Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Os Flamengos
na Colonização dos Açores*
José Guilherme Reis Leite
Encurtando razões, basta dizer que o novo senhor, o infante D. Fernando6, mudou
de estratégia e resolveu empenhar-se pessoalmente no povoamento das suas duas
ilhas, enviando para elas gente da sua confiança e recuperando o flamengo Bruges,
mas dirigindo ele a nova empresa. Caducava, assim, o contrato entre D. Henrique
e Jácome de Bruges, por este último não ter podido cumprir a sua parte.
D. Fernando, agora, enviava dirigentes e colonos, mas a nenhum daqueles ga-
rantia cargos, antes de eles provarem a sua eficiência. À Terceira, nessa década de
sessenta, chegaram os novos capitães, “sem o serem”, como os apelidou o cronista
Gaspar Frutuoso, quando escreveu a história desses dias nas Saudades da Terra, nos
finais do século XVI. Já, então, este era um período obscuro que o cronista teve
dificuldade em historiar, o que o levou a ser dubitativo e até contraditório.
Sobre dois desses capitães, sem o serem, que aportaram à Terceira não restam
dúvidas. Foram eles o nosso conhecido Jácome de Bruges que se fixou na Praia, e
Álvaro Martins Homem que se fixou em Angra, ambos chefes de grupos distintos
de colonos, todos portugueses e nenhum flamengo, como fica claro na crónica de
Frutuoso e nos estudos genealógicos sobre estes pioneiros.
Gaspar Frutuoso7, contudo, recolheu na tradição oral dos terceirenses mais
velhos, que teria havido um primeiro desses capitães que arribara à Ilha Terceira,
na minha interpretação, já no governo de D. Fernando, chamado Fernão Dulmo,
que era francês ou flamengo, e que com ele trouxera trinta colonos. Desembarcara
na zona norte da ilha, nas Quatro Ribeiras, mas em breve desistira de se fixar,
abandonando a ilha e os colonos.
Frei Diogo das Chagas8, no seu Espelho Cristalino, crónica escrita cerca de
1640, repetiu a notícia, sem pormenorizar que Ulm, como o chama por desconhecer
o nome próprio, se fizera acompanhar pelos trinta colonos; não tendo nenhum deles,
nem Frutuoso, nem Chagas, escrito que tais colonos fossem flamengos. Só no século
XIX, o historiador Francisco Ferreira Drumond, nos Anais da Ilha Terceira,9 mas
sobretudo nos Apontamentos Topográficos10, de forma pouco segura, até mesmo
bastante incerta, pôs a hipótese de, pelo menos, alguns desses colonos o serem.
Partindo desta mera hipótese, sem crítica e sem qualquer prova documental, os
divulgadores da história açoriana passaram a afirmar que Ulm se fizera acompanhar
por compatriotas flamengos, fixando na Terceira uma colónia desta nação.
Assim nascem as lendas!
Em boa verdade, pouco ou nada se sabe acerca deste flamengo que, tal como
Bruges, era um homem de negócios que, em certo momento, decidiu investir na
colonização açoriana, desistindo de seguida; mas que se fez acompanhar de portu-
6
“O Infante D. Fernando e os Açores – Uma Intervenção na Periferia”, LEITE (2012) pp. 53 a 72
7
FRUTUOSO (1963) p. 61
8
CHAGAS (2007) p. 217
9
DRUMOND (1981) pp. 9 a 17
10
DRUMOND (1990) pp. 283 a 289
60 Boletim do Instituto Histórico da Ilha Terceira
gueses, como se deduz dos estudos genealógicos, antigos e modernos11, acerca das
primeiras famílias fixadas na ilha, onde não existem, ao contrário do que acontece
no Faial, Pico e São Jorge, como veremos mais à frente, nomes de origem flamenga.
Nem mesmo nas cartas de dadas do século XV conhecidas para o norte da ilha,
onde Ulm se teria fixado, existe qualquer nome de origem flamenga, sendo, pelo
contrário, todos bem portugueses, exceto um genovês.12
No século XIX, Bernardino de Sena Freitas13 divulgou uma carta régia de D.
