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EXÉRCITO PORTUGUÊS
ESTADO-MAIOR DO EXÉRCITO
DA HISTÓRIA MILITAR
E DA ESTRATÉGIA
Estudos de homenagem ao
General Loureiro dos Santos
Coordenação de
Francisco Proença Garcia
e
Abílio Pires Lousada
Colaboração de
Artur Pina Monteiro
António Barrento
José Luís Pinto Ramalho
Alexandre de Sousa Pinto
Rodrigues Viana
José Antunes Calçada
Américo Henriques
Fernando Pinto Simões
João Vieira Borges
Nuno Lemos Pires
Luís Barroso
Francisco Proença Garcia
Abílio Pires Lousada
Manuel Garrinhas Carriço
Luís Falcão Escorrega
Carlos Dias Afonso
Paulo Rodrigues
Jorge Rocha
LISBOA
2013
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Título
DA HISTÓRIA MILITAR E DA ESTRATÉGIA
Estudos de Homenagem ao General Loureiro dos Santos
© Edição
Exército Português
Estado-Maior do Exército
COORDENAção
Francisco Proença Garcia
Abílio Pires Lousada
ISBN: 978-989-96561-4-7
Execução Gráfica
J.M.G. – Art. Pap., Artes Gráficas e Publicidade, Lda.
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sumário
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O SISTEMA DE DEFESA ANTIMÍSSIL DA ALIANÇA ATLÂNTICA ................................... 181
Tenente-Coronel Francisco Proença Garcia
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O EXÉRCITO EM TEMPOS DE MUDANÇA
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O EXÉRCITO EM TEMPOS DE MUDANÇA
Enquadramento estratégico
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A defesa nacional tem, obrigatoriamente, de procurar corresponder a este
conceito alargado de segurança e de flexibilização de fronteiras, através de uma
articulação das várias componentes, com espcial acuidade na fronteira dos interesses
e em quadros coletivos e cooperativos.
Esta realidade coloca aos Estados novos desafios, manifestando-se novas
e diferentes ameaças, interdependentes, de múltiplas naturezas, dinâmicas,
polimorfas, assimétricas e globais, que não reconhecem fronteiras mas que, no
entanto, as consequências da sua existência ou atuação se manifestam no interior
das tradicionais fronteiras políticas e de soberania dos Estados.
Face à ineficácia do estado e dos seus tradicionais instrumentos de política
externa e de segurança, assistimos a um impulsionar do desenvolvimento gradual
de uma nova conceção de segurança alargada, abrangendo outras dimensões para
além da militar, forçando a adoção de uma estratégia de resposta holística, sendo
a eficácia da mesma subsidiária da adequada coordenação multi-institucional e
de uma arquitetura de segurança cooperativa onde as diferentes organizações,
diferenciadas nos objetivos e capacidades se devem complementar.
Neste pano de fundo alguns países e Organizações Internacionais passaram
a exigir às suas Forças Armadas (FA) novas missões, novos requisitos de força,
novas capacidades e mesmo novas estruturas de força, de forma a torná-las capazes
de fazer face às novas ameaças e de poderem atuar em todo um alargado espectro
do conflito. Esta evolução levou a que os líderes mundiais, políticos e militares,
começassem a encarar uma nova realidade, que nos parece inevitável: rever o papel
das FA em missões de segurança no espaço de soberania.
A defesa dos valores constitucionais da República e da sua integridade territorial,
a garantia da soberania e da independência nacional, a segurança dos cidadãos e
a sua liberdade individual e política constituem funções e deveres permanentes do
Estado de Direito Democrático. Para a sua consecução é necessário assegurar:
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Dispositivo
Este quadro acaba por ser definidor da Missão do Exército, sendo fundamental
a sua ação de presença em todo o território nacional (continente e arquipélagos),
contribuindo ainda para o reforço da coesão e identidade nacional e para a preservação
da ocupação populacional e institucional do território nacional, potenciando a
segurança pela proximidade às populações através da prontidão de apoio, sempre
que for solicitado, com a capacidade dual dos seus meios, materiais e humanos.
É com este racional que o Exército defende como indispensável a manutenção
de um dispositivo equilibrado, entre a sua indispensável dispersão territorial e a
concentração racional de capacidades criticas e de campos de treino.
Este dispositivo, integrante de um sistema de forças flexível, estruturado
com base em três Comandos de Brigada alicerçados em diferentes tipologias de
capacidades, não pode deixar de ter em conta que o tempo dos povos, vai para
além das conjunturas e dos circunstancionalismos, pelo que não podemos deixar de
equacionar o desenvolvimento e manutenção da possibilidade de, por mobilização e
requisição, fazer crescer os efetivos, aprontando as forças consideradas necessárias
em situações de crise ou de qualquer contingência que afete ou comprometa a
Segurança e Defesa Nacional.
Esta capacidade de crescer por mobilização torna-se mais pertinente face ao
actual sistema de serviço militar profissionalizado e, também, quando o potencial
humano nas fileiras tende a situar-se em níveis mínimos.
Uma outra área em que o Exército não pode estar ausente e por isso está
disponível para exercer parte do seu esforço, prende-se à necessária articulação
entre FA e Forças de Segurança, na ordem interna, numa estratégia de emprego
dual. Atualmente as FA nas Missões Específicas têm previsto o modo de atuação
complementar e supletivo das valências próprias das Forças de Segurança. Falta,
no entanto, a legislação própria para, entre outros temas, definir concretamente o
espaço de intervenção, a cadeia de comando e os responsáveis, numa abordagem
integrada da segurança nacional.
A utilização das FA no âmbito interno pode ser otimizada, sem que daí não saia
afetada a competência para cumprirem as suas missões primárias, intrinsecamente
militares, que são a sua verdadeira razão de ser.
Nesta ordem de ideias, o Exército está hoje, como sempre, preparado e
disponível para garantir o emprego das suas capacidades em cenários nacionais,
quer em ações de prevenção e combate a agressões e às ameaças transnacionais,
quer no âmbito de missões em proveito do desenvolvimento e bem-estar.
Este empenhamento envolve sobretudo as vertentes do combate à poluição, de
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atividades de informação geográfica, de ciberdefesa, o apoio de evacuação médico-
sanitária, a proteção NBQR, o apoio à melhoria de acessibilidades, e ainda outras
ações em reforço/apoio e complemento das Forças e Serviços de Segurança e dos
Órgãos de Proteção Civil, seja em situações de calamidade ou no contributo para a
melhoria do bem-estar dos portugueses.
Assim, é possível ao Exército com os seus meios proceder ao levantamento
de uma Unidade Militar de Ajuda de Emergência que possibilite aprofundar a
ligação e capacidade de resposta militar com a rede de entidades responsáveis em
situações de catástrofe e calamidade.
Para a consecução destes desígnios entendemos que o foco do investimento
deve concentrar-se em equipamentos de indiscutível utilidade tática e estratégica
que permitam resultados operacionais significativos a custos materiais e humanos
mais baixos, e sempre que possível, numa perspetiva de possibilidade de emprego
dual dos recursos, procurando a eliminação de todas e quaisquer formas de
duplicação de meios públicos pelo que no âmbito da Estratégia Militar Genética
devem ser dadas orientações em áreas como obtenção e manutenção dos recursos
materiais e humanos, do armamento e equipamento, às infraestruturas, passando
pelos sistemas de comunicações e informação.
Estrutura do Exército
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Em relação às Unidades de Formação e tendo como referência a Escola Prática
dos Serviços, modelo implementado em 2006 e hoje consolidado, o Exército vai
com este conceito de economia de recursos, melhorar o rácio formadores/formandos
e reforçar os vários saberes residentes nas atuais Escolas Práticas, criando a
Escola Práticas das Armas cuja estrutura será orientada para o levantamento de
uma organização em rede, centrada na Escola e articulada com pólos formativos
nas Unidades Operacionais, à custa dos recursos humanos e materiais que as
integram.
A área da Saúde Militar tem sido e continuará a ser objecto de particular
atenção por parte do Exército. Neste domínio é total o apoio à consolidação do
modelo do Hospital das FA, e ao seu desenvolvimento, pela importância acrescida
de que se reveste para a Família Militar.
Assume ainda importância crucial para o Exército uma nova estrutura de
apoio sanitário da componente operacional, articulada com o Hospital das FA, e
para a qual está prevista a criação de uma Unidade de Saúde Operacional, onde se
polarizará toda a gestão e treino das unidades de apoio sanitário à componente fixa e
operacional do Exército, promovendo economia de recursos, humanos e materiais.
Recursos humanos
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O efetivo atual do Exército em militares e civis significa uma redução de cerca
de 5.500 homens e mulheres em relação ao pessoal necessário, para guarnecer a
totalidade da sua estrura orgânica.
Contudo, é importante sublinhar que o efetivo autorizado, em função das
restrições orçamentais, necessita de adequado fluxo através das incorporações e
ingressos que foram descongeladas em 2012 e que permitem a manutenção de
níveis aceitáveis de pessoal.
No âmbito das promoções e incorporações, a proposta de orçamento para
2013 não parece introduzir restrições acrescidas à sua efetivação o que permitirá
evitar turbulências desnecessárias e continuar a estabilizar a estrutura orgânica, a
gestão de carreiras e a manutenção do efectivo do Exército, embora nos patamares
mínimos autorizados.
A racionalização dos efectivos dos quadros permanentes, em curso até 31 de
dezembro de 2013, será feita em função da previsão normal de passagens à situação
de reserva, bem como através da redução de ingressos de pessoal, nomeadamente, no
corrente ano de 2012 se traduziu em menos 30% no 1º ano da Academia Militar.
As restrições orçamentais e a contenção da despesa apontam para que o efetivo do
Exército não venha a aumentar, sendo desejável que se enquadre nos atuais patamares
como fator de estabilidade, no processo de revisão estrutural que está em curso.
Contudo, quando se avalia o ambiente estratégico que nos rodeia, não podemos
deixar de constatar que este é evolutivo, quer quanto à diversidade dos riscos e ameaças,
quer no que respeita às formas de resposta. As tendências nacionais e das organizações
internacionais apontam no sentido de novas formas integradas de empenhamento da
componente militar, para poder atuar em todo o espectro da nova conflitualidade.
Assim, o Exército continua a privilegiar a sua componente operacional, nas
vertentes ligeira, média e pesada, garantindo uma capacidade de resposta aos
compromissos internacionais de Portugal e às ameaças e riscos no âmbito do
contexto internacional.
Tal implica uma natural reavaliação de estruturas, requisitos de forças e de
capacidades, para ser possível responder de forma adequada às novas exigências de
segurança e defesa seja no plano externo, seja no seio do território nacional.
Equipamentos
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Programação Militar, no âmbito dum processo de transformação e modernização que,
como todos os processos de mudança, está em permanente avaliação, nunca concluído
e adaptável aos condicionamentos político-estratégicos e às restrições orçamentais.
A prioridade no reequipamento foi consubstanciada na aquisição de material
moderno e interoperável, procurando-se adequar os meios às necessidades dos atuais
Teatros de Operações. Por isso, o plano de modernização inclui as viaturas blindadas
médias Pandur, tornando-se essencial garantir a coerência deste projeto – ainda que
os meios possam ser alterados –, e as viaturas blindadas ligeiras, mais facilmente
projetáveis e que conferem às forças, em Operações, uma proteção adequada.
Constitui-se ainda como projeto estruturante para empego dos meios do Exército,
uma capacidade de Helicópteros Ligeiros, apesar de se reconhecer e compreender
as dificuldades conjunturais na obtenção de todos os meios operacionais desejáveis.
Este é um projeto que não pode, nem deve ser abandonado, importando definir os
moldes em que deve ser prosseguido este objetivo. O Exército está aberto a novas
formas organizativas de partilha, que potenciem a utilização desta capacidade no
plano nacional, em missões de interesse público.
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Neste tempo em que verificamos no País confluências negativas de diversas
situações de crise, importa que o Exército continue a contribuir para a solidez das FA.
Assim devemos ter sempre presentes a ética, o respeito pelos valores militares,
o espírito de resiliência e o exercício de uma conduta individual e coletiva que seja
geradora de segurança, respeito e credibilidade no seio da sociedade nacional.
O Comando do Exército está convicto que os seus militares reconhecem e sentem,
que no actual quadro do País, ganha importância acrescida o significado de ser soldado,
e por isso é sabido que a prioridade do Comando tem sido centrada nas questões que
afetam a gestão dos recursos humanos, seja no plano individual ou coletivo.
Neste domínio sublinhamos que o Comandante do Exército não abdica de ser
responsável por resolver as questões dos subordinados quando se situam na sua
área de competência. Como também não deixa de colocar de forma leal, franca e
transparente, junto da tutela as questões que carecem de solução ao nível político.
Tem sido através do dialogo com a tutela e em estreita e solidária cooperação
entre os Chefes Militares, que tem sido possível ultrapassar dificuldades, de que
destacamos o descongelamento das promoções e das incorporações no passado
ano de 2012.
Palavras finais
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GENERAL LOUREIRO DOS SANTOS
O PROFESSOR MILITAR
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General Loureiro dos Santos – O Professor Militar
P ara esta homenagem ao general Loureiro dos Santos, que vai da história
militar à estratégia e que, neste âmbito, pode ir dos livros que já escreveu aos
elevados cargos que desempenhou ou às suas frequentes intervenções nos media,
actividades em que ele olha para o mundo conflitual e para nós, propomo-nos
lembrar algo que está a montante de tudo isso – José Alberto Loureiro dos Santos,
Professor.
A razão desta minha escolha decorre do facto de poucas pessoas terem tido
a fortuna de usufruir de um contacto tão variado e estreito com o homenageado,
quando do seu desempenho de funções docentes. Desde logo, em 1970, quando,
frequentando o 1º ano do Curso de Estado-Maior, fui seu aluno; depois, após 1976,
quando ambos estivemos colocados como professores no IAEM.
No meu Curso de Estado-Maior, o então major Loureiro dos Santos era
professor de organização militar. Conforme era costume naquela época e naquele
curso os professores militares, por desempenharem simultaneamente outros cargos
na estrutura superior das Forças Armadas (FA)., dispunham de pouco tempo para
a sua actividade didáctica no IAEM. Intencionalmente ou talvez também por isso,
apesar de o curso ser muito exigente, o ensino era muito do tipo “do it yourself”.
Eram raras as aulas magistrais.
Para cada sessão os oficiais alunos estudavam o assunto que o professor
previamente indicara, e a aula era normalmente preenchida com um interrogatório
sobre essa matéria, podendo acontecer que uma parte da apresentação ou debate
proporcionasse a apreciação ou chamada de atenção para aspectos doutrinários
importantes. Na cadeira de organização seguia-se, também, de um modo geral,
esse modelo. Porém, logo na primeira aula apercebemo-nos de que o professor
não estava prioritariamente interessado em que soubéssemos as leis que tratam da
nossa organização militar, pois preferia que tivéssemos pensado na razão de ser
dessas leis, da sua situação no quadro nacional, das suas consequências. Mais do
que conhecer pormenorizadamente a organização (o que também era desejável)
eramos obrigados a pensar os porquês dos normativos sobre as várias estruturas,
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obtenção dos recursos humanos e materiais, funcionamento, situações de emprego,
limitações, etc. A cadeira não era um prolongamento e actualização da matéria de
organização que há alguns anos nos fora ministrada na Escola do Exército, mas
a procura de entender a razão de ser da organização, dos objectivos e finalidades
a atingir, das várias estruturas e das diversas funções dos seus componentes, do
relacionamento da instituição militar com o poder político.
Diga-se em abono da verdade que o major Loureiro dos Santos não era o
único professor que colocava o “descobrir” e o “entender”, acima do simplesmente
“conhecer”, mas numa matéria em que o desfolhar dos diplomas a tornava mais
fácil, ainda que monótona, esta abordagem era, para nós, nova, interessante e
motivadora. Tínhamos que analisar com profundidade as leis, estudarmos a sua
evolução, confrontá-las com os objectivos da instituição militar, lançar um olhar
crítico, pensar na paz e na guerra. Este contacto com o Professor, para além da
natural tensão ligada ao interrogatório permanente em que estávamos a ser
avaliados, foi muito importante para conhecermos melhor o Exército que tínhamos
e para pensarmos no Exército que deveríamos ter.
