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i

Declaração de honra

Eu, Luísa Ambrucer declaro por minha honra que este trabalho, nunca foi apresentado
para a obtenção de qualquer outro grau académico e que constitui resultado da minha
investigação pessoal, tendo indicado no texto e na bibliografia as fontes que utilizei.

___________________________________

Luísa Ambrucer

Maputo, aos_______ de Junho de 2020


ii

Dedicatória

.
iii

Agradecimentos
iv

Resumo

O presente estudo tem como tema “Reconstrução das reclusas a partir da cadeia feminina: Uma
contribuição etno-sociológica da mulher mãe em Ndlavela,” sendo o seu principal objectivo descrever e
compreender a experiência subjectiva das mães que desempenham o seu papel maternal num contexto
prisional. A metodologia aplicada foi de carácter qualitativo pois facilitou estudar os fenómenos
intencionais vividos pelos diferentes indivíduos e alcançar uma descrição final com os constituintes
essenciais e invariáveis desta experiência subjectiva. A amostra é constituída por mães reclusas, com
idades compreendidas entre os 20 e 39 anos, que se encontram a cumprir pena de prisão no recinto de
reclusão feminina de Ndlavela, que têm os seus filhos, com idades compreendidas entre 1 e 3 anos, a
viver consigo na prisão. Os resultados do presente estudo indicam que a experiência de ser mãe em
contexto prisional envolve uma diversidade de sentimentos e cognições, alguns negativos, tais como a
percepção das dificuldades, frustração e o arrependimento, e outros positivos, tais como a
protecção/sentimento pessoal de capacidade para desenvolver o papel de mãe, o suporte familiar, a
satisfação face ao estabelecimento prisional e o crescimento pessoal/efeito suavizante da experiência
prisional.

Palavras-Chave: Mãe reclusa, Maternidade, Prisão.


v

Abstract

 Key words:

Índice
vi

Declaração de honra...........................................................................................................i

Dedicatória.........................................................................................................................ii

Agradecimentos................................................................................................................iii

Resumo.............................................................................................................................iv

Abstract..............................................................................................................................v

0. Introdução......................................................................................................................8

0.1. Delimitação do tema...................................................................................................9

0.2. Motivação...................................................................................................................9

0.3. Justificativa...............................................................................................................10

0.4. Problema da pesquisa..............................................................................................10

0.5. Hipóteses..................................................................................................................11

0.6. Objectivos da pesquisa............................................................................................12

0.6.1. Objectivo geral.......................................................................................................12

0.6.2. Objectivos específicos...........................................................................................12

0.7. Metodologia..............................................................................................................12

CAPITULO I: Caracterização sociogeográfica, população e principais actividades


económicas do Bairro de Ndlavela..................................................................................15

1.1. Localização, Limites e Coordenadas.......................................................................15

1.2. Campo de análise.....................................................................................................16

CAPITULO II: Enquadramento Teórico, Revisão da Literatura, O Significado de


algumas Expressões e Palavras Usadas........................................................................17
vii

2.1. Enquadramento Teórico...........................................................................................17

2.2. Revisão de Literatura...............................................................................................18

2.3. O Significado de algumas Expressões e Palavras Usadas.....................................24

2.3.1. Biografia.................................................................................................................24

2.3.2. Maternidade...........................................................................................................25

2.3.3. Prisão.....................................................................................................................25

2.3.4. Instituição Total......................................................................................................26

Capitulo III. Resultados do trabalho de campo...............................................................27

3.1. Perfil sócio-demográfico das reclusas da cadeia feminina de Ndlavela..................27

3.2. Perfil criminal dessas mulheres................................................................................29

3.2. Percepção social sobre o ser mãe no recinto prisional............................................32

3.3. Experiências e os constrangimentos que as mães reclusas enfrentam dentro do


recinto prisional................................................................................................................35

3.4. Estratégias adoptadas pelas reclusas no exercício da maternidade no recinto


prisional............................................................................................................................37

4. Considerações Finais..................................................................................................41

Bibliografia.......................................................................................................................42

Apêndices........................................................................................................................44
8

0. Introdução

Um conjunto significativo de pesquisadores vem se dedicando a estudos da


problemática da violência e da criminalidade. Poucos, se preocuparam especificamente
com o sistema penitenciário, menos ainda com a prisão de mulheres, assim, no
contexto do encarceramento feminino quase inexistem estudos sobre a situação das
mães atrás das grades.

Maternidade e estabelecimentos prisionais são duas noções que dificilmente


aparecem ligadas, suscitando sentimentos contraditórios. No entanto, esta é a
realidade de muitas mulheres que se encontram grávidas ou que têm filhos pequenos a
seu cargo e que, por terem cometido actos delituosos, foram condenadas a cumprir
penas de prisão. Existe uma inconsistência na literatura acerca desta temática,
existindo autores que defendem que o desempenho materno destas mulheres será
deficitário, estando em causa factores pessoais e/ou factores contextuais (Neto &
Bainer, cit. por Machado)1, e autores, que pelo contrário, realçam a importância do
estabelecimento de relações afectivas numa fase precoce da vida da criança, sendo
portanto a favor da permanência da relação mãe-bebé na prisão, acreditando que esta
pode ser saudável e adequada (Richards & Williams, cit. por Machado) 2.

No que se refere à maternidade vivenciada durante o período de


aprisionamento, além dos possíveis efeitos nocivos que a detenção poderá ocasionar à
mulher, o ato de gerar um filho neste período poderá acarretar efeitos adversos na
gravidez e, consequentemente, à criança que está sendo gerada. Deve-se considerar
que a gestação gera diversas alterações biopsicossociais na vida da mulher,
aumentando a probabilidade de haver prejuízos em virtude do aprisionamento.

1
MACHADO, M. J. (1997). Os meninos reclusos: uma avaliação do seu desenvolvimento através
da escala de Griffiths (Monografia de Licenciatura em Psicologia Clínica). Lisboa: Instituto Superior de
Psicologia Aplicada.
2
MACHADO, Ibidem, p. 45,
9

É sabido que a maioria dos países permite que a criança viva com suas mães
nos primeiros anos de vida, ainda mais que as diversas teorias salientam a importância
fundamental da presença da mãe para o desenvolvimento integral do bebê. Assim, de
um lado acredita-se que um filho não deveria separar-se de sua mãe, mesmo tendo de
ir para a prisão com ela. Corroborando com Pires 3 ao afirmar que as bases da saúde
do indivíduo são ajustadas na primeira infância pela mãe, através do meio ambiente
provido por esta. Já por outro lado, a separação desse vínculo, como é apontada por
Bowlby4, pode gerar efeitos adversos ao desenvolvimento, os quais podem ser
atribuídos ao rompimento na interacção com a figura materna. É com base nisso que
as mulheres acabam ganhando os seus filhos e permanecendo com eles na prisão.

O presente trabalho tem como principal objectivo descrever e compreender a


experiência subjectiva das mães sobre a maternidade e o seu papel maternal num
contexto prisional ou durante a reclusão. E compreender como se dá a vivência da
maternidade nesses espaços prisionais torna-se extremamente relevante para
contribuir nos debates sobre esta matéria.

0.1. Delimitação do tema

Actualmente se assiste a convivência das mães com os seus filhos nos Centros
de Reclusão, isso levanta um debate aceso e transversal; por um lado, rebate-se a
situação de as mulheres conviverem com os seus filhos nos Centros de Reclusão
Feminino e, por outro lado, essa convivência é benéfica; pois acarreta consigo
aspectos positivos como o vínculo de afectividade. Desta forma, este trabalho foi
realizado na Província de Maputo, especificamente na cadeia feminina no Bairro
Ndlavela.

Quanto a delimitação temporal foi analisado o período de 2019. A escolha desse


período deve-se ao facto de estarmos a lidar com uma realidade dinâmica, pelo que a
compreensão do objecto de estudo no momento facilita realizar a sua contextualização

3
PIRES, I. (2001). Relação mãe-criança, ambiente prisional e irritabilidade materna. Dissertação de
Mestrado em Psicologia Clínica. Universidade de Lisboa; Lisboa.
4
BOWLBY, J. (1988). Formação e rompimento dos laços afectivos. São Paulo: Martins Fontes.
10

e a possibilidade de perceber o percurso biográfico destas reclusas desde a sua


detenção, as dificuldades que enfrentam ou que enfrentaram para se inserirem no
recinto de reclusao.

0.2. Motivação

O que motivou a realização deste estudo, é que actualmente no contexto


Moçambicano é notório nos Centros de Reclusão Feminino a permanência de crianças
que habitam com suas mães-presas, o que implica a construção de novas formas de
maternidade face ao contexto onde estes estão inseridos.

A reclusão feminina coloca problemas particulares, nomeadamente os da


maternidade. Portanto, não só a reclusa como também a criança e a própria interacção
entre ambas, poderão ser influenciadas pelo meio prisional onde estão inseridas, este
foi motivo para pela qual nos levou a realizar esse estudo.

