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CONSIDERAÇÕES SOBRE A DESOBEDIÊNCIA CIVIL
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Celito De Bona
Resumo: A Desobediência Civil vista como uma das várias espécies de resistência
do homem frente a uma ordem jurídica injusta, sua conceituação, requisitos e várias
passagens históricas. É este o intento do trabalho apresentado que também conta
com uma apreciação de sua não utilização e impedimentos pelo povo brasileiro, a-
lém de uma análise do Movimento Sem Terra e sua possibilidade de aplicação. Di-
reito fundamental a uma ordem jurídica justa, o cidadão pode utilizar e propagar o
instituto em sua finalidade de forma responsável, exigindo da maioria ou de seus
governantes o respeito a direitos individuais e sociais. Cada vez mais, se torna impe-
rioso o conhecimento de tal instituto.
INTRODUÇÃO
É cediço que o Direito, assim como as demais ciências, passa por um perío-
do de crise de identidade. Boaventura de Souza Santos formula, com lucidez e bri-
lhantismo, a crítica questão:
1
Graduado pela Universidade Paranaense, UNIPAR-Toledo; especialista lato sensu em Direito Civil e
Processo Civil pela Universidade Paranaense, UNIPAR-Toledo; especialista em Filosofia do Direito
pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE; mestre em Direito Negocial, na área de
concentração em Direito Civil pela Universidade Estadual de Londrina - UEL; ex-bolsista da CAPES;
professor e coordenador de pesquisa do curso de graduação em Direito no CEULJI - Ulbra (Ji-
paraná/RO). Membro do IBDFam - Instituto Brasileiro de Direito de Família. Advogado. E-mail para
contato: celitodebona@hotmail.com
obrigatória de lei – a idéia de que ela deve ser obedecida pelas pessoas cuja condu-
ta regulamenta, Hans Kelsen (2001, p. 251) formula a seguinte questão: Qual é a
validade do Direito, isto é, por que as pessoas devem obedecer à lei?
Kelsen refuta uma resposta jusnaturalista, que diz ser válido o Direito se de
acordo com a Justiça, com as seguintes palavras:
Dizer, portanto, que o Direito positivo é válido porque é justo não é uma res-
posta para a nossa pergunta. Se o Direito positivo deriva sua validade do Di-
reito natural, então o Direito positivo em si não tem nenhuma validade. É
simplesmente às normas do Direito natural que os homens devem obede-
cer. A doutrina do Direito natural não responde à questão de por que o Di-
reito positivo é válido, mas sim à questão, totalmente diferente, de por que o
Direito natural é válido. E a resposta a essa questão é uma hipótese. É a
norma pressuposta de que os homens devem obedecer aos comandos da
natureza. É a sua norma fundamental (KELSEN, 2001, p. 254).
Segundo ele, há outra doutrina – a teologia cristã – que oferece uma respos-
ta para a questão. São Paulo diz que:
2
Romanos, 13. 1-4.
uma norma autorizando Deusa emitir ordens, porque Deus é autoridade su-
prema. Conseqüentemente, a norma de que os homens devem obedecer
aos mandamentos de Deus não pode ser uma norma emitida por uma auto-
ridade; pode ser apenas uma norma pressuposta pela teologia, sua hipóte-
se metafísica, sua norma fundamental. É – segundo essa doutrina teológica
– o motivo para a validade do Direito (KELSEN, 2001, p. 254/5).
Como se pôde perceber, Hans Kelsen não dá a resposta para a questão que
ele mesmo elabora. Sua resposta é tão incompleta como as respostas, segundo ele,
do jusnaturalismo e da teologia. A resposta pode ser considerada completa e aceitá-
vel do ponto de vista apenas objetivo, mas não numa perspectiva subjetiva.
Assim, pode-se dizer que o objetivo do presente trabalho é demonstrar quais
são os fundamentos da desobediência civil, para que serve, como ela foi empregada
na história da humanidade, desenvolvida – principalmente pelos americanos – e
quais são as dificuldades para empregá-la no Brasil.