Quando em 1976 se reiniciaram os cursos no IAEM, o tenente-coronel
Loureiro dos Santos era professor de história militar e eu dava técnicas de estado-
maior e pertencia também à secção de táctica. Porque em algumas matérias, como
a estratégia e a história militar, se requeria dos professores particular apetência para
as ministrar e uma preparação mais aprofundada, a direção do IAEM encorajou
alguns professores das áreas das técnicas e tácticas a, para além das suas funções
docentes, seguirem as aulas dos professores dessas matérias, tendo em vista uma
possível utilização futura nessas cadeiras.
O major Rebelo Gonçalves e eu disponibilizámo-nos a assistir e acompanhar
o ensino da história militar, pela admiração que tínhamos pelo professor e porque
a história militar nos cativava; ambos gostávamos de história e tínhamos tido boas
classificações em história militar no Curso de Estado-Maior; entendíamos que ela era
imprescindível para uma boa formação dos quadros do Exército; víamos na história
o único “laboratório” possível da guerra, já que os exercícios e manobras, apesar de
importantes, não são mais do que aproximações grosseiras; e porque dando-nos a
conhecer as guerras passadas, conseguimos vivê-las sem que se consumissem vidas
e bens, mas apenas tempo para o estudo, a reflexão e o debate.
Estando em sintonia com o professor da cadeira nesta necessidade da história
militar, encontrávamos também nela demonstrações de espírito de defesa e
manifestação de virtudes que devem possuir os chefes militares; de exemplos que
vão da estratégia à táctica, da organização à logística, da política à geopolítica,
da psicologia à sociologia, que são matérias curriculares dos cursos de carreira
dos oficiais do Exército; sabíamos que não se encontrando na história militar,
fórmulas para a resolução dos problemas militares, nomeadamente no campo
operacional, nela descobrimos pistas e indicadores preciosos; e que reflectir sobre
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ela é acrescentar a outros conhecimentos, e à nossa experiência pessoal, sempre
limitada, à vasta experiência de muitos que nos antecederam.
Apesar de a história se caracterizar pela continuidade, os momentos das grandes
mutações, pelas alterações que produzem, devem merecer-nos uma particular
atenção. Arnold Toynbee vê na viagem de Vasco da Gama um desses momentos,
de grande viragem na vida da humanidade, ao ponto de nomear o período histórico
que antecedeu a viagem do nosso navegador, de período pré-gâmico. De forma
semelhante o tenente-coronel Loureiro dos Santos procura na história militar os
momentos das grandes mutações produzidas pelas alterações dos quadros políticos
e tecnológicos e que fizeram evoluir significativamente os instrumentos de coacção,
as estruturas militares, as formas de combater, os meios de fazer a guerra. Assim,
ainda que a matéria ministrada fosse claramente história militar, o pensamento e o
discurso do Professor levava-nos para além dela, para a descoberta dos instrumentos
militares da época e para as suas consequências na guerra. Ou seja, a matéria de
história militar não era um fim, mas um meio necessário para o entendimento das
doutrinas das ciências militares. Ainda que a história fosse também um elemento de
cultura, a história militar era, ali, essencialmente instrumental.
Como professor dessas matérias o tenente-coronel Loureiro dos Santos
utilizava uma extensa e selecionada bibliografia, mas seguia, em parte, a metodologia
que Eric Muraise utilizara na “Introduction à l’Histoire Militaire”, acrescentando-lhe
uma análise pessoal e aprofundada, que muito contribuía para o interesse com que
acompanhávamos as suas aulas.
Os instrumentos de coacção que caracterizavam as diferentes épocas, com
as suas potencialidades e limitações, eram a resultante natural das situações
tecnológicas, com as suas inovações, e dos referenciais políticos e sociológicos
dessas mesmas épocas. Com esta análise tornava-se claro o aparecimento dos
diversos exércitos, estruturas, meios e doutrinas, que eram utilizados na guerra,
que a influenciavam, que iam “escrevendo” a história.
Dado que os aparelhos militares existem para que o poder político, quando
necessário, os utilize para mostrar ou para aplicar a violência organizada, aquilo que
verdadeiramente os distingue, e sem o qual os exércitos são apenas dispendiosas
e inúteis, é a sua capacidade para realizar o combate. É esta capacidade que lhes
permite dissuadir, defender ou atacar. Por esta razão o tenente-coronel Loureiro
dos Santos individualizou e caracterizou os “elementos essenciais de combate”, isto
é, aquilo que mais importante se manifesta e contribui para os resultados, quando o
combate se realiza. São esses elementos, de valor variável com as épocas e muito
ligadas a tecnologia então utilizada, que “desenham” os aparelhos militares que vão
surgindo através dos tempos.
Felizmente toda esta elaboração intelectual foi registada, em 1979, no livro
“Apontamentos de História para Militares”, e que, pelo aparecimento de uma
moderna dimensão da guerra, foi recentemente revisto e actualizado. Assim, surgiu
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a “História Concisa de como se faz a Guerra”, livro que tive a honra e o prazer
de apresentar publicamente, em que o general Loureiro dos Santos trata agora,
também, do quadro psicológico em que decorrem certos conflitos actuais, do
surgimento de novas ameaças, da importância das percepções. Neste quadro, para
que possamos manter a determinação sem perdermos a lucidez, há que considerar
a “informação” como um novo e muito importante elemento essencial de combate,
podendo este, só por si, ser responsável pela vitória ou pela derrota.
Como se pode calcular, assistir às aulas de história militar do tenente-coronel
Loureiro dos Santos foi um privilégio, particularmente para o major Rebelo
Gonçalves e para mim, porque depois de cada sessão, no seu gabinete, travávamos
um interessante diálogo em que apresentávamos as nossas dúvidas e comentários.
Depois daquele período de atenção à história militar, muito enriquecedor,
também eu vim a ser, dois anos mais tarde, professor de história militar1, o que me
deu muito prazer, por ter sido obrigado a “mergulhar” ainda mais profundamente
na história e pela oportunidade, de que usufruí, de poder saciar o meu apetite
histórico.
Uma outra experiência veio a suceder em 1981 e 1982, quando o então coronel
e depois brigadeiro Loureiro dos Santos foi chefe da secção de estratégia e professor
de estratégia. Nessa altura eu estava na táctica e era professor de história militar,
cadeira pertencente à secção de estratégia.
Esta condição de proximidade, bem como e vivência anteriormente descrita, fez
com que a sequência das nossas aulas, ao Curso Superior de Comando e Direcção,
fosse coordenada e concorrente. Para apoio de várias sessões de estratégia, eu
apresentava aulas de história militar com exemplos, internacionais ou nacionais,
que ilustravam, ou sustentavam a doutrina estratégica em foco ou, no mínimo,
suscitavam pontos de reflexão. Por exemplo: imediatamente antes ou depois de
serem tratados os princípios da guerra, apresentava na história militar campanhas
ou batalhas que os sublinhavam e permitiam a sua discussão; ao tratar-se das crises,
mostrava casos históricos que sustentavam a doutrina; as doutrinas de subversão e
contra-subversão foram acompanhadas de exemplos históricos ilustrativos.
Além desta interessante colaboração, pude acompanhar as suas aulas, nas quais
havia assuntos muito pouco tratados quando da minha preparação estratégica, como
os “conflitos e a teoria dos jogos”, as crises2, e certos elementos do planeamento
estratégico cujo estudo foi então desenvolvido.
O brigadeiro Loureiro dos Santos, com os conhecimentos que tinha, a
permanente actualização que fazia através da leitura de variados autores, e a
metodologia seguida em que procurava o debate de ideias, dava aulas que causavam
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Outro tanto veio a suceder com a matéria da Estratégia, a cujas aulas assistia o capitão Fontes Ramos, que também
veio a ser depois professor da estratégia, o que me levava a gracejar, dizendo-lhe que só conhecia dois professores de
estratégia capitães: o Lidell Hart e ele!
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Só tinha estudado as crises quando frequentei a Escola Superior de Guerra em Paris.
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o mais vivo interesse naqueles que tinham oportunidade de as seguir. E também aqui,
como na história militar, ele deixou registado em livros muito do seu saber, das suas
ideias, das suas preocupações. No âmbito da sua acção como professor, cabe ainda
recordar a elaboração do documento sobre a Zona de Operações Terrestres.
Em 1932 o coronel Miranda Cabral leccionou e escreveu as “Conferências
sobre Estratégia”. Este trabalho notável sobre as possibilidades de defesa do T.N.
tinha também um interesse prático para o IAEM, porque permitia que os temas
tácticos, no território nacional, tivessem um fundamento geográfico-táctico lógico.
Tendo porém passado 50 anos sobre as “Conferências”, mesmo contando com a
constância dos elementos geográficos, sucedera uma evolução acentuada nos meios
militares, nos conceitos, e até na geografia, em consequência da acção do homem.
Por estas razões o Director do IAEM., o general Ramires de Oliveira, lançou o
desafio de fazermos a sua actualização. Era, por um lado, uma homenagem ao
autor, mas, por outro, construía-se uma base actualizada para a elaboração dos
temas táticos. O brigadeiro Loureiro dos Santos presidiu e coordenou o grupo de
trabalho, de que também eu fiz parte, tendo nascido o documento denominado por
“Elementos para a defesa da Zona de Operações Terrestres (ZOT) de Portugal”.
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ELABORAÇÃO DAS GRANDES OPÇÕES PARA O CONCEITO
ESTRATÉGICO DE SEGURANÇA E DEFESA NACIONAL
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Elaboração das Grandes Opções para o Conceito
Estratégico de Segurança e Defesa Nacional
E m resposta ao convite que me foi dirigido pelo Exmº Professor Luís Fontoura,
Presidente da Comissão para a Revisão do Conceito Estratégico de Segurança
e Defesa Nacional, produzi um texto que a seguir reproduzo, para inclusão na obra
de homenagem ao General Loureiro dos Santos, por duas razões: em primeiro lugar,
a grande admiração, estima, respeito e amizade que tenho por ele, como pensador,
militar e estratego, como académico e como camarada e amigo; em segundo, porque
em tantas oportunidades, temos discutido e refletido sobre estas matérias.
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A questão que deve ser colocada de imediato, é quais deverão ser os Objectivos
Nacionais Actuais, tendo em conta a Conjuntura Estratégica em que vivemos,
as nossas Vulnerabilidades e as Potencialidades de que dispomos, perante os
desafios que se nos colocam, os riscos e ameaças, reais ou potenciais, com que nos
confrontamos e cuja concretização ou não, podem pôr em causa ou contribuir para
a consecução dos objectivos nacionais permanentes.
Nesse sentido, uma reflexão acerca da envolvente internacional e das suas
implicações para a segurança de Portugal é indispensável. Fomos sempre um país
que, em termos de política externa e na procura do exercício de influência e de
poder e de aquisição de recursos, (como forma de aumentar o poder nacional),
nunca se limitou ao espaço regional, antes pelo contrário, sempre se aventurou para
espaços mais alargados de inserção e de participação.
É esta atitude estratégica que deve levar à definição de um conceito, ultimamente
algo esquecido e considerado, de Espaço Estratégico de Interesse Nacional (EEIN),
onde convivem duas realidades estratégicas – o espaço dos interesses nacionais
permanentes e o espaço dos interesses nacionais conjunturais. O país tem assim de
clarificar e identificar, onde, como e com que meios, faz a defesa desses interesses
nacionais, que prioridades têm de estabelecer, que riscos aceita assumir, que
ameaças tem de acautelar, em que alianças e organizações internacionais decide
participar e que orientações deve dar às estratégias gerais, que devem concretizar os
grandes desígnios nacionais – a Segurança, o Bem-Estar e a Justiça Social.
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Tem de ser considerado em paralelo, pelas implicações no anteriormente
referido, a nossa inserção no espaço de integração política, de desenvolvimento e
de segurança, materializado pela União Europeia, caracterizado pelas transferências
de soberania, pela moeda única, pela partilha da ZEE, pelo espaço Scheng, pelas
implicações para a agricultura, pescas, pecuária e indústria, pela circulação de
pessoas, bens e capitais etc.; estamos perante um ambiente estratégico, em que os
interesses nacionais convivem ou se chocam, com os interesses do aprofundamento
da construção europeia e dos poderes que a impulsionam, por vezes, num claro
ambiente de coacção sistémica da própria organização.
O país é membro fundador da OTAN, um espaço euro-atlântico de defesa
colectiva, prevenção de conflitos e de gestão de crises, que hoje é um indiscutível
instrumento da preservação da paz e da segurança internacional, actuando sem
constrangimentos fora da área tradicional do Tratado, em processo de alargamento
a novos membros e a novas parcerias, incluindo a Rússia. É uma aliança que vai
ser confrontada no futuro próximo, com uma estratégia americana mais balanceada
para o Pacifico e onde a participação dos seus membros se afirma pela solidariedade
política, pela partilha de custos, o”burden-sharing” e, sobretudo, pelo cometimento
de tropas nas operações militares que decide conduzir.
A estratégia nacional de afirmação político-diplomática exerce-se num
quadro de relacionamento bilateral e multilateral, que tem como “fora”
privilegiados a ONU e a OSCE; são conhecidos, o empenho e a determinação
nacional no sentido das nomeações como membro não permanente do Conselho
de Segurança, para a presidência da Assembleia Geral e outras Agências, assim
como na OSCE. É um espaço global onde é necessário definir com clareza
que interesses nacionais devem ser prosseguidos ou defendidos, em ambiente
bilateral ou multilateral, estabelecidas prioridades para áreas de especial
interesse para Portugal, como sejam a África, o espaço regional (Espanha e
Maghreb/Mediterrâneo) e os países emergentes (BRIC), de referir ainda que,
em todas estas áreas estratégicas o país tem participado em “fora” multilaterais,
constituindo clara oportunidade para a diplomacia económica e para o acesso a
novos mercados.
Este é também um espaço de Solidariedade e de Segurança Internacional,
onde se legitimam as operações de apoio à paz, sejam de combate ou humanitárias;
no espaço regional permanecem potenciais focos de tensão, quer com o vizinho
histórico, a problemática da escassez da água, das pescas e a demarcação definitiva
da fronteira terrestre, quer no caso da margem sul do mediterrâneo, a imigração
ilegal, o tráfego de drogas e o Terrorismo.
De especial interesse para Portugal a afirmação do espaço da Língua e da
Cultura Portuguesa, em que participam o Brasil, os PALOP, Timor e as Comunidades
Portuguesas que configuram a Diáspora Lusíada e cujo instrumento dinamizador
é constituído pelas políticas de cooperação, em especial a técnico-militar. Neste
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espaço estratégico está constituída a CPLP, que deve ganhar capacidades no
domínio da prevenção e gestão de crises, designadamente para situações como a
vivida actualmente na Guiné-Bissau, ampliando a sua capacidade de intervenção
política; é uma evolução bem percebida pela ONU, que passaria a poder contar
com uma organização falando a mesma língua, com países de diversos continentes,
pertencentes a organizações e alianças diversificadas (EU; OEA; MERCOSUL,
UA, ASEAN, OTAN CEDEAO, CEEAC e a SADC) e liberta dos interesses das
organizações sub-regionais africanas.
O espaço da lusofonia está organizado no quadro da CPLP e, tendo em
consideração a localização geoestratégica dos vários países membros, relativa-
mente ao atlântico sul, configura-se a oportunidade de participação na construção
e efectivação de um qualquer mecanismo de segurança que venha a ser
institucionalizado para aquela área geográfica; este é também um espaço que propicia
a Portugal, uma mais-valia de diferenciação e de poder negocial, relativamente
aos outros espaços em que o país participa. De lamentar, o fim da participação de
Portugal, na operação de paz, conduzida no Líbano a UNIFIL, onde estava a ser
implementada uma parceria inovadora, com grande potencial futuro para a CPLP,
com o beneplácito da ONU e constituída pela integração de uma pequena unidade
de Timor no contingente português, presente naquele território.
