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Judith Butler

O CLAMOR DE ANTÍGONA
Parentesco entre a vida e a morte

Tradução
André Cechinel

Na editora ufsc
2014
02014 Judith Butler

Coordenação editorial:
Paulo Roberto da Silva
Capa:
Leonardo Gomesda Silva
Editoração:
Tais Andrade Massaro
Revisão:
Flavia Vicenzi

Ficha Catalográfica
(Catalogação na publicação pela Biblioteca Universitária da Universidade Federal
de
Santa Catarina)

B985c Butler, Judith


O clamor de Antígona: parentesco entre a vida e a morte / Judith
Butler ; tradução André Cechinel. — Florianópolis: Editora da UFSC,
2014.
128 p.

1 Antígona - Mitologia grega. 2. Teoria feminista. 3. Parentesco


-
Filosofia. I. Título.

CDU: 292
ISBN 978-85-328-0690-1

duuzida,arquií vada ou
transmiti ida por qualqu
Prévia permissão po er meio ou forma
r escrito da Editor
a da UFSC.
Impresso no Brasil
Sumário

Apresentação à edição brasileira..........estereo 7


Nota do tradutor ...........remessaseertesresrermeesarerss 11

Agradecimentos................ is cemmeereaameeieeeeaaeeeeeeaereeserertesemeesseesesemereçs 13

O clamor de Antígona..............itersresmmeeseeammereemeenereesssermerersasrmeeressessremeertersea 17
Leis não escritas, transmissões aberrantes.. 11.49
Obediência promíscua......

Posfácio à edição brasileira...................smssessereemserrermeesermeeeensererrereeseneeeremseses 115


Apresentação à edição brasileira

O clamor de Antígona:
entre a vida e a morte
E com satisfação que publicamos na coleção Gênero e
Sexualidade da EdUFSC a tradução desta importante obra de
Judith Butler. Texto denso e complexo, O clamor de Antígona traz
significativa contribuição em relação às lutas políticas minoritárias
diante das leis do Estado, questão política que está na ordem do dia,
no Brasil e no mundo.
O livro, cuja primeira edição, em inglês, remonta ao início
dos anos 2000, é um marco na obra de Judith Butler, pois nele está
desenvolvido um dos eixos centrais de sua reflexão teórica feminista,
sobre a tensão entre as regras - representadaspelasleis do Estado —
edesejo dos sujeitos, expresso e vivido através de práticas sociais
inovadoras e transformadoras.
Antígona, personagem que durante muito tempo foi secundária
na obra de Sófocles, dada a centralidade que o personagem Edipo teve
para a psicanálise freudiana, foi retomada por teóricas e militantes
feministas contemporâneas como um exemploda revolta das mulheres
e da luta contra o Estado. Judith Butler aqui vai além das leituras
tradicionais, a partir de um intenso diálogo com Hegel e Lacan,dois dos
principais autores que se debruçaram longamente sobre a personagem
Antígonanafilosofia e na psicanálise. . .
Fantástica figura, Antígona é a filha dileta de Edipo. E ela quem
o acompanha no exílio; quando expulso de Tebas, ele deve errar no
deserto sem rumo nem destino. É ela que é tomada pela maldição que a
ão do pai, deter
tragédia grega traz em seu bojo, levando adiante a maldiç
pos ado a mãe Joca sta, sem O sabe r. Ant ígona, na tragédia grega com
des
s,
seu nome,é a personagem queenterra secretamente o irmão Polinice
Antígona,
morto na guerra por seu próprio irmão Etéocles. O ato de
que expressa as obrigações do parentesco o significado da morte e do
respeito aos mortos na Grécia Antiga, é interpretado na peça como uma
afronta à lei do Estado, representada pelo rei Creonte,seu tio.
A originalidade da leitura de Judith Butler da tragédia está na
forma como se detém na análise dessa dicotomia e tensão entre dois
polos estruturantes das sociedades contemporâneas: o parentesco e
o Estado. A autorase debruça teoricamentesobrecomo ossujeitos
sãomarcadospela tensão obediência/rebeldiaemrelaçãoàsleisque
constituemes esdois espaços simbólicos de pertinência pessoal e
identitária. Nessa leitura inovadora, ela desconstrói esses dois campos,
percebidos pelo senso comum como dados naturais da constituição
do sujeito nas sociedades com Estado. Ela mostra que tanto Estado
comoparentescosão estruturas inconscientes ordenadas por regras €
leis.No entanto, para ela, essas leis não são imutáveis, pois mudam a
partir do questionamento, revolta e enfrentamento de alguns sujeitos
contra as estruturas que as instituem, legitimam e reproduzem.
Butler argumenta aqui direta e claramente contra posições políticas
conservadoras que, tanto nos Estados Unidos quanto na França
(contextos políticos nos quais se fundamenta e dialoga), no início do
século XXI, impedem o reconhecimento pelo Estado de formas de
parentesco dissidentes do modelo heteronormativo.
Parece-nos particularmente interessante a forma como Butler
relê a leitura que Lacan faz de Lévi-Strauss, em particular da tão
discutida questão da “troca de mulheres” vinculada ao problema do
simbólico. Aprendemos assim um pouco mais, a partir de sua visão
feminista, como ambososautores, seminais na teoria contemporânea,
representantes da corrente estruturalista do pensamento francês,
ao buscarem falar de “mulher” enquanto signo, não conseguem

8 O clamor de Antígona
efetivamente entendê-la como um signo mas como um dado da
“natureza”. A leitura de Butler, para além da crítica feminista
tradicional, recupera a densidade teórica da proposta feita pelos
autores, evidentemente à luz da crítica feminista pioneira de Gayle
Rubin a essa questão.
Quando discute os desafios e as implicações no e para o
parentesco contemporâneo,a partir das diferentes leituras — filosóficas,
psicanalíticas e antropológicas — do parentesco, Butler toma o caminho
teórico de análises que desnaturalizam oparentescocomo dadopelo
biológicoe pelosvínculos consanguíneos. Fundamentada em David
Schneider, considerado o fundador das análises contemporâneassobre
o parentesco - como comoestrutura social pelas relações que produz
e engendra -, problematiza e questiona as teorias estruturalistas que
centram sua análise nos vínculos fundantes da sociedade, mimetizados
no espaço da “família”, esta uma unidade aparentemente universal.
Se a forma como Sófocles elabora as peças Antígona e Édipo em
Colono aponta já para uma leitura pós-estruturalista do parentesco,
Butler questiona que leitura seria esta? Umaleitura que desconfigura
o parentesco como “natural”, mostrando que ele é puramente social:
construído permanentemente através dodesejo dossujeitos em manter
ou romper com vínculos e obrigações dados porregras sociaisque se
sustentam nas relações familiares como“sagradas”,
Butler avança em relação a Lévi-Strauss mostrando que o tabu
do incesto contém em si sua infração e que a proibição do incesto na
peça Antígona pede uma nova reflexão sobre a própria proibição, não
meramente como uma forma negativa ou privativa do poder, mas
como uma regra que funciona a partir do deslocamento do próprio
crime que condena.
Um dos pontos importantes do livro é a problematização do
conceito de simbólico em relação ao social, na crítica e densificação
que faz das teorias psicanalíticas lacanianas. Paraosimbólico
está em um plano não identificável ao social. Este pode ser mudado
pela agência dos sujeitos, em relações sociais e políticas no mundo. No
entanto, paraela, osimbólico permanececomoalgoimutável, umalei
- quenosantecedee nosestruturaenquanto sujeitos.
A tradução deste pequeno texto para o português, em sua
edição brasileira, exigiu de nossa equipe um grande trabalho. Além do
tradutor do texto, André Cechinel, agradecemos a Felipe Fernandes
e Julia Godinho, que ajudaram, na etapa final, com sua competência
no inglês, na detalhada revisão deste texto, assim como aos revisores
da EdUFSC. Também agradecemos a Maria de Lourdes Borges, que
nos prestou excelente assessoria para alguns termos filosóficos, e
a Caterina Rea, que atuou de forma fundamental na explicitação de
conceitos no campo dapsicanálise, tornando esta obradeJudith Butler
mais acessível ao público leitor em português.

Miriam Pillar Grossi

10 O clamor de Antígona
Nota do tradutor

Traduzimos o conceito filosófico de “instantiating” por


“instanciando”, com a colaboração técnica da Dra. Maria de Lourdes
Borges. Traduzimos por “foraclusão”, em inglês “foreclusion”, tradução
do francês “forclusion”, o conceito dapsicanálise lacaniana que designa
o mecanismo específico da psicose através do qual se produza rejeição
de um significante fundamental para fora do universo simbólico do
sujeito (Roudinesco, Elisabeth; Plon, Michel. Dicionário de psicanálise,
Zahar Editora, 1998). Butler retoma esse conceito num contexto mais
amplo, estendendo-o à dimensão sociopolítica em relação à noção de
abjeção. Trata-se do espectro das vidas que não podem ser vividas, das
zonas inabitáveis que marcam asfronteiras do humano,daquelasvidas
marginalizadas e excluídas de toda forma de inteligibilidade social e
cultural. Antígona encarnaria umafigura representativa dessas vidas,
mas também da possibilidade de contestar, renegociar, transformar
as normas que definem e estruturam o ser humano? Mantivemos, na
tradução para o português, a forma comoalgumas citações de Lacan
foram traduzidas pela autora em inglês. Nas referências dos textos
citados, incorporamos, quando havia, as referências às traduções em
português e, quando possível, as referências das obras publicadas em
sua versão original, quando citadas em traduções para o inglês. Aofalar
em “contrato civil” Butler refere-se ao Pacte Civil de Solidarité (PaCS),
promulgado na França em 1999.

André Cechinel

11
Agradecimentos

Estas palestras foram originalmente proferidas em três


momentos: como as Wellek Library Lectures, na Universidade
da Califórnia, Irvine, em maio de 1998, como as Messenger
Lectures, na Universidade de Cornell, em setembro de 1998,
e como os Christian Gauss Seminars, na Universidade de
Princeton, em novembro de 1998. Sou profundamente grata
ao público presente em cada uma dessas ocasiões por suas
inúmeras observações úteis. Gostaria também de agradecer à
Guggenheim Foundation Fellowship por me conceder apoio
financeiro para que eu fizesse uma revisão substancial do
manuscrito na primavera de 1999. Também desejo agradecer
profundamente a Liana Theodoratou, pela ajuda com texto
grego, e a Mark Griffith, por me alertar sobre as nuances
da peça em seu contexto clássico e por partilhar comigo
um pouco do seu profundo conhecimento sobre Antígona.
Quaisquer equívocos deste estudo são, é claro, de minha
inteira responsabilidade. Agradeço ainda a Michael Wood,
por sua leitura engajada, a Mark Poster, por suas questões
cruciais, a Jonathan Culler, por seu valioso engajamento com
o trabalho, a Joan W. Scott, pelas provocações que vêm com
a longa amizade, a Drucilla Cornell, por insistir em pensar o
parentesco de outra maneira, a Wendy Brown, por estabelecer
os fundamentos comigo, a Anna Tsing, por participar com
destreza de uma versão prévia do argumento, e a Bettina
Mencke, por seus astutos comentários sobre O projeto no
Einstein Forum, em Berlim, em junho de 1997. Os alunos
do Berkeley Summer Research Institute, em 1999, leram

Judith Butler 13
ES ce EE
ci pa is te xt os ab or da do s aq ui em a inteligência,
todos os pr in
zeram os alunos
entusiasmo e espírito crítico, tal como o fi
hip sobre
de graduação no seminário de Literatura
Antígona, no outono de 1998. Agradeço também aos alunose
9,
professores do Berkeley Summer Research Seminar, em 199
por suas interpretações maravilhosas do material. Agradeço

aba,
especialmente a Stuart Murray, que me ajudou de diversas
maneiras durante a preparação final do documento. Seu
trabalho foi inestimável para mim. Agradeço também a Anne
Wagner por ter me apresentado ao trabalho de Ana Mendieta.
E agradeço a Jennifer Crewe por sua paciência editorial. Pelo
apoio, agradeço a Fran Bartkowski, Homi Bhabha, Eduardo
Cadava, Michel Feher, Carla Freccero, Janet Halley, Gail
Hershatter, Debra Keates, Biddy Martin, Ramona Naddaff,
Denise Riley e Kaja Silverman.

Nota da autora: uma nota sobre as traduções

Todas as traduções das peças de Sófocles são da


edição Hugh Lloyd-Jones, publicada pela Loeb Library
Series (Cambridge: Harvard University Press, 1994). Em
certos momentos, cito também a tradução de David Grene,
Antigone, em Sophocles I: Oedipus the King, Oedipus at Colonus,
Antigone, editores David Grenee Richard Lattimore (Chicago:
University of Chicago Press, 1991). Todas as referências após
as citações das peças dizem respeito aos números daslinhas.

14 O clamor de Antigona
Eles são capturados e partidos por algo
intrínseco ao seu próprio ser.
Hegel - Estética
O clamor de Antígona
Comeceia refletir sobre Antígona alguns anosatrás, enquanto
me perguntava o quehavia acontecido com aqueles esforços feministas
para confrontare desafiar o Estado. Parecia-me que Antígona poderia
funcionar como uma contrafigura diante da tendência,defendida
porfeministas atuais, de buscar o apoio e a autoridadedo Estado
para implementar objetivos políticos feministas. O legado do desafio
de Antígona parecia perdido em meio às tentativas contemporâneas
de reformular a oposição política como protesto legal e de buscar a
legitimação do Estado em seu compromisso com as reivindicações
feministas. De fato, pode-se encontrar Antígona defendida e celebrada,
por exemplo, por Luce Irigaray, comoprincípio do desafio feminino ao
estatismo e um exemplo de antiautoritarismo.'
Mas quem essa “Antígona” que busquei utilizar como exemplo
de certo impulso feminista?? Há, é claro, a “Antígona” da peça de

1 Ver LuceIrigaray, “The eternal irony of the community”, in Speculum of the other
woman, trad. de Gillian Gill (Ithaca: Cornell University Press, 1985); “The universal as
mediation” e “The female gender”, in Sexes and genealogies, trad. de Gillian Gill (New
York: Columbia University Press, 1993); “An ethics of sexual difference”, in Anethics
Press,
of sexual difference, trad. de Carolyn Burke e Gillian Gill (London: The Athlone
1993). (“L'éternelle ironie de la communauté”, in Speculum: de lautre femme, Paris,
Minuit, 1974; “L'universel comme médiation” e “Le genre femme” in Sexes et parentés,
1984).
Paris, Minuit, 1987 e “Une éthique dela différence sexuelle”, Paris, Minuit,
ou em outras
2 Meu texto não irá considerar a figura de “Antígona” no mito grego
a à sua
tragédias clássicas ou modernas. A figura a que aqui me refiro está restrit
Rei, de Sófocles.
aparição textual em Antígona, Édipo em Colono e, indiretamente, Édipo

Judith Butler 17
no me , e ess a An tí go na é, afi nal de contas, uma
sfocles de mesmo
da qu el as qu e nã o se de ix a se r facilmente transformada
E ção, uma
fic
rra O risco de cair na
num exemplo a ser seguido sem que se co
irrealidade. Não que isso tenha irei lo pessoas de fazer
dela uma espécie deJepresentação. Hegel a colocou no lugar da
transiçãioo do
“princíp regra matriarc
da Terei al-para à patriarcal, mas ren para o
, Trigaray , embora hesitante gprs à função
representativa de Antigona-também insiste nisso: “Sempre vale a
penarefletir sobre o seu exemplo como figura histórica e como uma
identidade e identificação para várias meninas e mulheres vivendo
hoje. Para essa reflexão, devemos abstrair Antígona dos discursos
sedutores e redutivos e ouvir o que ela tem a dizer sobre o governo da
pólis, sua ordem e suasleis” (Speculum, p. 70).
Mas será que podemos transformar Antígona num exemplo
de certo tipo de política feminista, uma vez que sua própria função
representativa encontra-se em crise? Conforme espero mostrar a seguir,
ela está longe derepresentar os princípios normativosdoparentesco,
impregnada como está delegados incestuosos que confundem sua
posição no seio do parentesco. Além disso, ela dificilmente representa
umfeminismo que não esteja de forma alguma implicado no próprio
poder a que seopõe. A rigor, não é apenas que, como umaficção, o
caráter mimético ou representativo de Antígona já esteja em questão,
mas sim que, como uma figura para a política, ela aponta para outra
direção, nãopara a política como uma questão de representação, mas
para aquela possibilidade política que emerge quando os limites da
representaçãoedarepresentabilidade são expostos.
Mas deixe-me contar meu processo a vocês. Não sou uma
classicista, nem desejo sê-lo. Li Antígona, tal como o fizeram vários
humanistas, Porque a peça apresenta questões sobre o parentesco € o

Para um tratamento mais exaustivo


da figura de Antígona, ver George
Antigones (reprint, New Hav RR
en: Yale University Press, 1996).

18 O clamor de Antígona
Estado quesão recorrentes em diversos contextos culturais e históricos.
Comecei a ler Antígona e seus críticos para ver se alguém conseguiria
defender o seu status político exemplar comofigura feminina que desafia
o Estado através de umasérie de poderosos atos físicos e linguísticos.
Porém encontrei algo diferente do que imaginara. O que me chamou a
atenção de saída foi a forma como Antígona tinha sido lida por (Hegel)
e Lacan também a maneira com que tinha sido tomada por Luce
Írigaray* outros, não como figurapolítica, cuja palavra desafiante
apresenta implicações políticas, mas simcomoalguémquearticula
! umaoposiçãopré-política à política, representandooparentescocomoa
esferaque condicionaa possibilidade da política sem nuncaadentrá-la. Com
efeito, na interpretação que Hegel talvez tenha tornado a mais famosa,
e que continua estruturando muitas das apropriações da peça no
campo dateoria literária e do discursofilosófico, Antígonarepresenta
o parentescoesua dissolução, e Creonte,porsuavez, representa uma
ordemética emergentee a autoridade do Estado baseadaemprincípios
deuniversalidade.
Noentanto, o que me chamoua atenção, num segundo momento,
foi um ponto ao qual espero retornar no final deste capítulo, que diz
respeito ao modo como oparentesco figura no limite doque Hegel
chamade“ordem ética”, a esfera da participação política mas também
das normas culturais viáveis, a esfera legitimadora da Sittlichkeit (as
normasarticuladas que governam esfera da inteligibilidade cultural),

3 Ver Patricia Mills, ed. Feminist interpretations of Hegel (College Park: Pennsylvania
State University Press, 1996), especialmente a própria contribuição de Mill ao volume.
Ver também Carol Jacobs, “Dusting Antigone” (MLN 3, n. 5, p. 890-917, 1996),
um excelente ensaio que dialoga com a leitura de Irigaray de Antígona e mostra a
impossibilidade de representação indicada pela figura de Antígona.
* G.W.F. Hegel, The phenomenology of spirit, trad. de A. V. Miller (London: Oxford
University Press, 1977), p. 266 e seguintes. Todasas citações posteriores serão feitas
a partir deste texto e do texto alemão: Phânomenologie des geistes. Werke 3 (Frankfurt:
Suhrkamp Verlag, 1970).

Judith Butler 19
se iTsnto
eli ano s. Na teo ria psi can alí tica contemporênea,
em termos heg
ra mais notável talvez
baseada em pressupostos estruturalistas, cuja ob
seja a de Jacques Lacan, essa relação surge ainda de tim maneir a.
qual
aleitura de Antígona na
Em seu Seminário VILKLacan bferece um
é en te nd id a co mo naf ro nt ei raen tr e as esferas do imaginário e do
ela
ól ic o eq uea co mp re en de , de fat o, como uma figuradaentrada
simb
ra da s lei s e no rm as qu egovernam oacesso à
nosim bó li co , daes fe
fala e à discursividade. Essa regulação ocorre precisamente através
> da instanciação de certasrelaçõesde parentescocomonormas
simbólicas.” Comosimbólicas, essas normas não sãoprecisamente
: sociais, e é neste sentido que Lacan se distancia de Hegel, pode-se
dizer, ao transformar certa noção idealizada de parentesco numa
nor

pressuposição da inteligibilidade cultural. Ao mesmo tempo, Lacandá


sequência a certo legado hegeliano ao separar essa esferaidealizadado
parentesco,o simbólico, daesfera do social. Desse modo, para Lacan,
o parentesco é rarefeito possibilitando a estrutura linguística, uma
pressuposição de inteligibilidade simbólica, e, portanto, removido
do domínio do social; para Hegel, o parentesco éprecisamente
I uma relação de “sangue”, e não uma relação de normas. Ou seja, o
parentescoadentrou o social, o qual é fundado por meio de
uma superação violentado parentesco.
À separação entre o parentesco e o social assombra inclusive
as posições mais anti-hegelianas dentro do legado estruturalista. Para
Irigaray, o poder insurrecional de Antígona é o poder daquilo que
permanece fora do político; Antígona representa o parentesco e, de

* Jacques Lacan, The seminar of Jacques Lacan, book VII: the ethics
of psychoanalysis
1259-60, ed. Jacques-Alain Miller, trad. de Dennis Porter (New York: Norto
n, 1992),
P. 243-290. (Léthique de la psychanalise, Séminaire VII, Paris, Le Seuil, 1986, ed. de
Jacques Alain Miller, Chapitre 1, p. 3).
6
Kaja Silvermanse distingue dos demais teóricos lacanianos porinsistir que à ei do
'
Parentesco e a lei do discurso devem ser consideradas separáveis uma da outra. e
Kaja Silverman, Male subjectivity at the margins (New
York: Routledge, 1992).

20 O clamor de Antígona
fato, o poder das relações de “sangue”, as quais Irigaray não toma num
sentido exatamente literal. Para Irigaray, o sanguedesigna alguma
coisa de especificidade e graficidade corporal, que os princípios
inteiramenteabstratosdaigualdade política nãoapenassãoincapazes
de reender, comodevem ainda rigorosamente excluir e até
comp
mesmo aniquilar. Assim, ao dar significado à palavra ““sangue”,
Antígona não significa precisamente uma linhagem consanguínea,
mas algo que se assemelha a um “derramamento de sangue” —
aquilo que os Estados autoritários usam para se manter no préar
O feminino, por assim dizer, torna-se isso que subsiste, e o “sangue”
passa a ser a figura gráfica para esse traço que ecoa do parentesco,
uma refiguração da figura da linhagem consanguínea que acentua
o violento esquecimento das primeiras relações de parentesco na
fundação da autoridade simbólica masculina. ParaIrigaray,Antígona
significa, portanto, atransição da regra dalei baseadana:maternidade,
baseadano parentesco, para umaregra dalei baseada napaternidade.
Mas o que precisamente esta exclui do parentesco? Há um lugar
simbólico da mãe que passa a ser dominado pelo lugar simbólico do
pai, mas o que instituiu esses lugares em primeiro lugar? Não seria,
afinal de contas, a mesma noção de parentesco, apenas com ênfase e
valor colocados em termosdiferentes?
O contexto para a leitura de Irigaray é claramente o de Hegel, que
defende, na Fenomenologia do espírito, que Antígonaé “a eterna ironia da
comunidade”. Ela está fora dos termosda pólis, porém ela é um exterior
sem o qual a pólis não poderia existir. As ironias são, sem dúvida, mais
profundas do que Hegel as entendeu: afinal de contas, ela fala, e fala
em público, justamente quandodeveria ser sequestrada para dentro do
domínio privado. Quetipo de discurso político é esse que transgride
os próprios limites do político, que põe em escandaloso movimento o
limite pelo qual o discurso de Antígona deveria ser contido? De acordo
com Hegel, Antígonarepresentaa lei dos deuses dolar (misturando os
deuses ctônicos da tradição grega com os penates romanos) e Creonte,

Judith Butler 21
vtd
t do. Ele insiste que o conflito entre eles é um daque
les
a leii do Esta lugar à autorida
; de do Estado como
no qual o parentesco deve ceder
gona figura a soleira
árbitro final da justiça. Em outras palavras, Antí
entre o parentesco e o Estado, uma transição na Feniremilogia que não
é precisamente uma Aufhebung, pois Antígona é superada sem jamais
ser preservada quando surge a ordem ética.
herançahegelianadainterpretação de Antígonaparece supor
a separabilidadeentreoparentescoe o Estado, mesmo que propondo
uma relação profundaentre ambos. Assim,todo esforço interpretativo
de escolher um personagem como representativo do parentesco ou
do Estado tende a hesitar e perder coerência e estabilidade. Essa
vacilação tem consequências não apenas para a tentativa de determinar
a função representativa de qualquer personagem, mas também para o
esforço de pensara relação entre o parentesco e o Estado, umarelação
que, como espero mostrar, tem relevância para nós que lemos a peça
em um contexto contemporâneo em que a política do parentesco
trouxe um clássico dilema ocidental a uma crise contemporânea. A
peça propõe, dentre outras, duas questões: por um lado,se épossível
haver parentesco- por parentesco não me refiro à “família” em
alguma forma específica - sem o apoio e a mediação do Estado e,
poroutro, se o Estado pode existir sem a família como seu ponto de
apoioe mediação.E, ainda, quandoo parentesco acaba representando
uma ameaça à autoridade do Estado e o Estado inicia um combate
violento contra o parentesco, será que esses próprios termos
podem
sustentar a independência de um em relação ao outro? Isso se torna
um problema textual de alguma relevância, uma vez que Antígona
emerge de sua criminalidade para falar em nome da
política e da lei:
próprialinguagemdoEstado contrao qual se rebela, e à
=
7
Para uma interessan
te d iscussão de como a id
em relação à peça, entificação do público pode
v er Mark Griffith, “Introductio pç
Cambridge Universi n”, Sophocles Antigone (Cambridg
ty Press, 1999), p. 58-66. e

22 O clamor de An
tígona
sua linguagem se torna umapolítica não de pureza opositora, mas de
uma escandalosa impureza.
Quando reli a peça de Sófocles, fiquei impressionada, de
uma forma perversa, com a cegueira que aflige essas próprias
interpretações. De fato, a cegueira no texto — do sentinela, de Tirésias
— parece invariavelmente repetida nasleituras parcialmente cegas do
texto. OporAntígona a Creonte, como oencontro entreas forças do
parentescodopoder do Estado,significadeixar deconsiderar as
formas pelasquais Antígona já se desviou doparentesco, sendo ela
mesmafilha de umlaçoincestuoso, dedicada a um amor incestuoso
impossível e letal por seu irmão.Ao fazê-lo, ignora-se comosuas ações
compelem os demais a olhá-la como “masculina”, pondo em dúvida
o modo como o parentesco poderia assegurar o gênero; perde-se de
vista como sua linguagem, paradoxalmente, aproxima-se muito da

* Deve ficar claro aqui que concordo substancialmente com o argumento de Peter
Eubende que “as polaridadesentre casa e cidade, natureza e cultura, mulher e homem,
eros e razão, lei divina e lei humana não são mais convincentes como arcabouço
interpretativo do ponto de vista da caracterização de Antígonado que[o são] do ponto
de vista da caracterização de Creonte”; ver Peter Euben,“Antigone and the languages
of politics”, in Corruptingyouth: political education, democratic culture, andpoliticaltheory
(Princeton: Princeton University Press, 1997), p. 170. Sobre essa visão e contra ela,
ver Victor Ehrenberg, Sophocles and Pericles (Oxford: Basil Blackwell, 1954), p. 28-34.
Antígonasó é criminosa na medida em que ocupa um espaço de tensão dentro de
.. um sentidoambíguo dalei. Jean-Pierre Vernante Pierre Vidal-Naquet defendem que
“nenhuma das duas atitudes religiosas projetadas em Antígona podeser, porsi só, a
correta, a menos que garanta à outra o lugar que lhe cabe, a menos que reconheça
a própria coisa quea limita e que compete consigo”; ver “Tensions and ambiguities
in Greek tragedy”, in Myth and tragedy in Ancient Greek, trad. de Janet Lloyd (New
York: Zone Books, 1990), p. 41. (Versão original em francês. Mytheet tragédie en Grêce
ancienne, Paris, La Découverte, T. 1, p. 34).
Para um artigo muito interessante que estabelece uma perspectiva psicanalítica
para consideraras relações incestuosas de Antígona, ver Patricia J. Johnson, “Woman's
third face: a psychosocial reconsideration of Sophocles' Antigone”, in Arethusa 30, p.
369-398, 1997.

Judith Butler 23
agr

nte , da li ng ua ge m da au to ri da de e da A, e como
linguagem de C reo
Creonte some nteassumea sua soberania em razão de seu
opróprio
lugar no parentes: rmiteessasucessão; aa ele se torna, por
ente,
assim dizer, desmasculinizado pela rebeldia de Antígonae, finalm
por suas próprias ações, de uma só VEZ detona as Do que
garantem o seu lugar no parentesco € na soberani
a. om e it, q texto

de Sófocles deixa claro que osdoisestãometaforicamente implicados


ição
outro,pontodesugerirque,defato, não há uma opos
simples entre eles.” Além disso, na medida em que as duas figuras,
Creonte e Antígona, estão quiasmaticamente relacionadas, parece que
não há uma separação simples entre elas e que O poder de Antígona,
namedida emqueela ainda o detém para nós, tem a ver não apenas
com o modo parentesco faz sua reivindicação dentro da
linguagem doEstado, mas também com a deformação social tanto do
parentesco quanto dasoberania política idealizados que nasce comouma
consequência do ato dela. Em seu ato, ela transgride as normas de gênero
e parentesco e, embora a tradição hegeliana leia o seu destino como
um sinal evidente de que essa transgressão é necessariamente falha e
fatal, outra leitura é possível, segundo a qual Antígona expõe o caráter
socialmente contingente do parentesco, de modoa se tornar a ocasião
repetida na literatura crítica para uma reescrita dessa contingência
como necessidade imutável.
O crime de Antígona, como vocês sabem, foi enterrar o irmão
após Creonte, seu tio e rei, ter publicado um decreto proibindo tal
enterro. O irmão dela, Polinices, lidera um exército inimigo contra
O governo do próprio irmão em Tebas, a fim de conquistar o que
considerava ser o seu lugar por direito como herdeiro do reino. Tanto
Polinices quanto seu irmão Etéocles morrem, e dessa forma Creonté,

me
. ;
Para uma leitu
Ta estruturalista peça,y aque assume uma oposi
da Per posiçção cons! tante entr
içã
Creonte e Antígona, ver Cha rles Segal, Interpreting Greek tragedy: myt
(Íthaca: Cornell University
Press,
h, poetry te*
1986). º ê aa

24 O clamor de Antígona
tio materno dos irmãos mortos, considera Polinices um traidore lhe
nega um enterro adequado; na verdade, ele deseja que o corpo seja
deixado nu, desonrado e corrompido." Antígonaage, masqualé o seu
ato? Ela enterra o seu irmão; na verdade, ela o enterra duas vezese, na
segunda vez, Os guardas reportam tê-la visto, Quando aparece diante
de Creonte, ela age de novo, dessa vez verbalmente, recusando-se a
negar quefoi ela quem fez o feito. A rigor, oquerecusaéapossibilidade
linguísticadese separar do feito, mas não o declara de forma afirmativa
e inequívoca: ela não diz simplesmente “eu fiz o feito”.
Defato, o feito em si parece vagar ao longo da peça, ameaçando
ligar-se a outros autores, apropriado por pessoas incapazes de fazê-lo,
renegadopor outros que poderiam tê-lo feito. A ação é sempre mediada
poratos de fala: o guarda reporta quea viu; ela reporta queo fez.
Aúnicamaneira pela qual se pode ligarquemfez aofeitoéatravés
da asserção linguística da conexão. Ismene declara queirá assumi-lo, se
Antígona assim permitir, porém esta se recusa a autorizá-la. A primeira
vez que o sentinela reporta o acontecimento a Creonte, ele alega,
“Quem fez o serviço não fui eu, nem vi quem o fez” (25)? comose ter
visto significasse tê-lo feito ou ter participado de sua realização. Ele está
ciente de que se reportar ter visto o feito, seu próprio relato o ligará a

" Froma Zeitlin oferece uma contribuição importante para o problemado enterro em
Antígona e Édipo em Colono, argumentando que, na primeira peça, Creonte efetivamente
obscurecea linha entre a vida e a morte queo ato do enterro supostamente delineia. “A
recusa do enterro”, ela comenta, “ofende uma ordem cultural inteira, [...] mas também
podeser interpretada como umaofensa contra o próprio tempo” (p.152). Para Zeitlin,
a vida e a morte numa
Antígona supervaloriza a morte e obscurece a distinção entre
Antígona
outra perspectiva. De forma inteligente, a autora argumenta que “o desejo de
de morrer antes da hora é também umaregressão às origens ocultas da família a que
do em
pertence” (p. 153). Ver FromaZeitlin, “Thebes, theatre ofself and society”, reedita
drama inits social
John]. Winkler e Froma Zeitlin, Nothing to do with Dionysos? Athenian
context (Princeton: Princeton University Press,1990), p. 150-167.
Essa e as demais citações da peça seguem a tradução de Donaldo Schiiler, presente
em: Sófocles, Antígona, L&PM Editores, 1999 (2012).

