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DE EVENTOS FALE
Pensar a infância: linguagem e imaginário
13ª SEVFALE
Semana de Eventos da FALE
Pensar a infância: linguagem e imaginário
13ª SEVFALE
Semana de Eventos da FALE
Pensar a infância: linguagem e imaginário
13ª Semana de Eventos da FALE
1 - Simpósio I Coordenadores: Mestre Gladys de Souza, Dr. Leandro Rodrigues Alves Diniz e
Dra. Daniela Mara Lima Oliveira.
2 - Simpósio II Coordenadores: Dr. Aroldo Leal de Andrade e Dra. Mayara Nicolau de Paula.
3 - Simpósio III Coordenadoras: Dra. Aline Magalhães Pinto; Dra. Márcia Regina Jaschke Ma-
chado e Dra. Myriam Corrêa de Araújo Ávila.
APRESENTAÇÃO
Sara Del Carmen Rojo de la Rosa (UFMG/CNPq) . . . . . . . . . . . . . . . . 9
EDUCAÇÃO
LINGUÍSTICA
LITERATURA
O Que Nos Conta a Materialidade dos Livros? Uma Proposta de Análise dos
Paratextos Editoriais de Uma Biografia Infantojuvenil
Vívian Stefanne Soares Silva e Luiz Henrique Silva de Oliveira (CEFET/MG) . . . 205
APRESENTAÇÃO
1 - Simpósio I
Coordenadores: Gladys de Souza, Leandro Rodrigues Alves Diniz e Daniela Mara Lima
Oliveira.
“O simpósio de “Formação do profissional de Letras para a Educação básica” se divi-
diu em três grandes eixos temáticos. O primeiro tem como tema geral o currículo de
Letras do século XXI. O segundo abordou o estágio supervisionado e os projetos de
extensão e iniciação científica na formação do professor. O terceiro englobou aspec-
tos da formação do professor tendo em vista os diferentes tipos de diversidade da
área da infância e adolescência” (ementa criada pelos coordenadores).
2 - Simpósio II
Simpósio: Educação.
Diante toda a história e do que ainda se vive hoje, percebe-se que práticas peda-
gógicas rígidas e muitas vezes autoritárias são uma triste realidade vivenciada em muitas
16 Anais do XIII SevFale
escolas atualmente. A maioria dos professores não consegue serem autoridades. O papel
do mestre se desfez e, infelizmente, práticas autoritárias ainda são constantes no clima es-
colar. Não mais como antigamente, como ajoelhar-se sobre grãos de milho ou a palmató-
ria, mas essas práticas ainda existem de forma camuflada, através de ameaças e punições.
É frequente a presença de alunos com comportamentos agressivos e, lidar com
essas situações é um desafio para os professores.Porém, a definição de agressividade
ainda é usada de forma negativa, revelando uma necessidade de ampliar os conceitos
do termo agressão.
“A etimologia da palavra agressão é ad gradior = mover-se para adiante assim
comoregressão indica o movimento para trás. A violência é a agressão destrutiva que
busca aniquilar, desintegrar. Nem toda agressividade é violência, mas toda violência é,
sim, agressividade”. (SANTOS, 2002, p.189)
“Winnicott defende não a educação das crianças com o objetivo de manejar e
controlar a agressividade, mas sim o oferecimento de ambientes emocionais estáveis e
confiáveis para o maior número possível de bebês e crianças, que possam proporcionar,
a cada um, conhecer e a tolerar como parte de si mesmo o conjunto total de sua agres-
sividade (o ávido amor primitivo, a destrutividade, a capacidade de odiar, etc.)” (LUZ,
2008, p. 114)
O papel do professor como mediador e incentivador é desafiante nesse sentido,
visto que muitas crianças expressam suas agressividades de forma a causar danos em
terceiros, necessitando-se que tais danossejam evitados sem excluir ou negar a origem
desta agressão, mas buscando reorientá-la.
“É tarefa de pais e professores cuidar para que as crianças nunca se vejam dian-
te de uma autoridade tão fraca a ponto de ficarem livres de qualquer controle ou, por
medo, assumirem elas próprias a autoridade. A assunção de autoridade provocada por
ansiedade significa ditadura, e aqueles que tiveram a experiência de deixar as crianças
controlarem seus próprios destinos sabem que o adulto tranquilo é menos cruel, en-
quanto autoridade, do que uma criança poderá se tornar se for sobrecarregada com
responsabilidades” (WINNICOTT, 1939, p. 95).
A importância da mediação insere-se no conceito de limite: vem do Latim limes,
“caminho entre dois campos, fronteira, sulco”. (origem da palavra, limites, 2018). Ou seja,
“Quando encontra no lar um ambiente suficientemente forte e resistente às suas tenta-
tivas de desorganizá-lo, ela se tranqüiliza e consegue se sentir livre e capaz de brincar,
ser uma criança irresponsável.” (LUZ, 2008, p. 115)
Análise de Práticas Pedagógicas: Limites e desobediência na educação infantil 17
ENTREVISTA:
1) Como seria mais adequado fazer para impor limites nos primeiros anos de
vida escolar?
2) O que seria mais adequado fazer quando uma criança se recusa a obedecer?
RESULTADOS:
Fonte: elaborado pela autora com base na análise dos resultados da pesquisa
Fonte: elaborado pela autora com base na análise dos resultados da pesquisa
Análise de Práticas Pedagógicas: Limites e desobediência na educação infantil 19
Fonte: elaborado pela autora com base na análise dos resultados da pesquisa
Fonte: elaborado pela autora com base na análise dos resultados da pesquisa
20 Anais do XIII SevFale
CONCLUSÕES:
REFERÊNCIAS
Resumo: Pensando no apontamento feito por Pegrum (2014) sobre o uso acentuado dos dispo-
sitivos móveis a partir de 2013 bem como o acesso à internet por meio desses aparelhos, con-
sidero ser importante a elaboração de um artigo que faça reflexões sobre a formação docente,
uma formação que deve estar engajada em hábitos de leitura nos meios digitais, inclusive utili-
zando-se dos meios móveis para lecionar. O estudo em questão não ocorreu em uma pesquisa
aplicada e sim de uma análise bibliográfica a qual apresenta alguns conceitos e reflexões sobre
aprendizagem móvel, o papel do docente e as possíveis propostas para o uso de dispositivos
móveis nas práticas escolares discutindo sobre o perfil docente do século XXI: suas estratégias
de ensino, a maneira pela qual o professor realiza atividades para letrar seus alunos digitalmen-
te e como fazer a integração dos recursos digitais móveis nas práticas pedagógicas cotidianas.O
objetivo desse trabalho é comunicar ao meio acadêmico a necessidade de repensar a educação
englobando a aprendizagem móvel e o uso dos seus respectivos dispositivos.
Simpósio 1: Educação.
24 Anais do XIII SevFale
1. INTRODUÇÃO
e não verificam a credibilidade dos mesmos. Desse modo, torna-se elementar que os
cursos de formação docente e/ou formação continuada apresentem em seus currículos
o ensino de práticas pedagógicas que contemplem as ferramentas e os meios digitais
para que o professor, primeiramente, esteja letrado nesse meio e, assim consiga desen-
volver e mediar atividades com essa temática.
Paiva (2013) explica que a associação TESOL (Teachers of English as Second or
other Language) criou uma comissão com objetivo de refletir sobre a importância de
uma formação docente que saiba usar as tecnologias em sua prática pedagógica, para
tanto, o pressuposto é que os computadores não substituirão os professores, mas pro-
fessores capacitados substituirão aqueles que não fazem uso de recursos tecnológicos.
Ahmed, Kasi e Nasseef (2013, p. 3130) também possuem a mesma linha de racio-
cínio e isso é percebido quando eles endossam a ideia de van Lier (2003) ao dizerem que
a “[tecnologia] deve ser uma força positiva na educação”, um modo de facilitar o traba-
lho docente e não uma substituir o profissional. Isso implica que o professor precisa se
apropriar da tecnologia e nela se apoiar para melhorar o seu fazer docente contextuali-
zando o conteúdo à realidade de seus alunos.
Nesse sentido Paiva (2015) preleciona que o homem está preso à tecnologia e
com o sistema educacional não é diferente, a escola é sempre pressionada por ela, tan-
to com a adoção do livro quanto ao uso do computador. A autora recorre a Kelly (1969),
consolidando a afirmação acima, diz que as comunicações são dominadas pelas máqui-
nas e, com isso, o ambiente linguístico se recria de modo que o professor e o livro são
forçados a se integrarem aos novos meios de transmissão.
Diante dessa integração aos novos meios de comunicação digital torna-se funda-
mental uma mudança do fazer docente em que a prática pedagógica esteja voltada para
as mídias e aconteça nas mídias (Santaella, 2013, p.125).
Com este artigo, pretendo abordar os conceitos sobre a aprendizagem móvel, refle-
xões acerca do atual papel do docente e as possíveis práticas pedagógicas que permeadas
pelo uso de dispositivos móveis. Mas, antes de refletir sobre essa temática, surge a questão
inicial: o que é um dispositivo móvel? Esse é o tema que desenvolvo na nossa próxima seção.
Para falar sobre práticas pedagógicas contextualizadas com a realidade dos alu-
nos, uso de ferramentas digitais, mídias, redes sociais, precisamos, antes, delimitar o
que é um dispositivo móvel de um aparelho portátil.
26 Anais do XIII SevFale
Para diferenciar o que é móvel do que é portátil, Pegrum (2014) usa a concepção
de Puentedura (2012), em que o dispositivo móvel é visto como um aparelho capaz de
ser usado ininterruptamente, sem necessidade de ser fechado quando o sujeito decide
se deslocar de um ponto para outro, ou seja, é possível utilizá-lo no percurso. Em con-
traponto, os aparelhos portáteis, como o notebook, são usados em um ponto, finaliza-se
seu uso e inicia-se novamente em outro local.
Com o desenvolvimento dos dispositivos móveis surge uma diferente modalida-
de de ensino: o mobile learning ou aprendizagem móvel. Esse tema tem interessado di-
versos pesquisadores. Braga (2017) explica que pelo fato dos dispositivos móveis serem
tão pequenos e leves, fica muito fácil e prático transportá-los para outros ambientes o
que favorece a acessibilidade no agora ou no just in time. Para a autora, com as efetivas
ações de busca por informações na internet ocorre a descentralização do papel do pro-
fessor cedendo lugar à participação ativa dos alunos nas atividades.
Além disso, integrar os dispositivos em sala é alinhar a aula com abordagens con-
temporâneas que enfatizam a descentralização do poder e estimula oportunidades de
interação, colaboração e participação ativa dos alunos no processo de aprendizagem.
Para Braga (2017), com as efetivas ações de busca de informações na internet
ocorre a descentralização do controle do professor. Enquanto Coscarelli (2016) apresen-
ta a descentralização voltada para a informação e para o conhecimento, em que o aluno
é instigado a gerenciar sua aprendizagem de maneira mais participativa. Hoje, o papel
do docente não é ser o detentor do saber e a sala de aula não é mais o espaço para a
informação verticalizada, ao contrário, há trocas e partilhas com a participação do aluno,
ele interage ativamente, opina, discorda, sabe fundamentar suas opiniões, enfim, sabe
debater.
A aprendizagem móvel é enfatizada por Braga, Gomes e Racilan (2017) como um
movimento que vai além da intervenção na prática pedagógica, ela é uma modalidade
de ensino-aprendizagem da prática, de modo que os contextos sociais em que os alu-
nos e professores experimentam transformam-se em “fontes de recursos explorados via
tecnologias móveis em prol do ensino e aprendizagem de línguas” (BRAGA, GOMES e
RACILAN, 2017, p. 49).
De acordo com Pegrum, Oakley e Faulkner (2013) a m-learning favorece o apren-
dizado em diferentes contextos, não se delimitando apenas a escola, essa modalidade
de ensino é capaz de desafiar o tempo e o local fixo, já que o espaço para aprender não
se restringe à sala de aula, mas no próprio aprender em si, nos dizeres de Braga, Gomes
e Martins (2017) a aprendizagem móvel torna “qualquer espaço em um potencial espa-
ço para aprendizagem” (BRAGA, GOMES e MARTINS, 2017, p. 54).
Novas Práticas Para o Professor do Século XXI 27
Para Souza e Oliveira (2016) o uso da mobilidade colabora para despertar a mo-
tivação e o prazer por parte do discente, além da qualidade que proporciona ao ensino.
O professor, que não teve formação na área, precisa se inteirar e se qualificar com as
demandas atuais que lhe cabem. Hoje, o papel docente apresenta diferentes responsa-
bilidades, passando do detentor do saber para aquele que gerencia o aprendizado.
Desse modo, o professor que complementa seu conhecimento acerca das ferra-
mentas digitais será capaz de estabelecer ‘pontes’ interligando o aluno à aprendizagem
e à tecnologia e, se necessário, fazendo adaptações no quadro programático proporcio-
nando oportunidade para um aprendizado contínuo, para que, despertando o interesse
do educando, este continue suas buscas fora do contexto escolar.
Para o uso de recursos digitais móveis no ensino-aprendizagem dos alunos, o do-
cente precisa desenvolver as seguintes habilidades:
• reconhecer as possíveis especificidades envolvidas no recurso pretendido;
• verificar a segurança do ambiente de aprendizagem;
• conhecer e testar as funcionalidades dos aplicativos disponíveis;
• ajudar o aluno esclarecendo dúvidas e permitir o trabalho colaborativo entre
os pares;
28 Anais do XIII SevFale
Prefiro considerar o uso dos dispositivos móveis nas práticas pedagógicas e não
em sala de aula, o que inclui seu uso num contexto extra escolar e, portanto mais amplo.
Levá-los para a sala de aula muitas vezes não é possível, pois ainda encontramos escolas
que não são adeptas ao uso de tais ferramentas.
Braga e Murta (2012) explicam que a produção escolar tem como incentivo prin-
cipal a apreciação do professor e a nota que ele dará para o trabalho feito, ou seja, o
1 Inovação aqui deve ser entendida não como o uso de dispositivos móveis, pois esses já foram adotados por nossa
sociedade. Mas, o uso dessas ferramentas como práticas pedagógicas.
Novas Práticas Para o Professor do Século XXI 29
Primeiramente, a dica mais significativa para o professor que está começando sua
adoção de recursos digitais é navegar no site2 Redigir para conhecê-lo. Nele, encontram-
se diversos planos de aula com materiais pensados no aluno e no professor e o conteúdo
pode ser baixado gratuitamente. As atividades são elaboradas por uma equipe capacita-
da de alunos, mestres e doutores da área de Letras e de Linguística Aplicada.
É possível ainda repensar a função da rede social em ambientes pedagógicos,
mais precisamente do Facebook, criando uma comunidade para a turma e, nesse am-
biente, pode-se compartilhar os trabalhos da classe que foram desenvolvidos no decor-
rer do ano, assim, pais e comunidade escolar poderão ler, se informar, compartilhar e
comentar sobre as atividades e os projetos realizados.
Uma outra alternativa é criar um grupo da sala, utilizando o aplicativo What-
sApp, com as regras de organização e participação estabelecidas, o professor pode
lançar desafios, tarefas de casa, começar um debate e terminar no outro dia na clas-
se, enviar link de vídeos, por exemplo, e discutir com os colegas na sala de aula, pedir
aos estudantes para produzirem memes sobre determinado tema e publicar no grupo,
fazer vídeos para exibição de mini contos, poemas ou outro gênero e compartilhar no
grupo, etc. Para a elaboração dos vídeos, o educador pode sugerir o uso do aplicativo
VideoShow, específico para gravação de vídeos e pode ser facilmente compartilhado
via dispositivos móveis.
Outra atividade interessante é a confecção de uma nuvem de palavras, que pode
ser feita após o trabalho sobre um tema/texto específico em sala. Para tanto, a sugestão
de aplicativo é o Word Clouds e, em seguida, é possível compartilhar o resultado no Fa-
cebook da turma ou no grupo do WhatsApp.
2 http://www.redigirufmg.org/
30 Anais do XIII SevFale
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Retomando ao que já foi dito neste artigo sobre o fazer docente, considero impor-
tante assinalar que ao utilizar essas ferramentas digitais móveis, o professor caminhará
para a mudança das práticas didáticas vigentes em busca da inovação e transformação
da escola, criando um “lugar mais ‘real’, mais acessível, em que aprender será um pra-
zer, onde a troca de informações e a construção de saberes serão atividades constantes”
(COSCARELLI, 2005, p. 40).
Acredito que não seja romper com todas as metodologias e práticas existentes
e sim intercalar atividades voltadas para a prática social quando estas forem possíveis
bem como a mudança na postura do papel do professor, uma vez que no contexto atual,
o perfil desse profissional deve estar voltado para a mediação/orientação ao conduzir
seus alunos.
Nos dizeres de Freitas (2010), precisamos de professores e de alunos letrados
digitalmente, que não utilizem as mídias passivamente, mas que saibam se apropriar
da tecnologia de maneira crítica e criativa, dando a ela significados e funções, ou como
explica Buzato (2006), a sala de aula pode ser um espaço capaz de promover a conexão
entre alunos e professor e, como uma equipe, eles podem trabalhar de maneira colabo-
rativa, discursiva e atuante sem oportunidade para o predomínio de uma relação hierár-
quica capaz de manter os alunos padronizados e subordinados ao educador.
Novas Práticas Para o Professor do Século XXI 31
REFERÊNCIAS
Resumo: este texto tem por escopo explanar a conveniência/necessidade de se transmitir aos
alunos do ensino fundamental o estudo de culturas africanas. Para além da obrigação legal,
busca-se analisar como o ensino de literatura africana pode ser uma ferramenta extrema-
mente eficaz para o desenvolvimento do tema. Além de ter embutida em seu cerne muitos
dos valores e tradições dos países de África, a poesia africana lusófona pode, se devidamente
apresentada, captar a atenção de crianças e adolescentes de maneira ainda mais incisiva. O
tema proposto é atual e relevante, visto que se percebe um crescente resgate de culturas afri-
canas, resgate este que possui, entre outros, o objetivo de compreendermos a nossa própria
identidade. O estudo, a valorização e a preservação das raízes de nossa cultura são fundamen-
tais, ainda mais em um país como o Brasil onde, durante anos, ignorou-se a riqueza do povo
africano e se importou europeísmos artificiais e inócuos. O respaldo jurídico da Lei 10.639 de
9 de janeiro de 2003, que modificou a Lei 9.394/96, não é suficiente para que seja efetivado o
ensino, motivo pelo qual métodos alternativos e mais atraentes - porém igualmente legítimos
- são imprescindíveis.
1. INTRODUÇÃO
34 Anais do XIII SevFale
Ensinar um povo sobre suas origens é ensinar sobre sua própria identidade. Na
busca por esta - imprescindível para entender as atuais construções sociais e concepções
morais/estéticas -, é inevitável nos depararmos com determinados conteúdos. A História
e a Arte são pilares incontornáveis na investigação da evolução histórica de nossa socie-
dade - investigação que tem por escopo último a efetiva mudança/melhoria da realida-
de. Portanto, desde logo, retira-se do plano puramente teórico e abstrato e trazemos
para o mundo concreto e palpável a necessidade do ensino de cultura africana.
Entender a riqueza dos costumes, tradições e manifestações artísticas de
uma sociedade ajuda a romper com estereótipos secularmente consolidados por
anos de cultura escravocrata - cultura esta que prevalece, ainda hoje, na evidente
desigualdade social, na irregular distribuição de riqueza, nos arranjos profissionais
institucionais, no acesso nada isonômico à educação de qualidade e nos mais varia-
dos abusos do Estado (abusos físicos, através da polícia; e morais/sociais, através de
seus órgãos burocráticos).
Reconhecer as virtudes de uma cultura (a maior parte delas sufocadas e camufla-
das) aproxima pessoas excluídas e marginalizadas de um centro que, em tese, busca-se
igualitário e fraterno. Para tanto, diversas ferramentas podem ser utilizadas, dentre as
quais coloca-se a História e a Literatura.
Como visto, o texto legal não limita o método de ensino a ser aplicado; apenas
apresenta algumas diretrizes, citando disciplinas estratégicas e o conteúdo a ser aborda-
do - de forma genérica. Contudo, não se trata de uma lacuna ou de uma inocente omis-
são legal. A Lei não possui por escopo estabelecer como um ensino deve ser feito - para
tanto existe a figura do professor e das instituições de ensino. Ainda que a formação
epistêmica seja precária, em tese, os educadores possuem um contato mais aprofunda-
do com conceitos e princípios pedagógicos do que o legislador. Portanto, a ausência, na
lei, de um destrinchamento de como deve ser transmitido o ensino é um reconhecimen-
to sensato de que não pertence à esfera jurídica o monopólio de tais decisões.
Surge, então, uma pergunta especialmente relevante para os professores de Li-
teratura: quais livros/autores estudar? Alguns critérios podem ser estipulados. Para Du-
arte (2008), são cinco os fatores que, conjuntamente, definem determinada obra como
literatura afro-brasileira na sua completude. São eles: “temática, autoria, ponto de vista,
linguagem e público” (Duarte, p.21). A partir deles, fica fácil entender por que um autor
como Castro Alves não se encaixaria na proposta da Lei 10.639/03. O poeta baiano ain-
da enxerga a questão racial do lado externo, com uma perspectiva distante, ainda que
empática, não traduzindo a complexidade das tradições africanas e as pretensões dos
escravizados. Em contrapartida, escritores como Lima Barreto, normalmente estudado
pelo viés puramente estilístico, podem começar a ser abordados sob outra perspectiva
- a da tradição afro-brasileira -, pois, nas palavras de Schwarz (2010, p.29 apud MARTIN
e BUENO, p. 38):
36 Anais do XIII SevFale
1 Na famosa correspondência a Lúcio de Mendonça, sobre seu pai, o próprio Gama diz: “Meu pai, não ouso afirmar
que fosse branco, porque tais afirmativas, neste país, constituem grave perigo perante a verdade, no que concerne
à melindrosa presunção das cores humanas: era fidalgo e pertencia a uma das principais famílias da Bahia de ori-
gem portuguesa. Devo poupar à sua infeliz memória uma injúria dolorosa, e o faço ocultando o seu nome” (GAMA
apud FERREIRA, p.309)
Literatura Africana como Ferramenta de Aprendizagem 37
me, fugindo, da casa do alferes António Pereira Cardoso” (Ferreira, pág. 306). Em sua
vida pública, foi respeitado e elogiado pela postura ativa e inteligente na abordagem
de questões raciais e abolicionistas.
Luiz Gama foi um dos primeiros a se valer um eu-lírico negro, forte, que, longe de
se martirizar, questionava a superioridade de raças e a pretensa “pureza racial” das altas
classes brasileiras. Extremamente satírico, seu livro Primeiras trovas burlescas (1859)
aborda temas como mestiçagem, abolição da escravidão, exaltando tanto poetas clássi-
cos, como Camões, quanto musas negras, fugindo, assim, à tradição clássica da beleza
greco-romana de outros poetas românticos. Dotado de ritmo e vocabulário peculiar, os
poemas inauguraram uma nova poesia brasileira. Como é o caso do, talvez mais conhe-
cido, “Quem sou eu? ”, no qual, ao aludir à sua condição de bode (termo pejorativo uti-
lizado para designar o mestiço), nivela todos os seres humanos, independentemente da
raça, à mesma condição:
Se negro sou, ou sou bode
Pouco importa. O que isto pode?
Bodes há de toda a casta,
Pois que a espécie é muito vasta…
(...)
Bodes ricos, bodes pobres,
Bodes sábios, importantes,
E também alguns tratantes...
Aqui, nesta boa terra,
Marram todos, tudo berra;
Nobres Condes e Duquesas,
Ricas Damas e Marquesas
Deputados, senadores
(...)
Haja paz, haja alegria,
Folgue e brinque a bodaria;
Cesse pois a matinada,
Porque tudo é bodarrada! –2
nário em que se passa seu principal livro, Quarto de despejo: diário de uma favelada
(1960), que retrata sua vivência na comunidade durante os anos 1955 e 1960.
Não restrito ao interesse sociológico que circundou sua estreia, Quarto de des-
pejo possui qualidades estilísticas e estéticas peculiares. Aborda temas como pobreza,
fome, miséria, política e racismo de maneira subjetiva e emotiva, mas, ao mesmo tem-
po, coerente, detalhista e minuciosa. Observadora aguda da realidade, Carolina de Jesus
constrói uma narrativa que, longe de se prejudicar dos erros gramaticais e ortográficos,
vale-se destes como força motriz impulsionadora do estilo.
A autora mineira, negra, traz um relato sobre os negros, do ponto de vista negro,
utilizando uma linguagem contundentemente espontânea. Preenchendo todos os fatores
elencados por Duarte, foi um fenômeno editorial dos anos 60, mas entrou em um ostra-
cismo racista obliterador que a afastou, tanto da academia, quanto do público em geral.
De Quarto de despejo vale a pena transcrever algumas passagens que aqui nos
interessa pelo caráter social e questionador que carrega, além de exaltador e valorizador
da cor negra. No trecho do dia 13 de maio, Carolina diz, numa falsa ingenuidade, carre-
gada de ironia e observação:
Hoje amanheceu chovendo. É um dia simpático para mim. É o dia da Aboli-
ção… Nas prisões os negros eram bodes espiatorios. Mas agora os brancos são
mais cultos. E não nos trata com despreso.Que Deus ilumine os brancos para
que os pretos sejam feliz. (JESUS, pág. 27)
A anáfora “tem gente com fome”, ao mesmo tempo em que serve de denúncia
(reforçada pela repetição), mimetiza o barulho do trem e dá ritmo ao poema. O trem,
em seu papel de delator de mazelas sociais, no fim, tem sua voz sufocada - como a de
muitos a quem a desigualdade atinge de maneira trágica e irreversível:
Mas o freio de ar
todo autoritário
manda o trem calar
Psiuuuuuuuuuuu
(TRINDADE, 2008, p. 44)
Em outros poemas, a questão racial, para além da puramente social, é ainda mais
nítida. Em “Sou negro”, por exemplo, as raízes africanas são resgatadas em meio a pala-
vras de idiomas africanos, exaltando as tradições dos ascendentes formadores da identi-
dade pessoal do poeta, ao mesmo tempo que reflete uma construção identitária nacio-
nal, desmitificando a ideia do negro escravizado como submisso e resignado:
Na capoeira ou na faca
escreveu não leu
o pau comeu
Não foi um pai João
humilde e manso
(...)