Identificados os interesses nacionais a prosseguir e a defender em cada um
destes grandes espaços, define-se um outro, de grande interesse político, de contorno
conjuntural e que tem a ver com o esforço de aquisição da indispensável informação
estratégica, constituindo a sua identificação, a orientação adequada para o serviço
de informações da república e para a ligação deste com organizações e serviços
congéneres, aliados ou amigos.
Desta reflexão pode concluir-se que o EEIN é um grande espaço, diversificado,
geoestratégico e geopolítico, que abrange o território nacional e outras áreas e actores
internacionais de grande importância estratégica para a defesa e concretização dos
interesses nacionais permanentes e actuais, com dois domínios de consideração
prioritária: um, onde se jogam os interesses permanentes da nação portuguesa;
outro, que tem em conta a evolução, as realidades, os riscos, as ameaças e as
oportunidades da conjuntura internacional e onde se procura a defesa e a afirmação
dos demais interesses nacionais.
É para esta realidade estratégica que devem ser indicados os grandes objectivos
às estratégias gerais, económica, político-diplomática, psicológica (valores
nacionais) e militar. Face à crise económica que o país vive, estão identificadas
vulnerabilidades neste domínio, que carecem de correcção, fomentando a
agricultura, as pescas, a pecuária, a competitividade das empresas, a indústria de
valor acrescentado, a capacidade de exportar e ganhar novos mercados, a aposta nas
novas tecnologias (nanotecnologias, biotecnologia, materiais compósitos, células
de novas energias, da informação etc.) e sobretudo na inovação.
30
As políticas de educação, com exigência e combate ao facilitismo, de formação
profissional, de emprego, de saúde, de habitação e justiça social, devem merecer
especial atenção, explicitadas por uma política de verdade, que não se refugie em
afirmações de opções inevitáveis, a par de uma comunicação social a que se exija
responsabilidade, rigor, isenção e postura deontológica, pois constituem factores de
coesão e estabilidade social, indispensáveis à aceitação de sacrifícios, por todos, com
vista à recuperação do país – aquilo que hoje se denomina por Boa Governação.
No domínio da educação, dos valores e da igualdade de oportunidades e de
criação de condições de participação no processo de afirmação da cidadania, é
urgente libertar a sociedade civil da hegemonia partidária, em termos de acção
plena na vivência democrática, motivando os jovens, a partir da escola, através de
uma adequada e isenta formação para a cidadania, para a defesa do ambiente, para a
aceitação e prática dos valores nacionais, para o conhecimento da história nacional,
para a defesa dos direitos humanos e para o voluntariado e solidariedade social.
No quadro político-militar, na actual conjuntura estratégica e com o fim da
guerra fria, há uma clara alteração da importância geoestratégica nacional, que se
baseava no carácter funcional que representava no contexto de uma estratégia de
contenção de blocos, transferida agora para a necessidade da afirmação nacional
de país produtor de segurança, no quadro da segurança cooperativa, criando a
oportunidade para uma possível função de articulação, fruto dos vários grandes
espaços, em que o país se insere.
A segurança e o desenvolvimento têm vindo a ser procurados, através da
integração em grandes espaços, implicando que os actores que compõem esses
conjuntos sistémicos, se não possam alhear da relação entre aqueles dois desígnios
e, face aos interesses em jogo, o processo decisório assuma particular importância,
pelo que estar presente, participar e partilhar as consequências das decisões, tem
de ser uma responsabilidade inalienável, para a qual é indispensável, também, a
capacidade para assumir estas últimas, campo onde a estratégia geral militar é
chamada a dar respostas.
A disponibilidade política nacional para se assumir como um país que conta,
no quadro da segurança cooperativa, tem tido expressão nas operações de apoio à
paz, conduzidas pela ONU, pela OTAN e pela EU, nos teatros do Afeganistão, do
Kosovo, da B-H, do Líbano e no combate à pirataria, numa referência aos mais
recentes; para além do prestígio e reconhecimento internacional trazidos ao país,
essa participação já deu excelentes indicações que devem ser tidas em conta na
futura orientação para a estratégia geral militar, relativamente ao tipo de forças
militares necessárias, ao seu carácter expedicionário e ao treino e tipo de armamento
e equipamento de que devem dispor.
Em suma, é necessário pugnar pela adopção de opções estratégicas para as
diversas estratégias gerais que mantenham o país como parceiro internacional
credível, como actor pleno da cena internacional, em que os atributos do Estado
31
soberano se exercem na plenitude, sendo capaz de afirmar a sua posição política,
os seus objectivos e interesses nacionais, os seus princípios e valores, em quaisquer
situações, quer junto de aliados e amigos, quer perante opositores.
32
incremento do crime internacional organizado, que alimenta a pirataria e outras
acções, que põem em causa a segurança energética, o seu acesso e distribuição e a
livre circulação de pessoas e bens.
A globalização propiciou aquisições contraditórias, desde a informação que
põe em causa regimes ditatoriais, mas também torna conhecidas as realidades e
consequências de uma crise económica/financeira, a par da evidência do fosso
de desenvolvimento entre sociedades afluentes e sociedades quase tidas como
dispensáveis. Neste ambiente é mais nítida a percepção dos custos de energia, em
particular do petróleo e do custo dos alimentos, assim como da partilha de rendimentos
e o acesso ao desenvolvimento, à saúde, à educação e ao emprego, aspectos que
contribuem para agudizar outros factores de tensão e de instabilidade.
No período pós segunda guerra mundial, contactavam-se as massas populares
através da rádio e da televisão; qualquer acção político-militar que visasse alterar
uma liderança política tinha como um dos seus objectivos prioritários, aqueles
meios de comunicação, para difusão da sua mensagem e impedir que outros a
contrariassem. Hoje, a comunicação de massas, por vezes da sua própria iniciativa,
faz-se por satélite, por telemóvel, pela Internet e pelas redes sociais, de maneira
mais rápida e mais abrangente e de difícil controlo ou impedimento.
A associação destes meios tecnológicos, com a disponibilidade de grandes
massas jovens instruídas, mas desempregadas e desocupadas, sem acesso ao
desenvolvimento e a um futuro próximo de realização pessoal e profissional
credível, cria um universo disponível para transformações radicais, para aceitar e
praticar a violência, carente de qualquer tipo de organização, permissível aos apelos
do populismo e do fundamentalismo radical ideológico e xenófobo. Radicalismo
incrementado ainda pelas migrações massivas, desordenadas, provocadas ou
ilegais, de deslocados ou refugiados, pela desagregação da estrutura do Estado
e pelos grandes flagelos sociais, decorrentes da fome, ou do desrespeito pelos
direitos humanos.
O fim da guerra fria e a declaração política do fim das ameaças, criou no
contexto estratégico internacional uma nova avaliação dos riscos, com um
carácter multidimensional e geograficamente disseminados: passaram assim a
ser identificados aqueles que são inerentes ao uso da violência (guerra/conflitos
abertos, terrorismo, proliferação de ADM, grande criminalidade internacional
organizada/máfias, pirataria, tendências radicais utilizando meios violentos) e
outros considerados novos.
Nestes, estão agrupados os que decorrem da introdução de factores de
desequilíbrio do Eco-Sistema (o fenómeno El Niño, as alterações climáticas, a
erosão das costas, a subida do nível das águas dos mares, o efeito de estufa, a
escassez da água, a desertificação, a diminuição da camada de ozono, o degelo
acelerado, chuvas e cheias glaciares, os terramotos e os “tsunami”, a erupção de
vulcões, os tufões, as derrocadas e os deslizamentos de terras e os grandes incêndios
33
(sazonais). A realidade e dimensão destes acontecimentos ultrapassam, normalmente,
as capacidades de resposta nacionais e apela à solidariedade internacional, o que
não dispensa a adequada preparação nacional para os enfrentar e a participação nos
mecanismos internacionais de resposta.
Devem ser considerados também os riscos ligados à evolução da tecnologia e a
utilização gravosa da mesma, sem considerações ambientais e ecológicas, caso dos
lixos tóxicos, da poluição, das chuvas ácidas, os acidentes industriais, envolvendo
produtos químicos, biológicos ou radioactivos e os “apagões” de quaisquer
naturezas; também aqui se verifica, por vezes, face à dimensão dos acontecimentos,
uma incapacidade nacional para lhes dar resposta, sendo indispensável a cooperação
internacional.
Por último, os riscos designados por novos vírus biológicos/sanitários, que
dão origem às pandemias e à perturbação dos ciclos alimentares, ao normal
funcionamento dos mercados e à própria circulação das pessoas; os vírus
tecnológicos, que afectam o processo produtivo industrial e os vírus informáticos,
que podem causar a disrupção do normal funcionamento das tecnologias de
informação e a utilização segura do ciberespaço.
A realidade conflitual actual abriu, para o emprego da coacção e da estratégia
militar, dois novos ambientes operacionais, o espaço e o ciberespaço, onde a
problemática da defesa e da segurança, passa a ter de ser considerada e preparados
os meios de resposta para acções gravosas que aí possam ser levadas a cabo,
impedindo a sua normal utilização; no caso do espaço cósmico, nos próximos dez
anos, admite-se que a sua utilização comercial ultrapasse a militar e que passem
a ser reais e indispensáveis os mecanismos que garantam a sua utilização, em
permanência e em segurança.
As tecnologias e sistemas de informação face ao seu carácter globalizante e
sistémico, a par do que representam para o normal funcionamento da sociedade,
constituem-se hoje como mais um espaço de aplicação do poder e da coacção, um
novo Teatro de Operações, a merecer as mesmas preocupações de segurança e de
defesa que os tradicionais espaços onde a violência pode ter lugar.
É hoje indispensável “patrulhar a Web”, vigiar as auto-estradas da Informação
para as proteger e garantir a sua utilização e, se necessário, atacar os eventuais
perturbadores do sistema; a Internet, os “media” e as telecomunicações são vias e
campos de actuação gravosa, através da utilização das ciber-ferramentas, acessíveis
em termos comerciais, dos vírus, das armas de rádio frequência e do eventual efeito
EMP; a incapacidade nacional para assumir estas responsabilidades determinará
uma grave vulnerabilidade e a atitude irresponsável de só nos apercebermos de que
o “sistema” está comprometido, quando colapsa.
O ciber-terrorismo e a ciber-guerra são realidades da actualidade, podendo criar
uma realidade parodoxal, de um país poder estar sujeito a uma situação de guerra,
de ataque às suas infra estruturas fundamentais, políticas, financeiras, produtivas, de
34
controlo do espaço aéreo, de gestão da informação, etc., sem saber quem a conduz;
um “hacker” pode, na actualidade, pôr em causa o sistema de funcionamento
de uma sociedade, sendo também já uma realidade que as organizações radicais
utilizam hoje a “Web” para obter fundos, promover o recrutamento, disseminar
propaganda e ideias força, obter informações e conseguir e garantir apoios à
estrutura subversiva.
Estamos na actualidade a lidar com um novo espaço de aplicação da estratégia
e com um recurso da mesma natureza, com uma característica diversa dos seus
atributos, este, quanto mais se usa mais se amplia e a sua difusão é geradora de um
efeito “spill over” e está na base do conhecimento, da inovação e do empreendorismo;
é um novo espaço e um recurso que materializa um factor de poder, diferenciador
na cena internacional e um instrumento para influenciar ou coagir. Ignorar esta
situação é assumir uma atitude de menoridade estratégica, que reduz o poder do
Estado e a liberdade de acção política dos seus decisores.
Estudos internacionais recentes estimam que, dentro de dez, quinze anos, cerca
de 60% da população mundial possa estar concentrada em centros urbanos, fazendo
prever que os conflitos futuros tenham a sua solução naquele ambiente, intra-estatal
e entre populações, focalizando-se na conquista dos espíritos e mentes, numa
batalha de percepções e não, na conquista de territórios, respondendo a comunidade
internacional a essas situações, com coligações multinacionais conjunturais.
Tendo presente a experiência operacional recente nos diversos teatros onde
as nossas Forças Nacionais Destacadas têm actuado, é legítimo prospectivar
que no futuro próximo a conflitualidade seja fundamentalmente terrestre, com
um ambiente beligerante de significativa intensidade, com carácter urbano,
privilegiando a assimetria, mas tirando partido da tecnologia, dos sistemas de
informação e da acção dos “media” e do impacto da informação global em tempo
real, capaz de inibir os espíritos e limitar a liberdade de acção e determinação dos
decisores políticos.
A experiência da conflitualidade actual diz-nos também que os conflitos abertos
ganham-se ou perdem-se nos teatros de operações terrestres. A posse de melhor
tecnologia, não dispensa a colocação e presença de tropas no terreno, com efectivos
adequados à missão atribuída e aos objectivos que se pretenda alcançar; não ter
estes aspectos na devida consideração, corresponde a evidenciar a sua insuficiência
no teatro de operações, aumentando o risco de um maior número de baixas nas
nossas forças, a uma maior necessidade de apoio aéreo, quer em helicópteros, quer
em aviões de combate para apoio às forças terrestres, a maiores riscos de baixas
civis e danos colaterais, maior necessidade de apoio das forças locais, nem sempre
devidamente aptas a poder fornecê-lo e, também extremamente penalizador, tornar
mais difícil a consecução dos grandes objectivos da campanha, designadamente,
menor progresso nas áreas da reconstrução e do desenvolvimento, por ausência do
ambiente de segurança necessário.
35
Respostas – Instrumentos e Âmbito de Actuação
36
pela presença e acção dos “media” nos teatros de operações e junto das forças
militares, tornando acessível à opinião pública a informação em tempo real,
reduzindo a realidade do conflito (causas, razões, motivações, interesses das partes,
consequências, etc.), às imagens transmitidas.
Na conjuntura estratégica actual, em que é ténue a fronteira entre a paz e a
guerra, as Forças Armadas têm de evidenciar a sua capacidade para desempenhar
a missão constitucional da defesa militar da Pátria e responder igualmente aos
desafios da construção da paz, às exigências da abertura à sociedade e às realidades
da modernidade e da inovação.
Vivemos hoje num mundo marcado por um arco de instabilidade que se estende
pelo Norte de África, prolonga-se pelo Médio Oriente e pelo Sudoeste da Ásia, que
evidencia também uma tensão entre a cultura ocidental e o islamismo, a par do
terrorismo transnacional; nesse ambiente, assistimos igualmente à proliferação de
tecnologias que permitem o acesso aos mísseis balísticos e às armas de destruição
massiva e temos dúvidas quanto ao potencial comportamento futuro de grandes
poderes como a China e a Índia.
É necessário antecipar a mudança estratégica, quer da ameaça e do seu carácter
qualitativo, quer das capacidades para lhe fazer face, quer ainda dos ambientes
operacionais onde será necessário intervir (para além dos tradicionais, também o
espaço e o ciberespaço), considerando ainda que já hoje esse ambiente cortou com
algumas realidades do passado; com a informação em tempo real aproximámos o
fim da distância, quebrámos as limitações da noite, ultrapassámos a camuflagem
tradicional e penetrámos a profundidade dos oceanos, entrámos na era da informação
electrónica, da imagem radiológica e electrónica, da visão termal e optrónica, da
integração multimédia, da interactividade e da conectividade, tudo isto potenciado
pelas nanotecnologias.
Também o carácter fluido e híbrido das operações militares, em ambiente
assimétrico, introduziu uma compressão nos níveis de decisão e execução
estratégica, operacional e táctico; aquilo que se passa num “check-point” poderá
ser extremamente penalizador para os objectivos da campanha, o que obriga a uma
nova preocupação na formação de quadros e tropas, em especial os comandantes
dos baixos escalões, a lidar com a ambiguidade e com as situações de incerteza e
a fomentar o espírito de iniciativa e de autonomia de decisão, no quadro final das
operações.
A estratégia militar tem vindo a encontrar soluções operacionais para
responder aos novos riscos e ameaças, em particular ao ambiente de insurgência
e às características do conflito assimétrico, mas manda a prudência e o bom senso
que a organização militar e o reequipamento sejam conduzidos para responder
aos cenários conflituais mais prováveis, prevendo contudo os mais perigosos,
designadamente o combate convencional simétrico entre unidades políticas. Para um
país com a dimensão estratégica de Portugal, capacidades militares existentes que se
37
eliminem, ou eufemísticamente se congelem, dificilmente serão reconstituídas com
oportunidade, pois não se improvisam, a doutrina de emprego e os especialistas
para os meios e sistemas de armas, que as materializam.
