por seu fervor tanto perdeu-se,
ut iam nec bene velle queat tibi, si optima fias, que não te pode bem-querer, se fores ótima,
nec desistere amare, omnia si facias. nem desamar, se todo mal fizeres.
120

POEMA 96: ποικιλία de epigrama fúnebre e elegia fúnebre:

Si quicquam mutis gratum acceptumve sepulcris Se algum prazer e agrado à campa muda, ó Calvo,
accidere a nostro, Calve, dolore potest, podem chegar de nossa dor (saudades!,
quo desiderio veteres renovamus amores com que nós renovamos antigos amores
atque olim iunctas flemus amicitias, e choramos perdidas amizades),
certe non tanto mors immatura dolorist 5 da morte prematura tanta dor não tem
Quintiliae, quantum gaudet amore tuo. Quintília, quanto goza teu amor.

POEMA 66: A Trança de Berenice, narrativa etiológica sobre a origem da constelação do Boieiro.
É tradução de episódio dos Áitia, de Calímaco.

POEMA 68B: elegia amorosa “pessoal”, sobre a relação do poeta com Lésbia, articulada por
unidade não-aristotélica à história mitológica do amor malfadado de Laodamia e
Protesilau, ao qual se articulam pelo mesmo tipo de unidade o lamento pela morte
do irmão e por breve digressão o episódio em que Hércules drena o lago Fêneo.

POEMA 68: elegia epistolar de unidade não-aristotélica, a que se articula o lamento fúnebre
pela morte do irmão.

POEMA 76: lamento amoroso elegíaco em forma de prece para que os deuses o livrem da
enfermidade amorosa por Lésbia, não nomeada.

POEMA 99: lamento amoroso pederástico.

POEMA 101: lamento e prece fúnebres diante do túmulo do irmão:

Multasper gentes et multa per aequora uectus Por muitos povos e por muito mar trazido,
aduenio has miseras, frater, ad inferias,ut te para tristes, irmão, inférias vim,
postremo donarem munere mortis et mutam que última te ofertasse a dádiva mortuária
nequiquam alloquerer cinerem, e só falasse em vão às mudas cinzas,
quandoquidem fortuna mihi tete abstulit ipsum, 5 que a ti mesmo de mim Fortuna te levou,
heu miser indigne frater adempte mihi. ah! triste irmão tão cedo a mim roubado!
Nunc tamen interea haec, prisco quae more parentum O que eu, porém, por uso antigo de ancestrais –
tradita sunt tristi munere ad inferias, dádiva ingrata – para os ritos trouxe
accipe fraterno multum manantia fletu, aceita em muito choro fraterno banhado,
atque in perpetuum, frater, aue atque uale. 10 e para sempre, irmão, olá e adeus.

Catulo constitui a personagem da mulher amada, chamada não pelo próprio, como
parece (?) sido o caso de Nano, Lide, Leôntion, porém, com pseudônimo, seguindo talvez o
exemplo de Partênio de Nicéia e sua Arete. Talvez tenha sido o primeiro a atribuir à mulher
amada carácter vicioso. Nesse sentido, compõe o que é o primeiro exemplo de elegia baixa entre
os romanos, o poema 67, que é notável também porque é inteiramente amebeu, ou, nas palavras
de Platão e Aristóteles, não fala o poeta, só as personagens, e porque uma delas é a porta da casa.
A matéria é baixa: a Porta, mexeriqueira que sabe tudo que ocorre na casa, faz relato torpe
segundo o qual o noivo foi acometido de impotência e o pai do noivo desvirginou a jovem.
121

POEMA 67: a elegia vituperiosa, obscena e talvez ridícula:


(POETA)
O dulci iucunda uiro, iucunda parenti, Ó tu querida ao doce esposo, ao pai querida!
salue, teque bona Iuppiter auctet ope, Salve! Que Júpiter te favoreça,
Ianua, quam Balbo dicunt seruisse benigne Porta, que, dizem , bem serviste outrora Balbo ,
olim, cum sedes ipse senex tenuit, quando o ancião morou na casa, e em vez,
quamque ferunt rursus uoto seruisse maligne, 5 se diz, serviste mal o voto quando, morto
postquam es porrecto facta marita sene. o velho, te tornaste conjugal .
Dic agedum nobis, quare mutata feraris Ei!, diz por que de ti se conta que, mudada,
in dominum ueterem deseruisse fidem. a antiga fé ao dono desertaste.
(PORTA)
Non (ita Caecilio placeam, cui tradita nunc sum) A culpa não é minha (que Cecílio o saiba,
culpa mea est, quamquam dicitur esse mea, 10 meu dono agora), embora digam ser,
nec peccatum a me quisquam pote dicere quicquam; nem pode alguém de mim dizer algum deslize
uerum istis populi ianua quique facit, porém a toda a gente a causa é a Porta,
qui quacumque aliquid reperitur non bene factum pois toda vez que algum delito se descobre,
ad me omnes clamant: “Ianua, culpa tua est”. todos gritam-me: “ó Porta, a culpa é tua!”
(POETA)
Non istuc satis est uno te dicere uerbo, 15 Não basta dizer isto numa só palavra,
sed facere ut quiuis sentiat et uideat. melhor fazer que todos sintam, vejam.
(PORTA)
Qui possum? nemo quaerit nec scire laborat? Como posso? Ninguém procura ou quer saber.
(POETA)
Nos uolumus: nobis dicere ne dubita. Eu quero; não hesites em dizer-me.
(PORTA)
Primum igitur, uirgo quod fertur tradita nobis, Primeiro – contam – virgem me foi dada a jovem.
falsum est. Non illam uir prior attigerit, 20 É falso, o esposo a não tocou primeiro:
languidior tenera cui pendens sicula beta seu pincel , pênsil, mole mais que tenra acelga ,
numquam se mediam sustulit ad tunicam; nunca se levantou em meio à túnica .
sed pater illius gnati uiolasse cubile Mas fala-se que o pai violou do próprio filho
dicitur et miseram conscelerasse domum, o leito e conspurcou a casa mísera.
siue quod impia mens caeco flagrabat amore, 25 Porque de cego amor ardia a mente ímpia
seu quod iners sterili semine natus erat, ou porque o filho inerme tinha estéril sêmen,
ut quaerendus is unde foret neruosius illud, mais nervo era preciso ter alguém naquilo
quod posset zonam soluere uirgineam. com que se solta o cinto virginal .
(POETA)
Egregium narras mira pietate parentem, Falas de um pai distinto e de notável zelo,
qui ipse sui gnati minxerit in gremium. 30 que ejaculou no seio caro ao filho.
(PORTA)
Atqui non solum hoc dicit se cognitum habere E não só disso Bríxia diz que é sabedora
Brixia Cycneae supposita speculae, aos pés da cidadela do rei Cicno , a qual
flauus quam molli praecurrit flumine Mella, o flavo Mela em mole defluir percorre,
Brixia Veronae mater amata meae, Bríxia, mãe de Verona minha amada,
sed de Postumio et Corneli narrat amore, 35 mas de Postúmio conta e o caso de Cornélio
cum quibus illa malum fecit adulterium. aos quais se deu em adultério a jovem.
122

Dixerit hic aliquis: “qui tu istaec, Ianua, nosti, Alguém dirá: “mas como, Porta, sabes disto,
cui numquam domini limine abesse licet, se dos umbrais de teu senhor não sais,
nec populum auscultare, sed hic suffixa tigillo não tens ouvido o povo e, presa nos batentes,
tantum operire soles aut aperire domum?” 40 costumas só fechar e abrir a casa?”
Saepe illam audiui furtiua uoce loquentem Eu muita vez a ouvi contar com voz furtiva
solam cum ancillis haec sua flagitia, sozinha com as amas seus excessos
nomine dicentem quos diximus, utpote quae mi e mencionar o nome desses que citei,
speraret nec linguam esse nec auriculam; pensando que eu não tinha língua e ouvidos,
praeterea addebat quendam, quem dicere nolo 45 e acrescentou mais um de quem o nome não,
nomine, ne tollat rubra supercilia. direi, que não me franza o rubro cenho .
Longus homo est, magnas cui lites intulit olim É homem alto, a quem longos litígios trouxe
falsum mendaci uentre puerperium. de falsa gravidez forjada prole.

Os elegíacos helenísticos no que tange à elocução e à matéria manipularam a elegia


arcaica que herdaram sobretudo ou talevez apenas por rebaixamento, o que pode dever-se a que
esta era mormente elevada. Os romanos, a partir de Catulo, intervieram por rebaixamento e por
elevação. Assim mistas de epigrama ou puras são elevadas as elegias fúnebres 96 e 101; é baixa a
elegia 67; são médias todas as outras.

5. b) ACERCA DOS ELEGÍACOS AUGUSTANOS E SUAS ESTRATÉGIAS

Vários procedimentos dos três poetas augustanos, Propércio, Tibulo, Ovídio, foram
realizados por Catulo. Mas não todos, nem da mesma forma. Os três sem exceção, assim como
Catulo fizera com Lésbia, constituíram a personagem da amante, igualmente com nome grego
(Cíntia, para Propércio; Délia e Nêmesis para Tibulo; Corina para Ovídio). E se Catulo assume o
puer delicatus Juvêncio, Tibulo, ou o poeta do corpus Tibullianum, assume o jovem Márato.
Catulo constitui também a persona do poeta amator, sujeito em primeira pessoa de vivências e
objeto de vicissitudes amorosas que, verossímeis, são narradas como se fossem verdadeiras,
embora sejam na maior parte, mas não necessariamente, fictícias. Entretanto, o grande achado, o
passo digno de F for Fake, de Orson Welles, foi dar ao sujeito amante o próprio nome, “Catulo”, e
assim também atribuíram os poetas augustanos o próprio nome às suas primeiras pessoas
poéticas. Com efeito, os Amores de Ovídio, os dois livros autênticos de Tibulo e os três primeiros
livros de Propércio são a narrativa das “próprias” experiências amorosas com aquelas mulheres e
aqueles rapazes.
Catulo inseriu matéria amorosa mitológica no poema 68b e nos poemas 65 e 68 lhes deu
forma de epístola para amigos, como Hórtalo, ao passo que Ovídio nas Heróides mantém matéria
mitológica e forma epistolar, mas a correspondência se dá entre pares amorosos míticos, como
123

Dido e Enéias, Helena a Páris, ou mitificados, como Safo é Fáon, e vários outros. Desnecessário é
dizer a esta altura que em todos os quatro poetas os amores, maiormente malogrados, são motivo
de lamento, mais desesperado (76) ou mais resignado (72 e 75). Mais tarde, já desterrado, Ovídio
compôs dois livros de elegias, ambos epistolares, Tristia (“as tristezas”, “cantos tristes”, “epístolas
tristes”) e Pontica (“epístolas do Ponto Euxino”). O desterro e a distância de Roma não só fazem
conveniente a forma epistolar como justificam que Ovídio se lamente com boa razão, porque
para um cidadão romano o exílio de Roma é ele mesmo uma forma de morrer.
Contudo as diferenças são notáveis. A primeira é que os poetas augustanos constituíram
um universo poético elegíaco e apenas elegíaco: não escreveram em outro metro. O mundo é
mediado por uma espécie teatro poético, como que um microcosmo elegíaco amoroso, cujas
regras não coincidem com as da ética padrão do cidadão romano, e é dessa incoincidência que
tiram a poesia e é ali que ela tem significado. O sujeito amoroso é poeta: entenda-se, existir é ser
poeta, a vida é a poesia, o livro de elegias é o mundo. Quando o poeta elegíaco diz que não faz
guerra, está dizendo que não faz poemas de guerra, ou seja, poemas épicos heróicos. Quando diz
que faz amor, está a dizer que faz elegias amorosas. Quando Ovídio diz que canta seus amores,
está semioticamente querendo dizer que canta seus Amores. Ora, ninguém está proibido de
apropriar-se do conceito como precursor do futuro e hoje antigo lema make love not war, desde que
antes perceba que Ovídio está declarando a matéria de sua poesia elegíaca e a respectiva
elocução. Nesse pequeno universo elegíaco, falar tecnicamente da elegia não é afastar-se de sua
inteligibilidade, como faria um engenheiro que explica o motor a explosão para quem quer
aprender a dirigir. O engenheiro não está mentindo, mas tampouco está ensinando. O
metapoema elegíaco, ao contrário, potencializa a máquina poética elegíaca. Várias são as
ocorrências de passagens em que os poetas elegíacos latinos explicitam, em elegias prescritivas e
verdadeiramente metapoéticas, a mudança da elocução de seus poemas. Ovídio é talvez o mais
conspícuo porque encena o rebaixamento da matéria, quando (Am. 194) relata cheio de graça que
foi obrigado a fugir do serviço militar épico e alistar-se na milícia de Cupido. Como se viu, a
passagem da épica à elegia se dá por meio da agudeza engenhosa de fazer Cupido roubar um pé
dos seis de cada segundo hexâmetro, transformando-o em pentâmetro elegíaco, mudando o
ritmo, assim como a matéria, de grave (graui numero, v. 1) a tênue (presente no verbo cognato
attenuat, v. 18). A agudeza recorre no fim quando o poeta se ironicamente resigna com os onze
pés, seis do hexâmetro, cinco do pentâmetro. Apresentei no Capítulo II sobre epos tradução
124

métrica (já não digo “poética”) do poema. Apresento agora por escrito a leitura do mesmo poema
traduzindo tecnicamente os termos técnicos e quase técnicos de poética e retórica que apresenta:

AMORES, 1,1

Arma graui numero uiolentaque bella parabam Preparava-me para armas e violentas guerras em ritmo grave
edere, materia conueniente modis . cantar, sendo a matéria conveniente ao metro .
Par erat inferior uersus; risisse Cupido O segundo verso era igual ao primeiro. Cupido riu –
dicitur atque unum surrupuisse pedem. conta-se – e roubou um pé.
“Quis tibi, saeue puer, dedit hoc in carmina iuris? 5 “Cruel menino, quem te deu em poesia este direito?
Pieridum uates, non tua turba sumus. Eu, poeta inspirado pelas Piérides, não sou da tua turma!
Quid, si praeripiat flauae Venus arma Mineruae, O que será se Vênus roubar armas da loura Minerva
uentilet accensas flaua Minerua faces? e se a loura Minerva agitar no ar tochas acesas?
Quis probet in siluis Cererem regnare iugosis, Quem aprovaria que Ceres reine sobre selvas montanhosas
lege pharetratae uirginis arua coli? 10 campos fossem cultivados sob a lei da virgem que porta a aljava?
Crinibus insignem quis acuta cuspide Phoebum Febo, notável pelos cabelos, quem da lança aguda
instruat, Aoniam Marte mouente lyram? o proveria, enquanto Marte tocasse a lira aônia?
Sunt tibi magna, puer, nimiumque potentia regna; Grandes e poderosos, menino, são teus reinos;
cur opus adfectas, ambitiose, nouum? por que, ambicioso, buscas um gênero inaudito?
An, quod ubique, tuum est ? Tua sunt Heliconia tempe? 15 Ou será que tudo, por toda parte, é teu? São teus os vales de Tempe?
Vix etiam Phoebo iam lyra tuta sua est? Até mesmo Febo protege a própria lira com dificuldade!
Cum bene surrexit uersu noua pagina primo , Toda vez que uma nova página começa com um primeiro verso,
attenuat neruos proximus ille meos. o seguinte vem atenuar meu vigor.
Nec mihi materia est numeris leuioribus apta , E não tenho matéria apta a um ritmo mais leve ,
aut puer aut lo ngas compta puella comas .” 20 um menino, ou menina de c abelos longos, penteados ”.
Questus eram, pharetra cum protinus ille soluta Assim me queixara, quando Cupido, abrindo logo a aljava,
legit in exitium spicula facta meum apanhou flechas destinadas à minha perdição,
lunauitque genu sinuosum fortiter arcum curvou com força o sinuoso arco no joelho
“quod”que “canas, uates, accipe”, dixit, “opus!” e disse: “toma aqui, poeta inspirado, um gênero para cantares.
Me miserum! Certas habuit puer ille sagittas! 25 Ai de mim!, o menino tinha certeiras setas!
Vror, et in uacuo pectore regnat Amor. Ardo e em meu peito, que era livre, reina Amor.
Sex mihi surgat opus numeris, in quinque residat! Que o gênero que vou praticar comece com seis pés e se detenha
Ferrea cum uestris bella ualete modi s! [em cinco !
Cingere litorea flauentia tempora myrto , Adeus, guerras cruéis e seus ritmos próprios!
Musa, per undenos emodulanda pedes ! 30 Coroa-te, Musa, as louras têmporas com mirto ribeirinh o ,
tu que deves ser modulada com onze pés.

De todos os termos sombreados, não são técnicos: puer aut longas compta puella comas, “um menino,
ou menina de cabelos longos, penteados”, que são porém o que indica em que consiste a atenuação
do vigor: o exercício não será bélico (cantar a guerra é guerrear), mas amoroso (cantar o amor é
fazer amor), pederástico ou heterossexual. A acepção do adjetivo primitivo tenuis é “ornamento”,
“simples”, “depojado” (OLD 12), precisamente o que a locução litorea myrto (v. 30, “mirto
ribeirinho”), que tampouco é técnica, poeticamente materializa. Se a elegia é o universo, Ovídio
encena o surgimento do universo elegíaco como negação da épica heróica, pois ocorre ao mesmo
tempo em que ele foi constrangido a fazer obra elegíaca: o que articula a gênese (modalidade sutil
125

do famoso ego primus) é bem o termo opus (vv. 14 e 24), que, sem deixar de manter o significado
primeiro de “trabalho”, têm também o de “gênero”95 (OLD 3a).
A recusa elegíaca da épica heróica manifesta-se de outras maneiras. No entanto,
subjacente à maior parte delas está a analogia juventude–amor–elegia. Se desde os elegíacos
gregos, sobretudo Mimnermo, a juventude era a propícia sazão do exercício amoroso, amiúde
considerado quando a persona elegíaca já não era jovem, fundamentando o lamento, a elegia
romana, continuando a endossar a analogia, apresenta o mesmo discurso, emitido porém, pela
própria persona poética quando jovem. Os elegíacos augustanos aprenderam a lição de Mimnermo e
retratam o amor (fazem elegia amorosa) quando jovens. Entre outras, duas elegias de Propércio,
1, 7 e 1, 9, tratam da mesma analogia ao discutir e apresentam a recusa da épica bélica de modo
diverso:
PROPÉRCIO, 1, 7

Dum tibi Cadmeae dicuntur, Pontice, Thebae Cantando enquanto estás Tebas Cadméia, Pôntico,
armaque fraternae tristia militiae, e tristes armas de fraterna luta,
atque, ita sim felix, primo contendis Homero rivalizando, céus!, com Homero, o primeiro!
(sint modo fata tuis mollia carminibus), (que o fado seja brando com teus versos),
nos, ut consuemus, nostros agitamus amores, 5 eu de costume a meus amores me dedico,
atque aliquid duram quaerimus in dominam; contra dura senhora algo buscando.
nec tantum ingenio quantum seruire dolori Nem tanto a engenho: a dor eu tenho de servir
cogor et aetatis tempora dura queri. e dura me queixar da juventude.
Hic mihi conteritur uitae modus, haec mea fama est, Assim eu passo a vida, é este meu renome:
hinc cupio nomen carminis ire mei. 10 surja daqui a fama de meu verso!
Me laudent doctae solum placuisse puellae, Só porque deleitei menina douta, Pôntico,
Pontice, et iniustas saepe tulisse minas; e ameaças sofri injustas, louvem-me.
me legat assidue post haec neglectus amator, Depois, leia-me assíduo o amante abandonado
et prosint illi cognita nostra mala, e lhe aproveite conhecer meus males.
te quoque si certo puer hic concusserit arcu 15 Se te ferir também deste menino o arco –
quo nollem nostros me uiolasse deos! com que oxalá me os deuses não tocassem! –,
Longe castra tibi, longe miser agmina septem mísero vais chorar, que arraiais, sete exércitos
flebis in aeterno surda iacere situ; longe estão, surdos de bolor eterno.
et frustra cupies mollem componere uersum, E em vão desejarás versos compor suaves,
nec tibi subiciet carmina serus Amor. 20 canções não vai ditar-te Amor tardonho.
Tum me non humilem mirabere saepe poetam, Então poeta nada humilde hei de assombrar-te
tunc ego Romanis praeferar ingeniis. e entre engenhos serei em Roma eleito.
Nec poterunt iuuenes nostro reticere sepulcro: Jovens não poderão calar em meu sepulcro:
“Ardoris nostri magne poeta iaces”. “Grã poeta de nosso ardor, descansas”.
Tu caue nostra tuo contemnas carmina fastu: 25 Tu meus poemas, cuida, altivo não desprezes:
saepe uenit magno faenore tardus Amor. sói vir a quanto custo Amor tardio!

Em suma: Propércio é a persona elegíaca do poeta Propércio nomeada com o nome dele, e está
compondo elegias amorosas (v. 5). Pôntico é poeta épico e está compondo poema sobre a guerra
de Eteócles e Polinices, os sete contra Tebas (v. 2, “tristes armas de fraterna luta”, armaque fraternae
tristia militiae; e v. 17, “arraiais, sete exércitos”, castra... agmina septem). Propércio não se crê menor
126

poeta que o amigo (v. 10-12, “surja daqui a fama de meu verso! / Só porque deleitei menina
douta, Pôntico, / e ameaças sofri injustas, louvem-me”, hinc cupio nomen carminis ire mei / Me laudent
doctae solum placuisse puellae, / Pontice, et iniustas saepe tulisse minas). E quem avisa amigo é: Propércio
adverte Pôntico de que compor épica guerreira e rivalizar com Homero é insânia (vv. 2-3). Mas
adverte-o mais que tudo de que mais tarde, quando Pôntico não for jovem, poderá sentir o
aguilhão do amor (v. 15) e então nem poemas marciais lhe adiantarão (vv. 17-18) nem, velho,
conseguirá compor elegias amorosas (vv. 19-20). Não falta nem sequer a homenagem a
Mimnermo mediante ironia quanto ao lamento senil do grego, pois Propércio diz “a dor eu
tenho de servir / e dura me queixar da juventude (vv. 7-8, seruire dolori / cogor et aetatis tempora dura
queri). Talvez Mimnermo se queixasse mesmo da veraz velhice que lhe pesava, e Propércio, êmulo
que se apropria da queixa de Mimnermo, também se queixa porque segundo o script elegíaco
deve queixar-se, mas como nesse teatro o discurso provém de um jovem amoroso, a queixa só
pode ser irônica. Pôntico estava avisado. A vida continua a desenrolar-se, o que vale dizer que o
volume continua-a a desenrolar-se e vem elegia oitava, cuja única função atrevo-me a dizer que
seja impor interregno entre a sétima e a nona, também endereçada a Pôntico:

PROPÉRCIO, 1, 9

Dicebam tibi uenturos, irrisor, amores, Não falei, zombador, que amor viria e tuas
nec tibi perpetuo libera uerba fore: palavras não seriam sempre livres?
ecce iaces supplexque uenis ad iura puellae, Rastejas suplicante à lei de uma menina
et tibi nunc quaeuis imperat empta modo. e uma ninguém, comprada há pouco, impera-te.
Non me Chaoniae uincant in amore columbae 5 Não predizem no amor como eu pombas Caônias
dicere, quos iuuenes quaeque puella domet. que jovens domará cada menina.
Me dolor et lacrimae merito fecere peritum: Dor, lágrimas com jus fizeram-me perito:
atque utinam posito dicar amore rudis! antes fosse ignorante sem amor!
Quid tibi nunc misero prodest graue dicere carmen Que te vale infeliz cantar grave canção,
aut Amphioniae moenia flere lyrae? 10 ou muros lamentar da lira Anfiônia?
Plus in amore ualet Mimnermi uersus Homero: Um verso de Mimnermo é mais no amor que Homero:
carmina mansuetus lenia quaerit Amor. suaves busca manso Amor canções.
I quaeso et tristes istos sepone libellos, Larga teu triste livro e vê se cantas, peço,
et cane quod quaeuis nosse puella uelit! o que qualquer menina quer saber!
Quid si non esset facilis tibi copia! Nunc tu 15 O quê? Se te faltar assunto? Agora mesmo,
insanus medio flumine quaeris aquam. louco, procuras água em pleno rio.
Necdum etiam palles, uero nec tangeris igni: Inda não te tocou palor nem vera chama,
haec est uenturi prima fauilla mali. primeira do vindouro mal centelha.
Tum magis Armenias cupies accedere tigres Então preferirás ferir tigres na Armênia,
et magis infernae uincula nosse rotae, 20 grilhões da roda conhecer do Inferno,
quam pueri totiens arcum sentire medullis a sentir na medula a flecha do menino,
et nihil iratae posse negare tuae. e à ira de tua amante não negar.
Nullus Amor cuiquam faciles ita praebuit alas, Jamais Amor cedeu a alguém asas propícias
ut non alterna presserit ille manu. sem oprimi-lo após com a outra mão.
Nec te decipiat, quod sit satis illa parata: 25 Nem te engane o mostrar-se compassiva, Pôntico,
127

acrius illa subit, Pontice, si qua tua est, mais acre se inocula a que for tua,
quippe ubi non liceat uacuos seducere ocellos, porque não poderás vagos desviar-lhe os olhos
nec uigilare alio limine cedat Amor. nem te dará vigília Amor por outra,
Qui non ante patet, donec manus attigit ossa: o qual não se revela até tocar-te os ossos:
quisquis es, assiduas tu fuge blanditias! 30 quem fores, de carícias foge assíduas,
Illis et silices et possint cedere quercus, às quais, se até calhaus, se até carvalho cede,
nedum tu possis, spiritus iste leuis. o que dizer de ti, essa alma terna?
Quare, si pudor est, quam primum errata fatere: Assim, se tens pudor, confessa logo os erros:
dicere quo pereas saepe in amore leuat. no amor dizer por quem se morre acalma.

“Não falei?” é o que diz Propércio, pois, dito e feito!, Pôntico apaixonou-se pela escrava, que é
agora senhora dele (vv. 1-4). Agora de nada serve cantar Tebas (vv. 9-10) e é melhor largar a
matéria elevada (v. 9, “grave canção”, graue dicere carmen, e v. 13, “triste livro”, tristes libellos). Mas
por sorte, Amor tocou Pôntico quando ainda jovem, a tempo de largar a matéria elevada e
assumir argumento mais baixo, que é amor. No verso 15 subentende-se que Pôntico, inseguro
novo empreendimento, tenha dito algo como “mas que farei se me faltar assunto?”. A resposta,
que ocupa todo o resto do poema, é que a própria loucura amorosa que já afeta Pôntico será
assunto (por isso ele “procura água em pleno rio”, v. 16). Fica claro que os poemas serão
“pessoais”, testemunhos em primeira pessoa das “próprias vicissitudes” (v. 33, “confessa logo os
erros”, quam primum errata fatere).
Os poemas 1, 7 e 1, 9 de Propércio ratificam para os poetas elegíacos augustanos a
existência de um microcosmo é poético e é elegíaco (1, 7, v. 9, “Assim eu passo a vida”, Hic mihi
conteritur uitae modus ): o modo de vida deles é elegíaco, e os poemas exibem algumas tópicas que
integram o universo, inexistentes em Catulo:
→A ESCRAVIDÃO AMOROSA, que os comentadores chamam seruitium amoris, que consiste
em ser escravo da mulher amada, que é de condição inferior. No caso de Pôntico é escrava:
“Rastejas suplicante à lei de uma menina / e uma ninguém, comprada há pouco, impera-te” (1,
9, 3-4, ecce iaces supplexque uenis ad iura puellae, / et tibi nunc quaeuis imperat empta modo e v. 6, “que
jovens cada menina domará”, quos iuuenes quaeque puella domet).
→O AMOR TARDIO, que Drummond chama “amor de madureza” e os comentadores
tardus amor, que chegando na velhice é sexual e ironicamente é também “lerdo”, “frouxo”.
Exatamente tardus amor ocorre na elegia I, 7, v. 26, e pouco antes, v. 20, serus Amor, “amor
serôdio”, sem conotação sexual, só cronologica.
→ O MAGISTÉRIO AMOROSO, que os comentadores chamam erotodídaxis e consiste no
ensinamento amoroso que o amante maduro e experiente pode dar aos jovens frágeis amantes
128

(“essa alma terna”, I, 9, v. 32, spiritus iste leuis). No poema I, 7, está explícito em “Depois, leia-me
assíduo o amante abandonado / e lhe aproveite conhecer meus males” (vv. 13-14, me legat assidue
post haec neglectus amator / et prosint illi cognita nostra mala).
→ a MILÍCIA AMOROSA, que os comentadores chamam militia amoris e consiste ser soldado
(miles) da guerra erótica, não da guerra marcial. Como é evidente este tópico muito convém à
recusa da épica bélica, e quase sempre a implica, mas não necessriamente.
→ O AMANTE DEIXADO DE FORA, que os comentadores chamam exclusus amator, que
consiste na recusa da amada em receber o enamorado no quarto ou na proibição imposta pelos
pais de que o veja. Frustrado poderá partir ou poder postar-se lamentoso e lamentável diante da
porta, atitude essa que catacteriza a tópica chamada (não com muito rigor):
→ PARACLAUSITHYRON.

Exemplificarei adiante as tópicas sem exemplo, porém é oportuno aqui lembrar que há
figuras correlatas ao exclusus amator, como o guarda ou guardiã da jovem contra a investida do
penetrante namorado: os termos são custos (“guarda”) e ianitor (“porteiro”, porteira”. Às vezes
quem faz o papel é própria porta (ianua, como em Catulo, 67, v. 3; e sinônimos como postes e fores).
Em Catulo há leve sugestão do seruitium amoris96 e uma espécie de deturpação do papel da porta,
que em vez de ocultar e preservar, torpemente revela e calunia. Conjectura-se que as outras
tópicas tenham sido introduzidas por Cornélio Galo, que foi poeta elegíaco intermediário entre
Catulo e os augustanos.
O magistério amoroso nos faz compreender então o projecto de Ovídio em dois livros de
elegias, Arte de Amar (Ars Amatoria) e Os Remédios para Amor (Remedia Amoris). Ars sabemos que
corresponde a τέχνη, que é o termo para intitular manuais de diversos artes e misteres, a
culinária, poética, retórica, etc. Arte de Amar é o tópico do magistério amoroso levado ao máximo.
Mestre Ovídio vai ensinar moçoilos a conquistar meninas e meninos. Se não der certo, e os
moçoilos se ferirem na aventura amorosa, como Propércio previne Pôntico, pois amor é chaga e é
loucura, Doutor Ovídio nos Remédios do Amor ensina como curar.
Todos os poetas até concordam que a elegia deve ser média (amor diz respeito a nós,
TABELA 2) e deve ser ela mesma o meio de recusar gêneros elevados, mormente a épica heróica
(TABELA 1). Mas percebe-se que os poetas se empenham com afinco em apresentar novidade
explorando, combinando e invertendo tópicas. Assim penso que Ovídio faz no livrinho elegíaco
129

(fragmentário, só 100 versos) Remédios para o Rosto da Mulher (De Medicamine Faciei Femineae), vv.1-2 e
35-36:

Discite quae faciem commendet cura, puellae, Aprendei, meninas, que cuidados encarecem o rosto
et quo sit uobis forma tuenda modo. e como deveis conservar vossa beleza.
[...] [...]
Sic potius iungendus amor quam fortibus herbis, É melhor conquistar o amor assim do que com fortes ervas
Quas maga terribili subsecat arte manus. que a mão da maga corta com terrível arte.

A cosmética, sem deixar de ser ars, ensinamento, é o pretexto para mais uma lição do curso
amoroso de Ovídio: a primeiríssima palavra é discite, “aprendei”, lição melhor do que arte mágica
(terribili arte, v. 36). A cosmética de Ovídio é também exemplo de elocução e matéria médias.
Vimos que o desejo de novidade pode consistir não em recombinar tópicas amorosas, mas
em alterar elocução da elegia, como fez Catulo no singular poema 67, que, sendo ainda amoroso,
bem entendido, referente à relação amorosa dos recém-casados, revelava ação torpe das
personagens, se o que a Porta revelava era verdadeiro, ou da Porta, se foi mentirosa. A novidade
ainda consistir em procedimentos diferentes.

5. b) 1. OLHA O NÍVEL!: ELEGIA BAIXA NOS ELEGÍACOS AUGUSTANOS

Um procedimento interessante foi utilizado por Álbio Tibulo, quando desloca a elegia da
cidade, que era o lugar próprio97, para o campo. Sob a sombra de faias e gêneros cujo espaço é o
campo (os exemplos são de epos não-guerreiro, como de Hesíodo, Trabalhos e Dias; de Virgílio,
Geórgicas e Bucólicas; de Teócrito, Idílios). Tibulo, embora mantenha por matéria o amor
malogrado e a conseqüente lamentação, inventa (heureca!) a elegia rural!:

Tibulo 1, 1

Diuitias alius fuluo sibi congerat auro Que outro amontoe riqueza em ouro reluzente
et teneat culti iugera multa soli, e de campos lavrados tenha jeiras;
quem labor adsiduus uicino terreat hoste, que incessante fadiga lhe inflija o inimigo
Martia cui somnos classica pulsa fugent: e o clarim marcial lhe tire o sono;
me mea paupertas uita traducat inerti, 5 que a pobreza conduza-me à vida ociosa,
dum meus adsiduo luceat igne focus. luza em minha lareira chama assídua.
Ipse seram teneras maturo tempore uites Eu, lavrador, semeie em tempo tenras vides
rusticus et facili grandia poma manu; e, com mão hábil, árvores frutíferas.
nec spes destituat, sed frugum semper aceruos Não me frustre a Esperança, forneça-me sempre
praebeat et pleno pinguia musta lacu. 10 frutos e um denso mosto em cuba cheia.
Nam ueneror, seu stipes habet desertus in agris Pois, floridos, venero ou tronco solitário
seu uetus in triuio florida serta lapis, nos campos ou do trívio velha pedra;
et quodcumque mihi pomum nouus educat annus, e todo pomo que produza um novo ano,
libatum agricolae ponitur ante deo. eu oferendo ao deus do agricultor.
Flaua Ceres, tibi sit nostro de rure coro 15 Loura Ceres, do campo meu tenhas coroa
130

spicea, quae templi pendeat ante fores, de espigas presa à porta de teu templo.
pomosisque ruber custos ponatur in hortis, No pomar ponham rubro guardião, Priapo,
terreat ut saeua falce Priapus aues. que com foice cruel afaste as aves.
Vos quoque, felicis quondam, nunc pauperis agri Vós, Lares, guardiães de um campo outrora fértil,
custodes, fertis munera uestra, Lares. 20 e hoje pobre, levais presentes vossos.
Tunc uitula innumeros lustrabat caesa iuuencos, Antes, vários novilhos purgava uma rês;
nunc agna exigui est hostia parua soli. hoje, uma ovelha imolo ao solo exíguo.
Agna cadet uobis, quam circum rustica pubes Tombe ovelha por vós, e em volta jovens rústicos
clamet 'io messes et bona uina date'. clamem: “Ó! Dai-nos messes e bons vinhos.”
Iam modo iam possim contentus uiuere paruo 25 Que eu possa, então, viver satisfeito com pouco
nec semper longae deditus esse uiae, e, raro, estar entregue a longas marchas,
sed Canis aestiuos ortus uitare sub umbra mas evitar o estivo nascer da canícula,
arboris ad riuos praetereuntis aquae. à sombra arbórea, às margens de um riacho.
Nec tamen interdum pudeat tenuisse bidentem E que não me envergonhe o manejo da enxada
aut stimulo tardos increpuisse boues, 30 ou com vara tocar bois vagarosos.
non agnamue sinu pigeat fetumue capellae Não me zangue, no colo, ovelha, ou cabritinho
desertum oblita matre referre domum. pela mãe esquecido, ao lar trazer.
At uos exiguo pecori, furesque lupique, Vós, lobos e ladrões, poupai o pouco gado:
parcite: de magno est praeda petenda grege. aspirai presa de rebanho largo.
hic ego pastoremque meum lustrare quotannis 35 Aqui, ano após ano, purgo o meu pastor
et placidam soleo spargere lacte Palem. e com o leite esparjo Pales plácida.
Adsitis, diui, neu uos e paupere mensa Sejais propícios, deuses, dons não desprezeis
dona nec e puris spernite fictilibus. de vasos simples nem de mesas pobres:
Fictilia antiquus primum sibi fecit agrestis o antigo camponês fez para si, de barro,
pocula, de facili conposuitque luto. 40 o copo, com argila o modelou.
Non ego diuitias patrum fructusque requiro, Não reclamo as riquezas dos meus pais e as safras
quos tulit antiquo condita messis auo: que a messe deu ao meu antepassado:
parua seges satis est, satis requiescere lecto simples seara basta, basta se podemos
si licet et solito membra leuare toro. em cama amena aliviar os membros.
Quam iuuat inmites uentos audire cubantem 45 Como agrada, deitado, ouvir o vento uivante
et dominam tenero continuisse sinu e manter junto ao tenro peito a amada
aut, gelidas hibernus aquas cum fuderit Auster, ou, quando o Austro invernal verter as águas gélidas,
securum somnos igne iuuante sequi. dormir tranqüilo junto à afável chama.
Hoc mihi contingat. Sit diues iure, furorem Isto me alcance: seja rico, com justiça,
qui maris et tristes ferre potest pluuias. 50 quem triste chuva e mar bravio suporta.
O quantum est auri pereat potiusque smaragdi, Que antes se esgotem todo o ouro e as esmeraldas
quam fleat ob nostras ulla puella uias. que uma moça chorar minhas jornadas.
Te bellare decet terra, Messalla, marique, A ti convém lutar por terra e mar, Messala,
ut domus hostiles praeferat exuuias; para que ostentes os rivais espólios;
me retinent uinctum formosae uincla puellae, 55 eu, grilhões me mantêm junto à formosa dama,
et sedeo duras ianitor ante fores. e, qual porteiro, fico em duras portas.
Non ego laudari curo, mea Delia; tecum Não busco glórias, Délia, só de estar contigo,
dum modo sim, quaeso segnis inersque uocer. podem fraco e indolente me chamar.
Te spectem, suprema mihi cum uenerit hora, Quando vier a hora extrema, que eu te veja;
te teneam moriens deficiente manu. 60 que eu, morrendo, te prenda com mão trêmula.
Flebis et arsuro positum me, Delia, lecto, Chorarás, Délia, e a mim, deitado em leito ardente,
tristibus et lacrimis oscula mixta dabis. darás beijos em meio a tristes lágrimas;
Flebis: non tua sunt duro praecordia ferro chorarás: peito atado a ferro não possuis
vincta, neque in tenero stat tibi corde silex. nem é pedra teu doce coração.
Illo non iuuenis poterit de funere quisquam 65 Do funeral, nenhuma virgem, nenhum jovem
lumina, non uirgo, sicca referre domum. voltará de olhos secos para casa.
Tu manes ne laede meos, sed parce solutis Não ultrajes meus Manes, Délia; mantém soltas
crinibus et teneris, Delia, parce genis. as tranças, e mantém as meigas faces.
Interea, dum fata sinunt, iungamus amores: Contudo, enquanto os fados permitem, amemo-nos:
iam ueniet tenebris Mors adoperta caput, 70 logo, cabeça em trevas, virá a Morte;
iam subrepet iners aetas, nec amare decebit, logo virá a velhice, não convém amar
131

dicere nec cano blanditias capite. nem seduzir com a cabeça branca.
Nunc leuis est tractanda Venus, dum frangere postes Vamos tratar de Vênus, enquanto não peja
non pudet et rixas inseruisse iuuat. quebrar portas e agrada causar brigas.
Hic ego dux milesque bonus: uos, signa tubaeque, 75 Aqui sou bom soldado e chefe; insígnias, tubas,
ite procul, cupidis uolnera ferte uiris, ide longe, levai aos homens ávidos
ferte et opes: ego conposito securus aceruo feridas e riquezas. Eu, com bons recursos,
despiciam dites despiciamque famem. rirei dos ricos e rirei da fome.
(Tradução de João Paulo Matedi Alves)98

O espaço sugerido no verso 2 (“de campos lavrados tenha jeiras”, teneat culti iugera multa soli) é
ratificado no 7 (“Eu, lavrador, semeie”, Ipse seram teneras maturo tempore uites / rusticus). A persona
elegíaca de Tibulo é rusticus, morador do rus, do “campo”, da zona rural. Além disso cultiva a
paupertas (v. 5, “pouquidão”, melhor que “pobreza”; v. 25, “viver satisfeito com pouco”, contentus
uiuere paruo), palavra-chave da matéria e da elocução tibuliana. À pouquidade rústica de Tibulo
convém o gênero baixo, expresso já não em chave vituperiosa ou torpe, mas por um termo
retórico muito oportuno, que é “humilde”, “húmile” (humile), perto do húmus, pé no chão. Neste
e nos outros poemas autênticos de Tibulo (livros 1 e 2) a pequenez do gênero manifesta-se na
adjetivação, porém principalmente nos substantivos do campo semântico “campo”, que é
também o espaço, e abundam a tal ponto, que não é preciso indicar. O que devo sim referir é que
Tibulo lança mão dos mesmos tópicos elegíacos descritos, dos quais aponto agora só os que deixei
sem exmplo:
→ a MILÍCIA AMOROSA (militia amoris ): vv. 73-75: “Vamos tratar de Vênus, enquanto não
peja quebrar portas e agrada causar brigas. / Aqui sou bom soldado e chefe” (Nunc leuis est tractanda Venus,
dum frangere postes / non pudet et rixas inseruisse iuuat. / Hic ego dux milesque bonus). Por feliz acaso, nesse
passo Tibulo emprega brevemente e com variação os tópicos
→ AMANTE DEIXADO DE FORA (exclusus amator): vv. 73-74, “enquanto não peja quebrar
portas” (dum frangere postes / non pudet ). Subentende-se que o poeta, fechado porta fora, arromba a
a porta na briga amorosa.
→ PARACLAUSITHYRON : vv. 55-56: eu, grilhões me mantêm junto à formosa dama, / e, qual
porteiro, fico diante de portas cruéis” (me retinent uinctum formosae uincla puellae, / et sedeo duras ianitor
ante fores), que requer sutileza do leitor: é evidente que o amante não é o porteiro (ianitor) e já
vimos que foi deixado fora do quarto ou da casa da amante. Ora, a situação do amante é tão
lamantável, que ele diz que ficou de fora, frustrado, diante da porta como se fosse porteiro, como
um porteiro ficaria, já que ele, amante, está exatamente no local que o porteiro ocuparia.
132

Procedimento diferente para rebaixar a elocução e a matéria da elegia foi adotado por
Ovídio no poema

CONTRA ÍBIS (1-10 e 45-54):

Tempus ad hoc, lustris bis iam mihi quinque peractis, Até agora, que já vivi duas vezes cinco lustros,
omne fuit Musae carmen inerme meae; todo poema de minha Musa está desarmado,
nullaque, quae possit, scriptis tot milibus, extat e entre tantos milhares de escritos não sê lê
littera Nasonis sanguinolenta legi: uma só letra sanguinolenta de Nasão.
nec quemquam nostri nisi me laesere libelli, 5 Meus livros a ninguém fizeram mal, senão a mim,
artificis periit cum caput Arte sua. o poeta é que pagou por causa de sua Arte99.
Unus (et hoc ipsum est iniuria magna) perennem Um só homem100 – e isto mesmo é grande crime –
Candoris titulum non sinit esse mei. não me permitiu ter fama de pureza.
Quisquis is est (nam nomen adhuc utcumque tacebo), Quem quer que sejas (por ora o nome todavia calarei),
Cogit inassuetas sumere tela manus. 10 obrigou descostumadas mãos empunhar lanças.
[...] […]
Prima quidem coepto committam proelia uersu, 45 Vou travar combate com o ritmo com que comecei,
Non soleant quamuis hoc pede bella geri: embora não se costume guerrear com esse pé101,
Utque petit primo plenum flauentis harenae e, tal como o dardo do soldado ainda frio
Nondum calfacti militis hasta solum, primeiro busca o solo de flava areia
sic ego te nondum ferro iaculabor acuto, assim eu ainda não te acertarei o ferro agudo
protinus inuisum nec petet hasta caput; 50 e minha lança não buscará logo tua cabeça odiosa;
et neque nomen in hoc nec dicam facta libello, e neste livro nem teu nome nem teus feitos vou dizer
teque breui, qui sis, dissimulare sinam. e por breve tempo te permitirei ocultar quem és.
Postmodo, si perges, in te mihi liber iambus Depois, se te obstinares, contra ti o iambo franco
tincta Lycambeo sanguine tela dabit. me fornecerá dardos tintos no sangue de Licambes102.
Nunc quo Battiades inimicum deuouet Ibin, 55 Agora, assim como o filho de Bato103 maldisse a Íbis,
hoc ego deuoueo teque tuosque modo. assim eu te maldigo, a ti e aos teus.

Na elegia, que mantém seu metro, Ovídio insere a matéria e a elocução do iambo, praticado,
talvez inventado, por Arquíloco de Paros. Com fazê-lo, pratica a ποικιλία, “a matização”104, no
gênero elegíaco, que passa então a possuir algo que não lhe pertence, a imprecação, a maldição
(deuoueo, “maldigo”, v. 56.) e a invectiva pessoal. O ataque pessoal, que fere a reputação, é
figurado pela lança (telum, v. 10), pelo dardo (hasta, v. 47) e sua férrea ponta (ferro acuto, v. 48), que
ferem o corpo105. Imprecação ocupa o gênero baixo, que aqui é acionado em chave vituperiosa,
algo semelhante ao que Catulo fez no poema 67, e bem diferente do que fez Tibulo.

5. b) 2. PAULO MAIORA CANAMUS: ELEVAÇÃO NA ELEGIA AUGUSTANA

“Cantemos coisas um pouco mais elevadas”, paulo maiora canamus, foram as palavras com
que Virgílio anuncia na Bucólica IV que vai fazer, lá naquele gênero, o que os elegíacos fizeram
aqui no seu: elevar o assunto e o modo de tratá-lo. Uso as palavras de Virgílio para nomear o
procedimento em qualquer gênero106, mas dou dois exemplos de elevação na elegia romana. O
133

primeiro é de Propércio, que no livro IV, decide cantar o esplendor presente de Roma,
contrastando-o com a antiga pequenez (vv. 1-8 e 57-70):

PROPÉRCIO, 4,1

Hoc, quodcumque uides, hospes, qua maxima Roma est, Tudo o que vês, estranho, pela grande Roma,
ante Phrygem Aenean collis et herba fuit; foi morro e mato antes do Frígio Enéias;
atque ubi Nauali stant sacra Palatia Phoebo, e onde a Febo Naval se sagra o Palatino
Euandri profugae concubuere boues. deitava o gado do exilado Evandro.
Fictilibus creuere deis haec aurea templa, 5 Ergueram-se áureos templos a Deuses de barro,
nec fuit opprobrio facta sine arte casa; sem ofensas por sua cabana tosca;
Tarpeiusque Pater nuda de rupe tonabat, da rocha nua o Pai Tarpeio retroava,
et Tiberis nostris aduena bubus erat. e para os bois o Tibre era estrangeiro.
[...] [...]
Moenia namque pio coner disponere uersu: Num verso pio tentarei dispor tais muros:
ei mihi, quod nostro est paruus in ore sonus! ai de mim, que som fraco em minha boca!
Sed tamen exiguo quodcumque e pectore riui Mas se brotar um rio deste peito exíguo,
fluxerit, hoc patriae seruiet omne meae. 60 servirá minha pátria por inteiro.
Ennius hirsuta cingat sua dicta corona: Que Ênio cinja seus cantos de áspera coroa;
mi folia ex hedera porrige, Bacche, tua, ó Baco, estende as folhas de tua hera,
ut nostris tumefacta superbiat Vmbria libris, e que se orgulhe a Úmbria, inflada por meus livros,
Vmbria Romani patria Callimachi! Úmbria, a pátria do Calímaco Romano!
Scandentis quisquis cernit de uallibus arces, 65 Quem vir as altas cidadelas sobre os vales,
ingenio muros aestimet ille meo! que estime os muros pelo meu engenho!
Roma, faue, tibi surgit opus, date candida, ciues, Ó Roma, ajuda, a obra é tua; cidadãos,
omina, et inceptis dextera cantet auis! dai-me augúrio; ave cante ao meu começo!
Sacra diesque canam et cognomina prisca locorum: Ritos e dias canto e os antigos nomes:
has meus ad metas sudet oportet equus. 70 que meu cavalo107 sue nessas metas.
Tradução de Guilherme Gontijo Flores108)

O contraste entre tão diferentes condições leva a que se pergunte como então “aquilo deu nisso?”
O tipo de pergunta já prenuncia que Propércio cantará a antiga origem daquilo que se vê agora,
indiciando desde logo que se trata de poema etiológico. Modelo exemplar de etiologia, entre
outros procedimentos poéticos, como sabemos, são os Aítia, de Calímaco, nomeado no verso 64:
Propércio se diz o “Calímaco romano”, pelo que se conclui que o livro IV canta as origens, as
causas (αἴτια) de algumas instituições romanas de antanho e dos priscos, valorosos homens
responsáveis por elas (“dias canto e os antigos nomes”, canam et cognomina prisca locorum, v. 69). Que
a matéria é elevada e decerto mais elevada que “coisas de casal” evidencia-se por si só, mas é
todavia patenteado pela própria grandeza do objeto, “Roma é imensa” (maxima Roma est), “áureos
templos” (aurea templa) e pela grandeza moral do gesto patriótico (“se qualquer riacho que seja
brotar de meu peito exíguo, será todo útil à minha pátria”, Sed tamen exiguo quodcumque e pectore riui
/ fluxerit, hoc patriae seruiet omne meae); tanto é assim, que o poeta, acostumado a cantar matéria
134

menor, sente medo (ei mihi, quod nostro est paruus in ore sonus!, literalmente “ai de mim, que som pequeno
em minha boca!, v. ), e então se dirige a Roma e aos cidadãos nos versos 67-68 para pedir auxílio
no empreendimento. A delicadeza e a pequenez (que lemos também em riuus, “riacho”, v. 59)
que convinham a assunto erótico, desconvêm agora às loas de Roma. Propércio, o Calímaco de
Roma, não deixará de ser delicado e fino, mas terá de encontrar a delicadeza e a finura que
convêm à grandeza de Roma, as quais penso que estão na imagem apenas vista: “se um riacho
qualquer seja brotar de meu peito exíguo, será todo útil à minha pátria”, Sed tamen exiguo
quodcumque e pectore riui / fluxerit, hoc patriae seruiet omne meae). Calímaco não está querendo dizer: “se
ao fim e ao cabo o que eu tiver produzido for infelizmente um riacho, ainda assim ele será todo
útil”, mas já avisa com delicadeza desde logo: “o que sairá de meu peito será sim um richo (afinal
sou Calímaco, não Virgílio), mas esse riacho, que é pequeno, será inteira e totalmente útil na
pequenez à minha querida Úmbria”. Afirmo, como refrigério ao fastio, que nos versos de
Calímaco estão prefiguradas duas imagens caríssimas aos lusófonos que amam a poesia:

O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.

e analogamente

que seja infinito enquanto dure.

O riacho-poema de Propércio não é o Tibre, mas será inteiro devotado à Úmbria e a Roma.
Propércio faz na elegia o mesmo louvor de Roma que Virgílio fez na épica.
O segundo exemplo elegíaco do paulo maiora canamus é de Ovídio, nos Fastos (Fasti), que
narram em 12 livros (chegaram-nos seis) os dias festivos do calendário romano. O calendário do
ano inteiro acolhe e unifica três vertentes: astronômica, religiosa e histórica. Ovídio, por exemplo,
narra a origem do nome dos meses e dos factos principais segundo tais vertentes: se “janeiro” tira
o nome ao deus Janus, “julho” toma-o ao verídico Júlio César. Quando desaparece do céu a
constelação do golfinho, Ovídio narra como animal, tão popular hoje, virou estrela: já se vê que
os Fastos também são etiológicos e, pois, calimaquianos, mas não só pela etiologia, senão pela
maravilhosa unidade não-aristotélica e a feita em pequenos episódios. Com ações relativas a
deuses e maiorais da história romana – matéria mais alta do que desencontros amorosos – Ovídio
eleva o gênero e, como é costume, não deixa de advertir-nos
135

FASTOS, 2, 1-18:

Ianus habet finem. Cum carmine crescit et annus: Janeiro chega ao fim. Com o canto passa também o ano:
alter ut hic mensis, sic liber alter eat. tal como este é o segundo mês, assim este é o segundo livro.
nunc primum uelis, elegi, maioribus itis: Agora, por primeiro, versos elegíacos, seguis com velas maiores:
exiguum, memini, nuper eratis opus. há pouco éreis – bem me lembro – obra tênue.
ipse ego uos habui faciles in amore ministros, 5 Eu mesmo – que no amor vos tive prontos servidores,
cum lusit numeris prima iuuenta suis. quando minha tenra juventude se divertiu109 com seus ritmos
idem sacra cano signataque tempora fastis: agora canto sacros ritos e dias de festas designados.
ecquis ad haec illinc crederet esse uiam? Quem creria que há um caminho daqueles até estas?
haec mea militia est: ferimus quae possumus arma, Esta é minha guerra: levo as armas que posso
dextraque non omni munere nostra uacat. 10 e minha destra não é inteira sem serventia.
si mihi non ualido torquentur pila lacerto, Se dardos não lanço com braço forte,
nec bellatoris terga premuntur equi, se não peso sobre as costas de cavalo belicoso,
nec galea tegimur nec acuto cingimur ense, se não me cobre elmo nem me cinge aguda espada
(his habilis telis quilibet esse potest), (qualquer um pode ser hábil com tais armas),
at tua prosequimur studioso pectore, Caesar, 15 miro, César110, com zeloso peito, teus
nomina, per titulos ingredimurque tuos. títulos e começo a percorrer tua glória111 .
ergo ades et placido paulum mea munera uoltu Portanto, vem e com benévolo rosto a esta minha dádiva
respice, pacando si quid ab hoste uacas. atenta, se pacificar o inimigo te deixa vago um momentinho.

