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13ª SEMANA

DE EVENTOS FALE
Pensar a infância: linguagem e imaginário
13ª SEVFALE
Semana de Eventos da FALE
Pensar a infância: linguagem e imaginário
13ª SEVFALE
Semana de Eventos da FALE
Pensar a infância: linguagem e imaginário
13ª Semana de Eventos da FALE

Pensar a Infância: linguagem e imaginário


Diretora da Faculdade de Letras: Dra. Graciela Ravetti
Vice diretora da Faculdade de Letras: Dra. Sueli Coelho
Coordenadora da Câmara de Pesquisa: Dra. Sara Rojo

Comissão organizadora da 13ª Semana de Eventos da FALE:


Pensar a Infância: linguagem e imaginário
Dra. Sara Rojo (Coordenação Geral)

1 - Simpósio I Coordenadores: Mestre Gladys de Souza, Dr. Leandro Rodrigues Alves Diniz e
Dra. Daniela Mara Lima Oliveira.
2 - Simpósio II Coordenadores: Dr. Aroldo Leal de Andrade e Dra. Mayara Nicolau de Paula.
3 - Simpósio III Coordenadoras: Dra. Aline Magalhães Pinto; Dra. Márcia Regina Jaschke Ma-
chado e Dra. Myriam Corrêa de Araújo Ávila.

Comissão organizadora executiva da 13ª Semana de Eventos da FALE:


Pensar a Infância: linguagem e imaginário
Dra. Sara Rojo (Coordenação Geral)
Mestre Kelle Carvalho (Secretaria Geral)
Henrique Vieira da Silva (Apoio a Secretaria)

Diagramação: Priscilla Tulipa


Projeto gráfico: Tâmara Martins Pereira
Divulgação: Isabella Aparecida De Souza Lisboa (Setor de Comunicação da Fale)

Número ISBN: 978-85-7758-362-1


Título: 13ª SEVFALE semana de eventos da FALE
Pensar a infância: linguagem e imaginário
Tipo de Suporte: E-book
Formato Ebook: PDF
Sumário

APRESENTAÇÃO
Sara Del Carmen Rojo de la Rosa (UFMG/CNPq) . . . . . . . . . . . . . . . . 9

EDUCAÇÃO

Análise de Práticas Pedagógicas: Limites e Desobediência na Educação Infantil


Alice Costa do Amaral Fonseca (UNESA/MG) . . . . . . . . . . . . . . . . 15

Novas Práticas Para o Professor do Século XXI


Camila Vilela de Queiroz (UFMG) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23

Literatura Africana como Ferramenta de Aprendizagem


Gabriel Pereira Vieira (UFOP) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33

Texto Dramático e Sala de Aula: Uma Leitura de ‘Amores Surdos’, de Grace


Passô
Mariana de Oliveira Arantes (UFMG) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 43

LINGUÍSTICA

O Controle Inibitório Humano: entre o Linguístico e o Não-Linguístico


Flávia Alvarenga de Oliveira e Isabelle Deolinda Pereira de Sousa (UFMG) . . . 57

Dados do PB Sobre Teoria da Mente de Segunda Ordem e Aquisição


de Linguagem
Thuany Teixeira de Figueiredo (UNICAMP) . . . . . . . . . . . . . . . . . 67

LITERATURA

O Mistério das Letras Pensantes: Clarice Lispector para Crianças


Alex Keine de Almeida Sebastião (UFMG) . . . . . . . . . . . . . . . . . . 81

Extremamente Alto e Incrivelmente Perto: o Trauma na Perspectiva Infantil no


Romance de Jonathan Safran Foer
Bernardo Ferrara (UFMG) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 91
Literatura, Violência e Trauma: Abuso Sexual Infantil no Conto Ana Rosa
Bruna Stéphane Oliveira Mendes da Silva (UFMG) . . . . . . . . . . . . . . 103

As imagens da juventude peruana em El goce de la piel, de Reynoso, e em


Malte, de Carmela García
Douglas Henrique de Oliveira (UFMG) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 115

Representações da Infância na fábula Esópica Antiga


Gabriel Castilho de Andrade Gil (UFMG) . . . . . . . . . . . . . . . . . . 123

Na Tessitura de Imagens: Análise do Conto “O Alienista” em Quadrinhos


Joelma Rezende Xavier (UFMG) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 135

Leitura Literária: uma nova velha estória


Julio César Vitorino e Vildete Gomes Pereira (UFMG) . . . . . . . . . . . . 151

A “Anti-infância” de MaximGorky: Um Modelo de Experiência Infantil e seu


Aspecto Político
Marcelo Dourado de Campos (UFMG) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 161

Estruturas Conviviais e Infância


Maria Elisa Pereira da Almeida (UFMG) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 173

Historicidade e Ficção na Literatura Infantojuvenil: uma perspectiva


afro-brasileira
Rafaela Pereira (SESI/FIEMG) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 183

Afrobetizar para descolonizar: contribuições do espetáculo Áfricas, do Bando


de Teatro Olodum, para a formação cultural da criança negra
Samira Pinto Almeida (UFMG) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 195

O Que Nos Conta a Materialidade dos Livros? Uma Proposta de Análise dos
Paratextos Editoriais de Uma Biografia Infantojuvenil
Vívian Stefanne Soares Silva e Luiz Henrique Silva de Oliveira (CEFET/MG) . . . 205
APRESENTAÇÃO

Pensar a infância: linguagem e imaginário

Dra. Sara del Carmen Rojo de la Rosa


Coordenadora da Câmara de Pesquisa (2017-2018)

A SEvFale é um evento tradicional na UFMG, já contando com doze edições, ocor-


rendo bianualmente. Para a edição de 2018, foi proposta uma reformulação do evento
para ampliar sua visibilidade e para criar uma maior interação entre pesquisadores de di-
ferentes instituições. Foi temática, houve inscrições abertas e a sua divulgação foi reali-
zada nacionalmente, com concentração das atividades nos dias 12, 13, 14 de junho (não
coincidentes com a Semana do Conhecimento da UFMG). A decisão de que esta edição
fosse temática e nacional foi de uma comissão indicada pelos Núcleos de pesquisa da
Fale ou pela própria Câmara de Pesquisa.
Desta forma, a Semana de Eventos da Faculdade de Letras (SEvFale), na edição
de 2018, realizou uma reflexão sobre a infância com intuito de entender o conceito e o
papel da sociedade, como um todo, e da universidade, em particular, nesse tema. A in-
fância não é estática e, portanto, se relaciona com os contextos geográficos e históricos
de cada país. Num período em que há cortes no orçamento governamental para a edu-
cação, este tema (no sentido amplo do mesmo) é fundamental. Assim, o expressaram di-
versos setores da comunidade acadêmica no evento que realizamos em junho de 2018.
O evento, nesta edição, recebeu recursos para a sua realização da Diretoria da
Faculdade de Letras, das inscrições de professores ou de interessados externos à comu-
nidade da Faculdade de Letras e do PAIE via o edital “Programa de Apoio Integrado a
Eventos - PAIE 1ª Entrada 2018”.
A organização do evento foi realizada pela Coordenação e pela Secretaria da Câ-
mara de Pesquisa. Contamos com o apoio do Câmara de Extensão da Fale no auxílio
para a realização dos procedimentos para preencher o Siex e os contatos iniciais com
a Fundep para o gerenciamento financeiro do projeto; com monitores de nossa Facul-
dade, para todas as atividades; com o setor de informática para emitir os certificados e
com o setor de comunicação (integrada pelos membros setor de comunicação da Fale e
alunos voluntários) para a divulgação maciça do evento interna e externamente à UFMG,
criação e alimentação das redes sociais do evento e divulgação na mídia.
O modelo escolhido para o evento foi o de simpósios independentes para as três
grandes áreas que conformam a Faculdade de Letras: Estudos Linguísticos, Ensino, e
Estudos Literários. As três grandes áreas tiveram uma plenária de abertura e uma de
encerramento, sendo a primeira com professores convidados de fora da FALE-UFMG e
a segunda com professores com pesquisas relevantes, nesta área, da própria faculdade.
As apresentações nos simpósios (professores e alunos de pós-graduação) e as
apresentações na sessão de pôsteres de alunos de graduação foram selecionadas pela
comissão científica. Os três simpósios foram:

1 - Simpósio I

Coordenadores: Gladys de Souza, Leandro Rodrigues Alves Diniz e Daniela Mara Lima
Oliveira.
“O simpósio de “Formação do profissional de Letras para a Educação básica” se divi-
diu em três grandes eixos temáticos. O primeiro tem como tema geral o currículo de
Letras do século XXI. O segundo abordou o estágio supervisionado e os projetos de
extensão e iniciação científica na formação do professor. O terceiro englobou aspec-
tos da formação do professor tendo em vista os diferentes tipos de diversidade da
área da infância e adolescência” (ementa criada pelos coordenadores).

2 - Simpósio II

Coordenadores: Aroldo Leal de Andrade e Mayara Nicolau de Paula


“O simpósio de Linguística se dividiu em três eixos temáticos. O eixo 1 tem como
tema a aquisição de primeira língua e aquisição de segunda língua na infância; o eixo
2 inclui questões relacionadas à variação e à mudança linguísticas e o terceiro eixo
cobre temas afetos à psicolinguística e neurolinguística” (ementa criada pelos coor-
denadores).
3 - Simpósio III

Coordenadoras: Aline Magalhães Pinto; Márcia Regina Jaschke Machado e Myriam


Corrêa de Araújo Ávila  
“O simpósio de Literatura, buscando um debate interdisciplinar, contou com dois ei-
xos temáticos: Literatura infantil: história, tradução, crítica e edição e, Infância como
provocação teórica:  escrever sobre infância, escrever para a infância” (ementa cria-
da pelos coordenadores).

O público participante dependeu da atividade realizada, projetado para 250 pes-


soas de maneira geral, atingiu essa meta. A SevFALE, 2018, contou com pessoas de dife-
rentes cidades e estados do Brasil.
EDUCAÇÃO
EDUCAÇÃO
ANÁLISE DE PRÁTICAS PEDAGÓGICAS:
LIMITES E DESOBEDIÊNCIA NA
EDUCAÇÃO INFANTIL

Alice Costa do Amaral Fonseca - UNESA/MG

Resumo: Diante as dificuldades enfrentadas em virtude de comportamentos agressivos dascrianças,


identifica-se a importância da análise de práticas pedagógicas e interaçõescriança-adulto na educa-
ção infantil. Objetivando compreender quais as principaispráticas adotadas por professoras para im-
por limites às crianças e como lidam emcasos de desobediência, realizou-se pesquisa exploratória por
meio de entrevistasestruturadas com nove professoras de educação infantil de uma escola particular
doestado de Minas Gerais. O instrumento de coleta de dados, composto por quatroperguntas, permi-
tiu o alcance dos seguintes resultados: 1) A imposição de limites emsituações de risco ou agressivas
é feita de forma simbólica, entrando no mundo dacriança e estabelecendo um diálogo por 44,4% das
entrevistadas, enquanto outras44,4% afirmam dizer não e explicar o porquê e 11,2% impõem limites
através de umdiálogo, que nasce de uma amizade e empatia. 2) A estratégia considerada adequada-
quando uma criança se recusa a obedecer por 77,8% das professoras é tentarestabelecer um diálogo
com a crianças, enquanto 22,2% optam por colocá-la na“cadeirinha do pensamento”. 3) No que con-
cerne à necessidade de, em alguns casos,ser “bravo”, “autoritário” ou “firme” para que a criança obe-
deça, a maioria dasrespostas citou a necessidade em ser firme e, apenas uma resposta mencionou
anecessidade em ser bravo. 4) Todas as entrevistadas atestam ser importanteestabelecer práticas
dialógicas no ambiente escolar. Em consonância com pesquisasatuais no campo da educação infantil,
os resultados sugerem a adesão das professorasà perspectiva que preconiza práticas pedagógicas
dialógicas executadas com firmeza.Foi possível identificar variações quanto às formas de colocar limi-
tes, o que sinalizaque podem existir diferentes modos de executar uma proposta pedagógica comum.

Palavras-chave: disciplina, educação infantil, autoridade, dialógicas, obediência.

Simpósio: Educação.
Diante toda a história e do que ainda se vive hoje, percebe-se que práticas peda-
gógicas rígidas e muitas vezes autoritárias são uma triste realidade vivenciada em muitas
16 Anais do XIII SevFale

escolas atualmente. A maioria dos professores não consegue serem autoridades. O papel
do mestre se desfez e, infelizmente, práticas autoritárias ainda são constantes no clima es-
colar. Não mais como antigamente, como ajoelhar-se sobre grãos de milho ou a palmató-
ria, mas essas práticas ainda existem de forma camuflada, através de ameaças e punições.
É frequente a presença de alunos com comportamentos agressivos e, lidar com
essas situações é um desafio para os professores.Porém, a definição de agressividade
ainda é usada de forma negativa, revelando uma necessidade de ampliar os conceitos
do termo agressão.
“A etimologia da palavra agressão é ad gradior = mover-se para adiante assim
comoregressão indica o movimento para trás. A violência é a agressão destrutiva que
busca aniquilar, desintegrar. Nem toda agressividade é violência, mas toda violência é,
sim, agressividade”. (SANTOS, 2002, p.189)
“Winnicott defende não a educação das crianças com o objetivo de manejar e
controlar a agressividade, mas sim o oferecimento de ambientes emocionais estáveis e
confiáveis para o maior número possível de bebês e crianças, que possam proporcionar,
a cada um, conhecer e a tolerar como parte de si mesmo o conjunto total de sua agres-
sividade (o ávido amor primitivo, a destrutividade, a capacidade de odiar, etc.)” (LUZ,
2008, p. 114)
O papel do professor como mediador e incentivador é desafiante nesse sentido,
visto que muitas crianças expressam suas agressividades de forma a causar danos em
terceiros, necessitando-se que tais danossejam evitados sem excluir ou negar a origem
desta agressão, mas buscando reorientá-la.
“É tarefa de pais e professores cuidar para que as crianças nunca se vejam dian-
te de uma autoridade tão fraca a ponto de ficarem livres de qualquer controle ou, por
medo, assumirem elas próprias a autoridade. A assunção de autoridade provocada por
ansiedade significa ditadura, e aqueles que tiveram a experiência de deixar as crianças
controlarem seus próprios destinos sabem que o adulto tranquilo é menos cruel, en-
quanto autoridade, do que uma criança poderá se tornar se for sobrecarregada com
responsabilidades” (WINNICOTT, 1939, p. 95).
A importância da mediação insere-se no conceito de limite: vem do Latim limes,
“caminho entre dois campos, fronteira, sulco”. (origem da palavra, limites, 2018). Ou seja,
“Quando encontra no lar um ambiente suficientemente forte e resistente às suas tenta-
tivas de desorganizá-lo, ela se tranqüiliza e consegue se sentir livre e capaz de brincar,
ser uma criança irresponsável.” (LUZ, 2008, p. 115)
Análise de Práticas Pedagógicas: Limites e desobediência na educação infantil 17

As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (2010) revelam


que:
“As propostas pedagógicas das instituições de Educação Infantil deverão prever
condições para o trabalho coletivo e para a organização de materiais, espaços e tempos
que assegurem:
• A dignidade da criança como pessoa humana e a proteção contra qualquer
forma de violência – física ou simbólica – e negligência no interior da institui-
ção ou praticadas pela família, prevendo os encaminhamentos de violações
para instâncias competentes.”

• “As práticas pedagógicas que compõem a proposta curricular da Educação


Infantil devem ter como eixos norteadores as interações e a brincadeira.”

Objetivando compreender as principais práticas adotadas por professores de


educação infantil para impor limites às crianças e como lidam em casos de desobe-
diência, realizou-se uma pesquisa exploratória por meio de entrevistas estruturadas
com nove professoras de educação infantil de uma escola particular do Estado de Mi-
nas Gerais.

ENTREVISTA:

1) Como seria mais adequado fazer para impor limites nos primeiros anos de
vida escolar?

2) O que seria mais adequado fazer quando uma criança se recusa a obedecer?

3) Por que é preciso, em alguns casos, ser “bravo” ou “autoritário” ou “firme”


para que a criança obedeça?

4) É importante se estabelecer práticas dialógicas no ambiente escolar?


18 Anais do XIII SevFale

RESULTADOS:

Gráfico 1 - Formas de se colocar limites nas crianças

Fonte: elaborado pela autora com base na análise dos resultados da pesquisa

Gráfico 2 - Mediações dos professores quando a criança se recusa a obedecer

Fonte: elaborado pela autora com base na análise dos resultados da pesquisa
Análise de Práticas Pedagógicas: Limites e desobediência na educação infantil 19

Gráfico 3 - Necessidade em ser bravo, autoritário ou firme para que a criança


obedeça

Fonte: elaborado pela autora com base na análise dos resultados da pesquisa

Gráfico 4 - Importância de práticas pedagógicas dialógicas

Fonte: elaborado pela autora com base na análise dos resultados da pesquisa
20 Anais do XIII SevFale

CONCLUSÕES:

Em consonância com pesquisas atuais no campo da educação infantil, os resulta-


dos sugerem a adesão das professoras à perspectiva que preconiza práticas pedagógicas
dialógicas executadas com firmeza. Foi possível identificar variações quanto às formas
de colocar limites, o que sinaliza que podem existir diferentes modos de executar uma
proposta pedagógica comum.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Diretrizes Curriculares


Nacionais para a Educação Infantil. Brasília: MEC/SEB, 2010.
BRUMFIELD, Blake D.; ROBERTS, Mark W. (1998). A comparisonoftwomeasurementsofchild-
compliancewith normal preschoolchildren.JournalofClinicalChildPsychology, 27, 109-116.
FREIRE, Paulo. Entrevista. Revista Dois Pontos: teoria e prática em educação, v. 3, n. 24,
p.6-13, jan./fev. 1996.
FREIRE, Paulo. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. 5ª Ed. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1981.
FRIGOTTO, Gaudêncio. Educação e a crise do capitalismo real. São Paulo: Cortez, 2010.
JESUS, Sônia Meire S. A. de Jesus; TORRES, Lianna de Melo. Educação e Movimentos
Sociais: tensões e aprendizagens. In FREITAS, Anamaria G. Bueno de; SOBRAL, Maria
Neide. História e memória: o curso de Pedagogia da Universidade Federal de Sergipe.
(1968 a 2008). São Cristóvão: Editora UFS, 2009.
LOPES, Rosilene Beatriz; GOMES, Candido Alberto. Paz na sala de aula é uma condição
para o sucesso escolar: que revela a literatura? Ensaio: aval. pol. públ. Educ., Rio de
Janeiro, v. 20, n. 75, p. 261-282, abr./jun. 2012.
LUCKESI, Cipriano Carlos. Prática Escolar: do erro como fonte de castigo ao erro como
fonte de virtude). Série Idéias n. 8. São Paulo: FDE, 1998.
Análise de Práticas Pedagógicas: Limites e desobediência na educação infantil 21

LUZ, Iza Rodrigues. (2008). A agressividade na concepção de Winnicott e suas implicações


para a Educação Infantil. APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação. Vitória da
Conquista. Ano VI, n. 11, p. 109-137.
OLIVEIRA, Neófita; CAPITANIO, Giorgio. Vida e Trabalho: O Risco de Educar, Volume I. 1ª
ed. Belo Horizonte: Avsi, 2008.
ORIGEM DA PALAVRA, LIMITE. (2018). Disponível em: <https://origemdapalavra.com.br/
artigo/limites>.
PEREIRA, Regiane Larréa. Monografia realizada para obtenção do grau de especialista em
psicologia clínica: infância e família, sob orientação da profa. Tânia Mara Sperb. O papel
da educação infantil na construção da autonomia moral: uma revisão da literatura.
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Psicologia. Porto Alegre, 2006.
SANTOS, M. C. C. L. (2002). Raízes da Violência na Criança e Danos Psíquicos. Maria Faria
Westphal (Org.) Violência e Criança. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo,
p.189-204.
WINNICOTT, Donald Woods. Agressão. In: ______. Privação e delinqüência. 2. ed. Rio de
Janeiro: Martins Fontes, 1994a. p. 89-96. Edição original: 1939.
Novas Práticas Para o
Professor do Século XXI

Camila Vilela de Queiroz - UFMG

Resumo: Pensando no apontamento feito por Pegrum (2014) sobre o uso acentuado dos dispo-
sitivos móveis a partir de 2013 bem como o acesso à internet por meio desses aparelhos, con-
sidero ser importante a elaboração de um artigo que faça reflexões sobre a formação docente,
uma formação que deve estar engajada em hábitos de leitura nos meios digitais, inclusive utili-
zando-se dos meios móveis para lecionar. O estudo em questão não ocorreu em uma pesquisa
aplicada e sim de uma análise bibliográfica a qual apresenta alguns conceitos e reflexões sobre
aprendizagem móvel, o papel do docente e as possíveis propostas para o uso de dispositivos
móveis nas práticas escolares discutindo sobre o perfil docente do século XXI: suas estratégias
de ensino, a maneira pela qual o professor realiza atividades para letrar seus alunos digitalmen-
te e como fazer a integração dos recursos digitais móveis nas práticas pedagógicas cotidianas.O
objetivo desse trabalho é comunicar ao meio acadêmico a necessidade de repensar a educação
englobando a aprendizagem móvel e o uso dos seus respectivos dispositivos.

Palavras-chaves: Aprendizagem móvel. Dispositivos móveis. Formação docente.

Simpósio 1: Educação.
24 Anais do XIII SevFale

1. INTRODUÇÃO

Com o advento das Tecnologias de Informação e Comunicação, doravante TICs, e


pela mudança de postura assumida por nossa sociedade com o uso de dispositivos mó-
veis somados à facilidade de conexão, o ser humano passa da posição de estar conecta-
do para ser conectado, como defende Santaella (2013).
Os smartphones e tablets permitem a acessibilidade, a mobilidade e a conecti-
vidade independentemente do lugar e do momento em que o indivíduo se encontra.
De acordo com sua necessidade, é possível conversar, interagir, pesquisar, se informar
e aprender no momento em que a demanda ocorre, ou como Braga, Gomes e Racilan
(2017) apontam, no just in time.
Diante desse cenário, faz-se necessário a proposição de transformações no fazer
docente visando uma formação que envolva o letramento digital preparando o aluno
para atuar na sociedade de maneira participativa, crítica, reflexiva e que saiba operar
nos meios digitais. Quanto a esse tipo de letramento, Coscarelli (2016) diz que se trata
de saber como navegar e ler em ambientes digitais, ou ainda, a “ampliação do leque
de possibilidades de contato com a escrita também em ambiente digital (tanto para ler
quanto para escrever)” (COSCARELLI e RIBEIRO, 2005, p. 9).
Dias (2012) afirma que hoje não é mais possível que o indivíduo saiba comunicar
apenas pela leitura e escrita, ele precisa ser capaz de operar outros modos de comunica-
ção, como os meios digitais, além disso, é importante que o sujeito desenvolva consciên-
cia crítica mediante o que ouve, lê, escreve e vê e saiba utilizar a internet para construir
e produzir conhecimento.
Mas, para que o professor elabore atividades que englobem os meios digitais, ele
deve ter passado por uma preparação anterior, seja ela acadêmica, continuada ou infor-
mal, adquirir habilidades desse tipo de letramento servirá “como base para uma mudan-
ça de paradigma nas práticas educacionais” (COSCARELLI, p. 80, 2016). O importante é
que o docente perceba que tais práticas pedagógicas corroboram para que o aprendiz
exerça sua cidadania de modo ativo.
Para tanto cabe ao professor criar estratégias de ensino-aprendizagem que visem
o letramento digital de seus alunos, como Leu et al. (2014) apud Coscarelli (2016) apon-
tam que os alunos cresceram em contato com os dispositivos digitais, eles aprendem
com seus pares, disputam jogos online, interagem nas redes sociais mas, isso não signifi-
ca que eles possuem habilidades demandadas pelo uso da informação digital.
Diante da afirmação acima, Bartlett e Miller (2011) apud Coscarelli (2016) ex-
põem que muitos alunos apreciam mais a estética do que o conteúdo dos sites visitados
Novas Práticas Para o Professor do Século XXI 25

e não verificam a credibilidade dos mesmos. Desse modo, torna-se elementar que os
cursos de formação docente e/ou formação continuada apresentem em seus currículos
o ensino de práticas pedagógicas que contemplem as ferramentas e os meios digitais
para que o professor, primeiramente, esteja letrado nesse meio e, assim consiga desen-
volver e mediar atividades com essa temática.
Paiva (2013) explica que a associação TESOL (Teachers of English as Second or
other Language) criou uma comissão com objetivo de refletir sobre a importância de
uma formação docente que saiba usar as tecnologias em sua prática pedagógica, para
tanto, o pressuposto é que os computadores não substituirão os professores, mas pro-
fessores capacitados substituirão aqueles que não fazem uso de recursos tecnológicos.
Ahmed, Kasi e Nasseef (2013, p. 3130) também possuem a mesma linha de racio-
cínio e isso é percebido quando eles endossam a ideia de van Lier (2003) ao dizerem que
a “[tecnologia] deve ser uma força positiva na educação”, um modo de facilitar o traba-
lho docente e não uma substituir o profissional. Isso implica que o professor precisa se
apropriar da tecnologia e nela se apoiar para melhorar o seu fazer docente contextuali-
zando o conteúdo à realidade de seus alunos.
Nesse sentido Paiva (2015) preleciona que o homem está preso à tecnologia e
com o sistema educacional não é diferente, a escola é sempre pressionada por ela, tan-
to com a adoção do livro quanto ao uso do computador. A autora recorre a Kelly (1969),
consolidando a afirmação acima, diz que as comunicações são dominadas pelas máqui-
nas e, com isso, o ambiente linguístico se recria de modo que o professor e o livro são
forçados a se integrarem aos novos meios de transmissão.
Diante dessa integração aos novos meios de comunicação digital torna-se funda-
mental uma mudança do fazer docente em que a prática pedagógica esteja voltada para
as mídias e aconteça nas mídias (Santaella, 2013, p.125).
Com este artigo, pretendo abordar os conceitos sobre a aprendizagem móvel, refle-
xões acerca do atual papel do docente e as possíveis práticas pedagógicas que permeadas
pelo uso de dispositivos móveis. Mas, antes de refletir sobre essa temática, surge a questão
inicial: o que é um dispositivo móvel? Esse é o tema que desenvolvo na nossa próxima seção.

2. PARA INÍCIO DE CONVERSA: O QUE É UM DISPOSITIVO DIGITAL MÓVEL E


QUAL SUA RELAÇÃO COM A APRENDIZAGEM MÓVEL?

Para falar sobre práticas pedagógicas contextualizadas com a realidade dos alu-
nos, uso de ferramentas digitais, mídias, redes sociais, precisamos, antes, delimitar o
que é um dispositivo móvel de um aparelho portátil.
26 Anais do XIII SevFale

Para diferenciar o que é móvel do que é portátil, Pegrum (2014) usa a concepção
de Puentedura (2012), em que o dispositivo móvel é visto como um aparelho capaz de
ser usado ininterruptamente, sem necessidade de ser fechado quando o sujeito decide
se deslocar de um ponto para outro, ou seja, é possível utilizá-lo no percurso. Em con-
traponto, os aparelhos portáteis, como o notebook, são usados em um ponto, finaliza-se
seu uso e inicia-se novamente em outro local.
Com o desenvolvimento dos dispositivos móveis surge uma diferente modalida-
de de ensino: o mobile learning ou aprendizagem móvel. Esse tema tem interessado di-
versos pesquisadores. Braga (2017) explica que pelo fato dos dispositivos móveis serem
tão pequenos e leves, fica muito fácil e prático transportá-los para outros ambientes o
que favorece a acessibilidade no agora ou no just in time. Para a autora, com as efetivas
ações de busca por informações na internet ocorre a descentralização do papel do pro-
fessor cedendo lugar à participação ativa dos alunos nas atividades.
Além disso, integrar os dispositivos em sala é alinhar a aula com abordagens con-
temporâneas que enfatizam a descentralização do poder e estimula oportunidades de
interação, colaboração e participação ativa dos alunos no processo de aprendizagem.
Para Braga (2017), com as efetivas ações de busca de informações na internet
ocorre a descentralização do controle do professor. Enquanto Coscarelli (2016) apresen-
ta a descentralização voltada para a informação e para o conhecimento, em que o aluno
é instigado a gerenciar sua aprendizagem de maneira mais participativa. Hoje, o papel
do docente não é ser o detentor do saber e a sala de aula não é mais o espaço para a
informação verticalizada, ao contrário, há trocas e partilhas com a participação do aluno,
ele interage ativamente, opina, discorda, sabe fundamentar suas opiniões, enfim, sabe
debater.
A aprendizagem móvel é enfatizada por Braga, Gomes e Racilan (2017) como um
movimento que vai além da intervenção na prática pedagógica, ela é uma modalidade
de ensino-aprendizagem da prática, de modo que os contextos sociais em que os alu-
nos e professores experimentam transformam-se em “fontes de recursos explorados via
tecnologias móveis em prol do ensino e aprendizagem de línguas” (BRAGA, GOMES e
RACILAN, 2017, p. 49).
De acordo com Pegrum, Oakley e Faulkner (2013) a m-learning favorece o apren-
dizado em diferentes contextos, não se delimitando apenas a escola, essa modalidade
de ensino é capaz de desafiar o tempo e o local fixo, já que o espaço para aprender não
se restringe à sala de aula, mas no próprio aprender em si, nos dizeres de Braga, Gomes
e Martins (2017) a aprendizagem móvel torna “qualquer espaço em um potencial espa-
ço para aprendizagem” (BRAGA, GOMES e MARTINS, 2017, p. 54).
Novas Práticas Para o Professor do Século XXI 27

Com a mudança da necessidade do aluno, isto é, diante de novas demandas tec-


nológicas é preciso repensar o contexto de ensino-aprendizagem. Qual é a função do
docente nesse novo cenário de aprendizagem?

3. O DOCENTE E O NOVO PAPEL A SER DESEMPENHADO

O educador, para atender às necessidades de seus alunos de maneira contextua-


lizada e dinâmica, deve, primeiramente, formar-se e informar-se sobre as novas mídias,
os recursos e as ferramentas digitais que estão disponíveis, caso não tenha recebido (in)
formação durante seus estudos acadêmicos, ele deve buscar conhecimento, pesquisar a
respeito dessa área. Como segue o depoimento de Paiva (2013)
a minha maior fonte de informação é a própria web (...) [nela] encontro ma-
nuais e tutoriais e mantenho-me atualizada (...) Outra fonte de aprendizagem
são os periódicos (...) No Brasil, duas boas páginas são as de Vilson Leffa e
seu projeto ELO (http://www.leffa.pro.br/) e a página da Associação Brasileira
de Hipertexto (http://www.abehte.org/). Não posso deixar de mencionar o
ensaio e erro como uma de minhas estratégias. Muito tenho aprendido ao
tentar, errar, e recomeçar quantas vezes for preciso. (PAIVA, 2013, p. 220).

Para Souza e Oliveira (2016) o uso da mobilidade colabora para despertar a mo-
tivação e o prazer por parte do discente, além da qualidade que proporciona ao ensino.
O professor, que não teve formação na área, precisa se inteirar e se qualificar com as
demandas atuais que lhe cabem. Hoje, o papel docente apresenta diferentes responsa-
bilidades, passando do detentor do saber para aquele que gerencia o aprendizado.
Desse modo, o professor que complementa seu conhecimento acerca das ferra-
mentas digitais será capaz de estabelecer ‘pontes’ interligando o aluno à aprendizagem
e à tecnologia e, se necessário, fazendo adaptações no quadro programático proporcio-
nando oportunidade para um aprendizado contínuo, para que, despertando o interesse
do educando, este continue suas buscas fora do contexto escolar.
Para o uso de recursos digitais móveis no ensino-aprendizagem dos alunos, o do-
cente precisa desenvolver as seguintes habilidades:
• reconhecer as possíveis especificidades envolvidas no recurso pretendido;
• verificar a segurança do ambiente de aprendizagem;
• conhecer e testar as funcionalidades dos aplicativos disponíveis;
• ajudar o aluno esclarecendo dúvidas e permitir o trabalho colaborativo entre
os pares;
28 Anais do XIII SevFale

• planejar bem os objetivos e metas a serem alcançadas com os dispositivos


selecionados.
Corroboro com Coscarelli (2005) ao dizer que apenas o uso do computador não
garante uma aula baseada em aprendizagem móvel, é possível utilizar as ferramentas di-
gitais para trabalhar de forma tradicional ou conteudista. Acredito que a aprendizagem
móvel tem como principal objetivo a essência da aprendizagem em si, ou seja, o propó-
sito transformativo na vida de uma pessoa. Mas, para tanto, deve haver planejamento
e fundamentação teórica com metas a serem alcançadas já que apenas a presença de
recursos digitais e acesso a internet não são suficientes para garantir uma aprendizagem
eficiente.
Então, integrar os dispositivos nas práticas pedagógicas é alinhar a aula com abor-
dagens contemporâneas que enfatizam a descentralização de poder e estimula a opor-
tunidade de interação, colaboração e participação ativa dos alunos no processo de ensi-
no-aprendizagem.
Paiva (2013) acredita que quanto mais o professor agregar o uso de tecnologias
em suas atividades, maiores serão as possibilidades difusão de inovação e isso influen-
ciará positivamente outros professores a se apropriarem das TICs. Adotar uma inovação1
não é romper totalmente com as práticas tradicionais de ensino e, sim, incorporar novos
recursos ao fazer docente. Destarte surgem diferentes posicionamentos que vão desde
a rejeição até a adoção em si.
Royle, Stager e Traxler (2014) dizem que o maior desafio de se usar as ferramen-
tas digitais está em reconhecer que elas podem ser usadas para práticas pedagógicas,
perceber suas especificidades é essencial. Assim, veremos que é possível confirmar que
os dispositivos móveis não precisam ser usados apenas para o lazer ou para fins sociais.

4. COMO INTEGRAR OS DISPOSTIVOS NA PRÁTICA PEDAGÓGICA?

Prefiro considerar o uso dos dispositivos móveis nas práticas pedagógicas e não
em sala de aula, o que inclui seu uso num contexto extra escolar e, portanto mais amplo.
Levá-los para a sala de aula muitas vezes não é possível, pois ainda encontramos escolas
que não são adeptas ao uso de tais ferramentas.
Braga e Murta (2012) explicam que a produção escolar tem como incentivo prin-
cipal a apreciação do professor e a nota que ele dará para o trabalho feito, ou seja, o

1 Inovação aqui deve ser entendida não como o uso de dispositivos móveis, pois esses já foram adotados por nossa
sociedade. Mas, o uso dessas ferramentas como práticas pedagógicas.
Novas Práticas Para o Professor do Século XXI 29

único interlocutor, na maioria dos casos, é somente o professor. Se pensarmos bem é


muito esforço para pouca apreciação e todo material escrito que circula em nossas prá-
ticas sociais tem um determinado público-alvo que ele deseja alcançar. Pensando nisso,
pergunto: por que não divulgar os trabalhos produzidos na escola? Por que não inovar
as aulas com uso de aplicativos e/ou redes sociais?
Pensando nisso, listo abaixo algumas ideias que podem ser utilizadas na prá-
tica pedagógica a fim de modificar o fazer docente a fim de letrar os alunos no meio
digital.

4.1 POR ONDE INICIAR?

Primeiramente, a dica mais significativa para o professor que está começando sua
adoção de recursos digitais é navegar no site2 Redigir para conhecê-lo. Nele, encontram-
se diversos planos de aula com materiais pensados no aluno e no professor e o conteúdo
pode ser baixado gratuitamente. As atividades são elaboradas por uma equipe capacita-
da de alunos, mestres e doutores da área de Letras e de Linguística Aplicada.
É possível ainda repensar a função da rede social em ambientes pedagógicos,
mais precisamente do Facebook, criando uma comunidade para a turma e, nesse am-
biente, pode-se compartilhar os trabalhos da classe que foram desenvolvidos no decor-
rer do ano, assim, pais e comunidade escolar poderão ler, se informar, compartilhar e
comentar sobre as atividades e os projetos realizados.
Uma outra alternativa é criar um grupo da sala, utilizando o aplicativo What-
sApp, com as regras de organização e participação estabelecidas, o professor pode
lançar desafios, tarefas de casa, começar um debate e terminar no outro dia na clas-
se, enviar link de vídeos, por exemplo, e discutir com os colegas na sala de aula, pedir
aos estudantes para produzirem memes sobre determinado tema e publicar no grupo,
fazer vídeos para exibição de mini contos, poemas ou outro gênero e compartilhar no
grupo, etc. Para a elaboração dos vídeos, o educador pode sugerir o uso do aplicativo
VideoShow, específico para gravação de vídeos e pode ser facilmente compartilhado
via dispositivos móveis.
Outra atividade interessante é a confecção de uma nuvem de palavras, que pode
ser feita após o trabalho sobre um tema/texto específico em sala. Para tanto, a sugestão
de aplicativo é o Word Clouds e, em seguida, é possível compartilhar o resultado no Fa-
cebook da turma ou no grupo do WhatsApp.

2 http://www.redigirufmg.org/
30 Anais do XIII SevFale

Caso o professor deseja inovar a aula ainda mais, aproximando-a ao perfil de um


jogo, o uso da plataforma Kahoot permite ao professor criar questionários/quizz, com
tempo de resolução para as questões, o aplicativo funciona em qualquer dispositivo tec-
nológico desde que conectado à internet.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Retomando ao que já foi dito neste artigo sobre o fazer docente, considero impor-
tante assinalar que ao utilizar essas ferramentas digitais móveis, o professor caminhará
para a mudança das práticas didáticas vigentes em busca da inovação e transformação
da escola, criando um “lugar mais ‘real’, mais acessível, em que aprender será um pra-
zer, onde a troca de informações e a construção de saberes serão atividades constantes”
(COSCARELLI, 2005, p. 40).
Acredito que não seja romper com todas as metodologias e práticas existentes
e sim intercalar atividades voltadas para a prática social quando estas forem possíveis
bem como a mudança na postura do papel do professor, uma vez que no contexto atual,
o perfil desse profissional deve estar voltado para a mediação/orientação ao conduzir
seus alunos.
Nos dizeres de Freitas (2010), precisamos de professores e de alunos letrados
digitalmente, que não utilizem as mídias passivamente, mas que saibam se apropriar
da tecnologia de maneira crítica e criativa, dando a ela significados e funções, ou como
explica Buzato (2006), a sala de aula pode ser um espaço capaz de promover a conexão
entre alunos e professor e, como uma equipe, eles podem trabalhar de maneira colabo-
rativa, discursiva e atuante sem oportunidade para o predomínio de uma relação hierár-
quica capaz de manter os alunos padronizados e subordinados ao educador.
Novas Práticas Para o Professor do Século XXI 31

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Literatura Africana como
Ferramenta de Aprendizagem

Gabriel Pereira Vieira - UFOP

Resumo: este texto tem por escopo explanar a conveniência/necessidade de se transmitir aos
alunos do ensino fundamental o estudo de culturas africanas. Para além da obrigação legal,
busca-se analisar como o ensino de literatura africana pode ser uma ferramenta extrema-
mente eficaz para o desenvolvimento do tema. Além de ter embutida em seu cerne muitos
dos valores e tradições dos países de África, a poesia africana lusófona pode, se devidamente
apresentada, captar a atenção de crianças e adolescentes de maneira ainda mais incisiva. O
tema proposto é atual e relevante, visto que se percebe um crescente resgate de culturas afri-
canas, resgate este que possui, entre outros, o objetivo de compreendermos a nossa própria
identidade. O estudo, a valorização e a preservação das raízes de nossa cultura são fundamen-
tais, ainda mais em um país como o Brasil onde, durante anos, ignorou-se a riqueza do povo
africano e se importou europeísmos artificiais e inócuos. O respaldo jurídico da Lei 10.639 de
9 de janeiro de 2003, que modificou a Lei 9.394/96, não é suficiente para que seja efetivado o
ensino, motivo pelo qual métodos alternativos e mais atraentes - porém igualmente legítimos
- são imprescindíveis.

Palavras-chave: literatura africana; lei 10.639/03; história de África.

Simpósio vinculado: Educação.

1. INTRODUÇÃO
34 Anais do XIII SevFale

Ensinar um povo sobre suas origens é ensinar sobre sua própria identidade. Na
busca por esta - imprescindível para entender as atuais construções sociais e concepções
morais/estéticas -, é inevitável nos depararmos com determinados conteúdos. A História
e a Arte são pilares incontornáveis na investigação da evolução histórica de nossa socie-
dade - investigação que tem por escopo último a efetiva mudança/melhoria da realida-
de. Portanto, desde logo, retira-se do plano puramente teórico e abstrato e trazemos
para o mundo concreto e palpável a necessidade do ensino de cultura africana.
Entender a riqueza dos costumes, tradições e manifestações artísticas de
uma sociedade ajuda a romper com estereótipos secularmente consolidados por
anos de cultura escravocrata - cultura esta que prevalece, ainda hoje, na evidente
desigualdade social, na irregular distribuição de riqueza, nos arranjos profissionais
institucionais, no acesso nada isonômico à educação de qualidade e nos mais varia-
dos abusos do Estado (abusos físicos, através da polícia; e morais/sociais, através de
seus órgãos burocráticos).
Reconhecer as virtudes de uma cultura (a maior parte delas sufocadas e camufla-
das) aproxima pessoas excluídas e marginalizadas de um centro que, em tese, busca-se
igualitário e fraterno. Para tanto, diversas ferramentas podem ser utilizadas, dentre as
quais coloca-se a História e a Literatura.

2. LITERATURA AFRICANA COMO FERRAMENTA DE APRENDIZAGEM


(E NÃO APENAS DE ENSINO)

2.1. SOBRE A LEI 10.639/03

No dia 09 de janeiro de 2003, o então Presidente da República Luiz Inácio Lula da


Silva promulgou a lei 10.639 que tinha por conteúdo alterar o dispositivo legal que insti-
tui as diretrizes e bases da educação nacional. Assim, a lei veio modificar uma já existen-
te para incluir, obrigatoriamente, nos currículos do ensino básico, as História e Cultura
Afro-Brasileiras. Com efeito imediato, há, até hoje, uma nítida omissão por boa parte das
escolas que, por falta de informação, de estrutura ou orientação, ainda não discutem o
assunto de maneira ordenada e didática.
Importante frisar que, embora não proíba o lecionamento de outros assuntos, a
Lei enumera alguns que não podem deixar de ser estudados:
Art. 1o, § 1o O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo
incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no
Literatura Africana como Ferramenta de Aprendizagem 35

Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional,


resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e políti-
ca pertinentes à História do Brasil.

Como se percebe, trata-se apenas de diretrizes - que serão concretizadas, na prá-


tica, com a efetiva participação do professor, devendo este agir, não como mecânico
transmissor de um conteúdo pré-estabelecido, mas como incitador de discussões coe-
rentes, direcionando o estudo e oferecendo as ferramentas necessárias para que o aluno
desenvolva uma consciência crítica fértil e independente. No segundo parágrafo, a Lei
determina que, apesar de esparso em todas as disciplinas, o conteúdo deve ser aborda-
do de maneira especial nas áreas de Educação Artística, Literatura e História Brasileiras.
Por fim, insere no calendário escolar o dia da Consciência Negra (20 de novembro).

2.2. SOBRE A LITERATURA NEGRA

Como visto, o texto legal não limita o método de ensino a ser aplicado; apenas
apresenta algumas diretrizes, citando disciplinas estratégicas e o conteúdo a ser aborda-
do - de forma genérica. Contudo, não se trata de uma lacuna ou de uma inocente omis-
são legal. A Lei não possui por escopo estabelecer como um ensino deve ser feito - para
tanto existe a figura do professor e das instituições de ensino. Ainda que a formação
epistêmica seja precária, em tese, os educadores possuem um contato mais aprofunda-
do com conceitos e princípios pedagógicos do que o legislador. Portanto, a ausência, na
lei, de um destrinchamento de como deve ser transmitido o ensino é um reconhecimen-
to sensato de que não pertence à esfera jurídica o monopólio de tais decisões.
Surge, então, uma pergunta especialmente relevante para os professores de Li-
teratura: quais livros/autores estudar? Alguns critérios podem ser estipulados. Para Du-
arte (2008), são cinco os fatores que, conjuntamente, definem determinada obra como
literatura afro-brasileira na sua completude. São eles: “temática, autoria, ponto de vista,
linguagem e público” (Duarte, p.21). A partir deles, fica fácil entender por que um autor
como Castro Alves não se encaixaria na proposta da Lei 10.639/03. O poeta baiano ain-
da enxerga a questão racial do lado externo, com uma perspectiva distante, ainda que
empática, não traduzindo a complexidade das tradições africanas e as pretensões dos
escravizados. Em contrapartida, escritores como Lima Barreto, normalmente estudado
pelo viés puramente estilístico, podem começar a ser abordados sob outra perspectiva
- a da tradição afro-brasileira -, pois, nas palavras de Schwarz (2010, p.29 apud MARTIN
e BUENO, p. 38):
36 Anais do XIII SevFale

O autor constrói, assim, uma literatura que se pretende negra, suburbana e


pobre. Numa época em que mais se exaltava a abolição do que se lembrava
do passado escravocrata, num contexto em que o próprio Hino da República,
feito apenas dois anos após a libertação dos escravos, dizia “nós nem cre-
mos que escravos outrora tenha havido em tão nobre país”, Lima Barreta fazia
questão de trazer o tema para o presente.

Portanto, podemos acrescentar, como critério, a intenção do escritor ao redigir


seus textos, a intenção de torná-la pertencente à linha afro-brasileira. Vale observar que,
naturalmente, um ou outro fator pode aparecer de maneira mais destacada - o que não
torna, em absoluto, menos legítima a obra em relação à tradição afro-brasileira. Macha-
do de Assis, por exemplo, reiteradamente “acusado” de produzir uma “literatura bran-
ca”, possui dentro de sua obra textos jornalísticos, crônicas e contos (destacadamente
“Pai contra mãe”, de Relíquias da Casa Velha) que abordam o tema com tal profundida-
de que seria negligente destituí-lo de sua cor e excluí-lo do rol de autores brasileiros de
origem africana.
Três autores, cronologicamente separados, merecem ainda destaque, pois refor-
çam a coerência dos critérios adotados por Duarte. São eles: Luiz Gama, Carolina de Je-
sus e Solano Trindade.
Luiz Gonzaga Pinto da Gama, Patrono da Abolição da Escravidão do Brasil, nasceu
em 1830 na cidade de Salvador, falecendo em São Paulo no ano de 1882. Além de poeta,
foi jurista e funcionário público. Exercendo as atividades jurídicas como rábula (nome
dado a quem exercia advocacia sem o diploma), conseguiu a libertação de centenas de
escravizados. Em 2015, a Ordem dos Advogados do Brasil lhe concedeu o título honorá-
rio póstumo de advogado.
A biografia de Gama, por si só, merece destaque no estudo da História Afro-
brasileira. Além do importante papel de abolicionista, vivenciou muitas das mazelas
às quais os negros do período escravagista eram submetidos. Nascido liberto, filho de
Luísa Mahin (importante nome de levantes de escravizados na Bahia do século XIX),
foi escravizado e vendido por seu pai (a quem omite o nome)1 por conta de dívidas
de jogo. Após alfabetizar-se autodidaticamente, conquistou a própria liberdade de
maneira perspicaz; como ele mesmo relata: “ sabendo eu ler e contar alguma coisa, e
tendo obtido ardilosa e secretamente provas inconcussas de minha liberdade, retirei-

1 Na famosa correspondência a Lúcio de Mendonça, sobre seu pai, o próprio Gama diz: “Meu pai, não ouso afirmar
que fosse branco, porque tais afirmativas, neste país, constituem grave perigo perante a verdade, no que concerne
à melindrosa presunção das cores humanas: era fidalgo e pertencia a uma das principais famílias da Bahia de ori-
gem portuguesa. Devo poupar à sua infeliz memória uma injúria dolorosa, e o faço ocultando o seu nome” (GAMA
apud FERREIRA, p.309)
Literatura Africana como Ferramenta de Aprendizagem 37

me, fugindo, da casa do alferes António Pereira Cardoso” (Ferreira, pág. 306). Em sua
vida pública, foi respeitado e elogiado pela postura ativa e inteligente na abordagem
de questões raciais e abolicionistas.
Luiz Gama foi um dos primeiros a se valer um eu-lírico negro, forte, que, longe de
se martirizar, questionava a superioridade de raças e a pretensa “pureza racial” das altas
classes brasileiras. Extremamente satírico, seu livro Primeiras trovas burlescas (1859)
aborda temas como mestiçagem, abolição da escravidão, exaltando tanto poetas clássi-
cos, como Camões, quanto musas negras, fugindo, assim, à tradição clássica da beleza
greco-romana de outros poetas românticos. Dotado de ritmo e vocabulário peculiar, os
poemas inauguraram uma nova poesia brasileira. Como é o caso do, talvez mais conhe-
cido, “Quem sou eu? ”, no qual, ao aludir à sua condição de bode (termo pejorativo uti-
lizado para designar o mestiço), nivela todos os seres humanos, independentemente da
raça, à mesma condição:
Se negro sou, ou sou bode
Pouco importa. O que isto pode?
Bodes há de toda a casta,
Pois que a espécie é muito vasta…
(...)
Bodes ricos, bodes pobres,
Bodes sábios, importantes,
E também alguns tratantes...
Aqui, nesta boa terra,
Marram todos, tudo berra;
Nobres Condes e Duquesas,
Ricas Damas e Marquesas
Deputados, senadores
(...)
Haja paz, haja alegria,
Folgue e brinque a bodaria;
Cesse pois a matinada,
Porque tudo é bodarrada! –2

Carolina de Jesus, mineira de Sacramento, nasceu em 1914 e faleceu em 1977.


Sua estreia literária foi cercada de interesse pela classe universitária e intelectual brasi-
leira dos anos 1960 devido à sua ocupação, escolaridade e residência: era catadora de
papel, com menos de dois anos de educação formal, e viva na favela do Canindé - ce-

2 https://www.literaturabrasileira.ufsc.br/_documents/0006-00867.html > Acesso em 20 de junho de 2018.


38 Anais do XIII SevFale

nário em que se passa seu principal livro, Quarto de despejo: diário de uma favelada
(1960), que retrata sua vivência na comunidade durante os anos 1955 e 1960.
Não restrito ao interesse sociológico que circundou sua estreia, Quarto de des-
pejo possui qualidades estilísticas e estéticas peculiares. Aborda temas como pobreza,
fome, miséria, política e racismo de maneira subjetiva e emotiva, mas, ao mesmo tem-
po, coerente, detalhista e minuciosa. Observadora aguda da realidade, Carolina de Jesus
constrói uma narrativa que, longe de se prejudicar dos erros gramaticais e ortográficos,
vale-se destes como força motriz impulsionadora do estilo.
A autora mineira, negra, traz um relato sobre os negros, do ponto de vista negro,
utilizando uma linguagem contundentemente espontânea. Preenchendo todos os fatores
elencados por Duarte, foi um fenômeno editorial dos anos 60, mas entrou em um ostra-
cismo racista obliterador que a afastou, tanto da academia, quanto do público em geral.
De Quarto de despejo vale a pena transcrever algumas passagens que aqui nos
interessa pelo caráter social e questionador que carrega, além de exaltador e valorizador
da cor negra. No trecho do dia 13 de maio, Carolina diz, numa falsa ingenuidade, carre-
gada de ironia e observação:
Hoje amanheceu chovendo. É um dia simpático para mim. É o dia da Aboli-
ção… Nas prisões os negros eram bodes espiatorios. Mas agora os brancos são
mais cultos. E não nos trata com despreso.Que Deus ilumine os brancos para
que os pretos sejam feliz. (JESUS, pág. 27)

Bastante avançada em relação à abordagem estética, a autora faz uma inversão


de padrões de beleza secularmente estabelecidos:
Esquecendo eles que eu adoro a minha pele negra, e o meu cabelo rustico. Eu
até acho o cabelo do negro mais iducado do que o cabelo de branco. Porque
o cabelo de preto onde põe, fica. É obediente. E o cabelo de branco, é só dar
um movimento na cabeça ele já sai do lugar. É indisciplinado. Se é que existe
reincarnações, eu quero voltar sempre preta (Jesus, pág. 58).