1 CIDADÃOS OU SERVOS?
Sobre esta base não se pode estranhar que Estráton, um de seus sucesso-
res na direção do Liceu, elaborara uma teoria sobre gases e construíra má-
quinas a vapor que só empregaram para obrar milagres nos templos e ela-
borar jogos luxuosos, e não mais para que „as lançadeiras tecessem sozi-
nhas‟ em vez de serem acionadas por uma mão de obra escravizada. Dito
deste modo: a sociedade grega teve acesso a um conhecimento científico
cuja possível aplicação técnica à produção tropeçou nas relações sociais e-
xistentes. As classes escravistas não contemplaram ... a possibilidade de
aplicar seu saber científico para substituir em parte aos trabalhadores. Sua
ideologia foi um obstáculo à penetração de uma verdade que não contava
com agentes para sustenta-la, de modo que um conhecimento tão valioso
como o mencionado se perdeu mais uma vez (CAPELLA, 2002, p. 21).
Todavia até mesmo a Igreja católica manteve seus escravos – e muitos ain-
da dizem que a Igreja foi revolucionária! – e durante muito tempo dói compassiva
Sua sorte não depende mais do governo que você escolheu, mas das vicis-
situdes do mercado, das estratégias (secretas) dos oligopólios, das deci-
sões de um banco central “independente” (dos cidadãos mas não dos mer-
cados financeiros). Em outros países, mais frágeis, as esperanças deposi-
tadas pelas populações nas virtudes do pluripartidarismo são sistematica-
mente uma decepção. As vitórias obtidas por esses povos, ao preço de lu-
tas obstinadas e de alto custo, muitas vezes de vidas humanas, tornam-se
precárias. Um pluripartidarismo de pacotilha, manipulável e manipulado, cor-
re o risco de vir a ser a única imagem que a „democracia de mercado‟ ofere-
ce a essas populações. Democracia e mercado (este entendido como o é
pelo neoliberalismo) não são, então, convergentes, mas antinômicos
3
Quanto a este assunto ver artigo de Mário Maestri intitulado O cristianismo foi alguma vez revo-
lucionário? Disponível em http://www.zonanon.org/plural/doc93.html, Aceso em 03.03.2003.
4
Sobre a questão “guerra justa” é interessante verificar HUGO GROCIO (Del derecho de la guerra y
de la paz, Madri: Centro de estúdios Constitucionales, 1987) e JOHN RAWLS (O direito dos povos,
São Paulo: Editora Martins Fontes, 2001).
2.2 Anarquismo
O anarquismo pode ser designado como uma teoria ou doutrina política fun-
dada na convicção de que todas as formas de governo interferem injustamente na
liberdade individual, e que preconiza a substituição do Estado pela cooperação de
grupos associados.
Utopicamente poder-se-ia dizer que anarquismo seria uma expressão de luta
contra a opressão e a exploração, uma generalização das experiências do povo tra-
balhador e uma análise daquilo que está errado com o corrente sistema e uma ex-
pressão de nossas esperanças e sonhos de um futuro melhor. Todavia, o movimento
anarquista histórico (i.e. grupos de pessoas que deram às suas idéias o nome de
anarquismo e anelando por uma sociedade anarquista) é essencialmente um produ-
to da luta da classe trabalhadora contra o capitalismo e o Estado, contra a opressão
e a exploração, e por uma sociedade livre e de indivíduos iguais.
2.3 Revolução
2.4 Terrorismo
2.5 Conspiração
2.6 Greve
paralização e/ou das atividades funcionais dos setores de produção. Ela pode ser
geral ou parcial, por tempo determinado ou indeterminado, sempre aberto a negoci-
ações durante seu período. Nesta modalidade ocorre sua regulamentação pelo or-
denamento jurídico e também com previsão constitucional (art. 9º da Constituição
Federal e sua regulamentação pela Lei 7783/89).
3.1 Antígona
Uma nova demonstração dos plebeus, retirando-se como da outra vez para
o Monte Sacro, arrancou aos patrícios novas concessões. Não somente foi
restabelecida a legalidade, que andava anulada com a instituição dos de-
cenviros, e com ela repostos os tribunos, como foi reconhecida a assem-
bléia plebéia das tribos (concilium tributum plebis), cuja origem confessam
os historiadores ser obscura, sendo dada às resoluções destes comitia tribu-
ta força de lei para toda a comunidade igual à das resoluções dos comitia
centuriata (449 a.C.) – (LIMA, 1998, p. 102).