0.3. Justificativa

Sob o ponto de vista sociológico, a pesquisa é pertinente porque afecta um


grupo social, e isso permite - à luz dos pressupostos sociológicos - observar o exercício
da maternidade no centro de Reclusão feminino de Ndlavela;

Este trabalho contribuirá significativamente para a área de maternidade e recinto


prisional devido a fraca existência de trabalhos nesta perspectiva de análise.
Consideramos também que terá relevância teórica porque as mulheres reinventam
novas formas de maternidade o que permiti a construção de novas formas de
abordagens.

0.4. Problema da pesquisa

É importante olhar para as mães como pessoas capazes de construir e


reconstruir a concepção de maternidade. É o que procuram demonstrar autores como
11

Araújo e Moura5 e Armelin et al,.6 onde afirmam que as mulheres constroem o seu
modelo de maternidade em função do processo de industrialização que levou a sua
inserção no mercado do trabalho.

No que diz respeito ao contexto prisional, Armelin et al., (2010) afirmam que as
mulheres reclusas, estando em um contexto caracterizado por restrições controlo
penal, auto-constroem através de estratégias e negociações sem necessariamente
ignorar o quadro jurídico-legal do recinto prisional. Deste modo, o exercício da
maternidade é uma auto-construção das mulheres que passam o limite das regras
normativas do recinto prisional.

Diante disso, nos aliamos a perspectiva apresentada por Araújo e Moura (2005)
e Armelin et al., (2010) para defendermos que o exercício da maternidade na prisão
ocorre dentro de uma relação dialéctica entre as normas desta instituição e a vontade
das mulheres de materializar o seu ideal de mãe. Apesar do mérito dessa perspectiva,
compreendemos a necessidade de relativizar a realidade do contexto prisional, em
função das suas condições, do sistema coercitivo aplicado, assim como das
experiências das próprias mães no exercício da maternidade.

O presente estudo surge tendo como principal objectivo descrever e


compreender a experiência subjectiva das mães que desempenham o seu papel
maternal num contexto prisional, abordando os comportamentos, os sentimentos, as
dificuldades e as estratégias utilizadas por estas mães face a esta realidade,
percebendo assim como estas mães reagem e como se adaptam à situação de
viverem com uma criança na prisão.

Pretende-se então examinar, a experiência vivenciada por estas mães que têm
os seus filhos a viver consigo na prisão, com o intuito de perceber a essência dos
5
ARAUJO, D; MOURA, G. (2005). Vivências da maternidade em uma prisão feminina do Estado do
Rio Grande do Sul. Saúde & Transformação Social, v.1. n.3. p. 113-121.
6
ARMELIN, B. F et al. (2010). Filhos do Cárcere: estudo sobre as mães que vivem com seus filhos
em regime fechado. Revista da Graduação da Pontifícia Universidade Católica: Faculdade de
Psicologia, Porto Alegre.
12

significados associados à maternidade em contexto prisional. Diante do exposto,


procuramos problematizar o seguinte: De que maneira as mulheres reclusas exercem a
maternidade no Centro de Reclusão Feminino de Ndlavela? E que percepções as
mulheres reclusas possuem do exercício da maternidade no espaço prisional?

0.5. Hipóteses

H1: O recinto prisional exerce uma pressão directa na prática da maternidade a partir
das regras discursivas estabelecidas, fazendo com que todas desempenham o papel
de mãe-reclusa da no recinto prisional.

H2: o recinto prisional não exerce uma pressão directa na prática da maternidade a
partir das regras discursivas estabelecidas, na qual todas reclusas desempenham o
papel de mãe-reclusa no recinto prisional.

0.6. Objectivos da pesquisa

0.6.1. Objectivo geral

 Analisar a relação existente entre o Centro de Reclusão Feminino de Ndlavela e


o exercício da maternidade das mães reclusas.

0.6.2. Objectivos específicos

 Descrever o perfil sócio-demográfico das reclusas da cadeia feminina de


Ndlavela;
 Avaliar as percepções sociais das reclusas sobre ser mãe dentro do recinto
prisional;
 Descrever as experiências e as dificuldades no desempenho do seu papel
enquanto mães dentro de um estabelecimento prisional;
 Identificar as estratégias adoptadas para o desempenho do seu papel enquanto
mães dentro de um estabelecimento prisional.
13

0.7. Metodologia

Relativamente à metodologia aplicada, no estudo, é predominantemente de


carácter qualitativo, porque, como diz Chizzotti (1991:9 citado por Siquisse, 2006:24) 7,
essa modalidade de pesquisa abriga tendências diversas e pressupostos com raízes
filosóficas distintas, para além de que a pesquisa do tipo qualitativo enfatiza a
descrição, a indução, o estudo das percepções pessoais; facilita o mergulho na
complexidade dos acontecimentos reais e indaga, não apenas o óbvio, mas também as
contradições, conflitos e as resistências, a partir das interpretações dos dados no
contexto da sua produção, além de ser uma metodologia cujos dados recolhidos são
ricos em pormenores descritivos relativamente a locais, pessoas e conversas.

Como técnicas de Recolha de dados, combinamos a técnica de pesquisa


bibliográfica com a técnica da entrevista; foram necessárias buscas de material de
leitura, sobre a prisão de mulheres em Moçambique, e que através deste meio iria
encontrar vários elementos dispostos a conversar, contribuir e enriquecer o conjunto de
ideias sobre mulheres encarcerradas e o exercício da maternidade por essas reclusas.
Quanto as entrevistas é uma técnica que permite a captação imediata e eficaz da
informação desejada. Assim, uma entrevista bem-feita pode permitir o tratamento de
assuntos de natureza complexa e de escolhas nitidamente individuais.

Associamos também as nossas técnicas, a observação directa. Segundo Gil 8, a


observação é um elemento importante para a realização da pesquisa, que o
pesquisador obtenha a informação directamente em primeira mão sem precisar de
qualquer intermediário. Salienta ainda Gil que, na observação directa o pesquisador
permanece alheio à comunidade, grupo ou situação que pretende estudar, observando
de maneira espontânea os factos que aí ocorrem. Neste procedimento o pesquisador é
mais um espectador do que actor.

7
SIQUISSE, A. E. P. (2006). Estudo de elementos socio-culturais e económicos dos vatshwa em
Inhambane: um subsídio etno-histórico para o ensino básico. Dissertação de Mestrado. Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo.
8
GIL, A.C. (2008). Métodos e técnicas de pesquisa social. São Paulo: Atlas. p, 28.
14

A escolha deste tipo de observação, deve-se ao facto de este permitir que os


dados sejam registados a medida em que os factos vão ocorrendo, de forma
espontânea sem a devida preparação, pois a melhor ocasião para o registo é no local
onde a actividade é desenvolvida.

A amostra do presente estudo foi constituída por mães reclusas e funcionários


prisionais, que vão ser seleccionadas de forma aleatória, que se encontram a cumprir
pena de prisão no estabelecimento prisional de Ndlavela, que têm os seus filhos a viver
consigo na prisão. Para além das participantes terem que ser mães reclusas que
tenham pelo menos um filho a viver consigo na prisão, os critérios de selecção
basearam-se também na aceitação e disponibilidade por parte das mesmas para
participar no estudo.

CAPITULO I: Caracterização sociogeográfica, população e principais actividades


económicas do Bairro de Ndlavela

1.1. Localização, Limites e Coordenadas

O estudo foi feito no Município de Maputo, sendo este um dos municípios com
elevados índices de conflito de terra ao nível do país, constituindo este factor relevante
para o nosso estudo. A Cidade da Matola é a capital da Província de Maputo, que
ocupa uma área de 368.4 km2, situando-se aproximadamente entre os paralelos 25°
15

41' 36" e 25° 50' 36" de latitude Sul e entre os meridianos 32° 24' 02" e 32° 35' 12" de
longitude Este.

É limitado a Noroeste e a Norte pelo Distrito de Moamba, a Oeste e Sudoeste


pelo Distrito de Boane e a Sul, faz fronteira com a Cidade de Maputo, através do Posto
Administrativo da Katembe, separado da Baía de Maputo. A Este, é também limitado
pela Cidade de Maputo e a Noroeste, faz fronteira com o Distrito de Marracuene. A
região da Baía onde se situa a Cidade da Matola, é caracterizada por uma vasta área
planáltica que se mantém acima dos 40m de altitude. A área da cidade é drenada pelo
Vale do Infulene e pelo Rio Matola que desaguam no estuário que forma a Baía de
Maputo.

Na Cidade da Matola existe uma autarquia e ocupa um território com 373 Km2
de superfície e subdivide-se em três postos administrativos, nomeadamente: Posto
Administrativo da Matola Sede; Posto Administrativo da Machava e o Posto
Administrativo do Infulene;

De acordo com os dados do último Censo Populacional de 2007, a Cidade da


Matola tem 672.508 habitantes e alberga 55.7% da população total da Província de
Maputo. A etnia nativa desta região são os Tsongas, do ramo Ronga, de filiação
patrilinear e existem ainda os Chopes, os Bitongas e os Tswa. A Matola é caracterizada
neste contexto, por uma miscelânea de grupos étnicos. (INE-2009) Edição do Retrato
da Província da Maputo 2006.