Na minh’alma ficou
o samba
o batuque
o bamboleio
e o desejo de libertação...
(TRINDADE, 1981, p. 32)
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
Resumo: Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN, 1998) propõem que as práticas de leitu-
ra e escrita em sala de aula com alunos do Ensino Fundamental II sejam trabalhadas a partir
da diversidade de gêneros textuais. Desse modo, o uso diversificado de textos colabora com a
prática de interpretação textual, ou seja, é necessário que as aulas de Língua Portuguesa pro-
piciem contatos com gêneros textuais, para além dos comumente utilizados, a fim de garantir
aos alunos conhecimento, ampliação de ideias e imaginação. Assim, o presente artigo visa
propor uma leitura e análise do gênero literário dramático em sala de aula, tendo em vista ser
um gênero relegado à margem, pouco considerado para as práticas de leitura, interpretação e
produção textual. Portanto, em defesa do ensino escolar a partir do texto dramático, e assim,
do seu alcance reflexivo e humanizador, esse trabalho pretende desmistificar o paralelo leitu-
ra/encenação e orientar o percurso de leitura do texto dramático em sala de aula para alcance
interpretativo e reflexivo da obra dramática e, consequentemente, sobre a sociedade em que
está inserida. Como exemplo e parâmetro de análise, utilizaremos a obra dramática contem-
porânea Amores surdos, de Grace Passô.
Simpósio: Educação.
INTRODUÇÃO
44 Anais do XIII SevFale
O drama, por vezes, está posto nos livros didáticos e está presente nas emen-
tas escolares, até mesmo devido à orientação descrita nos Parâmetros Curriculares Na-
cionais (PCN) (1998, p. 71) como observamos, “em coerência com o princípio didático
que prevê a organização das situações de aprendizagem a partir da diversidade textual,
estão especificados gêneros adequados para o trabalho com a linguagem oral e com a
linguagem escrita.”. Isso em vista, a diversidade textual é postulada para os dois ciclos
do Ensino Fundamental, sendo divididos em ‘gêneros adequados para o trabalho oral’ e
‘gêneros adequados para o trabalho com a linguagem escrita’; o drama, o texto teatral,
está postulado no segundo âmbito,
• receitas, instruções de uso, listas; • textos impressos em embalagens, rótu-
los, calendários; • cartas, bilhetes, postais, cartões (de aniversário, de Natal,
etc.), convites, diários (pessoais, da classe, de viagem, etc.); • quadrinhos,
textos de jornais, revistas e suplementos infantis; etc.(...)• contos (de fadas,
de assombração, etc.), mitos e lendas populares, folhetos de cordel, fábulas;
• textos teatrais; relatos históricos, textos de enciclopédia, verbetes de dicio-
nário, textos expositivos de diferentes fontes (fascículos, revistas, livros de
consulta, didáticos, etc.). (PCN, 1998, p. 72).
Texto Dramático e Sala de Aula: Uma Leitura de ‘Amores Surdos’, de Grace Passô 45
Sendo assim, com base na orientação dos PCNs, cabe a nós enquanto professo-
res sempre reavaliarmos a verdadeira complexidade e função social exigida nos textos
trabalhados em sala de aula, a fim de aprimorarmos a capacidade leitora e crítica de
nossos alunos, pois, ao final do segundo ciclo do Ensino Fundamental, o aluno deve ser
capaz, no que diz respeito à prática de leitura, de conduzir a compreensão do texto de
forma mais autônoma. Patamar de autonomia a ser alcançado, de acordo com os PCNs
(1998), a partir das especificidades cognitivas e da complexidade apresentadas nos tex-
tos ensinados, tal como exposto nos parâmetros,
• compreender o sentido nas mensagens orais e escritas de que é destinatário
direto ou indireto, desenvolvendo sensibilidade para reconhecer a intenciona-
lidade implícita e conteúdos discriminatórios ou persuasivos, especialmente
nas mensagens veiculadas pelos meios de comunicação; • ler autonomamen-
te diferentes textos dos gêneros previstos para o ciclo, sabendo identificar
aqueles que respondem às suas necessidades imediatas e selecionar estraté-
gias adequadas para abordá-los; (PCN, 1998, p. 79).
Agora, a efetiva prática do texto dramático em sala de aula fica, por vezes, defa-
sada devido a algumas insistências ora ao atrelar o texto dramático, única e exclusiva-
mente, à encenação, e assim, o gênero como um todo é ignorado, pois não há preparo
ou interesse para tal seja do professor, seja do aluno; ora ao pontuar apenas nomes de
dramaturgos inseridos no cânone brasileiro, com poucas aberturas para ensinar outras
dramaturgias. Como indicador dessa defasagem, consideramos a pesquisa de Fabiano
Grazioli1 a qual aponta a mínima preocupação com o gênero dramático pelo Programa
Nacional Biblioteca na Escola (PNBE), o qual no ano de 2013, entre 360 obras seleciona-
das para os anos finais do Ensino Fundamental e Médio, apenas quatro eram obras do
gênero dramático.
1 GRAZIOLI, Fabiano Tadeu. O texto dramático: por uma teoria que estimule a leitura. Rio de Janeiro: Cadernos de
Letras da UFF, 09 jul. 2016.
46 Anais do XIII SevFale
sódios da fábula rumo a um desenlace, e que sugere que o espectador é cativado pela
ação.” (PAVIS, 1999, p. 110).
Considerarmos o caráter híbrido do gênero dramático, ou seja, a relação primeira
entre texto/espetáculo, já é suficiente para inúmeras apreciações, porém, o recorte no
texto teatral enquanto obra literária é fundamental para estabelecermos uma leitura e
interpretação atentas de cada nuance e significado do texto dramático. Patrice Pavis, em
sua definição sobre dramaturgia, esclarece a importância dos elementos constituintes
do gênero dramático.
A dramaturgia (...) procura estabelecer os princípios de construção da obra,
seja indutivamente a partir de exemplos concretos, seja dedutivamente a par-
tir de um sistema de princípios abstratos. Esta noção pressupõe um conjunto
de regras especificamente teatrais cujo conhecimento é indispensável para
escrever uma peça e analisá-la corretamente (PAVIS, 1999, p. 113).
Nesse mesmo raciocínio, Massaud Moises (1977) elabora uma defesa da análise
do texto teatral, separado de sua representação cênica. Uma defesa para além da audi-
ção passiva do texto teatral, pois esse exige do leitor recorrer a sua imaginação, segundo
o autor, mais do que os demais gêneros discursivos.
Decerto, uma narrativa qualquer implica que o leitor ponha em funcionamen-
to seus dotes de fantasia, mas os vários auxiliares de que lança mão o ficcio-
nista (como a dissertação, a narração e a descrição) lhe simplificam a tarefa.
O leitor de teatro, falho de tais expedientes, vê-se obrigado a movimentar
todas as turbinas de sua imaginação, sob pena de permanecer impermeável
ao texto. (MOISES, 1977, p. 203).
ênfase deve estar principalmente na leitura dos diálogos e na leitura das rubricas. Assim,
utilizamos nesse trabalho, a análise das rubricas, ou didascálias, devido a sua potência
em aliar a ficção e a materialidade cênica, fato que possibilita ao leitor, e aqui retoma-
mos Massaud Moises, utilizar seus dotes de fantasia, pois,
A rubrica projeta no plano literário, uma certa materialidade cênica. É um
território privilegiado de convívio entre duas dimensões do fenômeno teatral
em princípio incomunicáveis: a cena imaginária, virtual, projetada pelo autor,
e a cena concreta, matéria tridimensional que ocupará espaço físico. (RAMOS,
2001, p. 9).
Por essa rubrica torna-se possível preencher mais algumas lacunas sobre quem
é essa família e como ela se constitui, pois, ao apresentar filhos desajustados, como o
filho mais velho, o qual não possui projetos de vida, a ausência paterna, a diferença no
trabalho doméstico entre homens e mulheres, e ainda, a necessidade, por parte desse
filho, de alguma proteção, é possível inferir certos desgastes nessa relação familiar. Ob-
jetivamos assim formular um desenho interpretativo de como as relações dentro dessa
família estão se desfazendo, pois o amor e o afeto entre essas personagens são dificil-
mente ouvidos.
Como na rubrica já delimitada anteriormente, a qual caracteriza a personagem
Joaquim, aquela define tal personagem a partir de sua relação com os pais, “sempre
quando briga com a mãe, espia ao lado para ver ser ele [pai] está por ali, para defendê-
-lo.” (2012). Ou seja, na leitura primeira, percebemos a relação familiar, já na leitura por-
menorizada das rubricas evidencia-se o conflito principal do drama: uma família desajus-
tada. Pois, mesmo a família apresentada em ambiente comum, unidas corporalmente,
é na análise que iremos perceber quão distanciadas psicologicamente as personagens
estão e quais razões para tal dentro desse grupo familiar.
A partir dessas questões, podemos salientar com a classe de alunos como o tema
família é recorrente em diferentes expressões artísticas, pois, de modo sumário, é o pri-
meiro ambiente social no qual nos constituímos enquanto pessoas. Muito do que apren-
demos nesse grupo pode ser falho e muito também pode ser benéfico. Nesse âmbito,
certas categorias tal como o cotidiano perpassam por todas as famílias, novamente, sem
nos aprofundarmos, é no dia a dia que fomos educados, somos educados e educamos
dentro de nossas concepções familiares. No entanto, ao deslocarmos esse pensamento
para o texto teatral, a compatibilidade entre o gênero dramático e o tempo cronológico
é restrita, e pode assim ser marcada por meio das rubricas, como no seguinte momento.
“A ligação cai. Graziele volta a escutar seu headphone. O tempo passa. E com ele os dias
comuns.” (PASSÔ, 2012, p. 47).
Texto Dramático e Sala de Aula: Uma Leitura de ‘Amores Surdos’, de Grace Passô 51
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
Resumo: De acordo com Bialystok, Craik e Luk (2012), o controle inibitório encontra-se meio a
um conjunto de habilidades mentais intimamente relacionadas a recursos cognitivos para a rea-
lização de algumas tarefas, como inibição, manutenção atencional e funcionamento da memória
de trabalho. O uso constante de dois sistemas linguísticos pode ser benéfico para as FEs, mas
acarreta um processamento linguístico com maior custo cognitivo, demonstrando que bilíngues
em todas as idades apresentam melhor desempenho de FEs que os monolíngues combinados
nessa mesma variável. Entretanto há muitos estudos sobre controle inibitório que não se pre-
ocupam diretamente com a questão linguística. O foco destes estudos recai, em grande parte,
sobre a capacidade humana de categorização e o papel dessas categorizações em processos
cognitivos. Pesquisas desse tipo suportam, ainda assim, propostas de processamento linguístico,
como aquela defendida por Glucksberg e Keysar (1990), segundo a qual expressões metafóricas
são interpretadas através da criação de novas categorias ad hoc. O presente trabalho aborda a
discussão de estudos voltados para esse componente das FEs a fim de fomentar questões a res-
peito do funcionamento da mente humana, seja em processos linguísticos ou não-linguísticos.
1. INTRODUÇÃO
58 Anais do XIII SevFale
Cada vez mais pesquisas têm voltado a atenção para o aprendizado de uma segun-
da língua tanto no meio acadêmico (através de esforços nas áreas de Psicolinguística, Lin-
guística Aplicada e Ciências Cognitivas, por exemplo) como no meio comercial/publicitário.
Também é cada vez mais recorrente que empresas privadas ou mesmo notícias na Internet
se utilizem de promessas de cura de doenças degenerativas, como o Alzheimer, por meio
do aprendizado de uma nova língua a fim de garantir seu público ou sua audiência.
Embora seja um assunto muito discutido, ainda se torna viável explicitar o sig-
nificado dos termos “bilinguismo” e “bilíngue”. Segundo Grosjean1, o primeiro termo
refere-se à utilização regular de uma ou mais línguas (ou dialetos), enquanto o segundo
concerne aos indivíduos que usam uma ou mais línguas (ou dialetos) em seus cotidia-
nos. Um fato curioso, também ressaltado pelo autor2, é a crença de que o “verdadei-
ro” bilíngue seria aquele que é igualmente fluente em suas línguas, entretanto isso não
se aplica uma vez que a experiência bilíngue não ocorre de maneira homogênea nos
indivíduos. Isso é atestado pelo Princípio da Complementaridade (GROSJEAN; LI, 2013,
p. 12), segundo o qual a aquisição e o uso das línguas pelos bilíngues dependem de di-
ferentes propósitos, de diversos domínios da vida (acadêmico, familiar, profissional etc.)
e de relações interpessoais variadas, pois “[...] Different aspects of life require different
languages.”3.
No que se refere ao meio acadêmico, vários estudos foram conduzidos com o
objetivo de compreender a natureza, o desenvolvimento e os mecanismos envolvidos
no processo de comunicação de pessoas bilíngues e monolíngues, comparando inclusive
a performance desses dois grupos em certas tarefas para entender as vantagens e des-
vantagens dessas categorias de falantes. Com a estimativa de que metade da população
do planeta seja bilíngue (GROSJEAN, 2008, p. 11) e de que existam mais de 7000 línguas
vivas no mundo (SIMONS; FENNING, 2018), o aumento dos estudos referentes ao bilin-
guismo não seria uma mera coincidência nos últimos trinta anos.
1
GROSJEAN, 2008, p. 10
2
GROSJEAN, loc. cit.
3
“[...] Diferentes aspectos da vida requerem frequentemente diferentes línguas.” (Tradução nossa).
O Controle Inibitório Humano: entre o Linguístico e o Não-Linguístico 59
mente se modificam à medida que fazemos uso de ambos para diferentes finalidades,
seja para educação formal, para fins profissionais (como publicitários, médicos ou ta-
xistas que precisam dar soluções para certos problemas, planejarem novos caminhos
a percorrer ou lidar com multitarefas), para educação musical, jogos eletrônicos ou
mesmo para exercícios físicos. A linguagem permeia todos esses campos do dia a dia
além de muitos outros e alcança também a maioria dos centros cerebrais, envolvendo
todo o cérebro.
A cientista, então, propõe algumas indagações: no caso dos bilíngues, por que
se escolhe a língua adequada a ser usada num dado contexto e por que não haveria
confusão entre as línguas visto que elas se mantêm ativas sempre (de alguma forma)?
O que estaria por trás de todos esses processos, além dos supracitados, seria o sistema
das Funções Executivas.
As Funções Executivas (EF) referem-se ao conjunto de habilidades específicas
relacionadas ao uso de recursos cognitivos limitados (BIALYSTOK; CRAIK; LUK, 2012, p.
241), constituindo-se de redes neurais, localizadas no lóbulo frontal, que podem fomen-
tar conexões para outras áreas cerebrais de acordo com a especificidade da tarefa. O
controle inibitório seria um dos aspectos das EF a ser estudado, surgindo tardiamente
na ontogênese e decaindo rapidamente com a idade, garantindo a manutenção de ativi-
dades como multitarefas e manutenção da atenção4. Uma sequência regular de passos a
serem seguidos seria estabelecida: primeiro, temos a representação do problema segui-
da do planejamento, de sua execução e, por último, da avaliação (essas etapas podem
durar milissegundos ou mais). Zelazo (2014) esclarece, no entanto, que falhas podem
ocorrer em qualquer uma dessas fases, fazendo com que outras decisões sejam tomadas
para a resolução da tarefa.
As funções executivas medidas na infância têm implicações importantes para o
desenvolvimento das mesmas na vida adulta a partir da capacidade da criança sentar,
prestar atenção e seguir regras, por exemplo, no contexto de escolarização. Zelazo (2014)
explicita que, com base em experimentos do tipo DCCS (Dimensional Change Card Sort),
trabalhando com variáveis de dimensão de cor e de forma, por volta dos três anos de
idade, a maioria das crianças continua resolvendo uma segunda tarefa com base ainda
na instrução de uma primeira tarefa, mesmo demonstrando o conhecimento da nova
regra quando a dimensão muda. Nessa idade, temos um exemplo da rigidez das funções
executivas que ainda não inibem a regra antiga para a execução de uma nova.
4
BIALYSTOK; CRAIK; LUK, 2012, p. 241.
60 Anais do XIII SevFale
3. CATEGORIZAÇÃO E PROCESSAMENTO
3.1 METÁFORA
Lakoff e Johnson (1980) postularam uma teoria, conhecida como Teoria da Me-
táfora Conceitual, a qual prevê que as metáforas sejam parte da forma como conceitu-
alizamos o mundo. Ao nos utilizarmos de algo mais concreto (veículo) para falar de algo
mais abstrato (tópico), criamos mapeamentos que podem licenciar diversas expressões
em uma dada língua. O mapeamento TEMPO É DINHEIRO, por exemplo, nos permite
compreender o uso de itens lexicais relacionados ao veículo (DINHEIRO) para nos refe-
rirmos ao tópico (TEMPO). Ou seja, essa metáfora é licenciadora de expressões como
‘perder tempo’, gastar tempo’, ‘desperdiçar tempo’, etc.
De forma complementar, surgiu na década de 1990, a Teoria da Inclusão de Clas-
ses (GLUCKSBERG; KEYSAR, 1990), a qual prevê a criação de categorias durante o proces-
samento metafórico. Segundo os autores, a associação entre um tópico e um veículo cria
uma categoria funcional, a qual tem como integrante o tópico ao qual o mapeamento se
refere. Assim, uma metáfora como O COMPUTADOR É UMA LESMA criaria, no momento
de sua interpretação, uma categoria imediata, a qual incluiria diversas coisas que tam-
bém possam ser comparadas a lesmas.
A fim de avaliar a Teoria da Inclusão de Classes, Gernsbacher et al. (2001) con-
duziram experimentos que testassem a premissa de que o processamento de metáforas
O Controle Inibitório Humano: entre o Linguístico e o Não-Linguístico 63
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
5 Efeito de priming refere-se ao efeito de se processar uma determinada informação mais facilmente, uma vez que
se tenha sido exposto a algo que tenha contribuído para torná-la mais pré-potente. Assim sendo, o efeito de faci-
litação se dá em decorrência da pré-ativação causada pela informação anterior.
64 Anais do XIII SevFale
REFERÊNCIAS
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SIMONS, Gary F.; FENNING, Charles D. (Ed.). Ethnologue: Languages of the World. 21 ed. st
Resumo: Tratamos neste trabalho da relação entre linguagem e Teoria da Mente de segunda or-
dem. Trabalhamos com crianças em período de aquisição de linguagem, de 4 a 7 anos de idade,
e adultos falantes do português brasileiro (PB). Com o suporte da Teoria Gerativa, investigamos
a hipótese da centralidade da linguagem para uma Teoria da Mente de segunda ordem. Temos
como objetivos principais (i) avançar na compreensão e discussão do que caracteriza um estado
mental de segunda ordem, (ii) e de como este nível de operação mental pode vir a se relacionar
com a linguagem. Visamos aprofundar a compreensão da interface entre o domínio de atribui-
ção de estados mentais e a faculdade da linguagem (CHOMSKY, 1998). Trabalhamos com tarefas
baseadas nas propostas que modificam a tarefa de referência deste nível (PERNER e WIMMER,
1985). As alterações procuraram simplificar as histórias originais, testar diferentes aspectos nos
desenhos experimentais elaborados, além de diminuir as demandas de processamento de infor-
mação para avaliar o impacto desses fatores no desempenho dos sujeitos. Os resultados aqui
reportados acompanham os resultados que têm sido obtidos por pesquisas com o PB e com
outras línguas para o nível de segunda ordem.
INTRODUÇÃO
68 Anais do XIII SevFale
ATIVIDADE EXPERIMENTAL
tos sobre ignorância de segunda ordem, estado mental pouco estudado e debatido
pelas pesquisas brasileiras.
A atividade foi realizada com base em duas propostas experimentais: (1) a de
Sullivan, Zaitchik e Tager-Flusberg (1994) e (2) a de Coull, Leekman e Bennett (2006).
Tendo em vista que estados mentais de desejo, intenção e ignorância têm sido con-
siderados estados cuja demanda representacional é distinta, isto é, mais simples,
Sullivan, Zaitchik e Tager-Flusberg (1994) investigaram a compreensão dos estados
de ignorância e crença falsa de segunda ordem, realizando modificações na proposta
original de Perner e Wimmer (1985) para este nível. As alterações tiveram como ob-
jetivo simplificar as histórias originais e diminuir as demandas de processamento de
informação para avaliar o impacto desses fatores no desempenho das crianças. Com
isto, resultaram histórias mais curtas e com determinadas características tornadas
mais evidentes, tais como a presença explícita de contextos enganosos que foram
salientados, perguntas de sondagem de compreensão e de controle, linguístico e de
memória, ajuda para memória foram adicionadas, além de que um pedido de justi-
ficativa foi acrescentado após o final da pergunta de crença falsa de segunda ordem
de modo que fosse possível analisar o raciocínio utilizado pela criança que conduziu
à resposta dada.
A tabela 1 sistematiza todas as tarefas com as quais trabalhamos e as suas res-
pectivas características. Portanto, todas as histórias se baseiam no modelo alterado de
tarefa de segunda ordem proposto em Sullivan, Zaitchik e Tager-Flusberg (1994), sendo
que cada tipo descrito acima testa um aspecto diferente: a tarefa 1 consiste no modelo
padrão de história da nossa pesquisa, contendo já todas as alterações citadas anterior-
mente, contendo duas versões e dois vídeos para cada uma delas; a tarefa 2 compreende
modelos de histórias reduzidas, chamada de tarefa modificada, com menos demandas
em termos de personagens, cenários e duração, além de apresentar as perguntas-teste
de modo mais direto do que a tarefa padrão, para que possamos analisar o impacto
desses fatores de composição do desenho experimental no desempenho dos participan-
tes, contendo quatro versões e quatro vídeos para cada uma delas1; por fim, a tarefa 3
pretende testar se a presença de estímulo linguístico na narração das histórias interfere
no raciocínio para atribuição de estados mentais de segunda ordem, além de oferecer
a possibilidade de seleção de imagens como mecanismo de resposta, contendo duas
versões e dois vídeos para cada uma delas.
1 As versões 3 e 4 da tarefa 2 reproduzem exatamente as mesmas histórias das versões 1 e 2, porém, visam testar o
aspecto da compreensão conceitual e, por isso, apenas se diferem porque não apresentam a pergunta de ignorância
antes da pergunta de crença falsa.
Dados do PB sobre teoria da mente de segunda ordem e aquisição de linguagem 73
Nome da
Tipo de tarefa Número Versão Duração Composição
história
A história de 4 personagens
Padrão 1 1 João e Maria 5 minutos 4 cenários
(sorvete) 4 episódios
4 personagens
Vamos jogar
Padrão 1 2 5 minutos 4 cenários
futebol?
4 episódios
O aniversário 3 personagens
de Pedro 3 minutos e
Modificada 2 1 1 cenário
(cachorrinho 40 segundos
de aniversário) 4 episódios
Comer 3 personagens
4 minutos e
Modificada 2 2 chocolate é 1 cenário
5 segundos
muito bom 4 episódios
O aniversário 3 personagens
Modificada –
de Pedro 3 minutos e
sem pergunta de 2 3 1 cenário
(cachorrinho 20 segundos
ignorância 3 episódios
de aniversário)
Modificada – Comer 3 personagens
3 minutos e
sem pergunta de 2 4 chocolate é 1 cenário
49 segundos
ignorância muito bom 3 episódios
Narração
sem estímulo 4 personagens
Onde está o 4 minutos e
linguístico + 3 1 3 cenários
gato verde? 52 segundos
seleção de 4 episódios
imagem
Narração
sem estímulo A fuga do 4 personagens
linguístico + 3 2 passarinho 5 minutos 3 cenários
seleção de azul 4 episódios
imagem
74 Anais do XIII SevFale
METODOLOGIA
PARTICIPANTES
Para o grupo controle, recrutamos 20 adultos que tiveram o PB como língua ma-
terna. O recrutamento de indivíduos foi feito independentemente de origem dialetal.
Como fator sociolinguístico, todos os indivíduos tinham acima de 18 anos e possuíam
ensino médio completo, ensino superior completo ou em formação2. Para o grupo expe-
rimental, tivemos o número total de 55 crianças contabilizadas, em processo de aquisi-
ção do PB. Esses sujeitos foram agrupados em subgrupos de acordo com as respectivas
faixas etárias: A) 4 anos; B) 5 anos; C) 6 anos; D) 7 anos. As crianças foram recrutadas
em quatro escolas de ensino básico, da rede pública e da rede privada, das cidades de
Campinas e Jundiaí, do Estado de São Paulo.
MATERIAIS
As atividades foram realizadas através da apresentação dos oito vídeos que foram
elaborados para cada história. Os vídeos foram apresentados para os sujeitos através de
um tablet Samsung de 10.1 polegadas ou em um notebook Samsung de 16 polegadas
com o auxílio de uma caixa de som. Além disto, os personagens das histórias foram im-
pressos em papel e colados em palitos de sorvete, para que os participantes pudessem
também manipular e brincar com esse material durante a atividade.
DESIGN E PROCEDIMENTO
2 Todas as atividades foram realizadas com a devida autorização do Comitê de Ética em Pesquisa da Unicamp. O
número do CAAE: 66633117.6.0000.5404.
Dados do PB sobre teoria da mente de segunda ordem e aquisição de linguagem 75
RESULTADOS E DISCUSSÃO
3 Tarefa ou tipo de tarefa não foi incluída como uma variável independente na análise aqui realizada. Esclarecemos
que não consideramos tarefa como uma variável devido ao desenho do experimento e às demandas da análise
estatística que foi realizada para esta pesquisa.
76 Anais do XIII SevFale
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
Resumo: Trata-se de delinear alguns traços característicos da escrita de Clarice Lispector classifi-
cada como infanto-juvenil. O trabalho concentra-se sobre o livro O Mistério do Coelho Pensante,
primeira obra para crianças publicada por Clarice, em 1967. A singularidade da escrita de Clarice
Lispector mostrou-se presente também na estreia junto às crianças. Além de não se oferecer
uma moral da história, o fim não traz uma solução para o mistério. Procura-se examinar alguns
pontos que sustentam essa singularidade, desde a origem espontânea da construção textual,
relacionada ao contexto da maternidade, até a marca da autora que se derrama por toda sua es-
crita, indiferente a eventuais classificações de gêneros literários. Ao longo da história, a criança é
convidada a pensar, a formular perguntas e a se exercitar na invenção de respostas. Para tanto, o
texto não recorre à onisciência, frequente em histórias infantis, apostando na fragmentação da
narrativa e no tom próximo à oralidade. Pouco a pouco, evidencia-se a importância da sustenta-
ção da pergunta e do não saber como motor da fabulação e da vida. O livro acaba, mas o mistério
permanece. O que se procura transmitir ali não é bem um enredo, mas sim uma experiência.