5
Para evidenciar a exeqüibilidade da não violência enquanto “método político destinado a resolver
problemas políticos”, o melhor é analisar a campanha de não-cooperação organizada por Gandhi em
1930. À meia-noite de 31 de dezembro de 1929, o Congresso Nacional da Índia pronunciara-se sole-
nemente a favor da independência e decidira organizar uma campanha de desobediência civil para
conseguir este objetivo. Gandhi decide então desafiar o governo britânico pedindo aos indianos que
desobedeçam abertamente à lei que os obrigava a pagar um imposto sobre o sal (MULLER, 1996, p.
274), o que culminou na Marcha do Sal e na declaração de Gandhi: “Hoje, toda a honra da Índia é
simbolizada por um punhado de sal na mão dos resistentes não violentos. O punho que agarra esse
sal pode ser pode ser quebrado, mas o sal não será devolvido voluntariamente” (ibidem, p. 250).
Ao longo de toda a sua luta pela independência da Índia, uma das principais
preocupações de Gandhi foi não só combater a tutela do império britânico, mas per-
mitir ao povo indiano governar-se a si próprio, sem recorrer aos mecanismos de co-
ação violenta que caracterizam o método do governo do Estado. Segundo ele, o me-
lhor meio oferecido aos indianos para resistirem ao governo britânico e retirar-lhe
todo o poder é aprenderem a se governar sozinhos, isto é, a se tornarem autôno-
mos. É também uma das principais razões pelas quais ele preconiza a desobediên-
cia não violenta como meio de resistência.
Com efeito, estava convicto de que aqueles que aconselham a violência para
combater os ingleses não poderiam fazer outra coisa, se conseguissem vencê-los,
que não fosse governar a Índia também pela violência. Tomar o poder pela espin-
garda é se condenar a exercê-lo pela espingarda, da mesma forma. É por isso que o
movimento de Gandhi tem mais como objetivo final organizar o poder dos indianos
do que tomar o poder dos ingleses. Não é visado tomar o poder para o povo e sim
pelo povo.
Para ele, é preciso que os indianos aprendam a não querer nenhuma tirania;
nem a tirania inglesa nem a tirania indiana.
Gandhi tem uma profunda convicção de que a verdade do homem está ins-
crita no próprio homem e de que ele não deve procurá-la no exterior. “O que é a ver-
dade?, interroga-se ele, É uma pergunta difícil. Resolvi-a por mim mesmo dizendo
que é aquilo que a via interior nos diz” (Apud MULLER, 1996, p. 224.). Para encon-
trar a verdade é necessário utilizar-se da não-violência, pois esta é o meio e aquela
o fim.
Com certeza Gandhi não ignora que existe no homem um instinto que o leva
a violentar o outro para satisfazer as suas necessidades e desejos e defender os
seus interesses. Mas esse instinto de violência corresponde à parte animal da natu-
reza do homem e existe igualmente no homem uma exigência de não-violência que
corresponde à sua parte espiritual da sua natureza, e que deve ser buscada de to-
das as maneiras. Para isso, deve se buscar ser bom para com todos os seres vivos.
“É pelo amor eu se chega mais perto da verdade” (MULLER, 1996, p. 228).
A virtude da intrepidez também é apregoada por Gandhi:
Viver livre é estar pronto a morrer, se for preciso às mãos do próximo, mas
nunca a matá-lo. Seja qual for a razão, qualquer homicídio ou outro ataque
à pessoa é um crime contra a humanidade (apud MULLER, 1996, p. 231).
3.4 Os Ambientalistas
4 A CONTRIBUIÇÃO NORTE-AMERICANA
6
Recordo-me em ter assistido o programa Roda Viva, da TV Cultura no mês de janeiro/fevereiro de
2003, onde o argentino ESQUIVEL, prêmio Nobel da Paz, comentara que os atos de violência prati-
cados foram originados por uma ínfima minoria de vândalos travestidos de manifestantes, que macu-
laram um dos maiores movimentos democráticos da história daquele país e, quiçá, da humanidade.