Judith Butler 25
este, e então implora para que Creonte veja a diferençaentre a relato do
feito e o feito em si. Porém, para Creonte, essa distinção não é Somente
difícil de fazer, como também sobrevive como uma ambiguidade fatal
no texto. O coro especula que “essa ação pode ter sido motivada pelos
deuses” (29), aparentemente cético quanto à sua autoria humana. E, no
final da peça, Creonte exclama queossuicídios de sua mulhere filho são
atos seus, momento no qual a questão do que significa ser autor de um
feito torna-se completamente ambígua. Todos parecem cientesdeque
ofeitoé separável de quemo fez, e,no entanto, em meioàproliferação
retórica de recusas, Antígona declara não poder negar que o feitoé seu.
Muito bem. Mas será queela pode afirmá-lo?
Através de que linguagem Antígona assume a autoria de seu
ato, ou melhor, recusa negartal autoria? Antígona nos é apresentada,
vocês lembram, pelo ato através do qual ela desafia a soberania de
Creonte, contestando o poder do seu decreto, que é emitido como um
imperativo, quetemo poder de fazer o quediz, proibindo explicitamente
qualquer um de enterrar aquele corpo. Antígona então marcaa falha
ilocucionária do enunciado de Creonte, e sua contestação assume a
forma verbal de uma reafirmação da soberania, recusando dissociar o
feito de sua pessoa: “Digo queo fiz e não o nego” (43), traduzido menos
literalmente por Grene como “Sim, eu confesso: não negarei o meu
feito” [em grego, Creonte diz: “Phes, e katarnei ne dedrakenai tade” e
Antígona responde: “kai phemi drasai kouk aparnoumai to ne”.
“Sim, eu o confesso” ou “digo que o fiz” — assim,ela responde
à questão que lhe é formulada por outra autoridade e, dessa forma,
Teconheceaautoridadeque esse outro tem sobreela. “Não negarei 0
meu feito” - “não nego”, não serei forçada a uma negação, recusarei
ser forçada a uma negação pela linguagem de um outro, e
o que não
negarei é o meu feito -, umfeitoquesetorna
possessivo, umaposse
Eramatical que só faz sentido no contextodacena emque
elanega uma
confissãoforçad, Em outras palavras, declarar “não negarei o meu
feito” significa TEcusar-se a realizar um
a negação, porém não significa

26 O clamor de Antí
gona
precisamente afirmar o ato. Dizer “Sim, eu o fiz” é reivindicar o ato,
mas também significa realizaroutrofeitonaprópriareivindicação,o
ato dedeclararfeito,uma nova ventura criminal que duplica
etoma
o lugar da anterior.
Curiosamente, tanto o ato de enterrar quanto a rebeldia verbal
de Antígona tornam-se ocasiões em queela é considerada “masculina”
pelo coro, por Creonte e pelos mensageiros.” De fato, Creonte,
escandalizado por tal rebeldia, decide que, enquanto viver, “nenhuma
mulher deve governar”(51), sugerindo que, seela governar,ele morrerá.
E, em determinado momento, ele se dirige com raiva a Hêmon, que
apoiara Antígonae ficara contra ele: “Figura desprezível, inferior a uma
mulher!” (746). Antes disso, declara seumedo de tornar-se absolutamente
desmasculinizado por ela: se os poderes que provocaram esse feito
ficarem impunes, “O homem [aner] já não sou eu, masela” (528). Assim,
Antígona parece assumir a forma de certa soberaniamasculina, uma
masculinidade que não pode ser compartilhada, que requer que seu
outro seja tanto feminino quanto inferior. Mas há uma questão que
permanece: será que ela realmente assumiu essa masculinidade? Será
que ela passou para o gênero da soberania?
Isso, é claro, nos faz retornar à questão de como essa figura
masculina e verbalmente rebelde acaba representando os deuses do
parentesco. Parece-me obscuro, se Antígona representa o parentesco,
ou, caso ela o represente, que tipo de parentesco seria esse. Em
determinado momento, ela parece obedecer aos deuses, e Hegel
insiste que estes são os deuses do lar: ela afirma, é claro, que nãoirá

——

Nicole Loraux observa que o luto não só é uma tarefa das mulheres como é algo que
deveser idealmente praticado dentro doslimites da casa. Quando luto das mulheres
Se torna público, uma perda do “eu” ameaça a ordem civil. Para os seus comentários
>Teves porém esclarecedores sobre o enterro em Antígona,ver Nicole Loraux, Mothers
in mouring, trad. de Corinne Pache (Ithaca: Cornell University Press, 1998), p. 25-
27, 62-64. (Les mêres en deuil, Paris, Le Seuil, 1990). Ver também, de Loraux, "La main
dAntigone”, Métis 1, p. 1994-1995, 1986.

Judith Butler 27
qts
obedecer ao decreto de Creonte porque não foi Zeus quem formulog À]
de
a lei, argumentando,portanto, que a autoridade de Creonte não é q |
>

Zeus (496-501) e, aparentemente, exibindo sua fé na lei dos deuses, No


entanto, Antígona é pouco consistente em relação a isso, observandaN
numa célebre passagem que não teria feito o mesmo por Outros
. .
,

membros da sua família:

Se eu fosse mãe e vítima fosse um de meus filhos, se meu


marido se corrompesse morto, eu não teria realizado este
trabalho contra a determinação dos cidadãos. Obediente a que
norma digo isso? Morrendo meu esposo, poderia ter outro,
filhos outro homem, perdendo um, poderia dar-me, mas
irmão, visto que pai e mãe foram recolhidos à Morte, jamais
será possível que outro floresça. Esta é a lei que me orienta.
Creonte, entretanto, julgou-me criminosa, perigosamente
ousada, querido irmão. Agora estou nas mãos dele, prendeu-
meantes de provaro leito matrimonial, antes do canto nupcial,
antes das carícias do esposo, antes de educar filhos (900-920)

Antígona aquidificilmente representa a santidade do pare


ntesco,
Pois é por seuirmão,ou,pelo menos, em seunome,queelaestádisposta
a desafiara lei, e não por todos os parentes. E embora ela
argumente
agir em nome de uma lei que, do ponto de vista de Creonte, pode
parecer somente uma sanção para a sua criminalidade, sua
lei parece
ter apenas umainstância de aplicação. Seu irmão não é, na
sua opinião,
reproduzível, porém isso significa que as condições
sob as quaisà
Jeisetorna aplicável tampouco são reproduzíveis. Essa éum
aleido
momentoe, portanto, umalei sem generalidade ou transponibilidade,
emaranhada nas próprias circunstâncias às quais se aplica, uma lei
E
formulada precisamente-pormeio do caso particular e
de sua aplicação
não sendo, por nto,umaleinumsentido comumgeneralizável.
Assim,
ela a ã em nome do deus do parentesco, mas nia
age não
transgredir os ã
Próprios mandamentos desses deuses, uma transgress
aiaiTn

28 O clamor de Antígona
que confere ao parentesco sua dimensão proibitiva e normativa, mas
que também expõea sua vulnerabilidade. Embora Hegel argumente que
o feito de Antígona opõe-se ao de Creonte,osdois atos,emvezdeseopor,
umsugerindoque,se um representa oparentesco
outrooEstado, eles só podem realizar essarepresentação estando
implicadosum noidioma dooutro. Ao lhe endereçar a fala, ela se
torna masculina; ao ser implicado na fala, ele se desmasculiniza, assim
nenhumdosdois mantém sua posição dentro do gênero,e a perturbação
do parentescoparecedesestabilizar o gênerodurante a peça.
O feito de Antígona é, de fato, ambíguo desde o início, não
apenas o ato rebelde de enterrar o irmão, mas tambémoatoverbal
de responder à questão de Creonte; desse modo,Coseu ato é d
ra público o próprio ato pela linguagem é, de certa
forma, a conclusão do ato, bem como o momento que a implica no
excesso masculino chamado húbris. E assim, quando começa a agir
pela linguagem, ela também se desvia de si mesma. Seu ato nunca é
completamente seu; embora ela use a linguagem para reivindicar
seu feito, para afirmar uma autonomia “masculina” e rebelde,elasó
«poderealizar esse ato incorporando as normas dopoder aosquais
ele se opõe. De fato, o que confere a esses atos verbais o seu poder
éoperação normativa de poder que eles encarnam, mesmo sem se
realizar inteiramente.
Antígona, portanto, acaba agindo de formas que são
consideradas masculinas não apenas porque ela desafia a lei, mas
também porque ela assume a voz da lei ao cometer seu atocontra o
esta. Ela não apenas faz o feito, recusando-se a obedecer ao decreto,
mas também o faz novamente ao recusar-se a negar que o fez,
Apropriando-se,assim, da retórica de agênciado próprioCreonta Sua
agêncianasceprecisamente da recusade honrar o comando dele,e,
No entanto, alinguagemdessa recusa assimila os próprios termos da
querejita. Creonte espera que a sua palavra regule os
atos de Antígona,e ela lhe dá uma resposta, contrariando o ato de fala

Judith Butler 29
= so lico rt
ópr.ia soberania. Areivindicação torna-se
soberano ao afirmar sua pr
um atoquereiteraoatoqueareivindicação aflema,estendendooato
deinsubiordi
sga naçã
fissão oaoreali
, parad zar a sua
oxalmente, confi
reque ra ssãosacri
atrafício DBlagem,
da autonomia
no exato instante em que é realizada: Antígona se afirma asi mesma
apropriando-se davoz do outro, aquele a quem ela se opõe; assim, sua
É autonomiaéconquistada através daapropriação da vozautorizada
daguele aquemresiste,uma apropriação que traz consigotraçosde
umasimultânea recusa eassimilação dessa própria autoridade.“
Ao desafiar o Estado, ela também repete o ato rebelde de seu
irmão, oferecendo, pois, uma repetição da rebeldia que, ao afirmar
sua lealdade ao irmão, acaba por situá-la como aquela que pode
substituí-lo e, dessa forma, de fato o substitui e o territorializa. Ela
assume a masculinidade ao vencer a masculinidade, porém somente
a vence ao idealizá-la. Em dado momento, seu ato parece estabelecer
sua superioridade e rivalidade em relação a Polinices; ela pergunta,
“Contudo, onde poderia procurar renome[kleos] mais fulgente do que
na ação de dar a meu irmão sepultura?” (502).
Não só o Estado pressupõe o parentesco e o parentesco
pressupõe o Estado, como os “atos” que são realizados em nomede
um desses princípios ocorrem no idioma do outro, confundindo a

N
| distinção entre os dois num nível retórico e, portanto, provocando
Numacrise na estabilidade da distinção con
ceitual entre eles.
Embora eu vá retornar a Hegel e Lacan de mo
do mais abrangent
e
no próximo capítulo,vale a pena observaras div
ersas maneiras em que
mms
Para uma excelente discu
Públicos em Atenas, ssão do lugar e estilo de fala performativa nos discurso
s
democracy and politic ver Josiah Ober, The Athenian revolution: essays on ancient
ge a theory (Princeton: Princeton University Pres Gretk
s, 1996), em especia
devia, a4. Para um ensáio excelente e esclarecedor sobre o perfor
mativo j

perf orma nceoike arew


cnParkerThe unhKos
appovs perfor
y ky Sedmat
199), in wPad
gwiive
ck”,(Ne
p e Eve York:ei a Routle

30 O clamor de An
tígona
o parentesco, à ordem social e o Estado figuram, de forma variadae, por
vezes, inversa, seus textos. O Estado não aparece em nenhuma das
discussões de Lacan) obre Antígona, ou, de fato, antes dele, na análise
inicial de Lévi-Strauss sobre a cultura. A grdem social está baseada,
antes, numaestrutura decomunicabilidade einteligibilidade entendida
como simbólica. E embora para ambososteóricoso simbólico não seja
anatureza, ele, contudo,institui a estrutura do parentesco de maneiras
que não são precisamente maleáveis. Paraffegeldo parentesco pertence
à esfera das normas culturais, mas essa esfera deve ser vista numa
relação de subordinação ao Estado, ainda que o Estado dependa dessa
estrutura de parentesco para a sua própria emergência e manutenção.
Assim, Hegel pode certamente reconhecer a forma com que o
Estado pressupõe as relações de parentesco, porém argumenta que o
ideal é que a família forneça jovens para a guerra, aqueles que acabam
defendendo as fronteiras da nação, que acabam enfrentando-se uns
aos outrosnaluta de vida e morte das nações e que idealmente acabam
residindo sob um regime legal no qual são, até certo ponto, abstraídos
daSittlichkeit nacional que estrutura a sua participação."

* Hegel aborda a questão de Antígona em três discussões distintas e nem sempre


mantém um debate consistente acerca do significado da peça: na Fenomenologia do
espírito, que constitui o foco da discussão aqui e no segundo capítulo deste texto;
na Filosofia do direito, no qual argumenta que a família deve existir numa relação
recíproca com o Estado;e disperso em diversas passagens da Estética, porém de modo
concentrado no segundo volume, na seçãofinal sobre “Poesia”, subseção intitulada “O
desenvolvimento concreto da poesia dramáticae seus gêneros”. Neste último contexto,
Hegel argumenta que tanto Creonte quanto Antígona constituem figuras trágicas, “sob
O poder daquilo que combatem”. Diferente da discussão de Antígona, de modo geral
elíptica, na Fenomenologia do espírito, em que Antígonaé suplantada por Creonte, aqui
eles são colocados numa relação de tragédia recíproca: “Há de imanente em Antígona
€ Creonte algo que,a seu próprio modo,eles atacam, de forma que são capturados €
Partidos poralgo intrínseco ao seu próprio ser”. Hegel conclui essa discussão com um
elogio extremo à peça: “Antígona me parece a obra de arte mais magníficae gratificante
RE classe”. Ver Aesthetics: lectures on fine art, volume II, trad. de T. M. Knox (Oxford:
endon Press, 1975), p. 1217-1218.

Judith Butler 31
mo figura apenas
NaFenomenologia de Hegel, Antígona surge co
crição deseus
para ser transfigurada e ultrapassada no curso da des
s. Par a o teó ric o, no ent ant o, Antígona morre como o poder dy
ato
feminino e torna-se redefinida como O poder da mãe, cuja única
tarefa dentro da viagem do Espírito é produzir um filho para servir
o
ao Estado, um filho que deixa a família para se tornar um cidadã
guerreiro. Assim, a cidadania demanda um repúdio parcial das relações
de parentesco que definem a existência do cidadão homem,e, contudo,
o parentesco permanece como aquilo que sozinho pode produzir
esses cidadãos.
Para Hegel, Antígona não encontra lugar na cidadania porque
é incapaz de reconhecer ou de ser reconhecida na ordem ética. O
único tipo de reconhecimento de que pode gozar(e aqui é importante
lembrar que, para Hegel, reconhecimento significa, por definição,
reconhecimento recíproco) advém de seu irmão e se dirige a ele. Ela
só pode obter reconhecimento do irmão (e assim, pois, recusa-se
a deixá-lo ir), isso porque, segundo Hegel, a princípio não há desejo
algum nesse relacionamento. Se houvesse desejo no relacionamento,
não haveria possibilidade alguma de reconhecimento. Mas por quê?

No ensaio “The woman in white: on the reception of Hegel's 'Antigone” (The owl
of Minerva, 21, n.1 [Fall 1989]: 65-89), Martin Donougho argumenta que a leitura
hegeliana de Antígona foi a mais influente do século XIX, contestada talvez de modo
mais potente por Goethe, que redigiu sua perspectiva cética nas cartas endereçadas ê
Eckermann. Nestas, Goethe questionase a tensão entre a família e o Estado era de Isto
central à peça, sugerindo que a relação incestuosa entre Antígona e Polinices estava
longe de ser um exemplo do “ético” (p. 71).
'$ Naturalmente, as mulheres não eram cidadãs na Atenas clássica, embora Ra
cultura cívica estivesse imbuída de valências de feminilidade. Para uma discuss?
bastante útil desse paradoxo, ver Nicole Loraux, The children of Athena: Athenian idess
about citizenship and the division between the sexes, trad. de Caroline Levine (Princeto”
Princeton University Press, 1993). (No original, Les enfants d'Athéna. Idées athénienr
: a J. . sistoire
ur la Sitoyenneté et la division des sexes, Paris, Maspero, “Textes à 'appui de Fhisto
classique”, 1981).
32 O clamor de Antígona
Hegel não nos diz exatamente por que a aparentefalta de desejo
entre o irmão e a irmã os qualifica para o reconhecimento segundo
os termos do parentesco, porém a sua visão implica que o incesto
constituiria a impossibilidade do reconhecimento e que o próprio
esquema da inteligibilidade cultural, da Sittlichkeit, da esfera em que
o reconhecimento recíproco é possível, pressupõe a estabilidade pré-
política do parentesco. Implicitamente, Hegel parece entender que a
proibição do incesto sustenta o parentesco, mas isso não é o que diz
explicitamente. Ele argumenta, antes, que asrelaçõesde“sangue”
tornam o desejoimpossível entre irmão e irmã, e assimosangue é que
estabilizaparentesco e sua dinâmica interna dereconhecimento.
Dessa forma, de acordo com Hegel, Antígona não deseja seu irmão,e a
Fenomenologia, portanto, torna-se o instrumento textual da proibição
do incesto, efetuando o que não pode nomear, o que posteriormente
nomeia, de forma equivocada, através da figura do sangue.
A rigor, o que parece particularmente estranho é que, antes na
Fenomenologia, em discussão sobre o reconhecimento, o desejo (% 167)
torna-se desejo de reconhecimento, um desejo que busca seu reflexo
no Outro, um desejo que busca negar a alteridade do Outro, um desejo
que se encontra na obrigação de necessitar o Outro que tememosser
e que tememos que nos capture; de fato, sem esse laço constitutivo
apaixonado não pode haver reconhecimento. Nessa discussão inicial, o
drama do reconhecimento recíproco começa quando uma consciência
percebe que está perdida, perdida no Outro, que partiu de si mesma,
que se encontra como o Outro ou, de fato, no Outro. Assim, O
Teconhecimento começa com a percepção de que se está perdido no
-Outro, apropriado em umaalteridade e por umaalteridade que é e não
£omesmo,e o reconhecimento é motivado pelo desejo de encontrar-se
àsipróprio refletidoali, ondeo reflexo nãoé uma expropriação final.
Narealidade, a consciência busca um resgate de si mesma, apenas para
Feconhecer que da alteridade não há retorno a um eu anterior, mas
Somente umatransfiguração baseada na impossibilidade de retorno.

Judith Butler 33
a Gu Val
Dessa forma, em “Dominação € escravidão”,o reconhecimento
próprio, uma
é motivado pelo desejo de reconhecimento, que é, ele
forma cultivada de desejo, não mais o simples consumo ou negação
daalteridade, mas a dinâmica complexa em que se busca encontrar.
se a si mesmo no Outro apenas para descobrir que esse reflexo é 9
signo da expropriação e perda de si mesmo. Assim, nessa seção
anterior não há, para o sujeito da Fenomenologia, reconhecimento
sem desejo. E, contudo, para Antígona, de acordo com Hegel, não
pode haver reconhecimento com desejo. De fato, para ela somente há
reconhecimento na esfera do parentesco, e com seu irmão, contanto
que não haja desejo.
A leitura de Lacan sobre Antígona, à qual retornarei no
próximo capítulo, também sugere que há certa idealidade em torno
do parentesco e que Antígona nos oferece acesso a essa posição
simbólica. Segundo Lacan,não é o conteúdo de seu irmão queela ama,
mas seu “Ser puro”, uma idealização do ser que pertence a posições
simbólicas. O simbólico é assegurado precisamente através de uma
evacuação ou negação da pessoa viva; assim, uma posição simbólica
nunca é comensurada com qualquer indivíduo que eventualmente
ocupa essa posição; ela assume seu estatuto simbólico exatamente
como uma função dessa incomensurabilidade.
Assim, Lacan pressupõe que o irmãoexiste num plano simbólico
e que é esse irmão simbólico que Antígona ama. Oslacanianos
tendem aseparar a dimensão simbólica do parentesco da dimensão
social, dessa forma paralisando os acordossociais doparentesco
comoalgointa. i ável, comoaquilo que a teoria socialpode
trataremoutro registro e em outro momento. Essas visões separam
o social do simbólico apenas para preservar um sentido invariável
de parentesco no último. O simbólico, que representa o parentesco
como uma função da linguagem, é separado dos acordos sociais de
eado que (a) o parentesco se institui no apr
ede à linguagem,(b) o parentesco é uma função

34 O clamor de Antí
gona
linguagem, e não uma instituição so
cialmente alterável qualquer,e (c)
alinguagem e o parentesco não são
instituições socialmente alteráveis
- ou, pelo menos, não facilmente alteradas.
Assim, Antígona,quede Hegel aLacan é vista com
imévista cor o defensora
parentesco,umparentescodestacadamente nãosocial,um
parentesco que segue regras as quais são a condição de
inteligibilidade
parao social, representa, noentanto, por assim dizer,uma aberração
fatal do.parentesco, ————évi-Strauss» comenta a interioridade das
regras que governam Oparentesco quando escreve que “o fato de
ser uma regra, completamente independente de suas modalidades,
é de fato a própria essência da proibição do incesto” (p. 32, p. 37.”
Assim, não é simplesmente que a proibição seja uma tal regra, mas
que essa proibição instancie a idealidade e a persistência da própria
regra. “Aregra”, ele escreve, “é ao mesmo temposocial,medida.
em que é uma regra, e pré-social, em sua universalidadeenotipode
relações a que impõe sua norma” (p. 12, p. 14).!º E mais tarde afirma
que o tabu do incesto não é nem exclusivamente biológico (embora
o seja parcialmente), nem exclusivamente cultural, mas existe, antes,
“no limiar da cultura”parte de umconjuntoderegrasquegeram
apossibilidade da cultura e que são,pois,distintasculturaque
geram, masnão de forma absoluta.

” Claude Lévi-Strauss, The elementar structures of kinship, ed. Rodney Needham,


trad. de James Harle Bell e John Richard Von Sturmer(Boston: Beacon Press, 1969); Les
structures élémentaires de la parenté (Paris: Mouton, 1967). As citações no texto referem-se
Primeiro à paginação da obra em inglês, depois à edição em francês. (Em português: “O
fato da regra, considerado de maneira inteiramente independente de suas modalidades,
Constitui, com efeito, a própria essência da proibição do incesto”, C. Lévi-Strauss, As
estruturas elementares do parentesco, Petrópolis, Vozes, 1976 (2008), p. 72).
“Esta regra, social por sua natureza de regra, é ao mesmo tempo pré-social por
dois motivos, a saber, primeiramente pela universalidade e, em segundo, pelo tipo de
Telações a que impõe sua norma”, ibidem, p. 50.
P Idem.

Judith Butler 35
No capítulo intitulado “O problema do incesto”, Lévi-Strauss
deixa claro que o conjunto de regras que ele articula não é, estritamente
que,
falando, nem biológico, nem cultural. Em suas palavras, “É verdade
através de sua universalidade, a proibição do incesto toca a natureza
[touche à la nature), i.e. a biologia ou a psicologia, ou ambas. Porém
não é menoscerto [Il n'est pas moins certain] que, sendo umaregra, é
um fenômenosocial, e pertence ao universo das regras [Punivers des
rêgles] e, portanto, à cultura e à sociologia, cujo objeto de estudo é a
cultura” (p. 24, p. 28)?º Ao explicar as consequências, pois, para uma
etnologia viável, Lévi-Strauss sustenta que é preciso reconhecer “a
regra por excelência, a única regra universal e que assegura o domínio
da cultura sobre a natureza [la Rêgle par excellence, la seule universelle
et qui assure la prise de la culture sur la nature)” (p. 24, p. 28)? Mais
adiante, nessa mesma discussão, Lévi-Strauss deixa claro o quanto é
difícil determinar o estatuto dessa proibição universal quandoescreve:

A proibição do incesto não tem uma origem nempuramente


cultural, nem puramente natural, tampouco é uma mistura
composta de elementos tanto da natureza quanto da cultura.
Constitui o passo fundamental [la démarche fondamentale]
graçasao qual, através do qual, mas, acima de tudo, noqual
realiza a passagem da natureza para a cultura. Em certo
sentido, pertence à natureza, pois é uma condição geral da
cultura. Consequentemente, não deve nos surpreender o fato
de que sua característica formal, a universalidade, foi tomada
da natureza [tenir de la nature). No entanto, em outro sentido,

20 4 z . x io “
“E é verdade que, pelo caráter de universalidade, a proibição do incesto toca à
natureza, isto é, a biologia ou a psicologia, ou ainda uma e outra, mas não € pari
ri ; : 5
certo que, enquanto regra, constitui um fenômeno social e pertence ao universo a
.
regras, isto é,
4
da cultura, e por conseguin
&
te à sociologia quem tem por objj eto O estud
da cultura”, ibidem,p. 62.
e au
[...] Regra por excelênci.a, a úni
decada
ca universal e que assegura o domíni
sobre a natureza”, ibidem, p. 62.
íni
o da culitrÊ

36 O clamor de Antigona
já é cultura, exercendo e impondosua regra sobre fenômenos
que inicialmente não estão sujeitosa ela. (p. 24, p. 28-29)?

Embora (ei-Straussinsista que a proibição não é nem uma


(natureza) nem utra(cultura), ele também propõe pensar a proibição
como o “vínculo [le lien]” entre uma e outra. Mas, sendo uma relação
Jémútua exclusão, é difícil entendê-la como um vínculo ou, de fato,
como umatransição.? E assim parece que seu texto oscila entre essas
várias posições, compreendendo a regra como parcialmente, mas não
exclusivamente, composta pela natureza pela cultura, compreendendo-a
comoexclusiva a ambasas categorias e, ainda, compreendendo-a como a
transição, por vezes vista como casual, ou o vínculo, por vezes entendido
como estrutural, entre a naturezae a cultura.
As estruturas elementares do parentesco foi publicado em 1947, seis
anos depois Lacan começoua desenvolver sualeitura mais sistemática
do simbólico, das regras fundamentais que tornam a cultura possível
e inteligível, que não são nem inteiramente reduzíveis ao seu aspecto
social, nem estão deste permanentemente divorciadas. Uma das
questões que discutirei nos próximos capítulos é se podemosavaliar
criticamente o estatuto dessas regras que governam a inteligibilidade

2 “A proibição do incesto não é nem puramente de origem cultural nem puramente


de origem natural, e também não é dosagem de elementos variados tomados de
empréstimo parcialmente à natureza e parcialmente à cultura. Constitui o passo
fundamental graças ao qual, pelo qual, mas sobretudo no qual se realiza a passagem
da natureza à cultura. Em certo sentido, pertence à natureza, porque é uma condição
geral da culturae, por conseguinte, não devemos nos espantar em vê-la conservar da
natureza seu caráter formal,isto é, a universalidade. Mas em outrosentido também já
é a cultura, agindoe impondosua regra no interior de fenômenos que não dependem
Primeiramente dela”, idem.
Para umacrítica breve porém perspicaz da distinção natureza/cultura em relação
ão tabu do incesto, que prova ser, ao mesmo tempo, fundacional e impensável, ver
eques Derrida) Structure,sign, and play”, in Writing and difference, trad. de Alan Bass
: ersity of Chicago Press, 1978), em especial p. 282-284. (“La structure,le
signe et le jeu” in Lécriture et la différence, Paris, Le Seuil, 1967).

Judith Butler 37
cultural, mas que não são redutíveis a uma determinada cultura. Além
disso, como funcionam essas regras? Por ua lado, somos informados
de que a regra da proibição do incesto é sirene, porém Lévi.
Strauss também reconhece que ela nem sempre funciona”, O que
ele não investiga, no entanto, é a seguinte questão: que formasesse
não funcionamento assume? Ademais, quando a proibição parece
funcionar, ela deve sustentar e gerenciar um espectro do seu não
funcionamento a fim de operar?
Mais especificamente, será que tal regra, entendida como
uma proibição, pode realmente operar, de forma efetiva, sem
produzir e manter o espectro de sua transgressão? Será quetais
regras produzem conformidade, ou será que também produzem um
conjunto de configurações sociais que excedem e desafiam as regras
que as ocasionam? Tomo essa questão a partir daquilo que Foucault
assinalou como sendo a dimensão produtiva e excessiva das regras do
estruturalismo. Aceitar a eficácia final da regra na própria descrição
teórica significa viver sob o seu regime, aceitar a força do seu decreto,
por assim dizer. Quão interessante, pois, saber que várias das leituras
da peça de Sófocles insistem que aqui não há amor incestuoso, e vale
perguntar se a leitura da peça, nesses casos, não se torna a própria
ocasião para a insistência de que a regra ocorra: aqui não há nem pode
haver incesto.” Hegel faz um gesto mais dramático quando insiste que
só há ausência de desejo entre o irmão e a irmã. Até mesmo Martha
Nussbaum, em suas reflexões sobre a peça, observa que Antígona
parece não ter grande apego ao irmão.” E Lacan argumenta, é claro,
que não é o irmão em seu conteúdo quem ela ama, mas seu ser como

* Ver também a breve discussão de George Steiner sobre as relações incestuosa


entre irmãos, de 1780a 1914, in Antigones, p. 12-15.
25
Martha C. Nussbaum,The fragility of goodness: luck andet
hics in Greek tragedy me
Philosophy (Cambridge: Cambridge University Press, 1986), p. 59. Para um
comentário
mais forte e antipsicanalítico contra a interpretação do rela
cionamento entrê
Antígonae Polinices como um laço incestuoso, ver Vernant e Vida
l-Naquet, "Oedipue

38 O clamor de Antígona
tal - porém onde é que isso nos deixa? Quetipo de lugar ou posição
é essa? Para Lacan, Antígona busca um desejo que só pode conduzir à
morte precisamente porque pretende desafiar as normas simbólicas.
Masseria essa a maneira correta de interpretar seu desejo? Ou será
que o simbólico ele mesmo produziu uma crise para a sua própria
inteligibilidade? Podemos supor que Antígona não confunde de
maneira alguma quem é seu irmão, ou quem é seu pai, a ponto de não
estar vivendo, por assim dizer, os equívocos que revelam a purezae a
universalidade dessas regras estruturalistas?
Os teóricos lacanianos, em sua grande maioria, insistem que
as normas simbólicas não são as mesmas que as normas sociais. O
“simbólico” passa a ser um termo técnico para Lacan em 1953 e setorna
a sua própria maneira de combinar os usos matemáticos (formais) e
lévi-straussianos do termo. O simbólico é definido como o campo da
Lei que regula o desejo no complexo de Édipo.” Esse complexoé visto
como derivado de uma proibição primária ou simbólica do incesto,
proibição que só faz sentido em termos de relações de parentesco em
quevárias “posições” são estabelecidas dentro da família segundo um
mandato exogâmico. Em outras palavras, uma mãe é alguém com quem
um filho e umafilha não mantêm relações sexuais, e um paié alguém
com quem um filho e uma filha não mantêm relações sexuais, uma mãe
é alguém que só mantém relações sexuais com o pai etc. Essas relações
de proibição são, pois, codificadas de acordo com a “posição” que cada
um dos membros da família ocupa. Estar emumadessas posições
ignifica, portano, estaremtal relaçãosexualcruzada, aomenos
Segundo concepção simbólica ounormativadoqueéessa“posição

Without the complex”, in Myth and tragedy in Ancient Greece, p. 100-102. (“Oeudipe sans
Complexe”, in Mythe et tragédie en Grêce ancienne, Paris, La Découverte,p. 34).
26 Dylan Evans, An introductory dictionary of Lacanian psychianalysis
(London:
Routledge, 1996), p. 202.