O último autor utilizado a título de exemplo do que consideramos literatura afro-


-brasileira a ser estudada no âmbito da Lei 10.639/03 é Solano Trindade. Voz inconfun-
dível da poesia negra brasileira, foi, além de poeta, dramaturgo, ator, pintor, cineasta,
estudioso da cultura e jornalista. Nasceu em 1908 na cidade do Recife, vindo a morar em
diversas outras cidades, como Rio de Janeiro e São Paulo, sempre criando ou participan-
do de grupos culturais nas cidades em que passou. Ajudou a fundar, entre outros, Frente
Negra Pernambucana e o Centro de Cultura Afro-Brasileiro, o TEN (Teatro Experimental
Negro), e o Teatro Experimental Brasileiro.
Literatura Africana como Ferramenta de Aprendizagem 39

Valendo-se de recursos orais, linguagem simples e de um vocabulário folclórico


extenso, Solano Trindade constrói uma poesia de máxima comunicação, mais preocupa-
da com questões centrais da negritude e com a valorização de tradições ancestrais do
que com recursos estéticos estéreis e efêmeros. A erudição em seus poemas transcorre
naturalmente ao lado de assuntos corriqueiros e preocupações sociais. Buscou - e con-
seguiu - ser um “poeta do povo”. Seu poema “Tem gente com fome”, adaptado por João
Ricardo e cantado por Ney Matogrosso, possui recursos linguísticos que, não obstante a
elegância e a complexidade que injetam ao poema, nada afastam-no do grande público:

Trem sujo da Leopoldina


correndo correndo
parece dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome
(TRINDADE, 2008, p. 44)

A anáfora “tem gente com fome”, ao mesmo tempo em que serve de denúncia
(reforçada pela repetição), mimetiza o barulho do trem e dá ritmo ao poema. O trem,
em seu papel de delator de mazelas sociais, no fim, tem sua voz sufocada - como a de
muitos a quem a desigualdade atinge de maneira trágica e irreversível:

Mas o freio de ar
todo autoritário
manda o trem calar
Psiuuuuuuuuuuu
(TRINDADE, 2008, p. 44)

Em outros poemas, a questão racial, para além da puramente social, é ainda mais
nítida. Em “Sou negro”, por exemplo, as raízes africanas são resgatadas em meio a pala-
vras de idiomas africanos, exaltando as tradições dos ascendentes formadores da identi-
dade pessoal do poeta, ao mesmo tempo que reflete uma construção identitária nacio-
nal, desmitificando a ideia do negro escravizado como submisso e resignado:

meus avós foram queimados


pelo sol da África
minh’alma recebeu o batismo dos tambores atabaques, gonguês e [agogôs
(...)
Depois meu avô brigou como um danado nas terras de Zumbi
Era valente como quê
40 Anais do XIII SevFale

Na capoeira ou na faca
escreveu não leu
o pau comeu
Não foi um pai João
humilde e manso
(...)
Na minh’alma ficou
o samba
o batuque
o bamboleio
e o desejo de libertação...
(TRINDADE, 1981, p. 32)

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

É perceptível a imprescindibilidade do ensino de literatura afro-brasileira nas


salas de aula do ensino básico brasileiro. Por dois motivos: primeiramente por uma
imposição legal; segundo, pela importância que possui na compreensão de aspectos
fundamentais da nossa identidade e personalidade. Nas palavras de Martin e Bueno:
De igual modo, não se pode desprezar o fato de que as literaturas africanas e
afro-brasileira são de inestimável valor para o entendimento de nossas bases
sociais e culturais. Por esse motivo, para além da obrigatória observação de
preceitos legais que preveem a abordagem dessas literaturas durante a es-
colarização, é necessário atentar para as dimensões éticas e estéticas de tais
textos, motivos mais do que suficientes para que façam parte do cotidiano da
educação brasileira (MARTIN e BUENO, p. 42).

A construção de um cânone é um processo gradativo que, apesar de contar com


a participação ativa do meio acadêmico, não pode artificialmente ser instituída sem que
determinados fatores históricos, sociais e culturais incidam de maneira não totalmente
previsível. Com isso, quero dizer que, ainda que tenhamos aqui exposto alguns exemplos
daquilo que convencionou-se chamar de “literatura afro-brasileira”, não há como prever
se tais autores de fato se firmarão como percursos obrigatórios do estudo desta matéria.
Apenas ilustramos como os fatores elencados por Duarte “temática, autoria, ponto de
vista, linguagem e público” (Duarte, p.21) podem ser aplicados na prática no momento
em que o professor escolhe quais livros abordar na sala de aula. Termino citando nova-
mente Martin e Bueno pela riqueza que traz a esta discussão específica:
Note-se que é justamente a pretensão do escritor de fazer uma literatura ne-
gra que faculta sua inserção num campo específico, o da chamada literatura
afro -brasileira. A constituição desse repertório literário singular, marcado
Literatura Africana como Ferramenta de Aprendizagem 41

pela afirmação étnico-racial, tem como um de seus principais objetivos a re-


formulação da tradição literária brasileira, no sentido de torná-la mais plural
e representativa. Assim, é na contramão da brancura ideológica e estética que
pautou a consolidação de nosso cânone literário que se inscrevem os textos
literários em que se observam posicionamentos discursivos contrários à es-
cravidão e às suas perniciosas heranças. (MARTIN e BUENO, p.39)

REFERÊNCIAS

DUARTE, Eduardo de Assis. Literatura afro-brasileira: um conceito em construção. In:


Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, n. 31. Brasília, jan.-jun. de 2008, p. 11-23.
Disponível em: http://periodicos.unb.br/index.php/estudos/article/view/2017/1590.
FERREIRA, Lígia Fonseca. Luiz Gama por Luiz Gama: carta a Lúcio de Mendonça. In:
Teresa, revista de Literatura Brasileira [8 19]; São Paulo, p. 300-321, 2008.
GAMA, Luiz. Primeiras trovas burlescas. Disponível em < https://www.literaturabrasileira.
ufsc.br/_documents/0006-00867.html > Acesso em 20 de junho de 2018.
JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. 7 ed. São Paulo:
Francisco Alves, 1960.
MARTIN, V. L. R.; BUENO, A. G. Por uma memória da África e dos afrodescendentes:
aspectos teóricos e legais para o ensino de literaturas africanas e afro-brasileira. Linha
D’Água (Online), São Paulo, v. 29, n. 1, p. 29-43, jun. 2016.
TRINDADE, Solano. Cantares ao meu povo. São Paulo: Brasiliense, 1981.
TRINDADE, Solano. Poemas Antológicos de Solano Trindade. Seleção e introdução de
Zenir Campos Reis. São Paulo: Editora Nova Alexandria, 2008. 168 p.
Texto Dramático e Sala de Aula: Uma Leitura
de ‘Amores Surdos’, de Grace Passô

Mariana de Oliveira Arantes - UFMG

Resumo: Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN, 1998) propõem que as práticas de leitu-
ra e escrita em sala de aula com alunos do Ensino Fundamental II sejam trabalhadas a partir
da diversidade de gêneros textuais. Desse modo, o uso diversificado de textos colabora com a
prática de interpretação textual, ou seja, é necessário que as aulas de Língua Portuguesa pro-
piciem contatos com gêneros textuais, para além dos comumente utilizados, a fim de garantir
aos alunos conhecimento, ampliação de ideias e imaginação. Assim, o presente artigo visa
propor uma leitura e análise do gênero literário dramático em sala de aula, tendo em vista ser
um gênero relegado à margem, pouco considerado para as práticas de leitura, interpretação e
produção textual. Portanto, em defesa do ensino escolar a partir do texto dramático, e assim,
do seu alcance reflexivo e humanizador, esse trabalho pretende desmistificar o paralelo leitu-
ra/encenação e orientar o percurso de leitura do texto dramático em sala de aula para alcance
interpretativo e reflexivo da obra dramática e, consequentemente, sobre a sociedade em que
está inserida. Como exemplo e parâmetro de análise, utilizaremos a obra dramática contem-
porânea Amores surdos, de Grace Passô.

Palavras-chave: Sala de aula; texto dramático; didascálias.

Simpósio: Educação.

INTRODUÇÃO
44 Anais do XIII SevFale

Quando pensamos em gêneros textuais a serem trabalhados em sala de aula,


comumente retomamos modelos catalogados, modelos já de rápida inferência pelos
alunos como o conto, a crônica, a charge. Nesse trabalho, a intenção não é advertir
quanto ao uso desses textos, no caso, propõe-se aqui uma reflexão a fim de, enquanto
professores, nos atentarmos a outros gêneros textuais presentes no contexto sócio-his-
tórico, e podemos incluir, político.
Ao propormos uma reflexão sobre o gênero dramático em sala de aula, retoma-
mos a tríade aristotélica, pois o drama é um dos elementos analisados juntamente com
o lírico e o épico na Poética, de Aristóteles. Necessário ainda relembrarmos a conside-
ração dada pelo autor a esse gênero, segundo o filósofo, a razão do nome drama é por
representar as pessoas fazendo e agindo, “representa-las em ação” (1981, p. 21).
Está na fábula a imitação da ação. Chamo fábula a reunião das ações; cará-
ter, aquilo segundo o quê dizemos terem tais ou tais qualidades as figuras
em ação; ideias, os termos que empregam para argumentar ou para mani-
festar o que pensam. (...) pois todo drama envolve igualmente espetáculo,
caráter, fábula, falas, canto e ideias. (...) O espetáculo, embora fascinante,
é o menos artístico e mais alheio à poética; dum lado, o efeito da tragédia
subsiste ainda sem representação nem atores; doutro, na encenação, tem
mais importância a arte do contrarregra do que a dos poetas. (ARISTÓTE-
LES, 1981, p. 25-26).

O drama, por vezes, está posto nos livros didáticos e está presente nas emen-
tas escolares, até mesmo devido à orientação descrita nos Parâmetros Curriculares Na-
cionais (PCN) (1998, p. 71) como observamos, “em coerência com o princípio didático
que prevê a organização das situações de aprendizagem a partir da diversidade textual,
estão especificados gêneros adequados para o trabalho com a linguagem oral e com a
linguagem escrita.”. Isso em vista, a diversidade textual é postulada para os dois ciclos
do Ensino Fundamental, sendo divididos em ‘gêneros adequados para o trabalho oral’ e
‘gêneros adequados para o trabalho com a linguagem escrita’; o drama, o texto teatral,
está postulado no segundo âmbito,
• receitas, instruções de uso, listas; • textos impressos em embalagens, rótu-
los, calendários; • cartas, bilhetes, postais, cartões (de aniversário, de Natal,
etc.), convites, diários (pessoais, da classe, de viagem, etc.); • quadrinhos,
textos de jornais, revistas e suplementos infantis; etc.(...)• contos (de fadas,
de assombração, etc.), mitos e lendas populares, folhetos de cordel, fábulas;
• textos teatrais; relatos históricos, textos de enciclopédia, verbetes de dicio-
nário, textos expositivos de diferentes fontes (fascículos, revistas, livros de
consulta, didáticos, etc.). (PCN, 1998, p. 72).
Texto Dramático e Sala de Aula: Uma Leitura de ‘Amores Surdos’, de Grace Passô 45

Sendo assim, com base na orientação dos PCNs, cabe a nós enquanto professo-
res sempre reavaliarmos a verdadeira complexidade e função social exigida nos textos
trabalhados em sala de aula, a fim de aprimorarmos a capacidade leitora e crítica de
nossos alunos, pois, ao final do segundo ciclo do Ensino Fundamental, o aluno deve ser
capaz, no que diz respeito à prática de leitura, de conduzir a compreensão do texto de
forma mais autônoma. Patamar de autonomia a ser alcançado, de acordo com os PCNs
(1998), a partir das especificidades cognitivas e da complexidade apresentadas nos tex-
tos ensinados, tal como exposto nos parâmetros,
• compreender o sentido nas mensagens orais e escritas de que é destinatário
direto ou indireto, desenvolvendo sensibilidade para reconhecer a intenciona-
lidade implícita e conteúdos discriminatórios ou persuasivos, especialmente
nas mensagens veiculadas pelos meios de comunicação; • ler autonomamen-
te diferentes textos dos gêneros previstos para o ciclo, sabendo identificar
aqueles que respondem às suas necessidades imediatas e selecionar estraté-
gias adequadas para abordá-los; (PCN, 1998, p. 79).

Agora, a efetiva prática do texto dramático em sala de aula fica, por vezes, defa-
sada devido a algumas insistências ora ao atrelar o texto dramático, única e exclusiva-
mente, à encenação, e assim, o gênero como um todo é ignorado, pois não há preparo
ou interesse para tal seja do professor, seja do aluno; ora ao pontuar apenas nomes de
dramaturgos inseridos no cânone brasileiro, com poucas aberturas para ensinar outras
dramaturgias. Como indicador dessa defasagem, consideramos a pesquisa de Fabiano
Grazioli1 a qual aponta a mínima preocupação com o gênero dramático pelo Programa
Nacional Biblioteca na Escola (PNBE), o qual no ano de 2013, entre 360 obras seleciona-
das para os anos finais do Ensino Fundamental e Médio, apenas quatro eram obras do
gênero dramático.

UMA LEITURA DO TEXTO DRAMÁTICO

Repensar a importância do drama em seu caráter estrutural e conteudístico é


romper a barreira do receio sobre como trabalhá-lo em sala de aula e alcançar o campo
do gênero drama como literatura. Agora, antes de nos enveredarmos para a concepção
literária do gênero, cabe retomarmos uma definição postulada por Patrice Pavis, a qual
destaca o hibridismo inerente ao mesmo, “O dramático é um princípio de construção do
texto dramático e da representação teatral que dá conta da tensão das cenas e dos epi-

1 GRAZIOLI, Fabiano Tadeu. O texto dramático: por uma teoria que estimule a leitura. Rio de Janeiro: Cadernos de
Letras da UFF, 09 jul. 2016.
46 Anais do XIII SevFale

sódios da fábula rumo a um desenlace, e que sugere que o espectador é cativado pela
ação.” (PAVIS, 1999, p. 110).
Considerarmos o caráter híbrido do gênero dramático, ou seja, a relação primeira
entre texto/espetáculo, já é suficiente para inúmeras apreciações, porém, o recorte no
texto teatral enquanto obra literária é fundamental para estabelecermos uma leitura e
interpretação atentas de cada nuance e significado do texto dramático. Patrice Pavis, em
sua definição sobre dramaturgia, esclarece a importância dos elementos constituintes
do gênero dramático.
A dramaturgia (...) procura estabelecer os princípios de construção da obra,
seja indutivamente a partir de exemplos concretos, seja dedutivamente a par-
tir de um sistema de princípios abstratos. Esta noção pressupõe um conjunto
de regras especificamente teatrais cujo conhecimento é indispensável para
escrever uma peça e analisá-la corretamente (PAVIS, 1999, p. 113).

Pavis, posteriormente, acarreta aos princípios de construção o conjunto de esco-


lhas estéticas e ideológicas pontuadas pelo dramaturgo da obra, ou seja, compreende-
mos o texto teatral como a confabulação de inúmeros elementos a fim de retratar ações.
Cada um desses elementos, sejam os princípios abstratos, sejam os princípios concretos
como, nomes das personagens, diálogos, didascálias, são contribuintes na constituição
de sentido, na constituição ideológica do texto.
De modo amplo, os elementos anteriormente pontuados do gênero dramático
são organizados com o objetivo de comunicar, assim como os demais gêneros discur-
sivos. Contudo, enquanto arte, a polissemia de cada signo utilizado na obra dramática
garante o seu caráter abundante, e por isso intensificador, de interpretação como abor-
dado pela teórica Anne Ubersfeld.
A intenção de comunicar não pode restringir-se à intenção de comunicar uma
ciência ou um dado conhecimento, claro e definido. A arte distingue em geral
a intenção de comunicar e a vontade de dizer algo preciso (...) É assim com
o teatro e com outras formas de arte: a riqueza de signos, a extensão e a
complexidade dos sistemas que formam, vão infinitamente além da intenção
primeira de comunicar. Se há perda de informação no que respeita do projeto
inicial, há também ganhos imprevistos. (UBERSFELD, 1998, p. 18).

Os ganhos imprevistos destacados por Ubersfeld dizem respeito à recepção do


texto teatral, dizem respeito ao modo como os elementos do gênero dramático tornam-
se comunicáveis e significativos para os leitores, pois nesse âmbito está uma das rele-
vâncias do gênero. Como destacado mais adiante na obra de Ubersfeld, não devemos
reduzir a função teatral à comunicação, ou seja, apenas uma audição passiva, mas como
indicação de prática social, e isso ocorre ao atribuirmos significado ao texto.
Texto Dramático e Sala de Aula: Uma Leitura de ‘Amores Surdos’, de Grace Passô 47

Nesse mesmo raciocínio, Massaud Moises (1977) elabora uma defesa da análise
do texto teatral, separado de sua representação cênica. Uma defesa para além da audi-
ção passiva do texto teatral, pois esse exige do leitor recorrer a sua imaginação, segundo
o autor, mais do que os demais gêneros discursivos.
Decerto, uma narrativa qualquer implica que o leitor ponha em funcionamen-
to seus dotes de fantasia, mas os vários auxiliares de que lança mão o ficcio-
nista (como a dissertação, a narração e a descrição) lhe simplificam a tarefa.
O leitor de teatro, falho de tais expedientes, vê-se obrigado a movimentar
todas as turbinas de sua imaginação, sob pena de permanecer impermeável
ao texto. (MOISES, 1977, p. 203).

A partir do efetivo uso e importância da imaginação para permear o texto dra-


mático, Massaud Moises defende que a qualidade da peça não reside em sua represen-
tabilidade. A qualidade da obra dramática ocorre no encadear estético e ético os quais
devem percorrer todos os elementos da obra, como totalidade, colaborando em sua
coerência textual e ideológica; esses elementos são denominados atos, cenas e quadros.
Porém, de acordo com Moises, os componentes fundamentais da obra teatral consistem
em ação, cenário e diálogo, quando levada ao palco, agora, sujeita à leitura, os elemen-
tos primordiais são o enredo e as personagens (MOISES, 1977).
Ainda de acordo com Moises, enredo e personagens encaminham ao pensamen-
to, à ‘mensagem’ do texto dramático. Sendo esse conceito fundamental, principalmen-
te, na dramaturgia contemporânea, quando designamos essa arte como propensa a es-
tabelecer diálogo imediato com sua audiência, nesse caso, leitora. Pois, não podemos
desconsiderar o texto teatral enquanto vozes, ou seja, desconsiderar nossa capacidade
em atrelar essas vozes a corpos, e ler os discursos daí resultantes de acordo com o seu
contexto histórico e social.
Ainda como indicado por Moises, devemos enfatizar a peça de teatro como for-
ma de conhecimento, pois a leitura de uma peça teatral supõe distração e ainda ensina
uma nova forma de perceber nós mesmos e também o mundo que nos circunda. Isso
ocorre a partir da forma como o autor irá, em seu texto dramático, conceber o seu mun-
do e os seus homens, seus personagens, assim, “O impacto do teatro, por ser direto, ain-
da quando lido, promove o nosso autoconhecimento e o conhecimento da conjuntura
que nos rodeia.” (MOISES, 1977, p. 218).
O pensamento do texto dramático comunica ao leitor/espectador frontalmente,
sendo assim, analisar o pensamento é compreender o outro, é desvendar a concepção
de mundo do dramaturgo a partir do exposto na obra dramática. Para tal alcance, o en-
sino da leitura de texto teatral deve ter ênfase nas ações e nas personagens, ou seja, a
48 Anais do XIII SevFale

ênfase deve estar principalmente na leitura dos diálogos e na leitura das rubricas. Assim,
utilizamos nesse trabalho, a análise das rubricas, ou didascálias, devido a sua potência
em aliar a ficção e a materialidade cênica, fato que possibilita ao leitor, e aqui retoma-
mos Massaud Moises, utilizar seus dotes de fantasia, pois,
A rubrica projeta no plano literário, uma certa materialidade cênica. É um
território privilegiado de convívio entre duas dimensões do fenômeno teatral
em princípio incomunicáveis: a cena imaginária, virtual, projetada pelo autor,
e a cena concreta, matéria tridimensional que ocupará espaço físico. (RAMOS,
2001, p. 9).

Ao considerarmos as rubricas como uma das categorias propensas a trazer para


superfície da obra teatral o pensamento, a ideologia, podemos utilizá-las na leitura do
texto teatral em sala de aula a fim de guiar a interpretação e compreensão do texto.
Pois, tal como ponderado por Luiz Fernando Ramos, em seu artigo “A rubrica como li-
teratura da teatralidade: modelos textuais e poéticas da cena”, as rubricas transportam
a ficção e a materialidade do texto teatral, e ainda estabelecem enriquecedora relação
com os diálogos, assim, torna a peça mais convincente e impactante.
Logo, a rubrica nos remete a visão de cena montada, porém, em muitos textos
dramáticos, e principalmente na produção contemporânea, o enredo da peça também
se atualiza nesse elemento, ou seja, atualiza sua ficcionalidade. A cada leitura, novas e
possíveis encenações virtuais (RAMOS, 2001) são construídas, leituras subjetivas e per-
tinentes para cada leitor “que se permita o devaneio de encenar um espetáculo com a
própria imaginação (...). Cada leitura corresponderá a um espetáculo diferente e, mais
crucial, pressuporá sempre um relato numa forma literária e já distanciada do espetácu-
lo em si.” (RAMOS, 2001, p. 12).

ANÁLISE – AMORES SURDOS

Necessário aqui salientarmos, a análise empreendida não visa desmerecer o es-


tudo e percurso inerente quando trabalhamos em sala de aula com os gêneros textuais,
no caso, especificamente, o literário. Ou seja, sabemos da importância em aliar a leitura
integral do texto com objetivos escolares que visam a formação do aluno para além da
fruição advinda na leitura e interpretação do texto.
Logo, reconhecemos a necessidade, tal como elaborado por Rildo Cosson (2014),
em despertar a motivação dos alunos para leitura da obra; a introdução ao gênero lite-
rário, no caso, seus elementos, como deve/pode ser lido, como também a apresentação
da própria obra literária a ser trabalhada em classe; o momento destinado à leitura sen-
Texto Dramático e Sala de Aula: Uma Leitura de ‘Amores Surdos’, de Grace Passô 49

do essa individual, e quando for coletiva, organizada a fim de auxiliar na compreensão e


futura interpretação, mas sempre ponderando a leitura integral do texto por parte dos
alunos; além do momento de interpretação no qual consiste, de modo sumário, em pro-
dução escrita, de registro, sobre a obra literária lida, discutida, avaliada em sala de aula.
Contudo, a análise aqui proposta objetiva apresentar uma possibilidade de leitu-
ra da obra de Grace Passô em sala de aula, uma leitura das rubricas enquanto elemen-
to promissor de análise. Sendo assim, quando nos deparamos com o texto dramático
Amores Surdos, de Grace Passô (2012), a leitura atenta das didascálias em muito contri-
bui para depreendermos o pensamento proposto pela autora, como também deflagra,
juntamente com os diálogos, a interpretação para as ações e as personagens da obra.
Porém, nesse trabalho iremos nos deter nas didascálias, propulsora da imaginação e do
enredo.
Primeiramente, ao iniciarmos o estudo do texto de Grace Passô em sala de aula,
a primeira leitura deve enfatizar os caráteres visíveis, ou seja, devemos conceituar sua
estrutura, como por exemplo, as divisões em partes e os títulos atribuídos em cada
uma delas. Posteriormente, é possível empreendermos a leitura pelas partes da obra,
o destaque pormenorizado a partir das rubricas possibilita ao aluno analisar e com-
preender o enredo e as personagens, e, como resultado, obter o pensamento geral do
texto dramático.
Assim, ao nos defrontarmos com o título da peça teatral e, posteriormente, com
as indicações das personagens, “a família: a mãe; Gentil, o pai; os filhos: Joaquim, Sa-
muel, Júnior, Graziele e Pequeno, o caçula da família.” (PASSÔ, 2012, p. 13), enquanto
leitores e a partir do nosso conhecimento de mundo, certas inferências são feitas e ou-
tras podem ser suscitadas tais como, por que ao falarmos de família também falamos
de amores surdos? Ou, em quais diferentes âmbitos sociais nos posicionamos enquanto
surdos frente ao Outro? Essas questões, dentre outras, podem guiar a leitura até nos
depararmos com a primeira rubrica da parte I do texto, “A família lê uma carta, remetida
pela família vizinha. A carta passa de mão em mão e todos sentem dificuldades no en-
tendimento de suas palavras.” (PASSÔ, 2012, p. 17).
Mesmo que o trecho inicial apresente ênfase na materialidade da cena, podemos
depreender relações entre duas famílias, tal convívio, porém, ocorre de forma distanciada
entre elas, por meio de carta. É possível ainda localizarmos união entre a família destinatá-
ria da carta, pois, essa é passada de mão em mão, e exatamente todos sentem dificuldades
na compreensão das palavras nela escritas. Agora, o motivo da não compreensão está no
texto da carta, pois a família remetente se utiliza de vocabulário mais rebuscado, essa dis-
tinção cultural entre as duas famílias será acentuada no decorrer da peça.
50 Anais do XIII SevFale

Como já pontuado, as rubricas auxiliam na interpretação das personagens, e isso


está demarcado na obra de Passô ao acentuar os comportamentos de Joaquim, Graziele
e Samuel e de justificá-los com descrições no nível psíquico,
Mãe, Samuel e Pequeno observam Joaquim, o filho mais velho que sempre
acorda de manhã pensando se fez ou disse algo errado pela noite. Joaquim
não é um homem medroso. Só está um pouco apático, um pouco sem rumo
na vida: Joaquim e sua vida de águas paradas. Sempre ajuda Mãe a retirar as
louças da mesa, mas pensa que seu pai poderia fazer isso também, que seu
pai é um homem ausente. E, também, sempre quando briga com a Mãe, espia
ao lado para ver se ele está por ali, para defendê-lo. (PASSÔ, 2012, p. 20).

Por essa rubrica torna-se possível preencher mais algumas lacunas sobre quem
é essa família e como ela se constitui, pois, ao apresentar filhos desajustados, como o
filho mais velho, o qual não possui projetos de vida, a ausência paterna, a diferença no
trabalho doméstico entre homens e mulheres, e ainda, a necessidade, por parte desse
filho, de alguma proteção, é possível inferir certos desgastes nessa relação familiar. Ob-
jetivamos assim formular um desenho interpretativo de como as relações dentro dessa
família estão se desfazendo, pois o amor e o afeto entre essas personagens são dificil-
mente ouvidos.
Como na rubrica já delimitada anteriormente, a qual caracteriza a personagem
Joaquim, aquela define tal personagem a partir de sua relação com os pais, “sempre
quando briga com a mãe, espia ao lado para ver ser ele [pai] está por ali, para defendê-
-lo.” (2012). Ou seja, na leitura primeira, percebemos a relação familiar, já na leitura por-
menorizada das rubricas evidencia-se o conflito principal do drama: uma família desajus-
tada. Pois, mesmo a família apresentada em ambiente comum, unidas corporalmente,
é na análise que iremos perceber quão distanciadas psicologicamente as personagens
estão e quais razões para tal dentro desse grupo familiar.
A partir dessas questões, podemos salientar com a classe de alunos como o tema
família é recorrente em diferentes expressões artísticas, pois, de modo sumário, é o pri-
meiro ambiente social no qual nos constituímos enquanto pessoas. Muito do que apren-
demos nesse grupo pode ser falho e muito também pode ser benéfico. Nesse âmbito,
certas categorias tal como o cotidiano perpassam por todas as famílias, novamente, sem
nos aprofundarmos, é no dia a dia que fomos educados, somos educados e educamos
dentro de nossas concepções familiares. No entanto, ao deslocarmos esse pensamento
para o texto teatral, a compatibilidade entre o gênero dramático e o tempo cronológico
é restrita, e pode assim ser marcada por meio das rubricas, como no seguinte momento.
“A ligação cai. Graziele volta a escutar seu headphone. O tempo passa. E com ele os dias
comuns.” (PASSÔ, 2012, p. 47).
Texto Dramático e Sala de Aula: Uma Leitura de ‘Amores Surdos’, de Grace Passô 51

No curto espaço para instauração de conflito e resolução dele, as rubricas da obra


teatral são necessárias a fim de trazerem o pensamento do dramaturgo à tona. Esse ele-
mento textual dá espaço para a poética do texto e sua construção cênica sem que uma
impeça por completo a realização da outra. As rubricas da obra Amores Surdos (2012)
contemplam esses dois polos e permitem ao leitor refletir sobre uma concepção familiar
falha, reflexo da falta de comunicação, reflexo da falta de falar e reflexo da falta de ouvir
entre os integrantes do grupo familiar retratado.
Na parte VII da obra de Passô (2012), a rubrica final é utilizada como retomada
dos conflitos abordados na peça, as distinções sociais entre as famílias vizinhas, e a falta
de comunicação e afeto entre os membros da família retratada, até o ponto de toda a
sujeira resultante dessa omissão tornar-se visível e incontrolável.
A família é o que está nos cantos, nas nossas fissuras, como o pó que acumula
na esquina do chão, tão difícil de retirar. Ela está entre os dedos, as axilas,
entre as pernas, no canto do olho, debaixo da língua, entre os dentes. É um
pires. Porque é para o pires, não é? É para o pires que a xícara sempre retorna,
em repouso. (PASSÔ, 2012, p. 64).

No mais, o pensamento conclusivo proposto pela dramaturga é a família enquan-


to base, enquanto referência, ou seja, nos atentarmos para as nossas relações familiares
e, se não bem assistidas, o que delas podem resultar. Portanto, após a leitura em sala de
aula, os alunos devem ser capazes de colocarem-se ativamente frente ao texto, pois, ao
abordarmos o tema família, devemos ter em mente as inúmeras atribuições de significa-
dos para o conflito familiar discutido na obra.
Faz-se necessário, nesse momento, ouvir cada significado pontuado pelos alunos
a fim de ampliarmos a discussão sobre as falhas ou não das personagens dentro desse
ambiente doméstico, e assim, guiar uma reflexão: se as ações das personagens fossem
outras, quais resultados seriam diferentes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após a análise de certas rubricas presentes em Amores Surdos (2012), de Grace


Passô, podemos pensar a aplicabilidade dessa obra no ensino do texto dramático em
sala de aula. Nossa escolha, como já dito, parte das didascálias, por ser um dos elemen-
tos colaboradores na compreensão do enredo e das personagens.
As rubricas iniciais e finais de Amores Surdos utilizam-se do léxico família, sendo
assim, cabe inferirmos junto aos alunos perguntas como: que família é essa? Por que
famílias vizinhas trocam cartas? Quais as dificuldades apresentadas nessa carta e qual o
52 Anais do XIII SevFale

motivo da dificuldade em entendê-las? As respostas formuladas devem ser confirmadas


ou negadas de acordo com a leitura do texto até a rubrica final, pois esse trecho traz uma
definição de família conclusiva para obra. Nesse momento, cabe questionar aos alunos
sobre qual a relação da rubrica final com todo o trajeto das personagens, com todas suas
ações apresentadas na obra.
Por ser o texto de Grace Passô muito pautado em metáforas é importante
estimularmos as leituras nelas imbricadas. Tais com as pontuadas na rubrica final: por
que a família é o que está entre os dedos, entre as axilas, entre as pernas? O que signifi-
ca pontuar a família como o pires? Tais perguntas, entre outras, devem corroborar para
que os alunos compreendam o enredo da peça e relacionem esse com as personagens.
Ressaltamos ainda a importância desse contínuo de reflexão enredo/personagem abor-
dados na peça.
Tal norteamento visa extrapolar o âmbito texto para pensarmos em conjunto
como estão as relações familiares hoje, qual a nossa posição enquanto cidadãos cons-
cientes da necessidade de escuta/fala com atenção e respeito ao outro. Essa reflexão
que alcança o âmbito social, o âmbito de vivência para além do texto, é a pulsão da
prática social possibilitada pelo gênero dramático, pois não teremos “uma leitura pela
leitura” e, sim, a leitura reflexiva e consciente, a leitura ativa frente à obra.
Sendo assim, a leitura da obra dramática como obra literária, já que a qualidade
e compreensão não estão inerentes a sua encenação ou representabilidade, como co-
locado por Massaud Moises, e o caráter contemporâneo de Amores Surdos (2012) pos-
sibilitam investir nos debates em sala de aula ao articular o conhecimento de mundo
dos alunos com o texto dramático. Desse modo, retomamos o início desse artigo, pois a
leitura da obra Amores Surdos (2012) em sala de aula garante um dos pressupostos as-
sinalados nos Parâmetros Curriculares Nacionais (1998), a escolha dos textos estudados
em sala de aula enquanto complexidade, estrutural e conteudística, e sua função social.

REFERÊNCIAS

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Paulo: Editora Cultrix: Ed. da Universidade de São Paulo, 1981.
Texto Dramático e Sala de Aula: Uma Leitura de ‘Amores Surdos’, de Grace Passô 53

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e quarto ciclo do ensino fundamental: língua portuguesa. Brasília: MEC/SEF, 1998.
COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2014.
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Cadernos de Letras da UFF, Niterói, v. 26, n. 52, jul. de 2016. p. 419-439.
MOISES, Massaud. A análise literária. 5. ed. São Paulo: Editora Cultrix, 1977.
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(direção)]. São Paulo: Perspectiva, 1999.
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poéticas da cena. Sala Preta. São Paulo, SIBI, v. 1, 2001. p. 9-22.
UBERSFELD, Anne. Para ler o teatro [tradução: José Simões (coord.)]. São Paulo:
Perspectiva, 2010.
LINGUÍSTICA
O Controle Inibitório Humano: entre o
Linguístico e o Não-Linguístico

Flávia Alvarenga de Oliveira - Poslin/UFMG


Isabelle Deolinda Pereira de Sousa - Poslin/UFMG

Resumo: De acordo com Bialystok, Craik e Luk (2012), o controle inibitório encontra-se meio a
um conjunto de habilidades mentais intimamente relacionadas a recursos cognitivos para a rea-
lização de algumas tarefas, como inibição, manutenção atencional e funcionamento da memória
de trabalho. O uso constante de dois sistemas linguísticos pode ser benéfico para as FEs, mas
acarreta um processamento linguístico com maior custo cognitivo, demonstrando que bilíngues
em todas as idades apresentam melhor desempenho de FEs que os monolíngues combinados
nessa mesma variável. Entretanto há muitos estudos sobre controle inibitório que não se pre-
ocupam diretamente com a questão linguística. O foco destes estudos recai, em grande parte,
sobre a capacidade humana de categorização e o papel dessas categorizações em processos
cognitivos. Pesquisas desse tipo suportam, ainda assim, propostas de processamento linguístico,
como aquela defendida por Glucksberg e Keysar (1990), segundo a qual expressões metafóricas
são interpretadas através da criação de novas categorias ad hoc. O presente trabalho aborda a
discussão de estudos voltados para esse componente das FEs a fim de fomentar questões a res-
peito do funcionamento da mente humana, seja em processos linguísticos ou não-linguísticos.

Palavras-chave: Funções executivas; controle inibitório; bilinguismo; categorização; metáfora.

Simpósio de Linguística - Eixo 3 Psicolinguística.

1. INTRODUÇÃO
58 Anais do XIII SevFale

Cada vez mais pesquisas têm voltado a atenção para o aprendizado de uma segun-
da língua tanto no meio acadêmico (através de esforços nas áreas de Psicolinguística, Lin-
guística Aplicada e Ciências Cognitivas, por exemplo) como no meio comercial/publicitário.
Também é cada vez mais recorrente que empresas privadas ou mesmo notícias na Internet
se utilizem de promessas de cura de doenças degenerativas, como o Alzheimer, por meio
do aprendizado de uma nova língua a fim de garantir seu público ou sua audiência.
Embora seja um assunto muito discutido, ainda se torna viável explicitar o sig-
nificado dos termos “bilinguismo” e “bilíngue”. Segundo Grosjean1, o primeiro termo
refere-se à utilização regular de uma ou mais línguas (ou dialetos), enquanto o segundo
concerne aos indivíduos que usam uma ou mais línguas (ou dialetos) em seus cotidia-
nos. Um fato curioso, também ressaltado pelo autor2, é a crença de que o “verdadei-
ro” bilíngue seria aquele que é igualmente fluente em suas línguas, entretanto isso não
se aplica uma vez que a experiência bilíngue não ocorre de maneira homogênea nos
indivíduos. Isso é atestado pelo Princípio da Complementaridade (GROSJEAN; LI, 2013,
p. 12), segundo o qual a aquisição e o uso das línguas pelos bilíngues dependem de di-
ferentes propósitos, de diversos domínios da vida (acadêmico, familiar, profissional etc.)
e de relações interpessoais variadas, pois “[...] Different aspects of life require different
languages.”3.
No que se refere ao meio acadêmico, vários estudos foram conduzidos com o
objetivo de compreender a natureza, o desenvolvimento e os mecanismos envolvidos
no processo de comunicação de pessoas bilíngues e monolíngues, comparando inclusive
a performance desses dois grupos em certas tarefas para entender as vantagens e des-
vantagens dessas categorias de falantes. Com a estimativa de que metade da população
do planeta seja bilíngue (GROSJEAN, 2008, p. 11) e de que existam mais de 7000 línguas
vivas no mundo (SIMONS; FENNING, 2018), o aumento dos estudos referentes ao bilin-
guismo não seria uma mera coincidência nos últimos trinta anos.

2. BILINGUISMO E FUNÇÕES EXECUTIVAS

Em uma conferência proferida na Universidade de Reading, a professora Ellen


Bialystok (2015) apresentou como suas pesquisas revelam indícios de que o bilinguis-
mo pode modificar ou aperfeiçoar as funções cognitivas (ou funções executivas) du-
rante a vida útil do indivíduo. Devido à capacidade de neuroplasticidade, o cérebro e

1
GROSJEAN, 2008, p. 10
2
GROSJEAN, loc. cit.
3
“[...] Diferentes aspectos da vida requerem frequentemente diferentes línguas.” (Tradução nossa).
O Controle Inibitório Humano: entre o Linguístico e o Não-Linguístico 59

mente se modificam à medida que fazemos uso de ambos para diferentes finalidades,
seja para educação formal, para fins profissionais (como publicitários, médicos ou ta-
xistas que precisam dar soluções para certos problemas, planejarem novos caminhos
a percorrer ou lidar com multitarefas), para educação musical, jogos eletrônicos ou
mesmo para exercícios físicos. A linguagem permeia todos esses campos do dia a dia
além de muitos outros e alcança também a maioria dos centros cerebrais, envolvendo
todo o cérebro.
A cientista, então, propõe algumas indagações: no caso dos bilíngues, por que
se escolhe a língua adequada a ser usada num dado contexto e por que não haveria
confusão entre as línguas visto que elas se mantêm ativas sempre (de alguma forma)?
O que estaria por trás de todos esses processos, além dos supracitados, seria o sistema
das Funções Executivas.
As Funções Executivas (EF) referem-se ao conjunto de habilidades específicas
relacionadas ao uso de recursos cognitivos limitados (BIALYSTOK; CRAIK; LUK, 2012, p.
241), constituindo-se de redes neurais, localizadas no lóbulo frontal, que podem fomen-
tar conexões para outras áreas cerebrais de acordo com a especificidade da tarefa. O
controle inibitório seria um dos aspectos das EF a ser estudado, surgindo tardiamente
na ontogênese e decaindo rapidamente com a idade, garantindo a manutenção de ativi-
dades como multitarefas e manutenção da atenção4. Uma sequência regular de passos a
serem seguidos seria estabelecida: primeiro, temos a representação do problema segui-
da do planejamento, de sua execução e, por último, da avaliação (essas etapas podem
durar milissegundos ou mais). Zelazo (2014) esclarece, no entanto, que falhas podem
ocorrer em qualquer uma dessas fases, fazendo com que outras decisões sejam tomadas
para a resolução da tarefa.
As funções executivas medidas na infância têm implicações importantes para o
desenvolvimento das mesmas na vida adulta a partir da capacidade da criança sentar,
prestar atenção e seguir regras, por exemplo, no contexto de escolarização. Zelazo (2014)
explicita que, com base em experimentos do tipo DCCS (Dimensional Change Card Sort),
trabalhando com variáveis de dimensão de cor e de forma, por volta dos três anos de
idade, a maioria das crianças continua resolvendo uma segunda tarefa com base ainda
na instrução de uma primeira tarefa, mesmo demonstrando o conhecimento da nova
regra quando a dimensão muda. Nessa idade, temos um exemplo da rigidez das funções
executivas que ainda não inibem a regra antiga para a execução de uma nova.

4
BIALYSTOK; CRAIK; LUK, 2012, p. 241.
60 Anais do XIII SevFale

No período pré-escolar, a adaptação ao ambiente sugere uma oportunidade para


tarefas top-down. Para intervenções efetivas das funções executivas, é importante estar
motivado para solucionar um problema que requer reflexão e prática (voltar atrás, re-
fletir, formular novas regras para solução do problema e avaliar, como explica o autor).
Já por volta de quatro anos, a maioria das crianças muda a flexibilidade. Elas
podem, ao contrário das crianças de três anos, concluir duas regras distintas, com di-
mensões diferentes. Isso ocorre pelo desenvolvimento da função executiva e pelo fato
de a reflexão mudar a perspectiva, proporcionando uma distância psicológica a partir de
um problema, mostrando um leque de respostas possíveis e permitindo selecioná-las.
Percebemos, assim, que há neuroplasticidade através do tempo de vida dos indivíduos
e o professor Zelazo (2014) reporta algumas pesquisas como exemplificação para o fato
de que a plasticidade não é limitada à infância.
O estudo de Maguire e colaboradores (2000) pode comprovar a neuroplasticidade
também ao longo da vida adulta, pois analisaram taxistas de idade média para avançada
em Londres. Eles apresentavam maior hipocampo (parte do cérebro importante para a
memória espacial particularmente) posterior e menor hipocampo anterior, havendo uma
correlação entre profissão e forma/tamanho de partes importantes do cérebro.
Adultos que jogavam videogames durante várias horas por semana foram com-
parados com pessoas que os jogam raramente e demonstraram menor padrão de ativa-
ção neural no contexto de uma tarefa, sugerindo que eram capazes de resolverem um
problema de forma mais eficiente (BAVELIER et al., 2010). A partir destes estudos envol-
vendo tarefas linguísticas e hábitos do cotidiano, percebemos uma sincronização entre
a atividade cerebral com as mudanças de comportamento ambientais, correspondendo
com as mudanças no cérebro. Porém, por trás dessas conclusões, vemos o desafio do
pesquisador em ser capaz de encontrar essas modificações, de medi-las e de demons-
trar que elas estão relacionadas a mudanças comportamentais.
No que se refere aos processos linguísticos, Bialystok, Craik e Luk (2012, p. 241)
evidenciaram que os bilíngues geralmente apresentam habilidades verbais, como em
tarefas de nomeação de figuras, fluência verbal, compreensão e produção de palavras,
mais fracas em suas respectivas línguas em comparação à performance dos monolín-
gues. Diferente desse padrão, bilíngues em todas as idades demonstraram melhor per-
formance de controle executivo que os monolíngues nas respectivas idades. Não obstan-
te, outros estudos discutem se o uso constante e desafiador dos diferentes aspectos das
Funções Executivas, sobretudo operacionalizado por bilíngues, impulsionaria um melhor
desempenho cognitivo, podendo proporcionar um envelhecimento mais bem-sucedido
para esse indivíduo (VALIAN, 2015).
O Controle Inibitório Humano: entre o Linguístico e o Não-Linguístico 61

Um exemplo de atuação do controle inibitório no âmbito linguístico seria no pro-


cessamento humano da linguagem, sobretudo no que concerne ao processamento de
metáforas, tratado ao longo das seções adiantes.

3. CATEGORIZAÇÃO E PROCESSAMENTO

A capacidade humana de categorizar está no centro de nosso conhecimento de


mundo. A todo momento, ao nos depararmos com novas informações, buscamos as-
sociá-las àquilo que já nos é familiar, de modo a sermos capazes de atribuir sentido. A
Teoria de Protótipos (KLEIBER, 1991; LAKOFF, 1987) propõe que há, em uma dada cate-
goria, um item que lhe seja prototípico, quer dizer, que seja o integrante “ideal” para
aquela categoria. Se pensarmos, por exemplo, na categoria “pássaro”, onde seus possí-
veis integrantes possuiriam [+asas], [+habilidade de voar], [+bico], etc., um item como
“periquito” seria mais prototípico que “penguim”, uma vez que este não é capaz de voar.
É importante notar, no entanto, que nossa capacidade de categorizar e a forma como o
fazemos estão intrinsecamente relacionadas à cultura em que estamos inseridos.
Este olhar sobre a categorização parece estar de acordo com a teoria do conec-
tivismo, a qual compreende o aprendizado como o estabelecimento de novas redes de
conexões (SIEMENS, 2005). De acordo com esta teoria, os “nós” seriam informações
passíveis de se conectarem a outras, assim como fazem os neurônios no cérebro. Ao
conhecer uma nova pessoa, por exemplo, criamos uma nova rede, na qual conectamos
informações sobre aparência, os tópicos conversados, sua personalidade etc. Ao desco-
brirmos, no entanto, que essa mesma pessoa é, digamos, a irmã mais nova de um colega
de trabalho, a nova rede, antes isolada, passa a se integrar a uma rede mais antiga, co-
nectando-se a uma rede maior e mais complexa, relacionada àquele colega de trabalho.
Há por assim dizer, uma tendência ao não-isolamento de informações por parte da men-
te humana, em uma tentativa de tornar familiar aquilo que ainda lhe é novo.
Um dos interesses, não apenas da Psicolinguística, mas também da Psicologia, é
o de investigar o papel de tais categorizações e conexões mentais para o processamento
humano. No caso da Psicologia, há grande interesse em observar o impacto de meca-
nismos envolvidos para a memória, e mesmo o de investigar as consequências, quando
do não funcionamento dos mesmos. Busca-se, em tais experimentos, induzir o esqueci-
mento de informações compartilhadas (ou seja, parte de uma mesma rede neural) e ob-
servar se esse esquecimento se dá para informações isoladas ou para categorias inteiras.
Chiu et al. (2009), por exemplo, conduziram um experimento no qual os partici-
pantes eram instruídos a decorar listas de palavras. Após estudá-las, os participantes jul-
62 Anais do XIII SevFale

gavam, em experimento, se as palavras apresentadas haviam sido vistas durante a sessão


de estudos ou não. O estudo concluiu que, para os sujeitos de pesquisa, julgar palavras
pertencentes a uma categoria estudada foi mais custoso cognitivamente do que julgar
palavras pertencentes a categorias não estudadas. Ou seja, os participantes agruparam
as palavras mentalmente em suas respectivas categorias, o que dificultou a identificação
de itens não estudados, caso estes itens fossem membros prototípicos dessas categorias.
Estes resultados apontam para a intrincada relação entre os membros de uma categoria,
onde a seleção de um item prototípico, implicaria maior dificuldade na retomada de outro.
Esta relação de inibição-seleção de informações fortemente conectadas, onde a
seleção de uma leva à inibição de outra, foi também detectada nos estudos de Weber
e Cutler (2004). As autoras verificaram que, em uma tarefa com participantes bilíngues,
onde o idioma usado leva, inevitavelmente à inibição daquele não utilizado, que a reto-
mada do idioma inibido gerava alto custo de processamento para os sujeitos de pesqui-
sa. Quando a língua materna, que é geralmente a língua dominante, é a língua suprimi-
da, o efeito é ainda maior, pois sua inibição demanda mais esforço cognitivo, não apenas
para suprimir, mas também para reativar.

3.1 METÁFORA

Lakoff e Johnson (1980) postularam uma teoria, conhecida como Teoria da Me-
táfora Conceitual, a qual prevê que as metáforas sejam parte da forma como conceitu-
alizamos o mundo. Ao nos utilizarmos de algo mais concreto (veículo) para falar de algo
mais abstrato (tópico), criamos mapeamentos que podem licenciar diversas expressões
em uma dada língua. O mapeamento TEMPO É DINHEIRO, por exemplo, nos permite
compreender o uso de itens lexicais relacionados ao veículo (DINHEIRO) para nos refe-
rirmos ao tópico (TEMPO). Ou seja, essa metáfora é licenciadora de expressões como
‘perder tempo’, gastar tempo’, ‘desperdiçar tempo’, etc.
De forma complementar, surgiu na década de 1990, a Teoria da Inclusão de Clas-
ses (GLUCKSBERG; KEYSAR, 1990), a qual prevê a criação de categorias durante o proces-
samento metafórico. Segundo os autores, a associação entre um tópico e um veículo cria
uma categoria funcional, a qual tem como integrante o tópico ao qual o mapeamento se
refere. Assim, uma metáfora como O COMPUTADOR É UMA LESMA criaria, no momento
de sua interpretação, uma categoria imediata, a qual incluiria diversas coisas que tam-
bém possam ser comparadas a lesmas.
A fim de avaliar a Teoria da Inclusão de Classes, Gernsbacher et al. (2001) con-
duziram experimentos que testassem a premissa de que o processamento de metáforas
O Controle Inibitório Humano: entre o Linguístico e o Não-Linguístico 63

evocaria a categoria funcional. Para tanto, os autores hipotetizaram que o processamen-


to metafórico se utilizaria de mecanismos de “destaque” e “supressão”, uma vez que
a categoria funcional emergente causaria, respectivamente, um efeito de priming5 em
sentenças que evocassem o mesmo sentido, e um efeito de dificuldade no processamen-
to em sentenças que retomassem o sentido literal do veículo. Os resultados encontrados
pelos autores corroboram esta hipótese: verificou-se que os participantes deste estudo
tiveram efeitos de facilitação ao processar sentenças relacionadas à metáfora que as
precedia, bem como maior custo no processamento de informações literais ligadas ao
veículo. Esse trabalho nos permite perceber os diferentes tipos de processos mentais em
que o controle inibitório está envolvido e abre portas para novas investigações acerca do
processamento da linguagem não-literal.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O controle inibitório se constitui como uma das funções executivas responsáveis


pelo processamento de informações, juntamente com a memória de trabalho e o con-
trole atencional. Essa capacidade de suprimir informações, a fim de sermos capazes de
processar outras, não é exclusivamente linguística, visto que fazemos uso dela mesmo
em tarefas mais simples, ou mesmo consideradas banais, no dia a dia. Seu uso, no entan-
to, vem sendo associado a efeitos de bilinguismo, ao qual cientistas acreditam estar as-
sociado e o qual acredita-se ser um dos meios de melhorar nossa capacidade cognitiva.
Além disso, é possível que seu uso esteja também presente no processamento de
linguagem metafórica, que se utilizaria, então, deste mecanismo de supressão para pro-
cessar apenas a informação necessária ao contexto, seja ela metafórica ou literal (GER-
NSBACHER et al., 2001). Assim, faz-se importante perceber que não apenas em bilíngues
e plurilingues, mas também em monolíngues, o uso de funções executivas gerencia o
processamento informacional.
Percebe-se então que, a partir da investigação com bilíngues tardios que adqui-
riram sua L2 majoritariamente em contexto de instrução formal no Brasil, seria preciso
atenção nos tipos de perfis de bilinguismo a serem investigados, pois poderá resultar em
conclusões equivocadas, uma vez que não há homogeneidade na competência linguística
de duas ou mais línguas, nem na experiência bilíngue de cada indivíduo. Dessa forma,
é fundamental identificar o tipo de bilinguismo, verificando, por exemplo, o início e o

5 Efeito de priming refere-se ao efeito de se processar uma determinada informação mais facilmente, uma vez que
se tenha sido exposto a algo que tenha contribuído para torná-la mais pré-potente. Assim sendo, o efeito de faci-
litação se dá em decorrência da pré-ativação causada pela informação anterior.
64 Anais do XIII SevFale

contexto de aquisição da L2; a imersão no ambiente sociolinguístico da L2; se há inibição


da L2; o uso de L2 e a performance do indivíduo nessa língua. Um outro exemplo expe-
rimental é com participantes adultos tendo imersão nas tarefas, acarretando a diluição
do efeito do bilinguismo sobre as funções executivas: quanto maior a capacidade de
memória de trabalho, menor a demanda conceitual, maior a rapidez processual e maior
automatização precoce se comparados com indivíduos com menor capacidade de me-
mória de trabalho. Como ter, então, uma amostra relativamente homogênea para gerar
conclusões não-equivocadas e generalizadas se cada indivíduo apresenta experiências
bilíngues distintas? Poderia ser um outro questionamento a ser considerado pelo pes-
quisador no campo do bilinguismo durante a condução de seus estudos experimentais.