Nem sempre o ato de votar pelo que é certo implica fazer algo pelo que é
certo. Significa tão-somente uma maneira de expressar publicamente meu
desejo de que o certo venha a prevalecer. Já um homem sábio não deixará
o que é certo nas mãos incertas do acaso e nem esperará que sua vitória se
dê através da força da maioria (THOREAU, 2001, p. 20). [...] Jamais se dei-
xe confinar por um pedaço de papel. Só é indefesa uma minoria quando se
conforma à maioria (THOREAU, 2001, p. 26). [...] Será que a democracia,
da forma como a conhecemos, é o último aperfeiçoamento possível em ter-
mos de construir governos? Não será possível dar um passo a mais no sen-
tido de reconhecer e organizar os direitos do homem? Não poderá haver um
Estado de fato livre e esclarecido até que ele venha a reconhecer no indiví-
duo um poder maior e independente – do qual a organização política deriva
seu próprio poder e sua própria autoridade – e até que o indivíduo venha a
receber um tratamento correspondente (THOREAU, 2001, p. 39).
Quando o seu vizinho trapaceia e lhe subtrai um dólar que seja, você não se
satisfaz com a descoberta da trapaça, com a proclamação de que foi trapa-
ceado e nem mesmo com suas gestões no sentido de ser devidamente re-
embolsado. O que você faz é tomar medidas efetivas e imediatas para ter
seu dinheiro de volta e cuidar de nunca mais ser enganado (THOREAU,
2001, p. 22).
A América do Norte não conseguiria manter por muito tempo sua posição de
destaque entre as nações se fôssemos abandonados à esperteza palavrosa
dos congressistas. Contamos, felizmente, com a experiência madura e com
os protestos reais de nosso povo (THOREAU, 2001, p. 38).
Martin Luther King Jr. conduziu muitos negros a desobedecer a Lei Jim Crow
que, um século após a abolição da escravidão, ainda fomentava a segregação raci-
al. Tal movimento evoluiu posteriormente a ponto de se protestar contra o envolvi-
mento norte-americano na guerra do Vietnã.
Em 28 de agosto de 1963, diante do Memorial de Abraham Lincoln e de a-
proximadamente 200 mil pessoas, na conclusão da Marcha sobre Washington D.C.
pelos Direitos Civis, Martin Luther King Jr. fez o discurso Eu tenho um sonho , o mais
conhecido e citado de todos os que realizou em sua vida. O discurso foi transmitido
pela TV, possibilitando a toda a nação norte-americana assistir ao extraordinário
pleito por liberdade e justiça, síntese dos valores mais altos da civilização.
John Kennedy, então presidente dos EUA demonstrou toda a sua preocupa-
ção com aquela marcha e as conturbações sociais que dela poderiam advir. Procu-
rou convencer Luther King a desistir ou postergá-la. Mas King insistiu que a manifes-
tação tinha de ser feita e teria um caráter pacífico.
A marcha teve grandes efeitos positivos, pois pouco tempo depois o Con-
gresso norte-americano aprovou e o presidente Lyndon Johnson sancionou a Lei de
Direito de Votação iguais para todos os americanos.
Martin Luther King Jr. foi um lutador incansável pela transformação da soci-
edade, de suas estruturas injustas, argumentando sempre que os movimen-
tos alcançariam maior sucesso pela ação ativa, porém não-violenta. O go-
verno dos Estados Unidos transformou em feriado nacional o dia de sua
morte. Mas nem sempre segue sua lição. Volta e meia os estados Unidos
têm acionado o seu extraordinário poderio bélico contra outras nações, co-
mo recentemente no caso da Iuguslávia e do Afeganistão. Mais e mais, em
vista das tragédias causadas pelas guerras, as lições de Luther King – que
tanto protestou contra a guerra do Vietnã – continuam válidas (SUPLICY
2002, p. 164).
7
A injustiça em algum lugar é uma ameaça à justiça em todos os lugares.