João II, datada de 24-7-1486, confirmando o contrato que João Afonso de Estreito,
escudeiro morador na Madeira, e Fernão Dulmo, cavaleiro da casa real e capitão
na Ilha Terceira, haviam feito entre si para irem, por mandado régio, descobrir a
ilha das Sete Cidades.
Assim, pela primeira vez, se dava alguma luz acerca desta personagem, que
não se afirmava flamengo, mas se apresentava como “cavaleiro e capitam na ilha
Terceira por o duque Dom Manuel, meu mui prezado e amado primo”, confirmando-
se documentalmente a sua intervenção no povoamento da ilha.
Uma outra carta, esta escrita pelo ouvidor do duque donatário, Vasco Afonso,14
ao capitão da Praia, de 18-5-1487, acerca das dadas nas Quatro Ribeiras, confirma
que Dulmo mantinha demanda com o capitão acerca de uma capitania no norte
da Terceira, e que o duque decidira, enquanto durasse essa demanda, que as ter-
ras dessa zona fossem dadas pelo ouvidor, sem prejuizo dos eventuais direitos de
Dulmo, para não prejudicar os interesses do donatário, o acrescentamento das suas
rendas, e por necessidade de “agasalhar muitos moradores que ora vem morar na
ilha”. Termina dizendo que “ao tempo que esta demanda principiou perante mim, o
dito capitão vosso genro [o segundo Álvaro Martins] estava em posse destas terras
nas Quatro Ribeiras”.
Isto quer dizer que Fernão Dulmo, ao sair da Terceira em data incerta, mas
que pela crónica de Frutuoso andaria por finais dos anos sessenta do século XV,
não desistira dos seus direitos como capitão consentido pelo duque, ainda que sem
carta, como aliás os outros, e que decidira lutar por eles através de uma demanda
contra o capitão da Praia que se arrogava do direito de distribuir terras na zona,
certamente fiado nas cartas de D. Beatriz, de 1474, que dividira a Ilha em duas
capitanias, a de Angra e da Praia, e que ignorara os eventuais direitos adquiridos
por Fernão Dulmo, que agora litigava, através do ouvidor Vasco Afonso, com o
capitão da Praia.
Efetivamente, conhecem-se cartas de dadas na zona das Quatro Ribeiras15,
datadas de 1482, e devem ter sido essas que levaram à demanda que ainda corria
em 1487.
11
FORJAZ e MENDES (2007)
12
DRUMOND (1990) pp. 284 a 285
13
FREITAS (1845) p. 30 com a nota (1) e pp. 69 a 73
14
ARRUDA (1932) p. 196
15
DRUMOND (1990) pp. 284-285. FORJAZ (1983) pp. 831 e 832
Os Flamengos na Colonização dos Açores 61
Não sabemos ao certo o que aconteceu de fato, nem sequer se Dulmo e João
do Estreito realizaram a viagem em busca da ilha das Sete Cidades que previam
em 1486, nem tão pouco o que aconteceu a Fernão Dulmo que, sem dúvida, po-
rém, perdeu os direitos que alegava sobre uma capitania no norte da ilha, e que D.
João II não rejeitava liminarmente, como se lê na carta de confirmação do contrato
estabelecido entre ele e João do Estreito, porque essas terras acabaram integradas
na capitania da Praia.
Para o que nos interessa agora, este episódio só confirma que Fernão Dulmo
teve realmente presumíveis direitos como capitão de uma capitania no norte da Ilha
Terceira, que o duque D. Manuel os reconheceu como capazes de serem decididos
em demanda legal, e que esta se prolongou pelo menos até finais de 1487. Contudo,
a documentação disponível não confirma que Fernão Dulmo fosse flamengo, mas a
informação de Frutuoso parece ser fidedigna e foi suficiente para que Verlinden16 o
aceitasse como tal e lhe atribuísse o nome flamengo de Ferdinand van Olmen.
O que sabemos, contudo, é que Fernão Dulmo não deixou na Terceira, nem
nos Açores, rasto de qualquer descendência, nem nunca existiu nas ilhas qualquer
família que reivindicasse entroncar-se em Fernão Dulmo. A única família Dulmo
é do reino da ficção no romance de Vitorino Nemésio, Mau Tempo no Canal, que
criou a sua heroína, Margarida Clark Dulmo, como descendente do nosso capitão
cavaleiro flamengo.