1.2. Campo de análise

Nos termos do Artigo 10º do Decreto-lei nº 26643, de 28 de Maio de 1936, impõe


que os estabelecimentos prisionais funcionem em edifícios diferentes para cada sexo,
salvo situações de força maior, casos em que exige a existência de duas secções, uma
para cada sexo, completamente separadas, de modo que os presos de uma não
possam se comunicar com os da outra. Nos termos do Decreto presidencial nº 5/95, de
01 de Novembro, é criado na província de Maputo um estabelecimento prisional
16

feminino, designado Centro de reclusão Feminino de Ndlavela, subordinado a Direcção


Nacional das Prisões. Este estabelecimento prisional funciona como Cadeia Central
para a cidade e província de Maputo e cumprimento de penas de prisão maior para as
condenadas de todo país.

A Cadeia Feminina de Ndlavela fica localizada no território da província de


Maputo, no Município da Matola. Este é o único centro prisional concebido
especialmente para acolher a população reclusa feminina. A cadeia existe há 14 anos,
a necessidade de se criar uma cadeia especificamente feminina surgiu das dificuldades
em termos das cadeias em albergar esse grupo, uma vez que nas outras cadeias
existem apenas secções femininas, daí a necessidade de se criar uma cadeia na
região sul do país que albergasse somente mulheres, também para facilitar a visita dos
seus familiares. Em 2010, o centro reclusório tinha no total 140 reclusas, entre detidas
e condenadas por vários ilícitos, tendo capacidade para albergar 350 reclusas.

CAPITULO II: Enquadramento Teórico, Revisão da Literatura, O Significado de


algumas Expressões e Palavras Usadas

2.1. Enquadramento Teórico

Como teoria recorremos as perspectivas de Instituição Total defendida por


Erving Goffman (1999). De acordo com Goffman, uma instituição total pode ser vista
como um local de residência e trabalho onde um grande número de indivíduos em
17

situação semelhante, separados da sociedade mais ampla por considerável período de


tempo, leva uma vida fechada e formalmente administrada (Goffman) 9. Assim, a
instituição total tem tendências de “fechamento” e o seu carácter total é simbolizado
pela barreira a relação social com o exterior e proibições a saída que muitas vezes
estão incluídas no esquema físico - por exemplo, portas fechadas, paredes altas,
arame farpado.

Na perspectiva do autor, afirma que as instituições totais caracterizam-se em


cinco agrupamentos: i) instituições criadas para cuidar de pessoas que, segundo se
pensa, são incapazes e inofensivas, nesse caso consideram-se as casas para cegos,
velhos, órfãos e indigentes. ii) locais estabelecidos para cuidar de pessoas
consideradas incapazes de cuidar de si mesmas e que são também uma ameaça a
comunidade, embora de maneira não intencional que é o caso dos sanatórios para
tuberculosos, hospitais para doentes mentais e leprosarias.

iii) Instituições organizadas para proteger a comunidade contra perigos intencionais e, o


bem-estar das pessoas (cadeias, penitenciárias, campos de prisioneiros de guerra,
campos de concentração); iv) as instituições estabelecidas com a intenção de realizar
de modo mais adequado alguma tarefa de trabalho, e que se justificam apenas através
de tais fundamentos instrumentais: quartéis, navios, escolas internas, campos de
trabalho) e v) os estabelecimentos destinados a servir de refúgio do mundo, embora
muitas vezes sirvam também como locais de instrução para os religiosos como,
abadias, mosteiros e conventos (idem).

Salienta ainda o autor que, o aspecto central das instituições totais pode ser
descrito como a ruptura das barreiras que comummente separam as três esferas da
vida (dormir, brincar, e trabalhar no mesmo local e sob mesma autoridade). Este tipo de
instituição tem a particularidade de aplicar aos indivíduos um tratamento colectivo e
estão sujeitos a praticar as mesmas actividades, os mesmos tratamentos e as mesmas
obrigações e o não cumprimento das regras por parte de um indivíduo evidencia-se em
contraste com o comportamento de outros.

9
GOFFMAN, Erving, Manicómios, Prisões e Conventos, Editora Perspectiva, São Paulo.
18

Portanto, o indivíduo quando ingressa na instituição total passa por um processo


de mortificação ou despersonalização do eu, despojando o internado da sua
personalidade anterior, modificar a imagem que possui de si próprio e dos outros,
perdendo as várias distinções sociais que possui na sociedade mais ampla e atribuir-
lhe uma novo estatuto. No entanto, o que distingue a instituição total do mundo exterior
ou da sociedade moderna é o facto de indivíduo (nesse último caso) tender a dormir,
brincar e trabalhar em diferentes lugares, com diferentes participantes, sob diferentes
autoridades e sem um plano racional geral (Ibidem).

Porém, não significa que todas instituições totais compartilhem de todos


elementos acima mencionadas, o que vai defini-la como instituição total é o facto de
cada uma delas apresentar, um grau intenso das características descritas (Ibidem).
Nesta vertente, o centro de reclusão feminina de Ndlavela, é considerado uma
instituição total no sentido de um grande número de mulheres e crianças vivem e
realizam maior parte das suas actividades no mesmo local, e estão sob vigilância de
uma única autoridade burocrática, com um relacionamento limitado com o mundo
exterior ao centro. O autor finaliza afirmando que, temos de ter em conta que a
sociedade é dinâmica e com o tempo algumas características destas instituições não
se apresentam tal qual se encontravam no período.

2.2. Revisão de Literatura

Nesta secção do trabalho apresentamos estudos académicos realizados em


torno do fenómeno em análise para compreender a perspectiva de alguns autores face
a este fenómeno em Moçambique.

Spitz (1983:15)10 estudou o recinto prisional partindo do pressuposto de que à


medida que as crianças se distanciavam das suas mães tendiam a ficar deprimidas.
Nesta vertente, o objectivo do estudo era fazer uma reflexão em torno da importância
da afectividade na relação mãe-filho. De acordo com autor, a ligação de mãe-filho

10
SPITZ, R. A. (1988). Desenvolvimento emocional do recém-nascido,1ªed; Pioneira; Rio de Janeiro.
p, 15.
19

torna-se a forma mais viável do processo de socialização de qualquer indivíduo, onde o


vínculo afectivo tende a manter um próximo do outro.

Nesta ordem de ideias, Spitz (Ibidem) alega que quando, por qualquer razão, a
dupla (mãe-filho) se separa, cada um deles procurará o outro a fim de reatar a
proximidade. Qualquer tentativa de os separar, por parte de terceiros, encontrará
vigorosa resistência, sendo que também a relação da mãe com o filho é muito
importante para o desenvolvimento sócio emocional da criança. Este autor vai ainda
mais longe, ao afirmar que a presença da criança no recinto prisional encoraja a
reclusa a cumprir a pena.

É notável que autores como Kurowski11 e Spitz apresentam ideias similares para
sustentar os seus argumentos. Ambos afirmam que a Infância é um período em que as
crianças precisam da presença dos seus progenitores pelo facto de estabelecer uma
estrutura básica para o desenvolvimento posterior; e uma vez que é neste período em
que a maior parte das capacidades são adquiridas, “uma criatura competente (…) com
um repertório de comportamentos sociais verdadeiramente espantoso comportamentos
para interagir (Ibidem).

Bowlby12 realizou um trabalho acerca de crianças delinquentes e sem afecto


(sem a presença de figura materna) onde constatou que as crianças que ficam
distantes dos seus progenitores tendiam a desenvolver comportamentos agressivos e
delinquentes, tornando-se por isso necessária a permanência das crianças junto das
suas mães. Portanto, a criança sofre uma série de problemas com a privação materna
(cuidados parentais, relação afectiva e contínua de mãe-filho).

Nesta perspectiva encontramos Stella 13, esta realizou uma pesquisa num recinto
prisional feminino do Rio de Janeiro com uma amostra composta por quatro rapazes e

KUROWSKI, C. M. (1990). Análise crítica quanto a aspectos de implantação e funcionamento de


11

uma creche em penitenciária feminina; 1ªed; Porto Alegre; São Paulo


12
BOWLBY, J. (2002). Cuidados maternos e saúde mental. 4ªed; Martins Fontes, São Paulo;239 p.
13
STELLA, C. (2006). Filhos de mulheres presas: soluções e impasses para seu
desenvolvimento,1°ed;LCTE Editora; São Paulo.
20

duas raparigas, que moram com suas mães em recinto prisional. Tinha como objectivo
reflectir sobre o processo de socialização dos filhos de mulheres presas a fim de
compreender a influência do aprisionamento materno e do seu impacto social.

Neste estudo, a autora constatou que não se deve separar a criança da sua
mãe, mesmo que isso signifique a sua permanência na cadeia, sobretudo numa fase
precoce da vida, cuja relação afectiva com a mãe é muito importante para o seu
desenvolvimento motor e psicológico. Para Stella (Ibidem), as crianças precisam
permanecer junto dos seus progenitores de modo a que possam ter um
desenvolvimento saudável, partindo do pressuposto de que a relação de mãe-filho é
um elemento de extrema importância para os primeiros anos de vida dos indivíduos.