Judith Butler 39
ms

O legado estruturalista presente no pnsaraRno Psicanalista


teoria feminista do
tem exercido uma influência significativa sobre a
dagens feministas da
cinema e daliteratura, bem como sobre as abor
psicanálisenas demais.disciplinas. Com efeito, ouvimos falar muito em
“pesiçõões” na teoria cultural mais recente e tera sempre conhecemos a
sua origem.Esselegado também abriu caminho para tema crítica queer
do feminismo, que produziu, e continua produzindo, efeitos divisores
e produtivos dentro dos estudos de sexualidade e gênero. Partindo
dessa perspectiva, perguntamos: será que ainda há uma vida social
para o parentesco,umavidaquepossa acomodara mudança dentro
deparent sco? Para qualquer pessoa que trabalhe com os
estudos contemporâneos de gênero e sexualidade, a tarefa não é fácil,
dado o legado teórico quederiva desse paradigma estruturalista e seus
precursores hegelianos.
Meupontodevistaé que a distinção entre a lei simbólica
e social, enfim, não sesustenta, que o simbólico não apenas é, ele
próprio, asedimentação das práticas sociais, como as alterações
radicais no parentesco exigem uma rearticulação dos pressupostos
estruturalistasdapsicanálisee, portanto, da teoria contemporânea de
gênero e sexualidade.
Com essa tarefa em mente, retornemos à cena do tabu do incesto,
em que surge a seguinte questão: qual é o estatuto dessas proibições
e posições? /Lévi-Strauss“deixa claro, em As estruturas elementares do
parentesco, quenadaniabiologia exige o tabu do incesto, que este é 0
mecanismo pelo qual a biologia é transformadaem cultura, e, então, não
é nem biológico,nemcultural, embora aprópria culturanecessite dele.
Par cultural”, Lévi-Strauss não querdizer “culturalmente variável” a
contingente”, mas sim que opera de acordo com as regras “universais
a Strauss,asregrasculturaisnão sãoregr2s
|| da cultura. Assim, parLévi-
. - Alteráveis (conforme Gayle Rubin argumentou posteriormente), mas
as modalidades em que aparecem são variáveis. Além disso, são esses
quetransformarrelações biológicas emculiutô
40 O clamor de Antígona
embora não pertençam a uma cultura específica. Nenhuma cultura
específicapodeexistirsemessasregras, porém estas são irredutíveis a
qualquer umadas culturas que criam. O domínio de umaregra cultural
eterna e universal, a que Juliet Mitchell chamou de “lei universal e
primordial?” torna-se a base para a noção lacaniana do simbólico e
paraas tentativas posteriores de separar o simbólico tanto daesfera do
biológico quanto do social.
Egí Lacan) aquilo que é universal na cultura é entendido como
regrassimbólicas ou linguísticas, e estas, a princípio, codificam e
sustentam as relações de parentesco. A própria possibilidade da
referência pronominal, de um “eu”, um “você”, um “nós” e um “eles”,
parece contar com esse modo de parentesco que opera na linguagem e
comolinguagem. Essa passagem docultural para linguístico é indicada
pelo próprio Lévi-Strauss perto do fim de As estruturas elementares
do parentesco. Em Lacan, o simbólico é definido de acordo com uma
concepção de estruturas linguísticas que são irredutíveis às formas
sociais que a linguagem assume, ou que, em termos estruturalistas,
estabelecem as condições universais sob as quais a sociabilidade, i.e., a
comunicabilidade de todos os usoslinguísticos, torna-se possível. Essa
passagem abre caminho para a consequente distinção entre as leituras
simbólicas e sociais do parentesco.
Assim, no sentido lacaniano, uma norma social não é bem o
mesmo que uma “posição simbólica”, que parece desfrutar de um
caráter quase atemporal, não obstante as qualificações em notas de
rodapé presentes em vários dos seminários do mestre. Os lacanianos
quase sempre insistem que seria um erro tomar a posição simbólica do
Pai, por exemplo, queé,afinal de contas, a posição paradigmaticamente
simbólica, e confundi-la com a posição socialmente constituída e

o
2? Juliet Mitchell, Psychoanalysis and feminism (New York: Random House, 1974), p.
370, (Tradução em português, Psicanálise e feminismo: Freud, Reich, Laing e as mulheres,
Editora Interlivros, 1979).

Judith Butler 41
alterável que os pais assumiram através dos tempos. À Mão lacaniana
insisteque háumademandaideal e inconscientesobre a vidairredutive
acausase efeitos sociais legíveis. O lugar simbólico do pai não cede às
demandas de uma reorganização social da paternidade. Osimbólico é
precisamenteestabeleceoslimitesparatodoe qualqueresforço
utópico dereconfigurar ereviveras relaçõesdeparentescoa certa
distância da cenaedipiana.*
Quandooestudodo parentesco foi combinadocom q das
estruturaslinguísticas, as posições de parentesco foramelevadas
àcondição rta ordemde posições linguísticas sem asquais
nenhumasignificação poderiaexistir, nenhuma inteligibilidadeseria
possível.Quaisforam as consequências de tornar atemporais certas
concepções de parentesco, para, a seguir, elevá-las à condição de
estruturas elementares de inteligibilidade? Isso seria melhor ou pior
do que postular o parentesco como uma forma natural?
20

Assim, se uma norma social não é o mesmo que uma posição


simbólica, então uma posição simbólica, aqui entendida como a
idealidade sedimentada da norma, parece desviar-se de si mesma.
A distinção entre ambas não se sustenta, pois em cada caso ainda
estamos nos referindo a normassociais, porém em diferentes modos
de apresentação. A forma ideal ainda é uma norma contingente, cuja
contingência, porém, tornou-se necessária, uma forma de reificação
com importantes consequências para as relações de gênero. Aqueles
que discordam de mim tendem a argumentar, com alguma exasperação:
“Mas é a lei!”. Mas qual é o estatuto de um tal enunciado? “Éa lei!”
torna-se o enunciado que atribui performativamente à lei a mesma

28
Para umaint
.
eressante his
. 2
tória do simbólAt:ico e umaleitu
.
1

simbólicas do sexo nos acordos de parentesco contemporâne rove rsa dasra cont
os, ver MichL
içõ
a1
es

“ se
el a
Artifices du per
“ ”
e”, Dia1 logue: recherches cliniques et
sociologiques sur le couple et la fa
n 104, p. 46- 60, 1989; “Symboliser le différend o m
”, Psychanalystes, n. 33, p. 9-18, na
Le nom du pêre incertain: rapport pour le r
minist êre de la justice” (não publicado
arquivo do autor).

42 O clamor de Antígo
na
força que a própria lei supostamente exerce. “É a lei” é, portanto,
defidelidae àlei,umsinaldodesejodequea lei seja
incontestável, um impulso teológico nateoria da psicanálise que busca
qualquer crítica do pai simbólico, a própria lei da psicanálise.
Dessa forma, o estatuto conferido lei é precisamente o estatuto que
se dá ao falo, o lugar simbólico do pai, o indiscutível e incontestável. A
teoria expõe sua própria defesa tautológica. A lei para além dasleis vai
finalmente pôr fim à ansiedade produzida por uma relação crítica com
a autoridade final que claramente não sabe quando parar: um limite
ao social, ao subversivo, à possibilidade de agência e mudança, um
limite a que nos agarramos, sintomaticamente, comoa derrotafinal do
nosso próprio poder. Seus defensores argumentam que ficar sem tal lei
seria puro voluntarismo ou anarquia total! Será mesmo? E aceitar tal
lei como árbitro final da vida do parentesco? Não seriaisso resolver
por caminhos teológicos os dilemas concretos dos acordos sexuais

Pode-se certamente admitir que o desejo é profundamente


condicionado sem ter de argumentar que ele é radicalmente
determinado, e que há estruturas que tornam o desejo possível sem
ter de afirmar que essas estruturas são imunes a uma articulação
reiterativa e transformadora. Esta última está longe de significar um
retorno ao “ego” ou a noções liberais clássicas de liberdade, mas isso
insiste que a norma tem uma temporalidade que a abre para umaforma
subversiva dentro de e a um futuro que não pode ser completamente
antecipado. E, no entanto, Antígona não pode muito bem representar
essa subversão e esse futuro, pois queelacoloca em criseé a própria
representativa,própriohorizontedeinteligibilidade em que
acordocomoqualpermanece,decertaforma,impensável.
Antígona é filha de Édipo e assim suscita a seguinte questão: o que
Será da herança de Édipo quando as regras que ele cegamente desafia
e Institui não mais portarem a estabilidade que lhesfoi atribuída por
Lévi-Strauss e pela psicanálise estruturalista? Em outras palavras,

Judith Butler 43
Antígona é alguém para quem as posições simbólicas tornaram-se
incoerentes, confundindo, como ela o faz, pai com irmão, Surgindo
não como uma mãe, massim — conformecerta etimologia sugere - E
lugar da mãe”? Seu nome também é construído como “antigeração”
(gone [geração))º Elajáestá,portanto,a certa distância daquilo
que representa, eoque representa está longede serclaro. Se nem q
estabilidade do lugar materno, nem a estabilidade do lugar paterno
podem ser asseguradas, o que acontece com Edipo e a proibição que
representa? O que ele de fato realizou?
Levanto essa questão, é claro, num momento em que a família
é idealizada de forma nostálgica em diferentes formas culturais,
momento em que o Vaticano protesta contra a homossexualidade,
acusando-a não só de ser um ataque à família, mas também à noção
do humano, onde tornar-se humano significa, para alguns, participar

? Ver Robert Graves, The Greek myths: 2 (London: Penguin,1960), p. 380. Agradeço o
artigo de Carol Jacobscitado acima por esta última referência.
* Ver Seth Bernardete, “A reading of Sophocles's AntigoneI, Interpretation: Journal of
Political Philosophy 4, n. 3, p. 156, 1975. Bernardete cita aqui Wilamowitz-Moellendorf,
Aischylos Interpretationen 92, n. 3, para amparar sua tradução. Stathis Gourgouris
oferece os seguintes comentários provocativos sobre “a rica polivalência do nome
de Antígona”:
A preposição anti significa tanto “em oposição a” como “em
compensação por”; gone pertence a uma linha de derivações de
genos (família, linhagem, ascendência) e significa simultaneamente
descendentes, geração, ventre, semente, nascimento. Com base nesta
polifonia etimológica (a batalha pelo significado no centro do próprio
nome), podemos argumentar que Antígona incorpora tanto uma
oposição do parentesco à pólis (em compensação porsua derrota para
as reformas do demos), quanto uma oposição ao parentesco, expressa
por seu apego a um irmão por meio de um desejo perturbador, philia
para além doparentesco.

Retirado docapítulo “Philosophy's need for Antigone” in Stathis Gourgouris, Literatt re


as theory (for an antimythical era) (Stanford: Stanford University Press, 2003).

44 O clamor de Antigona
da família em seu sentido normativo. Pergunto isso também num
momento em que as crianças, devido ao divórcio e ao segundo
casamento, devido à imigração, ao exílio e à condição de refugiado,
devido aos vários tipos de deslocamentos globais, passam de uma
família para outra, de uma família para nenhuma,de nenhuma família
para uma, OU vivem, fisicamente, na encruzilhada da família, ou em
situações familiares multifacetadas, em que podem muito bem ter
mais de uma mulher atuando como a mãe, mais de um homem atuando
como o pai, ou nenhuma mãe, ou nenhum pai, com meios-irmãos
que são também amigos - este é um momento em queoparentesco
“tornou-seporosoe expansivo. É também um momento em que
as famílias heterossexuais e gays por vezes se misturam, ou em que
as famílias gays surgem em formas nucleares e não nucleares. Qual
será o legado de Édipo àqueles formados nessas situações em que as
posições são pouco claras, em que o lugar do pai aparece disperso, em
que o lugar da mãe é multiplamente ocupado ou deslocado, em que o
simbólico em sua estase já não se sustenta?
Decerta forma, Antígona representaoslimitesdainteligibilidade
expostos nos limites do parentesco. Masela o faz de maneira pouco
pura, difícil de ser romantizada ou, a rigor, consultada por alguém
como um exemplo. Afinal de contas, Antígonaapropria-seda postura
e da linguagemdaquele a quem se opõe, assume a soberania de
Creonte, reivindica até mesmo a glória destinada ao seu irmão e vive
uma estranha lealdade ao seu pai, ligada como está a ele através de sua
maldição. Seu destino é não ter uma vida para viver, estar condenada
à morte antes de qualquer possibilidade de vida. Isso levanta a questão
de queparentesco garante as condições de inteligibilidade
Pelasquais avidase torna vivível, pelas quais a vida também acaba
condenadae foraclusa. A morte de Antígona é sempre dupla ao longo
da Peça: ela argumenta que não viveu, que não amou e que não gerou
filhos,e que, portanto, foi vítima da maldição que Édipo lançou sobre
Seus filhos, “servindo à morte” durante toda a sua vida. A morte

Judith Butler 45
significa, pois, a vida não vivida, e assim, ao se dirigir a tumba Viva
oi seu. Seria
que Creonte lhe preparou, encara um destino que sempre
esse, talvez, o desejo impossível com o qual vive, o próprio incesto, que
faz de sua vida uma morte em vida, que não encontra lugar nos termos
que conferem inteligibilidade à vida? Ao se aproximar da tumba, onde
deve permanecer, sepultada em vida, Antígonadeclara:
Ó tumba,ó tálamo, ó cárcere escavado, prisão sem fim.A ti me
dirijo em busca dos meus[tous emautes). (891-893).

Assim, a morte figura como um tipo de casamento com aqueles,


em sua família, que já estão mortos, afirmando a qualidade de morte
dos amores para os quais não há lugarviável e vivível na cultura,É sem
dúvida importante, por umlado, recusar a sua conclusão de que não ter
um filho representa porsi só um destino trágico e, por outro, recusar
a conclusão de que o tabu do incesto deve ser desfeito para que o amor
floresça livremente em toda parte. Nem o retorno à normalidade
familiar, nem a celebração da prática incestuosa são aqui o objeti
vo. A
situação de Antígona, entretanto, oferece sim uma alegoria
para a crise
do parentesco: quais acordos sociais podem ser reconhecid
os como
amores legítimose quais perdas humanas podem sera
bertamente
lamentadas comoverdadeiras e significativas? Antígona
recusa-se a
obedecer a qualquerlei que impeça o reconhecimento público de sua
perda e assim prefigura a situação tão familiar àqueles
que sofrem
perdas que não podem ser publicamente lamentadas - como no caso
da AIDS, por exemplo. A que tipo de morte em vida essa
s pessoas
foram condenadas?
Embora Antígona morra, seu feito pe
rmanece na linguagem.
mas qual é o seu feito? Esse feito é e não é seu,
uma transgressão às
normas de parentesco e gênero que
expõe o caráter precário dessas
Normas, seu poder de transferência súbito
e incômodo, além de sua
capacidade de reiteração em cont
extos e de formas que
totalmente antecipa
das. não podem se”

46 O clamor de An
tígona
Antígonanãorepresenta o parentesco em sua forma ideal,mas
em sua deformação e deslocamento, colocando emcrise os regimes
derepresentaçãoe levantando a questãodequaispoderiam
terascondiçõesde inteligibilidadequeteriamtornado sua
possível. A rigor, qualteia ações sustenta e torna anossa
possível, nós que confundimos o parentesco na rearticulação
“ de seus termos? Que novos esquemas de inteligibilidade tornam
nossos amores legitimos e reconhecíveis, nossas perdas verdadeiras?
Essa pergunta reabre a relação entre parentesco e as epistemologias
remantes de inteligibilidade cultural, e entre estes e a possibilidade
de transformação social. E essa questão, que parece tão difícil de ser
levantada em se tratando de parentesco, é rapidamente suprimida
por aqueles que buscam tornar versões normativas de parentesco
essenciais ao funcionamento da cultura e à lógica das coisas, uma
questão frequentemente excluída por aqueles que, por meio do medo,
desfrutam da autoridade final dos tabus que estabilizam a estrutura
social como verdade eterna, sem jamais se perguntar: o que aconteceu
com os herdeiros de Édipo?

Judith Butler 47
Leis não escritas,
transmissões aberrantes
No último capítulo, abordei o ato de Antígona, o tipo de
reivindicação que o ato do enterro supõe, o tipo de ato que a
reivindicação da rebeldia realiza. Seu ato a conduz à morte, mas
a relação entre o ato e seu desfecho fatal não é exatamente causal.
Antígona age, desafia a lei, sabendo que a morte é a punição, mas o
que impulsiona sua ação? E o que impulsiona sua ação em direção à
morte? Seria mais fácil se pudéssemos dizer que Creonte a matou,
porém Creonte apenas a expulsa para uma morte em vida, e é dentro
dessa tumba que ela tira a própria vida. Talvez seja possível dizer que
ela é autora da própria morte, porém qual legado de atos está sendo
constituído através do instrumento de sua agência? Suafatalidade seria

fatalidade acaba parecendo umanecessidade?


Antígona tenta falar de dentro da esfera política nalinguagem
soberania,que é o instrumento do poder político. Creonte torna
Pública sua proclamação e pede que seus guardas se certifiquem de
que todos sejam conhecedores de suas palavras. “Com estes princípios
engrandecerei esta cidade” (190), e, contudo, sua enunciação não
é suficiente. Ele tem de pedir que os guardas transmitam a sua
Proclamação, e um deleshesita: “Encarrega pessoas mais jovens” (216).
: Ede da peça, ficamos sabendo que Ismene desconhece
general a que Antígona reporta, “É este [o novo decreto] que o
a de proclamar em toda a cidade” (7), e assim o poder

Judith Butler 49
ece eh da recepção '
do ato de fala soberano de Creonte par
transmissão por parte de seus subordinados; ele pode chegar a Ouvidos
surdos e resistentes e, com isso, deixar de conectar aqueles a quem se
dirige. O queestá claro, no entanto, é que Creonte uuqe Palavra
seja conhecida e honrada pela pólis inteira. De forma similar, Antígona
não abandona a possibilidade de tornar sua rebeldia conhecida
Quando Ismene a aconselha no início da peça, “Não reveles a ninguém
teus propósitos” (84), Antígona responde, “Fala, peço-te! Muito mais
odiosa meserás calada. Declara tudo a todos” (86-87). Como Creonte,
pois, Antígona deseja que seu ato de fala se torne radical e amplamente
público, tão público quanto o próprio decreto.
Embora seu ato de rebeldia seja ouvido, o preço de sua fala
é a morte. Sualinguagem não é a de uma ação política a que se
pode sobreviver. Suas palavras, compreendidas como feitos, estão
quiasmaticamente relacionadas ao vernáculo do poder soberano,
falando por meio dele e contra ele, utilizando e desafiando imperativos
ao mesmo tempo, habitando a linguagem da soberania no exato
momento seopõe ao poder soberano e é excluída deseus termos.
issosugere é que Antígona não pode fazer a sua reivindicação
forada linguagem do Estado, porém a reivindicação que deseja fazer
tampouco pode ser plenamente assimilada poreste.”

* Alguns comentaristas políticos da peça, como Jean Bethke Elshtain, sugeriram


que Antígona representa a sociedadecivil, que sua relação com Hêmone o coro, em
particular, representa uma “voz” que não é nem a do parentesco, nem a do Estado.
Há, claramente, um julgamento comunitário que é expresso pelo coro, mas seria um
erro concluir a partir disso que a comunidade opera como umaesfera separad
a ou
separável tanto do parentesco quanto do Estado. Minha visão é a de que Antígona
nãofala com umavoz quenão seja contaminada. Isso significa que elanão pode nem
e Tesentar o feminino contra oEstado, nem representar uma versão do parentesco
em sua distinção do poder do Es a Bi dpro UNo
in Democracy, tado. VerJean BethkeElshtain, “Antigone's daughter,
Y2,n.2, p. 46-59, April 1982, Seyla Benhabib identifica a ambivalência
modo co mo Hegel entende as mulheres, argumentando que
note] É e
Antígona finalmer
lugaravançodialéticoda universalidade. Isso é claramente verdadeir

50 O clamor de Antí
gona
Mas, se não é possível sobreviver politicament
e às sua:s ações,
estas reside m, ainda assim, na esfera do parent
esco. Os críticos da peça,
nn erturbados pelaprópria deform
ação do parentesco que Antigoria
realiza e anuncia, têm respondido com umaidealização do par
entesco
que nega O desafio feito a este. Há duasformas deidealização do
“parentescoque devem ser aqui consideradas: Antígona supostamente
sustenta a primeira por representar seus termos e defende a segunda,a
princípio, por constituir seu limite. A primeira é a deHegel,que faz com
que Antígonarepresenteasleis doparentesco, os deúses do lar, uma
representação que leva a duas estranhas consequências: 1) a insistência
dela, segundo ele, em representar essas leis é justamente o que
constitui um crime numa outra ordem legal mais pública; 2) Antígona,
que representa esse domínio feminino da família, torna-se inominável
no texto, ou seja, a própria representação que ela, a princípio, figura
requer um apagamento do seu nome no texto da Fenomenologia do
espírito. A segunda forma de idealização do parentesco é a de'Lacan,)
situa
que Antí gona nolimiar do simbólico, compreendido-como
registro linguístico emque as relações deparentescosãoinstituídas
e mantidas. Lacan entende a morte de Antígona como precipitada
justamente pela insustentabilidade simbólica doseudesejo. Embora
eu mantenha certa distância dessas duas importantes leituras, também
busco reelaborar determinados aspectos de ambasas posições no relato
que ofereço às seguintes questões: a morte de Antígona sinalizaria

na Fenomenologia do espírito e parece seguir também das oposições sustentadas na


Filosofia do direito, conforme Benhabib mostra. Mas seria interessante considerar, a
€sse respeito, o argumento de Hegel na Estética, quando diz que a universalidade de
Antígona deve ser encontrada em seu páthos. Ver Hegel's aesthetics: lectures on fine arm,
Volume 1, trad. de T. M. Knox (Oxford: Clarendon Press, 1975), p. 232. Para a discussão
de Seyla Benhabib, ver Situating the self: gender, community, and postmodernism in
contemporary ethics (New York: Routledge, 1992) p. 242-259. Sobre esse tópico, ver
membership ,
H a Valerie Hartouni, “Antigone's dilemmas: a problem of political
Jpatia,v.1,n.1, p. 3-20, Spring 1986; Mary Dietz, “Citizenship with a feminist face”,
Political Theory, v. 13, n.1, p.19-37, 1985,

Judith Butler 51
li mi te sd ain te li gi bi li da de cultural, os
br: Os
uma lição necessária so e
vel,
ligíde
tedo
coprinia ção esta
lite deria NOS restitui
que po r
esro
liimmiites do EEntap limi e restrição? Sua morte indicaria

pe lo Es ta do , a su bo rd in ação necessária
àsupera ãoip
rte é. Precisamente um
mind ao segundo? Ou será que sua mo
açãodopoder político que
seroperrã o inteligíveis, os tipos de
formasparentescoque se
quesertolerados?
Em Hegel, o parentesco é rigorosamente diferenciadoda esfera
do Estado, embora seja uma precondição para o aparecimento e
a reprodução do aparato deste. Em Lacan, o parentesco, como uma
função do simbólico, torna-se rigorosamente dissociado da esfera do
social, apesar de constituir o campo estrutural de inteligibilidade no
qual o social nasce. A minha leitura de Antígona, em resumo, buscará
colocar essas distinções em crise produtiva. Antígonanãorepresenta
nem o parentesco, nemoque lhe é radicalmente externo, mas torna-se
a ocasião paraaleitura deuma noção estruturalmenteconstrangida
de parentesco no que diz respeito à sua iteratividadesocial,
à
temporalidade aberrante da norma.
f Reconstruir as posições de parentesco como “simbólicas”
* significa justamente postulá-las como precondição
da comunica-
bilidade linguística, além de sugerir que essas
“posições” sustentam
*» uma intratabilidade que não se aplica a normas
sociais contingentes.
Noentanto, não basta detectar os efeitos das normas
sociais sobre a
reflexão acerca do parentesco, movimento este que
faria o discurso
sobre O parentesco retornar a um sociologismo
destituído de
significado Psíquico. As normas não agem unilateralmente
sobre à
Pique pelo contrário, elas se condensam como
a figura da lei à qual
à Psique retorna. A relação Psíquica com as normas sociais pode, sob
vas :
lax r tais normas5como intratáveis, puniti
ea e
£ .
A
i

ção das normas já ocorre no que Freud chamo


morte”, Em outras palavras, a própria descriç
'
” . e ão

O clamorde Antígona
do simbólico como lei intratável ii dentro de uma fantasia que
ao mesmo
toma a lei como autoridade insuperável. A meu ver, Lacan
tempo analisa essa fantasia e a torna um sintoma. Desejo sugerir que
ã imbólicoé limitada peladescriçãodesuaprópriafunção
transcendentalizante,que ela só pode reconhecera contingênciade
alteração
suaprópria estrutura negando apossibilidade de qualquer
substancialseucampode atuação.Irei sugerir quea relaçãoentre.
ição simbólicae a norma socialprecisaserrepensada e, em
meu capítulo final, desejo mostrar comoseria possível reler a função
fundadora do parentesco, exercida pelo tabu do incesto, na psicanálise,
a partir de uma concepção de normasocial contingente em ação. Aqui
estou menos interessada nas restrições impostas pelo tabu do que
nas formas de parentesco que ele suscita, e como sua legitimidade é
estabelecida justamente como soluções normalizadas para a crise
edipiana. Nãosetrata, portanto, de libertar o incesto de suasrestrições,
mas sim de perguntar que formas de parentesco normativo podem ser
“compreendidas como necessidades estruturais desse tabu.
Antígonalocaliza-se apenas parcialmente fora da lei, e, dessa W
forma,pode-seconcluir que nem a lei do parentesco, nema lei do Estado
demaneira efetiva para ordenaros indivíduos que estão
submetidos a essas leis. Porém,se o seu desvio é utilizado para ilustrar
a inexorabilidade da lei e sua oposição dialética, então a oposição de
Antígonatrabalhaa serviço dalei, sustentando a sua inevitabilidade.
Desejo considerar dois momentos em que Antígona,a princípio,
Ocupa umaposição anterior ao Estado e ao parentesco, a fim de
determinar ondeela se encontra, como ela age e em nome do que age.
O primeiro momentositua-se na discussão de Hegel na Fenomenologia
do espírito e na Filosofia do direito, e o segundo, que abordarei no
to é o sétimo seminário de Jacques Lacan, devotado
a “Etica da psicanálise”,
net investiga a estatuto de Antígona ns capítulo aa
gia intitulado “A vida ética”, em uma subseção chamada “A

Judith Butler 53
ação ética: o conhecimento humano é divino, aculpa eo destino” [Die
Sittliche Handlung: Das Menschliche und Góttliche Wissen,die Schuld
und das Schicksal)? Na verdade, Antígona permanece sem nome em
grande parte da seção, sendo meramente prefigurada ao longo de
quase toda a discussão. Hegel questiona o lugar da culpa e do crime
na vida ética universal, insistindo que, nesse campo, quando alguém
age criminalmente, não age enquanto indivíduo, pois nos tornamos
indivíduos somente quando pertencemos à comunidade. A vida ética é
precisamente umavida estruturada pela Sittlichkeit, em que as normas
de inteligibilidade social são histórica e socialmente produzidas.? O
eu que age, e age contra lei, “é apenas a sombra irreal”,” pois“ele[sic]
existe meramente como um Si universal” (p. 282). Em outras palavras,
qualquer um que cometa tal ação será culpado; o indivíduo, através
do crime, perde sua individualidade e se torna esse “qualquer um”
A seguir, sem qualquer aviso, Hegel parece introduzir Antígona sem
nomeá-la: ele observa que quem comete um crime de acordo com as
normas universais predominantes da Sittlichkeit se vê na posição de
quebrar a lei humana ao seguira lei divina e de quebrar a lei divina ao
seguir a lei humana: “O feito apenas executa umalei em contraste com
a outra” (p. 283).º Assim, quem age de acordo com lei, de modo quea
lei é sempre ou humana, ou divina, mas não ambas, é incapaz dever alei
a que desobedeceu naquele instante. Isso leva Hegel à figura de Édipo,
através do seguinte caminho: “A efetividade, portanto, esconde em si

*? Todasas citações pertencem à tradução de Miller citada na nota 4, capítulo 1, com


referência à edição alemã da Suhrkamp citada na
mesma nota. As citações referem-se
Primeiro à paginação dotexto em inglês, depois
à edição em alemão. (Para a tradução
em português: Fenomenologia do espírito, Edi
tora Vozes, 1992, 2005).
* Ver Charles Taylor, Hegel and modern society (Cambridge: Cambridge University
Press, 1979), p. 1-68.
34
mo é apenas sombrainefetiva” G. W. F. Hegel, Fenomenologia do espírito, OP-
p.325. Elis
3 “
[.. o ato só realizou uma, em contraposição
à outra”, ibidem, p. 324.