Se cantar gesta de varões marcava elevação na épica guerreira, cantar renome e títulos do
imperador (nomina, titulos tuos, v. 16) marcará a da elegia, mas Ovídio ademais figura com a
imagem das “velas maiores” (uelis maioribus, v. 3) a transição da obra (e também “gênero”, opus, v.
4) praticada pouco antes, que era tênue (exiguum), para a atual, que é maior. Usa o mesmo termo
exiguus que Horácio empregara para referir elegia amorosa na Arte Poética (v. 77), e usa dupla
sinédoque para, diáfano e vaporoso, sugerir na elegia subida que empreende algo da amplitude
heróica: a “vela” é parte de navio, que por seu turno é meio de ir guerrear. Só pode evocar a
guerra, porque, sempre elegíaco calimaquiano afinal, não vai à guerra, pois, como vimos, não
canta a guerra, já que não atira lança, não pega espada nem monta cavalo (vv. 11-13). E no
entanto, Nasão tem o nariz empinado: com dizer “qualquer um pode ser hábil com tais armas”
(his habilis telis quilibet esse potest, v. 14), creio que não deixe de aludir também a Virgílio, porém
decerto alude a outros poetas de epos bélico do tempo, para dizer, ao cabo, que foi ele quem
achou (heureca, de novo!) um meio poético, um caminho (uiam, v. 8) de relacionar os ritos sacros
e os dias em que são celebrados. Em outras palavras, unindo as vertentes religiosa, astronômica e
histórica, fez um pouco do que fizeram Calímaco, Arato e Virgílio, o qual inseriu história romana
antiga e recente na Eneida. Assim compondo, dá a entender que os superou, a todos, e o verso 8
(ecquis ad haec illinc crederet esse uiam?) deve ler-se: “ninguém creria que há um caminho das estrelas
até os feriados religisosos e cívicos, mas eu o encontrei”.
Encerro o capítulo com o mesmo quadro de elocuções aplicado não exaustivamente à
elegia latina:
136

5. b. 3) COMPARAÇÃO DO CARÁCTER NA ELEGIA AUGUSTANA

elevada: elegia fúnebre e elegia cívico-religiosa poema 101 de Catulo; Livro IV das Elegias de
→ Propércio; Fastos, de Ovídio.
Poemas 65, 66, 68a, 68b, 76 de Catulo. Amores,
Arte de Amar, Remédios do Amor, Medicamentos para o
média: elegia amorosa → Rosto da Mulher, Heróides, Epístolas do Ponto,
Tristezas, de Ovídio. Livros I, II e III das Elegias
de Propércio.
elegia vituperiosa e invectiva; poema 65 de Catulo; Contra Íbis, de Ovídio.
baixa:
elegia humilde → Livros I e II das Elegias de Tibulo.
137

Notas do Capítulo 3

1 Assim será sempre que não houver indicação do tradutor.


2 Commentaria in Dionysii Thracis Artem Grammaticam, Scholia Vaticana (partim excerpta ex Georgio
Choerobosco. Grammatici Graeci, vol. 1, pars 3; ed. A. Hilgard, Leipzig: Teubner, 1901.
3Aelius Herodianus et Pseudo-Herodianus Gramm. Rhet. Partitiones (= Ἐπιμερισμοί). Herodiani Partitiones,
Ed. J. F. Boissonade, London, 1819 (repr. 1963), p. 30, 6.
4 Timon. Luciani Opera, vol. 1, ed. M. D. Macleod, Oxford: Oxford Clarendon Press, 1972.
5 Theodosii Alexandrini Grammatica; ed. K. Göttling; Leipzig: Libraria Dykiana, 1822. A autoria é também
atribuída a Teodoro Pródromo.
6A mesma etimologia “dizer ê, ê!” recorre em Aftônio, (G. L. 6, 100, 17), Mário Plócio (G. L. 6, 509, 31);
Porph. in Hor. C. 1, 33, 2; schol. Ar. Av. 217; Et. Magn. s.v. Com pequena variação – ἒ λέγειν – ocorre em
Sch. D. Thr. 307, 25.
7Op. cit. p. 5. O termo ocorre em E. Tro. 119; I.T. 146; Hel. 185; Hyps. vv. 1; 3; 9; Or. 968 (conjectura
dúbia) e em AR., Av. 217.
8 A.R. 2, 782; LUCILL. Anth. Pal. 11, 135, 3. Com o sentido de poemas em dísticos, sem referência à
matéria: CALL. fr. 7, 13 (Aitia); APOLLONID. Anth. Pal. 10, 19; MEL. Anth. Pal. 10, 19; POLL. Anth. Pal. 11,
130, 3; KAIBEL, Epigr, 1000, 1.
9 Op. cit, p. 22: “Our surviving fragments include a few which ‘might be described as laments’. But on
closer examination these turn out to be from poems whose primary character was consolatory and not
threnodic”.
10Texto grego: Iambi et Elegi Graeci, vol. 1; ed. M. L. West, Oxford: Oxford Clarendon Press, 1971.
Tradução do poema: de Falco & Coimbra, p. 77.
11 D. L. Page, “The Elegiacs in Euripides’ Andromache”; Greek Poetry and Life: Essays Presented to Gilbert Murray
on His Seventieth Birthday: January 2, 1936”; Oxford: The Clarendon Press, 1936, pp. 206-230.
12 Tradução inédita, gentilmente cedida pelo tradutor, a quem consigno meu agradecimento. Texto
grego: Euripidis Fabulae, vol. 1; ed. J. Diggle; Oxford: Oxford Clarendon Press, 1984.
13 Sabemos então onde finca raízes a elegia narrativa de Calímaco (hino 5, O Banho de Palas), o longo
poema Lide, de Antímaco de Cólofon, as elegias helenísticas de que restaram só o título, como veremos, e o
poema 68 de Catulo.
14 de Falco & Coimbra, pp. 43-45.

15 de Falco & Coimbra, pp. 139-141.


16 de Falco & Coimbra, pp. 145-149.
17 Antunes, p. 57.
18 Simon, p. 88.
19 de Falco & Coimbra, p. 239.
20 QUERES: as Moiras, as Parcas latinas.
21 de Falco & Coimbra, p. 239.
22 de Brose, pp. 49-51.
23Transcrito e traduzido conforme edição de West (Zeitschrift fur Papyrologie und Epigraphik 156, 2006, pp.11-
17; apud Corrêa (2009), p. 337.
138

24 Corrêa (2009), pp. 338-339. Agradeço ex imo cordis a autora por enviar-me a tradução quando, feroz, o
tempo já rugia. Antes de apresentar a tradução (p. 337), afirma: “Conta-se no argumento dos Cantos Cíprios
que os gregos, antes de chegarem a Tróia, perderam o rumo e aportaram na Teutrânia. Julgavam estar
em Tróia e, portanto, saíram para saquear a cidadela. Então Télefo, liderando os mísios, rechaçou os
gregos até as suas naus, causando muitas mortes. Na elegia de Arquíloco, o mito é provavelmente narrado
como um exemplum, o narrador visando a consolar alguém (ou um grupo maior?) que, derrotado, fugiu ao
combate”.
25 Corrêa (1998), p. 322.
26 Orionis Thebani Etymologicon; ed. F.G. Sturz; Leipzig: Weigel, 1820.
27 Souza (1966), p. 69.
28 Bowie, op. cit. p. 23: “To Pausanias, as to the Hellenistic and Graeco-Roman world as a whole, elegoi
were by definition – and perhaps etymology – mournful”. E remete às páginas 24 e 25: “[…] this sense
[sung lament] bulks large throughout the Hellenistic and Graeco-Roman periods”. Ocorrências no sentido
de “lamento”: A.R. 2, 782; Lucill. AP, 11, 135, 3; HADR. in W. Peek, Griechische Versinchriften, 2050, 5. No
sentido de “poema em versos elegíacos”: CALL. fr. 7, 13; APOLLONID. epigr. 26 (= AP 10, 9); MEL. epigr.
1, 36 (= AP 4, 1, 36); POLL. AP 11, 130, 3; G. Kaibel, Epigrammata Graeca 1000.
29 Murray, pp. 107-108.
30 Os suplementos conjecturais das lacunas são de Vogliano (Vogl.), Hunt (Hu.), Wilamowitz (Wil), Pfeiffer
(Pf.), Housman (Hous.), Rostagni (Rost.), Lobel (L.), Schneider (Sch.), apud Pfeiffer (1949), pp. 1-8.
31 = fr. anon. 261 (Sch., vol. II, p. 752).
32 = AP 7, 525 e Epigrama 21 de Calímaco.
33
UM CONTÍNUO CANTO: ἓν ἄεισμα διηνεκὲς. A locução é imitada, primeiro, por Horácio para recusar o
mesmo epos narrativo (Odes, 1, 7, 5-6): sunt quibus opus est intactae Palladis urbem/ carmine perpetuo celebrare, “há
aqueles cuja única tarefa é celebrar num contínuo canto a cidade de Palas”, e, depois por Ovídio
(Metamorfoses, 1, 3-4), que, ao contrário, o acolhe hexamétrico e ainda etiológico, como os próprios Áitia de
Calímaco, mas não bélico, e portanto não-“épico”, em sentido estrito: Adspirate meis [coeptis] primaque ab origine
mundi / ad mea perpetuum deducite tempora carmen, “inspirai o que já iniciei e trazei de alto abaixo [isto é, por
completo e na elocução, mais baixa por não-heróica] este contínuo canto desde a primeira origem do mundo
até meus tempos”. Massimilla afirma que o termo ἄεισμα e ἔπος não devem designar necessariamente
composição em hexâmetros (p. 204), mas devem incluir “elegia de tipo tradicional”. A seguir tentaremos
argumentar contrariamente a essa idéia.
34 E A GLÓRIA E REIS E HERÓIS / DE OUTRORA: βασιλ[ῆας / [κλῇσ]ας ἐν πολλαῖς ἤνυσα χιλιάσιν / ἢ
προτέρ]ους ἥρωας. Se o canto contínuo era o modo, (ὁ τρόπος, como diz Calímaco no Epigrama 27, v. 1),
indica-se agora, como objeto da recusa de Calímaco, a matéria heróica e guerreira própria da épica em
sentido estrito, em versos muito imitados: HOR. (Ars, 73-74) res gestae regumque ducumque et tristia bella/ quo scribi
possent numero, monstrauit Homerus, “Homero mostrou em que metro se podem descrever os feitos dos reis, dos
chefes e as tristes guerras”; VERG. Ecl. 6, 3, cum canerem reges et proelia, “quando cantava reis e batalhas”; PROP.
3, 3, 3: regum facta, “feitos dos reis”; v. 16, quis te / carminis heroi tangere iussit opus?, “quem te mandou tocar o
gênero do poema heróico”; OPP. C., 1, 28, μὴ γένος ἡρώων εἴπῃς, “não cantes o gênero dos heróis”.
35 EM VERSOS MIL, MILHARES: ἐν πολλαῖς ἤνυσα χιλιάσιν, literalmente “em muitos milhares”. Valorização
implícita da brevidade pelo ataque ao que lhe é contrário, este é o primeiro de vários tropos da verborréia,
censurada no poema. O verso e o conceito são imitados por Catulo 22, 3-4, plurimos facit uersus. / Puto esse ego
illi milia aut decem aut plura, “faz versos infindáveis. / Creio que escritos tem dez mil ou mais”, e 95, 3, milia
quingenta, “quinhentos mil”, em contexto semelhante.
36 DESENVOLVO: ἑλίσσω. O sentido primeiro do verbo é “girar”, “rolar”. Na expressão ἔπος ἑλίσσω,
139

Calímaco, mantendo o sentido superficial (“desenvolvo / revolvo na mente um canto”), por ambigüidade já
sugere, porém, estar a escrever no rolo de papiro, que deve ser então (desen)rolado, quando se lhe inscrevem
poemas. Lembremos que em grego uma das palavras para “ler”, ἀνελίσσω é formada a partir desse verbo
(ἀνά, “para trás” + ἑλίσσω, isto é, “desenrolar” o volume, o rolinho, para a leitura. Ênio, nos Anais
(fragmento 173 Warminghton), imita a imagem: quis potis ingentis oras euoluere belli?, “Quem é capaz de
desenvolver de extremo a extremo a ingente guerra?”. Analogamente ao verbo grego, um dos termos latinos
para “livro” – uolumen – prende-se a uoluo, uoluere, “volver”, “enrolar”, e a euoluo, euoluere, “desenvolver”,
“desenrolar”, utilizado por Ênio.
37 TELQUINES: demônios que habitam o mar Egeu, particularmente Rodes, e se dedicam à metalurgia

(Hino a Delos, vv. 29-31:


ἢ ὡς τὰ πρώτιστα μέγας θεὸς οὔρεα θείνων ou como, por primeiro, o grande deus a golpear os montes
ἄορι τριγλώχινι τό οἱ Τελχῖνες ἔτευξαν com as três pontas do tridente que os Telquines adrede forjaram.

Dedicam-se também à magia e são capazes de lançar maus-olhados, como se vê em Ovídio, Metamorfoses, 7,
365-367:
Phoebeamque Rhodon et Ialysios Telchinas e Rodes, cara a Febo, e os Telquines de Iáliso,
quorum oculos ipso uitiantes omnia uisu cujos olhos que com o mero olhar arruinam tudo,
Iuppiter exosus fraternis subdidit undis. Júpiter, indignado, ocultou em fraternas ondas.
Na formulação de Calímaco, o ofício metalúrgico materializa o objeto da inveja dos Telquines, que é
precisamente a capacidade técnica, artificiosa de criar, como atesta Diodoro da Sicília, 5, 55, 1-4:
Τὴν δὲ νῆσον τὴν ὀνομαζομένην Ῥόδον πρῶτοι A ilha denominada Rodes os primeiros a habitar foram
κατῴκησαν οἱ προσαγορευόμενοι Τελχῖνες· os chamados Telquines; eram filhos de Tálassa [o mar],
οὗτοι δ ' ἦσαν υἱοὶ μὲν Θαλάττης, ὡς ὁ μῦθος tal como relata o mito, e segundo as narrações míticas,
παραδέδωκε, μυθολογοῦνται δὲ μετὰ Καφείρας
eles junto com Cafira, filha do Oceano, alimentaram
τῆς Ὠκεανοῦ θυγατρὸς ἐκθρέψαι Ποσειδῶνα,
Ῥέας αὐτοῖς παρακαταθεμένης τὸ βρέφος. Posídon, quando Réia lhes confiou o bebê. Conta-se
γενέσθαι δ ' αὐτοὺς καὶ τεχνῶν τινων εὑρετὰς que foram descobridores de algumas artes e
καὶ ἄλλων τῶν χρησίμων εἰς τὸν βίον τῶν introdutores de outros objetos úteis à vida dos homens;
ἀνθρώπων εἰσηγητάς. ἀγάλματά τε θεῶν que foram os primeiros a moldar imagens para os
πρῶτοι κατασκευάσαι λέγονται, καί τινα τῶν deuses e que algumas das antigas efígies foram
ἀρχαίων ἀφιδρυμάτων ἀπ' ἐκείνων designadas a partir do nome deles: entre os Lídios,
ἐπωνομάσθαι· παρὰ μὲν γὰρ Λινδίοις
invocava-se ‘Apolo Telquínio’, entre os Jalísios, ‘Hera e
Ἀπόλλωνα Τελχίνιον προσαγορευθῆναι, παρὰ
δὲ Ἰαλυσίοις Ἥραν καὶ Νύμφας Τελχινίας,
Ninfas Telquínias’, e entre os Cameireus, ‘Hera
παρὰ δὲ Καμειρεῦσιν Ἥραν Τελχινίαν. λέγονται Telquínia’. Dizem que eram feiticeiros e, quando
δ' οὗτοι καὶ γόητες γεγονέναι καὶ παράγειν ὅτε queriam, conseguiam atrair nuvens, chuvas, granizo e
βούλοιντο νέφη τε καὶ ὄμβρους καὶ χαλάζας, até neve. Isso tudo, relata-se que podiam fazer
ὁμοίως δὲ καὶ χιόνα ἐφέλκεσθαι· ταῦτα δὲ exatamente como os magos da Pérsia. Podiam mudar
καθάπερ καὶ τοὺς μάγους ποιεῖν ἱστοροῦσιν. as próprias formas e eram ciumentos quanto a ensinar
ἀλλάττεσθαι δὲ καὶ τὰς ἰδίας μορφάς, καὶ εἶναι suas artes.
φθονεροὺς ἐν τῇ διδασκαλίᾳ τῶν τεχνῶν.
Ver abaixo INVEJA (Baσκανίης), e ainda Áitia, fr. 75, vv. 64 ss. (Pfeiffer), γόητας Τελχῖνας, “Telquines
feiticeiros”. O fato de os Telquines habitarem Rodes tem sido tradicionalmente interpretado como alusão
a Apolônio de Rodes na célebre querela poética que teria mantido com Calímaco. A despeito de certa
mitificação na querela, é inegável o caráter polemístico do poema que necessariamente pressupõe
antagonistas.
38 POUCAS LINHAS: ὀλιγόστιχος (ὀλίγος, “pouco” + στίχος, “linha”, “verso”). Empregado como substantivo
na Antologia Palatina, 4, 2, 6, ὀλιγοστιχία, a “oligostiquia” é a brevidade aplicada à poesia, conceito
calimaquiano por excelência, acolhido explicitamente por Catulo, com o termo uersiculi (“versinhos”), 16,
v. 3 e v. 6; 50, 4.
39 LEGISLADORA: Θεσμοφόρος. É Deméter, a Ceres latina. Deméter, por metonímia mitológica, significa
140

“trigo”. O sentido é que o trigo, diminuto, supera a glande, fruto do roble, isto é, dp carvalho, que é grande.
Deméter (Δημήτηρ) é poema elegíaco do poeta Filetas de Cós, do século IV a.C. (cf. POWELL, Collectanea
Alexandrina, pp. 90-92), que, segundo Calímaco, supera pela brevidade outro poema do autor, longo,
grandioso e desconhecido, cuja sinédoque aqui seria o carvalho ou, como conjectum Housman e Coppola
(apud Massimilla, p. 206) um poema cujo título seria exatamente O Roble (Δρῦς). A oposição trigo / carvalho
recorre em Valério Flaco, Argonáuticas, 1, 70 − flaua quercum damnauit arista, “a loira espiga desacreditou o
carvalho” − e em Claudiano, Rapto de Prosérpina, 1, 29-30, unde datae populis fruges et glande relicta / cesserit
inventis Dodonia quercus aristis, “como se concederam grãos aos homens e, rejeitada a glande, o carvalho de
Dodona rendeu-se às espigas que haviam sido descobertas”.
40 DOCE: γλυκύς. Ver mesmo tropo abaixo, v. 16, “mais doce”, μελιχρότεραι. Hermesíanax menciona a
doçura de Mimnermo (Powell, Collectanea Alexandrina, fragmento. 7, 35-37): Μίμνερμος δέ, τ ὸν ἡδὺν ὃς
εὕρετο πολλὸν ἀνατλὰςἦχον κα ὶ μαλακοῦ πνεῦμα τ ὸ πενταμέτρου, καίετο μὲν Ναννοῦς, “Mimnermo,
que, sustentando o [verso] grandioso, encontrou também a respiração doce do pentâmetro ardeu por
Nano”. O sentido é que em dísticos elegíacos − o hexâmetro grandioso, pois que da épica, e o pentâmetro,
que é sua variação suavizada, pois que duplamente cataléctico, Mimnermo criou elegias amorosas
entituladas Nano; ver verso seguinte e nota a Mulher Grande. O adjetivo cognato γλυκερός é amiúde
associado ao canto; cf. HES.Th., 97; h Hom. 7, 59 e 25, 5; PI., fr. 152 (Sn.-M.); A.R. 4, 1773; THEOC. 20,
27; MOSCH. 3, 72; BION, fr. 3, 3 (Gow). Bowie (p. 28) lembra agudeza de Calímaco: Thus the poem
which he cites as (manifestly) better must be the one more popular in antiquity: and that was Naνno, as both
and the allusion by Hermesianax demonstrate. Nanno, therefore, could be described as ‘utterances in a
slender mould’, the Smyrneis as ‘the tall lady’. There is a touch of Callimachean wit here that should have
prevented scholars identifying Nanno as 'the tall lady', since the personal name ‘Nanno’ must hint at the
sense of the noun νᾶνος meaning ‘dwarf’.
41 VERSOS TÊNUES: αἱ κατὰ λεπτόν ῥήσιες, literalmente “linhas [escritas] em detalhe”, “minuciosamente”.
A expressão κατὰ λεπτόν além de significar “em detalhe”, como emprega Cícero nas Epístolas a Ático, 2, 18,
2, é empregada como título das “obras menores” de Arato de Solos e latinizada para Catalepton refere poemas
mais breves de Virgílio, antepostos aos poemas maiores. O adjetivo λεπτός é termo técnico da poética de
Calímaco, que o emprega no Epigrama 27, para designar o poema maior de Arato de Solos, Os Fenômenos, que
elogia como λεπταὶ / ῥήσιες, Ἀρήτου σύντονος ἀγρυπνίη, “gráceis / linhas, vigília e afã de Arato”. (Este
verso sugeriu o suplemento ῥήσιες para a lacuna). Adiante, Calímaco emprega também tecnicamente um
adjetivo cognato e sinônimo, λεπταλέος, “delicado”, “tênue” (v. 24, nota a DELICADA, λεπταλέην). O
conceito poético de Calímaco e os próprios termos são muito imitados por Catulo mediante os não menos
técnicos lepor, “graça!” (12, 8; 16, 7; 32, 2; 50, 7) e lepidus, “gracioso” (1, 1; 6, 2 ni inlepidae e 17; 10, 4, non
inlepidum; 36, 10 e 17, non inlepidum; 78, 1 e 2) que apresentam ainda evidente relação paronomástica, senão
verdadeira cognação, aventada por Glare (OLD, s. v. lepidus), rejeitada por Ernout / Meillet, Dictionnaire
Étymologique de la Langue Latine, Paris, Klincksieck, 1985, (s. v. lepos.).
42 MULHER GRANDE: μεγάλη γυνή. Mimnermo de Cólofon escreveu longo poema elegíaco Nano, nome de
uma flautista lídia que o poeta teria amado, e escreveu também longo poema histórico Esmirneida; cf.
Paus. 9, 29, 4: Μίμνερμος δέ, ἐλεγεῖα ἐς τὴν μάχην ποιήσας τὴν Σμυρναίων πρὸς Γύγην τε καὶ Λυδούς,
Mimnermo, tendo feito versos elegíacos sobre a luta dos Esmirneus contra Giges e os Lídios”. Assim, a
“mulher grande” pode ser o extenso poema sobre essa mulher ou essa cidade, que Calímaco repudia em
favor dos Versos Tênues. Calímaco quer dizer que entre os dois, Nano ou Esmirneida, ambos imensos, e os
Versos tênues, que são breves, estes são melhores. A tendência recente é não identificar a essa expressão o
comentário de Porfirião a Horácio, Epístolas, 2, 2, 101, Mimnermus [...] scripsit duos libros luculentis uersibus,
“Mimnermo escreveu dois livros em versos brilhantes”. É de notar o quiasmo: Filetas πολύστιχος (O Roble)
+ Filetas ὀλιγόστιχος (Deméter) X Mimnermo ὀλιγόστιχος (Versos Tênues) + Mimnermo πολύστιχος (Emirneida
ou Nano).
43 GROU: γέρανος, pássaro cujo canto é ruidoso.
141

44 PIGMEUS: Πυγμαίων. É lendário povo de anões que habitavam a região ao sul do Egito, cuja luta contra
os grous já é mencionada por Homero na Ilíada, 3, 3-6, passo que Calímaco imita:
ἠΰτε περ κλαγγὴ γεράνων πέλει οὐρανόθι πρό· assim gritam os grous, sob o céu, à espantosa
αἵ τ' ἐπεὶ οὖν χειμῶνα φύγον καὶ ἀθέσφατον ὄμβρον tempestade invernal fugindo sobre o Oceano
κλαγγῇ ταί γε πέτονται ἐπ' ὠκεανοῖο ῥοάων irruente, a morte e a Moira levando aos Pigmeus,
ἀνδράσι πυγμαίοισι φόνον καὶ κῆρα φέρουσαι pois do alto do ar lhes movem guerra lutulenta.
(Tradução de Haroldo de Campos, 2003). Em Calímaco nota-se a novidade na variação, pois ali os grous
já voltam do Egito para a Trácia, ao norte, após lutar contra os pigmeus. Imitam antes Calímaco do que
diretamente Homero a) Estácio, Tebaida, 5, 12-14:
qualia trans pontum Phariis defensa serenis tal como bandos roucos de grous, apanhados pelo Faros sereno,
rauca Paraetonio decedunt agmina Nilo, abandonam o Nilo Paretônio e através do mar vão
cum fera ponit hiems: illae clangore fugaci, aonde o feroz inverno os leva: eles, com veloz clangor, voam −
umbra fretis aruisque, uolant, sonat auius aether. sombra sobre as ondas e campos − e ressoa o inviável éter.
e b) Opiano, Haliêuticas, 1, 620-623:
ὡς δ' ὅτ' ἀπ' Αἰθιόπων τε καὶ Αἰγύπτοιο ῥοάων como quando, deixando os Etíopes e as correntes do Egito,
ὑψιπετὴς γεράνων χορὸς ἔρχεται ἠεροφώνων, o bando voador de grous parte, ressoante pelos ares,
Ἄτλαντος νιφόεντα πάγον καὶ χεῖμα φυγοῦσαι atrás deixando a montanha gelada e o inverno de Atlante
Πυγμαίων τ' ὀλιγοδρανέων ἀμενηνὰ γένεθλα e a descendência sem vigor dos Pigmeus extenuados.

A suplementação κλαγγὸν de Pfeiffer baseia-se no duplo emprego da palavra por Homero e de clangore, por
Estácio, já citados, assim como πέτοιτο, dele também, se apóia no homérico πέτονται.
45 MEDO: Μῆδον, indivíduo do povo da Média, região da Ásia, incorporada ao império persa.
46 MASSAGETA: Μασσαγέται, povo da região Cítia, a leste do mar Cáspio, hábil no arco; cf. Heródoto,
Histórias, 1, 214, 2: Πρῶτα μὲν γὰρ λέγεται αὐτοὺς διαστάντας ἐς ἀλλήλους τοξεύειν, “conta-se que eles
[Massagetas e Persas], tendo-se disposto a certa distância, lançaram flechas uns contras os outros”. Quanto
à habilidade no arco, ver Simias (de Rodes?), fr. 1, 3 (Powel, Colectanea Alexandrina), Μασσαγέται [...]
τόξοισι πεποιθότες ὠκυβόλοισιν, “os Massagetas confiados nos arcos de rápido disparo” e também fr.
epica adespota, Supplementum Hellenisticum, 939, 1 (apud Massimilla), Μασσαγέτην ἄτρακτον, “a flecha
Massageta”, comentado por Dionísio de Pérgamo, 740: Μασσαγέται [...] θοῶν ῥυτῆρες ὀϊστῶν,
“Massagetas atiradores de rápidas flechas”, e também 1067, τοξοφόρων [...] Μήδων, “os Medos
arcíferos”; ver ainda Oráculos Sibilinos, 5, 117, Μασσαγέτας τε φιλοπτολέμους τόξοισί τε πιστούς,
“Massagetas, amantes da guerra, confiados em seus arcos”; 14, 68, Μασσαγέτας Πέρσας τε,
φαρετροφόρους ἀνθρώπους, “Massagetas e Persas, homens portadores de aljavas”.
47
MAIS DOCE: μελιχρότεραι. O termo é técnico em Calímaco, que o emprega no Epigrama 27, v. 2 para
caracterizar o epos de Hesíodo: τὸ μελιχρότατον τῶν ἐπέων, “o mais doce dos epos” ou “a mais doce das
épicas”. Para designar poetas o termo é utilizado por Simias a respeito de Sófocles (AP 7, 22, 5); por
Hermesíanax a respeito de Anacreonte (Colectanea Alexandrina, Powell, fr. 7, 51).
48 ROUXINOL: ἀηδονίδες, no plural, na conjectura de Housman, apud Pfeiffer e Massimilla. O termo ἀηδών
significa “poema pequeno, gracioso” no Epigrama 2, v. 5 do próprio Calímaco, αἱ δὲ τεαὶ ζώουσιν ἀηδόνες,
“mas vivem rouxinóis”, i. e., “teus cantos”; cf. AP 10, 92, 2 (Paladas de Alexandria), φέρω σοι τῆς ἐμῆς
ἀηδόνος / ἐπίγραμμα σεμνόν, “trago-te este grave epigrama de meu rouxinol”, referente à coleção de
poemas do próprio Paladas; e ainda Antologia Palatina, 9, 184, 9, Ἀλκμᾶνος ἀηδόνες, “rouxinóis de
Álcman”; Hesíquio, s. v. ἀηδόνα (letra alfa, entrada 1498, linha 1), explicitamente identifica o termo a
ᾠδὴν, “canção”. O termo pode significar o próprio poeta; cf. HES. Op., v. 203 e v. 208, no passo depois
famoso por ser o primeiro exemplo de fábula ou apólogo (αἶνος, v. 202), em que emprega “rouxinol” e
“cantor”: ὧδ' ἴρηξ προσέειπεν ἀηδόνα ποικιλόδειρον [...] τῇ δ' εἶς ᾗ σ' ἂν ἐγώ περ ἄγω καὶ ἀοιδὸν
ἐοῦσαν, “Um gavião assim falou ao versicolor rouxinol [...], vais aonde te levo, sendo embora cantor”. É
de notar que poucos versos antes, v. 195, Hesíodo menciona a inveja, ζῆλος, assim como Calímaco logo
142

adiante, v. 17, Baσκανίης. Empregam o termo por “cantor”: Baquílides, Epinícios, 3, 98: καὶ μελιγλώσσου τις
ὑμνήσει χάριν / Κηΐας ἀηδόνος, “e cada um louvará a graça do rouxinol de Ceos, de melífluo cantar”;
Simias de Rodes, Κωτίλας / ματέρος / τῆ τόδ' ἄτριον νέον / Δωρίας ἀηδόνος, “acolhe, benévolo, da
fêmea canora do rouxinol dórico, este novo urdume” (tradução de José Paulo Paes, 1995, p. 43).
Comparam o poeta a rouxinol: Teógnis, v. 939, Οὐ δύναμαι φωνῆι λίγ' ἀειδέμεν ὥσπερ ἀηδών, “não
posso com voz pura cantar como rouxinol”; Teócrito, Idílios, 8, vv. 37-38, usando o diminutivo ἀηδονίς:
κρᾶναι καὶ βοτάναι, γλυκερὸν φυτόν, αἴπερ ὁμοῖον / μουσίσδει Δάφνις ταῖσιν ἀηδονίςι,/ τοῦτο τὸ
βουκόλιον πιαίνετε: “fontes e ervas, folhas doces, embora Dáfnis cante qual os pequenos rouxinóis,
aumentai este rebanho de bois”. Antologia Palatina, 9, 381 (anônimo): Εἰ κύκνῳ δύναται κόρυδος
παραπλήσιον ᾄδειν, / τολμῷεν δ' ἐρίσαι σκῶπες ἀηδονίσιν, “Se uma cotovia pode cantar como um
cisne, se corujas se atrevem a rivalizar com rouxinóis”. Aludindo à Filomela, transformada em canoro e
lamentoso rouxinol, metáfora do poeta, ver Eurípides, Reso, 548-550, ὑμνεῖ πολυχορδοτάται / γήρυϊ
παιδολέτωρ / μελοποιὸν ἀηδονὶς μέριμναν, “com voz multíssona entoa seu lamento gera-cantos o filicida
rouxinol”; e também o próprio Calímaco, O Banho de Palas, vv. 94-95: μάτηρ μὲν γοερᾶν οἶτον ἀηδονίδων
/ ἆγε βαρὺ κλαίοισα, “a mãe, chorando pesadamente, padecia o destino lamentável dos rouxinóis”.
Catulo alude a este brevemente mito justamente no poema 65, que abre a seção elegíaca do livro, logo
antes de mencionar Calímaco.
49 ὧδε, literalmente “assim”, “assim como ele é”, ou seja, “pequeno”, acepção que é atestada pelos Scholia
Londinensia, na suplementação de Massimilla (p. 215): ὧδε οὕτως ἡδύτεραι ἐν τοῖς μικροῖς: são mais doces
assim, por ser pequenos”. No escólio A da Ilíada, ὧδε vem explicado por οὕτως ὡς ἔχουσιν, “assim como
são”.
50 INVEJA: Baσκανίης. O caráter iâmbico da menção à Inveja personificada pode avaliar-se comparecer

entre outras divindades infernais nos ritos mágicos Os papiros mágicos gregos mostram como em si era
considerada maléfica (PMG, 4, 1435-1454):
ἐπὰν δὲ ταῦ τα ποιήσας ἐπὶ γʹ ἡμέρας μηδὲν Depois, tendo feito tudo isso por três dias, nada
τελῇς, τότε τῷ ἐ πανάγκῳ χρῶ τούτῳ· ἐλθὼν realizes; usa então deste encantamento irresistível: vai
γὰρ εἰς τὸν αὐτὸν τόπον καὶ ποιήσας πάλιν τὸ até o mesmo lugar e, depois de cumprires o rito dos
τῶν ψωμῶν, τότε ἐπίθυε ἐπὶ ἀνθράκων nacos de pão, oferece sobre cinzas de linho fezes de
καλπασίνων βόλβιθον βοὸς μελαίνης καὶ λέγε uma vaca preta e lê a seguinte fórmula e, de novo
ταῦτα, καὶ πάλιν ἄρας τὰ κόπρια ῥῖπτε, ὡς tendo pego o esterco, lança-o como sabes. O que deves
οἶδες. ἔστι δὲ τὰ λεγόμενα ἐπὶ ἐπιθύματος pronunciar sobre a oferenda é o seguinte: ‘Hermes
ταῦτα· ‘Ἑρμῆ χθόνιε καὶ Ἑκάτη χθονία καὶ ctônico e Hécate ctônica e Aqueronte ctônico e
Ἀχέρων χθόνιε καὶ ὠμοφάγοι χθόνιοι καὶ θεὲ omófagos ctônicos e deus ctônico e heróis ctônicos e
χθόνιε καὶ ἥρωες χθόνιοι καὶ Ἀμφιάραε χθόνιε Anfiarau ctônico e servidores ctônicos e espíritos
καὶ ἀμφίπολοι χθόνιοι καὶ πνεύματα χθόνια ctônicos e Erros ctônicos e Sonhos ctônicos e
καὶ Ἁμαρτίαι χθόνιαι καὶ Ὄνειροι χθόνιοι καὶ
Juramentos ctônicos e Ariste ctônica e Tártaro ctônico e
Ὅρκοι χθόνιοι καὶ Ἀρίστη χθονία καὶ Τάρταρε
Inveja ctônica e Caronte ctônico e acompanhantes
χθόνιε καὶ Βασκανία χθονία, Χάρων χθόνιε καὶ
ctônicos e mortos e demônios e almas de todos os
ὀπάονες χθόνιοι καὶ νέκυες καὶ οἱ δαίμονες καὶ
homens.
ψυχαὶ ἀνθρώπων πάντων

Associado à menção aos Telquines, o caráter iâmbico se materializa como intenção apotropaica no
prólogo num momento capital, quer seja prólogo, quer epílogo.
51Calímaco imita os versos de Hesíodo (Teogonia, 23-34), em que narra como foi investido pelas Musas. É
de notar como Calímaco por variação substitui o Hélicon, monte a elas consagrado, sua sede e moradia,
palas tabuinhas de cera (δέλτον, v. 21), que são instrumento da escrita, isto é, a dimensão oral pela escrita.
(Notar que o advérbio πρώτιστα (, “primeiro” v. 24) em Hesíodo foi retomado como πρώτιστον na mesma
posição do hexâmetro por Calímaco, v. 21):
143

αἵ νύ ποθ' Ἡσίοδον καλὴν ἐδίδαξαν ἀοιδήν, Elas um dia a Hesíodo ensinaram belo canto
ἄρνας ποιμαίνονθ' Ἑλικῶνος ὕπο ζαθέοιο. quando pastoreava ovelhas ao pé do Hélicon divino.
τόνδε δέ με πρώτιστα θεαὶ πρὸς μῦθον ἔειπον, Estas palavras primeiro disseram-me as Deusas
Μοῦσαι Ὀλυμπιάδες, κοῦραι Διὸς αἰγιόχοιο· 25 Musas Olimpíades, virgem de Zeus porta-égide:
“ποιμένες ἄγραυλοι, κάκ' ἐλέγχεα, γαστέρες οἶον, “Pastores agrestes, vís infâmias e ventre só,
ἴδμεν ψεύδεα πολλὰ λέγειν ἐτύμοισιν ὁμοῖα, sabemos muitas mentiras dizer símeis aos fatos
ἴδμεν δ' εὖτ' ἐθέλωμεν ἀληθέα γηρύσασθαι.” e sabemos, se queremos, dar a ouvir revelações”.
ὣς ἔφασαν κοῦραι μεγάλου Διὸς ἀρτιέπειαι, Assim falaram as virgens do grande Zeus verídicas,
καί μοι σκῆπτρον ἔδον δάφνης ἐριθηλέος ὄζον 30 por cetro deram-me um ramo, a um loureiro viçoso
δρέψασαι, θηητόν· ἐνέπνευσαν δέ μοι αὐδὴν colhendo-o admirável, e inspiraram-me um canto
θέσπιν, ἵνα κλείοιμι τά τ' ἐσσόμενα πρό τ' ἐόντα, divino para que eu glorie o futuro e o passado,
καί μ' ἐκέλονθ' ὑμνεῖν μακάρων γένος αἰὲν ἐόντων, impeliram-me a hinear o ser dos venturosos sempre vivos
σφᾶς δ' αὐτὰς πρῶτόν τε καὶ ὕστατον αἰὲν ἀείδειν. e a elas primeiro e por último sempre cantar.

(Tradução de José Antônio Alves Torrano. HESÍODO, p. 130).


51Segue-se o texto grego (Hino a Apolo, vv. 105-112), em que se pode notar que a mesma Inveja, presente
no Aos Telquines com o termo βασκανία (Baskanía), agora por variação comparece com o vocábulo Φθόνος:
ὁ Φθόνος Ἀπόλλωνος ἐπ' οὔατα λάθριος εἶπεν· 105 A Inveja a Apolo diz no ouvido sorrateira:
’οὐκ ἄγαμαι τὸν ἀοιδὸν ὃς οὐδ' ὅσα πόντος ἀείδει.’ “Cantor não amo que não canta quanto o mar”.
τὸν Φθόνον ὡπόλλων ποδί τ' ἤλασεν ὧδέ τ' ἔειπεν· À Inveja Apolo com o pé repele e diz:
’Ἀσσυρίου ποταμοῖο μέγας ῥόος, ἀλλὰ τὰ πολλά “Do rio Assírio é grande o fluxo, mas da terra
λύματα γῆς καὶ πολλὸν ἐφ' ὕδατι συρφετὸν ἕλκει. às águas muita escória arrasta, muito lodo.
Δηοῖ δ' οὐκ ἀπὸ παντὸς ὕδωρ φορέουσι μέλισσαι, 110
Ubíqua não ofertam água a Deo abelhas,
ἀλλ' ἥτις καθαρή τε καὶ ἀχράαντος ἀνέρπει
mas a que pura imaculada estila em fonte
πίδακος ἐξ ἱερῆς ὀλίγη λιβὰς ἄκρον ἄωτον.
santa, pequena gota, suma quintessência”.

52 APOLO LÍCIO: Ἀπόλλων Λύκιος. É pertinente a menção a Apolo Lício, pois foi transformado em lobo
(λύκος) que Apolo matou os Telquines.
53 DELICADA: λεπταλέην; a mesma idéia de “tênue”; ver acima, v. 12.

54 ILHA DE TRÊS PONTAS: [τριγ]λώ[χι]ν νῆσος. Sicília. Encélado é um dos Titãs; cf. EUR. HF 638.
55 Neste tipo de poesia crítica tão de perto imitada pelos romanos, Catulo, seguidor romano de Calímaco,

elogia epílio Esmirna, que é hexamétrico, num epigrama elegíaco (95), no qual por oposição também
censura Lide, o longo poema de Antímaco de Cólofon, que não é epos, mas elegíaco.
56 Propércio enaltece Calímaco ao lado de Filetas em 2, 34, 31; 3, 1, 1; 3, 9, 43 ss.; 4, 6, 3, ss.; Ovídio Ars 3,

329; Rem. 760.


57 O episódio foi traduzido por Catulo (66) como poema independente, o que bem mostra que pôde ser

retirado da totalidade dos Áitia sem dano. Pfeiffer crê que Catulo tenha sido fidelíssimo. Nino Marinone
(p. 12) pensa que, apesar de passos muito semelhantes, Catulo tenha feito adptações ao traduzir,
produzindo diferenças importantes. É a opinião recente de Frank Nisetich (pp. 163-164, livro que deveria
ser modelo para os estudiosos de Letras Clássicas no Brasil). Nisetich traduz em verso os fragmentos de
Calímaco na ordenação de Pfeiffer, mas supre as lacunas com a tradução em prosa dos respectivos passos
do poema 66 de Catulo: “pelo menos o resultado permite-nos ver e perceber [experience] os fragmentos
num contexto poético”.
58 Bacelar, pp. 119-137.
59 Aloni (op. cit. p. 172): “Of twenty-one fragments published by West, only the first seven (comprising,

however, more than half of the preserved verses) reflect the image of Mimnermus as a poet of love,
pleasure and youth. The others seem to belong to historical and mythological tales; the original extent of
these tales can only be guessed. In this selective transmission, Mimnermus’ reputation as a love poet in the
Latin tradition must have been a crucial stage in shaping the elegiac genre”.
60 Cf. Sbardella, pp. 44-45. Texto grego, Sabardella, pp. 90-91 e Powell, pp. 90-92.
144

61 Flores (2006), p. 182.


62 Cf. Delgado, p. 152. Texto grego: Powell, pp.106-108.
63 Tradução e notas de Guilherme Gontijo Flores, a ser publicada nos Cadernos de Literatura em Tradução, no

15; São Paulo: Humanitas, prevista para 2014.


64 Nota do tradutor Guilherme Gontijo Flores: “sigo a edição do fragmemto 3 da edição de J. L.

Lightfoot, Hellenistic Collection (Cambridge: Massachusetts / London: England) de 2009. O fragmento (o


maior que nos chegou) provavelmente faria parte do longo poema elegíaco entitulado Leôntio e se situaria
no livro III”.
65 Nota do tradutor Guilherme Gontijo Flores: “O filho de Eagro, como se confirma depois no verso 8, é

Orfeu. Esta é a versão mais antiga em que aparece um nome para sua amada; e o nome mais famoso de
Eurídice só aparece a partir do Epitáfio de Bíon, de Mosco”.
66 Nota do tradutor Guilherme Gontijo Flores: “Antíope (ou Díope) é uma figura famosa dos mitos de

Elêusis, costuma ser retratada como mãe ou filha de Triptólemo. A planície de Rária seria o local onde
nascera a agricultura, em Elêusis”.
67 Nota do tradutor Guilherme Gontijo Flores: “Há um chiste aqui, já que a fórmula ηοια (que serve para

apresentar cada uma das heroínas no Catálogo das Mulheres atribuído a Hesíodo, também conhecido como
Eoie, ou Eoia) aqui se transforma numa mulher que teria dado origem ao texto por meio da paixão do
poeta”.
68 Nota do tradutor Guilherme Gontijo Flores: “Icário era pai de Penélope, e Amiclas um ancestral de

Helena, daí a duplicidade das obras de Homero, respectivamente Odisséia e Ilíada. Esparta era o lar de
Menelau, com quem Helena se casou”.
69 Nota do tradutor Guilherme Gontijo Flores: “Lightfoot (2009, ad. loc.) afirma que a referência não é

clara, embora recorde que Exâmias era também o nome do pai de Tales. Nos versos seguintes, Hermóbio
e Férecles parece ser rivais pelo amor de Nano, mas também é difícil confirmar”.
70 Nota do tradutor Guilherme Gontijo Flores: “Antímaco teria escrito um poema consolatório a respeito

da morte de sua esposa Lide. Aqui Hermesíanax parece sugerir que a mulher teria morrido no Pactolo –
talvez afogada – um rio que corre pela cidade de Sardes”.
71 Nota do tradutor Guilherme Gontijo Flores: “A figura de Teóris já aparece na Vida de Sófocles. Vale

lembrar que o tragediógrafo nascera em Colono e que “abelha” era um de seus apelidos (aliás, aplicável
normalmente para poetas em geral)”.
72 Nota do tradutor Guilherme Gontijo Flores: “Na Antiguidade já havia a fama de que Eurípides teria

sido morto por cachorros, embora a trama variasse bastante; porém a história da paixão pela criada de
Arquelau só aparece neste poema”.
73 Nota do tradutor Guilherme Gontijo Flores: “Filóxeno de Citera (séc. IV–III a.C.) compôs o famoso

ditiramo O Ciclope ou Galatéia (óbvia influência para o Idílio 11 de Teócrito), provavelmente na corte de
Dionísio I de Siracusa. Diz-se que Galatéia era o nome da amante de Dionísio e que Filóxeno teria se
apaixonado por ela; assim, no poema, o Ciclope seria uma figura para representar o governante. Os locais
mencionados na estrofe são objeto de discussão, embora a cidade pareça ser Colofão”.
74 Nota do tradutor Guilherme Gontijo Flores: “Filetas de Cós foi um dos poetas mais importantes do

período Helenístico, mas dele temos apenas alguns poucos fragmentos em verso e prosa (cf. Flores, 2006,
pp. 179-190). Sua magreza notória está relacionada à história de que teria definhado até morrer, talvez
por amor”.
75 Nota do tradutor Guilherme Gontijo Flores: “Lightfoot afirma que estes versos fazem referência aos

filósofos em geral, o que começa a guinada do catálogo. A imagem do auriga que causa paixão e domina a
alma do apaixonado aparece já em Anacreonte”.
76 Nota do tradutor Guilherme Gontijo Flores: “Em Diógenes Laércio 8.42 e na Suda (π 3120) Teano

aparece como esposa de Pitágoras”.


77 Nota do tradutor Guilherme Gontijo Flores: “Havia uma tradição de que Sócrates fora pupilo de
145

Aspásia, mas Hermesíanax parece ser o primeiro a ver na história um fundo amoroso”.
78 Nota do tradutor Guilherme Gontijo Flores: “O próprio Ateneu fala mais sobre o amor de Aristipo de
Cirene (séc. IV-III, filósofo discípulo de Sócrates, fundador da escola cirenaica e vinculado ao hedonismo)
e Laís de Corinto em 13.599e-f. Apidano é um nome antigo para o Peloponeso, mas Laís vivia em
Corinto, onde ficou famosa”.
79 Cf. Lesky, p. 767.
80 Foi levado a Roma como prisioneiro de Hélvio Cina, poeta amigo de Catulo que lutou na guerra

contra Mitrídates em 73 a. C. Tendo sido libertado, Partênio, tornou-se preceptor de Virgílio e compôs
para Cornélio Galo, seu patrono, os Sofrimentos de Amor (Ἐρωτικὰ Παθήματα) coletânia de 36 histórias de
amores infelizes, extraídas de antigos poetas e historiadores, destinadas, como esclarece o proêmio, a
fornecer material para elegias e epílios de Cornélio Galo. Escritos em prosa e chegados até nós numa
redação resumida do original, os Sofrimentos de Amor tiveram, ao lado das próprias elegias de Partênio,
enorme influência sobre a elegia latina. Tradutor, Partênio de Nicéia, verteu em latim poemas de Euforião
da Calcídia, e é considerado como que mediatário da poética helenística em Roma.
81 A passagem é a primeira em que se discute gêneros apresentados pelos nomes – épica, tragédia,

comédia, elegia, iambo etc. Platão, tomando por critério o detentor da fala, tinha classificado os gêneros
em imitativo, narrativo e misto, exemplificando-os com a menção de épica, tragédia, etc.
82 Trato disso no capítulo 3 da Primeira Parte.
83 Aristóteles não diz, mas pode-se deduzir aplicando seu critério aos afetos e ao carácter das personagens

da lírica e elegia amorosas: cuidados amorosos e, principalmente, as conseqüentes ações dizem respeito a
pessoas “como nós”. Agíssemos qual Medéia, diriam respeito a alguém superior a nós.
84 Como remate do exercício apresento quadro comparativo dos gêneros de elocução do discurso

demonstrativo e da variação interna de outros gêneros de poesia (TABELA 3):

Gêneros→ Retórica Epos hexamétrico Poesia Lírica


níveis dramática

elogio ao
elevado virtuoso épica heróica tragédia hinos, encômios

médio não há épica didática não há lírica amorosa

paródias
baixo censura ao lírica erótica*
(Batracomiomaquia comédia
vicioso (“obscena”)
Delíada),
Margites
Advirto que, embora possível e até útil, não se trata aqui de estabelecer a relação horizontal que cada gênero
pode manter com os outros, mas de perceber, segundo o mesmo critério, a relação vertical, que é de
espécies, que há no interior de cada gênero. Quanto ao iambo, ou entendamo-lo como a espécie baixa da
lírica, que ganha nome especial, ou malhor o entendemos como gênero que é, e investiguemos se
apresenta na sua história variedade elocução, como parece haver entre Arquíloco, Hipônax e Calímaco;
cf. Alexandre Pinheiro Hasegawa, 2010.
* A meu ver não há na poesia antiga “lírica erótica” como hoje entendemos, poemas como “Sugar e Ser
Sugado pelo Amor”, do livro O Amor Natural, de Carlos Drummond de Andrade:
no mesmo instante boca milvalente
o corpo dois em um o gozo pleno.
Que não pertence a mim nem te pertence
146

um gozo de fusão difusa transfusão


o lamber o chupar o ser chupado
no mesmo espasmo
é tudo boca boca boca boca
sessenta e nove vezes boquilíngua.
85
Dionysii Halicarnasei quae Exstant, vol. 6; ed. H. Usener, L. Radermacher; Leipzig: Teubner, 1929,
Fragmento 31, 2, 10-31, 2, 11, 16):
Ὁ δ' οὖν Αἰσχύλος πρῶτος ὑψηλός τε καὶ τῆς Ésquilo foi o primeiro a utilizar o estilo sublime,
μεγαλοπρεπείας ἐχόμενος, καὶ ἠθῶν καὶ παθῶν τὸ detentor de magnificência, conhecedor do que é
πρέπον εἰδώς, καὶ τῇ τροπικῇ καὶ τῇ κυρίᾳ λέξει adequado aos caracteres e às paixões, adornando-se
διαφερόντως κεκοσμημένος, πολλαχοῦ δὲ καὶ eminentemente com uma linguagem de sentido próprio
αὐτὸς δημιουργὸς καὶ ποιητὴς ἰδίων ὀνομάτων καὶ e figurado, sendo ele mesmo, em muitos passos, artífice
πραγμάτων, Εὐριπίδου δὲ καὶ Σοφοκλέους καὶ e criador de palavras somente suas e de assuntos, mais
ποικιλώτερος ταῖς τῶν προσώπων ἐπεισαγωγαῖς. variado que Eurípides e Sófocles na apresentação das
Σοφοκλῆς δὲ ἔν τε τοῖς ἤθεσι καὶ τοῖς πάθεσι personagens. Sófocles distingue-se nos caracteres e nas
διήνεγκεν τὸ τῶν προσώπων ἀξίωμα τηρῶν· paixões, salvaguardando a nobreza das personagens.
Εὐριπίδῃ μέντοι τὸ ὅλον ἀληθὲς καὶ προσεχὲς τῷ Ora a Eurípides agradou-lhe tudo o que fosse autêntico
βίῳ τῷ νῦν ἤρεσεν· ὅθεν τὸ πρέπον αὐτὸν καὶ e próximo da actualidade da vida. É por isso que em
κόσμιον πολλαχοῦ διέφυγεν, καὶ οὐχὶ τὰ γεννικὰ muitos passos se afasta do que é adequado e belo, e não
καὶ μεγαλοφυῆ τῶν προσώπων ἤθη καὶ πάθη καθά consegue obter, como o fizera Sófocles, a nobreza e a
περ Σοφοκλῆς κατώρθωσεν· εἰ δέ τι ἄσεμνον καὶ magnificência das personagens nos caracteres e nas
ἄνανδρον καὶ ταπεινόν, σφόδρα ἰδεῖν ἔστιν αὐτὸν paixões. Pelo contrário, se algo há de menos digno, de
ἠκριβωκότα. καὶ Σοφοκλῆς μὲν οὐ περιττὸς ἐν τοῖς menos corajoso e vulgar, é muito possível ver então que
λόγοις, ἀλλ' ἀναγκαῖος· ὁ δὲ Εὐριπίδης πολὺς ἐν o reproduz com rigor. Sófocles é excessivo nas
ταῖς ῥητορικαῖς εἰσαγωγαῖς. καὶ ὃ μὲν ποιητικός introduções retóricas. Um é poético no vocabulário e,
ἐστιν ἐν τοῖς ὀνόμασι, καὶ πολλάκις ἐκ πολλοῦ τοῦ muitas vezes, precipitando-se da muita grandeza no
μεγέθους εἰς διάκενον κόμπον ἐκπίπτων οἷον εἰς bombástico vazio, desce, por exemplo, para a
ἰδιωτικὴν παντάπασι ταπεινότητα κατέρχεται· ὃ δὲ
vulgaridade da vida privada, em todas as formas. O
οὔτε ὑψηλός ἐστιν οὔτε μὴν λιτός, ἀλλὰ κεκραμένῃ
outro não é sublime nem humilde, mas recorre ao meio
μεσότητι τῆς λέξεως κέχρηται.
termo do estilo compósito.