É notório nos estudos acima que a dupla (mãe-filho) é indispensável para a mãe
na medida em que a encoraja a cumprir a sua pena. Pois, tendo o filho próximo de si,
sente-se motivada para cumprir a pena. Esta proximidade é também benéfica para o
filho, pois este, precisa da sua mãe para o seu desenvolvimento. Contudo, nem todos
os autores que estudaram esta relação dentro do recinto prisional vêm às coisas desta
forma.

Voegile14 efectuou uma pesquisa no Rio Grande do Sul, onde o foco era a
violência no recinto prisional. O estudo foi realizado no recinto prisional de Madre
Peletier. Parte do princípio de que o recinto prisional é um espaço que acolhe
diferentes formas de violência, e não pode constituir um espaço onde se possa
desenvolver uma socialização eficaz de crianças.

Neste fio de pensamento é de referir que autora ilustra no seu estudo a


discrepância no desenvolvimento entre uma criança “livre” e uma criança que vive atrás
das grades de um sistema prisional; onde afirma que no estudo é nítido o que
representa essa perda da relação com o mundo exterior, onde a criança que
permanece no recinto prisional tende a desenvolver a sensação de fracasso perante a
outra criança que vive no mundo exterior.

14
VOEGELI, C.M. (2003). Criminalidade & violência no mundo feminino. Juruá; Curitiba. p, 79.
21

Por sua vez, Viafore15 desenvolveu um estudo na cadeia do Rio Grande do Sul,
onde aborda a situação das gestantes naquele recinto prisional e advoga que após o
nascimento das crianças é necessário que estas sejam retiradas do recinto prisional
alegando que este sítio não é lugar de vivência para crianças. O objectivo do estudo
cingiu-se na compreensão da situação da gestante reclusa no recinto prisional, tendo
como foco as dificuldades das mesmas.

Viafore (2005) partilha a mesma ideia apresentada por Viogeli (1992) segundo a
qual a criança no centro prisional modifica seus modos de viver, desenvolvendo
comportamentos agressivos que terá como consequência a “convivência anormal” por
parte desta criança. Na visão de Vifore, a permanência da criança no centro prisional é
tida como dolorosa e difícil para a mulher reclusa, uma vez que esta fica com
sentimento de culpabilidade e ressentimento.

A situação da maternidade nos centros prisionais foi também objecto de análise


de Cunha16. Realizou uma pesquisa em Portugal, com uma amostra de seis mães
reclusas que residem com seus filhos, tinha como objectivo construir uma teoria sobre
o comportamento maternal de mães que convivem com os seus filhos.

Segundo Cunha, o centro prisional constitui um exemplo de uma suposta


incompatibilidade entre as duas condições – ser mãe e estar presa. Neste caso,
vislumbra-se com dificuldade que as mulheres reclusas encontram em “poder” educar
os seus filhos com base nas regras instituídas no recinto prisional, uma vez que estão
diante de um sistema de repreensão.

No mesmo diapasão, o autor sublinha que a relação mãe-criança está


submetida à lógica e regras que regem a dinâmica prisional e onde o centro prisional é,
provavelmente, o único meio que estas crianças conhecerão num período da sua vida,
e em que a qualidade das experiências vividas por elas torna-se crucial e determinante.

15
VIAFORE, D. (2005). A gravidez no cárcere brasileiro: uma análise da Penitenciária Feminina Madre
Palletier. Direito & Justiça; 1ªed;Porto Alegre. p,25.
16
CUNHA. I. (1994). Malhas que a reclusão tece: questões de identidade numa prisão feminina.
1ªed; Centro de Estudos Judiciários; Lisboa.
22

Estes autores partilham uma visão negativa da permanência de crianças junto


das suas mães no recinto prisional. O argumento destes autores é de que a presença
das crianças no recinto prisional pode trazer consequências maléficas no
desenvolvimento destas mesmas crianças, pelo facto de viverem num contexto
prisional, fechado e susceptível a prática de violências.

Autores como Scavone17, Araújo & Moura18 e Granja et al.,19. Para estes autores
a maternidade é algo construído socialmente onde as mulheres de acordo com o
contexto espacial e social reproduzem o exercício da maternidade. O argumento destes
autores baseia-se em torno de construção social da maternidade onde os mesmos
advogam que as mulheres constroem a maternidade a partir de um vasto leque
concedido pela sociedade que a rodeia.

Neste sentido, Scavone (2001) realizou um trabalho com intuito de trazer uma
abordagem sociológica no que tange às transformações dos padrões e experiências
contemporâneas da maternidade, onde o objectivo central era o de abordar a
maternidade como um fenómeno social marcado pelas desigualdades sociais.

Para esta autora a maternidade tem estado a sofrer diversas alterações devido
ao advento da industrialização e a urbanização. Scavone (ibidem) conclui que
actualmente a sociedade tem estado a enfrentar um período de transição para um novo
modelo de família e maternidade, cujo substrato é o ideal de equidade na
responsabilidade parental que ainda está longe de ser alcançado, apesar dos avanços.

Por seu turno, Araújo e Moura 20 desenvolveram um estudo que visa


compreender o exercício da maternidade numa era moderna. Afirmam que as
condições económicas das mulheres permitiram a concepção de novas formas da
17
SCAVONE, E. L. (2001) Mulheres delinquentes: uma longa caminhada até a Casa Rosa.
Dissertação de Mestrado -Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Faculdade de Educação, Porto
Alegre.
18
ARAUJO, D. C; MOURA, G. (2004). Vivências da maternidade em uma prisão feminina do Estado
do Rio Grande do Sul. Saúde & Transformação Social, v.1. n.3. p. 113-121,
19
GRANJA et al., (2013). As prisioneiras: Mães atrás das grades. Lisboa: Plátano Editora.
20
ARAUJO e MOURA, Ibidem, p. 121.
23

maternidade. O objectivo do estudo girava em torno da naturalização de conceitos e


práticas relacionadas à maternidade e aos cuidados maternos. A sua construção social
associa-se às modificações pelas quais a família tem passado na Europa e no Brasil.

Araújo e Moura (2005) partilham a mesma ideia apresentada por Scavone


(2001) segundo a qual as mulheres tendem a construir o seu modelo de maternidade
devido ao aparecimento do processo de industrialização que acarretou consigo o
ingresso da mulher na educação formal, mercado de trabalho que permitiu que esta
mesma mulher tivesse um nível de lucidez maior, factores estes que são apontados
pelos autores acima como sendo os que propiciaram a criação de novos moldes de
maternidade.

Por último, Granja et al 21 desenvolveu um estudo com objectivo de explorar o


conceito de maternidade através das narrativas de pais e mães reclusas e buscando
perceber o exercício da maternidade no contexto prisional. Desta forma, os diversos
autores que compõem este estudo defendem o pressuposto de que as mulheres
reclusas - não obstante a ausência de um espaço doméstico devido à reclusão – não
põe em causa as suas relações maternas.

Na reflexão dos autores, as mulheres reclusas, estando em um contexto


caracterizado por restrições de controlo penal, autoconstroem-se através de estratégias
e negociações sem necessariamente ignorando o quadro jurídico-legal do recinto
prisional. Podemos perceber a partir da ideia de construção social se encontra melhor
ilustrada na última obra (Granja et al), onde para estes autores as mulheres reclusas
autocriam o exercício da maternidade mesmo num contexto prisional, sem passar a
linha limite das regras normativas do recinto prisional.

21
GRANJA et al., Ibidem, p. 28.
24

2.3. O Significado de algumas Expressões e Palavras Usadas

2.3.1. Biografia

De acordo com Dausien22, biografia é a história individual, pessoal e subjectiva


de uma pessoa. São construídas e reconstruídas por sujeitos concretos a partir de
situações concretas, possuem determinadas razoes bem como determinadas funções
colectivas e individuais, orientam-se a partir de normas preestabelecidas e subetendem
diferentes meios de construção.

As definições de biografia apresentadas por diferentes autores não têm muitas


diferença entre elas. Podemos constara muita proximidade entre a definição
apresentada por Dausien (1996) e a apresentada por Schutz 23.

De acordo com Schutz, a biografia do indivíduo é uma história própria


sedimentada pelas experiências anteriores, organizada de acordo com as posses
habituais de seu estoque de conhecimento à mão, que como tais são posses
unicamente dele, dadas a ele e a ele somente. O autor acrescenta que essa situação
biográfica determinada inclui certas possibilidades de actividades teóricas ou práticas
futuras.

Como fizemos referência, as definições apresentadas não têm muita distinção


entre si, o que faz não tenham nenhuma preferência entre uma e outras, empregamos
o sentido dado pelas duas definições.

2.3.2. Maternidade

O conceito de maternidade tem sido actualmente bastante discutido em diversos


fóruns e foi ganhando diversas formas de concepção ao longo do tempo. De acordo
com Leal24, o conceito de maternidade é percebido como sendo à lógica ancestral de

22
DAUSIEN, B. (1996). Biographie und gestchlecht. Bremen, Donat.
23
SCHUTZ, Alfred. (1994). Fenomenologia e relações sociais: textos escolhidos. Rio de Janeiro,
Zahar Editoras.
25

que o feminino se cumpre no materno, isto é, como se o materno não fosse uma
possibilidade do feminino mas o feminino nele mesmo.