REFERÊNCIAS

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DADOS DO PB SOBRE TEORIA DA MENTE
DE SEGUNDA ORDEM E AQUISIÇÃO DE
LINGUAGEM

Thuany Teixeira de Figueiredo - UNICAMP

Resumo: Tratamos neste trabalho da relação entre linguagem e Teoria da Mente de segunda or-
dem. Trabalhamos com crianças em período de aquisição de linguagem, de 4 a 7 anos de idade,
e adultos falantes do português brasileiro (PB). Com o suporte da Teoria Gerativa, investigamos
a hipótese da centralidade da linguagem para uma Teoria da Mente de segunda ordem. Temos
como objetivos principais (i) avançar na compreensão e discussão do que caracteriza um estado
mental de segunda ordem, (ii) e de como este nível de operação mental pode vir a se relacionar
com a linguagem. Visamos aprofundar a compreensão da interface entre o domínio de atribui-
ção de estados mentais e a faculdade da linguagem (CHOMSKY, 1998). Trabalhamos com tarefas
baseadas nas propostas que modificam a tarefa de referência deste nível (PERNER e WIMMER,
1985). As alterações procuraram simplificar as histórias originais, testar diferentes aspectos nos
desenhos experimentais elaborados, além de diminuir as demandas de processamento de infor-
mação para avaliar o impacto desses fatores no desempenho dos sujeitos. Os resultados aqui
reportados acompanham os resultados que têm sido obtidos por pesquisas com o PB e com
outras línguas para o nível de segunda ordem.

Palavras-chave: Teoria da Mente; Cognição Social; Aquisição de Linguagem.

Simpósio: Linguística - Eixo 1: Aquisição de primeira língua e aquisição de segunda língua


na infância.

INTRODUÇÃO
68 Anais do XIII SevFale

Este trabalho trata da relação entre a linguagem e o domínio cognitivo ligado à


habilidade denominada Teoria da Mente (do inglês, Theory of Mind – doravante ToM),
em termos gerais. A primeira menção do termo Teoria da Mente surgiu na década de
70 e localiza-se no trabalho de Premack e Woodruff (1978). Nele é investigada a capaci-
dade de chimpanzés manifestarem alguma compreensão em relação à vida mental, isto
é, avaliar se esses primatas conseguem atribuir estados mentais – tais como desejos e
crenças, por exemplo –, sobretudo, a de outros indivíduos. Desde então, o termo refere-
se a essa área de pesquisa que busca lançar luzes sobre a habilidade cognitiva que os
seres humanos possuem, e que parece ser compartilhada também por outras espécies,
em alguma medida, que diz respeito à existência de uma vida mental em cada indivíduo
e à interação entre essas atividades mentais.
O enfoque proposto recorta a investigação acerca da relação entre linguagem e
ToM de modo a se deter sobre a dinâmica de atribuição de estados mentais de segunda
ordem, mais especificamente, sobre os estados de ignorância e de crença falsa (CF) de
segunda ordem, e a aquisição dos respectivos verbos ligados à codificação, no português
brasileiro (PB), desses estados mentais. Classificamos os verbos em questão como: ver-
bos factivos, tais como saber, e verbos epistêmicos como achar, no sentido de pensar,
acreditar e supor.
Com o suporte da teoria gerativa, iremos investigar com base em de Villiers
(2005) e Hollebrandse, Hobbs, de Villiers e Roeper (2008) a hipótese de que a linguagem
desempenha um papel central na atribuição de estados mentais de segunda ordem.
Iremos observar se essa hipótese defendida para a atribuição de estados mentais de
primeira ordem também se verifica para o nível de segunda ordem. Para tanto, trabalha-
remos com diferentes tipos de tarefas na atividade experimental com o intuito de testar
a influência de diferentes aspectos no desempenho das crianças, incluindo a linguagem.
Iremos analisar os dados obtidos pelas pesquisas que trabalham com crianças adqui-
rindo o português brasileiro e, mais especificamente, tratam da aquisição dos aspectos
semânticos e sintáticos de verbos factivos e epistêmicos. Com isto, nossos objetivos prin-
cipais são: (1) avançar na compreensão e discussão do que realmente caracteriza um
estado mental de segunda ordem, (2) e de como este nível de operação mental pode vir
a se relacionar com a linguagem.
Metodologicamente, trabalhamos com tarefas baseadas nos trabalhos de (1)
Sullivan, Zaitchik e Tager-Flusberg (1994), que visam modificar a proposta experimental
para estados mentais de segunda ordem de Perner e Wimmer (1985), e de (2) Coull, Le-
ekam e Bennett (2006), que avalia a influência do estado mental de ignorância de segun-
da ordem para a compreensão do estado de crença falsa de segunda ordem, testando
Dados do PB sobre teoria da mente de segunda ordem e aquisição de linguagem 69

o pressuposto de que o estado mental de ignorância seria menos complexo em termos


representacionais e, logo, seria compreendido anteriormente ao estado de crença falsa
de modo que a compreensão do primeiro poderia desempenhar um efeito facilitador
para a compreensão do segundo.
As tarefas foram aplicadas com adultos e com crianças de 4 a 7 anos, intervalo
etário importante para a observação dos fenômenos de estados mentais de segunda
ordem. As diferenças na constituição dos tipos de tarefa estão relacionadas às diferen-
tes propostas experimentais previstas para cada uma. Com base nas características de
cada estado mental que selecionamos e dos verbos em que são codificados, junto às
características de cada tipo de tarefa, em termos mais gerais, as seguintes previsões são
feitas: espera-se avaliar se o estado mental de ignorância de segunda ordem, codificado
no verbo factivo saber, é dominado pelas crianças brasileiras antes do estado mental de
crença falsa de segunda ordem, codificado através do verbo achar; avaliaremos também
se as tarefas que apresentam modificações com o intuito de reduzir demandas de pro-
cessamento concentram melhores resultados que a tarefa com desenho experimental
padrão; além disto, espera-se observar melhor desempenho das crianças, em geral, con-
forme o avanço da idade.

TEORIA DA MENTE DE SEGUNDA ORDEM E LINGUAGEM

Os principais trabalhos que agregaram contribuições e problematizaram qual se-


ria o papel da linguagem para o desenvolvimento de uma Teoria da Mente, visando
compreender qual o caráter da relação entre esses domínios cognitivos, estabeleceram-
se na década de 90. O principal campo de discussão teórica envolvendo esses domínios
tem sido entre o ramo da Psicologia do Desenvolvimento e a Linguística, com esta última
produzindo trabalhos que possuem enfoque, principalmente, com origem nas áreas de
sintaxe, semântica e pragmática. É importante frisar que apesar das diversas pesquisas
que têm mapeado esse diálogo e as suas hipóteses, diferentes também têm sido os en-
tendimentos sobre a relação entre esses dois domínios, pois ainda é possível questionar
qual e como se dá a influência que a linguagem pode ter para o desenvolvimento da
capacidade cognitiva de atribuição de estados mentais.
Claramente, este cenário que leva em consideração a relação entre linguagem
e Teoria da Mente diz respeito ao desenvolvimento e aquisição de linguagem em seres
humanos. É importante apontar que este é um cenário posterior ao surgimento das
propostas de pesquisa que giram em torno do que conhecemos como ToM, que ga-
nha contornos específicos no final da década de 70. Estas primeiras pesquisas possuíam
70 Anais do XIII SevFale

como interesse avançar no conhecimento em relação à cognição animal, desenvolvendo


propostas experimentais relacionadas ao que na Psicologia diz respeito aos estudos so-
bre inteligência.
Com o intuito de articular a perspectiva psicológica de desenvolvimento da ToM
e o processo de aquisição de estruturas linguísticas, a proposta de de Villiers (2005)
apresenta-se como um ponto de encontro teórico. A proposta em questão denomina-se
determinismo linguístico e tem sido encarada como a principal hipótese que articula o
desenvolvimento da ToM a uma teoria linguística. O enfoque das discussões do deter-
minismo linguístico tem residido no estado mental de crença falsa e a sua relação com
a aquisição de verbos epistêmicos e de comunicação. Esta proposta tem influenciado
muitas pesquisas e tem sido investigada por diversos trabalhos que testam a hipótese
formulada visando lançar luzes sobre a possível dinâmica existente entre linguagem e
ToM, e que também explicitam o alcance e os limites dessa perspectiva determinista.
As pesquisas sobre ToM debruçam-se sobre, principalmente, dois níveis de
atribuição de estados mentais: os de primeira e os de segunda ordem. A atribuição
de estados mentais de primeira ordem é o nível sobre o qual temos mais pesquisas
disponíveis, inclusive no Brasil, sobretudo acerca do estado de crença falsa. Os esta-
dos classificados como de primeira ordem assim os são pois, a princípio, apresentam
demandas linguísticas e psicológicas (processamento e memória) menos custosas, ao
contrário dos estados de segunda ordem, que parecem demandar maior complexida-
de representacional e de processamento. Os experimentos realizados tendo em vista
os dois níveis têm procurado testar a compreensão acerca de intenções, desejos, cren-
ças (verdadeiras e falsas), conhecimento (ou a falta dele = ignorância), sentimentos,
entre outros.
O recorte do nosso trabalho consiste em investigar a atribuição de estados men-
tais de segunda ordem, mais especificamente, a atribuição de ignorância e crença falsa.
Neste nível de segunda ordem – ou higher order mental states –, as questões colocadas
sobre a relação com a linguagem e a atribuição de primeira ordem permanecem, além
de somarem-se outros pontos à discussão. Questões relacionadas à representação re-
cursiva de estados mentais se fazem presentes, sendo necessário discutir aspectos como
recursividade e pontos de vista (VILLARINHO, 2012). Neste âmbito, a reflexão acerca
desde nível de atribuição de estados mentais implica, certamente, a interação das vidas
mentais dos indivíduos que, por sua vez, são fundamentais para a plena interação social
entre os seres humanos.
Dados do PB sobre teoria da mente de segunda ordem e aquisição de linguagem 71

Em Perner e Wimmer (1985), temos um dos principais paradigmas sobre ex-


perimentos com estados mentais de segunda ordem. Neste trabalho, os seis experi-
mentos realizados com crianças de 5 a 10 anos procuraram observar diversos aspectos
da atribuição de estados mentais de segunda ordem para compreender o que carac-
teriza um raciocínio de segunda ordem propriamente dito, e quais são as estratégias
usadas para atingi-lo. Os principais estados mentais estudados foram conhecimento,
ignorância e crença falsa, através da tarefa do sorvete (ice-cream story) e de versões
modificadas dela.
Em termos gerais, os resultados e a discussão apontam que crianças a partir dos
6 anos de idade conseguem empregar um raciocínio de segunda ordem. Poucas modifi-
cações tiveram efeito significativo de influência no desempenho das crianças, sendo des-
tacadas a ajuda para memória e a apresentação de uma segunda história para reforçar o
entendimento. Outras propostas têm sido apresentadas para se trabalhar com estados
mentais de segunda ordem, porém, a tarefa do sorvete continua sendo uma referência
metodológica para este nível de atribuição de estados mentais.
O trabalho de Perner e Wimmer (1985) incorpora na sua argumentação um de-
senvolvimento do questionamento sobre interação social e atribuição de estados men-
tais, já abordado nos estudos do nível de primeira ordem. Os autores explicam que a
interação social envolve uma interação entre mentes, e que esta interação só está de-
vidamente ocorrendo quando um indivíduo está realmente engajado em um raciocínio
que busca refletir sobre o que outro indivíduo possa estar refletindo.
Com base no cenário descrito acima e tendo como referência esta proposta ex-
perimental para pesquisar estados mentais de segunda ordem, desenvolvemos o expe-
rimento que relatamos a seguir.

ATIVIDADE EXPERIMENTAL

A atividade experimental foi desenvolvida com base na hipótese da centrali-


dade da linguagem na atribuição de estados mentais de segunda ordem. As diferen-
ças na constituição dos tipos de tarefa utilizados estão relacionadas às diferentes
propostas experimentais previstas para cada uma. O experimento que realizamos
agrega novos dados sobre o desempenho de crianças em tarefas de atribuição de
crença falsa de segunda ordem, inclusive porque utilizamos um desenho experimen-
tal diretamente baseado em Perner e Wimmer (1985), uma vez que as pesquisas
com PB sobre crença falsa de segunda ordem têm utilizado outros desenhos. Além
disto, nosso experimento traz para a discussão de Teoria da Mente e PB dados dire-
72 Anais do XIII SevFale

tos sobre ignorância de segunda ordem, estado mental pouco estudado e debatido
pelas pesquisas brasileiras.
A atividade foi realizada com base em duas propostas experimentais: (1) a de
Sullivan, Zaitchik e Tager-Flusberg (1994) e (2) a de Coull, Leekman e Bennett (2006).
Tendo em vista que estados mentais de desejo, intenção e ignorância têm sido con-
siderados estados cuja demanda representacional é distinta, isto é, mais simples,
Sullivan, Zaitchik e Tager-Flusberg (1994) investigaram a compreensão dos estados
de ignorância e crença falsa de segunda ordem, realizando modificações na proposta
original de Perner e Wimmer (1985) para este nível. As alterações tiveram como ob-
jetivo simplificar as histórias originais e diminuir as demandas de processamento de
informação para avaliar o impacto desses fatores no desempenho das crianças. Com
isto, resultaram histórias mais curtas e com determinadas características tornadas
mais evidentes, tais como a presença explícita de contextos enganosos que foram
salientados, perguntas de sondagem de compreensão e de controle, linguístico e de
memória, ajuda para memória foram adicionadas, além de que um pedido de justi-
ficativa foi acrescentado após o final da pergunta de crença falsa de segunda ordem
de modo que fosse possível analisar o raciocínio utilizado pela criança que conduziu
à resposta dada.
A tabela 1 sistematiza todas as tarefas com as quais trabalhamos e as suas res-
pectivas características. Portanto, todas as histórias se baseiam no modelo alterado de
tarefa de segunda ordem proposto em Sullivan, Zaitchik e Tager-Flusberg (1994), sendo
que cada tipo descrito acima testa um aspecto diferente: a tarefa 1 consiste no modelo
padrão de história da nossa pesquisa, contendo já todas as alterações citadas anterior-
mente, contendo duas versões e dois vídeos para cada uma delas; a tarefa 2 compreende
modelos de histórias reduzidas, chamada de tarefa modificada, com menos demandas
em termos de personagens, cenários e duração, além de apresentar as perguntas-teste
de modo mais direto do que a tarefa padrão, para que possamos analisar o impacto
desses fatores de composição do desenho experimental no desempenho dos participan-
tes, contendo quatro versões e quatro vídeos para cada uma delas1; por fim, a tarefa 3
pretende testar se a presença de estímulo linguístico na narração das histórias interfere
no raciocínio para atribuição de estados mentais de segunda ordem, além de oferecer
a possibilidade de seleção de imagens como mecanismo de resposta, contendo duas
versões e dois vídeos para cada uma delas.

1 As versões 3 e 4 da tarefa 2 reproduzem exatamente as mesmas histórias das versões 1 e 2, porém, visam testar o
aspecto da compreensão conceitual e, por isso, apenas se diferem porque não apresentam a pergunta de ignorância
antes da pergunta de crença falsa.
Dados do PB sobre teoria da mente de segunda ordem e aquisição de linguagem 73

Tabela 1: resumo das informações dos tipos de tarefas

Nome da
Tipo de tarefa Número Versão Duração Composição
história
A história de 4 personagens
Padrão 1 1 João e Maria 5 minutos 4 cenários
(sorvete) 4 episódios
4 personagens
Vamos jogar
Padrão 1 2 5 minutos 4 cenários
futebol?
4 episódios
O aniversário 3 personagens
de Pedro 3 minutos e
Modificada 2 1 1 cenário
(cachorrinho 40 segundos
de aniversário) 4 episódios

Comer 3 personagens
4 minutos e
Modificada 2 2 chocolate é 1 cenário
5 segundos
muito bom 4 episódios
O aniversário 3 personagens
Modificada –
de Pedro 3 minutos e
sem pergunta de 2 3 1 cenário
(cachorrinho 20 segundos
ignorância 3 episódios
de aniversário)
Modificada – Comer 3 personagens
3 minutos e
sem pergunta de 2 4 chocolate é 1 cenário
49 segundos
ignorância muito bom 3 episódios
Narração
sem estímulo 4 personagens
Onde está o 4 minutos e
linguístico + 3 1 3 cenários
gato verde? 52 segundos
seleção de 4 episódios
imagem
Narração
sem estímulo A fuga do 4 personagens
linguístico + 3 2 passarinho 5 minutos 3 cenários
seleção de azul 4 episódios
imagem
74 Anais do XIII SevFale

METODOLOGIA

PARTICIPANTES

Para o grupo controle, recrutamos 20 adultos que tiveram o PB como língua ma-
terna. O recrutamento de indivíduos foi feito independentemente de origem dialetal.
Como fator sociolinguístico, todos os indivíduos tinham acima de 18 anos e possuíam
ensino médio completo, ensino superior completo ou em formação2. Para o grupo expe-
rimental, tivemos o número total de 55 crianças contabilizadas, em processo de aquisi-
ção do PB. Esses sujeitos foram agrupados em subgrupos de acordo com as respectivas
faixas etárias: A) 4 anos; B) 5 anos; C) 6 anos; D) 7 anos. As crianças foram recrutadas
em quatro escolas de ensino básico, da rede pública e da rede privada, das cidades de
Campinas e Jundiaí, do Estado de São Paulo.

MATERIAIS

As atividades foram realizadas através da apresentação dos oito vídeos que foram
elaborados para cada história. Os vídeos foram apresentados para os sujeitos através de
um tablet Samsung de 10.1 polegadas ou em um notebook Samsung de 16 polegadas
com o auxílio de uma caixa de som. Além disto, os personagens das histórias foram im-
pressos em papel e colados em palitos de sorvete, para que os participantes pudessem
também manipular e brincar com esse material durante a atividade.

DESIGN E PROCEDIMENTO

As histórias foram apresentadas pela pesquisadora como uma brincadeira na


qual seria preciso adivinhar o que acontece com os personagens e que diferentes
perguntas seriam feitas após o final de cada episódio. As perguntas-teste eram as
duas últimas de cada vídeo, sendo referentes aos estados mentais de ignorância e
de crença falsa de segunda ordem. Ao final da pergunta-teste de crença falsa, era
pedida uma justificativa para que ficasse claro o raciocínio do sujeito. Todas essas
informações eram anotadas em um formulário e as sessões também eram regis-
tradas com um gravador de áudio. Posteriormente, as respostas foram tabuladas e
sistematizadas para análise.

2 Todas as atividades foram realizadas com a devida autorização do Comitê de Ética em Pesquisa da Unicamp. O
número do CAAE: 66633117.6.0000.5404.
Dados do PB sobre teoria da mente de segunda ordem e aquisição de linguagem 75

Cada tipo de pergunta possui uma expectativa de resposta, portanto, as respostas


obtidas foram tabuladas de acordo com três propostas de codificação: resposta conver-
gente (1), resposta divergente (0) e resposta fora de contexto (2), isto é, esta última seria
a resposta que não diz respeito a nenhuma informação veiculada pela história contada
e que, por isso, é considerada como descontextualizada. No que tange à aplicação dos
testes, a distribuição dos indivíduos foi feita em relação a quatro cenários possíveis, ten-
do em vista: a variável condição, que se refere à presença ou ausência da pergunta de
ignorância; e a variável ordem, que se refere à sequência de apresentação das histórias
de acordo com o tipo de cada uma e as suas versões. Portanto, temos como variáveis3:

• Independentes: idade, condição, ordem, sexo.


• Dependentes: respostas-alvo para as perguntas-teste.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A seguir, reportamos os resultados dos grupos controle e experimental. Como va-


lor mínimo (threshold) para as perguntas-teste, utilizamos o valor de 75% como indica-
dor do domínio das habilidades analisadas. Os gráficos 1, 2 e 3 referem-se à comparação
dos resultados percentuais dos grupos controle e experimental, por tarefa.
Em perspectiva comparativa, para a atribuição do estado mental de crença falsa de
segunda ordem, podemos observar que há um aumento progressivo e constante nas ta-
xas de acertos conforme avança a idade das crianças do grupo experimental. Interessante
notar que para este estado mental, configura-se uma curva crescente bastante regular, em
formato de “escada”, para os resultados do grupo experimental. Para o grupo controle, a
menor taxa registrada para este estado mental é de 79% na tarefa 1 (versão 1), e para o
grupo experimental, é de 12% também na tarefa 2 (versão 4), para as crianças de 4 anos.
Para o estado de ignorância de segunda ordem, fica visível que as taxas de acertos são
bastante altas para o grupo controle, que atinge 100% de acertos em quase todas as tarefas,
e também para o grupo experimental. Este estado apresenta a taxa de 100% de acertos já
para as crianças de 5 anos na tarefa 3 (versão 1), sendo que as crianças de 4 anos atingem a
alta taxa de 81% de acertos, também na tarefa 3 (versão 1). A menor taxa registrada para este
estado mental é de 50% para as crianças de 4 anos na tarefa 2 (versão 1 e 2).

3 Tarefa ou tipo de tarefa não foi incluída como uma variável independente na análise aqui realizada. Esclarecemos
que não consideramos tarefa como uma variável devido ao desenho do experimento e às demandas da análise
estatística que foi realizada para esta pesquisa.
76 Anais do XIII SevFale

Destacamos os resultados das crianças de 7 anos. Para a crença falsa de segunda


ordem, a menor taxa de acertos das crianças de 7 anos (55%, tarefa 3 – versão 1) é mais
alta que a menor taxa registrada para as outras idades do grupo experimental (12% - 4
anos, tarefa 2 – versão 4; 37% - 5 anos, tarefa 2, versão 1; 50% - 6 anos, tarefa 1 – versão
1 e tarefa 3 – versão 1). Pontuamos que os desempenhos deste subgrupo e do grupo dos
adultos se assemelham bastante, em geral.

Gráfico 1: resultados comparados dos grupos controle e experimental para a


tarefa 1

Gráfico 2: resultados comparados dos grupos controle e experimental para a


tarefa 2*
Dados do PB sobre teoria da mente de segunda ordem e aquisição de linguagem 77

*Para a pergunta de ignorância de segunda ordem, seguem os valores de n refe-


rentes às versões 1 e 2 da tarefa 2: para 4 anos, n = 8, para 5 anos, n = 8, para 6 anos, n
= 7, para 7 anos, n = 6, para os adultos, n = 10.

Gráfico 3: resultados comparados dos grupos controle e experimental para a


tarefa 3

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O que pudemos verificar através do experimento realizado, de acordo com os obje-


tivos estipulados que reportamos, consiste em: a) as crianças brasileiras testadas compre-
endem o estado mental de ignorância de segunda ordem a partir dos 4 anos de idade; b)
as crianças brasileiras testadas compreendem o estado mental de crença falsa de segunda
ordem a partir dos 5 anos de idade; c) a variável idade foi a única que observamos ter um
efeito estatisticamente significativo para as respostas dos grupos testados; d) os resulta-
dos se mostram compatíveis com a ideia de que há uma relação entre os estados mentais
de segunda ordem, de acordo com o aspecto da compreensão conceitual, porém, essa
relação não é observada igualmente para todas as faixas etárias do grupo experimental e
nem para todas as histórias que compõem a tarefa que testa esse aspecto; e) o desenho
experimental com as características de ausência de estímulos linguísticos na narração das
histórias e opção de seleção de imagens demonstraram produzir um efeito de facilitação
no desempenho das crianças testadas. Os resultados aqui reportados acompanham os
resultados que têm sido obtidos por pesquisas com o PB e com outras línguas.
78 Anais do XIII SevFale

REFERÊNCIAS

CHOMSKY, N. (1998). Linguagem e mente. Brasília: Editora UnB.


COULL, G. J.; LEEKAM, S. R.; BENNETT, M. (2006). Simplifying Second‐order Belief
Attribution: What Facilitates Children’s Performance on Measures of Conceptual
Understanding?. In: Social Development, v. 15, n. 2, pp. 260-275.
DE VILLIERS, J.G. (2005). Can Language Acquisition Give Children a Point of View?. In:
Why language matters for theory of mind. Astington, J. W. e Baird, J. A. (eds.). New York:
Oxford University Press.
HOLLEBRANDSE, B.; HOBBS, K.; DE VILLIERS, J.; ROEPER, T. (2008). Second order
embedding and second order false belief. In: Language Acquisition and Development,
Proceedings of GALA 2007.
PERNER, J.; WIMMER, H. (1985). ’John thinks that Mary thinks that…’ attribution of
second-order beliefs by 5-to 10-year-old children. In: Journal of experimental child
psychology, v. 39, n. 3, pp. 437-471.
PREMACK, D.; WOODRUFF, G. (1978). Does the chimpanzee have a theory of mind?. In:
Behavioural and Brain Science, 1, pp.515-526.
SULLIVAN, K.; ZAITCHIK, D.; TAGER-FLUSBERG, H. (1994). Preeschoolers can attribute
second-order beliefs. In: Development Psychology, v. 30, nº 3, pp. 395-402.
VILLARINHO, C.N. (2012). Um papel para a língua no desenvolvimento de habilidades
cognitivas superiores: o traço de ponto de vista em estruturas completivas e o domínio
de crenças falsas. Tese de doutorado (Doutorado em Linguística). Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro - Rio de Janeiro.
LITERATURA
O Mistério das Letras Pensantes:
Clarice Lispector para Crianças

Alex Keine de Almeida Sebastião - UFMG

Resumo: Trata-se de delinear alguns traços característicos da escrita de Clarice Lispector classifi-
cada como infanto-juvenil. O trabalho concentra-se sobre o livro O Mistério do Coelho Pensante,
primeira obra para crianças publicada por Clarice, em 1967. A singularidade da escrita de Clarice
Lispector mostrou-se presente também na estreia junto às crianças. Além de não se oferecer
uma moral da história, o fim não traz uma solução para o mistério. Procura-se examinar alguns
pontos que sustentam essa singularidade, desde a origem espontânea da construção textual,
relacionada ao contexto da maternidade, até a marca da autora que se derrama por toda sua es-
crita, indiferente a eventuais classificações de gêneros literários. Ao longo da história, a criança é
convidada a pensar, a formular perguntas e a se exercitar na invenção de respostas. Para tanto, o
texto não recorre à onisciência, frequente em histórias infantis, apostando na fragmentação da
narrativa e no tom próximo à oralidade. Pouco a pouco, evidencia-se a importância da sustenta-
ção da pergunta e do não saber como motor da fabulação e da vida. O livro acaba, mas o mistério
permanece. O que se procura transmitir ali não é bem um enredo, mas sim uma experiência.

Palavras-chave: Literatura infantil; Clarice Lispector; O mistério do coelho pensante.

Simpósio: Literatura - Eixo 2 – Infância como provocação teórica: escrever sobre


infância, escrever para a infância.
82 Anais do XIII SevFale

A relação de Clarice Lispector com a infância pode ser abordada a partir de pers-
pectivas diversas. Pode-se partir da infância da própria escritora em Recife, passar pela
infância de seus filhos, pela presença da infância em sua obra destinada ao público adulto,
até chegar a sua contribuição no campo da literatura infantil. De certo modo, todas essas
perspectivas se comunicam e revelam algo do laço entre Clarice escritora e Clarice criança.
Apesar de recusar a divisão da literatura em gêneros, Clarice Lispector fazia uma
clara distinção entre sua escrita destinada ao público adulto e aquela destinada ao pú-
blico infantil. Em entrevista concedida ao programa Panorama da TV Cultura, de 1º de
fevereiro de 1977, Júlio Lerner pergunta: «É mais difícil você se comunicar com o adulto
ou com a criança?». Ao que a escritora responde: «Quando eu me comunico com criança
é fácil porque eu sou muito maternal. Quando eu me comunico com adulto, na verdade,
estou me comunicando com o mais secreto de mim mesma, aí é difícil1”. O contraste en-
tre sua produção para adultos e aquela para crianças também aparece em uma crônica
publicada no Jornal do Brasil, onde lemos:
Ganhei o troféu da criança-1967, com meu livro infantil O Mistério do Co-
elho Pensante. Fiquei contente, é claro. Mas muito mais contente ainda ao
me ocorrer que me chamam de escritora hermética. Como é? Quando es-
crevo para crianças, sou compreendida, mas quando escrevo para adultos
fico difícil? Deveria eu escrever para os adultos com as palavras e os sen-
timentos adequados a uma criança? Não posso falar de igual para igual?
Mas, oh, meu Deus, como tudo isso tem pouca importância2.

A acusação de hermetismo incomodava Clarice e ela invoca seu troféu da criança


para rechaçá-la. A polêmica é logo relegada a segundo plano, como questão de somenos
importância. O que importa mesmo é a escrita, independente do leitor a que se destina.
No caso de Clarice, escrever para crianças reunia duas de suas grandes paixões: a ma-
ternidade e a literatura. Difícil colocá-las em uma mesma balança, mas a mãe-escritora
não se esquivou de fazê-lo quando confrontada com a pergunta sobre o que mais lhe
importava, se a maternidade ou a literatura. Ela mesma nos conta: “O modo imediato de
saber a resposta foi eu me perguntar: se tivesse que escolher uma delas, que escolheria?
A resposta era simples: eu desistiria da literatura. Nem tem dúvida que como mãe sou
mais importante do que como escritora3”.
Clarice Lispector publicou três livros para crianças, quais sejam: O mistério do coe-
lho pensante, de 1967; A mulher que matou os peixes, de 1968; e A vida íntima de Laura,

1 LISPECTOR. Entrevista a Júlio Lerner no Programa Panorama da TV Cultura, edição de 01/02/1977.


2 LISPECTOR. Hermética? In: LISPECTOR. A descoberta do mundo, p.79.
3 LISPECTOR. A entrevista alegre. In: LISPECTOR. A descoberta do mundo, p.60.
O Mistério das Letras Pensantes: Clarice Lispector para Crianças 83

de 1974. Após sua morte, foram publicados: Quase de verdade, em 1978; e Como nasce-
ram as estrelas, em 1987. Ao todo, são cinco livros. Em todos eles, os bichos não apenas
se fazem presentes, como são os protagonistas da história. A presença singular dos ani-
mais nos textos de Clarice foi destacada por sua fortuna crítica, constituindo, também,
tema de trabalhos acadêmicos. Eis um ponto em que a literatura infantil da escritora se
aproxima de sua produção para adultos. Há, entretanto, uma nuance a ser registrada: nos
livros infantis a tematização do animal é intensificada, de modo que ele deixa de ser mero
figurante e passa a ser o eixo que sustenta a construção do enredo. Essa intensificação
não é gratuita, se pensarmos que o texto clariceano parece fazer ressoar o chamado que
vem desde os confins do humano, lá onde a criança e o animal brincam e nos convidam a
um devir-outro. Como nota Nilson Fernandes Dinis: “Se ‘tornar-se criança’ é a forma que
permite ao narrador clariceano afastar-se da hegemonia do olhar adulto, ‘tornar-se bicho’
é também um dispositivo que permite afastar-se da hegemonia do mundo racional do
humano, é tentar aproximar-se da vida de uma forma mais direta e instintiva4”.
Neste trabalho, iremos nos deter no primeiro livro infantil publicado por Clarice:
O mistério do coelho pensante. O texto se inicia com uma nota introdutória em que a
escritora se aproxima do leitor para esclarecer o contexto de nascimento do livro e para
sugerir o modo de leitura. Ficamos sabendo ali que a história foi criada para atender ao
“pedido/ordem” do filho Paulo e, também, para homenagear dois coelhos que perten-
ceram aos filhos de Clarice. Tratando-se de livro infantil, sua história deve ser não so-
mente lida, mas, sobretudo, contada por um adulto a uma criança. Travestido de pedido
de desculpas, a escritora passa ao adulto leitor o encargo de dar vida ao livro, de trans-
formar a história em conversa. Ela observa: “Como a história foi escrita para exclusivo
uso doméstico, deixei todas as entrelinhas para as explicações orais. Peço desculpas a
pais e mães, tios e tias, e avós, pela contribuição forçada que serão obrigados a dar5”.
A oralidade que se pede ao contador da história já se faz presente no próprio
texto, construído como um relato de Clarice a seu filho Paulo. O nome de Paulo aparece,
inclusive, com certa frequência ao longo do texto ocupando a função de vocativo. Ao
contador com um mínimo de habilidade cabe fazer a adaptação e substituir o nome im-
presso pelo nome de seu ouvinte efetivo. Ainda na nota introdutória, a escritora destaca
a parte oral da história como sendo o melhor dela e acrescenta: “Conversar sobre coelho
é muito bom. Aliás, esse ‘mistério’ é mais uma conversa íntima do que uma história. Daí
ser muito mais extensa que o seu aparente número de páginas. Na verdade só acaba
quando a criança descobre outros mistérios6”.

4 DINIS. Perto do coração criança: uma leitura da infância nos textos de Clarice Lispector, p.105.
5 LISPECTOR. O mistério do coelho pensante, n.p.
6 LISPECTOR. O mistério do coelho pensante, n.p.
84 Anais do XIII SevFale

Junto à oralidade, emerge a metalinguagem, na medida em que o texto inclui a re-


flexão sobre seu próprio estatuto literário. Entre a história e a conversa, o livro não se limita
ao conteúdo de suas páginas. O enredo é um ponto de partida para dar início à conversa,
cuja extensão é imprevisível. Ao longo do texto, além do estilo peculiar a Clarice, “pode-se
reconhecer também um procedimento nitidamente moderno: a fragmentação e a diluição
da narrativa, sempre postergada, o que exige ostensivamente a participação do leitor a
quem o narrador se dirige com frequência, explicando o que narra e fazendo perguntas7”.
Essa frequente interpelação do leitor é outro ponto comum entre os livros infan-
tis e alguns livros adultos de Clarice Lispector, em especial aqueles de sua fase tardia,
como Água viva e Um sopro de vida. O texto adquire um tom dialógico que, no caso
da obra destinada ao público infantil, configura uma estratégia para promover a apro-
ximação e o enlaçamento do interesse do jovem leitor. Em contraposição ao narrador
onisciente, bastante comum nas histórias infantis, Clarice se coloca lado a lado do leitor,
adotando um ponto de vista parcial, em que o saber é sempre precário, objeto de uma
busca constantemente renovada. Como observaram Maria Lajolo e Regina Zilberman:
Talvez o escritor infantil que primeiro e com mais empenho tenha trazido para
a narrativa infantil os dilemas do narrador moderno seja Clarice Lispector.
Suas obras para crianças abandonam a onisciência, ponto de vista tradicional
da história infantil. Esse abandono permite o afloramento no texto de todas as
hesitações do narrador e, como recurso narrativo, pode atenuar a assimetria
que preside a emissão adulta e a recepção infantil de um livro para crianças8.

Em O mistério do coelho pensante, o protagonista é um coelho muito branco cha-


mado Joãozinho. Ninguém imaginava que ele pudesse ter algumas ideias. Entretanto,
mexendo bem depressa o nariz, ele conseguia pensar ideias. Apesar de ter o nariz rápi-
do, sua cabeça era lenta: “para conseguir cheirar uma só ideia, precisava franzir quinze
mil vezes o nariz9”. Ou seja, para pensar o coelho não podia dispensar seu corpo. Um
certo movimento corporal produzia uma certa atividade na cabeça, mas essa relação
entre corpo e mente não era linear. Se pensar exigia do coelho muito trabalho, havia a
possibilidade de ser recompensado pelo pensamento, como nesta passagem: “- Puxa, eu
não passo de um coelho branco, mas acabo de cheirar uma ideia tão boa que até parece
ideia de menino! / E ficou encantado. A ideia que tinha cheirado era tão boa quanto o
cheiro de uma cenoura fresca10”. A abstração inerente à atividade de pensar é tempera-

7 LAJOLO et ZILBERMAN. Literatura infantil brasileira: história & histórias, p.155.


8 LAJOLO et ZILBERMAN. Literatura infantil brasileira: história & histórias, p.154.
9 LISPECTOR. O mistério do coelho pensante, n.p.
10 LISPECTOR. O mistério do coelho pensante, n.p.
O Mistério das Letras Pensantes: Clarice Lispector para Crianças 85

da pela materialidade do movimento do nariz que lhe serve de motor, bem como pela
associação ao sentido olfativo. Uma ideia não é somente pensada, mas também cheira-
da e quando boa, pode evocar uma cenoura fresca.
A boa ideia de Joãozinho era fugir da gaiola sempre que lhe faltasse comida. Mas
o problema estava em como colocar isso em prática, visto que ele não conseguia pas-
sar pelos vãos da grade nem levantar o tampo. “Durante dois dias Joãozinho franziu e
desfranziu o nariz milhares de vezes para ver se cheirava a solução. E a ideia finalmente
veio. / Dessa vez, Paulo, foi uma ideia tão boa que nem mesmo criança, que tem ótimas
ideias, pode adivinhar11”. Além de ter tido outra boa ideia, que consistia no modo de sair
da gaiola, o coelho passou à atividade e saiu pela calçada afora. Seus donos o persegui-
ram e o prenderam novamente.
Qual terá sido a solução encontrada por Joãozinho para conseguir fugir? A afir-
mação de que nem mesmo criança pode adivinhar é uma primeira provocação, uma isca
oferecida à curiosidade do pequeno ouvinte da história. A narradora dá seguimento a
essa estratégia ao observar: “Você na certa está esperando que eu agora diga qual foi o
jeito que ele arranjou para sair de lá. / Mas aí é que está o mistério: não sei!12”. Em um
mesmo movimento, a criança é desafiada a resolver o enigma trazido pela história, en-
quanto o adulto narrador ou leitor se oferece para sustentar uma posição de não saber.
Abre-se a possibilidade de uma outra relação entre a criança e o adulto, diversa da rela-
ção usual em que o adulto detém o saber que falta à criança.
“Que é que você acha que Joãozinho fazia quando fugia?13”, pergunta-nos a nar-
radora, oferecendo a seguir algumas hipóteses que funcionam como um convite ao ou-
vinte a também formular as suas próprias. Após a escolha de uma resposta, pode-se dar
seguimento a ela como um caminho que passa a ser trilhado pela imaginação. É o que
acontece no seguinte trecho:
Às vezes penso que fugia para ver a namorada dele. A namorada era uma coe-
lha muito da enjoada e muito da caprichosa, que vivia dizendo para Joãozinho:
- Se você não vier me ver, eu te esqueço.
Era mentira, porque ela adorava o coelho dela, mas com esse truque a coelha
ia arrumando a vida dela. Não era por maldade que ela dizia isso para Joãozi-
nho, mas natureza de coelha é assim. E o modo de coelha gostar é um modo
sabido. Aliás quase toda natureza de namorada se parece um pouco14.

11 LISPECTOR. O mistério do coelho pensante, n.p.


12 LISPECTOR. O mistério do coelho pensante, n.p.
13 LISPECTOR. O mistério do coelho pensante, n.p.
14 LISPECTOR. O mistério do coelho pensante, n.p.
86 Anais do XIII SevFale

As hipóteses se sucedem: pode ser que Joãozinho fuja para namorar, ou


para fazer carinho em seus muitos filhinhos, ou ainda, para ficar olhando as coisas e
pensando sobre o mundo. Sustentar o não saber vale como ingresso que dá acesso ao
mundo da imaginação. Abandonar o desejo de verdade envolvido na ideia da solução
como resposta única de um enigma permite o exercício da invenção. Se num primeiro
momento, trata-se de conquistar o leitor-ouvinte através do lançamento de uma ques-
tão e do convite para resolvê-la, em seguida, o exercício que se propõe é sustentar a
questão, tomada como motor da atividade de fabular.
Para pensar e imaginar há que se passar por uma libertação. Libertação do coelho
que escapa das grades do cativeiro, libertação da criança leitora que escapa das grades
das respostas prontas e do conhecimento a ser consumido como um objeto entre ou-
tros. Pode-se aprender muito com os livros, inclusive que as experiências mais impor-
tantes não são aquelas que estudamos, mas sim aquelas que vivenciamos. No caso de
Joãozinho, várias escapadas aconteciam apenas para olhar o mundo ao seu redor. “Nes-
sa hora é que virava mesmo um coelho pensante. Foi olhando as coisas que seu nariz
adivinhou, por exemplo, que a Terra era redonda. / Só há dois modos de descobrir que
a Terra é redonda: ou estudando em livros, ou sendo feliz. Coelho feliz sabe um bocado
de coisas15”.
A história avança e a narradora insiste: “Bem, Paulo – mas eu continuo a lhe per-
guntar o seguinte: como é que o coelho branco saía de dentro das grades?”. A pergunta
aparece como fio condutor do texto em que o mistério se apresenta como algo, simulta-
neamente, a ser e a não ser desvendado.
Paulinho, essa é uma verdadeira história de mistério. É uma história tão mis-
teriosa que até hoje não encontrei uma só criança que me desse uma res-
posta boa. É verdade que nem eu, que estou contando a história, conheço a
resposta. O que posso lhe garantir é que não estou mentindo: Joãozinho fugia
mesmo16.

Ao confessar seu não saber, a narradora invoca ainda uma verdade, em seu senti-
do comum, a verdade de ignorar. Ao garantir a veracidade da história – “Joãozinho fugia
mesmo” -, a narradora aponta para uma verdade outra, que já não se opõe à mentira,
nem se deixa delimitar por ela. A história construída pela imaginação não é real, mas
nem tampouco, constitui uma mentira. O registro literário apresenta como um de seus
traços singulares, justamente, escapar ao domínio binário de verdade-mentira.

15 LISPECTOR. O mistério do coelho pensante, n.p.


16 LISPECTOR. O mistério do coelho pensante, n.p.
O Mistério das Letras Pensantes: Clarice Lispector para Crianças 87

Ao final do livro, a narradora relata seu próprio fracasso em conseguir resolver


o mistério. Ela nos conta que fica franzindo o nariz bem depressa para ver se conse-
gue pensar como um coelho e, então, encontrar a resposta. Todavia, o resultado não
foi aquele esperado: “Quando franzo o nariz, em vez de ter uma ideia, fico é com uma
vontade doida de comer cenoura. E isso, é claro, não explica de que modo Joãozinho
farejou um jeito de fugir das grades17”. O perigo de errar é inerente ao ato de pensar.
Experimentar, tanto no pensamento quanto na vida, pressupõe a assunção de uma
dose variável de risco. Até onde se consegue ir, somente se descobre indo. Destaca-se
mais o movimento, o percurso, do que o resultado, o ponto de chegada. Nesse senti-
do, a narradora passa o bastão à criança para que leve adiante a história, ao continuar
sustentando a pergunta. O livro acaba, mas o mistério não. Tem-se uma ponte lançada
ao mundo cuja descoberta caberá ao leitor-ouvinte fazer de modo autônomo, cami-
nhando com seus próprios pés e pensando com sua própria cabeça, ou melhor, com
seu próprio nariz:
Se você quiser adivinhar o mistério, Paulinho, experimente você mesmo fran-
zir o nariz para ver se dá certo. É capaz de você descobrir a solução, porque
menino e menina entendem mais de coelho do que pai e mãe. Quando você
descobrir, você me conta. Eu é que não vou mais franzir meu nariz, porque já
estou cansada, meu bem, de só comer cenoura18.

Essa breve leitura de alguns fragmentos de O mistério do coelho pensante parece


ser suficiente para percebermos a vivacidade da produção infantil clariceana. Produção
essa que pode cativar até mesmo alguns adultos, como aqueles referidos por Clarice em
sua crônica Uma experiência ao vivo19, adultos capazes de permitir que a criança que
cada um carrega consigo possa se engajar na história. Cabe ainda destacar que a inova-
ção trazida por Clarice Lispector no campo da literatura infantil brasileira das décadas
de 1960-1970 permanece atual; especialmente, quando consideramos que o convite ao
pensamento e à imaginação, além de não envelhecer, torna-se ainda mais oportuno em
tempos políticos conturbados.

17 LISPECTOR. O mistério do coelho pensante, n.p.


18 LISPECTOR. O mistério do coelho pensante, n.p.
19 LISPECTOR. Uma experiência ao vivo. In: LISPECTOR. A descoberta do mundo, pp.305-306. A crônica foi publicada
no Jornal do Brasil de 15 de agosto de 1970 e está reproduzida ao final deste trabalho.
88 Anais do XIII SevFale

REFERÊNCIAS

DINIS, Nilson Fernandes. Perto do coração criança: uma leitura da infância nos textos de
Clarice Lispector. Tese (doutorado). Faculdade de Educação, UNICAMP. Campinas, 2001.
LAJOLO, Marisa et ZILBERMAN, Regina. Literatura infantil brasileira: história & histórias.
São Paulo: Ed. Ática, 1985.
LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
LISPECTOR, Clarice. Entrevista a Júlio Lerner no programa Panorama da TV Cultura, edição
de 1º/02/1977. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=ohHP1l2EVnU>.
Acesso em 24 de maio de 2018.
LISPECTOR, Clarice. O mistério do coelho pensante. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
O Mistério das Letras Pensantes: Clarice Lispector para Crianças 89

UMA EXPERIÊNCIA AO VIVO

Antes de ter submetido meu livro de história infantil ao editor


João Rui Medeiros, da José Álvaro Editora, fiz um teste com uma
criança de cinco anos, outra de sete, outra de dez e a quarta de
12 anos, todas reunidas num só grupo. A leitura foi feita por um
amigo meu que lê bem. Minha história sobre um coelho pensante
tocou as quatro idades de modo diverso, e a leitura era frequen-
temente interrompida por sugestões e perguntas. A menina de
cinco anos, que era mais linda que o coelho, interessou-se estri-
tamente pelo mistério da fuga do animal. Interrompeu o ledor
para dizer-lhe em segredo ao ouvido que o coelho tinha patas
tão fortes que levantava sozinho o tampo de ferro de sua casi-
nhola e o recolocava no lugar. Passou depois dias desenhando
coelhos, e um deles saiu tão bom que foi pendurado no quadro-
negro, e de honra, da escola. O menino de sete anos andava na
época com problemas, tanto que a mãe recebia recados da pro-
fessora da escola de que ele andava revoltado. Logo no início da
história, interrompeu com desdém: ‘Esse coelho é de papel e usa
óculos’. Ora, ele é que estava ultimamente usando óculos, e tam-
bém identificando a falsidade de sua situação com a ideia de um
coelho meramente de papel. O menino de dez anos ouviu com a
maior atenção e deu várias soluções, todas viáveis e inteligentes,
para a fuga do coelho. O menino de 12 anos nada falou: era o
filho da empregada e não ousava manifestar-se. Seus olhos po-
rém brilhavam e de vez em quando ele trocava sorrisos com o
menino de dez anos. Para mim valeu por uma noite de autógra-
fos mais real que as reais: a comunicação se fez, sentimo-nos
unidos pelo coelho pensante, pelo calor mútuo, pela liberdade
sem medo. Esqueci que eu escrevera a história e entrei comple-
tamente no jogo. O que também aconteceu com outros adultos
presentes. As noites de autógrafos deviam ser assim.
Extremamente Alto e Incrivelmente Perto: o
Trauma na Perspectiva Infantil no Romance de
Jonathan Safran Foer

Bernardo Ferrara - UFMG

Resumo: Em seu romance Extremamente Alto e Incrivelmente Perto, Jonathan Safran


Foer mistura três narrativas: a do Oskar e a de seus avós paternos. Oskar, uma criança
de 9 anos, tem o seu mundo revirado com a inesperada morte de seu pai, uma das víti-
mas dos ataques de 11 de setembro. Baseando nas definições de Transtorno de Estresse
Pós-Traumático (TSPT) de Bessel van der Kolk e Alisic et alli, acredito que Oskar sofra de
TSPT, o que faz com que ele reviva constantemente o momento que ele descobriu que
seu pai estava nas Torres Gêmeas e a sua perda, o que faz com que ele fique com “botas
pesadas”. Em seu livro Out of the Blue, Kristiaan Versluys defende que Oskar e sua famí-
lia estão tão traumatizados que eles não conseguem se comunicar e expressarem suas
perdas entre si. Um ano após a morte de seu pai, ao encontrar uma chave misteriosa,
Oskar acredita que essa é a única chance de se conectar novamente com o seu pai e sai
em uma busca secreta pelo significado dessa chave. Esse artigo, um recorte da minha
dissertação de mestrado, discute um pouco sobre a forma que o pequeno Oskar proces-
sa o seu trauma.

Palavras-chaves: Trauma, infância, TSPT, 11 de setembro.

Simpósio: Literatura e Infância – Eixo 2: Infância como provocação teórica: escrever


sobre infância, escrever para a infância.
92 Anais do XIII SevFale

1. INTRODUÇÃO

Em seu romance Extremamente Alto e Incrivelmente Perto1, Jonathan Safran Foer


(2006) conta a história da família Schell depois dos ataques terroristas em 11 de setem-
bro, 2011. A narrativa é contatada através de três personagens, cujas falas são interca-
ladas a cada capítulo. O personagem principal é o pequeno Oskar Schell, de 9 anos, que
tem o seu mundo revirado após a morte de seu pai que estava em uma das torres no
que ele chama de “o pior dia”. Um ano após a morte de seu pai, ao vasculhar o armário
de seu pai, Oskar acha um vaso no topo da última prateleira. Ao tentar alcança-lo, ele
se desequilibra e cai, trazendo consigo o vaso que quebra e revela um envelope com o
nome Black escrito e uma chave dentro. Determinado a achar o significado dessa chave,
Oskar acredita que em sua busca, ele se aproximará de seu pai na esperança de sentir
menos a falta dela, assim como provar o amor que ele tem pelo o seu pai.
As outras duas narrativas se dão através da perspectiva dos avós paternos de
Oskar, que são dois imigrantes alemães que perderam tudo durante o bombardeio de
sua cidade natal Dresden durante a Segunda Guerra Mundial. Apesar de relevantes para
a obra, essas duas narrativas não serão o foco de discussão desse texto, no qual irie apre-
sentar um pouco sobre a minha pesquisa em desenvolvimento no Mestrado.

2. PESQUISA

A ideia da minha pesquisa veio depois do meu período como intercambista na


Albert-Ludwigs-Universität Freiburg, através do programa de intercâmbio acadêmico da
DRI (Diretoria de Relações Internacionais) da UFMG, o Minas Mundi. Durante o meu
semestre na Alemanha, uma das disciplinas cursadas foi The USA after 9/11, na qual dis-
cutimos representações literárias, cinematográficas e culturais após e sobre os ataques
e uma das obras analisadas foi justamente o romance de Foer.
Ao retornar à UFMG e ao concluir a graduação em Letras, resolvi discutir um
pouco mais sobre esse tema, porém, com a ideia de fazer um paralelo desse romance,
escrito por um autor americano, com uma obra escrita por uma autora árabe-america-
na. Após algumas pesquisas e leituras preliminares, escolhi a obra Once in a Promised
Land: a novel2 (obra inédita no Brasil), da autora libanesa-americana Laila Halaby (2008).

1 A edição da obra usada na escrita desse artigo é da editora Penguin e a obra está em seu idioma original (inglês).
Portanto, todas as citações da obra são traduções livres do autor e a paginação pode não ser a mesma da edição
brasileira.
2 Uma vez em uma terra prometida: um romance (tradução livre).
Extremamente Alto e Incrivelmente Perto: o Trauma na Perspectiva Infantil no Romance de Jonathan Safran Foer 93

A discussão, portanto, sendo desenvolvida no meu mestrado é sobre a ideia de “vitima”


e “vitimador” através das representações e experiências traumáticas nas obras de Foer e
Halaby. Porém, o foco desse artigo não será na discussão da minha hipótese de pesquisa
da minha dissertação, mas sim na discussão de como Oskar, personagem da obra de
Foer, lida com o trauma de ter perdido o seu pai tão abruptamente, assim como breve-
mente debater os mecanismos que ele cria para expressar, ou não, as suas angústias e
sentimentos.

3. METODOLOGIA

Por se tratar de um estudo literário, a metodologia é basicamente teórico-literá-


ria. Durante a escrita do capítulo abordando a obra de Foer, trechos do romance rele-
vantes aos meus argumentos foram destacados. Utilizei-me também dos trabalhos de
autores como Eva Alisic et alli, Ilka Saal, Bessel van der Kolk, Victor Jeleniewski Seidler,
Kristiaan Versluys, entre outros. Tais trabalhos abordam tanto a questão do trauma, mais
especificamente em relação ao Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TSPT), assim
como questões de como o trauma é representado através da linguagem, como a obra
retrata o trauma, como o trauma é formado, entre outros aspectos importantes.