Terminando esta primeira parte acerca dos flamengos nos Açores, pode-se então
afirmar que na Terceira não chegou a existir uma minoria flamenga, mas antes dois
capitães ou chefes de povoamento flamengos – Jácome de Bruges e Fernão Dulmo.
Do primeiro, ficaram descendentes por uma filha casada com Duarte Paim, mas que
não eram, nem sequer a filha, flamengos, antes súbditos do rei de Portugal, nados
e criados em Portugal e, como tal, portugueses; e que do segundo, nem isso.
Os Paim de Bruges17 (apelido que verdadeiramente nunca usaram senão a partir
do século XVIII) foram durante séculos dos principais fidalgos e terratenentes da
ilha, mas nunca reivindicaram qualquer nobreza ou armas que lhes pertencessem
por descendência de Jácome de Bruges que, assim, aceitavam ter sido unicamente
um servidor do infante, o primeiro capitão da Ilha Terceira e um homem de negó-
cios, rico e empreendedor, e isso lhes bastava. Armas, usaram sempre as dos Pains,
Câmaras e Ornelas, suas raízes fidalgas e base do seu poder como terratenentes.
Tudo isto, porém, não obstou a que se construíssem as mais criativas inter-
pretações acerca dos flamengos na Ilha Terceira, principalmente através de um
estudo do médico Dr. Manuel Meneses18 que, aceitando acriticamente todas as
sucessivas fantasias acerca de Jácome de Bruges, que o davam como descobridor
da Ilha Terceira, como fidalgo flamengo e, conjuntamente com Fernão Dulmo,
16
VERLINDEN (1964) e (1983)
17
FORJAZ e MENDES (2007) vol. VII p. 13 e segs.
18
MENESES (1947) e (1949)
62 Boletim do Instituto Histórico da Ilha Terceira
___________________
32
SERPA (1928) pp. 142 a 145
33
VERLINDER (1983)
34
ARRUDA (1932) pp. 154 e 155
35
GIL (1979) p. 319
66 Boletim do Instituto Histórico da Ilha Terceira
A última leva de colonos flamengos chega aos Açores no início da década de se-
tenta do século XV, e com ela abre-se um subcapítulo da colonização flamenga.
Vinham os novos colonos, um grupo grande, sem dúvida, mas de que não
sabemos o número, chefiados por Wilhelm van der Hagen, que se aportuguesou
em Guilherme da Silveira (aliás, tradução atabalhoada)36, em uma ou duas urcas,
depende das fontes. Era composto por gente escolhida entre as várias profissões que
vinha acompanhada por utensílios para a lavoura e para a instalação, como observa
Frutuoso37, com destino ao Faial, em reforço da colónia do capitão Joss Hurtere.
Isto quer dizer que, desta vez, a organização da viagem, decerto pela duquesa viuva
(La Grande Madame, como então era tratada), se fizera com cuidado, utilizando a
experiência que Hurtere já detinha e que transmitira na sua viagem à Flandres.
É hoje difícil escrever ao certo quem seria este Guilherme, porque as notícias
que nos chegaram, tardias, já o retratam como alguém que triunfara, e cuja família
se afirmara entre a nobreza das ilhas e se reclamava de gente armoriada, dando o
seu progenitor, Wilhelm van der Hagen, como o filho de um conde da Flandres, que
vendera tudo o que possuía para vir povoar os Açores e procurar ouro nas ilhas.
Contudo, fontes insuspeitas apontam em sentido contrário. No testamento de
sua viuva, Maria Sabuiu38, aprovado a 13-9-1510, ele é designado por Guilherme
Casmaca, ou seja, uma corruptela de kasmach que em flamengo é simplesmente
fabricante de queijos; e uma justificação de nobreza do seu neto, Pedro Brum da
Silveira, identifica-o como natural de Maestrich ou Bruges e da geração dos Kas-
mach, original dessas cidades.