54 O clamor de Antí
gona
lrto
specto queé estranho a esse conhecimento [a determinação
o outro asp faz] e não revela à consciência a verdade inteira acerca
ve sabe o que ao ES : a
: [Die Wirklichkeit halt daher die andere dem Wissen fremde
de * l sich verborgen, und zeigt sich dem Bewusstsein nicht, wie
sam and fiir sich ist]: o filho não reconhece seu pai no homem que o
sie
sua mãe na rainha que
a
prejudicou e quefoi por ele assassinado, nem
desposou” (p. Hege 347ica)“ quea culpa se torna explicit
283, lp.expl , da
n amente vivi
Assim,
vés de
narealização dofeito, na experiência de “quebrar” umalei atra
outra, “captura[ndo] o autor no ato [Dem sittlichen Selbstbewusstsein
erst, wenn
stellt auf diese Weise eine lichtscheue Macht nach, welche
die tat geschehen, hervorbricht und es bei ihr ergreift)” (p. 283, p. 347, grifo
r
meu). Ainda a respeito de Édipo, a seguir, Hegel escreve: “O auto
não pode renegar o crime ou sua culpa: o significado do feito reside
naquilo que, antes parado, agora está em movimento”” e, em suas
palavras, no fato de que “o inconsciente”foi “conectado ao consciente
[und hiermit das Unbewusste dem Bewussten, das Nichtseiende dem
Sein zu verkniipfen)”(p. 283, p. 347, tradução minha).* Isso leva Hegel
falar de um “direito” que é tacitamente afirmado ao se cometer
um crime, um direito ainda desconhecido, exceto na e através da
consciência da culpa.
Hegel enfatiza o vínculo entre a culpa e o direito, uma
reivindicaçãododireito que está implícita na. culpa, um direito,
um acesso a um direito que é necessariamente e simultaneamente a
revogação de outra lei. Aqui ele parece referir-se a Édipo, que sem

l
%
A
mo
«
efetivi : guarda oculto nela o outro lado, estranho ao saber, e
pois,
y ira não se
à na E ; à
que ele f €onsciência tal como é em si e para si. Ao filho,o pai não se mostra no ofensor
es
& nem a mãe
ã
na rainha
i que toma por esposa”,vers
ibidem, p. 324-325.
BM «
Queibidpo pm
imóvel” Êdiso não
rã pode renegar o delito e sua culpa. O ato ésáisso: remover O
“dq,
niro :
9 inconsciente ao consciente”, idem.

Judith Butler 55
saber comete seus crimes e se vê Espe vencido pela
ce sesentir
culpa. Embora afirme seu direito, Antígona não. pare
oram ni pode ente nder
culpada, nem mesmoquando reconhece que
,
alei” que justifica seu ato como sinal de sua criminalidade, Para Hegel
o inconsciente, ou o queele descreve como não existente, surge da
reivindicação do direito, do ato que se estrutura na lei que não conta
comolei no domínio da lei. Não há justificativa para a reivindicação de
Antígona. A lei que invoca apresenta apenas uma instância possível de
aplicação e não é, num sentido comum, conceituável como lei. O que
é essa lei para além da lei, para além da conceituação, que faz com que
seu ato e sua defesa na linguagem pareçam apenas umaviolação dalei,
umalei que surge como quebrada lei? Seria esse um tipo de lei que
oferece fundamentos para a quebra de um outro tipo de lei, e poderiam
esses fundamentos ser enumerados, conceituados e transpostos de
um contexto para outro? Ou então, seria essa uma lei que desafia a
conceituação e que representa um escândalo epistêmico no campo da
lei, uma lei que não pode ser traduzida, que marca o próprio limite
da conceituação legal, uma quebra na lei realizada, por assim dizer,
por uma legalidade que permanece incontida por toda e qualquer lei
positiva e generalizável? Essa é umalegalidade do que não existe e do
que é inconsciente, não umalei do inconsciente, mas uma forma de
demanda que o inconsciente necessariamente cobra da lei, aquela que
marca o limite e a condição de generalidade da lei.”

? Derrida assinala que Hegel generaliza muito rapidamente a partir da situação


específica da família de Antígona para a “lei” mais geral queela, a princípio, representa
e defende. Afinal de contas, ela dificilmente pode representar a família viva e intacta
enão está claro que estruturas de parentesco ela representa. Nas palavras de Derrida,
E se a orfandade fosse umaestrutura do inconsciente? Os pais de Antígona não =
Pais entre outros quaisquer. Ela é a filha de Édipo e, de acordo com a maioria das
Veriã O za a.
ri que servem de inspiração a todos os tragedistas, de Jocasta,
sua avó incestuos
egel nuncase refere a essa geração [ de plus] comose esta fosse estranhaàs ais
às estrutura
elementares do parentesco”,
Muito embora, no que vem a seguir, Derrida Pê onã
concordar com Hegel so
bre a condi ção destituída de desejo da relação de Antig

56 O clamor de Antígo
na
Hegel chama à atenção para esse momento, quase se afunda
nele, mas Tap idamente contém sua consequência
escandalosa. Ele
distingue Édipo de Antígona, estabelecendo que o crime dele pode
te
ser desculpado, ao passo que O dela não. O teórico faz isso justamen
a ação de Antí gona de qual quer moti vação inconsciente,
livrando
“A
identificando a personagem com um ato inteiramente consciente:
sculpável, se
consciência ética é mais completa, sua culpa mais inde
como
conhece antecipadamente a lei e o poder a que se opõe,se os toma
te
violência e injustiça, como contingência ética, e, como Antígona, come
o crime conscientemente [wissentlich [...] das Verbrechen begeht]"*º
Como se estivesse assumindo o ponto de vista de Creonte, incapaz
de fazer com que Antígona lhe confesse inteiramente seus atos, Hegel
conclui essa discussão argumentando que “Devido a essa efetividade, e
em virtude do seu agir, a consciência ética deve reconhecer seu oposto
como sua efetividade, [e] deve reconhecer sua culpa” (p. 284, p. 348).
O oposto de sua açãoé a lei que ela desafia, e Hegel obriga Antígonaa
reconhecer a legitimidade dessalei.
Antígona, é claro, reconhece seu feito, mas a forma verbal do
seu reconhecimento apenas agrava o crime. Ela não apenas o fez,
comoteve ainda a coragem de dizer que o fez. Dessa forma, Antígona

com o irmão,ele pode estar sendo irônico,já que tanto nega o desejo quanto o chama,
à seguir, de um desejo impossível, afirmando-o como um desejo singular: “Tal como
Hegel, ficamos fascinados com Antígona, com essa relação inacreditável, esse poderoso
laço sem desejo,esse desejo impossível, imenso, que não poderia viver, capaz somente
de derrubar, paralisar ou exceder qualquer sistema ou história, de interromper a
ha do conceito, de cortar sua respiração”. Ver Jacques Derrida, Glas, trad. de John P.
De veyJr. e Richard Rand (Lincoln: University of Nebraska, 1986), p. 165-166. (Jacques
Trida, Glas, Paris, Editions Galilée, 1974, p. 186-187).
“ Poré A
: m a consciência ética éa ; pura, quando
mais completa, sua culpa mais conhece
“Ntecipadamente
antecipa a lei: e a potência
as E
que se lhe opõem, TES
quando as toma por violência e
injusti o
Ustiça e por uma contin gência ética”, idem.
e”
Devido o na
E àà sua efetividade, . ; sd Rê
e em virtude do seu agir, a consciência ética deve
Seu oposto comoefetividade sua; deve reconhecersua culpa”, idem.

Judith Butler 57
não pode exemplificar a consciência Eliza que o a culpa; ela está
para além da culpa — ela abraça seu crime comoabraça sua morte, sua
tumba, seu leito nupcial. Nesse momento do texto, Hegel cita a Própria
Antígona, comose às palavras dela confirmassem seu argumento; “weil
wir leiden, anerkennen wir, dass wir gefehlt'*” traduzido por Miller
como “porque sofremos, reconhecemos ter errado” (p. 284, p. 348)
Considere, porém, a qualificação desse comentário que a tradução
de Grene introduz: “Se essa forma de proceder é boa aos olhos dos
deuses / Devo conhecer meu pecado, uma vez que sofri” (982-983).º
E observe a extraordinária suspensão da questão da culpa, além da
crítica implícita a Hegel, introduzida pela tradução mais confiável, a de
Lloyd-Jones: “Bem, se isso recebe a aprovação dos deuses, eu deveria
perdoá-los [syggignosko] pelo que sofri, já que cometi um erro; mas se
são eles os malfeitores, que não sofram males maiores do que aqueles
que me foram injustamente causados!”
Aqui Antígona parece saber e comunicar a sabedoria que ela
não pode de todo confessar, já que não admitirá a sua culpa. Essa
parece ser a primeira razão que Hegel oferece para justificar por
que Antígona não é admitida na lei ética.“ Antígona não nega ter

*? Hegel cita a partir da tradução de Hólderlin da peça Antígona, de Sófocles,


intitulada Antigoná (Frankfurt: Wilmans Verlag, 1804), publicada três anos antes da
Fenomenologia.
* “Porque sofremos reconhecemos ter errado” G. W. F. Hegel, Fenomenologia do
espírito, op.cit., p. 325.
Grene, Antigone.
Hegel passa a falar sobre o autor quefaztal reconhecimento, mas, aparentemente ye
45

essa pessoa não pode ser Antígona. Ele se refere, em vez disso, a Polinices e Etéocles
dois irmãos descritos como aqueles que surgem de modo contingente da “Natureza
cada um deles reivindicando o mesmo direito de conduzir a comunidade. A
humana, em sua existência universal, é a comunidade; em suaatividade em geral, :

à masculinidade da comunidade; em sua atividade reale efetiva, é o governo. Ela é


move e se mantém consumindo e absorvendo emsia separação dos Penates
[deuses

58 O clamor de Antí
gona
realizado O feito, mas isso nãosignifica um reconhecimento da culpa
para Hegel. À rigor, admitir a culpa, como Hegel e Creonte desejariam
que Antígona tivesse feito, significaria exercer o discurso público
precisamente do modo que não é permitido a ela. Cabe perguntar se as
mulheres poderiam chegar a sentir a culpa no sentido hegeliano,pois
a autoconsciência da pessoa culpada e arrependida é necessariamente
mediada pela esfera do Estado. Com efeito, exercer esse discurso,
precisamente do modo comoela o faz, é cometer um tipo diferente
de delito, aquele em que um sujeito pré-político reivindica uma
agência furiosa dentro da esfera pública. A esfera pública, tal como
aqui a chamo,é chamada por Hegel, alternadamente, de comunidade,
governo e Estado; ela somente adquire sua existência ao interferir na
felicidade da família. Então, cria para si mesma “um inimigo interno —
a feminilidade, de modogeral. Feminilidade - a eternaironia [na vida]
da comunidade” (p. 288, p. 352).
A introdução do tema da feminilidade parece basear-
se claramente na referência anterior à Antígona, mas também,
curiosamente, suplanta tal referência, praticamente da mesma forma
que Hegel altera a linguagem de Antígona para que esta se ajuste ao
formato ético dele. A princípio, parece que as afirmações de Hegel
sobre Antígona podem muito bem se aplicar à Weiblichkeit em questão:
universal
A feminilidade [...] converte, através da intriga, 0 fim
sua atividade
do governo num fim privado, transforma
o
universal [allgemeine Tátigkeit] numa obra de algum indivídu
universal [verkehrt das
em particular, e perverte a propriedade

íli as pre sididas pela feminilidade, e mantendo-as


lar), ou a sep ara ção em dif ere nte s fam
dissolvidas na continuidade fluida de sua própria natureza” (p. 287-288).
go ai
es tá pr od uz in do , para si mesma, seu fi
ial - na feeainiuãS o E a
*S“Ela [a comuni da de ]
o tempo essenc
que reprimee quelhe é ao mesmda comunidade”, G. W. F. Hegel, Feno gi
feminilidade - a eterna ironia
espírito, op.cit. p. 329.

Judith Butler 59
allgemeine Eigentum] do Estado, que passa a ser um ornamento
e patrimônio da Família [zu einem Besitz und Putz der Familie).
(p. 288, p. 353).

Essa mudança repentina para o tema da feminilidade retoma


Antígona, mas também claramente generaliza o seu caso de uma
forma que apaga o seu nome e sua particularidade. Essa “feminilidade”
perverte o universal, transformando o Estado em propriedades e
ornamentos para a família, decorando a família com a parafernália
do Estado, tecendo bandeiras e mantasa partir do aparato do Estado,
Essa perversão da universalidade não tem implicações políticas.
Com efeito, a “feminilidade” não age politicamente; pelo contrário,
constitui uma perversão e privatização da esfera política, umaesfera
governada pela universalidade.
Embora o primeiro Hegel tenha sugerido que a perversão da
universalidade, realizada por Antígona, apesar de sua aparência de
criminalidade, pode de fato significar a erupção de uma outra ordem
de legalidade, que só pode parecer criminalidade do ponto de vista
da universalidade, ele não vê tal erupção inconsciente do direito na
perversão da universalidade que as mulheres em geral desempenham.
A rigor, no exato momento do texto de Hegel em que Antígona torna-
se generalizada como mulher ou feminilidade, a perversão em questão
perde seu lugar escandaloso no campo político, desvalorizando o
político como propriedade privada ou ornamento. Em outras palavras,
ao suplantar Antígona através da “feminilidade”, Hegelrealiza a própria
generalização a que Antígona resiste, generalização segundo a qual
Antígona só pode ser vista como criminosa e que, por conseguinte.
elimina sua presença do texto de Hegel.
Do
qu = . . em
qo feminilidade [...] muda por suas intrigas o fim universal do governo fi
“um fim privado, transforma a sua atividade universal em uma obra deste indivi
i s aura no
determinado € perverte a propriedade universal do Estado em patrimônio e ador
da família”, idem.

60 O clamor de Antígo
na
A figura feminina que toma o lugar de Antígona e leva o
traço residual de seu crime, dessa forma, ridiculariza o universal,
transpõe o seu funcionamento é desvaloriza seu significado através da
supervalorização da juventude masculina, lembrando,pois, o amor de
Antígona por Polinices.* Esse amor, entretanto, não pode permanecer
na esfera do parentesco e deve conduzir, em vez disso, ao seu próprio
sacrifício, um sacrifício do filho ao Estado a fim de promover a guerra.
Não é o tabu do incesto que interrompe o amor que os membros da
família sentem um pelo outro, mas sim a ação do Estado, envolvido
com a guerra. A tentativa de perverter, através do feminino, a
universalidade que o Estado representa é, portanto, esmagada por
um movimento contrário do Estado, movimento este que não apenas
interfere na felicidade da família como também convoca a família ao
exercício de sua própria militarização. O Estado recebe da família o
seu exército, e a família encontra sua dissolução no Estado.
Na medida em que estamos agora falando de uma mãe que
sacrifica seu filho para a guerra, já não estamos mais falando de
Antígona, pois ela não é mãe e não tem nenhum filho. Comoalguém que
parece colocar a família em primeiro lugar, Antígona é culpada de um
crime contra o Estado e, mais particularmente, de um individualismo
criminoso. Agindo, portanto, em nome do Estado, a obra de Hegel
suprime Antígona e oferece uma base racional para essa supressão:
“A comunidade [..] só pode se manter suprimindo esse espírito de
individualismo”.

tre da mãe que o trouxe ao mundo, o valor


8 “O valor dofilho está em ser senhor e mes ldadee
ã encontra um homem num nível de igua
do irmão em ser alguém em quem a irm
ha [...] obtém o prazere a dignidade
o valor do jovem em ser alguém através deq!uem fil
erlangt)" (p. 288, p. 353).
de ser esposa [den era die Wiirde der Frauenschaft
nur durch Unterdrickung dieses Geistes der
* [Das Gemeinwesen kann sich aber nidade requer justamente
a comu
Einzelheit erhalten.] Ele também reco nhece que
por “criá-lo” [weil es wesentliches Moment
esse individualismo e, portanto, acaba . criação e supressão
] (p. 288, p- 353, grifo meu) Essa
ist, erzeugt es ihn zwar ebenso

Judith Butler 61
A partir dessa discussão da hostilidade contra o indivíduo e
Hegel
contra a feminilidade como representante da individualidade,
passa a discutir a guerra, isto é, uma forma de hostilidade necessária
para a autodefinição da comunidade.” A mulher antes descrita como
alguém que encontra a promessa de prazer e dignidade na juventude
masculina agora descobre que a juventude vai para a guerra e que
ela é obrigada pelo Estado a enviar seu filho. A agressão necessária
da comunidade contra a feminilidade (seu inimigo interno) parece
ser transformada numa agressão da comunidade contra seu inimigo
externo; o Estadointervém navida da família para promovera guerra. O
valor do jovem combatente é abertamente reconhecido, e, dessa forma,
a comunidade agora o ama, como a mãe o amara. Esse investimento é
assumido pela comunidade na medida em que esta aplaude os filhos
que foram à guerra, um investimento que é entendido como uma
forma de preservar e consolidar o Estado. Se antes ela “pervertia” a
propriedade universal do Estado como uma “posse e propriedade da
família”, o Estado agora reivindica o amor da juventude masculina,
restabelecendo-se como fonte de toda valoração e reconhecimento.
O Estado agora se coloca no lugar da feminilidade, e a figura da
mulher é, ao mesmo tempo, absorvida e descartada, presumida como
pressuposto necessário ao Estado e, também, repudiada como parte
do seu campo próprio de atuação. Dessa maneira, o texto de Hegel
transforma Antígona detal forma que sua criminalidade perdea força
da legalidade alternativa que traz consigo, depois disso Antígona

simultânea ocorre através da operação do que ele chama de uma “atitude repressiva
[unterdrickende Haltung]”, que anima seu objeto como um princípio hostil. AssiD
nãofica claro se Antígonaé, ela mesma, hostil, ou se é obrigadaa sê-lo precisamente
Por conta dessa atitude repressiva. Seja comofor, ela é retratada como “má € a
“No pio
Justamente por sua separação do universal. (Na versão em português:
comunidade só pode se manter através da repressão desseespírito da singularida
L.J,G.W. F. Hegel, Fenomenologia do espírito, op. cit., p. 330).
50 “ e,
A negatividade proeminente na guerra [..] preservao todo”(p. 289).

62 O clamor de Antígo
na
é traduzida novamente segundo os termos de uma feminili
dade
maternal que ela nunca alcança. Finalmente, essa figura
duplamente
deslocada é ela mesma repudiada por um aparato do Estado que
absorve e repudia seu desejo. Independentemente de quem seja, ela é
obviamente, deixada para trás, abandonada em nome da guerra, em
nomeda homossocialidade do desejo do Estado.Defato, essaé à última
referência ao seu nome notexto, um nome querepresentava o conflito
de umalei através de outra, que, agora apagado, foi antes abandonado
que resolvido. A universalidade da ordem ética não a contém; antes,
contém somente o traço do seu amor duplamente expropriado.
Hegel retorna à Antígona na Filosofia do direito, onde deixa
claro queela está associada a um conjunto deleis que são, finalmente,
incompatíveis com lei pública.” “Essa lei”, escreve, “é ali apresentada
como uma lei oposta ao direito público, oposta à lei da terra”?
Hegel também nos diz o seguinte: “se considerarmos a vida ética a
partir de um ponto de vista objetivo, podemos dizer que somos
éticos de modo não autoconsciente” (p. 259). Aqui Antígona aparece
dotada de um inconsciente, quando afirma, na seguinte passagem, a
irrecuperabilidade das origens dalei: “Nem se sabe quando surgiram”

Ali Hegel escreve que “o homem encontra sua verdadeira vida substantiva no
Estado” e que “a mulher(...] encontra seu destino substantivo na família, pois estar
imbuída de devoção familiar corresponde ao seu estado de espírito ético”. Ver Hegels
philosophy of right, trad. de T. M. Knox (London: Oxford University Press, 1967), p.ll4.
Ele toma Antígona, de Sófocles, como uma das “representações mais sublimes dessa
virtude”, uma interpretação, aliás, que Lacan verá como absolutamente equivocada.
mesmo tempo
Essa “lei da mulher” é, para Hegel, a “lei de uma substancialidade ao
uma vida que Had
subjetiva e situada no campo dosentimento, à lei da vida Eta
deuses antigos, 'Os
nãoalcançou sua plena realização”. Refere-se a ela como “a lei dos
sabe em que momento foi pela
deuses do submundo”, “umalei eterna, e nenhum homem
primeira vez formulada” (p. 115, grifo meu).
suprema na ética e, portanto, na
2 A filosofia do direito de Hegel. “Essa é a oposição
nas naturezas contrárias do
tragédia,» e aparece individualizada nessa mesma peça
homem e da mulher” (p.115).

Judith Butler 63
é o verso (455) que Hegel cita. Na tradução de Lloyd-Jones, o verso
é ampliado para enfatizar a animação vital da lei; Antígona di
a Creonte: “Nem eu supunha que tuas ordens tivessem o poder de
superaras leis não escritas, perenes, dos deuses, visto que és mortal.
Pois elas não são de ontem nem de hoje, mas são sempre vivas, nem es
sabe quando surgiram” (450-456).
Hegel claramente identificou a lei pela qual Antígonafala como
a lei não escrita dos deuses antigos, uma lei que aparece somente por
meio de um traço ativo. Com efeito, que tipo delei seria essa? Umale;
para a qual nenhuma origem pode ser encontrada, umalei cujo traço
não pode assumir forma alguma, cuja autoridade não é diretamente
comunicável através da linguagem escrita. Se fosse comunicável, essa
lei surgiria através do discurso, porém um discurso que não podeser
falado a partir de um roteiro e que, portanto, certamente não seria o
discurso de uma peça, a menos que a peça se refira a uma legalidade,
por assim dizer, anterior ao seu próprio momento de enunciação, a
menos que a peça cometa um crime contra essa legalidade justamente
ao anunciá-la. Assim,a figura dessa outralei questionaa literalidadeda
peça Antígona: nenhumapalavra dessa peça nos dará acesso a essalei,
nenhuma palavra dessa peça enumerará os detalhes dessa lei. Como,
pois, será ela particularizada?
Essalei, assim nos dizem, está em oposição à lei pública; como
o inconsciente da lei pública, ela é aquilo do qual o direito público não
pode prescindir, a que este, de fato, deve se opor e sustentar com certa
hostilidade necessária. Dessa forma, Hegelcita a palavra de Antígona.
uma citação que, ao mesmo tempo, sustenta Antígona e a expulsa €
na qual ela se refere ao estatuto não escrito e inesgotável dessas Ea
Asleis de que ela fala são, estritamente falando, anteriores à escritd
ainda não registradas ou registráveis no campo da escrita. Elas não
são inteiramente conhecíveis, mas o Estado as conhece 0 suficiente A
ponto de opor-se a elas violentamente. Embora essas leis não esteja”
escritas, Antígona mesmoassim fala em seu nome,e, desse modo,elas

64 O clamor de Antígona
surgem apenas em formade catacrese queserve de condição anterior
limite para à codificação escrita. Elas não são radicalmente
autônomas,ê
pois já foram tomadas pela lei escrita e pública como aquilo que deve
ser contido, subordinado e confrontado. E, no entanto, isso será
praticamente impossível, talvez por conta da referência catacrética
à lei não escrita e inescrevível em formade discurso dramático e, de
fato, no próprio roteiro de Sófocles que alude a essa condição não
codificável e excessiva da lei pública. A lei pública, entretanto, na
medida em quese opõe à condição não pública e não publicávelde seu
próprio surgimento, reproduz exatamente o excesso que busca conter.
Hegel acompanha o ato de Antígona, porém não seu
discurso, talvez porque esse discurso seria impossível se ela tivesse
que representar a lei irrepresentável. Se o que ela representa é
precisamente o que permanece inconsciente na lei pública, então,
para Hegel, ela existe no limite do que é publicamente conhecível e
codificável. Embora isso, por vezes, seja assinalado por Hegel como
exatamente outra lei, também é reconhecido como uma lei que deixa
somente um traço incomunicável, um enigma de uma outra ordem
possível. Se Antígona “é” alguma coisa, ela é o inconsciente da lei,
aquilo que é pressuposto pela realidade pública, mas que não pode
aparecer segundo seus termos.
Hegel não só aceita seu desaparecimento fatal da cena pública,
como também ajuda a conduzi-la para fora da cena e para a sua tumba
viva. Ele não explica, por exemplo, como que ela a Jo aparece,
através de que apropriação indevida do discurso público ó seu ato
passa a ser reconhecido como um ato público. Será que a lei nãorescrita
eits
cr o.
re es cr ev er a le i
i pú bl
púb ic
li a? Se ráá que o aii nda nãão es
tem o poder de nsurabitt a
ou aquilo que nunca será escrito, constitui uma income
invariável entre as duas esferas? pedia
po
pr de
nto o
parece um crime
Do mesmo modo como aquilo que
o Marca
vista soberano de Creontee, a rigor, a partir da a
si uma demanda inconsciente,
de Hegel, pode conter em

Judith Butler 65
versal, é possível
os limites tanto da autoridade soberana quanto uni
reler a “fatalidade”de Antígona a partir da tentativa de saber se 0 limite
queela representa, um limite paro qual nenhuma Posição, nenhuma
ço de
representação traduzível é possível, não seria justamente O tra
umalegalidade alternativa que assombra a esfera pública, consciente,
como o seu futuro escandaloso.
Poderíamos esperar que a passagem para Lacan fosse o início
de uma consideração mais sutil e promissora do inconsciente, porém
gostaria de sugerir que a sua leitura também localiza a fatalidade de
Antígona segundo os termos dos limites necessários do parentesco.
A lei que comanda a sua impossibilidade de viver não é umalei que
pode ser proveitosamente quebrada. E se Hegel acaba representando
a lei do Estado, Lacan emprega a aparente perversão de Antígona para
confirmar umalei intratável do parentesco.
Lacan tomará uma distância radical de Hegel, rejeitando a
oposição entre lei humanae divina, concentrando-se, em vez disso, no
conflito interno de um desejo que só pode encontrar o seu limite na
morte. Antígona,ele escreve, localiza-se no “limiar” do simbólico, mas
como devemos entender esse limite? Não é umatransição, suplantada
e retida no movimento adiante do Espírito. Sendo, ao mesmo tempo, o
fora, a entrada, o limite sem o qual o simbólico não podeser pensado.
ele permanece, no entanto, impensável dentro do simbólico. Nolimiar
do simbólico, Antígona aparece como uma figura que inaugura à
sua operação. Mas onde precisamente fica esse limiar, essa entrada?
As leis não escritas e infalíveis a que Antígona se refere, e que Hegel
identifica comoa lei do feminino, não são as mesmas leis do domínio
simbólico, e o simbólico não é bem o mesmo quea lei pública. Seriam
essas leis sem origem clara e de autorização incerta algo como ums
ordem simbólica, um simbólico ou imaginário alternativo no sentido
irigaraiano, que constitui o inconsciente da lei pública, à condição
feminina desconhecida de sua possibilidade?

66 O clamor de Antígona
Antes de considerar a resposta de Lacan
Para essa questão,
gostaria de reconsiderar por um instante a sua versão da ordem
simbólica, para talvez propor umasérie de revisões ao breve
relato que
ofereci no último capítulo.
Em seu segundo seminário, Lacan oferece,
através do título “
universo simbólico ruma conversa comJean Hyppolite e Octave Mannoni
sobre a obra de Lévi-Strauss, especificamente acerca da distinção entre
naturezae símbolo. Lacan mostra a importância do simbólico na
obra de
Lévi-Strausse, assim, esclarece sua própria dívida para com Lévi-Strauss
no que diz respeito à teorização da ordem simbólica. À conversa começa
com Lacan resgatando o ponto de vista de Lévi-Strauss: o parentesco
e a família não podem derivar de causas naturais, e nem mesmoo tabu
do incesto é biologicamente motivado.” A seguir, ele pergunta: de onde
surgem, então, as estruturas elementares do parentesco? No fim de As
estruturas elementares do parentesco, a troca de mulheres é considerada
como o tráfego de um signo, a moedalinguística que facilita um laço
simbólico e comunicativo entre os homens. A troca de mulheres é
comparada à troca de palavras, e esse circuito linguístico particular
torna-se a base para repensar o parentesco a partir das estruturas
linguísticas, cuja totalidade é chamada de simbólico. Dentro dessa
compreensão estruturalista do simbólico, todo signo invoca a totalidade
da ordem simbólica em que funciona. O parentesco deixa deser pensado
em termos de relações de sangue, ou acordos sociais naturalizados, e
passa a ser o efeito de um conjunto de relações linguísticas em que cada
termo tem significado, sempre e somente, em função de outros termos.
Tomando este como um momento importante, Lacan enfatiza
de uma biologia
que o parentesco aparece não mais como função

O q
maue
sé mi na ir e, liv reI I:Ê le mo ii da ns la th éo ri e de Freud et dans latechniq
Jacques Lacan, Le minaire, li
!de la psychanalyse, 1954-1955 (Paris: Éditions du Se uil, 1978), p. 42; pro dg)E

Lacan, book II: the ego in Freud's theory andin the techniqueda do rtó. 1988), p-29.
s- Al ai n Mi ll er ,tr ad . de Sy lv ana Tomaselli (New York:
ed. Jacque
67
Judith Butler
naturalista: “Na ordem humana, estamos lidando com o Surgimento
completo de uma nova função, compreendendo toda a ordem humana
em sua completude [à lémergence totale englobant tout Tordre
humain dans sa totalité - d'une fonction nouvelle)” (p. 29, p, 42).
Apesar da teorização que Lévi-Strauss faz do simbólico ser nova, a
função simbólica já está sempre lá, ou melhor, provoca Precisamente
o efeito de estabelecer-se sub specie aeternitatis. A rigor, Lacan escreve
sobre o simbólico de formatal que sugere uma convergência com a le;
não escrita de Antígona, cujas origens são similarmente inumanas e
indiscerníveis: “A função simbólica não é nova enquanto uma função,
ela tem seus começos em lugar que não pertence [amorces ailleurs)
à ordem humana, mas estes são apenas começos [il ne sagit que
d'amorces]. A ordem humana caracteriza-se pelo fato de que a função
simbólica intervém a todo instante e em cada etapa [le degrés] de sua
existência” (p. 29, p. 42).
Tal como as leis não escritas de Antígona, aquelas que, de
acordo com Hegel, aparecem como divinas e subjetivas, governando a
estrutura feminina da família, essasleis não são codificáveis, porém são
entendidas fundamentalmente como “ligadas a um processo circular
da troca de discurso”. “Há”, Lacan nosdiz numa passagem posterior do
seminário, “um circuito simbólico externo ao sujeito, ligado a um certo
grupo de suportes, de agentes humanos, em que o sujeito, o pequeno
círculo que se chama seu destino, está indeterminavelmente incluído”
(p. 98).Esses signos viajam porseu circuito, são falados por sujeitos,
porém nãosão originados pelos sujeitos que os falam. Eles chegam, por
assim dizer, comoo “discurso do outro [que] é o discurso docircuito
ao qual estou integrado” (p. 89). Sobre o simbólico, Lacan nos diz O
seguinteno ensaio “O circuito”: “Sou um de seuselosfun des chainons).
E o discurso do meu pai, por exemplo, na medida em que meu pà!

E (1 y a un cir
.
cui.t symbolique extérieur au sujet, le petit cercle qu
"on appelle SO
est indéfiniment inclus.) Le sémi
P
estin,
naire II, p. 123.