[...] Bem se poderia perguntar: “Como é possível defender que algumas leis
sejam acatadas e outras, desrespeitadas?” A resposta se encontra no fato
de existirem dois tipos de leis: as justas e as injustas. Eu seria o primeiro a
defender o respeito às leis justas. Inversamente, cabe a responsabilidade
moral de desobedecer às injustas. Concordo quando Santo Agostinho diz
que „lei injusta não é lei‟. [...] A lei justa é um código feito pelos homens em
harmonia com a lei moral ou a lei de Deus. A lei injusta é um código que es-
tá em desarmonia com a lei moral. [...] Qualquer lei que eleve a personali-
dade humana é justa. Qualquer lei que deprecie a personalidade humana é
injusta. [...] A lei injusta é um código que um grupo numericamente majoritá-
rio ou detentor de algum poder impõe sobre um grupo minoritário ou menos
poderoso mas ao qual não se obriga. Isso é legalização da diferença. Ade-
mais, a lei justa é um código que a maioria impõe sobre a minoria e no qual
se dispõe a acatar. Isso é legalização da igualdade. [...] Aqueles que deso-
bedecem uma lei injusta devem faze-lo abertamente, com dedicação e dis-
posição para aceitar a penalidade. Devo admitir que um indivíduo ao infringir
uma lei que sua consciência lhe diz ser injusta, dispõe-se inteiramente a a-
ceitar a condenação a fim de conscientizar a comunidade quanto a sua in-
justiça, está na realidade expressando o mais elevado respeito pelas leis.
[...] A questão não é se vamos ser extremistas, mas sim que tipo de extre-
mistas seremos. Seremos extremistas da preservação da injustiça ou do
prolongamento da justiça? (apud BENNETT, 1995, p. 172-5).
Em seu livro Uma teoria da Justiça (1997), John Rawls, no capítulo VI, tópico
53, intitulado O dever de obedecer a uma lei injusta, ao pressupor que uma Constitu-
ição é justa, o dever de obedecer a uma lei injusta é óbvio, dado que os princípios
de dever natural e de equidade prescrevem deveres e obrigações, sem prejuízo da-
quelas leis excessivamente injustas, e que muitas vezes acabam mesmo por ser
inconstitucionais, que justificam, por vezes, a recorrência à desobediência civil e a
qualquer outro meio de direito de resistência.
Para ele, tais condutas surgem em situações em que as leis e atos pratica-
dos pelo poder soberano se desviam das práticas estabelecidas e reconhecidas, em
que é possível, até certo ponto, um apelo ao sentido de justiça da sociedade como
um todo visando que esta se manifeste no sentido de apoiar referida conduta. Atra-
vés de uma posição original do dever de Justiça há a exigência do cumprimento da
lei.8 Então, porque é válido este princípio e não qualquer outro?
7
In Carta da Prisão, apud BENNETT, 1995, p. 172.
8
Para Hobbes, “a natureza da justiça consiste no cumprimento dos pactos válidos cuja validade tem
início apenas com a instituição de um poder civil suficientemente forte para obrigar os homens a
cumpri-los. Portanto, [...] „a justiça, isto é, o cumprimento dos pactos, é uma regra da razão pela qual
somos proibidos de fazer todas as coisas que destroem a nossa vida, e por conseguinte, é uma lei da
natureza‟” (PHILLIPI, 2001:236).
9
MELO, Frederico Alcântara de. John Rawls: uma noção de Justiça. Paper apresentado para a Fa-
culdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, Disponível em http://www.fd.unl.pt/pt/wps/wp009-
01.doc. Acesso em 04.03.2003.
10
Optou-se em fazer a transcrição da parte pertinente da resenha feita do livro Uma Questão de Prin-
cípio, de Ronald Dworkin.
11
Habermas justifica a desobediência civil da seguinte maneira: “A justificação da desobediência civil
apóia-se, além disso, numa compreensão dinâmica da constituição, que é vista como um projeto
inacabado. Nesta ótica de longo alcance, o Estado democrático de direito não se apresenta como
configuração pronta, e sim, como um empreendimento arriscado, delicado e, especialmente, falível e
carente de revisão, o qual tende a reatualizar, em circunstâncias precárias, o sistema dos direitos, o
que eqüivale a interpretá-los melhor e a institucionaliza-los de modo mais apropriado e a esgotar de
modo mais radical o seu conteúdo” (Habermas, 1997, vol. II, p. 118).
seu ver, com tal proteção? Há o costume com o aforismo de que o Direito é o que o
tribunal diz que ele é. Mas isto pode significar:
b.a) Os tribunais estão sempre certos quanto ao que é o Direito, que suas
decisões criam o Direito, de tal modo que, quando interpretam a Constituição de de-
terminada maneira, essa no futuro será necessariamente a maneira certa de inter-
pretá-la (modo de ver do positivismo jurídico).
b.b) Deve-se obedecer às decisões dos tribunais, pelo menos de maneira
geral, por razões práticas, embora os cidadãos se reservem no direito de sustentar
que o Direito não é o que eles disseram, ou seja, embora os tribunais possam ter a
última palavra, em qualquer caso específico, sobre o que é o Direito, a última palavra
não é, por essa razão apenas, a palavra certa.