(Tradução de Raul Miguel Rosado Fernandes).


86 Ovídio emprega duas vezes exiguus para figurar a elegia amorosa nos Amores: 3, 1, 40, Obruit exiguas regia
uestra fores, “vossos palácios [i. e. o próprio gênero da grandiosa Tragédia] aniquilam as pequenas portas”
[i. e. as tênues elegias]; e v. 67, Exiguum uati concede, Tragoedia, tempus, “Ao vate, Tragédia, concede um
pouco de tempo [scilicet ‘já que elegia é de pouca monta’]. Emprega também nos Fastos, 2, 4. Para tenuis e
cognatos, cf. Am. 3, 1, 9, Forma decens, uestis tenuissima, uultus amantis, “A beleza é decorosa, o vestido
tenuíssimo, o rosto de amante”. Para significar a pequenez relativa do gênero elegíaco há ainda o emprego
técnico de lĕuis, “leve”, logo após o exiguus na passagem já citada dos Am. 3, 1, 41, Sum leuis et mecum leuis est,
mea cura, Cupido!, “Sou ligeira e comigo é ligeiro Cupido, meu cuidado!”
87Rostagni, pp. 24-25 n. 77.
88 Skinner (2003), p. xii: “For I had already begun to think of 65 through 116, the complete group of
poems in elegiac meter, as a libellus arranged by the author himself, which had once circulated
independently before it came to occupy its present position at the end of the liber Catulli”.
89EMBORA...GERAR: Etsi...expromere. A idéia destas orações concessivas só se completa no verso 15, com a
oração principal EM TANTA DOR PORÉM, após a longa intercalação parentética.
90 HÓRTALO: Ortale, de Ortalus, provavelmente Quinto Hortênsio Hórtalo, poeta, historiógrafo e orador

asianista, adversário de Cícero no processo contra Verres.


91 BOM FRUTO: dulces fetus, literalmente “doces frutos”; são os poemas.
92 DAULÍADE: Daulias, “a nascida em Dáulis”. Túcidides conta (2, 29, 3):
147

ὁ μὲν ἐν Δαυλίᾳ τῆς Φωκίδος νῦν καλουμένης em Dáulis, na região hoje chamada Fócida e
γῆς ὁ Τηρεὺς ᾤκει, τότε ὑπὸ Θρᾳκῶν habitada naquele tempo pelos trácios, vivia Tereu e
οἰκουμένης, καὶ τὸ ἔργον τὸ περὶ τὸν Ἴτυν αἱ lá pelas mulheres foi morto Ítis. Por isso, muitos
γυναῖκες ἐν τῇ γῇ ταύτῃ ἔπραξαν (πολλοῖς δὲ
poetas, quando mencionam o rouxinol, chamam-no
καὶ τῶν ποιητῶν ἐν ἀηδόνος μνήμῃ Δαυλιὰς ἡ
ὄρνις ἐπωνόμασται “o pássaro de Dáulis.

93 BATÍADA: Battiadae, de Battiada. É Calímaco de Cirene (300–240 a.C.), principal modelo da poesia de
Catulo.
94 Cf. no capítulo I, a tradução em verso.

95cf. HOR. Ars 86: Discriptas seruare uices operum que colores / cur ego, si nequeo ignoroque, poeta salutor?, “se não
posso nem quero observar as funções prescritas e os tons característicos dos gêneros, por que sou saudado
como poeta?”.
96Cf. 68b, vv. 67-68: is clausum lato patefecit limite campum, / isque domum nobis isque dedit dominam,
dominam “Ele as vias
me abriu em campo ocluso largas, / me deu morada e deu-me à sua dona ”, em que há ambigüidade de
“dona, senhora da casa” ou “dona, senhora dele”.
97 Cf. CATUL. 68b, 34-35: “em Roma vivo: aí é minha casa, / aí, minha morada, aí desfruto a vida” (hoc
fit, quod Romae uiuimus; illa domus, / illa mihi sedes, illic mea carpitur aetas).
98 Alves pp. 69-71.
99 ARTE: Arte de Amar, que teria sido a causa do desterro; cf. Tr. 1, 7-8 e 61; 3, 14, 6; Pont. 1, 2, 136.
100 UM SÓ HOMEM: talvez Augusto, que o desterrou e nunca o anistiou.
101 ESTE PÉ: hoc pede; o dístico elegíaco.
102 LICAMBES: diz a lenda que recusou a mão da filha a Arquíloco, que então compôs tão iambos
violentos, que pai e filha se enforcaram. Cf. HOR. Epod. 6,13; Ep. 1, 19, 25-31; Ars 79; MART. 7, 12, 6.
103 FILHO DE BATO: Battiades; Calímaco, filho de Bato.
104Cf. nesta Primeira Parte, Capítulo 1.4, ORALIDADE E OUTRAS INCONSEQÜÊNCIAS.
105 Em rigor, Ovídio trai o gênero iâmbico porque mitiga a difamação ao ocultar o nome, de modo que
neutraliza a má fama que produziria no inimigo. Na verdade, ocultando o nome mas dando pistas dele,
Ovídio quer também inserir na elegia, matizando-a mais ainda, um procedimento próprio de espécie de
epigrama, que é o enigma.
106 A mesma tópica ocorre em:
HOR. Carm. 2, 20, 1-5:
Non usitata nec tenui ferar Não com usada, não com débil pluma
pinna biformis per liquidum aethera pelo líqüido ar biforme vate
uates neque in terris morabor voarei; nem mais tempo sobre a terra
longius inuidiaque maior serei; maior que a inveja
urbis relinquam. deixarei as Cidades.

HOR. Carm. 3, 1, 1-4:


Odi profanum uolgus et arceo. Aborreço o profano vulgo, e afasto.
fauete linguis: carmina non prius Calai-vos: eu das Musas Sacerdote
audita Musarum sacerdos às virgens e ais meninos versos canto,
uirginibus puerisque canto. nunca até agora ouvidos.

(Tradução de Elpino Duriense; HORACIO FLACCO (1807), Vol. I, pp. 223 e 5 respectivamente).
148

HOR. Ep. 1, 1, 1-4:


Prima dicte mihi, summa dicende Camena, Dei-te os primeiros sons da minha Lira,
spectatum satis et donatum iam rude quaeris, e teus serão seus últimos acentos;
Mas por que tentas, ínclito Mecenas,
Maecenas, iterum antiquo me includere ludo? envolver-me outra vez na antiga arena, /[...]
non eadem est aetas, non mens. A idade é outra, o espírito diverso.

(Tradução de Antônio Luís de Seabra. HORACIO FLACCO, s/d, p. )

HOR. Ep. 1, 19, 23-25:


Parios ego primus iambos os iambos Pários eu fui o primeiro que
ostendi Latio, numeros animosque secutus mostrei ao Lácio, imitando o ritmo e o ânimo
Archilochi, non res et agentia uerba Lycamben. de Arquíloco, não a matéria e as palavras dirigidas a Licambes.

VERG. G. 1, 8-14:
temptanda uia est, qua me quoque possim Tentemos pois também por nova estrada
para o templo imortal voar da Fama.
tollere humo uictorque uirum uolitare per ora.
Sim, ó Mântua, se o céu me estende os dias,
Primus ego in patriam mecum, modo uita supersit, eu prometo trazer do Heliconte
das nove Irmãs o coro gracioso:
Aonio rediens deducam uertice Musas;
hei de fer o primeiro, que em teus campos
primus Idumaeas referam tibi, Mantua, palmas, plantará lduméia as altas palmas
nessas margens fecundas, onde o Míncio
et uiridi in campo templum de marmore ponam
serpenteia por entre as louras canas
propter aquam, tardis ingens ubi flexibus errat minhas mãos erguerão marmóreo templo,
no meio brilhará sublime o busto
Mincius et tenera praetexit harundine ripas.
do magnânimo César sobre um trono:
(Tradução de Antonio José Ozorio de Pina; PINA, pp. 101-102).

LUCR. 1, 927-934:
sed acri
Mas pelo coração me entra pungente
percussit thyrso laudis spes magna meum cor alta esperança de inefável glória,
et simul incussit suauem mi in pectus amorem que simultaneamente a alma me imerge
no delicioso amor das castas Musas.
Musarum, quo nunc instinctus mente uigenti E, animado por ele, ardente rompo
auia Pieridum peragro loca nullius ante nos ínvios campos, que o Permesso lava,
e nunca antes de mim trilhados foram.
trita solo. iuuat integros accedere fontis
Ir me apraz a beber em fontes virgens,
atque haurire iuuatque nouos decerpere flores colher me apraz desconhecidas flores,
insignemque meo capiti petere inde coronam, e c’roa insigne entretecer com elas,
que me circunde a frente assoberbada,
unde prius nulli uelarint tempora Musae. Qual nunca as Musas a ninguém urdissem.

(Tradução de Antônio José de Lima Leitão; LUCRÉCIO, p. 43).

LUCR. 1, 117-120: Como o cantou nosso Ênio, que o primeiro


Ennius ut noster cecinit, qui primus amoeno do risonho Hélicon desceu à Itália
detulit ex Helicone perenni fronde coronam,
ornado de um laurel imarcescível,
per gentis Italas hominum quae clara clueret;
que terá sempre perenal renome.
149

(Tradução de Antônio José de Lima Leitão; LUCRÉCIO, p. 8).


Andrea Cucchiarelli (VIRGILIO MARO, p. 324), comentando prima do verso 1 da Bucólica 6 (Prima Syracosio
dignata est ludere uersu), diz: “Nel senso di “dapprima”, “all’inizio” […] concetto raffrontabile in HOR. Ep. I,
I, I prima... Camena); ma non manca di essere suggerita marginalmente l’idea del primato, tanto più nel
nesso con il subito sucessivo Syracosio (uersu); esplicita rivendicazione, invece, in G. 3, 10 primus ego (ma già
LUCR. I, 926-930; e anche I, 117-118, a proposito di Ennio; cf. HOR. Ep. 1, 19, 23 Parios ego primus iambos);
sembra, dunque, che il ‘principiante’ Virgilio non avesse avuto bisogno di interventi divini, a differenza di
Callimaco: fr. 1, 21(Pf.)”.
107A imagem do poeta como o cavalo que deverá esforçar-se em vez de repousar muito evoca o cavalo,
mas em sentido oposto, a que o gramático Dídimo Calcêntero, muitas páginas atrás, comparava o
pentâmetro afeito aos mortos e depois a querelas de namorados.
108 Flores (2008), pp. 364 e 366.
109 SE DIVERTIU: ludi, de ludere, verbo que reúne ainda os sentidos de “brincar”, “escrever”, “compor”,
“desempenhar”; cf. play, em inglês.
110 CÉSAR: Caesar. Augusto. Esta passagem é provavelmente a dedicatória original dos Fasti.
111 TÍTULOS: nomen; cf. OLD 4c. GLÓRIA: titulos; cf. OLD 7.
150

CAPÍTULO 4

Coliseu no Centro do Mundo: o Livro dos Espetáculos, de


Marcial, e os Epigramas em que Se Narram Combates,
Naumaquias e até como alguns Infelizes Foram Cruelmente
Jogados às Feras.

1. ESPETÁCULOS, JOGOS

Compreender os espetáculos supõe conhecer uma instituição muito particularmente


romana, que são os Jogos: para dizer melhor, não sendo exclusividade dos romanos a
existência de práticas agonísticas, compreender os espetáculos supõe conhecer a
particularidade que tinham em Roma os Jogos, os Ludi, como eram chamados. Os Jogos
provieram da Etrúria, o que bem lhes mostra a antigüidade, e na origem eram ofício aos
deuses. Com o tempo, quando já se haviam institucionalizado sob o nome de “Grandes
Jogos” (Ludi Magni) e depois “Jogos Romanos” (Ludi Romani), ligaram-se mais ao culto de
Júpiter Capitolino, de Marte e da deusa Robigo, mas criaram-se depois outros Jogos para
outros deuses e a duração de cada um estendeu-se progressivamente. Dividiam-se entre “jogos
cênicos”, ludi scaenici – que, antes de tornar-se representações dramáticas, na origem eram
pantomimas, danças miméticas acompanhadas de flauta – e “jogos circenses”, ludi circenses,
que eram corridas de cavalos que aconteciam nos circos1. Os jogos cênicos ocorriam nos
teatros, que de início eram palcos provisórios feitos de madeira e após, na República, eram
permanentes, feitos de pedra, como o Teatro de Pompeu (consagrado em 55 a.C., o primeiro
151

teatro permanente), o Teatro de Balbo (traçado em 13 a.C.) e o Teatro de Marcelo (planejado


pelos arquitetos de César e concluído em 11 a.C. pelos de Augusto), nos quais as
representações eram então tragédias e comédias, como as conhecemos. Os jogos circenses
consistiam de corridas de carros, puxados por uma ou mais parelhas, e ocorriam nos circos
adrede construídos, como o Circo Máximo, o maior, mais antigo e modelo de outros dois, o
Circo de Flamínio (construído pelo censor Flamínio Nepos em 221 a.C.) e o Circo de Gaio
(construído por Calígula). Conforme os circos aperfeiçoavam os recursos técnicos,
aumentavam-se o número de provas, as manobras e as modalidades, que incluíram pugilato,
ginástica e provas de fundo.

2. ANFITEATRO E OS ANTIGOS SACRIFÍCIOS FÚNEBRES

Circo e teatro são espaços diferentes do anfiteatro. Anfiteatro, que é o espaço inerente
aos espetáculos de que Marcial trata, é criação romana, devida a outra instituição que o não é
menos, a gladiatura. O combate mortal de gladiadores, que causa espécie em estudiosos muito
sensíveis, substituiu, segundo fontes antigas, os sacrifícios humanos, igualmente terríveis, que
parecem provocar menos pruridos, contudo, nos estudiosos de outras culturas e civilizações
cruentas, como as pré-colombianas e algumas africanas. Sobre os sacrifícios em Roma, num
livro também intitulado Sobre os Espetáculos (De Spetaculis, 12, 1-4), Tertuliano (fim do século II
d.C.) testemunha a seu modo a transformação de sacrifícios humanos em divertimento
(uoluptate, 3), que consiste de combate gladiatório (indicado por metonímia, armis eruditos, 3),
atrocidades requintadas (humaniore atrocitate, 1) e dilaceramento do corpo humano por feras
(feris humana corpora dissiparentur, 4):

1. Superest illius insignissimi spectaculi ac 1. Falta o exame daquele espetáculo que é o mais
receptissimi recognitio. Munus dictum est ab famoso e o mais difundido. É chamado munus,
officio, quoniam officium etiam muneris “obrigação”, a partir da idéia de “dever”2 [officium],
nomen est. Officium autem mortuis hoc porque também se denomina “dever” a obrigação.
spectaculo facere se ueteres arbitrabantur, Os antigos acreditavam que com este espetáculo
celebravam ofício aos mortos e depois nele inseriram
posteaquam illud humaniore atrocitate
atrocidades mais requintadas, 2. pois como
temperauerunt. 2. Nam olim, quoniam animas acreditavam outrora que a alma dos mortos era
defunctorum humano sanguine propitiari aplacada com sangue humano, os antigos
creditum erat, captiuos uel mali status seruos compravam prisioneiros ou escravos de má condição
mercati in exequiis immolabant. 3. Postea e os imolavam nas exéquias. 3. Depois aprouve-lhes
placuit impietatem uoluptate adumbrare. ocultar a impiedade por meio de divertimento. Então
Itaque quos parauerant, armis quibus tunc et aos prisioneiros e escravos que haviam já treinado
qualiter poterant eruditos, tantum ut occidi nas armas o melhor que podiam apenas para que
discerent, mox edicto die inferiarum apud aprendessem a ser mortos, mais tarde, no dia
tumulos erogabant. Ita mortem homicidiis marcado para as inférias, eles os sacrificavam junto
aos túmulos. Assim consolavam-se da morte com
consolabantur. 4. Haec muneri origo. Sed
homicídios. 4. Esta é a origem do munus. Mas aos
paulatim prouecti ad tantam gratiam, ad poucos os antigos atingiram tanto requinte, quanta
quantam et crudelitatem, quia ferarum crueldade, porque já não se satisfazia o divertimento
152

uoluptati satis non fiebat nisi et feris humana destas feras humanas, a não ser que corpos humanos
corpora dissiparentur. fossem estraçalhados pelas feras.

No testemunho de Sérvio a seguir (Comentário aos Livros da Eneida de Virgílio, 3, 67), o


sangue é ainda o que aplaca já não diretamente os mortos, senão os deuses infernais (inferis),
mas o meio originário de obtê-lo eram as feridas que as carpideiras se produziam no rosto e
mais tarde o sacrifício animal. Sérvio acrescenta haver também sacrifícios humanos, depois
substituídos por lutas (pugnauerunt), isto é, a gladiatura, cujo fim era a morte:

Varro quoque dicit mulieres in exsequiis et Varrão também diz que no lamento que ocorria nas
luctu ideo solitas ora lacerare, ut sanguine exéquias as mulheres costumavam lacerar o rosto para
ostenso inferis satisfaciant; quare etiam aplacar os deuses infernais exibindo o sangue; por isso
institutum est, ut apud sepulcra et uictimae instituiu-se sacrifício de animais diante dos sepulcros.
caedantur. Apud ueteres etiam homines Entre os antigos eram sacrificados até mesmo seres
interficiebantur, sed mortuo Iunio Bruto humanos, mas, quando Júnio Bruto morreu, muitas
cum multae gentes ad eius funus captiuos famílias mandaram escravos ao funeral e então o neto
misissent, nepos illius eos qui missi erant dele os dispôs uns contra os outros e assim lutaram:
inter se composuit, et sic pugnauerunt: et como tinham sido mandados a título de munus
quod muneri missi erant, inde munus [“dádiva fúnebre”], a prática desde então foi chamada
appellatum. munus [“dádiva fúnebre” e também “dever”].

Os testemunhos mostram que os combates gladiatórios tinham caráter funerário, que


mantiveram até a morte de Júlio César, em 44 a.C. e não deixam de notar que foram
chamados munus, termo que vincula, como bem visto, as acepções de “dever” e “dádiva”:
aquelas mortes eram dádiva sacrificial à divindade, a cuja pujança acrescentavam mais
potência, a reverter-se depois em benefício humano, e eram assim dever de quem oficiava o
ritual3. Mas embora os testemunhos ressaltem o crescente requinte e o luxo cada vez maior,
não mencionam que, mercê do extraordinário favor do público, esses munera gladiatoria
privados passaram à esfera pública em 105 a.C., quando a Cidade inaugurou os combates
gladiatórios por ela organizados: aqui na verdade ganharam o nome de munus. Esses autores
não patenteiam tampouco o ter sido usados na República como meio ilegal de obter votos, até
tornar-se no Império instrumento de governo, já que Augusto obrigou por lei os magistrados
municipais a prestar um munus gladiatorium anual, e os magistrados urbanos, isto é de Roma, a
prestá-los bianuais: o munus gladiatorium era agora obrigação inerente a cargo público, era
dever dos magistrados. Ademais, os combates de gladiadores, embora fossem disputa, não
eram ludi, não eram de fato “jogos”, porque ao levar à morte, pertenciam à esfera do que é
sério e fatal, não ao agonismo sem fatalidade, que é o verdadeiro sentido de ludus. Por isso,
não ocorriam nos circos, local de jogos, mas no Fórum ou nas praças da cidade. Contudo,
como, de um lado, era enorme o fascínio do povo pela gladiatura, e como de outro, já sob o
Império, os jogos circenses com feras se haviam desenvolvido demais para ocorrer com a
devida segurança nos circos, os romanos inventaram um espaço mecanicamente reversível
153

que a um tempo atendia com muito engenho às necessidades técnicas das encenações com
animais, servia como teatro tradicional e podia acolher também os munera gladiatoria, que
acabaram assim por dividir espaço com ludi, tanto circenses, como cênicos: esse espaço é
exatamente o Anfiteatro4. Portanto, a correlação mais exata entre recintos e respectivas
exibições no Império é a seguinte: nos circos ocorriam jogos circenses, que constavam
fundamentalmente de corridas de bigas, trigas, quadrigas, carros de cinco e até de seis parelhas;
acrobacias com montarias, combates a cavalo simulados. Nos teatros assistia-se a jogos
cênicos, constituídos de tragédias, comédias, mimos. Nos anfiteatros – como o Anfiteatro de
Tauro (reformado por Augusto em 2 a.C.), o Anfiteatro Castrense (construído por Trajano) e
o Anfiteatro Flávio, cuja inauguração Marcial homenageia com o livro – podiam ocorrer
jogos cênicos por causa da reversibilidade do recinto, mas sobretudo aconteciam ali o que
genericamente se denomina “espetáculos”, razão pela qual o termo integra o título do Livro dos
Espetáculos, com justiça a julgar pelo que se expectava:

→ luta entre feras, epigrama 9:

Praestitit exhibitus tota tibi, Caesar, harena Mostrado em toda a arena a ti, César, combates
quae non promisit proelia rhinoceros. deu o rinoceronte, inesperados.
O quam terribilis exarsit pronus in iras! Quão terrível ardeu, cabeça baixa, irado!
Quantus erat cornu, cui pila taurus erat! Que chifre, ao qual o touro foi boneco!

→ homem e fera, epigrama 23:


Dorica tam certo uenabula derigit ictu Certeiro golpe, dardos dóricos lançou,
fortis adhuc teneri dextera Carpophori. a destra forte de um rapaz: Carpóforo!
Ille tulit geminos facili ceruice iuuencos, De juvencos um par ergueu no fácil dorso:
illi cessit atrox bubalus atque bison. o fero búfalo e o bisão prostraram-se;
Hunc leo cum fugeret, praeceps in tela cucurrit. 5 fugindo-lhe, um leão correu de encontro às lanças.
I nunc et lentas corripe, turba, moras. Vai, turba, agora, reclamar da espera!

→ naumaquia, epigrama 24:

Si quis ades longis serus spectator ab oris, Se, espectador tardio chegas de ermas plagas
cui lux prima sacri muneris ista fuit, e em jogos sacros esta é a vez primeira,
ne te decipiat ratibus naualis Enyo não te engane a naval Enio com as naus
et par unda fretis, hic modo terra fuit. e ondas como o oceano: isto era terra.
Non credis? Spectes, dum lassant aequora Martem: 5 Não crês? Assiste enquanto as águas cansam Marte:
parua mora est, dices:“Hic modo pontus erat”. não demora, dirás: “isto era mar”.

(Tradução de Fábio Paifer Cairolli e João Angelo Oliva Neto)5


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→ condenação às feras (damnatio ad bestias) epigrama 8:

Daedale, Lucano cum sic lacereris ab urso, Enquanto te lacera o urso da Lucânia,
quam cuperes pennas nunc habuisse tuas! Dédalo, bem querias ter tuas asas.

→ execução integrando cena de tragédia, epigrama 7:

Qualiter in Scythica religatus rupe Prometheus Qual Prometeu, ao monte cítio preso, pasto
adsiduam nimio pectore pauit auem, do nímio peito deu à assídua ave –
nuda Caledonio sic uiscera praebuit urso pendendo de uma cruz não falsa, entranhas nuas
non falsa pendens in cruce Laureolus. ao urso caledônio deu Lauréolo.
Viuebant laceri membris stillantibus artus 5 Jorrando, ainda viviam membros lacerados
inque omni nusquam corpore corpus erat. e em todo o corpo corpo já não tinha.
Denique supplicium dederat necis ille paterna, Castigo teve enfim bem justo: degolara
uel domini iugulum foderat ense nocens, cruel o pai ou o senhor a espada
templa uel arcano demens spoliauerat auro, ou, demente, do altar roubara o ouro oculto
subdiderat saeuas uel tibi, Roma, faces. 10 ou te entregara, Roma, ao fogo atroz.
Vicerat antiquae sceleratus crimina famae, Crimes venceu de antiga fama o celerado,
in quo, quae fuerat fabula, poena fuit. no qual a fábula tornou-se pena.

→ combate gladiatório com dois vencedores, epigrama 29:

Cum traheret Priscus, traheret certamina Verus, Quando Prisco sustinha, quanto Vero, a luta,
esset et aequalis Mars utriusque diu, e Marte a equilibrava longamente,
missio saepe uiris magno clamore petita est; pediu-se com clamor mercê aos lutadores,
sed Caesar legi paruit ipse suae: mas César submeteu-se à própria lei:
lex erat, ad digitum posita concurrere parma: 5 SEM O ESCUDO LUTAR ATÉ SUBIR UM DEDO
quod licuit, lances donaque saepe dedit. e ofertou, como pôde, pratos, prêmios.
inuentus tamen est finis discriminis aequi: Mas encontrou-se um fim à pugna irresoluta:
pugnauere pares, subcubuere pares. Iguais! na luta, e iguais!, ao se render.
misit utrique rudes et palmas Caesar utrique: César outorga aos dois a vara, aos dois a palma,
hoc pretium uirtus ingeniosa tulit. 10 e a tão hábil coragem teve prêmio.
Contigit hoc nullo nisi te sub principe, Caesar: Príncipe algum – só tu, César – viu algo assim:
cum duo pugnarent, uictor uterque fuit. num combate de dois os dois vencerem.

É bem na luta de gladiadores, que se executavam todo dia os milhares de prisioneiros


sentenciados a morrer combatendo (damnatio ad gladium), a morrer enfrentando feras (damnatio
ad feras) e até mesmo encenando uma tragédia (Lauréolo, epigrama 7), em que a morte da
personagem não era representada mas sensacionalmente apresentada na própria peça: o
suplício era espetáculo, o sangue derramado em público e para o público integrava, por bruto
que fosse, a força coesiva da comunidade, porque era sangue de condenados e por isso
considerado impuro6.

3. O LIVRO DOS ESPETÁCULOS

O Livro dos Espetáculos creio que é o único livro de epigramas da Antigüidade dotado de
unidade temática, organizado pelo próprio autor, não coleção organizada por antologistas. É
o primeiro de Marcial como se disse, é diferente de todos os outros 15 livros e diga-se logo que
a diferença não se deve nem à juventude nem ao noviciado do poeta. Dos 33 poemas nenhum
155

é invectivo nem obsceno, como a maioria dos outros que compôs, porque, festivos, celebram a
inauguração do Anfiteatro com o que o poeta louva Tito, exaltando-o como fautor da obra.
Até aqui não há nada de particularmente notável, pois já era muito praticada a espécie
epigramática laudatória, também chamada epidítica, cujos melhores exemplos gregos foram
depois reunidos no volume 9 da Antologia Palatina, dedicado também a essa espécie
(ἐπιγράμματα ἐπιδεικτικά, da qual o próprio Marcial compôs vários outros poemas dispersos
por seus livros: a peculiaridade é que o Livro dos Espetáculos é todo laudatório, como se lerá logo
a seguir. Ademais, é bem sabido que em retórica, segundo a concepção de Aristóteles (I, cap.
2 e 9), um dos três gêneros de discurso é denominado precisamente “epidítico” ou
“demonstrativo”, no qual o orador louva as virtudes ou vitupera os vícios de alguém, condição
que Marcial se arroga a si mesmo:

epigrama 2
Hic ubi sidereus propius uidet astra colossus Aqui, onde o Colosso vê o céu de perto
et crescunt media pegmata celsa uia, e em plena via se erguem altos pegmas,
inuidiosa feri radiabant atria regis brilhavam do feroz tirano odiosos átrios:
unaque iam tota stabat in urbe domus. de toda a urbe a única mansão.
Hic ubi conspicui uenerabilis amphitheatri 5 Aqui onde se vê do ANFITEATRO erguer-se
erigitur moles, stagna Neronis erant. o augusto prédio, Nero tinha os lagos.
Hic ubi miramur uelocia munera thermas, Aqui, onde louvamos dom veloz – as termas
abstulerat miseris tecta superbus ager. – campo altivo se fez das casas pobres.
Claudia diffusas ubi porticus explicat umbras, 10 Onde a porta de Cláudio estende largas sombras
ultima pars aulae deficientis erat. findava a ala última do paço.
Reddita Roma sibi est et sunt te praeside, Caesar, Guiaste, e Roma a si foi devolvida, César,
deliciae populi, quae fuerant domini. e o povo tem prazeres de senhores.

“Colosso” (colossus, v. 1) é a estátua monumental de Nero, por causa da qual na Idade Média o
Anfiteatro por corruptela recebeu o nome de “Coliseu”; “altos pegmas” (pegmata celsa, v. 2) são
o maquinário de construção do edifício ou talvez o maquinário utilizado nas encenações do
anfiteatro; “odiosos átrios” (inuidiosa atria, v. 3) é a Domus Aurea, o “Palácio de Ouro”, que
Nero, “o feroz tirano” (feri regis, v. 3), fez construir e que, após morrer, foi posto abaixo para
levantar o Anfiteatro. As termas públicas, por seu turno, são benfeitoria erguida com rapidez
(“dom veloz”, uelocia munera, v. 7) sobre terras que Nero confiscara à gente humilde (“campo
altivo”, isto é, soberbo, superbus ager, e miseris, v. 9), privando-a de moradia (abstulerat tecta, v. 9),
mas, com o advento de Tito, Roma foi devolvida a si mesma, entenda-se, aos romanos, de
sorte que o povo pôde desfrutar de prazeres próprios de grãos senhores (deliciae populi, quae
fuerant domini, v. 13). Descrevem-se aqui o canteiro de obras que foi a demolição da Domus
Aurea e a construção do Coliseu, e também o efeito do novo edifício sobre o povo: vemos o
palco, mas ainda não assistimos aos espetáculos. Suetônio (70–140? d.C.) na “Vida de Tito”,
156

11o capítulo da Vida dos Doze Césares, testemunha a inauguração do Anfiteatro, a construção do
balneário e o empenho em realizar jogos para a plebe:

7. Nulli [Titus] ciuium quicquam ademit; 7. Tito não fez mal a ninguém; respeitou sempre os
abstinuit alieno, ut si quis umquam; ac ne bens alheios e nem sequer quis receber os presentes
concessas quidem ac solitas conlationes costumados. No entanto, em magnificência não foi
recepit. Et tamen nemine ante se inferior a nenhum dos seus predecessores. Depois de
munificentia minor, amphitheatro inaugurar o Anfiteatro e de ter rapidamente
dedicato thermisque iuxta celeriter
construído perto dele uma estação de banhos, ofereceu
extructis munus edidit apparatissimum
largissimumque; dedit et nauale proelium jogos dos mais ricos e prolongados. Fez outrossim
in ueteri naumachia, ibidem et gladiatores representar uma batalha naval na antiga Naumaquia.
atque uno die quinque milia omne genus Deu também um combate de gladiadores e apresentou,
ferarum. num só dia, cinco mil feras de toda a espécie.

(Tradução de João Gaspar Simões).

O que é de certa forma inédito no universo do epigrama latino é rematado na etapa seguinte,
quando Marcial ratifica o louvor de Tito mediante descrição de espetáculos que com tamanha
magnificência só podiam ocorrer no anfiteatro recém-inaugurado. Ao fazê-lo, o poeta lança
mão de outra espécie epigramática, a descritiva ou ecfrástica – a que é consagrado, por
exemplo, o volume 2 da Antologia Palatina – e com isso funde num só livro e amiúde num só
poema, como o que segue, as espécies laudatória e descritiva:

epigrama 6
Belliger inuictis quod Mars tibi seruit in armis, Que Marte bélico te fira – invictas armas –
non satis est, Caesar, seruit et ipsa Venus. não basta: Vênus fere-te também.
Prostratum uasta Nemees in ualle leonem Fama ilustre ao leão cantava derrubado
nobile et Herculeum fama canebat opus. no vale de Neméia, hercúleo esforço.
Prisca fides taceat: nam post tua munera, Caesar, 5 Cale-se a crença antiga, César: por teus dons
hoc iam feminea uidimus acta manu. vimos uma mulher fazer o mesmo.

O poema agrega descrição de luta, em que um leão é abatido por uma mulher, ao elogio de
Tito, “César”, propiciador do espetáculo, cujo caráter prodigioso é evidenciado por ser mais
inaudito do que o feito mítico, duplamente fabuloso!, de Hércules: segundo o discurso do
epigrama, os romanos agora, para admirar prodígios, podem prescindir do mito, e assim,
quanto mais prodigioso e inaudito é aquilo a que o povo assiste, mais excelso é o imperador
que o propicia. Suetônio, na “Vida de Domiciano”, 12o capítulo do livro Vida dos Doze Césares,
testemunha precisamente o impacto dos espetáculos sobre o público, e menciona, exatamente
como no epigrama, até mesmo a luta de mulheres:

4.   Spectacula   [Domitianus]   assidue   4. Domiciano deu amiúde no Anfiteatro e no Circo


magnifica   et   sumptuosa   edidit   non   in   espectáculos tão dispendiosos quão magníficos. No
amphitheatro   modo,   uerum   et   in   circo,   ubi   Circo, além das corridas habituais de bigas e
praeter  sollemnes  bigarum  quadrigarumque   quadrigas, ofereceu um duplo combate de cavalaria e
cursus   proelium   etiam   duplex,   equestre   ac   infantaria, e no Anfiteatro uma batalha naval. As
pedestre,   com   misit;   at   in   amphitheatro   caçadas de feras e os combates de gladiadores
157

nauale   quoque.   Nam   uenationes   realizaram-se de noite, à luz de archotes, vendo-se


gladiatoresque   et   noctibus   ad   lychnuchos,   lutar na arena não só homens, mas também mulheres.
nec     uirorum   modo   pugnas,   sed   et   Os questores tinham deixado cair em desuso havia
feminarum.   Praeterea   quaestoriis   muito darem combates de gladiadores aquando da sua
muneribus,   quae   olim   omissa   reuocauerat,   entrada em funções: Domiciano restabeleceu esse
ita   semper   interfuit,   ut   populo   potestatem   costume, assistiu sempre a tais espectáculos e permitiu
faceret   bina   paria   e   suo   ludo   postulandi   ao povo que lhe pedisse dois pares de gladiadores
escolhidos na sua própria escolta, os quais apareciam
eaque  nouissima  aulico  apparatu  induceret.
no final dos jogos em trajo de corte.

O poema e em geral o Livro dos Espetáculos de certa maneira evidenciam um fenômeno


característico do Império, se comparado com período final da República (século I a.C. até 31
a.C.), o deslocamento definitivo do interesse popular, transferido do Fórum, que já não é a
decisiva arena das decisões políticas, ao Anfiteatro7: mudava-se o critério de espetaculosidade,
é o tempo do panem et circenses8. Cênicos ou gladiatórios, os espetáculos, ou antes, o espaço em
que se desenvolviam, Anfiteatro ou Circo, eram agora o centro da Vrbs9, para populares não
menos que para patrícios. Pode-se conjecturar a razão, pois, segundo testemunho do Livro dos
Espetáculos e da Vida dos Doze Césares, no Anfiteatro dramatizavam-se espetacularmente cenas
do mito que envolviam animais, de modo que alguns dos jogos circenses fundiam num só
espetáculo algo dos jogos cênicos, que é o enredo mitológico, ou mais provavelmente parte
dele, com um elemento que, mesmo pertencendo também ao mito, é espetacular e
realisticamente visibilizado por meio da encenação exclusiva dos jogos circenses, e esse
elemento é a luta entre homens e feras. Além disso, como discurso laudatório que também é,
o Livro dos Espetáculos entroniza a própria arena, cerne e metonímia do Anfiteatro e de todo
espaço dos ludi circenses, não apenas como o palco de tudo que já possui renome, como as
fábulas mitológicas, mas também como aquilo que, por sua vez, dá renome nada mais, nada
menos que ao Imperador:

epigrama 5:
Iunctam Pasiphaen Dictaeo credite tauro: Crede: ao touro de Dicte juntou-se Pasífae.
Vidimus, accepit fabula prisca fidem. Vimos: a velha lenda teve fé.
Nec se miretur, Caesar, longaeua uetustas: De si não pasme a longa antigüidade, César:
quidquid fama canit, praestat harena tibi. te dá a arena tudo que tem fama.

Se no epigrama 6, como já dissemos, Tito (Caesar, “César”, v. 5) é propiciador de dons aos


romanos – e o termo é justamente munera, plural de munus (v. 5, post tua munera, “por causa de
teus dons”), que tem ocorrido em todos os textos deste capítulo – no epigrama 5 o Imperador
torna-se destinatário das encenações espetaculares do mito, que são esses mesmos munera, os
quais como dádiva ele não pode receber de si mesmo. Ora, o Imperador os recebe da arena
(Quidquid fama canit, praestat harena tibi, “te dá a arena tudo que tem fama.”, v. 6): assim, no
palco do Anfiteatro quem se apresenta, não menos espetacularmente, é a própria Arena, e por
158

um átimo ela está no mesmo plano de César e até mesmo num plano superior a ele, como
indica o verbo praestare, que antes de significar “dar”, “oferecer”, significa também “ser
superior a”, “ser melhor que”, “ser mais importante que” (OLD, s. v. 1; 2 e 3): com sutil
ambigüidade Marcial lembra ao Imperador e ao leitor que ali, no templo que é a arena, ainda
se celebra, por estranho que pareça, um ritual, isto é, que se está a cumprir aquele velho munus
descrito por Tertuliano e Sérvio10:

O exemplo mais claro da presença do elemento lúdico na sociedade romana é


o grito por panem et circenses. Para ouvidos modernos, a tendência dominante é
detectar neste grito pouco mais do que a necessidade de uma subvenção e de
entrada livre nos cinemas sentida por um proletariado desempregado. Mas
seu significado é mais profundo do que isso. A sociedade romana não podia
viver sem os jogos. Estes eram tão necessários para sua existência como o pão,
pois eram jogos sagrados e o direito que o povo a eles tinha era um direito
sagrado. Sua função essencial não era a simples celebração da prosperidade
que o grupo social havia já conseguido, e sim a consolidação desta e a
garantia de mais prosperidade no futuro através do ritual. Os grandes e
sangrentos jogos romanos eram uma sobrevivência do fator lúdico arcaico sob
uma forma despotencializada. Pouca gente, dentre a embrutecida multidão de
espectadores, tinha um mínimo de consciência das características religiosas
inerentes a esses espetáculos, e a liberalidade do Imperador nessas ocasiões se
limitava a uma simples distribuição de esmolas, em escala gigantesca, a um
proletariado miserável. Mais significativo se torna, portanto, da importância
atribuída à função lúdica pela cultura romana o fato de nenhuma das
inúmeras cidades novas, literalmente construídas sobre a areia, ter deixado de
erigir um anfiteatro, muitas vezes destinado a ser o único vestígio de uma
brevíssima glória municipal a perdurar através dos séculos. (Johan Huizinga,
p. 198).

O Anfiteatro passara a ser assim o centro de Roma, que, capital do Império, era há
muito tempo a cabeça do mundo, de maneira que Anfiteatro, no espaço que lhe é delimitado
durante o tempo do jogo ritual, se torna ele mesmo o centro do mundo:

epigrama 3
Quae tam seposita est, quae gens tam barbara, Caesar, Que povo, César, tanto dista e tanto é bárbaro,
ex qua spectator non sit in urbe tua? que espectador não seja em tua cidade?
Venit ab Orpheo cultor Rhodopeius Haemo, Vem do Hemo (chão de Orfeu) o morador do Ródope,
uenit et epoto Sarmata pastus equo, vem quem comeu cavalo exangue, o sármata,
et qui prima bibit deprensi flumina Nili, quem bebe ao Nilo enfim achado a água primeira
et quem supremae Tethyos unda ferit; e quem de Tétis fere a onda última.
festinauit Arabs, festinauere Sabaei, O árabe acorreu, acorreram sabeus,
et Cilices nimbis hic maduere suis. o cilício aspergiu-se em seu perfume,
Crinibus in nodum tortis uenere Sicambri, veio o sicambro – os caracóis um nó prendia
atque aliter tortis crinibus Aethiopes. – e etíopes com outros caracóis.
Vox diuersa sonat populorum, tum tamen una est, É vária a voz dos povos mas é una a Urbe
cum uerus patriae diceris esse pater. quando te chamam VERO PAI DA PÁTRIA.

A Urbe é o centro do mundo e ao Anfiteatro, centro do centro, acorrem povos dos


quatro cantos, de sul a norte (respectivamente do monte Hemo, no sudeste da Europa, e da
159

Sarmátia, região setentrional da Europa e da Ásia, vv. 3-4), de leste a oeste (respectivamente o
ribeirinho do Nilo e o litorâneo do extremo ocidente, vv. 5-6) a que se somam por variação e
amplificação outros povos dos confins da terra: árabes e sabeus, estes vindos do sul da Arábia;
da Ásia menor, os cilícios; da África, os etíopes e da Germânia, os sicambros (vv. 7-10). No
poema, Marcial faz vir cada um deles desde seus rincões até o Anfiteatro, e o faz
espetacularmente, pois Roma sabemos que era já multiétnica, que era, ela mesma, todo dia
resumo do mundo todo e seu verdadeiro microcosmo. Sob a superfície laudatória, o substrato
histórico do poema e do livro é marcante, porque mais do que descrever o mosaico de povos
que habitavam a cidade, o epigrama bem celebra, e talvez não documente menos, que as
grandes diferenças étnicas – que no texto são estabelecidas pelos imprescindíveis epítetos – e
sobretudo a profusão babilônica de línguas dessa cosmópolis, com o potencial de mal-
entendidos quando não de desentendimentos que carrega, são unificadas pela presença do
Imperador na qualidade de “pai da pátria” (patriae pater, v. 12): a pergunta retórica dos dois
primeiros versos indica que já não há bárbaros, e o único Fórum, a única assembléia capaz de
reunir tantas e tão diferentes pessoas na presença de César é o Anfiteatro11. Mais do que isso,
o poema afirma estabelecer-se entre os vários povos do Império cidadania comum na
aclamação uníssona e unânime de César, como o verdadeiro pai da pátria de todos eles, que
agora é Roma. Em outro texto, Paul Veyne (1992, pp. 300-302), com a linguagem que lhe é
característica, bem detecta na Roma do Império esse fenômeno social:

No entanto, o fato é que a civilização romana, que foi tão injusta e cruel como
muitas outras, dá mais do que as outras a impressão “turística” de uma
sociedade liberal, aberta, serena. Ignora a ordem moral, o racismo e o
sectarismo religioso. Antes da legislação de Constantino (que parece mais
plebéia do que cristã), só alguns tiranos, e entre eles Domiciano, quiseram
fazer reinar a ordem moral; raramente os imperadores cederam a tentação
confuciana de avaliar o seu poder pela moralidade dos indivíduos; não
confundiram a política com o local onde se deve impor um ideal de moral
individual; o aristocratismo romano converte-se em liberalismo. As distinções
entre raças não contavam; os Antoninos descendiam de colonos romanos de
Espanha ou de indígenas naturalizados? Já ninguém o pergunta. Septímio
Severo, cujo reinado marca o apogeu territorial, demográfico, econômico e
jurídico do Império, era um africano cujos antepassados não falavam latim.
[...] Era esta a civilização a que se tinham aculturado todas as etnias do
Império (incluindo a dinastia herodiana e os saduceus). Nos nossos dias, pelo
contrário, a dificuldade de entender as técnicas e os valores ocidentais,
embora muito sedutores, provoca as reações violentas de rejeição e de
integralismo que bem conhecemos. Por que esta diferença? O “teorema de
Tocqueville12” dá-nos a explicação: um grupo humano adota os valores de
uma civilização estrangeira com a condição de não se encontrar, após a
conversão, na última fila dessa civilização. Um chefe índio, escrevia
Tocqueville, preferiria morrer na sua glória defunta e na sua nobre miséria, a
160

encontrar-se no degrau mais ínfimo da sociedade dos brancos. Mas este


teorema não se aplica ao Império romano, onde a cidade, o self-government
local, era a circunscrição administrativa de base. Uma aldeia bárbara que se
romanizava ou se helenizava não se encontrava por isso na última fila da
sociedade greco-romana; pelo contrário, tornava-se de pleno direito uma
cidade greco-romana. Uma tribo africana ou lícia que se urbanizava não se
encontrava na última fila da sociedade imperial. Tornava-se uma das células
constitutivas da civilizacão mundial daquele tempo.

Por fim, percebe-se, então, sob tal perspectiva, que o epigrama 3, último dos que me
parecem exordiais, é, absolutamente estratégico para o Livro dos Espetáculos, pois já não põe em
cena o edifício do Anfiteatro, nem o mito, nem mesmo o cerne do próprio Anfiteatro, que é a
arena – instância derradeira de todo embate – mas o elemento que faltava, o público, na
intrínseca condição de expectador e, mais que tudo, na dupla diversidade com que, como
conjunto de povos, é apresentado: povos bem diferentes e distantes dos romanos itálicos e
povos muito diferentes e distantes entre si. Antes dos embates que logo se seguirão, o público,
que veio ser expectador, torna-se ele mesmo o espetáculo, admirável justamente por não elidir
a diferença em prol de uma romanidade étnica e totalitariamente una, mas enfim por mostrar
que a diversidade é a substância do que Roma passou a ser.
161

Notas do Cruel Capítulo 4

1 Circus designava uma enorme arena alongada em forma de U quase toda dividida longitudinalmente
ao meio por uma espécie de muro em torno do qual se disputavam as corridas de carros,
assemelhando-se ao traçado dos atuais jóquei-clubes. Sobre o U situavam-se os vários tipos de
arquibancada, em disposição semelhante a alguns estádios de futebol. Para descrição completa e
ilustrada ver Smith, s.v. “circus”, pp. 283-284.
2 A PARTIR DA IDÉIA DE “DEVER”: ab officio. Ao pé da letra, o texto latino diz: “[o espetáculo] é
chamado munus a partir de officium”. Tertuliano, que não é gramático, emprega a fórmula ab, “a partir
de”, equivalente à fórmula grega ἀπὸ τοῦ, próprias dos gramáticos antigos para explicar a origem
etimológica de uma palavra, mas não há entre munus e officium paronomásia, isto é, verdadeiro
parentesco, nem acidental paronímia, isto é, semelhança fortuita subjacente à etimologia popular, que
expliquem o emprego da fórmula. Na verdade, Tertuliano, querendo explicar por que se
denominaram munus aqueles espetáculos, indica a sinonímia, parcial que seja, entre munus e officium,
como mostram a seqüência da passagem e o seguinte testemunho de Sexto Pompeu Festo, gramático
do século II d.C. (De Significatione Verborum, “Sobre a Significação das Palavras”, 140, Lindsay): Munus
significat officium, cum dicitur quis munere fungi. Item donum, quod officii causa datur, “Munus significa ‘dever’,
quando de alguém se diz que ‘cumpre seu dever’. Significa também ‘presente’ [ou ‘prêmio’] que é
dado em remuneração de um trabalho”. O jurista Paulo no Digesto de Justiniano (50,16,18) confirma:
“Munus” tribus modis dicitur: uno “donum”, et inde munera dici dari mittiue. Altero “onus”, quod cum remittatur,
uacationem militiae munerisque praestat; inde immunitatem appellari. Tertio “officium”, unde munera militaria et
quosdam milites munificos uocari; igitur municipes dici, quod munera ciuilia capiant, “Munus tem três sentidos: um
é ‘presente’ [donum]; daí dizer-se ‘que se dão presentes em mãos ou que se enviam’. Outro é ‘ônus’
[onus], que, quando é revogado, garante dispensa de serviço militar e outros encargos; daí dizer
‘imunidade’. O terceiro é ‘dever’ [officium], donde provém dizer ‘deveres militares’, assim como
chamar ‘muníficos’ a alguns soldados, e donde analogamente provém dizer ‘munícipes’ dos que
assumem [capere] deveres [munera] civis”.
3 Émile Benveniste (II, pp. 224-225), elucidando acepções contraditórias de mactare, verbo do
vocabulário religioso, que justamente produziu em português “matar”, esclarece: “Mactare deve ser
considerado como o verbo denominativo de mactus, mas a relação de sentido só se elucidará com o
exame dos usos. Os latinos explicam mactus como magis auctus [‘mais aumentado’]. O que devemos
reter dessa interpretação é, não tanto sua forma literal, insustentável, e sim a noção que assim tem sua
persistência comprovada: a de um crescimento, um fortalecimento do deus, obtido por meio do
sacrifício que o alimenta. E indubitável que essa “etimologia popular” de mactus agiu sobre os usos de
macte: macte animo, ‘tem coragem!’, onde macte se explica pelo sentido que se atribuía a mactus. Esse
adjetivo deve ser muito simplesmente um adjetivo verbal, *mag-to, paralelo a *mag-no (latim: magnus).
Não deve admirar que existam duas formas de adjetivo verbal, uma em -to-, a outra em -no- [...].
Assim, o presente denominativo mactare significa ‘tornar grande’, ‘acrescer’, é a operação que põe em
estado de mactus. Os empregos mais antigos, como mactare deum extis [‘aumentar o deus com vísceras’]
comportam o nome do deus no acusativo e o nome do sacrificio no instrumental. Portanto, é tornar o
deus maior, exaltá-lo, e ao mesmo tempo fortalecê-lo pela oferenda. Depois, por uma mudança de
construção análoga a que se conhece em sacrare, estabeleceu-se a expressão mactare uictimam ‘oferecer
em sacrificio uma vitima’. Donde mactare, ‘matar’, conservado no espanhol [e no português!] ‘matar’”.
4 O poeta Décimo Magno Ausônio (c.310–393 d.C.) confirma (Ecl. 23, 33-36): Et gladiatores funebria
proelia notum / decertasse foro: nunc sibi harena suos uindicat, / extremo qui iam sub fine Decembris / falcigerum
placant sanguine Caeligenam, “sabemos que os gladiadores disputaram certames fúnebres no fórum: agora
é a arena que reclama para si os seus, que no último dia de dezembro aplacam com sangue a Saturno,
o deus que porta a foice”.
5Todos os epigramas deste capítulo têm tradução conjunta.
6 Clavel Lévèque detalha: “Assim a proteção simbólica da Cidade atinge o máximo com os munera,
quando os espectadores dispostos em boa ordem – os maiorais com as próprias insíginias, os militares
em uniforme de parada e o príncipe com o traje dos Triunfos – assistem à eliminação, ao
aniquilamento de todos os inimigos reais ou potenciais da ordem: os condenados às feras ou à
162

execução a fio de espada, os rebeldes e os bandidos, os inimigos no cativeiro e os escravos sempre


temidos. Como melhor impregnar nas massas a recusa de todas as revoltas, a repulsa dos agitadores,
dos inimigos internos ou externos? E como melhor difundir nas massas lições de pavor, submissão e
força viril?”; in L’ Empire em Jeux. Espace Symbolique et Pratique Sociale dans le le Monde Romain, Paris / Lyon,
CNRS, 1984, apud Vismara, pp. 71-72, tradução minha. Carcopino (p. 255) dá números: “Mas há mais:
na estrada para a autocracia os espectáculos constituíam um obstáculo à revolução. Na Urbe, em que
as massas incluíam 150.000 homens desocupados, que o auxílio da assistência pública dispensava de
procurar trabalho, e talvez outros tantos trabalhadores que dum extremo ao outro do ano todos os dias
depois do meio do dia ficavam de braços cruzados e aos quais, todavia, era negado o direito de
despender na política a sua disponibilidade, os espectáculos ocupavam o tempo a esta multidão,
cativavam-lhe as paixões, canalizavam-lhe os instintos, davam derivativo para a sua atividade. Um
povo que boceja está maduro para a revolta. Os Césares não deixaram a plebe romana bocejar nem
de fome nem de aborrecimento. Os espetáculos foram a grande diversão para a desocupação dos seus
súditos e por conseqüência o seguro instrumento do seu absolutismo. Rodeando-os de solicitude,
consumindo neles somas fabulosas, cuidaram de assegurar o seu poder”.
7 Florence Dupont (p. 21) registra: “Haveria até uma maneira de contar, uma vez mais, a história de
Roma, pelo viés dos espetáculos, seguindo desde 240 a.C. o avanço do teatro no calendário, no espaço
urbano, na prática política e na ideologia. Acelerada pela transformação da República em Império,
essa progressão do teatro fez que o cidadão romano logo fosse politicamente definido como um
consumidor de espetáculos, enquanto o imperador e o aristocrata eram aqueles que lhe ofereciam tais
espetáculos. A troca e o reconhecimento mútuo faziam-se nos obrigatórios limites do teatro ou do
circo, onde o doador contemplava de seu camarote o palco e ao mesmo tempo as arquibancadas
populares. Quando entrava, o povo dirigia-se a ele para aclamá-lo e às vezes para vaiá-lo. E o mesmo
povo, no fim de um espetáculo que lhe agradara, recompensava-o com bravos. Enquanto durou a
civilização romana, tanto sob a República, como sob o Império, o tempo que o cidadão passava no
teatro era enorme, sobretudo se se compara com o que ocorrera na Grécia”. (Tradução minha).
8 Panem et circenses: “pão e jogos circenses”, notória frase de Juvenal, pertencente ao verso 81 da Sátira
10, cujo contexto é o seguinte: Nam [populus] qui dabat olim / imperium, fasces, legiones, omnia, nunc se /
continet atque duas tantum res anxius optat, / panem et circenses, “o povo que outrora distribuía fasces,
comandos, legiões, tudo!, agora se contém e ansioso só quer duas coisas, pão e jogos circenses”.
9 Paul Veyne (1990, pp. 195-196) ressalta esse papel dos jogos: “A paixão pelas corridas do Circo e
pelas lutas de arena, lamenta Tácito, concorre com o aprendizado da eloqüência junto aos jovens de
boa família [Dial. 29, 3]. Pois os espetáculos interessavam a todos, inclusive a senadores e pensadores;
os gladiadores e os carros não eram prazeres unicamente populares. Sua censura, em geral platônica,
partia do bom senso utópico que aprendemos a conhecer; no teatro, as chamadas pantomimas (o
termo mudou de sentido entre nós: tratava-se de uma espécie de ópera) eram criticadas por favorecer
atitudes efeminadas e às vezes proibidas, ao contrário dos gladiadores, que, por infames que fossem,
tinham o mérito de fortalecer a coragem dos espectadores. Contudo, até suas lutas e as corridas de
carros encontravam censores: tais espetáculos resultavam da tendência humana a complicar a
natureza simples e a preocupar-se com futilidades. Em terra grega, os intelectuais condenavam os
concursos atléticos pelas mesmas razões, que não eram de distinção social; ao que outros intelectuais
replicavam que os atletas davam lição de resistência, vigor moral e beleza. O que não impedia que os
intelectuais assistissem aos espetáculos como todo mundo. Cícero, que se gabava de aproveitar os dias
de espetáculos para escrever seus livros, ia vê-los e relatava-os a seus nobres correspondentes [Fam. 7,
1, 4]; quando sentia uma sombra de melancolia penetrar-lhe a alma, Sêneca ia ao anfiteatro para se
alegrar um pouco [Ep. 7, 3-5]; Mecenas, nobre epicurista sofisticado, pedia a seu fiel Horácio o
programa das lutas [S. 2, 6, 38-45]. Porém Marco Aurélio, como bom filósofo, só assistia aos
gladiadores para cumprir seu dever de imperador: achava que tais combates eram quase sempre a
mesma coisa [M.ANT. 7, 3]. A paixão coletiva ia mais longe; a juventude rica e o bom povo dividiam-
se em facções rivais que apoiavam determinado ator, uma equipe de cocheiros, tal categoria de
gladiadores, e seu zelo ia até graves perturbações públicas, sem nenhum fundo político-social e
nenhuma distinção de classes; às vezes era necessário exilar um ator ou um cocheiro por haver
sublevado a multidão contra ou a favor. [...] No espetáculo o prazer torna-se uma paixão cujo excesso
163

os sábios reprovam, como também o farão os cristãos: “O teatro é lascívia, o Circo é excitação e a
arena, crueldade”. Crueldade dos próprios gladiadores, a seu ver: os gladiadores são voluntários ao
assassinato e ao suicídio (e de fato eram todos voluntários; de outra forma o espetáculo seria medíocre).
A crítica que nos vem à mente, o sadismo dos espectadores, não ocorreu a nenhum romano, filósofo
ou não. Assim, os gladiadores introduzem na vida romana uma forte dose de prazer sádico
plenamente aceito: prazer de ver cadáveres, prazer de ver um homem morrer. Pois o espetáculo não
era uma luta de esgrima com riscos reais: todo o interesse estava na morte de um dos combatentes ou,
melhor ainda, na decisão de degolar ou poupar um gladiador que, exausto, enlouquecido, fora
reduzido a pedir piedade”.
10 Johan Huizinga (pp. 23-24) diz a respeito: “A identificação platônica entre o jogo e o sagrado não
desqualifica este último, reduzindo-o ao jogo, mas, pelo contrário, equivale a exaltar o primeiro,
elevando-o às mais altas regiões do espírito. Dissemos no início que o jogo é anterior à cultura; e, em
certo sentido, é também superior, ou pelo menos autônomo em relação a ela. Podemos situar-nos, no
jogo, abaixo do nível da seriedade, como faz a criança; mas podemos também situar-nos acima desse
nível, quando atingimos as regiões do belo e do sagrado. Adotando este ponto de vista, podemos agora
definir de maneira mais rigorosa as relações entre o ritual e o jogo. A extrema semelhança das duas
formas não nos deixa mais perplexos, e nossa atenção continua presa ao problema de saber até que
ponto todos os atos de culto são abrangidos pela categoria do jogo. Verificamos que uma das
características mais importantes do jogo é sua separação espacial em relação à vida quotidiana. É-lhe
reservado, quer material ou idealmente, um espaço fechado, isolado, do ambiente quotidiano, e é
dentro desse espaço que o jogo se processa e que suas regras têm validade. Ora, a delimitação de um
lugar sagrado é tambem a característica primordial de todo ato de culto. Esta exigência de isolamento
para o ritual, incluindo a magia e a vida jurídica, tem um alcance superior ao meramente espacial e
temporal. Quase todos os rituais de consagração e iniciação implicam certo isolamento artifical tanto
dos ministros como dos neófitos. Sempre que se trata de proferir um voto, de ser recebido numa
Ordem ou numa confraria, de fazer um juramento ou de entrar para uma sociedade secreta, de uma
maneira ou de outra há sempre essa delimitação de um lugar do jogo. O mágico, o áugure e o
sacrificador começam sempre por circunscrever seu espaço sagrado. O sacramento e o mistério
implicam sempre um lugar santificado. De um ponto de vista formal, não existe diferença alguma
entre a delimitação de um espaço para fins sagrados e a mesma operação para fins de simples jogo. A
pista de corridas, o campo de tênis, o tabuleiro de xadrez ou o terreno da amarelinha não se
distingüem, formalmente, do templo ou do círculo mágico. A extrema semelhança que se verifica entre
os rituais dos sacríficios de todo o mundo mostra que esses costumes devem ter suas raízes em alguma
característica fundamental e essencial do espírito humano”.
11 Sobre a centralidade da plebe e a relação dela com a pessoa do Imperador afirmam Guarinello e
Joly (p. 143): “Embora eventualmente tensas, as relacões entre Imperador e plebe eram um
componente fundamental do exercício do poder, que assegurava aos cidadãos habitantes de Roma o
abastecimento de trigo a preços administrados, e jogos e espetáculos dos quais o próprio Nero foi
grande incentivador e participante. A própria presença física do imperador garantia à plebe que esta
se encontrava no centro do Império e que era parte de sua estrutura de dominação. Isto talvez
explique as queixas ouvidas em Roma, quando Nero pensou, pela primeira vez, em viajar para o
Oriente (Tacito, Anais, XV, 36), e a apatia da mesma plebe, que se alienara do Imperador durante sua
longa viagem a Grécia, entre 67 e 68 d.C., e que nada fez para impedir sua derrubada pelo Senado e
pela guarda pretoriana”.
12 Alexis Henri Charles Clérel, visconde de Tocqueville (1805–1859) foi historiador, pensador político
e escritor francês, notabilizado pela análise que fez da democracia estadunidense no livro A Democracia
na América, publicado entre 1835 e 1840.
164