68 O clamor de Antí
go na
cometeu erros que estou absolutamente condenadoa reproduzir
- isso
é oque chamamos de tuperago (p. 89, p. 112).
Dessa forma, o circuito do simbólico é identificado com a
palavra do pai ecoando no ujiia, dividindoa sua temporalidade entre
um outro lugar irrecuperável e o tempo de sua enunciação presente.
Lacan compreende essa doação simbólica como uma exigência e uma
obrigação: “E justamente minha obrigação transmitir [a cadeia do
discurso] em forma aberrante a uma outra pessoa [Je suis justement
chargé de la transmettre dans sa forme aberrante à quelqu'un d'autre)”
(p. 89, p. 112).
Significativamente, o sujeito não pode ser identificado com o
simbólico, pois o circuito simbólico sempre é, até certo ponto, externo
ao sujeito. E, no entanto, não há como escapar do simbólico. Isso leva
Hyppolite a queixar-se diretamente a Lacan: “A função simbólica é,
para você, se entendo corretamente, uma função transcendental [une
fonction de transcendance], no sentido de que, de modo simultâneo,
não podemos nem permanecer nela, nem sair dela. A que propósito ela
serve? Não podemos viver sem ela, mas tampouco podemos habitá-
la” (p. 38, p. 51). A resposta de Lacan reafirma o queele já dissera e,
portanto, exibe a função repetitiva da lei: “Se a função simbólica
funciona, estamos dentro dela. E digo mais - estamos de tal forma
dentro dela que já não podemos deixá-la. [Je dirai plus - nous sommes
tellement à Vintérieur que nous ne pouvons en sortir]” (p. 31, p. 43).
E, contudo, não será correto afirmar que estamos plenamente
“dentro” ou “fora” dessa lei simbólica: para Lacan, “a ordem simbólica
é o quehá de mais elevado no homem e o que não está no homem, mas
em outro lugar” (p. 116). Como um outro lugar permanente que está
“no” homem, o simbólico descentra o sujeito que ele cria. Mas qual
é o estatuto desse outro lugar? Um outro lugar à ordem humana, o
simbólico não é, portanto, precisamente divino. Mas consideremos
como umaqualificação para esta última recusa O próprio medo de Lévi-
Strauss, relatado por Lacan, de que ele possa estar conduzindo Deus

Judith Butler 69
para fora, por uma porta, apenas para fazê-lo reentrar por outra. Lacan
enfatiza, em vez disso, que o simbólico é, ao mesmo tempo, universal e
contingente, reforçando uma aparência de sua universalidade, porém
sem possuir comando algum fora de si que possa servir como uma
base transcendental para o seu próprio funcionamento. Sua função é
transcendentalizar suas reivindicações, mas isso não é o mesmo que
dizer que ele tem ou mantém uma basetranscendental. O efeito de
transcendentalidade é um efeito da própria reivindicação.
Naspalavras de Lacan: “Essa ordem constitui uma totalidade...
a ordem simbólica então assume o seu caráter universal”. E mais
adiante: “Tão logo o símbolo surge, há um universo de símbolos” (p.
29). Isso não significa dizer que o simbólico é universal no sentido
de ser universalmente válido o tempo todo, mas somente que, toda
vez que ele aparece, aparece como umafunção universalizante; ele se
refere a uma cadeia de signos através dos quais deriva o seu próprio
poder de significação. Lacan observa que as agências simbólicas
atravessam as diferenças entre as sociedades como a estrutura
de um inconsciente radicalmente irredutível à vida social% De
forma similar, Lacan dirá que o complexo de Édipo, uma estrutura
do simbólico, é tanto universal quanto contingente precisamente
“porque é única e exclusivamente simbólico”: ele representa o que
não podeser, estritamente falando, o que foi liberado de ser em seu
estatuto como uma substituição linguística para o ontologicamente
dado. Ele não captura ou apresenta seu objeto. Esse objeto furtivo
€ ausente, no entanto, só se torna inteligível ao aparecer, deslocado,
nas substituições que constituem os termos simbólicos. O simbólico
pode ser compreendido como certo tipo de tumba que não extingue
o
É “Isso não é nada mais, nada
menos do que aquilo que é
inconsciente tal como o desc pressuposto E
obrimos e manipulamos na análise” (Semin
Aquinãosetrata de dizer simplesmente que o si ar II, p- és
mbólico funciona como O iconsçieA
mas que o simbólico é precisamen
te O que o inconsciente pressupõ
e.

70 O clamor de Antígo
na
precisamente O que, contudo, permanece vivendentro
do e preso aos sSeus
do inteli
termos,um local onde Antígona, já semimorta
Eni
é condenada a não sobreviver. Segundo essa leitura, o
portanto, captura Antígona e, embora ela cometa o suicídio a
tumba, ainda resta a questão de saber se ela pode ou não significar de
uma forma que exceda o alcance do simbólico.
Embora a teorização do simbólico em Lacan tenha o intu
ito
de tomar o lugar dos relatos de parentesco baseados na natureza ou
na teologia, ela continua sustentando a força da universalidade. Sua
“contingência” descreve a maneira como o simbólico permanece
incomensurável a partir de qualquersujeito que habite seus termos, e a
falta de qualquer fundamento transcendentalfinal paraa sua operação.
De modo algum, porém, o efeito universalizante de sua própria
operação é questionado aqui pela afirmação da contingência. Assim,
as estruturas do parentesco, como simbólicas, continuam produzindo
um efeito universalizante. Sob essas condições, como que o próprio
efeito de universalidade pode ser apresentado como contingente,
menos determinado, reescrito e sujeito à transformação?
Para que o complexo de Édipo seja universal em virtude de
ser simbólico, segundo Lacan, não é necessário que seja globalmente
comprovado para ser visto como universal. O problema não é que o
simbólico representa um falso universal. Pelo contrário, onde e quando
o complexo de Édipo aparece, exerce a função de universalização:
ele aparece como aquilo que é sempre verdadeiro. Nesse sentido, ele
não é um universal concretamente realizado ou realizável; sua falha
de realização é precisamente o que sustenta sua condição como uma
possibilidade universal. Nenhuma exceção pode questionar essa
universalidade precisamente porque O simbólico não depende de
universalizante
uma instanciação empírica para provar sua função
(essa função permanece radicalmente não fundamentada e PRESS,
contingente nesse sentido restrito). Com efeito, sua particulanização
seria a sua ruína.

Judith Butler 71
Masserá que esse entendimento da universalização trabalha
para reintroduzir Deus (ou os deuses) pela outra porta? Se o complexo
de Édipo não é universal de um modo, mas permanece Universal de
outro, será que importa, enfim, de que modo ele é universal, se o
efeito é o mesmo? Observe que o sentido em que o tabu do incesto
é “contingente” é precisamente aquele do “não fundamentado”,
mas o que resulta dessa falta de fundamento? Disso não resulta
a
ideia de que o próprio tabu possa aparecer como radicalmente
alterável, ou, de fato, eliminável; pelo contrário, na medida em
que aparece, aparece em uma forma universal. Essa contingência,
pois, um não fundamento quese torna a condição de uma apariçã
o
universalizante, é radicalmente distinta de uma contingência
que
estabelece a variabilidade e a operação cultural limitada
de uma tal
regra ou norma qualquer.
A fala de Lacan sobre Antígona ocorre dentro da questão
da
ética no Seminário VII Ele vinha discutindo o problema
do bem
como uma categoria central à ética e à comodificação. “Como
é que,
no momento em que tudo é organizado em torno do poder
defazer
o bem, algo completamente enigmático se insinua para nós
e a nós
retorna ininterruptamente a partir de nossa própria
ação como sua
consequência desconhecida?” (F, p. 275, minha tradução).
Hegel, ele
escreve, “nunca é mais fraco do que quando aborda a esfera da poética,
e isso é especialmente verdadeiro acerca do que tem a dizer sobre
Antígona”(E, p. 249). Ele comete um erro na Fenomenologia ao afirmar
que Antígona revela uma“clara oposição [...] entre o discurso da família
e o do Estado. Mas, a meu ver, as coisas são bem menos claras”
(p. 236).
Defendendoa leitura de Goethe, Lacan insiste que “Creonte [não]
está em oposição à Antígona como um princípio dalei, do discurso,
=D
* Leséminaire, livre VI
I: Véthi, que de la psychanalyse(Paris: Éditions du Seuil, aoE
seminar of Jacques Laca
n, book VII: the ethics of psychoanalysis, ed. Jacques
trad. de Dennis Porter -Alain
( New
York: Norton, 1992).

72 O clamor de Antí
gona
oposto à outro [...] Goethe mostra que Creonte é conduzido por seu
correto [..] ele e
desejo e claramente se desvia do caminho
própr destr uição [il court à sa perte) ”(p. 254 o ao
encontro de sua ia
a preo cupa ção de Laca n com a a pa
De certo modo ,
respeito justamente a essa pressa em destruir-se a si dadaa pressa
fatal que estrutura tanto a ação de Creonte como a de Antígona.
Assim, Lacan situa meramente a problemática de Antígona como uma
dificuldade interna do “desejo de fazer o bem”, o desejo de viver em
conformidade com uma norma ética. Algo invariavelmente surge na
própria trajetória do desejo que parece enigmático ou misterioso
do ponto de vista consciente que está orientado para o exercício do
bem: “Na margem irredutível, assim como no limite do seu próprio
bem,o sujeito revela-se ao mistério nunca inteiramente resolvido da
natureza do seu desejo [le sujet se révêle au mystêre irrésolu de ce
qu'est son désir]” (p. 237, p. 278). Lacan relaciona Antígona à noção
do belo, sugerindo que este nem sempre é compatível com o desejo
do bem, sustentando também que ele nos seduz e fascina graças ao
seu aspecto enigmático. Antígona surgirá, então, para Lacan, como
um problema do belo, da fascinação e da morte, como precisamente
o quese interpõe ao desejo do bem, ao desejo de conformar à norma
caminho. Não se
ética, e assim o desvia, enigmaticamente, do seu
ou princípio e
trata, portanto, de uma oposição entre um discurso
entre a famíl ia e a comu nida de, mas de um conflito interno e
outro,
do desejo ético.
constitutivo da operação do desejo e, em particular,
n qu es ti on a a ins ist ênc ia de He ge l em afirmar que à peça
Laca
o a um a “r ec on ci li aç ão ” de doi s princípios (p. 249).
segue em direçã morte que apa no
ixa de considerar a pulsão de
Hegel, portanto, de
de fe nd e o ar gu me nt o de que não E
desejo. Lacan repetidamente os sa gr ad os dos mortos e da
en te da de fe sa do s dir eit
trata simplesm à rar
a da pa ix ão qu e co nd uz
família”, mas sim da trajetóri e a pa ix ão fatal é finalmen
a re fl ex ão so br
Mas aqui ele sugere que pe lo pa re nt es co . Se rii a es sa sepa raçção -
stos
separável dos limites impo
Judith Butler 73
possível, considerando o espectro da paixão incestuosa, e será que
qualquer teorização do simbólico ou de sua inauguração seria
finalmente separável da questão do parentesco e da família? Afinal
de contas, vimos no Seminário II como a própria noção dosimbólico
deriva da sualeitura de Lévi-Strauss sobre as estruturas elementares
do parentesco e, em particular, sobre a figura da mulher como um
objeto linguístico de troca. A rigor, Lacan relata que havia pedido
a Lévi-Strauss que relesse Antígona a fim de confirmar que a peça
remete ao início da própria cultura (p. 285).
No entanto, Antígona é abordada por Lacan primeiro como
uma imagem fascinante, depois em relação ao problema da pulsão de
morte no masoquismo. Em relação ao último, contudo, Lacan sugere
que as leis não escritas e infalíveis, anteriores a toda codificação, são
aquelas que marcam o ponto mais distante de um limite simbólico,
para além do qual os seres humanos não podem passar. Antígona
aparece nesse limite, ou, de fato, como esse limite, e grande parte das
discussões posteriores de Lacan focaliza o termo Atê, entendido como
o limite da existência humana que só pode ser atravessado de forma
breve durante a vida.
Antígona já está a serviço da morte, morta em vida,e, portanto,
parece ter passado de certo modo para uma morte que ainda precisa
ser compreendida. Lacan entende a sua obstinação como uma
manifestação dessa pulsão de morte, unindo-se ao coro ao chamá-la
de “desumana” (p. 263) em relação a Ismene, e ela claramente não é
a única a “pertencer” a esse campo anterior e não escrito: Creonte
deseja promover o bem de todos comoa lei sem limites (p. 259), mas.
durante o processo de aplicação da lei, excede a lei, baseando a sua
autoridade também em leis não escritas que parecem conduzir suas
ações à autodestruição. Tirésias a princípio também fala precisamente
a partir desse lugar que não “pertence” exatamente à vida: sua voz
e não é sua, suas palavras vêm dos deuses, do garoto que descreve ns
signos, das palavras que recebe de outros,e, ainda assim,é ele quem

74 O clamor de Antígona
da de t a m b é m p a r ece vir de al
fala. Sua autori gum outro luga
à s p a l
dnão
guÉémhumano. Sua fala sobre as palavras divi nas O estabele es que
para quem a m imese implica uma di ce como
visão e uma perda de
autonomia; ela o liga ao Dipo de fala que Creonte realiza ao afirmar
a sua autoridade para além doslaços codificáveis. Seu discurso não
apenas vem de um lugar que não pertence à vida
humana, como
também anuncia ou produz - ou, antes, transmite um retorno a -
uma outra morte, a segunda morte que Lacan identifica como o fim
de todas as transformações, naturais ou históricas.
Lacan claramente relaciona Antígona a Sacher-Masoch e Sade
neste momento do seminário: “A análise mostra com clareza que o
sujeito separa um duplo de si que se torna inacessível à destruição, de
modo a fazê-lo suportar aquilo que, tomando emprestado um termo
do campo da estética, não podemos deixar de chamardejogo da dor”.
A tortura estabelece a indestrutibilidade tanto para Antígona quanto
para Sade. O apoio indestrutível torna-se a ocasião para a produção de
formase, desse modo, a condição da própria estética. Nas palavras de
Lacan, “O objeto [no fantasma sadiano] não é nada além do que o poder
de sustentar uma forma de sofrimento” (p. 261) e, portanto, torna-se
uma forma de persistência que sobrevive a tentativas de destruí-lo.
Essa persistência parece relacionar-se com o que Lacan, de modo
spinoziano, chama de puro Ser.
A discussão de Lacan sobre Antígona no Seminário VII se
e
desenrola de modo metonímico, identificando primeiro à forma
sobre qrdaco
a peça força uma revisão da teoria de Aristóteles
sugere que Antígona de fato envolve a purgação — ouário,expconduz ,simà
contudo, conduzir à restauração da cal ma;5 ao ane cdi
2 . 5 ta mais especl ,
continuidade da irresolução. Ele pergun purgação contínua
: sa
a “imagem” de Antígona (p. 248) em peaço ds uilo que pertence à
e a define como uma imagem que purifica pad pro fundamental
consideração da
ordem do imaginário (p. 248). Essa mesma aro
de Antígona conduz metonimicamente 2
Judith Butler 75
“segunda morte”, que Lacan descreve como anuladora das condições
da primeira morte, a saber, O ciclo de morte e vida. A segunda morte é,
pois, aquela para a qual não há um ciclo redentor, depois da qual não
há nascimentos: essa será a morte de Antígona, mas, de acordo com o
seu solilóquio, terá sido a morte de todos os membrosde sua família,
Mais tarde, Lacan identifica essa segunda morte com “o próprio Ser”
tomando emprestada do léxico heideggeriano a letra inicial maiúscula.
A imagem de Antígona, a imagem da irresolução, a imagem irresoluta,
é a posição do próprio Ser.
Antes ainda nessa página,entretanto, Lacan relaciona essa mesma
imagem à “ação trágica”, que, segundo seus argumentos posteriores,
articula a posição do Ser como um limite. Significativamente, esse
limite também é descrito em termos de uma irresolução constitutiva,
a saber, “ser enterrado vivo numa tumba”. Mais tarde, ele nos oferece
uma outra linguagem para entendermos essa imagem sem resolução,
a do motor imóvel (p. 252). Essa imagem princípio também “fascina”
e exerce um efeito sobre o desejo - uma imagem que, no final de “O
esplendor de Antígona”, passará a ser constitutiva do próprio desejo.
Noteatro, assistimos àqueles que são enterrados vivos numa tumba,
assistimos ao movimento dos mortos, assistimos com fascínio à
animação do inanimado.
Parece que a coincidência insolúvel da vida e da morte na
imagem, a imagem que Antígona exemplifica sem esgotar, é também
aquilo que se entende por “limite” e “posição do Ser”. Esse é um limite
que não é precisamente concebível em vida, mas que age durante a vida
comoo limite que os vivos não podem cruzar, um limite que constitui
e nega a vida, simultaneamente.
Quando Lacan argumenta que Antígona fascina enquanto
imagem e queela é “bela”(p. 260), ele está chamando atençãoparaessa
coincidência simultânea e irresoluta da vida e da morte que Antígona
acentua parao seu público.Ela está morrendo, porém permanece viva:
€ assim significa o limite queé a morte (final). Lacan volta-se para Sade

76 O clamor de Antigona
tassio

nessa discussão à fim Ni deixar claro que o ponto nulo, o “começar


novamente do zero”, é o que ocasiona a produção e rep ro
dução de
formas; é um “substrato que torna o sofrimento suportável
de si” que oferece o apoio para a dor (p. [...] o duplo
261). Novamente, na próxima
página, Lacan torna isso claro ao delinear as condições
de resistência,
descrevendo a característica constitutiva dessa imagem como “olimite
em que um ser permanece num estado de sofrimento” (p. 262).
Assim, Lacan busca mostrar que Antígona não
pode ser
finalmente compreendida à luz dos legados históricos a partir
dos
quais surge, mas sim como quem afirma “um direito que nasce do
caráter indelével daquilo que é” (p. 279). E isso o conduz à conclusão
controversa de que “a separação do ser das características do drama
histórico que ele vivenciou é precisamente o limite ou o ex nihilo ao
qual Antígona está ligada” (p. 279). Aqui, novamente, pode-se muito
bem perguntar como que o drama histórico que ela vivenciou a faz
retornar não somente a essa persistente indelebilidade do que é, masà
perspectiva certa da delebilidade. Ao separar o drama histórico queela
vivencia da verdade metafísica que exemplifica para nós, Lacan deixa
de perguntar como certos tipos de vida, justamente por conta dos
dramas históricos que são seus, são relegados aoslimites do indelével.
Tal como outros personagens de Sófocles, os personagens de
Antígona localizam-se, para Lacan, “num limite que não é reconhecido
porsua solidão em relação aos outros” (p. 272). Eles não estão apenas
separados uns dos outros, ou, de fato, separados uns dos outros em
relação ao efeito singularizante da finitude. Há algo mais: eles são
Personagens que se encontram “de imediato numa zona limítrofe,
que se encontram entre a vida e a morte” (p. 272), concebida Por
Lacan através de uma palavra hifenizada: “entre-la-vie-et-la-mort e
P. 317). Diferentemente de Hegel, Lacan entende que O Fcurag a
O qual Antígona age é significativamente ambíguo, Aa
Teivindicação cujo estatuto não está em oposição clara à as leia
de Creonte. Em primeiro lugar, ela está apelando tan!

judithButler 77
terra quanto aos mandamentos dos deuses (p. 276), eseu discurso, da
mesma forma, vacila entre ambos. Ela busca distinguir-se de Creonte,
masserá que seus desejos são tão diferentes? De forma similar, 8 coro
procura dissociar-se do que Lacan chama de deseja do outro”, mas
percebe que essa separação é finalmente impossível. Tanto Creonte
quanto Antígona, em momentos distintos, argumentam que os deuses
estão do seu lado: Creonte estabelece asleis da cidade com referência
aos decretos dos deuses; Antígona cita os deuses ctônicos como sua
autoridade. Será que eles recorrem aos mesmosdeuses, e quetipo de
deuses são esses, quais estragos provocam, umavez que tanto Antígona
quanto Creonte creem estar dentro do circuito de seu mandato?
Para Lacan, recorrer aos deuses é precisamente buscar recursos
para além da vida humana, recorrer à morte e instalar essa morte na
vida; esse modode recorrer àquilo que está além ou antes do simbólico
conduz a uma autodestruição que tornaliteral a entrada da morte na
vida. É comose a própria invocação desse outro lugar impulsionasse
o desejo em direção à morte, uma segunda morte, quesignifica o fim
de qualquer transformação posterior. Antígona, em particular, “viola
Os limites da Atê através do seu desejo”(p. 277). Se esse é um limite que
os humanos só podem cruzar de forma momentânea, ou melhor,
não
podem cruzar por muito tempo,”trata-se de um limite que Antígona
não apenas cruzou, masalém do qual permaneceu por muito tempo. Ela
ultrapassou o limite, desafiandoa lei pública, citando umalei de outro
lugar, mas esse outro lugar é uma morte que também é solicitada
por
essa própriacitação. Ela age, mas age segundo um comando de morte,
que retornaa ela ao destruir a condição contínua da possibilidade do
seu próprio ato, seu ato finalmente insuportável.
Naspalavras de Lacan: “O limite em questão é aquele em quê
Antígonase estabelece, um lugar onde ela se sente inalcançável,
lugar

” 4 désignela li
mite que la (Le
SéminaireII, p. 305). vie humaine ne saurait trop longtemps
franchir

78 O clamor de An
tígona
Nisso

onde é impossível que um mortal ultrapasse as leis. Es


tas já não são
mais leis, mas uma certa begin quaé uma consequência dasleis
dos
deuses que são tomadas como... nãoescritas [...] umainvocação de algo que
é com efeito, da ordem da lei, mas que não está
desenvolvido em nenhuma
cadeia significante ou em qualquer outra coisa
[dans rien)” (p. 278, p.
324, grifo meu). Assim, Antígona não se estab
elece no simbólico, e
essas leis não escritas e que não podem ser escritas não são o mesmo
que o simbólico, o circuito de troca dentro do qual o sujeito se
encontra. Embora Lacan identifique esse movimento de pulsão de
morte, interno ao desejo, como o que finalmente a leva para fora do
simbólico, condição para uma vida suportável, é curioso notar que
o que a move através da barreira para a cena da morte é justamente
a maldição de seu pai, as palavras do pai, os próprios termos com
que Lacan define anteriormente o simbólico: “O discurso do meu pai,
por exemplo, na medida em que meu pai cometeu erros que estou
absolutamente condenado a reproduzir - isso é o que chamamos
de superego”. Se a demanda ou o dever imposto pelo simbólico é o
de “transmitir a cadeia de discurso em forma aberrante a uma outra
pessoa” (Seminário II,p. 89), então Antígona transmite essa cadeia, mas
também, de forma importante, ao obedecer à maldição lançada sobre
si, estaciona a operação futura dessa cadeia.
Embora Antígona opere segundo os termos da lei quando
reivindica a justiça, ela também destrói base da justiça em comunidade
ao insistir que seu irmãoé irredutível a qualquer lei que possa tornar “
cidadãos intercambiáveis entre si. Aoafirmar a particularidade radic N
do irmão, este passa a representar um escândalo, uma ameaça de ruin:
Para a universalidade dalei. itir que o amor que
De certo modo, Antígona se nega a permitl hora que exija
sente pelo irmão seja assimilado a uma ordem o lado do signo
a comunicabilidade do signo.. Ao permanecersubmeter seu à mor à
incomunicável, da lei não escrita,ela se asi que a linguagem
cadeia de significação, à vida de substituiblt
judithButter 79
inaugura. Segundo Lacan,ela representa “o enrátee indelével daquilo
que é”(p. 279). Maso queé,sob a lei do simbólico, é justamenteo queé
evacuado através do surgimento do signo. O retorno a uma ontologia
indelével, pré-linguística, está, pois, associado em Lacan com um
retorno à mortee, de fato, com uma pulsão de morte (referencialidade
aqui figurada como morte).
Mas considere que, pace Lacan, Antígona, ao posicionar-se a
favor de Polinices e de seu amor porele, não representa simplesmente
o caráter indelével daquilo que é. Em primeiro lugar, é o corpo
exposto de seu irmão que ela busca cobrir, se não apagar, com seu
enterro de pó. Em segundo, parece que uma das razões pelas quais
o posicionamento em favor do irmão a implica numa vida em morte
é que seu gesto revoga precisamente as relações de parentesco que
articulam o simbólico lacaniano, as condições inteligíveis paraa vida.
Ela não se limita a adentrar a morte abandonando os laços simbólicos
da comunidade para recuperar uma ontologia impossível e pura do
irmão. O que Lacan omite nesse momento, manifestando talvez sua
própria cegueira, é que ela sofre uma condenação fatal em virtude da
revogação do tabu do incesto que articula o parentesco e o simbólico.
Isso não querdizer que o conteúdo puro do irmão é irrecuperável a
partir de sua articulação simbólica, mas sim que o próprio simbólico
encontra-se limitado por suas proibições constitutivas.
Lacan encerra o problema em termos de umarelação inversa entre
o simbólico e uma ontologia pura: “A posição de Antígona representa
O limite radical que afirma o valor único da existência do irmão sem
referenciar a conteúdo algum, sem remeter a qualquer bem ou mal Ejs
Polinices possa terfeito, ou a qualquer coisa à qual possa estar sujeito .

e
s8 :
E éA a li
.
nguagem que lhe confere o ser: “Antí4
Pura e simples do ser hu
gona aparece |...) como uma eagoo
a
mano com aquilo que ele acaba mi
saber,o corte significante que lhe confere o po raculosamente portardo
der indômito deser o queé frente à
que se lhep
ossa opor” (Seminar VII, p. 282, grifo
meu).

8o O clamor de Antígona
Mas essa análise esquece que ela também está cometendo um crime,
não apenas O crime de desafiar o decreto do Estado, mas o de levar
seu amor pelo irmão longe demais. É o próprio Lacan, portanto, quem
separa Polinices do “dramahistórico que ele vivenciou”, generalizando
os efeitosfatais dessa proibição como “a quebra quea própria presença
da linguagem inaugura na vida do homem”,
O que aqui parece esquecido, enterrado ou encoberto é
justamente a relação que Lacan antes estabelecera entre o simbólico
e Lévi-Strauss, além da questão de ser ou não esse simbólico uma
“totalidade”, conforme Lévi-Strauss afirmou e Hyppolite temeu.Se,tal
como Lacan argumenta, Antígona representa um tipo de pensamento
que se opõe ao simbólico e, portanto, se opõe à vida, talvez isso
ocorra justamente porque os próprios termos da viabilidade da vida
encontram-se estabelecidos por um simbólico que é desafiado pelo
tipo de reivindicação que ela faz. E essa reivindicação não ocorre fora
do simbólico ou, de fato, fora da esfera pública, mas sim segundo seus
termos e como uma apropriação e perversão não antecipada do seu
próprio mandato.
A maldição do pai é, de fato, como Lacan define o simbólico,
a obrigação dos descendentes de dar continuidade, em suas próprias
direçõesaberrantes, às palavras do pai. As palavras dopai, as enunciações
inaugurais da maldição simbólica, conectam seus filhos de umasó vez.
toma
Essas palavras tornam-se O circuito no qual o desejo de Antígona
forma, e embora ela esteja irremediavelmente presa a tais palavras,
a
estas não chegam a capturá-la de todo. Será que essas palavras não
condenam à morte, uma vez que Edipo afirma que teria sido melhor
palavras que a
que seus filhos nem tivessem vivido, ou é a fuga dessas
conduz à inviabilidade de um desejo fora da inteligibilidade cultural?
está estruturado
Se o simbólico é governado pelas palavras do pai e
sobre um parentesco que assumiu a forma de estrutura linguística,
o desejo de Antígonaaali insustentável, então por
, que
permanecendo
queé algumacaracterística imanente do seu desejo que
Lacan defende

Judith Butler 81
a conduz inexoravelmente à morte? Não seriam justamente Oslimites
do parentesco que estariam registrados tamo a insustentabilidade do
desejo, que conduz o desejo em direção à morte?
Lacan reconhece que há aqui um limite, mas este será o limite
da própria cultura, um limite necessário, depois do qual a morte é
necessária. Ele afirma que “a vida só pode ser abordada, só pode ser
vivida e pensada,a partir desse limite em que Antígonajá perdeu sua
vida, em queela já se encontra do outro lado” (p. 280). Masaté que ponto
essa reflexão sobre a pulsão de morte pode retornar a fim de desafiar a
articulação do simbólico e de alterar as proibições fatais com que este
reproduz seu próprio campo de poder? E o que em seu destino é, de
fato, uma morte social, no sentido em que Orlando Patterson utilizou
o termo?” Essa parece uma questão crucial, pois tal posição exterior
à vida, conforme a conhecemos, não é necessariamente uma posição
exterior à vida tal como esta deve ser. Ela nos oferece uma perspectiva
sobre as restrições do simbólico que estabelecem viabilidade da vida,
e a questão passa a ser: será que ela também oferece umaperspectiva
crítica através da qual os próprios termos daviabilidade da vida possam
ser reescritos, ou,a rigor, escritos pela primeira vez?
Será que Antígona, conforme Lacan sugere, “leva ao limite
a realização de algo que pode ser chamado de desejo puro e simples
de morte comotal” (p. 282)? E o seu desejo seria o de meramente
persistir na criminalidade até o ponto da morte? Lacan acerta quando
diz que “Antígona escolhe ser pura e simplesmente a guardiã do
ser do criminoso como tal” (p. 283), ou será que essa criminalidade
atestaria um direito inconsciente, marcando uma legalidade anterior
à codificação, na qual o simbólico, em suas foraclusões precipitadas.
devefracassar, e estabelecendo a pergunta acerca da possibilidade de
haver novos fundamentos para a comunicabilidadee paraa vida?
0
*? Orlando Patterson, Slavery and social death (Cambridge: Harvard University Press
1982), p. 38-46.

82 O clamor de Antígo
na
Obediência promíscua
Em seu estudo sobre as apropriações históricas de Antígona,
George Steiner propõe uma questão controversa sem, contudo,
investigá-la: o que aconteceria se a psicanálise tivesse tomado Antígona
comoseu ponto de partida, em vez de Édipo?” Este claramente tem seu
próprio destino trágico, porém o destino de Antígona é definitivamente
pós-edipiano. Embora os dois irmãos sejam explicitamente
amaldiçoados pelo seu pai, será que a maldição também a atinge, e,
caso sim, através de quais meios furtivos e implícitos? O coro declara
que algo do destino de Édipo está certamente interferindo no seu, mas
qual fardo da história ela suporta? Édipo acaba sabendo quem são seu
pai e sua mãe, mas descobre que esta é também sua esposa. O pai de
Antígona é seu irmão, já que ambos partilham uma mãe em Jocasta,
e seus irmãos são seus sobrinhos, filhos de seu irmão-pai, Édipo. Os
termos do parentesco tornam-se irreversivelmente equívocos. Seria
isso parte de sua tragédia? Será que essa equivocidade do parentesco
conduz à fatalidade?
Antígonaé capturada numa rede de relações que náo pedirem
uma posição coerente dentro do parentesco. Ela não Giep
flando,forado parentesc o, tampouc
situação podeser compreendida, mas o é, de
somente
fato,
com mu
c€ a q n
aa
ei
de horror. O parentesco não é simplesmente uma ar
está, mas um conjunto de práticas que ela Ep

Steiner, Antigones, p. 18.