4. DISCUSSÃO

Neste artigo, comentarei sobre três aspectos da minha discussão sobre obra de
Foer que julgo serem os principais na minha análise de como Oskar lida com a morte de
seu pai e os efeitos que tal experiência traumática tem na vida de uma criança de apenas
9 anos.
Para ajudar a entender melhor como Oskar lida com a morte de seu pai, é necessá-
rio também citar o aspecto psicológico de sua reação aos eventos de 11 de setembro. Atra-
vés de um viés mais médico, Alisic e outros citam em seu artigo a definição da Associação
Americana de Psiquiatria3 de Transtorno de Estresse Pós-traumático (TSPT) como sendo
caracterizada por sentimentos opressivos de reexperienciar os eventos traumá-
ticos (por exemplo: pesadelos e pensamentos intrusivos), por evitar estímulos e
entorpecimento emocional (por exemplo: evitar os lugares relativos ao evento
e se sentir isolado dos outros), e por sintomas de hiperestimulação (por exem-
plo: dificuldades em se concentrar e hipervigilância) (ALISIC, 2011, p.737)

3 American Psychiatric Association


94 Anais do XIII SevFale

Esse conceito é de extrema importância, uma vez que ele lida com um espectro
de possíveis representações de sinais de TSPT, o que eu acredito são extensamente pre-
sentes na vida do Oskar. Alisic e outros vão além e defendem que as crianças respondem
diferentemente de adultos ao mesmo evento traumático, o que nos ajuda a entender
melhor a incapacidade do Oskar de entender como a sua mãe, de certa forma, aparenta
estar tão sensata em relação à morte de seu marido e simplesmente desenvolve uma
amizade com o Ron, um homem cuja esposa também faleceu nos ataques. Os autores
também mencionam que as crianças “dependem profundamente de como os seus pais
lidam com estresse” e que como elas ajustam aos seus traumas em relação aos seus
ambientes está diferentemente relacionado com como os seus pais lidam com a mes-
ma situação (ALISIC, 2011, p.737). Essa dissonância no luto cria uma grande tensão na
relação filho-mãe entre Oskar e sua mãe, o que o leva a crer que ela não sente falta de
seu marido, assim como ela não chora por sua morte, o que faz com que Oskar deseje
que a sua mãe estivesse nas Torres Gêmeas e não o seu pai, resultando em um extremo
distanciamento entre eles.
O professor Bessel van der Kolk complementa o conceito de TSPT citado acima
ao dizer que TSPT é “uma enfermidade na qual a memória do evento traumático chega
a dominar a consciência das vítimas, exaurindo suas vidas de significado e prazer” (VAN
DER KOLK, 2000, p. 7). Ele compartilha das ideias descrita por Alisic e outros quando
eles dizem que o TSPT possui um elemento recorrente, no entanto, ele vai além e suge-
re que “ao contrário do real trauma, que teve um começo, meio e fim, os sintomas do
TSPT possui uma característica atemporal”. Ademais ele afirma que essas repetições e
características atemporais são aterrorizantes e previnem um indivíduo de lidar com o
presente (VAN DER KOLK, 2000, p. 9).

4.1. A INCOMPREENSÍVEL DIMENSÃO DO TRAUMA

No dia que o Oskar chama de “o pior dia”, assim que ele chegou em casa da
escola, ele escutou a primeira de uma série de mensagens que o seu pai deixaria na se-
cretária eletrônica. As outras próximas quatro mensagens seriam deixadas no espaço de
duas horas, até exatamente às 10:22:27, quando Thomas, o pai de Oskar, deixaria a sua
última mensagem. Apesar de estar em casa, ele não teve coragem de atender a última
ligação de seu pai, na qual ele repetia a pergunta “você está aí?” A mensagem seria in-
terrompida no mesmo momento em que a Torre Norte do World Trade Center caia. Foi
precisamente nesse momento que a vida de Oskar mudou completamente.
No início da obra, Oskar é descrito como uma criança extremamente inteligente
e com interesses muito mais variados e complexos do que de uma criança de nove anos.
Extremamente Alto e Incrivelmente Perto: o Trauma na Perspectiva Infantil no Romance de Jonathan Safran Foer 95

Ele se descreve como pacifista, inventor, designer de joias, ourives, entomologista ama-
dor, francófilo, vegano, astrônomo amador, entre outras “profissões” (FOER, 2006, p.99).
Porém, após a perda de seu pai, Oskar começa a perder alguns de seus interesses, muito
devido à incessante busca pelo significado da chave encontrada no armário de seu pai.
Como uma forma de “silenciar” a sua mente que insiste em relembrar os ataques
e o força a escutar as mensagens deixadas por seu pai e a se machucar, Oskar entra em
ciclos nos quais a sua mente inventa incessantemente. Ele, por exemplo, inventa um
terno revestido com sementes para pássaros, dessa forma, caso tivéssemos um acidente
(como os ataques), nós simplesmente vestiríamos os nossos ternos e vários pássaros
viriam e estaríamos salvos, uma vez que as aves, ao se envolverem nos ternos, levar-nos-
-iam a um lugar seguro. Ele também inventa uma chaleira que cantaria músicas, como a
dos Beatles (algo que seu pai adorava fazer), ou que você poderia configurar para que ela
falasse na voz de uma pessoa amada. Uma outra invenção seria um prédio cujo elevador
não te levaria para cima ou para baixo do prédio; ao invés, ele elevaria ou desceria o pré-
dio como um todo. Dessa forma, em caso de incêndio, o prédio iria descer ou subir andar
por andar até o nível da rua e todos poderiam sair facilmente do edifício em segurança.
Em sua grande maioria, Oskar inventa objetos que poderiam ser usados para garantir a
segurança das pessoas em casos de emergência ou que pudessem fazê-lo se sentir mais
próximo de seu pai. Dessa forma, ele tentar inventar formas para que o seu pai também
pudesse estar seguro.
Um ano após os atentados, Oskar ainda tem dificuldades de fazer várias ativida-
des corriqueiras e do dia a dia (algumas por razões mais óbvias do que as outras), como
andar de elevador, utilizar o transporte público, tomar banho, germes, aviões, fogos de
artifício, sapatos, pessoas com bigode, árabes (apesar dele afirmar que ele não é racista),
prédios altos, entre outros (FOER, 2006, p.36). Ademais, como uma forma de lidar e con-
trolar as suas dificuldades e estresse, Oskar toca o seu tamborim. Ao fazê-lo, o ritmo do
instrumento o acalma, o que Sacha Scheuren (2010) descreve como a forma que Oskar
tem de criar o “ritmo que ele perdeu após a morte de seu pai” (SCHEUREN, 2010, p.6).
A perda da sua maior referência na vida, faz com que Oskar não consiga compre-
ender o mundo ao seu redor e a única forma que ele acha para tentar entender o sen-
tindo de tudo é inventando incessantemente (pois aí sua mente não precisa pensar no
“pior dia”), machucar-se, isolando-se de sua família e buscar o significado de uma chave
que ele achou em um vaso misterioso no armário do seu pai. Ele tenta se comunicar com
a sua avó e sua mãe, porém, o pequeno Oskar não consegue criar mecanismos, muito
menos encontrar as palavras, para tal conversa. Outrossim, ao discutir a reação do Oskar
em relação ao luto, Aaron DeRosa (2011) discorda com Versluys quando este defende
que o Oskar é “emocionalmente dormente ao ponto do autismo”, ao passo que DeRosa
96 Anais do XIII SevFale

acredita que isso é uma extrema simplificação dos complexos sentimentos vividos pelo
personagem (DeROSA, 2011, p.609).
Ao longo da narrativa, pode-se perceber o trauma vivido por Oskar, e a forma
que ele lida com isso, através de uma rotina de automutilação e preservação. Por um
lado, ele se obriga a escutar repetidas vezes as últimas mensagens deixadas por seu pai;
ele se machuca; ele busca incessantemente o significado da chave e ele abandona suas
atividades pessoais, como suas aulas de francês. Por outro lado, ele quer se aproximar
de sua mãe e avó; ele quer dividir o seu fardo e suas “botas pesadas”4. Porém, ele não
sabe como comunicar essa tristeza com elas, muito menos como começar essa conver-
sa. Ademais, como Kristiaan Versluys (2009) descreve, para que possamos lidar com o
trauma, nós não temos outra escolha além de explorar os símbolos que a nossa cultura
possui. Ele também afirma que o “trauma nos leva à dormência, flahsbacks ou pesade-
los” (VERSLUYS, 2009, p.3). Oskar certamente demonstra dormência emocional ao longo
da narrativa e ao tocar repetitivamente as mensagens de seu pai, Oskar se prende num
ciclo de flashbacks, que eu diria que seriam também os seus pesadelos.
Sien Uytterschout e Kristiaan Versluys (2008) discutem a ideia que um “evento
traumático é geralmente tão violento e disruptivo (...) que ele não consegue se encai-
xar dentro das referências existentes”. Eles também discutem que devido à natureza
do evento traumático, os sobreviventes não conseguem compreender completamente
o que aconteceu, e portanto, “através do trabalho paradoxal de dissociação” eles não
conseguem processar por completo o evento em suas memórias e eles também não
conseguem removê-lo de suas memórias. Eles também mencionam o fato que a partir
de 1980, dissociação foi oficialmente reconhecida como um sintoma de TSPT (trans-
torno de estresse pós-traumático) (UYTTERSCHOUT; VERSLUYS, 2008, p.217). Oskar, ao
lutar para compreender a sua perda, demonstra claros sinais de dissociação, uma vez
que ele não compreende inteiramente o que aconteceu com ele e ao mesmo tempo, ele
não consegue esquecer.

4.2. SURTOS DE RAIVA

Em sua interna busca pelo significado da morte de seu pai, Oskar não consegue
lidar com todos os seus sentimentos. Como Uytterschout e Versluys (2008) discutem, “a
inabilidade seletiva de Oskar de testemunhar as suas experiências (traumáticas) está di-
retamente ligada com os seus surtos de raiva” (UYTTERSCHOUT; VERSLUYS, 2008, p.231).

4 Metáfora que Oskar usa para descrever o seu luto e profunda tristeza.
Extremamente Alto e Incrivelmente Perto: o Trauma na Perspectiva Infantil no Romance de Jonathan Safran Foer 97

Tais surtos não são direcionados a ninguém em especial, mais sim a todo mundo. Oskar
tem raiva do mundo por permitir que uma tragédia como a de 11 de setembro tenha
acontecido e, como resultado, por permitir que o seu pai tenha falecido, e ao mesmo
tempo, Oskar está fulo com o mundo por não compartilhar do seu luto.
Por sua vez, como anteriormente mencionado, Oskar não consegue comunicar
nem expressar o seu trauma e sentimentos e por isso, ela não compreende como a sua
mãe e a sua avó aparentam estar superando a perda de seu marido e filho, respectiva-
mente, de forma tão tranquila. Oskar acredita que é esperado que ele se sinta mal e cal-
ce “botas pesadas” pelo resto da sua vida. Ele não compreende que é normal e aceitável
passar por um processo de luto e continuar com as nossas vidas. Para ele, ao fazermos
isso, não estamos honrando a memória da pessoa amada que se foi, assim como, ao
seguirmos com nossas vidas, estaríamos demonstramos que não amamos mais aquele
ente querido.
Como ele não consegue se expressar, há momentos na narrativa na qual ele sim-
plesmente não aguenta mais segurar os seus sentimentos dentro dele e ele se torna
extremamente agressivo e ofensivo. Em outros momentos, ao invés dele simplesmente
dizer o que ele pensa, ele imagina respostas totalmente agressivas em sua cabeça e se
contenta com esse momento particular, como durante a peça da sua escola, na qual ele
era Yorick, o famoso crânio que Hamlet segura, quando ele se imagina retirando a sua
máscara/crânio de papel machê no meio da cena e a usando para bater no Jimmy Sny-
der, o bully da sua turma. Após esse surto imaginário de raiva, Oskar reflete no quanto
seria lega se ele tivesse de feito o que ele imaginara. Um outro momento no qual Oskar
imagina um surto de raiva é quando o seu terapeuta, Dr. Fein, o pergunta se haveria algo
de bom na morte de seu pai. Oskar se imagina quebrando a sala dele, xingando Dr. Fein,
mas ao invés disso tudo, ele simplesmente dar de ombros.
Porém, há uma cena na qual temos o auge dos surtos de raiva do pequeno Oskar.
Em uma determinada noite, Oskar comenta com a sua mãe que quando ele for enter-
rado ele não conseguiria morar debaixo da terra, então ele a faz prometer que ele seria
enterrado em um mausoléu. Oskar acredita que essa promessa seria a forma que sua
mãe teria de comprovar que ela o amava. Sua mãe, relutante, gostaria de encerrar esse
assunto, uma vez que ela acredita que Oskar não morrerá antes dela. Oskar responde
que o pai dele também não esperava morrer e a questiona sobre o caixão vazio que eles
enterraram. Ela diz que ela decidiu enterrar o caixão vazio pensando neles, para que eles
pudessem ter um lugar onde a memória e o espírito de seu marido viveria para sempre,
ao qual Oskar responde que a memória dele está viva em sua mente e que o seu pai não
tinha um espírito e sim células “que agora estão nos telhados e no rio e no pulmão de
milhões de pessoas ao redor de Nova Iorque, que o respiram toda vez que eles falam”
98 Anais do XIII SevFale

(FOER, 2006, p.169). No auge da discussão, Oskar perde o controle de suas emoções e
acaba dizendo que se ele pudesse escolher quem estava na Torra naquele dia, ele teria
escolhido ela.
Durante toda a cena, Oskar nos leva ao seu “livro de sentimentos”5 e ele muda o
que ele está sentindo de “DESESPERADO6” para “MEDÍOCRE” e depois para “OTIMÍSTA,
MAS REALISTA”, que vira “EXTREMAMENTE DEPRIMIDO”, o que se desenvolve para “IN-
CRIVELMENTE SOZINHO” terminando, após o auge de seu surto, em:
eu acho que acabei dormindo no chão. Quando eu acordei, minha mãe esta-
va tirando a minha blusa e colocando o meu pijama, o que quer dizer que ela
deve ter visto os meus machucados. Eu os contei ontem a noite no espelho
e eram 41. Alguns deles aumentaram, mas a maioria é pequena. Eu não os
coloco lá para ela, mesmo assim eu quero que lea me pergunte como eu os
consegui (apesar dela provalmente saber) e que ela sinta pena de mim (por-
que ela perceberia o quanto as coisas são difícies para mim) e ela se sentiria
péssima (porque parte é culpa dela) e ela me prometeria que ela não morre-
ria e me deixaria sozinho. Mas ela não disse nada. Eu nem consegui ver o seu
olhar quando ela viu os mahucados, porque a minha blusa estava cobrindo a
minha cabeça, cobrindo o meu rosto como um bolso, ou uma caviera. (FOER,
2006, p. 172-73).

Esse surto verbal e de raiva direcionado a sua mãe é em sua grande maioria, na
minha opinião, um resultado de sua inabilidade de expressar os seus sentimentos e os
comunicar com a sua mãe. Ao tentar processor o seu luto e trauma, Oskar se machuca
41 vezes, o que de acordo com Uytterschout e Versluys (2008), é a forma que o Oskar
tem de transformar “sua violência e agressão voltados a si” toda vez que ele calça botas
extremamente pesadas ou se sente bastante desapontado (UYTTERSCHOUT; VERSLUYS,
2008, p.231). Ademais, durante as suas sessões com o Dr. Fein, como mencionado aci-
ma, Oskar diz que expressar os seus sentimentos não ajudariam a ninguém, pelo contrá-
rio, fazê-lo traria ainda mais dificuldades. Portanto, ao se machucar, ele encontra uma
saída temporária para a sua raiva, dor, desapontamentos e luto sem ter que expressar
verbalmente os seus sentimentos. Outrossim, Victor Jeleniewski Seidler (2013) afirma
que Oskar é “atormentado pela culpa do sobrevivente7 (SEIDLER, 2010, p.100), o que
eu julgo ser a sua maior fonte de raiva. Oskar sente tanta raiva pela repentina morte de
seu pai que ele não consegue entender o por quê dele estar vivo, o por quê estar vivo
pode ser algo “justo” ou até mesmo, o por quê é considerado saudável processar o luto

5 Um livro no qual ele escreve e atualiza os seus sentimentos ao longo da narrativa.


6 Caixa alta mantida nas citações a seguir assim como são apresentadas na obra.
7 O autor usa o termo survivor’s guilt no texto original.
Extremamente Alto e Incrivelmente Perto: o Trauma na Perspectiva Infantil no Romance de Jonathan Safran Foer 99

e tentar ser feliz novamente sem se sentir culpado sem significar que ele não ama mais
o seu pai (ou o suficiente), ou até mesmo que ele o ame menos.

4.3. A PERDA DA LINGUAGEM

Ao discutir os aspectos da linguagem e como um evento como 11 de setembro


pode afetar a habilidade de um indivíduo de se comunicar após um evento traumáti-
co, Versluys (2009) cita James Berger, que declara que não há “nada adequado, nada
que correspondente na linguagem poderia representar” um evento dessa magnitude.
Ele também cita Jenny Edkins quando ela discute que os ataques foram algo “fora dos
limites da linguagem, fora dos mundos que nós criamos para nós mesmos” (VERSLUYS,
2009, p.2). Seidler (2010) menciona que o “11 de setembro foi um evento que era para
nunca ter acontecido, mesmo se Hollywood pudesse imaginar” os ataques, “a realidade
foi muito além da razão e imaginação” (SEIDLER, 2010, p.2). Logo, se algo é inimaginável,
impensável até, como alguém poderia começar a falar sobre tal evento, em especial uma
criança de apenas 9 anos?
Ademais, Versluys (2009) cita as ideias de Pierre Janet sobre narrativa de memó-
ria . Oskar está preso e ele não consegue se libertar de suas memorias, ao mesmo tem-
8

po que ele está preso em um ciclo interminável de invenção e relembrar/reviver a sua


experiência traumática. Além disso, o autor afirma que “um trauma é considerado como
algo incapaz de ser dito” e que quando falamos sobre o evento, isso pode ser visto como
uma “redução da sua atrocidade irredutível”, fazendo com que a experiência traumática
seja algo mais controlável (VERSLUYS, 2009, p.11). Portanto, talvez, se Oskar tivesse en-
contrado uma forma de expressar o seu trauma, a sua experiência traumática poderia
ter um efeito menos imponente em sua vida.
Outrossim, Versluys (2009) comenta que nenhuma das vozes dos três narradores
na obra (Oskar e seus avós) é normal ou até mesmo natural, uma vez que, eles estão tão
traumatizados que a comunicação e a linguagem estão estagnadas próximas de uma rup-
tura. Ademais, Ilka Saal (2011) cita Elaine Scarry ao dizer que a dor física não resiste sim-
plesmente a linguagem, mas sim a destrói ativamente. A autora também argumenta que
“a reconstrução da linguagem é portanto essencial, não apenas para o propósito de dar o
seu testemunho de dor e sofrimento, mas também para a cura”. (SAAL, 2011, p. 453).
Ao longo da narrativa podemos perceber que Oskar está preso num ciclo de cul-
pa por não ter conseguido atender o seu pai, minutos antes da queda da torre onde ele

8 Tradução livre de narrative memory.


100 Anais do XIII SevFale

estava, assim como a incessante busca pelo significado da chave (o que ele acredita ser a
forma que ele tem para se aproximar de seu pai e amá-lo), assim como a sua certeza que
ele tem que calçar “botas pesadas” pelo resto da sua vida. Ao se forçar nesse ciclo, ele
acaba não conseguindo de comunicar e portanto, não consegue processar as suas emo-
ções e sentimentos, o que o ajudaria no processo de luto, na superação do seu trauma,
resultando em “botas mais leves”.

5. CONCLUSÃO

A complexidade da forma que Oskar lida com o seu trauma é totalmente diferen-
te da forma que os seus avós paternos lidam com o luto pela morte de seu filho, como
podemos ver através de suas narrativas, assim como a sua mãe lida com a perda de seu
marido (apesar do leitor não ter acesso à narrativa da mãe do personagem). De acordo
com Saal (2011), ao longo da narrativa, pouco a pouco Oskar é capaz trabalhar e lidar
melhor com o seu trauma e consegue, mais ao final do livro, reconquistar um sentindo
maior de autoconfiança, ao contrário de seus avós, cujas vozes estão presas em uma
melancolia perpétua (SAAL, 2011, p.457). Apesar dos sofrimentos que afligem o jovem
personagem, no final da narrativa, ao descobrir o que a chave significava, por mais frus-
trante que tal descoberta fosse, Oskar consegue um certo desfecho e percebe que ele
tentou e fez o máximo que ele pode, assim como ele promete a si mesmo e à sua mãe
que ele tentará melhorar, ou seja, que ele tentará ser feliz novamente e trabalhar melhor
o seu trauma.

REFERÊNCIAS

ALISIC, Eva, et al. Building child trauma theory from longitudinal studies: a meta-analysis.
Clinical Psychology Review, v. 31, p. 738-47, 2011.
DEROSA, Aaron. Analyzing literature after 9/11. Modern Fiction Studies, v.57, n. 3, p.
607-618, 2011.
FOER, Jonathan Safran. Extremely loud and incredibly close. London: Penguin, 2006.
HALABY, Laila. Once in a promised land: a novel. Boston: Beacon, 2007.
Extremamente Alto e Incrivelmente Perto: o Trauma na Perspectiva Infantil no Romance de Jonathan Safran Foer 101

SAAL, Ilka. Regarding the pain of self and other: trauma transfer and narrative framing
in Jonathan Safran Foer’s extremely loud and incredibly close. Modern Fiction Studies,
v.57, n. 3, p. 451-476 2011.
SCHEUREN, Sascha. Trauma in Jonathan Safran Foer’s extremely loud and incredibly
close. 2010. 48f. Monografia (Bacharelado) - Friedrich-Wilhelms-Universität Bonn, 2010.
SEIDLER, Victor Jeleniewski. Remembering 9/11: terror, trauma and social theory. New
York: Palgrave Macmillan, 2013.
UYTTERSCHOUT, Sien; VERSLUYS, Kristiaan. Melancholy and mourning in Jonathan
Safran Foer’s extremely loud and incredibly close. Orbis Litterarum, v. 63, n. 3, p. 216-
236, 2008.
VAN DER KOLK, Bessel. Posttraumatic stress disorder and the nature of trauma. Dialogues
in Clinical Neuroscience, v. 2, n.1, p.7-22, 2000.
VERSLUYS, Kristiaan. Out of the blue: september 11 and the novel. New York: Columbia
University Press, 2009.
Literatura, Violência e Trauma:
Abuso Sexual Infantil no Conto Ana Rosa

Bruna Stéphane Oliveira Mendes da Silva - UFMG

Resumo: Este trabalho se propôs a analisar as marcas de violência e memória traumática pre-
sentes no conto Ana Rosa, do livro Diez Mujeres, escrito por Marcela Serrano. Entendemos que
o abuso sexual infantil não é suficientemente abordado na literatura e, consequentemente, nos
estudos literários. No entanto, consideramos que esta temática é de extrema relevância, visto
que o abuso sexual infantil incestuoso representa um imenso tabu nas sociedades, sendo cons-
tantemente silenciado. Além disso, o número de abusos sexuais praticados contra crianças, só
no Brasil, de acordo com dados do Ipea, representa cerca de 70% dos abusos registrados anual-
mente e, destes, em cerca de 56% dos casos esta violência é praticada por familiares ou amigos
da família da vítima. Logo, compreendendo a literatura como um importante mecanismo de
assimilação do real, este trabalho objetiva contribuir com a ruptura do silêncio que existe em
torno do abuso sexual infantil e alargar os estudos sobre este tema tão complexo e urgente. Para
tanto, foi realizado um estudo do conto, analisando como se deu a violência sexual; se há um
predomínio do silêncio ou ocorre sua ruptura; bem como de que forma se evidenciam as marcas
do trauma.

Palavras-chave: Abuso sexual infantil; Violência; Memória.

Simpósio: Literatura.

Vivemos cercados por inúmeros tabus aos quais raramente se escapa. Tratam-se
de proibições, relativas ao ideal de comportamento social, mas também aos assuntos
nos quais estamos ou não autorizados a tocar. Temas como o abuso sexual infantil, assim
104 Anais do XIII SevFale

como o incesto, são exemplos de comportamentos reprováveis. O que não impede que
aconteçam – e muito. É aí que se inicia o maior problema: se o comportamento inade-
quado acontece, opta-se por não se falar sobre ele. Assim, muitas famílias têm empur-
rado para debaixo do tapete o sofrimento de suas crianças, supostamente em defesa da
moral e da manutenção da estrutura familiar.
Logo, como um tabu, o abuso sexual infantil incestuoso não é suficientemente
abordado, nem no meio social, nem na literatura. Porque choca. Porque constrange. E
porque são inúmeras as famílias a ostentar um belo retrato na parede em que sorrisos
forçados sufocam várias gerações de silêncio. Mas ainda que o assunto não configure
uma pauta de grande interesse de discussão para a maioria, as estatísticas provam que
este silêncio não significa que nossas crianças têm estado livres dessa forma de violên-
cia. Muito pelo contrário: só no Brasil, de acordo com dados do Ipea (2014), cerca de
70% dos abusos registrados anualmente são praticados contra crianças e, destes, em
56% dos casos esta violência parte de familiares ou amigos da família da vítima.
Assim, dado esse enorme silêncio em torno de um tema cada vez mais urgente,
como o é a violência sexual contra crianças, e compreendendo a literatura como um
importante mecanismo de assimilação do real, trabalhos como o que se propõe aqui
parecem-nos muito necessários. Pretendemos, a partir deste estudo, contribuir com os
demais trabalhos que também se propõe a, a partir da literatura, romper com este tabu,
alargando as discussões e galgando espaços para cada vez mais avanços sociais.
Para tanto, analisaremos o conto Ana Rosa, do livro Diez mujeres, de autoria da
escritora chilena Marcela Serrano. Trata-se de uma narrativa curta em que uma mulher
rememora o abuso sexual que sofreu durante a infância, praticado pelo avô. Em sua
descrição dificultosa, vem à tona o silêncio da mãe, a repetição da violência e as mar-
cas profundas que esse trauma vivido no passado cravou em seu presente. Ao estudar
o texto, nos propomos a analisar como se deu a violência sexual, verificar se o silêncio
predomina ou é rompido no decorrer da narrativa, bem como analisar de que forma se
estabelecem as marcas do trauma a partir do relato da vítima.

METODOLOGIA E REFERENCIAL TEÓRICO

Jaime Ginzburg (2013) afirma defender enfaticamente a capacidade da literatura


de atuar contra a violência. De acordo com o autor, atualmente nos vemos cotidiana-
mente expostos a uma carga muitas vezes massiva de violência social, através da tele-
visão, dos jornais, e da internet. Diante disso, caso reagíssemos com intensidade a cada
uma dessas notícias, “nosso aparelho psíquico provavelmente não suportaria.” (GINZ-
Literatura, Violência e Trauma: Abuso Sexual Infantil no Conto Ana Rosa 105

BURG, 2013, p. 23). Nesse sentido, segundo o autor, é compreensível que a reação gene-
ralizada de parte do público às imagens de violência que recebem através da mídia seja
uma certa apatia ou torpor. Essa reação se apresenta como uma proteção contra o risco
de colapso emocional, ainda que seja também uma clara desumanização. Trata-se de
uma situação socialmente problemática, já que a sociedade tem reagido cada vez com
menos sensibilidade diante de fatos violentos.
A literatura, defende Ginzburg, se apresenta como uma forma de romper com essa
apatia, “com percepções automatizadas da realidade” (GINZBURG, 2013, p. 24), já que
Textos literários podem motivar empatia por parte do leitor para situações
importantes em termos éticos. E isso ocorre fora do circuito neurótico do rit-
mo imediatista da indústria cultural. O estudo de Yudith Rosenbaum sobre a
violência em Clarice Lispector, por exemplo, mostra que diante de um texto da
autora, que traz o personagem Mineirinho, as relações entre política e crime,
entre linguagem e conhecimento, são postas em questão, o leitor é destituído
de segurança quanto a “limites claros entre o eu e o outro, o certo e o errado,
a verdade e a falsidade” (2010, p. 178). (GINZBURG, 2013, p. 24).

Para Ginzburg, ao lermos em algum livro cenas em que um ser humano agride ou-
tro e reagimos a elas com empatia, essa reação torna-se parte de nossa formação ética
e poderá ser útil quando estivermos diante de situações reais de violência em que tiver-
mos que tomar posição. Já nossa educação estética é parte decisiva dessa nossa forma-
ção ética. Isso porque nossa interpretação das imagens artísticas ajuda a definir critérios
a partir dos quais nos relacionamos com outras pessoas e tomamos nossas decisões.
O autor defende ainda que a literatura se apresenta como um importante mecanismo
através do qual é possível “dar voz aos silenciados da história, trazer o passado para o
presente por meio da linguagem”, o que “é em si uma mudança social.” (GINZBURG,
2013, p. 106).
Ainda segundo Ginzburg, a história de hegemonia política do patriarcado está as-
sociada ao mito do pai como âncora da estrutura social. Por isso as posições de poder na
sociedade são sempre destinadas a homens, brancos, heterossexuais, pertencentes a fa-
mílias consideradas dignas, de grupos religiosos dominantes, que defendem interesses de
seu próprio grupo social. Assim, todos os indivíduos que não se enquadram nessas carac-
terísticas têm sido historicamente subordinados ao grupo dominante, detentor do poder.
A figura paterna é colocada como “bases seguras para a proteção, para garantir a
ordem e constituir as referências para o entendimento da realidade” (GINZBURG, 2013,
p. 78), e seria, portanto, mais competente para governar tanto no campo público quanto
no privado. No entanto, o autor apresenta diferentes notícias que comprovam que nem
sempre os pais protegem os filhos, muito pelo contrário, também podem ser violentos e
106 Anais do XIII SevFale

inclusive matar. Do mesmo modo, sabemos, são muitos os casos de violência praticada
por homens contra mulheres. Logo, o mito cai por terra e torna-se evidente a farsa do
patriarcado: “a figura paterna não é a base segura de proteção que deveria ser.” (GINZ-
BURG, 2013, p. 81).
As considerações de Heleieth Saffioti (2015) sobre o patriarcado estabelecem um
importante diálogo com as reflexões de Ginzburg. Para a socióloga, o termo determina
as relações homem-mulher, figurando-se não com uma acepção de poder paterno do
direito patriarcal, mas como direito sexual. Assim, nessa estrutura, os homens teriam
direitos quase irrestritos sobre o corpo feminino. Desse modo, o conceito delineia uma
modalidade hierárquica de relação entre homens e mulheres que invade todos os espa-
ços da sociedade, oprimindo a mulher com base tanto na ideologia quanto na violência.
Para Saffioti, o papel das crianças na estrutura patriarcal é também de grande
vulnerabilidade. Sua inocência, assim como sua pouca força física, contribui para torná-
-las mais vulneráveis. Nesse sentido, a socióloga ressalta que o pai biológico tende a ser
o adulto do sexo masculino em quem as crianças mais confiam. Aproveitando-se dessa
confiança, nas camadas sociais mais altas, o abuso sexual infantil incestuoso ocorre a
partir da sedução:
maior atenção para aquela filha, mais presentes, mais passeios, mais viagens,
etc. As técnicas são bastante sofisticadas, avançando lentamente nas carícias,
que passam da ternura à lascívia. Muitas vezes e dependendo da idade da
criança, esta nem sabe discernir entre um e outro tipo de carícia, sendo inca-
paz de localizar o momento da mudança. (SAFFIOTI, 2015, p. 21).

Assim, devido à pouca idade, a criança pode ser incapaz de se dar conta da vio-
lência a que está sendo submetida, o que a impede de denunciar e a torna ainda mais
vulnerável. Também o fato de o adulto abusador ser alguém em quem a criança confia,
geralmente um familiar, dificulta a percepção por parte dela de que está vivenciando
uma situação de abuso. Além disso, nestes casos em que o abuso sexual se dá a partir da
sedução, sem o uso de violência física ou ameaças, é comum que a vítima não consiga
diferenciar a agressão de manifestações legítimas de afeto.
Já nas camadas social e economicamente desfavoráveis, segundo Saffioti, a violên-
cia física e psicológica é quase sempre o meio através do qual se dá o abuso sexual infantil:
O pai coloca um revólver, na mais fina das hipóteses, ou uma faca de cozinha
junto a cama ou sobre ela, joga a menina sobre o leito, rasga-lhe as roupas e
a estupra, ameaçando-a de morte, se gritar, ou ameaçando matar toda sua fa-
mília, se abrir a boca para contar o sucedido a alguém. (SAFFIOTI, 2015, p. 22).
Literatura, Violência e Trauma: Abuso Sexual Infantil no Conto Ana Rosa 107

No entanto, Saffioti aponta que, ao contrário do que poderíamos imaginar, entre


os dois formatos em que o abuso sexual pode ocorrer, através da sedução ou da violên-
cia física, é no primeiro caso em que o sentimento de culpa experimentado pela criança
vitimada é mais recorrente, já que ela se sente cúmplice do abuso que sofreu. Por isso,
“em termos de danos psíquicos e distúrbios sexuais posteriormente manifestados, o
abuso sexual via sedução é infinitamente pior que a brutalidade do pai menos instruído
e menos maneiroso.” (SAFFIOTI, 2015, p. 27).
Além disso, Saffioti aponta que no seio das famílias abastadas o silêncio em torno
do abuso sexual infantil é maior, já que geralmente se forma ali uma grande cumplicida-
de entre os membros afim de preservar o sigilo em torno dos fatos. Isso porque observa-
se uma grande necessidade de manter as aparências, proteger a moral, não permitindo
mácula ao nome da família.
Ao conceituar trauma, Jeanne Marie Gagnebin (2006) o descreve como “a ferida
aberta na alma, ou no corpo, por acontecimentos violentos, recalcados ou não, mas que
não conseguem ser elaborados simbolicamente, em particular sob a forma da palavra,
pelo sujeito.” (GAGNEBIN, 2006, p. 110). O que explica que, por um lado, muitas vítimas
de situações extremas de violência vivenciem a experiência traumática cotidianamente
e, por outro, encontrem grande dificuldade para transforma-la em relato. Afinal, “só o
que não termina, o que dói, fica na memória”, pois “o próprio corpo traz em si as marcas
da memória, o corpo é memória.” (ASSMANN, 2011, p. 263-264). A dor experimentada
no corpo – física ou simbólica – crava-se na memória e perdura, mesmo depois que a si-
tuação de violência se encerra, e dificulta o relato. Desse modo, Aleida Assmann (2011)
afirma que “o trauma é a impossibilidade de narrar”, já que, “transforma diretamente o
corpo em uma área de gravação e, com isso, priva a experiência do processo linguístico
e interpretativo.” (ASSMANN, 2011, p. 283).
No entanto, apesar da dificuldade de simbolização do trauma através da lingua-
gem, tanto para Aleida Assmann (2011) quanto para Márcio Seligmann-Silva (2008) o
relato configura um importante mecanismo para elaboração do evento traumático. As-
smann destaca que uma vez ocorrida a narrativa, o sujeito já não se recorda do evento
em si, mas de sua verbalização. Isso porque, segundo a autora, os signos linguísticos
executam a função de nomes, através dos quais pode-se evocar novamente objetos e
situações. Já Seligmann-Silva caracteriza o testemunho como uma forma de saciar a “ca-
rência absoluta de narrar” (SELIGMANN-SILVA, 2008, p. 66), sentida pela vítima de algu-
ma situação extrema de violência. Segundo o autor, do testemunho depende a própria
sobrevivência da pessoa vitimada, se estabelecendo como uma ponte entre aquele que
relata e “os outros”, que o escutam, “na tentativa de resgatar o sobrevivente do sítio da
outridade.” (SELIGMANN-SILVA, 2008, p. 66). Assim, Seligmann-Silva destaca o papel de
108 Anais do XIII SevFale

grande importância exercido pelo interlocutor para a concretização do testemunho, já


que, “sem a nossa vontade de escutar, sem o desejo de também portar aquele testemu-
nho que se escuta, não existe testemunho.” (SELIGMANN-SILVA, 2008, p. 72).

RESULTADOS

O texto analisado nos traz o relato em primeira pessoa de Ana Rosa, protagonis-
ta que dá título ao conto. Nele ela vai se revelando, diante de outras pacientes de sua
psicanalista Natasha, como uma mulher triste e de baixa autoestima, profundamente
marcada pelas vivências traumáticas de sua infância que pouco-a-pouco descortina. Ali
um evento se destaca: os abusos sexuais que sofreu entre os oito e quinze anos de idade,
praticados pelo avô materno.
Considerando as formas em que comumente se dá o abuso sexual infantil discu-
tidas por Saffioti, identificamos que no caso de Ana Rosa ocorre por meio da sedução, o
que se evidencia no trecho a seguir:
él me ayudaba a hacer las tareas y después me sacaba a pasear y me compraba
helados y me presentaba a sus amigos del barrio, todos bien ociosos como él,
y rezaba conmigo todas las noches porque yo era su regalona y se miraba
en mí. Me enseñó a encumbrar volantines y a hacer barquitos de papel y a
pintar con pinceles cuando mis hermanos solo usaban lápices de colores y
sabía contar cuentos divertidos y largos y en las noches era él quien me hacía
dormir y no mi mami y yo lo prefería a él porque sus cuentos eran mejores y
tenía más paciencia. (SERRANO, 2011, p. 256).

Ana Rosa possuía uma irmã e um irmão mais novos. No entanto, o tratamento
que aparece no trecho acima era oferecido apenas a ela. A relação distante com os pais,
que trabalhavam muito e quase não podiam estar com os filhos, cria uma grande carên-
cia de afeto na menina, tornando-a mais vulnerável a sedução do avô. Sedução esta que
se intensifica até culminar com um presente ostensivo no aniversário de oito anos de
Ana Rosa – a casa da Barbie –, dia em que se iniciam os abusos.
Além da carência afetiva, também o excesso de religiosidade tornou Ana Rosa mais
vulnerável. Isto porque a protagonista indica que cresceu em uma família extremamente
religiosa e traz elementos importantes em indagações como esta: “me pregunto qué ha-
bría sido de mi si no hubiera nacido en el seno de la familia más religiosa de La Florida,
[…] donde se creía que rezando un rosario al día y respetando a los mayores se adquiriría
la salvación propia y la del mundo.” (SERRANO, 2011, p. 249). O trecho nos permite com-
preender que Ana Rosa acredita que a necessidade aprendida de sempre se respeitar os
Literatura, Violência e Trauma: Abuso Sexual Infantil no Conto Ana Rosa 109

mais velhos teria facilitado o abuso que sofreu. Afinal, a protagonista se questiona se isso
poderia não ter acontecido caso o respeito cego aos mais velhos não a houvesse impedido
de defender-se da possível violência que poderia partir deles – e partiu.
Além disso, Ana Rosa acreditava estar em débito com o avô em consequência de
toda a atenção e afeto que o homem a ofereceu, de modo que “mi deber principal era
hacer feliz al abuelo, yo le debía tanto a él que haría lo que me pidiera.” (SERRANO, 2011,
p. 262). Também o excesso de religiosidade a impulsiona a essa sensação de débito e
culpa, posto que a protagonista, ainda menina, se convenceu de que “eso es lo que Dios
pedía de mí.” (SERRANO, 2011, p. 262).
O livro Diez mujeres, em que o conto analisado se insere, está organizado de
modo que as narradoras, das quais os nomes dão título a cada conto, estariam reuni-
das compartilhando entre elas suas experiências traumáticas. Como fio condutor desses
relatos, está a presença silenciosa da psicanalista Natasha, dona da última história do
livro – descrita por sua assistente. O objetivo dessa reunião se pauta na certeza de Na-
tasha de que a ruptura com o silêncio auxilia no processo de elaboração do trauma. Esta
perspectiva é muito interessante quando a associamos às colocações de Seligmann-Sil-
va, para o qual o relato pode proporcionar certa identificação entre aquele que narra e
os que o escutam, estabelecendo-se como uma ponte capaz de resgatar o sobrevivente
da sensação que o domina de ter vivido algo singular. Se muitas delas, como no caso de
Ana Rosa, foram silenciadas e nunca encontraram alguém que as escutasse, ali podem
desfrutar dessa escuta e finalmente percebem-se no direito de exercer sua voz. Nesse
sentido, também o fato de que cada paciente de Natasha não apenas narra sua própria
história, mas também recebe as histórias das demais, é importante. Isto porque esses
relatos outros podem gerar identificação, uma vez que indicam que cada personagem,
de certo modo, compartilha das vivências uma da outra – o que pode facilitar a elabora-
ção e superação do trauma.
No entanto, percebe-se que relatar suas vivências traumáticas não é algo fácil para
Ana Rosa. Afinal, o trauma se apresenta, conforme indicam Gagneban e Assmann, como a
impossibilidade da elaboração simbólica, em especial através da narração. Assim, percebe-
mos que a personagem, quando se refere ao abuso sexual sofrido, não o faz explicitamen-
te, mas através de uma linguagem mais metafórica. Como no exemplo a seguir:
la Alicia y yo dormíamos cuando el abuelo llegó a la pieza y me despertó solo
a mí, venga la cumpleañera, me dijo y me sacó de la cama para que durmie-
ra con él, como lo hacíamos todos los días a la hora de la siesta, pero ahora
de noche. Quería seguir celebrándome. Era rosa y dura, la casa de la Barbie.
(SERRANO, 2011, p. 260).
110 Anais do XIII SevFale

A afirmação da personagem de que o avô a retirou da cama para dormir com


ele porque queria continuar celebrando-a é uma primeira pista do abuso que precede
aquele momento. A frase contém um certo sarcasmo, se considerarmos que celebra-
mos o aniversário de alguém, as conquistas que alcança, etc. e não a pessoa em si. Ce-
lebrar uma pessoa, como sugere a frase de Ana Rosa, nos remete diretamente ao cor-
po. Celebra-lo. Desfruta-lo. Ao corpo, e não a existência daquela pessoa. Uma segunda
pista encontra-se na última parte do trecho em análise. Para um leitor desatento, Ana
Rosa poderia estar mesmo referindo-se a casa da Barbie, presente oferecido a ela pelo
avô. Mas nas entrelinhas, e isto está claro, lê-se um significado completamente dife-
rente. Os adjetivos usados na frase para caracterizar o brinquedo, “rosa” e “dura”, nos
remetem rapidamente ao órgão sexual masculino, deixando explícito o abuso sexual
ali perpetrado.
Além da dificuldade de narrar, Ana Rosa também apresenta lacunas em suas re-
cordações. Por um lado, pela própria violência do trauma. Mas por outro, pela sedução
lentamente empregada pelo avô antes e durante os abusos, assim como a própria ino-
cência da menina, ainda muito pequena quando as situações violentas se iniciaram. As
lacunas referentes ao trauma aparecem em algumas reflexões de Ana Rosa, como quan-
do ela afirma que “la mente se niega a meterse en los recuerdos del alma, majadera
como un gato la mente, hace de las suyas y juega conmigo y bloquea la memoria como le
da la gana.” (SERRANO, 2011, p. 263). Aqui a personagem indica claramente que certos
detalhes lhe escapam, bloqueados entre suas recordações. Já no que se refere a lacunas
relativas a pouca idade da vítima, destacamos trecho a seguir: “Estoy convencida de que
lo que más ciega los ojos es lo familiar y por eso yo deambulé sin ver por los días y los
meses y los años, una puede quedarse pegada por mucho tiempo en la ceguera porque
lo familiar termina no viéndose.” (SERRANO, 2011, p. 263). Nele Ana Rosa demonstra ter
encontrado alguma dificuldade para compreender que estava vivenciando situações de
abuso, o que a personagem atribui a cotidianidade. Mas a escolha da palavra “familiar”,
para referir-se ao cotidiano, nos parece apontar também para uma outra percepção. A
palavra nos remete a família e, consequentemente, a confiança e cuidado. Portanto, Ana
Rosa nos fala sobre uma relação alicerçada em muito afeto, com um homem que até
aquele momento sempre havia estado ao seu lado, cuidado dela e inspirado a mais ab-
soluta confiança. E, no entanto, toda essa atmosfera vai pouco-a-pouco se modificando
e o que antes era afeto, se converte em violência. E é tudo tão delicadamente construí-
do, tão absurdamente “familiar”, que a menina se perde, se confunde.
Quando Ana Rosa, ainda criança, finalmente conclui que o que está vivendo não
é natural, encontra com dificuldade a força necessária para contar tudo a sua mãe, mas
Literatura, Violência e Trauma: Abuso Sexual Infantil no Conto Ana Rosa 111

acaba sendo ignorada por ela. A partir daí, Ana Rosa se vê silenciada, afinal, pensa: “para
qué pronunciar palabra, entonces. Sentí como si mi voz hubiese quedado olvidada en
algún hueco oscuro.” (SERRANO, 2011, p. 262). A mãe não insinua que Ana Rosa esteja
mentindo, apenas a ignora completamente, como se não se importasse. Quando o avô
está em seu leito de morte, já muitos anos depois do falecimento dos pais de Ana Rosa,
ela cria coragem e lhe pergunta porque sua mãe não a protegeu, o homem então lhe
responde: “Porque a ella le hice lo mismo.” (SERRANO, 2011, p. 268). Percebemos en-
tão a repetição do abuso. O homem violentou primeiro a filha, depois a neta. Portanto,
quando a mãe de Ana Rosa ignora a denúncia da filha, não está apenas sendo indife-
rente ou tentando preservar o nome da família, e sim revelando sua própria dificuldade
em lidar com um assunto que provavelmente lhe desperta imensa dor. Para Gagnebin,
existe um esquecimento natural, saudável, mas também algumas formas duvidosas de
esquecimento: “não saber, saber mas não querer saber, fazer de conta que não se sabe,
denegar, recalcar.” (GAGNEBIN, 2006, p. 101). Acreditamos que no caso da mãe de Ana
Rosa, o que a conduz a esse ímpeto de fingir não saber, ao invés de proteger a filha, é o
sofrimento indizível, a impossibilidade de lidar com seu próprio trauma.
Por outro lado, essa recusa da mãe de Ana Rosa a protege-la pode também carac-
terizar-se por um desejo de vingança, isto é, de reproduzir, ainda que de maneira indire-
ta, a violência que ela mesma sofreu. Isto porque, segundo Saffioti, “a vítima de abusos
físicos, psicológicos, morais e/ou sexuais é vista por cientistas como indivíduo com mais
probabilidades de maltratar, sodomizar outros, enfim, de reproduzir, contra outros, as
violências sofridas.” (Safiotti, ANO, p. 18). Essa hipótese se reforça quando consideramos
o comportamento de Ana Rosa em relação aos sobrinhos. A narradora afirma que “me
acometía una extraña y escondida tentación de tratarlos mal, de aprovecharme de su
inferioridad física y de mi autoridad sobre ellos y me gustaba su indefensión y me daban
ganas de vengarme.” (SERRANO, ANO, p. 269). Ou seja, a própria Ana Rosa apresenta o
desejo de reproduzir em outras crianças a violência que ela um dia sofreu.
Por fim, parece-nos importante destacar que Ana Rosa se apresenta como uma
personagem melancólica. Para explica-lo melhor, tomemos o conceito de melancolia
apresentado por Freud (2011), para quem ela
se caracteriza por um desânimo profundamente doloroso, uma suspensão do
interesse pelo mundo externo, perda da capacidade de amar, inibição de toda
atividade e um rebaixamento do sentimento de autoestima, que se expressa
em autorrecriminações e autoinsultos, chegando até a expectativa delirante
de punição. (FREUD, 2011, p. 47).
112 Anais do XIII SevFale

Ana Rosa demonstra intenso sentimento de culpa e uma autoestima muito baixa.
Ela conta ter decidido não se relacionar afetivamente porque acredita ser pouco atrati-
va para o sexo oposto. Também revela que possui poucas roupas e não se preocupa em
nada com sua aparência, já que não se considera uma pessoa bonita. Não nos parece
muito claro o motivo pelo qual Ana Rosa se culpa, mas acreditamos que passa por ques-
tões como a sensação de cumplicidade com seu avô, já que os abusos ocorreram por
meio da sedução; ressentimento por ter silenciado, ainda que acompanhado da inquie-
tação de que não havia com quem falar sobre o problema; e um sentimento de que ela
seria uma pessoa suja. Esta última questão poderia ser, para Ana Rosa, tanto a causa dos
abusos, quanto sua consequência, e se evidencia no trecho a seguir:
Siempre sentí que Dios no se acercaba a mí como al resto de la gente o al me-
nos como al resto de los miembros de mi familia y eso me hacía preguntarme
por la razón y la razón me llevaba de vuelta a mí misma: había algo sucio en
mí que espantaba a Dios. (SERRANO, 2011, p. 261).

O desfecho do conto coloca em evidencia o intenso sentimento de culpa de Ana


Rosa, que não pôde ser elucidado sequer por meio do relato de sua experiência traumá-
tica para sua psicanalista, nem ali, diante das demais pacientes de Natasha. E esta pista
aparece em uma frase curta, porém muito forte, em que Ana Rosa, encerrando seu rela-
to, afirma que “sólo sé una cosa, que todo lo que me ha pasado y pasará es culpa mía.”
(SERRANO, 2011, p. 272).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Constatamos, portanto, que Ana Rosa é uma personagem melancólica, pois apre-
senta sinais de que sente imensa culpa e possui uma autoestima muito baixa. Acre-
ditamos que isso se deve, claro, ao trauma proveniente do abuso sexual sofrido, mas
também de outras questões. A primeira se refere a forma como o abuso ocorreu. Verifi-
camos que o avô de Ana Rosa utilizou como mecanismo para concretizar a agressão se-
xual não a violência física, mas a sedução. Esta abordagem pode ter sido responsável por
aprofundar o sentimento de culpa da personagem, por força-la a enxergar-se, erronea-
mente, como cúmplice de seu agressor. Outra questão que pode ser responsável pela in-
tensificação do sentimento de culpa é o fato de Ana Rosa ter silenciado o abuso. No en-
tanto, como ela mesma aponta, não havia para quem relatar. Isto porque em sua única
tentativa, quando a menina resolveu contar para a mãe o que estava acontecendo, Ana
Rosa foi ignorada.
E quando a protagonista tem a oportunidade de falar, ali diante das demais pa-
cientes de sua psicanalista, ela confronta-se com a dificuldade de simbolizar a vivência
Literatura, Violência e Trauma: Abuso Sexual Infantil no Conto Ana Rosa 113

traumática. Logo, percebemos também que ainda que o silêncio de Ana Rosa, em deter-
minado momento, seja de alguma forma rompido, a personagem permanece melancó-
lica. De tal modo que termina a narrativa afirmando que tudo o que lhe aconteceu e lhe
acontecerá é culpa dela.

REFERÊNCIAS

ASSMANN, Aleida. Espaços da recordação.Trad. Paulo Soethe. Campinas, SP: Editora da


Unicamp, 2011.
FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. Trad. Mariele Carone. São Paulo: Cosac Naify, 2011.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar, esquecer, escrever. São Paulo: Ed. 34, 2006.
GINZBURG, Jaime. Literatura, violência e melancolia. Campinas, SP: Autores Associados,
2013.
IPEA (2014). Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_
content&view=article&id=21848&catid=8&Itemid=6>. Acesso em 10 de jun 2018
SAFFIOTI, Heleieth. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Fundação Popular:
Fundação Perseu Abramo, 2015.
SELIGMANN-SILVA, Márcio. Narrar o trauma – A questão dos testemunhos de catástrofes
históricas, 2008. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/pc/v20n1/05.pdf. Acesso em
25 ago. 2017.
SERRANO, Marcela. Diez mujeres. Madrid: Alfaguara, 2011.
As imagens da juventude peruana em
El goce de la piel, de Reynoso, e em Malte,
de Carmela García

Douglas Henrique de Oliveira - UFMG

Resumo: O livro El goce de la piel (2005) do escritor peruano Oswaldo Reynoso apresenta cinco
contos envolvendo Malte, um personagem misterioso com quem o narrador de cada conto se
envolve numa relação de afeto, tensão e descobrimento sexual. Nessa obra, Reynoso aponta de
maneira mais clara a temática das primeiras relações afetivo-sexuais, presente em toda sua produ-
ção literária. Esse livro, assim como outros títulos do autor, representa o adolescente de uma forma
sexualizada, curiosa e rebelde. Essas características não causaria nenhum estranhamento ao leitor,
salvo em uma sociedade conservadora, majoritariamente católica e machista. O texto de Reynoso
consagra assim, uma nova identidade imagética desse jovem na literatura do país. Partindo dessa
identidade imagética, a fotógrafa espanhola Carmela García realizou, no ano de 2011, uma série fo-
tográfica intitulada Malte, fazendo referencia direta ao personagem e à obra de Reynoso. Partindo
de uma leitura das fotografias de García, este trabalho tem como objetivo explorar a identidade da
juventude peruana proposta no livro de Reynoso e sua relação com as artes visuais.

Palavras-chave: Literataura; Fotografia; Oswaldo Reynoso; Carmela García.