Desta forma, esta autora ressalta a ideia de que a maternidade vem sendo cada
vez mais uma opção entre outras na vida da mulher, o que nos encaminha para uma
maior distância da relação directa entre Maternidade e Feminino. De acordo com
Scavone (2001), a maternidade continua sendo afirmada como um elemento muito
forte ligado a cultura e identidade feminina e a ligação com o corpo e a natureza.

2.3.3. Prisão

Para Goffman25, a prisão conhecida também como cadeia é um local destinado


ao confinamento de pessoas privadas de liberdade e com a missão de proteger a
sociedade dos indivíduos perigosos como também reeducar os detidos para que
possam ser reintegrados na comunidade. Uma vez privado de liberdade este individuo
esta sob responsabilidade de uma autoridade que exerce sobre ele sua soberania e
perde automaticamente o seu poder de tomar decisões, competindo a esta autoridade
garantir todos direitos inerentes a sua cidadania.

Na visão de Foucault26, as prisões foram criadas para serem verdadeiros


depósitos humanos, de indivíduos estigmatizados e privados dos seus direitos,
ampliando-se a punição para além da pena aplicada. O autor acrescenta referindo que
a iniquidade no acesso às políticas públicas potencializa as vulnerabilidades e
sobressai a relação de poder do Estado na dominação dos apenados que estão sob a
sua guarda.

Dentro desse contexto, acredita-se que a prisão impõe um ajuste a subcultura


prisional, atrelada a efeitos. Assim, a prisão atinge o preso em sua integridade física e
moral: pode levar a uma submissão passivo, de aceitação das regras, com a
24
LEAL, J. (1995). Cemitério dos vivos: análise sociológica de uma prisão de mulheres, 2ª Ed. Rio
de Janeiro: Forense.
25
GOFFMAN, E. (1999). Manicómios, prisões e conventos. Editora Perspectiva. São Paulo – SP.
26
FOUCAULT, M. (1999). Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão. 20. ed. Petrópolis: Vozes. p, 96.
26

interiorização de normas e valores ou a um estado de clandestinidade ou revolta


permeado pelo uso da violência.

Essas concepções, de Foucault e Goffman concebem a prisão como uma lógica


controlada por regulamentos administrativos e Mecanismos de controlo e punição,
mesmo tendo discursos de reabilitação do criminoso, isto é, estes sao sujeitos de
direito e portadores de protecção legal.

2.3.4. Instituição Total

27
Na definição de Goffman aponta que a instituição total pode ser definida como
um local de residência e trabalho onde um grande número de indivíduos com situação
semelhante, separados da sociedade mais ampla por considerável período de tempo,
leva uma vida fechada e formalmente administrada.

Desta forma, as instituições totais são caracterizadas pela sua tendência de


fechamento, na qual se encontra uma ruptura das barreiras que separam as três
esferas da vida (casa, trabalho e lúdico), sendo desempenhados no mesmo local, sob
uma única autoridade. Também sendo todos os participantes tratados da mesma
maneira e obrigados a realizar as actividades em conjunto, através de um sistema de
regras.

Capitulo III. Resultados do trabalho de campo

Neste capítulo nos propomos a apresentar, discutir e analisar os resultados


obtidos no trabalho de campo. Para melhor descrever e interpretar os resultados, os
dados serão apresentados em subcapítulos. No primeiro subcapítulo apresentamos os
dados que descrevem o perfil sociodemográfico das entrevistadas, no segundo

27
Goffman, ibidem, p, 11.
27

subcapítulo apresentamos o seu perfil criminal das entrevistadas, no terceiro


subcapítulo apresentamos os dados referentes a percepção social das reclusas sobre
ser mãe dentro do recinto prisional, no quarto subcapítulo apresenta-se as experiências
e as dificuldades no desempenho do seu papel enquanto mães dentro de um
estabelecimento prisional; e no último subcapítulo apresentamos as estratégias
adoptadas para o desempenho do seu papel enquanto mães dentro de um
estabelecimento prisional.

3.1. Perfil sócio-demográfico das reclusas da cadeia feminina de Ndlavela

Nesta secção procedemos com a descrição e interpretação dos resultados


referentes ao perfil sociodemográfico das entrevistadas. O objectivo desta secção é
caracterizar de uma forma geral, as entrevistadas do ponto de vista social e
demográfica. Neste sentido, consideramos as seguintes variáveis: idade, bairro de
residência, o grau ou o nível de escolaridade, a ocupação antes da prisão.

O nosso grupo alvo é constituído por mulheres jovens e adultas, que


apresentam idades compreendidas entre os 20 aos 29 anos de idades para as jovens e
de 36 aos 39 para as adultas. As mulheres jovens, no que concerne ao seu estado civil,
se encontravam na situação de solteiras e, dentre as adultas encontramos algumas
delas na situação de solteiras, assim como na situação de casadas, todavia, no geral
as mulheres com as quais trabalhamos se encontram na situação de casadas.

Relativamente ao tamanho do agregado familiar, as nossas entrevistadas


afirmam pertencer a famílias com agregado que varia de 5 a 10 membros, estes são os
números que melhor caracterizam muitas das famílias destas mulheres e as restantes
com agregado abaixo de 5 membros, o que significa que, de forma de geral, estas
mulheres fazem parte de agregados familiares extensos.

Entre as entrevistadas identificamos aquelas se encontram residindo em bairros


localizados na cidade de Maputo, nomeadamente, Albazine, Mateque, Maxaquene “B”,
Jardim e Hulene e aquelas que se encontram residindo num bairro localizado na
província de Maputo, especificamente na Matola, que é o bairro da Liberdade. Só para
28

termos uma ideia, este bairro acolhe duas das oito mulheres com as quais
trabalhamos. No que diz respeito ao nível de escolaridade, constatamos que as
entrevistas apresentam classes entre a 7ª e a 10ª classe.

De uma forma geral, as entrevistadas afirmaram que antes de serem presas as


desempenhavam actividades como a de emprega doméstica, comerciante ambulante e
fixa, trabalhadora de empresa de compra e venda e estudante. Em função destes
resultados podemos constatar que maioritariamente as mulheres com as quais foi
possível trabalhar se dedicam a actividades informais, sendo poucos os casos de
mulheres que se encontravam realizando trabalhos formais. Ao contrário, estas
actividades demonstram mais uma extensão do papel o qual as mulheres foram
relegadas ao longo de muito tempo, no qual se encontravam confinadas a esfera
privada.

Podemos constatar que o perfil sociodemográfico apresentado acima não esgota


os elementos que podem ser operacionalizados para descrever e categorizar as
presidiárias, todavia, ajuda a compreender a sua origem social. Em termos gerais, as
presidiárias são jovens solteiras – na sua maioria – oriundas de zonas suburbanas da
cidade de Maputo, onde há maior concentração populacional, residem junto de grandes
agregados familiares, com níveis académicos baixos tomando em consideração as
suas idades, sem nenhuma formação profissional, assim como algumas actividades
formais. Esta última característica sustenta o que já vem se afirmando, que a mulher
encontra a fonte do seu sustento no sector informal.

3.2. Perfil criminal dessas mulheres

Nesta secção procedemos com a apresentação dos resultados que nos


permitem construir um perfil destas mulheres em função do crime por elas cometido. As
categorias para a construção do perfil foram adoptadas em função das categorias
dentro das quais se enquadram os crimes cometidos do ponto de vista do Código
29

Penal. Neste sentido, é possível identificar as seguintes categorias: furto qualificado,


homicídio voluntário e abandono de infante.

A categoria do furto qualificado comporta todas aquelas mulheres que foram


presas e condenadas, acusadas de terem furtado bens alheios pertencentes a pessoas
com quais dividiam um mesmo agregado familiar como ilustram algumas entrevistas:

“Estive presa por duas vezes porque me acusaram de ter roubado 30 mil meticais
pela dona da casa onde eu trabalhava como empregada doméstica” (Elisa de 22
anos, presa por furto qualificado).

“Fui presa porque fui acusada de ter vendido juntamente com uma amiga, um
carro que tinha sido roubado de um senhor, que era namorado dela” (Fátima de
29 anos, presa por furto qualificado).

“Fui presa e condenada dois anos porque o meu cunhado acusou-me de ter
roubado gado caprino e electrodomésticos na casa dele” (Maria de 38 anos, presa
por furto qualificado).

Podemos constatar, a partir dos depoimentos acima, que estas mulheres se


aproximam em função da classificação que recebe a prática ilícita pela qual foram
presas. É possível constatar ainda nestes depoimentos, a apresentação da resposta na
passiva, que estas mulheres assumem uma posição de vítima não reconhecendo a
autoria do furto ou do crime cometido, o que faz com que, na sua perspectiva, a
acusação que lhes foi feita não seja legítima. Podemos identificar nos depoimentos as
seguintes formulações: “fui acusada (…)”, “na verdade acusaram-me (…)” e “fulano
acusou-me (…)”. Em nenhum dos depoimentos relativos ao crime de furto identificamos
formulações como “fui presa porque roubei” ou, ainda, “furtei (…)”, que demonstram o
reconhecimento de culpa pelo crime do qual foram acusadas, presas e condenadas.