Judith Butler 85
que são reinstituídas no tempo presisamenio nisaç Es da puática de sua
age simplesmente
repetição.Quando ela enterra seu irmão, nor que
a partir do parentesco, como se O páreiiesca ornecesse um Princípio
para a ação, mas sim que sua ação é a ação do parentesco, a repetição
performativa que reintroduz O parentesco como um escanélalo público.
O parentesco é o que ela repete através de sua ação; para utilizar
novamente uma formulação de David Schneider, não é uma formade
ser, mas uma forma de fazer.” E sua ação a implica numa repetição
aberrante de uma norma, um costume, uma convenção, não uma lei
formal, mas uma regulação da cultura, semelhante à lei, que opera com
sua própria contingência.
Se lembrarmos que, para Lacan, o simbólico, esse conjunto
de regras que governam o acesso ao discurso e ao domínio da fala
na cultura, é motivado pelas palavras do pai, então as palavras do pai
certamente pairam sobre Antígona; elas são, por assim dizer, o meio em
queela age e em cuja voz defende seu ato. Ela transmite essas palavras em
forma aberrante, repassando-as lealmente e traindo-as ao enviá-las para
lugares aos quais nunca estiveram destinadas a viajar. As palavras são
repetidas, e sua repetibilidade conta com o desvio que a repetição produz.
A aberração que é o seu discurso e seu ato facilita tais transmissões.
A rigor, ela transmite mais que um discurso ao mesmo tempo, pois as
exigências que se encontram sobre ela vêm de mais de uma fonte: seu
irmão também pedea ela que lhe dê um enterro decente, uma exigência
que, de certo modo,está em conflito com a maldição que Édipo lançou
sobre seu filho, a saber, morrer durante a batalha e ser recebido no
submundo. Essas duas exigências convergem e produzem certa
interferência na transmissão da palavra paterna. Afinal de contas, se O

E “o irmão, então, finalmente, qual é a diferença entre ambos? E o que


significa colocar a exigência de Édipo acimadaexigência de Polinices?

º E
David Schneider » À critique
iti of the stu inshi versity O Of
- University
Michigan Press, 1984), p. 131. a rd

84 O clamor de Antígona

ad
As palavras pairam sobre ela, mas o que isso significa? Como
que uma maldição acaba informando a ação que completa a profeci
inerente à própria maldição? Qual é a temporalidade da maldição de
modotal que as ações que Antígona executa criam umavacilação pe
as palavras que pairam sobreela, as quaisa fazem sofrer, e o ato queela
mesma realiza? Como devemos entender o nomos estranho do próprio
ato? Comoque a palavra do Outro se torna o seu próprio feito, e qual
é a temporalidade dessa repetição em que o feito produzido como
um resultado da maldição é, também, de certo modo, uma repetição
aberrante, uma repetição tal que afirma que a maldição produz
consequências imprevistas?
Édipo, sem saber, é claro, dorme com sua mãe e assassina seu
pai, sendo então conduzido ao deserto, acompanhado de Antígona.
Em Édipo em Colono, os dois, juntamente com um pequeno grupo
de seguidores, são abrigados por Teseu numa terra governada por
Atenas. Édipo descobre que seus filhos expressamente proibiram seu
retornoa Tebas e que, além disso, voltaram-se um contra o outro numa
dura batalha pelo trono. Perto dofinal da peça, a segunda datrilogia,
a
Polinices visita Édipo e pede seu retorno. Édipo não apenasse recusa
triunfes
voltar como lança uma maldição contra Polinices: “que nunca
mão do irmão, e
na guerra em tua terra natal; [..] mas que morras pela
que mates aquele que te expulsou!” (1385-1393).
a que este seja mais
Antígona intervém importunando o pai par
Não fica claroOsse O
benevolente para com Polinices, porém fracassa.
irmãocujo ato o matará é Etéocles, que desfere o golpe
fatal, ou Edipo,
ição tant o prev ê quan to coma nda o próprio golpe. Polínices,
cuja mald ,e
esto da irmã , deci de mes mo assim combater Etéocles
apesar do prot
nad a, clam ando : “Me u cora ção está partido! Então
Antígona é abando
hecimento que ela mesma tem
proclama uma frase que prefigura o conalg uém pode não chorar, vendo
do seu próprio destino: “Irmão, como
para uma mor te tão clara , antes de ir de olhos abertos
que caminhas Antígona irá enfrentar e —
ne, 1645 -164 9). De fato,
para a morte!” (Gre

Judith Butler 85
dada a cronologia das peças — “já” enfrentou justamente o dest;
no que
prevê para O irmão, adentrar a Hrie conscientemente.
Antígona não só perde o irmão para a maldição de seu Pai, com
palavras que, literalmente, produzem a força ax aniquilação, como
também perdeo pai para a morte por conta da maldição quepaira sobre
ele. As palavras e os feitos tornam-se fatalmente enredados na cena
familiar. Os atos de Polinices e Etéocles parecem cumprir e encenar
as palavras do pai, mas as palavras deste — e seus feitos — são também
parte de uma maldição queestá sobre ele, a maldição de Laio. Antígona
preocupa-se com o destino de seus irmãos, inclusive quando segue o
próprio curso de suas ações, cuja conclusão necessária é a morte. Seu
desejo de salvar os irmãos do destino deles é vencido, ao que parece,
pelo desejo de juntar-se a eles nesse destino.
Antes de morrer, Édipo faz diversas afirmações que assumem
a condição de uma maldição. Ele condena Antígona, mas a força da
sentençaestá em ligá-la a ele. Suas palavras culminam na própria falta
de amor permanente de Antígona, sentimento imposto pelo modo
como Édipo exige lealdade, exigência esta que, por sua vez, beira
a possessividade incestuosa: “De nenhuma pessoa recebeste mais
amor que deste homem, sem o qual agora viverás o resto de tua
vida”
(1617-1619). Suas palavras exercem uma força no tempo que excede
a
temporalidade de sua enunciação: elas exigem que Antígona nunca
tenha um outro homem além daquele que está morto, e embo
ra isso
seja uma exigência, uma maldição lançada por Édipo, quese posiciona
como o seu único homem,fica claro queela tanto honra essa
maldição
quanto lhe desobedece ao deslocar o amor que sente pelo pai para
O
Seu irmão. Com efeito, ela toma o irmão como
se este fosse o seu único
s ela nãose arriscaria a desafiar o decreto por
nenhum outro parente
temos gonice.Asim, ela trai Édipo mesmo quan
do ço
morto é, di ção. Antígona amará apenas o homem : ia
de Édipo, mas o não amará homem algum. Ela obedece Ee ico
Promiscuamente, pois ele claramente não é O

86 O clamor de
Antígona
homem morto que ela amae, de fato, tampouco o último. Seria o amor
por um deles dissociável do amor pelo outro? E quando, por seu “irmão
mais precioso”, ela comete o seu ato criminoso e honroso,fica claro
se
esse irmão é Polinices, ou poderia ser Édipo?
Sabendo que está prestes a morrer, Édipo pergunta, “Eeles
irão
inclusive cobrir meu corpo em solo tebano?” (406), e desco
bre queseu
crime torna isso impossível. Ele é então enterrado por Teseu, longe do
olhar de todos, inclusive de Antígona. Esta, então, na peça que leva
o
seu nome, imita o ato do forte e verdadeiro Teseu e enterra seu
irmão
longe do olhar de todos, assegurando-se de que a sombra de Polinices
estará composta de pó tebano. O enterro assertivo de Antígona,
que
ela realiza duas vezes, pode ser entendido como destinado
a ambos,
um enterro que de umasó vez reflete e institui a vacilação
entrefilho
e pai. Elesjá são para ela, afinal de contas, intercambiáveis, porém seu
ato reinstitui e reelabora essa intercambiabilidade.
Embora Sófocles tenha escrito Antígona muitos anos antes de
Édipo em Colono, a ação que ocorre naquela segue a ação
desta. Qual
é a relevância desse atraso? Seriam as palavras que instigam a ação
compreensíveis apenas em retrospecto? Será que as implicaçõe
s
da maldição, entendida como extensão da ação, só poder
iam ser
compreendidas retrospectivamente? À ação que a maldição previ
u para
o futuro revela-se uma ação queesteve presente durante o tempo todo
,
de tal modo que a temporalidade dessa maldição inverte precisamente
o movimento adiante do tempo. A maldição estabelece, para a ação que
ela mesma coordena, uma temporalidade anterior à própria maldição.
As palavras levam ao futuro aquilo quejá vinha acontecendo.
Antígona deve amar apenas o homem queestá morto, porém,
de certo modo,ela também é um homem. E esse é também o título
que Édipo lhe confere, um presente ou recompensa porsua lealdade.
Quando Édipo é banido, Antígona cuida dele, e em sua lealdade é
referida como um “homem” (aner). Com efeito, ela o segue lealmente
ao deserto, mas, em dado momento, esse gesto de seguir impercepti-

Judith Butler 87
velmente transforma-se numa cena em que ela o conduz: “Siga-me, aê
para onde eu te ler
me poreste caminho com teus passos cegos, pai,
(183-184). :
A rigor, ela é amaldiçoada por uma lealdade a um morto
uma lealdade que a torna masculina, que a compele a adquirir
atributo que contém a aprovação de Edipo, de modo que desejo e
identificação confundem-se intensamente num laço melancólico,
Édipo claramente entende o gênero comosendo ele próprio um tipo
de maldição, já que uma das formas com que condena seusfilhos
é nivelando sua acusação através da alegoria de uma inversão de
gênero orientalizante:
Os dois ajustam-se aos costumes que reinam no Egito, tanto
em sua natureza quanto no cuidado com suas vidas! Pois lá os
homens sentam-se em suascasas e trabalham no tear, enquanto
suas mulheres cuidam das necessidades da vida lá fora. E em
vosso caso, minhas filhas, aqueles que devem realizar esse
trabalho ficam em casa e administram o lar como donzelas,
enquanto vós, em seu lugar, suportais o fardo dos lamentos de
vossoinfeliz pai. (337-344, grifo meu).

Mais tarde, Édipo sustenta que Ismenee Antígonaliteralmente


tomaram o lugar de seus irmãos, adquirindo o gênero masculino ao
longo do caminho. Dirigindo-se aosfilhos, ele diz:
Se eu não tivesse gerado essasfilhas para cuidar de mim, não
estaria vivo, por conta do que vós me fizestes. Mas tal como
está, elas cuidam de mim,são minhas enfermeiras; no quediz
respeito ao modo como trabalham por mim, são homens, €
não mulheres. Já vós sois filhos de outra pessoa, e não meus.
(1559-1563).
. s,
Suas filhas se tornam, pois, seus filho ilhas
mas essas mesmas pi
(Antíg O Z irmãco
E » Ismene), ele antes nos dissera, são também suas
(328).
assim chegamos a uma espécie de problema de parentes
88 O clamor de A
ntígona
no coração de Sófocles. Antígona, nesse momento, já tomou o lugar
do irmão; quando ela rompe com Ismene, vemosrefletida a ruptura
entre Polinices e Etéocles, assim agindo, pode-se dizer, como agem
os irmãos. No momento em que a peça termina, Antígonajá tomou o
lugar de quase todos os homens desua família. Seria esse um efeito das
palavras que pairam sobre ela?
A rigor, as palavras exercem aqui certo poder que não
fica imediatamente claro. Elas agem, exercem certo tipo de
força performativa, por vezes são claramente violentas em suas
consequências, como palavras que, ou constituem, ou geram violência.
Com efeito, às vezes parece que as palavras agem de modo ilocucionário, ;
encenando o feito que nomeiam no próprio momento da nomeação.
Para Hôlderlin, isso constitui parte da força assassina da palavra em
Sófocles.é Considere esse momento em q queo coro, em Édipo
p em Colono,
lembra Edipop de seu crime, uma narração verbal do feito que se torna
a punição violenta P pelo feito. O coro não só narra os eventos como
também formula a acusação,
ç exige
g o seu reconhecimento e inflige uma
punição através do interrogatório feito:

CORO: Infeliz, o que, então? Mataste[...) teu pai?


ÉDIPO:Ai de mim! Acabas de me acertar um segundo golpe,
angústia após angústia!
CORO: Tu o mataste! (542-545).

Assim, Édipo é verbalmente atingido pelo coro porter golpeado


e assassinado seu pai; a acusação repete verbalmente o crime, golpeia
novamente onde Édipojá está ferido e ondeé, pois, ferido novamente.
Ele diz: “Golpeias novamente”, e o coro volta a golpear, golpeia com
mente
Palavras, repetindo: “Tu o mataste”, E o coro quefala é ambigua
referido como “Deus no céu”, falando com a força que as palavras
divinas possuem. Sem dúvida, tais cenas levaram Holderlin a afirmar
º Seguinte sobre a fatalidade das palavras, no seu “Anmerkungen Zur
na medida em
Antigone”: “A palavra se torna imediatamente factual

Judith Butler 89
alcança o corpo sensível. A palavra trágica grega é fatalmente
[tdlichfaktisch, pois de fato agarra o corpo que mata”?
factu:alNão
a
se trata apenas de dizer que As
palavras matam Édipo
num sentido linguístico e paiquiti, RÃ Palavras, que
compõem a maldição anterior de Laio lançada sobre ele, levam-no a
cometer o incesto e o assassinato. Ao nat ele cumpre ou completa
as palavras que pairavam sobre ele; sua ação torna-se indissociável
doato falado, uma condição, podemos dizer, tanto da maldição que a
ação dramática reflete quanto da estrutura da própria ação dramática.
Essas são palavras que alguém transmite, porém não são geradas ou
mantidas autonomamente por quem as fala. Elas nascem, segundo
os termos de Hôlderlin, de uma boca inspirada ou possuída (aus
begeistertem Munde) e agarram o corpo que mata. Elas se dirigem a
Édipo, mas este também reencena seu trauma, por assim dizer, na
medida em que suas palavras se apoderam e matam seus filhos,
apoderam-se deles e os tornam assassinos, assim comosuas palavras
também capturam e masculinizam o corpo de sua filha Antígona.
E elas o fazem precisamente tornando-se palavras que agem no
tempo, palavras cuja temporalidade excede a cena de sua enunciação,
tornando-se o desejo daqueles que nomeiam, de modo repetitivo e
invocativo, conferindo apenas retrospectivamente o sentido de um
passado necessário e persistente que é confirmado pela enunciação
que o prediz, em que a predição torna-se o ato defala através do qual
umanecessidade já em funcionamento é confirmada.

2 “Das Wort mittel bar


er faktisch wird, indem es den sinnli
Das griechischtra cheren Kórper ergreift.
Wirklich tótet” ragische Wortist tôdlichfaktisch, weil der Leib, den es ergreift,
ein
de em
ReBan
modd(M,uni
inch:
“Anm
Hamer kung
sex lagzur
Veren , 199Ant igo 64., in Friedrich Holderlin, ro ão
0), p.ne” Todas as citações êdeem a
Thomas Pf en Antigone”, Friedrich Hólderlin: essays and lett
ers, ed.
Phili au (Albany: State University of New York Press, 1977). Vere tra d. |
também
UniverersistaiiranesovdeeLaFrbanarcethe, Métaphrasis suivi du théâtre de Holdertin (Pacis: Presses
, 1988), p.
63-73 7

90 O clamor de
Antígona
A relação entre palavra e feito torna-se inevitavelmente presa à
cena familiar; cada palavra transforma-se emevento ou,a rigor, segundo
os termos de Hólderlin, em “fato fatal”. Cada feito é o efeito temporal
aparente de alguma palavra anterior, instituindo a temporalidade de
um atraso trágico: tudo o que acontece já aconteceu, aparecerá como
o que já esteve sempre acontecendo, uma palavra e um feito presose
prolongados ao longo do tempo pela força da repetição. Essa fatalidade
encontra-se, de certo modo,na dinâmica de sua temporalidadee de seu
exílio perpétuo no não-ser que marca a distância mantida de qualquer
sentimento de casa.? De acordo com Hôlderlin, essa performatividade
prodigiosa da palavra é trágica tanto no sentido de fatal quanto

s Heidegger oferece uma longa reflexão sobre a tradução de Hôlderlin da peça


Antígona (1803) e sobre suas “Observações sobre Antígona” em relaçãoàs várias formas
com que Hólderlin apresenta a “estranheza” da personagem. A proximidade da morte
enfatizada nas “Observações sobre Antígona” corresponde, em grande medida,à leitura
que Heidegger faz de Antígona como alguém cujo exílio do lar estabelece sua relação
essencial com um sentido do ser situado para além da vida humana. Essa participação
no quenão vive acaba se revelando comoalgo da própria condição da vida. Tal como
na leitura oferecida por Jacques Lacan, Heidegger também argumenta que “[Antígona]
nomeia o próprioser”(p. 118), e que essa proximidade ao ser envolve um distanciamento
necessário dosseres vivos, mesmoesta sendoa base de seu próprio surgimento.
De modo similar, Heidegger compreende a “lei não escrita” a que Antígona se refere
como um relacionamento com o ser e com a morte:
é destinado do
Antígona assume como adequado tudo que lhe
superiores
domínio do que quer que prevaleça para além dos deuses
No entanto, isso não se
(Zeus) e para além dos deuses inferiores [..]
ue com seu irmão.
refere nem aos mortos, nem à sua relação de sang
confere fundamento e
O que determina Antígona é o que primeiro O que
do sangue.
necessidade à distinção dos mortos e à prioridade
.
isso é, Antígona, e isso também significa o poeta, deixa sem um nome
incorporada (sangue),
A morte e o ser humano, o ser humano e a vida
te” e o “sangue em cada
em cada caso, permanecem juntos. A “mor
emos do ser humano.
caso nomeiam domínios diferentes e extr
In: Martin Heidegger, Hólderlin's hymn “TheIster”, trad. de William McNeill and Julia
Davis (Bloomington:Indiana University Press, 1996), p- 117.

Judith Butler 91
ra l. No teat ro, a pal avr a é representada, a palavra comofeito
de teat
u m e u m si g nifi cado espe cífico; a performatividade acentuada das
ass
cionada às palavras que
palavras nessa peça está intimamente rela
a peça , con for me repr esen tadas, realizadas.
ocorrem num
tornam-se
Há, é claro, outros contextos em que as palavras
iáve is dos feit os, com o no cas o das reuniões departamentais
indi ssoc
palavra como feito
ou dos encontros familiares. A força particular da
procede noparentesco,
na família, ou, de modo mais amplo, conforme
não ocorre sem uma
é executada comolei (nomos). Mas essa execução
e a lei
reiteração — um eco irregular e temporal - que também submet
ao risco de se desviar de seu curso.
Antígona,
E se retornássemosà psicanálise a partir da figura de
m poderia
como que a nossa análise da peça e dessa personage
análise,
estabelecer a possibilidade de um futuro aberrante para à psic
contextos
umavez que esse modo de análise passa a ser apropriado em
que não poderiam ser antecipados? A psicanálise traça a história
irregular de tais enunciações e faz seus próprios pronunciamentos,
de caráter legal, ao longo do caminho. Ela pode ser considerada uma
forma de interpretar a maldição, uma força aparentemente preditiva
da palavra, já que contém uma história psíquica que não pode
adentrar inteiramente a forma narrativa. A palavra criptografada
que traz consigo uma história irrecuperável, uma história que, em
virtude de sua própria irrecuperabilidade e sua enigmática vida
eterna em palavras, possui uma força cuja origem e fim não podem
ser inteiramente determinados.
ria, tendo
É fato de que a peça Antígona antecede sua pré-histó
Soosceita a E de Édipo em Colono, indica como à ass

sua força só é e idade incerta. Enunciada antes dos a E


ecida retrospectivamente; sua força pre!
:daed
enunciação, co
Mo se est a par
pa raa do xa lm en te ina ugu ras se à necessidade
de sua pré-h o.
do que aparecerá comojá sempre verdadeir
tória e

92 O clamor de Antigona
Mas quão infalível é uma maldição? Há alguma maneira de
quebrá-la? Ou haveria, ao menos, uma maneira de expor e explorar
sua própria vulnerabilidade? Aquele queno presente recita à maldição,
ou se encontra em meio à efetividade histórica da palavra, não secita
precisamente as palavras recebidas de uma fonte anterior. As palavras
são reiteradas, e sua força é aumentada. A agência que realiza essa
reiteração conhece a maldição, porém desconhece o momento em que
participa de sua transmissão.
Até que ponto essa ideia da maldição estaria operando na
concepção de um discurso simbólico transmitido pelo sujeito que
fala em formas reais porém imprevisíveis? Além disso, na medida em
que o simbólico reitera uma necessidade “estrutural” do parentesco,
ele retransmite ou realiza a maldição do próprio parentesco? Em
outras palavras, a lei estruturalista reporta a maldição que paira
sobre o parentesco, ou realiza essa maldição? Será que o parentesco
estruturalista é a maldição que assola a teoria crítica contemporânea
ao abordar a questão da normatividade sexual, da sociabilidade e do
estatuto da lei? Ademais, se somos tomados poressa herança, haveria
alguma maneira de transmitir a maldição em forma aberrante, expondo
sua fragilidade e fratura na repetição e no restabelecimento de seus
termos? Seria essa ruptura com a lei, que ocorre no restabelecimento
desta, a condição para articular um parentesco futuro que exceda a
totalidade estruturalista, um pós-estruturalismo do parentesco?
m
imp ort ant es na ant rop olo gia , nas últimas décadas, mostrara
* Várias obr as
ra di gm as est rut ura lis tas par a a Te flexão sobre o problema do
as limitações dos pa rod ucing the future: essays or mira rá
inc lui ndo Ma ri ly n Str ath ern , Rep
parentesco, w roductive technologies (New York: Routledge, 1992). Em E T
kinship, and the ne rep
rne Ealhe ani am
and kinship: essays toward a unified analysis, ed. Jane Fishbu
: Sta nfo rd Uni ver sit y Pre ss, 198 7), oseditores sa À
Jun ko Yanagisako(Stanfo rd mente nas relações sim ylides
contra uma visão de parentesco focada exclusiva
vol ume , as per spe cti vas que buscam altoEem S
custa da ação social. Nesse as abordagen s A E di jo
ações de parentesco contra
pe complexas das rel antes contribuições
encontram-se nas import
estritamente estruturalistas

Judith Butler 93
A releitura de Antígona conduzida pela teoria Psicanalítica
pode questionar à ideia de que o taodia Asia legitimae normaliza
o parentesco com base na reprodução biológica e na heterossexua.
lização da família. Embora a psicanálise tenha com frequência

Comaroff, Rayna Rapp, Marilyn Strathern e Maurice Bloch. Ver também Sylvia Junko
Yanagisako, “The analysis of kinship change”, in Transforming the past: tradition and
kinship among Japanese Americans (Stanford: Stanford University Press,1985), em que a
autora acusatanto as abordagensestruturalistas quanto funcionalistas como incapazes
de oferecer uma compreensão dinâmica das relações de parentesco. David Schneider,
em A critique of the study of kinship, explica como os modelos teóricos do parentesco
elaborados por Fortes, Leach e Lévi-Strauss impõem restrições teóricas sobre a
percepção etnográfica, deixando de considerar sociedades que não se aproximam da
normateórica, e que, independentemente da ideia de não tomaras relações biológicas
de reprodução como ponto de partida para o estudo do parentesco, ainda assim fazem
com que esse ponto funcione como uma premissa fundamental de sua obra (ver p.
3-9, 133-177), Em particular, a obra de Pierre Clastres, na França, escrita dramática e
ferozmente, em parte claramente baseada no trabalho anterior de Marshall Sahlins,
argumenta que a esfera do social não poderiaser reduzida às operações do parentescoe
alerta contra qualquer tentativa de trataras regras do parentesco comose oferecessem
os princípios de inteligibilidade para qualquer ordem social. Ele afirma, por exemplo,
que não é possível reduzir as relações de poder às relações de troca: “O poder está
relacionado [...] aos[...] níveis estruturais essenciais da sociedade: ou seja, localiza-se
no próprio centro do universo comunicativo” (p. 37). Em Society against the state, trad.
de Robert Hurley (New York: Zone, 1987), p. 27-49, Clastres
defende a localização
dos “intercâmbios femininos” dentro das relações de poder. E em “Marxists andtheir
anthropology”, ele oferece umacrítica rigorosa a Maurice Godelier acerca da questão
do Parentesco e do Estado. Ali ele argumenta que a principal função do parentesco
Não € instituir o tabu do incesto ou exemplificar as relações
de produção, mas sim
transmitir e reproduzir o “nome” do parente, e que “a função da nominação,
inscrita
na determinapor completo o ser sociopolítico da sociedade pri a
of violence pr dia esociedade está localizado”. Ver Pierre astra rato ud
em Brando x a Herman (New York: Semiotext(e), 1994), p. 134. (Tra nã :
Arqueologia dá died Pg Sociedade contra o Estado, Porto, Afrontamento,

Para umanoção do es dn Cosac de Naify, e.


The logie sm Pier Bourdieu,
maia emeaa prática
incorporada, ver também Pier
p.34:35. (No gls = da e ard Nice (Stanford: Stanford University E ess, 1990),
) 1972).
cês, Esquisse d'une théorie de la pratique, Paris, Droz,

94 O clamor de
An tígona
insistido que a normalização é invariavelme nte in
terrompida
e frustrada por aquilo que não pode ser orde nado por
normas
reguladoras, ela raramente abordou a questão
de como novas formas
de parentesco podem surgir e, defato, surgem em função
do tabu do
incesto. Da suposição de que não se pode - ou não
se deve — escolher
os membros mais próximos da família como amant
es ou parceiros
conjugais não segue o fato de que os laços do parentesco que são
possíveis assumem uma forma particular qualquer.
Na medida em queo tabu do incesto contém em si sua infraç
ão,
ele não proíbe simplesmente o incesto, maso sustenta e cultiva como
um espectro necessário da dissolução social, um espectro sem o qual
os laços sociais não podem surgir. Assim, a proibição do incesto na
peça Antígona pede uma novareflexão sobre a própria proibição, não
meramente como uma operação negativa ou privativa do poder, mas
como operação que funciona justamente a partir da proliferação,
através do deslocamento,do próprio crime que condena. O tabu, e sua
referência ameaçadoraao incesto, delineia as linhas de parentesco que
alimentam o incesto comosua mais íntimapossibilidade, estabelecendo
a“aberração” no coração da norma.A rigor, minha perguntaé: será que
o tabu também podese tornar a base para umaaberração socialmente
sustentável do parentesco, em que as normas que regulam os modos
legítimos e ilegítimos de relação entre parentes possam ser redefinidas
de forma mais radical?
Antígonadiz “irmão”, mas será queela quer dizer “pai”? Ela afirma
seu direito público de lamentar a perda do parente, porém quantos de
Seus parentes ela deixa de lamentar? Considerando o número de mortos
em sua família, seria possível dizer que mãe, pai, irmã repudiada F o
Outro irmão estão ali condensados no lugar do irmão ra
Quetipo de abordagem psicanalítica do ato de Antígona excluiria a
antemão qualquer consideração de sobredeterminação no plano o
objeto? Essa vacilação no campo dos termos do parentesco indica um
dilema decididamente pós-edipiano, no qual as posições de parentesc

Judith Butler 95
tendem a deslizar de um lado para outro, no qual Antígonaé o irmão
o irmão é o pai, e no qual, psíquica e linguisticamente,isso é verdadeiro
independentemente de estarem vivos ou mortos, pois para qualquer
pessoa que viva em meio a essas identificações deslizantes, seu destino
será incerto, vivendo na morte, morrendo em vida.
Pode-se simplesmente dizer, em espírito psicanalítico, que
Antígona representa umaperversão da lei, concluindo quea lei requer
perversão e que, em certo sentido dialético,a lei é, portanto, perversa,
No entanto, estabelecer a necessidade estrutural da perversão à lei
significa postular uma relação estática entre ambas, na qual uma
implica a outra e, nesse sentido, não é nada sem a outra. Essa forma
de dialética negativa produz a satisfação de mostrar quea lei investe-
se de perversão, não sendo o que parecer ser. Contudo, ela não
ajuda a tornar possíveis outras formas de vidasocial, possibilidades
inadvertidas produzidas pela proibição que acabam por comprometer
“a conclusão de que a lei proibitiva conduz sempre a uma organização
social invariante da sexualidade. O que ocorre quando o perverso
ou impossível surge na linguagem da lei e faz sua reivindicação
precisamente ali na esfera do parentesco legítimo que depende de sua
exclusão ou patologização?*
Em seu breve relato sobre Antígona, presente em Enjoy your
symptom,* Slavoj Zizek sugere que o “não!” de Antígona a Creonte é

ss a : a
Não estou sugerindo aqui que o perverso simplesmente habita
«
a norma como
algo que permanece autônomo, nem que ele é dialeticamente assimilado à própria
norma. O perverso pode ser compreendido como indicador da impossibilidade de
E a qualquer reivindicação de legitimidade, já que é
eo is in licação fora do seu lugar legitimado de enunciação mostra qui
gui Bitimo não! éa fonte de sua efetividade. Aqui estou em dívida para com
9 Comoa significativa reformulação de Homi
sua obra, Bhabha, dispersa em toda à
i
desenvolvitadantna
o da teeo
orlo
iagidoasat def
Arqu do o
sasber. ala quanto da noção foucaultiana do di7 scurso
Slavoj Zi ;
vo) Zizek, Enjoyyour symptom! (New York: Routledge, 1992).
96 O clamor de
Antígona
um ato feminino € destrutivo,cuja negatividade a conduz à sua própria
morte. Para Ziek, aparentemente, o ato masculino é mais afirmativo,
o ato através do qual uma nova ordem é fundada (p. 46). Ao
dizer “não”
ao soberano, Antígona se exclui da comunidadee não podesobreviver
nesse exílio. Contudo, parece que a reparaçãoe construção masculina
é uma tentativa de encobrir essa “ruptura traumática” causada pela
negação feminina. Aqui parece que Antígona é mais uma vez elevada
à posição feminina (de modo não problemático)e, a seguir, entendida
como aquela que constituiu a negação fundamental da pólis, o lugar da
própria dissolução traumática da pólis que a política posterior busca
encobrir. Mas será que Antígona simplesmente diz “não”? Certamente
hánegações que codificam seu discurso, porém ela também se aproxima
da vontade obstinada de Creonte e circunscreve uma autonomia
contrária através de sua negação. Mais tarde, Zizek deixará claro que
Antígona se opõe a Creonte não com razões, mas com uma tautologia
que nada mais é do que o nomedo seu irmão: “A lei” em nomeda qual
Antígona insiste no direito de Polinices de ser enterrado é essa lei
dosignificante 'puro'[...] É a Lei do nomequefixa nossa identidade”
(p. 91-92). Mas Antígona chama o irmão pelo nome? Ou será que, no
momento em que busca lhe dar prioridade, chama-o através de um
termo do parentesco que é, de fato e em princípio, intercambiável?
Será que seu irmão algum dia terá um nome?
Qual é a voz contemporânea que adentra a linguagem da lei
para interromper seu funcionamento unívoco? Observe que, na
situação de famílias cuja estrutura é mista, uma criança diz “mãe” e
pode esperar que mais de um indivíduo responda ao chamado. Ou,
no caso da adoção, uma criança pode dizer “pai” referindo-se tanto ao
fantasma ausente que nunca conheceu quanto àquele que assume tal
lugar na memória viva. A criança pode querer dizê-lo de uma só vez,
Ou sequencialmente, ou de formas que nem sempre estão claramente
desarticuladas umas das outras. E quando uma jovem menina passa
à gostar do seu meio-irmão, em que dilema de parentesco ela se

Judith Butler 97
encontra? Para uma mulher que é mãe solteira e cria seu filho se
um:
um homem, será que o pai ainda se encontra ali, ocupando
“posição” ou “lugar” espectral que permanece não preenchido, ou
tal “lugar” ou “posição” não existe? O pai estaria ausente, ou essa
criança não teria nem pai, nem posição ou ocupante? Seria isso
uma perda, que assume a norma não cumprida, ou seria uma outra
configuração dos vínculos primários, cuja perda principal consiste
em não ter uma linguagem na qual articular seus termos? E quando
há dois homens ou mulheres que criam osfilhos, devemos entender
que alguma divisão principal dos papéis de gênero organiza seus
lugares psíquicos dentro da cena, de modo que a contingência
empírica dos dois pais de mesmo gênero é, entretanto, ajustada
pelo lugar psíquico pré-social da Mãe e do Pai em queeles entram?
Faz sentido, nessas ocasiões, insistir que há posições simbólicas de
Mãee Pai que qualquer psique deve aceitar, independentemente da
forma social assumida pelo parentesco? Ou seria essa uma maneira
de reafirmar uma organização heterossexual do papel dos pais no
de
campo psíquico, capaz de acomodar todas as formas de variação
gênero no campo social? Aqui parece que a própria divisão entre O
essa
psíquico ou simbólico, de um lado, e o social, de outro, ocasiona
normalização impositiva do campo social.
Escrevo isso, é claro, contra o panode fundo de um legado
substancial da teoria feminista que tomou a análise lévi-straussiana
do parentesco como base tanto para a sua própria versão da
Psicanálise estruturalista e pós-estruturalista como para à teorização
do tabu do
Es uma diferença sexual primeira. Uma das funções
pn
deparentPU amente proibir o intercâmbio sexual entre
Eram + uslhor, estabelecer as relações de ati de
saber atm tals do ase nesses tabu, Resta a aqeitá, a
certas formas de incesto também foi mobilizado para e cd
parentesco como as únicas inteligíveis.€ que P
Ser vividas. : E ão na
tradição H
“Assim ouvimos, por exemplo, o legado dessa
98 O clamor de Antígona
sicanálise invocada por psicanalistas, meses atrás, em Paris, contra a
ossibilidade de “contratos de aliança”,” criados pelos conservadores
como uma proposta ao casamento gay. Embora o direito dos gays
de adotar crianças não estivesse incluído na proposta, as pessoas
contrárias aos contratos temiam que estes pudessem levar a tal
eventualidade, argumentando que quaisquer crianças criadas numa
família gay sofreriam a ameaça imanente da psicose, como se alguma
estrutura, necessariamente denominada “Mãe” e necessariamente
denominada “Pai”, estabelecida no campo do simbólico, fosse
um suporte psíquico indispensável para evitar uma agressão do
Real. De forma similar, Jacques-Alain Miller argumentou que,
embora estivesse claro para ele que as relações homossexuais
merecem reconhecimento, estas não deveriam qualificar-se para o
casamento, pois dois homens juntos, sem a presença feminina, não
seriam capazes de trazer o elemento da fidelidade à relação (uma
reivindicação maravilhosa, feita contra o pano de fundo de nossa
evidência presidencial acerca do poder vinculador que o matrimônio
exerce sobre a fidelidade heterossexual). Ainda, outros profissionais
lacanianosque traçam as origens do autismo na “lacuna” ou “ausência
paterna” preveem, de forma análoga, consequências psicóticas para
as crianças com mães lésbicas.
Essas visões comumente sustentam a ideia de que os arranjos
alternativos de parentesco buscam revisar as estruturas psíquicas por
meios que conduzem novamente à tragédia, figurada incessantemente
como a tragédia da criança e para a criança. Não importa o que se
pensa, em última instância, sobre o valor político do casamento gay, e
eu mesma sou cética aqui por razões políticas que observei em outro
lugar,º o debate público sobre sualegitimidade torna-se a ocasião para

$
PaCS (Pacte Civil de Solidarité).
Ver a minha contribuição, “Competing universalities”, in Judith Butler, Ernesto
Laclau e SlavoZizek, Universality, hegemony, contingency (London: Verso, 2000).