Simpósio: Literatura.
116 Anais do XIII SevFale

Y AHÍ ESTABA MALTE CELEBRACIÓN FÁUSTICA DE LA PIEL

El goce de la piel, escrito por Oswaldo Reynoso e publicado pela Editorial San
Marcos no ano de 2005, retrata a adolescência a partir da descoberta dos prazeres da
pele. No primeiro dos cinco contos que compõem o livro, vemos essa descoberta por
meio da visão de um narrador que não é nomeado. Suas vivências sexuais é o que que-
bra com o projeto do pai do narrador-personagem de torná-lo sacerdote. Antes de se
dedicar a vida religiosa, o narrador-personagem viaja com a turma de seu bairro, e as-
sim, se dá o mote para as descobertas de seu corpo e do corpo do outro, dando indí-
cios de um relacionamento homossexual. A narrativa não segue uma ordem cronológica
padrão, ou seja, que não estabelece uma sucessão imediata dos fatos, nem define seus
intervalos temporais.
Cada um de seus contos se passa em um tempo e lugares distintos: Tacna, Mollen-
do, Arequipa, Lima. O único elemento que se repete perceptivelmente e invariavelmen-
te no livro é a presença do personagem chamado Malte, descrito como a encarnação da
beleza, com quem o narrador-personagem de cada conto do livro tem aproximações e,
através disso, o descobrimento sexual.
A escrita de Oswaldo Reynoso traz a temática da iniciação sexual e da rebeldia
desde suas primeiras publicações. Suas obras falam de uma geração de jovens que, até
então, não era aceita socialmente e muito menos representada nas artes. O conserva-
dorismo do povo peruano da década de 1960 fez com que sua obra Los inocentes (1961)
(obra reeditada sob o título de Lima en rock) fosse taxada, pela crítica especializada, com
advertências ao público menor de idade, ainda que exaltavam sua qualidade literária:
“Os editores de Lima en rock, o relato ‘rocanrolero’ de Oswaldo Reynoso [...] advertem
a seus leitores que esta obra, apesar de sua elevada qualidade literária, não é recomen-
dável para ‘menores de idade’”.
É interessante pensar no que faz uma obra baseada na realidade dos jovens
peruanos da época ter sua leitura não recomendada para o público de quem ela parte.
Para isso, Lara Mucci Poenaru sugere fazer uma leitura do contexto social em que o país
passava.
“O Peru era um país que passava por um período de ditadura, entre os man-
datos do General Manuel Arturo Odría Amoretti (1950 – 1956) e do civil Ma-
nuel Prado Ugarteche (1956 – 1962)”. (POENARU, Lara)

Sendo assim, o período histórico de conservadorismo em que o país vivia poli-


ticamente, refletia também no olhar conservador, tanto do público, quanto da crítica
para a temática desenvolvida por Reynoso em sua narrativa, o que atualmente é bem
As imagens da juventude peruana em El goce de la piel, de Reynoso, e em Malte, de Carmela García 117

distinto. A recepção dessa temática teve seu reconhecimento atestado pelo Ministério
de Educação do Peru em 29 de agosto de 2013, que indicou por meio de comunicado
veiculado nos jornais El comércio, El peruano e La república, a obra ‘Los inocentes’, antes
não recomendada para os jovens, como obra referência aos alunos das escolas públicas
do país matriculados na Educação Secundária (de 12 a 18 anos).
A imagem que Oswaldo Reynoso faz da juventude peruana em ‘El goce de la piel’,
está vinculada ao personagem Malte, que é descrito como a celebração fáustica da pele.
Malte é aquele quem traz a imagem de sedução ao universo do narrador-personagem,
mas não o seduz por algum aspecto físico ou por seu comportamento. Sua sedução é
inerente. Seduz porque é.
Por imagem, este trabalho parte do conceito descrito por Rancière que diz que
“a imagem não é uma exclusividade do visível. Há um visível que não produz imagem,
há imagens que estão todas em palavras”. (RANCIÈRE, 2012: p. 16) Assim, a imagem que
Malte traz ao longo dos contos está expressa em palavras que causam uma vetorização
de símbolos e seus significados. Assim, se dá a representação do jovem peruano na obra
de Oswaldo Reynoso.
Sobre o processo de criação literária dessa imagem, em seu livro Arequipa lám-
para incandescente, publicado por Aletheya em 2014, o escritor traz um trecho em que
explica a escolha da expressão ‘celebración fáustica de la piel’:
“La dinámica de la prosa sin signos de puntuación me llevó a dar el remate
con esa frase: y ahí estaba Malte en la celebración de la piel. El castellano es
un idioma de sonoridad grave, por lo tanto, no es aceptable, estéticamente,
cerrar un periodo con un monosílabo, menos, aún, un relato. Si examinamos
esta frase veremos que hay cinco monosílabos. De acuerdo con el contexto
de esta estancia, no podía remplazar la palabra piel por otra: había un
imperativo estético. […] Al final, la estancia se remató con esta frase: y ahí
estaba Malte celebración fáustica de la piel. Y esto era lo que deseaba decir:
Malte era la celebración fáustica de la piel y no Malte en la celebración de la
piel.” (REYNOSO, 2014)

Por essa passagem sobre sua criação literária, o escritor deixa clara a conceituação
e a relevância do que papel da beleza e a sedução própria de Malte influenciam na obra.

ARTES EM DIÁLOGO

Trazer o momento cultural em que Oswaldo Reynoso começa a publicar suas


obras facilita na compreensão do diálogo que estabelece com outras artes. Seu primeiro
118 Anais do XIII SevFale

livro em prosa ‘Los inocentes’ é contemporâneo às obras da chamada geração beat, en-
cabeçada por Jack Kerouac na literatura e vivida no cinema por James Dean, o chamado
“rebelde sem causa”.
A temática que Oswaldo Reynoso planta na literatura peruana ganhava for-
ma, também, com outras representações artísticas ao redor do mundo. Além disso,
em um de seus ensaios sobre as obras de Oswaldo Reynoso presentes no livro Años
decisivos de la narrativa peruana, Ricardo González Vigil ressalta que o personagem
Malte apanha várias referências do âmbito artístico e literário, como Michelangelo,
por exemplo.
Vigil denota também referências com o romance Los Cuadernos de Malte Lurids
Brigge de Rilke, no qual o nome Malte aparece. Também são mencionados os poemas de
Cernuda (p. 50), e principalmente Morte em Veneza, cujo final no mar ecoa em muitas
passagens da obra de Reynoso.
Saindo do âmbito das inspirações que Reynoso utilizou para construir sua obra e
partindo para a função inspiradora que a obra teve, destaca-se o trabalho que a fotógra-
fa espanhola Carmela García fez tendo como base a imagem descrita em palavras que
o escritor fez do personagem Malte. Trata-se de uma série de seis fotografias, realizada
no ano de 2011, cada uma traz em primeiro plano a figura masculina de um jovem que,
como a autora mesmo diz no texto de apresentação da série, ainda traz a inocência não
perdida ou estão a ponto de perder.
Para explicar a referência de seu trabalho, Carmela diz:
“El título genérico de la pequeña serie Malte, es que Malte son todos,
diferentes y siempre el mismo, Malte era la idea de belleza, la inocencia simple
y natural o cómo diría Reynoso… Y ahí estaba Malte celebración fáustica de la
piel.” (GARCÍA, Carmela. 2011)

RELAÇÃO ENTRE O MALTE DE CARMELA GARCÍA E O DE OSWALDO REYNOSO

Ainda que seja de uma forma limitante, a leitura que proponho das fotografias
de Carmela García não está para encerrar nenhuma discussão, pelo contrário, está feita
para que outras leituras possam ser feitas e outras referências possam ser atribuídas.
Este trabalho parte da análise de três fotos da série proposta por Carmela García.
A primeira foto a ser analisada aqui, intitula-se Malte I, já que Carmela não se
preocupa em distinguir as fotos dessa série por títulos, senão por uma ordem de com-
As imagens da juventude peruana em El goce de la piel, de Reynoso, e em Malte, de Carmela García 119

posição, quase de curadoria realizada pela autora para dar uma linha de sentido ao con-
junto total de sua obra.
Em Malte I, vemos um jovem de cabelos longos, vestindo uma camisa aberta e
uma cueca. A composição da foto se dá pelo fundo proporcional causado pelo papel de
parede de tons claros e detalhes de flores. A quebra da proporcionalidade causada pela
escolha dessa parede para composição se dá pela presença de Malte. O jovem não está
centralizado na imagem, ao invés de equilibrá-la, polariza. A desordem causada por sua
presença não está apenas no campo formal da fotografia, pois dá a impressão que a de-
sordem dos elementos que compõem o cenário, foi causada por Malte. A presença da
toalha e a posição da almofada retratam bem isso.
A fisionomia de Malte, nessa foto, é série e compenetrada, como se esperasse por
algo que não está no campo de alcance da foto. Vale ressaltar, que a composição domésti-
ca e os trajes vestidos pelo personagem criam o ambiente de intimidade e aproximação.
A segunda fotografia a ser analisada intitula-se Malte III. Mostra um jovem se-
minu, dormindo em sua cama. Seus cabelos também são longos e sua pele branca se
alinha com a paleta branca utilizada nessa foto. Há elementos, porém, que datam essa
foto. A presença de CDs e DVDs jogados sobre a mesa de cabeceira traz para uma atuali-
dade recente o cenário dessa foto. Se dividirmos a foto em duas, de maneira latitudinal,
vemos que em uma metade, à esquerda, há a desordem causada pelo personagem: as
almofadas caídas da cama. E à direita vê-se a presença do causador de tal desordem com
sua fisionomia calma.
Em Malte III é possível traçar uma referência artística cultural com o quadro ‘A
criação de Adão’, assinado por Michelangelo. A posição em que o personagem dorme
parece a posição que Adão está no quadro renascentista. É importante lembrar que a
intertextualidade entre a obra de Oswaldo Reynoso e o quadro de Michelangelo é aber-
tamente explorada na passagem do texto:
“Los ojos de gato de mediodía de Malte se iluminaron e su rostro se em-
belleció de asombro señalándome a un muchacho desnudo en una pos-
tura varonil que aparecía en una de las cromolitografias; me dijo ese soy
yo y de verdad que era él y volteamos la reproducción y leímos Capilla
Sixtina” (p. 18).

A terceira foto que este trabalho se propõe a analisar é a intitulada Malte IV.
Nela é possível ver um jovem de cabelos curtos e loiros, vestido de branco, olhando seu
reflexo em uma superfície espelhada. A presença da cor branca nessa foto pode trazer
ao leitor dela a sensação de pureza e inocência que o personagem provoca na obra de
Reynoso.
120 Anais do XIII SevFale

O personagem está centralizado na foto e divide a imagem em duas: o fundo


claro e seu reflexo na superfície. A fotografia traz, claramente, referências do mito
grego de Narciso. A mitologia grega conta que Narciso era uma personificação da be-
leza, assim como Malte, de Reynoso, que se apaixona pelo próprio reflexo nas águas
de um rio.
O nome Narciso, em grego, é derivado da palavra Nark que também deu ori-
gem à palavra como narcótico, referente à entorpecente. Assim, para os gregos,
Narciso simbolizava a vaidade e a insensibilidade, visto que ele era emocionalmente
entorpecido às solicitações daqueles que se apaixonaram por sua beleza. (SPINELLI,
Miguel; pp. 99).

Figura 2: Malte I Figura 1: Malte IV


As imagens da juventude peruana em El goce de la piel, de Reynoso, e em Malte, de Carmela García 121

Figura 3:Malte III

REFERÊNCIAS

REYNOSO, Oswaldo. El goce de la piel. 1ª ed. - Lima: Editorial San Marcos, 2005.
__________. Los inocentes. 1ª ed. – Lima: Editorial San Marcos, 2007.
__________. El escarabajo y el hombre. 2ª ed. – Lima: Editorial San Marcos, 2001.
VIGIL, Ricardo González. Años decisivos de la narrativa peruana. 1ª ed. - Lima: Editorial
San Marcos, 2008.
ARGUEDAS, José María. Em: Los inocentes. Estruendomundo. Lima, 2006.
122 Anais do XIII SevFale

DISCINI, Norma. O Estilo Nos Textos: história em quadrinhos, mídia, literatura. 2ª ed. –
São Paulo: Contexto, 2004.
ALVES, Júnia VIANA, Maria José. Tradução e teatro no multiculturalismo.
BARCELOS, Thatiana Vasconcelos. Cordillera Negra, de Óscar Colchado Lucio: Uma
Tradução Transculturada e Heterogênea. UFMG: 2013.
BOECHAT, Melissa Gonçalves. Mito: Tradução Cultural em Los ríos profundos, de José
María Arguedas. UFMG: 2004.
MATEDI, João Paulo. Por Uma Crítica da Tradução (ou Crítica Tradutória). Em: A Crítica
literária: percursos, métodos, exercícios. / Alexandre Moraes, Maria Amélia Dalvi, Rafaela
Scardino, organizadores. – Vitória: Ed. PPGL, 2009.
SPINELLI, Miguel. O mito de Narciso. In: O Nascimento da Filosofia Grega e sua Transição
ao Medievo. Caxias do Sul: Ed. Univ. de Caxias do Sul, 2010, p. 95ss.
GARCÍA, Carmela. Malte. Disponível em: http://www.carmelagarcia.com/malte
RANCIÈRE, Jean. O destino das imagens. São Paulo: Editora Contraponto, 2012.
Representações da Infância na
fábula Esópica Antiga

Gabriel Castilho de Andrade Gil - UFMG

Resumo: Este trabalho se propõe a realizar uma brevíssima análise de duas fábulas anônimas
atribuídas a Esopo e de uma fábula atribuída ao fabulista Fedro nas quais podem ser evidencia-
das representações da criança e da infância. Trata-se da fase seminal de uma pesquisa engajada
no entendimento dos liames entre o gênero fábula esópica, a infância e literatura infantil. A fim
de oferecer sustentação complementar para as análises, serão evocadas algumas poucas infor-
mações a respeito da tradição literária na qual os três textos e seus autores estão incluídos, bem
como algumas percepções que a antiguidade greco-romana sustentava a respeito das funções
do gênero fabular e sua relação com a educação.

Palavras chave: Fábula, Esopo, Fedro, Infância, Educação

Simpósio III - Literatura

REPRESENTAÇÕES DA INFÂNCIA NA FÁBULA ESÓPICA ANTIGA


124 Anais do XIII SevFale

O objetivo específico deste trabalho é uma reflexão de teor comparativo entre al-
gumas fábulas presentes em coleções anônimas (mas tradicionalmente atribuídas a Eso-
po) e no fabulário do autor Fedro. Tais fábulas têm como característica que as conecta a
presença da criança, seja como protagonista ou não da fábula. Trata-se de uma pesquisa
motivada pelo desejo de um melhor entendimento acerca da relação entre infância e
fábula esópica que não assuma como premissa a inclusão irrefletida e inerte da fábu-
la como uma manifestação de uma literatura infantil1. Por sua vez, a problematização
dessa associação – não se pode deixar de comentar – ocorre ciente de que há uma in-
compreensão e uma marginalização das tradições literárias que preveem a criança como
agente da recepção literária. Não é possível, contudo, um aprofundamento sobre a na-
tureza sociológica dessa opção crítica já perniciosamente enraizada na duradoura rela-
ção estabelecida entre produção, texto, recepção e, naturalmente, entre seus agentes,
sejam eles pais, críticos, autores e/ou crianças leitoras.
Cabe, nesse cenário, que se assevere dois aspectos do nosso objetivo e da nossa
motivação para atingi-lo. Primeiro, o risco em se falar de uma literatura infantil nas por-
ções da antiguidade que concebem os textos a serem analisados é simétrico à disjunção
que há entre a antiguidade e a contemporaneidade no que diz respeito às suas percep-
ções do que seja infância e público literário. Está bastante claro que há na antiguidade
um entendimento nítido das diferenças que cercam o que, na atualidade, não teríamos
dificuldade em denominar crianças e adultos. Todavia, discernir um público literário a
partir dessas mesmas nuances ou, melhor dizendo, diferenciar um público literário espe-
cificando um tipo de gênero literário, ou natureza de narrativa, se já é algo problemático
na literatura moderna e contemporânea, parece não poder ser feito na mesma medida
e com qualquer segurança na seara das literaturas antigas. Segundo, assumida a escolha
de estudo da criança como personagem da fábula, é sempre digna de cautela qualquer
tentativa de sociologia da infância a partir da substância narrativa de cada fábula. Em
momentos específicos e sempre com alguma suspeição procuraremos remeter a estu-
dos sobre um ou outro acontecimento de natureza corriqueira apontado pela fábula.
Mas que se reitere: a natureza peregrina desse gênero literário, constantemente adap-
tado e readaptado, é perfeitamente capaz de iludir o desejo por cenas da vida cotidiana
na antiguidade greco-romana. Sua descritividade enxuta, com frequência, formiga uma
impressão de realismo documental. Seu teor de maravilhoso, de outro lado, não distrai
o interesse em desmontar alegorias e recompor reflexões éticas2. Mas não se deve silen-

1 Entre as suposições que procuram explicar essa vinculação entre o gênero e o público, Ferreira (2013, p.60) chama
atenção para características da fábula que se tornaram paradigmáticas: “simplicidade estrutural e ensinamento
sentencioso e de senso comum”.
2 Ferreira (2013, p. 52) chama atenção para o fato de que , apesar de os animais serem dotados de fala articulada
Representações da Infância na fábula Esópica Antiga 125

ciar o fato de que são textos de datação meramente aproximável e com material narra-
tivo ou metalinguístico que nem sempre apontam para suas circunstâncias de produção.
Levando-se em consideração um índice elaborado pelo estudioso Ben Perry, que
lista mais de 700 fábulas antigas, gregas ou latinas, percebe-se imediatamente que a
criança é bastante pouco frequente como personagem de fábula. Pelo que pode ser
apreendido de títulos e resumos, que normalmente indicam quais são as personagens
mais narrativamente ativas numa determinada fábula, enquanto personagem com al-
guma atividade, a criança não chega a aparecer mais de treze vezes3. Um termo de
comparação simples, a raposa, que é possivelmente a personagem de fábula tanto mais
recorrente quanto mais famosa, chega a aparecer, apenas pelos títulos, mais de sessenta
vezes nesse índice.
Esta pequena análise priorizou apenas três fábulas em que a criança é represen-
tada de forma não-alegorizada por outras personagens,o que não significa que a infância
humana não seja pensada de outros modos na fábula; nesse sentido, um estudo mais
detalhado definitivamente poderia levar em consideração, também, por exemplo, algu-
mas fábulas em que filhotes de animais são introduzidos. As dus primeiras fábulas são
atribuídas a Esopo e a última fábula é de autoria de Fedro. Situaremos cada uma dessas
personalidades em momentos individuais, como etapa preliminar ao exame das fábulas
a eles atribuídas.
No concernente a Esopo, não sabemos se de fato existiu na figura histórica de um
autor. Ele é primeiramente mencionado no livro II das histórias de Heródoto (Capítulo
134) e essa referência nos autoriza a hipótese de que teria vivido próximo do século VI
a.C. Se Esopo criou fábulas, não sabemos se ele as registrou por escrito, ou se ele era
uma espécie de circulador que reproduzia as histórias oralmente. A maior parte das
fábulas gregas registradas são encontradas em prosa, em coleções anônimas de datação
muito posterior a esse suposto autor É o caso das duas primeiras fábulas a serem abor-
dadas. A vinculação que se cria entre tais fábulas e Esopo parece advir de uma identifi-
cação entre o autor e a criação do gênero, mais do que entre o autor e a produção de
fábulas. É um tipo de associação muito diferente da que se cria, por exemplo, entre Ar-
quíloco e o gênero que lhe é atribuída a criação, a poesia jâmbica. O caráter fortemente
personalista dessa manifestação da lírica arcaica enraiza textos em contextos e nomeia

e razão, frequentemente o mundo animal é referido nas fábulas esópicas pelo adjetivo álogon (irracional) de tal
modo que não parece, em qualquer momento, estar em causa a manifestação de um mundo fantástico subjacen-
te a cada narrativa
3 Tais fábulas estão identificadas no índice de Perry como:P.147; P.162; P.199; O.200; P.211; P.363; P.379; P.386;
P.457;P.470; P.499; P.581; P.710. O índice de Perry pode ser parcialmente consultado em: https://fablesofaesop.
com/perry-index
126 Anais do XIII SevFale

figuras potencialmente históricas de uma forma que as fábulas, no contexto de sua atri-
buição a Esopo, não fazem4. Seria, enfim, possível traduzir o perfil deste fabulista frente
à sua obra do seguinte modo: primeiro, não é conhecida qualquer obra elaborada, em
sentido forte, por uma figura histórica chamada Esopo e, segundo, a maior parte das fá-
bulas gregas que nós conhecemos são anônimas. Tradicionamente, há seculos e séculos,
então, ligam-se um autor sem obras a uma obra sem autor.
O Menino e o Escorpião (P.199)
Um menino estava caçando gafanhotos ao pé da muralha. Já havia catado vá-
rios quando avistou um escorpião e, crente de que fosse um gafanhoto, pre-
parou-se para apanhá-lo com a mão em concha. Mas o escorpião arrebitou o
ferrão e disse: “ Ah, se você tivesse feito isso! Teria perdido até os gafanhotos
que catou!
Esta fábula nos ensina que não devemos nos comportar da mesma forma com
todo mundo, com os bons e com os maus.5

A relação de profunda curiosidade que crianças podem vir a ter com o espaço e,
em especial, outras formas de vida é um elemento que alimenta o curso narrativo da fá-
bula. Aparentemente a fábula ou coloca a criança em uma situação em que ela é quase
vítima da falta de experiência, ou que é quase vítima de um descuido. Ou o menino não
elabora uma real diferença entre o gafanhoto e o escorpião e corre o risco de ser picado,
ou ele não percebe uma diferença já conhecida, a tempo de evitá-lo. Ele põe sua própria
vida em risco e a fábula elege outra personagem pra cumprir um papel de teor pedagó-
gico. O que há de ao mesmo tempo cômico e desconcertante, mas ainda assim, muito
natural para o gênero, é que a fábula dá esse papel de ensinar uma lição de vida ao pró-
prio escorpião, que quase picou o menino. A fala em modo condicional proferida pelo
escorpião indica, como desfecho, que a criança não foi acometida pela fatalidade, mas
não está claro se a criança entende propriamente aquilo que o escorpião fala. Até onde
esta pesquisa pôde examinar, não há, entre as fábulas esópicas antigas, outra situação
em que uma criança interaja verbalmente com um animal. Contudo, há alguns exemplos
de fábulas em que seres humanos adultos conversam de forma perfeitamente natural

4 O exemplo de Arquíloco de Paros aqui escolhido é conveniente por algumas razões. Trata-se de um autor historici-
zado pelos textos a ele atribuídos, ainda que não saibamos de muitos dados de sua biografia. Pelo que nos afirma
Corrêa (2010, p.121), também desconhecemos se este autor é responsável pela redação escrita de seus poemas,
ou se a composição oral foi retrabalhada por uma outra figura. Arquíloco que atuou na segunda metade do século
VII a.C., anterior, portanto, a um suposto Esopo histórico, também emprega fábulas como recursos retóricos em
sua poesia jâmbica. Sobre a vinculação de Esopo à origem e à composição de fábulas cf. WEST (1983) e O Ban-
quete dos Sete Sábios (158b), de Plutarco.
5 As fábulas de Esopo aqui transcritas são todas resultadas de traduções do grego antigo de Maria Celeste Dezotti
(2013).
Representações da Infância na fábula Esópica Antiga 127

com animais a ponto de que a criança poderia ter perfeitamente entendido o alerta e se
afastado, sem que isso estivesse narrativamente manifesto.
Já se mencionou a frequente impossibilidade de datação precisa de uma fábula
anônima, primeiramente pelo fato de que muitas poderiam já circular oralmente sécu-
los antes de serem escritas. É possível estipular quando as coleções anônimas como as
que contam essa fábula foram escritas, mas a serventia desse exercício para ancorar um
texto em circunstâncias originais de produção é pequena, uma vez que as fábulas nele
compiladas poderiam já estar profundamente enraizadas no folclore grego ou mesmo
das regiões mais orientais próximas à grécia6. A própria fábula recém-comentada nos dá
praticamente como único detalhe de cultura material uma muralha, de tal modo que
essa cena poderia ter acontecido virtualmente em diversos momentos da história cultu-
ral da Grécia ou de uma outra civilização. Mais uma vez é patente a insistência no fato de
que a narrativa de uma fábula pode não ser sempre um ponto de partida muito satisfa-
tório para uma história social ou cultural da infância na antiguidade.
Aquilo que pode, ocasionalmente, ajudar a dar alguma historicidade para uma
fábula é justamente a parte que não necessariamente foi composta, registrada por uma
primeira vez, no mesmo momento que a narrativa da fábula - que é a sua moral. Como
assevera Ferreira (2013, p.57), a moral de uma fábula não necessariamente é fixa e nem
sempre preserva uma óbvia relação de complementaridade com a narrativa fabular; ela
está a serviço seja da escrita seja da enunciação oral de quem a faz circular. Sua realiza-
ção textual provavelmente não seria simultânea ao do volume narrativo da fábula e não
precisa retomá-lo anaforicamente. Trata-se, em uma última instância, de uma experiên-
cia interpretativa da fábula que passou a acompanhá-la escrituralmente. Nesse sentido,
a interpretação que tal moral faz da fábula que lhe acompanha parece assumir a criança
como um ser manifestamente “bom” e a escolha do escorpião em picar ou não é o crivo
que o destinatário da moral da fábula deve ter para agir de forma diferente frente a al-
guém que é “bom” ou de alguém que é “mau”. Como se houvesse insinuação de que se
alguém que não fosse a criança, mas alguém passível de ser visto como “mau” estivesse
no lugar da criança, essa pessoa seria picada.
O estudioso Seth Lerer (2008, p.38) procura reforçar o papel da fábula como
parte da pedagogia greco-romana e chama atenção para esse exemplo aqui citado, ao
dizer que ele se põe em acordo com um projeto de limitação da infantilidade na crian-
ça pelos eventuais educadores da antiguidade, os pedagogos gregos e latinos. Esse

6 Sobre convergências de cultura literária entre a Grécia e o Oriente-próximo uma referência que permanece fun-
damental é The East Face of Helicon de Martin West (1997). No concernente à origem oriental da fábula animal cf.
HESIOD (1978, p.28-9).
128 Anais do XIII SevFale

estudioso possivelmente defende isso tomando como ponto de partida a ideia de que,
durante a antiguidade, a criança tende a ser vista como um adulto em formação. Mas
não estão muito claros os meios pelos quais a fábula se insere na educação infantil
em cada uma das épocas da antiguidade greco-romana. Há maior segurança, pelo que
nos sugere Ferreira (2013, p.61), em assumir que autores como Fedro (I d.C.), sobre
quem comentaremos a seguir, e Aviano (IV,V d.C.), estão mais fortemente atrelados à
vinculação entre o gênero e infância pelo fato de que suas obras foram, em momento
posterior, mais amplamente empregadas nas escolas monásticas tardo-antigas e me-
dievais. Alguns testemunhos antigos nos indicam que a fábula era, primeiramente, um
tipo de narrativa contada para crianças romanas pelas mulheres escravas que atuavam
como babás – quem nos conta isso é o gramático Quintiliano (I,9.I-II); ou pelas mães
dessas crianças, como é vagamete sugerido pelo filósofo Filóstrato (Philostratus, Life
of Apollonius 5.15), pelo que registra Andersen (2006, p.97) e que, segundo, sabe-se
que elas eram empregadas como exercício de escrita e interpretação ao longo da edu-
cação retórica que as crianças recebiam para se formarem oradores. Isso também é in-
dicado por Quintiliano e é sustentado pela existência de alguns manuais de exercícios
para formação retórica, os Progymanasmata, onde as fábulas são posicionadas como
as primeiras atividades7. Aparentemente, todavia, não é possível saber se a fábula teve
esse amplo papel pedagógico que Quintiliano descreve, em outros momentos – e es-
pecialmente em momentos anteriores da história da cultura grega e romana – de for-
ma tão abrangente quanto parece reivindicar o crítico moderno Seth Lerer. Aliás, uma
vinculação prioritária à formação infantil não pode excluir a importância política que
o gênero desempenhou nestas sociedades, pelo que depreendemos de autores como
Hesíodo (Os Trabalhos e os Dias, vv.202-212).
O Menino Ladrão e sua mãe (P.200)

Um menino roubou, na escola, a lousinha de seu colega de classe e levou-a


para sua mãe. E ela não o repreendeu; ao contrário, até o elogiou. Então,
numa segunda oportunidade, ele roubou um manto e levou-o para a mãe. E,
mais uma vez, ela o aceitou. O tempo foi passando e o menino foi crescendo
e, quando se tornou um rapaz, já estava empreendendo roubos mais vultu-
osos. Certa vez, porém, apanharam-no em flagrante e, enquanto o levavam,
de mãos amarradas, para o carrasco, a mãe seguia atrás, esmurrando o pró-
prio peito. Foi então que o rapaz pediu: “Eu queria falar uma coisa no ouvido
de minha mãe”. Ela, mais do que depressa, se achegou a ele, que, com uma

7 É o que fica claro a partir da ordenação programática de um progymnasmata do autor tardo-antigo Libânio de
Antioquia (314 - 393 d.C.). Em sua introdução à tradução desta obra de Libânio, Craig Gibson (2008, p. 1) afirma
que os alunos deveriam reduzir ou expandir fábulas e classificá-las a partir de alguns critérios tipológicos. Curiosa-
mente poderia ser-lhes dada uma sentença moral a partir da qual eles deveriam ser capazes de desenvolver uma
fábula inteira, ou por dedução de uma história já conhecida ou pela invenção de uma nova.
Representações da Infância na fábula Esópica Antiga 129

mordida, lhe arrancou a orelha. E, quando ela se pôs a recriminar sua impie-
dade, ele disse: “Se você tivesse me dado uma surra naquele dia em que eu
lhe trouxe aquela primeira lousinha que roubei, eu não teria chegado a esse
ponto de ser conduzido à morte”.

Esta fábula mostra que o que no início não se reprime no início aumenta cada
vez mais.

Essa fábula, estranha em sua narrativa – tendo em vista que não é muito re-
corrente, nos textos legados, grandes quebras da unidade temporal – reforça o apego
transhistórico à ideia da censura e de punição como elementos definidores do caráter de
um indivíduo que está se desenvolvendo8. De um certo modo as duas fábulas se debru-
çam sobre a ideia de que as crianças fazem coisas indevidas motivadas por uma forma
de imprudência ou de inexperiência que é particular da fase da vida em que elas se en-
contram. Persiste a ideia de que essa inexperiência pode ser corrigida a partir da censura
e da punição. Em nenhuma das duas fábulas é feita objeção a isso. Ambas registram a
sugestão de que a morte pode ser a consequência definitiva de um ato infantil indevido
que não receba nem alerta nem penalidade, ainda que cada fábula trabalhe isso de for-
ma específica. Na primeira fábula a imprudência é alertada e o alerta previne a morte.
Na segunda fábula, essa ordem é expressa pela negativa. A criança realiza um ato im-
prudente, ela não é censurada, realiza novamente, não é censurada e sistematicamente
reincide até que ela é punida com a morte por condenação de um último ato. A situação
processual penal descrita na fábula deixa algumas curiosidades para as quais há pouca
solução, tendo em vista não só a inespecificidade do contexto narrativo, mas também
sua importância menor frente ao seu objetivo moral de maior amplitude. Contudo, não
deixa de ser um dado fascinante o de que, em Atenas, onde há melhor documentação
acerca da execução de leis, roubos como aqueles dirigidos a templos, estavam associa-
das às punições mais intensas (PARKER, 2005, p.65).
Até onde esta pesquisa caminhou, persiste evidente o fato de que a criança fre-
quentemente é exposta, nas fábulas gregas atribuídas a Esopo, a uma situação que cul-
mina ou em seu sofrimento, em seu risco de morte, ou em sua morte. Em outras três,
além dessas duas fábulas recém-apresentadas, o perigo que elas vivenciam recebe al-
guma forma de alerta ou punição9. Nas três fábulas em que a mãe contracena com uma

8 Pelo que nos sugere o estudo de Philippe Ariès (1981, p.162,163) o fim do antigo regime é um momento de rescru-
descimento dessa atitude frente à criança. Mas tal sentimento de – como nomeia o autor – “exasperação” deve
ter firmes precedentes na história. A exemplo indiciário dessa possibilidade Louise Pratt (2013, p.228) afirma que
no século V a.C, na Grécia,. ganha força a ideia de que uma criança deve ser submetida a rígidos costumes para
sobreviver e competir com outros.
9 P.162; P.211; P.363
130 Anais do XIII SevFale

criança, em duas ela é indiretamente responsabilizada pela morte da criança10. Dito isso
nessa formulação, é muito cabível que se correlacione o cenário negativo dessas fábulas
ao fato de que a antiguidade grega e romana, por mais que não só ela, tem um problema
catastrófico com o fenômeno da mortalidade infantil, como corrobora o trabalho de Ro-
bert Garland (2009,p. 95). As manifestações artísticas, obviamente, não são refratárias
a essa condição11.
Por fim, essas duas fábulas veem com olhares negativos o elemento lúdico e
afetivo presente em cada uma das suas personagens crianças. Há algo de eventual-
mente perigoso no prazer do menino que caça gafanhotos e inquestionavelmente per-
nicioso no prazer do menino que rouba sem punições. Conclusivamente, parece ade-
quado comentar uma fábula que abarque uma visão contrastante e que não apresente
o brincar apenas da perspectiva do risco do acidente e da reprimenda. É uma fábula
latina de Fedro.
Fedro, ainda que ele nos leve constantemente a ler o que diz sobre si mesmo
com alguma suspeita, provavelmente é um autor grego do século I.d.C. e, pelo que diz
sobre si, um escravo liberto do primeiro Imperador de Roma, Augusto. Esse fabulista
escreveu em latim um fabulário de pelo menos 130 fábulas em verso, divididas em
cinco livrinhos (libelli), como ele mesmo os chama, mas, tendo em vista que de um
livro ao seguinte o número de fábulas varia de uma forma assaz irregular, algumas fá-
bulas dele provavalmente foram perdidas. É fato curioso o de que os cinco livros são
publicados gradualmente por Fedro, sendo que a cada livro lançado, há um prólogo
ou um epílogo em que esse poeta faz algum comentário sobre si enquanto autor e,
vez ou outra, fala da sua relação com Esopo. Assim, no primeiro livro se vê como um
aperfeiçoador das fábulas de Esopo pelo fato de as escrever em verso quando Esopo
escrevia em prosa. No segundo livro, Fedro afirma estar pronto para inserir nos livros
algumas fábulas de sua própria autoria. No quinto e último livro, Fedro assevera que
só empregou fábulas de Esopo no passado por causa da propaganda, mas que já não
deve mais nada a esse autor.

10 P.162; P.200
11 Temos sempre insistido nas complicações imbutidas tanto em esmiuçar a sociologia literária da fábula quanto
em utilizá-la como fonte de informações sociológicas da antiguidade. Louise Pratt (2013, p.227) afirma que uma
das primeiras representações de crianças na arte grega é a morte de Astyanax no saque de Troia. Na avaliação
da autora, tal cena traduz abrasivamente a morte infantil enquanto fenômeno de ordem normal e corriqueira
na antiguidade, mas não deve ser contabilizada para que se avalie as representações artísticas da criança como
eminentemente negativas. De fato, a autora exemplifica de modo primoroso a riqueza de representações alegres
e enaltecedoras da criança, em especial, nos contextos poéticos do período arcaico.
Representações da Infância na fábula Esópica Antiga 131

Sobre o jogo e a severidade (P.505/ Ph. III, 14)12

Um certo ateniense, tendo visto Esopo brincando com nozes no meio de uma
multidão de garotos, parou e rin-se como que de um lunático. Ao perceber
isso, o velho Esopo, mais zombeteiro que zombável, pôs um arco reteseado
no meio da rua e disse: “Escuta, entendido! Explica por que eu fiz isso!” O
povo vai se aglomerando. O ateniense se atormenta por muito tempo, mas
não sabe a resposta para a pergunta feita. Por fim, desiste. Então o sábio Eso-
po, vencedor, diz: “Se você mantiver o arco sempre retesado, logo ele vai rom-
per. Mas se você o relaxar, ele será útil quando você quiser.

Por isso, ocasionalmente, devem ser dadas distrações à mente a fim de que
você retorne melhor para pensar”

Uma fábula simples, que preserva a unidade temporal ausente no exemplo an-
terior e na qual quem conta a moral é a próprio personagem Esopo, como não raro
ocorre no fabulário de Fedro. Aqui, as personagens infantis estão camufladas como
seres brincantes com as quais um adulto, um ancião de quem normalmente – insinua
a fábula – se espera seriedade, está brincando também e por isso vem a ser ridiculari-
zado por uma terceira personagem, observadora. O jogo que Esopo performa ao lado
das crianças, pelo que nos conta o comentador Andreu-Cabrera (2010, p.343) se apro-
xima muito de “bolas de gude”, que era, então, jogado com sementes. Esopo recebe a
provocação de modo a criar uma situação também lúdica com o ateniense que o ridi-
culariza. Propõe uma espécie de enigma, uma característica pela qual Esopo é muito
conhecido nos relatos lendários sobre sua vida. O ateniense falha; Fedro caracteriza
Esopo como vencedor, como se este não tivesse deixado em momento algum de jogar.
Esopo, por fim, cela sua vitória divindo uma ideia muito contrastiva com o tom autero
das fábulas anteriores. Qual seja: o intelecto, o pensamento só tem real serventia para
aquele que o possui quando a mente se encontra descansada, quando o sujeito se per-
mite relaxar através de distrações e entretenimento. É uma fábula que ressignifica as
outras duas ao dizer que tornar-se adulto não é abandonar, pelo amadurecimento, a
infantilidade do lúdico, mas reconhecer que o lúdico é uma coluna que sustenta como
uma cama a capacidade intelectual de um ser humano. É precisamente uma fábula em
que a criança não tem agência narrativa que nos coloca uma percepção positiva de
características que atribuímos com distinção à infância.

12 A tradução desta fábula latina acompanha o texto estabelecido pelo trabalho editorial de Alice Brenot (1961) e
é de nossa responsabilidade.
132 Anais do XIII SevFale

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Na Tessitura de Imagens: Análise do Conto
“O Alienista” em Quadrinhos

Joelma Rezende Xavier - UFMG

Resumo: O conto “O Alienista” (1882), de Machado de Assis, além de fortuna crítica, apresenta
um quadro de interpretações intermidiáticas em que se encontram adaptações do texto para
o cinema e para a TV, para livros e revistas em quadrinhos, para livros literários (em versão re-
duzida e recriada do texto machadiano), para o teatro e adaptações em letra de música. Esse
enfoque variado de adaptações permite a circularidade do conto desde fins do século XIX aos
dias de hoje, garantindo-lhe lugar de representatividade e de discussões em torno de seu as-
pecto canônico e, especialmente, em torno das contribuições dessa narrativa para a formação
estética e política de jovens leitores. Este artigo visa a analisar o processo de adaptação do conto
“O Alienista” na versão homônima de livro em quadrinhos (2013), realizada por Luiz Antônio de
Aguiar (roteiro) e por César Lobo (arte). O enfoque desenvolvido é baseado nas noções teóricas
de intertextualidade e intermidialidade, considerando a complexidade dos jogos de imagens na
literatura e nas narrativas gráficas e sua importância para a leitura do texto. Este artigo, por meio
de análise comparada, apresenta contribuições para os estudos intermidiáticos e para a explora-
ção de narrativas gráficas em sala de aula.

Palavras-chaves: Machado de Assis – narrativa – quadrinhos – ensino.

Simpósio: Literatura e Infância.


136 Anais do XIII SevFale

Na abordagem sobre o trabalho didático com Literatura para jovens, especialmen-


te nas séries do Ensino Fundamental II e no Ensino Médio, existem preocupações sobre o
enfoque do cânone e a pergunta “o cânone deve ser trabalhado em sala de aula?”, costu-
meiramente, faz parte das indagações de professores e de especialistas em leitura literária.
Em geral, os aspectos que obstaculizam a leitura de autores canônicos estão relacionados
a características estilísticas, como: composição de traços formais de determinada Escola Li-
terária (Barroco, Arcadismo, Realismo, Naturalismo, Modernismo, por exemplo), emprego
de vocabulário e de figuras estilísticas, uso de elementos de representação social, política,
econômica e histórica, também imprescindíveis para a composição dos processos de leitu-
ra literária. A questão, é claro, não é desprezível, tendo em vista que, em sala de aula, nem
sempre o público jovem é devidamente estimulado a perceber a atualidade do cânone,
sobretudo no que diz respeito a leituras de autores como Machado de Assis.
Com uma considerável obra produzida e ambientada na segunda metade do século
XIX, Machado de Assis deixou-nos um repertório amplo de contos, crônicas, novelas, po-
emas, romances, além de correspondências com outros escritores, com personalidades
políticas e com pessoas de seu ciclo pessoal. Certamente, a obra machadiana, ainda hoje,
oferece-nos subsídios para reflexões sobre o cotidiano da sociedade, sobre relações de
poder, sobre questões de identidade, hierarquias sociais, dentre outras que adentram as
problemáticas exploradas pelo autor. Além disso, a obra machadiana também é contem-
plada por fortuna crítica, responsável por consolidar os estudos acerca do autor e de seu
fazer literário. A partir desse cenário, podemos perceber que a escolha pelo estudo de Ma-
chado, equivocadamente considerado – pelo censo comum e por alguns profissionais do
Ensino Básico – como inacessível ao púbico jovem, deve ser priorizada e cabe ao professor
buscar alternativas de aproximação entre os discentes e a obra escolhida.
Tendo isso em vista, levanto a hipótese de que, na contemporaneidade, textos
canônicos podem ser explorados, em sala de aula, a partir de leitura desses textos, no
formato literário, e também por meio de adaptações em outras mídias, por meio de ou-
tros formatos editoriais e de outras linguagens, visando a garantir a conexão do leitor
com possibilidades variadas de construção de sentido, especialmente, de atualização da
obra em análise. Este artigo analisa a adaptação em quadrinhos do conto “O Alienista”,
de Machado de Assis, com roteiro de Luiz Antônio de Aguiar e com arte gráfica de Cesar
Lobo, publicada pela editora Ática (2013).

1. SOBRE AS OBRAS ANALISADAS E SOBRE AS NOÇÕES TEÓRICAS CONSIDERADAS

No conto “O Alienista” (1882), Machado de Assis narra a trajetória do cientista Si-


mão Bacamarte, médico cientificista, que chegara a Itaguaí, no Rio de Janeiro, com uma
Na Tessitura de Imagens: Análise do Conto “O Alienista” em Quadrinhos 137

bagagem de estudos advinda de Portugal e da Espanha, desejoso de pesquisar os enigmas


da loucura e, para isso, investe seus esforços na criação da Casa Verde, o primeiro hospício
da cidade, visando a convencer a população e os representantes políticos da importância
de seu ato: “O essencial nesta minha obra da Casa Verde é estudar profundamente a lou-
cura, os seus diversos graus, classificar-lhes os casos, descobrir enfim a causa do fenôme-
no e o remédio universal. Este é o mistério do meu coração. Creio que com isto presto um
bom serviço à humanidade.” (MACHADO DE ASSIS, 1994, p. 233, vol.2)
Simão Bacamarte diagnostica vários casos de demência, chegando a recolher, em
seu hospício, quase toda a população de Itaguaí. Passado um tempo, o médico muda a es-
tratégia e retém apenas aqueles loucos “perdidos” em suas pequenas fraquezas e, a partir
daí, o público da Casa Verde diminui, apesar de ainda reunir curiosos diagnósticos. Feitas
novas detecções de pesquisa, Simão Bacamarte chega à conclusão de que não havia um só
homem normal, libera todos os pacientes e decide se internar na Casa Verde, onde perma-
neceu até sua morte. Dado esse enredo, o conto deixa em suspenso a indagação: quem é
louco? O que é loucura? Para Cândido (2011), a forma aberta com que Machado de Assis
encerra seu conto propõe indagações relacionadas a questões de identidade, razão e lou-
cura, além de antecipar traços estilísticos da literatura contemporânea, na configuração de
um desfecho que não visa a solucionar a trama, mas a potencializar suas tensões.
De acordo com Bosi (2007), a partir do romance Memórias Póstumas de Brás
Cubas e dos contos publicados em Papéis Avulsos, Machado de Assis evidencia as con-
tradições entre o ser e o parecer, destacando aspectos entre o desejo individual e as
máscaras sociais e, para isso, o uso do humor, nesses enredos, tem papel determinante,
sobretudo no que diz respeito à crítica às convenções morais, políticas e às tendências
de dominação dos mais fortes e dos mais ricos. O autor destaca que “O Alienista”, além
de uma sátira ao cientificismo é uma crítica ao uso arbitrário do poder, uma vez que o
protagonista do conto, Simão Bacamarte, sob a égide da Ciência, traça um jogo de in-
fluências que vão, dos experimentos de pesquisa às decisões políticas na Câmara dos
Vereadores de Itaguaí. Dessa maneira, Bosi (2007) ressalta o caráter vanguardista dessa
narrativa machadiana, ao afirmar:
O hospício é a Casa do Poder, e Machado de Assis sabia disso bem antes que
o denunciasse a antipsiquiatria. [...] A razão do alienista Dr. Simão Bacamarte é
fantasia de obcecado que tem poderes para exercê-la. [...] Machado nos obriga a
rever criticamente o próprio conceito de modernidade como fatal liberação das
amarras da injustiça, da violência e da impostura. Para onde e para quê aponta,
afinal, essa modernidade de mil caras que veio no bojo do triunfo capitalista e
não cessa de alardear feitos e exigir os seus direitos? (BOSI, 2007, p.89; 158-159)

A partir dessas noções de enredo e de construções temáticas e críticas no conto


“O Alienista”, desenvolvo minha abordagem, inicialmente, a partir das noções teóricas
138 Anais do XIII SevFale

de intertextualidade e de adaptação, sobretudo pelo fato de a versão em quadrinhos im-


plicar uma abordagem interartes, na construção da narrativa gráfica. A intertextualidade
é entendida aqui como tensionamento das formas de se fazer e de se pensar a cultura
e a arte, conforme sugeriu Cury (1982), para quem “a intertextualidade ocorre tanto
na produção como na recepção da grande rede cultural, de que todos participam”. E a
adaptação pode ser entendida como um dos processos de elaboração intertextual, no
qual existe a reorganização de uma forma de linguagem em outra, no caso, considera-
mos o deslocamento do texto literário (adaptado) para os quadrinhos (adaptante). Para
Pina (2014), os quadrinhos reorganizam o literário por meio de uma linguagem híbrida,
na qual operam mecanismos verbais e não-verbais, mutuamente:
As palavras impressas significam também como imagens: o tamanho das letras,
a cor, o traço, o formato, a colocação no interior da vinheta, agregam sentidos
variados e interferem na interlocução com o leitor. Por outro lado, cores, traços,
formas, intervalos entre vinhetas, focalização de cenas e personagens enrique-
cem o não-verbal, complexificando suas potencialidades significativas. No pro-
cesso da adaptação quadrinística, o texto adaptante reconfigura o texto adapta-
do em níveis e graus variados, o que resulta em um espessamento da relação do
texto com o leitor. A quadrinização de textos é uma forma de produção artística
que se expõe como intervalar, pois em sua própria denominação conjuga duas
linguagens originalmente polarizadas. (PINA, 2014: p. 154)

Nos anexos da edição de “O Alienista” em quadrinhos (2013) – em seção intitulada


“Segredos da adaptação” –, Lobo e Aguiar explicam a ideia de adaptação literária adotada
por eles, utilizando o conceito de roteiro: os autores apresentam a planificação das
cenas reordenadas e o esquema sequencial de imagens realizado em algumas partes da
adaptação do conto para a narrativa gráfica. A construção de um roteiro de adaptação
já nos traz informações sobre o caráter de imagens em movimento, característico dos
quadrinhos, o que aproxima esse gênero da linguagem cinematográfica.
No Dicionário Houaiss, a partir da especificação do campo cinematográfico, encon-
tramos a seguinte acepção para roteiro: “texto que resulta do desenvolvimento do argu-
mento de filme, vídeo, novela, programa de rádio ou televisão, peça teatral etc. dividido
em planos, sequências e cenas, com as rubricas técnicas, cenários e todos os diálogos”
. Dentro desse circuito, o que se coloca em jogo, em um roteiro de adaptação, não é
apenas a fidelidade ao texto de partida (no caso, o texto literário), mas a eficácia das re-
lações entre linguagens, implicando um jogo de manutenção do estilo e dos elementos
literários em constante interação com os aspectos imagéticos utilizados nos quadrinhos,
a saber: traço de composição de personagens, cenários para o contexto da narrativa,
movimentação das personagens e deslocamento das cenas, além de efeitos estéticos
como uso de cores, formato de letras, uso de balões e inserção da fala do narrador.
Na Tessitura de Imagens: Análise do Conto “O Alienista” em Quadrinhos 139

Para Eisner (2005, p. 9), “o processo de leitura dos quadrinhos é uma ex-
tensão do texto”, uma vez que, nos quadrinhos, há uma aceleração dos proces-
sos de conversão de informações em imagens, o que, de um modo geral, o lei-
tor realiza mentalmente nos atos de leitura. Quando o mecanismo de conexão
entre imagem e palavras opera de forma adequada, há um deslocamento da ideia
de entretenimento visual para a composição de uma narrativa gráfica, com ar-
ranjo complexo. A partir dessa reflexão, Eisner (2005) questiona a hierarquização
entre literatura e quadrinhos, na qual os quadrinhos são desvalorizados. Para o autor,
os quadrinhos têm autonomia artística e qualidades criativas tão importantes quanto
aquelas elaboradas nos processos de criação literária. Pina (2014) também defende a
perspectiva de autonomia estética dos quadrinhos, acrescentando que essa hierarquiza-
ção se deu (e talvez ainda ocorra), devido a uma sobrevalorização do literário, tradicio-
nalmente associado a segmentos sociais privilegiados, sobretudo até as primeiras déca-
das do século XX. Nesse sentido, para alguns estudiosos e especialistas, a adaptação do
literário para os quadrinhos pode implicar uma perda da ‘aura’ literária, considerando a
perspectiva de Walter Benjamin (1985). Essa abordagem, no entanto, deve ser descons-
truída, uma vez que o mais importante na análise de uma adaptação é o processo de
tensionamento estético das formas de linguagem em conexão.