A política de reequipamento para as Forças Armadas, tem de ter em conta,
naturalmente, a capacidade económica do país, mas também a prioridade das
missões a desempenhar por cada um dos Ramos e um esforço harmónico de
modernização entre eles. Não é isso que tem acontecido, enquanto se assiste a
programas diversificados e de alta tecnologia para a Marinha (submarinos, fragatas,
hélis para luta anti-submarina, navio logístico, patrulhões e demais meios navais),
e para a Força Aérea (F-16, C-130, C-295, P-3 Orion, hélis EH-101 e demais meios
aéreos), o Exército vê cancelados projectos estruturantes dos helicópteros médios
NH-90, dos hélis ligeiros, das VTLB 4x4, da Arma Ligeira (a espingarda G-3, está
ao serviço desde 1961) e truncados os programas da Pandur 8x8 e dos CC Leopard.
Em termos de FND, o Exército tem estado, em permanência, em três TO.
A não existência de helicópteros, médios e ligeiros no Exército, constitui uma
limitação operacional grave, que não tem paralelo ao nível da OTAN, em países
membros com a nossa dimensão estratégica, reduzindo as condições de emprego
da Brigada de Reacção Rápida, assim como a carência de VTLB 4x4, implicou
que no Afeganistão se actuasse com material emprestado pela Espanha e pelos
EUA; quanto à Arma Ligeira é inexplicável a não finalização dos vários concursos
lançados, que acabam por ser cancelados, sempre por razões diversas; desta vez,
por informação do MDN, por já não serem permitidas as contrapartidas e o próximo
concurso ser mais vantajoso, desconhece-se é quando será lançado.
ATutela parece desconhecer que o Exército é um Ramo extremamente complexo,
em que a capacidade efectiva e a operacionalidade decorrem da modernidade, da
eficácia, da coerência, da compatibilidade, da sincronia e das sinergias dos sistemas
de armas e tecnologias de informação, que servem o Comando e o Controlo, a
Manobra, o Apoio de Fogos, o Apoio de Combate e o Apoio de Serviços; as opções
que têm vindo a ser tomadas, até parece que se tem uma visão de grande potência,
para a Marinha e Força Aérea e de emprego ainda colonial, para o Exército.
As Forças Armadas, em termos da política externa e salvaguarda da liberdade
de decisão política nacional, têm de ser capazes de dar resposta aos desafios da
globalização, estarem aptas a actuar nos grandes acontecimentos da segurança e
da protecção da paz, no quadro da ONU, da OTAN da EU e, eventualmente, da
OSCE e da UA e no combate aos novos riscos e ameaças, que anteriormente foram
descritos.
A existência de uma capacidade militar credível funciona, do ponto de vista
político, como um elemento diferenciador, entre os actores internacionais que
contam, ou que são dispensáveis. Concretamente, a existência de Forças Armadas
consideradas credíveis, capazes de serem parceiros em operações multinacionais,
de actuarem em teatros de operações de grande exigência, sem limitações e
38
com reconhecido profissionalismo e competência, são elemento de prestígio, de
afirmação e de credibilidade política do actor no contexto internacional, permitindo
a este participar, ou não, em determinado acontecimento, por opção política que
fundamenta e não por notória incapacidade material do seu instrumento militar
para o fazer.
As Forças Armadas como atributo do estado soberano, constituem-se
como expressão visível da vontade de defesa do actor e da sua determinação e
disponibilidade para defender os interesses nacionais, através da coacção militar,
são instrumento para apoio à política externa do Estado, evitando vazios estratégicos
e situações de facto consumado, permitindo caracterizar a agressão, fazer subir o
nível de afrontamento, tornando-a evidente e dando tempo à política, para fazer
funcionar os mecanismos político e diplomáticos, nacionais e internacionais, junto
de aliados e organizações, capazes de fazerem a sua contenção.
É também a única instituição, em termos nacionais, com a disponibilidade e
auto sustentação para funcionar, em situações limite, de risco ou de grande exigência,
em permanência e por tempo indeterminado. Têm ainda a vocação para a vigilância
e protecção da estabilidade, constituindo-se como instrumento privilegiado para a
gestão de crises e para a neutralização de situações de perturbação do sistema (seja
a nível interno, seja a nível externo) e rege-se por um quadro de valores, em que
predomina a disponibilidade, a isenção, a determinação, o patriotismo, a gestão da
violência e o espírito de sacrifício, perante situações extremas de risco de vida.
Às Forças Armadas e ao Exército em particular, podem ser atribuídas missões
de apoio às populações e de extensão da tradicional acção das administrações
civis, orientadas para a reorganização das suas condições de vida, no campo social,
administrativo, sanitário e também económico; são empenhamentos complexos e
prolongados, conduzidos normalmente em regiões de grande carência, por vezes
em ambiente de insegurança, precursoras do desenvolvimento e do relacionamento
entre comunidades em tensão.
Como já se referiu, embora se reconheça que os teatros de operações actuais,
sejam fundamentalmente terrestres e urbanos, o antagonista procura igualmente
trazer os navios para junto da costa, quer para o exercício da pirataria, quer para
atentados, assim como criar condições para que os aviões e helicópteros voem
mais perto do terreno, tornando-os mais vulneráveis aos meios antiaéreos de baixa
altitude; para além disso, contudo, continua a ser necessário garantir a utilização
segura das SLOC (o abastecimento diversificado continua a ser vital, na guerra e
na paz) e a superioridade no ar, constitui-se como requisito necessário ao sucesso
na terra e no mar.
A preponderância da eficácia no emprego de forças terrestres nos vários
cenários ou opções militares advém, em grande medida, da sua versatibilidade,
sendo perceptível a sua adequabilidade e flexibilidade de emprego, pois permitem
um maior leque de opções, para as operações de baixa ou média intensidade, em
39
ambiente conjunto ou combinado, com especial rendimento operacional, no conflito
assimétrico, pelo seu factor humano, do que as componentes aérea e naval, com
uma índole mais tecnológica.
É importante que os decisores políticos tenham presente que, num ambiente
de pressão sistémica das alianças e organizações internacionais, quanto ao
cometimento dos instrumentos militares nas operações multinacionais de apoio à
paz, os efectivos e as unidades a colocar no terreno (“boots on the ground”), não
são substituíveis por poder aéreo ou poder de fogo (“air power/fire power).
O Exército dispõe hoje de uma força operacional apta para o emprego efectivo
em todo o espectro da conflitualidade actual e para fazer face às novas ameaças,
constituindo uma opção estruturante, correspondendo a critérios de necessidade,
utilidade e proporcionalidade, face à realidade do país e às expectativas dos
cenários estratégicos mais prováveis, garantindo a possibilidade de ajustamento a
alterações de um cenário de emprego mais provável, para outro, operacionalmente
mais exigente.
Essa força operacional (FOPE), tem uma estrutura já consolidada,
materializando uma possibilidade de opção entre forças mais pesadas, com maior
poder de fogo e protecção blindada e forças médias ou ligeiras, estas altamente
projectáveis e com grande capacidade de empenhamento em combate, dando corpo
a três Brigadas, equipadas com sistemas de armas distintos, permitindo grande
flexibilidade de emprego operacional.
Assim foram estabelecidos para cada uma das Brigadas, níveis diferenciados
de empenhamento operacional, com especial ênfase na OTAN, nas suas propostas
de forças e nas NRF e no “Batle Group” da EU: a Brigada de Reacção Rápida com
grande prontidão operacional e capacidade de projecção estratégica, garantindo a
identidade e capacidades das várias Forças Especiais (Comandos, Paraquedistas e
Operações Especiais), constituindo-se como “Initial Entry Force”, em teatros de
operações de grande exigência, a par de garantir o núcleo fundamental da Força
de reacção Imediata à ordem do CEMGFA; a Brigada de Intervenção constituindo
um conjunto coerente de meios e capacidades médias (Pandur), orientadas para
o levantamento, comando e enquadramento, de um BG da EU, sempre que
Portugal seja Nação Líder desse objectivo de Forças, como aconteceu no segundo
semestre de 2011, enquadrando unidades espanholas, francesas e italianas; a
Brigada Mecanizada que garante a manutenção da capacidade pesada, com meios
mecanizados e blindados, permitindo a geração de um Grupo de Reconhecimento,
no âmbito das propostas de forças para a OTAN ou de um Agrupamento Mecanizado,
no quadro das NRF.
Constituem também elementos da FOPE, as Forças de Apoio Geral que são
unidades de apoio de combate e de apoio de serviços, que asseguram capacidades
adicionais de Força às Brigadas, assim como apoios específicos em ISTAR, Defesa
Biológica e Química e Guerra da Informação; nos arquipélagos da Madeira e
40
dos Açores, estão territorialmente implantadas unidades militares geradoras de
Batalhões de Infantaria e Baterias de Antiaérea de baixa altitude, com a missão
de assegurar a defesa imediata, o patrulhamento e o controlo de áreas sensíveis
daquelas regiões.
Com esta estrutura operacional é dada resposta ao nível de ambição expresso
no Conceito Estratégico Militar em vigor, permitindo colocar uma Unidade de
escalão Batalhão, (dimensão táctica mínima que tem capacidade operacional para
assumir a responsabilidade por uma região e tornar visível a presença político-
militar do país), em simultâneo, em três TO distintos, em operações conduzidas
pela ONU, pela OTAN e pela EU, com tem vindo a acontecer. Em alternativa,
empregar num só teatro, uma Brigada.
41
por exemplo a Alemanha, a França, o Reino Unido e o Brasil; também não será o
mercado interno (Forças Armadas e Forças de Segurança Interna), que conseguirá
garantir a sua sobrevivência, nem a mesma é capaz de suprir as necessidades em
grandes sistemas de armas e grandes equipamentos.
Afigura-se mais lógico, mais realista e mais vantajoso, a participação em
projectos cooperativos, com uma repartição séria e justa da relação “cost share” e
“work share” e não, a tradicional saga das contrapartidas, quer pela transferência
de tecnologia, trabalho garantido à indústria nacional, que não exclusivamente a de
defesa, participação no mercado internacional e nos desenvolvimentos subsequentes
do projecto e, muito importante para as Forças Armadas, o acesso a meios de
equipamento e sistemas de armas que, de outra forma, seria incomportável.
Tudo isto são razões e argumentos para não se entender a decisão do MDN de
colocar em causa o único projecto cooperativo em que Portugal participa, há vários
anos, o do Helicóptero NH-90, que já custou ao país cerca de 90 M €, mais os
gastos na preparação dos pilotos, dos mecânicos e na adaptação de infra estruturas,
cuja saída implica a perda de uma fatia substancial dos 130 M €, em “work share”,
atribuídos pelo contracto inicial à indústria nacional, para além das decorrentes
penalizações que, em Dezembro de 2011 poderiam chegar a cerca de 250 M €.
No custo do projecto para o futuro, que tem vindo a ser salientado pelo
MDN, não tem sido explicitado que, nesse valor, está incluído um contracto de
manutenção, de cerca de 260 M €, com sobressalentes, para um período de dez
anos, após entrarem em funcionamento operacional, as dez aeronaves – situação
única, em qualquer contracto de aquisição de meios aéreos realizado até agora,
pelo país.
Tendo em conta os custos reais e potenciais da saída do projecto, (o que já
se pagou e as previsíveis penalizações), continuando o país e o Exército sem as
aeronaves, não parece que, designadamente em tempo de crise, esta seja a melhor
forma de defender a economia nacional, tanto mais que, perante a divulgação pelo
Tribunal de Contas, do acréscimo de custos de projectos, que não do Exército, de
42% passando de 275 M €, para 390 M € e de 50%, passando de 244 M €, para 364
M €, por opções aquisitivas do MDN, se continua a dar justificações no sentido da
“bondade” das mesmas.
Quanto às transferências de verbas, também mencionadas pelo TC,
corresponderam à descapitalização de outros projectos, objectivamente do das
“Pandur”, em quase 100 M € e, muito provavelmente, no do NH-90, gerido pela
DGAED/MND, tudo isto numa LPM planeada em 2006 que nunca conseguiu
realizar a verba inscrita de 290M €, proveniente da alienação de material de guerra,
(F-16, Fragatas e helicópteros PUMA) e com sucessivas cativações, que hoje
atingem 40%.
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A HISTÓRIA MILITAR EM PORTUGAL
43
44
A HISTÓRIA MILITAR EM PORTUGAL
1 – Antecedentes
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cultural, preferindo o colectivo e a sociedade ao individual, deixando definitivamente
a exclusividade da função patriótica e adquirindo um discurso científico.
A história militar, tratada em círculos fechados essencialmente por militares
reformados e amadores no melhor sentido do termo, mantém as características
anteriores, perde interesse para os académicos e para os estudiosos e entra em
franca crise, da qual só começa a emergir na década de setenta.
2 – Evolução
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académicos interessados nestes temas, e um número sucessivamente crescente de
teses académicas em história militar, movimento seguido pelas editoras que têm
vindo, também elas, a dedicar-lhe um incremento de publicações. Esta situação
é reconhecida pelas velhas Academias que, todas elas – Academia Portuguesa da
História, Academia das Ciências de Lisboa e Sociedade de Geografia de Lisboa –
elegeram nos últimos anos para membros efectivos e correspondentes um número
relativamente elevado de militares reconhecidos por elas pelos seus conhecimentos
académicos nesta área do saber. Paralelamente, a CPHM, a Academia de Marinha,
o IESM e os organismos dos três Ramos referidos acima (AM, EN, AFA, DHCM,
CCM e CHCFA) incluem académicos entre os seus membros e detêm protocolos
com diferentes Universidades.
3 – Um “caso de estudo”
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carreira, publicando depois as respectivas actas. No corrente ano estamos a organizar
o XXI Colóquio, estando já publicados 28 volumes com mais de uma dezena de
milhar de páginas que encerram 682 conferências de investigadores portugueses e
60 de estrangeiros cobrindo todas as épocas e leque de áreas temáticas. Nos últimos
cinco anos tem vindo também a organizar-se umas jornadas de memória militar
que pretendem documentar os feitos de organismos ou personalidades militares
em prol do desenvolvimento do País fora do âmbito da sua actividade própria e
específica e das quais também já se publicaram as respectivas actas que contém os
trabalhos apresentados por 42 conferencistas nacionais. No sentido de estimular a
investigação neste âmbito foi criado o Prémio de Defesa Nacional de História
Militar que tem vindo a ser atribuído desde 1990 havendo já 31 vencedores (alguns
ex-aequo) de entre largas dezenas de concorrentes com obras de grande valia.
Para promover o conhecimento da história militar portuguesa e apoiar a
celebração de eventos relacionados com a identidade e a independência nacionais,
tem, paralelamente, a CPHM vindo a patrocinar a publicação de obras com interesse
neste campo científico editadas por diversas editoras, do Norte ao Sul do País, através
da compra de um número variável de exemplares mas suficientemente atractivo
para garantir o interesse comercial da edição, exemplares esses que, posteriormente,
a CPHM distribui pelas bibliotecas militares, das Academias, das Faculdades de
Letras ou de Ciências Sociais e Humanas das Universidades, das Autarquias e onde
os interessados ou o grande público as pode encontrar e consultar; tais patrocínios
são responsáveis pela publicação de 122 obras que cobrem, também elas, todas
as épocas e temas da «nova história militar» tendo havido iniciativas e/ou o apoio
às de outros no sentido de comemorar acontecimentos de importância na história
militar de Portugal sendo de realçar a sessão comemorativa da Conquista de Madrid
na Guerra de Sucessão de Espanha pelo Marquês das Minas, as comemorações das
batalhas de Aljubarrota ou das da Guerra da Aclamação, ou as muitas actividades
integradas no Bicentenário da Guerra Peninsular, estando em preparação as que
comemorarão o centenário da I Guerra Mundial.
Quanto à realização de encontros, seminários e conferências de carácter
histórico-militar, de iniciativa própria ou participando nos de iniciativa alheia,
tem sido uma constante ao longo dos anos quer no País quer no estrangeiro. Estas
iniciativas têm contribuído fortemente para o prestígio de que a CPHM hoje desfruta
aquém e além fronteiras e como delas são, normalmente, editadas actas também
estes trabalhos são susceptíveis de consulta pelo público interessado.