A relação de Clarice Lispector com a infância pode ser abordada a partir de pers-
pectivas diversas. Pode-se partir da infância da própria escritora em Recife, passar pela
infância de seus filhos, pela presença da infância em sua obra destinada ao público adulto,
até chegar a sua contribuição no campo da literatura infantil. De certo modo, todas essas
perspectivas se comunicam e revelam algo do laço entre Clarice escritora e Clarice criança.
Apesar de recusar a divisão da literatura em gêneros, Clarice Lispector fazia uma
clara distinção entre sua escrita destinada ao público adulto e aquela destinada ao pú-
blico infantil. Em entrevista concedida ao programa Panorama da TV Cultura, de 1º de
fevereiro de 1977, Júlio Lerner pergunta: «É mais difícil você se comunicar com o adulto
ou com a criança?». Ao que a escritora responde: «Quando eu me comunico com criança
é fácil porque eu sou muito maternal. Quando eu me comunico com adulto, na verdade,
estou me comunicando com o mais secreto de mim mesma, aí é difícil1”. O contraste en-
tre sua produção para adultos e aquela para crianças também aparece em uma crônica
publicada no Jornal do Brasil, onde lemos:
Ganhei o troféu da criança-1967, com meu livro infantil O Mistério do Co-
elho Pensante. Fiquei contente, é claro. Mas muito mais contente ainda ao
me ocorrer que me chamam de escritora hermética. Como é? Quando es-
crevo para crianças, sou compreendida, mas quando escrevo para adultos
fico difícil? Deveria eu escrever para os adultos com as palavras e os sen-
timentos adequados a uma criança? Não posso falar de igual para igual?
Mas, oh, meu Deus, como tudo isso tem pouca importância2.
de 1974. Após sua morte, foram publicados: Quase de verdade, em 1978; e Como nasce-
ram as estrelas, em 1987. Ao todo, são cinco livros. Em todos eles, os bichos não apenas
se fazem presentes, como são os protagonistas da história. A presença singular dos ani-
mais nos textos de Clarice foi destacada por sua fortuna crítica, constituindo, também,
tema de trabalhos acadêmicos. Eis um ponto em que a literatura infantil da escritora se
aproxima de sua produção para adultos. Há, entretanto, uma nuance a ser registrada: nos
livros infantis a tematização do animal é intensificada, de modo que ele deixa de ser mero
figurante e passa a ser o eixo que sustenta a construção do enredo. Essa intensificação
não é gratuita, se pensarmos que o texto clariceano parece fazer ressoar o chamado que
vem desde os confins do humano, lá onde a criança e o animal brincam e nos convidam a
um devir-outro. Como nota Nilson Fernandes Dinis: “Se ‘tornar-se criança’ é a forma que
permite ao narrador clariceano afastar-se da hegemonia do olhar adulto, ‘tornar-se bicho’
é também um dispositivo que permite afastar-se da hegemonia do mundo racional do
humano, é tentar aproximar-se da vida de uma forma mais direta e instintiva4”.
Neste trabalho, iremos nos deter no primeiro livro infantil publicado por Clarice:
O mistério do coelho pensante. O texto se inicia com uma nota introdutória em que a
escritora se aproxima do leitor para esclarecer o contexto de nascimento do livro e para
sugerir o modo de leitura. Ficamos sabendo ali que a história foi criada para atender ao
“pedido/ordem” do filho Paulo e, também, para homenagear dois coelhos que perten-
ceram aos filhos de Clarice. Tratando-se de livro infantil, sua história deve ser não so-
mente lida, mas, sobretudo, contada por um adulto a uma criança. Travestido de pedido
de desculpas, a escritora passa ao adulto leitor o encargo de dar vida ao livro, de trans-
formar a história em conversa. Ela observa: “Como a história foi escrita para exclusivo
uso doméstico, deixei todas as entrelinhas para as explicações orais. Peço desculpas a
pais e mães, tios e tias, e avós, pela contribuição forçada que serão obrigados a dar5”.
A oralidade que se pede ao contador da história já se faz presente no próprio
texto, construído como um relato de Clarice a seu filho Paulo. O nome de Paulo aparece,
inclusive, com certa frequência ao longo do texto ocupando a função de vocativo. Ao
contador com um mínimo de habilidade cabe fazer a adaptação e substituir o nome im-
presso pelo nome de seu ouvinte efetivo. Ainda na nota introdutória, a escritora destaca
a parte oral da história como sendo o melhor dela e acrescenta: “Conversar sobre coelho
é muito bom. Aliás, esse ‘mistério’ é mais uma conversa íntima do que uma história. Daí
ser muito mais extensa que o seu aparente número de páginas. Na verdade só acaba
quando a criança descobre outros mistérios6”.
4 DINIS. Perto do coração criança: uma leitura da infância nos textos de Clarice Lispector, p.105.
5 LISPECTOR. O mistério do coelho pensante, n.p.
6 LISPECTOR. O mistério do coelho pensante, n.p.
84 Anais do XIII SevFale
da pela materialidade do movimento do nariz que lhe serve de motor, bem como pela
associação ao sentido olfativo. Uma ideia não é somente pensada, mas também cheira-
da e quando boa, pode evocar uma cenoura fresca.
A boa ideia de Joãozinho era fugir da gaiola sempre que lhe faltasse comida. Mas
o problema estava em como colocar isso em prática, visto que ele não conseguia pas-
sar pelos vãos da grade nem levantar o tampo. “Durante dois dias Joãozinho franziu e
desfranziu o nariz milhares de vezes para ver se cheirava a solução. E a ideia finalmente
veio. / Dessa vez, Paulo, foi uma ideia tão boa que nem mesmo criança, que tem ótimas
ideias, pode adivinhar11”. Além de ter tido outra boa ideia, que consistia no modo de sair
da gaiola, o coelho passou à atividade e saiu pela calçada afora. Seus donos o persegui-
ram e o prenderam novamente.
Qual terá sido a solução encontrada por Joãozinho para conseguir fugir? A afir-
mação de que nem mesmo criança pode adivinhar é uma primeira provocação, uma isca
oferecida à curiosidade do pequeno ouvinte da história. A narradora dá seguimento a
essa estratégia ao observar: “Você na certa está esperando que eu agora diga qual foi o
jeito que ele arranjou para sair de lá. / Mas aí é que está o mistério: não sei!12”. Em um
mesmo movimento, a criança é desafiada a resolver o enigma trazido pela história, en-
quanto o adulto narrador ou leitor se oferece para sustentar uma posição de não saber.
Abre-se a possibilidade de uma outra relação entre a criança e o adulto, diversa da rela-
ção usual em que o adulto detém o saber que falta à criança.
“Que é que você acha que Joãozinho fazia quando fugia?13”, pergunta-nos a nar-
radora, oferecendo a seguir algumas hipóteses que funcionam como um convite ao ou-
vinte a também formular as suas próprias. Após a escolha de uma resposta, pode-se dar
seguimento a ela como um caminho que passa a ser trilhado pela imaginação. É o que
acontece no seguinte trecho:
Às vezes penso que fugia para ver a namorada dele. A namorada era uma coe-
lha muito da enjoada e muito da caprichosa, que vivia dizendo para Joãozinho:
- Se você não vier me ver, eu te esqueço.
Era mentira, porque ela adorava o coelho dela, mas com esse truque a coelha
ia arrumando a vida dela. Não era por maldade que ela dizia isso para Joãozi-
nho, mas natureza de coelha é assim. E o modo de coelha gostar é um modo
sabido. Aliás quase toda natureza de namorada se parece um pouco14.
Ao confessar seu não saber, a narradora invoca ainda uma verdade, em seu senti-
do comum, a verdade de ignorar. Ao garantir a veracidade da história – “Joãozinho fugia
mesmo” -, a narradora aponta para uma verdade outra, que já não se opõe à mentira,
nem se deixa delimitar por ela. A história construída pela imaginação não é real, mas
nem tampouco, constitui uma mentira. O registro literário apresenta como um de seus
traços singulares, justamente, escapar ao domínio binário de verdade-mentira.
REFERÊNCIAS
DINIS, Nilson Fernandes. Perto do coração criança: uma leitura da infância nos textos de
Clarice Lispector. Tese (doutorado). Faculdade de Educação, UNICAMP. Campinas, 2001.
LAJOLO, Marisa et ZILBERMAN, Regina. Literatura infantil brasileira: história & histórias.
São Paulo: Ed. Ática, 1985.
LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
LISPECTOR, Clarice. Entrevista a Júlio Lerner no programa Panorama da TV Cultura, edição
de 1º/02/1977. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=ohHP1l2EVnU>.
Acesso em 24 de maio de 2018.
LISPECTOR, Clarice. O mistério do coelho pensante. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
O Mistério das Letras Pensantes: Clarice Lispector para Crianças 89
1. INTRODUÇÃO
2. PESQUISA
1 A edição da obra usada na escrita desse artigo é da editora Penguin e a obra está em seu idioma original (inglês).
Portanto, todas as citações da obra são traduções livres do autor e a paginação pode não ser a mesma da edição
brasileira.
2 Uma vez em uma terra prometida: um romance (tradução livre).
Extremamente Alto e Incrivelmente Perto: o Trauma na Perspectiva Infantil no Romance de Jonathan Safran Foer 93
3. METODOLOGIA
4. DISCUSSÃO
Neste artigo, comentarei sobre três aspectos da minha discussão sobre obra de
Foer que julgo serem os principais na minha análise de como Oskar lida com a morte de
seu pai e os efeitos que tal experiência traumática tem na vida de uma criança de apenas
9 anos.
Para ajudar a entender melhor como Oskar lida com a morte de seu pai, é necessá-
rio também citar o aspecto psicológico de sua reação aos eventos de 11 de setembro. Atra-
vés de um viés mais médico, Alisic e outros citam em seu artigo a definição da Associação
Americana de Psiquiatria3 de Transtorno de Estresse Pós-traumático (TSPT) como sendo
caracterizada por sentimentos opressivos de reexperienciar os eventos traumá-
ticos (por exemplo: pesadelos e pensamentos intrusivos), por evitar estímulos e
entorpecimento emocional (por exemplo: evitar os lugares relativos ao evento
e se sentir isolado dos outros), e por sintomas de hiperestimulação (por exem-
plo: dificuldades em se concentrar e hipervigilância) (ALISIC, 2011, p.737)
Esse conceito é de extrema importância, uma vez que ele lida com um espectro
de possíveis representações de sinais de TSPT, o que eu acredito são extensamente pre-
sentes na vida do Oskar. Alisic e outros vão além e defendem que as crianças respondem
diferentemente de adultos ao mesmo evento traumático, o que nos ajuda a entender
melhor a incapacidade do Oskar de entender como a sua mãe, de certa forma, aparenta
estar tão sensata em relação à morte de seu marido e simplesmente desenvolve uma
amizade com o Ron, um homem cuja esposa também faleceu nos ataques. Os autores
também mencionam que as crianças “dependem profundamente de como os seus pais
lidam com estresse” e que como elas ajustam aos seus traumas em relação aos seus
ambientes está diferentemente relacionado com como os seus pais lidam com a mes-
ma situação (ALISIC, 2011, p.737). Essa dissonância no luto cria uma grande tensão na
relação filho-mãe entre Oskar e sua mãe, o que o leva a crer que ela não sente falta de
seu marido, assim como ela não chora por sua morte, o que faz com que Oskar deseje
que a sua mãe estivesse nas Torres Gêmeas e não o seu pai, resultando em um extremo
distanciamento entre eles.
O professor Bessel van der Kolk complementa o conceito de TSPT citado acima
ao dizer que TSPT é “uma enfermidade na qual a memória do evento traumático chega
a dominar a consciência das vítimas, exaurindo suas vidas de significado e prazer” (VAN
DER KOLK, 2000, p. 7). Ele compartilha das ideias descrita por Alisic e outros quando
eles dizem que o TSPT possui um elemento recorrente, no entanto, ele vai além e suge-
re que “ao contrário do real trauma, que teve um começo, meio e fim, os sintomas do
TSPT possui uma característica atemporal”. Ademais ele afirma que essas repetições e
características atemporais são aterrorizantes e previnem um indivíduo de lidar com o
presente (VAN DER KOLK, 2000, p. 9).
No dia que o Oskar chama de “o pior dia”, assim que ele chegou em casa da
escola, ele escutou a primeira de uma série de mensagens que o seu pai deixaria na se-
cretária eletrônica. As outras próximas quatro mensagens seriam deixadas no espaço de
duas horas, até exatamente às 10:22:27, quando Thomas, o pai de Oskar, deixaria a sua
última mensagem. Apesar de estar em casa, ele não teve coragem de atender a última
ligação de seu pai, na qual ele repetia a pergunta “você está aí?” A mensagem seria in-
terrompida no mesmo momento em que a Torre Norte do World Trade Center caia. Foi
precisamente nesse momento que a vida de Oskar mudou completamente.
No início da obra, Oskar é descrito como uma criança extremamente inteligente
e com interesses muito mais variados e complexos do que de uma criança de nove anos.
Extremamente Alto e Incrivelmente Perto: o Trauma na Perspectiva Infantil no Romance de Jonathan Safran Foer 95
Ele se descreve como pacifista, inventor, designer de joias, ourives, entomologista ama-
dor, francófilo, vegano, astrônomo amador, entre outras “profissões” (FOER, 2006, p.99).
Porém, após a perda de seu pai, Oskar começa a perder alguns de seus interesses, muito
devido à incessante busca pelo significado da chave encontrada no armário de seu pai.
Como uma forma de “silenciar” a sua mente que insiste em relembrar os ataques
e o força a escutar as mensagens deixadas por seu pai e a se machucar, Oskar entra em
ciclos nos quais a sua mente inventa incessantemente. Ele, por exemplo, inventa um
terno revestido com sementes para pássaros, dessa forma, caso tivéssemos um acidente
(como os ataques), nós simplesmente vestiríamos os nossos ternos e vários pássaros
viriam e estaríamos salvos, uma vez que as aves, ao se envolverem nos ternos, levar-nos-
-iam a um lugar seguro. Ele também inventa uma chaleira que cantaria músicas, como a
dos Beatles (algo que seu pai adorava fazer), ou que você poderia configurar para que ela
falasse na voz de uma pessoa amada. Uma outra invenção seria um prédio cujo elevador
não te levaria para cima ou para baixo do prédio; ao invés, ele elevaria ou desceria o pré-
dio como um todo. Dessa forma, em caso de incêndio, o prédio iria descer ou subir andar
por andar até o nível da rua e todos poderiam sair facilmente do edifício em segurança.
Em sua grande maioria, Oskar inventa objetos que poderiam ser usados para garantir a
segurança das pessoas em casos de emergência ou que pudessem fazê-lo se sentir mais
próximo de seu pai. Dessa forma, ele tentar inventar formas para que o seu pai também
pudesse estar seguro.
Um ano após os atentados, Oskar ainda tem dificuldades de fazer várias ativida-
des corriqueiras e do dia a dia (algumas por razões mais óbvias do que as outras), como
andar de elevador, utilizar o transporte público, tomar banho, germes, aviões, fogos de
artifício, sapatos, pessoas com bigode, árabes (apesar dele afirmar que ele não é racista),
prédios altos, entre outros (FOER, 2006, p.36). Ademais, como uma forma de lidar e con-
trolar as suas dificuldades e estresse, Oskar toca o seu tamborim. Ao fazê-lo, o ritmo do
instrumento o acalma, o que Sacha Scheuren (2010) descreve como a forma que Oskar
tem de criar o “ritmo que ele perdeu após a morte de seu pai” (SCHEUREN, 2010, p.6).
A perda da sua maior referência na vida, faz com que Oskar não consiga compre-
ender o mundo ao seu redor e a única forma que ele acha para tentar entender o sen-
tindo de tudo é inventando incessantemente (pois aí sua mente não precisa pensar no
“pior dia”), machucar-se, isolando-se de sua família e buscar o significado de uma chave
que ele achou em um vaso misterioso no armário do seu pai. Ele tenta se comunicar com
a sua avó e sua mãe, porém, o pequeno Oskar não consegue criar mecanismos, muito
menos encontrar as palavras, para tal conversa. Outrossim, ao discutir a reação do Oskar
em relação ao luto, Aaron DeRosa (2011) discorda com Versluys quando este defende
que o Oskar é “emocionalmente dormente ao ponto do autismo”, ao passo que DeRosa
96 Anais do XIII SevFale
acredita que isso é uma extrema simplificação dos complexos sentimentos vividos pelo
personagem (DeROSA, 2011, p.609).
Ao longo da narrativa, pode-se perceber o trauma vivido por Oskar, e a forma
que ele lida com isso, através de uma rotina de automutilação e preservação. Por um
lado, ele se obriga a escutar repetidas vezes as últimas mensagens deixadas por seu pai;
ele se machuca; ele busca incessantemente o significado da chave e ele abandona suas
atividades pessoais, como suas aulas de francês. Por outro lado, ele quer se aproximar
de sua mãe e avó; ele quer dividir o seu fardo e suas “botas pesadas”4. Porém, ele não
sabe como comunicar essa tristeza com elas, muito menos como começar essa conver-
sa. Ademais, como Kristiaan Versluys (2009) descreve, para que possamos lidar com o
trauma, nós não temos outra escolha além de explorar os símbolos que a nossa cultura
possui. Ele também afirma que o “trauma nos leva à dormência, flahsbacks ou pesade-
los” (VERSLUYS, 2009, p.3). Oskar certamente demonstra dormência emocional ao longo
da narrativa e ao tocar repetitivamente as mensagens de seu pai, Oskar se prende num
ciclo de flashbacks, que eu diria que seriam também os seus pesadelos.
Sien Uytterschout e Kristiaan Versluys (2008) discutem a ideia que um “evento
traumático é geralmente tão violento e disruptivo (...) que ele não consegue se encai-
xar dentro das referências existentes”. Eles também discutem que devido à natureza
do evento traumático, os sobreviventes não conseguem compreender completamente
o que aconteceu, e portanto, “através do trabalho paradoxal de dissociação” eles não
conseguem processar por completo o evento em suas memórias e eles também não
conseguem removê-lo de suas memórias. Eles também mencionam o fato que a partir
de 1980, dissociação foi oficialmente reconhecida como um sintoma de TSPT (trans-
torno de estresse pós-traumático) (UYTTERSCHOUT; VERSLUYS, 2008, p.217). Oskar, ao
lutar para compreender a sua perda, demonstra claros sinais de dissociação, uma vez
que ele não compreende inteiramente o que aconteceu com ele e ao mesmo tempo, ele
não consegue esquecer.
Em sua interna busca pelo significado da morte de seu pai, Oskar não consegue
lidar com todos os seus sentimentos. Como Uytterschout e Versluys (2008) discutem, “a
inabilidade seletiva de Oskar de testemunhar as suas experiências (traumáticas) está di-
retamente ligada com os seus surtos de raiva” (UYTTERSCHOUT; VERSLUYS, 2008, p.231).
4 Metáfora que Oskar usa para descrever o seu luto e profunda tristeza.
Extremamente Alto e Incrivelmente Perto: o Trauma na Perspectiva Infantil no Romance de Jonathan Safran Foer 97
Tais surtos não são direcionados a ninguém em especial, mais sim a todo mundo. Oskar
tem raiva do mundo por permitir que uma tragédia como a de 11 de setembro tenha
acontecido e, como resultado, por permitir que o seu pai tenha falecido, e ao mesmo
tempo, Oskar está fulo com o mundo por não compartilhar do seu luto.
Por sua vez, como anteriormente mencionado, Oskar não consegue comunicar
nem expressar o seu trauma e sentimentos e por isso, ela não compreende como a sua
mãe e a sua avó aparentam estar superando a perda de seu marido e filho, respectiva-
mente, de forma tão tranquila. Oskar acredita que é esperado que ele se sinta mal e cal-
ce “botas pesadas” pelo resto da sua vida. Ele não compreende que é normal e aceitável
passar por um processo de luto e continuar com as nossas vidas. Para ele, ao fazermos
isso, não estamos honrando a memória da pessoa amada que se foi, assim como, ao
seguirmos com nossas vidas, estaríamos demonstramos que não amamos mais aquele
ente querido.
Como ele não consegue se expressar, há momentos na narrativa na qual ele sim-
plesmente não aguenta mais segurar os seus sentimentos dentro dele e ele se torna
extremamente agressivo e ofensivo. Em outros momentos, ao invés dele simplesmente
dizer o que ele pensa, ele imagina respostas totalmente agressivas em sua cabeça e se
contenta com esse momento particular, como durante a peça da sua escola, na qual ele
era Yorick, o famoso crânio que Hamlet segura, quando ele se imagina retirando a sua
máscara/crânio de papel machê no meio da cena e a usando para bater no Jimmy Sny-
der, o bully da sua turma. Após esse surto imaginário de raiva, Oskar reflete no quanto
seria lega se ele tivesse de feito o que ele imaginara. Um outro momento no qual Oskar
imagina um surto de raiva é quando o seu terapeuta, Dr. Fein, o pergunta se haveria algo
de bom na morte de seu pai. Oskar se imagina quebrando a sala dele, xingando Dr. Fein,
mas ao invés disso tudo, ele simplesmente dar de ombros.
Porém, há uma cena na qual temos o auge dos surtos de raiva do pequeno Oskar.
Em uma determinada noite, Oskar comenta com a sua mãe que quando ele for enter-
rado ele não conseguiria morar debaixo da terra, então ele a faz prometer que ele seria
enterrado em um mausoléu. Oskar acredita que essa promessa seria a forma que sua
mãe teria de comprovar que ela o amava. Sua mãe, relutante, gostaria de encerrar esse
assunto, uma vez que ela acredita que Oskar não morrerá antes dela. Oskar responde
que o pai dele também não esperava morrer e a questiona sobre o caixão vazio que eles
enterraram. Ela diz que ela decidiu enterrar o caixão vazio pensando neles, para que eles
pudessem ter um lugar onde a memória e o espírito de seu marido viveria para sempre,
ao qual Oskar responde que a memória dele está viva em sua mente e que o seu pai não
tinha um espírito e sim células “que agora estão nos telhados e no rio e no pulmão de
milhões de pessoas ao redor de Nova Iorque, que o respiram toda vez que eles falam”
98 Anais do XIII SevFale
(FOER, 2006, p.169). No auge da discussão, Oskar perde o controle de suas emoções e
acaba dizendo que se ele pudesse escolher quem estava na Torra naquele dia, ele teria
escolhido ela.
Durante toda a cena, Oskar nos leva ao seu “livro de sentimentos”5 e ele muda o
que ele está sentindo de “DESESPERADO6” para “MEDÍOCRE” e depois para “OTIMÍSTA,
MAS REALISTA”, que vira “EXTREMAMENTE DEPRIMIDO”, o que se desenvolve para “IN-
CRIVELMENTE SOZINHO” terminando, após o auge de seu surto, em:
eu acho que acabei dormindo no chão. Quando eu acordei, minha mãe esta-
va tirando a minha blusa e colocando o meu pijama, o que quer dizer que ela
deve ter visto os meus machucados. Eu os contei ontem a noite no espelho
e eram 41. Alguns deles aumentaram, mas a maioria é pequena. Eu não os
coloco lá para ela, mesmo assim eu quero que lea me pergunte como eu os
consegui (apesar dela provalmente saber) e que ela sinta pena de mim (por-
que ela perceberia o quanto as coisas são difícies para mim) e ela se sentiria
péssima (porque parte é culpa dela) e ela me prometeria que ela não morre-
ria e me deixaria sozinho. Mas ela não disse nada. Eu nem consegui ver o seu
olhar quando ela viu os mahucados, porque a minha blusa estava cobrindo a
minha cabeça, cobrindo o meu rosto como um bolso, ou uma caviera. (FOER,
2006, p. 172-73).
Esse surto verbal e de raiva direcionado a sua mãe é em sua grande maioria, na
minha opinião, um resultado de sua inabilidade de expressar os seus sentimentos e os
comunicar com a sua mãe. Ao tentar processor o seu luto e trauma, Oskar se machuca
41 vezes, o que de acordo com Uytterschout e Versluys (2008), é a forma que o Oskar
tem de transformar “sua violência e agressão voltados a si” toda vez que ele calça botas
extremamente pesadas ou se sente bastante desapontado (UYTTERSCHOUT; VERSLUYS,
2008, p.231). Ademais, durante as suas sessões com o Dr. Fein, como mencionado aci-
ma, Oskar diz que expressar os seus sentimentos não ajudariam a ninguém, pelo contrá-
rio, fazê-lo traria ainda mais dificuldades. Portanto, ao se machucar, ele encontra uma
saída temporária para a sua raiva, dor, desapontamentos e luto sem ter que expressar
verbalmente os seus sentimentos. Outrossim, Victor Jeleniewski Seidler (2013) afirma
que Oskar é “atormentado pela culpa do sobrevivente7 (SEIDLER, 2010, p.100), o que
eu julgo ser a sua maior fonte de raiva. Oskar sente tanta raiva pela repentina morte de
seu pai que ele não consegue entender o por quê dele estar vivo, o por quê estar vivo
pode ser algo “justo” ou até mesmo, o por quê é considerado saudável processar o luto
e tentar ser feliz novamente sem se sentir culpado sem significar que ele não ama mais
o seu pai (ou o suficiente), ou até mesmo que ele o ame menos.
estava, assim como a incessante busca pelo significado da chave (o que ele acredita ser a
forma que ele tem para se aproximar de seu pai e amá-lo), assim como a sua certeza que
ele tem que calçar “botas pesadas” pelo resto da sua vida. Ao se forçar nesse ciclo, ele
acaba não conseguindo de comunicar e portanto, não consegue processar as suas emo-
ções e sentimentos, o que o ajudaria no processo de luto, na superação do seu trauma,
resultando em “botas mais leves”.