Ferreira de Serpa39, sempre cáustico, foi o primeiro a refutar as origens nobres,
dizendo que só um louco procederia como os cronistas dizem ter procedido Gui-
lherme da Silveira ao sair da Flandres. Eu realmente só posso acrescentar que neste
caso, como noutros, os cronistas foram levados pela reverência que julgavam dever
aos poderosos das ilhas, dourando-lhes as origens. Todos aqueles que se tornaram
nobres e armoriados ao longo dos séculos, por mais ou menos demorada ascensão
na sociedade insular, não pretendiam valorizar essa ascensão, mas preferiam fabricar
lendas acerca da sua origem antes do povoamento.
Seja como for, o nosso Guilherme da Silveira mostrou-se um chefe capaz
de guiar os compatriotas que lhe haviam sido confiados, e não só trazê-los com
êxito à ilha do Faial, como depois os guiou na procura de lugares vantajosos no
arquipélago.
A sua ambição ficou frustrada quando percebeu que no Faial e Pico não havia
os sonhados metais, e que, ainda pior do que isso, a sua ascensão social seria difícil,
por haver já gente estabelecida, a começar pelo próprio Joss Hurtere, capitão, com
36
FORJAZ e MENDES (2009), vol. 3º pp. 2437 a 2439
37
FRUTUOSO (1963), pp. 231 e 254
38
SERPA (1932), p. 8
39
SERPA (1932), pp. 446 a 450
Os Flamengos na Colonização dos Açores 67
quem não podia competir. Ao certo, o que sabemos é que Guilherme da Silveira,
cumprida a missão de levar até ao Faial os novos colonos, decidiu abandonar a ilha
com um grupo de compatriotas e experimentar a sua sorte noutras paragens.
Convém, para ajudar a compreender o que se passou, dizer que, nesse início da
década de setenta, a colonização dos Açores, principalmente do grupo central, vai
sofrer um grande impulso, levado a cabo pela Infanta D. Beatriz40 que se tornara,
depois da morte do marido, o infante D. Fernando, em 1470, na tutora dos filhos
menores, D. João e D. Diogo, sucessores dos donatários das ilhas açorianas. Esse
impulso passou por escolher novos dirigentes, premiar e dar estabilidade aqueles
outros que se haviam mostrado capazes, e incentivar novos e mais numerosos co-
lonos, reforçando sempre o dirigismo forte do donatário em todas estas terefas.
Ora, as informações que temos acerca de Guilherme da Silveira nos Açores
são essencialmente aquelas que nos transmitiu Frutuoso41 nas Saudades da Terra,
sendo necessário ter em conta que, para as ilhas ditas de baixo, o cronista usou
fontes indiretas, e a maior parte das vezes apoiou-se em informações que outros
processaram, as quais não lhe mereciam confiança. Isto mesmo nos transmitiu na
forma dubitativa e pouco segura como escreveu, muito notoriamente acerca, por
exemplo, do “Descobrimento da Ilha do Faial e dos seus primeiros e mais antigos
povoadores”, onde optou por registar o que uns e outros dizem, sem se decidir por
esta ou aquela informação.
Saído, então, do Faial, Guilherme da Silveira e o grupo de flamengos que o
acompanhou, mas que nenhum dos cronistas nos diz quantos seriam, iniciou uma
peregrinação por três ilhas, com o fim de se fixar. A sequência desta aventura não
sai clara nas crónicas, mas admitamos que começou por se dirigir à Terceira, pas-
sou às Flores, e acabou em São Jorge, no Topo, tudo isto nas décadas de setenta
e oitenta, demorando-se nas Flores entre oito a dez anos.
Iria, talvez, na esperança de conseguir uma capitania ou, pelo menos, uma
situação de terratenente destacável, por poder assenhorear-se de vastas dadas, tendo
também sido apontado pelos cronistas como não desistindo de procurar os alme-
jados metais.
Nenhum dos nossos informadores diz o que pretendia quando aportou à Ter-
ceira, na zona das Quatro Ribeiras, ou seja, em plena capitania de Fernão Dulmo,
que nada nos autoriza a afirmar que conhecia, ainda que fossem ambos flamengos.
Se era na esperança de vir a substituir Dulmo, ou unicamente de ser o recetor das
dadas que inevitavelmente se distribuíram na zona, enganou-se porque, por essa
época, a decisão de D. Beatriz estava tomada. As Quatro Ribeiras foram integradas
na capitania da Praia, atribuída a Álvaro Martins Homem42, por carta de 2-4-1474,
e as dadas distribuídas a gente da sua confiança.