Não obstante, todas as mulheres pertencentes à categoria de furto qualificado é


possível reagrupá-las tomando em consideração o objecto furtado. Verificamos que,
dos depoimentos acima, o primeiro tem como objecto furtado, dinheiro, o segundo uma
viatura e o terceiro gado caprino e electrodomésticos. Os crimes de furto qualificado,
principalmente, os ligados a esfera doméstica são, desde há muito tempo, incluídos na
30

lista dos crimes mais praticados por mulheres, visto que, estes estão ligados à esfera
privada, que constitui o espaço dentro do qual as mulheres se encontraram confinadas
durante muito tempo. Porém, o roubo de viaturas constitui um dos crimes novos na lista
dos praticados por mulheres.

A segunda categoria a partir da qual construímos o perfil criminal das mulheres


é a de homicídio voluntário. No caso identificado o crime por homicídio não tem como
autora directa a mulher entrevistada, antes trata-se de um ladrão que invadiu a sua
residência com intuito de furtar uma geleira que se encontrava no interior da residência,
que tendo sido capturado foi espancado até a morte por vizinhos e populares que se
encontravam arredores. Esta foi condenada pelo facto de ser a dona da casa da qual o
bem tinha sido furtado, o que culminou com a apreensão do ladrão e seu
espancamento até a morte. Vejamos a seguir como esta mulher descreve as
circunstâncias nas quais ela passou a ser considerada criminosa:

“Houve roubo de uma geleira na minha casa e o ladrão foi espancado até a
morte. Como eu sou a dona da casa a polícia me prendeu acusando de
homicídio voluntário” (Susana de 39 anos, presa por homicídio voluntário).

As categorias do perfil criminal das mulheres apresentadas acima comportam


crimes cuja autoria pode ser, predominantemente, tanto de um homem, assim como de
uma mulher – que são os casos presentes. Ao contrário, a categoria de abandono de
infante comporta crimes cuja predominância de suas ocorrências está ligada ao género
feminino. Os crimes de abandono de infante são praticados maioritariamente por
mulheres e a sua prática não constitui um fenómeno recente. Desde muito que casos
de mulheres que abandonam seus filhos vêm sendo identificados e tratados
judicialmente.

“Fui presa porque depois de ter dado a luz a um bebé que nasceu prematuro e
deitei no lixo. Fui descoberta por vizinhos pelo facto de ter sido a única que
estava grávida na minha zona naquele momento” (Marta de 23 anos, presa por
abandono de infante).
31

Podemos constatar que, diferentemente das mulheres da categoria do furto


qualificado, as mulheres das categorias do homicídio voluntário e de abandono de
infante reconhecem nos seus depoimentos a autoria dos crimes pelos quais foram
acusadas e condenadas. Podemos identificar as expressões “como sou a dona da
casa (…) a polícia me prendeu” e “fui descoberta”, que demonstram o reconhecimento
e legitimidade da sua prisão.

Das mulheres entrevistadas, podemos verificar que três se encontravam livres


incondicionalmente depois de terem cumprido suas penas de prisão que variam de seis
meses a vinte e quatro meses. Estas fazem parte da categoria daquelas mulheres
condenadas por furto qualificado. As restantes mulheres, depois de terem cumprido
uma parte da pena que vai dos seis aos trinta e seis meses de prisão se encontravam
cumprindo metade da pena sobre liberdade condicional.

Podemos constatar, a partir da informação sobre os crimes cometidos pelas


entrevistadas, que as mulheres participam de diferentes tipos de crimes como autoras,
assim como cúmplices. Apesar de terem sido presas e condenadas, muitas das
mulheres entrevistadas não assumem a culpa pelo crime cometido, se limitando em
afirmar que foram acusadas.

Os resultados analisados justificam o porquê de hoje o crime feminino merecer


capital interesse dos estudiosos e das autoridades. Se antes o crime praticado por
mulheres não merecia muita atenção dos estudiosos que se dedicaram ao estudo do
crime (Moore)28, nas últimas décadas não se pode dizer o mesmo. Com a crescente
entrada da mulher na esfera pública o crime feminino vem merecendo interesse de
diferentes campos de conhecimento. Os resultados corroboram a afirmação de
Oliveira29, hoje é visível a participação da mulher em diferentes tipos de crimes, que
antes não faziam parte da lista dos crimes comuns por elas antes praticados. As

28
MOORE, S.(2002). Sociologia. ed, Publicações Europa América, ISBN 972-1-0590-3, p. 232 – 253,
29
OLIVEIRA, C. A. (2005).Criminalidade e o tamanho das cidades brasileiras: um enfoque da
economia do crime. Universidade de Passo Fundo. Faculdade de Ciências Económicas, administrativas
e Contábeis. Disponível em http/www.ppgc.ufrgs.br/giacomo/arquivesdaromp/oliveira-2005.pdf.
Acessado em 22 de Abril 2020.
32

mulheres ao ocuparem novos espaços públicos, também estariam assumindo novos


espaços no mundo do crime. O crime de roubo de carros pode ser inserido nas
novidades dos crimes femininos.

3.2. Percepção social sobre o ser mãe no recinto prisional

Nesta secção analisamos os dados referentes a percepção social sobre o ser


mãe por parte das reclusas da cadeia feminina de Ndlavela. Assim, foi possível
identificarmos duas formas específicas de ser mãe em função de estar ou não dentro
do recinto prisional. Partimos da ideia segundo a qual, o ser mãe dentro da prisão
implica a conjugação entre o conhecimento que traz de ser mãe fora da prisão e o ser
mãe dentro dos moldes impostos na prisão.

Com base nos dados recolhidos no campo de estudo, as reclusas concebem o


ser mãe como uma existência dualista caracterizada entre o “dever ser” e o “ser”, sob o
ponto de vista do conhecimento que trazem. Portanto, na prisão elas são obrigadas a
aprender outras formas de ser mãe, como pode se verificar nos depoimentos que se
seguem:

“ Ya mana, ser mãe aqui na cadeia não é fácil, nós sofremos, passamos por
muitas necessidades. Doí quando seu vê um brinquedo com filho de outra mãe
reclusa e pedir para que você compre e não saber responder, juro que não está
fácil ser mãe aqui na prisão, diferente quando estiver fora ai acaba ajeitando as
coisas” (Cateleya de 29 anos, presa por furto).

“ Não está fácil ser mãe dentro da cadeia, você e o teu filho comerem a mesma
coisa arroz com feijão todos os dias, isso é cansativo, quem já passou daqui
(cadeia) sabe do que estou a falar. Você procura ser uma boa mãe para o seu
filho, mas não pode por que esta presa e deve cumprir com as regras da prisão
se não vai ser punida ou vão-te tirar o filho” (Marange de 27 anos, presa por
homicídio).

De acordo com os depoimentos acima supracitados, podemos observar


que o “ser” e o “dever ser” misturam-se na construção da identidade de mãe
dentro do recinto prisional. Por um lado, elas querem ser aquelas mães que
33

podem dar amor e brincar com seus filhos, comprar-lhes brinquedos, passear
com eles; mas estão obrigadas a fazer o que o sistema normativo lhes
possibilita.

Neste sentido, a construção da identidade mãe resulta das experiências das


reclusas fora da prisão, constituindo assim a sua subjectividade. Contudo, nos
associamos a ideia de Goffman (2007) 30 ao afirmar que a prisão é uma instituição total,
que pela sua lógica de funcionamento provoca a “mortificação do Eu” e por meio dos
seus regulamentos administrativos de controlo dos indivíduos. Assim, as mulheres
sentem que são interditadas de manifestar o seu “Eu” na educação dos seus filhos,
tendo que lhes educar de acordo com princípios que lhes são rigorosamente impostos.

Face a essa exposição, não pretende afirmar que as mães não sabem que os
seus filhos têm de comer, ir à creche, alimentar, tomar banho, ter cuidados médicos,
mas sim afirmamos que cada mãe, em função de suas experiências, sabe onde e como
lhe dar banho e alimentar. De seguida apresentamos depoimentos, que demostram o
distanciamento que as reclusas estabelecem entre a mãe-presa e a mãe-ideal:

“Quando eu sair daqui, ela vai estar com um ano e sete meses. Eu queria ficar
com minha filha até esse período, mas se for pensar bem assim, não dá para
criar uma criança num lugar fechado também. Se para a gente ficar presa já é
ruim, imagina para eles. Acho que depois que ela for pra rua, vai estranhar, pois
a vida deles é isso aqui: corredor, sala de tv, parquinho e quarto.” (Cateleya de
29 anos, presa por furto).

“Se eu pudesse escolher, queria que meu filho ficasse aqui até eu ir, mas não
pode porque ele já está se acostumando a ficar preso. Ontem na janela do
banheiro, eu fui mostrar a lua e ele ficou correndo, gritando, então chegou na
gradezinha e começou a balançar. Quando abre essa porta e entra uma presa
ou a polícia, você tem que ver a felicidade das crianças. Quando fecham a porta
eles choram. Sabem que estão fechados”. (Floriana de 36 anos, presa por
venda de drogas).