5. CONCLUSÃO
A complexidade da forma que Oskar lida com o seu trauma é totalmente diferen-
te da forma que os seus avós paternos lidam com o luto pela morte de seu filho, como
podemos ver através de suas narrativas, assim como a sua mãe lida com a perda de seu
marido (apesar do leitor não ter acesso à narrativa da mãe do personagem). De acordo
com Saal (2011), ao longo da narrativa, pouco a pouco Oskar é capaz trabalhar e lidar
melhor com o seu trauma e consegue, mais ao final do livro, reconquistar um sentindo
maior de autoconfiança, ao contrário de seus avós, cujas vozes estão presas em uma
melancolia perpétua (SAAL, 2011, p.457). Apesar dos sofrimentos que afligem o jovem
personagem, no final da narrativa, ao descobrir o que a chave significava, por mais frus-
trante que tal descoberta fosse, Oskar consegue um certo desfecho e percebe que ele
tentou e fez o máximo que ele pode, assim como ele promete a si mesmo e à sua mãe
que ele tentará melhorar, ou seja, que ele tentará ser feliz novamente e trabalhar melhor
o seu trauma.
REFERÊNCIAS
ALISIC, Eva, et al. Building child trauma theory from longitudinal studies: a meta-analysis.
Clinical Psychology Review, v. 31, p. 738-47, 2011.
DEROSA, Aaron. Analyzing literature after 9/11. Modern Fiction Studies, v.57, n. 3, p.
607-618, 2011.
FOER, Jonathan Safran. Extremely loud and incredibly close. London: Penguin, 2006.
HALABY, Laila. Once in a promised land: a novel. Boston: Beacon, 2007.
Extremamente Alto e Incrivelmente Perto: o Trauma na Perspectiva Infantil no Romance de Jonathan Safran Foer 101
SAAL, Ilka. Regarding the pain of self and other: trauma transfer and narrative framing
in Jonathan Safran Foer’s extremely loud and incredibly close. Modern Fiction Studies,
v.57, n. 3, p. 451-476 2011.
SCHEUREN, Sascha. Trauma in Jonathan Safran Foer’s extremely loud and incredibly
close. 2010. 48f. Monografia (Bacharelado) - Friedrich-Wilhelms-Universität Bonn, 2010.
SEIDLER, Victor Jeleniewski. Remembering 9/11: terror, trauma and social theory. New
York: Palgrave Macmillan, 2013.
UYTTERSCHOUT, Sien; VERSLUYS, Kristiaan. Melancholy and mourning in Jonathan
Safran Foer’s extremely loud and incredibly close. Orbis Litterarum, v. 63, n. 3, p. 216-
236, 2008.
VAN DER KOLK, Bessel. Posttraumatic stress disorder and the nature of trauma. Dialogues
in Clinical Neuroscience, v. 2, n.1, p.7-22, 2000.
VERSLUYS, Kristiaan. Out of the blue: september 11 and the novel. New York: Columbia
University Press, 2009.
Literatura, Violência e Trauma:
Abuso Sexual Infantil no Conto Ana Rosa
Resumo: Este trabalho se propôs a analisar as marcas de violência e memória traumática pre-
sentes no conto Ana Rosa, do livro Diez Mujeres, escrito por Marcela Serrano. Entendemos que
o abuso sexual infantil não é suficientemente abordado na literatura e, consequentemente, nos
estudos literários. No entanto, consideramos que esta temática é de extrema relevância, visto
que o abuso sexual infantil incestuoso representa um imenso tabu nas sociedades, sendo cons-
tantemente silenciado. Além disso, o número de abusos sexuais praticados contra crianças, só
no Brasil, de acordo com dados do Ipea, representa cerca de 70% dos abusos registrados anual-
mente e, destes, em cerca de 56% dos casos esta violência é praticada por familiares ou amigos
da família da vítima. Logo, compreendendo a literatura como um importante mecanismo de
assimilação do real, este trabalho objetiva contribuir com a ruptura do silêncio que existe em
torno do abuso sexual infantil e alargar os estudos sobre este tema tão complexo e urgente. Para
tanto, foi realizado um estudo do conto, analisando como se deu a violência sexual; se há um
predomínio do silêncio ou ocorre sua ruptura; bem como de que forma se evidenciam as marcas
do trauma.
Simpósio: Literatura.
Vivemos cercados por inúmeros tabus aos quais raramente se escapa. Tratam-se
de proibições, relativas ao ideal de comportamento social, mas também aos assuntos
nos quais estamos ou não autorizados a tocar. Temas como o abuso sexual infantil, assim
104 Anais do XIII SevFale
como o incesto, são exemplos de comportamentos reprováveis. O que não impede que
aconteçam – e muito. É aí que se inicia o maior problema: se o comportamento inade-
quado acontece, opta-se por não se falar sobre ele. Assim, muitas famílias têm empur-
rado para debaixo do tapete o sofrimento de suas crianças, supostamente em defesa da
moral e da manutenção da estrutura familiar.
Logo, como um tabu, o abuso sexual infantil incestuoso não é suficientemente
abordado, nem no meio social, nem na literatura. Porque choca. Porque constrange. E
porque são inúmeras as famílias a ostentar um belo retrato na parede em que sorrisos
forçados sufocam várias gerações de silêncio. Mas ainda que o assunto não configure
uma pauta de grande interesse de discussão para a maioria, as estatísticas provam que
este silêncio não significa que nossas crianças têm estado livres dessa forma de violên-
cia. Muito pelo contrário: só no Brasil, de acordo com dados do Ipea (2014), cerca de
70% dos abusos registrados anualmente são praticados contra crianças e, destes, em
56% dos casos esta violência parte de familiares ou amigos da família da vítima.
Assim, dado esse enorme silêncio em torno de um tema cada vez mais urgente,
como o é a violência sexual contra crianças, e compreendendo a literatura como um
importante mecanismo de assimilação do real, trabalhos como o que se propõe aqui
parecem-nos muito necessários. Pretendemos, a partir deste estudo, contribuir com os
demais trabalhos que também se propõe a, a partir da literatura, romper com este tabu,
alargando as discussões e galgando espaços para cada vez mais avanços sociais.
Para tanto, analisaremos o conto Ana Rosa, do livro Diez mujeres, de autoria da
escritora chilena Marcela Serrano. Trata-se de uma narrativa curta em que uma mulher
rememora o abuso sexual que sofreu durante a infância, praticado pelo avô. Em sua
descrição dificultosa, vem à tona o silêncio da mãe, a repetição da violência e as mar-
cas profundas que esse trauma vivido no passado cravou em seu presente. Ao estudar
o texto, nos propomos a analisar como se deu a violência sexual, verificar se o silêncio
predomina ou é rompido no decorrer da narrativa, bem como analisar de que forma se
estabelecem as marcas do trauma a partir do relato da vítima.
BURG, 2013, p. 23). Nesse sentido, segundo o autor, é compreensível que a reação gene-
ralizada de parte do público às imagens de violência que recebem através da mídia seja
uma certa apatia ou torpor. Essa reação se apresenta como uma proteção contra o risco
de colapso emocional, ainda que seja também uma clara desumanização. Trata-se de
uma situação socialmente problemática, já que a sociedade tem reagido cada vez com
menos sensibilidade diante de fatos violentos.
A literatura, defende Ginzburg, se apresenta como uma forma de romper com essa
apatia, “com percepções automatizadas da realidade” (GINZBURG, 2013, p. 24), já que
Textos literários podem motivar empatia por parte do leitor para situações
importantes em termos éticos. E isso ocorre fora do circuito neurótico do rit-
mo imediatista da indústria cultural. O estudo de Yudith Rosenbaum sobre a
violência em Clarice Lispector, por exemplo, mostra que diante de um texto da
autora, que traz o personagem Mineirinho, as relações entre política e crime,
entre linguagem e conhecimento, são postas em questão, o leitor é destituído
de segurança quanto a “limites claros entre o eu e o outro, o certo e o errado,
a verdade e a falsidade” (2010, p. 178). (GINZBURG, 2013, p. 24).
Para Ginzburg, ao lermos em algum livro cenas em que um ser humano agride ou-
tro e reagimos a elas com empatia, essa reação torna-se parte de nossa formação ética
e poderá ser útil quando estivermos diante de situações reais de violência em que tiver-
mos que tomar posição. Já nossa educação estética é parte decisiva dessa nossa forma-
ção ética. Isso porque nossa interpretação das imagens artísticas ajuda a definir critérios
a partir dos quais nos relacionamos com outras pessoas e tomamos nossas decisões.
O autor defende ainda que a literatura se apresenta como um importante mecanismo
através do qual é possível “dar voz aos silenciados da história, trazer o passado para o
presente por meio da linguagem”, o que “é em si uma mudança social.” (GINZBURG,
2013, p. 106).
Ainda segundo Ginzburg, a história de hegemonia política do patriarcado está as-
sociada ao mito do pai como âncora da estrutura social. Por isso as posições de poder na
sociedade são sempre destinadas a homens, brancos, heterossexuais, pertencentes a fa-
mílias consideradas dignas, de grupos religiosos dominantes, que defendem interesses de
seu próprio grupo social. Assim, todos os indivíduos que não se enquadram nessas carac-
terísticas têm sido historicamente subordinados ao grupo dominante, detentor do poder.
A figura paterna é colocada como “bases seguras para a proteção, para garantir a
ordem e constituir as referências para o entendimento da realidade” (GINZBURG, 2013,
p. 78), e seria, portanto, mais competente para governar tanto no campo público quanto
no privado. No entanto, o autor apresenta diferentes notícias que comprovam que nem
sempre os pais protegem os filhos, muito pelo contrário, também podem ser violentos e
106 Anais do XIII SevFale
inclusive matar. Do mesmo modo, sabemos, são muitos os casos de violência praticada
por homens contra mulheres. Logo, o mito cai por terra e torna-se evidente a farsa do
patriarcado: “a figura paterna não é a base segura de proteção que deveria ser.” (GINZ-
BURG, 2013, p. 81).
As considerações de Heleieth Saffioti (2015) sobre o patriarcado estabelecem um
importante diálogo com as reflexões de Ginzburg. Para a socióloga, o termo determina
as relações homem-mulher, figurando-se não com uma acepção de poder paterno do
direito patriarcal, mas como direito sexual. Assim, nessa estrutura, os homens teriam
direitos quase irrestritos sobre o corpo feminino. Desse modo, o conceito delineia uma
modalidade hierárquica de relação entre homens e mulheres que invade todos os espa-
ços da sociedade, oprimindo a mulher com base tanto na ideologia quanto na violência.
Para Saffioti, o papel das crianças na estrutura patriarcal é também de grande
vulnerabilidade. Sua inocência, assim como sua pouca força física, contribui para torná-
-las mais vulneráveis. Nesse sentido, a socióloga ressalta que o pai biológico tende a ser
o adulto do sexo masculino em quem as crianças mais confiam. Aproveitando-se dessa
confiança, nas camadas sociais mais altas, o abuso sexual infantil incestuoso ocorre a
partir da sedução:
maior atenção para aquela filha, mais presentes, mais passeios, mais viagens,
etc. As técnicas são bastante sofisticadas, avançando lentamente nas carícias,
que passam da ternura à lascívia. Muitas vezes e dependendo da idade da
criança, esta nem sabe discernir entre um e outro tipo de carícia, sendo inca-
paz de localizar o momento da mudança. (SAFFIOTI, 2015, p. 21).
Assim, devido à pouca idade, a criança pode ser incapaz de se dar conta da vio-
lência a que está sendo submetida, o que a impede de denunciar e a torna ainda mais
vulnerável. Também o fato de o adulto abusador ser alguém em quem a criança confia,
geralmente um familiar, dificulta a percepção por parte dela de que está vivenciando
uma situação de abuso. Além disso, nestes casos em que o abuso sexual se dá a partir da
sedução, sem o uso de violência física ou ameaças, é comum que a vítima não consiga
diferenciar a agressão de manifestações legítimas de afeto.
Já nas camadas social e economicamente desfavoráveis, segundo Saffioti, a violên-
cia física e psicológica é quase sempre o meio através do qual se dá o abuso sexual infantil:
O pai coloca um revólver, na mais fina das hipóteses, ou uma faca de cozinha
junto a cama ou sobre ela, joga a menina sobre o leito, rasga-lhe as roupas e
a estupra, ameaçando-a de morte, se gritar, ou ameaçando matar toda sua fa-
mília, se abrir a boca para contar o sucedido a alguém. (SAFFIOTI, 2015, p. 22).
Literatura, Violência e Trauma: Abuso Sexual Infantil no Conto Ana Rosa 107
RESULTADOS
O texto analisado nos traz o relato em primeira pessoa de Ana Rosa, protagonis-
ta que dá título ao conto. Nele ela vai se revelando, diante de outras pacientes de sua
psicanalista Natasha, como uma mulher triste e de baixa autoestima, profundamente
marcada pelas vivências traumáticas de sua infância que pouco-a-pouco descortina. Ali
um evento se destaca: os abusos sexuais que sofreu entre os oito e quinze anos de idade,
praticados pelo avô materno.
Considerando as formas em que comumente se dá o abuso sexual infantil discu-
tidas por Saffioti, identificamos que no caso de Ana Rosa ocorre por meio da sedução, o
que se evidencia no trecho a seguir:
él me ayudaba a hacer las tareas y después me sacaba a pasear y me compraba
helados y me presentaba a sus amigos del barrio, todos bien ociosos como él,
y rezaba conmigo todas las noches porque yo era su regalona y se miraba
en mí. Me enseñó a encumbrar volantines y a hacer barquitos de papel y a
pintar con pinceles cuando mis hermanos solo usaban lápices de colores y
sabía contar cuentos divertidos y largos y en las noches era él quien me hacía
dormir y no mi mami y yo lo prefería a él porque sus cuentos eran mejores y
tenía más paciencia. (SERRANO, 2011, p. 256).
Ana Rosa possuía uma irmã e um irmão mais novos. No entanto, o tratamento
que aparece no trecho acima era oferecido apenas a ela. A relação distante com os pais,
que trabalhavam muito e quase não podiam estar com os filhos, cria uma grande carên-
cia de afeto na menina, tornando-a mais vulnerável a sedução do avô. Sedução esta que
se intensifica até culminar com um presente ostensivo no aniversário de oito anos de
Ana Rosa – a casa da Barbie –, dia em que se iniciam os abusos.
Além da carência afetiva, também o excesso de religiosidade tornou Ana Rosa mais
vulnerável. Isto porque a protagonista indica que cresceu em uma família extremamente
religiosa e traz elementos importantes em indagações como esta: “me pregunto qué ha-
bría sido de mi si no hubiera nacido en el seno de la familia más religiosa de La Florida,
[…] donde se creía que rezando un rosario al día y respetando a los mayores se adquiriría
la salvación propia y la del mundo.” (SERRANO, 2011, p. 249). O trecho nos permite com-
preender que Ana Rosa acredita que a necessidade aprendida de sempre se respeitar os
Literatura, Violência e Trauma: Abuso Sexual Infantil no Conto Ana Rosa 109
mais velhos teria facilitado o abuso que sofreu. Afinal, a protagonista se questiona se isso
poderia não ter acontecido caso o respeito cego aos mais velhos não a houvesse impedido
de defender-se da possível violência que poderia partir deles – e partiu.
Além disso, Ana Rosa acreditava estar em débito com o avô em consequência de
toda a atenção e afeto que o homem a ofereceu, de modo que “mi deber principal era
hacer feliz al abuelo, yo le debía tanto a él que haría lo que me pidiera.” (SERRANO, 2011,
p. 262). Também o excesso de religiosidade a impulsiona a essa sensação de débito e
culpa, posto que a protagonista, ainda menina, se convenceu de que “eso es lo que Dios
pedía de mí.” (SERRANO, 2011, p. 262).
O livro Diez mujeres, em que o conto analisado se insere, está organizado de
modo que as narradoras, das quais os nomes dão título a cada conto, estariam reuni-
das compartilhando entre elas suas experiências traumáticas. Como fio condutor desses
relatos, está a presença silenciosa da psicanalista Natasha, dona da última história do
livro – descrita por sua assistente. O objetivo dessa reunião se pauta na certeza de Na-
tasha de que a ruptura com o silêncio auxilia no processo de elaboração do trauma. Esta
perspectiva é muito interessante quando a associamos às colocações de Seligmann-Sil-
va, para o qual o relato pode proporcionar certa identificação entre aquele que narra e
os que o escutam, estabelecendo-se como uma ponte capaz de resgatar o sobrevivente
da sensação que o domina de ter vivido algo singular. Se muitas delas, como no caso de
Ana Rosa, foram silenciadas e nunca encontraram alguém que as escutasse, ali podem
desfrutar dessa escuta e finalmente percebem-se no direito de exercer sua voz. Nesse
sentido, também o fato de que cada paciente de Natasha não apenas narra sua própria
história, mas também recebe as histórias das demais, é importante. Isto porque esses
relatos outros podem gerar identificação, uma vez que indicam que cada personagem,
de certo modo, compartilha das vivências uma da outra – o que pode facilitar a elabora-
ção e superação do trauma.
No entanto, percebe-se que relatar suas vivências traumáticas não é algo fácil para
Ana Rosa. Afinal, o trauma se apresenta, conforme indicam Gagneban e Assmann, como a
impossibilidade da elaboração simbólica, em especial através da narração. Assim, percebe-
mos que a personagem, quando se refere ao abuso sexual sofrido, não o faz explicitamen-
te, mas através de uma linguagem mais metafórica. Como no exemplo a seguir:
la Alicia y yo dormíamos cuando el abuelo llegó a la pieza y me despertó solo
a mí, venga la cumpleañera, me dijo y me sacó de la cama para que durmie-
ra con él, como lo hacíamos todos los días a la hora de la siesta, pero ahora
de noche. Quería seguir celebrándome. Era rosa y dura, la casa de la Barbie.
(SERRANO, 2011, p. 260).
110 Anais do XIII SevFale
acaba sendo ignorada por ela. A partir daí, Ana Rosa se vê silenciada, afinal, pensa: “para
qué pronunciar palabra, entonces. Sentí como si mi voz hubiese quedado olvidada en
algún hueco oscuro.” (SERRANO, 2011, p. 262). A mãe não insinua que Ana Rosa esteja
mentindo, apenas a ignora completamente, como se não se importasse. Quando o avô
está em seu leito de morte, já muitos anos depois do falecimento dos pais de Ana Rosa,
ela cria coragem e lhe pergunta porque sua mãe não a protegeu, o homem então lhe
responde: “Porque a ella le hice lo mismo.” (SERRANO, 2011, p. 268). Percebemos en-
tão a repetição do abuso. O homem violentou primeiro a filha, depois a neta. Portanto,
quando a mãe de Ana Rosa ignora a denúncia da filha, não está apenas sendo indife-
rente ou tentando preservar o nome da família, e sim revelando sua própria dificuldade
em lidar com um assunto que provavelmente lhe desperta imensa dor. Para Gagnebin,
existe um esquecimento natural, saudável, mas também algumas formas duvidosas de
esquecimento: “não saber, saber mas não querer saber, fazer de conta que não se sabe,
denegar, recalcar.” (GAGNEBIN, 2006, p. 101). Acreditamos que no caso da mãe de Ana
Rosa, o que a conduz a esse ímpeto de fingir não saber, ao invés de proteger a filha, é o
sofrimento indizível, a impossibilidade de lidar com seu próprio trauma.
Por outro lado, essa recusa da mãe de Ana Rosa a protege-la pode também carac-
terizar-se por um desejo de vingança, isto é, de reproduzir, ainda que de maneira indire-
ta, a violência que ela mesma sofreu. Isto porque, segundo Saffioti, “a vítima de abusos
físicos, psicológicos, morais e/ou sexuais é vista por cientistas como indivíduo com mais
probabilidades de maltratar, sodomizar outros, enfim, de reproduzir, contra outros, as
violências sofridas.” (Safiotti, ANO, p. 18). Essa hipótese se reforça quando consideramos
o comportamento de Ana Rosa em relação aos sobrinhos. A narradora afirma que “me
acometía una extraña y escondida tentación de tratarlos mal, de aprovecharme de su
inferioridad física y de mi autoridad sobre ellos y me gustaba su indefensión y me daban
ganas de vengarme.” (SERRANO, ANO, p. 269). Ou seja, a própria Ana Rosa apresenta o
desejo de reproduzir em outras crianças a violência que ela um dia sofreu.
Por fim, parece-nos importante destacar que Ana Rosa se apresenta como uma
personagem melancólica. Para explica-lo melhor, tomemos o conceito de melancolia
apresentado por Freud (2011), para quem ela
se caracteriza por um desânimo profundamente doloroso, uma suspensão do
interesse pelo mundo externo, perda da capacidade de amar, inibição de toda
atividade e um rebaixamento do sentimento de autoestima, que se expressa
em autorrecriminações e autoinsultos, chegando até a expectativa delirante
de punição. (FREUD, 2011, p. 47).
112 Anais do XIII SevFale
Ana Rosa demonstra intenso sentimento de culpa e uma autoestima muito baixa.
Ela conta ter decidido não se relacionar afetivamente porque acredita ser pouco atrati-
va para o sexo oposto. Também revela que possui poucas roupas e não se preocupa em
nada com sua aparência, já que não se considera uma pessoa bonita. Não nos parece
muito claro o motivo pelo qual Ana Rosa se culpa, mas acreditamos que passa por ques-
tões como a sensação de cumplicidade com seu avô, já que os abusos ocorreram por
meio da sedução; ressentimento por ter silenciado, ainda que acompanhado da inquie-
tação de que não havia com quem falar sobre o problema; e um sentimento de que ela
seria uma pessoa suja. Esta última questão poderia ser, para Ana Rosa, tanto a causa dos
abusos, quanto sua consequência, e se evidencia no trecho a seguir:
Siempre sentí que Dios no se acercaba a mí como al resto de la gente o al me-
nos como al resto de los miembros de mi familia y eso me hacía preguntarme
por la razón y la razón me llevaba de vuelta a mí misma: había algo sucio en
mí que espantaba a Dios. (SERRANO, 2011, p. 261).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Constatamos, portanto, que Ana Rosa é uma personagem melancólica, pois apre-
senta sinais de que sente imensa culpa e possui uma autoestima muito baixa. Acre-
ditamos que isso se deve, claro, ao trauma proveniente do abuso sexual sofrido, mas
também de outras questões. A primeira se refere a forma como o abuso ocorreu. Verifi-
camos que o avô de Ana Rosa utilizou como mecanismo para concretizar a agressão se-
xual não a violência física, mas a sedução. Esta abordagem pode ter sido responsável por
aprofundar o sentimento de culpa da personagem, por força-la a enxergar-se, erronea-
mente, como cúmplice de seu agressor. Outra questão que pode ser responsável pela in-
tensificação do sentimento de culpa é o fato de Ana Rosa ter silenciado o abuso. No en-
tanto, como ela mesma aponta, não havia para quem relatar. Isto porque em sua única
tentativa, quando a menina resolveu contar para a mãe o que estava acontecendo, Ana
Rosa foi ignorada.
E quando a protagonista tem a oportunidade de falar, ali diante das demais pa-
cientes de sua psicanalista, ela confronta-se com a dificuldade de simbolizar a vivência
Literatura, Violência e Trauma: Abuso Sexual Infantil no Conto Ana Rosa 113
traumática. Logo, percebemos também que ainda que o silêncio de Ana Rosa, em deter-
minado momento, seja de alguma forma rompido, a personagem permanece melancó-
lica. De tal modo que termina a narrativa afirmando que tudo o que lhe aconteceu e lhe
acontecerá é culpa dela.
REFERÊNCIAS
Resumo: O livro El goce de la piel (2005) do escritor peruano Oswaldo Reynoso apresenta cinco
contos envolvendo Malte, um personagem misterioso com quem o narrador de cada conto se
envolve numa relação de afeto, tensão e descobrimento sexual. Nessa obra, Reynoso aponta de
maneira mais clara a temática das primeiras relações afetivo-sexuais, presente em toda sua produ-
ção literária. Esse livro, assim como outros títulos do autor, representa o adolescente de uma forma
sexualizada, curiosa e rebelde. Essas características não causaria nenhum estranhamento ao leitor,
salvo em uma sociedade conservadora, majoritariamente católica e machista. O texto de Reynoso
consagra assim, uma nova identidade imagética desse jovem na literatura do país. Partindo dessa
identidade imagética, a fotógrafa espanhola Carmela García realizou, no ano de 2011, uma série fo-
tográfica intitulada Malte, fazendo referencia direta ao personagem e à obra de Reynoso. Partindo
de uma leitura das fotografias de García, este trabalho tem como objetivo explorar a identidade da
juventude peruana proposta no livro de Reynoso e sua relação com as artes visuais.
Simpósio: Literatura.
116 Anais do XIII SevFale
El goce de la piel, escrito por Oswaldo Reynoso e publicado pela Editorial San
Marcos no ano de 2005, retrata a adolescência a partir da descoberta dos prazeres da
pele. No primeiro dos cinco contos que compõem o livro, vemos essa descoberta por
meio da visão de um narrador que não é nomeado. Suas vivências sexuais é o que que-
bra com o projeto do pai do narrador-personagem de torná-lo sacerdote. Antes de se
dedicar a vida religiosa, o narrador-personagem viaja com a turma de seu bairro, e as-
sim, se dá o mote para as descobertas de seu corpo e do corpo do outro, dando indí-
cios de um relacionamento homossexual. A narrativa não segue uma ordem cronológica
padrão, ou seja, que não estabelece uma sucessão imediata dos fatos, nem define seus
intervalos temporais.
Cada um de seus contos se passa em um tempo e lugares distintos: Tacna, Mollen-
do, Arequipa, Lima. O único elemento que se repete perceptivelmente e invariavelmen-
te no livro é a presença do personagem chamado Malte, descrito como a encarnação da
beleza, com quem o narrador-personagem de cada conto do livro tem aproximações e,
através disso, o descobrimento sexual.
A escrita de Oswaldo Reynoso traz a temática da iniciação sexual e da rebeldia
desde suas primeiras publicações. Suas obras falam de uma geração de jovens que, até
então, não era aceita socialmente e muito menos representada nas artes. O conserva-
dorismo do povo peruano da década de 1960 fez com que sua obra Los inocentes (1961)
(obra reeditada sob o título de Lima en rock) fosse taxada, pela crítica especializada, com
advertências ao público menor de idade, ainda que exaltavam sua qualidade literária:
“Os editores de Lima en rock, o relato ‘rocanrolero’ de Oswaldo Reynoso [...] advertem
a seus leitores que esta obra, apesar de sua elevada qualidade literária, não é recomen-
dável para ‘menores de idade’”.