4.5 Zé Colméia
Referidas normas e desenho animado nada mais são do que uma metáfora
do cotidiano e a utilização da desobediência civil nele representa um incentivo à sua
prática quando o cidadão comum se deparar frente a normas injustas e autoritárias
que denigram seus direitos fundamentais como ser humano.
Felizmente este não é o único exemplo e a cultura daquele país está repleta
de excelentes trabalhos sobre a desobediência civil. Já no Brasil os exemplos de
desobediência civil são mais raros, todavia o direito de resistência é exercido de ou-
tras formas que não esta apresentada neste trabalho, como se verificará mais adian-
te.
ticas que se transformaram em lei. A atividade desenvolvida por aqueles que exer-
cem a desobediência civil é tão intensa e de tal natureza que desborda as bases
tradicionais de formação e execução da vontade política. Os cidadãos que praticam
a desobediência civil são capazes de imaginar uma ordem social melhor e em sua
vital construção a desobediência civil se converte em um procedimento útil e neces-
sário.
2. Entende-se que o comportamento destes cidadãos não está movido por
egoísmo senão pelo desejo de universalizar propostas que objetivamente melhora-
rão a vida em sociedade. Esta condição não nega que em certas ocasiões podem
coincidir interesses pessoais ou corporativos com interesses de caráter geral. Sim-
plesmente, manifestam que seria impossível consolidar um movimento de desobedi-
ência civil que unicamente se limitasse a defender conveniências particulares.
3. Conseqüentemente, os cidadãos que a praticam se sentem orgulhosos.
Para eles, a desobediência civil é mais que um dever cívico, é uma exigência proce-
de de certas convicções às que é possível atribuir um valor objetivo e construtivo.
4. Por isso é fácil adivinhar que o exercício da desobediência civil tem de ser
público, ao qual contribui também a pretensão de quem a pratica de convencer o
resto dos cidadãos da justiça de suas demandas.
5. Seu exercício não vulnerará aqueles direitos que pertencem ao mesmo
bloco legal ou sobre os que se sustentam naquilo que se demanda. Em troca, sua
prática poderá negar direitos de genealogia não democrática ou que pretendam per-
petuar privilégios injustificáveis. Entre as muitas conseqüências que se deduzem
desta propriedade se encontra a de que a desobediência civil se exercerá sempre de
maneira pacífica. Por isto a desobediência civil se encontra nas antípodas das práti-
cas ligadas àquelas filosofias irracionais que vêem a violência na manifestação mais
pura do vital.
6. Com ela não se pretende transformar inteiramente a ordem política nem
solapar suas estruturas, mas sim promover a modificação daqueles aspectos da le-
gislação que entorpecem o desenvolvimento de grupos sociais marginalizados ou
lesionados ou, em todo caso, de toda a sociedade.
Esta meia dúzia de características permite distinguir a desobediência civil de
outras formas conflitivas de relação com a legalidade, como a seguir se constatará
mais aprofundadamente. Assim, a desobediência civil não é o meio para pretender
O pacto social pelo qual os cidadãos se aliam para criar uma sociedade é a
constituição. Esta, em princípio, baseia-se no consentimento de todos os ci-
dadãos. A lei é a aplicação da constituição. Para isso, ela dá a conhecer a
conduta conforme ao bem comum e dá ao governo os meios de agir contra
as atuações daqueles que não respeitam as cláusulas do pacto social. Na
medida em que a lei preenche a sua função ao serviço da justiça, ela mere-
ce a obediência dos cidadãos. Mas quando encobre, cauciona ou cria ela
própria injustiças, merece a sua desobediência. A obediência á lei não liber-
ta os cidadãos da sua responsabilidade: aqueles que se submetem a uma
lei injusta são responsáveis por essa injustiça. Com efeito, o que se constitui
uma injustiça não é a lei injusta, mas a obediência à lei injusta (MULLER,
1996, p. 96).
que “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decor-
rentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais
em que a República Federativa do brasil seja parte”.