2 - NA TESSITURA DE IMAGENS

Lobo e Aguiar (2013), na seção “Segredos da adaptação”, demarcaram aspectos,


por exemplo, sobre a dificuldade de organizarem um roteiro a partir do literário, apre-
sentando situações em que um único parágrafo do texto machadiano – a passagem em
que ocorre a prisão da prima do personagem Costa – gerou uma sequência de quatro
quadros, ocupando, portanto, mais de uma página na adaptação. O desdobramento das
imagens se deu, sobretudo, por causa das tensões evocadas nessa cena e exigiram um
enquadramento visual mais variado do que na sequência literária, tensionada a partir
do uso de expressões como “pobre senhora”, “olhos agudos”, “a mísera”, “galeria dos
alucinados”. Na representação em quadrinhos, além de um reforço visual sobre esses
atributos da composição lexical e da alternância entre os diálogos dos personagens, há
uma ênfase sobre as ações desenroladas na cena, que vão da chegada da prima de Costa
à sua reclusão na Casa Verde, por Simão Bacamarte. As imagens, portanto, são organiza-
das para enfatizar essa sequência intervalar de ações.
Outra curiosidade apresentada pelos autores da adaptação diz respeito aos en-
quadramentos de cenas simultâneas da narrativa, a partir da composição de quadros
horizontais que se intercalam às cenas de algumas páginas. Geralmente, nesses quadros,
140 Anais do XIII SevFale

são apresentadas situações do espaço externo da Casa Verde ou situações em que há


um desdobramento do duplo do médico Simão Bacamarte. Sobre esse processo do du-
plo, especificamente, a composição imagética revela os lados opostos do médico cienti-
ficista, revelando, de um lado, um homem estudioso, polido e muito político e de outro,
um alucinado, inquieto cientista, denominado como Alienista-Alienado, pelos autores
do roteiro de adaptação. Na página 7, da adaptação em quadrinhos, temos um exemplo
dessa sobreposição de enquadramentos, no qual, há a representação de Simão Baca-
marte e seu duplo, o personagem criado pelos adaptadores para potencializar a ironia
machadiana sobre pensamentos e ações do médico cientificista:

Imagem 1 – o duplo de Simão Bacamarte – Fonte: Aguiar, 2013: p. 7 – recorte de imagem

Nesse duplo de imagens, são evocadas duas perspectivas: uma relacionada às ten-
dências de questionamentos sobre identidade e dupla personalidade, já que, em textos
machadianos, o duplo é uma temática bastante explorada. A outra perspectiva diz respeito
ao aspecto intertextual que é evocado nesse duplo, já que as imagens também evocam ou-
tro duplo consagrado da literatura mundial, a novela gótica O médico e o monstro, de R.L.
Stevenson (1886). Nessa narrativa, a partir do uso de uma substância química, o Dr. Jekyll,
transforma-se no assassino Mr. Hyde e, paulatinamente, a personalidade deste, o mons-
tro, vai tomando conta do gentil médico. Nessa novela, R.L. Stevenson também questiona
os aspectos cientificistas da medicina em fins do século XIX. Se retomarmos a noção de
intertextualidade como uma grande rede cultural na produção e na recepção de diferentes
linguagens (CURY, 1982), veremos que os repertórios dos autores da adaptação de “O Alie-
nista” em quadrinhos lançam mão de estratégias de associação gráfica e de sobrevivência
Na Tessitura de Imagens: Análise do Conto “O Alienista” em Quadrinhos 141

de aspectos críticos importantes, arrolados na fortuna crítica de Machado de Assis, como a


questão do duplo e, simultaneamente, uma referência a outros desdobramentos de leitura
– a semelhança com a obra de Stevenson – que podem fazer parte não só da experiência
dos adaptadores como das experiências dos leitores.
A estratégia da ilustração de cenas literárias também é utilizada em alguns tre-
chos em que o texto machadiano é reproduzido quase na íntegra, como acontece na
composição do capítulo 2, “Torrentes de loucos”:
Os loucos por amor eram três ou quatro, mas só dois espantavam pelo curioso
do delírio. O primeiro, um Falcão, rapaz de vinte e cinco anos, supunha-se es-
trela-d’alva, abria os braços e alargava as pernas, para dar-lhes certa feição de
raios, e ficava assim horas esquecidas a perguntar se o sol já tinha saído para
ele recolher-se. O outro andava sempre, sempre, sempre, à roda das salas ou
do pátio, ao longo dos corredores, à procura do fim do mundo. Era um des-
graçado, a quem a mulher deixou por seguir um peralvilho. Mal descobrira a
fuga, armou-se de uma garrucha, e saiu-lhes no encalço; achou-os duas horas
depois, ao pé de uma lagoa, matou-os a ambos com os maiores requintes de
crueldade. (MACHADO DE ASSIS, 1994: p.233, vol. 2)

Na versão em quadrinhos, os loucos ganham corpo com vestes maltrapilhas ou apa-


recem nus ou semi-nus, conferindo maior plasticidade e movimento à cena. Além desses tra-
ços, a intercalação entre texto e imagem, a partir da inserção de um tipo gráfico distinto das
demais situações narradas, oferece maior dramaticidade à situação da loucura encenada,
como alvo das observações de Simão Bacamarte, como podemos ver na imagem 2 a seguir:

Imagem 2 – Torrentes de loucos – Aguiar, 2013: p. 13 – recorte de imagem


142 Anais do XIII SevFale

Além de algumas cenas com manutenção quase integral do texto machadia-


no, os adaptadores optaram pela reprodução dos 13 títulos elencados por Machado.
No caso do conto, a divisão em capítulos se justifica pelo fato de o texto ter sido
publicado em partes, no formato folhetinesco, muito usual nos jornais à época. “O
Alienista” foi publicado capítulo a capítulo, no jornal A Estação, de outubro de 1881
a março de 1882. Já na adaptação em quadrinhos, a divisão/manutenção do texto
em capítulos permite uma leitura mais dinâmica e corresponde à montagem gráfica
e verbal recorrente nas graphic novels, ou seja, em intervalos de cenas, desde o seu
surgimento.
O aspecto caricatural de personagens, na literatura, geralmente associa-se a
um traço comportamental que é intencionalmente exagerado no enredo, para dar re-
alce e, na maioria das vezes, satirizar a personagem. N’O Alienista, a personagem D.
Evarista, por exemplo, apresenta um traço caricatural, uma vez que, desde sua apre-
sentação no enredo, o narrador pinta-lhe com cores de deboche, por “não ser bonita,
nem simpática”. Observemos as relações entre o trecho retirado do conto e os traços
imagéticos da representação gráfica da adaptação em quadrinhos:
D. Evarista mentiu às esperanças do Dr. Bacamarte, não lhe deu filhos
robustos nem mofinos. A índole natural da ciência é a longanimidade; o
nosso médico esperou três anos, depois quatro, depois cinco. Ao cabo
desse tempo fez um estudo profundo da matéria, releu todos os escri-
tores árabes e outros, que trouxera para Itaguaí, enviou consultas às
universidades italianas e alemãs, e acabou por aconselhar à mulher um
regímen alimentício especial. A ilustre dama, nutrida exclusivamente
com a bela carne de porco de Itaguaí, não atendeu às admoestações do
esposo; e à sua resistência,— explicável, mas inqualificável,— devemos
a total extinção da dinastia dos Bacamartes. (MACHADO DE ASSIS, 1994:
p.231, vol. 2)

Imagem 3 – Dona Evarista, a glutona – Fonte: Aguiar, 2013: p. 14 – recorte de imagem.


Na Tessitura de Imagens: Análise do Conto “O Alienista” em Quadrinhos 143

Imagem 4 – Dona Evarista, nem bonita nem simpática – Fonte: Aguiar , 2013: p. 8 – recorte de imagem

Imagem 5 – Dona Evarista, vestes exóticas – Fonte: Aguiar, 2013: p. 65 – recorte de imagem

Na adaptação em quadrinhos, Lobo e Aguiar dão à D. Evarista os ares de uma


glutona, o que reforça seu traço caricatural, devido à recusa de incorporação de uma
dieta especial à sua rotina, para o tratamento contra sua infertilidade. Nas imagens da
personagem, prevalece o exagero nas feições – nariz, olhos e boca grandes – há volume
nas formas corporais e ostentação em sua vestimenta, especialmente pelo excesso de
decotes, pelo volume em suas saias e pelos adornos, como joias caras e chapéus exces-
sivamente enlaçados ou penachos exagerados.
O personagem Crispim Soares também recebe um traço caricatural, tanto no tex-
to machadiano quanto na adaptação do conto em quadrinhos:
144 Anais do XIII SevFale

Crispim Soares derretia-se todo. Esse interrogar da gente inquieta e curiosa, dos
amigos atônitos, era para ele uma consagração pública. Não havia duvidar; toda
a povoação sabia enfim que o privado do alienista era ele, Crispim, o boticário,
o colaborador do grande homem e das grandes coisas; daí a corrida à botica.
Tudo isso dizia o carão jucundo e o riso discreto do boticário, o riso e o silêncio,
porque ele não respondia nada; um, dois, três monossílabos, quando muito,
soltos, secos, encapados no fiel sorriso constante e miúdo, cheio de mistérios
científicos, que ele não podia, sem desdouro nem perigo, desvendar a nenhu-
ma pessoa humana. (MACHADO DE ASSIS, 1994: p.240, vol.2, grifos meus)

Observemos que o léxico empregado para caracterizar o personagem Crispim


Soares compõem a imagem caricatural de um vil serviçal que se gabava dos feitos de
Simão Bacamarte. A definição de personagens por meio de traços comportamentais
ou morais é uma característica recorrente no Realismo, sobretudo na configuração
de personagens-tipo, que são coadjuvantes na trama e, geralmente, são representa-
dos pelo estereótipo de seu comportamento ou por elementos caricaturais, associa-
dos ao uso da ironia. Na adaptação em quadrinhos, Lobo e Aguiar afirmam ter opta-
do pela metáfora na representação do boticário Crispim Soares, dando-lhe aspectos
de um homem-rato, já que seu principal traço seria o de bajulador.

Imagem 6 – Crispim Soares: o bajulador Imagem 7 – Crispim Soares: o homem-rato fon-


Fonte: Aguiar, 2013: p. 9 – recorte de imagem te: Aguiar, 2013: p. 61 – recorte deimagem

Além do aspecto metafórico na composição da caricatura, na imagem 6, podemos


perceber o uso de objetos simbólicos que também operam na composição do estereótipo:
o crânio que é segurado por Simão Bacamarte, numa alusão à imagens de pensadores ou
mesmo numa evocação shakespeariana de Hamlet, nos impasses de seus questionamen-
tos; outro traço de dualidade, no canto inferior esquerdo, a representação do símbolo Ying
e Yang que, no Taoísmo, representa as energias opostas do universo; uma ampulheta, um
narguilé, um feto de laboratório; um globo terrestre, símbolos hinduístas na parede, atrás
Na Tessitura de Imagens: Análise do Conto “O Alienista” em Quadrinhos 145

de Crispim Soares, dentre outros símbolos, que são utilizados na composição do espaço
metafórico do conhecimento de que Simão Bacamarte era detentor.
Na narrativa gráfica, os traços comportamentais, geralmente, estão associados a
estereótipos, representados a partir de traços de aparência física (humor, beleza, hero-
ísmo, maldade, cinismo etc) e também por traços de posturas ameaçadoras, associados
a animais, são considerados resíduos de uma existência primitiva, segundo Eisner: “Tal-
vez, numa experiência anterior com a vida animal, as pessoas tenham aprendido quais
posturas e configurações faciais eram ameaçadoras ou amigáveis. Era importante para a
sobrevivência reconhecer quais animais eram perigosos”. (EISNER, 2005, p. 24)
Na adaptação em quadrinhos, esse traço de animalidade na composição carica-
tural do personagem é também utilizado nos personagens João Pina (raposa) e Padre
Lopes (serpente):

Imagem 8 – João Pina: o ambivalente – fonte: Aguiar, 2013: p. 55 – recorte de imagem

Imagem 9 – Padre Lopes: o peçonhento – fonte: Aguiar, 2013: p. 45 – recorte de imagem

Além da composição de traços caricaturais de personagens e dos duplos macha-


dianos, a adaptação de “O Alienista” em quadrinhos representa elementos contextuais do
146 Anais do XIII SevFale

período histórico em que se passa a narrativa, como elementos simbólicos na representa-


ção dos hábitos escravocratas, em cenas domésticas de Simão Bacamarte e Dona Evarista:

Imagem 10 – Escravidão representada – fonte: Aguiar, 2013: p. 14 – recorte de imagem

Nessas cenas em que se evidencia o contexto escravocrata, como a destacada na


imagem 10, o traço caricatural das personagens é reforçado, uma vez que as imagens ex-
ploram relações de hierarquia racial e uma cômica harmonia entre os contrastes nessas
relações. Além da composição do cenário da escravidão, a associação das revoltas que
provocaram as ações de Bacamarte com as reclusões na Casa Verde à Revolução France-
sa1 também ganham corpo nas cenas dos capítulos 6 e 7 da adaptação em quadrinhos:

Imagem 11- A rebelião – fonte: Aguiar, 2013: p. 26 - recorte de imagem

1 Nos capítulos 6 (A Rebelião) e 7 (O Inesperado) são feitas analogias entre a Casa Verde e a Bastilha, prisão fran-
cesa cuja queda ocasionou libertação dos presos e movimentos de insurreição que engendraram a Revolução
Francesa (1789).
Na Tessitura de Imagens: Análise do Conto “O Alienista” em Quadrinhos 147

Imagem 12 – “A queda da Bastilha da Razão humana” - Aguiar, 2013: p. 26 – recorte de imagem

Na composição dessas imagens das revoltas, tanto o texto machadiano quanto


a adaptação em quadrinhos apelam para o recurso do exagero na associação das ima-
gens. Esse traço caracteriza a presença do elemento trágico às cenas, potencializando
os momentos de tensão da narrativa. Na imagem 11, o repertório intertextual é evocado
por trechos de “La Marseillaise” (canto patriótico, oriundo da Revolução Francesa que,
posteriormente, tornou-se o Hino Nacional da França): “Allons enfants de la Patrie/Le
jour de gloire est arrivé!Contre nous de la tyrannie2...” e, na imagem 12, a evocação à
Revolução Francesa decorre da fusão das imagens da “Revolta dos Canjicas”, liderada
pelo barbeiro Porfírio e a imagem da tela “A liberdade seguindo o povo”, de Eugène De-
lacroix3. A composição das cenas, nas imagens 10 a 12, exige do leitor a um repertório
histórico-cultural que seja capaz de identificar os símbolos e as intenções com que eles
foram utilizados. Na leitura dessas cenas, por exemplo, especialmente se considerarmos
o traço machadiano da ironia, percebemos que a adaptação em quadrinhos também se
nutre de uma força irônica e, por vezes, humorística na construção das cenas e dos refe-
rentes contextuais.

2 “Avante, filhos da Pátria/ O dia da Glória chegou/ Contra nós, da tirania”


3 La liberté guidant le peuble, Eugène Delacroix, (1830), tela é parte do acervo do Museu do Louvre, em Paris.
148 Anais do XIII SevFale

NO TRAÇO DE UMA CONCLUSÃO

A partir do percurso de leitura que realizei, neste artigo, para a adaptação em


quadrinhos do conto “O Alienista”, ressalto a complexidade de que se constituem os
processos de adaptação, na obra de Aguiar e Lobo (2013). A intertextualidade é opera-
da nas cenas gráficas, especialmente a partir de mecanismos de ancoragem das cenas a
aspectos contextuais, de traços caricaturais na composição das personagens, de elemen-
tos do duplo na representação de Simão Bacamarte e nos desdobramentos do exage-
ro, responsáveis pela potencialização do elemento trágico nas cenas enredadas. Diante
desse mosaico de imagens, entendo a adaptação como um jogo, no qual se polarizam
as tensões entre o texto adaptado e a multiplicidade estética evocada nos repertórios
culturais engendrados na produção e na recepção do texto adaptante.
Desse modo, respondo à pergunta com que iniciei este artigo: Sim, é possível
explorar a leitura de textos canônicos em sala de aula. Sim, é possível que a juventude
contemporânea leia Machado de Assis e interaja com as perspectivas críticas e atempo-
rais de sua literatura. Sim, o campo imagético e acional é potencializado na adaptação do
conto “O Alienista” em quadrinhos, o que confere à narrativa gráfica uma aproximação
à linguagem cinematográfica. Se o século XXI é reconhecido pela facilidade de acesso às
informações e, especialmente, às imagens, é papel da escola promover mecanismos de
leitura que ampliem os repertórios culturais e, simultaneamente, desenvolva competên-
cias de interações eficazes com os códigos verbais e não-verbais, pois, como enfatizou
Eisner (2005), “para uma nova geração que cresceu juntamente com a televisão, os com-
putadores e os videogames, processar informações verbais e visuais de vários níveis de
uma só vez parece uma coisa natural, até mesmo preferível”. (EISNER, 2005: p.8)

REFERÊNCIAS

AGUIAR, Luiz Antonio. O Alienista; roteiro de Luiz Antonio Aguiar; arte de Cesar Lobo. 2ed. – São Paulo:
Ática 2013.

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. (trad. Sérgio Paulo Rouanet). Vol. 1. Magia e técnica, arte e política
– Ensaios sobre literatura e história da cultura. Prefácio de Jeanne Marie Gagnebin. São Paulo: Brasiliense,
1987: p. 114-119.

BOSI, Alfredo. O enigma do olhar. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007 (4ª ed).
Na Tessitura de Imagens: Análise do Conto “O Alienista” em Quadrinhos 149

CÂNDIDO, Antônio. Esquema Machado de Assis. In: Vários Escritos. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2011,
p. 15-33 (5ª ed)

CURY, Maria Zilda. Verbete intertextualidade. (2014) In: Glossário Ceale, disponível em: http://ceale.fae.
ufmg.br/app/webroot/glossarioceale/verbetes/intertextualidade, acesso em ago.2017.

CURY, Maria Zilda. Intertextualidade: uma prática contraditória. In: Cadernos de Linguística e Teoria
da Literatura, nº8, 1982. Disponível em: http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/cltl/article/
view/9886/8813, acesso em 31/05/2018.

EISNER, Will. Narrativas Gráficas. Trad. Leandro Luigi del Manto. São Paulo: Devir, 2005.

ASSIS, Machado de. O Alienista. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar 1994. v. 2, p. 230-261 (contos)

PINA, Patrícia Kátia da Costa. Literatura e quadrinhos em diálogos: adaptação e leitura hoje. In: Revista
Ipotesi, Juiz de Fora, v.18, nº2, p. 149-1645, jul./dez. 2014.
LEITURA LITERÁRIA: uma nova velha estória

Julio César Vitorino - UFMG


Vildete Gomes Pereira - UFMG

Resumo: Esta pesquisa apresenta resultados parciais de um projeto de incentivo à leitura,


desenvolvido com alunos do 6º ano do Ensino Fundamental da Escola Estadual “Juscelino
Kubitschek de Oliveira, no município de Ibirité, MG. Trata-se de uma pesquisa qualitativa que
parte da existência de uma relação dinâmica entre o mundo, a realidade e o sujeito, e privilegia
a interdependência entre sujeito e objeto. O incentivo à leitura e o planejamento de estratégias
de leitura são dois eixos sobre os quais se ancora o ensino da leitura literária em sala de aula
visando à formação do leitor proficiente, tendo em vista que a obra literária recorta, sintetiza e
interpreta a realidade a partir do ponto de vista do narrador ou do poeta. Ao leitor, através do
fictício e da fantasia, a leitura possibilita uma ampliação do mundo, resultado do dialogo com o
texto, do uso de múltiplas estratégias de leitura e da mediação do professor. Entre as referências
teóricas que embasam o trabalho, destacamos as discussões de Rildo Cosson, de Teresa Colomer
e de Magda Soares que trazem importantes reflexões sobre a formação de leitores e o ensino de
leitura literária. Os resultados apresentados fazem parte do primeiro módulo da pesquisa, que
teve como proposta a leitura conjunta do conto “Chapeuzinho Vermelho”, na versão dos irmãos
Grimm, e do conto “Fita Verde no Cabelo: uma nova velha história de Guimarães Rosa.

Palavras-Chave: leitura literária – formação de leitores – reconto – reescrita do texto literário.

Simpósio: Eixo 2 - Infância como provocação teórica: escrever sobre infância, escrever para
a infância.
152 Anais do XIII SevFale

O presente estudo tem como objetivo apresentar uma prática docente de letra-
mento literário desenvolvida a partir da leitura conjunta dos contos “Chapeuzinho Ver-
melho”, na versão dos Irmãos Grimm, e “Fita Verde no cabelo: uma nova velha estória”
de Guimarães Rosa, com a aplicação da sequência básica proposta por Rildo Cosson
(2006). A transformação dos alunos em bons leitores requer o convite à leitura, o desen-
volvimento da capacidade de ler, o compromisso e a mobilização para a aprendizagem,
mas no ambiente escolar, ainda prevalecem práticas didáticas centradas em fragmentos
de textos literários que, contrariando os objetivos propostos, na verdade distanciam o
leitor do hábito da leitura. Assim, torna-se indispensável uma metodologia que privi-
legie o convite à leitura, - e valorize os caminhos da recepção da obra, a construção de
sentido - e o uso de inferências. Uma sondagem inicial em sala de aula sobre hábitos e
práticas de leitura entre os alunos revelou que todos já haviam lido pelo menos uma ver-
são de Chapeuzinho Vermelho, porém, nenhum deles havia lido a versão de Guimarães
Rosa. Partindo do conhecido ao desconhecido foram elaboradas seis etapas baseadas
na sequência básica de Rildo Cosson (2006) que prevê a motivação através do convite, a
introdução que consiste na apresentação da obra física ao leitor, a leitura silenciosa e a
protocolada, a interpretação do texto, à qual se acrescentou nessa pesquisa o reconto e
a reescrita do reconto. As atividades foram estruturadas visando a contribuir no proces-
so de formação de leitores, inserindo-os no universo de Guimarães Rosa.

LEITURA E LETRAMENTO LITERÁRIO EM SALA DE AULA

O conceito de letramento está sedimentado no exercício da cidadania, através de


práticas cotidianas que são construídas em comunidades colaborativas de aprendizagem
que tenham vínculo com o conhecimento. Frequentemente, em sala de aula, na discipli-
na de língua portuguesa, a leitura é associada ao gosto, à fruição, ao desfrute, elementos
essenciais para a construção da formação do leitor, mas convém associar tais elementos
ao contato direto com textos que auxiliem o aluno a aprofundar o conhecimento da/na
sua própria cultura. Nesse sentido, a prática de leitura na sala de aula reflete o encami-
nhamento metodológico adotado pelo professor, tendo em vista que a concepção de
leitura apresenta vários vieses, desde a compreensão do sentido literal, que está rela-
cionada à “interpretar o que está escrito”, conforme definição do Aurélio online (2018,
s.v. leitura), até a que a leitura é entendida como prática social compartilhada através
da interação autor-texto-leitor - que possibilita a efetiva construção de sentido por parte
do leitor. Contudo, no âmbito escolar, o que se observa é que, a proposta didática do
professor nem sempre contempla a leitura como construção de sentido, sendo frequen-
temente realizada apenas para a localização de componentes gramaticais.
LEITURA LITERÁRIA: uma nova velha estória 153

Em geral, as práticas de leitura da escola estão voltadas para uma interpretação


mecânica do que está escrito e, dessa forma, os livros literários são usados meramente
para atualização do conteúdo, para atividades de localização, para entender o que está
na superfície e para atender as necessidades das editoras. Por outro lado, as práticas
pedagógicas podem se converterem em interação em sala de aula, estimulando a com-
preensão do texto. Para isso, no processo de desenvolvimento da leitura, conforme vão
sendo adquiridas as habilidades e competências básicas para lidar com o texto escrito,
o leitor deve ser estimulado a agir de maneira autônoma, apropriando-se das práticas
sociais de leitura e escrita que favorecem a sua participação e a sua autonomia no pro-
cesso de letramento.
Soares (2008, p.18) define o letramento como um conjunto de práticas sociais
que usam a escrita, como um sistema simbólico e tecnológico em contextos de aprendi-
zagens específicos. Nesse sentido, as práticas de leitura dentro do evento de letramento
permitem ao aluno não só construir seu conhecimento sobre os diferentes gêneros, - os
procedimentos a eles associados -, mas também utilizá-los e adequá-los conforme as
diversas circunstâncias de uso da escrita, nas suas práticas sociais. O professor que pla-
neja e desenvolve sua aula em torno de textos escritos e que traz o universo dos textos
para a vivência dos alunos, além de envolver os participantes em prol de interesses indi-
viduais e coletivos, está realizando um evento colaborativo, ou seja, está realizando um
evento de letramento. Ademais, o letramento literário é a apropriação da literatura na
perspectiva da linguagem, é um processo contínuo que faz com que o leitor estabeleça
interações entre textos que estão arraigados em sua memória.
A leitura literária pode ser um caminho para aproximar o cotidiano do aluno ao
universo do mundo letrado, mas para que isso ocorra, o professor deve fazer aos alunos
o convite à leitura, junto a mediações socioculturais variadas que possibilitem que o livro
deixe de ser apenas um adereço na prateleira e se estabeleça como ato de significação,
como estabelecimento de relações entre a palavra e o mundo.
O contato com o texto literário proporciona aos alunos múltiplas interpretações,
formas de expressão e formas de conhecimento. Segundo Cosson (2006, p.35)
Crescemos como leitores quando somos desafiados por leituras progressiva-
mente mais complexas. Portanto, é papel do professor partir daquilo que o
aluno já conhece para aquilo que ele desconhece, a fim de se proporcionar
o crescimento do leitor por meio da ampliação de seus horizontes de leitura.

No ambiente escolar, uma proposta didático metodológica em prol do letramen-


to literário deve buscar fortalecer e ampliar a educação literária, formar leitores que
sejam capazes de se inserir em uma comunidade, manipular seus instrumentos culturais
154 Anais do XIII SevFale

e construir sentido para si mesmo, bem como compartilhar essa leitura com o outro.
Corroborando esse ponto de vista, Colomer (2012, p. 44) afirma que “os alunos necessi-
tam ser encorajados por alguém que lhes ajude de forma continuada para que realizem
essas descobertas.”.
Na perspectiva de Solè (1998, p.22), a leitura é um processo de interação entre
o leitor e o texto, cujas finalidades são múltiplas: devanear, preencher um momento de
lazer e desfrutar, procurar uma informação concreta, confirmar ou refutar um conheci-
mento prévio, dentre outros. Nessa perspectiva, ler é dominar as habilidades de decodi-
ficação e também aprender distintas estratégias que levam à compreensão do texto. A
autora aponta alguns aspectos que podem ser levados em conta para um ensino correto
de estratégias. Conforme Solé (1998, p.90):
Ler é muito mais do que possuir um rico cabedal de estratégias e técnicas.
Ler é, sobretudo, uma atividade voluntária e prazerosa, e quando ensinamos
a ler devemos levar isso em conta. As crianças e os professores devem estar
motivados para aprender e ensinar a ler.

O processo de leitura deve garantir que o leitor compreenda o texto e construa


uma ideia sobre o seu conteúdo, extraindo aquilo que lhe interessa em função do seu
objetivo, pois são as condições em que a leitura se realiza que levam o leitor a usar de-
terminadas estratégias. Solé (1998, p.92) enfatiza que uma criança se sente envolvida na
leitura quando há indícios razoáveis de que sua atuação será eficaz. E o envolvimento do
leitor favorece a escrita, pois conforme Cosson (2012, p. 17), é na leitura e na escrita do
texto literário que nos reconhecemos, pois encontramos o senso de nós mesmos e da
comunidade a que pertencemos.
A literatura nos diz o que somos e nos incentiva a desejar e a expressar o mun-
do por nós mesmos. E isso se dá porque a literatura é uma experiência a ser
realizada. É mais que um conhecimento a ser reelaborado, ela é a incorpora-
ção do outro em mim sem renúncia da minha própria identidade. No exercício
da literatura, podemos ser outros, podemos viver como os outros podemos
romper os limites do tempo e do espaço de nossa experiência e, ainda assim,
sermos nós mesmos. É por isso que interiorizamos com mais intensidade as
verdades dadas pela poesia e pela ficção. (COSSON, 2012, p. 17).

Ao propor a prática escrita na formação do leitor literário, o mediador traz a con-


cepção imanente de que um leitor proficiente é também capaz de produzir textos escri-
tos com eficiência. Sendo assim, deve-se, por um lado, fazer o convite à leitura, tendo
em vista as múltiplas possibilidades que ela apresenta, e, por outro, deve-se estimular
a produção escrita porque, além de interessante e desafiador, é algo que, plenamente
conquistado, age como incremento à autonomia e à independência do leitor.
LEITURA LITERÁRIA: uma nova velha estória 155

Fiad (1994, p.362) constata que o trabalho de reescrita, quando ocorre na escola,
é direcionado pelo professor ou pelo material didático e que muitas vezes não há avalia-
ção desse processo. “Esse direcionamento pode ser mais explícito e enfático, quando o
professor aponta aspectos a serem refeitos nos textos de seus alunos, ou mais implícito,
quando é sugerido ao aluno que releia seu texto e o refaça, sem nenhuma interferência
de um interlocutor”. Um trabalho voltado para a reescrita implica sucessivos esforços de
revisão do texto escrito, em um processo de idas e vindas em prol de aprender através
de uma postura reflexiva.
Segundo Geraldi (1996, p.46) a escola tem a função de permitir a circulação escri-
ta entre as diversas instâncias de produção de saberes, uma vez que a aprendizagem da
escrita se dá concomitantemente à aprendizagem dos conteúdos referenciais associados
à escrita. Para o esse pesquisador, o ensino da língua escrita bem como suas normas, é
significativo quando parte da produção do próprio aluno e não de clássicos. Ele defende
que o trabalho de revisão ou reescrita de textos é uma forma eficaz de ajudar os alunos
a produzir textos e melhorarem a qualidade de sua produção textual.
Dialogando com o assunto, Marcuschi (2003a, p.47) defende que quem domina
a escrita pode, eventualmente, ter acesso a um maior número de conhecimentos. Para
tanto, o mediador deve desenvolver práticas que ampliem o domínio do aluno/escritor
e promover uma reflexão em torno do texto produzido.
O estudo aqui apresentado é um recorte de uma pesquisa desenvolvida em uma
turma de vinte e dois alunos do 6º na Escola Estadual “Juscelino Kubitschek de Oliveira”
no município de Ibirité, MG. O foco da pesquisa é contribuir com a formação de leitores
proficientes por meio de contos selecionados de Guimarães Rosa. Para esse estudo, a
proposta é a leitura dos Contos Chapeuzinho Vermelho na versão dos Irmãos Grimm e
“Fita Verde no cabelo: uma nova velha estória” do escritor Guimarães Rosa, com a apli-
cação da sequência básica proposta por Rildo Cosson (2006, p.55) que apresenta uma
proposta de letramento literário, através de uma sequência básica, dividida em: motiva-
ção, introdução, leitura e interpretação. No caso específico dessa pesquisa, será incluída
também o reconto e a reescrita do reconto.
Partindo dessas várias considerações, foi desenvolvido um trabalho com uma
turma de vinte e dois alunos do 6º ano fundamental da Escola Estadual “Juscelino Ku-
bitschek de Oliveira” no município de Ibirité, MG. Para alcançar os objetivos propostos,
concernentes à formação de um leitor de textos literários proficientes, a pesquisa foi
dividida em seis etapas metodológicas.
Na primeira etapa, como convite à leitura, a professora fez perguntas relativas à
história de “Chapeuzinho Vermelho” e sobre as outras versões do conto, buscando fazer
156 Anais do XIII SevFale

uma retomada do conhecimento prévio do aluno. As perguntas envolveram aspectos re-


lacionados às leituras anteriores, aos hábitos de leitura, aos horizontes de possibilidades
de um conto. Na proposta inicial, a “introdução” - definida por Cosson (2006) como a
familiarização do aluno com o autor, foi realizada com a exibição de um vídeo veiculado
na TV Brasil, Nos Caminhos da Reportagem, - que apresenta um pouco da história (ou
como grafa o próprio autor) “a estória” da vida e da obra de Guimarães Rosa, além de
uma breve exposição sobre os Irmãos Grimm.
Na segunda etapa, a professora promoveu a leitura dos dois contos. Na primeira
aula, durante a motivação, os alunos revelaram outras leituras de Chapeuzinho Verme-
lho e por isso, a professora pediu para que eles lessem esse conto de maneira silenciosa.
Na aula seguinte, trouxe o extrato do conto “Fita verde no cabelo: uma nova velha estó-
ria” momento em que foi explorado alguns aspectos do título, da expectativa de leitura,
do horizonte de possibilidades a partir do título. O destaque ficou para a antítese “velha
X nova”. Após a motivação, foi solicitado que eles lessem o conto silenciosamente. Vi-
sando elucidar alguns aspectos do texto, foi realizada a leitura através da pausa proto-
colada em que a professora fez várias interrupções propositais para ajudá-los a construir
o sentido do texto.
Na terceira etapa, objetivando ampliar os limites da leitura, a proposta foi a reali-
zação de duas atividades: uma visando a superfície do texto, - com a localização informa-
ções, a identificação das ações, a caracterização de cada uma das personagens; a outra
explorando as evidências presentes nos dois textos, o conhecimento prévio e a geração
de inferências. O foco foi verificar a tomada de decisões provisórias do leitor (firmadas,
rejeitadas ou aprimoradas) à medida que as informações parciais eram processadas.
Nessa atividade, os alunos identificaram informações explícitas e implícitas.
Na quarta etapa foi proposto aos alunos uma prática escrita em que eles deve-
riam em grupo recontar a história. Os alunos foram organizados anteriormente em gru-
po: o primeiro grupo tinha a tarefa de recontar a história destacando a personagem da
vovozinha; o segundo grupo a personagem do lobo mau; o terceiro a menina e o quarto
os caçadores.
Na quinta etapa, os alunos fizeram uma análise da produção dos colegas. Em grupo,
a professora passou a versão produzida para que outro grupo lesse e verificasse através
de critérios pré-selecionados conforme a lista de verificação organizada pela professora
o que poderia ser mudado na reescrita do reconto. Na sexta etapa, os alunos fizeram as
correções que julgaram necessárias finalizando assim a sequência básica com a reescrita.
Os alunos participaram de todas as atividades propostas de maneira efetiva.
Na leitura silenciosa, foi possível acompanhar através de gestos faciais o desconfor-
LEITURA LITERÁRIA: uma nova velha estória 157

to provocado pelo desconhecimento de algumas palavras e por diversas vezes houve


solicitações de esclarecimento de dúvidas. Na percepção da leitura, os alunos falaram
sobre a dificuldade com algumas palavras desconhecidas (neologismos), com as inver-
sões, com a linguagem utilizada pelo autor. Um aluno disse que “parece que o escritor
estava com preguiça de escrever, pois usa poucas palavras para dizer muitas coisas”.
Então, através da pausa protocolada foram discutidos alguns aspectos relativos à es-
trutura do conto, à língua, à estética, à linguagem utilizada. Ao relacionar os dois con-
tos, eles disseram que em algumas partes, o conto de Guimarães Rosa aproxima da
versão dos irmãos Grimm, mas em outras partes não. Afirmaram que há em comum a
mãe, a menina, e a vovozinha em ambos os contos. No entanto, em “Fita verde no ca-
belo” o distanciamento ocorre devido à morte da vovozinha e a ausência do lobo mal.
Questionados se conseguiriam assinalar mais diferenças entre as personagens, eles
disseram que sim e uma lista de constatação foi realizada coletivamente com destaque
para algumas diferenças: bosque X floresta, cesto de bolo X cesto vazio, porta com
trinco X porta com ferrolho, etc. Foi possível perceber que os alunos tiveram mais difi-
culdades ao ler o conto de Guimarães Rosa porque no primeiro momento, as palavras
desconhecidas se tornaram obstáculos para a compreensão e também porque era a
primeira vez que liam um conto do autor. Ao realizar a leitura com pausa protocolada,
eles participaram das intervenções e conseguiram perceber que os contos apresentam
o mesmo tema, mas a estética utilizada é diferente. Embora a linguagem seja mais
elaborada no conto de Guimarães Rosa, eles conseguiram apontar as diferenças fun-
damentais entre os dois contos.
Ao produzir o reconto, os alunos também foram organizados em grupos: o pri-
meiro que tinha a tarefa de reescrever a história destacando a personagem da vovozi-
nha, começou a escrever com muita liberdade. Os integrantes estruturaram o enredo
e se empenharam coletivamente na realização da tarefa. O segundo grupo, com des-
taque na personagem do lobo mau, teve dificuldade na introdução da história, mas
superada essa etapa, a história fluiu com facilidade, e eles prosseguiram com bastante
autonomia. O terceiro que escreveu destacando a personagem da menina teve muita
dificuldade, pois queriam trazer a história para a atualidade. Por diversas vezes, foi
explicado que era importante observar o tempo da narrativa e a personagem que se-
ria destacada, mas não havia consenso suficiente entre os integrantes e a realização
da tarefa para esse grupo, demorou mais tempo do que o previsto. O quarto grupo
não aceitou as intervenções, inclusive um aluno disse que era uma simples história
e que não precisavam fazer um planejamento para escrever um texto “perfeito”. No
acompanhamento das atividades, ficou claro que esse grupo era composto por alunos
que não tinham muita afinidade entre si; eles não entraram em acordo sobre quem
158 Anais do XIII SevFale

iria passar para o papel as ideias dos demais e cada um ficou esperando que os outros
realizassem as atividades. Apesar dos obstáculos encontrados no decorrer das aulas, a
proposta foi finalmente cumprida.
Acredita-se que o objetivo da pesquisa foi alcançado tendo em vista que o foco
era contribuir na formação do leitor de texto literário. Na parte do reconto e da reescri-
ta, os alunos perceberam que o leitor deve adentrar no universo do conto desde a sua
introdução, que constitui o começo da história. Focalizar o ponto de vista da narrativa
através do narrador que apresenta os fatos iniciais, revelar os protagonistas e eventual-
mente demarcar o tempo e/ou espaço. O enredo deve ter fatos organizados de acordo
com uma sequência lógica de acontecimento. Além disso, na parte de reescrita, alguns
alunos perceberam através da lista de verificação que é necessário apresentar um con-
flito que é a parte elementar de toda a “trama”, pois possibilita a motivação ao leitor/
ouvinte, instigando-o a se envolver com a história. E para que haja essa interação, os
fatos devem conferir uma logicidade. Dessa forma, esse evento de letramento na sala
de aula contribuiu com a formação dos alunos/leitores porque foi apresentado aspectos
relacionados à estrutura, um texto desconhecido e motivador e estratégias para levá-los
a compreender melhor o conto de Guimarães Rosa. Além disso, notou-se que os alunos
foram bem críticos com o texto do outro ao fazer a análise com a lista de verificação,
no entanto, ao receber o texto de volta para a reescrita perceberam que muitos dos
aspectos criticados estavam presentes também nos seus textos, levando-os a repensar
também a sua própria prática, mas o principal é que puderam se sentir escritores em
uma nova velha estória.
Concluindo, a escola deve estimular a leitura, pois a autonomia é advinda da
prática. A proposição de atividades semelhantes ao longo do percurso escolar com
certeza deverá trazer maior familiaridade com outras obras e até mesmo com os ou-
tros contos do autor e uma maior desenvoltura nos processos inerentes à sua com-
preensão. À medida que se amplia o universo do conhecimento, novos valores serão
agregados de tal maneira que o leitor proficiente conseguirá interagir com qualquer
tipo de texto.
LEITURA LITERÁRIA: uma nova velha estória 159

REFERÊNCIAS

COLOMER, T. Andar entre livros: a leitura literária na escola. Tradução de Laura Sandroni.
3 ed. São Paulo: Global, 2007.
­­
COSSON, R. Letramento Literário. GLOSSÁRIO CEALE/UFMG, 2014a. Disponível em:
ceale.fae.ufmg.br/app/webroot/glossarioceale/verbete/letramento-literario. Acesso
em 15 de jan. de 2016.
_____. Círculos de literatura e letramento literário. São Paulo: Contexto, 2014b.
_____. Letramento literário: educação para vida. Vida e Educação, Fortaleza, v. 10,
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COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2006b.
FIAD, R. S., MAYRINK-SABINSON, M. L. T. A escrita como trabalho. In: MARTINS, M. H.
(org.). Questões de linguagem. São Paulo : Contexto, 1991. p.54-63
GERALDI, João Wanderley. Linguagem e ensino – exercício de militância e divulgação. s/
ed, Campinas, SP: Mercado de Letras - ABL, 1996.
MARCUSCHI, L. A. Da Fala para a Escrita: atividades de retextualização. 4. ed. São Paulo:
Cortez, 2003a.
ROSA, João Guimarães, ROSA, J. Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1977.
A “Anti-infância” de MaximGorky: Um Modelo
de Experiência Infantil e seu Aspecto Político.

Marcelo Dourado de Campos - UFMG

Resumo: Childhood (1913) é o primeiro volume da trilogia autobiográfica de MaximGorky, pelo


qual o autor introduz na literatura russa um novo paradigma de narrativa das experiências da
juventude, os componentes de um modelo de “anti-infância” que reverberará por toda a litera-
tura soviética. Wachtel (1990) identifica a obra de Gorky como a primeira tentativa significativa
de demolição da narrativa da infância predominante na tradição literária russa, a experiência da
baixa nobreza, proprietária de terras, de uma infância idílica em um paraíso descomplicado que
se degrada com a perda da inocência e as complicações da vida adulta. A narrativa de Gorky,
concebida como uma oposição direta à trilogia autobiográfica de Tolstoy, desconstrói a mitologia
canônica da infância da gentry, desmantelando o mito da mãe perfeita, do Éden bucólico, da ser-
vidão harmoniosa. Barthes (1972) concebe a mitologizaçãocomo um processo em que uma ideia
é retirada de seu contexto original e se transforma em um modelo ideológico. Nestes termos,
Gorky compõe seu próprio mito de pobreza, abandono e abuso, estabelecendo um novo cânone
soviético da infância no qual a degradação e brutalidade da realidade serão, simultaneamente,
formadores de caráter e evidências da necessidade revolucionária.

Palavras-chave: infância, literatura soviética, Gorky, autobiografia.

Simpósio: Literatura e Infância - Eixo 2: Infância como provocação teórica: escrever


sobre infância, escrever para a infância.

AlekseiMaximovichPeshkov abandonou a escola aos dez anos de idade e se tor-


nou aprendiz de sapateiro. O primeiro ofício inaugura uma juventude atribulada: Peshkov
foi estivador, padeiro, jardineiro, pescador, lavador de pratos, pintor de paredes. Seu avô
162 Anais do XIII SevFale

o escorraçara, seus empregadores o espancavam; a fome o corroía, o frio, congelava. A


vida parecia incidir sobre o jovem Aleksei como uma roleta de experiências brutais da
miséria, enrijecendo-o em uma espécie de homem renascentista do subemprego russo.
Sua vida era a penúria, e a penúria fertiliza a mente de um escritor revolucionário. Ela
também é um batismo: em 1895, AlekseiMaximovichPeshkov assume o nome Maxim-
Gorky. Gorky, o amargo, em russo. (SCHERR, 1988).
O crítico russo Boris Eikhenbaum escreveu:“Gorky aprendeu literatura “fugindo”,
e ingressou nela com uma coragem instilada pela natureza”. (apud FANGER, 2008, p.276,
tradução nossa). Donald Fanger (2008) completa: “Ele inventou um nome e o nome ad-
quiriu vida própria” (p.180, tradução nossa).
Vida própria e ubíqua: circulando por Moscou, um viajante esfomeado (caso au-
torizado) encontraria a melhor comida nas lojas da Rua Gorky, a caminho dos festejos de
Primeiro de Maio no Parque Gorky, onde passaria por debaixo da faixa que proclamava
o slogan stalinista: “A vida finalmente ficou melhor, a vida se tornou mais alegre”. (FIT-
ZPATRICK, 1999, p.94, tradução nossa). Deixando Moscou, seguindo a ferrovia Gorky, o
trem corta a vegetação ao redor do Reservatório Gorky (conhecido coloquialmente por
Mar Gorky, a região do rio Volga que seria represada pela Usina Hidrelétrica Gorky) até
seu destino final, a estação Gorky na cidade natal de MaximGorky, Gorky.
Seu nome era evocado, no auge do regime stalinista, como símbolo e ponto de
convergência de todos os aspectos positivos e “naturais” do proletário, do consciente,
do russo. Sua literatura tingiu intensamente o imaginário coletivo revolucionário e a cul-
tura encarregada de propagar os valores revolucionários. Sua obra contém as sementes
de um novo projeto humano e foi alçada posteriormente ao topo da pirâmide do que de-
veria ser a “nova cultura” do “novo mundo”, o Realismo Socialista. Sob a retórica oficial,
a literatura de Gorky é a literatura com propósito; a arte deve educar e transformar. Foi
na sala de estar de MaximGorky que Stalin, como reza a lenda, famosamente declarou
que os escritores eram “engenheiros de almas”. (FRITZSCHE & HELLBECK, 2009, p.307,
tradução nossa).
AlexseiPeshkov, amargo e jovem, tentou suicidar-se aos vinte e um anos de idade.
A bala atravessou seu pulmão. Gorky sobreviveu. (SCHERR, 1988).
Recuperando-se, peregrinou por dois anos desde sua cidade natal, cruzando o
território russo em companhia de ladrões, mendigos, prostitutas, degenerados, pobre-
tões e miseráveis. Antes de entrar para a carreira jornalística, aos vinte e quatro anos,
a vida de Gorky já havia incorporado o contorno mitológico de um folk hero, o viajante
do submundo, penetrando o coração russo em busca de sua alma popular, escondida e,
portanto, honesta.
A “Anti-infância” de MaximGorky: Um Modelo de Experiência Infantil e seu Aspecto Político. 163

Um dos empregos que Gorky foi forçado a assumir quando criança foi o de apren-
diz de pintor de ícones religiosos. Segundo Katerina Clark (1981), assim como o artista
recorre à pintura original para repetir em ícones subsequentes o esquema de cores apro-
priado ao tema ou o ângulo correto da posição das mãos de um santo, o escritor soviéti-
co era encorajado a reproduzir, na literatura realista socialista, gestos, frases, momentos,
o esqueleto simbólico que sustenta as obras consideradas canônicas do estilo. Em um
processo mais intenso do que a mera cópia de personagens e incidentes das obras, o
escritor soviético “organizava toda a estrutura da trama de seu romance com base nos
padrões presentes nas obras” (CLARK, 1981, p.4, tradução nossa).
Na medida em que o Realismo Socialista assume o aspecto de prescrição oficial
do estado sobre a literatura, o aprendiz de pintor de ícones AlexseiPeshkov torna-se
MaximGorky, o artista do ícone primordial. Sua vida e obra serão reiteradas na literatura
soviética, assumindo novas roupagens e nuances, porém sempre remetentes ao modelo
original. Tal processo de reprodução perfura a fronteira entre personagem e autor, entre
obra e vida.
Segundo Balina (2005), quando os escritores soviéticos SamuilMarshak e Kornei-
Chukovsky escreveram as autobiografias de suas respectivas infâncias, foi-lhes privado
o aspecto idealizador do passado: suas obras carecem do pigmento que tinge a experi-
ência infantil como inocente, lúdica e descomplicada. Nascidos antes da revolução, suas
memórias do tempo pré-revolucionário deveriam se adequar a uma espécie de “etique-
ta autobiográfica soviética” (p.249, tradução nossa). Os eventos significativos da infân-
cia deveriam corresponder a um modelo que Andrew Wachtel (1990) descreveu como
narrativa da “anti-infância”.
A descrição de experiências felizes, a preciosidade da infância protegida em uma
vasta propriedade rural até a vida lhe forçar o amadurecimento – eis o modelo de infân-
cia proeminente na tradição literária russa até então. O garoto, membro da classe alta
rural (gentry), filho de uma mãe ideal, herdeiro de um paraíso bucólico, rodeado por
servos contentes em harmonia social; o “tempo feliz” em Childhood (1852), “Infância”,
autobiografia de Tolstoy. Na literatura soviética, argumenta Wachtel, tal modelo foi su-
plantado por outro, crispado de dor, marcado pela perda, imerso em miséria e acima
de tudo, um painel de injustiça social que confinava o autor à existência desprivilegiada
das classes baixas. Enquanto o paradigma da infância literária era reiterado, na tradição
literária russa, a partir do modelo autobiográfico de Tolstoy, o novo paradigma da anti-
-infância na literatura realista socialista era a reprodução dos elementos determinados
por outra Infância, MyChildhood, o texto autobiográfico publicado em 1913 por Maxim-
Gorky.
164 Anais do XIII SevFale

A obra de Gorky constitui, segundo Wachtel (1990), a primeira tentativa bem-su-


cedida de profanação do conjunto de símbolos que compunham a experiência infantil
narrada na literatura autobiográfica russa. A relevância do esforço reside em um fenô-
meno, argumenta Wachtel, recorrente na cultura russa: “(...) ao longo do tempo, um
tema ou ideia, primeiramente expressa em uma obra literária cessa em ser uma questão
literária e se torna um mito sociocultural” (p.1, tradução nossa). Transformado em mito,
um tema orienta e organiza as experiências individuais:
“Quando membros da gentryrememoram suas infâncias, eles projetam suas
próprias lembranças sobre os padrões propostos por Tolstoy e Aksakov (...) as
obras se tornaram as fontes de um certo número de mitos sobre a infância
russa. Tais mitos variam em alcance, daqueles governando a interpretação
da infância como um todo àqueles concernindo aspectos seletivos da vida de
uma criança” (p.83, tradução nossa).

O mito se esquematiza em um modelo na medida em que este configura um pa-


râmetro, na cultura, legitimador da experiência da realidade. Tratando-se da infância,
tal processo é especialmente intenso. Afinal, o modelo de infância feliz da gentryera
frequentemente abordado, pelos autores, como uma espécie de sinédoque para a vida
russa; um esquema simbólico de coesão identitária, pretensamente universal, ao mes-
mo tempo em que reforçava uma identidade de classe. No capítulo introdutório de suas
memórias, E.N.Trubetskoy elenca justificativas para a existência de sua obra: “E por isso
desejo lembrar-me do passado no qual obtive a fortuna de viver tanta alegria e bonda-
de- pois tal bondade não pertence apenas a mim. Ela é totalmente nativa – russa.” (TRU-
BETSKOY apud WACHTEL, 1990, p.92, tradução nossa).
A descrição da experiência infantil e sua conservação em um modelo simbolizam
tudo que deve ser preservado na cultura russa, tudo o que é entendido por genuíno. A
canonização dos mitos da infância, extraídos da literatura, é então um processo ideoló-
gico: a narrativa da infância torna-se o palco no qual trava-se a batalha, na cultura, entre
entendimentos distintos sobre qual é a verdade irredutível a sumarizar o espírito russo.
De um lado, um modelo cujo arcabouço simbólico reitera um espírito de solidariedade
classista, bem como preserva a estrutura tradicional da sociedade russa; um ponto de
convergência que simultaneamente opera como modo de diferenciação das outras clas-
ses. De outro lado, um novo modelo que ao legitimar o processo revolucionário, deve
necessariamente condenar a velha sociedade, os velhos modos e um velho modelo que
exclui e edulcora uma realidade (tida como praticamente geral) de privação e injustiça.
Gorky, em sua autobiografia, alterou dramaticamente sua função ideológica - da
afirmação do status quo ao seu inverso, a expressão de um ideal socialista futuro. Nestes
A “Anti-infância” de MaximGorky: Um Modelo de Experiência Infantil e seu Aspecto Político. 165

termos, como a anti-infância de Gorky se contrapõe ao modelo de infância feliz ancora-


do nas memórias de Tolstoy?
O processo tem raízes pessoais. A obra e a figura de Gorky eram frequentemen-
te comparadas ou opostas à Tolstoy (WACHTEL, 1990), para além dos registros de suas
infâncias. Gorky publicou, em 1908, sua Confissão, uma reação em vários aspectos à
Confissão de Tolstoy, publicada anos antes. Nesta, é narrada a história de um aristocrata
que é retirado de sua vida confortável por questões metafísicas. Sua incapacidade de re-
solvê-las leva o personagem a uma crise existencial da qual ele escapa apenas por meio
de intensa investigação interior que o conduz em uma jornada sinuosa pela memória,
culminante na paz em uma crença particular em Deus e um entendimento individual do
cristianismo. O protagonista da Confissão de Gorky, em contrapartida, é uma criança
abandonada que leva uma vida extremamente difícil e miserável. Pela observação e ex-
periência, o protagonista se desloca da fé em Deus para a crença na viabilidade de um
Paraíso escatológico, a perfeição do Reino dos Céus construída na dimensão terrena. A
relação entre as duas confissões não somente antevê os temas que distinguirão as obras
de Gorky da tradição literária russa (a iconoclastia, o utilitarismo revolucionário para o
fomento da utopia, a fé marxista na marcha progressiva da história), como também o
jogo intertextual entre o autor e Tolstoy, que se aprofundará ao longo do tempo.
Com efeito, Gorky entrevistou e redigiu as memórias de Tolstoy, em uma obra
na qual tenta estabelecer sua posição “tanto como herdeiro de sua tradição quanto seu
modificador” (1990, p.133, tradução nossa). Nela, Gorky relata um episódio em que
Tolstoy lhe propõe um desafio: “É difícil crer que você já foi pequeno (...) é como se
você já tivesse nascido adulto” (TOLSTOY apud WACHTEL, 1990, p.134, tradução nos-
sa). Gorky deveria, então, escrever algo sobre “um garotinho, algo sobre você mesmo”
(Idem). Implícito, aqui, está o encorajamento de Tolstoy para que Gorky revelasse sua
experiência individual, de modo que pudesse, simultaneamente, aludir a uma experi-
ência infantil geral - lê-se, russa. Em outras palavras, Gorky deveria emular o mesmo
formato utilizado por Tolstoy cinquenta anos antes. Segundo Tyinianov (apud WACHTEL,
1990), na tradição das letras russas a paródia era concebida como o método pelo qual os
“filhos” tentam superar a influência de seus “pais” literários. Para tal, faz-se a inversão
dos sinais na simbologia e nos eventos que compõem uma obra parodiada: o positivo
torna-se o negativo.
Em Childhood, Gorky faz referência à Childhood de Tolstoy de múltiplas maneiras
– a começar pelo uso do mesmo título. Curiosamente, a autobiografia de Tolstoy é nar-
rada por sua identidade literária, Nikolai Irten´ev, enquanto a obra de Gorky, um pseudô-
nimo, é narrada por AlekseiPeshkov, que é seu nome real. Exemplos de correspondência
e inversão de elementos narrativos entre as obras são inúmeros e aparentemente corro-
166 Anais do XIII SevFale

boram o entendimento de que o texto de Gorky foi concebido para subverter a tradição
autobiográfica da gentry. Por exemplo, Wachtel (1990) destaca o papel da morte como
rito de passagem. A infância de Irten´ev, lúdica, confortável, e protegida, se encerra com
a perda de sua mãe.
A morte, aqui, perfura o conforto da bolha hermética de sentimentos protegi-
dos de sua infância e o lança às incertezas do mundo social e da vida adulta. A infância
de Alexsei/Gorky, em contraste, se inicia com a morte de seu pai. Longe de ser um rito
de passagem, a morte, aqui é o prelúdio, o overturede uma ópera de tragédias. Desta
forma, Gorky enfatiza de imediato sua intenção de ruptura. Assim como Tolstoy, Gorky
termina seu primeiro volume com a morte da mãe. Entretanto, enquanto a morte da
mãe de Irten´ev implica em uma reação emocional, a tristeza introspectiva da perda,
Alexsei/Gorky descreve o momento similar de maneira distanciada: “Eu permaneci ali,
com o copo em minha mão, por um longo tempo, próximo ao leito de minha mãe, obser-
vando sua face endurecer e acinzentar. Vovô veio e eu lhe disse: “minha mãe morreu...”
(GORKY, 1990, p.209, tradução nossa). A morte da mãe de Aleksei não repercute dra-
maticamente; apenas soma-se à montanha de tragédias que se acumulou em sua breve
vida até então. Não há nada perdido, não há nada de novo.
A indiferença sugerida em Aleksei parece refletir o interesse de Gorky em sub-
verter o “mito da mãe perfeita”. No modelo de infância da gentry, a mãe é uma enti-
dade sagrada indistinta, um ser de luz que reúne em si todas as qualidades humanas e
se define apenas como uma fonte de amor incondicional, sem personalidade marcante
(WACHTEL, 1990). Na autobiografia de Gorky, à despeito do laço entre o narrador e sua
mãe, ela sucumbe como uma fatalidade entre inúmeras outras, um estágio da vida que
não representa uma ruptura, mas uma continuidade que confirma a natureza brutal da
realidade na sociedade russa.
Em adição, Gorky também ataca um mito proeminente na tradição autobiográ-
fica da gentry: a relação harmônica entre criança e natureza em um paraíso bucólico,
a inocência de uma refletindo a pureza da outra. A memória afetiva de tal relação har-
mônica inunda o coração adulto de ternura como uma expressão nostálgica agridoce. A
infância de Gorky, porém, se desenrola nas tribulações de um ambiente urbano e passa-
gens sobre a natureza, na obra, possuem a função de ressaltar o aspecto classista da co-
munhão entre criança e natureza. Ainda, paisagens naturais são evocadas com tristeza, o
contraste entre o silêncio e o barulho frenético dos centros urbanos (Idem). No modelo
tradicional, à harmonia entre criança e natureza soma-se a harmonia entre os senhores
da terra e os camponeses, simples e contentes – a validação implícita de uma sociedade
fundada em um regime de servidão que só terminaria após 1860. Ao descrever a vida
rural, Gorky tenta demolir o mito do “camponês feliz”:
A “Anti-infância” de MaximGorky: Um Modelo de Experiência Infantil e seu Aspecto Político. 167

“Eu frequentemente ouvira e lera que no interior as pessoas vivem felizes e


mais saudavelmente do que na cidade. Mas – eu vejo camponeses em tra-
balho árduo perpétuo (...) Não quase ninguém feliz entre eles. Os artesãos e
trabalhadores da cidade, que trabalham não menos, vivem mais felizes (...)
As pessoas do vilarejo vivem como cegos. Todos têm medo de algo, eles não
confiam uns aos outros. Há algo de animalesco entre eles” (GORKY, 1990, pgs
102-103, tradução nossa).