CAPÍTULO 5

DA PARÓDIA:
OU COMO PRIAPO SE FEZ HOMERISTA,
SEGUIDO DE COMO CATULO ENFIM VIROU VIDRAÇA

1) O ESTADO DA QUESTÃO PRIÁPICA OU “MEU MUNDO CAIU”

A Priapéia Latina, designada pelos filólogos Priapeia, Carmina Priapea, Corpus Priapeorum, é um
conjunto anônimo de 86 poemas latinos a respeito de Priapo, divindade cuja principal
característica é o enorme falo: mais que deus fálico, Priapo é o próprio falo divinizado, é o deus-
falo. O culto de Priapo surgiu no século IV na Ásia Menor, mais precisamente na cidade de
Lâmpsaco, (hoje Lapsaki, Turquia) depois passou à Grécia continental e de lá, ao mundo
romano. Os poemas da Priapéia foram escritos entre o século I a.C. e o I d.C., e sempre se discutiu
se têm um ou vários autores e quem são eles. Pensava em 1999 (na Tese de Doutorado), em 2006
(na publicação do livro) e penso ainda agora em 2013, aquando da Tese de Livre-Docência, o
que consta no livro, p. 96:

“o engenho individual (ingenium) de tais autores foi subserviente ao gênero.


Supomos que a generalidade da Priapéia em língua latina, por ação de poeta
antologista, tenha subsumido a colaboração particular dos autores compreendidos
entre o século I a.C. e I d.C., inclusive Virgílio, e tenha consumado a colaboração
165

em pelo menos duas recolhas métricas, como mencionamos, depois reunidas


numa só, que assim nos chegou.

Entretanto, segundo a atual tendência dos Estudos Clássicos1 tem autoria unitária e Marcial é
outra vez o candidato da vez, como diz Louis Callebat, com aquela elocução apavorada e
pavorosa em que sobejam modalizações, “entre os principais escritores identificados como autor
possível dos Carmina Priapea, Marcial apresenta decerto o perfil linguístico mais próximo daquele
que permite traçar a análise formal da Priapéia”. Mas se Marcial “não é o autor inequívoco da
Priapéia, é licito considerar [...] que o autor não é posterior a ele e que pôde pertencer a um
círculo comum de escritores”2. Esta não é senão outro exemplo da mesma fixação autoral
discutida no Capítulo 1. A desgraça não é a possibilidade de que a opinião de qualquer pessoa,
como a minha, não se verifique, quando se descubrisse, quando se descubra, não sei por que meio
inequívoco que houve de facto um autor único da Priapéia. Teríamos de admitir que toda
semelhança formal dos poemas e preciso arranjo no livro, que é o argumento da tese unitária,
não se deve à prévia detecção dos procedimentos formais adotados pelos pilotos anteriores do
gênero “Priapéia” (em linguagem mais decorosa: os autores precedentes dos poemas priapeus) e a
posterior imitação deles, isto é, teríamos de admitir que não se tratou da mais espetacular
exemplo de procedimento primordialmente poético, concernente à fazedura concreta objetiva
dos poemas por mais de um artífice. Teríamos de admitir isso, paciência, e que a Priapéia
resultou do atividade de um autor. Mas isso não é o pior, pois, como disse, pode ser que venham
a comprová-lo. Desgraça deveras catastrófica e mui desastrosa é ser necessário que haja alguém,
isto é, uma única pessoa, dotada do perfil (o que é isso?) mais próximo daquele que permite traçar a
análise formal da Priapéia. A análise formal dos poemas priapeus, que estão aí, objectivos,
objectais, íntegros, mas anônimos, pressupõe que tenham de ter sido escritos por uma pessoa e
que saibamos quem é. Permito-me uma imagem: encontra-se um cadáver na rua. Quando
instados a dizer o peso, a altura, a cor da pele, dos cabelos, as doenças que tinha e até a causa
mortis, os legistas respondessem que para dizê-lo precisam da carteira de identidade do nosso
querido de cujus. Esta seria a resposta da pergunta “quem é esse cara?”, que é cabível, porque ele,
não sendo Frankenstein, é (ou foi, coitado!) uma pessoa só. Mas se a Priapéia chega como corpus
anônimo, por que os novos estudiosos da Priapéia se fazem primeiro a pergunta “quem foi o autor
único que escreveu isso?”. As evidências de autoria única que encontraram sempre atenderam a
esse único pressuposto “só pode ser um autor só”. Jamais admitem que as semelhanças formais,
166

métricas etc possam ser resultado de agenciamento poético, da deliberada disposição de, naquele
caso, mostrar apenas quem está na berlinda, que é aquele Priapo. Mesmo quem pensa assim sobre
a Priapéia, ou Gregório de Matos, admite que O Livro dos Espetáculos tenha sido escrito só por
Marcial e Os Timbiras, apenas por Gonçalves Dias. Mas a pressuposição necessária de autoria
única é excludente e regressiva. Mais não digo porque esse e o Capítulo 5, não 1.
É necessário dizer que a Priapéia Latina tem a deliberada finalidade de fazer rir o leitor.
Ora, quanto ao deus, a deformidade da figura de Priapo, determinada pela desporporção do
membro genital, é em si mesma ridícula, e formalmente, quanto aos poemas, absoluta maioria
deles é epigramática, tendo o termo “epigrama” assumido nesse tempo a acepção de poema
necessariamente jocoso, o que faz da Priapéia co-participante dos gêneros risíveis e, portanto,
retoricamente baixos, como a comédia e a sátira menipéia. O poema 68, de 38 versos, longo para
a sólita dimensão do epigrama, é exceção notável no conjunto, não porque não seja risível, já que
é, mas porque o ridículo não se apóia na sólita condensação do epigrama, mas na deturpação da
“paródia”. Em 1999 no doutoramento não pus o termo entre aspas, mas faço-o em 2013 porque
não já me parece que se trata de paródia, como veremos. A deturpação incide nos dois mais
antigos e importantes poemas do Ocidente, a Ilíada e a Odisséia, de Homero, a própria origem da
poesia ocidental, em que incide o engenho com que o autor, servindo-se de obscenidade sexual,
alude a episódios conhecidos e rebaixa a épica para produzir riso no leitor. Outra questão que o
poema postula é a dissociação entre torpeza da matéria (torpeza, bem entendido, tomada em
sentido retórico, ou seja, a baixeza do assunto) e a excelência poética. Em outras palavras: o
poema é, sim, tão baixo e torpe pelo assunto, quão douto pela técnica que exibe. E como o termo
técnico “torpeza” (turpe, ἀισχρόν) pode suscitar algum reparo moral, digamos também que o
poema, em nome de toda a Priapéia, e dos gêneros risíveis da comédia e da sátira menipéia,
postula a dissociação entre o caráter das personagens em suas ações e o caráter moral da pessoa
histórica do poeta, o fazedor de poemas, quem quer que tenha sido.
A paródia, para o que nos importa aqui, já é mencionada por Aristóteles (Poet. 1448a) e
depois por Ateneu de Náucratis, vinculada aos gêneros elevados (ATH.15, 55):

οἷον Ὅμηρος μὲν βελτίους, Κλεοφῶν δὲ ὁμοίους, Homero, por exemplo, faz melhores os homens;
Ἡγήμων δὲ ὁ Θάσιος <ὁ> τὰς παρῳδίας ποιήσας Cleofonte, semelhantes, e Hegemão, primeiro a
πρῶτος καὶ Νικοχάρης ὁ τὴν Δειλιάδα χείρους, fazer paródias, e Nicócares, autor da Dilíada, piores.

εὑρετὴν μὲν οὖν τοῦ γένους Ἱππώνακτα φατέον com efeito, o inventor do gênero deve ser
τὸν ἰαμβοποιόν. considerado Hipônax.
167

Ateneu está correto, pois Hégemon de Tasos viveu em Atenas na segunda metade do século V.
Pouco antes, Ateneu informa que Hipônax, segundo Polemão, parodiava a Ilíada. Outros
exemplos são o Margites, século VI a. C, citado por Aristóteles e atribuído hoje à Xenófanes de
Cólofon, a paródia animalesca Batracomiomaquia – “Batalha das Rãs contra os Ratos” – atribuída a
certo Pigreto, do século VI a.C., porém datada modernamente no século IV a.C.; o poema
gastronômico Hedipatia – “A Doce Vida” – atribuído a Arquéstrato de Gela, da segunda metade
do século IV a. C. Aristóteles e Ateneu apenas esboçam o que seria uma história da paródia, sem
defeni-la ou descrevê-la, que parece ser o que o tenta fazer o autor do verbete da Suda (letra pi,
entrada 715):

καὶ <Παρῳδία·> ο ὕτω λέγεται ὅταν ἐκ Paródia se diz quando um discurso da tragédia é
τραγῳδίας μετενεχθῇ λόγος εἰς κωμῳδίαν· οἷόν
transformado em comédia, como por exemplo na
ἐστι τό, ἄξιον γ ὰρ Ἑλλάδι, παρ' Ε ὐριπίδῃ καὶ
παρ' Ἀριστοφάνει εἰρημένον. Grécia ocorre entre Eurípides e A Paz, de Aristófanes.

Quintiliano (6,3, 98) toma a paródia como expediente com que se revela a urbanidade do
orador e conseqüente captação da boa-vontade do ábitro da situação:

Adiuuant urbanitatem […] ficti notis uersibus Favorecem a urbanidade […] versos inventados
similes, quae παρῳδία dicitur. semelhantes a famosos, o que se denomina παρῳδία.

A paródia, como discurso alusivo, é discurso de segundo grau, isto é, supõe a necessária
preexistência de outro discurso, do qual ela é deturpação, como o nome indica: paródia, o “canto
paralelo”, “marginal”: παρά, “ao lado”, ᾠδή, “canto”. Mas como quase tudo que se refere à
poética, aqui também a brevidade dos testemunhos é desesperadora. Mas a despeito dela,
proponho entender que Aristóteles esteja a implicar que é condição da paródia existir certa
semelhança de condições entre o texto primeiro e o parodiado, que é exatamente o “paralelismo”
inerente à palavra “paródia”. Aristóteles é breve, mas o exemplo nessas condições não podia ser
melhor, pois no título da paródia, Δειλιάδα, já temos por paronomásia (outro paralelismo) a
própria paródia de Ἰλιάδας, e se a Ilíada, dizendo cantar a ira, canta também a valentia de
Aquiles, a Δειλιάδα cantava decerto, plena paródia que devia ser, a covardia (δειλία: “covardia”;
δειλιάω: “ter medo”) de algum Aquiles às avessas. É de presumir que a Delíada com toda
probabilidade fosse canto hexamétrico, muitíssimo mais breve que a Ilíada, semelhante à outra
paródia épica que é a Batracomiomaquia. Sendo evidente que a maior brevidade é necessária ao
riso, finalidade precípua da paródia, a semelhança de condições necessária a ela na Delíada é dada
porque esta é também um canto, metricamente similar à Ilíada, protagonizada por aquele Aquiles
168

do avessso. Na Suda, a semelhança de condições está no par tragédia / comédia (que ombreiam
um com o outro), por onde transita, daquela para esta, o discurso paródico. Em Quintiliano,
como o universo do procedimento paródico se resume a alguns versos, é a própria semelhança
entre eles que provê as condições necessárias à paródia. Exemplo brasileiro do que diz
Quintiliano é a famosa linha de Oswald de Andrade: “tupi or not tupi”.
Seja. Que similaridade de condições existe entre a Ilíada e a Odisséia, de um lado, e de
outro, o poema 68 da Priapéia, com seus meros 38 versos, elegíacos? Não me parece haver, com o
que implico que o poema 68 da Priapéia não é propriamente paródia, como eu pensava fosse e
disse ser em 1999 na tese de doutoramento. Ou se é, é uma, digamos, uma “paródia assimétrica”.
Mas decerto é, sim, deturpação, porque torna retoricamente torpe a matéria e a elocução do
texto de primeiro grau e o faz para produzir o riso (curiosamente, aliás, como a Priapéia). Mas que
nome teria o procedimento para os antigos? Que nome tem para nós, modernos? Tratarei aqui,
primeiro, do poema 68 da Priapéia Latina para tornar adiante à paródia.

2) PRIAPÉIA LATINA 68: O QUE É ISSO?

Disse que tem a Priapéia deliberada finalidade de fazer rir o leitor. Posso dizer melhor
agora que o riso da Priapéia, efeito da técnica do poeta, é o afeto que o poeta quer produzir no
leitor/ ouvinte. Uma vez que fazer rir o público é fim, os poemas priapeus do corpus Priapeorum
não mencionam eles mesmos nenhuma risibilidade e não se encontra menção alguma sobre o
quão risível é a deformidade física de Priapo3. Assim, para produzir a irrisão própria da Priapéia,
os poemas paródicos produzem no texto pela poesis, quer dizer, por bem dispostas palavras e
períodos, a ridícula torpitude da imagem do deus, que é pressuposta em qualquer poema priapeu
que se leia. No caso do poema 68, o riso produzido da paródia, sem mesmo referir a risibilidade
desse corpo mal talhado de Priapo, recria-a em ridículo verbal ao recuperá-la recreativamente
numa fala faceira, gozadora, inepta, defeituosa, redutiva, polissêmica, e – por que não dizer? –
picante, como mostram a leitura, a tradução em versos e a análise do poema 68:

Rusticus indocte si quid dixisse uidebor Se, rústico, pareço ter inculta fala,
da ueniam: libros non lego, poma lego. perdão!, não junto livros, junto frutos.
Sed rudis hic dominum totiens audire legentem Mas rude embora, à força eu ouço meu senhor
cogor Homereas edidicique notas. a ler, e uns termos aprendi de Homero:
Psolen ille uocat quod nos psoloenta uocamus 5 p'ra nós o que é caralho chama de karákalon
169

et quod nos culum, culeon ille uocat. e o que chamamos cu chama de cúleon.
Merdaleon certe si res non munda uocatur, Se merdaléon é aquilo que não tem limpeza,
et pediconum mentula merdalea est. é merdaleu o pinto dos que enrabam.
Quid? Nisi Taenario placuisset Troica cunno Mais!: se a boceta Argiva não quisesse um pau
mentula, quod caneret, non habuisset opus 10 Troiano, não teria o que a cantasse.
mentula Tantalidae bene si non nota fuisset, Não fosse tão famoso o pinto do Tantálida
nil senior Chryses quod quereretur erat. de nada se queixara o velho Crises.
Haec eadem socium tenera spoliauit amica, O mesmo pau pilhou do amigo a doce amante:
quaeque erat Aeacidae, maluit esse suam. sendo de Aquiles, quis que fora sua,
Ille Pelethroniam cecinit miserabile carmen 15 e um triste canto o herói cantou à Peletrônia
ad citharam; cithara tensior ipse sua. cítara, estando teso mais que a cítara.
Nobilis hinc nata nempe incipit Ilias ira, Na ira então começa a Ilíada famosa,
principium sacri carminis illa fuit. foi o princípio do sagrado canto.
Altera materia est error fallentis Vlixei; Matéria do outro é a errância do falaz Ulisses
si uerum quaeras, hunc quoque mouit amor. 20 e, a bem dizer, tesão foi que o moveu:
Hic legitur radix, de qua flos aurea exit, lê-se de uma raiz que gera flor dourada
quem cum “moly” uocat, mentula “moly” fuit. que, embora moly a chamem, era um pau;
Hic legimus Circen Atlantiadem Calypson lemos que Circe, que a Atlantíade Calipso
grandia Dulichii uasa petisse uiri. quiseram grandes dotes ver de Ulisses.
Huius et Alcinoi mirata est filia membrum 25 Depois, ao ver que mal cobriu seu membro um espesso

frondenti ramo uix potuisse tegi. ramo, a filha de Alcínoo se espantou

Ad uetulam tamen ille suam properabat et omnis Mas corre o herói à velha esposa só pensando,

mens erat in cunno, Penelope, tuo: Penélope, na tua bocetinha,

quae sic casta manes, ut iam conuiuia uisas e casta só ficaste por querer banquetes

utque fututorum sit tua plena domus. 30 e ter de fodedores cheia a casa,

E quibus ut scires quicumque ualentior esset, e por saberes qual o mais valente, assim
haec es ad arrectos uerba locuta procos: falaste aos pretendentes excitados:

“nemo meo melius neruum tendebat Vlixe, “Ninguém, qual meu Ulisses, retesou sua arma

siue illi laterum siue erat artis opus. servindo-se de força ou de perícia.

Qui quoniam periit, uos nunc intendite, qualem 35 Agora que ele é morto, ficai duros, vou

esse uirum sciero, uir sit ut ille meus”. saber quem é que é homem como aquele”.

Hac ego, Penelope, potui tibi lege placere, E eu poderia então te dar prazer, Penélope,

illo sed nondum tempore factus eram. mas eu não tinha sido ainda feito.

O poema é a mais longa fala de Priapo na Priapéia. Lemos aqui a leitura deformada que Priapo
faz da elevada épica homérica, quer da Ilíada (v. 17, nobilis hinc nata nempe incipit Ilias ira, “Na ira
170

então começa a Ilíada famosa”) quer da Odisséia (v. 19, altera materia est error fallentis Vlixei, “Matéria
do outro é a errância do falaz Ulisses”). Constatada a pouca instrução do deus, própria do caráter
dele (o ἦθος, o mos) – o Priapo fálico é rusticus e fala indoutamente (dixisse indocte, v. 1), junta frutos
em vez de livros (libros non lego, poma lego, v. 2), não sendo, por isso, erudito (rudis, v. 3) – a narrativa
mostra como ele, de baixa condição, recolhe a matéria homérica. Priapo faz uma leitura priápica
da leitura oral que faz de Homero o dono do terreno que o deusinho vigia: é bem no interstício
da passagem da oralização feita pelo dono e o aprender de ouvido a que o deus está condenado
(lembremos que Priapo está fincado no solo) que ocorre o recolhimento priápico da épica e é o
que lhe confere caráter de paródia. Ao tratar do texto homérico, a leitura priápica degrada-o de
gênero elevado, que, entre outros termos, os tratados antigos de retórica chama genus sublime, para
o estilo baixo, genus humile, degradação cujo eixo primeiro no poema é o uso precioso dos
significados do verbo lego, “ler” e “colher”/ “recolher”: libros non lego, poma lego, v. 2: um incide no
objeto “livros”, sinédoque de refinada educação (ou mais provavelmente da ridícula tentativa, por
parte do proprietário, “senhor”, dominum, v. 3, de parecer culto), o outro incide sobre “frutos”, ali
tropo de rusticidade. Priapo, mera efígie, coagido (cogor, v. 4) pela própria imobilidade,
obliquamente colhe em seu jardim a amena leitura de Homero realizada pelo patrão, de maneira
que deforma o decoro épico segundo a rudeza do próprio caráter. O risível de uma imitação
distorcida, como observara Cícero, pode estar sediado na matéria (res, materia) ou nas palavras
(uerba, dictum)4. A distorção sediada no dictum, isto é, na maneira de dizer, se não é característica da
emulação paródica, pode ser considerado mais condizente com ela. Assim, sob o princípio geral
da emulação, o texto, além de concretizar o ridículo pela matéria, evidentemente torpe e, por
isso, mais facilmente causadora de riso, passa a atualizar uma série de procedimentos do ridículo
baseados no dictum, tal como os rétores prescrevem ou comentam. O primeiro é a paronomásia5,
articulada respectivamente entre o par de termos gregos, psolóenta e culéon (v. 5, ψολόεντα e
κουλὲον, da expressão ψολόεντα κεραυνόν, e κουλὲον, ambas homéricas, “raio ardente” e
“bainha”) e elevadas, e o par psolen e culum (v. 6, “pênis” e “cu”). Paronomástica também é a
relação entre merdalea (v. 8, hápax cunhado do grego σμερδαλέον6, “terrível de ver”) e o termo
“merda”, elíptico, sugerido pela semelhança de σμερδαλέον.
Em seguida, a partir da menção do falo e de um sujeito sexual fálico ativo (pediconum7,
“fodedores”, v. 8), o poeta deste poema priapeu aciona outro tipo de deformação da epopéia, que
consiste agora na autonomização da parte sexual das personagens épicas em lugar da integridade
171

fisíca deles. A autonomização sustenta-se na técnica da amplificação retórica, aqui aplicada às


parrtes pudendas8. Assim, em vez de Helena e Páris lemos as amplificações antonomásticas
Taenario cunno, v. 9, “boceta de Tênaro” (vale dizer, de Esparta, argiva) e Troica mentula, vv. 9-10,
“pau troiano”. É na passagem que se indica que a própria epopéia como canto e como gênero –
referida também pelo tropo da antonomásia: [cunnus Taenarius] non habuisset opus quod caneret,
literalmente: “[a boceta argiva] não teria uma obra que a cantasse” – se transforma em resultado
do desejo e da atividade sexuais (Nisi ... placuisset, v. 9, literalmente: “se não agradasse”, “se não
produzisse atração sexual9”) preponderantemente falocêntricas, já que mentula (“pau”, “pinto”),
neste e no próximo período é sempre sujeito da ação. Em outras palavras, Priapo, como já
dissemos, além de reduzir e deformar o texto épico, também “priapiza” fálica e comicamente o
gênero da epopéia, ao seqüestrar para o gênero priapeu, vale dizer, para o discurso adequado,
apto a seu caráter, a matéria homérica. Até o verso 15, o membro masculino continua a ser o
protagonista amplificado da ação, e, ainda que não seja só por antonomásia, prossegue no poema
a autonomização do falo: mentula Tantalidae bene si non nota fuisset (“não fosse tão famoso o pinto do
Tantálida”), Haec eadem socium tenera spoliauit amica/ quaeque erat Aecidae, maluit esse suam (“O mesmo
pau pilhou do amigo a doce amante/ sendo de Aquiles quis que fosse sua”). O processo ocorre de
tal modo, que Priapo conclui que a ira de Aquiles, matéria mesma da Ilíada, não provém da
honra do herói ultrajada, porém da frustração que experimenta por causa da abstinência sexual,
(v.16, cithara tensior ipse sua, “estando teso mais que a cítara”), quando se vê privado de Briseida,
facto apenas suposto.
Do verso 19 em diante, o poema parodia a Odisséia e suas personagens, e se antes a
deformação era apoiada na autonomização amplificada do falo, agora, de certa maneira em
sentido contrário, caracteriza-se pela redução do argumento épico à óptica fálica10. Assim, a
virtude guerreira de Ulisses, a capacidade de tolerar mil errores, o desejo de reencontrar esposa e
filho – ou seja, aquilo que perfaz o que os gregos antigos chamavam ἀρετή “excelência” – bem
como a dignidade uxória de Penélope, para citar as principais personagens mencionadas, tudo é
substituído pela motivação erótica falocêntrica. No verso 19, o poeta começa por referir o assunto
da Odisséia à maneira consueta, não priápica: Ulisses enganoso, suportador de errâncias, Altera
materia est error fallentis Vlixei (literalmente, “a outra matéria, [isto é, o assunto do outro poema] é a
errância do falaz Ulisses”). No passo, é notável o emprego do termo retórico materia (“assunto”,
“argumento”, “matéria”) na perífrase que substitui “Odisséia” e a identifica, mas que, de facto,
172

engenhosamente visa a preparar a correção si uerum quaeras, hunc quoque mouit amor, literalmente “se
quiseres saber a verdade, tesão moveu também a ele [Ulisses]”. Incidindo sobre a palavra error,
tão indicativa das vicissitudes de Ulisses, a correção a substitui pela quase paronímica amor11, de
molde que distorce o decoroso carácter do herói e ao mesmo tempo degrada ridiculamente a
matéria épica do gênero elevado, que lhe é próprio, para o gênero baixo da Priapéia. Degradada,
a matéria deixa de adequar-se ao caráter de Ulisses e passa jocosamente a estar apta tanto ao
caráter do Priapo fálico como a seu discurso.
Sabíamos que Priapo, coagido a ouvir o patrão a recitar, se tornara homérida (Homereas
edidicique notas, “uns termos aprendi de Homero”, v. 4). Entretanto, desde o emprego competente
da palavra materia, o discurso de Priapo já simula, não menos faceiro, certa autoridade a respeito
das epopéias homéricas de maneira a permitir-se esclarecer, como visto, qual fosse o verdadeiro
assunto da Odisséia. A partir daí, explica-se a presença das formas verbais legitur, legimus, (“lê-se”,
“lemos”, v. 21 e 23, no sentido filológico de “ser possível verificar pela leitura”) usadas para
introduzir a argumentação comprobatória da causa de Priapo: ser concupiscência, amor, o móvel
da gesta de Ulisses. Assim, nessa passagem de cunho filológico e investigante, observa-se a
anáfora do advérbio indicativo de lugar hic (“ali”) anteposto ao verbo legere, também repetido,
que, vasado sob o tropo da variação de pessoa e voz, introduz exemplos textuais comprobatórios
da tese. Tal como no trecho alusivo à Ilíada, também neste o poeta começa por tematizar o falo,
identificando-o a moly, misteriosa planta mencionada no canto 10, v. 302, da Odisséia. Tematizado
o falo, dada a natureza da causa – vale dizer, o desejo sexual, fálico e aqui incidente em mulheres
– já não nos admira que a série de exemplos diga respeito apenas a personagens femininas: Circe,
Calipso, a jovem Nausícaa, (mencionada por antonomásia, Alcinoi filia, v. 25, “filha de Alcínoo”) e
Penélope. Ainda que Circe e Calipso, na Odisséia, fossem tomadas de particular afeto por Ulisses e
que se entreveja em Nausícaa certo alvoroço adolescente ao contemplar um homem maduro
seminu, é clara no entrecho deste poema priapeu a deformação da matéria épica e do caráter das
personagens, apoiada no procedimento de reduzir suas motivações ao falicismo. Engenhoso, o
poeta compensa a redução fálica, já a beirar excessiva uniformidade, por meio da técnica retórica
da variação, aplicada precisamente às designações do membro masculino, cerne da questão. Se
na paródia à Ilíada, para referi-lo já haviam ocorrido psoles (v. 5) e a mais comum de todas,
mentula, (v. 8, v. 10 e v. 11), no passo em foco, depois de recorrer o termo mentula, v. 22, aparecem
a variação perífrática uasa grandia (v. 24, literalmente, “grandes artefactos”) e os termos variantes
173

membrum e neruum (“membro”, “nervo”, v. 25, v. 33). Mais que compensação, à multifária
peripécia de Ulisses – ele mesmo, em Homero, protagonista vário e multímodo, πολυμήτης,

πολυμήχανος12, “de muitos conselhos”, “de muitos recursos” – corresponde por parte do poeta
do canto priápico 68, como efetivação da conveniência ou decoro (aptum) no processo redutivo, a
variação retórica que, multiplicando a denominação do mesmo falo a que se reduzem as
personagens, é estupendamente adequada a Ulisses, a mais polimorfa delas, por dissimular, na
própria adequação, o contínuo processo redutor, que, visado embora, poderia trair o vezo do
fastídio. Ulisses é também πολύτροπος13, “polítropo”, “de muitas voltas e torneios”. Por isso, em
mais breves termos, diga-se que a politropia ética do Ulisses épico, no recolhimento priápico, se
transforma, por adequação, em politropia retórica, poética, isto é, transforma-se no emprego de
vários tropos, como a variação e a antonomásia (uiri Dulichii, “do varão de Dulíquio”, v. 24),
necessariamente ali aplicadas ao membro a que fora reduzido. Pode-se dizer ainda que a
politropia, que na épica pertence ao caráter daquela personagem e às ações dele decorrentes, na
leitura redutora da Priapéia, em virtude da adquação, passa a pertencer à elocução do orador
interno, que é Priapo, ocorrendo como que uma troca: Ulisses, a personagem, tem o caráter
degradado, mas o orador intrínseco, Priapo, até o verso 26, é enaltecido pela elocução filológica
que adotara.
Todavia, do verso 27 em diante, parte final do poema, há na elocução certa ruptura com
o que se vinha tratanto – o dissertar priápico sobre a Odisséia – e com o estilo douto, nesse trecho,
do discurso adotado por Priapo, ouvinte de Homero, já guindado a homerista. O advérbio
adversativo tamen (v. 27) introduz a apóstrofe do deus a Penélope, que é a principal personagem
feminina, e conclui a gradação, já que Penélope é o ponto máximo da no rol das quatro
mulheres. Tal ruptura não significa, porém, no segmento que parodia a Odisséia, o término do
processo retórico de redução; antes, é apenas mudança de estratégia, pertinente à disposição.
Desde o início do poema, o destinatário do discurso de Priapo era um interlocutor
indeterminado, na verdade o leitor, a quem o deus pedira vênia (da ueniam, v. 2). Ao dirigir-se a
Penélope, Priapo abandona o estilo filológico e, portanto, elevado com que tratava da matéria
épica, para reutilizar o discurso de sempre, adequado a seu caráter: direto, fálico, grosseiro. É
percebível a adequação no emprego da apóstrofe a Penélope, pois, se após errar de mulher em
mulher – assumida aqui a redução paródica –, Ulisses retorna enfim à esposa, é conveniente que,
por um lado, na culminância desse clímax, a consorte seja nomeada e trazida à condição de
174

interlocutor, e que, por outro, recrudesça o processo redutivo: Ad uetulam tamen ille suam properabat et
omnis/ mens erat in cunno, Penelope, tuo (vv. 25-26, literalmente “mas ele [Ulisses] corre à sua
velhinha, e todo pensamento, Penélope, estava em tua boceta”). No primeiro verso do dístico,
Priapo, narrador, numa espécie de discurso indireto livre, apropria-se do termo uetulam, que
afetivamente é muito utilizado em vocativos14, e, dado o cunho também afetuoso do diminutivo,
associado àquele de familiaridade do pronome suam15, convém ao afeto e à afeição da
personagem Ulisses, marido prestes a reencontrar a esposa depois de longa ausência. Entretanto,
no segundo verso do dístico, não por coincidência no hexâmetro cataléctico, isto é, num verso
interrupto, a disposição das palavras desintegra abruptamente a inteireza e a elevação daquela
atmosfera, por assim dizer, familiar, doméstica, para reduzi-la, uma vez mais, à motivação fálica:
o que seria a integridade de Ulisses, expressa pelo sintagma omnis mens coordenado a ille, reparte-
se de modo que omnis, “todo”, “inteiro”, permanece ainda no hexâmetro pleno, e mens, no
cataléctico. Tal procedimento métrico, como que um encavalgamento em sentido inverso, muito
comum na sátira16, coaduna-se com a degradação aplicada ao episódio do reencontro do casal,
pois a totalidade do pensamento do herói, expressão na Odisséia de sua inteirice de marido (ἀνήρ),
pai (πατήρ), além daquela de guerreiro (πτολεμιστῆς), de rei (βασιλεύς) e senhor da casa real
(οἴκοιο ἄναξ), é rompida para concentrar-se no órgão sexual de Penélope (cunno, “boceta”, v. 28).
A apóstrofe é ainda o que articula a entrada em cena de Penélope, alvo assim privilegiado,
pois feminino, da depreciação fálica e redutiva de Priapo. Paradigma da esposa fiel, manifesto no
urdume paciente mas não menos ardiloso daquele entretecer e do muito esperar, Penélope se
torna, pela fala de Priapo – por essa fala a que o falo de Priapo sói erigir-se17 – mero pretexto de
múltipla fornicação: quae sic casta manes, ut iam conuiuia uisas/ utque fututorum sit tua plena domus (v. 29-
30, “e casta só ficaste por querer banquetes/ e ter de fodedores cheia a casa18”). Os pretendentes,
antes mesmo de receber a designação própria (procos, v. 32), vêm rebaixados como fututorum
(“fodedores”, v. 30), enquanto o petulante assédio ao palácio se transforma em desejo de
banquetes (conuiuia uisas) por parte da rainha. Já em cena, no primeiro discurso, Penélope
reproduz o mesma degradação sofrida pelos assediantes e por Ulisses, ao reduzir igualmente
aquela inteireza do herói – rei, guerreiro, senhor da casa, marido e pai – à virilidade fálica,
também erigida pela fala da rainha a critério de disputa entre os assediantes (não nos esqueçamos
de que é sempre Priapo, detentor da palavra, a narrar o discurso de uma Penélope degradada): E
quibus ut scires quicumque ualentior esset,/ haec es ad arrectos uerba locuta procos:/ “nemo meo melius neruum
175

tendebat Vlixe,/ siue illi laterum siue erat artis opus,/ Qui quoniam periit, uos nunc intendite, qualem/ esse uirum
sciero, uir sit ut ille meus” (vv. 31-36: “e por saberes qual o mais valente, assim/ falaste aos
pretendentes excitados:/ ‘Ninguém mais duro nervo ergueu que o meu Ulisses,/ servindo-se de
força ou de perícia./ Agora que ele é morto, ficai duros, vou/ saber quem é que é homem como
aquele’”). É de notar que o termo uir (v. 36) – analogamente ao uso de legere relativo às dimensões
de urbanidade e rusticidade no início do poema – no fim articula as várias dimensões da
masculinidade agora em questão, repartíveis entre elevação épica e rebaixamento priápico. Com
efeito, uir possui espectro polissêmico que recobre primeiro as seguintes acepções: “marido”,
“homem corajoso”, “guerreiro”, respeitantes todos à dignidade de Ulisses. Vir19 recobre ainda
estas acepções: “amante” e “másculo” (“másculo”, por sua vez, em dupla oposição: a “eunuco”20
– isto é, pleno de potência viril – e a “feminino” e “afeminado” – isto é, dotado de hábitos
varonis). O segundo grupo se presta bem à visão reducente de Priapo. É importante lembrar que
os vários sentidos de uir, incluso o par final, eram concernentes todos a Ulisses, quando o termo é
desprovido de deformação no estilo elevado, totalizante da épica. Entretanto, apartados e
restritivamente discriminados por integrar uma paródia fálica – vale dizer, reduzidos de modo
implícito só às acepções de “amante” e “másculo” – referem-se apenas a Priapo e permitem-lhe
somar-se aos pretendentes-fututores como candidato a amante de Penélope. Em outras palavras, a
polissemia do termo uir, transitando de um campo semântico a outro, possibilita gradativa e
degradadamente preterir-se Ulisses, marido (uir = maritus) supostamente morto, para introduzir-se
Priapo na qualidade de amante (uir = amicus21) da rainha. Indicado por ela o dote fálico (melius
neruum, v. 33) como critério para escolha de um varão, o deus, nestes termos, é pleiteante legítimo
ao posto. Fecho de ouro do poema, Priapo, inflado (ego, enfático, v. 37), por condições de
legitimidade (hac... lege22) cujos termos ele mesmo estabelecera a partir de próprio caráter, encerra
a breve narração e, com o segundo vocativo a Penélope, procedimento apostrófico por
excelência, retoma a palavra discursiva para postular enfim sua potencial possança (potui) de lhe
dar prazer sexual (placere), que segundo ele, era o que a rainha desacompanhada sempre quis.
O deusinho membrudo teria seus dias de glória, só impossibilitados por não existir ainda,
argumento que coincide, é curioso, com a datação relativa a Priapo: com esse nome, divindades
fálicas, como já apontara Estrabão, são atestadas na Grécia só a partir do século IV a. C., já no
chamado período helenístico. Mais do que a questão de data (illo...tempore) é de observar a
indicação tácita, pelo mero uso do verbo facere, “fazer”, em vez de nasci, “nascer”, de que Priapo é
176

artefacto (v. 38, “não tinha sido ainda feito”, sed nondum ...factus eram). Neste poema, em nenhum
momento se assere, mas Priapo, aqui e em toda a Priapéia, é deus, e a contradição entre planos tão
distantes como o de divindade, embora menor, despudorada23, e o de objeto responde sempre, e
particularmente aqui, pelo risível. Coisa bem antiga essa: um lugar, um território verbal para o
riso regenerador, como o gênero da Priapéia Latina, da comédia e da sátira menipéia, e deuses que
riam e que faziam rir.

3) UMA VERA PARÓDIA: CATALEPTON, 10

De todos os termos antigos e os respectivos conceitos – quer pertençam à poética, quer


pertençam à retórica, sejam eles da gramática, da lexicografia ou dos escólios – termos e
conceitos estes com que se pode fazer crítica de poesia pelo prisma das teorias antigas, o vocábulo
“paródia” talvez seja aquele que mais se aproxime do conceito moderno de “intertexto” e
“intertextualidade”. Proponho pensá-lo à luz de dois dos mais abrangentes conceitos e
procedimentos da poética helenística – que os romanos diretamente acolheram – que são
imitação e emulação. Sem digressar mais do que convém, lembro que em âmbito grego
“imitação” tem pelo menos quatro instâncias: a de Platão, a de Aristóteles, a de Dionísio de
Halicarnasso e a do Pseudo-Longino, das quais aqui importam as três primeiras. Para Platão
imitar é do homem e seu objeto tem aquela mundana e negativa vicariedade relativa à verdadeira
existência do arquétipo no divino mundo das idéias. A imitação é sempre afastamento do ser
verdadeiro, que é ideal: da cadeira arquetípica e perfeita criada pela divindade é primeira
imitação a cadeira confeccionada pelo carpinteiro, da qual é segunda imitação a cadeira pintada
pelo pintor. Assim como a pintura, a imitação poética está duas vezes afastada do ser verdadeiro,
pelo que merece ser banida da cidade, como sabemos. Na Poética de Aristóteles imitar também é
do homem e nada tem de negativo, já que não só responde por seu aprendizado elementar como
lhe permite, ao homem, comprazer-se com o imitado. Para Aristóteles, tal como para Platão, do
imitar congênito a todo ser humano, a imitação poética é apenas aquela realizada pelos poetas de
palavras. Note-se que, a despeito das diferenças, o objeto da imitação em Platão e Aristóteles é a
natureza e quando muito incide nos objetos. Não sendo embora meu objetivo aqui, ressalvo
apenas que em Aristóteles imitar e imitação, de tão congênito que é da atividade poética, significa
já “assunto”, ou seja, nos termos latinos da poética significa “a matéria”, como se lê em Horácio
(materia, materies24) e nos termos latinos de retórica, o melhor exemplo é Poética, que cito em
tradução de Eudoro de Souza:
177

οὐδὲν γ ὰρ ἂν ἔχοιμεν ὀνομάσαι κοινὸν το ὺς Efetivamente, não temos denominador comum que
Σώφρονος καὶ Ξενάρχου μίμους καὶ τοὺς designe os mimos de Sófron e de Xenarco, os
Σωκρατικοὺς λόγους ο ὐδὲ εἴ τις διὰ τριμέτρων ἢ diálogos socráticos e quaisquer outras composições
ἐλεγείων ἢ τῶν ἄλλων τινῶν τ ῶν τοιούτων
imitativas, executadas mediante trímetros jâmbicos
ou versos elegíacos ou outros versos que tais.
ποιοῖτο τ ὴν μίμησιν. πλὴν ο ἱ ἄνθρωποί γε
Porém, ajuntando à palavra “poeta” o nome de
συνάπτοντες τ ῷ μέτρῳ τὸ ποιεῖν ἐλεγειοποιοὺς uma só espécie métrica, aconteceu denominarem-se
τοὺς δὲ ἐποποιοὺς ὀνομάζουσιν, οὐχ ὡς κατὰ τὴν a uns de “poetas elegíacos” a outros de “poetas
μίμησιν ποιητὰς ἀλλὰ κοινῇ κατὰ τὸ μέτρον épicos”, designando-os assim, não pela imitação
προςαγορεύοντες. praticada, mas unicamente pelo metro usado.

Aristóteles refere-se à matéria: diz o filósofo οὐχ ὡς κατὰ τὴν μίμησιν ποιητὰς. Por mais ingênita
que seja no homem, não me parece haver na Poética aristotélica o procedimento segundo o qual a
imitação dos poetas já não incida na natureza, mas sim na composição, isto é, no poema
realizado por outro poeta. Em outras palavras, quero dizer com isso que, por mais que na Poética
se possa inferir que em senso comum qualquer pessoa possa imitar outra, não há ali a dimensão
ontológica e positiva segundo a qual um poeta possa e deva imitar outro. Diz Aristóteles:

Ἐοίκασι δ ὲ γεννῆσαι μ ὲν ὅλως τ ὴν Ao que parece, duas causas, e ambas naturais, geraram a
ποιητικὴν α ἰτίαι δύο τινὲς κα ὶ αὗται
poesia. O imitar é congênito no homem (e nisto difere dos
φυσικαί. τό τε γὰρ μιμεῖσθαι σύμφυτον τοῖς
ἀνθρώποις ἐκ παίδων ἐστὶ καὶ τούτῳ outros viventes, pois ele é o mais imitador, e por
διαφέρουσι τ ῶν ἄλλων ζ ῴων ὅτι
imitação, aprende as primeiras noções) e os homens se
μιμητικώτατόν ἐστι καὶ τὰς μαθήσεις
ποιεῖται διὰ μιμήσεως τὰς πρώτας, κα ὶ τὸ comprazem no imitado.
χαίρειν τοῖς μιμήμασι πάντας.

No que tange à composição de poesia, não há em Aristóteles congeneridade entre imitador e


imitado, não há a possibilidade de que o imitado seja o poema de outro poeta. Se alguém disser
“A imita B”, em Platão e Aristóteles A, como é evidente, será igual a “poeta”, mas B nunca será
igual a “poema”, evidentemente alheio. Em suma, como sempre se soube, o poeta imita a
natureza, que inclui por critério ético, ou antes, focaliza por excelência segundo a ética
aristotélica, o que os homens fazem segundo o caráter que têm. A possibilidade, como
procedimento compositivo, ou gregamente falando, “poético”, de que um poeta possa e na
verdade deva tomar outro por modelo parece-me ser devida à poética praticada pelos poetas-
bibliotecários da Biblioteca de Alexandria no período helenístico. Dionísio de Halicarnasso
(século I a.C.), no Tratado da Imitação (Περὶ Μιμήσεως) afirma:

μίμησίς ἐστιν ἐνέργεια διὰ τῶν θεωρημάτων A imitação é uma atividade que, segundo alguns
ἐκματτομένη τ ὸ παράδειγμα. ζῆλος δέ ἐστιν princípios teóricos, refunde um modelo. A
ἐνέργεια ψυχῆς πρὸς θαῦμα τοῦ δοκοῦντος ε ἶναι emulação, por sua vez, é uma atividade do espírito
καλοῦ κινουμένη.
que o move no sentido da admiração do que lhe
parece belo”25.
178

Imitar já não é o afastamento do ser arquetípico, que Platão propunha, nem a ingênita habilidade
aristotélica de imitar a natureza e as ações humanas diretamente, mas passa a ser a eleição de um
discurso pré-existente que, guindado por arbítrio do poeta imitador à condição de modelo
(παράδειγμα), será então imitado. Proponho, para tanto, a hipótese de que o genitivo καλοῦ não
seja neutro (“daquilo”), como traduz Rosado Fernandes), porém masculino (“de quem”):

A imitação é uma atividade que, segundo alguns princípios teóricos, refunde um modelo. A
emulação, por sua vez, é uma atividade do espírito que o move no sentido da admiração de
quem lhe parece belo.