Por sua vez, o constituinte de 1988 ainda elencou como objetivos fundamen-
tais da República Federativa do Brasil: a construção de uma sociedade livre, justa e
solidária (art. 3º, I); a garantia do desenvolvimento nacional (art. 3º, II); a erradicação
da pobreza e da marginalidade, além de da redução das desigualdades sociais e
regionais (art. 3º, II); e a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem,
raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, IV).
Mas não é só. O Estado brasileiro se rege nas relações internacionais pelos
seguintes princípios: a prevalência dos direitos humanos (art. 4º, II); a autodetermi-
nação dos povos (art. 4º, III); solução pacífica dos conflitos (art. 4º, VII); e a coope-
ração entre os povos para o progresso da humanidade (art. 4º, IX).
De qualquer sorte, a história tem demonstrado que o direito de resistir às leis
injustas tem sido eleito pelos povos como um direito fundamental do homem, tanto
que em vários países expressam o direito de resistência em suas constituições, tais
como a belga, de 1852 e as portuguesas de 1911, 1933 e 1982.
O sujeito ativo do crime previsto no art. 330 é aquele que desobedece a or-
dem legal emanada de autoridade competente. Em regra, portanto, é o par-
ticular, mesmo porque a infração está entre os crimes praticados por este
contra a administração em geral (MIRABETE, 1999, p. 1769). [...] A conduta
típica é desobedecer, ou seja, não acatar, não aceitar, não cumprir a ordem
legal. Tanto pode ser praticada por omissão, não atuando o agente como
propriedade da terra, a qual poderia ser apresentada, nos termos propostos por
Dworkin, como o questionamento constitucional acerca da estrutura fundiária em
vigor. Programaticamente tais objetivos encontrariam fundamentabilidade na própria
Constituição (art. 5º, XXIII) que determina que a propriedade atenderá a sua função
social. Interpretando sistematicamente a Constituição, é importante ressaltar a pre-
sença de um capítulo inteiro sobre política agrícola e reforma agrária, no seu Título
VII, abrangendo os arts. 184 a 191. Nesses dispositivos constitucionais, atribui-se à
União Federal a competência para desapropriar imóvel rural que não esteja cum-
prindo sua função social para fins de reforma agrária, na forma prevista pela Consti-
tuição e pela legislação específica (art. 184, caput). Considera-se como não cum-
prindo sua função social aquelas propriedades rurais que desatenderem o estabele-
cido no art. 186, e seus incisos, da Constituição, segundo critérios estabelecidos em
lei: aproveitamento racional e adequado, utilização adequada dos recursos naturais
disponíveis e preservação do meio ambiente, observância das disposições que regu-
lam as relações de trabalho e exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários
e dos trabalhadores.
Há, portanto, critérios razoáveis de interpretação da Constituição presentes
nos documentos e ações do MST, os quais remetem à exigência, em face dos pode-
res públicos, em especial da esfera federal, da plena implementação da política de
reforma agrária traçada pela Constituição de 1988. O que o movimento exige, por-
tanto, é a efetivação das diretrizes constitucionais, em atenção ainda aos princípios
da dignidade humana e da cidadania, fundamentos da República (art. 1º, II e III, da
Constituição), e aos seus objetivos fundamentais, tal como traçados no Texto Consti-
tucional: construir uma sociedade livre, justa e solidária, erradicar a pobreza e a
marginalização, reduzir as desigualdades sociais e regionais e promover o bem de
todos, sem discriminações (art. 3º, I, III e IV). Não se trata, portanto,de iniciativas
dependentes das inclinações de cada governo, mas de diretrizes institucionais para
o Estado Democrático de Direito no Brasil que foram agendadas pelos constituintes
e às quais os governantes não podem se furtar.