40
“A Infanta D. Beatriz e os Açores”, LEITE (2012) pp. 89 a 103
41
FRUTUOSO (1963) pp. 231, 249, 254, 257, 260, 266, 273, 278 e 334
42
ARRUDA (1932) p. 163
68 Boletim do Instituto Histórico da Ilha Terceira
Bem sabemos que tais decisões provocaram uma demanda por parte de Fernão
Dulmo, que se prolongou até pelo menos aos finais da década de oitenta, e que tudo
isto retirava esperança a Guilherme da Silveira. Dizem as mesmas fontes, sem mais
pormenores ou explicações, que pouco se demorou na Terceira, abandonando a ilha.
Contudo, já Drumond43 enfrentou dificuldades insuperáveis quando pretendeu
escrever acerca dos flamengos nessa zona da Ilha Terceira, do seu povoamento
e da edificação de uma igreja (documentalmente existente em 1482), admitindo,
porém, que a ribeira dos flamengos aí assinalada recebera o nome derivado aos
acompanhantes de Guilherme da Silveira e não de Fernão Dulmo.
Saído da Terceira, o nosso Guilherme e o seu grupo aportaram às Flores44,
destino que Frutuoso45 informa que haviam decidido procurar ainda antes da viagem
para os Açores, quando em Lisboa Guilherme da Silveira ajustara com D. Maria de
Vilhena, tutora do filho menor herdeiro do senhorio, fixar-se naquela ilha.
Aqui também convém dizer que as Ilhas das Flores e Corvo46, desertas, depois
de terem integrado a donataria de D. Henrique e D. Fernando, não haviam passado
para a donataria dos herdeiros deste último, mas tinham sido transformadas num
senhorio entregue por carta de 28-1-1475, a Fernão Teles47. Morrendo este em 1477,
não teve tempo de aproveitar a doação e de povoar a ilha das Flores, sendo aceitável
admitir que a viúva e tutora do senhorio tenha feito um contrato com Guilherme
da Silveira, e que este, por sua vez, ambicionasse tornar-se o futuro capitão da dita
ilha. Mas isto são suposições.
O que se passou, de fato, foi que Guilherme da Silveira e os seus companheiros
encontraram, como escreve Frei Diogo das Chagas, obstáculos inultrapassáveis, e
os anos que viveram na ilha foram dramáticos, não tendo sequer construído ha-
bitações, vivendo em grutas e tirando pouco ou nenhum proveito da agricultura,
até por falta de comunicações com o resto do arquipélago e pelo rigor do clima
invernoso. Assim, ou desistiram os flamengos, ou desistiu D. Maria de Vilhena,
ou até desistiram todos, sendo certo que esta decidiu vender as ilhas a João da
Fonseca48, venda essa autorizada pelo rei em 1504. Mais uma vez Guilherme da
Silveira saía derrotado.
Guilherme da Silveira não desanimou e procurou um novo poiso, dirigindo-se
a São Jorge, à região do Topo, onde desembarcou em finais do século XV. Não
sabemos, por omissão das fontes, quantos colonos teria consigo depois destas aven-
turas, mas o que deduzimos é que poucos seriam, porque não consta nessa zona
de São Jorge, ao contrário do Faial, a existência de nomes e de famílias que se
43
DRUMOND (1990) p. 285
44
CHAGAS (2007) pp. 533 e 534
45
FRUTUOSO (1963) p. 258
46
“O Povoamento das Flores”, LEITE (2012) pp. 109 a 123
47
ARRUDA (1932) p. 182
48
ARRUDA (1932) p. 211
Os Flamengos na Colonização dos Açores 69
49
SILVEIRA (1963-1964) p. 97 e segs.
50
FRUTUOSO (1963) p. 259
51
ARRUDA (1932) p. 182
52
FORJAZ e MENDES (2009) VOL. 3.º, Tit. de Silveira, p. 2437 e segs.