Judith Butler 99
o aparecimento de umasérie de discursos homofóbicos que Precisam
ser enfrentados por outros motivos. Observe que o horror ãoincesto
a repulsa moral que este provoca em alguns, não está tão distante do
mesmo horrore repulsa que se sente em torno darelação 847 e lésbica
tampouco se apresenta dissociado da intensa condenação moral &
opção voluntária de ser pai ou mãe solteira, ou da parentalidade gay, ou
dos arranjos parentais com mais de dois adultos envolvidos (práticas
que podem ser utilizadas como evidências para sustentar a decisão de
retirar uma criança da custódia do pai ou da mãe em vários estados
dos Estados Unidos). Esses vários modos em que o mandato edipiano
é incapaz de produzir a família normativa correm o risco deentrar
na metonímia do horror sexual moralizado, que talvez esteja mais
fundamentalmente associado ao incesto.
À suposição contínua do simbólico, segundo a qual as normas
estáveis do parentesco sustentam o nosso sentido constante de
inteligibilidade cultural, pode ser encontrada,é claro,fora do discurso
lacaniano. Encontra-se invocada na cultura popular, por psiquiatras
“especialistas”e legisladores, a fim de impediras exigênciaslegais de
um movimento social que ameaça expor a aberração quese localiza
no centro da normaheterossexual. É bem possível argumentar, em
uma perspectiva lacaniana, que o lugar simbólico da mãe pode ser
multiplamente ocupado, queeste nunca é identificado ou identificável
com um indivíduo e que é isso que o distingue enquanto simbólico.
Mas por queo lugar simbólico é singular e seus habitantes múltiplos?
Ou então, considere o gesto liberal que defende que o lugar do pai
e o lugar a mãe são necessários, mas que, veja só, qualquer um. de
DeE pode preenchê-los. A estrutura é puramente formal,
ensores, mas note como seu próprio formalismo
Emrotege
N ra estrutura contra a objeçã
: o crítica. O que devemos pensar
é e habita
habito nto : a formae a coloca em z
crise? Se a relação entre O
ecato é dados É ais .
ma é arbitrária, ela é, ainda assim,estruturada, e suê

10 O Oo Clamor de
Antígona
estr
utura funciona no sentido de domesticar de antemão qualquer
radical do parentesco.”
refo: rmulação
A figura de Antígona, contudo, pode muito bem incentivar uma
leitura que desafia essa estrutura, pois ela não se ajusta à lei simbólica
nem prefigura uma restituição final da lei. Embora emaranhada.
nos termos do parentesco, ela encontra-se, ao mesmo tempo, fora
dessas normas. Seu crime confunde-se com o fato de que a linha de
parentesco da qual descende, e que transmite, deriva de uma posição
paterna quejá é confusa por conta do ato manifestamente incestuoso
que é a condição de sua própria existência, que faz do seu irmão seu
pai, que inicia umanarrativa em que ela ocupa,linguisticamente, todas
as posições de parentesco, exceto a de “mãe”, e as ocupa à custa da
coerência do parentesco e do gênero.
Embora não seja exatamente uma heroína queer, Antígona
simboliza sim certa fatalidade heterossexual que ainda deve ser
revista. Enquanto alguns podem concluir que o destino trágico que ela
sofre é o destino trágico de qualquer um e de todos que se dispõem
a transgredir as linhas de parentesco que conferem inteligibilidade à
cultura, seu exemplo, por assim dizer, dá margem a um tipo contrário

& Temsido umaestratégia aqui argumentar que o tabu do incesto nem sempre produz
a família normativa, mas talvez seja mais importante perceber que a família normativa
de fato produzida nem sempre é o que parece. Claramente há, por exemplo, méritos
na análise oferecida por Linda Alcoff e outros, segundoa qual o incesto heterossexual
nas famílias heterossexuais normativas é mais uma extensão do que umarevogação da
prerrogativa patriarcal na normatividade heterossexual. A proibição não é completa ou
exclusivamente privativa, isto é, como proibição requer € produz o espectro do crime
que proíbe. E para Alcoff, num interessante movimento foucaultiano, a proibição
oferece a máscara que protege e auxilia a prática do incesto. Mas será que há alguma
nessa inversão dialética
razãopara verificar aqui a produtividade do tabu do incesto,
sion or recuperation? ,
do seu objetivo? Ver Linda Alcoff, “Survivor discourse: transgres
SIGNS, v.18, n. 2, p. 260-291, Winter 1993. Para umainteressante e corajosa discussão
Bell, Interrogating incest:
foucaltiana da criminalização do incesto, ver também Vikki
feminism, Foucault, and the law (London: Routledge, 1993).

Judith Butler 101


de intervenção crítica: o que em seuatoé fatal para a heteross
exualida,q
em seu sentido normativo? E que outras formas de Organização E
sexualidade podem surgir a partir da consideração dessa fatalidade» a
Seguindo as escolas de antropologia cultural moduladas pl
análise marxiana e pelo famoso estudo de Engels sobre a Origem
da família, uma escola de antropologia feminista tomou distância
do modelo lévi-straussiano - umacrítica exemplificada talvez de
modo mais forte por Gayle Rubin,” Sylvia Yanagisako, Jan
e Collier,
Michelle Rosaldo” e David Schneider.? A crítica à abordagem
festruturalista, no entanto, não é o fim do próprio parentesco,
| Entendido como um conjunto de acordos socialmente alteráveis,
| destituído de características estruturais transculturais que possam
/ ser plenamente extraídas de suas operações sociais, o parentesco
É ( significa qualquer número de acordos sociais que organizam
a
reprodução da vida material, incluindo a ritualização do nascimento
e morte, proporcionando laços de aliança íntima tanto dur
adouros
quanto vulneráveis e regulando a sexualidade atra
vés “dasanção
e do tabu. Nos anos 1970, as feministas socialistas buscaram faze
r
“uso da análise social inquebrantável do parentesc
o para mostrar que
não há base final para a estrutura familiar normativa
, heterossexual
e monogâmica, na natureza, e pod
emos agora acrescentar que

een
” Gayle Rubin, “The traffic in women: notes on the
Toward an anth political economy” of sex”, in
ropology f women,
Prim
ess, 1975). (Traduçã ed. Ra yna R. Reiter (New York:
o em Português — Tráfic ss pri
política” do sexo, SOS o de mulheres: notas pa
Corpo, Recife, 19 ra uma coa
93, mimeo).
er Gender and kinship, ed
Ve

. Colliere Yanagisako,
. .

abi
orl
dagens :do Para uma excelente crít
piodo «samPearnentte : sco baseadas no ica das
i

o subscreve a análisgêê nero, que moststrra


: como O P es !
e= e antropológica do
il death do us part; marria
ge/ death in anthropa rentesco, ver Joa
pological discou hn rse»
thnologisr, v. 23
,n.2, P. 215-23
Tf Da 8, 1996
adovi s
Schn eia gr the stud
d er, À y of
criti kinship; American kinship (Chicago
i
dá a
10 2 Ocamor de An
tígona
tampouco existe uma base similar na linguagem. Vários projetos
utópicos para reformular ou eliminar a estrutura familiar tornaram-
se componentes importantes do movimento feminista e, até certo
ponto, também sobreviveramnos movimentos queer contemporâneos,
apesar do apoio ao casamento gay.
Considere, por exemplo, All our kin, de Carol Stack, que mostra
que, apesar das tentativas governamentais de classificar as famílias
sem a figura paterna como disfuncionais, os acordos de parentesco em
comunidades negras urbanas constituídas por mães, avós, tias, irmãs
e amigas que trabalham juntas para criar seus filhos e reproduzir as
condições materiais de vida são extremamente funcionais e seriam
descritos erroneamente se medidos a partir do padrão anglo-americano
de normalidade familiar.? A luta para legitimar o parentesco afro-
americano remonta à escravidão, é claro. O livro de Orlando Patterson,
Slavery and social death, defende o importante argumento de que o
parentesco foi uma das instituições que a escravidão aniquilou para
os afro-americanos.”* O senhor de escravos invariavelmente possuía
as famílias dos escravos, operando como um patriarca que podia
estuprar e violentar as mulheres da família e feminilizar os homens;
as mulheres dessas famílias escravas encontravam-se desprotegidas
papel
de seus próprios homens, e estes eram incapazes de exercer seu
de proteger e governar as mulheres e as crianças. Embora Patterson,
em alguns momentos, dê a entender que a principal ofensa contra
e
o parentesco foi a eliminação dos direitos parentais de mulheres
crianças nas famílias escravas, ele nos oferece, contudo, o importante

k:
survival in a black community (New Yor
? Carol Stack, All our kin: strategies for
Harper and Row, 1974).
re
de Hege 1, em sua discussão sob
Ver, em particular, o uso bastante interessante th:
niz açã o na escr avid ão, em Orl and o Patterson, Slavery and social dea
à desuma edora discussão de Patterson sobr
e
4 comparative study, p. 97-101. Para a esclarec
vol ume 1: fre edo m in the mak ing of Western culture (New York:
Antígona, ver Freedom,
Basic Books, 1991), p. 106-132.

Judith Butler 105


“morte social” para descrever esse aspecto da escravidão
conceito da
que os escravo s são tratado s como quem HA em vida,
em
“Morte social” é o termo que Patterson utiliza parase referir à
condição de ser um ser vivo radicalmente privado de todos osdireitos
e qualquer ser
os quais, à princípio, deveriam ser concedidos a todo
questionamento no seu ponto
humano vivo. O que permanece sem
posições correntes
de vista, e que, a meu, ver, reaparece em suas os
objeção ao fato de que
sobre políticas familiares, é justamente sua
à escravidão, de uma posição
homensescravos eram privados, devido
A rigor, o modo como
patriarcal ostensivamente “natural” na família.
defendeu
utiliza Hegel é prova disso. Há muitos anos, Angela Davis
scholar, quando
um argumento radicalmente diferente em The black
estupro, tanto na
destacou a vulnerabilidade das mulheres negras ao
que a
instituição da escravidão quanto posteriormente, e defendeu
a violência
família não serviu como uma proteção adequada contra
racial sexualizada.”* Além disso, pode-se ver na obra de Lévi-Strauss o
movimento implícito entre a sua discussão dos grupos de parentesco,
referidos como clãs, é seus escritos posteriores sobre raça e história,
em que asleis que governam a reprodução de uma “raça” tornam-se
indissociáveis da reprodução da nação. Nesses últimos escritos, ele
sugere que as culturas mantêm uma coerência interna justamente
através de regras que garantem a sua reprodução, e embora ele não
considere a proibição da miscigenação, esta parece estar pressuposta
em sua descrição das culturas que se reproduzem a si mesmas.”
ão
. Naantropologia, a crítica do parentesco concentrou-se naficç
das linhagens consanguíneas, que funcionaram como um pressuposto
paraos estudos de parentesco ao longo do último século. E,no entanto,
o
7
a A A
e Rape, racism, and the myth of the black rapist”, reimpresso em
« o : e, and class (New York: Random House, 1981), p. 172-201.
aude Tio.
uctural anthropology
volume 2, LÃ Race et histoire (Paris: Denoél, 1987); Str
onique Layton (New York:Basic Books, 1974), p. 323-362.
u04 Oclamor de Antígona
interessante
a dissolução dos estudos de parentesco como um campo
ou legítimo da antropologia da presisa levar a uma rejeição completa
do parentesco. Kath Weston deixa isso claro em seu livro Families we
choose, em que substitui os laços consanguíneos como a base para o
parentesco pela filiação consensual.” Podemos ver novos modos de
timento é
parentesco também em outras formas, em que o consen
menosevidente do que a organização social da necessidade: algo como
zou,
o sistema de companheiros que a Gay Men's Health Clinic organi
S
em Nova York, para cuidar daqueles que vivem com HIV e AID
também seria qualificado, de modo similar, como parentesco, apesar
da enorme luta para que as instituições médico-legais reconheçam a
condição parental dessas relações; isso se torna manifesto, por exemplo,
pela incapacidade de assumir responsabilidade médica pelo outro ou,
ainda, de obter permissão para receber e enterrar a pessoa morta.
Essa perspectiva de parentesco radical, que buscou estender a
legitimidade a uma variedade de formas de parentesco e que, de fato,
recusou a redução do parentesco à família, passou a ser criticada por
algumas feministas após a “revolução sexual” dos anos 1960, produzindo,
a meu ver, um conservadorismo teórico que se apresenta hoje em
conflito com as políticas sexuais radicais contemporâneas. É por esse
motivo que, por exemplo, seria difícil encontrar hoje um engajamento
frutífero entre os novos formalismos lacanianos e as políticas queer
radicais de teóricos como, entre outros, Michael Warner e seus pares.
Os primeiros insistem em noções fundamentais de diferença sexual,
baseadas em regras que proíbem e regulam as trocas sexuais, regras
que podemos quebrar apenas para, a seguir, nos vermos novamente
regulados por elas. Os últimos questionam as formasde fundacionalismo
sexual que classificam modos viáveis de aliança sexual queer como
o,
ilegítimas ou, de fato, impossíveis e insustentáveis. Em seu extrem
e
.
Kath Weston, Families we choose: lesbians, gays, kinship (New York: Columbia
University Press, 1991).

Judith Butler 105


r
as políticas Sexuais radicais voltam-se contra
a psicanálise ou, a rigor
contra sua normatividade implícita, já os neof
ormalistas voltam-s,
contra os estud os queer como um projeto “tragica
mente”utópico.
Lembro-me de ter ouvido histórias sobre como os Socialistas
radicais que recusavam à monogamia e a estrutura familiar no início
os
dos anos 1970 acabaram, no final da mesma década, preenchendo
consultórios psicanalíticos e entregando-se com dor ao divã para
análise. E a mim meparecia que a mudança para a psicanálise e, em
particular, para a teoria lacaniana fora motivada, em parte, pelo fato de
que alguns desses socialistas perceberam que havia algumasrestrições
à prática sexual necessárias para a sobrevivência psíquica e que a
tentativa utópica de eliminar as proibições com frequência culminava
em cenas excruciantes de dor psíquica. A passagem posterior a Lacan
me pareceu um distanciamento de umavisão altamente construtivista
e maleável da lei social, acerca das questões de regulação sexual, em
direção a umavisão que postula umalei pré-social, a queJuliet Mitchell
certa vez chamou de “lei primordial” (algo que ela não mais faz), a lei
do Pai, a qual estabelece limites para a variabilidade das formas sociais
e, em seu modo mais conservador, impõe uma conclusão exogâmica
e heterossexual ao drama edipiano. O entendimento dessa restrição
como estando situada para além da alteração social, constituindo
a condição e o limite de todas as alterações sociais, indica, a rigor,
algo da condição teológica por ela assumida. Contudo, essa posição
com frequência se mostra pronta para argumentar que, embora haja
existircoma poRR para o drama edipiano, a o não que

ser estabelecida,
Todo lia rm da ue pode s é io
ni seneroso o ficar satisfeitos isa esse a
» através do qual o perverso é anunciá 0
comoeo essencnc
iaia
l l àà norma. O problema a
, meu ver, é que o perver
ece sepultado justa so
mente aí, como umacaracterística essencial
e.ner i da norma, e a
gati
relação entre os dois permanece estática, sem
ibilitar Tearticula
ção alguma d a própria
norma.
10 6 O Clamor de
Antígona
Nesse sentido, pois, talvez seja interessante
observar que
Antígona, personagem que conclui o drama edipiano,
não consegue
produzir um desfecho heterossexual para esse drama e que isso
pode
indicar a direção para umateoria psicanalítica queato me co
mo ponto
de partida. Antígona certamente não assume uma
outra sexualidade,
umaque não seja heterossexual, porém parece sim desinsti
tucionalizar
a heterossexualidade ao se recusar a fazer o que era necessário para
permanecer viva para Hêmon,aose recusara assu
mir o papel de mãe e
esposa, ao escandalizar o público com seu gênero vacilante, ao abraçar
a morte comoseu leito nupcial, identificando sua tumba como um “lar
profundamente escavado” (kataskaphes oikesis). Se o amor para o qual
Antígonase dirige, ao se dirigir para a morte, é o amor que sente pelo
irmãoe, portanto, de modo ambíguo,pelo pai, trata-se também de um
amorque só pode ser consumado por meio de sua obliteração, que não
é consumação de modo algum. Uma vez queo leito nupcial é recusado
em vida e buscado na morte, ele assume uma condição metafórica
e, como metáfora, seu significado convencional é transformado em
outro decididamente não convencional. Se a tumbaé leito nupcial
e se esta é escolhida em vez do casamento, então a tumba significa a
própria destruição do último, e o termo “leito nupcial” (numpheion)
representa precisamente a negação de sua própria possibilidade. A
Palavra destrói seu objeto. Ao se referir à instituição que nomeia, a
palavra realiza a destruição da instituição. Não seria esta a operação
de ambivalência na linguagem que questiona o controle soberano de
Antígona sobre suas ações?
.
Embora Hegel argumente que Antígona age sem inconsciente,
talvez o seu inconsciente seja de um tipo particular, que deixa seu traço
de forma diferente, que, a rigor, torna-se legível justamente em o
T de referencialidade. Sua prática de nomear, por exemplo, pai a
desfazendo seus próprios objetivos aparentes. Quando Antígona alirma
é irmã i 1080, €
º8ir segundo umalei que dá prioridade ao seu irmão angra meiê
ela parece referir-se a Polinices através
4 dessa descriçã
ICã
o, ela 1

Judith Butler 107


do-que pretende, pois esse irmão poderia ser tanto Édipo
ão há nada na nomenclatura qu
do parentesco qu anto
Do sucesso seu escopo de referencialidade a um€ Possa
Etéocles,
id O coro, à Única
em dado momento, busca lembrá-la de que
de um irmão, porém ela segue insistindo na singularidade
e na irreprodutibilidade desse tera do parentesco. Com efeito,
Antígona busca restringir a reprodutibilidade da Palavra irmão”
é
ligá-la exclusivamente à figura de a porém ela só pode fazé-o
exibindo incoerência e inconsistência.* O termo continua referindo-
se àqueles outros que ela excluiria de sua esfera de aplicação,
e elaé
incapaz de reduzir a nomenclatura do parentesco ao nominalismo,
Sua própria linguagem excede e derrota seu desejo declarado, dessa
forma manifestando algo do que está além da sua intenção,
do que
pertence ao destino particular que o desejo sofre na
linguagem. Assim,
ela é incapaz de capturar a singularidade radical
do irmão através de
um termo que, por definição, deve ser transponível
e reproduzível a
fim de realmente significar. A linguagem, então, dispersa
Antígona busca vincular ao irmão,
o desejo que
amaldiçoando-a, por assim dizer,
com uma promiscuidade que
ela não pode conter.
Dessa forma, Antígona não conquista
o efeito de soberania que
aparentemente busca, e sua ação
não é inteiramente consciente.
é impulsionada pelas Ela
palavras que pairam sobre
ela, palavras de seu

Derrida parece acei


» descrita por He tar a sin gularidade da relação
de Antígona
Embora Derrida el, conforme já
não lei vi mos, como uma relação sem desejo.
; a Antigona, E
Peç em G las, ele aborda a figura
9 à partir dos ter de gra
Passa a mar E m
“fascínio isRi os, dessa leitura P para mostrar como ela
TA Tadical Para O próprio pensam ento sistemático de Hegel e seu
tBura inadmissível dentro dosistema”
(p. 151). Embora eu concorde
ja d Ma peça Possam se
Eu o aa o
ou da Filosofia
do direito, a última curi
sua é
O a obra de art; a osamente aplaudida na
- Persistente legiaçi
á
bilidadee na
mais ma nÍ fica e Bratiai a um equi: voco toma: r
pers ao ficante”, seria
OU neces,Sária, Pertr va hegeliana comosine al de sua ile
.
: gib
ili
abil i dad e

108 O clamor de Antigona


pai, que onde os filhos de Edipo a umavida que não deveria ter
sido vivida. Entre a vida e a morte, ela já está vivendo na tumba antes
mesmo de qualquer desterro. Seu castigo precede seu crime, € este se
torna a ocasião para a sua literalização.
Como devemos entender essa estranha condição de estar entre
a vida e a morte, de falar precisamentea partir desselimite vacilante?
Se de alguma maneira Antígona está morta masfala, ela é justamente
alguém sem lugar que, no entanto, busca reivindicar esse lugar no
discurso, o ininteligível que surge no inteligível, uma posição dentro
do parentesco que não é uma posição.
Embora Antígona busque capturar o parentesco por meio
de uma linguagem que desafia a transponibilidade dos termos do
parentesco, sua linguagem perde a consistência - mas a força da
sua reivindicação não está com isso perdida. O tabu do incesto não
trabalhou como deveria para a foraclusão do amor entre Édipo e
Jocasta, e pode-se dizer que falhou novamente em relação à Antígona.
Acondenação resulta do ato de Édipo e do seu reconhecimento, porém,
para Antígona, a condenação opera como uma foraclusão, eliminando
desde o início qualquer vida ou amor que ela poderia ter tido.
Quando o tabu do incesto trabalha nesse sentido, para foracluir
um amorquenão é incestuoso, o que se produz é um campo sombrio
de amor, um amor que persiste a despeito de sua foraclusão em um
modo ontologicamente suspenso. O que surge é uma melancolia que
se ocupa davida e do amor fora dovivível e do domínio do amor, em
quea falta de sanção institucional força a linguagem a uma catacrese
perpétua, mostrando não apenas como um termo pode continuar
significando fora de seus limites convencionais, mas também como
essa forma designificação sombria atua sobre uma vida, privando-a do
seu sentido de certeza e durabilidade ontológica numa esfera política
Publicamente constituída.
inteligibilidade
Aceitar essas normas como coextensivas à
próprio
cultural significa aceitar uma doutrina que se torna E

Judith Butler 109


e”
instrumento através do qual essa melancolia é Produzida e
Teproduzida
no nível cultural. E ela é superada, em parte, Justament,
€ através do
escândalo repetido com que o indizível, contudo, se faz Ouvir, atra
vés
do empréstimo e da exploração dos próprios termos de
stinados a
garantir seu silêncio.
Dizemos que as famílias que não se
aproximam da Norma,
mas que a espelham de algum modo aparentemente
derivativo, são
cópias inferiores, ou aceitamos que a idealidade
da norma é desfeita
precisamente através da complexidade de
sua instanciação? Pois
as relações que têm sua legitimidade negada,
ou que exigem novos
termos de legitimação, não estão nem
vivas nem mortas, figurando o
não humano nolimite do humano. E não é
simplesmente que essas são
relações que não podem ser honradas ou
reconhecidas abertamente,
& que, portanto, tampouco podem ser
publicamente lamentadas, mas
sim que envo lvem pessoas que também são restringidas
do luto, a quem se nega o poder de co no próprio ato
nferir legitimidade à perda. Nessa
Peça, pelo menos, os parentes de An
tígona estão condenados antes de
seu crime, e a cond enação que ela recebe repete
e
amplia a condenação
que anima suas ações. Comose
pode lamentar a partir do pr
da criminalidade, do Pressupo essuposto
sto de que nossos atos são
fatalmente criminosos? invariável é
Considere que Antígona
está tentando lamentar,
abertamente, publicamen
te, so lamentar
b condições em qu
explicitamente Proibi e o luto está
do por um decreto

Parentesco
que ela ago
a perda do Ta reivindica o direito de lamentar
irmão, ? Ela lamenta
* Das parte do que permanece não
dirigidoao Paie, dito nisso é o luto
à Tigor, ao outro irmão. Sua
mãe permanece como que
uo o Clamor d
eAntígona
inteiramente indizível, e quase não hátra
ços de lam ento por
a irmã, su
Ismene, a quem explicitamente repudiou. O “irmã
o” não é um lugar
singul
ar para ela, embora seja perfeitamente pos
sível dizer que todos
os seus irmãos (Édipo, Polinices e Etéocles)
estão condensados no
corpo exposto de
Polinices, uma exposição que Antígona
busca cobrir,
umanudez queela preferiria não ver, ou não ter
visto. O decreto
exige
que o corpo morto permaneça exposto
e não lamentado, e e mbora
Antígona busque superaresse decreto, não fica int
eiramente claro qual
o objeto do seu lamento, ou se o ato público
que realiza pode ser o
lugar da sua resolução. Ela considera que a
sua perda é o seu irmão,
Polinices, insistindo em suasingularidade, mas essa
própria insistência
é suspeita. Assim, a insistência na singulari
dade do irmão, sua
irreprodutibilidade radical, é desmentida pelo luto
que Antígonadeixa
de realizar por seus outros dois irmãos, irmãos que
ela não consegue
reproduzir publicamente. Aqui parece quea proibição
doluto não lhe
é simplesmente imposta, mas sim prescrita independe
ntemente, sem
pressão direta da lei pública.
Sua melancolia, se podemos assim chamá-la, parece consis
tir
nessa recusa ao luto, realizada através dos próprios termos
públicos
com que insiste em seu direito de lamentar. A reivindicaçã desse
o
direito pode muito bem ser o sinal de uma melancolia que atua em
seu discurso. Suas sonoras proclamações de lamento pressu
põem
um domínio do não lamentável. A insistência no luto público é
O que a afasta do gênero feminino, aproximando-a da húbris, do
CXCessO tipicamente masculino que faz com que os guardas, de
cida
Creonte se perguntem: quem é esse homem? Parece haveraqui alguns
Omens espectrais, habitados pela própria Antígona, os
irmãos cujo
Ugar ela tomou, transformando esse lugar
no próprio a de pena
melancólico, Freud nos diz, registra o seu “Lamento”, indica po
Teivindicação jurídica, na qual a linguagem torna-se O evento nr
Na qual, surgindo do indizível, a linguagem traz consigo uma violêni
Que a leva aos limites da fala
.