É interessante pensar no que faz uma obra baseada na realidade dos jovens
peruanos da época ter sua leitura não recomendada para o público de quem ela parte.
Para isso, Lara Mucci Poenaru sugere fazer uma leitura do contexto social em que o país
passava.
“O Peru era um país que passava por um período de ditadura, entre os man-
datos do General Manuel Arturo Odría Amoretti (1950 – 1956) e do civil Ma-
nuel Prado Ugarteche (1956 – 1962)”. (POENARU, Lara)
distinto. A recepção dessa temática teve seu reconhecimento atestado pelo Ministério
de Educação do Peru em 29 de agosto de 2013, que indicou por meio de comunicado
veiculado nos jornais El comércio, El peruano e La república, a obra ‘Los inocentes’, antes
não recomendada para os jovens, como obra referência aos alunos das escolas públicas
do país matriculados na Educação Secundária (de 12 a 18 anos).
A imagem que Oswaldo Reynoso faz da juventude peruana em ‘El goce de la piel’,
está vinculada ao personagem Malte, que é descrito como a celebração fáustica da pele.
Malte é aquele quem traz a imagem de sedução ao universo do narrador-personagem,
mas não o seduz por algum aspecto físico ou por seu comportamento. Sua sedução é
inerente. Seduz porque é.
Por imagem, este trabalho parte do conceito descrito por Rancière que diz que
“a imagem não é uma exclusividade do visível. Há um visível que não produz imagem,
há imagens que estão todas em palavras”. (RANCIÈRE, 2012: p. 16) Assim, a imagem que
Malte traz ao longo dos contos está expressa em palavras que causam uma vetorização
de símbolos e seus significados. Assim, se dá a representação do jovem peruano na obra
de Oswaldo Reynoso.
Sobre o processo de criação literária dessa imagem, em seu livro Arequipa lám-
para incandescente, publicado por Aletheya em 2014, o escritor traz um trecho em que
explica a escolha da expressão ‘celebración fáustica de la piel’:
“La dinámica de la prosa sin signos de puntuación me llevó a dar el remate
con esa frase: y ahí estaba Malte en la celebración de la piel. El castellano es
un idioma de sonoridad grave, por lo tanto, no es aceptable, estéticamente,
cerrar un periodo con un monosílabo, menos, aún, un relato. Si examinamos
esta frase veremos que hay cinco monosílabos. De acuerdo con el contexto
de esta estancia, no podía remplazar la palabra piel por otra: había un
imperativo estético. […] Al final, la estancia se remató con esta frase: y ahí
estaba Malte celebración fáustica de la piel. Y esto era lo que deseaba decir:
Malte era la celebración fáustica de la piel y no Malte en la celebración de la
piel.” (REYNOSO, 2014)
Por essa passagem sobre sua criação literária, o escritor deixa clara a conceituação
e a relevância do que papel da beleza e a sedução própria de Malte influenciam na obra.
ARTES EM DIÁLOGO
livro em prosa ‘Los inocentes’ é contemporâneo às obras da chamada geração beat, en-
cabeçada por Jack Kerouac na literatura e vivida no cinema por James Dean, o chamado
“rebelde sem causa”.
A temática que Oswaldo Reynoso planta na literatura peruana ganhava for-
ma, também, com outras representações artísticas ao redor do mundo. Além disso,
em um de seus ensaios sobre as obras de Oswaldo Reynoso presentes no livro Años
decisivos de la narrativa peruana, Ricardo González Vigil ressalta que o personagem
Malte apanha várias referências do âmbito artístico e literário, como Michelangelo,
por exemplo.
Vigil denota também referências com o romance Los Cuadernos de Malte Lurids
Brigge de Rilke, no qual o nome Malte aparece. Também são mencionados os poemas de
Cernuda (p. 50), e principalmente Morte em Veneza, cujo final no mar ecoa em muitas
passagens da obra de Reynoso.
Saindo do âmbito das inspirações que Reynoso utilizou para construir sua obra e
partindo para a função inspiradora que a obra teve, destaca-se o trabalho que a fotógra-
fa espanhola Carmela García fez tendo como base a imagem descrita em palavras que
o escritor fez do personagem Malte. Trata-se de uma série de seis fotografias, realizada
no ano de 2011, cada uma traz em primeiro plano a figura masculina de um jovem que,
como a autora mesmo diz no texto de apresentação da série, ainda traz a inocência não
perdida ou estão a ponto de perder.
Para explicar a referência de seu trabalho, Carmela diz:
“El título genérico de la pequeña serie Malte, es que Malte son todos,
diferentes y siempre el mismo, Malte era la idea de belleza, la inocencia simple
y natural o cómo diría Reynoso… Y ahí estaba Malte celebración fáustica de la
piel.” (GARCÍA, Carmela. 2011)
Ainda que seja de uma forma limitante, a leitura que proponho das fotografias
de Carmela García não está para encerrar nenhuma discussão, pelo contrário, está feita
para que outras leituras possam ser feitas e outras referências possam ser atribuídas.
Este trabalho parte da análise de três fotos da série proposta por Carmela García.
A primeira foto a ser analisada aqui, intitula-se Malte I, já que Carmela não se
preocupa em distinguir as fotos dessa série por títulos, senão por uma ordem de com-
As imagens da juventude peruana em El goce de la piel, de Reynoso, e em Malte, de Carmela García 119
posição, quase de curadoria realizada pela autora para dar uma linha de sentido ao con-
junto total de sua obra.
Em Malte I, vemos um jovem de cabelos longos, vestindo uma camisa aberta e
uma cueca. A composição da foto se dá pelo fundo proporcional causado pelo papel de
parede de tons claros e detalhes de flores. A quebra da proporcionalidade causada pela
escolha dessa parede para composição se dá pela presença de Malte. O jovem não está
centralizado na imagem, ao invés de equilibrá-la, polariza. A desordem causada por sua
presença não está apenas no campo formal da fotografia, pois dá a impressão que a de-
sordem dos elementos que compõem o cenário, foi causada por Malte. A presença da
toalha e a posição da almofada retratam bem isso.
A fisionomia de Malte, nessa foto, é série e compenetrada, como se esperasse por
algo que não está no campo de alcance da foto. Vale ressaltar, que a composição domésti-
ca e os trajes vestidos pelo personagem criam o ambiente de intimidade e aproximação.
A segunda fotografia a ser analisada intitula-se Malte III. Mostra um jovem se-
minu, dormindo em sua cama. Seus cabelos também são longos e sua pele branca se
alinha com a paleta branca utilizada nessa foto. Há elementos, porém, que datam essa
foto. A presença de CDs e DVDs jogados sobre a mesa de cabeceira traz para uma atuali-
dade recente o cenário dessa foto. Se dividirmos a foto em duas, de maneira latitudinal,
vemos que em uma metade, à esquerda, há a desordem causada pelo personagem: as
almofadas caídas da cama. E à direita vê-se a presença do causador de tal desordem com
sua fisionomia calma.
Em Malte III é possível traçar uma referência artística cultural com o quadro ‘A
criação de Adão’, assinado por Michelangelo. A posição em que o personagem dorme
parece a posição que Adão está no quadro renascentista. É importante lembrar que a
intertextualidade entre a obra de Oswaldo Reynoso e o quadro de Michelangelo é aber-
tamente explorada na passagem do texto:
“Los ojos de gato de mediodía de Malte se iluminaron e su rostro se em-
belleció de asombro señalándome a un muchacho desnudo en una pos-
tura varonil que aparecía en una de las cromolitografias; me dijo ese soy
yo y de verdad que era él y volteamos la reproducción y leímos Capilla
Sixtina” (p. 18).
A terceira foto que este trabalho se propõe a analisar é a intitulada Malte IV.
Nela é possível ver um jovem de cabelos curtos e loiros, vestido de branco, olhando seu
reflexo em uma superfície espelhada. A presença da cor branca nessa foto pode trazer
ao leitor dela a sensação de pureza e inocência que o personagem provoca na obra de
Reynoso.
120 Anais do XIII SevFale
REFERÊNCIAS
REYNOSO, Oswaldo. El goce de la piel. 1ª ed. - Lima: Editorial San Marcos, 2005.
__________. Los inocentes. 1ª ed. – Lima: Editorial San Marcos, 2007.
__________. El escarabajo y el hombre. 2ª ed. – Lima: Editorial San Marcos, 2001.
VIGIL, Ricardo González. Años decisivos de la narrativa peruana. 1ª ed. - Lima: Editorial
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ARGUEDAS, José María. Em: Los inocentes. Estruendomundo. Lima, 2006.
122 Anais do XIII SevFale
DISCINI, Norma. O Estilo Nos Textos: história em quadrinhos, mídia, literatura. 2ª ed. –
São Paulo: Contexto, 2004.
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Scardino, organizadores. – Vitória: Ed. PPGL, 2009.
SPINELLI, Miguel. O mito de Narciso. In: O Nascimento da Filosofia Grega e sua Transição
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RANCIÈRE, Jean. O destino das imagens. São Paulo: Editora Contraponto, 2012.
Representações da Infância na
fábula Esópica Antiga
Resumo: Este trabalho se propõe a realizar uma brevíssima análise de duas fábulas anônimas
atribuídas a Esopo e de uma fábula atribuída ao fabulista Fedro nas quais podem ser evidencia-
das representações da criança e da infância. Trata-se da fase seminal de uma pesquisa engajada
no entendimento dos liames entre o gênero fábula esópica, a infância e literatura infantil. A fim
de oferecer sustentação complementar para as análises, serão evocadas algumas poucas infor-
mações a respeito da tradição literária na qual os três textos e seus autores estão incluídos, bem
como algumas percepções que a antiguidade greco-romana sustentava a respeito das funções
do gênero fabular e sua relação com a educação.
O objetivo específico deste trabalho é uma reflexão de teor comparativo entre al-
gumas fábulas presentes em coleções anônimas (mas tradicionalmente atribuídas a Eso-
po) e no fabulário do autor Fedro. Tais fábulas têm como característica que as conecta a
presença da criança, seja como protagonista ou não da fábula. Trata-se de uma pesquisa
motivada pelo desejo de um melhor entendimento acerca da relação entre infância e
fábula esópica que não assuma como premissa a inclusão irrefletida e inerte da fábu-
la como uma manifestação de uma literatura infantil1. Por sua vez, a problematização
dessa associação – não se pode deixar de comentar – ocorre ciente de que há uma in-
compreensão e uma marginalização das tradições literárias que preveem a criança como
agente da recepção literária. Não é possível, contudo, um aprofundamento sobre a na-
tureza sociológica dessa opção crítica já perniciosamente enraizada na duradoura rela-
ção estabelecida entre produção, texto, recepção e, naturalmente, entre seus agentes,
sejam eles pais, críticos, autores e/ou crianças leitoras.
Cabe, nesse cenário, que se assevere dois aspectos do nosso objetivo e da nossa
motivação para atingi-lo. Primeiro, o risco em se falar de uma literatura infantil nas por-
ções da antiguidade que concebem os textos a serem analisados é simétrico à disjunção
que há entre a antiguidade e a contemporaneidade no que diz respeito às suas percep-
ções do que seja infância e público literário. Está bastante claro que há na antiguidade
um entendimento nítido das diferenças que cercam o que, na atualidade, não teríamos
dificuldade em denominar crianças e adultos. Todavia, discernir um público literário a
partir dessas mesmas nuances ou, melhor dizendo, diferenciar um público literário espe-
cificando um tipo de gênero literário, ou natureza de narrativa, se já é algo problemático
na literatura moderna e contemporânea, parece não poder ser feito na mesma medida
e com qualquer segurança na seara das literaturas antigas. Segundo, assumida a escolha
de estudo da criança como personagem da fábula, é sempre digna de cautela qualquer
tentativa de sociologia da infância a partir da substância narrativa de cada fábula. Em
momentos específicos e sempre com alguma suspeição procuraremos remeter a estu-
dos sobre um ou outro acontecimento de natureza corriqueira apontado pela fábula.
Mas que se reitere: a natureza peregrina desse gênero literário, constantemente adap-
tado e readaptado, é perfeitamente capaz de iludir o desejo por cenas da vida cotidiana
na antiguidade greco-romana. Sua descritividade enxuta, com frequência, formiga uma
impressão de realismo documental. Seu teor de maravilhoso, de outro lado, não distrai
o interesse em desmontar alegorias e recompor reflexões éticas2. Mas não se deve silen-
1 Entre as suposições que procuram explicar essa vinculação entre o gênero e o público, Ferreira (2013, p.60) chama
atenção para características da fábula que se tornaram paradigmáticas: “simplicidade estrutural e ensinamento
sentencioso e de senso comum”.
2 Ferreira (2013, p. 52) chama atenção para o fato de que , apesar de os animais serem dotados de fala articulada
Representações da Infância na fábula Esópica Antiga 125
ciar o fato de que são textos de datação meramente aproximável e com material narra-
tivo ou metalinguístico que nem sempre apontam para suas circunstâncias de produção.
Levando-se em consideração um índice elaborado pelo estudioso Ben Perry, que
lista mais de 700 fábulas antigas, gregas ou latinas, percebe-se imediatamente que a
criança é bastante pouco frequente como personagem de fábula. Pelo que pode ser
apreendido de títulos e resumos, que normalmente indicam quais são as personagens
mais narrativamente ativas numa determinada fábula, enquanto personagem com al-
guma atividade, a criança não chega a aparecer mais de treze vezes3. Um termo de
comparação simples, a raposa, que é possivelmente a personagem de fábula tanto mais
recorrente quanto mais famosa, chega a aparecer, apenas pelos títulos, mais de sessenta
vezes nesse índice.
Esta pequena análise priorizou apenas três fábulas em que a criança é represen-
tada de forma não-alegorizada por outras personagens,o que não significa que a infância
humana não seja pensada de outros modos na fábula; nesse sentido, um estudo mais
detalhado definitivamente poderia levar em consideração, também, por exemplo, algu-
mas fábulas em que filhotes de animais são introduzidos. As dus primeiras fábulas são
atribuídas a Esopo e a última fábula é de autoria de Fedro. Situaremos cada uma dessas
personalidades em momentos individuais, como etapa preliminar ao exame das fábulas
a eles atribuídas.
No concernente a Esopo, não sabemos se de fato existiu na figura histórica de um
autor. Ele é primeiramente mencionado no livro II das histórias de Heródoto (Capítulo
134) e essa referência nos autoriza a hipótese de que teria vivido próximo do século VI
a.C. Se Esopo criou fábulas, não sabemos se ele as registrou por escrito, ou se ele era
uma espécie de circulador que reproduzia as histórias oralmente. A maior parte das
fábulas gregas registradas são encontradas em prosa, em coleções anônimas de datação
muito posterior a esse suposto autor É o caso das duas primeiras fábulas a serem abor-
dadas. A vinculação que se cria entre tais fábulas e Esopo parece advir de uma identifi-
cação entre o autor e a criação do gênero, mais do que entre o autor e a produção de
fábulas. É um tipo de associação muito diferente da que se cria, por exemplo, entre Ar-
quíloco e o gênero que lhe é atribuída a criação, a poesia jâmbica. O caráter fortemente
personalista dessa manifestação da lírica arcaica enraiza textos em contextos e nomeia
e razão, frequentemente o mundo animal é referido nas fábulas esópicas pelo adjetivo álogon (irracional) de tal
modo que não parece, em qualquer momento, estar em causa a manifestação de um mundo fantástico subjacen-
te a cada narrativa
3 Tais fábulas estão identificadas no índice de Perry como:P.147; P.162; P.199; O.200; P.211; P.363; P.379; P.386;
P.457;P.470; P.499; P.581; P.710. O índice de Perry pode ser parcialmente consultado em: https://fablesofaesop.
com/perry-index
126 Anais do XIII SevFale
figuras potencialmente históricas de uma forma que as fábulas, no contexto de sua atri-
buição a Esopo, não fazem4. Seria, enfim, possível traduzir o perfil deste fabulista frente
à sua obra do seguinte modo: primeiro, não é conhecida qualquer obra elaborada, em
sentido forte, por uma figura histórica chamada Esopo e, segundo, a maior parte das fá-
bulas gregas que nós conhecemos são anônimas. Tradicionamente, há seculos e séculos,
então, ligam-se um autor sem obras a uma obra sem autor.
O Menino e o Escorpião (P.199)
Um menino estava caçando gafanhotos ao pé da muralha. Já havia catado vá-
rios quando avistou um escorpião e, crente de que fosse um gafanhoto, pre-
parou-se para apanhá-lo com a mão em concha. Mas o escorpião arrebitou o
ferrão e disse: “ Ah, se você tivesse feito isso! Teria perdido até os gafanhotos
que catou!
Esta fábula nos ensina que não devemos nos comportar da mesma forma com
todo mundo, com os bons e com os maus.5
A relação de profunda curiosidade que crianças podem vir a ter com o espaço e,
em especial, outras formas de vida é um elemento que alimenta o curso narrativo da fá-
bula. Aparentemente a fábula ou coloca a criança em uma situação em que ela é quase
vítima da falta de experiência, ou que é quase vítima de um descuido. Ou o menino não
elabora uma real diferença entre o gafanhoto e o escorpião e corre o risco de ser picado,
ou ele não percebe uma diferença já conhecida, a tempo de evitá-lo. Ele põe sua própria
vida em risco e a fábula elege outra personagem pra cumprir um papel de teor pedagó-
gico. O que há de ao mesmo tempo cômico e desconcertante, mas ainda assim, muito
natural para o gênero, é que a fábula dá esse papel de ensinar uma lição de vida ao pró-
prio escorpião, que quase picou o menino. A fala em modo condicional proferida pelo
escorpião indica, como desfecho, que a criança não foi acometida pela fatalidade, mas
não está claro se a criança entende propriamente aquilo que o escorpião fala. Até onde
esta pesquisa pôde examinar, não há, entre as fábulas esópicas antigas, outra situação
em que uma criança interaja verbalmente com um animal. Contudo, há alguns exemplos
de fábulas em que seres humanos adultos conversam de forma perfeitamente natural
4 O exemplo de Arquíloco de Paros aqui escolhido é conveniente por algumas razões. Trata-se de um autor historici-
zado pelos textos a ele atribuídos, ainda que não saibamos de muitos dados de sua biografia. Pelo que nos afirma
Corrêa (2010, p.121), também desconhecemos se este autor é responsável pela redação escrita de seus poemas,
ou se a composição oral foi retrabalhada por uma outra figura. Arquíloco que atuou na segunda metade do século
VII a.C., anterior, portanto, a um suposto Esopo histórico, também emprega fábulas como recursos retóricos em
sua poesia jâmbica. Sobre a vinculação de Esopo à origem e à composição de fábulas cf. WEST (1983) e O Ban-
quete dos Sete Sábios (158b), de Plutarco.
5 As fábulas de Esopo aqui transcritas são todas resultadas de traduções do grego antigo de Maria Celeste Dezotti
(2013).
Representações da Infância na fábula Esópica Antiga 127
com animais a ponto de que a criança poderia ter perfeitamente entendido o alerta e se
afastado, sem que isso estivesse narrativamente manifesto.
Já se mencionou a frequente impossibilidade de datação precisa de uma fábula
anônima, primeiramente pelo fato de que muitas poderiam já circular oralmente sécu-
los antes de serem escritas. É possível estipular quando as coleções anônimas como as
que contam essa fábula foram escritas, mas a serventia desse exercício para ancorar um
texto em circunstâncias originais de produção é pequena, uma vez que as fábulas nele
compiladas poderiam já estar profundamente enraizadas no folclore grego ou mesmo
das regiões mais orientais próximas à grécia6. A própria fábula recém-comentada nos dá
praticamente como único detalhe de cultura material uma muralha, de tal modo que
essa cena poderia ter acontecido virtualmente em diversos momentos da história cultu-
ral da Grécia ou de uma outra civilização. Mais uma vez é patente a insistência no fato de
que a narrativa de uma fábula pode não ser sempre um ponto de partida muito satisfa-
tório para uma história social ou cultural da infância na antiguidade.
Aquilo que pode, ocasionalmente, ajudar a dar alguma historicidade para uma
fábula é justamente a parte que não necessariamente foi composta, registrada por uma
primeira vez, no mesmo momento que a narrativa da fábula - que é a sua moral. Como
assevera Ferreira (2013, p.57), a moral de uma fábula não necessariamente é fixa e nem
sempre preserva uma óbvia relação de complementaridade com a narrativa fabular; ela
está a serviço seja da escrita seja da enunciação oral de quem a faz circular. Sua realiza-
ção textual provavelmente não seria simultânea ao do volume narrativo da fábula e não
precisa retomá-lo anaforicamente. Trata-se, em uma última instância, de uma experiên-
cia interpretativa da fábula que passou a acompanhá-la escrituralmente. Nesse sentido,
a interpretação que tal moral faz da fábula que lhe acompanha parece assumir a criança
como um ser manifestamente “bom” e a escolha do escorpião em picar ou não é o crivo
que o destinatário da moral da fábula deve ter para agir de forma diferente frente a al-
guém que é “bom” ou de alguém que é “mau”. Como se houvesse insinuação de que se
alguém que não fosse a criança, mas alguém passível de ser visto como “mau” estivesse
no lugar da criança, essa pessoa seria picada.
O estudioso Seth Lerer (2008, p.38) procura reforçar o papel da fábula como
parte da pedagogia greco-romana e chama atenção para esse exemplo aqui citado, ao
dizer que ele se põe em acordo com um projeto de limitação da infantilidade na crian-
ça pelos eventuais educadores da antiguidade, os pedagogos gregos e latinos. Esse
6 Sobre convergências de cultura literária entre a Grécia e o Oriente-próximo uma referência que permanece fun-
damental é The East Face of Helicon de Martin West (1997). No concernente à origem oriental da fábula animal cf.
HESIOD (1978, p.28-9).
128 Anais do XIII SevFale
estudioso possivelmente defende isso tomando como ponto de partida a ideia de que,
durante a antiguidade, a criança tende a ser vista como um adulto em formação. Mas
não estão muito claros os meios pelos quais a fábula se insere na educação infantil
em cada uma das épocas da antiguidade greco-romana. Há maior segurança, pelo que
nos sugere Ferreira (2013, p.61), em assumir que autores como Fedro (I d.C.), sobre
quem comentaremos a seguir, e Aviano (IV,V d.C.), estão mais fortemente atrelados à
vinculação entre o gênero e infância pelo fato de que suas obras foram, em momento
posterior, mais amplamente empregadas nas escolas monásticas tardo-antigas e me-
dievais. Alguns testemunhos antigos nos indicam que a fábula era, primeiramente, um
tipo de narrativa contada para crianças romanas pelas mulheres escravas que atuavam
como babás – quem nos conta isso é o gramático Quintiliano (I,9.I-II); ou pelas mães
dessas crianças, como é vagamete sugerido pelo filósofo Filóstrato (Philostratus, Life
of Apollonius 5.15), pelo que registra Andersen (2006, p.97) e que, segundo, sabe-se
que elas eram empregadas como exercício de escrita e interpretação ao longo da edu-
cação retórica que as crianças recebiam para se formarem oradores. Isso também é in-
dicado por Quintiliano e é sustentado pela existência de alguns manuais de exercícios
para formação retórica, os Progymanasmata, onde as fábulas são posicionadas como
as primeiras atividades7. Aparentemente, todavia, não é possível saber se a fábula teve
esse amplo papel pedagógico que Quintiliano descreve, em outros momentos – e es-
pecialmente em momentos anteriores da história da cultura grega e romana – de for-
ma tão abrangente quanto parece reivindicar o crítico moderno Seth Lerer. Aliás, uma
vinculação prioritária à formação infantil não pode excluir a importância política que
o gênero desempenhou nestas sociedades, pelo que depreendemos de autores como
Hesíodo (Os Trabalhos e os Dias, vv.202-212).
O Menino Ladrão e sua mãe (P.200)
7 É o que fica claro a partir da ordenação programática de um progymnasmata do autor tardo-antigo Libânio de
Antioquia (314 - 393 d.C.). Em sua introdução à tradução desta obra de Libânio, Craig Gibson (2008, p. 1) afirma
que os alunos deveriam reduzir ou expandir fábulas e classificá-las a partir de alguns critérios tipológicos. Curiosa-
mente poderia ser-lhes dada uma sentença moral a partir da qual eles deveriam ser capazes de desenvolver uma
fábula inteira, ou por dedução de uma história já conhecida ou pela invenção de uma nova.
Representações da Infância na fábula Esópica Antiga 129
mordida, lhe arrancou a orelha. E, quando ela se pôs a recriminar sua impie-
dade, ele disse: “Se você tivesse me dado uma surra naquele dia em que eu
lhe trouxe aquela primeira lousinha que roubei, eu não teria chegado a esse
ponto de ser conduzido à morte”.
Esta fábula mostra que o que no início não se reprime no início aumenta cada
vez mais.
Essa fábula, estranha em sua narrativa – tendo em vista que não é muito re-
corrente, nos textos legados, grandes quebras da unidade temporal – reforça o apego
transhistórico à ideia da censura e de punição como elementos definidores do caráter de
um indivíduo que está se desenvolvendo8. De um certo modo as duas fábulas se debru-
çam sobre a ideia de que as crianças fazem coisas indevidas motivadas por uma forma
de imprudência ou de inexperiência que é particular da fase da vida em que elas se en-
contram. Persiste a ideia de que essa inexperiência pode ser corrigida a partir da censura
e da punição. Em nenhuma das duas fábulas é feita objeção a isso. Ambas registram a
sugestão de que a morte pode ser a consequência definitiva de um ato infantil indevido
que não receba nem alerta nem penalidade, ainda que cada fábula trabalhe isso de for-
ma específica. Na primeira fábula a imprudência é alertada e o alerta previne a morte.
Na segunda fábula, essa ordem é expressa pela negativa. A criança realiza um ato im-
prudente, ela não é censurada, realiza novamente, não é censurada e sistematicamente
reincide até que ela é punida com a morte por condenação de um último ato. A situação
processual penal descrita na fábula deixa algumas curiosidades para as quais há pouca
solução, tendo em vista não só a inespecificidade do contexto narrativo, mas também
sua importância menor frente ao seu objetivo moral de maior amplitude. Contudo, não
deixa de ser um dado fascinante o de que, em Atenas, onde há melhor documentação
acerca da execução de leis, roubos como aqueles dirigidos a templos, estavam associa-
das às punições mais intensas (PARKER, 2005, p.65).