O modelo de infância da gentry reflete uma necessidade, por parte dos autores,
da preservação de um estilo de vida russo que o radicalismo revolucionário enfrentará
como inimigo existencial. Uma sociedade ideal cujos alicerces são a natureza (a grande
fazenda como oposta à cidade), o camponês (oposto ao operário), o proprietário de ter-
ras (ao invés do industrial). Gorky, em contrapartida, minimiza o impacto simbólico do
natural sobre a formação da personalidade, privilegia o proletariado urbano e insere sua
experiencia de vida em uma interpretação marxista da natureza e da história. Ao mani-
festar suas posições ideológicas no formato autobiográfico parodiado de Tolstoy, Gorky
“invadiu o bastião do que era propriedade exclusiva da tradição literária da gentry”(WA-
CHTEL, 1990, p.141, tradução nossa). Gorky respondeu ao desafio de Tolstoy, orientando
sua obra em oposição total a este: pela memória da experiência individual como uma
contestação à universalidade do modelo de infância literário tradicional russo e estabe-
lecendo, talvez inadvertidamente, um modelo simbólico posterior.
Ao inaugurar um modelo de anti-infância, Gorky alicerçou seu mito particular
de pobreza, negligência e abuso, “estabelecendo assim o novo cânone soviético da in-
fância (BALINA, 2005, p.250, tradução nossa)”. Os primeiros e brutais anos da vida de
Gorky, traduzidos em narrativa literária, configuram um modelo na medida em que pela
“influência sobre as memórias da infância de diversas figuras literárias soviéticas e au-
tobiógrafos” (Idem), estabelece um padrão que se reitera determinando os eventos que
compõem as lembranças nas páginas destes autores. A infância de Gorky funde-se com
a infância dos autores soviéticos, projetando-se hierarquicamente sobre elas de forma a
legitimá-las como verdadeiras. O mito, assim, solidifica-se em um modelo, em um para-
digma frente ao qual serão julgadas a vida e sua representação autobiográfica.
A transformação da experiência narrada em um modelo não ocorre pela negação
da veracidade dos eventos; a brutalidade da infância de Gorky, amplamente narrada,
torna-se quase impossível de ser contestada. Ainda, é praticamente impossível mensu-
rar a ciência, por parte dos autores, dos aspectos ideológicos modelares que sublinham
suas autobiografias. Em contrapartida, a conversão da experiência autobiográfica em
modelo revela seu potencial para persuasão política. Barthes (1972) identifica, em uma
cultura, o processo de mitologização da realidade. Isto ocorre quando um objeto ou uma
168 Anais do XIII SevFale

ideia são extraídos de seu contexto original, transformando-se em modelos ideológicos.


Similarmente, a experiência do real se codifica quando é destilada em um padrão sim-
bólico, um conjunto de símbolos representativos que serão utilizados para a sustentação
de um sistema social. O mito age segundo uma “economia” (Idem) pois a conversão da
experiência à narrativa atribui sentido simbólico aos eventos, quando recortados da re-
alidade – e isto ocorre mediante a planificação da experiência, despindo-a da complexi-
dade intrínseca ao real. Em outras palavras, o modelo é uma simplificação simbólica da
experiência de forma a validar uma ideologia.
Com efeito, o modelo de anti-infância de Gorky é definido por seu próprio as-
pecto utilitário; ele introduz um critério político normativo no âmbito das memórias
pessoais. A infância feliz da criança da gentry, idílica e protegida, simbolizava a verda-
deira infância russa, mitologizadacomo um elemento de coesão social que dá aval a um
sistema quase feudal vigente durante séculos. Analogamente, a infância de Gorky torna-
se o molde, o ícone da única experiência russa possível, cuja função é condenar o velho
sistema e fornecer o arsenal simbólico que justifique sua substituição: “uma vez que
o modelo de “infância feliz” se deslocou do mundo da gentry para o mundo da Rússia
pós-revolução, o único modo aceitável de se representar o passado pré-revolucionário
era pela descrição de dificuldades e privações.” (BALINA, 2005, p.250, tradução nossa).
Nestes termos, o novo modelo
“determinou a vida pré-revolucionária como ruim, abusiva e depravada no
seu tratamento de crianças desprivilegiadas que existiam, desde os primeiros
anos de suas vidas, em um mundo de injustiça social. Assim, a infância como
um objeto de memórias pessoais não escapou das pressões da história oficial
que subordinava e controlava a narrativa da vida privada durante o período
soviético.” (Idem).

A realidade da infância de Gorky é brutal e implacável. Um mundo cruel e indi-


ferente forja o espírito revolucionário da criança, justificando, assim, a necessidade de
um novo e justo mundo em um futuro tangível às suas mãos. A anti-infância de Gorky
é, em grande medida, a infância do Realismo Socialista – e não somente por ser um dos
ícones originais a serem reproduzidos fidedignamente; o modelo antevê alguns dos fun-
damentos mais profundos desta estética literária. O modelo de anti-infância de Gorky
ilustra o aspecto didático de sua literatura, vinculado a um desejo utópico catalisador da
necessidade revolucionária e embrenhado no percurso da história.
Entre os dois modelos antagônicos de infância, existe um elemento comum
para além da distorção e do nivelamento da experiência: a tentativa de redefinir a
natureza da infância russa. No modelo baseado em Tolstoy, ela é uma época em que
uma pessoa “começa a entender o seu próprio eu através da autoanálise e do contato
A “Anti-infância” de MaximGorky: Um Modelo de Experiência Infantil e seu Aspecto Político. 169

com um mundo externo extremamente limitado.” (WACHTEL, 1990, p.143, tradução


nossa). O amadurecimento do indivíduo se completa quando o narrador, no processo
autobiográfico, adquire a consciência total do abismo temporal e espacial que o sepa-
ra de sua versão incipiente. Tal distância somente é percorrida pela memória, e me-
mória aqui é uma expressão nostálgica. No processo de investigação interior, em bus-
ca da coesão identitária do próprio ser, o narrador/autor “anseia por um período de
inocência infantil que precedeu o desenvolvimento da autoconsciência” (1990, p.144,
tradução nossa). A infância da gentry, quando narrada, se desenrola em um paraíso
bucólico cujo processo de degradação se inicia com a invasão e contaminação do idílio
pelas complexidades do mundo social externo. A alusão bíblica é incontornável: “O fim
da infância ecoa a queda do homem e o exílio do paraíso. Estes são ocasionados pela
aquisição de conhecimento e constrangimento (self-consciousness)” (p.145, tradução
nossa). Inevitavelmente, a criança “morderá a maçã” que a levará para cada vez mais
longe de seu Éden original, simples e controlado, movendo-se para a vida social abran-
gente, da utopia à distopia do real.
Em Gorky, o processo é reverso. “Morder a maçã” é uma necessidade vital que
convida clareza de percepção. Nas obras autobiográficas segundo o modelo anterior, o
infantil é um estado sagrado do ser, acessível, do presente, apenas por algum tipo de
transe e imersão mnemônica. Para Gorky, os elementos valorosos da infância são laten-
tes; a plasticidade da identidade, o otimismo, o idealismo, são facetas da personalidade,
sempre presentes como potências a serem resgatadas e estimuladas, racionalmente, na
vida adulta.
A convicção que sublinha o modelo de anti-infância aparenta ser que “as forças
mais importantes para o desenvolvimento não são processos psicológicos internos, mas
o contato com o mundo externo.” (Idem). Ter o caráter lapidado pela adversidade signi-
fica abrir-se para o mundo da experiência. Significa, também, desafiar a brutalidade do
real, abrindo-se, consequentemente, para a possibilidade de transformação deliberada
do mundo e de si próprio. Frente à hostilidade indiferente do mundo, ao silêncio da au-
toridade divina, não há modo de vida viável senão atravessar o deserto da existência na
esperança de fertilizá-lo – e, no processo, refundar o mundo em uma versão superior,
justa, tributária da autotransformação humana.
O autoconhecimento adquirido pela experiência é força propulsora, para “longe
de um passado nefasto, rumo a um futuro radiante” (Ibidem). A ação revolucionária,
portanto, ressalta-se como necessidade e até mesmo inevitabilidade, uma vez que a
convicção de Gorky é ideológica, “enraizada na crença em uma marcha progressiva da
história” (p.147, tradução nossa). Evidentemente, o Éden, aqui, é vislumbrado no futuro.
O movimento da infância à maturidade encontra legitimidade em seu aspecto político,
170 Anais do XIII SevFale

na medida em que o indivíduo, munido pela experiência, contribua para a materializa-


ção deste futuro.
A distopia do presente, em Gorky, é o trampolim para um futuro melhor. Da bru-
talidade de sua infância, acende-se a chama revolucionária que transforma o homem em
flor que brota do lodo. Na tradição anterior, o elemento distópico do presente é subli-
nhado, uma vez que no passado encontra-se a simplicidade natural de um sistema que
se degenerou, reflexo da inocência perdida.
Ao ter sua narrativa autobiográfica incorporada como um modelo mitologizado,
Gorky antecipa o Realismo Socialista como a crônica de um presente distópico sobre o
qual incidirá um futuro ideal, em processo de fabricação, cujo sucesso é inexorável à
transformação revolucionária do ser humano. Ainda, em uma corrente literária utilitária
na qual seus autores são “engenheiros de almas” e o herói possui importância didática
absoluta, Gorky, o amargo, torna-se exemplo: de criança à homem; de homem à mito;
de mito à estátua.

REFERÊNCIAS

BALINA, Marina. Troubledlives: The legacyofchildhood in sovietliterature. In: The


SlavicandEastEuropeanJournal, Vol.49, No2, SpecialForumIsuue: RussianChildren´sLiterature:
ChangingParadigms (Summer, 2005), pgs. 249-265. Disponível em www.jstor.org/
stable/20058252. Acesso em 25/04/2018.
BARTHES, Roland. Mythologies. Nova York, Hill and Wang, 1972.
CLARK, Katerina. The Soviet novel – history as ritual. Chicago, Universityof Chicago
Press, 1981.
FANGER, Donald. Gorky´sTolstoyandotherreminicences: keywritingsbyandabout
MaximGorky. Cambridge, Yale University Press, 2008.
FITZPATRICK, Sheila. Everydaystalinism: ordinarylife in extraordinary times: SovietRussia
in the 1930s. Nova York, Oxford University Press, 1999.
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FRITZSCHE, Peter; HELLBECK, Jochen. The new man in stalinistRussiaand nazi Germany. In:
GEYER, Michael; FITZPATRICK, Sheila. BeyondTotalitarism: stalinismandnazismcompared.
Cambridge, CambrigeUniversity Press, 2009. Pgs. 302-341.
GORKY, Maxim. Childhood. Londres, PenguinClassics, 1990.
SCHERR, Barry. MaximGorky. Nova York, Twayne, 1988.
TOLSTOY, Leo. Childhood, boyhoodandyouth. Nova York, The Modern Library, 2002.
WACHTEL, Andrew. The battleofchildhood: creationof a russianmyth. Stanford, Stanford
UP, 1990.
Estruturas Conviviais e Infância

Maria Elisa Pereira da Almeida - UFMG

Resumo: Considerando as reflexões de Dubatti na sua trilogia da Filosofía del Teatro I, II e III
(2007, 2010, 2014) sobre a composição do acontecimento teatral, onde são desenvolvidas as
noções de convívio, expectação e poíesis e, a partir delas, é elaborada sua definição pragmáti-
ca do teatro, objetiva-se mostrar as relações que podem ser estabelecidas entre as estruturas
conviviais e a infância. Para tanto, desenvolve-se cada uma das três noções, que são interligadas
entre si, dando-se destaque para o convívio. As estruturas conviviais relacionam-se com a reu-
nião de presenças sem intermediação tecnológica e são consideradas pelo autor básicas para
a instauração do acontecimento do teatro. No convívio há mais experiência que linguagem e
isso, por sua vez, remete-nos aos estudos de Agamben (2008) que se refere à cultura vivente
como zona in-fante. Dupont (1999) investiga os rituais do banquete na Grécia Antiga quando,
no symposium (beber juntos) a poesia oral era compartilhada. Desse modo, pode-se ver como o
convívio enquanto zona de experiência relaciona-se com a infância do homem e, em uma escala
ampla, com a infância da própria humanidade.

Palavras-chave: estruturas conviviais; infância; Dubatti; convívio.

Simpósio: Literatura

INTRODUÇÃO

No começo dos anos 90, envolvi-me com a pesquisa e narração oral de contos
de tradição oral, mais especificamente os chamados contos maravilhosos ou contos de
174 Anais do XIII SevFale

fadas, estimulada pela realização de estudos de orientação antroposófica1. Tais estudos


sugeriam que os contos maravilhosos deveriam ser narrados respeitando-se a sua ver-
são original, compilada pelos Irmãos Grimm.
Pouco tempo depois, o trânsito para a narração oral de textos literários deu-se de
forma mais ou menos natural – já que, nesse novo contexto impunha-se também a rela-
ção direta da narração oral com o texto-base escrito, agora, no caso, com o texto literário
de um autor específico. A criação do Grupo Tudo Era Uma Vez, em 1993, em parceria
com a narradora Dôra Guimarães, uniu nossas práticas e vivências particulares no intuito
comum de desenvolver a narração oral e divulgar bons textos da literatura por essa via,
o que acabou por desembocar na nossa opção pela especialização na narração de textos
literários. Nesse percurso, fomos desenvolvendo o nosso método próprio de narrar lite-
ratura, alimentadas pela oportunidade do espaço fundamental para as nossas oficinas
“Conta-Contos” na Escola Livre da COMUNA S.A. – projeto inovador que teve lugar em
Belo Horizonte durante a década de 90 e início dos 2000 – e pelas oportunidades em re-
alizar tais oficinas em outros espaços (Universidade Federal do Espírito Santo, COPASA,
Biblioteca Infantil e Juvenil de Belo Horizonte, etc.). A partir de 1995, com a montagem
do espetáculo “Contos de Amor”2, novos caminhos se abrem para o Grupo Tudo Era
Uma Vez, destacadamente o convite para a realização das oficinas que deram origem ao
Grupo Miguilim, formado por jovens que passarão a se exercitar na narração de trechos
da obra de Guimarães Rosa e narrá-los no Museu Casa Guimarães Rosa em Cordisburgo.
A partir daí, o mergulho na literatura rosiana foi impulsionado de forma defi-
nitiva, gerou pelo menos cinco montagens do Grupo Tudo Era Uma Vez dentro dessa
obra, ao mesmo tempo em que representou um suporte ainda maior para o desen-
volvimento do projeto Grupo Miguilim, tornando-o inclusive, exemplo para a criação
de grupos semelhantes de narração de textos de Rosa nas cidades mineiras de Três
Marias e Morro da Garça.
Inspirada por esse trabalho, interessou-me a investigação de temas ligados à arte
de narrar literatura oralmente, como por exemplo, o vínculo estabelecido entre narrador
e espectador através do texto poético oralizado e as especificidades do texto literário.

1 Antroposofia, “Ciência espiritual”, elaborada em seus princípios pelo filósofo e cientista austríaco Rudolf Steiner
(1861-1925), onde desenvolve uma visão ampla do homem integrando aspectos físicos, emocionais e mentais/
espirituais bem como seus laços sociais, com aplicações práticas em várias áreas como a pedagógica (Pedagogia
Waldorf), a médica (medicina Antroposófica), a agricultura (Agricultura Biodinâmica) e outras.
2 Espetáculo de narração oral, com estreia em 1995, com a direção de cena da atriz e diretora Cida Falabella, tendo
como roteiro a narração de textos dos autores: Marina Colasanti, Mário Quintana, Clarice Lispector, Aníbal Ma-
chado, Vilma Guimarães Rosa e João Guimarães Rosa.
Estruturas Conviviais e Infância 175

Guiaram-me nos primeiros passos dessa reflexão, os estudos de Dubatti3 – princi-


palmente os três volumes da sua Filosofia del Teatro – acerca do acontecimento teatral
de outros acontecimentos conviviais que ligam-se diretamente à reunião de presenças
auráticas, conforme terminologia benjaminiana. Dentre esses últimos, o autor aponta a
narração oral, denominada também como teatro do relato.
Acompanharemos mais de perto uma das definições que Dubatti compõe sobre
o acontecimento teatral: a definição que chama de pragmática, que coloca em evidência
o componente básico do convívio, e busca trazer à tona suas especificidades enquanto
convívio poético. A partir daí, buscaremos apontar as relações das estruturas conviviais
com a infância, trazendo o ponto de vista de Agamben4 e, numa perspectiva mais ampla,
suas relações com a infância da humanidade, inspirada pelos estudos de Dupont5 sobre
as práticas literárias rituais na Grécia e Roma Antigas.

DUBATTI E A COMPOSIÇÃO DO ACONTECIMENTO TEATRAL

No campo da Filosofia do Teatro, à luz da Ontologia, o teórico Dubatti realiza suas


investigações e quer pensar a especificidade do teatro como manifestação artística que
remonta ao século VI a.C. em Atenas, e talvez até antes, se considerarmos as estruturas
com as quais se configuraram as manifestações literárias dos banquetes rituais na Grécia
Antiga.
Logo de começo, o autor evidencia o caráter de acontecimento do seu objeto
de estudo: inserido na cultura vivente, o teatro é algo que passa, que sucede, fruto de
ações humanas (DUBATTI, 2010, p.32). Ao privilegiar tal enfoque, ele escapa da tentação
de aprisionar o entendimento do teatro em definições estáticas e opta justamente por
colocar em evidência o caráter múltiplo dessa arte, que deve ser buscado a partir da ob-
servação da sua praxis singular. O teatro aparece então como um devir. Dito em outras
palavras, o seu ser é um “vir-a-ser” e, portanto, dá-se a conhecer no próprio fluxo do
tempo, a partir de um modo processual de alteração do seu estado, como um estar. Esse
entendimento inicial conforme nos lembra Cavarero6 (2011, p.9), caminha na contra-cor-
rente da tradição da filosofia ocidental que, marcadamente logocêntrica, pautou-se na

3 Jorge Dubatti (Buenos Aires, 1963) é crítico, historiador e professor especializado em teatro pela Universidade de
Buenos Aires.
4 Giorgio Agamben (Roma, 1942) ensina filosofia na Universidade de Verona.
5 Florence Dupont (Bayeux/França 1943-): latinista e helenista francesa, professora emérita de literatura latina na
Universidade de Paris-Diderot.
6 Adriana Cavarero (Bra/Itália, 1947): professora italiana de Filosofia e estudiosa do pensamento feminista.
176 Anais do XIII SevFale

maioria das vezes por uma Metafísica baseada em abstrações generalizadoras como Ho-
mem, Ser, etc., relegando para segundo plano as existências que são únicas e singulares.
Conforme veremos esse último é o caso do teatro, na visão de Dubatti.
Em sua investigação, o autor apresenta-nos o teatro-acontecimento como uma
estrutura tri-partida, formada por três elementos intimamente ligados entre si. Tal divi-
são é utilizada a título de recurso didático, para guiar a nossa compreensão. Na verdade,
o que podemos fazer é buscar compreender as relações lógicas estabelecidas entre eles,
pois cada um dos elementos, tomado como sub-acontecimento, não pode existir em
separado: o segundo depende do primeiro e o terceiro, dos dois anteriores. Porém – e
é bom que não percamos isso de vista – cada um dos elementos, enquanto sub-aconte-
cimento também opera no mesmo registro do acontecimento como um todo, ou seja,
como devir.
O primeiro dos elementos que compõe o acontecimento teatral é o sub-acon-
tecimento do convívio. Ele é a reunião de dois ou mais indivíduos em estreita conexão
sensorial, numa mesma encruzilhada espaço-temporal, sem intermediação tecnológica.
O segundo elemento é o sub-acontecimento da poíesis. O autor se vale aqui do sentido
aristotélico do termo: a poíesis inclui tanto a ação de criar como aquilo que é criado. Essa
criação se dá através de ações corporais dos indivíduos em convívio. A ação de receber
e perceber a poíesis, por sua vez, compõe o terceiro sub-acontecimento denominado
expectação.
A poíesis é o elemento que define ontologicamente o acontecimento como arte
. No caso do teatro, teremos: a poíesis produtiva, que é criada a partir da ação dos ar-
tistas; a poíesis expectatorial ou receptora, criada pelos espectadores; e ainda, a poíe-
sis convivial, que corresponde à multiplicação de ambas, criada em convívio (DUBATTI,
2014, p.44-45).
Esses três elementos – convívio, poíesis e expectação – são fundamentais na te-
oria dubattiana para a compreensão do acontecimento teatral e, ao adentrar em cada
um deles, o autor vai compondo a sua teoria ontológica do teatro. Uma das definições
(chamada lógico-genética) elaborada por Dubatti a partir desses elementos apresenta o
teatro como “a produção e expectação de acontecimentos poéticos corporais (físicos e
físico-verbais) em convívio”7 (DUBATTI, 2007, p. 36) (tradução nossa).
Dirigindo a nossa atenção para a manifestação artística da narração oral, en-
tendemos que aí os acontecimentos poéticos corporais concentram-se principalmente
nas ações físico-verbais dos atores/narradores orais. Isso se liga diretamente ao fato

7 “...la producción y expectación de acontecimientos poéticos corporales (físicos y físicoverbales) em convívio.”


Estruturas Conviviais e Infância 177

de que, na narração oral, a palavra oralizada quer ser a protagonista da cena. Para que
isso aconteça, principalmente ao se tratar da narração oral de texto literário, os ges-
tos e ações corporais que acompanham o fluxo da fala são menores e mais contidos:
a maior concentração se dá nas ações físico verbais, ou seja, nas ações voltadas para
a dicção do texto.

CONVÍVIO E TEATRALIDADE

O convívio é o encontro entre dois ou mais indivíduos numa mesma encruzilha-


da espaço-temporal delimitada, reunião essa que se dá sem intermediação tecnológica.
Nesse sentido, para Dubatti (2007, p.61), usando a terminologia benjaminiana, o conví-
vio confere ao teatro o estatuto de arte aurática por excelência.
Dentre os três elementos que compõem o acontecimento teatral, o convívio re-
presenta a base e daí provém a natureza corporal, territorial e localizada dessa arte. (DU-
BATTI, 2010, p. 47). Ao mesmo tempo e exatamente por fazer parte da cultura vivente, o
convívio é considerado como o “império do efêmero, de uma experiência histórica que
sucede e imediatamente se desvanece, para logo tornar-se irrecuperável.”8 (DUBATTI,
2007, p.62) (tradução nossa) Assim, aqui mora a dimensão do teatro como perda: ele é
vivido por seus integrantes em convívio e se perde em seguida.
Dubatti marca a diferença entre, de um lado as artes conviviais que, da mesma
maneira que o teatro, necessitam do convívio para acontecerem e, de outro, aquelas
manifestações que pautam-se pelo tecnovívio, quer dizer, pela “cultura vivente dester-
ritorializada pela intermediação tecnológica”9 (DUBATTI, 2014, p.125) (tradução nossa).
Incluem-se no primeiro caso, tanto o teatro, como a dança, o teatro de bonecos, de
objetos, a mímica, da narração oral ou teatro do relato, entre outros. No segundo caso
podemos citar: a literatura impressa, o cinema, a televisão e o rádio.
O convívio liga-se também diretamente ao conceito de teatralidade. Dubatti
(2016, p.9) aponta a Antropologia do Teatro, como a área onde o conceito teria se ori-
ginado. Partindo dessa perspectiva, a teatralidade corresponderia à nossa capacidade
de organizar o olhar do outro. Nesse sentido, ela não pode ser separada do humano e
mantém uma relação íntima com o convívio, desde sempre.

8 “...imperio de lo efímero, de una experiencia histórica que sucede e inmediatamente se desvanece, para luego
tornarse irrecuperable.”
9 “...cultura viviente desterritorializada por intermediación tecnológica.”
178 Anais do XIII SevFale

Dubatti aponta para o fato de que, tão logo a instituição do teatro aparece, ela
passa a fazer uso da teatralidade a seu favor. Nesse âmbito, o autor aponta duas instân-
cias desse conceito (2007, p.37): a literatura impressa (e, portanto, não integrada ao
acontecimento do convívio) corresponde à teatralidade em potência; a literatura em
cena (no momento em que ganha o corpo do artista) corresponde à teatralidade em
ato. Assim, pode-se acrescentar que, em cena, a palavra é sempre corporal. Ela entra
em cena através de ações físicas e/ou ações físico-verbais do ator. Aliás, o emprego de
“ator” aqui abrange também as outras categorias de artistas das artes conviviais como o
bailarino, o mímico, o narrador oral, etc.

A ZONA DE EXPERIÊNCIA: A INFÂNCIA DO HOMEM E A INFÂNCIA DA


HUMANIDADE

A partir da definição pragmática composta pelo autor da trilogia, o teatro é iden-


tificado com a criação de uma zona de compartilhamento, de troca de subjetividades em
convívio poético ou zona de experiência.
Essa zona é resultado da estimulação e multiplicação recíprocas das ações convi-
viais, das ações poiéticas e das ações espectatoriais (DUBATTI, 2007, p155). Em outras
palavras: nessa zona de compartilhamento, artistas, técnicos10 e espectadores afetam
e se deixam afetar mutuamente, atuam como criadores e expectadores de póíesis, ao
mesmo tempo e alternadamente. Mas, tal zona tem a peculiaridade de não coincidir
exatamente a soma das subjetividades dos seus integrantes. Ela representa outra zona,
nova, onde a subjetividade de cada um não quer se impor sobre a dos demais, não ha-
vendo assim preponderância da subjetividade de nenhum deles. Todas as subjetividades
no convívio poético têm peso igual: vige aí realmente um espírito de compartilhamento.
Em suas reflexões sobre a infância e a língua, Agamben (2005, p.62) relaciona a
infância com a experiência. A experiência tem lugar lá onde o homem é ainda não-fa-
lante e, conforme a raiz da palavra, lá, onde ele é in-fante. A ideia de infância é tomada
aqui para além da cronologia, a partir da lógica do acontecimento da experiência. O
homem nessa posição in-fante, não seria exclusivamente aquele que não fala, mas sim
aquele que não fala e que potencialmente pode falar: no seu processo natural de de-
senvolvimento e contato com outros à sua volta, poderá falar em breve. A experiência
liga-se assim à infância na medida em que abarca aquelas vivências que são anteriores à
entrada do homem no registro simbólico da língua. Seria como dizer que a experiência

10 Dubatti inclui aqui o técnico que, quando existe, dá suporte para o ator, participando e intervindo diretamente na
criação da poíesis (DUBATTI, 2007, p.50).
Estruturas Conviviais e Infância 179

corresponde ao período anterior a Babel – lá onde potencialmente estariam todas as


línguas e, onde teria lugar, conforme Agamben (2005, p.11), o experimentum linguae,
ou seja, aquele tempo e lugar em que aquilo que se tem experiência é a própria língua.
Ora, em suas reflexões sobre o convívio, Dubatti (2007, p.155) nos diz que, “no
acontecimento teatral, baseado na experiência de presença, de contato e intercâmbio
aurático, nem tudo é legível e que no convívio há mais experiência que linguagem”11
(grifo do autor) (tradução nossa). Entende-se que, pelo convívio poético, as artes cênicas
conviviais conectam atores, técnicos e espectadores com suas próprias infâncias, com
aquele lugar onde mora a experiência e onde o que se vivencia e percebe é maior do que
o que se poderá falar a respeito.
Para compor seu conceito de convívio poético, Dubatti inspirou-se, entre outros,
nas investigações de Dupont. Essa autora, em seus estudos sobre os antigos rituais do
banquete da Grécia e Roma Antigas, traz luz a essas que parecem ter sido as primeiras
relações de “convivialidade”12 ligadas às transmissões orais poéticas. São os rituais co-
letivos do symposium, cuja raiz do próprio nome já toca no ponto principal do nosso in-
teresse, ou seja: beber junto. Nesses rituais, vinho misturado à água eram bebidos por
todos os participantes, criando um espaço de troca e “mistura” entre todos (DUPONT,
1999, p.22). Os aedos, cantores de poesia, posicionados no centro do hall do banquete
cantavam aí os feitos heroicos, em conexão com a memória do mundo, Mnemosyne.
Dubatti (2007, p.46) reconhece nesse momento os primórdios do acontecimento
convivial e chama a atenção para o fato de que, desde tão cedo, na transmissão oral an-
tiga, a literatura aparece com um estímulo à socialização.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Sabemos que o convívio é tão antigo como o próprio homem e está em toda
parte, disseminado por toda cultura vivente. Ele nasce no momento em que se dá o pri-
meiro contato entre dois seres humanos. Dessa forma, pode-se dizer que ele nos remete
não só à nossa origem na infância, como às origens míticas da própria humanidade.
Para Dubatti, o convívio poético é aquele que instaura uma realidade nova, que traz um “es-
pessor” de acontecimento, que realiza um salto ontológico com relação ao cotidiano e isso o
diferencia dos tantos outros convívios existentes.

11 “...en el acontecimiento teatral, basado en la experiencia de presencia, de contacto e intercambio aurático, no


todo es legible y que em el convivio hay más experiencia que lenguaje.”
12 Convivialité, termo usado no original pela autora.
180 Anais do XIII SevFale

Dizer que no convívio poético há mais experiência que linguagem, é dizer que,
quando nos incluímos num espetáculo teatral ou de narração oral de literatura, por
exemplo, seja como atores ou espectadores, criamos e “expectamos” poesia, bem além
do que conseguimos falar sobre isso.
Uma vez que se constituem como condição do humano, podemos reconhecer nas
estruturas conviviais uma relação com o aspecto da filogênese (primeiro convívio com
a mãe na gravidez) e com o da ontogênese (primeiro convívio no mito de Adão e Eva).
Nesse sentido, o convívio nos remete à infância do homem e, numa perspectiva mais
ampla, à infância da humanidade.
A instituição do teatro, tão logo surge, se apropria da teatralidade para dar-lhe
um uso específico. Toda a rede e política do olhar passa agora a servir à causa do acon-
tecimento teatral. Para que haja teatro, é fundamental que possamos compartilhar –
enquanto artistas ou espectadores – de um regime de comunhão, de um “beber juntos”
em proximidade física, em estreita conexão sensorial. O convívio no teatro (e nas outras
artes cênicas conviviais) sendo poiético, deixa de ser um acontecimento qualquer, do co-
tidiano e passa a ser um acontecimento relevante. E é esse relevante que caracteriza o
salto ontológico do convívio. O convívio passa a ser poiético e realiza, ao mesmo tempo
outro salto, dessa vez duplo, na medida em que reenvia-nos para a nossa infância en-
quanto humanos – lá, onde encontramo-nos mergulhados no mistério da experiência.
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamen-
to de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001

REFERÊNCIAS

AGAMBEN, Giorgio. Infância e História: Destruição da experiência e origem da história. Nova


edição aumentada. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. 188p.
DUBATTI, Jorge. Filosofia del Teatro I: Convívio, Experiência y Subjetividad. Buenos
Aires: Atuel, 2007, 223p.
DUBATTI, Jorge. Filosofia del Teatro II: Cuerpo Poético y Función Ontologica. Buenos
Aires: Atuel, 2010, 255p.
Estruturas Conviviais e Infância 181

DUBATTI, Jorge. Filosofia del Teatro III: El Teatro de los Muertos Buenos Aires: Atuel,
2014, 230p.
DUBATTI, Jorge. Teatro-Matriz, Teatro Liminal: Estudios de Filosofía del teatro y Poética
Comparada. Buenos Aires: Atuel, 2016, 189p.
DUPONT, Florence. The Invention of the Literature: From Greek Intoxication to the Latin
Book. Translated by Janet Lloyd. Baltimore, Maryland: The Johns Hopkins University
Press, 1999. 287p.
HISTORICIDADE E FICÇÃO NA
LITERATURA INFANTOJUVENIL: UMA
PERSPECTIVA AFRO-BRASILEIRA

Rafaela Pereira - SESI/FIEMG

Resumo: Este trabalho tem como intuito analisar obras literárias destinadas ao público infanto-
juvenil cujas temáticas relacionam-se a questões étnico-raciais.Consiste no estudo de oito obras
que têm como principal característicaa construção da ficção a partir da historicidade, na qual
a narrativa se desenvolve através do protagonismo negro infantil com o intuitode reconstruir
a História do povo negro através de um ponto de vista afrodescendente.Discorrer-se-á sobre
como as narrativas são constituídas, de que forma os elementos historiográficos são apresen-
tados e como podem colaborar para a formação de um público crítico e conhecedor da própria
história. Os pressupostos teóricos permeiam pelos campos da Literatura, História e Educação e
contribuem para uma análise crítica sobre o ensino de literatura e como ocorre nas escolas, pois
é perceptível a necessidade de uma abordagem de desconstrução de conceitos no que se refere
à cultura negra, principalmente nos segmentos da Educação Básica.Mesmo após a inserção da
lei 10.639/03,o ensino sobre diversidade ocorre de forma tímida e questionável. No que tange
o campo da literatura há quase uma inexistência de autores afro-brasileiros nos planos de aulas,
tornando-se necessário a apresentação de materiais que possibilitem a condução de um ensino
que valorize a diversidade.

Palavras-chave: Literatura infantojuvenil; Historicidade; Diversidade; Ensino.

INTRODUÇÃO:
184 Anais do XIII SevFale

Falar de etnicidade racial através da Literatura tornou-se uma dinâmica necessá-


ria na Educação Básica e, nos últimos anos, muitas produções literárias têm contribuído
para a propagação de uma cultura positiva sobre uma parcela também responsável pela
formação brasileira: o povo negro. Levar esse assunto para as salas de aula tem sido um
desafio por inúmeras questões que não serão o foco deste artigo, mas é preciso chamar
a atenção para o que nós, professores, fazemos questão de apresentar aos nossos alu-
nos. Visando colaborar com a possibilidade de conhecer alguns desses materiais, serão
aqui apresentadas análises de oito obras literárias destinadas aopúblico infantojuvenil,
cuja temática abordaquestões relacionadas à etnicidade e diversidade.Elas apresentam
características que possibilitam um plano de aula que pode ser um leque para os alunos
terema oportunidade de conhecer outrasfaces sobre as histórias do Brasil, desta vez,
contada através depontos de vistas afrodescendentes.
As obras em questão são Histórias da Preta (1998), de Heloisa Pires Lima; a co-
leção As aventuras de Luana, composta por quatro volumes:Luana: a menina que viu o
Brasil neném (2000), Luana: as sementes de Zumbi (2007), Luana: capoeira e liberdade
(2007), eLuana: asas da liberdade (2010), de Aroldo Macedo e Oswaldo Faustino; Ynari:
a menina das cinco tranças, de Ondjaki; Nana & Nilo: que jogo é esse (2012) e Nana &
Nilo: aprendendo a dividir (2012), de Renato Noguera.Como suporte teórico, recorri às
análises de Hayden White sobre historicidade; às de Walter Benjamin sobre narrativa; e
às concepções de Joel Rufino dos Santos sobre história e ficção, para construir uma argu-
mentação sobre a forma como se dá o discurso histórico nos referidos livros e a relação
da historicidade e ficção nas narrativas dosreferidos autores afro-brasileiros e africanos.
Ao falar de ensino de literatura constata-se a efetivação de trabalhos voltados
para as discussões étnicas, mas autores africanos e afro-brasileiros não são recorrentes
nos planos de aula. Porém, é possível admitir que seja uma realidade que está mudando:
o Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD) tem se preocupado e inserir
obrasinformações sobre autores negros nos livros didáticos, mas é preciso também um
preparo e conhecimento dos educadores para conduzirem um ensino de Literatura ho-
nesto e de qualidade. Logo, esta análisese faz necessária por acrescentar possibilidades
de leituras a serem apresentadas no ambiente escolar para as séries da Educação Básica,
principalmente as dos anos iniciais, contribuindo para o desenvolvimento do pensamen-
to crítico através do contato com a Literatura, com a sensibilidade para o estético e para
as relações humanas.
A escolha das referidas obras se deu pela temática que apresentam e por per-
ceber que não estão tão presentes nas bibliotecas escolares. Estasobservações me le-
varam às seguintes hipóteses, que chamarei de primárias: há o ensino de literatura nas
escolas?Qual literatura está sendo ensinada na Educação Básica?Como ocorre o ensino
Historicidade e Ficção na Literatura Infantojuvenil: uma perspectiva afro-brasileira 185

dessa literatura?Quais os livros comumente selecionados para os planos de aulas?Na


biblioteca há livros de autoria negra?Se sim, os alunos têm acesso a esse material e
há trabalhos com esses livros?Se não, por quê? Através destes questionamentosbus-
quei analisar obras de literatura infantojuvenil dando ênfase às publicações posteriores
a promulgação da lei 10.639/03, que torna obrigatório o ensino sobre História e Cultu-
ra Afro-Brasileira. Porém, no corpus estudado duas edições são anteriores a 2003. No
momento das análises surgiram outros questionamentos referentes à composição das
narrativas, o que pode ser chamado de hipóteses secundárias: quais os assuntos abor-
dados nos livros de autores afrodescendentes?Como se dá a construção da narrativa e
dos personagens?Há personagens estereotipados?Qual o principal motivo para o desen-
volvimento dessa narrativa? Qual a ambientação criada para o desenvolvimento dela?
Ou seja, questionamentos que permitiram delinear um retrato dessa literatura ainda
ausente nas escolas.

HISTÓRIAS CONTADAS POR UMA PRETA

Em Histórias da Preta (1998), de Heloísa Pires Lima, a protagonista, Preta, ques-


tiona sobre o que é ser negro(a) no Brasil. A história se inicia com a personagem indagan-
do sobre o próprio nome e se isso faz alguma diferença na sua identidade, pois quando a
sua tia Carula a chama assim não se incomoda, mas quando é referida dessa maneira por
seus colegas fica intrigada.A partir daí, iniciam-seindagações sobre a afrodescendência
da personagem. A narrativa reúne informações históricas a respeito da mitologia afri-
cana, da diáspora, da escravidão e como se dá a formação do povo negro no Brasil.Por
apresentar um panoramaque versa sobre várias questões relacionadas à cultura negra
africana e a forma com esta se inseriu no território brasileiro, mitos são descontruídos
através de uma perspectiva histórica e também pedagógica.
O livro é dividido em: “A Preta se apresenta”, “África”, “O roubo do tesouro”, “São
direitos ou estão tortos”, “História da Preta”, “Histórias do candomblé”, “Diferente de ser
igual”. A divisão da narrativa tem uma sequência quase cronológica dos elementos his-
toriográficos; no segundo capítulo “África”, por exemplo, o continente africano aparece
nãocomo o lugar de negros escravizados e sim, de pessoas que pertenciam a etnias com
hierarquias e uma organização social com reis e rainhas, príncipes e princesas, diferente
da forma como o negro ainda é descrito emdiversos materiais didáticos, obras cinema-
tográficas e literárias, o que reforça o imagináriodo negro como aquele ser destinado à
condição de escravizado. São explanadas informações sobre as belezas do continente
com um conjunto de ilustrações que favorecem a construção de cenário positivo sobre
186 Anais do XIII SevFale

a África e as heranças que se tornaram componentes formadores da cultura negra no


território brasileiro.
A referência aos gritos, ou contadores de histórias, é um ponto de partida para
realçar o processo de contar histórias, valorizando também a cultura da tradição oral;
enfatiza-se o quanto eles são importantes na cultura africana por terem a missão de
educar e preservar a história de um povo. Eles são assim apresentados:
Mas a história mais legal sobre a África é sobre os seus conta-
dores de histórias, que não escrevem nenhuma delas: guardam
todas na memória e depois recontam. Eles aprendem essa arte
desde pequenos, com os mestres, e acompanham os feitos das
famílias, dos reis, aumentando e enriquecendo a história de to-
dos os seus antepassados. Uma história que as pessoas apren-
dem a conhecer assim: ouvindo histórias. (LIMA, 1998. p. 19).

Uma colcha de histórias vai se formando e enriquecendo a narrativa comváriasa-


bordagens sobre a temática afro-brasileira dentro da obra. Assim como a personagem
Luana, de quem será falada mais adiante, Preta também adora ouvir histórias, principal-
mente aquelas que dizem respeito à formação de seu povo e assim recebe a missão de
reconstruir algumas delas e contar para os seus leitores.Após expor essa gama de deta-
lhes historiográficos, Preta finaliza o seu relato referindo-se à questão da igualdade. Este
é outro ponto que merece ser observado em narrativas com temáticas afro-brasileiras
que, muitas vezes, falam em equivalências humanas, mas tratam de forma resumida que
acabam criando um discurso esvaziado sobre a teoria da igualdade racial.

A MENINA MALUNGO E SEU BERIMBAU MÁGICO

A coleção AsAventuras de Luanasurgiu de um projeto em que a protagonista apa-


rece primeiramente nas Histórias em Quadrinhos, na coleção Luana e sua turma, criada
em 1998, que teve dezoito edições.Acompanhada do seu berimbau mágico, Luana sai
das HQs, se aventura na prosa, participa de episódios históricos no Brasil e conta como
foi a participação do negro no período do Brasil Colônia até a Abolição da Escravatura,
em 1888. Ela é a primeira heroína afro-brasileira da literatura infantojuvenil, apresen-
tando-se no primeiro volume da coleção como uma exímia capoeirista. A personagem é
assim caracterizada:
Oito anos, corpinho gracioso, sorriso doce. Quem não a conhece não imagina
que já luta como gente grande. É a melhor capoeirista de Cafindé, uma vila
Historicidade e Ficção na Literatura Infantojuvenil: uma perspectiva afro-brasileira 187

que, há muito, muito tempo, foi um quilombo quase tão forte e bonito quanto
foi Palmares, o grande quilombo da Serra da Barriga, no interior de Alagoas.
(MACEDO; FAUSTINO. 2000, p. 09).

Essas descrições tornam-se relevantes por apresentarem a cultura a qual a prota-


gonista pertence, ou seja, a quilombola, além de passar aspectos positivos sobre a ima-
gem dela.Acompanhada por seu objeto favorito e mágico,sempre que se interessa por
uma história, Luana toca o seu berimbau e é transportada para o local desejado, inte-
resse que surge quando Luana ouve alguma história contada pelos mais velhos em volta
da fogueira na Vila de Cafindé, onde nasceu. A principal contadora de histórias é Vovó
Josefa, que também aparece na coleção como uma griot, representante da tradição oral.
Em Luana: a menina que viu o Brasil neném (2000), a protagonista precisa fazer
uma pesquisa da escola e fica muito curiosa em saber como foi o tal “aclamado” desco-
brimento do Brasil. Ao tocar o seu berimbau, vai até 1500 e presencia como foi a chega-
da dos portugueses ao continente americano. As críticas são bastante sutis no que diz
respeito à abordagem sobre o início do domínio português no território brasileiro.Por
exemplo, o narrador faz referência à carta de Pero Vaz de Caminha da seguinte forma: “E
o pobre escrivão foi obrigado a rabiscar de novo seu pergaminho e escrever o nome da
terra que Cabral jurava ter descoberto.” (p. 41); e quando fala sobre a prática de escam-
bo: “Os portugueses lotaram as caravelas com tudo o que puderam, deixaram uns pre-
sentes bem sem graça para os tupiniquins e voltaram para o mar.” (p. 42) (grifos meus).
Em Luana: as sementes de Zumbi (2007) a menina malungo se encontra com o
carroceiroExpeditoque lhe conta como era a vida dos escravizados e a forma como os
senhores de escravos os tratavam. Ao saber da existência de um lugar chamado Palma-
res, Luana, muito curiosa, toca o seu berimbau e chega ao local, onde conhece Benden,
o garoto que lhe mostra o famoso quilombo. Neste episódio, a garotinhaconhece, então,
a história deZumbi, e mostra ao leitor que o quilombo de Palmares não era um campo
de negros refugiados, mas um local onde havia uma organização com pessoas de outras
etnias que também prezavam pela ideal de liberdade, destacando tambéma existência
de outros quilombos que se espalharam por várias regiões do território brasileiro.
Ainda na linha da cultura quilombola, em Luana: capoeira e liberdade (2007) a
heroína tem como tema principal a história da capoeira. Ao ouvir dois senhores discutin-
do sobre qual a melhor capoeira, se a de Angola ou a Regional, a menina malungo ouve
a conversa atentamente, entra na discussão e convence os senhores de que cada uma
tem o seu valor. Lembra-se de Atino, um velho que vivia triste e solitário, e resolve fazer-
lhe uma visita. Elafica intrigada com o modo de vida de Atino e, ao conhecer a história
dele, descobre que ele havia perdido algo muito valioso; desta vez a missão da menina
188 Anais do XIII SevFale

malungo será encontrar esse objeto e aproveita para apresentar aos leitores a origem da
capoeira.Enquanto se aventura para encontrar o berimbau perdido de Atino.
Avançando um pouco parao século XIX a quarta aventura de Luana: asas da liber-
dade (2010), ocorre no período em que se iniciavam as manifestações sobre o processo
de libertação dos povos escravizados no Brasil. E ela acaba conhecendo personalidades
abolicionistas como Luiz Gama, Castro Alves, Machado de Assis, André Rebouças, José
do Patrocínio. Ao se encontrar com Luiz Gama, Luanaacompanha como foi a vida dele,
inclusive a forma como lutou para libertar mais de quinhentos escravos trabalhando
como rábula. Nessa história tem-se uma série de fatos históricos que ainda são pouco
conhecidos e citados como,por exemplo, a Revolta dos Malês, levante liderado por es-
cravos muçulmanos na cidade de Salvador em 1835. Uma observação muito válida é a
referência a Machado de Assis escritor que com sua ironia bem delineada teve uma visão
crítica sobre a forma como a população negra daquela época vivia e como a burguesia
tratava a questão da escravidão. Esse detalhe em uma obra infantojuvenil torna-se um
ponto inicial para falar sobre o autor que, com seu olhar crítico sobre várias temáticas
sociais, inclusive a escravidão, é uma boa referência para trabalhar a variedade de gêne-
ros textuais e literários.

YNARI, A SEMEADORA DE PALAVRAS

Agora, no cenário africano, destaca-seYnari, uma menina que possui cinco tran-
ças eque gosta de aprender as palavras do mundo. Ynari: a menina das cinco tranças
(2010) é uma das obras que compõem a lista de livros infantis do escritor angolano Ond-
jaki, cuja narrativa é marcada por ocorrer na voz e na visão de uma criança, chamando
a atenção para um protagonismo infantil na literatura produzida em Angola. A análise
dessa obra se dá pelo fato de ter uma atenção peculiar à tradição oral e também porque
obras africanas ainda estão praticamente ausentes dos planos escolares.
Passeando pelas aldeias próximas ao seu povoado, a protagonista conta histórias
envolvendo o modo de convivência entre as tribos, em que é possível perceber um jogo
de acontecimentos para falar sobre a guerra e a paz. Ynari vive em uma aldeia dotada
das mais variadas tradições. Ao visitar a aldeia do homem pequenino (assim ele é deno-
minado por toda a obra), Ynari fica sabendo que as pessoas dali estavam em guerra com
outras aldeias. A dona das cinco tranças conhece o povoado e lhe são apresentadas duas
pessoas muito especiais: o velho da barba comprida, que inventava as palavras e a velha
da trança branca, que destruía palavras. Dotada de uma linguagem poética a história
Historicidade e Ficção na Literatura Infantojuvenil: uma perspectiva afro-brasileira 189

conduz os leitores a refletirem sobre os danos de uma guerra através de uma análise
semântica das palavras.
É interessante pensar na existência de uma escrita que envolve também ques-
tões políticas em um ambiente onde se identifica o espaço poético e o da ficção, e uma
linguagem cheia de lirismo que proporcionaum diálogo passível de considerações sobre
a imagem da criança em um contexto de guerra. Os fatores históricos são recorrentes e
o que torna mais uma oportunidade para discutir as diferenças e as semelhanças sobre
a historicidade das duas culturas, ou seja, a brasileira e angolana.

NANA E NILO NA HISTÓRIA E FILOSOFIA

Nana & Nilo são frutos de um projeto idealizado pelo filósofo, professor e escritor
Renato Noguera. Nana e Nilo são dois irmãos gêmeos que protagonizam duas séries de
aventuras que exaltam ludicidade e modos positivos de convivência buscando conside-
rações e respostas para as interrogações que estão relacionadasao mundo infantil. Na
companhia de Gino - o pássaro verde – e Mulemba – a árvore falante –o casal de gême-
os passeia por ramos da História em que os personagens também, assim como Luana,
constituem uma dinâmica de volta a um passado milenar participando de aventuras no
Egito e em Burundi.
Em Nana & Nilo: aprendendo a dividir (2012), os protagonistas passam por uma
situação em que vão refletir sobre a importância de dividir algo com o próximo. Para
aprenderem a dividir, Mulemba convida as crianças a fazerem um passeio Kemet (Antigo
Egito), em uma época de cinco mil anos atrás. Lá a turma encontra crianças brincando
de cabo de guerra, jogando mankala entre outras brincadeiras e percebem que as ativi-
dades ocorrem de forma interativa.
Em Nana & Nilo: que jogo é esse (2012) Nilo estava jogando com os amigos e vol-
ta cabisbaixo para casa por ter brigado com um deles por causa de uma brincadeira e por
perceber que, de acordo com os jogos que conhecia, havia sempre alguém que perdia.
É consolado por Gino e Nana que vão até Mulemba contar o que aconteceu. Mulemba,
então, resolve levá-los a um lugar onde as crianças jogavam e não existiam perdedores.
Nana, Nilo e Gino sobem nos galhos de Mulemba e seguem para a comunidade de Ba-
twa. Uma das crianças, Batu, traz um saco e propõe uma corrida. Ele chama outras crian-
ças e Nana e Nilo se juntam a eles para participarem da brincadeira e percebem que é
possível brincar sem ter perdedores. Outro aspecto interessante de ser observado é a fi-
gura da personagem Mulemba, que é a representação de um baobá, árvore considerada
sagrada em várias tradições africanas por estar relacionada ao conhecimento, à memó-
190 Anais do XIII SevFale

ria e à longevidade. É ela quem conduz o casal de gêmeos ao passado, tornando-se uma
figura responsável por ajudar na reconstrução de uma narrativa de caráter historiográfi-
co ressaltando uma visão sobre a filosofia africana.Ao idealizar a narrativa, destacando
o Antigo Egito como um lugar habitado por negros, Renato Noguera desconstrói o mito
que prevalece de um Egito apresentando uma África sob uma perspectiva construtivista.