Proponho, portanto, radicalizando os termos de Dionísio de Halicarnasso, a hipótese de que, só


técnica e apenas tecnicamente falando, na poética helenística imitar incidisse primeiro no discurso
do poeta escolhido como modelo – o poeta A imita poema de poeta B – e só por uso metonímico,
a meu ver já não rigoroso, é que se diz “o poeta A imita o poeta B”. Fique para ulterior discussão
se a poética helenística em relação à aristotélica é exclusiva (e substitui a natureza por um poema
anterior, alheio, tomado como modelo) ou inclusiva (o poeta imitador pode imitar tanto um poema
alheio e como a natureza). Eu tinha dito que só por uso metonímico, talvez não muito rigoroso, é
que se diz “o poeta A imita o poeta B. E qual seria então o termo rigorosamente técnico que
relaciona o poeta imitador e o poeta imitado? Como está claro em Dionísio de Halicarnasso, é a
emulação. Emulação diz-se zélosis e aemulatio, que não nomeiam outra coisa que “competição”, a
qual em sentido primeiro e estrito só pode ser agenciada por pessoas: pessoas competem, poetas
competem. O estrito rigor no emprego dos termos obriga dizermos que o poeta A “emula o poeta
B”, isto é, que o poeta A pôs-se a competir com o poeta B. Tanto é, que pode-se dizer que o
poeta A e o poeta B são êmulos, são competidores, são rivais. Assim como não era rigoroso dizer que
“o poeta A imita o poeta B”, assim também não é de rigor dizer que “o poeta A emula o poema
B”. Na verdade, emulação parece-me ser apenas aspecto da imitação, como uma das faces do
poliedro. É aspecto, mas é concomitante e necessária decorrência: segundo os procedimentos
compositivos do período helenístico, que Dionísio de Halicarnasso ecoa no século I a.C., um
poeta, no instante mesmo em que imitou o poema de outro poeta, fez-se rival, competidor, êmulo
daquele poeta. A isso tudo, sem ulterior e hoje necessária discriminação, os poetas e preceptores
helenísticos e romanos incluíam na “imitação”; alguns autores modernos como David West e
Tony Woodman chamaram “imitação criativa”26. Gosto de chamá-lo “composição imitativa”,
admitindo aqui não lembrar se a locução já foi utilizada. Pois bem, competir, concorrer não é
179

nada estranho à mentalidade de gregos e romanos. Assim, sob o pano de fundo daquele caráter
agonístico da civilização dos gregos e também dos romanos, percebemos, em relação aos períodos
arcaico e clássico das letras gregas, a especificidade da poética helenística, na qual “imitar”
necessariamente põe em relação dois poemas e necessariamente põe em disputa dois ou mais
poetas pela palma da excelência em poesia, decidida por críticos-juízes (lembro apenas entre
vários outros o poetarum iudices27 com que Quintiliano fala de Aristófanes de Bizâncio e Aristarco).
Se se admite que composição imitativa, que compor imitando é inerente à poesia greco-
helenística e à romana, toda a poesia greco-helenística e toda poesia romana são, pois, em princípio
necessariamente intertextuais, o que mostra a importância desses estudos28. A necessária
intertextualidade objetiva e passiva da poética e dos poemas helenísticos e romanos é então
tomada pelo estudioso como interpelação à leitura “intertextualista”, que já se faz, então, ativa.
Quero afirmar com isso que, mesmo quem privilegie os conceitos da poética antiga na
consideração de poemas antigos, como admito fazer, intertextualidade talvez seja o melhor meio
de suprir a ausência de discriminação crítica e funcional dos conceitos de imitação e emulação
quando aplicados a poemas particulares. É proposta de complementaridade. Embora saibamos
que tal poeta emulou qual poeta ao imitar-lhe algum poema, o pouquíssimo que nos sobrou de
teoria poética helenística nem sempre nos oferece meios de exegese dos poemas e quase nunca
nos indica os fins poéticos da imitação nem dos seus efeitos29. Tendo em vista tal proposta é que
discuto a paródia. Já não desejaria visá-la retoricamente, como fez Maria Silvana Celentano,
antes de ver esgotada a abordagem poética. A paródia, como operação textual, integra a
intextualidade, porque, assim como ela, denuncia no próprio nome, como dissemos, a presença
necessária de outro texto. E, sabemos, a paródia implica a finalidade ampla de “fazer rir”. Mas,
por incrível que pareça, mal podemos inserir a paródia, que é explicitamente relativa a outro
texto, nos conceitos de imitação e emulação helenística há pouco vistos, que também são. Só
inexatamente se pode dizer que a Batracomiomaquia é imitação da Ilíada. Justapor paródia à
imitação e emulação é só fazer aquilo a que somos relegados a fazer na falta de mais ampla
teoria. Visá-la pelo prisma da retórica é desistir de vez de fazer teoria propriamente poética.
Temos que admitir que reconhecer o caráter paródico de um poema em relação a outro não dá
conta de diferentes meios com que é efetivada. Lemos, traduzimos, analisamos e interpretamos o
poema 68 da Priapéia Latina. Percebemos que toda elevação do caráter e das ações de Ulisses e
Penélope são ridiculamente rebaixados por um Priapo que aprendeu Homero de ouvido e toma
180

tudo a partir da reduzida perspectiva fálica. Como disse, sabemos aqui a finalidade, mas, depois
que se ateste a “relação paródica”, não há terminologia antiga que discrimine a assimetria entre
os dois poemas. Oxalá, mediante teorização intertextual houvesse uma moderna. Talvez se
pudesse fazer que a paródia, sendo o que antigos disseram ser, fosse agora também
explicitamente uma das modalidades de intertextualidade e assim ganhasse, numa taxinomia de
práticas intertextuais, o estatuto de alternativa para imitação e emulação, se estas, sendo ainda o
que sempre foram, também integrassem uma teoria da intertualidade para textos antigos. No
poema 68 percebemos haver o seqüestro e o resumo do argumento odissíaco refundido em verso
elegíaco no que passava a ser, desde Marcial, a modalidade já não necessariamente breve do
epigrama latino. Houve rebaixamento risível do argumento, mas não com a manutenção do
metro hexamétrico, como a Delíada ao que tudo indica manteve, como manteve a
Batracomiomaquia. O poema de Couto Monteiro que leremos partilha com o poema que parodia
aquela similaridade de condições que mencionei no início; assim, na falta de terminologia que
discrimine a simetria e a dissimetria para determinar que efeitos têm o que chamo aqui “paródia
simétrica”, ilustro aos ouvintes lusófonos o que quero dizer, aproveitando para ilustrar, com
justapor soneto 5 de Petrarca, como Camões, imitando o soneto, emula Petrarca. Aponho,
outrossim, belíssima tradução que Jamil Halmansur Haddad30 fez do soneto do italiano:
Petrarca, Soneto 5 Luís de Camões Cábula (Couto Monteiro, 1821–1896)
Questa anima gentil che si diparte, Alma minha gentil, que te partiste Cábula minha, por que assim partiste
anzi tempo chiamata a l’altra vita, tão cedo desta vida, descontente, tão cedo do meu curso descontente?
se lassuso è quanto esser dê gradita, repousa lá no Céu eternamente Não vás ficar por lá eternamente,
terrà del ciel la piú beata parte. e viva eu cá na terra sempre triste. nem fique eu cá nas aulas sempre triste.
S’ella riman fra ‘l terzo lume et Marte, Se lá no assento etéreo, onde subiste, Se lá nesse lugar aonde fugiste
fia la vista del sole scolorita, memória desta vida se consente, memória dum trocista se consente,
poi ch'a mirar sua bellezza infinita não te esqueças daquele amor ardente não te esqueças daquela troça ingente,
l’anime degne intorno a lei fien sparte. que já nos olhos meus tão puro viste. que já no quarto meu tão grande ouviste.
Se si posasse sotto al quarto nido, E se vires que pode merecer-te E se vires que pode merecer-te
ciascuna de le tre saria men bella, alguma cousa a dor que me ficou algum feriado, a dor que me ficou
et essa sola avria la fama e ‘l grido; da mágoa, sem remédio, de perder-te, da mágoa d’eu julgar nunca mais ver-te,
nel quinto giro non habitrebbe ella; roga a Deus, que teus anos encurtou, roga a quem sem piedade te expulsou
ma se vola piú alto, assai mi fido que tão cedo de cá me leve a ver-te, que tão cedo p’ra cá torne a trazer-te,
che con Giove sia vinta ogni altra stella. quão cedo de meus olhos te levou. quão cedo do meu curso te levou.

Petrarca, Soneto 5
A alma minha gentil que agora parte
tão cedo deste mundo à outra vida
terá certo no céu grata acolhida,
indo habitar sua mais beata parte.
Ficando entre o terceiro lume1 e Marte, TERCEIRO LUME: Vênus.
será a vista do sol escurecida,
virá depois, muita alma ao céu subida,
vê-la – portento de natural e arte.
181

E se pousasse entre Mercúrio e Luz,


brilhara mais do que eles nossa bela,
como só se espalhara a fama sua.
A Marte certo não chegara ela2. A MARTE NÃO CHEGARA: por ser o astro belicoso e não poder por isso condizer com a
Mas se mais alto o seu vulto flutua, benignidade de Laura.
vencera Jove e qualquer outra estrela.

A forma, quero dizer, o metro, é absolutamente o mesmo, o soneto, como é o mesmo o esquema
rímico. No primeiro quarteto, assim como nos dois versos iniciais do primeiro terceto, até as
palavras finais são idênticas. Aqui paródia tem a mesma dimensão do texto parodiado e ocorre
como que por inteira substituição, já não por seqüestro ou resumo da matéria alheia, o que é
possibilitado pela brevidade o poema, o que não ocorre com as longas epopéias. (Perceba-se: se
dissesse “alusão”, não discriminararia tampouco o intertexto de um poema paródico e de um
não-paródico).
A paródia anônima do poema de Catulo tem o mesmo metro, admite a mesma trama do
périplo, já não do barquinho, mas do muleteiro, e não é absolutamente isomorfo por ter apenas
dois versos a menos do que o texto primeiro, mas não deixa de ser uma paródia simétrica:

CATULO, 4
Phaselus ille, quem uidetis, hospites, Este barquinho que estais vendo, ó forasteiros,
ait fuisse nauium celerrimus, diz que foi mais veloz que todos os navios
neque ullius natantis impetum trabis e que a leveza de nenhum nadante lenho
nequisse praeterire, siue palmulis fora capaz de superá-lo quer com remos
opus foret uolare siue linteo. 5 voar fosse preciso quer com linho e diz:
Et hoc negat minacis Hadriatici não o desdiz a onda horrenda do Adriático,
negare litus insulasue Cycladas as ilhas Cíclades ou Rodes tão famosa,
Rhodumque nobilem horridamque Thraciam não o desdiz a má Propôntida da Trácia
Propontida trucemue Ponticum sinum, nem o temível Ponto Euxino, mar cruel,
ubi iste post phaselus antea fuit 10 lugar onde este (após) barquinho foi bem antes
comata silua; nam Cytorio in iugo selva frondosa pois no cume do Citoro
loquente saepe sibilum edidit coma. muitos sibilos fez na fronde murmurante.
Amastri Pontica et Cytore buxifer, Amástris Pôntica!, ó Citoro rico em toras!,
tibi haec fuisse et esse cognitissima tudo isto foi, tudo é de ti bem conhecido,
ait phaselus: ultima ex origine 15 diz o barquinho – e desde as últimas origens
tuo stetisse dicit in cacumine, afirma no teu cimo ter estado em pé,
tuo imbuisse palmulas in aequore, os remos ter molhado então em tuas águas
et inde tot per impotentia freta e desde lá em meio a mares indomáveis
erum tulisse, laeua siue dextera seu dono ter levado, quer à sestra, quer
uocaret aura, siue utrumque Iuppiter 20 à destra houvesse vento, ou Júpiter, propício,
simul secundus incidisset in pedem; batesse numa e noutra escota ao mesmo tempo,
neque ulla uota litoralibus diis nem voto algum jamais a deuses litorais
sibi esse facta, cum ueniret a mari diz que fez, quando a este lago cristalino
nouissime hunc ad usque limpidum lacum. vinha de mares nunca dantes navegados.
Sed haec prius fuere: nunc recondita 25 Mas isto tudo foi outrora, agora, à parte
senet quiete seque dedicat tibi, descansa em calma e envelhece e se dedica
gemelle Castor et gemelle Castoris. a ti, Castor, e a ti, ó gêmeo de Castor.
182

CATALEPTON, 10
Sabinus ille, quem uidetis, hospites Este Sabino que estais vendo, ó forasteiros,
ait fuisse mulio celerrimus, diz que foi mais veloz que os muleteiros todos
neque ullius uolantis impetum e que a leveza de nenhum carro a voar
cisi nequisse praeterire, siue Mantuam fora capaz de superá-lo quer à Mântua
opus foret uolare siue Brixiam, 5 voar fosse preciso quer à Bríxia e diz:
et hoc negat Tryphonis aemuli domum não o desdiz a casa de Trifão rival
negare nobilem insulamue Caeruli, nem o de Cérulo cortiço tão famoso,
ubi iste post Sabinus ante Quintio onde este após Sabino, outrora Quincião,
bidente dicit attondisse forcipe com a tenaz bidente, diz, muita cerviz
comata colla, ne Cytorio iugo 10 tosou peluda, porque a crina dura, opressa
premente dura uulnus ederet iuba. do jugo do Citoro, chagas não ganhasse.
Cremona frigida et lutosa Gallia, Ó gélida Cremona, o Gália lamacenta,
tibi haec fuisse et esse cognitissima tudo isto foi, tudo é de ti bem conhecido,
ait Sabinus: ultima ex origine diz o Sabino e desde as últimas origens
tua stetisse dicit in uoragine, 15 afirma ter estado em pé em tua voragem,
tua in palude deposisse sarcinas ter apeado no teu pântano a bagagem
et inde tot per orbitosa milia e desde lá por milhas tanta vez sulcadas
iugum tulisse, laeua siue dextera ter sustentado as rédeas, quer à destra, quer
strigare mula siue utrumque coeperat à sestra, quer em ambos empacasse a mula.
neque ulla uota semitalibus deis 20 Nem voto algum jamais aos deuses dos caminhos
sibi esse facta, praeter hoc nouissimum, diz que fez, à exceção deste aqui recentíssimo:
paterna lora proximumque pectinem. os arreios paternos e a almofaça31 anexa.
Sed haec prius fuere: nunc eburnea Mas isto foi outrora, agora nos assentos
sedetque sede seque dedicat tibi, elefantinos ele senta e se dedica
gemelle Castor et gemelle Castoris. 25 a ti, Castor, e a ti, ó gêmeo de Castor.

Aqui a personagem é romano, pertencente à gens Sabina, e tratador de mulas; tendo


enriquecido (senta-se em assentos elefantinos, isto é, de marfim, das baixas autoridades
municipais, vv. 23-24), mudou o nome de Quincião para Sabino e, aposentado, relata suas
façanhas. O que em Catulo é um barco (phasellus, v. 1), sinédoque de odissíacas viagens e como tal
elevadas, agora é um tratador de mulas (mulio, v. 2): não é boiadeiro, nem cabreiro, nem
porqueiro: é muleteiro. A metamorfose cultura/natura em Catulo – o barquinho fora árvore –
aqui é social, o pobre é rico, e adota o importante cognome dos sabinos. A distância de Amástris
e do Citoro, que marca a excelência não menos ulissíaca de quem foi tão longe, converte-se em
cidades da Gália Cisalpina, ela mesma lamacenta (v. 12): curiosamente uma é Bríxia (v. 5), mãe
da pátria Verona, como diz Catulo no poema 67, outra Mântua (v. 4), pátria de Virgílio. O remo
(palmulis, v. 4) vira a tenaz (forcipe, v. 9) e a almofaça (pectinem, v. 22), isto é, o marinheiro a pelejar
contra feros, perigosos mares, o valente empenho dos remos à falta de ventos ou ao excesso deles
convertem-se na azáfama e na escova rústicas com que o muleteiro tosava as mulas e no
humilíssimo pântano onde decerto amiúde enfiou os pés. Trifão (v. 6) e Cérulo (v. 7) são
muleteiros concorrentes (o mendigo inveja o mendigo, dissera Hesíodo32); também eles
183

prosperaram: o primeiro é escravo grego liberto, como o nome indica; o outro é proprietário de
imóveis e aluga cômodos à camada baixa do povo; com perdão do famigerado anacronismo, não
pude evitar a lembrança de João Romão. Já não anacrônica, mas diacronicamente em relação a
leitor 2000 anos póstero a rigidez de antes e depois não estorva a criação de efeitos, como
mostrou Robson Tadeu Cesilla33, comentando a relação entre o epigrama de Marcial e o poema
3 de Catulo. Volto ao poema: os deuses litorais (litoralibus diis v. 22) são agora os deuses dos
caminhos (semitalibus deis, v. 20), entre os quais pontifica o sempre servidor e serviçal Mercúrio,
deus itinerário. O recôncavo onde se retira barco alquebrado (vv. 25-26), insígnia de passadas
glórias, são agora assentos elefantinos, como que pantufas de almejada aposentadoria do eterno
novo-rico (vv. 24-25). Tudo isso é explícito e não é sem graça, mas duas pérolas, apenas duas,
mas descomunais na sua pouquidade, significam isso tudo sem dizer: refiro-me finalmente ao
emprego, com sentido diferente e mais vulgar, de duas mesmas palavras que Catulo utilizara:
insula, em Catulo (v. 7) significa “ilha”, e são as afamadas Cíclades; na paródia significa “casario”,
“cortiço” (kháire, João Romão!); iugo (v. 10) de iugum, em Catulo (v. 11) significa “cume”, “cimo”
do monte Citoro, elevadas alturas de que proviera o barco; na paródia significa “jugo”, “trela”
feita com a madeira dali provinda, que vai na úmida bocarra das mulas. É como se no recôndito
âmbito da palavra isolada, iugum, insula, já houvesse a potência nuclear da paródia que o poeta
bombástico mas na surdina transforma em intensidade significativa. Exímia poesia, não indigna
de Virgílio, autor suspeito, sempre de plantão na Appendix Vergiliana. Quem sabe? Mas se fosse, se
for, pensemos alfim no efeito estranho que é contemplar o éthos do jovem e jovial Catulo, que em
alguns poemas vemos como poeta de estilingadas verbais, tornado vidraça para a pedrada
daquele senhoril e grave Virgílio, Homero latino, guia de Dante e pai do Ocidente.
184

Notas do Capítulo 5

1 Em 1999, quando defendi a tese de doutoramento Falo no Jardim: Priapéia Graga Priapéia Latina, e em 2006,
quando com o mesmo título mas com alterações em alguns capítulos foi publicada, dizia que “os poemas
priapeus tinham provavelmente múltipla autoria, o que significa que entre os autores devem ter figurado
Catulo, Virgílio, Horácio, Propércio, Tibulo, Ovídio, Marcial e Petrônio”. A partir de 2005, aquando da
jornada havida em Lião, e das consequentes publicações – uma, de Frédérique Biville; Emmanuel
Plantade & Daniel Vallat (éds.), “Les Vers du Plus Nul des Poètes…”: Nouvelles Recherches sur les Priapées. Actes de
la Journée d’Étude Organisée le 7 Novembre 2005 à l’Université Lumière-Lyon 2 (Collection de la Maison de l’Orient
et de la Méditerranée 38; Série littéraire et philosophique 11), Lyon: Maison de l’Orient et de la
Méditerranée, 2008; a outra, Priapées; texte établi, traduit e commenté par Louis Callebat; étude métrique
par Jean Soubiran, Paris: “Les Belles Lettres”, 2012 – a tese da autoria unitária, que Buchheit defendia em
1962 (Vinzenz Buchheit, Studien zum Corpus Priapeorum; München: C. H. Beck'sche Verlagsbuchhandlung),
voltou a ter primazia. Vinha sendo apoiada por Kytzler/Fischer (Die Gedichte des Corpus Priapeorum;
lateinisch und deutsch, herausgegeben von Carl Fischer, mit einer Einführung von Bernhard Kytzler;
Salzburg: Residenz Verlag, 1969), Hallett (Hallett, J. P., “Something in Excess? Priapea 50, 2”; Mnemosyne,
4, 31, 2 [1978], pp. 203-206) Cano & Velàsquez (Cano, P. L. & Velàsquez, J., Carmina Priapea: a Príapo,
Dios del Falo; Universidade Autònoma de Barcelona, 2000), Holzberg (Holzberg, N., “Impotence? It
Happened to the Best of Them! A Linear Reading of the Corpus Priapeorum”; Hermes, 133, 2005, pp. 368-
381); Citroni (Citroni, M., “Les Proèmes des Priapées et le Problème de la Datation du Recueil”; “Les Vers
du Plus...”. Collection de la Maison de l’Orient, 38, Série littéraire et philosophique 11, 2005, pp 35-51.
Pois bem, revisitar o capítulo da tese de doutoramento mais de 10 anos depois e 7 anos depois de
publicada é o primeiro passo que dou para proceder à atualização que já se faz necessária.
2 “Introduction”, p. XXXII: “Parmi les principaux éscrivains identifiés comme auteur possible des Carmina

Priapea, Martial offre le profil lingüistique et stylistique certainement le plus proche de celui que permet de
tracer l’analyse formelle des Priapées”. Na mesma página: “Si donc Martial n’est certainement pas l’auteur
des Priapées, il est licite d’envisager, à la lumière des observations précédents, que cet auteur ne lui est
guère pósterieur et qu’ il a pu appartenir à un cercle comun d’écrivains”.
3 Entenda-se: Priapo como personagem menciona a enormidade do falo, mas, ao contrário do leitor, não

a vê como deturpação, o que concorre para a risibilidade; cf. poemas 10, 41, 44, 49, 56, 70 da Priapéia
Latina, em que se menciona a irrisão que Priapinho sofre.
4 CIC. de Orat. 2, 58, 236-242:

Duo enim sunt genera facetiarum, quorum Dois são os gêneros de humor, um motivado pelos
alterum re tractatur, alterum dicto. Re, si quando fatos, outro pelos ditos. Pelos fatos, sempre que se
quid, tanquam aliqua jufabella narratur. [...]. In re conta uma anedota. [...]. Nos fatos reside também um
est idem ridiculum, quod ex quadam deprauata modo do risível que costuma ser produzido a partir
imitatione sumi solet. [...]. In dicto autem de uma imitação distorcida. [...]. Nos ditos, porém, o
ridiculum est id, quod uerbi, aut sententiae risível é o que é causado pela agudeza de alguma
quodam acumine mouetur. palavra ou expressão.

5 CIC. de Orat, 2, 63, 256:


Alterum genus [quod moueat risum] est, quod Há outro gênero que desperta riso, que consiste
habet paruuam uerbi immutationem, quod in numa pequena mudança na palavra e, apoiado na
littera positum Graeci uocant παρονομασίαν, ut mudança de uma letra, os gregos chamam
“nobiliorem”, “mobiliorem”. paronomásia, como entre nobiliorem e mobiliorem.
A paronomásia é descrita por Quintiliano (9, 3, 66), que a chama pelo termo latino adnominatio. O autor da
Retórica a Herênio, sob a denominação latina, trata longamente da figura (4, 20. 29-32). Ambos, porém, ao
contrário de Cícero, não descrevem a paronomásia como meio de mover o riso.
185

6 Ψολόεντα κεραυνόν: Od. 23, 330; 24, 539; κουλὲον: Il. 1, 194; σμερδαλέον: Il. 2, 309; Od. 6, 137. A
tradução procurou refazer o processo paronímico: busquei no grego antigo karákallon (καράκαλλον) cunhei
“merdaleu” e mantive culeon, que fônicamente são semelhantes aos termos do calão vernáculo na tradução.
No processo, desapareceu a expressão homérica ψολόεντα κεραυνόν (Od. 23, 330), “relâmpago ardente”.
7 Pediconum, de pedico, -onis, praticante da paedicatio, penetração anal.
8 CIC. de Orat. 1, 221:
Orator autem omnia haec, quae putantur in O orador a tudo que, no ordem costumeira da vida,
communi uitae consuetudo mala ac molesta at se considera mau, nocivo e recusável, com palavras
fugienda, multo maiora et acerbiora uerbis facit; faz muito pior e muito mais amargo. Igualmente,
itemque ea, quae uolgo expetenda atque optabilia àquilo que ao vulgo parece cobiçável e desejável ele
uidentur, dicendo amplificat atque ornat. no discurso amplifica e adorna.
9 Placuisset, de placere: para o sentido indicado, cf. OLD , s.v.1d.
10 A redução não é outra coisa que a amplificação a minore (CIC. de Orat. 3, 104):
Summa autem laus eloquentiae est amplificare A suprema glória da eloqüência é, ornando,
rem ornando, quod ualet non solum ad amplificar o objeto, o que vale não só para aumentar
augebdum aliquid et tollendum altius dicendo algo e alçá-lo ainda mais pelo discurso, mas também
sed etiam ad extenuandum atque abiciendum, para reduzi-lo e degradá-lo.

11 Amor significa aqui “desejo sexual”; cf. OLD, s v. 1a, e Adams, p. 188.
12 Od. 21, 274; Il. 2, 174.
13 Πολύτροπος, de πολύ + τροπος, do verbo τρέπω, “girar”, “virar-se”: é seu primeiro epíteto na Odisséia,

1, 1 e 10, 330. Lívio Andronico, que a traduziu, usa o termo uersutus, do verbo uertere, “girar”, “dar voltas”.
É curioso como o significado preciso desse epíteto em grego e em latim é bem vertido pelo linguajar
coloquial de hoje, “ virar-se”: Ulisses, astucioso, é mesmo o que sempre “se vira”.
14 Cf. CIC. Fam. 7, 16, 1: Tu tamen, mi uetule, non sero.

15 Cf. OLD, s.v. 6c.


16 O encavalgamento no hexâmetro epopéico exprime, entre outras coisas, o pouco espaço disponível ali

para a matéria épica, que, elevada e grandiosa, assim transborda o limite do verso. O encavalgamento
inverso do hexâmetro satírico, ao antecipar palavras do período e do verso seguintes, expressa a pequenez
da matéria jocosa em relação ao mesmo espaço hexamétrico disponível, que então sobeja. Vejam-se
exemplos logo nos versos iniciais da primeira Sátira de Horácio (1, 1, 1-3):
Qui fit, Maecenas, ut nemo, quam sibi sortem Mecenas, donde vem que satisfeito
seu ratio dederit seu fors obiecerit, illa ninguém vive no estado que elegera,
ou que sorte lhe dera e aplaude aqueles
contentus uiuat, laudet diuersa sequentis? que a diverso propósito se aplicam?.
em que illa, pertencente ao período do terceiro verso, vem antecipado no segundo. E ainda em 1, 1, 7-9,
em que o mesmo encavalgamento inverso ocorre com horae:
Militia est potior. Quid enim? Concurritur; horae Ó! antes ser soldado! E que! combate,
momento cita mors uenit aut uictoria laeta e num rápido ensejo ou vende ou morre!.
In: Satyras e Epistolas de Quinto Horacio Flacco; traduzidas por Antonio Luiz de Seabra; Porto: Em Casa de
Cruz Coutinho, Aos Caldeireiros, 1846, pp. 1 e 2, respectivamente.
17 Cf. poema 7 da Priapéia Latina: Cum loquor, una mihi peccatur littera: nam “te”/ “pe” dico semper blaesaque lingua

mihi est, literalmente, “Ao falar, numa letra sempre caio em erro: pois ‘te’ pronuncio ‘pe’ e minha língua é
sempre presa”, em que os vocábulos te pe dico em latim soam te pedico, “penetro teu cu”. O desfecho desse
186

poema traduzi por “‘a ti eu falo’ sai a ti meu falo’”, em que a paronímia entre “eu” e “meu” e entre “falo”,
de falar, e “falo”, membro ereto, isto é, apto à penetração, visa a render aquela que há em te pe dico, do
verbo pedicare, designador da penetração anal, que o Priapo fálico aprecia perpetrar. A tradução tenta
assim mostrar que para Priapo, no original, por uma blesidade que é antes ética que fonética, qualquer
fala se faz priapesca e fálica.
18 Segundo Nono Abade em São Gregório de Nazianzo, a versão do comportamento promíscuo de Penélope

dá curiosa explicação para o nascimento de Pã. Lembro que em grego, ὁ Πάν significa “o Todo”:
τοῦ Πρίαπου καὶ τοῦ Πανής: Λέγεται ὅτι ὅτε ο ἱ Sobre Pã e Priapo: conta-se que, quando os
μνηστῆρες τῇ Πηνελόπῃ, τῇ τοῦ Ὀδυςσέως γυναικί, pretendentes assediavam Penélope, esposa de
παρέμενον, συνεμίγησαν α ὐτῇ πάντες, καὶ
Ulisses, todos se uniram a ela e que nasceu Pã, como
ἐγεννήθη ὁ Πάν. Πὰν δὲ ἐκλήθη ἐπειδὴ ἀπὸ πάντων
τῶν μνηστήρων συνελήφθη.
também foi dito na Primeira Oração. E foi chamado
Pã, por ter sido concebido de todos os pretendentes.

Oração II Contra Juliano –Patrologia, 36 (Migne), 34, 1052-1053 a, b, c) (= Pseudo-Nonnus, Scholia Mythologica,
5, 29, 1-4).
19 Cf. OLD s.v. 1a, b, c, d; 2a, b; 3 e 5a.
20 No poema 15, 3 da Priapéia Latina, Priapo diz: is me sentiet esse non spadonem, “verá depressa que não sou

eunuco”.
21 Cf. OLD s.v. 2.
22 Cf. OLD s.v. 12c.
23 Na Priapéia, 29, 3, Priapo é invocado como diue minor, “deus menor” e em 84, 16: tu posito deus pudore, “tu

[...] deus sem ter pudor”.


24 Cf. materia: Ars, v. 38; materies: Ars, v. 131.
25 Tradução de Rosado Fernandes; DIONÍSIO DE HALICARNASSO, p. 49.
26 David West; Tony Woodman, (eds.) Creative Imitation and Latin Literature. Cambridge: Cambridge

University Press, 1979.


27 10, 1, 51-57, cf. Capítulo 2. 3, A OUTRA TEORIA.
28 Para completar o que me falta mencionar sobre poética helenística antes de passar à paródia, lembro o

heuretés, aquele poeta que, tendo sido o inventor de determinado gênero, seria também, segundo os poetas
críticos alexandrinos, aquele que estabeleceu as leis do gênero às quais se deve ater qualquer poeta que se
ponha a praticá-lo.
29 Quantos discursos oratórios temos hoje de gregos e romanos? Relacionemos com a quantidade de

teoria retórica: concluiremos que os discursos estão bem amparados pela teoria. Relacionemos
analogamente os poemas gregos e romanos que temos hoje com a quantidade que sobrou de teoria
poética: veremos que os poemas estão desamparados. É proposta de complementaridade a abalizar
inferências.
30 O Cancioneiro de Petrarca; pp. 44-45. As notas são do tradutor.

31 ALMOFAÇA: pectinem; escova metálica para limpar cavalgaduras.


32 Op., vv. 25-26:

καὶ κεραμεὺς κεραμεῖ κοτέει καὶ τέκτονι τέκτων, O oleiro inveja o oleiro, o carpinteiro ao carpinteiro,
καὶ πτωχὸς πτωχῷ φθονέει καὶ ἀοιδὸς ἀοιδῷ. o mendigo ao mendigo e o aedo inveja aedo.

33 Apoiando-se em Don Fowler (Roman Constructions: Readings in Postmodern Latin; Oxford, New York,
Oxford University Press, 2000, pp. 129-130), Robson Tadeu Cesila afirma muito a propósito: “Uma
conseqüência direta dessa sua visão da intertextualidade é a possibilidade de reverter a direção da
referência textual, isto é, da mesma forma que o texto referido cria efeitos de sentido, afeta a leitura do
187

texto referente, este também afeta a leitura do texto referido; a Eneida de Virgílio, por exemplo, afeta a
leitura das epopéias homéricas tanto quanto estas afetam a sua; não se lê Homero da mesma forma depois
de se ler a epopéia virgiliana. Isso se deve ao fato de que o leitor é quem governa a leitura; o leitor, com
seu próprio conhecimento do sistema de textos e pertencente a uma dada época e uma dada cultura,
transporta para a leitura de qualquer texto os critérios e padrões de sua época e cultura”. In: O Palimpsesto
Epigramático de Marcial: Intertextualidade e Geração de Sentidos na Obra do Poeta de Bílbilis. Tese apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Lingüística do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade
Estadual de Campinas como um dos requisitos para a obtenção do título de Doutor em Lingüística, na
área de Letras Clássicas, orientada pelo Prof. Dr. Paulo Sérgio de Vasconcellos, 2008, infelizmente
inédita, pp. 43-44.
188

SEGUNDA PARTE:
DE TRADUÇÃO

Eu já sabia que em país mais dilatado


Homero, o que pensava fundo, governara:
Porém seu límpido ar não tinha ainda aspirado,
Até que ouvi a voz de Chapman, brava e clara.

(John Keats, “On First Looking into Chapman’s Homer”, traduzido “Ao Compulsar, pela
Primeira Vez, o Homero de Chapman” por Péricles Eugênio da Silva Ramosi).
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CAPÍTULO 1

ENTREVISTA COM JOÃO ANGELO OLIVA NETO


CADERNOS DE TRADUÇÃO

1. Quando e como nasceu o seu contato com a tradução?

O primeiro contato com tradução foi no curso de Letras anterior, em


inglês e português: em palestra, o professor Flávio di Giorgi, então na cadeira de
latim da USP, falava com entusiasmo sobre textos antigos, e com pesar, porque
inacessíveis em nossa língua. Disse que era “dever disponibilizar a todos aquele
patrimônio da humanidade”. Não esqueci aquelas palavras, que concorreram
para que me decidisse a cursar Clássicas. Pois bem, em 1988, concluído o
segundo bacharelado, começava a lecionar na cadeira, bem quando a professora
Maria da Glória Novak organizava Antologia de poesia latina, na qual me coube
traduzir alguns epigramas de Marcial. A Antologia foi primeiro editada pelo
próprio Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da USP e depois pela
Editora Martins Fontes, com o título Poesia Lírica Latina.

2. Você fez primeiro um bacharelado de inglês e português antes de fazer o


bacharelado em latim e grego. Em que medida o primeiro bacharelado teve
impacto em sua formação de classicista?

O bacharelado de inglês forneceu-me o segundo motivo (e motivação)


para cursar Clássicas. Em 1982, no programa de Literatura Inglesa e Norte-
Americana constavam T. S. Eliot, Ezra Pound, James Joyce, cujas obras, cheias
de referências intertextuais à literatura antiga, despertaram meu interesse por
ela, se possível no original, para compreender aqueles escritores: pareceu-me
que, se autores modernos paradigmáticos se serviam de matéria antiga para
acionar poéticas ainda em vigor, a mim, ao professor de Teoria Literária ou de
Literatura Anglo-Americana ou mesmo de Literatura Luso-Brasileira que eu
então queria ser, era obrigatório conhecer bem aquela matéria. Fiz o que era só
desvio e dele nunca mais saí.

3. Você traduziu Catulo, poemas sobre Priapo, Calímaco e Horácio? Você poderia
falar um pouco sobre seus textos e autores clássicos preferidos?

Vários poemas de Catulo apresentam notável dissociação entre


simplicidade lingüística e complexidade semântica, e o conjunto deles exibe
matéria e elocução variadas, isto é, elevadas nos hinos, epitalâmios, elegias
fúnebres, mas baixas nos iambos risíveis e nos vituperiosos. Catulo é cultor de
vários gêneros – lírica, elegia, iambo – que para os antigos eram distintos, além
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de uma espécie de épica: além de praticá-los, mistura-os, combina-os. Ademais,


é o poeta não-cômico que mais engenhosamente produz o risível. Calímaco para
os gêneros que apontei autor é, depois de Homero, o autor grego mais
importante, porque estabeleu os preceitos poéticos de um grupo de poetas-
bibliotecários da Biblioteca de Alexandria, preceitos que autores como Catulo,
Horácio, Virgílio, Ovídio, Propércio, Tibulo e Marcial acolheram. Até pouco
tempo atrás era praticamente ignorado na Universidade brasileira como
preceptista; agora tem sido estudado, mas apenas por causa da preceptiva, ou
por causa de poética, isto é, por causa das idéias (a matéria), que se podem
traduzir em prosa, mas não como poeta, isto é, por causa do modo como as diz (a
elocução). Por isso, é bem oportuno aqui lembrar que a tradução poética é que
pode mostrar de uma só vez a excelência dele como poeta e como teórico. Essas
são minhas preferências fixas. Outras variam segundo os interesses do momento,
como Marcial, a que tenho me dedicado de modo intermitente, e agora Plínio, o
Jovem, de quem devo traduzir com bolsa PQ uma seleção de 80 epístolas
poéticas, retóricas, pictóricas e escultórias.

4. Embora professor de latim, você traduz também do grego. Como você vive essa
sua dupla inserção?

Propriamente com satisfação: traduzir grego e latim comunica-me uma


espécie de plenitude para com as “Letras Clássicas” e a “Filologia”. Costumo
dizer que sou helenista e latinista, mas trabalho como professor de latim na
graduação. Na Pós, o curso que ministro tem matéria grega e matéria latina,
assim como as tem a Priapéia. Apesar da inevitável inserção de docentes e
pesquisadores numa ou noutra área, creio que nossos cursos de graduação
deveriam integrar as áreas para formar só e sempre classicistas, em vez de meros
latinistas e meros helenistas. Todos ganhariam se nos próprios Estudos Clássicos
não se litigasse mesquinhamente para provar qual das duas áreas é mais
importante, já que na velha “Filologia” nunca houve especialização.

5. Quais são as maiores dificuldades para traduzir textos do grego e do latim para
um público brasileiro do século XXI?

Restringindo-me à poesia, embora não exclusivamente dela, a maior


dificuldade – eu diria a mais ampla, porque acarreta as demais – é a grande
diferença entre a mentalidade dos antigos, que grosso modo prioriza o que é
público e exterior à pessoa, e a nossa mentalidade, que faz o oposto, prioriza o
que é privado e interior da pessoa. Os antigos, mesmo quando tratam de afetos,
isto é, mesmo tratando do que chamamos “sentimentos”, “emoções”, que nos
são subjetivos, fazem-no de maneira objetiva e concreta: quando não recorrem
ao mito, que é repertório de todos, aludem ao que outros autores escreveram,
repertório igualmente compartilhado pelas pessoas cultas. Ao mesmo tempo,
utilizam diálogo, por meio do qual a persona poética exterioriza ao interlocutor o
que se lhe passa no espírito. A maioria dos poemas antigos ou é diálogo, ou é a
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metade dele (alguém explicitamente dirigindo-se a outrem) ou contém diálogo.


Ora, mito, alusão, diálogo implicam haver personagens, autores, locais, tempos,
que vêm nomeados, e todos esses nomes, se eram reconhecíveis e poeticamente
significativos para os antigos, já não são para o público do século XXI, brasileiro
ou donde for. Por tudo isso, tradução de poesia antiga costuma ser muito
anotada; assim, o tradutor poder manter aqueles nomes e contextulizá-los nas
notas, mas corre o risco de seqüestrar para elas o que devia ser do poema: os
críticos dirão que “explicou a piada”. Pode nada anotar, e não ser nada
compreendido. Dirão que é inútil. Poderá acomodar o discurso antigo a alguma
poética contemporânea, mas (sub)trairá elementos da cultura antiga, e os críticos
dirão que, infiel, adulterou o que devia transmitir. Vida de tradutor é dura.

6. Como você vê a história da tradução dos textos gregos nos países de língua
portuguesa?

Permitam-me alongar-me nesta resposta. “História da tradução dos


textos gregos” tem dois sentidos: se significar o que foi feito, isto é, a soma de
todas as traduções feitas do grego em português nos países lusófonos, afirmo que
é muito lacunar. Há inúmeros textos importantes ainda sem tradução em
português, o que é inaceitável, já que a literatura grega, assim como a latina, é
um conjunto praticamente finito, com pouco acréscimo trazido pelas
descobertas, que, mesmo assim, ocorrem em tempo muito maior do que aquele
que levaria traduzir o que nunca foi traduzido. Estamos atrasadíssimos:
“inéditos” há, entre outros, poetas líricos arcaicos gregos, poetas pré-helenísticos
e helenísticos, oradores e muitos epigramatistas da Antologia Grega; entre os
romanos, vários discursos de Cícero, as Instituições Oratórias, de Quintiliano, As
Epístolas de Plínio Jovem e historiógrafos tardios não têm tradução integral. Com
freqüência, quando têm, ou a tradução é indireta – como A História de Roma de
Tito Lívio, integral, publicada pela PAUMAPE, que, honesta e útil, é indireta,
do italiano – ou é direta, mas pondo em prosa o que era verso, como a versão
portuguesa dos Epigramas, de Marcial feita por vários tradutores e publicada
pelas Edições 70. Nos últimos 20 anos, voltou-se a traduzir e publicar no Brasil
por várias editoras, mas sem nenhum planejamento nelas e entre elas, como a
presença por justo soldo de organizadores de coleção. Uma das conseqüências é
que amiúde se retraduzem obras já traduzidas (as “clássicas” dentre os Clássicos,
tragédias gregas, tratados de Sêneca), mantendo-se aquele “ineditismo”. Os
portugueses têm também muito traduzido e publicado: pelo INIC (Instituto
Nacional de Investigação Científica) nos anos 80, depois pelas Edições 70 e
recentemente também pela Imprensa Nacional / Casa da Moeda (“Biblioteca de
Autores Clássicos”), que menciono porque revela como que um projeto
sistemático de traduzir tudo.
Entendendo-se, porém, “história da tradução dos textos gregos” como o
registro e o estudo crítico dos textos gregos (e bem deveria acrescer os latinos)
traduzidos em toda a história da língua portuguesa, digo que é trabalho
192

incipiente, iniciado pelos portugueses, mas ainda por incrementar lá e cá. Não
posso deixar de consignar o pioneiro esforço de A. A. Gonçalves Rodrigues, A
Tradução em Portugal: Tentativa de Resenha Cronológica em Língua Portuguesa Excluindo o
Brasil de 1495 A 1950, em 5 volumes, que é monumental, por dizer respeito à
tradução de qualquer língua em português em mais de 500 anos, porém parcial,
por excluir o Brasil e só contemplar o que foi impresso e publicado. Ora, há
muitas traduções importantes de textos gregos e latinos, manuscritas e inéditas,
mas já catalogadas nas bibliotecas portuguesas; da Eneida, entre versões integrais
e parciais em prosa e em verso há 6, arroladas por Aires Augusto do
Nascimento, que decerto integram a História da Tradução. Creio que só em
equipe e a longo prazo temos condições acadêmicas de cumprir essa tarefa, mas
essas condições até agora não existem. Testemunho que tentei em 2008 criar no
Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas da USP a Linha de Pesquisa
HISTÓRIA DA TRADUÇÃO DE TEXTOS GREGOS E LATINOS EM PORTUGUÊS, que
foi rejeitada por alguns colegas, que me acusaram de privilegiar minha própria
pesquisa. Era sim pesquisa minha, mas era a tentativa de institucionalizá-la e
torná-la coletiva. Menos mal, porque a transformei em Projeto de Pesquisa meu,
no Programa e nos Diretórios de Grupos de Pesquisa do CNPq com o nome:
VERVE: VERBUM VETERE: ESTUDOS DE POÉTICA, TRADUÇÃO E HISTÓRIA DA
TRADUÇÃO DE TEXTOS LATINOS E GREGOS, que é também domínio em
contrução (http://citrus.uspnet.usp.br/verve) integrado por classicistas
tradutores da USP, UNESP e UFPR. A meu ver, é preciso primeiro publicar,
digamos, ir publicando as traduções antigas, inéditas ou já impressas,
acompanhadas de estudo para que alcancem público maior, para que formem a
consciência entre os tradutores, pesquisadores e público de que há práticas
congêneres precedentes, ou seja, de que há uma história da tradução vernácula
de textos clássicos. No estudo de cada publicação destas, um item, creio, deveria
ser necessariamente tratado: as circunstâncias da tradução: quem patrocinou
(quando for o caso), a quem se destinava e para que fim, e por si tudo isso bem
mostraria as estratégias da tradução. Mediante tais informações poder-se-iam
rastrear os autores e os gêneros mais apreciados em cada época e investigar os
motivos, procedimento que equipara tradução à literatura e faz da História da
Tradução parte da História da Literatura. Secundária, mas paralelamente, creio
que se devem publicar à parte, em séries, como tem feito o NUPLITT, as teorias
antigas da tradução, para materializar muito humildemente uma série: a
HISTÓRIA DA TEORIA E DAS PRÁTICAS DE TRADUÇÃO DE TEXTOS GREGOS E DE
TEXTOS LATINOS AO PORTUGUÊS. Se cada área assim fizer na própria série,
daremos grande passo para a elaboração da História da Tradução em
português.

7. Você lê traduções de autores latinos e gregos para outras línguas?

Leio e faço-o por motivos diversos. Ao traduzir, pesquiso as estratégias


poéticas de outros tradutores, para imitá-los, sim, quando são dignos de imitar,
193

como os antigos mesmos faziam, para aprender com eles. Ao lecionar, recorro a
elas, mesmo quando não são traduções literárias, porque com certa freqüência a
mesma passagem é interpretada diferentemente pelos estudiosos-tradutores, que
então examino e comparo: é questão de sentido e tradução aqui ombreia a
interpretação. Outras vezes, utilizo diferentes traduções, incluindo as feitas para
o português, para ilustrar aos alunos diferentes perspectivas téoricas e diferentes
finalidades de cada uma. Tento assim mostrar que tradução é plurívoca, não
tem uma só via e implica escolhas e pressupõe teorização, mínima que seja.

8. Como você vê a relação dos Estudos Clássicos com os Estudos da Tradução?

Por um lado, desde que se criou Pós-graduação em Clássicas no Brasil,


tradução tem integrado quase toda dissertação de mestrado e de doutorado em
Clássicas: estudar autores e obras antigos pressupõe intelecção do texto, feita
mediante a mera tradução do sentido, sem preocupação poética nem retórica. É
o que chamam “tradução acadêmica” ou “tradução literal”, que os próprios
autores advertem não conter pretensões “estéticas”, “literárias”, “poéticas”,
quando dizem algo a respeito dela, pois muitas vezes nada dizem, como se
traduzir, mesmo sem pretensões estéticas, literárias e poéticas, fosse coisa
natural. Por freqüente que seja, esse contato em nada acresceu teoricamente a
relação entre Estudos Clássicos e Estudos da Tradução. Por outro lado, com o
renovado interesse por Retórica em Letras Clássicas e a atenção que desperta
para a elocução nos discursos oratórios e em outros discursos em prosa, como
História, Filosofia, Epistolografia, os melhores estudantes perceberam que até na
prosa sempre houve agenciamento formal, isto é, retórico, que no limite é
poético, motivado pela intenção de persuadir, de modo que a “mera” intelecção
do sentido desses discursos, feita, como disse, mediante tradução, já não pode
mais prescindir de agenciamento formal: os bons estudantes, que agora
reconhecem os tropos retóricos (as figuras de linguagem), começam a ser
compelidos a traduzi-los tropicamente e refletir em como fazê-lo: na prática,
começam a fazer teoria. Creio que estamos nesse ponto.

9. Como você seleciona os textos e autores?

Interessam-me ainda os autores ainda não traduzidos e interessam-me


textos importantes para a teoria dos gêneros poéticos na Antigüidade, em
particular os referentes à diferença entre lírica, elegia, iambo e epigrama, de que
trato na Pós-Graduação. Esses interesses são o critério para selecionar o que
traduzo. Assim, à guisa de exemplo, de tudo que há de Calímaco de Cirene,
chefe de escola da poética helenística, traduzi em verso para a primeira edição
do Livro de Catulo só alguns poemas programáticos. Para a segunda edição, ora
em preparo, traduzi recentemente os poemas programáticos restantes.

10. As editoras para as quais você traduz impõem alguma condição para a tradução
dos textos?
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Não impoem nem jamais impuseram. Edusp e Ateliê Editorial muito


profissionalmente me deram liberdade total para traduzir, para anotar à larga e
apor extensa lista bibliográfica.

11. Como se deu o processo de revisão e de preparação do texto traduzido em suas


traduções publicadas?

Foi trabalho longo e bem árduo porque tive, primeiro, que corrigir,
admito, os muitos erros que tinha deixado passar no mestrado e no doutorado
que O Livro de Catulo e Falo no Jardim antes foram. Houve 6 provas para cada
livro, quando costuma haver 3: ambos levaram 2 anos para sair desde a entrega
dos originais, porque eu me demorava no rever as provas. Cheguei a contratar
leitor crítico para Falo no Jardim e eu mesmo aprendi a elaborar índice remissivo
com um preparador de texto profissional. Em segundo lugar, Falo no Jardim é
livro editorialmente muito difícil, porque tem 3 capítulos de ensaios, apêndice
em cada um deles, 4 seções de tradução bilíngüe que requereram cuidadosa
quebra-de-página (pois traduções antigas ali presentes não mantêm o mesmo
número de versos), inúmeras notas de rodapé e 60 imagens com legendas: só um
editor como Plínio Martins Filho para editar um livro assim, e Tomás Martins,
filho dele, para editoriá-lo; bem entendido: só eles para aturarem um autor
como eu.

12. Em sua opinião, qual o papel da tradução na transmissão dos textos clássicos?

Imaginemos todos os escritores, todos os leitores, todos os professores de


Letras, de Humanidades e das outras matérias, todos os sábios, intelectuais,
roteiristas, jornalistas, estudantes, pesquisadores, diletantes cultos reunidos num
auditório gigantesco paradisíaco, ou talvez infernal: a nata dos literatos do
mundo. Imaginemos que não fossem pedantes; melhor, imaginemos que fossem
incapazes de faltar à verdade. Se lhes indagassem quem dentre eles havia lido
toda a Ilíada em grego ou toda a Eneida em latim, quantos responderiam “sim”?
Decerto haveria vários, muitos até, e talvez alguns fossem professores de grego e
de latim. Mas estes leitores do original seriam, sozinhos, responsáveis pela
importância que a Ilíada e a Eneida tiveram e têm? Não seriam! Entregues só a
leitores de grego e latim, Ilíada e Eneida se tornariam o paradigma que foram?
Não se tornariam! Quantos professores de grego e de latim leram tudo o que
leram da literatura grega e da literatura latina apenas em grego e em latim? Nenhum,
afirmo. E se leram muito, como creio, leram em tradução. Ilíada e Eneida já eram
clássicos na Antigüidade, mas após o desaparecimento de seus idiomas só
continuaram a ser clássicos por causa da tradução. Não obstante o desprezo dos
filólogos europeus, não fosse tradução, não haveria hoje textos clássicos da
Antigüidade greco-romana, mas apenas textos escritos em mais uma ou duas
línguas estrangeiras exóticas.
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13. Você utiliza alguma teoria, ou segue alguns princípios teóricos, na hora de
traduzir?

Sigo. Vou referir-me à poesia, que tenho traduzido com muito mais
freqüência, mencionando alguns aspectos formais que preservo.
Mantenho o mesmo número de versos do poema original, pois creio que a unidade
do poema é o verso, e o entendo como uma seqüência sonora provida de sentido
situada entre dois silêncios. Em outras palavras mantenho o número de
unidades. Bem poderia haver para poética, e aqui estou propondo que haja, o
termo “isostiquia”, isto é, “igualdade no número de versos”.
Mantenho metrismo, isto é, traduzo só em versos métricos, e adoto o verso
português conveniente à manutenção do número de versos. Única exceção é a
solitária tradução que fiz de Píndaro (“Olímpica XI”).
Mantenho isometria unívoca, ou seja, traduzo sempre pelos mesmos metros
em português certos metros em grego e latim; por exemplo, o hexâmetro datílico
(verso da épica) traduzo sempre pelo dodecassílabo (se possível, o alexandrino
perfeito dos parnasianos, que acho, sim, perfeito; senão, os dodecassílabos assim
acentuados: 6+6, com quaisquer acentos secundários pares; 3+6+9+12 e
4+8+12). O pentâmetro, que com o hexâmetro forma o dístico das elegias e de
muitos epigramas, traduzo em decassílabos heróicos ou sáficos, de modo a
formar um dístico vernáculo de dodecassílabo com decassílabo. Isto não quer
dizer que não adote decassílabo e dodecassílabo para outros metros antigos que
não sejam o hexâmetro e o pentâmetro datílicos. A isometria é unívoca, mas não
biunívoca, e admito que teórica ou idealmente seria bom que sempre fosse. Explico-
me: algumas vezes o poema impõe um metro conveniente à sua tradução,
diferente do utilizado para traduzir o mesmo metro em outro poema antigo e o
tradutor, considerando só o poema, cede, de modo que, se no livro existe
premeditada ordem na variação métrica dos poemas visando a determinados
efeitos (como nas Odes e Epodos de Horácio), numa tradução integral em que não
é preservada tais efeitos terão sido sacrificados.
Isomorfia estrófica, quando o original é estrófico, isto é, preservo estrofes se
o original as possui, e preservo o número de versos de cada estrofe original. Nem
sempre consigo manter a diferenciação métrica que às vezes ocorre com um
verso em relação aos outros da estrofe: consigo-o no poema 34 de Catulo, mas
não no poema 61. Analogamente, não insiro estrofes na tradução de poemas que
não as têm.
Isomorfia rímica, isto é, não insiro rimas nos poemas antigos, que não as
possuem. Só o fiz no poema 1 da Priapéia Latina, em que rimo “Vesta” com
“testa”.
Isomorfia elocutiva. Mantenho o gênero de elocução – elevada, média e
baixa – com atenção especial à última porque poemas de matéria e elocução
baixa ou foram totalmente eliminados ou tiveram partes eliminadas nas
traduções pudicas, antigas ou modernas.
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14. Como você se documenta sobre o autor e o texto para efetuar o trabalho de
tradução (história, biografia, estudos críticos etc.)?

Utilizo todas as ferramentas disponíveis, mas para mim duas são as mais
importantes: artigos pontuais que discurtem dificuldades de certos poemas e,
principalmente, o “Comentário”, publicação filológica que explica linha a linha
o texto antigo, dando informação ecdótica (propondo até conjectura nos passos
lacunares), morfo-sintática, semântica, poética e histórica. De certa forma, faz
o papel das outras.

15. Você tem defendido a tradução como literatura vernácula. Você poderia
explicitar essa sua posição?

Toda tradução, como é óbvio, é feita na mesma língua da literatura


vernácula, às vezes pelos mesmos autores de obras originais, e por lhes ser
contemporânea, está sujeita, no que depende de circunstâncias históricas, a
agenciamento formal semelhante ao que obras originais recebem; além disso,
destina-se ao mesmo público e interfere nele e na cultura do país de modo
semelhante ao modo como as obras originais neles interferem: em suma o ponto
de chegada é absolutamente o mesmo. Mas historiadores de literaturas nacionais
em muitos países, inclusive o Brasil, para decidir o que é pátrio, ainda que
investiguem o ponto de chegada, preferem ainda hoje considerar apenas
elementos do ponto de partida: a pessoa do criador originário e a própria
criação originária, seguindo passo a passo, mas sem saber, o ideário romântico
do século XIX. Tais historiadores contemporâneos, supostamente munidos do
arsenal da Teoria Literária do século XX, acreditam que não são românticos. Se
essas histórias da literatura fossem apenas o rol do que se escreveu
originariamente na língua de um país por seus cidadãos, não haveria o que
reparar – toda lista tem utilidade –, mas põem-se a discutir a importância que
algumas obras tiveram naquele tempo, naquele lugar – pois querem-se
historiografia – adentrando o território da recepção e da circulação das obras, ou
seja, acolhendo agora, muito parcialmente, algo do ponto de chegada, que não é
exclusivo das obras vernáculas. Que seja assim, que sejam historiografia, desde que
fique claro que não são a história das letras daquele país, não são a história dos
seus escritores, não são a história das idéias, não são a história das obras
importantes que ali circularam, não são a história das mentalidades, não são,
enfim, a história da literatura daquele país, mas apenas parte dela, apenas a
HISTÓRIA DO QUE SE ESCREVEU ORIGINARIAMENTE NA LÍNGUA DE UM PAÍS POR SEUS
CIDADÃOS. Entre nós, o trabalho a fazer é imenso, pois há que redefinir
“literatura” e o que é “brasileiro”; há que refletir se importa, quando importa e o
quanto importa o que é “brasileiro” e o que é “em português”; e depois
investigar a circulação de todas as obras importantes publicadas em português e seus
agentes: autor, tradutor, editor, público alvo, recepção, circulação, crítica e
repercussão. Talvez a próxima geração de historiadores da literatura tenha
mentalidade aberta o suficiente para acolher novo critério, mas não consiga
197

levar a cabo trabalho tão grande. Os historiadores da tradução podem,


entrementes, começar a fazer sua parte – dedicar-se ao que se traduziu – agora
já não estudando as teorias, mas tudo que respeita à chegada: público alvo,
recepção, circulação, crítica e repercussão.