Até onde esta pesquisa caminhou, persiste evidente o fato de que a criança fre-
quentemente é exposta, nas fábulas gregas atribuídas a Esopo, a uma situação que cul-
mina ou em seu sofrimento, em seu risco de morte, ou em sua morte. Em outras três,
além dessas duas fábulas recém-apresentadas, o perigo que elas vivenciam recebe al-
guma forma de alerta ou punição9. Nas três fábulas em que a mãe contracena com uma
8 Pelo que nos sugere o estudo de Philippe Ariès (1981, p.162,163) o fim do antigo regime é um momento de rescru-
descimento dessa atitude frente à criança. Mas tal sentimento de – como nomeia o autor – “exasperação” deve
ter firmes precedentes na história. A exemplo indiciário dessa possibilidade Louise Pratt (2013, p.228) afirma que
no século V a.C, na Grécia,. ganha força a ideia de que uma criança deve ser submetida a rígidos costumes para
sobreviver e competir com outros.
9 P.162; P.211; P.363
130 Anais do XIII SevFale
criança, em duas ela é indiretamente responsabilizada pela morte da criança10. Dito isso
nessa formulação, é muito cabível que se correlacione o cenário negativo dessas fábulas
ao fato de que a antiguidade grega e romana, por mais que não só ela, tem um problema
catastrófico com o fenômeno da mortalidade infantil, como corrobora o trabalho de Ro-
bert Garland (2009,p. 95). As manifestações artísticas, obviamente, não são refratárias
a essa condição11.
Por fim, essas duas fábulas veem com olhares negativos o elemento lúdico e
afetivo presente em cada uma das suas personagens crianças. Há algo de eventual-
mente perigoso no prazer do menino que caça gafanhotos e inquestionavelmente per-
nicioso no prazer do menino que rouba sem punições. Conclusivamente, parece ade-
quado comentar uma fábula que abarque uma visão contrastante e que não apresente
o brincar apenas da perspectiva do risco do acidente e da reprimenda. É uma fábula
latina de Fedro.
Fedro, ainda que ele nos leve constantemente a ler o que diz sobre si mesmo
com alguma suspeita, provavelmente é um autor grego do século I.d.C. e, pelo que diz
sobre si, um escravo liberto do primeiro Imperador de Roma, Augusto. Esse fabulista
escreveu em latim um fabulário de pelo menos 130 fábulas em verso, divididas em
cinco livrinhos (libelli), como ele mesmo os chama, mas, tendo em vista que de um
livro ao seguinte o número de fábulas varia de uma forma assaz irregular, algumas fá-
bulas dele provavalmente foram perdidas. É fato curioso o de que os cinco livros são
publicados gradualmente por Fedro, sendo que a cada livro lançado, há um prólogo
ou um epílogo em que esse poeta faz algum comentário sobre si enquanto autor e,
vez ou outra, fala da sua relação com Esopo. Assim, no primeiro livro se vê como um
aperfeiçoador das fábulas de Esopo pelo fato de as escrever em verso quando Esopo
escrevia em prosa. No segundo livro, Fedro afirma estar pronto para inserir nos livros
algumas fábulas de sua própria autoria. No quinto e último livro, Fedro assevera que
só empregou fábulas de Esopo no passado por causa da propaganda, mas que já não
deve mais nada a esse autor.
10 P.162; P.200
11 Temos sempre insistido nas complicações imbutidas tanto em esmiuçar a sociologia literária da fábula quanto
em utilizá-la como fonte de informações sociológicas da antiguidade. Louise Pratt (2013, p.227) afirma que uma
das primeiras representações de crianças na arte grega é a morte de Astyanax no saque de Troia. Na avaliação
da autora, tal cena traduz abrasivamente a morte infantil enquanto fenômeno de ordem normal e corriqueira
na antiguidade, mas não deve ser contabilizada para que se avalie as representações artísticas da criança como
eminentemente negativas. De fato, a autora exemplifica de modo primoroso a riqueza de representações alegres
e enaltecedoras da criança, em especial, nos contextos poéticos do período arcaico.
Representações da Infância na fábula Esópica Antiga 131
Um certo ateniense, tendo visto Esopo brincando com nozes no meio de uma
multidão de garotos, parou e rin-se como que de um lunático. Ao perceber
isso, o velho Esopo, mais zombeteiro que zombável, pôs um arco reteseado
no meio da rua e disse: “Escuta, entendido! Explica por que eu fiz isso!” O
povo vai se aglomerando. O ateniense se atormenta por muito tempo, mas
não sabe a resposta para a pergunta feita. Por fim, desiste. Então o sábio Eso-
po, vencedor, diz: “Se você mantiver o arco sempre retesado, logo ele vai rom-
per. Mas se você o relaxar, ele será útil quando você quiser.
Por isso, ocasionalmente, devem ser dadas distrações à mente a fim de que
você retorne melhor para pensar”
Uma fábula simples, que preserva a unidade temporal ausente no exemplo an-
terior e na qual quem conta a moral é a próprio personagem Esopo, como não raro
ocorre no fabulário de Fedro. Aqui, as personagens infantis estão camufladas como
seres brincantes com as quais um adulto, um ancião de quem normalmente – insinua
a fábula – se espera seriedade, está brincando também e por isso vem a ser ridiculari-
zado por uma terceira personagem, observadora. O jogo que Esopo performa ao lado
das crianças, pelo que nos conta o comentador Andreu-Cabrera (2010, p.343) se apro-
xima muito de “bolas de gude”, que era, então, jogado com sementes. Esopo recebe a
provocação de modo a criar uma situação também lúdica com o ateniense que o ridi-
culariza. Propõe uma espécie de enigma, uma característica pela qual Esopo é muito
conhecido nos relatos lendários sobre sua vida. O ateniense falha; Fedro caracteriza
Esopo como vencedor, como se este não tivesse deixado em momento algum de jogar.
Esopo, por fim, cela sua vitória divindo uma ideia muito contrastiva com o tom autero
das fábulas anteriores. Qual seja: o intelecto, o pensamento só tem real serventia para
aquele que o possui quando a mente se encontra descansada, quando o sujeito se per-
mite relaxar através de distrações e entretenimento. É uma fábula que ressignifica as
outras duas ao dizer que tornar-se adulto não é abandonar, pelo amadurecimento, a
infantilidade do lúdico, mas reconhecer que o lúdico é uma coluna que sustenta como
uma cama a capacidade intelectual de um ser humano. É precisamente uma fábula em
que a criança não tem agência narrativa que nos coloca uma percepção positiva de
características que atribuímos com distinção à infância.
12 A tradução desta fábula latina acompanha o texto estabelecido pelo trabalho editorial de Alice Brenot (1961) e
é de nossa responsabilidade.
132 Anais do XIII SevFale
REFERÊNCIAS
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Cambridge Companion to Ancient Greek Law.Cambridge: Cambridge University Press,
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_______. The East Face of the Helicon: west asiatic elements in greek poetry and myth.
New
York: Oxford University Press, 1997, 662p.
Na Tessitura de Imagens: Análise do Conto
“O Alienista” em Quadrinhos
Resumo: O conto “O Alienista” (1882), de Machado de Assis, além de fortuna crítica, apresenta
um quadro de interpretações intermidiáticas em que se encontram adaptações do texto para
o cinema e para a TV, para livros e revistas em quadrinhos, para livros literários (em versão re-
duzida e recriada do texto machadiano), para o teatro e adaptações em letra de música. Esse
enfoque variado de adaptações permite a circularidade do conto desde fins do século XIX aos
dias de hoje, garantindo-lhe lugar de representatividade e de discussões em torno de seu as-
pecto canônico e, especialmente, em torno das contribuições dessa narrativa para a formação
estética e política de jovens leitores. Este artigo visa a analisar o processo de adaptação do conto
“O Alienista” na versão homônima de livro em quadrinhos (2013), realizada por Luiz Antônio de
Aguiar (roteiro) e por César Lobo (arte). O enfoque desenvolvido é baseado nas noções teóricas
de intertextualidade e intermidialidade, considerando a complexidade dos jogos de imagens na
literatura e nas narrativas gráficas e sua importância para a leitura do texto. Este artigo, por meio
de análise comparada, apresenta contribuições para os estudos intermidiáticos e para a explora-
ção de narrativas gráficas em sala de aula.
Para Eisner (2005, p. 9), “o processo de leitura dos quadrinhos é uma ex-
tensão do texto”, uma vez que, nos quadrinhos, há uma aceleração dos proces-
sos de conversão de informações em imagens, o que, de um modo geral, o lei-
tor realiza mentalmente nos atos de leitura. Quando o mecanismo de conexão
entre imagem e palavras opera de forma adequada, há um deslocamento da ideia
de entretenimento visual para a composição de uma narrativa gráfica, com ar-
ranjo complexo. A partir dessa reflexão, Eisner (2005) questiona a hierarquização
entre literatura e quadrinhos, na qual os quadrinhos são desvalorizados. Para o autor,
os quadrinhos têm autonomia artística e qualidades criativas tão importantes quanto
aquelas elaboradas nos processos de criação literária. Pina (2014) também defende a
perspectiva de autonomia estética dos quadrinhos, acrescentando que essa hierarquiza-
ção se deu (e talvez ainda ocorra), devido a uma sobrevalorização do literário, tradicio-
nalmente associado a segmentos sociais privilegiados, sobretudo até as primeiras déca-
das do século XX. Nesse sentido, para alguns estudiosos e especialistas, a adaptação do
literário para os quadrinhos pode implicar uma perda da ‘aura’ literária, considerando a
perspectiva de Walter Benjamin (1985). Essa abordagem, no entanto, deve ser descons-
truída, uma vez que o mais importante na análise de uma adaptação é o processo de
tensionamento estético das formas de linguagem em conexão.
2 - NA TESSITURA DE IMAGENS
Nesse duplo de imagens, são evocadas duas perspectivas: uma relacionada às ten-
dências de questionamentos sobre identidade e dupla personalidade, já que, em textos
machadianos, o duplo é uma temática bastante explorada. A outra perspectiva diz respeito
ao aspecto intertextual que é evocado nesse duplo, já que as imagens também evocam ou-
tro duplo consagrado da literatura mundial, a novela gótica O médico e o monstro, de R.L.
Stevenson (1886). Nessa narrativa, a partir do uso de uma substância química, o Dr. Jekyll,
transforma-se no assassino Mr. Hyde e, paulatinamente, a personalidade deste, o mons-
tro, vai tomando conta do gentil médico. Nessa novela, R.L. Stevenson também questiona
os aspectos cientificistas da medicina em fins do século XIX. Se retomarmos a noção de
intertextualidade como uma grande rede cultural na produção e na recepção de diferentes
linguagens (CURY, 1982), veremos que os repertórios dos autores da adaptação de “O Alie-
nista” em quadrinhos lançam mão de estratégias de associação gráfica e de sobrevivência
Na Tessitura de Imagens: Análise do Conto “O Alienista” em Quadrinhos 141
Imagem 4 – Dona Evarista, nem bonita nem simpática – Fonte: Aguiar , 2013: p. 8 – recorte de imagem
Imagem 5 – Dona Evarista, vestes exóticas – Fonte: Aguiar, 2013: p. 65 – recorte de imagem
Crispim Soares derretia-se todo. Esse interrogar da gente inquieta e curiosa, dos
amigos atônitos, era para ele uma consagração pública. Não havia duvidar; toda
a povoação sabia enfim que o privado do alienista era ele, Crispim, o boticário,
o colaborador do grande homem e das grandes coisas; daí a corrida à botica.
Tudo isso dizia o carão jucundo e o riso discreto do boticário, o riso e o silêncio,
porque ele não respondia nada; um, dois, três monossílabos, quando muito,
soltos, secos, encapados no fiel sorriso constante e miúdo, cheio de mistérios
científicos, que ele não podia, sem desdouro nem perigo, desvendar a nenhu-
ma pessoa humana. (MACHADO DE ASSIS, 1994: p.240, vol.2, grifos meus)
de Crispim Soares, dentre outros símbolos, que são utilizados na composição do espaço
metafórico do conhecimento de que Simão Bacamarte era detentor.
Na narrativa gráfica, os traços comportamentais, geralmente, estão associados a
estereótipos, representados a partir de traços de aparência física (humor, beleza, hero-
ísmo, maldade, cinismo etc) e também por traços de posturas ameaçadoras, associados
a animais, são considerados resíduos de uma existência primitiva, segundo Eisner: “Tal-
vez, numa experiência anterior com a vida animal, as pessoas tenham aprendido quais
posturas e configurações faciais eram ameaçadoras ou amigáveis. Era importante para a
sobrevivência reconhecer quais animais eram perigosos”. (EISNER, 2005, p. 24)
Na adaptação em quadrinhos, esse traço de animalidade na composição carica-
tural do personagem é também utilizado nos personagens João Pina (raposa) e Padre
Lopes (serpente):
1 Nos capítulos 6 (A Rebelião) e 7 (O Inesperado) são feitas analogias entre a Casa Verde e a Bastilha, prisão fran-
cesa cuja queda ocasionou libertação dos presos e movimentos de insurreição que engendraram a Revolução
Francesa (1789).
Na Tessitura de Imagens: Análise do Conto “O Alienista” em Quadrinhos 147
REFERÊNCIAS
AGUIAR, Luiz Antonio. O Alienista; roteiro de Luiz Antonio Aguiar; arte de Cesar Lobo. 2ed. – São Paulo:
Ática 2013.
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. (trad. Sérgio Paulo Rouanet). Vol. 1. Magia e técnica, arte e política
– Ensaios sobre literatura e história da cultura. Prefácio de Jeanne Marie Gagnebin. São Paulo: Brasiliense,
1987: p. 114-119.
BOSI, Alfredo. O enigma do olhar. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007 (4ª ed).
Na Tessitura de Imagens: Análise do Conto “O Alienista” em Quadrinhos 149
CÂNDIDO, Antônio. Esquema Machado de Assis. In: Vários Escritos. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2011,
p. 15-33 (5ª ed)
CURY, Maria Zilda. Verbete intertextualidade. (2014) In: Glossário Ceale, disponível em: http://ceale.fae.
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EISNER, Will. Narrativas Gráficas. Trad. Leandro Luigi del Manto. São Paulo: Devir, 2005.
ASSIS, Machado de. O Alienista. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar 1994. v. 2, p. 230-261 (contos)
PINA, Patrícia Kátia da Costa. Literatura e quadrinhos em diálogos: adaptação e leitura hoje. In: Revista
Ipotesi, Juiz de Fora, v.18, nº2, p. 149-1645, jul./dez. 2014.
LEITURA LITERÁRIA: uma nova velha estória
Simpósio: Eixo 2 - Infância como provocação teórica: escrever sobre infância, escrever para
a infância.
152 Anais do XIII SevFale
O presente estudo tem como objetivo apresentar uma prática docente de letra-
mento literário desenvolvida a partir da leitura conjunta dos contos “Chapeuzinho Ver-
melho”, na versão dos Irmãos Grimm, e “Fita Verde no cabelo: uma nova velha estória”
de Guimarães Rosa, com a aplicação da sequência básica proposta por Rildo Cosson
(2006). A transformação dos alunos em bons leitores requer o convite à leitura, o desen-
volvimento da capacidade de ler, o compromisso e a mobilização para a aprendizagem,
mas no ambiente escolar, ainda prevalecem práticas didáticas centradas em fragmentos
de textos literários que, contrariando os objetivos propostos, na verdade distanciam o
leitor do hábito da leitura. Assim, torna-se indispensável uma metodologia que privi-
legie o convite à leitura, - e valorize os caminhos da recepção da obra, a construção de
sentido - e o uso de inferências. Uma sondagem inicial em sala de aula sobre hábitos e
práticas de leitura entre os alunos revelou que todos já haviam lido pelo menos uma ver-
são de Chapeuzinho Vermelho, porém, nenhum deles havia lido a versão de Guimarães
Rosa. Partindo do conhecido ao desconhecido foram elaboradas seis etapas baseadas
na sequência básica de Rildo Cosson (2006) que prevê a motivação através do convite, a
introdução que consiste na apresentação da obra física ao leitor, a leitura silenciosa e a
protocolada, a interpretação do texto, à qual se acrescentou nessa pesquisa o reconto e
a reescrita do reconto. As atividades foram estruturadas visando a contribuir no proces-
so de formação de leitores, inserindo-os no universo de Guimarães Rosa.
e construir sentido para si mesmo, bem como compartilhar essa leitura com o outro.
Corroborando esse ponto de vista, Colomer (2012, p. 44) afirma que “os alunos necessi-
tam ser encorajados por alguém que lhes ajude de forma continuada para que realizem
essas descobertas.”.
Na perspectiva de Solè (1998, p.22), a leitura é um processo de interação entre
o leitor e o texto, cujas finalidades são múltiplas: devanear, preencher um momento de
lazer e desfrutar, procurar uma informação concreta, confirmar ou refutar um conheci-
mento prévio, dentre outros. Nessa perspectiva, ler é dominar as habilidades de decodi-
ficação e também aprender distintas estratégias que levam à compreensão do texto. A
autora aponta alguns aspectos que podem ser levados em conta para um ensino correto
de estratégias. Conforme Solé (1998, p.90):
Ler é muito mais do que possuir um rico cabedal de estratégias e técnicas.
Ler é, sobretudo, uma atividade voluntária e prazerosa, e quando ensinamos
a ler devemos levar isso em conta. As crianças e os professores devem estar
motivados para aprender e ensinar a ler.
Fiad (1994, p.362) constata que o trabalho de reescrita, quando ocorre na escola,
é direcionado pelo professor ou pelo material didático e que muitas vezes não há avalia-
ção desse processo. “Esse direcionamento pode ser mais explícito e enfático, quando o
professor aponta aspectos a serem refeitos nos textos de seus alunos, ou mais implícito,
quando é sugerido ao aluno que releia seu texto e o refaça, sem nenhuma interferência
de um interlocutor”. Um trabalho voltado para a reescrita implica sucessivos esforços de
revisão do texto escrito, em um processo de idas e vindas em prol de aprender através
de uma postura reflexiva.
Segundo Geraldi (1996, p.46) a escola tem a função de permitir a circulação escri-
ta entre as diversas instâncias de produção de saberes, uma vez que a aprendizagem da
escrita se dá concomitantemente à aprendizagem dos conteúdos referenciais associados
à escrita. Para o esse pesquisador, o ensino da língua escrita bem como suas normas, é
significativo quando parte da produção do próprio aluno e não de clássicos. Ele defende
que o trabalho de revisão ou reescrita de textos é uma forma eficaz de ajudar os alunos
a produzir textos e melhorarem a qualidade de sua produção textual.
Dialogando com o assunto, Marcuschi (2003a, p.47) defende que quem domina
a escrita pode, eventualmente, ter acesso a um maior número de conhecimentos. Para
tanto, o mediador deve desenvolver práticas que ampliem o domínio do aluno/escritor
e promover uma reflexão em torno do texto produzido.
O estudo aqui apresentado é um recorte de uma pesquisa desenvolvida em uma
turma de vinte e dois alunos do 6º na Escola Estadual “Juscelino Kubitschek de Oliveira”
no município de Ibirité, MG. O foco da pesquisa é contribuir com a formação de leitores
proficientes por meio de contos selecionados de Guimarães Rosa. Para esse estudo, a
proposta é a leitura dos Contos Chapeuzinho Vermelho na versão dos Irmãos Grimm e
“Fita Verde no cabelo: uma nova velha estória” do escritor Guimarães Rosa, com a apli-
cação da sequência básica proposta por Rildo Cosson (2006, p.55) que apresenta uma
proposta de letramento literário, através de uma sequência básica, dividida em: motiva-
ção, introdução, leitura e interpretação. No caso específico dessa pesquisa, será incluída
também o reconto e a reescrita do reconto.
Partindo dessas várias considerações, foi desenvolvido um trabalho com uma
turma de vinte e dois alunos do 6º ano fundamental da Escola Estadual “Juscelino Ku-
bitschek de Oliveira” no município de Ibirité, MG. Para alcançar os objetivos propostos,
concernentes à formação de um leitor de textos literários proficientes, a pesquisa foi
dividida em seis etapas metodológicas.
Na primeira etapa, como convite à leitura, a professora fez perguntas relativas à
história de “Chapeuzinho Vermelho” e sobre as outras versões do conto, buscando fazer
156 Anais do XIII SevFale
iria passar para o papel as ideias dos demais e cada um ficou esperando que os outros
realizassem as atividades. Apesar dos obstáculos encontrados no decorrer das aulas, a
proposta foi finalmente cumprida.
Acredita-se que o objetivo da pesquisa foi alcançado tendo em vista que o foco
era contribuir na formação do leitor de texto literário. Na parte do reconto e da reescri-
ta, os alunos perceberam que o leitor deve adentrar no universo do conto desde a sua
introdução, que constitui o começo da história. Focalizar o ponto de vista da narrativa
através do narrador que apresenta os fatos iniciais, revelar os protagonistas e eventual-
mente demarcar o tempo e/ou espaço. O enredo deve ter fatos organizados de acordo
com uma sequência lógica de acontecimento. Além disso, na parte de reescrita, alguns
alunos perceberam através da lista de verificação que é necessário apresentar um con-
flito que é a parte elementar de toda a “trama”, pois possibilita a motivação ao leitor/
ouvinte, instigando-o a se envolver com a história. E para que haja essa interação, os
fatos devem conferir uma logicidade. Dessa forma, esse evento de letramento na sala
de aula contribuiu com a formação dos alunos/leitores porque foi apresentado aspectos
relacionados à estrutura, um texto desconhecido e motivador e estratégias para levá-los
a compreender melhor o conto de Guimarães Rosa. Além disso, notou-se que os alunos
foram bem críticos com o texto do outro ao fazer a análise com a lista de verificação,
no entanto, ao receber o texto de volta para a reescrita perceberam que muitos dos
aspectos criticados estavam presentes também nos seus textos, levando-os a repensar
também a sua própria prática, mas o principal é que puderam se sentir escritores em
uma nova velha estória.
Concluindo, a escola deve estimular a leitura, pois a autonomia é advinda da
prática. A proposição de atividades semelhantes ao longo do percurso escolar com
certeza deverá trazer maior familiaridade com outras obras e até mesmo com os ou-
tros contos do autor e uma maior desenvoltura nos processos inerentes à sua com-
preensão. À medida que se amplia o universo do conhecimento, novos valores serão
agregados de tal maneira que o leitor proficiente conseguirá interagir com qualquer
tipo de texto.
LEITURA LITERÁRIA: uma nova velha estória 159
REFERÊNCIAS
COLOMER, T. Andar entre livros: a leitura literária na escola. Tradução de Laura Sandroni.
3 ed. São Paulo: Global, 2007.
COSSON, R. Letramento Literário. GLOSSÁRIO CEALE/UFMG, 2014a. Disponível em:
ceale.fae.ufmg.br/app/webroot/glossarioceale/verbete/letramento-literario. Acesso
em 15 de jan. de 2016.
_____. Círculos de literatura e letramento literário. São Paulo: Contexto, 2014b.
_____. Letramento literário: educação para vida. Vida e Educação, Fortaleza, v. 10,
2006a.
COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2006b.
FIAD, R. S., MAYRINK-SABINSON, M. L. T. A escrita como trabalho. In: MARTINS, M. H.
(org.). Questões de linguagem. São Paulo : Contexto, 1991. p.54-63
GERALDI, João Wanderley. Linguagem e ensino – exercício de militância e divulgação. s/
ed, Campinas, SP: Mercado de Letras - ABL, 1996.
MARCUSCHI, L. A. Da Fala para a Escrita: atividades de retextualização. 4. ed. São Paulo:
Cortez, 2003a.
ROSA, João Guimarães, ROSA, J. Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1977.
A “Anti-infância” de MaximGorky: Um Modelo
de Experiência Infantil e seu Aspecto Político.
Um dos empregos que Gorky foi forçado a assumir quando criança foi o de apren-
diz de pintor de ícones religiosos. Segundo Katerina Clark (1981), assim como o artista
recorre à pintura original para repetir em ícones subsequentes o esquema de cores apro-
priado ao tema ou o ângulo correto da posição das mãos de um santo, o escritor soviéti-
co era encorajado a reproduzir, na literatura realista socialista, gestos, frases, momentos,
o esqueleto simbólico que sustenta as obras consideradas canônicas do estilo. Em um
processo mais intenso do que a mera cópia de personagens e incidentes das obras, o
escritor soviético “organizava toda a estrutura da trama de seu romance com base nos
padrões presentes nas obras” (CLARK, 1981, p.4, tradução nossa).
Na medida em que o Realismo Socialista assume o aspecto de prescrição oficial
do estado sobre a literatura, o aprendiz de pintor de ícones AlexseiPeshkov torna-se
MaximGorky, o artista do ícone primordial. Sua vida e obra serão reiteradas na literatura
soviética, assumindo novas roupagens e nuances, porém sempre remetentes ao modelo
original. Tal processo de reprodução perfura a fronteira entre personagem e autor, entre
obra e vida.
Segundo Balina (2005), quando os escritores soviéticos SamuilMarshak e Kornei-
Chukovsky escreveram as autobiografias de suas respectivas infâncias, foi-lhes privado
o aspecto idealizador do passado: suas obras carecem do pigmento que tinge a experi-
ência infantil como inocente, lúdica e descomplicada. Nascidos antes da revolução, suas
memórias do tempo pré-revolucionário deveriam se adequar a uma espécie de “etique-
ta autobiográfica soviética” (p.249, tradução nossa). Os eventos significativos da infân-
cia deveriam corresponder a um modelo que Andrew Wachtel (1990) descreveu como
narrativa da “anti-infância”.
A descrição de experiências felizes, a preciosidade da infância protegida em uma
vasta propriedade rural até a vida lhe forçar o amadurecimento – eis o modelo de infân-
cia proeminente na tradição literária russa até então. O garoto, membro da classe alta
rural (gentry), filho de uma mãe ideal, herdeiro de um paraíso bucólico, rodeado por
servos contentes em harmonia social; o “tempo feliz” em Childhood (1852), “Infância”,
autobiografia de Tolstoy. Na literatura soviética, argumenta Wachtel, tal modelo foi su-
plantado por outro, crispado de dor, marcado pela perda, imerso em miséria e acima
de tudo, um painel de injustiça social que confinava o autor à existência desprivilegiada
das classes baixas. Enquanto o paradigma da infância literária era reiterado, na tradição
literária russa, a partir do modelo autobiográfico de Tolstoy, o novo paradigma da anti-
-infância na literatura realista socialista era a reprodução dos elementos determinados
por outra Infância, MyChildhood, o texto autobiográfico publicado em 1913 por Maxim-
Gorky.