No desenvolvimento das relações com as universidades pode dizer-se que
a CPHM dispõe hoje em dia de protocolos de cooperação com muitas delas,
nomeadamente com a Universidade de Lisboa e a Universidade Nova de Lisboa,
com a Universidade de Coimbra, a Universidade do Porto, a Universidade de Évora
ou a Universidade do Minho. De todas estas universidades e de outras, públicas e
privadas, há ilustres mestres sentados no nosso conselho científico, daqui resultando
48
actividades conjuntas do maior interesse, a nossa participação em cursos de pós-
graduação ou de mestrado organizados pelas diferentes universidades ou organizados
em parceria e, como consequência lógica, um grande número de interessantes teses
académicas que ultimamente têm surgido sobre temas de história militar.
Para assegurar a representação internacional na nossa área de intervenção temos
vindo a participar em todos os congressos da Comissão Internacional de História
Militar que, desde 1989, têm passado por Espanha, Suíça, Itália, Turquia, Polónia,
Canadá, Áustria, Bélgica, Suécia, Grécia, Estados Unidos da América, Roménia,
Marrocos, Alemanha, África do Sul, Holanda, Brasil e Bulgária, procurando neles
apresentar comunicações de reconhecidos especialistas portuguesas no respectivo
tema, membros do nosso conselho científico a maioria das vezes, o que tem sido
reconhecido pelos nossos pares internacionais através dos convites que nos são
endereçados para participarmos na própria Comissão Internacional (o Gen Themudo
Barata foi vice-presidente e temos portugueses em todos os Comités – dos Arquivos,
Bibliográfico e de Educação – cujos trabalhos são sempre apreciados e elogiados).
A CPHM foi convidada a organizar os XXIV Congresso (em Lisboa, em 1998, A
Guerra e o Encontro de Civilizações a Partir do Século XVI) e o XXXV (no Porto,
em 2009, A Guerra no Tempo de Napoleão), que constituíram um autêntico sucesso,
com a presença de 148 comunicantes (120 estrangeiros e 28 portugueses) e cujas
actas, com respectivamente 830 e 1365 páginas, editadas pela CPHM, são de consulta
obrigatória nos meios científicos internacionais pelo seu interesse e qualidade.
Finalmente, na área da organização, manutenção e disponibilização de bases
de dados podemos referir o incremento ultimamente dado ao nosso Centro de
Documentação e Informação que, mercê das nossas publicações e patrocínios, de
doações de autores, editores e amigos ou de heranças, como é o caso do Senhor
Coronel Nuno Valdez dos Santos que nos legou a sua biblioteca temática de história
militar, tendo começado do zero, dispomos já de uma biblioteca com alguns milhares
de livros e documentos relativos a esta área científica que obviamente está ao dispor
de quem a quiser consultar.
Em resumo diremos que ao longo destes anos editámos 42 obras e patrocinamos
122. Participámos em 21 congressos da Comissão Internacional, tendo organizado
dois deles, e em vários organizados por Comissões Nacionais para os quais fomos
convidados. Organizámos e/ou participámos em todos os seminários, colóquios
e congressos, nacionais e estrangeiros, para que fomos convidados num número
da ordem das dezenas em cada ano. Criámos uma biblioteca especializada e de
qualidade acessível a todos quantos nos procuram. Podemos, por isto, referir a
terminar, sem falsa modéstia, que o trabalho desenvolvido contribuiu decisivamente
para um panorama completamente diferente do existente há vinte anos e, ainda, que
o ponto de situação actual não nos envergonha relativamente a qualquer outro país
dos considerados mais avançados nesta área científica.
49
ANEXOS
A) COLÓQUIOS DA CPHM
Nacionalidade
Colóquio obs
Português Estrangeiro
I 18 1 - Pres Honra CIHM
II 41 1 - Pres CIHM
III 24 2 - VPres CIHM
- França
IV 24 2 - VPres CIHM
- Italia
V 25 2 - Pres Com Suíça
- Itália
VI 18 1 - Se Geral CIHM
VII 15 1 - Suíça
VIII 20 2 - Pres Com Romenia
- Romenia
IX 27 1 - Pers Com Polónia
X 20 4 - Dep Ens Ex Brasil (1)
- Brasil (3)
XI 20 4 - Vogal CIHM
- Pres Com França
- Espanha
- França
XII 24 4 - Tunisia (2)
- Marrocos (2)
XIII 33 2 França
XIV 41 6 - Vogal CIHM (2)
- Pres Com Suiça
- VPres Com Marrocos
- Marrocos (2)
XV 51 3 - Pres Com Brasil
- Brasil
XVI 50 3 OHSJDeus
XVII 78 20 (a)
XVIII 43
XIX 44
XX 60 1 Espanha
Simp 6
SoMA 682 60
País (a) Qnt
Inglaterra 11
Espanha 5
Brasil 2
Grecia 2
50
B) CONGRESSOS DA CIHM ORGANIZADOS PELA CPHM
51
C) JORNADAS DE MEMÓRIA MILITAR
D) Participação da CPHM em outros Congressos Internacionais
52
E) PUBLICAÇÕES
F) RESUMO
Portugueses Estrangeiros
Colóquios 682 60 742
Congressos 28 120 148
Jornadas 42 42
Participação em Congressos 44
44
Internacionais
ToTAIS 796 180 976
53
54
O NOVO AMBIENTE ESTRATÉGICO: UMA REFLEXÃO
SOBRE AS MUDANÇAS NA DISTRIBUIÇÃO DO PODER
INTERNACIONAL
55
56
O NOVO AMBIENTE ESTRATÉGICO: UMA REFLEXÃO SOBRE AS
MUDANÇAS NA DISTRIBUIÇÃO DO PODER INTERNACIONAL
1
Expressão atribuída a um dos participantes na 39ª Conferência de Comandantes dos Colégios de Defesa NATO,
realizada em maio de 2010, em Istambul.
57
As mudanças na distribuição do poder internacional
2
VIANA, Vítor Rodrigues, Segurança Coletiva: a ONU e as Operações de Apoio à Paz. Edições Cosmos, Instituto
da Defesa Nacional, 2002.
58
não arriscar a sua caracterização definitiva. Todavia, considerava, na altura, que a
definição dos vários polos do poder mundial e a forma como se manifestariam no
futuro os respetivos poderes, dependeria da resposta às seguintes questões: i) onde
terminaria o recuo estratégico da Rússia; ii) como se orientariam as prioridades dos
EUA; iii) até onde iria o Japão; iv) como evoluiria a China, a grande incógnita do
séc. XXI; v) que Europa iriamos ter.
O revisitar destes tópicos, passada uma década, evidencia a permanência de
muitas linhas de continuidade no sistema internacional. E os acontecimentos de
11 de setembro de 2001, contrariamente ao anunciado por alguns analistas, não
conduziram exatamente a um novo modelo de ordenamento internacional. Porém,
este exercício retrospetivo, também permite constatar que vivemos numa época de
mudança na configuração da relação de forças que antecipa alterações na estrutura
do Poder Internacional.
A mudança que está em curso nas relações de forças entre os Estados já originou
consequências em termos de distribuição do poder mundial, fazendo emergir novos
polos. Mas a evolução mais notória prende-se com a transformação operada nos
fundamentos económicos do Poder, isto é, com a renovada importância do fator
económico na distribuição do poder mundial.
É verdade que o Poder assenta numa diversidade de bases e no equilíbrio e
interdependência entre as suas várias dimensões – política, militar, económica,
tecnológica e cultural. Mas também é certo, como sublinhou Raymond Aron, que
os fatores do Poder variam consoante a época e não são imutáveis.3 Atualmente,
o Poder tem um carácter mais difuso e a globalização da economia veio dar uma
crescente importância ao fator económico do Poder. Por outro lado, é sabido que
o fortalecimento do potencial económico tem importantes repercussões nos outros
elementos do poder, como o militar, o tecnológico e mesmo o político.
De facto, a atual crise económica e financeira é essencialmente Ocidental, não
estando a atingir, na mesma dimensão, o forte crescimento de muito países do Sul
e do Oriente. Está a funcionar como um importante acelerador de transferência de
riqueza e a acentuar ainda mais a transição do Poder do seu centro tradicional nos
últimos séculos – o Ocidente – para Sul e Oriente.
Se retomarmos as questões antes levantadas, quanto à distribuição do Poder
no sistema internacional, poderemos ensaiar as seguintes respostas: a Rússia
reemergiu como potência que afirma a sua esfera de influência, mantendo a
paridade nuclear estratégica com os Estados Unidos; os EUA mantêm-se ainda
como a maior potência mundial, mas parecem estar a entrar num período de
retração na cena internacional e de primado das questões económicas internas
(embora existam limites para esse retraimento, já que os interesses dos Estados
Unidos continuam a ser globais); o Japão “estagnou”; a China consolidou o
3
ARON, Raymond, “Paz e Guerra entre as Nações”, 2ª edição, editora Universidade de Brasília, Brasília, 1986.
59
seu estatuto de grande potência em ascensão (uma das cinco “Ilhas do Poder
Global”, na classificação de Loureiro dos Santos4); a Europa, apesar do seu
potencial para se tornar muito mais importante como polo de poder mundial (se
se tornar politicamente coesa), enfrenta uma grave crise financeira que afetou
fortemente o projeto de integração europeia e a solidariedade e solidez do seu
núcleo, a Zona Euro.
Se considerarmos, adicionalmente, a emergência de potências de dimensão
continental como a Índia e o Brasil, e de outros poderes regionais crescentes, tudo
sugere uma ordem internacional que tende a evoluir e a estruturar-se de forma
multipolar, com “5 grandes potências no seu núcleo duro: EUA, China, Índia,
Rússia e Brasil”5.
Uma segunda reflexão prende-se com uma conhecida tendência nos estudos
de segurança que adverte para os riscos acrescidos de conflito nestes períodos de
transição de poder hegemónico e de grandes mudanças nos equilíbrios de poder
regionais e globais.
Isto não significa, necessariamente, conflito armado direto porque a ocorrência
de uma grande guerra entre grandes potências tornou-se muito pouco provável face
aos efeitos dissuasores das armas nucleares. Mas uma transição deste tipo comporta
inevitavelmente incertezas e tensões e torna também mais arriscada a previsão e a
tomada de decisões.
Esta reflexão incentiva a uma ponderação sobre o impacto geopolítico das
mudanças a que aludimos, nas diferentes regiões do globo. Por razões de economia
de texto abordarei, brevemente, apenas três regiões: a Europa; o Norte de África e
o Médio Oriente; e a Ásia.
A Europa
4
SANTOS, José Alberto Loureiro dos, “As Guerras Que Já Aí Estão e as Que nos Esperam se os Políticos Não
Mudarem. Reflexões sobre Estratégia”, Vol. VI, Editora Europa-América, Lisboa, 2009.
5
Idem.
60
divisões internas e evidenciaram quebras de solidariedade e problemas
estruturais que poderão condicionar negativamente a estabilidade regional.
Tudo aponta para que a grave crise – económica, social e política – com que a
UE se confronta a inibirá de desempenhar um papel global na cena internacional
nos próximos anos.
De facto, acentuou-se a fratura entre as ‘várias europas’ pela forma como a
Alemanha se comportou face à crise financeira grega, o que gerou uma profunda
desconfiança, especialmente dos Estados mais pequenos, quanto à solidariedade na
União Europeia.
O impacto da crise económica e financeira internacional no desenvolvimento
das políticas europeias vem potenciando medidas de contenção e de reajustamento e
a política de segurança e defesa não será, certamente, exceção. Por isso, a capacidade
da União Europeia projetar poder globalmente, e de garantir a segurança na sua
vizinhança próxima, poderá ser fortemente condicionada se ocorrerem reduções
excessivas nos orçamentos para a segurança e defesa.
Mas se a Europa quer manter-se próspera, tem também de ser segura. Os
“Fins” últimos a alcançar são um espaço seguro e um espaço desenvolvido. E aqui,
os países periféricos passam a ter uma importância central.
Isto significa que – aproveitando a crise para fazer ajustamentos – não devem
ser descurados os desafios de segurança e que os orçamentos da defesa devem ser
encarados na Europa, não como um luxo, mas como uma evidente necessidade. A
reorientação das prioridades estratégicas dos EUA para a Ásia-Pacífico e a retração
do seu dispositivo de forças militares na Europa (consignada na nova Diretiva
Estratégica para a Defesa, publicada em janeiro de 20126) reforçam esta evidência,
por força do seu inevitável impacto na NATO e consequente necessidade da Europa
assumir um acrescido empenhamento na defesa europeia e na segurança da sua
vizinhança próxima.
Na atual conjuntura internacional a prioridade da Europa, em termos de
relacionamento, deve dirigir-se para três países, uma região e um continente.
Os três países a que nos reportamos são os Estados Unidos, a Rússia e a
Turquia. Os EUA, pela necessidade de reforçar a agenda multilateral, fortalecer
o vínculo transatlântico e assegurar a indispensável convergência estratégica,
numa conjuntura em que as prioridades dos Estados Unidos se orientam para a
região da Ásia-Pacífico. A Rússia, face ao objetivo estratégico de desenvolver
uma parceria construtiva no domínio da segurança energética e de outras
dimensões tradicionais de segurança para fazer face a ameaças comuns. E
a Turquia, pela sua importância para a segurança europeia e elevado valor
geoestratégico.
6
“Sustaining U.S. Global Leadership: Priorities for 21st Century Defense”, Department of Defense, January 2012
(disponível em http://graphics8.nytimes.com/packages/pdf/us/20120106-PENTAGON.pdf).
61
Quanto à região, referimo-nos ao Mediterrâneo ou, mais concretamente, à
região do Norte de África e Médio Oriente. Trata-se de uma região crítica para
a segurança da Europa que reclama uma ação estratégica integrada por parte da
União Europeia.
Relativamente ao continente, falamos de África. Porque se trata de um
continente em acelerada mutação, com enormes recursos naturais e energéticos7
- que apontam para um forte potencial de crescimento económico8 - mas também
pela persistência de dilemas de segurança que potenciam a gestação de ameaças à
segurança internacional9.
A crise económica e financeira deixará marcas profundas. Por isso, sendo certo
que os esforços necessários para superar a crise do euro constituem o principal
desafio atual, o peso da conjuntura não pode continuar a afastar a União Europeia
do aprofundamento do seu projeto de integração nem da ponderação sobre o papel
que a Europa pode e deve ter no mundo. E é também necessário, desde já, começar
a preparar o período pós-crise.
Como referiu Samuel Huntington, a União Europeia, desde que se torne
politicamente coesa, reúne todos os atributos para assegurar a sua projeção
internacional e tornar-se um importante polo de poder mundial: população,
recursos, riqueza económica, tecnologia e força militar potencial e efetiva.10 É
necessário, sobretudo, que se transforme numa entidade politicamente coerente,
solidária, com uma política externa e de segurança e defesa ativa e devidamente
coordenada.
São múltiplos os cenários que se podem antecipar para o pós-crise. Como
muitas são as incógnitas. A crise abriu clivagens profundas entre o centro e
a periferia que urge ultrapassar. O futuro do processo de integração europeia
dependerá, em larga medida: da forma como a União Europeia irá superar a
crise da zona euro (que terá de ser inclusiva e solidária) e reverter a perda
de adesão dos cidadãos; da capacidade que demonstrar para restaurar a sua
credibilidade perante os atores internacionais de relevo; e dos equilíbrios
internos de poder que irão emergir entre a Alemanha, a França e o Reino Unido
após o fim da crise.
7
Por isso o continente africano também é cada vez mais um palco de disputa estratégica pelos recursos.
8
Em 2010, África registou um sólido crescimento económico – média de 4,7% depois de 2,3% em 2009, mais
significativo na África subsariana do que no Norte - e uma melhoria nos indicadores de desenvolvimento social,
particularmente nas áreas da saúde e da educação.
9
De facto, a existência de Estados frágeis ou em colapso tem implicações em termos de segurança, com expressão
visível nos fenómenos do terrorismo e da pirataria, nas ramificações regionais do narcotráfico e na projeção da
criminalidade organizada, associada aos vários tipos de tráficos transnacionais.