16. Qual seria o papel de uma crítica da tradução?

O termo é amplo e talvez a atividade também seja, compreendendo


desde resenha crítica de traduções feita “a quente”, logo após publicadas, até a
análise da repercussão que tiveram na divulgação de autor, gênero e outras
obras da língua ou do país de origem; no estabelecimento de gosto e público, e, a
partir daí, o quanto concorreram para produzirem-se outras traduções e obras
originais. Isso só se pode realizar bem depois.
A crítica como resenha imediata é importante desde que feita também
por razões literárias, e não só político-acadêmico-editoriais; desde que procure
discriminar os critérios e estratégias positivos por que a tradução foi elaborada, e
não aqueles de que o crítico mais gosta e que segundo ele deveriam ter sido
adotados pelo tradutor. O crítico-resenhador deve assim agir, ainda que ele
mesmo seja tradutor, ainda que, como tal, acolha nas próprias traduções
critérios diferentes. Sua necessária parcialidade, isto é, sua inevitável tomada de
partido como tradutor não deve sobrepor-se ao distanciamento que deve ter
como crítico. É difícil exercício de alteridade e já é também um pouco de
história da tradução, como disse.
Sobre crítica entendida como análise do quanto repercutiu determinada
tradução ou um conjunto orgânico delas (não digo que o crítico deva fazer
aquilo tudo sozinho), penso que é o que falta fazer com mais freqüência no
Brasil e talvez seja a tarefa mais importante. Digo “conjunto orgânico” porque
quero exemplicar com O Clube do Livro e a Tradução, de John Milton, aquilo que
acima falei sobre este tipo de crítica. Tenho idade para lembrar-me de quando
havia poucas traduções diretas do russo e dos defeitos – verdadeiros, sim – que
então se apontavam nas traduções indiretas, fossem do Clube do Livro, fossem
de outras editoras. Mas não é menos verdadeiro, como John Milton mostra, que
graças a elas se formou público apreciador de romance e foi possível conhecer
autores como Dostoievsky, Tolstoi, Tchecov no Brasil nos anos 40. São fatos
verdadeiros que podem até contardizer-se, mas não se excluem, o que é
historiograficamente óbvio, pois faz-se primeiro história do que sucedeu, e
depois a análise do que deveria ter sucedido. De minha parte, penso em
investigar pouco a pouco com auxílio dos orientandos em que tradução leram (se
leram e se leram traduzidas) obras seminais antigas, digamos Ilíada, Odisséia e
Eneida, certos grupos de letrados: por exemplo (partindo do que me é mais
próximo) os decanos da FFLCH da USP; depois, decanos das Universidades
paulistas, decanos das Universidades brasileiras; em seguida, escritores,
roteiristas, jornalistas. Paulatinamente, substituir-se-iam as obras/autores – em
vez de Ilíada, Odisséia e Eneida, poderiam ser a Poética de Aristóteles e a de
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Horácio – e em seguida substituir-se-ia o grupo de letrados: seria a vez, por


exemplo, dos atuais professores de Letras no Brasil, dos atuais graduandos, dos
atuais pós-graduandos, dos recém-graduados etc. Fica a sugestão.

17. A tradução poética tem recebido atenção particular no Brasil desde Odorico
Mendes. Você poderia falar sobre a tradução poética em relação à tradução dos
outros gêneros no país?

É fato que no Brasil se valoriza tradução poética mais do que em países


onde se traduz mais, e é inegável que o fato se deve ao trabalho de Manuel
Odorico Mendes, que a praticou e refletiu sobre ela, teorizando-a. Mas é
obrigatório reconhecer que só podemos hoje pagar o devido tributo a Odorico
Mendes, graças ao que há 50 anos vem fazendo Augusto de Campos e
principalmente o que fez Haroldo de Campos. Com exceção de Finnegans Wake,
eles traduziram só poesia, o que ocasionou, creio, o apreço mais evidente, até
midiático, por tradução de poesia no Brasil. Entretanto, é preciso lembrar que,
apesar de injusta invisibilidade, tivemos grandes tradutores de prosa literária,
como Carlos Alberto Nunes para os Diálogos de Platão; Manuel Bandeira, Carlos
Drummond de Andrade e Mário Quintana para romances de Proust; Antônio
Houaiss para Ulisses, de Joyce; Lúcio Cardoso para Daniel Defoe, Jane Austen,
Emile Brontë entre outros. E grandes tradutores temos ainda agora, quer na
prosa de ficção – Nilson Moulin para os livros de Italo Calvino; Jorge Schwartz,
Carlos Nejar, Glauco Mattoso e Alexandre Eulálio dentre vários outros para a
obra de Jorge Luis Borges. Sebastião Uchoa Leite, para Lewis Carroll –, quer na
ensaística (a que incluo tradução técnica), e cito Samuel Titan, Alípio Correia de
França Neto e Denise Bottman, ainda que não se dediquem só a ela, e todos os
tradutores do NUPLITT. É aqui na ensaística e nas obras de divulgação que
encontro grandes problemas de tradução, dos quais uma causa todos
conhecemos: a quantidade de livros e a pressa com que são editados, nem
sempre acompanhadas da respectiva disponibilidade de tradutores aptos nem do
interesse das editoras pelos mais qualificados e mais bem pagos. Tradutores há
proficientes em línguas estrangeiras, mas insuficientes em português. Outra
causa, mais importante a meu ver, é bibliográfica: a falta de obras de referência
que estabeleça uniformidade na grafia de nomes geográficos e biográficos antigos
e na transliteração de nomes geográficos e biográficos contemporâneos. Enquanto
o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa da Academia das Ciências de Lisboa
traz na parte II um “Vocabulário Onomástico” com muitos desses nomes, a
recém-lançada 5a edição do congênere patrício – Vocabulário Ortográfico da Língua
Portuguesa da Academia Brasileira de Letras – não os consigna nem lhes dedica
parte alguma. Tradutores não especialistas em Letras Clássicas (não são
obrigados a ser) grafam “Possêidon”, “Príapo”, “Semele” quando o melhor é
“Posídon”, “Priapo”, “Sêmele”. Quanto à transliteração de nomes
contemporâneos, pergunto se, por exemplo, devo grafar “Siwa” ou “Siwah” ao
referir-me ao deserto egípcio. São os jornais com seus Manuais de Redação que têm
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feito para si o trabalho das ABL: apesar de alguns equívocos, fazem-no com
bravura, mas, como disse, só para uso interno, de sorte que, sem padronização
entre jornais, a falta de critério único persiste. Os terroristas que na Folha de São
Paulo são do “Taliban” no Estado de São Paulo são do “Talibã”. Fatos recentes –
Guerra da Bósnia, invasão do Afeganistão, do Iraque – e a cobertura jornalística
que recebem só trazem à tona um problema que nossos historiadores, ensaístas e
tradutores sempre tiveram. Encerro, então, com conclamação grandiosa: cabe à
ABL e à Academia de Ciências de Lisboa organizar, borgianamente completo,
um Atlas Onomástico da Língua Portuguesa. Que demore, devem sempre fazê-lo e
disponibizá-lo na internet à medida que o compuserem.

                                                                                                                         

iKeats, p. 93. O dramaturgo e poeta George Chapman (1559–1634) traduziu em verso a Ilíada
(1611), a Odisséia (1614-1615) e os Hinos Homéricos (1616),
200

CAPÍTULO 2

QUEM SOMOS? O QUE NÃO SOMOS?


TRADUÇÃO LITERÁRIA E ESTUDOS CLÁSSICOS BRASILEIROS

O geógrafo Paulo César Gomes da Costa relata curiosa conversa entre Antonio
Cândido e Pierre Monbeig, geógrafo francês que esteve no Brasil entre 1935 e 1946 para
lecionar na recém-fundada Universidade de São Paulo1:

Antonio Cândido se lembra de ter sido surpreendido por uma pergunta de Pierre
Monbeig inquirindo-o sobre o nome do vento que sopra no final da tarde no
litoral de São Paulo e ajuda os pescadores. Ele foi também incapaz de responder
a Monbeig quando este prosseguiu lhe perguntando sobre a técnica dos operários
brasileiros para enrolar tabaco; mais surpreendido ainda ficou quando o professor
lhe pediu que descrevesse o sistema orográfico ao qual pertence a colina que era
visível olhando-se pela janela da sala de aula. Ele não conhecia nenhuma das
respostas, mas sobre o Maciço Central francês, Antonio Cândido era imbatível!
Então, segundo o próprio Antonio Cândido, com um indisfarçável ar de
aborrecimento Monbeig concluiu perguntando: “Não tem o senhor vergonha de
ignorar coisas tão elementares de seu próprio país e de conhecer aquilo que não
lhe interessa e não lhe serve em nada?”
201

O brasileiro Antonio Cândido passou a olhar o próprio solo natal a partir do olhar
forasteiro, mas empenhado, de Pierre Monbeig, o que bem nos serve para ponderar acerca da
desimportância que na Filologia – ou Estudos Clássicos, como tem sido chamada – tem
desfrutado a tradução, atividade em que o elemento estrangeiro é, por força, protagonista.
Refiro-me à tradução poética de prosa e poesia antigas, aquela que, postulando-se literária de
propósito, deseja e necessita ser literariamente lida, pois que a outra, a tradução acadêmica,
não apenas já integra edições filológicas importantes, como a Loeb Classical Library, da
Universidade de Harvard, e a Societé d’Édition “Les Belles Lettres”, senão também,
acadêmica que é, comparece em toda dissertação de Mestrado e na maioria das teses de
Doutoramento em Letras Clássicas nas Universidades brasileiras onde há o respectivo
Programa. Percebe-se, portanto, o que há muito tempo já se tem percebido: que nossos cursos
de Letras, sendo embora lugar onde se produz significativo conhecimento lingüístico e
literário, não são o lugar intrínseco nem mesmo um lugar privilegiado onde estudantes
produzem algum tipo de texto literário, o que só ocorre incidentalmente, ao contrário do que
em boa medida ocorre nas Escolas de Música, em que formandos em composição, depois de
aprender História da Música, apresentam peças que eles mesmos compuseram, e nas
Faculdades de Arquitetura, em que os graduandos, além de conhecer a arquitetura existente,
propõem projeto próprio como Trabalho de Conclusão de Curso. Quanto à tradução nos
Estudos Clássicos nos Estados Unidos e na Europa, onde são mais avançados, não digo que
seja filologicamente menor, digo que não chega nem sequer a ser Filologia, reconhecida ali na
ecdótica, nos comentários e na exegese. Lá, traduzir, posto que nobre, é apenas mero trabalho
de “divulgação”.
Seja. Pensemos, porém, no papel que desempenha divulgar os autores antigos, os
“clássicos”, como também se diz, para quantos um dia se dedicarão a estabelecer nova edição
de um texto antigo, a comentá-lo linha a linha e a dar-lhe adequada interpretação. Se, por
um lado, traduzir depende do dedicado labor filológico de estabelecer, comentar e interpretar
um texto – pois ocorre sim que de costume aqui traduzimos textos já preparados e
comentados por europeus – por outro, que filólogo, pergunto, que antes mesmo de ser filólogo
não travou o primeiríssimo conhecimento de qualquer texto clássico em tradução ao idioma
materno? Não se trata de decidir simplória e exclusivamente qual das duas atividades detém a
precedência infraestrutural e a mais-valia que daí decorre, pois o problema é complexo.
Trata-se de admitir o papel, de todo imprescindível, que as traduções tiveram para que nos
Estudos Clássicos textos ditos “clássicos” viessem a se tornar clássicos, estatuto que mereceu
atenção de escritores do jaez de T. S. Eliot, Jorge Luis Borges e Italo Calvino2. Os tradutores
202

em cada século formaram gerações de leitores de autores antigos, concorreram para que se
consolidasse o caráter modelar de alguns e se estabelecesse dinamicamente ao longo do tempo
o que chamamos “Tradição Clássica”. Sabemos que Homero, por exemplo, já era clássico na
Antigüidade grega, não menos do que ele mesmo e Virgílio na Roma antiga, quando eram
ouvidos e lidos em grego e em latim. Eram clássicos na própria língua como nos são Camões e
Machado de Assis. Mas Homero e Virgílio continuaram clássicos muito tempo depois que
desapareceram os idiomas originais em que seus poemas foram compostos, o que significa que
não teriam sido o que se tornaram na posteridade, não teriam ganhado a condição de
paradigma se seus leitores tivessem sido apenas o pequeno número letrados que liam grego e
latim, e muito menos se tivessem sido só o grupo menor dos filólogos. Homero, Virgílio e
outros, como os poetas arcaicos gregos que Leonardo Antnes ora traduz, não teriam se
tornado clássicos se não tivessem sido traduzidos e retraduzidos, e, digamo-lo já, se não
tivessem sido traduzidos poeticamente, segundo os preceitos poéticos – cambiantes e
dissensuais que fossem – que cada século acolheu, de modo que os poemas antigos
recobrassem em cada língua senão o viço originário, decerto um vigor compatível com a
melhor poesia contemporânea de cada lugar, já que os tradutores eram amiúde os próprios
poetas importantes ali e então, assim como eram os mesmos os preceitos poéticos para
tradução e para para a poesia original produzida na língua de cada lugar. Pode ser esse o
principal motivo por que já se têm considerado as traduções para a língua de um país parte da
sua literatura, desfrutando do mesmo estatuto das obras compostas originariamente na língua
ou línguas de lá3, quando não se considera até que as traduções baseiam as letras originais
vernáculas de certas épocas4 em alguns países: quando isso ocorre, assistimos ao estrangeiro
abalizar o que é nacional, com o que voltamos à conversa de Antonio Cândido e Pierre
Monbeig, para extrair-lhe, todavia, outra lição, também relativa ao papel que traduzir
literariamente pode desempenhar em Estudos Clássicos.
Quando Pierre Monbeig censurou Antônio Cândido, censurou um brasileiro que fazia
no Brasil literalmente a mesma coisa que ele, francês, fazia na França: conhecer a geografia
da França, que era o território que Monbeig ocupava; censurou a geografia francesa
acriticamente transportada ao Brasil que Cândido e seus colegas aqui praticavam, em vez de,
aprendendo com o que o geógrafo francês fazia na França, conhecerem no Brasil a geografia
brasileira. Aprender com Monbeig não era conhecer a geografia francesa, mas aplicar ao
terreno brasileiro a teoria e o conhecimento franceses que ele aplicava ao terreno francês. De
modo algo análogo penso que um papel importante dos Estudos Clássicos no Brasil – para
mim, confesso, o mais importante – é, traduzindo, dispor aos leitores brasileiros o patrimônio
203

daquela Tradição Clássica – dos autores mais notórios até os menos – atividade de que é
parte importante a tradução acadêmica por tornar acessível a matéria daquele patrimônio, e
parte muito mais importante a tradução dita “poética”, ou “literária”, porque, além de tornar
acessível a matéria, propõe aos textos clássicos agenciamento formal, cuja importância, repito,
reside em reaver na própria língua o vigor dos textos gregos e latinos para quem não lê nem é
obrigado a ler grego e latim. Estudar e depois traduzir esses textos em português, língua a que
ainda não se traduziram muitos textos da Antigüidade clássica, e fazê-lo no Brasil, país em
que não se traduziram e não se fizeram conhecer muitíssimos textos da Antigüidade clássica, é
como que fazer Filologia Clássica brasileira, é um promover Estudos Clássicos brasileiros, se
assumirmos que o adjetivo pátrio não é chauvinismo nem lusofobia, mas apenas atenção ao
que nosso meio reclama de nós com maior urgência. Tampouco é o caso de alegar que a
educação fundamental e média do país está muito aquém do aceitável e extrapolar para
problemas sociais ainda mais prementes: bastará lembrar nos limites de nosso ofício que, se
nos importa a Tradição Clássica, se Estudos Clássicos têm alguma importância, ainda não
estão eles aqui consolidados porque ainda não superamos o estágio, basilar, em que o
conjunto fechado e finito daqueles textos seja acessível em português.
Era certo, tornando outra vez ao causo de Cândido, que era ruim a geografia que ele
praticava, mas não é certo afirmar que também seja a Filologia aqui praticada como na
Europa e nos Estados Unidos: a analogia tem limites. Apenas não me parece ser única a
Filologia praticada naqueles países e, não sendo a única, não creio que é a mais urgente para
nós, nem, portanto, segundo o que se é interpelado a pensar em determinado tempo e em
determinado lugar do mundo, que é a melhor Filologia, o que implica que a melhor Filologia não
é um universal, mas depende de condições de cada local e de decisões de seus agentes em
cada local, assim como não é universal tampouco o lugar que a tradução nela pode ocupar,
segundo o papel que pode cumprir. Postulo, só, incluir a tradução literária no rol das
atividades que nossos Estudos Clássicos positivamente contemplam e permitir que a ela se
dedique quem tenha estro para tanto: proponho incluir, não substituir, nem subordinar. De
resto, ainda que não seja comum, o fato de que um classicista seja editor ou comentador ou
exegeta, conjunta ou separadamente, não impede que seja também tradutor literário, no
mesmo trabalho ou em trabalhos diferentes: bastará que reúna tais competências e queira
praticá-las.
Justo porque a tradução literária como a pensamos depende de abalizada fixação,
comentário e exegese, é que ganha estatuto filológico. Sem deixar de ser literária, é agora
também acadêmica porque o pós-graduando, depois de aplicar-lhe todo conhecimento que a
204

Filologia produzira, apresenta comentário, interpretação até mesmo as próprias postulações


téticas que Teses reclamam. Assim, sua tradução literária difere academicamente das traduções
literárias que bons conhecedores de grego e latim que não sejam filólogos, isto é, que não
sejam especialistas, têm o direito de fazer, porque estas, carecendo de aparato filológico, não
podem sozinhas constituir Tese nem Dissertação.
Quanto ao que temos discutido, duas são as conseqüências. Uma é relativa aos cursos
de Letras: a modalidade literária de tradução, decerto em Letras Clássicas e provavelmente
em outras Letras, responderá por aquela desejável, mas faltante parcela de egressos de seus
Programas de Pós-Graduação não só dedicada à produção do necessário conhecimento
língüístico de idiomas e do necessário conhecimento teórico das respectivas literaturas, mas
envolvida outrossim, mediante tradução poética, na produção de textos literários: a Faculdade
volta a ser bem de Letras, de Literatura, não apenas de línguas, de Língüística e sobre
Literatura.
Outra é relativa à procedência dos tradutores e das traduções de textos clássicos no
Brasil: até o século passado inclusive – tomando outra vez, só por facilidade, o exemplo de
Homero, já que o que discutirei se estende a outros autores antigos – as versões poéticas eram
feitas exclusivamente por tradutores que não eram filólogos profissionais, o que pode dever-se,
entre outros motivos, à juventude da Universidade brasileira5. Os tradutores não eram
docentes nem pós-graduandos de Letras Clássicas das Universidades: é o caso de Carlos
Alberto Nunes e Haroldo de Campos, que será talvez por muito tempo ainda o último
exemplo de poeta já antes consagrado que tenha depois se dedicado às Letras Clássicas. A
partir do último quartel do século passado cada vez mais têm sido feitas por docentes e pós-
graduandos de Letras Clássicas as traduções poéticas de textos clássicos, entre elas de
Homero, integrais ou parciais, no Brasil e também em Portugal: o professor André Malta
Campos traduziu o canto XXIV da Ilíada (2000); o professor português Frederico Lourenço, a
Odisséia (2003) e a Ilíada (2005); o professor Donaldo Schüler, a Odisséia (2007)6. Além destas,
há outras inéditas, algumas talvez no prelo7: este será doravante no Brasil e creio também em
Portugal o perfil dominante das traduções literárias de textos clássicos. Numa palavra: os
responsáveis pelas necessárias novas traduções de textos clássicos não serão escritores ou não
serão apenas escritores, mas – escritores que também sejam – serão sempre docentes e
pesquisadores dos cursos de pós-graduação de Letras Clássicas, serão justamente aquela
desejável parcela de estudiosos de Letras dedicada produtivamente à Literatura: a Universidade
responderá doravante pelas traduções literárias de textos clássicos no Brasil e, creio, em
Portugal.
205

Notas do Capítulo 2

                                                                                                               
1 Salgueiro, p. 227.
2 “O Que É um Clássico”, Eliot, T. S., De Poesia e Poetas. Tradução e prólogo de Ivan Junqueira. 1a ed.,
São Paulo: Editora Brasiliense, 1991, pp. 76-99. “Sobre los Clasicos”, Borges, Jorge Luis, Prosa
Completa. Volume 2. Barcelona: Editorial Bruguera / Buenos Aires: EMECE, 1980, pp. 301-303
(publicada originariamente em Otras Inquisiciones, 1952). “Por Que Ler os Clássicos”, Calvino, Italo, Por
Que Ler os Clássicos. Tradução de Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, pp. 9-16.
3 cf. Ellis.
4 cf. Kristmannsson.
5 O mesmo não ocorreu em Portugal, onde no século XIX o classicista ítalo-lusitano Antônio José
Viale (1806–1889), professor do Curso Superior de Letras de Lisboa e membro da Academia Real das
Ciências de Lisboa, traduziu 67 versos do canto I e todo o canto VI da Ilíada. Parece-me confirmar a
tendência o caso do português Agostinho da Silva (1906–1994) que, radicado no Brasil entre 1947 e
1969, quando já era doutor em Letras Clássicas, lecionou na Faculdade Fluminense de Filosofia, na
Universidade Federal da Paraíba, foi co-fundador da Universidade de Santa Catarina e partícipe da
criação da Universidade de Brasília. Traduziu em versos as Obras de Virgílio: Bucólicas, Geórgicas, Eneida.
Tradução do latim de Agostinho da Silva. Lisboa: Temas & Debates, 1997.
6 André Malta Campos leciona grego na USP e publicou O Resgate do Cadáver: o Último Canto d’ A
Ilíada. (São Paulo: Humanitas Publicações / FFLCH / USP, 2000). Frederico Lourenço leciona na
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e traduziu com introdução a Odisséia (Lisboa: Cotovia,
2003) e a Ilíada (Lisboa: Cotovia, 2005). Donaldo Schüler, professor titular do Instituto de Letras da
UFRGS, traduziu a Odisséia (Volume 1: Telemaquia; Volume 2: Regresso; Volume 3: Ítaca. Tradução do
grego, introdução e análise de Donaldo Schüler. Porto Alegre: L&PM, 2007).
7 A Ilíada do professor José Cavalcante de Souza existe desde pelo menos 1983, quando utilizava o
canto I nas aulas de Literatura Grega, a que assisti na USP. O professor Christian Werner (USP) e o
professor Trajano Vieira (UNICAMP) traduziram integralmente a Odisséia.
206

CAPÍTULO 3

COMO CARLOS ALBERTO NUNES VEIO A SER


O PRIMEIRO TRADUTOR LUSÓFONO A VERTER INTEIRAS
A ILÍADA, A ODISSÉIA E A ENEIDA
EM HEXÂMETRO DACTÍLICO PORTUGUÊS

1) ANAMNESE
Carlos Alberto da Costa Nunes nasceu em São Luís do Maranhão em 19 de janeiro de
1897. Formou-se médico em 1920 pela Faculdade de Medicina da Bahia e exerceu a profissão
em cidades do interior paulista até fixar-se na capital, onde trabalhou como médico-legista.
Compôs em decassílabos a epopéia Os Brasileidas (1938), os dramas Moema (1950), Estácio
(1971) e Beckmann ou A tragédia do Andrade (1975); a comédia Adamastor ou o Naufrágio de Sepúlveda
(1972). Do alemão traduziu as tragédias Estela (1949) e Ifigênia em Táuride (1964) de Goethe, e
de Friedrich Hebbel, Judite; Giges e o seu Anel e Os Nibelungos (1964, todas num só volume). Do
espanhol traduziu A Amazônia: Tragiepopéia em 4 Jornadas, do uruguaio Edgardo Ubaldo Genta
(1968). Traduziu o teatro completo de Shakespeare, publicado em 21 volumes (1955). Do
grego traduziu todos os Diálogos de Platão, publicados em 14 volumes entre 1973 e 1980, a
Odisséia (1941) e a Ilíada (após 19451). Do latim traduziu a Eneida, publicada em 1981,
bimilenário da morte de Virgílio. A partir de 1956 foi membro da Academia Paulista de
Letras. Era tio do filósofo, poeta e ensaísta Benedito Nunes (1929-2011). Faleceu em Sorocaba
em 9 de outubro de 1990. A avaliação crítica e histórica de sua vasta obra, original e
traduzida, está ainda por fazer. Tratarei aqui da tradução que fez das três epopéias.
207

A Ilíada e a Odisséia de Carlos Alberto Nunes foram as únicas traduções poéticas


integrais em português de Homero feitas e publicadas no século XX no Brasil e até muito
recentemente eram ainda as últimas, até Haroldo de Campos publicar a tradução integral da
Ilíada (2002), Donaldo Schuler e Trajano Viera, a da Odisséia (2007 e 2011), e em Portugal
Frederico Lourenço publicar ambas (2005 e 2003). Na linhagem de traduções das epopéias
gregas e latinas em nossa língua singulariza as de Nunes o metro utilizado. Ao contrário do
que ocorreu nas reedições subsequentes, as edições iniciais da Ilíada e da Odisséia por ele
vertidas, que datam da década de 1940, trazem na capa os dizeres “traduzidas do grego, no
metro original por Carlos Alberto Nunes”. Assim também a Eneida, de 1981: “Tradução
portuguesa de Carlos Alberto Nunes no metro original”. O “metro original” da tradução de
Carlos Alberto Nunes consiste em respeitar a) as seis sílabas tônicas do verso sem substituições,
precisamente porque português, repito, não possui duração, e b) a cesura:

Cabe tão fero rancor // no’ imo peito dos deuses eternos?
A cada sílaba tônica seguem-se duas átonas nas primeiras cinco células e à última célula falta
uma sílaba, como em latim. Para efeito prático, mas não rigoroso, pode dizer-se que é um
verso de 16 sílabas com acento na 1a, 4a, 7a, 10a, 13a e 16a sílaba, mas na verdade o que
impera para o ouvido é o ritmo datílico descendente, marcado pela tônica seguida de duas
átonas2. O acolhimento deste verso longo permite que se mantenham, além do ritmo datílico,
o mesmo número de versos dos originais, alguns termos compostosos e os epítetos, isto é, os
atributos recorrentes das personagens, sem que haja aquela demasiada concisão que amíude
trunca a fluência e a clareza da narrativa nas traduções decassilábicas e dodecassílabicas
quando pretendem manter igual ou até menor o número de versos. Fique claro que
truncamento e obscuridade não são necessária e universalmente defeito, já que podem inerir a
outros gêneros de poesia, como o epigrama antigo, por exemplo, mas ocorre que, como os
poemas homéricos e a Eneida não são truncados, nem obscuros nem sequer concisos, é lícito
que o tradutor deseje manter esses importantes elementos da elocução. A extensão do
hexâmetro permite ainda que se preserve numa cena a ordem, não isenta de significado, em
que se seguem imagens e epítetos, como adiante exemplifico.
Nenhuma outra tradução integral em português da épica greco-latina se assemelha às
de Nunes, pois que nenhuma tem a refacção do hexâmetro em nossa língua, pelo que não
procede a crítica que Haroldo de Campos, quando começava a divulgar sua tradução da
Ilíada, fez das traduções de Carlos Alberto Nunes3:
208

No que respeita à tradução de Carlos Alberto Nunes, embora não se possa


enquadrar na categoria da “transcriação” (termo que é lícito aplicar, sem
exagero, a Odorico [Mendes], não obstante os eventuais “desníveis” que
possam afetar o resultado estético de seu projeto tradutório), estamos diante
de uma empreitada incomum, que merece, como tal, respeito e admiração.
Desde logo pelo fôlego do tradutor, que levou a cabo a transposição integral,
em versos, para o português, de ambos os extensos poemas [Ilíada e Odisséia].
Num outro plano, o prosódico, pela interessante solução (louvada por Mário
Faustino, se bem me lembro) de buscar num verso de dezesseis sílabas o
equivalente, em métrica vernácula, do hexâmetro (verso de seis pés) homérico.
O resultado, para o nosso ouvido, embora relente um pouco o passo do verso,
aproximando-o da prosa ritmada, é uma boa demonstração de que não
assistia razão a Mattoso Câmara Jr., quando impugnava a aclimatação do
verso de medida longa em português, considerando-o “inteiramente
anômalo” em nossa língua (Mattoso referia-se à adoção de um verso de
quinze sílabas por Fernando Pessoa, em sua tradução de The Raven, de E. A.
Poe). A prática de Carlos Alberto Nunes, sustentando com brio, por centenas
de versos, essa medida, contesta eloqüentemente aquela restrição normativa.
No que se refere à linguagem, todavia, não é um empreendimento voltado
para soluções novas, com a estampa da modernidade. Trata-se, antes, de uma
tradução acadêmica, de pendor “classicizante”, que retroage estilisticamente
no tempo.

Não se trata de negar que haja problemas na tradução de Carlos Alberto Nunes,
muito menos de arguir Haroldo de Campos (como, pois?), responsável no Brasil pela
valorização, hoje irrefreável, do tradutor e do ofício de traduzir, ele cuja obra poética, crítica e
tradutória, agora perfeita, demanda ser reunida e ela mesma criticamente bem estudada.
Trata-se, antes, de produzir conhecimento positivo sobre a matéria para identificar problemas
e defeitos, mas sempre segundo a estratégia escolhida pelo tradutor. Campos, de início, parece
assim fazer, chegando até a reconhecer qualidades métricas na Ilíada de Nunes, mas em
seguida afirma que não se pode enquadrá-la na categoria da “transcriação”, o que admite
para Odorico Mendes, não obstante alguns defeitos4. Ora, “transcriação” é categoria
inventada pelo próprio Haroldo de Campos e ninguém há de negar a autoridade com que
decreta quem nela cabe, quem não cabe. No entanto, é também uma dentre muitas
possibilidades de traduzir; por conseguinte, o fato de as traduções de Nunes não caberem na
“transcriação” não significa que não possuam, além daquelas mesmas virtudes que Haroldo
de Campos lhes concede, outras tantas, como se verá, decorrentes da estratégia, isto é,
decorrentes de princípios e critérios não menos sistemáticos e coerentes, mas distintos dos que
definem a “transcriação”. Julgar que o hexâmetro de Carlos Alberto Nunes se aproxima da
prosa ritmada ou que é prosaico advém do desconhecimento de como o metro deve ser lido:
ignora-se a cesura, aquela pequena pausa no interior do verso que, incidindo diferentemente
na longa série de hexâmetros, impõe variação na igualdade e evita monotonia. Negligenciar
209

esta pausa suprime ao verso um elemento rítmico muito importante. Tomo o mesmo passo já
citado, marcando de novo sílabas tônicas e átonas (I, 11):

Cabe tão fero rancor // no’ imo peito dos deuses eternos?

Já sabemos que a cesura divide o verso em duas partes. Mas o fato mesmo de que ela existe
não foi notado por Haroldo de Campos nem de resto pelos poucos que trataram do
hexâmetro, de modo que não se percebeu tampouco outro efeito importante que produz.
Lida corretamente, ela divide aqui o hexâmetro datílico em duas partes, das quais a primeira
é um verso de sete sílabas:
Cabe tão fero rancor,

e a segunda é um verso de nove sílabas:


no’ imo peito dos deuses eternos?
Um verso pode, porém, conter duas cesuras, que o dividem em três partes:

No meu cortejo // se encontram quatorze // belíssimas ninfas.

O efeito agora é uma sequência de outros ritmos igualmente familiares; um verso de quatro
sílabas:
No meu cortejo;
seguido de dois versos de cinco sílabas:
se encontram quatorze
belíssimas ninfas.

A correta leitura tem resultado extraordinário porque, soando como hexâmetros datílicos
(uma tônica seguida de duas átonas), que são estranhos à métrica tradicional portuguesa, os
versos não deixam de ter ritmo muito conhecido para nós, lusófonos. Assim, o alheio inocula-
se no que é costumeiro e produz como que uma dissonância sedutora entre algo familiar e
uma coisa diferente: isso não é prosa ritmada nem exemplo de prosaísmo. Quanto ao pendor
classicizante imputado a Nunes, lembro que em si mesmo não é defeito: na verdade, produz
efeito, muito importante e análogo, a meu ver, ao que, por exemplo, produzem os compostos
classicizantes que o próprio Haroldo de Campos usa bem ao verter a Ilíada, como entre
muitos, “Arcoargênteo” (I, 37) e “flechicerteiro” (I, 21), calcados em Odorico Mendes (“arci-
argênteo”, Iíada I, 381; “longe-vibrador”, Iíada I, 20, entre tantos), que por seu turno os imitou
dos poetas árcades, isto é, “neoclássicos”, portugueses e italianos. Ainda que Odorico tenha
cunhado alguns, a fórmula já era conhecida desde o século XVIII. Pois bem; o efeito poético
dos compostos e do pendor classicizante é como que referência irônica à mimetização do
latim e do grego na história das letras lusófonas e é, assim, um elemento semiótico, porque
210

aponta para o valor de tais palavras, como palavras, como signo, já não apenas ao sentido
delas. Compostos e arcaísmos não foram meramente repetidos por Odorico Mendes, Haroldo
de Campos e Carlos Alberto Nunes. Palavras compostas e arcaicas num poeta árcade
revelavam a intenção de imitar os clássicos e de parecer clássico na poesia que compunha,
mas quando manipuladas por quem já não vivia em época neo-clássica, como Odorico,
Haroldo e Nunes, demonstram a consciência histórica que eles, como poetas, têm do modo
como essas mesmas palavras foram utilizadas anteriormente na poesia lusófona original e
traduzida. Se é que assim reutilizá-las é maneirismo, nem assim seria defeito, como muito
bem aponta o próprio Haroldo de Campos em decisivo ensaio5. Antes, a reutilização é
irônica, bem entendido, não-ingênua, porque os três tradutores não estavam a compor poesia
original parecida com a clássica, como faziam os neoclássicos, mas, já não sendo neoclássicos,
estavam a traduzir as próprias obras clássicas.
Afirmar, porém, que tradução de Nunes é “acadêmica”, que retroaje “estilisticamente
no tempo” e que não é “empreendimento voltado para soluções novas” é injusto, primeiro,
porque, como afirmei, quando Nunes substitui o hexâmetro grego pelo hexâmetro português,
apresenta ritmo que nenhuma outra tradução em português da épica grega e latina tem: as
versões de Nunes são singulares. A lentidão que Haroldo de Campos lhes indigita é em parte
do hexâmetro e, não obstante a diferente repercussão deste metro nas línguas antigas e no
português, já em grego era verso longo. Em segundo lugar, é equivocado o juízo de Haroldo
de Campos pois a versão hexamétrica de Nunes é virtuosa segundo um critério de Panwitz
que o próprio Campos acolhe6:

Nossas versões, mesmo as melhores, partem de um princípio falso. Pretendem


germanizar o sânscrito, o grego, o inglês, em lugar de sanscritizar o alemão,
grecizá-lo, anglizá-lo. Têm muito maior respeito pelos usos de sua própria
língua do que pelo espírito da obra estrangeira [...] O erro fundamental do
tradutor é fixar-se no estágio em que, por acaso, se encontra sua língua, em
lugar de submetê-la ao impulso violento que vem da língua estrangeira.

Ora, tendo em vista a importância que metro e ritmo têm na linguagem poética e tomando-os
como critério para criticar tradução, é Nunes quem heleniza, nos termos de Panwitz,
metricamente o português ao trazer-nos o hexâmetro grego, e não Campos, que, usando um
metro convencional como o dodecassílabo, ritmicamente aportuguesa o grego, o que parecia
ter condenado. Apontou virtudes éticas em Nunes, como esforço e brio, que não concernem à
poesia nem à tradução, quando teria sido importante para produzir conhecimento sobre
ritmo informar que Carlos Alberto Nunes retrouxe à baila nos anos 1940 no Brasil antigo
debate poético sobre o uso de metros gregos, em particular o hexâmetro. Muito se discutiu na
211

Itália, Alemanha, Inglaterra, Portugal e Espanha se era possível e se convinha reproduzir nas
línguas modernas a métrica antiga. Ocorre, todavia, que os procedimentos formais de
natureza métrica, rítmica e sonora, quando não são negligenciados em pró de análise
sociológica e enquadramento ideológico, são preteridos pela maior parte de nossas histórias
da literatura e de seus estudiosos em favor de periodização e estabelecimento de temas
dominantes, mui necessários ambos, mas insuficientes. Os procedimentos formais da poesia
traduzida em cada época são os mesmos da poesia original então produzida, do que se conclui
que muito se fala em tradução sem que se conheça a história das teorias e das práticas
poéticas acolhidas pelos tradutores.

2) METRO ANTIGO EM LÍNGUA MODERNA: O HEXÂMETRO DATÍLICO

O debate sobre utilização da métrica antiga tinha por horizonte a poesia vernácula de
cada país, mas tornou-se crucial para tradução de poetas como Homero e Virgílio. Radicando
primeiro nos autores italianos do Renascimento, o hexâmetro datílico foi também acolhido
por longa e numerosa linhagem de poetas alemães, ingleses, espanhóis e franceses, que não é
o caso de aqui citar. Coube a Giosuè Carducci, prêmio Nobel de Literatura em 1906, dar
talvez o maior e até pouco tempo o mais recente impulso à discussão sobre esse e outros
metros antigos ao publicar as Odi Barbare (“Odes Bárbaras”) entre 1877 e 1889. Pode ter sido
Carducci o modelo de Nunes, ou podem quiçá ter sido poetas tradutores italianos mais
recentes. Menos provável, mas não excluível, é a possibilidade de que Nunes tenha lido os
poucos poetas portugueses e brasileiros que produziram hexâmetros datílicos, pois nós
também os temos.
Como compositor de hexâmetros datílicos em nossa língua Carlos Alberto Nunes
reavivou tradição recente e pouco frequentada, que começa apenas no século XVIII com o
matemático português, militar, poeta e tradutor de poesia José Anastácio da Cunha (1744–
1787). Seguem-se os portugueses Vicente Pedro Nolasco da Cunha (1773–1844), José Maria
da Costa e Silva (1788–1854) e Júlio de Castilho (1840–1919), de que falo logo adiante.
Depois foi a vez dos brasileiros Carlos Magalhães de Azeredo (1872–1963) e Carlos Alberto
Nunes. Por causa das traduções de Carlos Alberto Nunes, jovens tradutores, e excelentes, já
utilizam hexâmetros portugueses: Rodrigo Gonçalves, professor de literatura latina na
Universidade Federal do Paraná, liderou dez estudantes para traduzir coletivamente excerto
das Metamorfoses7 de Ovídio, e Leonardo Antunes utilizou-o ao verter elegia arcaica grega8 em
dissertação de mestrado já publicada.
Júlio de Castilho, a bem dizer, tem apenas dois excertos, um em versos hexâmetros,
212

outro em dísticos de hexâmetros e pentâmetros, citados por seu pai, o poeta Antônio Feliciano
de Castilho, que como tratadista de métrica queria ilustrar parecer sobre emprego de metros
antigos em nosso idioma. É de notar como Castilho pai mudou de opinião sobre o problema9:

Nas onze espécies que deixamos exemplificadas, temos quantos metros se


podem usar em português; pelo menos nenhum outro se poderá talvez
inventar que não seja composto de algumas das medidas supraindicadas e que
por sobejo longo [= por razões de sobra] se não deva condenar. A tentativa
não já moderna, mas em que tanto insistiu modernamente o nosso, aliás bom
engenho, Vicente Pedro Nolasco, de fazer versos portugueses hexâmetros e
pentâmetros, é uma quimera sem o mínimo vislumbre de possibilidade.
Carecendo de quantidades, condição indispensável para os onze pés do
dístico, o português nada mais pode que arremedá-lo, como um João de las
Vinhas10, mexido por arames imitaria os passos, gestos e ações de um ator
vivo e excelente; mas insistir em tão evidente matéria, e que de mais a mais
ninguém hoje contraria, fora malbaratar o tempo que as sãs doutrinas estão
pedindo.
*
Entretanto, agora, quatro anos depois da 4a edição, refletindo novamente na
matéria, confessamos que a exclusão absoluta que fazíamos da metrificação
latina para o português já não nos parece tão bem fundada. Subsiste, sim, a
objeção de não haver em nossa língua as quantidades como havia no latim, mas
a essa pode-se responder que os entendedores desse belo idioma, dado o [=
embora] não saibam pronunciar, nem por conseqüência lhe possam conhecer
as longas e breves, não deixam, contudo, de reconhecer a harmonia dos
versos de Virgílio ou de Ovídio; tanto assim, que na leitura, embora rápida,
estremam [= percebem] logo, como quer que seja, um metro que porventura
escapasse mal medido. Esta só ponderação já persuade que o nosso ouvido,
que assim aprecia esses metros pronunciados sem a respectiva prosódia
antiga, e à portuguesa, bem pode, por analogia, achar música aceitável nos
[versos] que em português se lhes assemelharem.
Uma vantagem grande, e grandíssima, poderia ter esta introdução,
se, por uma parte, os hexâmetros e pentâmetros não fossem feitos senão por
quem andasse bem enfrascado [= informado] na língua do Lácio e possuísse
assaz de engenho para os imitar com facilidade, e, por outra parte, os leitores
não tivessem negação ou completa falta de conhecimentos para os
apreciarem. A vantagem, repetimo-lo, seria o muito maior âmbito que assim
adquiriria a emissão do pensamento poético.
O alexandrino, tão guerreado [= combatido], já afinal pegou e
está generalizadíssimo. E por quê? Não tanto pela sua muita música, como
pela sua extensão. Logo, a medição latina, por inda mais extensa, muito
melhor se acomodaria à ambição de espaço em que os poetas tantas vezes
laboram [= sofrem].
Outra consideração não despicienda [= desprezível]: ao mesmo
tempo que todos os nossos outros metros são obrigados a número invariável
de sílabas, estes novos, pela liberdade de entremear ad libitum [= à vontade]
arremedos de dátilos e espondeus, são suscetíveis de muito maior fôlego. O
hexâmetro pode constar de treze, quatorze, quinze, dezasseis ou dezassete
sílabas, isto é, quatro sílabas mais que o opulento alexandrino; e o
pentâmetro, de doze, até treze ou quatorze sílabas.
213

Após exemplificar com os dois excertos de seu filho Júlio de Castilho, afirma11:

Se as amostras que deixamos transcritas lograrem a fortuna de persuadir aos


espíritos não-hóspedes [= não instruídos] no latim que a novidade pode ser
prestadia [= útil], a esses rogamos que ponderem que imensa facilitação não
encontraria para o seu trabalho, nessas amplas formas, quem empreendesse
dar à nossa Literatura os grandiosos poetas romanos. É ponto que vale a pena
ser meditado.

Tudo que se segue ao asterisco não constava nas primeiras edições. Castilho explicitou o que
José Anastácio da Cunha deixou implícito. Anastácio não compusera poesia original em
hexâmetros, como os posteriores; só os utilizou para traduzir um poema que era hexamétrico
em latim e outro que, sendo embora em prosa alemã, pertence ao idílio, que em grego e latim
sempre vem em hexâmetros. Nolasco e Costa e Silva, porém, quiseram o verso em poemas
originais vernáculos, como fará depois o brasileiro Carlos Magalhães de Azeredo em Odes e
Elegias, publicadas em 1904. Castilho, por seu turno, aceita hexâmetros na poesia original e,
percebendo que a medida muito convém à tradução dos poemas antigos, chega a aconselhar
que seja assim utilizada.
Foi o que na década de 1940 fez Nunes, que decerto, como poeta, conhecia o Tratado
de Metrificação de Castilho, o que não exclui que tivesse lido hexâmetros em nosssa língua,
como disse, ou em algumas outras que dominava. O fato é que foi o primeiro tradutor a fazer
em português o que em outras línguas já se fizera: traduzir integral e hexametricamente a
epopéia homérica mais a Eneida de Virgílio, feito que em nenhuma parte recebeu, senão o
apreço, que não se obriga, ao menos aprofundada apreciação crítica, que na Universidade é
obrigatória. Nunes foi pioneiro, e já não se trata de considerar muito tardias as traduções
hexamétricas da épica antiga em português, mas lembrando que a Eneida só foi publicada em
1981, quando as tendências poéticas já se haviam muito transformado desde que o hexâmetro
foi primeiro utilizado na Europa para verter poesia antiga, trata-se de perceber que Nunes
talvez se tenha antecipado em 60 anos ao ressurgimento hoje da tendência de assim traduzir
as epopéias da Antiguidade. Com efeito, sempre em hexâmetros, na Espanha Agustín García
Calvo traduziu a Ilíada (1995); nos Estados Unidos Rodney Merrill, a Odisséia (2002) e a Ilíada
(2007); na França Philippe Brunet, a Odisséia (2003) e a Ilíada (2010); na Itália Daniele Ventre,
a Ilíada em 2010: curiosamente, desses, até agora ninguém traduziu a Eneida, apenas Carlos
Alberto Nunes.
214

3) TRADUTOR: HUMANO, DEMASIADAMENTE HUMANO

O poeta latino Horácio, comentando lapsos de poetas, dizia indignar-se toda vez que
percebia que Homero cochilava, mas relevava-os em vista das mais numerosas virtudes12.
Ora, se o próprio Homero pode cochilar, por que não poderiam os tradutores de Homero?
Não é o caso, portanto, de fechar os olhos a problemas que qualquer tradução tenha, inclusive
as de Nunes, em particular a da Eneida, em que ele correu contra o relógio. O ano de 1981,
marcando o bimilenário da morte de Virgílio, constituiu-se numa efeméride poética e
editorial, ocasião propícia para publicar as obras do poeta, como consta nas Bucólicas,
traduzidas por Péricles Eugênio da Silva Ramos, lançadas logo no ano seguinte, e nesta
Eneida13, traduzida desde 1980 para ser lançada no próprio ano de 1981. O manuscrito
datilografado a que tivemos acesso mostra, com uma só exceção, o dia em que Carlos Alberto
Nunes terminou de traduzir cada canto:

por ordem cronológica por canto


4 de junho de 1980: canto IV Canto I: 21 de julho de 1980
27 de junho de 1980: canto VI Canto II: 8 de agosto de 1980
21 de julho de 1980: canto I Canto III: nada consta
8 de agosto de 1980: canto II Canto IV: 4 de junho de 1980
19 de setembro de 1980: canto V Canto V: 19 de setembro de 1980
26 de outubro de 1980: canto VII Canto VI: 27 de junho de 1980
4 de dezembro de 1980: canto VIII Canto VII: 26 de outubro de 1980
8 de janeiro de 1981: canto IX Canto VIII: 4 de dezembro de 1980
8 de fevereiro de 1981: canto X Canto IX: 8 de janeiro de 1981
12 de março de 1981: canto XI Canto X: 8 de fevereiro de 1981
11 de abril de 1981: canto XII Canto X I: 12 de março de 1981
Data incerta: canto III Canto XII: 11 de abril de 1981

Não traduzir o poema na ordem dos cantos concorreu talvez a que Nunes encontrasse
soluções diferentes para verter o mesmo nome em latim, mas a premência do prazo pode ter
respondido por lapso maior, como a troca de “Juno” por “Vênus” no canto X, 611, e de
“Vênus” por “Juno” no XII, 793. A julgar por lapso semelhante de Haroldo de Campos, que
no canto I, 400, da Ilíada, troca “Atena” por “Apolo”, cabe conjecturar, ainda com Horácio,
que se deva à amplitude mesma da epopéia, já não só quando é composta, mas também, eu
acrescentaria, quando é traduzida: “é inevitável que em obra tão longa se insinue algum
descuido”. Mas nesta Eneida, parece-me problema recorrente que o tradutor omita lugares e
personagens, se bem que menores, e careça de precisão no descrever afetos, combates e
ambientes, quando não era pequeno o espaço que o hexâmetro lhe disponibilizava.
215

Diferentemente do que ocorre ao traduzir a épica homérica 40 anos antes, é como se aqui, na
concomitância de detalhes de uma cena, a pressurosa câmera do tradutor focalizasse apenas o
primeiro plano, o que nos convidou a indicar na anotação aquilo que omitiu. O largo espaço
do hexâmetro, que Castilho por duas vezes chama “âmbito”, acaba por agravar o problema
inverso, bem menos comum, mas não de todo ausente, que é acrescentar na tradução
elemento inexistente no texto latino. Se se pode muito ocasionalmente excusar acréscimo nas
traduções estróficas e mesmo nas apenas rimadas, em que o recurso visa a possibilitar a rima e
perfazer a estrofe, é é inoportuno quando elas estão ausentes e quando a dificuldade é a falta,
não a sobra de espaço. Indicamos na anotação as respectivas passagens.

4) MÍNIMO FLORILÉGIO

Todavia, não são poucos os momentos em que o texto de Carlos Alberto Nunes
brilha. Para não dizer que não se falou das flores, segue pequena guirlanda de versos da Eneida
de Nunes, notáveis pelo emprego de certos tropos, como aliteramento, assonância e quiasmo,
entre outros. Certos fonemas só casual e excepcionalmente guardam relação absoluta com
aquilo que exprimem as palavras que integram. É o caso do aliteramento em –v/–f e em –z/–
s, cuja sibilação, encarecida aqui por outra aliteração em –l, serviu bem para mimetizar a
azáfama na hora de zarpar e ventos a enfunar as velas (IV, 471):

corre de todos os lados; as velas aos ventos apelam.

Ou o zumbido do chicote (VII, 451):

Zune o azorrague. Das fauces ardentes tais vozes se ouviram.

E o zum-zum-zum, o diz que diz (IV, 461):

julga ouvir vozes ou mesmo palavras do esposo defunto.

É o que sucede também ao aliteramento de fonemas oclusivos, principalmente seguidos de –r,


que reproduziram bem a trovoada (IV, 122):

crebros trovões em tropel retumbando lá ao longe, por tudo.

Ou própria cavalgada (XI, 875):

Quadrupedante tropel bate os campos com os cascos ferrados.

E ainda o estrépito de um barco batendo contra as pedras (V, 204-205):


216

Com o baque a rocha estremece; quebraram-se os remos de abeto,


de encontro às pedras; a proa amassada de longe se enxerga.

No mais das vezes, entretanto, aliteramento apenas dá particular relevância à informação da


sentença sem nenhuma relação necessária entre som e sentido, como no belo verso VI, 338, a
que se soma assonância em –i:

Nisso, percebe ali perto o piloto da nau, Palinuro.

Outros versos são belos pela disposição das palavras. No canto IX 439, um guerreiro é
tomado de desejo de vingar o amigo recém morto por certo Volscente. Virgílio diz:

Volscentem petit: in solo Volscente moratur.

Manter a palavra “Volscente” na mesma posição nas duas orações foi o expediente do poeta
para significar, além de dizer, que matar esse Volscente era idéia fixa, imutável. Carlos
Alberto Nunes traduz:

Volscente apenas procura; só pode deter-se em Volscente.

Para o mesmo fim, o meio é outro: a palavra “Volscente”, ocupando mediante quiasmo as
extremidades do verso, significa, além do que o verso diz, que esse Volscente e o desejo que o
vingador tinha de matá-lo ocupam, sozinhos, todo seu espírito.
A amplitude do hexâmetro latino e vernáculo permite na própria unidade do poema,
que é o verso, maior variedade no andamento da cena. Seguem-se dois exemplos diferentes
quanto ao tempo. Em IV, 594 lemos:

ferte citi flammas, date uela, impellite remos!


Ide, voai, trazei fogo, dai velas, os remos empunhem!

A sucessão de ordens e a rapidez no cumpri-las nos são comunicadas em português pela


radicalização do mesmo procedimento observado no latim, que é o acúmulo de várias
palavras curtas. Em (I, 496) o tempo é outro e já não se observa acúmulo, mas culminância. O
verso é belíssimo por causa da ordem “cinematográfica” dos elementos em movimento e da
relação com o olhar. Permito-me de novo citar o latim (I, 496):

regina ad templum, forma pulcherrima Dido.


Entra a Rainha no templo, de forma belíssima, Dido.
217

A escolha do metro permitiu ao tradutor manter praticamente intacta a cena impressionista


de Virgílio. Antes mesmo de qualquer substância, afetam os olhos do observador a
magnificência régia dos trajes, não mencionados: vê-se a condição de rainha, vê-se a realeza.
Em seguida, concentricamente do exterior para o interior, vemos a beleza pessoal,
superlativa, e ainda amplificada pela palavra forma, que também significa “beleza”. Só então
vemos a mulher, a pessoa, plena, única, individualizada pelo nome: “Dido”.
Trato por fim de tropos devidos exclusivamente ao tradutor, que dizem respeito à
língua portuguesa, como certos latinismos (III, 291-293):

Logo perdemos de vista os merlões altanados dos feácios,


e, pelas costas do Epiro seguindo, chegamos ao belo
porto Caônio e dali sem demora à cidade Butroto,

em que por “cidade de Butroto” lemos a construção latina “cidade Butroto”. Aqui a
atmosfera é incrementada pelo hipérbato, isto é, o deslocamento arcaizante do pronome “te”,
muito útil à sinalefa com o “o” seguinte (XI, 373-375):

Se tens brio
e algo possuis de teus bravos avós, corre, voa a bater-te
com quem te o repto lançou.

A prática é consolidada por ocorrências do tipo (VIII, 532-533):

“Não me perguntes”, lhe disse, “caro hóspede, o que significam


tão evidentes sinais”,

em que hóspede, em vez de “convidado”, significa “hospedeiro”, “anfitrião”. É consolidada


também pelo acúmulo de ocorrências, como na seguinte passagem (VII, 346-348):

Solta da grenha a deidade uma serpe e no peito lha atira,


té não cravar-se no fundo das vísceras, para que Amata
espicaçada por ela alvorote de fúrias o paço.