Judith Butler 111


Podemos nos perguntar o que aqui permanece indizível, não
para produzir um discurso que preencha o
vazio, mas para investigar
a convergência da proibição social e da melancolia, Para entender
como as condenações sob as quais vivemos transformam-se nos
repúdios que realizamos e como os lamentos que surgem contra a ki
pública também constituem tentativas conflituosas de superar a raiva
emudecida de nossos próprios repúdios. Ao confrontar o indizível
em Antígona, estaríamos confrontando uma foraclusão socialmente
instituída do inteligível, uma melancolia socialmente instituída na qual
a vida ininteligível surge na linguagem,tal como um corpovivo pode
ser enterrado numa tumba?
Com efeito, Giorgio Agamben observou que vivemos cada
vez mais numa época em que há populações sem cidadania
plena
dentro dos Estados; seu estatuto ontológico enquanto suje
itos legais
encontra-se suspenso. Estas não são vidas destruídas
pelo genocídio,
nem são vidas que adentraram a esfera da com
unidade legítima,
possuidora de padrões de reconhecimento que permit
em a conquista
da condição humana.” Como devemos entender
esse campo, descrito
por Hannah Arendt como o “reino sombrio”
, que assombra a esfera
pública e é excluído da constituição públ
ica do humano, mas que
é humano num sentido aparentemente catacrético do
termo?" A
rigor, como devemos entender esse dilema da linguagem, que
surge
quando o “humano” assume um duplo sentido, o normativo, baseado
na exclusão radical, e o que surge na
esfera do excluído, não negado
Ou mort o, talvez morrendo lentamente, sim,
certamente morrendo de
umafalta de reconhecimento, morrendo,
de fato, de uma circunscrição
Prematura das leis através das quais o reconheci
mento como humano


Ee Agambe
n, Homo sacer: sove
n (Stanford: Stanford reign power and ba
re life, trad. de Dani
University Press, 19 el Heller

Hanna
E
98).
h Arendt, The human
condition
iti (Chicago: University
of Chicago
i Press, a

112 q Clamor de
Antígona
pode ser conferido, um reconhecimento sem o qual o humano não
pode vir à ser; devendo permanecer afastado do ser, como aquilo que
não chega a ser qualificado comoo que é e pode ser? Não seria isso
uma melancolia da esfera pública?
Arendt, é claro, estabeleceu uma distinção problemática entre
o público e o privado, defendendo que na Grécia clássica o primeiro
sozinho era a esfera do político e que o último era mudo, violento e
baseava-se no poder despótico do patriarca. Logicamente, ela não
explicou como poderia haver um despotismo pré-político, ou como
o “político” deve ser expandido para descrever o estatuto de uma
população do menos que humano, formada por aqueles que não
estavam autorizados a entrar na cena interlocutória da esfera pública,
na qual o humanoé constituído por palavras e feitos, e, com ainda mais
força, constituído quando suas palavras se convertem em feitos. O que
Arendt deixou de mencionar em A condição humana foi precisamente
a forma com que os limites entre as esferas pública e política foram
assegurados através da produção de um fora constitutivo. E o que ela
não explicou foi o elo de mediação que o parentesco ofereceu entre
as esferas pública e privada. Os escravos, as mulheres, as crianças e
todos aqueles que não eram homens proprietários não eram admitidos
na esfera pública em que o humano se constituía através de feitos
linguísticos. O parentesco e a escravidão, portanto, condicionam a
esfera pública do humano e permanecem fora dos seus termos. Mas
será que esse é o fim dahistória?
Quem, portanto, é Antígona nesse cenário, e o que devernos
fazer de suas palavras, palavras que se tornam eventos dramáticos e
atos performativos? Ela não pertence ao humano, porém fala por
meio de sua linguagem. Proibida de agir, ela, no entanto, age, € Seu
ato está longe de ser a simples assimilação de uma norma Un
Ãoagir como alguém que não tem o direito de fazê-lo, ela perturba
9vocabulário do parentesco que é uma precondição do humano,
implicitamente levantando a questão, para nós, de quais realmente

Judith Butter 113


devem ser essas precondições. afala = vaga e direit
ualestá excluída, participando a IR E tcação com a oda
qua lnenhumaidentificaçãofinalé pos hecel. cla é humana, eng à
humanoentrou em catacrese:já não consív emos mais seu uso Próprio,
E na medida em que Antígona ocupaa linguagem quenunca Pode lhe
pertencer, ela funciona como um quiasmano vocabulário das normas
políticas. Se o parentesco é a precondição do humano,então Ant
ígona
é a ocasião para um novo campo do humano, conquista
do através da
catacrese política, que ocorre quando o menos que hum
ano fala como
humano, quandoo gênero é deslocado e o parent
esco afunda em suas
próprias leis fundadoras. Ela age, fala e
se torna alguém cujo ato de
fala é um crimefatal, mas essa fatalidad
e excede sua vida e adentra o
discurso deinteligibilidade comosua própria fa
formasocialde seu futuro aberrant
talidade promissora, a
e, sem precedentes.
Posfácio à edição brasileira

O gênero por vezesse desfaz


quando é muito difícil de se ouvir:
reflexões sobre Antígona
Judith Butler

É difícil tecer generalizações sobre a tragédia em si, porém


provavelmente estaríamos fazendo um desserviço se não cometêssemos
tal erro. Se afirmamos, por exemplo, que uma ação selvagem ou
frenética traz destruição e que, dentre as coisas destruídas, está seu
próprio autor ou autora, então talvez tenhamos caracterizado diversas
figuras da tragédia. Talvez pudéssemos dizer que tanto Antígona
quanto Creonte agem de forma selvagem, teimosa e/ou frenética.
Capturados por algo que consideram ser, sem dúvida alguma, a coisa
certa a fazer, eles estão dispostos a arriscar a destruição do que lhes
é mais próximo ou, a rigor, de sua própria vida, em vez de mudar de
ideia. Pode-se dizer que tais formulações são verdadeiras sobre os
Personagensdessa peça, porém também podemos dizer queé possível
inferir uma conclusão moral mais ampla a partir desse relato — e que
tal moral pode ser pedagogicamente útil para nós, para todos nós, já
que, a princípio, pertence às verdades da natureza humana, ou, pelo
menos, às verdades da ação humana. Essa é certamente uma maneira
de ler a tragédia, e talvez até haja alguma verdade nesse tipo deleitura.
]a
pp pede que nos identifiquemos com Os a
Siias à Spas de extrapolar e de estabelecer anne so E
guras ficcionais ou míticas, além de, inclusive, extrair regra:

Judith Butler 115


artir da ação que vemos, para então aplicá-las ao nosso
gerais a P . , - k
próprio mo
do de agir e viver. Lembro-m e de alguns anos atrás,
stava, de fato, com o pé inchado, algo a que busquei não
panpp e por isso continuei utilizando meussapatos como
À Porém, certo dia, enquanto viajava, time de parar num
determinado local, depois de perceber que fine pé agora doia tanto,
e estava tão inchado, que eu literalmente Po podia seguir adiante
(algo que, a propósito, não aconteceu com Edipo, apesar do seu pé
inchado). Como uma leitora da tragédia, não pude deixar de rir da
minha situação, uma vez que, de certa forma, eu me identificava com
Édipo, brevemente,e, portanto, tinha de me perguntar com que tipo de
impedimento eu estava vivendo. Havia, com efeito, um impedimento
que eu buscara não entender e não reconhecer, assumindo que eu sou,
afinal de contas, um ser que anda, cujos pés servem para me apoiar €
para tornar possível o meu movimento adiante num terrenoestável.
Essa própria presunção, contudo, tinha de ser por mim
questionada, porém recusei fazê-lo, pois não queria quetal presunção
de mobilidade fosse de algum modo ameaçada. À espera de algo, pode-
se dizer, dirigi-me ao chão, ou melhor, encontrei-me finalmente no
chão, derrotada, sentada à beira da estrada, curvada de dores e lamentos
porconta da capacidade perdida.
É claro que aqueles que leram essa tragédia e conhecem suaforça
extraordinária na história da Psicanálise se veem incapazes
de operar
e
completament fora de sua órbita. De certo modo, a própria
tragédia
Passa a agir como uma maldição sobrea vida cotidiana, Uma vez que
Você a conhece, você não pode deixar de conhecê-la;
e, ainda assim,
pastasê-la não :significa) ter recursos suficientes para
conhec : efetivamente
o
a lhe. Você pode, claro, tentar não conhecê-la - e, pode-se
Inclusive dizer, você deveé tentar não conhecê-la -, porém ela retorna,
mais forte do qu
de reivindicá € O seu conhecimento, para fazê-lo tropeçar ou à figa
Kids É icá-lo para si nofinal, Mas mesmo esse fato, então, desafia
ia € que éá possível
h ; :
extrair algumas verdades sobre como viver

116 Oq clamor de
Antigona
a partir da leitura da tragédia. Afinal de contas, Édipo conhece e não
conhece. Eurídice conhece e não conhece. E o próprio Laio conhecia
e não conhecia. O conhecimento estava em algum lugar nos arquivos

da memória, exercendo de lá a sua força, e, contudo, era claramente


sua
desconhecido no momento da ação, ou então não se conhecia a
ligação com uma sequência inteira de ações e efeitos subsequentes.
Assim, se devemos ver que certo desconhecimento pode apagar, e de
fato apaga, O que conhecemos, se ele torna inacessível, inaudível ou
invisível, em certas conjunturas, isso que conhecemos, então parece que
não podemos simplesmente derivar determinadas lições da tragédia
para aplicá-las com conhecimentoe certeza absoluta. A rigor, é a própria
certeza do conhecimento que nosé questionada em tais momentos.
Assim,se lemos ou assistimos a uma tragédia e acompanhamos
as suas sequências, seguindo também as idas e vindas do coro, do
profeta e dos mensageiros, nós nos vemos em meio a uma constelação
de ações sofridas e empreendidas que nos deixam sem saber ao certo
como explicar o que aconteceu. Nós mesmos seguimos e sofremos algo
no exato momento em que lemos ou assistimos a essa cena ambígua,
em queos personagens tanto agem quanto seguem determinada ação.
E emboraa leitura do público e o ato de assistir à peça não sejam
qualificados como ação no mesmo sentido, eles constituem, sim, uma
experiência de participação, testemunho e vivência, e, nesse sentido,
constituem um modo de sofrer e absorver que nos conduz ao próprio
fenômeno quea tragédia narra e exibe.
Tudo isso serve para dizer que, mesmo se fôssemos capazes de
estabelecer uma definição genérica da tragédia, estaríamos tentando
estabelecer, restritos ao terreno da forma, algo que invariavelmente
“Xcede a forma, um teatro visual e auditivo que nos intima € assusta,
UM teatro cuja força depende essencialmente de estarmos de algum
Modo implicados na ação. Não é como conhecedores imparciais que
Ng assistimos à tragédia, mas sim como aqueles al2as
ecimento é aí graficamente registrado e representado.

Judith Butler 117


forma, se afirmamos que devemos nos enacarcomum Personagem,
ou até mesmo com todas as ações da Ford, Isso não € ega a explicar de
fato o problema que nos toca. Sou e ndo sau eu ali. Meu pé está tão
inchadoque serei vencido pela estrada; não, não a meu pé, nãoeu, não
vencido. Nunca. Mastalvez essa limitação na ação seja, na realidade,
o que poderia ter ajudado Edipo a evitar o seu destino. Assim, se à
negação e até mesmo a desidentificação são parte do que vemos, e
parte do que sofremos quando lemos ou assistimos à peça, como no
nosso caso, então talvez a tragédia trace oslimites da identificação,sua
dificuldade fundamental, inclusive suas zonas mais intratáveis.
Qualquer ato de identificação será dilacerado pela
desidentificação, e qualquer tentativa de afirmar as verdades ali
encontradas será desordenada pela negação. O surto de luto, a forma
comoeste finalmente inunda a cena, não chega a reparar
ou reverter
essas estruturas móveis de negação, que sustentam,
ao mesmo tempo,
através da mesma formação, duas crenças que
são radicalmente
incomensuráveis ou que estão em evidente contrad
ição uma com
a outra. Assim, se uma contradição é
exposta e a destruição a segue,
passamos a lamentar o que já aco
nteceu, porém estamos pouco
providos de novas ferramentas com
que encar ar O futuro; a rigor, não
nos é dada prescrição algumasobr
e que cami nho tomar ou que ação
empreender, e não está claro que capa
cidade de agência, se é que há
alguma, podemos finalmente ter. Com efeito,
se esperamos que uma
filosofia moral Possa surgir
da tragédia, caso sejamos estabelecidos
Como se res éticos, deixamos de comp
reender como a agência é,
com frequência, just:
amente o ponto de inflexão numa sequência
destruição. Porém, de
s € esperamos que a tragé
do destino, estabele dia nos torne fantoches
desde o início, cendo nossa ação como plenamente determinada
per
de inflexão, Quando qi Eira importância de
medo, o horror e à O ponto de vista é a antecipaçã ptdo ponto
o Eio
ao, orla to ecuo, estamos sempre ligeiramente à frente
potentes Para evitá-la; contu
'
do, mais uma vez, não
é

118 OQ Clamor de
Antígona
recisamente a nossa própria ação que vemos. De fato, a visão nos
rmite estar à certa distância daqueles que vemos, mesmo quando
nossa absorção e medo nos implicam nessa própria ação: poderia ser
eu, ou fui eu, OU serei eu — e, ainda assim, não eu, é clar
o que não,
nunca. Nossa localização temporal se fragmentaao assistirmos à peça,
mas só com o luto acabamos aceitando que uma sequência se completa
com consequências devastadoras. Alguns grupos deeventos se tornam
uma estória, até mesmo uma história, e em luto vivemos o presente
de um modo tal que sabemos não setratar do passado. O passado era
quando eles estavam vivos. O presente é marcado precisamente pela
irreversibilidade de suas mortes e pelo desfecho dessa sequência de
ação a que assistíamos. Somos deixados em luto, e o único conforto
que temos nesse momento é o conhecimento de que a peça acabou. O
encerramento é sua devastação e seu conforto.
Parece que, como espectadores, concluímos nossa participação
na condição de não termos morrido na peça. Isso significa que
somos deixados com vida no final. Sobrevivemos àquilo que vimos.
Mas a raiva e o luto que estruturam a tragédia revelam algo sobre a
experiência do tempo, especialmente quando o tempo é marcado pela
distinção instável entre vida e morte. Isso ocorre no caso de uma morte
emvida (tanto Antígona quanto Édipo descrevem-se a si mesmos dessa
Maneira), ou dos mortos que continuam reivindicando algo dos vivos
(a maldição da casa de Lábdaco opera desse modo, bem como o corpo
de Polinices). No texto de Antígona, é muito difícil registrar os atosali
cometidos, isso precisamente porque, de acordo com a nomenclatura
de Lacan, algum limiar se abriu de modoa tornar a vida insustentável,
OU quase isso. Algo demasiado, praticamente impenetrável, chega a esse
lugar, mas não de umavez só; assombra todasas suas ações € conversas,

o e ouvir o que é dito, ou quando precisa que eu Ta


ja repetida para entender o seu significado. Bem leme
Peça, Antígona pergunta: “E agora... Que novo decreto — propatá
Judith Butler 119
é este que o general acaba de prrotiromar em toda a cidade?”e tanto
ela quanto Ismene devem inferir, a partir do que os outros disseram
,
que Creonte proibiu o enterro de Polinices, acusado de conduzir um
exército inimigo contra Tebas. Creonte disse isso? Quem Ouviu isso?
Você ouviu? Depois que Antígona e Ismene discutem e Antígona
decide desafiar o decreto e enterrar o irmão, Ismenelhe pede que o
faça em silêncio, sem proclamar o seu ato em público. Isso
enfurece
Antígona, que responde: “Por Deus. Fala, peço-te! Muito
mais odiosa
me serás calada. Declara tudo a todos”. Ismene teme que
a proclamação
pública seja demais, teme que Antígona, por cont
a disso, seja punida
fatalmente, porém esta insiste queirá proclamar
e reconhecer esse ato,
desafiando os limites do que Creonte pode ouvi
r - bem comoo que a
obediente Ismene pode ouvir. A rebeldia envo
lve t estar e quebrar os
limites impostos no campo do audível.
Aoouvir a notícia de que Polinices foi enterrad
o, Creonte, ao que
Parece, trava sua própria luta com a audibili
dade. Ele não será um líder
que “porreceio traya a língua”. Sua promes
sa defalar assemelha-se à de
Antígona, no entanto ambos reconh
ecem, retoricamente, que o medo
pode derrotar a fala e que cada um
dos seus atos de fala deve superar
esse medo. O guarda que porta a
novidade do enterroil egal temeser
punido por falar - ele parece um
personagem dos irmã os Marx, que
deve revelar a notícia a Cr
eonte, mas que sabe que este
suportar o que ouve, € que sua não poderá
ira pode muito bem voltar-secontra ele
próprio. Se eu lhe re velar a
notícia, Prometa não me punir por fazê-
lo ouvir o que você não
suportará ouvir. Já que algum redemoinho
de poeira aparente mente
antecipou-se ao enterro, tornando difícil
Para que os guarda S vejam quem o realizou,
e como não havia marcas
deixadas pelo co
TPo que poderiam conduzir ao culpado, o guarda
Teporta que pode ter sido
algum feito dos deuses.
“Cala-te antes que Creonte responde,
É tuas ponderações me enfure
velho,ignorante. É intolerável o que dizes, que çam. Não sejas, além de
os deuses se interessem
Por este morto”, Insuportável o
que você diz. O que há na fala
que à
120 Oo clamor de An
tígona
tornatão insuportável? Creont
e disse isso? Antígona dirá qu
Comopode 0 guarda dizer e o fez?
que os deuses talvez tenh
am vindo resgat
ar
o corpo em decomposição? Quando Creonte per;
percebes que não aguento mais tua ; Bunta ao guarda,“Não

»
voz?”, o guarda responde, “Ela te
E
dói nos ouvidos ou na mente?” Creonte Irrita-se tanto com o
de ferir que a fala do guard poder
a parece Possuir quanto com se
u motivo:
“Que te importa saber onde ela me dói?” O guarda insist qu
e e ele não
é a causa da dor: “O infrator te perturba o
espírito; eu, os ouvidos”
Qua ndo Creonte e Hêmon travam seu
duelo verbal, Creonte teme
ser desmasculinizado por seu filho, temeser coloca
do numa posição
de subordinação em virtude do conselho queeste lhe
dá. À Antígona,
antes, ele afirma, “nenhuma mulher me dá ordens
”, e depois acusa
Hêmon,seu filho, de ficar do lado de uma mulher
(e Hêmonresponde,
“Se tu és mulher, sim; preocupo-me contigo”. A seg
uir, mais uma vez,
Creonte argumenta que Hêmoné mais fraco que uma mulhere
, então,
novamente, considera-o escravo de uma mulher.
Que fantasmapaira aqui, que fantasma Creonte busca combater
quando se recusa a ouvir O que seu filho tenta dizer? Caso ouça,
ele aparentemente perderá a sua masculinidade. Ouvir é figurado
como um tipo de entrega, uma atividade feminina que o transforma
Numa mulher. Se ele ouve e aceita o que ouve, então perderá sua
Posição como um homem. E isso nos diz que o seu gênero pode ser
facilmente desfeito caso ele se torne suscetível àquilo que ouve. Se a
masculinidade é assegurada através da proibição da Eneuta, Se ounie
Significa sucumbir, então Antígona é certamente outro tipo defigura
masculina, pois ela não aceitará conselhos, mesmo quando está
claro
que morrerá em virtude de suas ações. Meu argumento é que
oa
não apenasé transponível - ela pode rapidamente se tornar pe
ele, mulher -, como a masculinidade pode ser aqui a
não
“so alguns grupos de palavras alcancem o ouvido. Se Cre
a netrado e
combate ag palavras, deixando-as adentrá-lo, ale Esdenis
derrubado, e ele próprio se encontrará involuntariame

Judith Butler 121


de sua masculinidade. O que, porto, a masculinidade mm à ver com
cia uma
os limites da audibilidade? Pode-se dizer que reonte viven
ansiedade de castração diante das enunciações ud quequestionam
a justiça e a autoridade final de amo pspias PISEENÇÕES, Ou Aun
proclamações compelem à obediência, ou ele se Fernaná obediente às
contraproclamações de Antígona, do guarda ou de Hêmon. Ele parece
viver num mundo, dentro de umalógica, em queos atos de fala que
conduzem as ações dos outros são entendidos como prerrogativa dos
homens, e em quea incapacidade de conduzir as ações dos outros por
meio dosatos de fala culmina na perda da masculinidade. Essa perda
também ocorre quando o discurso do outro adentra o ouvido e se
torna, involuntariamente, uma exigência que deve ser obedecida.
Mas essa seria uma ferida narcisista de Creonte ou trata-se de
algo demasiado insuportável para ser admitido? Desejo sugerir que
essa ofensa nãoé ainda o insuportável, muito embora abra o caminho
para este. Afinal de contas, ele lutará para preservar a fragilidade
de sua masculinidade contra a desapropriação súbita, ainda que as
consequências sejam a morte de sua mulher e filho e a perda da sua
legitimidade como governante da pólis. Além disso, no final, ele se
refere a si mesmo como selvagem e frenético em sua tentativa de
manter o poder, porém agora já vencido e desfeito por um lamento
que torna a vida impossível. Será que: ele pensou que a castração
simbólica era o pior desfecho possível, para então perceber que, tivesse
ele cedido, teria ajudado a preservar as vidas daqueles que amava?
Porém, ainda assim, essas formas sucessivas de desobediência foram
um choque, uma vez que desafiavam sua vontade e contestavam sua
autoridade. Masisso é apenas o começo do que é chocante,
o começo
da sequência que conduzà conclusão insuportável, à perda a que não se
podesobreviver. Significativamente, quando fica sabendo do enterro,
Creonte necessita de uma narrativa completa para

ocaBete dsds aa depe


compreender o que

Tavés da repetição de umahistória. De forma

122 Oclamor de Antígona


similar, quando Eurídice ouvedizer que seu filho está morto,el
a Ed . a surge
no palco € pede, por favor, que a história seja recontada:

Senhores conselheiros, captei palavras ao sair para fazer preces


a Palas Atena. Eu desprendia os ferrolhos da porta cerrada,
quando notícias de males da minha gente me feriram os
ouvidos. Caí desfalecida nos braços das minhas domésticas,
tomada de medo. Qualquer que seja a notícia, quero ouvi-la.
Falai! Em desgraças sou experiente.

Como Creonte, ela busca registrar esse evento por meio


da narrativa, uma narrativa que pode e deve ser repetida através
do tempo. O evento, sem a narrativa, limita a crença, mas, uma vez
apresentado em forma narrativa, certo reconhecimento passa a ser
possível. Eurídice parece sugerir que pode sobreviver à história, pois
já conheceu a dor antes, porém, ao sair do quarto, ela é descrita como
se estivesse num estado de mudez; logo depois, ficamos sabendo que
ela cometeu o suicídio. De certa forma, a história a conduz para fora
do campodo dizível; Eurídice ouviu algo que fez com que nunca mais
pudesse ouvir nada. Será queela foi morta pelo que ouviu? Ou, quem
sabe, já estava morta? Ou será que agora ela pode morrer, sabendo que
uma história repetível sobreviverá à sua partida? .
É Antígona quem declara, antes na peça, já estar morta, então
O que importa se ela arrisca a sua vida? Ela explica à Ismene que, para
ela, “se ao fazê-lo tiver de morrer, que bela morte será”. Porém também
diz que não apenas ela, Antígona, odiará Ismene por Sua covardia,
suas
como os mortos também a odiarão. Mais tarde, ao defender
ações rebeldes diante de Creonte, ela argumenta: “Se
antes Ei ais
morremos, considero-o ganho. Quem vive num mar a
na Ms
às minhas, como não há de considerar a morte lucro?- E a esta
Negaa deixar que Ismene assumaa responsabilidade pelo ae já há
Se recusou a cometer, Antígona observa: “Vives, bia aa 860,ela
Muito está morto. Morta, quero servir aos mortos - o

Judith Butler 123


sa Ni a casa de seu pai,
se refere explicitamente à maldição que pi
retornarà sua mãe e pai, que
mencionando como à morte lhe permitirá
estão mortos. Trata-se da maldição de morrer sem casar, ela diz, porém
(com sen
logo antes deixa claro que º leito decasamento de sua mãe
filho/marido)era a própria destruição” — “Destruição ondese deitava
ersas
com seu filho/marido”. Sua própria vida parece chegar ao fim div
morte de
vezes, com a morte de seus pais, mas também agora com a
es, mas
seu irmão, Polinices (ela parece não lamentar a perda de Etéocl
essa é outra história). A morte parece implicar um retorno aos seus
nto (“6
pais, inclusive ao útero, mas também a certo tipo de casame
tumba, ó leito nupcial”. Contudo, logo antes disso, Antígona refere-
o
se a Polinices, ou seria Édipo? “Meu irmão, tu encontraste teu destin
quando encontraste a tua esposa”, e aqui, a princípio, ela parece falar
de seu irmão Édipo, que casou com sua mãe e se tornou seu pai. Mas
será que ela também está falando de Polinices? Ou, de algumaforma
estranha, fala de ambos? “Meu irmão, tu encontraste teu destino
quando encontraste a tua esposa, encontraste o meu destino também”.
Estaria ela, pois, vivendo também esse destino? O verso seguinte nos
diz: “Morto, tu destróis a minhavida”. Podemos ler isso de pelo menos
duas maneiras. Morto, Édipo, você destrói a minha vida - pois você
está morto, ou porque você cometeu o incesto e me tornou filha
do incesto, e, dessa forma, lançou uma maldição sobre mim. Morto,
Polinices, você destrói a minha vida, já que não posso fazer outra
coisa senão enterrá-lo, desafiando a lei que me obrigaria a deixá-lo
desonrado. Masserá que Polinices encontrou umanoiva? Será que isso
significa que Antígonaseria tal noiva e que sua união incestuosa é de
um tipo que só poderia ocorrer na morte? Parece igualmente possível,
portanto, que a tumba ou leito nupcial adentrado seja precisamente
aquele em que ela casa com esses vários membros de sua família: paie
irmão ambos, ambos paie irmão — tanto Polinices quanto Édipo.
E claro que Antígona não tem esse mesmo apego à todos 08
membros da família - ela nãose sacrificaria da mesma forma por seus

124 Oclamor de Antígona


alhos, nempor qualquer marido (nesse sentido, Hêmon é claramente
mais dedicado do que ela, MInA ER que está disposto a morrer por
ela, ao que parece). ds pis já ARE, o ue significa que eles não
oderão lhe dar outro fita, e sem esse irmão,ela nãoviverá. Morto,
você me destrói: isso significa que a minha vida não pode sobreviver à
sua morte e que esse laço entre nós é a minhavida.
Ficamos com algumas ambiguidades importantes, aqui, como
resultado de toda essa voluptuosa confusão de parentesco. Para
Antígona, os mortos ainda agem sobreosvivos. Eles exigem um enterro
adequado e lançam suas maldições; há certo modode agir dos mortos,
uma prosopopeia consequente, e há também certa forma de abordar os
mortos, uma apóstrofe. Essa cena de interlocução constitui uma outra
cena, uma cena oriunda de um outro tempo, que,no entanto, intervém
e orquestra algo da sequência que constitui o tempo presente. Se, de
algum modo, Antígona já morreu, então, quando desafia Creonte e é
condenada à morte, essa morte é redundante. Será que podemosdizer
que Antígona é responsável por isso, ou devemos culpar Creonte por
tal morte? Se ela não tivesse agido, será que teria vivido? Isso parece
improvável, uma vez que já estava morta. Se Creonte tivesse cedido,
teriam Antígona, Hêmon e Eurídice sobrevivido? Pergunto-me se
estamos tocando a questão correta quando identificamos a personagem
como o agente central da ação. Se viver dentro de uma maldiçãosignifica
que nosso destino, de certa forma, está orquestrado de antemão, então
como devemos pensar o problema da agência nessa cena? Logicamente.
há certa agência da variedade padrão, já que podemos nos encontrar
em meio ao desejo de que Antígona seja mais perspicaz, ou que Creonte
Seja mais leniente, Mas se nos concentrarmosapenas nisso, perdemos
de Vista a história por detrás da ação, ou seja, deixamos de ver a pré-
história da cena que atravessa a cena. Os mortos aqui ainda agem, €
alguns daqueles que estão vivos agem a partir da crença de que pu
sendo por =e
Mortos. Ou estão convocando os mortos, ou estão
chamados - essa ambiguidade fundamental é o que define e estru

judith Butler 125


a própria maldição. Quem precisamente chama quem,e quem c
uz ond
quem? Nós conhecemos, e podemos conhecer? Quando a minha vida
está de tal modo vinculadaà vida de outra pessoa, a ponto de Sua morte
significar a minha destruição, quem sou eu, então, senão esse vínculo?
E será que posso distinguir, com exatidão, o cham
ado que do túmulo a
mim se dirige (prosopopeia) do chamado queeu faço ao ser inanimado
(apóstrofe)? Será que a maldição constitui, precisamente,a inabilidad
e,
a impossibilidade de distinção entre os dois? Seria a maldição um
nome dado ao vínculo transgeracional com aqueles que precedem
e
excedem os termos de nossa própria existência?
Onde está a agência na maldição? Édipo observa: “Ó
Deus,
creio que, sem saber, atraí maldições para mim”. De certa
forma,trata-
se de um enunciado impossível. Édipo não diz: “Eu me
amaldiçoei”,
pois ele não é a origem da maldição. A maldição é anterior a qual
quer
chamado que ele possa fazer, e, contudo, ele a atrai
para si. Nesse
sentido, certa ação da maldição converge com certa
ação sua - a
coincidência é dolorosa, inclusive fatal, porém é uma
coincidência.
Em outras palavras, é ainda mais assustadora
justamente porque,
por mais “destinada” que seja, não é determinada de mod
o causal. À
maldição só age quando invocada sobre aquele em que age. E
o risco
dramático é que o personagem irá, de fato,
invocá-la. Um não age sem
9 outro. Essa duplicidade é certamente parte do que que
remos dizer
quando falamos de ação trágica.
Finalmente, observemos que
a peça concentra-se na proibi
dolut o público. Essaé à Peça de Sófo ção
cles, porém ela acaba partilhando
um tema com A república,
de Platão. À república nã
Porém propõe um controle sobre as formas exoceban eo luto público,
ssivas de lame nto
que desestabilizam as
hierarquias da alma so
política se estrutura. bre as quaisa hierarqui
É certo que Creonte
poder, e a subserviência busca manter o seu pr
absoluta dos outros, atra óprio
mers aqui parece ser de vé
honra - Polinices snãda proibição
o será h do
n
s m Creonte, inadvertidamen
te, desencadeia
uma torr
126 Oq Clamor de A
ntígona
de luto e, até mesmo, orquestra para si uma morte em vida, resultante
de sua própria destrutividade e desonra.
Se há um sério perigo no luto mudo, conforme o coro observa
quando Eurídice retrocede, será que há também, Potencialmente, certa
diminuição do perigo, então, no luto articulado? Podeo luto articulado
opor-se 20 movimento da maldição, ou será que ele chega muito tarde?
Em Antígona, o luto depende da preservação e do enterro do corpo
humano, da capacidade de preservar a forma humana do corpo morto.
Polinices só será adequadamente enterrado,só realizará sua passagem
deste mundo para um outro, caso seu corpo seja coberto e protegido
dos predadores. E, no entanto, Antígona não se diferencia tão
completamente dos pássaros contra os quais busca proteger o corpo
do irmão. Embora a distinção humano/animal pareça depender dessa
proibição contra a ingestão do morto, de certa forma, essa matéria
humana morta deve permanecer diferenciada de outras formas de
matéria orgânica morta. Caso contrário, a sucessão é destruída, e o
humano já não pode mais ser diferenciado dos animais que lhe servem
de comida ou que podem comê-lo. Masse Antígona busca preservar a
distinção humano/animal, somente pode fazê-lo surgindo ela mesma
como um pássaro. Por queo grito de Antígona é descrito como “o grito
estridente de um pássaro protegendo seus filhotes”, uma vez que é
precisamente contra os pássaros e sua ação predatória que ela busca
proteger o irmão? Será que ela pode ser finalmente diferenciada da
em aberto,
destruição a que busca resistir? Essa permanece a questão
que sugere não haver um porquê final a partir do qual distinguir um
personagem trágico daquilo que destrói a sua vida, já que, emboraa
no fim das contas,
destruição venha de um outro lugar, ela é também,
algo quefurtivamente nos pertence.

Judith Butler 127

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