164 Anais do XIII SevFale
boram o entendimento de que o texto de Gorky foi concebido para subverter a tradição
autobiográfica da gentry. Por exemplo, Wachtel (1990) destaca o papel da morte como
rito de passagem. A infância de Irten´ev, lúdica, confortável, e protegida, se encerra com
a perda de sua mãe.
A morte, aqui, perfura o conforto da bolha hermética de sentimentos protegi-
dos de sua infância e o lança às incertezas do mundo social e da vida adulta. A infância
de Alexsei/Gorky, em contraste, se inicia com a morte de seu pai. Longe de ser um rito
de passagem, a morte, aqui é o prelúdio, o overturede uma ópera de tragédias. Desta
forma, Gorky enfatiza de imediato sua intenção de ruptura. Assim como Tolstoy, Gorky
termina seu primeiro volume com a morte da mãe. Entretanto, enquanto a morte da
mãe de Irten´ev implica em uma reação emocional, a tristeza introspectiva da perda,
Alexsei/Gorky descreve o momento similar de maneira distanciada: “Eu permaneci ali,
com o copo em minha mão, por um longo tempo, próximo ao leito de minha mãe, obser-
vando sua face endurecer e acinzentar. Vovô veio e eu lhe disse: “minha mãe morreu...”
(GORKY, 1990, p.209, tradução nossa). A morte da mãe de Aleksei não repercute dra-
maticamente; apenas soma-se à montanha de tragédias que se acumulou em sua breve
vida até então. Não há nada perdido, não há nada de novo.
A indiferença sugerida em Aleksei parece refletir o interesse de Gorky em sub-
verter o “mito da mãe perfeita”. No modelo de infância da gentry, a mãe é uma enti-
dade sagrada indistinta, um ser de luz que reúne em si todas as qualidades humanas e
se define apenas como uma fonte de amor incondicional, sem personalidade marcante
(WACHTEL, 1990). Na autobiografia de Gorky, à despeito do laço entre o narrador e sua
mãe, ela sucumbe como uma fatalidade entre inúmeras outras, um estágio da vida que
não representa uma ruptura, mas uma continuidade que confirma a natureza brutal da
realidade na sociedade russa.
Em adição, Gorky também ataca um mito proeminente na tradição autobiográ-
fica da gentry: a relação harmônica entre criança e natureza em um paraíso bucólico,
a inocência de uma refletindo a pureza da outra. A memória afetiva de tal relação har-
mônica inunda o coração adulto de ternura como uma expressão nostálgica agridoce. A
infância de Gorky, porém, se desenrola nas tribulações de um ambiente urbano e passa-
gens sobre a natureza, na obra, possuem a função de ressaltar o aspecto classista da co-
munhão entre criança e natureza. Ainda, paisagens naturais são evocadas com tristeza, o
contraste entre o silêncio e o barulho frenético dos centros urbanos (Idem). No modelo
tradicional, à harmonia entre criança e natureza soma-se a harmonia entre os senhores
da terra e os camponeses, simples e contentes – a validação implícita de uma sociedade
fundada em um regime de servidão que só terminaria após 1860. Ao descrever a vida
rural, Gorky tenta demolir o mito do “camponês feliz”:
A “Anti-infância” de MaximGorky: Um Modelo de Experiência Infantil e seu Aspecto Político. 167
O modelo de infância da gentry reflete uma necessidade, por parte dos autores,
da preservação de um estilo de vida russo que o radicalismo revolucionário enfrentará
como inimigo existencial. Uma sociedade ideal cujos alicerces são a natureza (a grande
fazenda como oposta à cidade), o camponês (oposto ao operário), o proprietário de ter-
ras (ao invés do industrial). Gorky, em contrapartida, minimiza o impacto simbólico do
natural sobre a formação da personalidade, privilegia o proletariado urbano e insere sua
experiencia de vida em uma interpretação marxista da natureza e da história. Ao mani-
festar suas posições ideológicas no formato autobiográfico parodiado de Tolstoy, Gorky
“invadiu o bastião do que era propriedade exclusiva da tradição literária da gentry”(WA-
CHTEL, 1990, p.141, tradução nossa). Gorky respondeu ao desafio de Tolstoy, orientando
sua obra em oposição total a este: pela memória da experiência individual como uma
contestação à universalidade do modelo de infância literário tradicional russo e estabe-
lecendo, talvez inadvertidamente, um modelo simbólico posterior.
Ao inaugurar um modelo de anti-infância, Gorky alicerçou seu mito particular
de pobreza, negligência e abuso, “estabelecendo assim o novo cânone soviético da in-
fância (BALINA, 2005, p.250, tradução nossa)”. Os primeiros e brutais anos da vida de
Gorky, traduzidos em narrativa literária, configuram um modelo na medida em que pela
“influência sobre as memórias da infância de diversas figuras literárias soviéticas e au-
tobiógrafos” (Idem), estabelece um padrão que se reitera determinando os eventos que
compõem as lembranças nas páginas destes autores. A infância de Gorky funde-se com
a infância dos autores soviéticos, projetando-se hierarquicamente sobre elas de forma a
legitimá-las como verdadeiras. O mito, assim, solidifica-se em um modelo, em um para-
digma frente ao qual serão julgadas a vida e sua representação autobiográfica.
A transformação da experiência narrada em um modelo não ocorre pela negação
da veracidade dos eventos; a brutalidade da infância de Gorky, amplamente narrada,
torna-se quase impossível de ser contestada. Ainda, é praticamente impossível mensu-
rar a ciência, por parte dos autores, dos aspectos ideológicos modelares que sublinham
suas autobiografias. Em contrapartida, a conversão da experiência autobiográfica em
modelo revela seu potencial para persuasão política. Barthes (1972) identifica, em uma
cultura, o processo de mitologização da realidade. Isto ocorre quando um objeto ou uma
168 Anais do XIII SevFale
REFERÊNCIAS
FRITZSCHE, Peter; HELLBECK, Jochen. The new man in stalinistRussiaand nazi Germany. In:
GEYER, Michael; FITZPATRICK, Sheila. BeyondTotalitarism: stalinismandnazismcompared.
Cambridge, CambrigeUniversity Press, 2009. Pgs. 302-341.
GORKY, Maxim. Childhood. Londres, PenguinClassics, 1990.
SCHERR, Barry. MaximGorky. Nova York, Twayne, 1988.
TOLSTOY, Leo. Childhood, boyhoodandyouth. Nova York, The Modern Library, 2002.
WACHTEL, Andrew. The battleofchildhood: creationof a russianmyth. Stanford, Stanford
UP, 1990.
Estruturas Conviviais e Infância
Resumo: Considerando as reflexões de Dubatti na sua trilogia da Filosofía del Teatro I, II e III
(2007, 2010, 2014) sobre a composição do acontecimento teatral, onde são desenvolvidas as
noções de convívio, expectação e poíesis e, a partir delas, é elaborada sua definição pragmáti-
ca do teatro, objetiva-se mostrar as relações que podem ser estabelecidas entre as estruturas
conviviais e a infância. Para tanto, desenvolve-se cada uma das três noções, que são interligadas
entre si, dando-se destaque para o convívio. As estruturas conviviais relacionam-se com a reu-
nião de presenças sem intermediação tecnológica e são consideradas pelo autor básicas para
a instauração do acontecimento do teatro. No convívio há mais experiência que linguagem e
isso, por sua vez, remete-nos aos estudos de Agamben (2008) que se refere à cultura vivente
como zona in-fante. Dupont (1999) investiga os rituais do banquete na Grécia Antiga quando,
no symposium (beber juntos) a poesia oral era compartilhada. Desse modo, pode-se ver como o
convívio enquanto zona de experiência relaciona-se com a infância do homem e, em uma escala
ampla, com a infância da própria humanidade.
Simpósio: Literatura
INTRODUÇÃO
No começo dos anos 90, envolvi-me com a pesquisa e narração oral de contos
de tradição oral, mais especificamente os chamados contos maravilhosos ou contos de
174 Anais do XIII SevFale
1 Antroposofia, “Ciência espiritual”, elaborada em seus princípios pelo filósofo e cientista austríaco Rudolf Steiner
(1861-1925), onde desenvolve uma visão ampla do homem integrando aspectos físicos, emocionais e mentais/
espirituais bem como seus laços sociais, com aplicações práticas em várias áreas como a pedagógica (Pedagogia
Waldorf), a médica (medicina Antroposófica), a agricultura (Agricultura Biodinâmica) e outras.
2 Espetáculo de narração oral, com estreia em 1995, com a direção de cena da atriz e diretora Cida Falabella, tendo
como roteiro a narração de textos dos autores: Marina Colasanti, Mário Quintana, Clarice Lispector, Aníbal Ma-
chado, Vilma Guimarães Rosa e João Guimarães Rosa.
Estruturas Conviviais e Infância 175
3 Jorge Dubatti (Buenos Aires, 1963) é crítico, historiador e professor especializado em teatro pela Universidade de
Buenos Aires.
4 Giorgio Agamben (Roma, 1942) ensina filosofia na Universidade de Verona.
5 Florence Dupont (Bayeux/França 1943-): latinista e helenista francesa, professora emérita de literatura latina na
Universidade de Paris-Diderot.
6 Adriana Cavarero (Bra/Itália, 1947): professora italiana de Filosofia e estudiosa do pensamento feminista.
176 Anais do XIII SevFale
maioria das vezes por uma Metafísica baseada em abstrações generalizadoras como Ho-
mem, Ser, etc., relegando para segundo plano as existências que são únicas e singulares.
Conforme veremos esse último é o caso do teatro, na visão de Dubatti.
Em sua investigação, o autor apresenta-nos o teatro-acontecimento como uma
estrutura tri-partida, formada por três elementos intimamente ligados entre si. Tal divi-
são é utilizada a título de recurso didático, para guiar a nossa compreensão. Na verdade,
o que podemos fazer é buscar compreender as relações lógicas estabelecidas entre eles,
pois cada um dos elementos, tomado como sub-acontecimento, não pode existir em
separado: o segundo depende do primeiro e o terceiro, dos dois anteriores. Porém – e
é bom que não percamos isso de vista – cada um dos elementos, enquanto sub-aconte-
cimento também opera no mesmo registro do acontecimento como um todo, ou seja,
como devir.
O primeiro dos elementos que compõe o acontecimento teatral é o sub-acon-
tecimento do convívio. Ele é a reunião de dois ou mais indivíduos em estreita conexão
sensorial, numa mesma encruzilhada espaço-temporal, sem intermediação tecnológica.
O segundo elemento é o sub-acontecimento da poíesis. O autor se vale aqui do sentido
aristotélico do termo: a poíesis inclui tanto a ação de criar como aquilo que é criado. Essa
criação se dá através de ações corporais dos indivíduos em convívio. A ação de receber
e perceber a poíesis, por sua vez, compõe o terceiro sub-acontecimento denominado
expectação.
A poíesis é o elemento que define ontologicamente o acontecimento como arte
. No caso do teatro, teremos: a poíesis produtiva, que é criada a partir da ação dos ar-
tistas; a poíesis expectatorial ou receptora, criada pelos espectadores; e ainda, a poíe-
sis convivial, que corresponde à multiplicação de ambas, criada em convívio (DUBATTI,
2014, p.44-45).
Esses três elementos – convívio, poíesis e expectação – são fundamentais na te-
oria dubattiana para a compreensão do acontecimento teatral e, ao adentrar em cada
um deles, o autor vai compondo a sua teoria ontológica do teatro. Uma das definições
(chamada lógico-genética) elaborada por Dubatti a partir desses elementos apresenta o
teatro como “a produção e expectação de acontecimentos poéticos corporais (físicos e
físico-verbais) em convívio”7 (DUBATTI, 2007, p. 36) (tradução nossa).
Dirigindo a nossa atenção para a manifestação artística da narração oral, en-
tendemos que aí os acontecimentos poéticos corporais concentram-se principalmente
nas ações físico-verbais dos atores/narradores orais. Isso se liga diretamente ao fato
de que, na narração oral, a palavra oralizada quer ser a protagonista da cena. Para que
isso aconteça, principalmente ao se tratar da narração oral de texto literário, os ges-
tos e ações corporais que acompanham o fluxo da fala são menores e mais contidos:
a maior concentração se dá nas ações físico verbais, ou seja, nas ações voltadas para
a dicção do texto.
CONVÍVIO E TEATRALIDADE
8 “...imperio de lo efímero, de una experiencia histórica que sucede e inmediatamente se desvanece, para luego
tornarse irrecuperable.”
9 “...cultura viviente desterritorializada por intermediación tecnológica.”
178 Anais do XIII SevFale
Dubatti aponta para o fato de que, tão logo a instituição do teatro aparece, ela
passa a fazer uso da teatralidade a seu favor. Nesse âmbito, o autor aponta duas instân-
cias desse conceito (2007, p.37): a literatura impressa (e, portanto, não integrada ao
acontecimento do convívio) corresponde à teatralidade em potência; a literatura em
cena (no momento em que ganha o corpo do artista) corresponde à teatralidade em
ato. Assim, pode-se acrescentar que, em cena, a palavra é sempre corporal. Ela entra
em cena através de ações físicas e/ou ações físico-verbais do ator. Aliás, o emprego de
“ator” aqui abrange também as outras categorias de artistas das artes conviviais como o
bailarino, o mímico, o narrador oral, etc.
10 Dubatti inclui aqui o técnico que, quando existe, dá suporte para o ator, participando e intervindo diretamente na
criação da poíesis (DUBATTI, 2007, p.50).
Estruturas Conviviais e Infância 179
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Sabemos que o convívio é tão antigo como o próprio homem e está em toda
parte, disseminado por toda cultura vivente. Ele nasce no momento em que se dá o pri-
meiro contato entre dois seres humanos. Dessa forma, pode-se dizer que ele nos remete
não só à nossa origem na infância, como às origens míticas da própria humanidade.
Para Dubatti, o convívio poético é aquele que instaura uma realidade nova, que traz um “es-
pessor” de acontecimento, que realiza um salto ontológico com relação ao cotidiano e isso o
diferencia dos tantos outros convívios existentes.
Dizer que no convívio poético há mais experiência que linguagem, é dizer que,
quando nos incluímos num espetáculo teatral ou de narração oral de literatura, por
exemplo, seja como atores ou espectadores, criamos e “expectamos” poesia, bem além
do que conseguimos falar sobre isso.
Uma vez que se constituem como condição do humano, podemos reconhecer nas
estruturas conviviais uma relação com o aspecto da filogênese (primeiro convívio com
a mãe na gravidez) e com o da ontogênese (primeiro convívio no mito de Adão e Eva).
Nesse sentido, o convívio nos remete à infância do homem e, numa perspectiva mais
ampla, à infância da humanidade.
A instituição do teatro, tão logo surge, se apropria da teatralidade para dar-lhe
um uso específico. Toda a rede e política do olhar passa agora a servir à causa do acon-
tecimento teatral. Para que haja teatro, é fundamental que possamos compartilhar –
enquanto artistas ou espectadores – de um regime de comunhão, de um “beber juntos”
em proximidade física, em estreita conexão sensorial. O convívio no teatro (e nas outras
artes cênicas conviviais) sendo poiético, deixa de ser um acontecimento qualquer, do co-
tidiano e passa a ser um acontecimento relevante. E é esse relevante que caracteriza o
salto ontológico do convívio. O convívio passa a ser poiético e realiza, ao mesmo tempo
outro salto, dessa vez duplo, na medida em que reenvia-nos para a nossa infância en-
quanto humanos – lá, onde encontramo-nos mergulhados no mistério da experiência.
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamen-
to de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001
REFERÊNCIAS
DUBATTI, Jorge. Filosofia del Teatro III: El Teatro de los Muertos Buenos Aires: Atuel,
2014, 230p.
DUBATTI, Jorge. Teatro-Matriz, Teatro Liminal: Estudios de Filosofía del teatro y Poética
Comparada. Buenos Aires: Atuel, 2016, 189p.
DUPONT, Florence. The Invention of the Literature: From Greek Intoxication to the Latin
Book. Translated by Janet Lloyd. Baltimore, Maryland: The Johns Hopkins University
Press, 1999. 287p.
HISTORICIDADE E FICÇÃO NA
LITERATURA INFANTOJUVENIL: UMA
PERSPECTIVA AFRO-BRASILEIRA
Resumo: Este trabalho tem como intuito analisar obras literárias destinadas ao público infanto-
juvenil cujas temáticas relacionam-se a questões étnico-raciais.Consiste no estudo de oito obras
que têm como principal característicaa construção da ficção a partir da historicidade, na qual
a narrativa se desenvolve através do protagonismo negro infantil com o intuitode reconstruir
a História do povo negro através de um ponto de vista afrodescendente.Discorrer-se-á sobre
como as narrativas são constituídas, de que forma os elementos historiográficos são apresen-
tados e como podem colaborar para a formação de um público crítico e conhecedor da própria
história. Os pressupostos teóricos permeiam pelos campos da Literatura, História e Educação e
contribuem para uma análise crítica sobre o ensino de literatura e como ocorre nas escolas, pois
é perceptível a necessidade de uma abordagem de desconstrução de conceitos no que se refere
à cultura negra, principalmente nos segmentos da Educação Básica.Mesmo após a inserção da
lei 10.639/03,o ensino sobre diversidade ocorre de forma tímida e questionável. No que tange
o campo da literatura há quase uma inexistência de autores afro-brasileiros nos planos de aulas,
tornando-se necessário a apresentação de materiais que possibilitem a condução de um ensino
que valorize a diversidade.
INTRODUÇÃO:
184 Anais do XIII SevFale
que, há muito, muito tempo, foi um quilombo quase tão forte e bonito quanto
foi Palmares, o grande quilombo da Serra da Barriga, no interior de Alagoas.
(MACEDO; FAUSTINO. 2000, p. 09).
malungo será encontrar esse objeto e aproveita para apresentar aos leitores a origem da
capoeira.Enquanto se aventura para encontrar o berimbau perdido de Atino.
Avançando um pouco parao século XIX a quarta aventura de Luana: asas da liber-
dade (2010), ocorre no período em que se iniciavam as manifestações sobre o processo
de libertação dos povos escravizados no Brasil. E ela acaba conhecendo personalidades
abolicionistas como Luiz Gama, Castro Alves, Machado de Assis, André Rebouças, José
do Patrocínio. Ao se encontrar com Luiz Gama, Luanaacompanha como foi a vida dele,
inclusive a forma como lutou para libertar mais de quinhentos escravos trabalhando
como rábula. Nessa história tem-se uma série de fatos históricos que ainda são pouco
conhecidos e citados como,por exemplo, a Revolta dos Malês, levante liderado por es-
cravos muçulmanos na cidade de Salvador em 1835. Uma observação muito válida é a
referência a Machado de Assis escritor que com sua ironia bem delineada teve uma visão
crítica sobre a forma como a população negra daquela época vivia e como a burguesia
tratava a questão da escravidão. Esse detalhe em uma obra infantojuvenil torna-se um
ponto inicial para falar sobre o autor que, com seu olhar crítico sobre várias temáticas
sociais, inclusive a escravidão, é uma boa referência para trabalhar a variedade de gêne-
ros textuais e literários.
Agora, no cenário africano, destaca-seYnari, uma menina que possui cinco tran-
ças eque gosta de aprender as palavras do mundo. Ynari: a menina das cinco tranças
(2010) é uma das obras que compõem a lista de livros infantis do escritor angolano Ond-
jaki, cuja narrativa é marcada por ocorrer na voz e na visão de uma criança, chamando
a atenção para um protagonismo infantil na literatura produzida em Angola. A análise
dessa obra se dá pelo fato de ter uma atenção peculiar à tradição oral e também porque
obras africanas ainda estão praticamente ausentes dos planos escolares.
Passeando pelas aldeias próximas ao seu povoado, a protagonista conta histórias
envolvendo o modo de convivência entre as tribos, em que é possível perceber um jogo
de acontecimentos para falar sobre a guerra e a paz. Ynari vive em uma aldeia dotada
das mais variadas tradições. Ao visitar a aldeia do homem pequenino (assim ele é deno-
minado por toda a obra), Ynari fica sabendo que as pessoas dali estavam em guerra com
outras aldeias. A dona das cinco tranças conhece o povoado e lhe são apresentadas duas
pessoas muito especiais: o velho da barba comprida, que inventava as palavras e a velha
da trança branca, que destruía palavras. Dotada de uma linguagem poética a história
Historicidade e Ficção na Literatura Infantojuvenil: uma perspectiva afro-brasileira 189
conduz os leitores a refletirem sobre os danos de uma guerra através de uma análise
semântica das palavras.
É interessante pensar na existência de uma escrita que envolve também ques-
tões políticas em um ambiente onde se identifica o espaço poético e o da ficção, e uma
linguagem cheia de lirismo que proporcionaum diálogo passível de considerações sobre
a imagem da criança em um contexto de guerra. Os fatores históricos são recorrentes e
o que torna mais uma oportunidade para discutir as diferenças e as semelhanças sobre
a historicidade das duas culturas, ou seja, a brasileira e angolana.
Nana & Nilo são frutos de um projeto idealizado pelo filósofo, professor e escritor
Renato Noguera. Nana e Nilo são dois irmãos gêmeos que protagonizam duas séries de
aventuras que exaltam ludicidade e modos positivos de convivência buscando conside-
rações e respostas para as interrogações que estão relacionadasao mundo infantil. Na
companhia de Gino - o pássaro verde – e Mulemba – a árvore falante –o casal de gême-
os passeia por ramos da História em que os personagens também, assim como Luana,
constituem uma dinâmica de volta a um passado milenar participando de aventuras no
Egito e em Burundi.
Em Nana & Nilo: aprendendo a dividir (2012), os protagonistas passam por uma
situação em que vão refletir sobre a importância de dividir algo com o próximo. Para
aprenderem a dividir, Mulemba convida as crianças a fazerem um passeio Kemet (Antigo
Egito), em uma época de cinco mil anos atrás. Lá a turma encontra crianças brincando
de cabo de guerra, jogando mankala entre outras brincadeiras e percebem que as ativi-
dades ocorrem de forma interativa.
Em Nana & Nilo: que jogo é esse (2012) Nilo estava jogando com os amigos e vol-
ta cabisbaixo para casa por ter brigado com um deles por causa de uma brincadeira e por
perceber que, de acordo com os jogos que conhecia, havia sempre alguém que perdia.
É consolado por Gino e Nana que vão até Mulemba contar o que aconteceu. Mulemba,
então, resolve levá-los a um lugar onde as crianças jogavam e não existiam perdedores.
Nana, Nilo e Gino sobem nos galhos de Mulemba e seguem para a comunidade de Ba-
twa. Uma das crianças, Batu, traz um saco e propõe uma corrida. Ele chama outras crian-
ças e Nana e Nilo se juntam a eles para participarem da brincadeira e percebem que é
possível brincar sem ter perdedores. Outro aspecto interessante de ser observado é a fi-
gura da personagem Mulemba, que é a representação de um baobá, árvore considerada
sagrada em várias tradições africanas por estar relacionada ao conhecimento, à memó-
190 Anais do XIII SevFale
ria e à longevidade. É ela quem conduz o casal de gêmeos ao passado, tornando-se uma
figura responsável por ajudar na reconstrução de uma narrativa de caráter historiográfi-
co ressaltando uma visão sobre a filosofia africana.Ao idealizar a narrativa, destacando
o Antigo Egito como um lugar habitado por negros, Renato Noguera desconstrói o mito
que prevalece de um Egito apresentando uma África sob uma perspectiva construtivista.
Esse “direito de imaginar” o passado como convém é uma estratégia a qual recor-
rem muitos autores que privilegiam a discursividade histórica para construírem a suas
narrativas questionando, salientando ou mesmo criticando as versões que vigoraram.
Nãose pode afirmar se há uma intenção de enfatizar uma veracidade; por outro lado,
não se pode negar a necessidade de construir pensamentos críticos e refletir sobre como
foi a participação do negro nas Histórias, inclusive no percurso historiográfico brasileiro.
Hayden White, em Meta-História: a imaginação histórica do século XIX (2008)
analisaa estrutura do trabalho e da imaginação histórica afirmando, logo no prefácio,
ser uma estrutura verbal que ocorre na forma de um discurso narrativo em prosa. É o
discurso que prevalece nas oito obras apresentadas. Ao empregar terminologias para ca-
racterizar os níveis aos quais se desdobram o relato histórico, White (2008) identifica as
dimensões epistemológicas, estéticas e morais. Aplicando as concepções do historiador
norte-americano, podemos situá-las da seguinte forma nas narrativas infanto-juvenis:
a dimensão epistemológica se dá em razão de conhecer e refletir sobre o que envolve
a cultura africana e brasileira; a dimensão estética pensando na linguagem, no discurso
ena composição dos personagens; e a dimensão moral se dá pelo processo de reconhe-
cimento, de conscientização, seja de pertencimento do negro na própria história. Ao
explanar sobre os objetivos do historiador, White afirma:
Diz-se às vezes que o objetivo do historiador é explicar o passado através do
‘achado’, da ‘identificação’ ou ‘descoberta’ das ‘estórias’ que jazem enterra-
das nas crônicas; e que a diferença entre ‘história’ e ‘ficção’ reside no fato
de que o historiador acha suas estórias, ao passo que o ficcionista inventa as
suas. (WHITE, 2008. p. 22).
cou enfatizar a cultura negra. Em razão de muitas informações ainda estarem omitidas
ou mal contadas sobre a participação do negro na História do Brasil, percebe-se o des-
conhecimento em relação amuitas personalidades de relevância que ainda são pouco
citadas nos livros escolares. Ficcionalizar colocando esses sujeitos “desconhecidos” é
também uma maneira que os autores encontraram para contribuir didática e epistemo-
logicamente para que informações históricas sejam ensinadas e compartilhadas.