Na cena, Alecto, uma das Fúrias, está a inflamar Amata para que se revolte e não permita que
a filha, Lavínia, despose Enéias. Aqui o estranhamento que causam os arcaísmos grenha
(“cabeleira”), deidade (“divindade”), serpe (“serpente”), alvorote (“alvoroce”), paço (“palácio”), a
forma contrata culta lha (“lhe” + “a”) e a construção té não cravar-se (“té cravar-se”), que não
deixa de ser popular, não visa a produzir elevação do discurso e do falante, como o arcaísmo
costuma fazer, mas realça a transformação de Amata, que passará a agir como bacante
enfurecida. Ademais, incluir arcaísmos possibilitou que Nunes inserisse termos já utilizados
218

por dois tradutores importantíssimos da Eneida, o também maranhense Manuel Odorico


Mendes e a Eneida Brasileira no século XIX e, por meio de Odorico (provavelmente), o
português João Franco Barreto e a Eneida Portuguesa no século XVII. Exemplifico com a
palavra “prática”, que significa, “conversa”, utilizada pelos três tradutores na mesma
passagem do canto VIII, em que Enéias, o rei Evandro e seu filho Palante caminham juntos,
conversando:

JOÃO FRANCO BARRETO, Eneida Portuguesa (VIII, 73, 2-5):


Levava o velho Rei junto a seu lado,
andando a Enéias, e também Palante.
do caminho a moléstia e o enfado
enganava com prática elegante.

MANUEL ODORICO MENDES, Eneida Brasileira (VIII, 307-309):


El-rei de anos cercado ia adiante,
entre Enéias e o filho, em vários modos
praticando o caminho aligeirava.

CARLOS ALBERTO NUNES, Eneida, VIII,


Com o peso dos anos, à frente de todos
ia o monarca entre Enéias troiano e seu filho Palante,
suavizando o caminho com prática leve e variada.

O arcaísmo permite explorar nichos recônditos da língua portuguesa no léxico e na sintaxe e,


quando lhe são justapostos termos e locuções que, ao contrário, são muito coloquiais, como os
que seguem, produz-se no texto uma espécie de dissonância que, desvelando virtualidades da
língua, revela virtuosismo do tradutor (IV, 356-357):

O mensageiro dos deuses da parte de Jove agorinha


mesmo me trouxe um recado pelo ar.

(IV, 424):

Vai, mana, e fala a esse tipo de tanta soberba,

(VI, 531-532):

Porém a ti, que sucessos em vida te trazem por estas


bandas?
219

Os diminutivos coloquiais que Nunes emprega ressaltam o patético de uma cena


principalmente quando inclui idosos, como na fala de Hécuba a Príamo, prestes a ser morto
(II, 522-525):

“Nem a presença do meu caro Heitor poderia salvar-nos


neste momento. Acomoda-te aqui; este altar nos ampara.
Ou vem conosco morrer”. Assim disse. E tomando o Velhinho
pela mão trêmula, fê-lo sentar no recinto sagrado.

Ou quando Anquises fala a Enéias, que acaba de encontrá-lo nos Infernos (VI, 687-689:

“Enfim chegaste! Venceste o caminho com a tua piedade


de filho amado, e me dás a ventura de ver-te de perto,
ouvir-te a voz, e em colóquios passarmos alguns momentinhos.

Destaco, por fim, emprego de regionalismos:

(VIII, 86-89:)
Durante todo o transcurso da noite aplacou o sagrado
Tibre a empolada e impetuosa corrente, tornando-se calmo
no defluir invisível do plácido espelho, tal como
tanque sereno que os remos dos nautas de leve percutem,

em que tanque, regionalismo do nordeste brasileiro, significa “lago”.


Trata-se de admitir que vários são os meios de estender os limites da linguagem.
Cunhar compostos neológicos, interessantes que sejam, não é o único meio de nela intervir
para demovê-la do ramerrame; não é só no plano mais visível da palavra que se pode aguçar
a linguagem. A estratégia de Carlos Alberto Nunes foi equiparar todos os dizeres do idioma –
eruditos e populares, da fala e da escrita, antigos e contemporâneos, brasileiros e portugueses
– e dispor deles sob a unidade do hexâmetro, muito semelhantemente ao que fez o próprio
Virgílio. Assim como se pode criar nova palavra pela combinação de elementos mórficos
preexistentes, assim também pode-se produzir novidade e multiplicar efeitos pela combinação
em outro nível, porém análogo, de todos os dizeres que agora estão à disposição. Isso não é de
modo algum classicizante.
É antes plural diversidade, é miscigenação muito moderna, e talvez muito brasileira,
de estratos, recantos e compartimentos de linguagem que, no entanto, pertencem, todos eles,
ao mesmo território da língua portuguesa.

5) BÔNUS: O TRADUTOR E SUA LINHAGEM

Como tradutor da Eneida em português Carlos Alberto Nunes insere-se em tradição


220

longa, porém, não numerosa, se comparada às principais línguas européias. Tendo em vista
um panorama histórico da leitura de uma Eneida poética em nossa língua, restrinjo-me aqui às
versões integrais compostas em verso e publicadas, com duas exceções, porque, embora inéditas,
tiveram leitores importantes. Nestes termos, em ordem cronológica são as seguintes as
traduções integrais em verso:

1a: A Eneida de P. Vergílio Marão. Traduzida do Latim em Verso Solto Portuguez por Leonel da
Costa Lusitano, datada de 1638. Composta em decassílabos não-rimados, nunca foi impressa
nem publicada. O manuscrito autógrafo está hoje na Biblioteca Nacional de Portugal, mas
pertenceu ao poeta árcade e excelente tradutor de poesia grega e latina Antônio Ribeiro dos
Santos (o árcade “Elpino Duriense”).

2a: a Eneida Portuguesa, de João Franco Barreto, composta em oitava-rima, primeira a


ser publicada: os primeiros seis livros em 1664, os seis restantes em 1670 na Officina de
Antonio Vicente da Silva. Ser em oitava-rima denuncia o repto d’Os Lusíadas, de Camões,
cujo modelo poético é a própria Eneida de Virgílio. A oitava-rima produz efeito notável pois
faz soar lusíada a épica latina no tipo de estrofe e rima que Camões consagrou em português.
E as dívidas se pagaram, porque, se é de Virgílio a Eneida, que Camões imitou, é de Camões a
forma de que a Eneida se revestiu ao visitar a língua portuguesa na tradução de Franco
Barreto. Com introdução, notas, atualização e estabelecimento de texto de Justino Mendes de
Almeida foi republicada em Lisboa em 1981 pela Imprensa Nacional / Casa da Moeda.

3a: a Eneida de Publio Virgílio Maram, Traduzida e Ilustrada por Candido Lusitano (alcunha
árcade de Francisco José Freire). Composta entre 1669 e 1770 em decassílabos não-rimados,
até hoje está inédita e pode ser consultada na Academia de Ciências de Lisboa.

4a: as chamadas Eneidas14 de Virgílio em Verso Livre, de Luís Ferraz de Novais, publicadas
em Lisboa em 1790 pela Officina de Fillipe José de França e Liz. É a segunda tradução
publicada.

5a: a de Antônio José de Lima Leitão, que integra os dois volumes finais do Monumento
á Elevação da Colonia do Brazil a Reino, e o Estabelecimento do Triplice Imperio Luso. As obras de Publio
Virgilio Maro, em três volumes impressos e publicados no Rio de Janeiro pela Typographia
Real em 1818. Composta em decassílabos não-rimados, é a terceira publicada e a primeira
impressa no Brasil em 1818 pela Typographia Real, Rio de Janeiro.
221

6a: a Eneida, de Virgilio, traduzida por José Victorino Barreto Feio (os oito primeiros
cantos) e José Maria da Costa e Silva (os quatro restantes). Como bem lembra Justino Mendes
de Almeida, “Costa e Silva completou a tradução a partir do canto 9o, aproveitando todos os
fragmentos do espólio de Barreto Feio e acrescentando o que faltava; são dele na totalidade os
cantos X, XI e XII”. Foi composta em decassílabos não-rimados. Foi Impressa entre 1845 e
1857 pela Imprensa Nacional de Lisboa e, só os quatro cantos finais pela pela Tipografia do
Panorama É a quarta tradução publicada. Organizada por Paulo Sérgio de Vasconcellos, foi
republicada no Brasil em 2004, pela Editora Martins Fontes.

7a: a de Manuel Odorico Mendes, em decassílabos não-rimados, de 1854, quinta


publicada, mas a primeira feita por um brasileiro. O fato, diante da unidade da língua
portuguesa nada obstante suas variantes, não teria maior importância se não fosse
entronizado, ao que tudo indica, pelo próprio tradutor, que a entitulou Eneida Brazileira, assim
como chamou Virgílio Brazileiro a tradução completa dos três grandes poemas do poeta
reunidos num só volume publicados em 1858. É possível conjecturar que o “Brazileira” do
título responda ao “Portuguesa”, de João Franco Barreto, mormente em duas circunstâncias:
o nacionalismo romântico na política e nas letras, e a recente proclamação da Independência.
Na versão da Eneida que integra o Virgílio Brazileiro Odorico Mendes fez alterações, das quais a
principal talvez sejam os 96 versos a menos. As duas versões da Eneida foram republicadas no
Brasil, a de 1854 com estabelecimento de texto de Luiz Alberto Machado Cabral, pela
Editora da Unicamp e Ateliê Editorial em 2005; a de 1858, organizada por Paulo Sérgio de
Vasconcellos pela Editora da Unicamp em 2008.

8a: a Eneida, vertida pelo médico português João Félix Pereira, em decassílabos não-
rimados. Vinda a lume em 1879 pela Typographia da Bibliotheca Universal, de Lisboa, é a
sexta tradução publicada. João Félix Pereira traduziu integralmente várias obras gregas e
latinas, entre as quais as de Homero e os Trabalhos e Dias, de Hesíodo.

9a: a Eneida de Vergilio Lida Hoje, do português Coelho de Carvalho, de 1908, sétima
publicada, primeira do século XX pela Livraria Ferreira Editora, de Lisboa. Não obstante o
“Lida Hoje” do título, a sugerir nos umbrais do novo século, quiçá, alguma ruptura formal no
costumeiro decassílabo, a tradução, surpreedentemente, é decassilábica, composta na oitava-
rima camoniana, que duzentos anos antes João Franco Barreto utilizara, o que não impediu a
Justino Mendes de Almeida reservar-lhe não-pequeno louvor: “a versão de Coelho de
Carvalho não é uma versão, é uma paráfrase poética, mas um belo monumento literário. Será
222

de todas as existentes a que se lê hoje com mais agrado”.

10a: a de Carlos Alberto Nunes, lançada em 1981 por ocasião do bimilenário da morte
de Virgílio, por A Montanha Edições, oitava a ser publicada, primeira hexamétrica.

11a: a do português Agostinho da Silva. Integra as Obras de Virgílio, que incluem


Bucólicas e Geórgicas, todas em decassílabos não-rimados. A edição mais antiga conservada na
Biblioteca Nacional de Portugal é de 1993, é a foi publicada pelo Círculo de Leitores em
Lisboa,em 1993. Como esta é a 1a edição, Agostinho da Silva é o último tradutor integral
Eneida em versos vernáculos, realizada15 no início dos anos 1990.
223

Notas do Capítulo 3

1 Muito tenho pelejado para determinar a data da primeira edição da Ilíada e a da Odisséia, de Carlos
Alberto Nunes: na edição sem data da Iliada da Editora Atena diz o tradutor em “Nota” (p. 445): “Esta
tradução da Ilíada foi escrita de acordo com a reforma ortográfica luso-brasileira consubstanciada nas
normas do Vocabulário da Academia das Ciências de Lisboa. [...] Eis por que se corrigiram, agora,
alguns nomes que figuram com diferente grafia na tradução da Odisséia, publicada em 1941, nesta
mesma coleção, e que, para uniformidade dos textos, serão também alterados nas edições
subsequentes daquela obra”. Estabelece-se, assim, o ano de 1941 para a primeira edição da Odisséia. A
“reforma” a que se refere Carlos Alberto Nunes deve ser o Acordo Ortográfico de 1945, convenção
ortográfica assinada em Lisboa em 6 de outubro daquele ano entre a Academia de Ciências de Lisboa
e a Academia Brasileira de Letras, e não o Formulário Ortográfico de 1943, da Academia Brasileira de
Letras, que fundamentou seu Vocabulário Ortográfico. O acordo de 1945 não foi ratificado pelo
Congresso brasileiro, o que parece explicar que Carlos Alberto mencione o Vocabulário [Ortográfico] da
Academia das Ciências de Lisboa.
2 A bem da verdade, com frequência o tradutor permite-se acentuar na 2a sílaba em vez de na 1a.
3 Campos 1991-1992), p. 144.
4 Campos (1976: 27): “Mas [a Sílvio Romero e outros detratores] difícil seria reconhecer que Odorico
Mendes, admirável humanista, soube desenvolver um sistema de tradução coerente e consistente, onde
os seus vícios (numerosos, sem dúvida) são justamente os vícios de suas qualidades, quando não de sua
época”. Em 1992 (“Para Transcriar a Ilíada”, pp. 142-43), exibindo critérios desta tradução, afirma:
“De minha parte, em lugar do decassílabo de molde camoniano, que mais de uma vez obrigou
Odorico Mendes a prodígios de compressão semântica e contorção sintática recorri ao metro
dodecassilábico (acentuado na sexta sílaba, ou, mais raramente, na quarta, oitava e décima segunda).
Evitei assim o risco do prosaísmo, decorrente de um verso mais alongado, e sua contrapartida, a
constrição derivada de um metro demasiadamente curto”. Entenda-se: “prodígios de compressão
semântica” é a obscuridade; “prodígios de contorção sintática” é o arrevezamento; “contrição” é a
excessiva concisão, o truncamento. Esses são defeitos (das qualidades) da tradução de Odorico
Mendes. “Prosaísmo” é o defeito da tradução de Carlos Alberto Nunes.
5 Campos (1976) p. 28.
6 Campos (1991-1992), p. 144.
7 Metamorfoses, X, 1-297.
8Tirteu, fr.12; Arquíloco, frs. 3, 4, 5. Mimnermo, frs. 1, 2, 5, 12, 14. Sólon, frs. 5, 9, 16, 24. Teógnis,
Teognídea, 217-278.
9 Castilho, pp. 29-32.
10Juan de las Viñas, personagem da comédia homônima do poeta romântico espanhol Juan Eugenio
Hartzenbusch (1806-1880), estreada em 1844.
11 Itálicos do original.
12 Ars 347-360.
13 Respectivamente p. 10 e verso da página de rosto.
14“Eneidas” está aqui por “cantos da Eneida” e “verso livre” significa “verso sem rima”, não “verso
sem metro”.
15 Pela informação deixo lavrado meu agradecimento ao Professor Amon Santos Pinho, da
Universidade Federal de Uberlândia, grande conhecedor da obra filosófica de Agostinho da Silva.
224

CAPÍTULO 4

A MUSA PEDERÁSTICA DE MARCIAL:


53 EPIGRAMAS TRADUZIDOS
E MUITAS NOTAS POR FAZER

1) Poema 1 (1, 231)


Inuitas nullum nisi cum quo, Cotta, lauaris Ninguém convidas, só com quem te lavas, Cota,
et dant conuiuam balnea sola tibi. e só os banhos2 dão o teu conviva.
Mirabar, quare numquam me, Cotta, uocasses: Admirava-me, Cota, o nunca me chamares:
iam scio me nudum displicuisse tibi. agora sei que, nu, não te agradei3.
2) Poema 2 (1, 314)
Hos tibi, Phoebe, uouet totos a uertice crines Os cachos todos de alto a baixo, Febo5, imola-te
Encolpos, domini centurionis amor, Encolpo6, amor de seu senhor7, Pudente,
grata Pudens meriti tulerit cum praemia pili. que, centurião, com jus chegara a primipilo8.
Quam primum longas, Phoebe, recide comas, Depressa, longas, Febo, corta as mechas,
dum nulla teneri sordent lanugine uultus 5 enquanto pêlo algum lhe mancha9 a tenra face
dumque decent fusae lactea colla iubae; e ao colo lácteo caem bem cabelos.
utque tuis longum dominusque puerque fruantur E por que gozem mais senhor e jovem dotes
muneribus, tonsum fac cito, sero uirum. teus10, faze-o glabro cedo, e tarde, um homem.

3) Poema 3 (1, 46)


Cum dicis “Propero: fac si facis”, Hedyle, languet Se dizes “Tenho pressa: se vens, pois vem”, Hédilo11,
protinus et cessat debilitata Venus. logo amolece meu tesão12 e acaba.
Expectare iube: uelocius ibo retentus. Ordena-me esperar: sem peia, irei mais rápido.
Hedyle, si properas, dic mihi, ne properem. Mas, se tens pressa, diz que não me apresse.
225

4) Poema 4 (1, 58)


Milia pro puero centum me mango poposcit: Cem mil por um menino13 o vendedor cobrou-me:
risi ego, sed Phoebus protinus illa dedit. eu ri, mas Febo14 os deu mais que depressa.
Hoc dolet et queritur de me mea mentula secum Sofre meu pau e queixa-se de mim consigo
laudaturque meam Phoebus in inuidiam. e por meu ciúme Febo é que é louvado.
Sed sestertiolum donauit mentula Phoebo 5 Mas a Febo seu pau rendeu-lhe15 dois milhões16:
bis decies: hoc da tu mihi, pluris emam. ganha-os tu17, e eu compro o que é mais caro.
5) Poema 5 (2, 48)
Coponem laniumque balneumque, Um taberneiro, um talhador18, os banhos,
tonsorem tabulamque calculosque mais um barbeiro19, o tabuleiro e as pedras,
et paucos, sed ut eligam, libellos: uns poucos, porém bem seletos livros,
unum non nimium rudem sodalem um companheiro (um só) não muito inculto,
et grandem puerum diuque leuem 5 um menino encorpado ainda imberbe20
et caram puero meo puellam: e grata ao meu menino21 uma menina:
haec praesta mihi, Rufe, uel Butuntis, dá-me isto tudo até, Rufo22, em Butuntos23,
et thermas tibi habe Neronianas. e guarda para ti Termas de Nero24.
6) Poema 6 (2, 49)
Uxorem nolo Telesinam ducere. “Quare?” Não vou casar com Telesina. “Por que não?”
Moecha est. “Sed pueris dat Telesina.” Volo. Trai. “Mas dá25 p’ra meninos.” Então caso.
7) Poema 7 (3, 39)
Iliaco similem puerum, Faustine, ministro Ama Licóride a um menino (um Ganimedes!26)
lusca Lycoris amat. Quam bene lusca uidet! e é caolha, Faustino! Mas enxerga!
8) Poema 8 (3, 65)
Quod spirat tenera malum mordente puella, O aroma de maçã se jovem tenra a morde,
quod de Corycio quae uenit aura croco; e a brisa vinda do açafrão de Córico27;
uinea quod primis floret cum cana racemis, o olor da vinha anciã que flora em novos cachos,
gramina quod redolent, quae modo carpsit ouis; da relva a que recém pastou a ovelha;
quod myrtus, quod messor Arabs, quod sucina trita, 5 o que recende o mirto, o ceifador da Arábia28,
pallidus Eoo ture quod ignis olet; alva de incenso oriental, a chama,
glaeba quod aestiuo leuiter cum spargitur imbre, a terra, quando leve a rega a chuva estiva,
quod madidas nardo passa corona comas: a tiara que tocou nardinas tranças:
hoc tua, saeue puer Diadumene, basia fragrant. teu beijo, atroz menino, exala assim, Diadúmeno!29
Quid si tota dares illa sine inuidia? 10 E se os desses todinhos sem reagir?
9) Poema 9 (4, 7)
Cur, here quod dederas, hodie, puer Hylle, negasti, Hoje negas, menino, o que ontem deste, ó Hilo30?,
durus tam subito, qui modo mitis eras? agora rude, há pouco só doçura?
Sed iam causaris barbamque annosque pilosque. Alegas barba e idade e pêlos: como és longa,
O nox quam longa es, quae facis una senem! noite, que fazes, tu sozinha, um velho!
Quid nos derides? Here qui puer, Hylle, fuisti, 5 Ris de quê, Hilo? Tu, que ontem eras menino,
dic nobis, hodie qua ratione uir es? hoje, me diz, por que razão és homem?
226

10) Poema 10 (5, 46)


Basia dum nolo nisi quae luctantia carpsi, Beijos só por querer se os colho relutantes;
et placet ira mihi plus tua, quam facies, porque me apraz, mais que teu rosto, a raiva;
ut te saepe rogem, caedo, Diadumene, saepe: por te bater com muito te querer, Diadúmeno31:
consequor hoc, ut me nec timeas nec ames. meu prêmio é não temeres nem me amares.

11) Poema 11 (5, 48 32)

Quid non cogit amor? Secuit nolente capillos Que faz o amor! Cortou Encolpo seus cabelos33
Encolpos domino, non prohibente tamen. malgrado seu senhor, que o não proibiu:
Permisit fleuitque Pudens: sic cessit habenis Pudente34 anui e chora. Assim largou as rédeas
audaci questus de Phaethonte pater:
o pai, a lamentar o audaz Faetonte35 .
talis raptus Hylas, talis deprensus Achilles 5
Assim Hilas36 raptado, assim, surpreso Aquiles,
deposuit gaudens, matre dolente, comas.
Sed tu ne propera – breuibus ne crede capillis – sofrendo a mãe, feliz depôs os cachos37.
tardaque pro tanto munere, barba, ueni. Mas não te apresses, barba38, ao ver cabelos curtos
e em troca de tamanho bem vem tarde.

12) Poema 12 (5, 55)


Dic mihi, quem portas, uolucrum regina? “Tonantem.” Ave-rainha39, diz, quem levas? “O Tonante40.”
Nulla manu quare fulmina gestat? “Amat.” Nenhum raio nas mãos? “Arde o deus: ama.”
Quo calet igne deus? “Pueri.” Cur mitis aperto Quem. “Um rapaz.” Gentil e boquiaberta observas
respicis ore Iouem? “De Ganymede loquor.” Jove, por quê? “De Ganimedes41 falo.”

13) Poema 13 (5, 83)


Insequeris, fugio; fugis, insequor; haec mihi mens est: Vens, fujo. Foges, vou. Eis minha mente, Díndimo42.
uelle tuum nolo, Dindyme, nolle uolo. Não teu querer: eu quero o não quereres.

14) Poema 14 (6, 34)


Basia da nobis, Diadumene, pressa. 'Quot?' inquis. Beijos seguidos dá-me, Diadúmeno43. “Quantos?”44
Oceani fluctus me numerare iubes As ondas mandas-me contar do Oceano
et maris Aegaei sparsas per litora conchas e nas praias do Egeu as conchas espalhadas;
et quae Cecropio monte uagantur apes, a vagar no Cecrópio monte abelhas45
quaeque sonant pleno uocesque manusque theatro, 5 e no teatro cheio as mãos, vozes que soam,
cum populus subiti Caesaris ora uidet. se o povo o rosto vê surgir de César46.
Nolo quot arguto dedit exorata Catullo
Não quero quantos Lésbia ao perspicaz Catulo
Lesbia: pauca cupit, qui numerare potest.
deu: quem pode contar, poucos deseja.

15) Poema 15 (7, 15)


Quis puer hic nitidis absistit Ianthidos undis? Quem é o menino47 junto às ondas claras de Iântis48?
Effugit dominam Naida numquid Hylas? Hilas49 fugiu da Náiade senhora50?
O bene, quod silua colitur Tirynthius ista Que bom que nesta selva ao Tiríntio51 se adora,
et quod amatrices tam prope seruat aquas! que as águas bem de perto observa amáveis!
Securus licet hos fontes, Argynne, ministres: 5 Sirvas52 sem medo, Argino, destas fontes: Ninfas
nil facient Nymphae: ne uelit ipse, caue. nada farão53, mas vê que Ele não faça!
227

16) Poema 16 (7, 29)


Thestyle, Victoris tormentum dulce Voconi, Doce tormento54 de Vocônio Vítor, Téstilo!,
quo nemo est toto notior orbe puer, menino mais famoso55 em todo mundo,
sic etiam positis formosus amere capillis sejas amado e belo sem cabelos longos56
et placeat uati nulla puella tuo: e a teu vate menina alguma agrade:
paulisper domini doctos sepone libellos, 5 larga57 um pouco os livrinhos doutos do senhor,
carmina Victori dum lego parua tuo. que eu leia uns poemetos a teu Vítor:
Et Maecenati, Maro cum cantaret Alexin, Mecenas – mesmo que Marão58 cantasse Aléxis –
nota tamen Marsi fusca Melaenis erat.
Melênis negra59 conheceu de Marso.

17) Poema 17 (7, 50)


Fons dominae, regina loci quo gaudet Ianthis, Fonte querida a Iântis60 – senhora e rainha,
gloria conspicuae deliciumque domus, glória e delícia de uma casa ilustre –
cum tua tot niueis ornetur ripa ministris cuja borda escanções tez de neve ornamentam61
et Ganymedeo luceat unda choro: e a água luz da grei de Ganimedes62:
quid facit Alcides silua sacratus in ista? 5 O que faz nesta selva Alcides63 venerando?
Tam uicina tibi cur tenet antra deus? Por que de ti possui vizinha gruta?
Numquid Nympharum notos obseruat amores,
Conhecidos observa os amores das Ninfas,
tam multi pariter ne rapiantur Hylae?
por não raptarem juntos tantos Hilas?64

18) Poema 18 (7, 87)


Si meus aurita gaudet lagalopece Flaccus, Se a meu Flaco deleita o feneco65 orelhudo,
si fruitur tristi Canius Aethiope; se Cânio gosta de um sombrio Etíope66,
Publius exiguae si flagrat amore catellae, se inflama Públio o amor de parva cadelinha,
si Cronius similem cercopithecon amat; se Crônio adora igual cercopiteco67,
delectat Marium si perniciosus ichneumon, 5 o icnêumon68 predador se agrada tanto a Mário,
pica salutatrix si tibi, Lause, placet; se te apraz, Lauso, a pega69 que te chama,
si gelidum collo nectit Cadilla draconem,
se Cadila ao pescoço enrola a fria cobra,
luscinio tumulum si Telesilla dedit:
se Telesila a um rouxinol fez túmulo,
blanda Cupidinei cur non amet ora Labyrtae,
não ama o rosto em flor de Labirta (um Cupido!)
qui uidet haec dominis monstra placere suis? 10
quem vê tais monstros deleitar os donos?

19) Poema 19 (8, 46)


Quanta tua est probitas, tanta est infantia formae, És tão reto, quão grande é teu encanto, Cesto70,
Ceste puer, puero castior Hippolyto! rapaz mais casto que o rapaz Hipólito71!
Te secum Diana uelit doceatque natare, Diana72 te ensinara e contigo nadara,
te Cybele totum mallet habere Phryga; Cibele em ti tivera, inteiro, o Frígio73,
tu Ganymedeo poteras succedere lecto, 5 puderas suceder no leito a Ganimedes74,
sed durus domino basia sola dares. mas frio teu senhor só beijarias.
Felix, quae tenerum uexabit sponsa maritum
Feliz da noiva que excitar o tenro esposo,
et quae te faciet prima puella uirum!
primeira a te fazer (menina) um homem.
228

20) Poema 20 (8, 63)


Thestylon Aulus amat, sed nec minus ardet Alexin, Aulo75 ama Téstilo76 e se inflama por Aléxis77,
forsitan et nostrum nunc Hyacinthon amat. talvez meu Iacinto78 ame também.
I nunc et dubita, uates an diligat ipsos, Duvida agora que meu Aulo ame os poetas!,
delicias uatum cum meus Aulus amet. quando adora as delícias79 dos poetas.

21) Poema 21 (8, 73)


Instanti, quo nec sincerior alter habetur Instâncio, do que o qual não há mais verdadeiro
pectore nec niuea simplicitate prior, coração nem mais cândida franqueza.
si dare uis nostrae uires animosque Thaliae Se queres força e afã dar à minha Talia80,
et uictura petis carmina, da quod amem. e vivedouros cantos, faz que eu ame.
Cynthia te uatem fecit, lasciue Properti; 5 Cíntia te fez poeta, lascivo Propércio
ingenium Galli pulchra Lycoris erat; De Galo o engenho foi Licóris linda.
fama est arguti Nemesis formosa Tibulli; A fama de Tibulo arguto é a bela Nêmesis.
Lesbia dictauit, docte Catulle, tibi: Lésbia, douto Catulo, a ti ditou.
non me Paeligni nec spernet Mantua uatem,
Pelignos, Mântua não me negarão poeta,
si qua Corinna mihi, si quis Alexis erit. 10
se uma Corina eu tenha, algum Aléxis.

22) Poema 22 (9, 11)


Nomen cum uiolis rosisque natum, Nome nascido com violetas, rosas,
Quo pars optima nominatur anni, que nomeia a melhor parte do ano;
Hyblam quod sapit Atticosque flores, que tem sabor do Hibla e flores Áticas,
quod nidos olet alitis superbae; o olor dos ninhos da ave soberana;
nomen nectare dulcius beato, 5 nome mais doce que o ditoso néctar;
quo mallet Cybeles puer uocari que o efebo de Cibele81 mais queria,
et qui pocula temperat Tonanti, e quem tempera copos ao Tonante82;
quod si Parrhasia sones in aula, que se entoares na mansão Parrásia,
respondent Veneres Cupidinesque; responderão as Vênus e Cupidos;
nomen nobile, molle, delicatum 10 nome tão nobre, terno e delicado
uersu dicere non rudi uolebam: em verso não-grosseiro eu quis cantar,
sed tu syllaba contumax rebellas. mas tu, teimosa sílaba, te opões.
Dicunt Eiarinon tamen poetae, “Eiarino”, porém, poetas dizem,
sed Graeci, quibus est nihil negatum mas só Gregos, a quem nada é negado
et quos Ἆρες Ἄρες decet sonare: 15 e que “Ares, Ares” podem entoar:
nobis non licet esse tam disertis, tão eloqüentes não podemos ser,
Qui Musas colimus seueriores. que Musas cultivamos mais severas.
229

23) Poema 23 (9, 12)


Nomen habes teneri quod tempora nuncupat anni, Teu nome o tempo doce informa em que Cecrópidas
cum breue Cecropiae uer populantur apes; pilham a breve primavera abelhas.
nomen Acidalia meruit quod harundine pingi, nome que o cálamo Acidálio pintaria
quod Cytherea sua scribere gaudet acu; que a Citeréia escreva com agulha.
nomen Erythraeis quod littera facta lapillis, 5 nome digno de letra de Eritréias perlas,
gemma quod Heliadum pollice trita notet; de gema das hamádrias polida,
quod pinna scribente grues ad sidera tollant; nome que ao céu o grou eleve em pena escriba,
quod decet in sola Caesaris esse domo. que só na casa pode estar de César83.

24) Poema 24 (9, 13)


Si daret autumnus mihi nomen, Oporinos essem, Dera-me o nome outono, “Oporino eu seria”;
horrida si brumae sidera, Chimerinos; se astros do inverno rudes, “Quimerino”;
dictus ab aestiuo Therinos tibi mense uocarer: se o dera o estivo mês, “Terino” eu me chamara:
tempora cui nomen uerna dedere, quis est? quem é, a quem deu nome a primavera?

25) Poema 25 (9, 16)


Consilium formae, speculum, dulcisque capillos Consultor da beleza – o espelho – e doces mechas
Pergameo posuit dona sacrata deo por dons sagrados pôs ao deus de Pérgamo
ille puer tota domino gratissimus aula, o menino, ao senhor no Paço o mais querido,
nomine qui signat tempora uerna suo. cujo nome designa a primavera.
Felix, quae tali censetur munere tellus! 5 Terra feliz, por tal presente sublimada!
Nec Ganymedeas mallet habere comas. nem comas vai querer de Ganimedes84.

26) Poema 26 (9, 17)


Latonae uenerande nepos, qui mitibus herbis Grã neto de Latona85, o qual com ervas tenras
Parcarum exoras pensa breuesque colos, refreias o ágil fuso e a lã das Parcas86!
hos tibi laudatos domino, rata uota, capillos Estas mechas que seu senhor louvara envia-te
ille tuus Latia misit ab urbe puer; da Urbe, voto pago, um teu menino,
addidit et nitidum sacratis crinibus orbem, 5 que um disco acrescentou lustroso aos sacros cachos,
quo felix facies iudice tuta fuit. juiz que linda lhe fez sempre a face.
Tu iuuenale decus serua, ne pulchrior ille Tu conserva-lhe a graça juvenil: não seja
in longa fuerit quam breuiore coma.
mais belo cabeludo que aparado.

27) Poema 27 (9, 21)


Artemidorus habet puerum, sed uendidit agrum; Artemidoro tem um rapaz, mas vendeu
agrum pro puero Calliodorus habet. as terras. Caliodoro tem as terras
Dic, uter ex istis melius rem gesserit, Aucte: sem rapaz. Aucto, diz, quem é melhor gestor:
Artemidorus arat, Calliodorus arat. um cava e rega o sulco, o outro também!
230

28) Poema 28 (9, 25)


Dantem uina tuum quotiens aspeximus Hyllum, Teu Hilo toda vez que observo a pôr o vinho,
lumine nos, Afer, turbidiore notas. Afro, tu marcas-me com turvo olhar:
Quod, rogo, quod scelus est, mollem spectare ministrum? é crime olhar, é crime, um escanção mimoso?
Aspicimus solem, sidera, templa, deos. Olhamos sol, estrelas, templos, deuses!
Auertam uultus, tamquam mihi pocula Gorgon 5 Virar meu rosto, qual se a Górgona87 estendesse
porrigat atque oculos oraque nostra tegam? as taças, e cobrir a cara e os olhos?
trux erat Alcides, et Hylan spectare licebat; Alcides, tão cruel, deixava olharem Hilas88;
ludere Mercurio cum Ganymede licet. Mercúrio sói brincar com Ganimedes89.
Si non uis teneros spectet conuiua ministros, Por que tenros não olhe o conviva escanções,
Phineas inuites, Afer, et Oedipodas. 10 Édipos e Fineus convides, Afro.

29) Poema 29 (9, 33)


Audieris in quo, Flacce, balneo plausum, Nos banhos em que aplauso ouvires saberás,
Maronis illic esse mentulam scito. Flaco, que ali está a vara de Marão.

30) Poema 30 (9, 36)


Viderat Ausonium posito modo crine ministrum Vendo o Ausônio escanção recém-tosado, o jovem
Phryx puer, alterius gaudia nota Iouis: Frígio, notório gozo de outro Jove,
“Quod tuus, ecce, suo Caesar permisit ephebo, “O que teu César”, diz, “concede a seu efebo,
tu permitte tuo, maxime rector”, ait; tu, máximo regente, ao teu concede”,
'iam mihi prima latet longis lanugo capillis, 5 Já cobrem, longos, meus cabelos a lanugem,
Iam tua me ridet Iuno uocatque uirum.' já tua Juno ri, me chama ‘homem’”.
Cui pater aetherius 'Puer o dulcissime,' dixit, Ao que o etéreo pai falou: “rapaz dulcíssimo,
'Non ego, quod poscis, res negat ipsa tibi: não eu, o caso nega quanto pedes.
Caesar habet noster similis tibi mille ministros Meu César tem iguais a ti mil escanções,
tantaque sidereos uix capit aula mares; 10 nem cabem mais no Paço altivos homens.
at tibi si dederit uultus coma tonsa uiriles, Se cabelo menor te der rosto viril,
quis mihi, qui nectar misceat, alter erit?' quem mais me resta a preparar-me o néctar?

31) Poema 31 (9, 56)


Spendophoros Libycas domini petit armiger urbis: Armeiro do senhor, vai a Líbia Espendóforo:
quae puero dones tela, Cupido, para, prepara dardos ao rapaz, Cupido,
illa quibus iuuenes figis mollesque puellas: com que usas trespassar moços e ternas jovens,
sit tamen in tenera leuis et hasta manu. mas tenha à tenra mão a lança lisa.
Loricam clipeumque tibi galeamque remitto; 5 Da couraça dispenso-te e do escudo e o elmo;
tutus ut inuadat proelia, nudus eat: para lutar com proteção, vá nu;
non iaculo, non ense fuit laesusue sagitta, (de lança nem de espada ou seta foi ferido
casside dum liber Parthenopaeus erat. Partenopeu tirando o capacete).
Quisquis ab hoc fuerit fixus, morietur amore. Quem ele trespassar há de morrer de amor.
O felix, si quem tam bona fata manent! 10 Feliz, a quem tão boa morte aguarda!
Dum puer es, redeas, dum uultu lubricus, et te Volta enquanto és menino e a face é lisa: tua
non Libye faciat, sed tua Roma uirum. Roma te faça homem, não a Líbia.
231

32) Poema 32 (9, 93)


Addere quid cessas, puer, inmortale Falernum? Por que, rapaz, não pões mais do imortal Falerno?
Quadrantem duplica de seniore cado. Dobra o quadrante de um tonel antigo.
Nunc mihi dic, quis erit, cui te, Catacisse, deorum Agora diz-me a qual dos deuses, Catacisso,
sex iubeo cyathos fundere? 'Caesar erit.' seis cíatos verter te ordeno? A César.
Sutilis aptetur deciens rosa crinibus, ut sit 5 Rósea dez vezes ponham-me a trança por fama
qui posuit sacrae nobile gentis opus. de quem o templo ergueu à sacra estirpe.
Nunc bis quina mihi da basia, fiat ut illud De beijos dá-me dupla quina e o nome inteire-se
nomen, ab Odrysio quod deus orbe tulit. que nosso deus do mundo Odrísio trouxe.

33) Poema 33 (9, 103)


Quae noua tam similes genuit tibi Leda ministros? Que nova Leda iguais te gerou escanções?
Quae capta est alio nuda Lacaena cycno? Outro cisne raptou nua Espartana?
Dat faciem Pollux Hiero, dat Castor Asylo, Pólux a face deu a Híero, a Asilo
atque in utroque nitet Tyndaris ore soror. Castor, e nelas brilha a irmã Tindárida.
Ista Therapnaeis si forma fuisset Amyclis, 5 Tivesse tal beleza Amiclas Terapnéia
cum uicere duas dona minora deas, ao prender dons menores duas deusas,
mansisses, Helene, Phrygiamque redisset in Iden não partiras, Helena, e ao Ida retornara
Dardanius gemino cum Ganymede Paris.
Páris Dardânio e gêmeos Ganimedes90.

34) Poema 34 (10, 14 (13))


Cum cathedrata litos portet tibi raeda ministros Bem que teu carro leve untados escanções,
et Libys in longo puluere sudet eques, e em muito pó transpire um Líbio équite,
strataque non unas tingant triclinia Baias e prontos tingem não só Baias teus triclínios,
et Thetis unguento palleat uncta tuo, e teu perfume branca deixe Tétis,
candida Setini rumpant crystalla trientes, 5 e lúcidos cristais tanto Setino estale
dormiat in pluma nec meliore Venus: e em pluma superior nem Vênus durma,
ad nocturna iaces fastosae limina moechae, no umbral noturno sóis deitar de altiva puta,
et madet, heu, lacrimis ianua surda tuis, banham a porta surda tuas lágrimas
urere nec miserum cessant suspiria pectus. e o peito triste o ardor de suspirar não larga:
Vis dicam, male sit cur tibi, Cotta? Bene est. 10
Cota, por que vais mal? Porque que vais bem!

35) Poema 35 (10, 42)


Tam dubia est lanugo tibi, tam mollis, ut illam Tua lanugem é tão frágil, tão macia
halitus et soles et leuis aura terat. que o hálito, que a luz e a brisa a levam.
Celantur simili uentura Cydonea lana, Esconde lã igual marmelos bons, que brilham
pollice uirgineo quae spoliata nitent. se o polegar da virgem os desnuda.
Fortius inpressi quotiens tibi basia quinque, 5 Toda vez que te dou mais fortes cinco beijos,
barbatus labris, Dindyme, fio tuis. teus lábios tornam-me barbado, Díndimo.
232

36) Poema 36 (10, 66)


Quis, rogo, tam durus, quis tam fuit ille superbus, Quem tão severo foi, quem tão soberbo, indago,
qui iussit fieri te, Theopompe, cocum? que te fez, Teopompo, cozinheiro?
Hanc aliquis faciem nigra uiolare culina Este rosto encardir numa negra cozinha
sustinet, has uncto polluit igne comas? alguém ousa, e ensebar estes cabelos?
Quis potius cyathos aut quis crystalla tenebit? 5 Quem melhor portará cíatos, quem cristais?
Qua sapient melius mixta Falerna manu? Que mão porá com mais sabor Falernos?
Si tam sidereos manet exitus iste ministros, Se escanções fim igual sublimes têm, que Jove
Iuppiter utatur iam Ganymede coco. faça de Ganimedes91 cozinheiro.

37) Poema 37 (10, 98)


Addat cum mihi Caecubum minister Quando teu escanção me serve Cécubos,
Idaeo resolutior cinaedo, mais dengoso que o catamito Ideu,
quo nec filia cultior nec uxor mais fino até que tua filha, esposa,
nec mater tua nec soror recumbit, mãe e irmã recostadas no triclínio,
uis spectem potius tuas lucernas 5 queres que eu queira olhar tuas lucernas,
aut citrum uetus Indicosque dentes? mesa de tuia antiga e dentes Índicos?
Suspectus tibi ne tamen recumbam, Mas para que insuspeito eu seja ali,
praesta de grege sordidaque uilla
toma de tua grei e suja vila
tonsos, horridulos, rudes, pusillos
os aparados, feios baixos filhos
hircosi mihi filios subulci. 10
de um porqueiro que muito fede a bode.
Perdet te dolor hic: habere, Publi,
Tal dor te perderá, Públio: não podes
mores non potes hos et hos ministros.
ter tal pudor e ter tais escanções.

38) Poema 38 (11, 8)


Lassa quod hesterni spirant opobalsama dracti, O que do frasco aberto exala o mole bálsamo,
ultima quod curuo quae cadit aura croco; a brisa enfim que cai do crócus curvo,
poma quod hiberna maturescentia capsa, maçãs a madurar nas caixas invernais,
arbore quod uerna luxuriosus ager; de árvores farto o campo veranis,
de Palatinis dominae quod Serica prelis, 5 na prensa do Palácio as sedas da Senhora,
sucina uirginea quod regelata manu; o âmbar na mão da virgem aquecido,
amphora quod nigri, sed longe, fracta Falerni, do atro Falerno (e longe!) a ânfora quebrada,
quod qui Sicanias detinet hortus apes; o jardim que Sicânias tem abelhas,
quod Cosmi redolent alabastra focique deorum, de alabastro de Cosmo o olor, de altares sacros,
quod modo diuitibus lapsa corona comis: 10 a tiara que caiu de ricas mechas:
singula quid dicam? non sunt satis; omnia misce: por que digo um por um? Não bastam. Junta tudo:
hoc fragrant pueri basia mane mei. beijos de meu rapaz têm matutinos
Scire cupis nomen? Si propter basia, dicam. este aroma. Quem é? Se é pelos beijos, digo.
Iurasti: nimium scire, Sabine, cupis. Juras. Queres saber demais, Sabino.
233

39) Poema 39 (11, 22)


Mollia quod niuei duro teris ore Galaesi Gastas com boca dura os beijos de Galeso
basia, quod nudo cum Ganymede iaces, doces, deitas com Ganimedes92 nu.
(Quis negat?) hoc nimium est. Sed sit satis; inguina saltem Quem nega que é demais? Basta! Não solicites
parce fututrici sollicitare manu. com fodedora mão suas virilhas!
Leuibus in pueris plus haec, quam mentula, peccat, 5 Isto, mais que teu pau, lesa lisos rapazes,
et faciunt digiti praecipitantque uirum: dedos fazem o homem, antecipam-no,
inde tragus celeresque pili mirandaque matri com bodum, lestos pêlos e o que à mãe espanta,
barba, nec in clara balnea luce placent. a barba, e ao sol já não apraz seu banho.
Diuisit natura marem: pars una puellis, Duplo natura fez o macho: parte às jovens
una uiris genita est. Utere parte tua. 10 deu, outra aos homens. Usa a tua parte.

40) Poema 40 (11, 26)


O mihi grata quies, o blanda, Telesphore, cura, Ó bom repouso, ó doce inquietação: Telésforo!,
qualis in amplexu non fuit ante meo: a quem não houve igual nos braços meus.
basia da nobis uetulo, puer, uda Falerno, Dá-me beijos molhados, moço, em velho vinho.
pocula da labris facta minora tuis. Dá-me copos sugados por teus lábios.
Addideris super haec Veneris si gaudia uera 5 Se, a mais, vero prazer de Vênus deres, digo:
esse negem melius cum Ganymede Ioui. Jove não vai melhor com Ganimedes93.

41) Poema 41 (11, 28)


Inuasit medici Nasica phreneticus Eucti Nasica, o louco, ataca o escravo de Eucto, o médico –
et percidit Hylan. Hic, puto, sanus erat. Hilas!94 –. Traça-o: creio estava lúcido.

42) Poema 42 (11, 43)


Deprensum in puero tetricis me uocibus, uxor, Pego sobre um rapaz, com voz severa, esposa,
corripis et culum te quoque habere refers. ralhas, dizendo-me também tens cu.
Dixit idem quotiens lasciuo Iuno Tonanti! Foi quanto Juno disse ao Tonante95 lascivo,
Ille tamen grandi cum Ganymede iacet. que acolhe ao leito o adulto Ganimedes96.
Incuruabat Hylan posito Tirynthius arcu: 5 Sem o arco, o Tiríntio97 a Hilas98 envergava,
tu Megaran credis non habuisse natis? e crês que Mégara não tinha nádegas?
Torquebat Phoebum Daphne fugitiua: sed illas A Febo99 Dafne em fuga torturava, as chamas,
Oebalius flammas iussit abire puer. porém, o moço Ebálio as apagou.
Briseïs multum quamuis auersa iaceret, Briseida embora já virada se deitasse,
Aeacidae propior leuis amicus erat. 10 o glabro amante é quem roçava o Eácida:
Parce tuis igitur dare mascula nomina rebus, deixa de nomes dar viris a tuas partes
teque puta cunnos, uxor, habere duos. e, esposa, crê que tens um par de conas.
234

43) Poema 43 (11, 58)


Cum me uelle uides tentumque, Telesphore, sentis, Quando me vês querer, já com tesão, Telésforo,
magna rogas – puta me uelle negare: licet? – pedes muito. Supõe que eu negue! Posso?
et nisi iuratus dixi 'dabo', subtrahis illas, Se após jurar eu não disser “darei”, subtrais
permittunt in me quae tibi multa, natis. o que te dá poder em mim, as nádegas.
Quid si me tonsor, cum stricta nouacula supra est, 5 E se o barbeiro então, navalha em meu pescoço,
tunc libertatem diuitiasque roget? pedir a liberdade e mais riquezas?
Promittam; neque enim rogat illo tempore tonsor, Prometerei, quem pede ali não é barbeiro,
latro rogat; res est imperiosa timor: é ladrão: medo é força imperiosa.
sed fuerit curua cum tuta nouacula theca, Mal, porém, a navalha o curvo estojo a acolha,
frangam tonsori crura manusque simul. 10 pernas, mãos do barbeiro eu quebro: a ti
At tibi nil faciam, sed lota mentula lana nada farei. Mas já na crua lã, meu pau
λαικάζειν cupidae dicet auaritiae. “Fuck you” dirá à cúpida avareza.

44) Poema 44 (11, 73)


Venturum iuras semper mihi, Lygde, roganti Eu peço, Ligdo, e juras que virás,
constituisque horam constituisque locum. e marcas hora e marcas o lugar.
Cum frustra iacui longa prurigine tentus, Quando me deito em vão ereto de desejo,
succurrit pro te saepe sinistra mihi. socorre-me, sem ti, a mão esquerda.
Quid precer, o fallax, meritis et moribus istis? 5 Que te imprecar, falaz, por tais modos, tais méritos?
Umbellam luscae, Lygde, feras dominae. Portes sombrinhas a senhoras vesgas!

45) Poema 45 (11, 75)


Theca tectus ahenea lauatur Fechado em cápsula de bronze, banha-se
tecum, Caelia, seruus; ut quid, oro, contigo, Célia, teu escravo. Ora,
non sit cum citharoedus aut choraules? por quê? É citaredo? É coralista?
Non uis, ut puto, mentulam uidere. Não queres, creio, ver o pinto dele.
Quare cum populo lauaris ergo? 5 Então, por quê em público te banhas?
Omnes an tibi nos sumus spadones? Eunucos somos todos a teu ver?
Ergo, ne uidearis inuidere, Assim, por não pensarem no-lo negas,
seruo, Caelia, fibulam remitte. tira a fivela, Célia, a teu escravo

46) Poema 46 (12, 42)


Barbatus rigido nupsit Callistratus Afro, Barbado se casou Calístrato com Áfer,
Hac qua lege uiro nubere uirgo solet. qual virgem que se casa com marido.
Praeluxere faces, uelarunt flammea uultus, Luziram tochas; flâmeo, o véu cobriu-lhe o rosto.
Nec tua defuerunt uerba, Talasse, tibi. nem faltaram, Talasso, tuas fórmulas.
Dos etiam dicta est. Nondum tibi, Roma, uidetur 5 Fixou-se o dote até. Não te parece, Roma,
Hoc satis? expectas numquid ut et pariat? bastar? Esperas que ele dê à luz?
235

47) Poema 47 (12, 49)


Crinitae Line paedagoge turbae, Pedagogo da turma cabeluda,
rerum quem dominum uocat suarum Lino!, a quem Postumila chama dono
et credit cuï Postumilla diues dos bens que tem, ao qual confia rica
gemmas, aurea, uina, concubinos: as jóias, o ouro, a adega, os concubinos.
sic te perpetua fide probatum 5 Provada, assim, eterna lealdade,
nulli non tua praeferat patrona: tua patrona te prefira a todos:
succurras misero, precor, furori socorras, peço, meu furor infausto
et serues aliquando neglegenter e cuides vez ou outra negligente
illos qui male cor meum perurunt, daqueles que meu coração inflamam,
quos et noctibus et diebus opto 10 eles que dia e noite anseio ver,
in nostro cupidus sinu uidere, repleto de desejo, em meu regaço
formosos, niueos, pares, gemellos, lindos, gêmeos, da cor da neve, iguais,
grandes, non pueros, sed uniones. grandes, já não meninos, porém pérolas.

48) Poema 48 (12, 64)


Vincentem roseos facieque comaque ministros Róseos vence escanções, que rosto!, os cachos! Cina
Cinna cocum fecit. Cinna, gulosus homo es. põe-no à cozinha: és tão guloso, Cina!

49) Poema 49 (12, 75)


Festinat Polytimus ad puellas; Corre atrás de meninas Politimo;
inuitus puerum fatetur Hypnus; Hipno diz que é rapaz contra a vontade;
Pastas glande natis habet Secundus; fartas de glande tem Secundo as nádegas;
mollis Dindymus est, sed esse non uult; Díndimo, que não quer, é delicado,
Amphion potuit puella nasci. 5 bem podia nascer menina Anfíon:
Horum delicias superbiamque manha, empáfia, altivez queixosa, Avito,
et fastus querulos, Auite, malo, prefiro suportar a ter por dote
quam dotis mihi quinquies ducena.
cinco vezes duzentos mil sestércios.

50) Poema 50 (12, 84)


Nolueram, Polytime, tuos uiolare capillos, Não violaria os teus cabelos, Politimo,
sed iuuat hoc precibus me tribuisse tuis. mas agradou-me dar-te o que pediste.
Talis eras, modo tonse Pelops, positisque nitebas Pélops!, recém-tosado, foste assim: sem mechas
crinibus, ut totum sponsa uideret ebur. brilhaste e a noiva só marfim te viu.

51) Poema 51 (12, 86


Triginta tibi sunt pueri totidemque puellae: Trinta meninos tens e outras tantas meninas
una est nec surgit mentula. Quid facies? e um pau só, que não sobe. Que farás?
236

52) Poema 52 (12, 93


Qua moechum ratione basiaret Fabula bem na cara do marido
coram coniuge, repperit Fabulla. achou um meio de beijar o amante.
Paruum basiat usque morionem; Sem parar beija aquele pobre otário,
hunc multis rapit osculis madentem a quem, molhado já de muitos beijos,
moechus protinus, et suis repletum 5 o amante acolhe e, após dos seus fartá-lo,
ridenti dominae statim remittit. à senhora o devolve, que sorri.
Quanto morio maior est maritus! Quão mais otário é esse marido!

53) Poema 53 (12, 96)


Cum tibi nota tui sit uita fidesque mariti, Sabes que vida e quão fiel é teu marido,
nec premat ulla tuos sollicitetue toros, que outra teu leito não cobiça ou ronda:
quid quasi paelicibus torqueris inepta ministris, sofres com escanções, tola, quais concubinas,
in quibus et breuis est et fugitiua Venus? cuja Vênus é breve e fugidia?
Plus tibi quam domino pueros praestare probabo: 5 Meninos servem mais a ti que ao senhor. Provo:
hi faciunt, ut sis femina sola uiro; fazem que ao teu marido sejas única;
hi dant quod non uis uxor dare. “Do tamen”, inquis, o que não queres dar, esposa, dão. Mas dizes
“ne uagus a thalamis coniugis erret amor.” “Eu dou: não fuja amor errante ao tálamo”.
Non eadem res est: Chiam uolo, nolo mariscam: Não é igual. De figo eu quero só o Quio.
ne dubites quae sit Chia, marisca tua est. 10 O que é o Quio? Digo: o teu não é.
Scire suos fines matrona et femina debet: Saiba a matrona seu limite: cede a parte
cede sua pueris, utere parte tua. a eles de meninos, e usa a tua.
237

Notas Muito Incompletas do Capítulo 4


(Epigramas Pederásticos de Marcial)
 

1 Poema 1 (1, 23). O poema não inclui o puer delicatus, o adolescente que é amante passivo (o erômenos), de modo
que, embora homossexual, o epigrama não é propriamente “pederástico”. O amante passivo é o próprio Cota,
para quem o membro do poeta é pequeno. O epigrama pertence também às espécies risível e invectiva.
2 BANHOS: balnea. Banhos públicos romanos, onde nudez é coletiva, eram frequentados por quem buscava

parceiros amorosos.
3 NU, NÃO TE AGRADEI: me nudum displicuisse tibi. Era pouco dotado, mas subentende-se também que, vestido, agradara.