A LITERATURAINFANTOJUVENIL E AS ANÁLISES HISTÓRICAS

Além de apresentarem autoria negra, de descrever elementos culturais do povo


negro, de contextualizar a diáspora africana e manifestar ideologias (explícitas ou não)
sobre a conscientização da identidade negra, percebe-se nas obras aqui estudadas uma
tentativa didático-pedagógica de (re)formular o que ainda está ocultoatravés de um pro-
tagonismo infantil em que as personagens estão encarregadas de expor tais histórias:
Preta contasobre a diáspora africana; Luana sobre a chegada e a formação da identidade
negra brasileira; em Ynari fala sobre as guerras entre as tribos; e em Nana e Nilo, sobre
a participação do negro na antiguidade. Essa dinâmica deve ser vista como um fator po-
sitivo e enriquecedor, pois as obras merecem uma atenção especial por possibilitar, por
exemplo, um estudo interdisciplinar com as aulas de Linguagens e História, já que esta
não deveria estar dissociada nos planos curriculares das aulas de Literatura.
Em seu livro Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história
da cultura (1985) de Walter Benjamin, no texto “O narrador: considerações sobre a obra
de Nikolai Leskov”, o filósofo faz observações acerca do ato de narrar. Benjamin (1994),
ao afirmar que “A experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorrem
todos os narradores. E, entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se
distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos.”, pode-se
relacionar esta observação com a tradição oral tão marcante na cultura negra: Vovó Jo-
sefa, Atino e os personagens mais velhos são a fonte a que Luana recorre para conhecer
sobre o passado; em Preta recorre à Carula; Ynari a velho de barba comprida e à velha da
trança branca; Nana e Nilo à Mulemba. A atemporalidade presente na narrativa permite
que a protagonista vivencie e reconte as aventuras ao seu leitor no tempo presente, sem
distanciar-se do que lhe foi dito, o que contribui para as que as ações da menina malun-
go tenham um caráter lúdico, o que estimula o imaginário da criança em poder voltar
ao tempo.
A estratégia de utilizar períodos históricos para a partir deles elaborar uma nar-
rativa não é algo novo, mas é interessante pontuar de que forma isso ocorre nestas
obras, principalmente se tratando de literaturas para crianças.Nas Aventuras de Luana,
Historicidade e Ficção na Literatura Infantojuvenil: uma perspectiva afro-brasileira 191

por exemplo, têm-se vários questionamentos implícitos e explícitos sobre a versão da


história oficial. Joel Rufino dos Santos foi um intelectual afro-brasileiro que construiu
vários discursos historiográficos em suas narrativas, inclusive para o público infantil. Em
seu livro O dia que o povo ganhou (1979)Rufino faz uma observação ao dizer não saber a
qual gênero pertencia o livro, se história ou ficção, mas faz a seguinte afirmação:
“[...] É história, porque suas conclusões e análises repousam em documentos
e autores da época. [...] É ficção, porque ninguém, ou nenhum documento,
me pode garantir que o passado foi exatamente assim – e tenho, portanto,
o direito de imaginá-lo como queira.” (grifo do autor). (SANTOS, 1979. p.7).

Esse “direito de imaginar” o passado como convém é uma estratégia a qual recor-
rem muitos autores que privilegiam a discursividade histórica para construírem a suas
narrativas questionando, salientando ou mesmo criticando as versões que vigoraram.
Nãose pode afirmar se há uma intenção de enfatizar uma veracidade; por outro lado,
não se pode negar a necessidade de construir pensamentos críticos e refletir sobre como
foi a participação do negro nas Histórias, inclusive no percurso historiográfico brasileiro.
Hayden White, em Meta-História: a imaginação histórica do século XIX (2008)
analisaa estrutura do trabalho e da imaginação histórica afirmando, logo no prefácio,
ser uma estrutura verbal que ocorre na forma de um discurso narrativo em prosa. É o
discurso que prevalece nas oito obras apresentadas. Ao empregar terminologias para ca-
racterizar os níveis aos quais se desdobram o relato histórico, White (2008) identifica as
dimensões epistemológicas, estéticas e morais. Aplicando as concepções do historiador
norte-americano, podemos situá-las da seguinte forma nas narrativas infanto-juvenis:
a dimensão epistemológica se dá em razão de conhecer e refletir sobre o que envolve
a cultura africana e brasileira; a dimensão estética pensando na linguagem, no discurso
ena composição dos personagens; e a dimensão moral se dá pelo processo de reconhe-
cimento, de conscientização, seja de pertencimento do negro na própria história. Ao
explanar sobre os objetivos do historiador, White afirma:
Diz-se às vezes que o objetivo do historiador é explicar o passado através do
‘achado’, da ‘identificação’ ou ‘descoberta’ das ‘estórias’ que jazem enterra-
das nas crônicas; e que a diferença entre ‘história’ e ‘ficção’ reside no fato
de que o historiador acha suas estórias, ao passo que o ficcionista inventa as
suas. (WHITE, 2008. p. 22).

Se o historiador é aquele que acha as suas histórias e o ficcionista é aquele que as


inventa, nos livros infantojuvenis que compõem este trabalho e, de acordo com a análise
em questão, pode-se afirmar que cada protagonista foi moldado dentro dessa perspec-
tiva, ou seja, eles foram inventados a partir de uma concepção histórico-social que bus-
192 Anais do XIII SevFale

cou enfatizar a cultura negra. Em razão de muitas informações ainda estarem omitidas
ou mal contadas sobre a participação do negro na História do Brasil, percebe-se o des-
conhecimento em relação amuitas personalidades de relevância que ainda são pouco
citadas nos livros escolares. Ficcionalizar colocando esses sujeitos “desconhecidos” é
também uma maneira que os autores encontraram para contribuir didática e epistemo-
logicamente para que informações históricas sejam ensinadas e compartilhadas.
Por conseguinte, as análises presentes neste trabalhoseguem como uma suges-
tão para que os professores e os demais interessados pela temática possam complemen-
tar as suas listas literárias de modo a ser uma alternativa que englobe a lei 10.639/03,
oferecendo-se produções em que o negro não é moldado como subalterno, como es-
cravo, pobre ou desfavorecido. Não que tais fatores não mereçam ser abordados, mas
tem-se um vasto número de textos sobre o assunto e a tradição canônica se incumbiu
de retratar o negro como tal. É preciso insistir nessas mudanças e buscar outras possibi-
lidades de leituras em que o negro é o autor,o protagonista, o narrador, o contador de
história; apresentar outros pontos de vista sobre a sua participação no processo cultural
brasileiro mantendo um diálogo crítico com os que os livros didáticos ainda estão ofe-
recendo. Consequentemente, a necessidade em abordar como se dá a relação entre a
historicidade e a ficção nas narrativas com temática afro-brasileira destinada ao público
infantojuvenil é, sem dúvidas, uma boa alternativa também para promover a prática de
uma leitura que preza não só conhecimento literário e historiográfico, mas também a va-
lorização da diversidade cultural nos segmentos do Ensino Básico, tornando-se essencial
para o desenvolvimento crítico da nova geração de leitores que está por vir.

REFERÊNCIAS

BENJAMIN, Walter. “O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”. In: Magia
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Brasiliense, 1994.
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Historicidade e Ficção na Literatura Infantojuvenil: uma perspectiva afro-brasileira 193

____. Luana: capoeira e liberdade. Ilustrações: Mig. São Paulo: FTD, 2007.
____. Luana: as sementes de Zumbi. Ilustrações: Mingo de Souza. São Paulo: FTD, 2007.
____. Luana: a menina que viu o Brasil neném. Ilustrações: Arthur Garcia. São Paulo:
FTD, 2000.
NOGUERA, Renato. Nana & Nilo: que jogo é esse. Ilustrações: Sandro Lopes. Rio de
Janeiro: Hexis, 2012.
_____. Nana & Nilo: aprendendo a dividir. Ilustrações: Sandro Lopes. Rio de Janeiro:
Hexis, 2012.
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WHITE, Hayden. Meta-História: a imaginação histórica do século XIX. 2 ed. São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo, 2008.
Afrobetizar para descolonizar: contribuições do
espetáculo Áfricas, do Bando de Teatro Olodum,
para a formação cultural da criança negra

Samira Pinto Almeida - UFMG

Resumo: O racismo reproduzido em todas as esferas de nossa sociedade age, sobretudo, por meio
da disseminação de imaginários que colocam em posição subalterna a cultura, a história, a memó-
ria, as identidades do povo negro. O discurso opressor - valendo-se ora de estereótipos vulgares,
ora de desqualificações - inviabiliza tanto a compreensão dessas tradições pelos sujeitos brancos,
quanto a percepção pelos afrodescendentes da riqueza de sua própria cultura ancestral. O com-
bate ao racismo estrutural passa pela educação emancipadora da população, formação crítica que
deve ser promovida desde a infância visando assegurar o pleno desenvolvimento do ser enquanto
indivíduo e cidadão. O espetáculo Áfricas, produzido pelo Bando de Teatro Olodum no ano de 2007
e direcionado ao público infanto-juvenil, pode ser um aliado na luta contra o racismo inclusive
quando abordado em sala de aula (por exemplo, por meio do estudo da dramaturgia), pois o cole-
tivo realiza nesse trabalho, a um só tempo, a desconstrução do discurso hegemônico e a edificação
de um contradiscurso de valorização das tradições africanas. Nesse sentido, este artigo pretende
analisar brevemente a peça citada com o objetivo de avaliar o modo como a cultura negra é rein-
terpretada pelo grupo soteropolitano, bem como o seu potencial didático.

Palavras-chave: Bando de Teatro Olodum, Áfricas, Cultura Negra, Educação.

Simpósio: Literatura.
Onipa ye de
(Ninguém é uma ilha)

Em 9 de janeiro de 2003, poucos dias após assumir o seu primeiro mandato, o


então presidente Luís Inácio Lula da Silva sancionou a lei 10.639 que prevê alterações
nos Parâmetros Curriculares Nacionais, de modo a garantir que a educação no país
abarque “o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil,
a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a
contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à His-
tória do Brasil” (BRASIL, 2003). A lei1 ainda especifica que esses conteúdos devem ser
desenvolvidos em todas as disciplinas do currículo escolar, com ênfase “nas áreas de
Educação Artística, [...] Literatura e História” (BRASIL, 2003); além de inserir no calen-
dário da educação básica o dia 20 de novembro, dia da consciência negra. Como bem
observa Layla Silva e Daniela Ribeiro ([s.d.], p. 9), a implementação da medida interfe-
re não só no cotidiano da educação básica pública e privada, mas em todo o sistema
educacional, haja vista a necessidade de formar professores qualificados para atuar
conforme o novo currículo. Para citar um único exemplo, já existe na Universidade
Federal de Minas Gerais um curso de formação transversal em Relações Étnico-Ra-
ciais, História da África e Cultura Afro-Brasileira, direcionado a alunos de graduação,
pós-graduação e comunidade externa (esta última por meio de matrícula em disciplina
isolada). Cabe, contudo, dizer que, até onde eu pude verificar, a formação não é obri-
gatória para os cursos de licenciatura. Inclusive, na matriz curricular do curso de Letras
/ Português, na modalidade licenciatura, da mesma instituição há apenas como obri-
gatória a disciplina “Direitos Humanos” que pode vir a dialogar com o tema, matéria a
ser cursada no último período.
A legitimação do Estado de tal demanda social, nascida e reivindicada pelos mo-
vimentos negros há muitos anos, deixa entrever que se não fosse por força da lei a es-
cola continuaria a reproduzir impunimente consciente e/ou inconscientemente imagens
estereotipadas da herança africana no Brasil e silenciando as diversas manifestações
culturais trazidas e recriadas/construídas na diáspora por povos escravizados. Segundo
Nilma Gomes:

1 Em 10 de março de 2008, o mesmo presidente alterou a lei (que passou a vigorar pelo número 11.645)
para incluir nela o estudo da cultura e da história indígena no Currículo da educação básica nacional.
Afrobetizar para descolonizar 197

...a classificação e a hierarquização racial hoje existentes, construídas na efer-


vescência das relações sociais e no contexto da escravidão e do racismo, pas-
saram a regular as relações entre negros e brancos como mais uma lógica
desenvolvida no interior da nossa sociedade. Uma vez construídas, são intro-
jetadas nos indivíduos negros e brancos pela cultura. Somos educados pelo
meio sociocultural a enxergar certas diferenças, as quais fazem parte de um
sistema de representações construído socialmente por meio de tensões, con-
flitos, acordos e negociações sociais. A escola, enquanto instituição social res-
ponsável pela organização, transmissão e socialização do conhecimento e da
cultura, revela-se como um dos espaços em que as representações negativas
sobre o negro são difundidas. E por isso mesmo ela também é um importante
local onde estas podem ser superadas. (GOMES, 2003, p. 76-77)

A atuação da escola no endossamento do racismo (presente em todas as esferas


da sociedade) é grave, em primeiro lugar, porque, enquanto instituição regida pelo Esta-
do, ela tem uma dívida histórica com a população negra e vem pagando essa conta ora
com desserviços ora discriminando aqueles a quem ela deveria servir; em segundo lugar
porque a escola é um dos poucos espaços onde a grande maioria das pessoas frequenta
em algum momento da vida, logo, seu papel é decisivo na construção de imaginários: ela
pode tanto contribuir para o status quo quanto cumprir uma tarefa emancipatória. É sa-
bido que a nossa identidade, em constante transformação, é erguida e alterada graças às
relações interpessoais que estabelecemos nos diferentes grupos dos quais fazemos par-
te e nos espaços que frequentamos e ocupamos. Segundo Layla Silva e Daniela Ribeiro,
pesquisas realizadas no campo da educação apontam que “a discriminação e a formação
do pensamento racial começam muito cedo” (SILVA; RIBEIRO, [s.d.], p. 4) por meio da
percepção da diferença de cor, da textura dos cabelos, do comportamento social, afetan-
do a construção identitária de crianças negras. Daí a importância da escola em promover
culturas plurais, de forma igualitária e democrática, intervindo na mediação de conflitos
nascidos das relações inter-raciais e colaborando para a auto estima do estudante negro
por meio de ações contínuas orientadas pelos dizeres da lei supracitada. Nunca é demais
enfatizar que reconhecer a própria beleza e sentir que o grupo étnico ao qual pertence é
representado sem distorções são aspectos indispensáveis para a assunção de uma iden-
tidade racial positiva. Sem esse duplo fator, os jovens negros se acham reféns de uma
imagem deturpada nascida das experiências de discriminação.
Como a escola pode colocar em prática esse papel e vencer o discurso simplicis-
ta apoiado em frases de efeito tais como “somos todos iguais” ou “não precisamos de
consciência racial, mas de consciência humana”? Como não perpetuar o pensamento
ideológico de certa democracia racial alcançada supostamente pela miscigenação? E,
uma vez ultrapassadas essas primeiras barreiras instauradas pelo discurso opressor,
como não cair nas armadilhas da folclorização da cultura do Outro? Não há receita
198 Anais do XIII SevFale

pronta para isso, mas creio ser possível afirmar, baseada em Nilma Gomes (2003, p.
77), que o educador deve ter uma postura crítica frente ao modo como a história e a
cultura negra são abordadas pelo discurso hegemônico, assumindo um compromis-
so político/ético de enfrentamento do racismo; e, complementarmente, priorizar os
saberes intelectuais e artísticos promovidos pela própria comunidade negra. Embora
pouco conhecidas, porque silenciadas, existe uma gama de obras, vinculadas as mais
diferentes áreas do conhecimento, voltadas para a formação cultural, social, estéti-
ca, econômica da população afrodescendente produzidas por intelectuais e artistas
negros. A título de exemplificação, somente no site Literafro, alimentado pelo NEIA
(Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade) / FALE / UFMG e destinado a dar
visibilidade à produção negra brasileira, o leitor encontra a biografia de 128 intelectu-
ais negros de destaque na cena nacional. Em termos de pesquisa acadêmica e projetos
sociais voltados para a educação formal e não-formal, posso citar a tese intitulada
Pretagogia: construindo um referencial teórico-metodológico de matriz africana para
a formação de professores/as, de Geranilde Costa e Silva, centrada em uma prática
educativa baseada na cosmovisão africana; a atuação da pedagoga Nilma Lino Gomes
que desempenha importante papel na formação de professores junto a FAE/UFMG e
na coordenação de projetos em antropologia urbana; o projeto Afrobetizar, desenvol-
vido pela psicóloga Vanessa Andrade no Morro do Cantagalo, direcionado às crianças
pretas da periferia do Rio de Janeiro.
Assim como não faltam exemplos de metodologias inovadoras voltadas à educa-
ção plural e cidadã, de modo a contemplar a diversidade étnico-racial do alunado brasi-
leiro, também não faltam obras de arte capazes de expandir o horizonte estético desse
público. O espetáculo Áfricas, do grupo soteropolitano Bando de Teatro Olodum, é uma
prova disso. O coletivo em questão já tem uma longa trajetória na cena baiana. Fundado
em 1990, o Bando vem aprimorando um complexo projeto estético-político desenvolvi-
do por artistas negros engajados na luta antirracismo. São, até o momento, 25 espetá-
culos criados por meio de processo colaborativo, abordando temas caros à comunidade
negra tais como a história de luta, as vivências, as formas de violência sofrida por essa
parcela da população. Além de denunciar o racismo e representar o cotidiano e a cultura
dessa comunidade em linguagens artísticas diversas (teatro, dança, filmes, séries), o gru-
po realiza ações de fomento cultural às artes negras organizando festivais, congressos,
publicações, projetos de formação. Com Áfricas, peça produzida em 2007, o coletivo
apostou em um novo caminho: dialogar com um público infanto-juvenil e construir uma
abordagem lúdica para representar um continente rico de tradições e valores. Verdade
seja dita, essa não foi a primeira vez em que o grupo se aproximou do universo infantil.
Segundo Marcos Uzel (2003), em suas primeiras produções, o coletivo contou no palco
Afrobetizar para descolonizar 199

com a banda mirim do Olodum para executar ao vivo as canções e a sonoplastia dos es-
petáculos. Outra relação interessante do Bando com as crianças se deu durante a realiza-
ção do projeto social Erê (entre 1991 e 1992), desenvolvido em parceria com entidades
não governamentais da cidade, cujo objetivo era propiciar educação artística a crianças
em situação de vulnerabilidade. Afora essas interações, espetáculos como Essa é nossa
praia, Ó paí, Ó! e Erê para toda vida abordam as experiências da criança negra, mas pelo
viés da violência e, portanto, tendo como espectador o público adulto. Áfricas, por sua
vez, segue outra diretriz, pois busca cultivar com leveza aspectos positivos da identidade
negra por meio da valorização do legado deixado pelos povos africanos.
O enredo da peça tem como mote “um trabalho sobre afro-descendência”
(BANDO, 2007, p. 5) solicitado pela professora do colégio frequentado pelas persona-
gens Paulinha/Lica e Rodrigo. Buscando conhecer mais sobre a própria herança para
realizar a atividade escolar, os pequenos pedem ajuda ao angolano e feirante Muzen-
za. Este, além de informar sobre algumas peculiaridades das culturas africanas, ofe-
rece às crianças um instrumento de percussão mágico, o tambor falante, que, ao ser
tocado, tem o poder de trazer à vida (e ao palco) contos tradicionais e moralizantes.
Rodrigo invoca as personagens mitológicas tocando o tambor e recitando a história de
um menino nigeriano, semelhante a ele, que encontra um instrumento próximo a um
Baobá e convida dançarinos e dançarinas para levantarem a terra vermelha, fazendo-a
rodopiar até o céu. O meta-discurso da personagem é um modo de preparar a cena, o
terreno, como quem começa a formar a roda para a contação de histórias. Em seguida,
surge um contador (Griot) e apresenta a história do nascimento do Homem segundo
a mitologia africana, um preambulo genealógico que parece sinalizar e anunciar a ori-
gem comum dos três contos a serem narrados e dramatizados em cena, extraídos de
diferentes nações africanas.
O primeiro conto é proveniente do Senegal, do povo uolof, e narra com humor
a história do carismático Abdu que fracassa ao tentar enganar toda a tribo dizendo ter
matado um crocodilo que ele, na verdade, encontrou morto pelo caminho. O segundo
provém do Chade, do povo sara, e fala sobre a importância de seguir as tradições, ten-
do como protagonistas as irmãs Yassedi e Suniguê e um feiticeiro impiedoso. A última
narrativa traz para a cena a história do orixá Oxumarê, senhor dos céus, quando se ma-
nifesta como arco-íris, e o senhor da terra, quando se transforma em serpente. Todas
as histórias narradas no espetáculo apresentam o homem interligado à natureza. A ex-
periência promovida pela contação em cena reforça também a capacidade da ficção de
transportar o ouvinte para outros territórios através da imaginação. Assim as barreiras
são diluídas, permitindo que todos os negros descendentes de África tenham a chance
de se reencontrarem nesse espaço de comunhão e fraternidade.
200 Anais do XIII SevFale

As histórias narradas no palco trazem um teor moralizante de respeito aos


mais velhos e ilustram as diferentes Áfricas contidas no continente africano. Elas
revelam também a importância do Griot como arconte (guardador de memórias co-
letivas) nas sociedades tradicionais, nas quais a educação das crianças se dá, sobre-
tudo, pela oralidade e pela aquisição de valores por meio dos corpos em estado de
performance. Na cena do Bando, atores negros trajando roupas de amarração colo-
ridas, usando acessórios e cabelos condizentes com a estética africana, estimulam
a imaginação do espectador negro, incentivando esse mesmo público a se sentir re-
presentado, a ver-se como protagonista das histórias narradas. A música percussiva
executada ao vivo, as canções entremeadas a expressões em línguas africanas, os
passos de dança tradicionais e a rica gestualidade dos artistas, muitas vezes carre-
gada de humor, demonstram a pesquisa do coletivo sobre os aspectos constitutivos
do teatro tradicional africano, marcado, principalmente, pela simultaneidade de lin-
guagens. A valorização da cultura negra se dá também por meio da explicitação das
contribuições dos africanos para a formação da língua portuguesa e da cultura afro-
-brasileira. Muzenza fala em cena, por exemplo, sobre a origem da palavra “cochilo”,
proveniente de línguas africanas. É também esse personagem quem desconstrói es-
tereótipos relacionados à África ao abordar, de modo corriqueiro, o passado remoto
e contemporâneo das diferentes nações.
Após conhecer a riqueza da herança africana, Rodrigo e Lica não mais aceitam
serem identificados pela expressão “descendentes de escravos” (BANDO, 2007, p. 12),
pois, afinal, segundo Lica, os povos escravizados construíram aqui “uma história de
luta, com guerreiros e guerreiras, luta pela independência, luta pela liberdade” (BAN-
DO, 2007, p. 12). A personagem Rodrigo, por sua vez, alerta: “A gente se interessa por
essas histórias. A professora fala sobre a África, mas não fala direito! A gente procura
um livro que fale verdadeiramente sobre a história da África, mas não acha. E quan-
do acha é um pouquinho só, e só fala de escravidão” (BANDO, 2007, p. 12). O trecho
citado expõe os obstáculos à efetivação da lei promulgada em 2003 e convida os do-
centes a refletirem sobre a própria prática, sobre o seu olhar diante da cultura negra.
Nesse sentido, o Bando ensina, pela via da representação, como deve ser uma prática
educativa descolonial: trata-se de um fazer que coloca o sujeito negro como agente
do conhecimento (e não como mero objeto), promovendo novas vivências e adotando
um modelo de aprendizagem negro-descendente que valorize as diferentes formas de
construção e transmissão de saberes. Como bem aponta Nilma Gomes:
A cultura negra possibilita aos negros a construção de um “nós”, de uma histó-
ria e de uma identidade. Diz respeito à consciência cultural, à estética, à cor-
poreidade, à musicalidade, à religiosidade, à vivência da negritude, marcadas
por um processo de africanidade e recriação cultural. Esse “nós” possibilita o
Afrobetizar para descolonizar 201

posicionamento de (sic) negro diante do outro e destaca aspectos relevantes


de sua história e de sua ancestralidade. (GOMES, 2003, p. 79)
A educação pode desenvolver uma pedagogia corporal que destaque a rique-
za da cultura negra inscrita no corpo, nas técnicas corporais, nos estilos de
penteados e nas vestimentas, as quais também são transmitidas oralmen-
te. São aprendizados da infância e da adolescência. O corpo negro pode ser
tomado como símbolo de beleza, e não de inferioridade. Ele pode ser vis-
to como o corpo guerreiro, belo, atuante presente na história do negro na
diáspora, e não como o corpo escravo, servil, doente e acorrentado como
lamentavelmente nos é apresentado em muitos manuais didáticos do ensino
fundamental. (GOMES, 2003, p. 81)

É igualmente necessário insistir que o estudo da cultura negra passe a fazer parte
do cotidiano escolar durante todo o ano letivo, dialogando com as diferentes disciplinas
do currículo, posto que a construção da identidade racial é processual. Os alunos não
podem esperar pelo mês de novembro para, enfim, encontrarem um ambiente propício
à reflexão sobre o que é ser negro no Brasil, muito menos aguardar em silêncio e pacien-
temente o período mais “conveniente” estipulado pela escola para aborda temas como
o racismo quando, na realidade diária, toda a estrutura social age no sentido de invisibi-
lizar e criminalizar as identidades negras.
Para além de seu importante papel na formação cultural e estética da criança ne-
gra na sala de espetáculo, acredito que a peça do Bando de Teatro Olodum tem grande
potencial como material didático no ensino formal. O caderno do espetáculo publicado
pelo Bando em parceria com a Fundação Cultural Palmares e o Ministério da Cultura,
além de trazer o texto dramático, tem uma concepção visual apropriada para o público
infantil, contendo ilustrações, jogos e um mapa do continente africano. Ele traz também
a bibliografia pesquisada pelo grupo para a criação do espetáculo que serve de guia para
o profissional de educação. De posse do livro, o professor pode, por exemplo, desenvol-
ver atividades com os alunos de dramatização dos contos, discussão sobre o conteúdo
abordado, criação de novas histórias. Vale dizer também que a gravação do espetácu-
lo está disponível na íntegra no canal do grupo no site Youtube, sendo portanto mais
um material de acesso fácil tanto aos educadores quanto aos educandos. Para finalizar,
transcrevo a cena final do espetáculo Áfricas, na qual o coletivo soteropolitano transmi-
te a sua mensagem política de resistência ao utilizar a história de Omolu como metáfora
das identidades negras reelaboradas na diáspora:
NARRADORA: Os Yoruba acreditam que as histórias se repetem e o que está
acontecendo com você aconteceu com alguém no passado. Por isso, gostam de
colecionar histórias e eles as trouxeram para cá para ajudar seus filhos a enten-
derem as suas vidas. E eu gostaria de contar uma última história. A história de
Omolu, o filho feio de Nanã. Ele vivia longe das cidades, escondido nos matos,
202 Anais do XIII SevFale

pois apesar de ter se tornado um grande médico, tinha vergonha de seu corpo
coberto de feridas. Ogum, que era seu amigo de infância, foi convidá-lo para
uma grande festa na aldeia onde nasceram. Omolu chega e se acomoda no
canto do terreiro. No melhor da festa, Iansã, a guerreira mágica, muito conhe-
cida pelos seus encantamentos, resolve dançar com o convidado observador, e
puxa-o para o meio da roda. Omolu tenta fugir, mas não consegue. Nesse exato
momento, Iansã começa a dançar e levantar uma grande ventania que suspen-
de todas as palhas que escondiam o corpo de Omolu. Ele se desespera, imagina
que suas feridas vão ficar expostas. Mas para a surpresa de todos as suas feridas
se transformaram em pequenas flores, que logo viraram pipocas e se espalha-
ram por todo o terreiro, revelando o corpo de um lindo guerreiro. O nosso povo
é como Omolu, o guerreiro capturado na África, expulso pela doença do tráfico
negreiro, apartado dos seus. Aí vem Ogum! E Ogum o que é? É movimento. É
a política. Ele vem pra dizer: vamos em frente! Venha e dispute o seu lugar na
sociedade. Como Omolu nosso povo vem relutante, vem coberto, vem cheio de
marcas, vem bravio e ameaçador. (BANDO, 2007, p. 12-13)

REFERÊNCIAS

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BRASIL. Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro
de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no
currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática História e Cultura
Afro-Brasileira, e dá outras providências. Brasília, DF, jan. 2003. Disponível em: <http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/2003/L10.639.htm> Acesso em: 28 mai. 2018
BRASIL. Lei nº 11.645, de 10 de março de 2008. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro
de 1996, modificada pela Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as
diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino
a obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena. Brasília, DF,
mar. 2003. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2008/
Lei/L11645.htm> Acesso em: 8 set. 2018
GOMES, Nilma Lino. Cultura negra e educação. Revista Brasileira de Educação, Rio de
Janeiro, n.23, p.75-85, 2003.
SILVA, Layla Maryzandra Costa; RIBEIRO, Daniela Maroja. A ressignificação de uma
pedagogia: construção da identidade da criança negra na educação infantil. p. 1-23.
Disponível em: <www.unesp.br/Home/debateacademico/artigo_revisado_layla_
maryzandra-1.pdf> Acesso em: 28 mai. 2018
UZEL, Marcos. O teatro do Bando: negro, baiano, popular. Salvador: P555 Edições, 2003.
Afrobetizar para descolonizar 203

SITES CONSULTADOS

CANCIAN, Vanessa. Afrobetizar a educação no Brasil. Namu Portal, 30 jan. 2015.


Disponível em: < http://www.namu.com.br/materias/afrobetizar-educacao-no-brasil>
Acesso em: 28 mai. 2018
LITERAFRO. Disponível em: <http://www.letras.ufmg.br/literafro/> Acesso em: 28 mai.
2018
UFMG. Formações Transversais. Disponível em: <https://www.ufmg.br/meulugar/
w p - co nte nt / t h e m e s / fe st i va l -ve ra o / H o ra r i o s - Fo r m a % C 3 % A 7 % C 3 % B 5 e s -
Transversais-2018-01.pdf> Acesso em: 28 mai. 2018
UFMG. Relatório de Percurso Curricular Letras/Licenciatura em Português.
Disponível em:<http://www.grad.letras.ufmg.br/arquivos/NOTURNO%20Licenc.%20
Portugu%C3%AAs.pdf> Acesso em: 28 mai. 2018
YOUTUBE. Áfricas. Espetáculo completo. Disponível em: < https://www.youtube.com/
watch?v=GFJ3SjJCsF4> Acesso em: 28 mai. 2018
O Que Nos Conta a Materialidade dos Livros?
Uma Proposta de Análise dos Paratextos
Editoriais de Uma Biografia Infantojuvenil

Vívian Stefanne Soares Silva - CEFET/MG


Luiz Henrique Silva de Oliveira - CEFET/MG

Resumo: A proposta deste trabalho é analisar a obra infantil Mandela, o africano de todas as co-
res (2010), de Alain Serres, sob a perspectiva dos paratextos editoriais, conforme Gérard Genette
(2009), buscando compreender de que modo os muitos paratextos utilizados na construção des-
sa obra constroem por si só uma narrativa biográfica do personagem negro. Acreditamos que os
paratextos editoriais fazem parte do conjunto de escolhas que a cadeia editorial de um livro têm
de tomar e que, portanto, embora esses vestígios passem, muitas vezes, despercebidos, eles
também são possíveis construtores de sentido.

Palavras-chave: literatura infantil; paratextos editoriais; representação africana; Nelson


Mandela.

Simpósio 3: Eixo 1 - Literatura infantil: história, crítica, tradução e edição.


No início do século XVIII, decorrente da ascensão burguesa ao poder político na
Europa e das mudanças sociais ocorridas à época, surge a concepção de infância e, com
ela, a produção de itens de consumo destinados a este público específico, vide a cres-
cente industrialização e a necessidade econômica de criar e atender demandas. Segundo
Marisa Lajolo e Regina Zilberman (1988) é nesse contexto que nasce a literatura infantil.
Em um primeiro momento, os livros infantis possuem um caráter didático e mora-
lizante, tal característica é serventia da crítica literária e, até hoje, é significativa nos dis-
206 Anais do XIII SevFale

cursos que ainda não consideram a literatura infantil como um ramo digno das grandes
literaturas, ou como possibilidade de literatura canônica e legitimada. Entretanto, esse
caráter pedagógico não é estático e, à medida que os recursos tecnológicos e a industria-
lização crescem, os livros infantis tornam-se um campo aberto para a experimentação.
Logo, a dimensão material do livro, qual seja seu suporte, que foi por muito tempo
ignorada pelos estudos sobre literatura, é tida pelo mercado como possibilidade, levando ao
que Gilles Lipovetsky e Jean Serroy (2015) chama de “estetização do consumo”. Os livros in-
fantis se tornam, então, um campo sujeito às mais variadas maneiras de produção artística.
Com a ascensão dessa perspectiva, cresce também a figura do ilustrador e, posteriormente,
de toda a cadeia de produção editorial que, agora, é tida como parte indispensável de produ-
ção da obra, descentralizando a figura do autor, antes tido como o criador do livro.
É no século XX que os mecanismos visuais consolidam seu lugar de destaque na
concepção dos livros, abrindo espaço para que a edição utilize da experimentação nos
mais variados aspectos da materialidade do objeto. Assim, os recursos gráficos e edito-
riais começam a ser utilizados em um sentido subjetivo, como costura de texto e ima-
gem, e em um sentido mercadológico, como mais uma camada passível de intervenção
que é explorada com o uso das mais variadas técnicas.
Atualmente, a preocupação com os recursos gráficos e editoriais do livro tem sido
o “carro chefe” de diversas editoras. Trata-se de uma forma de fazer e pensar o livro que
se dissemina fazendo com que investir na materialidade, bem como nos aspectos gráfi-
cos e ilustração sejam mecanismos que tornam a obra atraente e rentável, dinamizan-
do a narrativa. Hoje tais questões são premiadas no campo da literatura infantil, como
acontece com o Prêmio Jabuti de melhor projeto gráfico, ou o prêmio de melhor projeto
editorial, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil. A consciência de que todas as
escolhas editoriais contribuem para a construção de sentido de um texto foi preponde-
rante para que isso acontecesse.
No fazer do livro muitas operações estão envolvidas. A partir do autor que pro-
duz o texto, muitas outras vozes ecoam na produção da materialidade que abriga o tex-
to: são revisores, ilustradores, diagramadores, mediadores, editores, etc., que, juntos,
viabilizam o objeto livro. A todas essas etapas que constituem tal materialidade damos
o nome de projeto gráfico-editorial, elementos presentes na obra que ultrapassam a
instância textual. Dentro do projeto gráfico-editorial de um livro está aquilo que chama-
mos, segundo Gérard Genette (2009) de paratextos editoriais.
A obra literária consiste em um texto, exaustiva ou essencialmente, em um
texto (...) Contudo, esse texto raramente se apresenta em estado nu, sem o
reforço e o acompanhamento de certo número de produções, verbais ou não,
O Que Nos Conta a Materialidade dos Livros? 207

como um nome de um autor, um título, um prefácio, ilustrações, que nunca


sabemos se devemos considerar parte dele, mas que, em todo caso, o cercam
e o prolongam, exatamente para apresentá-lo, no sentido habitual do verbo,
mas também em seu sentido mais amplo: para torná-lo presente, para garan-
tir sua presença no mundo, sua “recepção” e seu consumo, sob a forma, pelo
menos hoje, de um livro. (GENETTE, 2009, p. 9).

Tratam-se, portanto, de um conjunto de elementos que surgem na materialização


do texto conferindo-lhe o estatuto de livro. O autor chama a atenção para o modo como
os paratextos podem agir sobre o leitor. Quer por intenção ou por interpretação, a simples
escolha de retirar ou evidenciar uma informação pode alterar o modo como o leitor recebe
a obra, seu percurso de leitura ou suas concepções possíveis. A necessidade de um para-
texto se impõe a toda ideia de elaboração de um livro, ainda que este seja desprovido de
intenção estética. Do mesmo modo, ainda que os paratextos ajam, muitas vezes, sem que
o leitor o saiba, suas escolhas interferem na construção de sentido de uma obra.
Os paratextos são divididos em dois tipos distintos: peritextos e epitextos. Ambos
se definem pelo lugar que ocupam na materialidade em relação ao texto. O peritexto
está situado em uma dimensão interna, situado em relação ao texto, como título, epí-
grafe, prefácio. Já o epitexto situa-se numa dimensão externa, em torno do texto, como
cartas e entrevistas. Neste trabalho, interessam-nos com mais afinco os peritextos, uma
vez que nos concentraremos na análise dos elementos que se constituem na materiali-
dade do livro.
Dentre a gama de peritextos existentes, descreveremos, segundo Genette (2009),
aqueles observados na obra analisada:
I. Formato: embora em sua concepção tenha apresentado diferenças sig-
nificativas (dado a destinação dos grandes formatos às obras célebres),
na atualidade, o formato do livro é uma escolha editorial que sempre se
relaciona com uma variante. O formato relaciona-se com a questão mer-
cadológica, por exemplo, no caso dos livros de bolso, criados como uma
opção mais acessível e viável para compra e reprodução.
II. Coleções: a noção de coleção hoje em dia relaciona-se, muitas vezes, ao
formato, visto que, a padronização é utilizada pelas casas editoriais para
caracterizar determinada coleção, o que também pode ser feito na unifor-
mização das capas. As coleções indicam ao leitor que tipo de obra ele tem
à sua frente, qual seu público-alvo ou suas características mais relevantes.
III. Capa e anexos: segundo Genette (2009, p. 27) “a capa impressa, em papel
ou papelão, é um fato bastante recente, que parece remontar ao início do
século XIX”. A capa e seus anexos, tais como folha de rosto, epígrafe, de-
dicatória, lombada trazem indicações verbais, numéricas ou iconográficas
acerca da composição da obra. São um vasto campo para a composição
208 Anais do XIII SevFale

dos paratextos editoriais dada a quantidade de informações que são di-


vulgadas nesses espaços.
IV. Página de rosto e anexos: trata-se, geralmente, de todas as primeiras e
últimas páginas não numeradas. Aqui incluem-se as guardas, a 3a folha a
qual chamamos anterrosto, etc.
V. Composição, tiragens: “a composição, isto é, a escolha dos caracteres e
de sua diagramação, é o que dá forma de um livro a um texto” (GENETTE,
2009, p. 35). Trata-se aqui da escolha das fontes, da paginação, do modo
como o texto se apresenta visualmente. Para Genette há casos em que
tais escolhas são inseparáveis do propósito literário. Incluem-se, ainda, as
escolhas de impressão, os papeis, cuja diferença mantém seu significado
atrelado significativamente a ordem simbólica.

Dentre todos esses peritextos encontram-se informações que também são tidas
como paratextos editoriais, ainda que algumas sejam de natureza obrigatória, tais como:
nome do autor; nome do ilustrador; selo da editora; ficha catalográfica; biografia do au-
tor; biografia do editor, anexos fotográficos, mapas, etc. Dentre essas outras possibilida-
des, gostaríamos de dar especial atenção ao release e às notas:
VI. Release: texto encontrado na quarta capa, era inicialmente um epitexto,
externo ao objeto livro, criado com o objetivo de ser encaminhado aos
folhetins no estilo de propaganda, ou seja, uma pré-apresentação da obra,
composta por dizeres elogiosos e críticas bem-sucedidas. Mantem na atu-
alidade seu caráter de apresentação; entretanto, passou a configurar o
espaço material do objeto livro.
VII. Notas: são utilizadas em textos cuja ficcionalidade, segundo Genette (2009),
é muito impura, ou seja, textos que necessitam de aparato para comprova-
ção de que se trata de um discurso verídico, tal qual é o caso das biografias,
muito marcadas por referências históricas e/ou reflexões filosóficas.

Posto os aspectos teóricos principais que norteiam nossa proposta, faz-se necessá-
rio apresentarmos nosso objeto de análise: Mandela, o africano de todas as cores (2014),
livro escrito por Alain Serres, ilustrado por Zaü e publicado pela editora Zahar. A escolha da
obra analisada baseou-se, em um primeiro momento, em dois critérios: tratar-se de uma
obra infantil e ilustrada. Tais critérios explicam-se pelas colocações aqui já citadas, dado
o caráter de experimentação do universo de produção de livros infantis e a composição
de uma obra ilustrada, que permite que aspectos como os paratextos editoriais que com-
põem o conjunto gráfico-editorial de um livro sejam colocados ainda mais em evidência.
Com o objetivo de elucidar possíveis questionamentos, cabe aqui colocar que defi-
nimos a obra como infantil para alinhá-la à história da literatura infantil que abre nosso dis-
curso, tendo em vista que a obra é destinada às crianças. Todavia, a editora Zahar escolhida
O Que Nos Conta a Materialidade dos Livros? 209

para compor nosso corpus, em seu site, define a obra como infantojuvenil. Entendemos que
as histórias da literatura infantil e juvenil são distintas e acontecem em períodos históricos
diferentes e que para fins deste trabalho a definição que melhor nos acolheria é livro infantil.
Mandela, o africano de todas as cores constitui-se de uma narrativa biográfica
sobre o importante ícone negro Nelson Mandela. A obra foi traduzida e publicada pela
editora Zahar, por meio do selo Pequena Zahar. Como dito, é um livro ilustrado, o que,
segundo definição de Sophie Van der Linden, caracteriza
uma forma de expressão que traz uma interação de textos (que podem ser
subjacentes) e imagens (especialmente preponderantes) no âmbito de um
suporte, caracterizada por uma livre organização da página dupla, pela diver-
sidade de produções materiais e por um encadeamento fluído e coerente de
página por página (LINDEN, 2011, p. 87).

A partir disso, avaliamos a obra consoante com os conceitos de paratextos edito-


riais aqui já expostos, dando relevância ao peritexto, e apresentamos as imagens a fim
de ilustrarmos nossas percepções. Considerando ainda que no livro ilustrado o sentido
nasce exatamente da interação entres esses três elementos (texto, imagem e projeto
gráfico-editorial), colocamos que nossa análise não pode ser feita de modo individual,
mas que as percepções levantadas irão aparecer em relação a tais elementos. Nosso ob-
jetivo é abordar as implicações significativas na construção de uma imagem biográfica
do personagem Nelson Mandela a partir da utilização dos paratextos editoriais.
A começar pelo formato, podemos tecer algumas conjecturas. O livro é 24,6 x
24,6, quadrado, em orientação horizontal, isso faz com que, ao abrir o livro, o leitor te-
nha uma visão panorâmica, ampliada pelo fato de as imagens sangrarem de uma página
a outra. O formato e estilo da capa também veicula a obra a coleção biografias, uma das
coleções do selo Pequena Zahar.
Quanto à materialidade, a escolha do papel é padrão dos livros infantis, couché,
mas o acabamento que geralmente é brilhante na obra é matte, o que aproxima as ilus-
trações da ideia de pinturas. A gramatura é 170gr, alta. Ressaltando que essas escolhas
estão atreladas a ordem simbólica, fazendo a obra mais cara ou rentável, peculiar ou
acessível. No caso do livro, essas escolhas aumentaram o preço da obra.
Partindo da capa da obra podemos observar alguns aspectos pontuais na cons-
trução do livro. A capa é singular na medida em que apresenta Nelson Mandela numa
posição de destaque, sorrindo, de punho ao alto, aclamado pelo povo, ilustrado em co-
res vibrantes que remetem a África e às suas tradições. A extensão da imagem vai à
quarta capa, organizada em paginação dupla, atendendo, assim, a uma das premissas
210 Anais do XIII SevFale

de livro ilustrado colocadas por Sophie Van Der Linden (2011). A cena, como veremos
adiante, retrata um importante momento da narrativa.
As ilustrações, aparentemente, são uma junção de técnicas manuais e digitais.
As cores apresentam-se como feitas manualmente utilizando tinta guache, enquanto as
linhas assemelham-se ao Nanquim, ambas as técnicas tratadas digitalmente, gerando,
por fim, uma imagem digital. O título corrobora com a ideia apresentada na ilustração
da capa quando reforça tratar-se da representação de Nelson Mandela, seguido da afir-
mativa: o africano de todas as cores. A interpretação de tratar-se de um homem que
governa para todas as pessoas é uma inferência possível.
Acerca disso, Gerárd Genette (2009) faz uma inquietante indagação que pode ser
aplicada à nossa análise: ora, como leríamos Mandela, o africano de todas as cores se
ele não se chamasse Mandela, o africano de todas as cores? Quais juízos de valor tece-
mos sobre a persona a partir dessa locução adjetiva? A obra antes mesmo de ser aberta
já nos informa que, possivelmente, trata-se de uma obra biográfica, que o personagem
principal é Nelson Mandela e que este é homem que governa para todos. Além da ilus-
tração e do título, há ainda, na capa, o selo da coleção e os nomes do autor e do ilustra-
dor, os quais aparecem um ao lado do outro, em mesma escolha tipográfica, de modo
que denotam uma posição de equilíbrio entre as duas instâncias constitutivas do livro.

Figura 1 - Mandela, o africano de todas as cores (capa)

A quarta capa segue o mesmo layout: mantem-se a ilustração e a única informa-


ção nova é a descrição do livro, a qual chamamos release. O release é apenas descritivo,
não há comentários externos ou recomendações. Pode-se inferir que tal escolha dá a
O Que Nos Conta a Materialidade dos Livros? 211

obra certo requinte, visto que “dispensa recomendações” ou que a escolha editorial foi
feita por tratar-se de uma obra infantil voltada para um público de 8 a 12 anos, que, em-
bora traga aparato de apoio, foi direcionada para a escolha do leitor e não do mediador.
A única informação da quarta capa, fora o release, é a presença obrigatória do código
de barras.
Adiante, a 3a página, conhecida como anterrosto, traz apenas o nome “Mandela”
em tipografia idêntica à da capa. A presença sozinha do nome realça o apelo biográfico.
A 5° página reitera as informações da capa, acrescentando uma ilustração nova e, final-
mente, o nome do tradutor. Embora a obra tenha sido premiada pelo FNLIJ/2014, na ca-
tegoria Tradução/Adaptação/ Informativo, essa informação só aparece nesse momento.
As primeiras páginas da narrativa surgem após a 5a página. De imediato, notamos
que texto e imagem aparecem juntos ocupando o mesmo espaço. A narrativa, embora
biográfica, não é informativa. As referências históricas não adquirem um teor didático, já
que a história é contada por meio de texto e imagem de maneira sensível.

Figura 2 - Mandela, o africano de todas cores (5° página)

À medida que adentramos a narrativa, conseguimos perceber a relevância dos


aspectos visuais para a sua construção. O passar de páginas se assemelha ao passar dos
anos. À proporção que a história progride, esse aspecto é ainda mais significativo, princi-
palmente nos anos de cárcere do personagem Nelson Mandela, em que a diagramação
nos leva a configurar a ideia de “texto preso”, e a tipografia soma peso aos anos, grafa-
dos em letras distintas.
212 Anais do XIII SevFale

Semelhantemente, a abrupta mudança de cores causa a mesma impressão: en-


quanto os anos em liberdade são vívidos e coloridos, os anos em cela são ilustrados em
preto, branco e tons pastéis, contornados por vermelho. Uma vida apática cercada por
sangue? Novamente, a tipografia ganha enfoque. Os anos em liberdade vêm acompa-
nhados de textos livres na diagramação da página, ao passo que os anos como prisionei-
ro ficam limitados a faixa vermelha que estanca a ilustração.

Figura 3 - Mandela, o africano de todas as cores

Figura 4 - Mandela, o africano de todas as cores

O encadeamento das páginas se dá por continuidade, isto é, mostrando, em um


primeiro momento, o movimento característico das atividades desenvolvidas por Nelson
O Que Nos Conta a Materialidade dos Livros? 213

Mandela nos anos de liberdade e, em um segundo momento, pelos angustiados, mo-


nótonos e estáticos dias de cárcere. Conforme a história vai chegando ao fim, o layout
retorna ao padrão inicial. O retorno sugere a resolução do conflito, comprovado pela
narrativa que detalha a liberdade de Mandela e sua ascensão como presidente.
A primeira página após o fim da história apresenta uma brusca alteração de cor,
com fundo sóbrio e claro, começa a sessão “Para Compreender Melhor”, demarcando o
fim da narrativa e começando os materiais didáticos. Avaliamos os textos dessa sessão
como notas, uma vez que trazem informações, fatos, fotos e mapas que objetivam legi-
timar a veracidade do discurso bibliográfico narrado. Como todo elemento paratextual
é um texto, as fotografias utilizadas nas notas ao fim da edição não são elementos pa-
ratextuais, mas sim elementos com informação paratextual, elementos que contribuem
para a formação de sentido, trazendo novas informações (nesses casos, dados históricos,
legitimação) para o texto escrito, agindo como apoio do texto.

Figura 5 - Mandela, o africano de todas as cores

A cronologia da vida de Mandela é apresentada juntamente com a cronologia dos


movimentos de resistência da África, trazendo a história do ícone de maneira indissoci-
ável da história da nação. A narrativa da sessão é descritiva e biográfica. Uma caracte-
rística relevante dessas notas é que eles enfatizam o caráter pacífico do personagem em
detrimento de seu posicionamento violento frente ao regime de segregação. Por tratar-
se de uma obra infantil, a criação de uma ideologia pacífica é preponderante, guardando
resquícios da literatura infantil moralizante e educativa.
214 Anais do XIII SevFale

Após a sessão há a ficha catalográfica que na obra foi deslocada para o fim, além
das informações padrões, a ficha ainda traz os créditos de todas as imagens, bem como
o nome do editor responsável, uma informação importante já que ensejamos pensar a
obra como um projeto que envolve diferentes autores. Seguidamente, há uma brevíssi-
ma biografia de autor e ilustrador, não fazendo referência, neste momento, ao tradutor.
Por fim, a obra encerra-se com dados da impressão em página branca e ilustração espe-
cífica com os dizeres “Mandela livre”.
Por ser uma pesquisa ainda em andamento, não sabemos se a Pequena Zahar,
na data de aquisição dos direitos autorais da obra, adquiriu também seu projeto gráfico,
trazendo para o Brasil, além do texto, os paratextos que lhe dão suporte. Mas entende-
mos que independentemente do modo como isso foi feito, a intenção da editora era fa-
zer uma obra biográfica, de caráter informativo e didático, com uma belíssima tradução,
mas com um controle total das suas possíveis interpretações.
Nesse trabalho, procuramos mostrar que as escolhas editoriais de um livro não
são, de modo algum, arbitrárias, mas participam da totalidade estética das obras, con-
tribuindo para a construção das narrativas. Em nossa análise, essa teoria coloca-se em
evidência, com enfoque especial para a utilização dos paratextos que fazem mais que
corroborar com texto verbal, tecem por si só uma narrativa.
Cabe colocar também que, a partir de um ponto de vista crítico, notamos que os
paratextos editoriais da obra constroem o discurso de um líder político bondoso, cari-
doso, de todas as cores, de todos os povos, ideias que dão ao personagem de Nelson
Mandela um caráter universal, em detrimento de sua identidade negra. Ora, se Mandela
é o africano de todos, podemos supor um apagamento de sua identidade como líder de
África, que lutou, até mesmo de maneira violenta, para a liberdade dos seus. Ou seja,
podemos colocar que tais elementos paratextuais trazem a biografia de um líder univer-
sal, sempre em relação a outros povos e etnias (o que se pode notar especialmente nas
notas), e não particular, pertencente primeiro a nação africana.
O Que Nos Conta a Materialidade dos Livros? 215

REFERÊNCIAS

GENETTE, Gérard. Paratextos editoriais. Trad. Álvaro Faleiros. São Paulo: Ateliê Editorial,
2009.
LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. Literatura infantil brasileira: história e histórias.
São Paulo, Ática, 1988.
LINDEN, Sophie Van der. Para ler o livro ilustrado. São Paulo: Cosac Naify, 2011.
LIPOVETSKY, Gilles; SERROY, Jean. A estetização do mundo: viver na era do capitalismo
artista. São Paulo, Companhia das Letras, 2015.
SERRES, Alain. Mandela, o africano de todas as cores. Ilustração Zaü. Trad. André Telles.
Rio de Janeiro: Zahar, 2012.
Realização

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