Em relação às ocupações de terras para fins de pressão pela reforma agrá-
ria. Há inúmeras decisões judiciais de primeira e segunda instâncias, e mesmo de
tribunais superiores, reconhecendo a inexistência de crime. Pela sua relevância me-
rece destaque o acórdão do Superior Tribunal de Justiça que traz a seguinte emen-
ta:
Muito embora adotar uma teoria reducionista para a razão do por quê o insti-
tuto da desobediência civil é pouco utilizado ou mesmo nem o é pelos brasileiros
não seja o mais indicado, acredita-se que com as exposições dos seguintes motivos
sejam altamente aptos ao esclarecimento proposto para este tópico. É claro que ou-
tras razões existem, todavia não se dará tanta importância devido à necessidade de
se utilizar todo um contexto histórico e sociológico, o que certamente inviabilizaria a
escolha e manutenção deste tema.
Para a maior parte da população é muito mais fácil e cômodo ouvir e seguir
um caminho de conformismo e resignação do que a pregação em favor da mudança
de uma (des)ordem social, afinal, “quem desobedece ao seu governante desobede-
ce a Deus pois se aquele está onde está e com os poderes que possui é porque as-
sim Deus o quer e uma afronta àquele é uma afronta a este” além de também ser
um “castigo por sermos um povo pecador e que suportar tal penitência é o caminho
para se chegar ao paraíso”.
12
Brasil: ame-o ou deixe-o!
O motivo principal pelo qual o brasileiro não atinge sua plena cidadania - via
utilização da desobediência civil como instrumento - é um dado peculiar, em que pe-
se sua cultura e história, muito embora seja temeroso adotar uma concepção redu-
cionista para tanto, é, sem dúvida alguma, o jeitinho e malandragem própria da gen-
te brasileira e injustamente tecida como inconseqüente.
No Brasil o cidadão comum ouve a toda hora “não pode”, pois a legislação é
desligada da prática comum e a burocracia é feita para não funcionar para os po-
bres, pois lhe colocam mil exigências que não podem ou não sabem cumprir. Nos
conflitos, em vez de valer a lei, vale o “mandonismo” de quem grita: “sabe com quem
está falando?” Como sair desse impasse que atravanca a vida? Ir para o confronto
ou desobedecer só piora a situação. Conformar-se e obedecer a propaga. Roberto
Da Matta com sapiência diz:
Mas há mais:
Hordas de cidadãos celebram o triunfo desportivo de um pentacampeonato
mundial de futebol ou do clube-empresa adotado emocionalmente com ala-
ridos e buzinaços e não se detém ante os hospitais, onde partidários da
mesma “equipe” estão morrendo. Multidões de “cidadãos” entram em tran-
ses garantidos, ritmicamente programados e às vezes publicamente sub-
vencionados, com duas guitarras multiplicadas por milhões de decibéis. As
“audiências” de “cidadãos” se disparam quanto mais vulgar é o programa da
televisão. Entram, atropeladamente, nos hipermercados para levarem todos
o mesmo produto, a mesma roupa, comercialmente distinta, isso sim, da
comprada da vez anterior. Todos os “cidadãos” viram as fotos, reproduzidas
bilhões de vezes, dos mesmos ídolos: um homem musculoso fora de toda
medida, uma mulher meio nua e de gestos obscenos fora de toda medida:
ambos cotidianizados, banalizados, normalizados, portanto. Milhões de “ci-
dadãos” desfrutam o privilégio de chaves-mestra personalizadas: cartões de
crédito, de clube, de hipermercados, “individuais”. Multidões imensas de “ci-
dadãos” consomem drogas, cujo tráfico denuncia seu jornal favorito, o qual
se alarma pelo “fracasso escolar” dos futuros cidadãos, que abrem com te-
levisor e música de moda o livro de texto. Os “cidadãos” se integram aos
anúncios publicitários das roupas que vestem, dos motores que lhes trans-
portam. Extasiam-se com os espetáculos de Estado: panis et circenses,
com controle remoto (CAPELLA, 1998:132).
13
CD: O Sol de Oslo.
CONCLUSÃO
certa liga de individualismo e competição é necessária para fazer com que a espécie
humana progrida – do contrário não haveria o porque evoluir!
Cada ser humano possui as suas peculiaridades, seu modo de ser, sua e-
xistência própria. Em lugar de submeter os indivíduos a uma camisa de for-
ça, mediante padrões uniformes, o Direito deve abrir espaço para as prefe-
rências e personalizar os métodos jurídicos. Esse amoldamento do fenôme-
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