10
HUNTINGTON, Samuel P., “The Clash of Civilizations?”. In Revista Foreign Affairs, New York, Summer
volume 72, n.º 3, 1993.
62
O Norte de África e o Médio Oriente
63
Persistem os riscos de proliferação nuclear, bem como algumas tendências
para o extremismo. Os conflitos existentes e a porosidade das fronteiras potenciam
situações de vazio de poder e a expansão da insegurança para espaços contíguos -
como o Sahel - onde a instabilidade política, económica e social facilita a presença
e ação da al Qaeda, para além de criar condições propícias ao desenvolvimento de
todo o tipo de tráficos.
Qualquer análise sobre esta região deverá ter em conta quatro ingredientes
políticos fundamentais: a evolução dos processos de transição política; o Processo
de Paz no Médio Oriente; a possibilidade de um Irão “nuclear” e suas consequências
para o regime de não-proliferação; e o risco de expansão do fundamentalismo
religioso.
Os riscos transnacionais são sobejamente conhecidos e é do interesse do
Ocidente promover um forte desenvolvimento económico e sistemas pluralistas
fundados em normas constitucionais robustas, capazes de evitar o risco de
surgimento de novos autoritarismos.
As transições políticas não poderão ter sucesso sem um forte apoio económico.
Sem mais emprego e justiça social não será possível garantir processos de transição
sustentáveis.
Para isso, é necessário desenvolver uma visão estratégica integrada para a
região, fundada: na promoção da Paz e da segurança cooperativa; numa abordagem
multilateral privilegiando o diálogo com a Liga Árabe, a União Africana, o
Conselho de Cooperação do Golfo Pérsico e a Organização da Conferência
Islâmica; nos princípios partilhados do relacionamento político e democrático;
no desenvolvimento económico e ulterior integração nos mercados; na tolerância
religiosa e no diálogo intercultural.
Em suma, se não houver uma ação estratégica integrada e coerente para a
região, o risco de as revoltas degenerarem em tensões geopolíticas graves e
rupturas nos equilíbrios estratégicos é significativo. A prossecução de uma política
de cooperação e desenvolvimento assertiva nos planos bilateral e multilateral é, por
isso, determinante para o futuro da região.
A Ásia
64
observadores compararam a uma “comunidade económica da Grande China” (ou a
“cortina de bamboo”). Os chineses emigrantes canalizam as exportações chinesas
e investem na China. Este colosso asiático investe fortemente no estrangeiro, em
troca de recursos minerais e energéticos particularmente na Ásia Central, em África
e na América do Sul. Após a eclosão da crise económica e financeira internacional
tem apoiado e adquirido títulos de dívida dos Estados mais afetados pela crise
financeira. A grande incógnita é saber se esta tendência de forte crescimento
económico irá continuar, e por quanto tempo, face ao impacto nas suas exportações
da crise financeira internacional.
No domínio militar a China tornou-se o segundo país do mundo com mais
gastos na defesa, a seguir aos Estados Unidos da América, e tem vindo a aumentar
o seu poder naval e a investir num ambicioso programa espacial. É também uma
potência nuclear de expressão média. Tem como um dos seus principais objetivos
estratégicos garantir o abastecimento de combustíveis fósseis e outras matérias-
primas que a continuação do seu crescimento económico acelerado exige. Outro
objetivo permanente é o controlo do mar do Sul da China, por onde transitam os
petroleiros provenientes do Golfo Pérsico, bem como das ilhas do mar da China,
ricas em recursos estratégicos e combustíveis fósseis.
De todos os atores globais, a China é o que mais se aproxima do estatuto
de superpotência e parece ser aquele que tem mais hipóteses de vir a desafiar a
liderança dos EUA.
A Índia é também um país de dimensão continental, com uma população de
mais de 1.100 milhões de habitantes e uma economia em acelerada expansão. Dispõe
de um potencial militar importante e tem vindo a cuidar dos seus instrumentos de
defesa, incluindo no domínio espacial. A preocupação com as situações internas de
insurreição e com o vizinho Paquistão, a par do objetivo de controlo do oceano Índico,
não lhe permitem descurar a dimensão militar do seu potencial estratégico. Trata-se,
tal como a China, de uma potência nuclear com um arsenal de capacidades médias.
A ascensão paralela destas duas grandes potências acentuou os dilemas de
segurança regionais, num continente onde a competição estratégica é potenciada
pela persistência de disputas territoriais, de movimentos secessionistas e a existência
de Estados frágeis.
Persistem focos de tensão críticos no Afeganistão e no Paquistão, em
Caxemira, nos mares do Sul da China e na Coreia do Norte e Japão. As encruzilhadas
estratégicas que constituem o Afeganistão e o Paquistão permanecem como uma
questão crucial para a segurança internacional e o maior desafio para a Aliança
Atlântica, por representarem o núcleo central do terrorismo global. A estabilização
destes dois países é essencial para a segurança dos estados membros da OTAN
e o interesse comum de combate ao terrorismo transnacional também faz crer
que não seja do interesse da China e da Índia o prolongamento dos conflitos no
Afeganistão e no Paquistão.
65
Em síntese, a grande fluidez das dinâmicas político-económicas e de segurança
do continente asiático continuarão a influenciar direta e indiretamente a prosperidade
e a segurança do Ocidente.
As grandes tendências
66
Paralelamente, o cenário de segurança regional e global alterou-se com a
natureza crescentemente difusa do poder militar e da sua aplicação, a proliferação
de programas de investigação e desenvolvimento de armas de destruição e dos
seus vetores, os avanços nas novas tecnologias militares e a disseminação de
tecnologia dual e de formas de combate assimétrico. Estas mudanças determinaram
a emergência de um importante fator nivelador de poder, potenciando o desafio do
“fraco” ao “forte”. Isto torna mais imprevisível e mais complexa a garantia de paz
e segurança internacionais.
Finalmente, a multiplicação de fatores de enfraquecimento e fragmentação
de Estados tem por vezes levado ao colapso da autoridade estatal em vários
territórios, a conflitos étnico-religiosos, guerras civis e de secessão, dando origem
a Estados frágeis e a conflitos prolongados de extrema violência, cuja resolução é
extremamente complexa.
A estas grandes tendências não podemos deixar de acrescentar outras
que se mantêm, desde há muito, como sejam as assimetrias demográficas e de
desenvolvimento, a disputa estratégica pelo domínio dos recursos escassos e não
renováveis e a crescente propensão para a democratização dos regimes.
Do mesmo modo, é ainda importante considerar alguns fatores de evolução que
poderão ter incidências na redistribuição do poder global e nos equilíbrios regionais.
Desde logo, as dimensões estratégicas da transição internacional criaram novos
desafios à preponderância dos Estados Unidos, que se traduzem numa revisão das
suas prioridades. De facto, é visível uma deslocação dessas prioridades para a
Ásia-Pacífico, que se prende com a crescente preocupação dos EUA relativamente
às ambições da China. Não surpreende, por isso, a primazia atribuída pelos EUA
às questões económicas internas e uma certa retração, em termos estratégicos, na
cena internacional. De resto, a esta retração não será alheia a erosão do potencial
económico e militar do país por força do empenhamento simultâneo em duas frentes
de guerra: Iraque e Afeganistão.
A acrescida importância do “fator económico” na distribuição do poder
mundial é um dado que não se pode ignorar. A maior divergência a que vimos
assistindo no sistema internacional reside, justamente, no flagrante contraste entre
o peso das economias emergentes, e da sua realização, e as sérias dificuldades e
vulnerabilidades com que se confrontam os países ocidentais no domínio económico,
designadamente os EUA e a União Europeia.
A China é hoje um gigante económico e as potências emergentes ganham
peso relativo, em termos geoeconómicos, não estando tão dependentes da procura
ocidental. Dispõem, agora, de uma maior gama de opções para o crescimento da
sua economia. Os designados BRICS representam atualmente, em conjunto, um
PIB de cerca de 25% do total mundial, em termos de paridade de poder de compra
das moedas nacionais. Representam cerca de 45% da população mundial. O espaço
territorial que ocupam equivale a 30% da parte terrestre do globo.
67
Ora esta transformação em fatores fundamentais de geração do Poder, o
crescimento económico pujante nalgumas regiões e as fortes recessões noutras,
a emergência de novas grandes potências - quer no espaço asiático, quer na
América Latina - a crescente importância estratégica da Ásia, e a reorientação
estratégica dos Estados Unidos, são suscetíveis de alterar os equilíbrios
regionais com implicações decisivas no campo da segurança e antecipam mesmo
transformações substanciais nos equilíbrios internacionais. Do mesmo modo,
não deixarão de afetar os equilíbrios de poder entre os Estados, ainda que de uma
forma difícil de prever.
68
e tarefas que assumiu, associadas à complexidade do ambiente internacional e ao
inaudito número de solicitações, evidenciaram, porém, importantes vulnerabilidades
institucionais e deficiências de funcionamento da Organização, particularmente no
contexto das designadas ‘novas missões’.
A forte expansão das operações de paz e humanitárias da ONU, como resultado
do otimismo do fim da Guerra Fria, foi acompanhada de várias controvérsias e
problemas, que de certa forma não deixaram de constituir elementos condicionadores
da ação da Organização: a alegada dicotomia de algumas intervenções; a falta de
coerência na aplicação de alguns princípios fundamentais do direito internacional; a
capacidade excedida face ao elevado número de solicitações decorrentes do aumento
da conflitualidade regional; as dificuldades acrescidas em razão da alteração da
natureza dos conflitos (predominantemente intraestatais e, consequentemente,
diferentes daqueles para os quais a ONU foi concebida); o limitado acordo entre as
grandes potências quanto aos fundamentos da segurança coletiva.
As dificuldades no terreno e as lições apreendidas resultaram na revisão de
alguns objetivos e de doutrina, merecendo especial destaque, pela sua importância,
o documento aprovado pelos Estados membros, na Cimeira Mundial de 2005,
sobre a ‘Responsabilidade de Proteger’. No essencial, este documento afirma o
compromisso dos membros das Nações Unidas de prevenir atrocidades como o
genocídio, crimes de guerra e crimes contra a humanidade.
Todavia, apesar de algumas mudanças qualitativas e do inegável contributo em
prol da paz decorrente das operações de paz levadas a efeito pela ONU11, subsistem
sérias limitações estruturais e constrangimentos à sua ação. Sublinho apenas duas:
uma primeira, de capital importância - pelas suas repercussões ao nível do processo
de decisão e implicações no domínio da segurança coletiva - que se prende com os
problemas de representatividade relacionados com a composição do Conselho de
Segurança; uma segunda, relacionada com a evidente falta de recursos e de vontade
política para pôr em prática as decisões que têm sido tomadas pela Organização.
Em suma, o reforço das Nações Unidas, enquanto organização de segurança
coletiva e principal instância de regulação, continuará a depender essencialmente
da evolução do sistema internacional e da vontade dos seus Estados membros, e em
particular das grandes potências, em conferir-lhe os meios e recursos necessários
para cumprir o papel que lhe é consignado pela sua Carta constitutiva.
11
Alguns insucessos que se verificaram não podem ser apenas imputados à ONU.
69
da liberdade, democracia e do Estado de direito; uma aliança militar, que garante a
defesa coletiva dos seus membros, ao abrigo do artigo 5º do Tratado fundador; uma
estrutura militar integrada que lhe confere capacidades únicas na gestão de crises
e conflitos, através de forças militares robustas e integradas; e, finalmente, o pilar
da dissuasão, elemento central na estratégia da Aliança face à prossecução do seu
principal objetivo – a segurança da Comunidade Ocidental.
Criada num contexto de bipolaridade, a OTAN sobreviveu ao fim da Guerra
Fria e foi capaz de se adaptar às novas realidades estratégicas. Num contexto pós-
11 de setembro de 2001, os Aliados souberam assegurar uma nova funcionalidade
para a OTAN no plano da segurança internacional, procurando garantir a segurança
da Comunidade Ocidental.
As lições apreendidas e os novos desafios de segurança confirmaram a
necessidade de transformação conduzindo a um novo conceito estratégico, aprovado
na Cimeira de Lisboa, em 2010. Aí se reafirmam as missões tradicionais da Aliança,
de defesa dos seus Estados membros ao abrigo do artigo 5º do Tratado de Washington,
e de consulta política mútua em questões de segurança e defesa. Como também
se enfatiza o estatuto da OTAN como aliança regional com responsabilidades na
promoção da estabilidade internacional e a necessidade de desenvolvimento de um
diálogo político e do estabelecimento de parcerias e diálogos de segurança com
outras organizações e Estados.
Uma das questões centrais que dominaram o debate, na antecâmara da
Cimeira de Lisboa, foi justamente a delimitação geográfica das missões. O caso do
Afeganistão, onde OTAN tem não apenas a sua principal missão, mas também um
importante teste à sua credibilidade, fora daquela que é a sua tradicional área de
intervenção, é paradigmático.
Trata-se de um exemplo claro de situações de instabilidade e conflito, para além
das fronteiras da OTAN, que podem traduzir-se numa ameaça direta à segurança
do território e das populações dos Estados aliados. Ora, nestes casos, a OTAN deve
estar preparada para uma resposta adequada, mas sempre como um parceiro global
de segurança (e não como global cop como alguns preconizaram).
Este papel acrescido na promoção da estabilidade internacional, que o novo
conceito assumiu, justifica também o enfoque dado às parcerias e aos diálogos de
segurança com parceiros estrategicamente relevantes, incluindo a União Europeia
e a Rússia.
É ainda de sublinhar o destaque dado no novo documento orientador da OTAN
à noção de Comprehensive Approach, ou seja, uma abordagem integrada para
a articulação de meios civis e militares na resposta aos desafios de segurança.
O que reflete que das lições apreendidas resultou o consenso na Aliança de
que a natureza difusa e predominantemente não-convencional das ameaças e
riscos à segurança requer não apenas o recurso ao vetor militar, mas também
um esforço integrado civil-militar de proteção das populações e de reconstrução
70
das estruturas do Estado. Na Cimeira de Lisboa foi também introduzido o
conceito de Smart Defense com o objetivo de acompanhar a transformação
tecnológica com investimentos inteligentes de forma a potenciar as capacidades
da Aliança.
Trata-se de um conjunto de desenvolvimentos importantes que determina o
rumo da Aliança para a próxima década. Resta saber qual o impacto na OTAN
resultante da redução da presença militar norte-americana na Europa, pese embora
os discursos dos seus responsáveis reafirmarem que a orientação prioritária
dos EUA para a Ásia-Pacífico não significa o abandono do Atlântico. Todavia,
não podemos deixar de perceber que está implícito nas declarações oficiais um
reconhecimento da necessidade de uma Europa mais ativa no âmbito da segurança
do espaço euro-atlântico. Os EUA não desejarão o enfraquecimento da OTAN,
mas sim o reforço do seu pilar europeu. Poi isso, assume uma importância única
e primordial o reforço do vínculo transatlântico.
12
Estratégia de Segurança da União Europeia de 2003, atualizada e reforçada em 2008 (relatório Solana).
71
Desta consagração, destacam-se os instrumentos – no plano institucional, das
capacidades e operacional – que visam dotar a União Europeia de condições que
lhe permitam tornar-se um ator internacional de referência, não apenas no plano da
segurança mas, essencialmente, no plano da defesa europeia.
A Política Comum de Segurança e Defesa define um quadro de interesses
comuns de segurança e defesa dos Estados membros, incluindo cláusulas de
defesa mútua e de solidariedade que preveem ações coletivas de assistência
mútua. O Tratado consignou, também, os mecanismos de cooperação reforçada
e de cooperação estruturada permanente, o que permitirá aos Estados membros
que o desejem, avançar mais e mais rapidamente na segurança cooperativa. A
União Europeia soube antecipar, na prática, a doutrina OTAN da Comprehensive
Approach, através de uma adequada articulação de meios civis e militares nas
suas missões.