30
GOFFMAN, E. (1999). Manicómios, prisões e conventos. Editora Perspectiva. São Paulo – SP.
34

Nestes depoimentos, foi possível identificar vários depoimentos mencionando que


nunca a separação do filho vai ser superada. Essas mulheres não demonstraram um
sofrimento anunciado por ser a criança prejudicada pelo facto de conviver em uma
penitenciária, mas o que se tornou mais evidente foi a preocupação da situação de
pobreza de seus familiares, e a manifestação um desagrado quanto às novas
condições dentro das quais são obrigadas a exercer a sua maternidade revela que as
normas e regras internas constituem ainda um constrangimento sobre os cuidados a
terem com os seus filhos. Isto, demostra a heterogeneidade do discurso no espaço
prisional no qual se encontram e esbarram com os princípios da maternidade prisional
e a maternidade familiar.

É com base nesses pressupostos que Rita (2006) 31, afirma que o discurso prisional
impõe às mulheres o desafio de construírem a identidade de mãe-presa, cumprindo
com todos os imperativos institucionais, como os trabalhos da brigada, a limpeza das
celas e ao mesmo tempo dedicar-se ao seu filho dentro dos moldes internamente
estabelecidos.

Os depoimentos demonstram a ambiguidade das percepções das entrevistadas, de um


lado, as reclusas devem cumprir com as regras institucionais com risco de sofrer
subsequentes sanções; e por outro lado, as reclusas procuram ser mãe que sempre
sonhou ser. Conforme o exposto, prevalece aqui a separação entre ser “mãe e presa”
como uma manifestação das duas categorias de mãe.

3.3. Experiências e os constrangimentos que as mães reclusas enfrentam dentro


do recinto prisional

Neste subcapítulo, buscamos analisar dados que nos possibilitam perceber as


experiencias e constrangimento encontradas pela mães reclusas no exercício da
maternidade no Centro de Reclusão Feminino de Ndlavela. No que se refere as
experiências vivenciadas pelas mães reclusas afirmaram o seguinte:

31
RITA, R.P. (2006). Mães e crianças atrás das grades: em questão o princípio da dignidade da
pessoa humana. Dissertação do Mestrado. Brasília
35

“Eu não sou muito de ficar discutindo, o funcionário falou e está falado porque se
a gente ficar discutindo, qualquer coisa nosso nome vai para o livro. Um livro
que eles fazem para quem tem má conduta e boa conduta, daí já estraga o
processo. Se você precisar de um benefício, você com o nome no livro não
consegue. Algumas presas aqui brigam, mas eu quero ir embora logo para a
minha casa” (Marcianova de 39 anos, presa por violência domestica).

Aqui a gente não pode fazer nada que vai tudo pra pasta, aí dificulta a
condicional (Macarena de 23 anos, presa por tentativa de homicídio).

Esses depoimentos de mulheres presas vêm reforçar essa questão do poder que se
exerce quotidianamente. Segundo Freire (2005) 32, esse modelo disciplinar das prisões
está vinculado a técnicas de individualização da pena e num sistema de punições e
recompensas, visando domesticar e normalizar comportamentos. A capacidade de
ressocialização dos sujeitos encarcerados será mensurada por meio de um duplo
critério: de natureza objectiva, referente ao tempo de cumprimento da sanção; e de
natureza subjectiva, traduzida no mérito dos condenados. Não obstante os dois
critérios estejam associados, o segundo prepondera sobre o primeiro, uma vez que os
aspectos da subjectividade, em constante observação e valoração, influenciam
directamente o período da sanção penal, extrapolando inclusive o grau fixado na
sentence. (ibidem).

Podemos afirmar que, no Centro de reclusão feminina vislumbra-se duas práticas que
são adoptadas pelas reclusas face ao exercício da maternidade, por um lado, as mães-
reclusas exercem a maternidade a partir das regras estabelecidas pelo recinto prisional
e por outro lado, as mães-reclusas desenvolvem a prática da maternidade a partir da
criação de espaços privados de modo a materializar o ideal de mãe. Os dados mostram
que as mães procuram exercer a sua maternidade dentro dos limites impostos ao nível
interno, como podemos constatar a partir de alguns depoimentos:

“Trabalhar muito, deixar bebe limpo, arrumar cela, hora para tudo, silencio
depois das 22 horas, mesmo se teu filho quer brincar tens que mandar calar

32
FREIRE, C. R. (2005). A violência do sistema penitenciário brasileiro contemporâneo. O caso
RDD (Regime Disciplinar Diferenciado). São Paulo: IBCCRIM.
36

para não fazer barulho para outras mães e bebes”. (Fátima de 29 anos, presa
por furto qualificado).

“Acordamos cedo, antes de irmos a machamba, temos de dar banho a criança,


dar comida criança, lavar as roupas que temos para lavar, levar na escolinha e
depois entramos na cela. Temos que fazer tudo pelo menos o que mandam as
funcionárias porque se não vão se zangar connosco”. (Elisa de 22 anos, presa
por furto qualificado).

Os depoimentos oferecidos pelas nossas entrevistadas, confirma que o não


cumprimento desses cuidados para com os seus filhos constitui uma infracção que
carece pelo menos de uma chamada de atenção, isto é, as mães não podem construir
uma rotina de forma autónoma para si e para o seu filho. As regras e normas são
claras, mães são obrigadas a fazer certos cuidados para os seus filhos num
determinado período. Esta imposição não deixa espaço para que as mães manifestem
a sua subjectividade ao cuidar do seu filho.
Neste sentido, Figueiredo et al., 33 afirmou que estes constrangimentos enfrentados
pelas mães reclusas têm um carácter quantitativo e qualitativo. Assim, estas reclusas
procuram desempenhar de forma correcta as actividades do recinto a partir do tempo
determinado, cabe a mãe dedicar-se intensivamente aos seus filhos. Porém, antes
disto deve garantir o cumprimento das normas. E o uso qualitativo e quantitativo do
tempo é um desafio que se coloca às mulheres em duas perspectivas, sendo que uma
é de carácter objectivo e outra, subjectivo.

No que se refere ao carácter objectivo, as mães têm de realizar todos os cuidados que
lhes são impostos dentro da prisão para com o seu filho no tempo disponibilizado, isto
é, existe uma hora específica de limpar o ambiente onde elas ficam e dar de comer as
suas crianças. Neste contexto, existe uma pressão sobre as mães por meios de
discursos: “você não está a cuidar de sua criança; você não deu banho a sua criança”.

Do ponto de vista subjectivo, as mães trazem consigo uma outra experiência baseada
nos princípios do que é bom para uma criança, quando são dados determinados

33
FIGUEREIDO et al. (2013).Mulheres multifuncionais: Mercado de Trabalho e dilemas familiares;
1ªed; Foco milénio; São Paulo.
37

cuidados e o nível de liberdade de modo a realizar suas actividades diárias. Essas


mães procuram materializar estes princípios dentro do tempo e de espaço que os
limites objectivos lhes possibilitam no recinto de reclusão feminino.

3.4. Estratégias adoptadas pelas reclusas no exercício da maternidade no recinto


prisional

Neste subcapítulo, apresentamos e discutimos dados sobre as estrategias


adoptadas pelas reclusas no exercício da maternidade. Desta forma, podemos afirmar
que o exercício da maternidade constitui um constrangimento para as mães dentro do
recinto prisional pelo facto de serem obrigadas a estar todo o dia com seus filhos, sem
restar tempo para que se dediquem ao trabalho interno de modo a contribuir na
redução da pena.

De acordo com os dados do campo, observamos que as mães são obrigadas a


dividir o tempo fora das celas entre o trabalho da brigada e os cuidados da criança, o
que em grande parte tende a constranger o seu aproveitamento na realização das suas
actividades diárias. Neste sentido, essas reclusas são impostas a ser ao mesmo tempo
mães e presas, como podemos perceber no depoimento dado pela nossa entrevista,
Nobuso de 36 anos, presa por homicídio: aqui somos duas pessoas, mamã e presa.

Como pode-se observar na narrativa acima exposta, as mães reclusas sentem-


se obrigadas a dar cuidado em determinada hora do dia, o que na sua percepção não é
adequado para as crianças. Este sentimento é manifestado por uma das nossas
entrevistas, que afirmou o seguinte:

“… (risos), é assim, você é mulher não sei se tem filhos, mas ter filho ou ser mãe
aqui dentro é muito diferente de lá fora, por exemplo, aqui quando sua filha
estiver com febres, constipação nada pode fazer, mas se estivesse em casa as
coisas seriam diferentes. Aqui sou obrigada a tirar a minha filha as 7horas para
fora da cela e dar banho, se estivéssemos em casa tudo diferente”. (Moyasse de
29 anos, presa por venda de drogas).

“Mana tem muitas coisas das crianças que não podem entrar aqui. Neneca não
entra, perfume da criança não entra, quase nada eles deixam entrar. Às vezes
38

tem que encontrar uns bons guardas, toleram as vezes.” (Mirza de 38 anos,
presa por tentativa de homicídio).

Conforme os depoimentos acima, fica evidente que esses aspectos apontados


estão relacionados com violações de direitos humanos, mais especificamente com
processos de não respeito à dignidade da pessoa humana. Cabe observar que essas
mulheres, além de estarem em privação de liberdade, estão em companhia de crianças
em ambiente de prisão.