70 Boletim do Instituto Histórico da Ilha Terceira
53
MENESES (2008) pp. 152 e 162 a 163
54
FRUTUOSO (1963) p. 256
55
FRUTUOSO (1963) p. 255
56
FRUTUOSO (1963) pp. 252 e 253
Os Flamengos na Colonização dos Açores 71
Temos hoje conhecimento bem mais profundo dos flamengos que deixaram
memória, principalmente no Faial, e suas descendências através de estudos biográ-
ficos e genealógicos de Jorge Forjaz e António Mendes57, que não só registaram
as genealogias, mas sobretudo aprofundaram a origem geográfica desses colonos
na Flandres e, com conhecimento local desses lugares e da sua identificação em
flamengo, deram um contributo decisivo para se entender as corruptelas que os
cronistas e outras fontes introduziram na língua portuguesa, deturpando nomes,
quer de pessoas, quer de sítios.
É óbvio que com estes povoadores flamengos aconteceu aquilo que aconteceu
com outros. Uns distinguiram-se, enriqueceram e formaram as elites do Faial, ou
porque já vinham com vantagens como os Dutra, parentes do capitão, ou porque
tinham qualidades excepcionais. De entre eles destacarei os Terra58, descendentes de
Joss van Aarte ou van Aartrijcike (Jorge da Terra ou Jorge das Terras Ricas), que
deram origem a uma das mais destacadas casas faialenses. Outros disseminaram-
se por variadas camadas sociais, mantendo, contudo, consciência das suas origens,
como os Goulart59 entroncados no pasteleiro Govaert Lodewijk; e outros, ainda,
perderam-se no anonimato, sendo hoje impossível ligá-los às suas presumíveis
raízes flamengas, como os Rosa60 cujo tronco poderá ser Pitre ou Pita da Rosa,
casado com Maya.
Mas tudo isto ficou muito mais esclarecido com as notáveis investigações
levadas a cabo por Jorge Forjaz e António Mendes.
Os Açores ficaram ainda conhecidos, por antonomásia e por mimetismo, por
Ilhas Flamengas61 na cartografia impressa no norte da Europa. A primeira referência
a uma Nova Flandres apareceu no Globo de Nuremberga, de Martim da Boémia, em
1492, que assim crismou as ilhas do Faial e Pico, mas foi Mercator que chamou aos
Açores Ilhas Flamengas, no seu planisfério de 1569, tendo esta designação, a partir
daí, surgido sucessivamente em mapas impressos. O grande divulgador deste nome foi,
sem dúvida, Abrão Ortelius que no seu atlas muito disseminado por toda a Europa, a
partir da edição de 1595, incluiu um capítulo sobre os Açores, que se haviam tornado
importantíssimos na rota atlântica, onde se diz que se chamavam Ilhas Flamengas.
Ora, Ortelius usava uma carta dos Açores da autoria do cosmógrafo português Luís
Teixeira, cujas chapas foram depois sucessivamente utilizadas ao longo do século XVII
em mapas impressos, que todos intitulam o arquipélago como Ilhas Flamengas. Isto
quer dizer que os impressores, sendo pouco versados, quer em geografia, quer em
história, não questionaram as origens da nomenclatura nem a qualidade dos desenhos,
limitando-se a melhorar a impressão e o aparato das cartas.
57
FORJAZ e MENDES (2009)
58
FORJAZ e MENDES (2009), vol. 4.º, Tit. Terra, pp. 2721 e segs.
59
FORJAZ e MENDES (2009), vol. 2.º, Tit. Goulart, pp. 1187 e segs.
60
FORJAZ e MENDES (2009), vol. 3.º, Tit. Rosa, pp. 2297
61
MEES (1919), pp. 233 a 235
72 Boletim do Instituto Histórico da Ilha Terceira
62
SILVEIRA (1957)
63
MEES (1919) pp. 235 a 238
64
MENESES (1947) p. 55
Os Flamengos na Colonização dos Açores 73
Bibliografia
SILVEIRA, Martim Afonso Jardim Cunha da (1963-1964), “Do Contributo Flamengo nos
Açores”, BIHIT, vol. XXI-XXII, pp. 11 a 144
VERLINDEN, Charles (1983), “Le Peuplement Flamand aux Açores au XVe Siècle”, BIHIT,
AH, vol. XLI, pp. 298 a 308
VERLINDEN, Charles (1963), “Un Précurseur de Colomb : Le Flamand Ferdinand van
Olmen (1487)”, Revista Portuguesa de História, Lx., tomo X, pp. 5 a 18