Em suma, com a aprovação do Tratado de Lisboa, a UE dispõe de capacidades
para assumir novas responsabilidades como ator de segurança. Porém, isto só será
possível se os Estados membros assumirem a defesa europeia enquanto objetivo
prioritário. Um objetivo que depende de dois elementos fundamentais: em primeiro
lugar, o reforço do processo de adaptação das culturas estratégicas dos Estados
membros; em segundo lugar, de uma evolução na geração de capacidades, de forma
a orientar a sua aplicação, em particular, para a prevenção de conflitos, gestão de
crises e processos de reconstrução de Estados.
A crise económica e financeira da UE terá, seguramente, impacto no ritmo de
aprofundamento da dimensão de segurança e defesa da União. Ao reajustarem e
reformularem as suas políticas de defesa, sob pressão das dificuldades orçamentais,
os Estados membros estão, naturalmente, a influenciarem a Política Comum de
Segurança e Defesa. A crise é, por isso, também, um importante teste à vontade
política no sentido de uma integração mais profunda em matérias de segurança e
defesa e à capacidade de ação coletiva europeia.
A tendência para a redução das despesas no domínio da segurança e
defesa não poderá ser levada ao ponto de comprometer o objetivo fundador de
consolidar um espaço de segurança e estabilidade de que todos beneficiem. As
responsabilidades da União Europeia enquanto pilar europeu da Comunidade
Transatlântica e ator no campo da segurança internacional obrigam-na a atuar
com inteligência estratégica. Racionalizando, seguramente, mas não descurando
o necessário investimento em defesa que terá de ser seletivo e baseado numa clara
hierarquização de prioridades estratégicas.
O contexto de fortes restrições orçamentais veio dar relevo à partilha de
capacidades por via do designado Pooling and Sharing que tem sido encarado como
uma prática de ação a desenvolver no quadro da Política Comum de Segurança
e Defesa, e como uma fórmula eficaz para equilibrar a relação custo-eficácia no
emprego de meios militares, em clima de austeridade generalizada. Não podemos,
72
contudo, ignorar que esta opção política tem um potencial de secundarização de um
dos instrumentos consignado no Tratado de Lisboa, as cooperações estruturadas
permanentes, quando aplicadas à dimensão de segurança e defesa.
As ações de Pooling and Sharing que a UE pretende impulsionar estão
orientadas para três vertentes principais de cooperação: uma vertente de partilha
de capacidades (ou ações de sharing), destinada a incentivar o desenvolvimento
comum de capacidades; uma vertente de agregação de capacidades (ou ações de
pooling), que fomente um nível de cooperação organizado em torno de capacidades
utilizadas numa base coletiva e integrada; e, finalmente, uma vertente orientada
para ações de cooperação, que promovam a formação de nichos de capacidades.
As iniciativas de cooperação europeia, como o Pooling and Sharing, pese
embora resultando da dificuldade dos Estados europeus atuarem individualmente
na gestão de crises e na resolução dos conflitos, são já elas próprias um efeito
geoestratégico do impacto duradouro da crise económica internacional iniciada
em 2008, na medida em que potenciam a contenção de custos e o reajustamento
orçamental.
O processo de Ghent, iniciado em Setembro de 2010 e a proposta conjunta
Germano-Sueca, de dezembro do mesmo ano, vieram reiterar a determinação
europeia no encontro de soluções inovadoras e eficazes para enfrentar o impacto da
crise financeira na área da defesa, explorando oportunidades que as modalidades de
cooperação de Pooling and Sharing oferecem.
Mas é preciso que o Polling and Sharing seja isso mesmo: uma resposta
europeia. Nesta matéria, devem ser incentivadas iniciativas de desenvolvimento
partilhado de capacidades que respondam a requisitos nacionais e europeus,
mediante a adoção de regras claras que garantam uma utilização eficaz
deste instrumento mas que também coíbam ações de diretórios que possam
descaracterizar o conceito de Política Comum de Segurança e Defesa consagrado
no Tratado de Lisboa.
Por fim, é absolutamente fundamental aprofundar a parceria estratégica entre
a União Europeia e a OTAN que, aliás, foi mais uma vez sublinhada no novo
conceito estratégico da Aliança Atlântica. Mas o efetivo aprofundamento desta
parceria deve começar, desde logo, pela articulação de uma visão estratégica
comum de segurança e defesa, sem a qual a complementaridade entre parceiros não
se pode estruturar de forma estável e permanente. No plano operacional, e neste
mesmo espírito de complementaridade, torna-se necessário articular não apenas
as prioridades mas também as missões. É fundamental rentabilizar as capacidades
civis e militares de atuação de ambas as organizações, não só em todo o espectro
de conflitos mas também ao nível da gestão de crises, agilizando a partilha de
informações e evitando duplicações de meios. Em suma, devem ser reforçadas e
ampliadas as bases que sustentam os Acordos Berlim Plus, como vetor fundamental
desta parceria estratégica.
73
Mas tudo o que foi dito só será possível se a defesa europeia for considerada
um objetivo essencial no âmbito da União Europeia.
É de salientar que, nesta reflexão, foram referidas as três principais
organizações multilaterais que têm evoluído num quadro dos ideais de segurança
coletiva e segurança cooperativa e que assumiram princípios orientadores comuns
relativamente à ‘Responsabilidade de Proteger’ e à ‘Segurança Humana’. Porém,
no âmbito do sistema multilateral em que assenta a ordem internacional têm vindo
a desenvolver-se outras importantes potenciais ‘comunidades de segurança’13,
fundadas na partilha dos mesmos ideais.
De facto, não podem ser ignorados os desenvolvimentos verificados num
número muito significativo de organizações regionais e sub-regionais, no domínio
da segurança, embora com variações em termos de capacidade de resposta. Falamos,
entre outras, de organizações como a Organização para a Segurança e Cooperação
na Europa (OSCE), a União Africana (UA), a Comunidade para o Desenvolvimento
da África Austral (SADCC), a União das Nações da América do Sul (UNASUL) e
o Conselho de Defesa Sul-Americano, a Associação das Nações do Sueste Asiático
(ASEAN) ou mesmo a Liga Árabe (LA).
Este potencial de descentralização das responsabilidades em matéria de
segurança, em organizações regionais e sub-regionais sob a égide geral da ONU,
e tendo por base a aplicação do conceito de segurança cooperativa, constituiria
um importante elemento de estruturação do sistema internacional, numa óptica da
gestão de equilíbrios e seguindo o princípio de que “é preferível um equilíbrio
regulado e institucionalizado do que um equilíbrio não regulado sob anarquia”14.
Em suma, a interpretação do ambiente estratégico atual indica-nos importantes
alterações na distribuição do Poder internacional. A atual arquitetura institucional
tem revelado fragilidades na capacidade de resposta aos novos desafios, decorrentes
de novos riscos e ameaças, novas dimensões de distribuição do Poder – económico,
político e estratégico – e emergência de novos atores. Neste sentido, é imperiosa
a reforma do atual sistema multilateral, através do reconhecimento desta nova
distribuição de poder, bem como das necessidades decorrentes do atual ambiente
estratégico, através de um reforço dos instrumentos de segurança cooperativa. Tal
não poderá deixar de ser feito através do impulso e valorização da relação entre
a ONU e as organizações regionais e sub-regionais, em representação dos seus
estados-membros, sempre no espírito da Carta fundadora das Nações Unidas e da
garantia da legitimidade das ações internacionais.
13
DEUTSCH, Karl W. “Political community and the North Atlantic area; international organization in the light of
historical experience”. Princeton: Princeton University Press. 1957.
14
KUPCHAN, Charles A. and KUPCHAN, Clifford A., “The Promise of Collective Security”, revista International
Security, volume 20, n.º 1, 1995.
74
A INFORMAÇÃO PÚBLICA E O SEU IMPACTO NO SUCESSO
DA CAMPANHA MILITAR
Da Crimeia às Falkland
75
76
A INFORMAÇÃO PÚBLICA E O SEU IMPACTO NO SUCESSO DA
CAMPANHA MILITAR – DA CRIMEIA ÀS FALKLAND1
1. Introdução
2. Da Guerra e da Estratégia
a. Generalidades
1
Texto escrito de acordo com a antiga ortografia.
77
competição, em todos os sectores em que exista uma interacção entre dois ou mais
actores, que persigam objectivos contrapostos.
No âmbito militar, aquele que nos interessa, a estratégia possui uma
especificidade muito própria. Estádio intermédio entre a política e a táctica,
configura-se como o elemento que as torna coerentes e que, de acordo com as
circunstâncias, se aproxima, chegando às vezes a parecer confundir-se, de uma
ou de outra. A sua referência é a guerra, que é um “acto de violência destinado
a forçar um adversário a submeter-se à nossa vontade”2. Nela encontra a sua
expressão mais profunda, assumindo-se como “a arte da dialéctica das vontades
empregando a Força para resolver o seu conflito”3. Desta definição de estratégia
(total) do general Beaufre ressalta o facto da força ser o meio, o instrumento de que
a vontade se serve para levar a melhor sobre o adversário. O que se considera, neste
caso, Força leva-nos de volta à concepção “trinitária” da guerra de Clausewitz e aos
elementos que a compõem.
b. Clausewitz revisitado
2
CLAUSEWITZ, Carl Von, (1976). Da Guerra. 1ª ed., Lisboa: Perspectivas e Realidades, pag 73.
3
BEAUFRE, André (1965). Introduction a la Stratégie. 3ª ed., Paris : Librairie Armand Colin, pag.16.
78
seja mais “porosa”. Com efeito, a tríade de Clausewitz será mantida pela vontade
(que mais não é que Força Moral) que confere unidade às suas três componentes. Se
tal vontade desaparece ou enfraquece, mesmo numa só das componentes – governo,
povo, exército – a derrota será segura. Alguns exemplos históricos, adiante referidos,
parecem provar tal verdade. A derrota surgiu porque uma ou mais das componentes
sucumbiu. Só compreendendo o significado profundo desta tríade e a interacção
entre as suas componentes se poderá compreender a essência do fenómeno guerra e
dos seus mecanismos. A estratégia, portanto, deve utilizar os elementos a- racionais
e irracionais intervenientes no conflito, tornando-os desse modo instrumentos da
racionalidade das suas acções. Por isso se poderá afirmar que, tal como no passado,
continua a ser absolutamente indispensável à estratégia equacionar o emprego das
Forças Morais ao lado das Forças Materiais. Será do seu correcto “balanceamento”
e emprego que dependerá a vitória.
c. As Forças Morais
79
poderemos incluir a propaganda e a acção psicológica, por exemplo, que mais não
serão que acções atinentes a diminuir a coesão, espírito combativo e hostilidade por
parte dos exércitos e população inimigos. As forças morais de um exército e de uma
nação serão, pois, um “campo de batalha” onde teremos de manobrar a fim de nos
colocarmos numa situação de “potencial relativo de combate” favorável.
e. Elementos de Síntese
Em teoria, parecerá lícito poder sintetizar o que acima foi referido, dizendo:
• A guerra é uma actividade onde concorrem forças racionais, a – racionais
e irracionais;
• A estas forças corresponderão os governos, os exércitos, os povos;
• A vontade será o “traço de união” de governos, exércitos, povos;
• No âmbito da força concorrem não só os aspectos materiais mas também
os morais;
7
Assuntos Públicos é a actividade que, através da sua vertente Informação Pública, serve de ligação entre a
Administração da Defesa e os OCS.
8
JOINT PUBLICATION 3-61 (2005). Public Affairs Doctrine. Washington, DC : Department of Defense, pag. I-3.
80
• À estratégia competirá desenvolver e empregar tais forças (morais e
materiais), aumentando o potencial próprio e reduzindo o do adversário; na
sua dialéctica de vontades tentará acentuar o seu “traço de união” e eliminar
o do inimigo;
• A informação pública – designadamente através dos OCS – e a
informação interna servem para comunicar com os povos e os exércitos,
respectivamente; serão, pois, instrumentos capazes de contribuir para
aumentar ou diminuir as forças morais de, pelo menos, dois dos componentes
da tríade clausewitziana;
3. Da História
a. Elementos de Análise
81
Uma das tarefas essenciais e exclusivas do poder político sempre foi a de
declarar a guerra e fazer a paz. Assim, tal como para todos os outros assuntos
atinentes ao governo de um Estado também a guerra com todas as suas implicações
passou a ser objecto de interesse da opinião pública. Tal facto traduziu-se no
tratamento cada vez mais profundo do tema “guerra” por parte da imprensa.
O poder político passou a ter que “prestar contas” ao eleitorado, a imprensa
desenvolveu-se, o público passou a estar interessado. A informação da opinião
pública torna-se incontornável. Para os governos – em última análise a opinião
pública podia derrubá-los – e para a imprensa – se não informassem sobre a guerra
não vendiam.
É neste contexto que se chega à guerra da Crimeia que acabou por introduzir
alterações substantivas no modo como a opinião pública se relaciona com o
fenómeno guerra.
9
PEREIRA, Carlos Santos in MOREIRA, Adriano (coord) (2004). Informações e Segurança – estudos em honra
do General Pedro Cardoso. Lisboa: Prefácio. Pag 180 e seg.
10
PEREIRA, Carlos Santos, op cit.
82
o grande público a visão da incompetência dos Comandantes britânicos (cujo
expoente máximo foi a “Carga da Brigada Ligeira” em Balaclava) o que fez com
que uma vitória (a Rússia acabou por aceitar cláusulas pesadas no Tratado de
Paris) se transformasse – no “julgamento” popular e na descrição histórica – numa
“derrota moral”.
A não existirem tais reportagens, só o resultado final contaria e os erros,
as hesitações, a impreparação do Comando, o desprezo pela vida dos próprios
soldados, passariam despercebidos da opinião pública. Seriam apenas uma
amarga recordação na alma de alguns sobreviventes. De tal forma foi importante
o contributo da imprensa para retirar conclusões deste conflito que o Exército
britânico, na sequência da polémica instalada no final da guerra, acabou com o
sistema da “compra de comissões”, forma única de se ascender a oficial e que
foi considerada a principal razão da incompetência dos Comandantes. Sem as
reportagens de guerra enviadas da Crimeia, estamos em crer que isso, por exemplo,
nunca teria sucedido.
Por outro lado, as notícias da Crimeia acabaram por favorecer o apoio maciço a
uma guerra que, no momento do seu início, gozava de muito poucos apoiantes fora
do governo. Jornalismo e guerra encontravam – se pela primeira vez estreitamente
inter – ligados e foi evidente o quanto se apoiavam mutuamente: a guerra dava à
imprensa uma série inesgotável de acontecimentos, crónicas e imagens a “propor”
aos leitores com a certeza de os interessar; o jornalismo – para além das intenções dos
correspondentes – acabava por criar um interesse notável pela guerra, favorecendo
a difusão de uma mentalidade de carácter nacionalista, mesmo em países que, até
esse momento, a isso tinham estado imunes.
Aquilo que tinha sucedido, em escala reduzida, na Guerra da Crimeia,
reproduziu-se de forma muito mais importante nos conflitos sucessivos.
O jornalismo de guerra tornou-se desde então uma das mais significativas
“especialidades” da “industria da Informação”.
11
SANTOS, José Rodrigues dos (2002). Crónicas de guerra. Da Crimeia a Dachau. 5ª ed., Lisboa: Gradiva,
pág. 28.
83
para fazer a propaganda do campo com o qual se estava de acordo. Sabendo da
importância das forças morais e estando conscientes da influência que as reportagens
podiam ter sobre o moral da população civil, ambos os contendores estabeleceram a
censura e o sistema da acreditação12.
Foi neste conflito que surgiram pela primeira vez, de forma sistemática, os
comunicados de guerra13. Deste modo, facilitava-se o acesso à informação por parte
da população e dos jornalistas, para além da possibilidade que isso introduzia de se
poder “gerir a informação” a disponibilizar.
A partir de 1862 o período das grandes e sanguinárias batalhas começou.
Após a batalha de Antietam em Setembro de 1862 a Proclamação de Emancipação
feita por Lincoln tornou a liberdade dos escravos um objectivo de guerra14. Deste
modo, a União não só podia a partir desse momento contar com a mobilização
dos afro-americanos como “impedia”, em nome da Moral, potências estrangeiras
de apoiarem a Confederação. A imprensa nortista, sublinhando constantemente
a justiça da causa da União – a luta contra a escravatura – fez com que quase
todos os países terceiros (por livre opção ou por pressão das opiniões públicas)
estabelecessem um embargo ao Sul. Tal facto acabou também por se revelar decisivo
para a asfixia económica dos Estados Confederados e consequentemente para o
condicionamento da conduta da guerra aos níveis estratégico e operacional.