4 Poema 2 (1, 31): o menino escravo sacrifica os próprios cabelos em pró do senhor, Aulo Pudente. As mesmas
personagens recorrem no poema 11 e Aulo no poema 20.
5 FEBO: o deus Apolo, aqui designado pelo epíteto phoebus (do grego φοῖβος), “brilhante”.
6 ENCOLPO: o puer delicatus, escravo do centurião Pudente, a quem não deixa de amar a despeito da condição

servil; ver abaixo PRIMIPILO.


7 AMOR DE SEU SENHOR: domini amor; o amor de Encolpo é correspondido.
8 PRIMIPILO: meriti praemia pili, “o prêmio do merecido pilo”. Pilo é a lança dos centuriões: o mais antigo da

centúria carregava por tal mérito o segundo pilo e era chamado “primipilo”.
9 PÊLO ALGUM LHE MANCHA: nulla sordent lanugine. Resumem o ideal de beleza cabelos longos, pelo que cortá-los é

vero sacrifício, e ausência de barba; ver v. 10 “glabro” (tonsum).


10 DOTES TEUS: tuis muneribus. Apolo, representado como jovem sempre imberbe, é a própria personificação da

beleza juvenil masculina e dos amores pederásticos: deus da palestra, onde se reuniam ginastas nus, é a divindade
grega que tem mais amantes do sexo masculino.
Poema 3 (1, 46). Primeira ocorrência da tópica do desejado desencontro; ver nota ao poema 13.
11 HÉDILO: o puer delicatus. O nome provém do adjetivo grego ἡδύλος, diminutivo de ἡδύς, “doce”, “suave”.
12 TESÃO: Venus.

Poema 4 (1, 58). Da matéria pederástica o epigrama extrai riso, que o integra à espécie risível.
13 UM MENINO: puero. O puer delicatus não é nomeado.
14 FEBO: não o deus Apolo, mas o rival que comprou o belíssimo escravo.
15 SEU PAU RENDEU-LHE (donauit mentula): o membro grande de Febo distinguia-o ao prostituir-se.
16 DOIS MILHÕES: de sestércios (sestertiolum).
17 GANHA-OS TU: hoc da tu; o poeta apostrofa e deprecia o próprio membro, que, fosse maior, lhe permitiria pagar

o alto preço do belo escravo.


Poema 5 (2, 48).
18 TABERNEIRO (coponem), TALHADOR (lanium): garantem prazer da mesa.
19 BANHOS (balneum), BARBEIRO (tonsorem): provêm o cuidado do corpo.
20 MENINO IMBERBE: puerum leuem; ver poema 2, 5, PÊLO ALGUM LHE MANCHA.
21 GRATA AO MEU MENINO: caram puero meo. A menina assim querida fará que o puer delicatus, não nomeado,

permaneça junto do senhor.


22 RUFO: um qualquer amigo do poeta.
23 BUTUNTOS: insípida e distante cidade na Calábria.
24 TERMAS DE NERO: construídas pelo imperador em 62 ou 64 d.C., eram superiores, mas desnecessárias ao

poeta contanto que tivesse consigo um belo menino; ver poema 1, 2, BANHOS.
Poema 6 (2, 49). Epigrama risível, além de pederástico; ver poema 4.
25 DÁ: dat. Dare em latim tem o mesmo sentido erótico que em português. Os meninos, futuros amantes de

Telesina, interessam ao poeta.


Poema 7 (3, 39). Epigrama risível, além de pederástico; ver poema 4.
26 GANIMEDES: Iliaco ministro, literamente “escanção de Ílion”. Ganimedes, belo príncipe trioiano, excitou o desejo

de Júpiter, que incumbiu à águia, sua ave favorita, raptá-lo e levá-lo ao Olimpo (ver poema 12, onde se tornou
escanção (minister), aquele que ministra o néctar na taça de Júpiter e dos outros deuses; ver o termo também nos
238

poemas 17, 3; 28, vv. 3 e 9; 30, vv. 1 e 9; 33, 1; 34, 1; 36, 7; 37, 1 e 12; 48, 1; 53, 3; e “Ganimedes” em 19, 5; 25,
6; 28, 8; 33, 8; 36, 8; 39, 2; 40, 6; 42, 4. O rapto de Ganimedes é assim o arquétipo mítico da pederastia; tanto é,
que a palavra latina para “adolescente homossexual passivo” é catamitus, corruptela do próprio nome grego
Ganymédes, pelo etrusco. No poema “Rapto”, de Claro Enigma, Carlos Drummond de Andrade alude mui
cifradamente a esse mito.
Poema 8 (3, 65).
27 CÓRICO: montanha famosa pelo açafrão, situada na Cilícia, atual território da Turquia e da Síria.
28 ARÁBIA: trata-se da Arabia Felix, a Arábia Feliz (que em latim significa “fértil”), no sudoeste da Península

Arábica, onde se criavam mirra e nardo, odoríferos.


29 DIADÚMENO: o puer delicatus. O nome provém de διαδούμενος, “o que porta o diadema”. O Diadúmeno

(“portador do diadema”), o Discóforo (“o portadoer do disco”) e Doríforo (“o portadoe do disco”) são três notórias
esculturas de Policleto que representam jovens atletas.
Poema 9 (4, 7). O epigrama flagra o momento em que Hilo, já desenvolvido, quer abandonar a condição passiva
de erômenos e tornar-se ativo para irritação do poeta, que, frustrado pela recusa do rapaz, escarnece das alegações
dele. O epigrama é também risível e invectivo.
30 HILO: o puer delicatus; escravo grego adololescente.

Poema 10 (5, 46). O epigrama contém o tópos do desejado desenconto; ver poema 3 e nota ao poema 13.
31 DIADÚMENO: ver poema 8, 9.
32 Ver no poema 2 as mesmas personagens.

Poema 11 (5, 48). Aulo Pudente


33 CORTOU SEUS CABELOS: secuit capillos; ver 2, 5, PÊLO ALGUM LHE MANCHA.
34
PUDENTE: Aulo Pudente; ver poemas 2 e 20.
35 FAETONTE: filho do Sol (Hélio, em grego) e da Oceânida Clímene. Tendo a origem divina contestada por

Épafo, Faetonte pediu ao pai que o deixasse conduzir o carro, o carro do Sol. Quando, impetuosos, os corcéis
perceberam ser outro o auriga, desenfrearam-se catastroficamente pelos ares, e Júpiter, por preservar o mundo,
teve que fulminar Faetonte (ver Ovídio, As Metamorfoses, 2, 1-332). As irmãs de Faetonte, as Helíades (“filhas de
Hélio”), muito tristes, transformaram-se então em choupos (ver Ovídio, As Metamorfoses, 2, 333-366).
36 HILAS: belo adolescente amado de Hércules, que foi raptado pelas Ninfas do rio Ascânio, na Mísia, as quais

cativadas por sua beleza, lhe concederam imortalidade; ver poemas 15, 2; 17, 8; 28, 7; 42, 5 e personagem
homônima em 41, 2.
37 AQUILES DEPÔS OS CACHOS: Para que Aquiles não guerreasse em Tróia, sua mãe, Tétis (ou Peleu, seu pai),

ocultaram o filho disfarçado de menina na corte de Licomedes, até que, descoberto por Ulisses, reveliu quem era.
38 NÃO TE APRESSES, BARBA: tarda barba ueni; ver ver 2, 5, PÊLO ALGUM LHE MANCHA.

Poema 12 (5, 55).


39 AVE-RAINHA: uolucrum regina, “rainha das aves”, é a águia, ave de Júpiter. O poeta dialoga com a águia, que

aqui leva o próprio Júpiter em vez de Ganimedes.


40 TONANTE: Tonantem; Júpiter, deus do trovão.
41 GANIMEDES: ver poema 7.

Poema 13 (5, 83). O poema explicita enfim a tópica do desencontro, o “quero o não quereres” (uolo nolle).
42 DÍNDIMO: o puer delicatus. Díndimo era também nome de um monte da Frígia, famoso pelo culto de Cibele,

cujos sacerdotes eram emasculados. O nome do escrevo sugere efeminação.


Poema 14 (6, 64).
43 DIADÚMENO: ver poema 10, 3.
44 Como se vê no v. 8, trata-se de imitação explícita do poema 7 Catulo:
239

Quaeris, quot mihi basiationes Perguntas quantos beijos teus a mim


tuae, Lesbia, sint satis superque. me bastam, Lésbia, e quantos são demais.
Quam magnus numerus Libyssae harenae Quantos sejam os grãos de areia Líbica
lasarpiciferis iacet Cyrenis a jazer em Cirene, em láser fértil,
oraclum Iouis inter aestuosi 5 entre o estuoso oráculo de Júpiter
et Batti ueteris sacrum sepulcrum, e de Bato vetusto o sacro túmulo;
aut quam sidera multa, cum tacet nox, quantas estrelas, quando cala a noite,
furtiuos hominum uident amores, aos amores dos homens testemunham
tam te basia multa basiare (furtivos), tantos beijos tu beijares\
uesano satis et super Catullo est, 10 basta a Catulo, insano, e é demais.
quae nec pernumerare curiosi Assim os curiosos não consigam
possint nec mala fascinare lingua. contar nem as más-línguas pôr quebranto.

45 ABELHAS NOCECRÓPIO MONTE: era afamado o mel do monte Himeto, próximo de Atenas, cidade chamada
“Crecrópia” porque foi fundada por Cécrops; cf. Virgílio, Geórgicas, 4, 177-179.
46 CÉSAR: Domiciano (51–96 d.C.), imperador entre 81–96 d.C.

Poema 15 (7, 15). A cena se passa na fonte doméstica da casa do poeta Estela.
47 MENINO: puer. É Argino, o puer delicatus, escravo de Iântis. “Argino” prende-se ao adjetivo ἀργός, “alvo”,

“brilhante”, a sugerir cor da pele do rapaz.


48 IÂNTIS: pode ser a própria Violantila, esposa de Estela, poeta amigo de Marcial, ou mais provavelmente a

imagem dela como ninfa a dominar a fonte e a piscina de sua casa. Iântis (ἰανθίς) é o termo grego para o latino
uiola, “violeta”.
49 HILAS: ver poema 11.
50 NÁIADE SENHORA: a ninfa que, tendo raptado Hilas, era sua senhora; ver poema 11.
51 TIRÍNTIO SE ADORA: na fonte há imagem de Estela na figura de Hércules, o Tiríntio; ver poema 17, ALCIDES.
52 SIRVAS: ministres. Argino, como escanção a “servir” seus senhores, é como o próprio Ganimedes, escanção

(minister) dos deuses; ver poema 7.


53 NADA FARÃO...QUE ELE NÃO FAÇA: as ninfas da piscina não poderão raptar Argino, como ocorrera com Hilas,

mas o mesmo não se pode dizer de “Hércules” que é Estela.


Poema 16 (7, 29). Téstilo é o belo escravo, o puer delicatus, do poeta Vocônio Vítor, que reaparecerão no poema
20.
54 DOCE TORMENTO: tormentum dulce; é paradoxo tópico da poesia amorosa.
55 MENINO MAIS FAMOSO: porque será eternizado na poesia de seu senhor. Começa o elogio do poeta Vocônio

Vítor.
56 AMADO, BELO SEM CABELOS LONGOS: Marcial auspicia a Téstilo que ele seja amado ainda quando for adulto,

sem os cabelos que distinguem o efebo (ver poema 2, 5, PÊLO ALGUM LHE MANCHA), sem ser preterido por
nenhuma menina.
57 LARGA... QUE EU LEIA: Marcial pede que o rapaz permita que Vocônio conheça os poemas de Marcial, que são

inferiores (parua carimina, “poemetos”) aos do próprio Vocônio (doctos libellos, “livrinhos doutos”).
58 MARÃO: Virgílio (Públio Virgílio Marão), que no segundo poema das Bucólicas eternizou o belo Aléxis, puer

delicatus, amante passivo, personagem supostamente calcada em algum amante real de Virgílio.
59 MELÊNIS NEGRA: a jovem africana decantada pelo poeta Domício Marso, que mesmo inferior a Virgílio, era

lido por Mecenas. No argumento, enquanto Marcial humildemente se compara a Domício Marso, elogiosamente
compara Vocônio Vítor a Virgílio. Marcial sugere seus poemas já não são só pederásticos, como a 2a Bucólica,
mas heterossexuais, como os de Marso, sugestão que encarece o sentido metapoético do v. 4, “e a teu vate menina
alguma agrade”.
Poema 17 (7, 50). O poema, que louva os belos escravos de Iântis, relaciona-se complementarmente com o 15,
que louva um deles, Argino. O poeta dirige-se à fonte-piscina da casa de Iântis e Estela.
60 IÂNTIS: esposa do poeta Estela, casal a que pertence a mansão, a bela piscina e os belos escravos; ver 15, 1.
61 ESCANÇÕES TEZ DE NEVE : os pueri delicati têm pele clara, como Argino, que é um deles; ver 15, 1.
62 GREI DE GANIMEDES: o grupo de pueri delicati; ver GANIMEDES no poema 7.
240

63 ALCIDES: “descedente de Alceu”, Hércules; ver 15, 3, TIRÍNTIO. Trata-se da estátua de Estela sob a figura de
Hércules.
64 HILAS: ver poema 11, 5. Os escravos são tão belos, que as ninfa da piscina poderia raptá-los, como fizeram com

Hilas.
Poema 18 (7, 87). Epigrama é também risível, pois que Marcial escarnece dos exóticos bichos de estimação e do
tratamento que lhes dão seus amigos Flaco, Cânio, Públio, Crônio, Mário, Lauso, Cadila, Telesila. O poeta
prefere Labirta, puer delicatus. É evidente a equiparação entre os bichos e o escravo para o capricho de seus
senhores.
65 FENECO: raposa.
66 ETÍOPE: negro. SOMBRIO: mal-humorado, o que torna bizarra a companhia. CÂNIO RUFO: poeta de Cádis, na

Hispânia, amigo de Marcial (cf. 3, 20), cujos poemas se perderam.


67 CERCOPITECO: macaco de cauda longa e colorida. IGUAL: igual a Crônio, de quem Marcial está aqui a

escarnecer.
68 ICNÊUMON: mangusto estimado pelos antigos egípcios por devorar ovos de crocodilos.
69 PEGA: ave de cabeça, dorso e bico negros e barriga branca.

Poema 19
70 CESTO: rapaz que, romano, como o nome indica, não é o escravo puer delicatus, mas é honrado (“reto”, probitas).

Os amores que convêm a um escravo não convêm ao jovem romano, ainda que belo. Só a esposa poderá
deledesfrutar honestamente.
71 HIPÓLITO: jovem que venerava Diana e desprezava Vênus, decidido, por isso, a manter-se virgem. Hipólito

representa o homem que não tem interesse por mulheres.


72 DIANA: a Ártemis grega, filha de Latona e Júpiter, irmã gêmea de Apolo. Deusa da caça, preside a natureza

selvagem, ainda não tocada pelo homem, o que é simbolizado por ser virgem e por comprazer-se com os locais
ermos, agrestes e sombrios.
73 FRÍGIO INTEIRO: Átis; ver 9, 11, 6, EFEBO DE CIBELE.
74 GANIMEDES; ver 3, 29, 1.

Poema 20 (8, 63).


75 AULO: o centurião Aulo Pudente; ver poemas 2 e 11.
76 TÉSTILO: o puer do poeta Vocônio Vítor; ver poema 16.
77 ALÉXIS: ver poema 16, 7, MARÃO. Como, pela cronologia não pode tratar-se do amante de Virgílio, é de supor

que este Aléxis seja escravo de algum poeta contemporâneo. Pode-se supor melhor que Aulo Pudente não admire
apenas os próprios pueri dos amigos, como faz Marcial nos poemas 15, 16, 17, 18, mas os admire tais como
aparecem nos poemas de seus amigos poetas, daqueles que ele ama como poetas. Assim sendo, este Aléxis volta a
ser a notória personagem de Virgílio, com o que o poema, ao tempo em que parece elogiar só os belos meninos,
elogia antes a Aulo Pudente por apreciar a poesia pederástica, em que estão na berlinda aqueles meninos,
inclusive o já antigo Aléxis.
78 IACINTO: o escravo amante do próprio Marcial. Tâmiris, na mitologia grega, foi um músico, filho de Filamon e

namorado de Jacinto.
79
DELÍCIAS: o objeto das delícias, isto é, os meninos.

Poema 21 (8, 73).


80
TALIA: uma das nove Musas, consagrada à poesia cômica e epigrmática.
81 EFEBO DE CIBELE: Átis; ver 19, 4, O FRÍGIO INTEIRO.
82 TONANTE: Tonantem. É Júpiter, deus do trovão.
83 CÉSAR: o imperador Domiciano; ver poema 14, 6.
84 GANIMEDES; ver poema 7, 1.
85 LATONA: mãe de Apolo e Diana; ver poema 19, 3.
86 PARCAS: as Moiras gregas. Determinavam a parte, o lote de cada um. Deusas do destino, as Parcas presidiam os

três momentos culminantes da vida: nascimento, sexualidade / casamento, morte. Eram representadas como
anciãs de aspecto grave.
87 GÓRGONA: monstro que transformava em pedra todos que a olhassem.
88 HILAS; ver poema 11, 5.
241

89 GANIMEDES; ver poema 7, 1.


90 GANIMEDES; ver poema 7, 1.
91 GANIMEDES; ver poema 7, 1.
92 GANIMEDES; ver poema 7, 1.
93 GANIMEDES; ver poema 7, 1..
94 Ver poema 11, 5.
95 TONANTE: Tonantem. É Júpiter, deus do trovão.
96 GANIMEDES; ver poema 7, 1.
97 TIRÍNTIO; ver poema 15, 3.
98 HILAS: ver poema 11, 5.
99 FEBO: ver poema 2, 1.
242

CAPÍTULO 5 – ELEGIAS INCOMPLETÍSSIMAS DE PROPÉRCIO: LIVRO 1, 1-11.

PROPÉRCIO 1, 1

Cynthia prima suis miserum me cepit ocellis, Cíntia a primeira – azar de mim! – com seus olhinhos
contactum nullis ante cupidinibus. conquistou-me, intocado por desejo.
Tum mihi constantis deiecit lumina fastus Então Amor ao chão lançou meu nobre olhar
et caput impositis pressit Amor pedibus, e sob os pés pisou esta cabeça
donec me docuit castas odisse puellas 5 até que me ensinou a odiar meninas castas,
improbus, et nullo uiuere consilio. o torpe, e sem juízo algum viver.
Et mihi, iam toto furor hic non deficit anno, Um ano inteiro faz que este furor não passa,
cum tamen aduersos cogor habere deos. e inda me oprime o ter contrários deuses.
Milanion nullos fugiendo, Tulle, labores Milânion, que trabalho algum negava, Tulo,
saeuitiam durae contudit Iasidos. 10 dobrou na dura Iáside a fereza,
Nam modo Partheniis amens errabat in antris, pois ora em antros louco errava no Partênio,
rursus in hirsutas ibat et ille feras; onde eriçadas enfrentava feras,
ille etiam Hylaei percussus uulnere rami ou, da clava de Hileu ferido pelo golpe,
saucius Arcadiis rupibus ingemuit. nas penhas árcades gemia aflito.
Ergo uelocem potuit domuisse puellam: 15 Assim pôde domar a célere menina,
tantum in amore preces et benefacta ualent. tanto valem no amor preces, façanhas:
In me tardus Amor non ullas cogitat artes, mas por mim tardo Amor não cuida de artimanhas
nec meminit notas, ut prius, ire uias. nem vai, como antes, por batidas rotas.
At uos, deductae quibus est fallacia lunae Mas vós por cujo engano a lua desce à terra,
et labor in magicis sacra piare focis, 20 que imolais por mister em fogos mágicos,
en agedum dominae mentem conuertite nostrae, eis: de minha senhora o coração mudai,
et facite illa meo palleat ore magis! fazei-a empalecer mais que meu rosto,
tunc ego crediderim uobis et sidera et amnes que eu hei então de crer que estrelas, rios podeis
posse Cytaines ducere carminibus. com encantos mudar da Citaíne.
Et uos, qui sero lapsum reuocatis, amici, 25 E vós, que tarde ergueis quem jaz caído, amigos,
quaerite non sani pectoris auxilia. ide buscar auxílio a um peito insano.
Fortiter et ferrum saeuos patiemur et ignes, Com brio o ferro vou sofrer e sevas chamas,
sit modo libertas quae uelit ira loqui. se franco, quanto a ira quer, eu fale.
ferte per extremas gentes et ferte per undas, Levai-me por nações extremas e por ondas,
qua non ulla meum femina norit iter. 30 onde mulher não saiba meu caminho:
uos remanete, quibus facili deus annuit aure, vós a que o deus ouviu atento aqui ficai
sitis et in tuto semper amore pares. e amor compartilheis sempre seguro,
Nam me nostra Venus noctes exercet amaras, que as noites Vênus minha amargas me prepara
et nullo uacuus tempore defit Amor. e ocioso nunca me dá paz Amor.
Hoc, moneo, uitate malum: sua quemque moretur 35 Este mal evitai, advirto, e cada um
cura, neque assueto mutet amore torum. demore, sem mudar, no amor que tinha.
Quod si quis monitis tardas aduerterit aures, Quem der ao que eu ensino ouvidos moucos, ah!
heu referet quanto uerba dolore mea! com que dor lembrará minhas palavras!
243

PROPÉRCIO, 1, 2

Quid iuuat ornato procedere, uita, capillo Por quê andar com tal penteado, ó Vida minha,
et tenuis Coa ueste mouere sinus? mover lisos plissês de Cós na veste?
Aut quid Orontea crines perfundere murra, Por que molhar de mirra Orôntea os teus cabelos,
teque peregrinis uendere muneribus, vender-te por presentes importados,
naturaeque decus mercato perdere cultu, 5 o garbo natural por truques barganhar,
nec sinere in propriis membra nitere bonis? e não deixar brilhar por si teu corpo?
Crede mihi, non ulla tuae est medicina figurae: Tua aparência, crê, não requer tratamento:
nudus Amor formae non amat artificem. não ama nu Amor o maquiador.
Aspice quos summittat humus non fossa colores, Olha o matiz que faz brotar a terra inculta,
ut ueniant hederae sponte sua melius, 10 como espontânea vem melhor a hera!
surgat et in solis formosior arbutus antris, Quão mais belo o medronho em erma gruta surge
et sciat indociles currere lympha uias. e a água vai por rumos sem que a ensinem!
Litora natiuis praefulgent picta lapillis, Praias brilham da cor que grãos nativos pintam;
et uolucres nulla dulcius arte canunt. sem artifícios doce cantam pássaros.
Non sic Leucippis succendit Castora Phoebe, 15 Não inflamou Castor assim Febe Leucípede,
Pollucem cultu non Helaïra soror; nem com truque Hilaíre, irmã, a Pólux,
non, Idae et cupido quondam discordia Phoebo, nem a filha de Eveno em orlas pátrias – velha
Eueni patriis filia litoribus; rixa de Febo desejoso e Ida –,
nec Phrygium falso traxit candore maritum nem sobre rodas vindo Hipôdame estrangeiras
auecta externis Hippodamia rotis: 20 ganhou com brilho falso o Frígio esposo:
sed facies aderat nullis obnoxia gemmis, antes, não lhes vexava o aspecto gema alguma,
qualis Apelleis est color in tabulis. tinham a cor que Apeles pôs na tela,
Non illis studium fuco conquirere amantes: não tinham que pintar-se por obter amantes:
illis ampla satis forma pudicitia. bastava-lhes pudor para ser lindas.
Non ego nunc uereor ne sis tibi uilior istis: 25 Não temo que me dês menor valor que o deles:
uni si qua placet, culta puella sat est; mulher, basta encantar um só, que é fina,
cum tibi praesertim Phoebus sua carmina donet e mais, se for a ti que Febo dê canções,
Aoniamque libens Calliopea lyram, Calíope oferte a lira Aônia,
unica nec desit iucundis gratia uerbis, encanto singular não falte em ledas falas
omnia quaeque Venus, quaeque Minerua probat. 30 nem quanto Vênus e Minerva aprovem.
His tu semper eris nostrae gratissima uitae, De minha vida assim serás o encanto máximo,
taedia dum miserae sint tibi luxuriae. se míseros te causem tédio luxos.
244

PROPÉRCIO, 1, 3

Qualis Thesea iacuit cedente carina Tal como, após Teseu zarpar, jazia enferma
languida desertis Cnosia litoribus; no litoral abandonado a Cnóssia;
qualis et accubuit primo Cepheia somno tal como se estirou Andrômeda Ceféia
libera iam duris cotibus Andromede; tão logo adormeceu livre da pedra;
nec minus assiduis Edonis fessa choreis 5 tal como exausta assim após dançar demais
qualis in herboso concidit Apidano: a Edônide caiu no herboso Apídano:
talis uisa mihi mollem spirare quietem Cíntia eu vi em sono ameno respirar,
Cynthia consertis nixa caput manibus, cabeça em mãos unidas apoiada,
ebria cum multo traherem uestigia Baccho, passos quando arrastei ébrios de muito Baco,
et quaterent sera nocte facem pueri. 10 e escravos n’alta noite a tocha alteavam.
Hanc ego, nondum etiam sensus deperditus omnes, Dela eu busquei (o senso eu não perdera inteiro)
molliter impresso conor adire toro; docemente no leito aconchegar-me.
et quamuis duplici correptum ardore iuberent Por duplo ardor tomado embora – que me instavam
hac Amor hac Liber, durus uterque deus, ora Amor, ora Líber, duros deuses,
subiecto leuiter positam temptare lacerto 15 a atacá-la gentil soto-pondo meu braço
osculaque admota sumere arma manu, e dar-lhe beijos de arma em punho –, o sono
non tamen ausus eram dominae turbare quietem, não ousei perturbar, não!, de minha senhora,
expertae metuens iurgia saeuitiae; temendo assomos da sabida raiva;
sed sic intentis haerebam fixus ocellis, mas imóvel fiquei, olhos atentos, qual
Argus ut ignotis cornibus Inachidos. 20 Argo nos chifres (sem saber) da Ináquida.
Et modo soluebam nostra de fronte corollas E ora de minha testa a guirlanda eu soltava
ponebamque tuis, Cynthia, temporibus; e em tuas têmporas prendia, Cíntia,
et modo gaudebam lapsos formare capillos; ora folgava em pôr concerto em tuas grenhas,
nunc furtiua cauis poma dabam manibus: e dava a cavas mãos furtivos pomos:
omnia quae ingrato largibar munera somno, 25 dádivas que esbanjei ao sono ingrato, dádivas
munera de prono saepe uoluta sinu; que rolavam de teu regaço prono.
et quotiens raro duxti suspiria motu, E toda rara vez que abrupta suspiravas,
obstupui uano credulus auspicio, estupefacto cri num vão presságio,
ne qua tibi insolitos portarent uisa timores, que insólito pavor uns sonhos te causassem!,
neue quis inuitam cogeret esse suam: 30 que alguém malgrado teu te possuísse!
donec diuersas praecurrens luna fenestras, Foi quando a lua, ao vir defronte da janela, –
luna moraturis sedula luminibus, lua zelosa da morosa luz –
compositos leuibus radiis patefecit ocellos. presos raiando leve abriu os olhos dela.
Sic ait in molli fixa toro cubitum: Cotovelo na mole cama, Cíntia
“tandem te nostro referens iniuria lecto 35 falou: “voltas enfim ao leito meu, vexado
alterius clausis expulit e foribus? por outra e expulso de trancadas portas?
Namque ubi longa meae consumpsti tempora noctis, A minha longa noite onde passaste, lânguido,
languidus exactis, ei mihi, sideribus? ai de mim, mesmo após o pôr dos astros?
O utinam tales perducas, improbe, noctes, Tomara tenhas tu noites iguais, malvado,
me miseram quales semper habere iubes! 40 às que me obrigas mísera sofrer!,
Nam modo purpureo fallebam stamine somnum que há pouco eu enganava o sono ao fio de púrpura,
rursus et Orpheae carmine, fessa, lyrae; do canto exausta já da lira Orféia,
interdum leuiter mecum deserta querebar e ora em vez, só, comigo eu lamentava mansa
externo longas saepe in amore moras: teu longo demorar no amor de fora,
dum me iucundis lassam Sopor impulit alis. 45 e exausta alfim Torpor levou-me em ledas asas:
245

PROPÉRCIO, 1, 4

Quid mihi tam multas laudando, Basse, puellas Por quê, Basso, ao louvar tantas meninas, queres
mutatum domina cogis abire mea? que, mudado, a senhora minha eu deixe?
Quid me non pateris uitae quodcumque sequetur Por quê do que terei de vida não permites
hoc magis assueto ducere seruitio? que o mais na usada escravidão eu passe?
Tu licet Antiopae formam Nycteidos, et tu 5 De Antíopa Nictéia a bela forma embora
Spartanae referas laudibus Hermionae, adules e de Hermíone Espartana
et quascumque tulit formosi temporis aetas, e quantas produziu o belo tempo antigo,
Cynthia non illas nomen habere sinat: Cíntia renome algum lhes deixa ter:
nedum, si leuibus fuerit collata figuris, comparada às comuns, pior não parecera
inferior duro iudice turpis eat. 10 ao juiz, bem que duro, nem vexada.
Haec sed forma mei pars est extrema furoris; Mas tal beleza é só quinhão de meu furor,
sunt maiora, quibus, Basse, perire iuuat: há razões de morrer maiores, Basso:
ingenuus color et motis decor artubus et quae a cor nativa, a graça, o balançar do corpo
gaudia sub tacita discere ueste libet. e o gozo embaixo de lençóis calados.
Quo magis et nostros contendis soluere amores, 15 Quanto mais nosso amor procuras dissolver,
hoc magis accepta fallit uterque fide. tanto mais mútua nossa fé te engana.
Non impune feres: sciet haec insana puella Pagarás: que a menina insana há de saber
et tibi non tacitis uocibus hostis erit; e com voz nada surda hostilizar-te,
nec tibi me post haec committet Cynthia nec te e a ti Cíntia não vai-me confiar nem vai-te
quaeret; erit tanti criminis illa memor, 20 querer, lembrada de tamanho crime.
et te circum omnes alias irata puellas Com difamar-te irada ao bando de meninas
differet: heu nullo limine carus eris. todas, a porta alguma serás grato;
Nullas illa suis contemnet fletibus aras, não poupará nenhum altar do pranto seu
et quicumque sacer, qualis ubique, lapis. nem pedra alguma, onde estiver, sagrada.
Non ullo grauius temptatur Cynthia damno 25 Contra Cíntia não há tão grave dano quanto
quam sibi cum rapto cessat amore deus, o deus deixá-la ao ser roubado o amor,
praecipue nostro. Maneat sic semper, adoro, mormente o meu. Que assim perdure sempre, imploro,
nec quicquam ex illa quod querar inueniam! e nada a lamentar eu nela encontre.
246

PROPÉRCIO, 1, 5

Inuide, tu tandem uoces compesce molestas Tu, invejoso, cala enfim o mal-dizer
et sine nos cursu, quo sumus, ire pares! e iguais deixa-nos ir por nosso rumo.
Quid tibi uis, insane? meae sentire furores? Que queres tu, insano? O meu furor sentir?
Infelix, properas ultima nosse mala, Corres a ver, infausto, o mal extremo,
et miser ignotos uestigia ferre per ignes, 5 e mísero imprimir teu passo em chama ignota
et bibere e tota toxica Thessalia. e à Tessália beber toda os venenos.
Non est illa uagis similis collata puellis: Cíntia não se compara a meninas multívagas,
molliter irasci non sciet illa tibi. não vai irar-se pouco contra ti.
Quod si forte tuis non est contraria uotis, E se ela acaso aos teus desejos não se opõe,
at tibi curarum milia quanta dabit! 10 mas quantos mil cuidados te dará!
Non tibi iam somnos, non illa relinquet ocellos: Não há de abandonar teu sono, não teus olhos:
illa feros animis alligat una uiros. varões de alma feroz sozinha amarra.
A, mea contemptus quotiens ad limina curres, Ah, quanto à minha porta hás de correr banido,
cum tibi singultu fortia uerba cadent, quando soluçarás palavras fortes.
et tremulus maestis orietur fletibus horror, 15 Trêmulo nascerá do mesto choro o horror,
et timor informem ducet in ore notam, e do medo em teu rosto a marca feia;
et quaecumque uoles fugient tibi uerba querenti, querendo-as, flébil vão fugir de ti palavras;
nec poteris, qui sis aut ubi, nosse miser! onde ou quem és não saberás, inútil!
Tum graue seruitium nostrae cogere puellae Aprenderás quão duro é ser desta menina
discere et exclusum quid sit abire domum; 20 escravo e o que é voltar a casa excluso.
nec iam pallorem totiens mirabere nostrum, Já não vai admirar-te a minha palidez,
aut cur sim toto corpore nullus ego. ou nada no meu corpo haver de mim.
Nec tibi nobilitas poterit succurrere amanti: Não te socorrerá nobreza por amares,
nescit Amor priscis cedere imaginibus. ignora Amor ceder a imagens priscas.
Quod si parua tuae dederis uestigia culpae, 25 Se do erro indício houver – grande porém teu nome –
quam cito de tanto nomine rumor eris! tu na boca do povo cairás.
Non ego tum potero solacia ferre roganti, Não poderei levar consolo ao me pedires,
cum mihi nulla mei sit medicina mali; se remédio não há ao mal que tenho.
sed pariter miseri socio cogemur amore Mas no infortúnio iguais comum amor fará
alter in alterius mutua flere sinu. 30 trocarmos um no peito do outro o pranto.
Quare, quid possit mea Cynthia, desine, Galle, Assim, não busques, Galo, o quanto minha Cíntia
quaerere: non impune illa rogata uenit. pode: rogada não virá sem dano.
247

PROPÉRCIO, 1, 6

Non ego nunc Hadriae uereor mare noscere tecum, Contigo já não temo agora o Adriático,
Tulle, neque Aegaeo ducere uela salo, Tulo, nem velas dar ao mar Egeu.
cum quo Rhipaeos possim conscendere montes Contigo eu subiria os montes do Ripeu
ulteriusque domos uadere Memnonias; e além iria das mansões de Mêmnon.
sed me complexae remorantur uerba puellae, 5 Mas prende-me o que diz a menina em meus braços
mutatoque graues saepe colore preces. e, já sem cor, o muito que suplica;
Illa mihi totis argutat noctibus ignes, do seu ardor a noite inteira tagarela
et queritur nullos esse relicta deos; e queixa-se que os deuses a largaram.
illa meam mihi iam se denegat, illa minatur Diz não ser minha e põe-se a ameaçar-me como
quae solet ingrato tristis amica uiro. 10 a triste amante a seu amante ingrato.
His ego non horam possum durare querelis: Nem uma hora a tais queixumes eu resisto:
ah pereat, si quis lentus amare potest! Ah, morra quem puder amar sem pressa!
An mihi sit tanti doctas cognoscere Athenas Vale-me tanto a douta Atenas conhecer,
atque Asiae ueteres cernere diuitias, na Ásia contemplar a antiga pompa,
ut mihi deducta faciat conuicia puppi 15 que Cíntia eu veja, solta a nau, lançar-me insultos
Cynthia et insanis ora notet manibus, e insana com as mãos ferir o rosto?,
osculaque opposito dicat sibi debita uento, beijos dizer lhe deve o oposto vento e nada
et nihil infido durius esse uiro? mais duro haver que um homem infiel?
Tu patrui meritas conare anteire secures, Secures tenta obter mais que teu tio e leva
et uetera oblitis iura refer sociis. 20 a lei de antanho a sócios que a esqueceram.
Nam tua non aetas umquam cessauit amori, Jamais tardou no amor a tua juventude,
semper at armatae cura fuit patriae; antes, serviste sempre à pátria armada;
et tibi non umquam nostros puer iste labores não vai causar-te a dor que tenho este menino,
afferat et lacrimis omnia nota meis! nem quanto minhas lágrimas conhecem!
Me sine, quem semper uoluit fortuna iacere, 25 Eu, a quem sempre quis fortuna ver inerte,
huic animam extremam reddere nequitiae. deixa à devassidão eu dar a vida.
Multi longinquo periere in amore libenter, Muitos de longo amor morreram de bom grado,
in quorum numero me quoque terra tegat. entre os quais vai também cobrir-me a terra.
Non ego sum laudi, non natus idoneus armis: Não para a glória, eu para as armas não nasci:
hanc me militiam fata subire uolunt. 30 milícia, o fado quer que eu sirva àquela.
At tu, seu mollis qua tendit Ionia, seu qua Mas tu quer onde a mole Iônia tange, quer
Lydia Pactoli tingit arata liquor, onde os campos da Lídia tinge o Páctolo,
seu pedibus terras seu pontum remige carpes, terras a pé, ou mar se a remo devorares,
ibis et accepti pars eris imperii: irás detendo o império que te coube,
tum tibi si qua mei ueniet non immemor hora, 35 e então, se tempo vier que de mim não deslembres,
uiuere me duro sidere certus eris. sob dura estrela saberás que vivo.
248

PROPÉRCIO, 1, 7

Dum tibi Cadmeae dicuntur, Pontice, Thebae Cantando enquanto estás Tebas Cadméia, Pôntico,
armaque fraternae tristia militiae, e tristes armas de fraterna luta,
atque, ita sim felix, primo contendis Homero rivalizando, céus!, com Homero, o primeiro!
(sint modo fata tuis mollia carminibus), (que o fado seja brando com teus versos),
nos, ut consuemus, nostros agitamus amores, 5 eu de costume a meus amores me dedico,
atque aliquid duram quaerimus in dominam; contra dura senhora algo buscando.
nec tantum ingenio quantum seruire dolori Nem tanto a engenho: a dor eu tenho de servir
cogor et aetatis tempora dura queri. e dura me queixar da juventude.
Hic mihi conteritur uitae modus, haec mea fama est, Assim eu passo a vida, é este meu renome:
hinc cupio nomen carminis ire mei. 10 surja daqui a fama de meu verso!
Me laudent doctae solum placuisse puellae, Só porque deleitei menina douta, Pôntico,
Pontice, et iniustas saepe tulisse minas; e ameaças sofri injustas, louvem-me.
me legat assidue post haec neglectus amator, Depois, leia-me assíduo o amante abandonado
et prosint illi cognita nostra mala, e lhe aproveite conhecer meus males.
te quoque si certo puer hic concusserit arcu 15 Se te ferir também deste menino o arco –
quo nollem nostros me uiolasse deos! com que oxalá me os deuses não tocassem! –,
Longe castra tibi, longe miser agmina septem mísero vais chorar, que arraiais, sete exércitos
flebis in aeterno surda iacere situ; longe estão, surdos de bolor eterno.
et frustra cupies mollem componere uersum, E em vão desejarás versos compor suaves,
nec tibi subiciet carmina serus Amor. 20 canções não vai ditar-te Amor tardonho.
Tum me non humilem mirabere saepe poetam, Então poeta nada humilde hei de assombrar-te
tunc ego Romanis praeferar ingeniis. e entre engenhos serei em Roma eleito.
Nec poterunt iuuenes nostro reticere sepulcro: Jovens não poderão calar em meu sepulcro:
“Ardoris nostri magne poeta iaces”. “Grão poeta de nosso ardor, descansas”.
Tu caue nostra tuo contemnas carmina fastu: 25 Tu meus poemas, cuida, altivo não desprezes:
saepe uenit magno faenore tardus Amor. sói vir a quanto custo Amor tardio!
249

PROPÉRCIO, 1, 8

Tune igitur demens, nec te mea cura moratur? Tu, demente, nem meu cuidado te detém?
An tibi sum gelida uilior Illyria? Ou sou a ti mais vil que a gélida Ilíria?
Et tibi iam tanti, quicumquest, iste uidetur, Quem for, te importa tanto assim este pretor,
ut sine me uento quolibet ire uelis? que queres ir sem mim a barlavento?
Tune audire potes uesani murmura ponti 5 5 Tu, forte, o mar bravio então podes ouvir
fortis et in dura naue iacere potes? bramar, e em dura nau podes dormir?
Tu pedibus teneris positas fulcire pruinas, Tu podes tenros pés premer em neve assente,
tu potes insolitas, Cynthia, ferre niues? e sofrer, Cíntia, insólitas borrascas?
O utinam hibernae duplicentur tempora brumae, Oxalá hibernais o dobro durem brumas,
et sit iners tardis nauita Vergiliis, 10 10 e atraque o nauta por deter-se as plêiades;
nec tibi Tyrrhena soluatur funis harena, por ti ao cais Tirreno o cálabre não soltem,
neue inimica meas eleuet aura preces nem sopro hostil disperse minhas preces,
et me defixum uacua patiatur in ora 15 e após, plantado ali na erma praia, deixe-me
crudelem infesta saepe uocare manu! “cruel!” muito chamar-te, punho em riste.
Sed quocumque modo de me, periura, mereris, 15 Mas por mais que de mim, perjura!, o mal mereças,
sit Galatea tuae non aliena uiae; teu rumo Galatéia não desguarde;
atque ego non uideam tales subsidere uentos, 13 estes ventos que eu não os veja repousar
cum tibi prouectas auferet unda rates, 14 quando impelir a onda a nau zarpada
ut te felici post uicta Ceraunia remo e a Acroceráunia após dobrares a bom remo,
accipiat placidis Oricos aequoribus. 20 20 Ôrico te acolher em mar tranquilo,
Nam me non ullae poterunt corrumpere, de te porque, Vida, mulher não há que me demova
quin ego, uita, tuo limine uerba querar; de queixumes lançar em tua porta
nec me deficiet nautas rogitare citatos e à maruja reunida interrogar “que porto,
“dicite, quo portu clausa puella mea est?”, “dizei, minha menina ora enclausura?”
Et dicam “licet Artaciis considat in oris, 25 25 E direi: “bem que aporte ao litoral Atrácio,
et licet Hylaeis, illa futura mea est”. ao Hileu, ela há mas de ser minha”.
Hic erit! hic iurata manet! rumpantur iniqui! Cá virá! Cá jurou ficar! Mordam-se os maus,
Vicimus: assiduas non tulit illa preces. venci: preces não suportou assíduas.
Falsa licet cupidus deponat gaudia Liuor: Lúbrica Inveja esqueça o imaginado gozo:
destitit ire nouas Cynthia nostra uias. 30 30 minha Cíntia já não viajará.
Illi carus ego et per me carissima Roma Eu lhe sou caro e lhe é por mim Roma caríssima –
dicitur, et sine me dulcia regna negat. diz –, que não há sem mim doce país.
Illa uel angusto mecum requiescere lecto E ela comigo em leito exíguo repousar
et quocumque modo maluit esse mea, quis mais e, como fosse, minha ser,
quam sibi dotatae regnum uetus Hippodamiae, 35 35 que o reino antigo ter, dote de Hipodamia,
et quas Elis opes apta pararat equis. e os bens que equícola somou a Élide.
Quamuis magna daret, quamuis maiora daturus, Por mais que o outro desse e o mais que lhe daria,
non tamen illa meos fugit auara sinus. ela ao meu peito avara não fugiu.
Hanc ego non auro, non Indis flectere conchis, Ela, não a dobrei com ouro ou conchas Índicas,
sed potui blandi carminis obsequio. 40 40 mas foi com o condão de um canto doce.
Sunt igitur Musae, neque amanti tardus Apollo, Há Musas: e a quem ama, Apolo não é tardo;
quis ego fretus amo: Cynthia rara mea est! fido aos quais, amo: Cíntia, rara, é minha.
Nunc mihi summa licet contingere sidera plantis: Posso agora pisar nos astros mais subidos,
siue dies seu nox uenerit, illa mea est! seja dia, quer noite, que ela é minha.
250

PROPÉRCIO, 1, 9

Dicebam tibi uenturos, irrisor, amores, Não falei, zombador, que amor viria e tuas
nec tibi perpetuo libera uerba fore: palavras não seriam sempre livres?
ecce iaces supplexque uenis ad iura puellae, Rastejas suplicante à lei de uma menina
et tibi nunc quaeuis imperat empta modo. e uma ninguém, comprada há pouco, impera-te.
Non me Chaoniae uincant in amore columbae 5 Não predizem no amor como eu pombas Caônias
dicere, quos iuuenes quaeque puella domet. que jovens domará cada menina.
Me dolor et lacrimae merito fecere peritum: Dor, lágrimas com jus fizeram-me perito:
atque utinam posito dicar amore rudis! antes fosse ignorante sem amor!
Quid tibi nunc misero prodest graue dicere carmen Que te vale infeliz cantar grave canção,
aut Amphioniae moenia flere lyrae? 10 ou muros lamentar da lira Anfiônia?
Plus in amore ualet Mimnermi uersus Homero: Um verso de Mimnermo é mais no amor que Homero:
carmina mansuetus lenia quaerit Amor. suaves busca manso Amor canções.
I quaeso et tristes istos sepone libellos, Larga teu triste livro e vê se cantas, peço,
et cane quod quaeuis nosse puella uelit! o que qualquer menina quer saber!
Quid si non esset facilis tibi copia! Nunc tu 15 O quê? Se te faltar assunto? Agora mesmo,
insanus medio flumine quaeris aquam. louco, procuras água em pleno rio.
Necdum etiam palles, uero nec tangeris igni: Inda não te tocou palor nem vera chama,
haec est uenturi prima fauilla mali. primeira do vindouro mal centelha.
Tum magis Armenias cupies accedere tigres Então preferirás ferir tigres na Armênia,
et magis infernae uincula nosse rotae, 20 grilhões da roda conhecer do Inferno,
quam pueri totiens arcum sentire medullis a sentir na medula a flecha do menino,
et nihil iratae posse negare tuae. e à ira de tua amante não negar.
Nullus Amor cuiquam faciles ita praebuit alas, Jamais Amor cedeu a alguém asas propícias
ut non alterna presserit ille manu. sem oprimi-lo após com a outra mão.
Nec te decipiat, quod sit satis illa parata: 25 Nem te engane o mostrar-se compassiva, Pôntico,
acrius illa subit, Pontice, si qua tua est, mais acre se inocula a que for tua,
quippe ubi non liceat uacuos seducere ocellos, porque não poderás vagos desviar-lhe os olhos
nec uigilare alio limine cedat Amor. nem te dará vigília Amor por outra,
Qui non ante patet, donec manus attigit ossa: o qual não se revela até tocar-te os ossos:
quisquis es, assiduas tu fuge blanditias! 30 quem fores, de carícias foge assíduas,
Illis et silices et possint cedere quercus, às quais, se até calhaus, se até carvalho cede,
nedum tu possis, spiritus iste leuis. o que dizer de ti, essa alma terna?
Quare, si pudor est, quam primum errata fatere: Assim, se tens pudor, confessa logo os erros:
dicere quo pereas saepe in amore leuat. no amor dizer por quem se morre acalma.
251

PROPÉRCIO, 1, 10

O iucunda quies, primo cum testis amori Ó doce noite aquela em que ao primeiro amor
affueram uestris conscius in lacrimis! assisti, cúmplice de vossas lágrimas!
O noctem meminisse mihi iucunda uoluptas, Ó que doce prazer lembrar aquela noite,
o quotiens uotis illa uocanda meis, que devo com meus votos invocar,
cum te complexa morientem, Galle, puella 5 na qual, Galo, te vi no colo da menina,
uidimus et longa ducere uerba mora! morrendo, suspirar longas palavras!
Quamuis labentes premeret mihi somnus ocellos Os olhos me pesava o sono e enrubescia
et mediis caelo Luna ruberet equis, no céu a lua em meio à cavalgada,
non tamen a uestro potui secedere lusu: mas não pude largar a vossa brincadeira
tantus in alternis uocibus ardor erat. 10 de tanto ardor nos gritos alternados.
Sed quoniam non es ueritus concredere nobis, E porque não temeste a mim te expor, aceita
accipe commissae munera laetitiae: a paga da alegria que me deste:
non solum uestros didici reticere dolores, não só a vossa dor já sei calar; eu tenho
est quiddam in nobis maius, amice, fide. em mim algo maior que lealdade:
Possum ego diuersos iterum coniungere amantes, 15 separados eu posso unir de novo amantes
et dominae tardas possum aperire fores; e abrir a tarda porta da senhora;
et possum alterius curas sanare recentis, recente posso a dor de outros curar: não são
nec leuis in uerbis est medicina meis. minhas palavras mero paliativo.
Cynthia me docuit, semper quae cuique petenda Cíntia ensinou-me o quê sempre buscar, do quêse
quaeque cauenda forent: non nihil egit Amor. 20 precaver: o resto fez Amor.
Tu caue ne tristi cupias pugnare puellae, Cuida não fazer guerra à birra da menina
neue superba loqui, neue tacere diu; nem soberbo falar nem ficar mudo.
neu, si quid petiit, ingrata fronte negaris, E se algo te pedir, não negues carrancudo
neu tibi pro uano uerba benigna cadant. nem sejam vãs palavras benfazejas.
Irritata uenit, quando contemnitur 25 Desenhada, virá sanhosa e, se ofendida,
nec meminit iustas ponere laesa minas: as justas ameaças não descumpre.
at quo sis humilis magis et subiectus amori, Mas quanto mais humilde e mais sujeito a amor,
hoc magis effectu saepe fruare bono. tanto mais fruirás de teu sucesso.
Is poterit felix una remanere puella, Poderá ser feliz com uma só menina
qui numquam uacuo pectore liber erit. 30 quem nunca livre for de peito isento.
252

PROPÉRCIO, 1, 11

Ecquid te mediis cessantem, Cynthia, Baiis, Enquanto folgas, Cíntia, agora em plena Baias
qua iacet Herculeis semita litoribus (praias em que se estende a senda Hercúlea),
et modo Thesproti mirantem subdita regno e da nobre Miseno o mar vizinho admiras
proxima Misenis aequora nobilibus, (águas que vão saudar o rei Tesproto),
nostri cura subit memores adducere noctes? 5 5 cismar – será? – te traz noites em que me lembras?
Ecquis in extremo restat amore locus? Será que em teu amor restou lugar?
An te nescio quis simulatis ignibus hostis Ou simulando ardor, alguém, um inimigo,
sustulit e nostris, Cynthia, carminibus, Cíntia, te surripiou a meus cantares
ut solet amoto labi custode puella, 15 tal como sem a guarda esgueira-se a menina
perfida communes nec meminisse deos? 10 que deuses pérfida ignora partilhados?
Atque utinam mage te remis confisa minutis 9 Que antes uma canoa, entregue a breves remos
paruula Lucrina cumba moretur aqua, 10 na onda do Lucrino, te entretenha,
aut teneat clausam tenui Teuthrantis in unda ou tênue te aprisione a água do Teutrante
alternae facilis cedere lympha manu, a mãos alternas mansa oferecida,
quam uacet alterius blandos audire susurros 15 que possas doutro ouvir sussurros brandos já
molliter in tacito litore compositam! deitada molemente em quieta praia:
Non quia perspecta non es mihi cognita fama, 17 não é que eu não conheça o quanto és reputada,
sed quod in hac omnis parte timetur amor. mas todo amor ali é de temer.
Ignosces igitur, si quid tibi triste libelli Perdoarás se meu livrinho te levar
attulerint nostri: culpa timoris erit. 20 20 qualquer tristeza: a culpa é do temor.
Ah mihi non maior carae custodia matris Por minha cara mãe mais zelo eu não teria
aut sine te uitae cura sit ulla meae! nem, sem ti, cuidaria de viver.
Tu mihi sola domus, tu, Cynthia, sola parentes, Tu, só tu, és meu lar, Cintia, só tu meus pais,
omnia tu nostrae tempora laetitiae. e também todo meu contentamento.
Seu tristis ueniam seu contra laetus amicis, 25 25 Quer triste eu chegue ou ledo, aos amigos, qual seja
quicquid ero, dicam “Cynthia causa fuit”. meu estado, direi: “A causa é Cíntia”.
Tu modo quam primum corruptas desere Baias: Tu, deixa, antes de tudo, a corrompida Baias,
multis ista dabunt litora discidium, esta praia trará discórdia a muitos,
litora quae fuerunt castis inimica puellis: praia que foi hostil ao pudor das meninas!
ah pereant Baiae, crimen amoris, aquae! 30 30 Que morra o mar de Baias, mal do amor!
253

PROPÉRCIO, 1, 12

Quid mihi desidiae non cessas fingere crimen,


quod faciat nobis Cynthia, Roma, moram?
Tam multa illa meo diuisast milia lecto,
quantum Hypanis Veneto dissidet Eridano;
nec mihi consuetos amplexu nutrit amores 5
Cynthia, nec nostra dulcis in aure sonat.
Olim gratus eram: non ullo tempore cuiquam
contigit ut simili posset amare fide.
Inuidiae fuimus: num me deus obruit? an quae
lecta Prometheis diuidit herba iugis? 10
Non sum ego qui fueram: mutat uia longa puellas.
Quantus in exiguo tempore fugit amor!
nunc primum longas solus cognoscere noctes
cogor et ipse meis auribus esse grauis.
Felix, qui potuit praesenti flere puellae 15
(non nihil aspersus gaudet Amor lacrimis),
aut, si despectus, potuit mutare calores
(sunt quoque translato gaudia seruitio).
Mi neque amare aliam neque ab hac desistere fas est:
Cynthia prima fuit, Cynthia finis erit. 20
254

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