Por conseguinte, as análises presentes neste trabalhoseguem como uma suges-
tão para que os professores e os demais interessados pela temática possam complemen-
tar as suas listas literárias de modo a ser uma alternativa que englobe a lei 10.639/03,
oferecendo-se produções em que o negro não é moldado como subalterno, como es-
cravo, pobre ou desfavorecido. Não que tais fatores não mereçam ser abordados, mas
tem-se um vasto número de textos sobre o assunto e a tradição canônica se incumbiu
de retratar o negro como tal. É preciso insistir nessas mudanças e buscar outras possibi-
lidades de leituras em que o negro é o autor,o protagonista, o narrador, o contador de
história; apresentar outros pontos de vista sobre a sua participação no processo cultural
brasileiro mantendo um diálogo crítico com os que os livros didáticos ainda estão ofe-
recendo. Consequentemente, a necessidade em abordar como se dá a relação entre a
historicidade e a ficção nas narrativas com temática afro-brasileira destinada ao público
infantojuvenil é, sem dúvidas, uma boa alternativa também para promover a prática de
uma leitura que preza não só conhecimento literário e historiográfico, mas também a va-
lorização da diversidade cultural nos segmentos do Ensino Básico, tornando-se essencial
para o desenvolvimento crítico da nova geração de leitores que está por vir.
REFERÊNCIAS
BENJAMIN, Walter. “O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”. In: Magia
e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7ª ed. São Paulo:
Brasiliense, 1994.
LIMA, Heloisa Pires. Histórias da Preta. Ilustrações: Laurabeatriz. São Paulo: Companhia
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MACEDO, Aroldo; FAUSTINO, Oswaldo. Luana: asas da liberdade. Ilustrações: Mig/
Megatério. São Paulo: FTD, 2010.
Historicidade e Ficção na Literatura Infantojuvenil: uma perspectiva afro-brasileira 193
____. Luana: capoeira e liberdade. Ilustrações: Mig. São Paulo: FTD, 2007.
____. Luana: as sementes de Zumbi. Ilustrações: Mingo de Souza. São Paulo: FTD, 2007.
____. Luana: a menina que viu o Brasil neném. Ilustrações: Arthur Garcia. São Paulo:
FTD, 2000.
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Janeiro: Hexis, 2012.
_____. Nana & Nilo: aprendendo a dividir. Ilustrações: Sandro Lopes. Rio de Janeiro:
Hexis, 2012.
ONDJAKI. Ynari: a menina de cinco tranças. Ilustrações: Joana Lira. São Paulo: Companhia
das Letrinhas, 2010.
WHITE, Hayden. Meta-História: a imaginação histórica do século XIX. 2 ed. São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo, 2008.
Afrobetizar para descolonizar: contribuições do
espetáculo Áfricas, do Bando de Teatro Olodum,
para a formação cultural da criança negra
Resumo: O racismo reproduzido em todas as esferas de nossa sociedade age, sobretudo, por meio
da disseminação de imaginários que colocam em posição subalterna a cultura, a história, a memó-
ria, as identidades do povo negro. O discurso opressor - valendo-se ora de estereótipos vulgares,
ora de desqualificações - inviabiliza tanto a compreensão dessas tradições pelos sujeitos brancos,
quanto a percepção pelos afrodescendentes da riqueza de sua própria cultura ancestral. O com-
bate ao racismo estrutural passa pela educação emancipadora da população, formação crítica que
deve ser promovida desde a infância visando assegurar o pleno desenvolvimento do ser enquanto
indivíduo e cidadão. O espetáculo Áfricas, produzido pelo Bando de Teatro Olodum no ano de 2007
e direcionado ao público infanto-juvenil, pode ser um aliado na luta contra o racismo inclusive
quando abordado em sala de aula (por exemplo, por meio do estudo da dramaturgia), pois o cole-
tivo realiza nesse trabalho, a um só tempo, a desconstrução do discurso hegemônico e a edificação
de um contradiscurso de valorização das tradições africanas. Nesse sentido, este artigo pretende
analisar brevemente a peça citada com o objetivo de avaliar o modo como a cultura negra é rein-
terpretada pelo grupo soteropolitano, bem como o seu potencial didático.
Simpósio: Literatura.
Onipa ye de
(Ninguém é uma ilha)
1 Em 10 de março de 2008, o mesmo presidente alterou a lei (que passou a vigorar pelo número 11.645)
para incluir nela o estudo da cultura e da história indígena no Currículo da educação básica nacional.
Afrobetizar para descolonizar 197
pronta para isso, mas creio ser possível afirmar, baseada em Nilma Gomes (2003, p.
77), que o educador deve ter uma postura crítica frente ao modo como a história e a
cultura negra são abordadas pelo discurso hegemônico, assumindo um compromis-
so político/ético de enfrentamento do racismo; e, complementarmente, priorizar os
saberes intelectuais e artísticos promovidos pela própria comunidade negra. Embora
pouco conhecidas, porque silenciadas, existe uma gama de obras, vinculadas as mais
diferentes áreas do conhecimento, voltadas para a formação cultural, social, estéti-
ca, econômica da população afrodescendente produzidas por intelectuais e artistas
negros. A título de exemplificação, somente no site Literafro, alimentado pelo NEIA
(Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade) / FALE / UFMG e destinado a dar
visibilidade à produção negra brasileira, o leitor encontra a biografia de 128 intelectu-
ais negros de destaque na cena nacional. Em termos de pesquisa acadêmica e projetos
sociais voltados para a educação formal e não-formal, posso citar a tese intitulada
Pretagogia: construindo um referencial teórico-metodológico de matriz africana para
a formação de professores/as, de Geranilde Costa e Silva, centrada em uma prática
educativa baseada na cosmovisão africana; a atuação da pedagoga Nilma Lino Gomes
que desempenha importante papel na formação de professores junto a FAE/UFMG e
na coordenação de projetos em antropologia urbana; o projeto Afrobetizar, desenvol-
vido pela psicóloga Vanessa Andrade no Morro do Cantagalo, direcionado às crianças
pretas da periferia do Rio de Janeiro.
Assim como não faltam exemplos de metodologias inovadoras voltadas à educa-
ção plural e cidadã, de modo a contemplar a diversidade étnico-racial do alunado brasi-
leiro, também não faltam obras de arte capazes de expandir o horizonte estético desse
público. O espetáculo Áfricas, do grupo soteropolitano Bando de Teatro Olodum, é uma
prova disso. O coletivo em questão já tem uma longa trajetória na cena baiana. Fundado
em 1990, o Bando vem aprimorando um complexo projeto estético-político desenvolvi-
do por artistas negros engajados na luta antirracismo. São, até o momento, 25 espetá-
culos criados por meio de processo colaborativo, abordando temas caros à comunidade
negra tais como a história de luta, as vivências, as formas de violência sofrida por essa
parcela da população. Além de denunciar o racismo e representar o cotidiano e a cultura
dessa comunidade em linguagens artísticas diversas (teatro, dança, filmes, séries), o gru-
po realiza ações de fomento cultural às artes negras organizando festivais, congressos,
publicações, projetos de formação. Com Áfricas, peça produzida em 2007, o coletivo
apostou em um novo caminho: dialogar com um público infanto-juvenil e construir uma
abordagem lúdica para representar um continente rico de tradições e valores. Verdade
seja dita, essa não foi a primeira vez em que o grupo se aproximou do universo infantil.
Segundo Marcos Uzel (2003), em suas primeiras produções, o coletivo contou no palco
Afrobetizar para descolonizar 199
com a banda mirim do Olodum para executar ao vivo as canções e a sonoplastia dos es-
petáculos. Outra relação interessante do Bando com as crianças se deu durante a realiza-
ção do projeto social Erê (entre 1991 e 1992), desenvolvido em parceria com entidades
não governamentais da cidade, cujo objetivo era propiciar educação artística a crianças
em situação de vulnerabilidade. Afora essas interações, espetáculos como Essa é nossa
praia, Ó paí, Ó! e Erê para toda vida abordam as experiências da criança negra, mas pelo
viés da violência e, portanto, tendo como espectador o público adulto. Áfricas, por sua
vez, segue outra diretriz, pois busca cultivar com leveza aspectos positivos da identidade
negra por meio da valorização do legado deixado pelos povos africanos.
O enredo da peça tem como mote “um trabalho sobre afro-descendência”
(BANDO, 2007, p. 5) solicitado pela professora do colégio frequentado pelas persona-
gens Paulinha/Lica e Rodrigo. Buscando conhecer mais sobre a própria herança para
realizar a atividade escolar, os pequenos pedem ajuda ao angolano e feirante Muzen-
za. Este, além de informar sobre algumas peculiaridades das culturas africanas, ofe-
rece às crianças um instrumento de percussão mágico, o tambor falante, que, ao ser
tocado, tem o poder de trazer à vida (e ao palco) contos tradicionais e moralizantes.
Rodrigo invoca as personagens mitológicas tocando o tambor e recitando a história de
um menino nigeriano, semelhante a ele, que encontra um instrumento próximo a um
Baobá e convida dançarinos e dançarinas para levantarem a terra vermelha, fazendo-a
rodopiar até o céu. O meta-discurso da personagem é um modo de preparar a cena, o
terreno, como quem começa a formar a roda para a contação de histórias. Em seguida,
surge um contador (Griot) e apresenta a história do nascimento do Homem segundo
a mitologia africana, um preambulo genealógico que parece sinalizar e anunciar a ori-
gem comum dos três contos a serem narrados e dramatizados em cena, extraídos de
diferentes nações africanas.
O primeiro conto é proveniente do Senegal, do povo uolof, e narra com humor
a história do carismático Abdu que fracassa ao tentar enganar toda a tribo dizendo ter
matado um crocodilo que ele, na verdade, encontrou morto pelo caminho. O segundo
provém do Chade, do povo sara, e fala sobre a importância de seguir as tradições, ten-
do como protagonistas as irmãs Yassedi e Suniguê e um feiticeiro impiedoso. A última
narrativa traz para a cena a história do orixá Oxumarê, senhor dos céus, quando se ma-
nifesta como arco-íris, e o senhor da terra, quando se transforma em serpente. Todas
as histórias narradas no espetáculo apresentam o homem interligado à natureza. A ex-
periência promovida pela contação em cena reforça também a capacidade da ficção de
transportar o ouvinte para outros territórios através da imaginação. Assim as barreiras
são diluídas, permitindo que todos os negros descendentes de África tenham a chance
de se reencontrarem nesse espaço de comunhão e fraternidade.
200 Anais do XIII SevFale
É igualmente necessário insistir que o estudo da cultura negra passe a fazer parte
do cotidiano escolar durante todo o ano letivo, dialogando com as diferentes disciplinas
do currículo, posto que a construção da identidade racial é processual. Os alunos não
podem esperar pelo mês de novembro para, enfim, encontrarem um ambiente propício
à reflexão sobre o que é ser negro no Brasil, muito menos aguardar em silêncio e pacien-
temente o período mais “conveniente” estipulado pela escola para aborda temas como
o racismo quando, na realidade diária, toda a estrutura social age no sentido de invisibi-
lizar e criminalizar as identidades negras.
Para além de seu importante papel na formação cultural e estética da criança ne-
gra na sala de espetáculo, acredito que a peça do Bando de Teatro Olodum tem grande
potencial como material didático no ensino formal. O caderno do espetáculo publicado
pelo Bando em parceria com a Fundação Cultural Palmares e o Ministério da Cultura,
além de trazer o texto dramático, tem uma concepção visual apropriada para o público
infantil, contendo ilustrações, jogos e um mapa do continente africano. Ele traz também
a bibliografia pesquisada pelo grupo para a criação do espetáculo que serve de guia para
o profissional de educação. De posse do livro, o professor pode, por exemplo, desenvol-
ver atividades com os alunos de dramatização dos contos, discussão sobre o conteúdo
abordado, criação de novas histórias. Vale dizer também que a gravação do espetácu-
lo está disponível na íntegra no canal do grupo no site Youtube, sendo portanto mais
um material de acesso fácil tanto aos educadores quanto aos educandos. Para finalizar,
transcrevo a cena final do espetáculo Áfricas, na qual o coletivo soteropolitano transmi-
te a sua mensagem política de resistência ao utilizar a história de Omolu como metáfora
das identidades negras reelaboradas na diáspora:
NARRADORA: Os Yoruba acreditam que as histórias se repetem e o que está
acontecendo com você aconteceu com alguém no passado. Por isso, gostam de
colecionar histórias e eles as trouxeram para cá para ajudar seus filhos a enten-
derem as suas vidas. E eu gostaria de contar uma última história. A história de
Omolu, o filho feio de Nanã. Ele vivia longe das cidades, escondido nos matos,
202 Anais do XIII SevFale
pois apesar de ter se tornado um grande médico, tinha vergonha de seu corpo
coberto de feridas. Ogum, que era seu amigo de infância, foi convidá-lo para
uma grande festa na aldeia onde nasceram. Omolu chega e se acomoda no
canto do terreiro. No melhor da festa, Iansã, a guerreira mágica, muito conhe-
cida pelos seus encantamentos, resolve dançar com o convidado observador, e
puxa-o para o meio da roda. Omolu tenta fugir, mas não consegue. Nesse exato
momento, Iansã começa a dançar e levantar uma grande ventania que suspen-
de todas as palhas que escondiam o corpo de Omolu. Ele se desespera, imagina
que suas feridas vão ficar expostas. Mas para a surpresa de todos as suas feridas
se transformaram em pequenas flores, que logo viraram pipocas e se espalha-
ram por todo o terreiro, revelando o corpo de um lindo guerreiro. O nosso povo
é como Omolu, o guerreiro capturado na África, expulso pela doença do tráfico
negreiro, apartado dos seus. Aí vem Ogum! E Ogum o que é? É movimento. É
a política. Ele vem pra dizer: vamos em frente! Venha e dispute o seu lugar na
sociedade. Como Omolu nosso povo vem relutante, vem coberto, vem cheio de
marcas, vem bravio e ameaçador. (BANDO, 2007, p. 12-13)
REFERÊNCIAS
BANDO de Teatro Olodum; CARELLI, Chica. Áfricas. Salvador, 2007. Caderno do espetáculo.
BRASIL. Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro
de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no
currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática História e Cultura
Afro-Brasileira, e dá outras providências. Brasília, DF, jan. 2003. Disponível em: <http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/2003/L10.639.htm> Acesso em: 28 mai. 2018
BRASIL. Lei nº 11.645, de 10 de março de 2008. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro
de 1996, modificada pela Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as
diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino
a obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena. Brasília, DF,
mar. 2003. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2008/
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GOMES, Nilma Lino. Cultura negra e educação. Revista Brasileira de Educação, Rio de
Janeiro, n.23, p.75-85, 2003.
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UZEL, Marcos. O teatro do Bando: negro, baiano, popular. Salvador: P555 Edições, 2003.
Afrobetizar para descolonizar 203
SITES CONSULTADOS
Resumo: A proposta deste trabalho é analisar a obra infantil Mandela, o africano de todas as co-
res (2010), de Alain Serres, sob a perspectiva dos paratextos editoriais, conforme Gérard Genette
(2009), buscando compreender de que modo os muitos paratextos utilizados na construção des-
sa obra constroem por si só uma narrativa biográfica do personagem negro. Acreditamos que os
paratextos editoriais fazem parte do conjunto de escolhas que a cadeia editorial de um livro têm
de tomar e que, portanto, embora esses vestígios passem, muitas vezes, despercebidos, eles
também são possíveis construtores de sentido.
cursos que ainda não consideram a literatura infantil como um ramo digno das grandes
literaturas, ou como possibilidade de literatura canônica e legitimada. Entretanto, esse
caráter pedagógico não é estático e, à medida que os recursos tecnológicos e a industria-
lização crescem, os livros infantis tornam-se um campo aberto para a experimentação.
Logo, a dimensão material do livro, qual seja seu suporte, que foi por muito tempo
ignorada pelos estudos sobre literatura, é tida pelo mercado como possibilidade, levando ao
que Gilles Lipovetsky e Jean Serroy (2015) chama de “estetização do consumo”. Os livros in-
fantis se tornam, então, um campo sujeito às mais variadas maneiras de produção artística.
Com a ascensão dessa perspectiva, cresce também a figura do ilustrador e, posteriormente,
de toda a cadeia de produção editorial que, agora, é tida como parte indispensável de produ-
ção da obra, descentralizando a figura do autor, antes tido como o criador do livro.
É no século XX que os mecanismos visuais consolidam seu lugar de destaque na
concepção dos livros, abrindo espaço para que a edição utilize da experimentação nos
mais variados aspectos da materialidade do objeto. Assim, os recursos gráficos e edito-
riais começam a ser utilizados em um sentido subjetivo, como costura de texto e ima-
gem, e em um sentido mercadológico, como mais uma camada passível de intervenção
que é explorada com o uso das mais variadas técnicas.
Atualmente, a preocupação com os recursos gráficos e editoriais do livro tem sido
o “carro chefe” de diversas editoras. Trata-se de uma forma de fazer e pensar o livro que
se dissemina fazendo com que investir na materialidade, bem como nos aspectos gráfi-
cos e ilustração sejam mecanismos que tornam a obra atraente e rentável, dinamizan-
do a narrativa. Hoje tais questões são premiadas no campo da literatura infantil, como
acontece com o Prêmio Jabuti de melhor projeto gráfico, ou o prêmio de melhor projeto
editorial, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil. A consciência de que todas as
escolhas editoriais contribuem para a construção de sentido de um texto foi preponde-
rante para que isso acontecesse.
No fazer do livro muitas operações estão envolvidas. A partir do autor que pro-
duz o texto, muitas outras vozes ecoam na produção da materialidade que abriga o tex-
to: são revisores, ilustradores, diagramadores, mediadores, editores, etc., que, juntos,
viabilizam o objeto livro. A todas essas etapas que constituem tal materialidade damos
o nome de projeto gráfico-editorial, elementos presentes na obra que ultrapassam a
instância textual. Dentro do projeto gráfico-editorial de um livro está aquilo que chama-
mos, segundo Gérard Genette (2009) de paratextos editoriais.
A obra literária consiste em um texto, exaustiva ou essencialmente, em um
texto (...) Contudo, esse texto raramente se apresenta em estado nu, sem o
reforço e o acompanhamento de certo número de produções, verbais ou não,
O Que Nos Conta a Materialidade dos Livros? 207
Dentre todos esses peritextos encontram-se informações que também são tidas
como paratextos editoriais, ainda que algumas sejam de natureza obrigatória, tais como:
nome do autor; nome do ilustrador; selo da editora; ficha catalográfica; biografia do au-
tor; biografia do editor, anexos fotográficos, mapas, etc. Dentre essas outras possibilida-
des, gostaríamos de dar especial atenção ao release e às notas:
VI. Release: texto encontrado na quarta capa, era inicialmente um epitexto,
externo ao objeto livro, criado com o objetivo de ser encaminhado aos
folhetins no estilo de propaganda, ou seja, uma pré-apresentação da obra,
composta por dizeres elogiosos e críticas bem-sucedidas. Mantem na atu-
alidade seu caráter de apresentação; entretanto, passou a configurar o
espaço material do objeto livro.
VII. Notas: são utilizadas em textos cuja ficcionalidade, segundo Genette (2009),
é muito impura, ou seja, textos que necessitam de aparato para comprova-
ção de que se trata de um discurso verídico, tal qual é o caso das biografias,
muito marcadas por referências históricas e/ou reflexões filosóficas.
Posto os aspectos teóricos principais que norteiam nossa proposta, faz-se necessá-
rio apresentarmos nosso objeto de análise: Mandela, o africano de todas as cores (2014),
livro escrito por Alain Serres, ilustrado por Zaü e publicado pela editora Zahar. A escolha da
obra analisada baseou-se, em um primeiro momento, em dois critérios: tratar-se de uma
obra infantil e ilustrada. Tais critérios explicam-se pelas colocações aqui já citadas, dado
o caráter de experimentação do universo de produção de livros infantis e a composição
de uma obra ilustrada, que permite que aspectos como os paratextos editoriais que com-
põem o conjunto gráfico-editorial de um livro sejam colocados ainda mais em evidência.
Com o objetivo de elucidar possíveis questionamentos, cabe aqui colocar que defi-
nimos a obra como infantil para alinhá-la à história da literatura infantil que abre nosso dis-
curso, tendo em vista que a obra é destinada às crianças. Todavia, a editora Zahar escolhida
O Que Nos Conta a Materialidade dos Livros? 209
para compor nosso corpus, em seu site, define a obra como infantojuvenil. Entendemos que
as histórias da literatura infantil e juvenil são distintas e acontecem em períodos históricos
diferentes e que para fins deste trabalho a definição que melhor nos acolheria é livro infantil.
Mandela, o africano de todas as cores constitui-se de uma narrativa biográfica
sobre o importante ícone negro Nelson Mandela. A obra foi traduzida e publicada pela
editora Zahar, por meio do selo Pequena Zahar. Como dito, é um livro ilustrado, o que,
segundo definição de Sophie Van der Linden, caracteriza
uma forma de expressão que traz uma interação de textos (que podem ser
subjacentes) e imagens (especialmente preponderantes) no âmbito de um
suporte, caracterizada por uma livre organização da página dupla, pela diver-
sidade de produções materiais e por um encadeamento fluído e coerente de
página por página (LINDEN, 2011, p. 87).
de livro ilustrado colocadas por Sophie Van Der Linden (2011). A cena, como veremos
adiante, retrata um importante momento da narrativa.
As ilustrações, aparentemente, são uma junção de técnicas manuais e digitais.
As cores apresentam-se como feitas manualmente utilizando tinta guache, enquanto as
linhas assemelham-se ao Nanquim, ambas as técnicas tratadas digitalmente, gerando,
por fim, uma imagem digital. O título corrobora com a ideia apresentada na ilustração
da capa quando reforça tratar-se da representação de Nelson Mandela, seguido da afir-
mativa: o africano de todas as cores. A interpretação de tratar-se de um homem que
governa para todas as pessoas é uma inferência possível.
Acerca disso, Gerárd Genette (2009) faz uma inquietante indagação que pode ser
aplicada à nossa análise: ora, como leríamos Mandela, o africano de todas as cores se
ele não se chamasse Mandela, o africano de todas as cores? Quais juízos de valor tece-
mos sobre a persona a partir dessa locução adjetiva? A obra antes mesmo de ser aberta
já nos informa que, possivelmente, trata-se de uma obra biográfica, que o personagem
principal é Nelson Mandela e que este é homem que governa para todos. Além da ilus-
tração e do título, há ainda, na capa, o selo da coleção e os nomes do autor e do ilustra-
dor, os quais aparecem um ao lado do outro, em mesma escolha tipográfica, de modo
que denotam uma posição de equilíbrio entre as duas instâncias constitutivas do livro.
obra certo requinte, visto que “dispensa recomendações” ou que a escolha editorial foi
feita por tratar-se de uma obra infantil voltada para um público de 8 a 12 anos, que, em-
bora traga aparato de apoio, foi direcionada para a escolha do leitor e não do mediador.
A única informação da quarta capa, fora o release, é a presença obrigatória do código
de barras.
Adiante, a 3a página, conhecida como anterrosto, traz apenas o nome “Mandela”
em tipografia idêntica à da capa. A presença sozinha do nome realça o apelo biográfico.
A 5° página reitera as informações da capa, acrescentando uma ilustração nova e, final-
mente, o nome do tradutor. Embora a obra tenha sido premiada pelo FNLIJ/2014, na ca-
tegoria Tradução/Adaptação/ Informativo, essa informação só aparece nesse momento.
As primeiras páginas da narrativa surgem após a 5a página. De imediato, notamos
que texto e imagem aparecem juntos ocupando o mesmo espaço. A narrativa, embora
biográfica, não é informativa. As referências históricas não adquirem um teor didático, já
que a história é contada por meio de texto e imagem de maneira sensível.
Após a sessão há a ficha catalográfica que na obra foi deslocada para o fim, além
das informações padrões, a ficha ainda traz os créditos de todas as imagens, bem como
o nome do editor responsável, uma informação importante já que ensejamos pensar a
obra como um projeto que envolve diferentes autores. Seguidamente, há uma brevíssi-
ma biografia de autor e ilustrador, não fazendo referência, neste momento, ao tradutor.
Por fim, a obra encerra-se com dados da impressão em página branca e ilustração espe-
cífica com os dizeres “Mandela livre”.
Por ser uma pesquisa ainda em andamento, não sabemos se a Pequena Zahar,
na data de aquisição dos direitos autorais da obra, adquiriu também seu projeto gráfico,
trazendo para o Brasil, além do texto, os paratextos que lhe dão suporte. Mas entende-
mos que independentemente do modo como isso foi feito, a intenção da editora era fa-
zer uma obra biográfica, de caráter informativo e didático, com uma belíssima tradução,
mas com um controle total das suas possíveis interpretações.
Nesse trabalho, procuramos mostrar que as escolhas editoriais de um livro não
são, de modo algum, arbitrárias, mas participam da totalidade estética das obras, con-
tribuindo para a construção das narrativas. Em nossa análise, essa teoria coloca-se em
evidência, com enfoque especial para a utilização dos paratextos que fazem mais que
corroborar com texto verbal, tecem por si só uma narrativa.
Cabe colocar também que, a partir de um ponto de vista crítico, notamos que os
paratextos editoriais da obra constroem o discurso de um líder político bondoso, cari-
doso, de todas as cores, de todos os povos, ideias que dão ao personagem de Nelson
Mandela um caráter universal, em detrimento de sua identidade negra. Ora, se Mandela
é o africano de todos, podemos supor um apagamento de sua identidade como líder de
África, que lutou, até mesmo de maneira violenta, para a liberdade dos seus. Ou seja,
podemos colocar que tais elementos paratextuais trazem a biografia de um líder univer-
sal, sempre em relação a outros povos e etnias (o que se pode notar especialmente nas
notas), e não particular, pertencente primeiro a nação africana.
O Que Nos Conta a Materialidade dos Livros? 215
REFERÊNCIAS
GENETTE, Gérard. Paratextos editoriais. Trad. Álvaro Faleiros. São Paulo: Ateliê Editorial,
2009.
LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. Literatura infantil brasileira: história e histórias.
São Paulo, Ática, 1988.
LINDEN, Sophie Van der. Para ler o livro ilustrado. São Paulo: Cosac Naify, 2011.
LIPOVETSKY, Gilles; SERROY, Jean. A estetização do mundo: viver na era do capitalismo
artista. São Paulo, Companhia das Letras, 2015.
SERRES, Alain. Mandela, o africano de todas as cores. Ilustração Zaü. Trad. André Telles.
Rio de Janeiro: Zahar, 2012.
Realização