Numa instituição total, no entanto, os menores segmentos da actividade de uma


pessoa podem estar sujeitos a regulamentos e julgamentos da equipe directora; a vida
do internado é constantemente penetrada pela interacção de sanção vinda de cima,
sobretudo durante o período inicial de estada, antes de o internado aceitar os
regulamentos sem pensar no assunto. Cada especificação tira do indivíduo, uma
oportunidade para equilibrar suas necessidades e seus objectivos de maneira
pessoalmente eficiente, e coloca suas acções à mercê de sanções. Violenta-se a
autonomia do acto. (Goffman)34.

Neste sentido, dentro dos limites impostos pelo sistema prisional, as mães
procuram amenizar os efeitos negativos da sua reclusão sobre os seus filhos criando a
oportunidade de poderem “cuidar” de seus filhos ou filhas, reflectindo uma significação
do papel maternal, atrelado ao facto de contribuir para abrandar a pena de prisão.
Podemos observar nos depoimentos abaixo:

“Vendo meu filho aqui comigo fico muito triste, porque as condições daqui não
são fáceis e penso na dor que ele sentira, por estar aqui neste sítio. Se não sair
e se ele ficar mais tempo comigo aqui é pior; ele vai se agarrar mais em mim e
ele só vai conhecer esse mundo aqui.” (Maria de 38 anos, presa por furto
qualificado).

“Quando estou com meu filho procuro brincar para aliviar a minha dor como
reclusa eu mais outras reclusas procuramos inventar brincadeiras aqui na cela

34
GOFFMAN, E. (1999). Manicómios, prisões e conventos. Editora Perspectiva. São Paulo – SP. p,
42.
39

para estas crianças não sentirem a dor de estar nesta cadeia.” (Susana de 39
anos, presa por homicídio voluntário).

De acordo com os depoimentos das nossas entrevistadas, podemos afirmar que


essas mães reclusas procuram construir espaços “privados” nos quais podem garantir
o mínimo da realização da maternidade com base no modelo de mãe por elas
construído. Os depoimentos apresentam estratégias que as mães reclusam adoptam
para garantir que dentro do cumprimento dos imperativos normativos da instituição
prisional possam garantir aos seus filhos o mínimo que poderiam garantir caso se
encontrassem em liberdade nos seus lares.

Essas estrategias são apresentadas da seguinte maneira: i) As mães reclusas


procuram dar carinho ao seu filho, brincar, conversar, ao longo dos cuidados básicos
exigidos pelas funcionárias da cadeia de Ndlavela e são feitos fora da cela quando
estas são abertas; e ii) As mães reclusas criam espaços de interacção e trocas
simbólicas entre elas e seus filhos de modo a reproduzirem e partilharem suas
experiências subjectivas no exercício da maternidade. Porém, mesmo nestas
situações, as regras estão presentes, pois o tempo para brincadeira é limitado, porque
existe uma hora específica em que se exige o silêncio absoluto.

Tendo em vista que o sistema prisional faz parte de uma rede complexa de
interacções entre o fora e o dentro da prisão, ambos entrelaçados e possuindo
aberturas para o exterior, uma instituição não é totalmente fechada. Goffman (2001) 35,
caracteriza a prisão como uma instituição total e reconhece que os campos de vida
recriados no aprisionamento não invalidam nem substituem os exteriores, continuando
estes como referenciais para os detentos; assim, a prisão não seria realmente
“totalizante”. Para Cunha (2008)36 a cadeia “representaria um intervalo na vida dos
indivíduos e seria vivida como tal, como uma suspensão ou um parêntesis no seu
percurso, como um tempo de outra natureza. No entanto, Goffman sinaliza alguns

35
GOFFMAN, E. (2001). Manicómios, prisões e conventos. 7. Ed. São Paulo: Editora Perspectiva, p.
15-20
36
CUNHA, M. (2008). Da Prisão e Sociedade: Modalidade de uma conexão. In CUNHA, Manuela Ivone.
(org.): Aquém e além da prisão. Cruzamentos e perspectivas, Lisboa, Editora Noventa Graus, p.22
40

efeitos que a prisão poderá causar no indivíduo através dos processos de “mortificação
do eu”, como transformações dramáticas do ponto de vista pessoal e de seu papel
social.37

Acredita-se que esse exercício da maternidade em ambiente de prisão possa vir


a ser um facilitador em processos de reintegração social, visto que nas falas das
entrevistadas aparece de forma preponderante o desejo de retorno aos papéis relativos
aos vínculos familiares.

4. Considerações Finais

Embora as reclusas estejam inseridas em contextos culturais, sociais, ambientais e


políticos diferentes, dentre outros factores, há muitas similaridades referentes às
percepções diante dos aspectos positivos e negativos de vivenciar a maternidade em
meio prisional, o que permite afirmar que há características inerentes ao processo de
reclusão, independentemente da conjuntura em que as mulheres estão inseridas.

Algumas mães descobrem a oportunidade de exercer a maternidade de uma forma


totalmente diferente daquela que eventualmente haviam vivenciado, já que para
algumas foi uma aprendizagem e para outras serviu para torná-las mais capacitadas.
Essa mudança na identidade materna e o estabelecimento de um vínculo mais estreito
com o filho estão relacionados com o contexto prisional, onde as reclusas possuem
disponibilidade de tempo para dedicarem-se ao filho e os cuidados são prestados
exclusivamente por elas, sendo, ainda, incentivadas e obrigadas a desempenhar a
função materna se quiserem permanecer com o seu filho.

Com o presente estudo, pode-se então concluir que o aspecto característico do


comportamento parental destas mães reclusas é a centração e dedicação total à
criança, revelando-se assim ser fundamental para elas usufruírem da companhia dos
seus filhos a tempo inteiro, pois ajuda-as a ultrapassar as dificuldades e limites
existentes em meio prisional, suavizando a sua vivência prisional. Esta relação muito
37
GOFFMAN, Ibidem, p. 17.
41

próxima entre mãe e filho permite que estas mães dêem continuidade ao seu papel
maternal, o que se revela muito estruturante da sua personalidade e identidade

De outra maneira, a prisão apresenta uma série de riscos para o menor, com destaque
para as dificuldades emocionais da mãe diante do aprisionamento e o próprio ambiente
hostil, que segundo as reclusas acabam influenciando aos filhos com sentimentos
negativos. Há, ainda, a inversão parcial do exercício das responsabilidades, pois não
raro as mães prisioneiras atribuem papel de suporte emocional e figura contentora ao
filho. Além disso, quanto mais tempo mãe e filho permanecerem na prisão, a tendência
é que se crie uma relação de dependência mútua, o que prejudicara no
desenvolvimento psicossocial da criança.

No que concerne a primeira hipótese, segundo a qual o recinto prisional exerce


uma pressão directa na prática da maternidade a partir das regras discursivas
estabelecidas, fazendo com que todas desempenham o papel de mãe-reclusa da no
recinto prisional foi comprovada, na medida em o sistema prisional obriga a mãe-
reclusa a dividir o tempo entre o exercício da maternidade e o cumprimento dos
imperativos das instituições onde se encontram encarcerada. E no que concerne a
segunda hipótese segundo a qual o recinto prisional não exerce uma pressão directa
na prática da maternidade a partir das regras discursivas estabelecidas, na qual todas
reclusas desempenham o papel de mãe-reclusa no recinto prisional, foi refutada na
medida em que prática de maternidade, as reclusas desenvolvem contra sua vontade,
pois não concordam mas têm de cumprir de modo a amenizar a pena.

Pode-se encerrar estas considerações, afirmado que mesmo com a


comprovação da nossa hipótese, a nossa meta sempre foi sustentar a sua validade
para que estudos que visem explorar a realidade das mães reclusas no recinto de
reclusão tenha sido visto como um ponto de partida e nunca como um ponto de
chegada. É neste sentido que consideramos que a partir dos dados que interpretamos
não se pode considerar como um trabalho acabado, mas sim como um contributo
valioso que abre caminho para futuras investigações sobre a temática.
42

5. Referências Bibliográficas
43

Apêndices
44

Guião de entrevistas

I. Dados sócio-demográficos

1. Nome

2. Idade

3. Formação profissional

4. Ocupação actual

II. prática de Kupalha

1. Em que circunstâncias se pratica o ritual Kupalha?

2. Quais foram os procedimentos seguidos para a realização de Kupalha?

3. Quando e onde ouviu falar sobre Kupalha?

4. Podes descrever o que te aparece na mente quando se fala de realização de


Kupalha?

5. Na sua opinião, qual é a importância da realização de Kupalha?


45

6. Qual pode ser a consequência em caso não se realiza Kupalha?

7. No seu caso particular, o que aconteceu por não terem realizado Kupalha?

III. Pratica de Kupalha na actualidade

1. O que acha do ritual Kupalha praticado hoje em dia?

2. Acha que a pratica de Kuphalha mudou ou continua na mesma como no


antigamente? Explique-nos a razão da sua opinião?

3. Porque é que continuam praticando o ritual Kupalha?

4. Quer deixar algum comentário ou quer acrescentar alguma coisa que considera
importante?

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