12
PEREIRA, Carlos Santos. Op cit, pág. 181
13
A título de curiosidade salienta – se que é nesta altura que surge a expressão OK com o significado de que tudo
estava bem. OK não é mais do que o acrónimo de “zero killed”, presente nos comunicados de guerra sempre que
não se registavam baixas. Coisa pouco frequente, aliás!!
14
MITCHELL, Reid (2003). La Guerra Civile Americana. 1ª ed., Bologna: Il Mulino, pag 97.
84
assistir neste período ao crescimento do nacionalismo que, ao contrário da tradição
liberal do século anterior, se traduzia agora por pulsões anti-democráticas, de
agressividade imperialista, de vontade de poder, de mitologia autoritária.
O ambiente era, portanto, receptivo ao confronto. A opinião pública e os
intelectuais coincidiam no encarar da guerra como um fenómeno não só inevitável
como até desejável.
No início do conflito assistiu-se, pois, a uma unanimidade quase total no
apoio à guerra de parte a parte. No dizer de Martin Gilbert os povos da Europa
“estavam loucos de alegria com a guerra”15. Num tal enquadramento, quer os
decisores políticos quer os chefes militares podiam contar com o apoio total das
respectivas opiniões públicas. Com a excepção dos Bolcheviques na Rússia, de
Rosa Luxemburg e Karl Liebknecht na Alemanha e de pequenos grupos na França
e Inglaterra, até os movimentos socialistas e sindicais apoiaram os respectivos
governos uma vez a guerra desencadeada. Eram as Nações, mais do que os
Estados, que estavam em guerra – uma guerra total. O apoio das populações
era, por isso, considerado fundamental. Convinha, pois, fazer com que a imprensa
não se encarregasse de “toldar” o ambiente. Nesse sentido, inicialmente, a França
recusou – se a admitir repórteres nas zona de combate. Tal facto “resultava de uma
desconfiança do aparelho militar em relação à imprensa. Essa desconfiança tinha
a sua origem em 1870, quando o invasor prussiano capturou 83.000 soldados
franceses em Sedan após o Le Temps ter revelado os movimentos das tropas
franceses na região”16. A censura foi imposta à semelhança do que aconteceu
com a Inglaterra. Foram criados pelos dois aliados Gabinetes de Imprensa com
“a missão de exercer a censura, punir os infractores e planear a operação de
propaganda”17. De qualquer forma quer dum lado quer do outro da Mancha o
que subsistia era o estilo propagandístico da imprensa que mais não fazia do que
repercutir os “humores” da opinião pública. O mesmo era verdade na Alemanha.
Prevalecia o ambiente de “união sagrada” em torno dos objectivo nacionais
estabelecidos pelos respectivos governos.
Após um início caracterizado pelo movimento a guerra cedo se transformaria
num combate contínuo e sangrento a partir de posições entrincheiradas. Quem
resistisse melhor ao desgaste material e humano ganharia. Ao longo dos anos de
1915 e 1916 assistiu-se a uma sucessão de batalhas das mais sangrentas que a
História Militar tinha até então presenciado. As carnificinas de Verdun e do Somme,
para só citar os exemplos mais conhecidos, encarregaram-se de desagregar a
coesão nacional (em ambos os lados das trincheiras) até aí existente. As populações
começaram a revoltar-se contra o arrastar, aparentemente sem solução, do conflito
15
GILBERT, Martin (2000). La grande Storia della Prima Guerra Mondiale. 1ª ed., Milano: Mondadori, pag
31 e seg.
16
SANTOS, José Rodrigues dos, op cit, pag 52.
17
Idem, pag 53.
85
face aos sofrimentos de que padeciam e as tropas acabaram por protagonizar os
enormes motins de 1917. A imprensa reflectia este estado de espírito diminuindo
desta forma a liberdade de acção dos executivos. A solução passou pela formação
de governos de unidade nacional onde convergiram as oposições. A juntar a este
clima de “tudo ou nada” que passou a prevalecer de parte a parte a partir do
final de 1917, há que juntar dois factores importantes e que são mais ou menos
contemporâneos: a entrada em guerra dos EUA e a Revolução Russa de Outubro
de 1917. Se o segundo facto permitiu à Alemanha fazer uma paz separada a Leste
o que por sua vez lhe permitiu a concentração a Oeste e o lançamento da grande
ofensiva da primavera de 1918 (última tentativa germânica de ganhar), o primeiro
facto permitiu aos Aliados não só equilibrar o potencial relativo de combate nos
momentos decisivos da ofensiva alemã, como de seguida tornou possível a sua
ofensiva final vitoriosa.
Duma forma geral poderemos dizer que a I Guerra Mundial decorreu sempre
num ambiente mediático favorável a ambos os contendores nos respectivos países.
A imprensa, antes de tudo, serviu os propósitos de moralizar populações e tropas,
já que sentia que estava em causa a sobrevivência das respectivas nações. Só assim
foi possível conter os descontentamentos de 1917 e manter até ao fim (mesmo na
Alemanha) o apoio das opiniões públicas a governos e comandantes responsáveis
pela morte de tantos milhões de pessoas. Em ambos os casos – vencidos e
vencedores – a opinião pública, a informação pública e a imprensa funcionaram
como “multiplicadores do potencial”. Estiveram ao lado de comandantes e tropas,
até ao fim.
86
não foi, durante todo o conflito, que um instrumento ideológico ao serviço de uma
das facções em luta. Neste sentido, a imprensa republicana apresentou a guerra
civil como a luta entre a democracia e o fascismo clamando pela ajuda de todos
os países democráticos, a imprensa nacionalista apresentou a guerra como uma
cruzada contra o comunismo. Ambos os contendores puderam contar com auxílio
externo. O lado nacionalista com a ajuda oficial da Alemanha e da Itália que para
o efeito “tornearam” o embargo decretado pela Comissão de Não – Intervenção18.
O lado republicano com o apoio da União Soviética e dos voluntários das brigadas
internacionais. A França e a Inglaterra optaram por cumprir o pacto de não intervenção,
o que se veio a revelar uma verdadeira sentença de morte para a República19.
Dadas as características de conflito interno, marcadamente ideológico,
imprensa e opinião pública dificilmente poderiam ter uma posição isenta e
equidistante. Estavam ao serviço de uma causa, servindo os interesses da parte com
a qual estavam de acordo. A informação pública foi usada, por parte de ambos os
contendores, como veículo de propaganda e de justificação das opções tomadas.
Não teve, portanto, um impacto directo no sucesso ou no insucesso de uma ou
outra facção. Saliente-se, no entanto, que a imprensa nacionalista se congregou,
sem dúvidas nem desfalecimentos, em torno da figura de Franco, enquanto que os
jornais republicanos nunca perderam de vista os interesses próprios do partido ou
da facção a que pertenciam. Neste sentido, poder-se-á afirmar que terão contribuído,
de algum modo, para enfraquecer, dividindo, o lado republicano. Enquanto
na facção nacionalista a unidade se foi afirmando ao longo do conflito, no lado
republicano aconteceu precisamente o contrário. Deste ponto de vista, a liberdade
de acção consentida pela imprensa e pela opinião pública nacionalistas ao general
Franco foi muito maior que aquela que a imprensa e a opinião pública republicanas
proporcionaram aos seus líderes.
18
Comissão instituída em Londres, em 9 de Setembro de 1936, a que aderiram 27 países e que se propunha
impedir intervenções externas em Espanha. Na prática, nunca funcionou!
19
PRESTON, Paul (1999). La Guerra Civile Spagnola. 1ª ed., Milano: Mondadori, pag 124.
87
começou a sofrer os primeiros duros golpes: as derrotas de El-Alamein em África
e sobretudo de Estalinegrado na Rússia, fizeram com que a sorte das armas se
transferisse para os Aliados. Estes, nos últimos dois anos de guerra prosseguiram
o seu avanço imparável apoiados, em muitos países, por acções de forças da
resistência. O desembarque da Normandia e, mais tarde, o lançamento de bombas
atómicas em Hiroxima e Nagasaqui, acabaram por colocar um ponto final num
conflito sangrento, que custou à Humanidade 60 milhões de mortos.
A IIGM foi, como é bem sabido, uma guerra total. Os países em luta lançaram
mãos de todos os instrumentos ao seu alcance para obterem vantagens face
ao adversário. Sendo caracterizado por ter sido um conflito marcado pela luta
ideológica, a propaganda assumiu um papel importantíssimo. A “diabolização”
do inimigo era permanente. A imprensa, absolutamente controlada nos países
do Eixo (Itália, Japão, Alemanha) e na União Soviética, estava ao serviço dos
respectivos governos e difundia as mensagens consideradas necessárias ao esforço
de guerra. Na Alemanha, por exemplo, era tutelada pelo Ministério da Propaganda
(de Josef Goebbels). Deste modo, nestes países a informação pública era um
mero instrumento de coacção psicológica ao serviço do Estado. Nas democracias
em guerra o panorama não era, na prática, muito diferente, já que por um lado
“os franceses tinham um sistema de controlo muito apertado, obrigando os
repórteres a fazerem as suas crónicas em quadruplicado, de forma a passarem
pelo crivo sucessivo de três censores e os britânicos acabaram com os improvisos
ao microfone, acabaram com os improvisos nas reportagens, a circulação dos
repórteres foi restringida”20. No entanto, convém destacar que no caso da imprensa
das democracias (EUA incluídos) a censura visava evitar quebras de segurança e
não opiniões e análises (neste caso funcionava a auto-censura dos editores que
impediam a publicação ou difusão de crónicas eventualmente desmoralizantes
ou derrotistas). Os jornais e rádios estavam, sem sombra de dúvida, ao lado dos
governos, dos chefes militares, dos combatentes, dos objectivos de guerra.
Deste ponto de vista, de uma forma ou de outra, a informação pública funcionou
como um instrumento de união em torno dos objectivos nacionais, o que teve um
impacto significativo na manutenção do moral e na adesão da opinião pública à
actuação dos exércitos. No caso dos aliados contribuiu para a vitória, no caso das
potências do eixo talvez tenha contribuído para atrasar a derrota.
88
A Indochina Francesa (aquilo que hoje em dia consiste no Vietname – no
tempo colonial dividido em Tonkin, Annam e Cochinchina – no Camboja e no
Laos) era um território submetido a diferentes regimes de controlo por parte da
França, que iam desde o protectorado nos casos do Laos, Camboja e Annam até à
administração directa nos casos da Cochinchina e Tonkin. Após a IIGM, o território
que hoje constitui o Vietname, e que tinha estado ocupado pelos japoneses durante a
guerra, foi reocupado pela França, o que frustrou as expectativas de independência,
entretanto proclamada a 2 de setembro de 1945, de uma parte significativa do povo
vietnamita. O resultado foi a declaração de guerra feita pelo líder da Frente para
a Independência do Vietname (Vietminh), Ho Chi Minh. A luta, que da fase de
guerrilha evoluiu para um verdadeiro conflito convencional com o apoio logístico
fornecido pela China após 1949 (tomada do poder por Mao Zedong), passou por
várias fases, sempre com as dificuldades francesas a crescer (excepção ao ano de
1950 em que o comando de De Lattre fez a diferença), até à derrota total em Dien
Bien Phu em Maio de 1954.
A imprensa de esquerda, em todo o mundo, veiculou a mensagem do
Vietminh, exaltando a sua luta pela “liberdade” e independência. Na própria
França os jornais de esquerda (com particular destaque para o L’Humanité, orgão
do PCF) estavam contra o esforço de guerra, pois reflectiam posições políticas
decorrentes da “guerra fria”, então em pleno desenvolvimento. Tal facto acabou
por condicionar as escolhas dos sucessivos governos franceses, frágeis, de
curta duração e sem forma de estabelecer uma adequada política de informação
pública, conduzindo-os à busca da batalha decisiva e final e contribuindo, de
forma importante, para “empurrar” o General Henri Navarre (Cmdt-Chefe na
altura) para o desastre de Dien Bien Phu21.
A Argélia, cuja sublevação acontece um ano após a Conferência de Bandung,
acabou por ser quase uma repetição da Indochina. Com algumas diferenças, muito
importantes. Desde logo o sentimento em relação à terra – para muitos franceses,
mesmo de esquerda, a Argélia era um prolongamento da França, um departamento
como tantos outros da França metropolitana. Depois porque as forças armadas
francesas, tendo aprendido com o desastre da Indochina, adaptaram-se quase na
perfeição ao tipo de conflito da Argélia. Do ponto de vista exclusivamente militar, a
guerra foi ganha pela França, o que faz com que a independência da Argélia ainda
hoje seja vista, por alguns sectores da sociedade francesa, como um abandono puro
e simples de populações e território.
A informação pública, durante a Guerra da Argélia, reflectiu as divisões
dilacerantes da sociedade francesa. Certa imprensa enaltecia o esforço dos militares,
outra parte denegria constantemente as suas acções (o que levava muitos militares
a considerarem-se traídos pelos seus compatriotas). O “ambiente mediático”
21
ROY, Jules ( ? ). A Batalha de Dien Bien Phu. 3ª ed., Lisboa: Bertrand.
89
condicionava, obviamente, os políticos e os militares. Neste caso, a pressão teve
como consequência a adopção do Plano Challe (do nome do Cmdt-Chefe da altura,
general Maurice Challe), que foi decisivo para derrotar as forças da FLN (Frente de
Libertação Nacional argelina). Os militares sentiram sempre, no entanto, que o seu
esforço era em vão, era inglório, como aliás se veio a verificar. A “paz dos bravos”,
negociada já com De Gaulle no poder, pôs fim ao conflito da Argélia e conduziu-a
à sua independência22.
22
O sentimento dos militares franceses está bem expresso na carta do centurião Marcus Flavinius, apresentada
em LARTÉGUY, Jean (1989). Os Centurões. 10ª ed., Lisboa: Bertrand. Este livro constitui uma expres-
são eloquente, embora ficcionada, do drama que atravessou a sociedade francesa durante os dois conflitos
coloniais.
23
HALL, Mitchell K. (2003). La Guerra del Vietnam. 1ª ed., Bologna: Il Mulino pag 75 e seguintes.
90
estava a ser conduzida não pararam de surgir de todos os lados, inclusive da parte
da “entourage” do Presidente Johnson que até aquele momento tinha estado de
acordo no essencial – a vitória a todo o custo. Talvez a frase do célebre jornalista
Walter Cronkite, aos microfones da CBS, resuma o estado de espírito após a
ofensiva do Tet: “que diabo está sucedendo? Pensava que estivéssemos a ganhar
esta guerra?24.
A ofensiva do Tet, associada ao ataque a Khe Sanh, saldou-se por uma vitória
táctica americana. A vantagem estratégica e política ficou nas mãos dos norte-
vietnamitas. O impacto desse momento constituiu o início do fim do envolvimento
americano no Vietname, mas, tal como a lenta aproximação e retirada de um
tufão asiático, a saída das ruínas iria demorar mais do que a tempestade (...).
Militarmente, o Tet foi uma clara vitória americana; psicologicamente, foi o
inverso25.
A pressão da opinião pública tornou-se “insuportável”. Essa pressão
reflectiu-se de forma decisiva na conduta da guerra quer ao nível político, quer
nos níveis estratégico e operacional. A título de exemplo, refira-se que Johnson
decidiu terminar com a operação “Rolling Thunder”26, circunscrevendo os
bombardeamentos à região imediatamente a norte da zona desmilitarizada e
anunciou a sua não recandidatura às eleições presidenciais de final de 1968. Foi
decidido o fim da escalada militar e a progressiva “vietnamização” da guerra,
bem como a abertura de negociações. A principal preocupação de Johnson dizia
respeito à desagregação da frente interna27. A prazo foi decidido, já com Nixon
no poder, o fim da presença militar dos EUA no Sudeste Asiático em geral e no
Vietname em particular.
A informação e a opinião públicas tinham influenciado, de forma decisiva, a
condução e os resultados da Campanha Militar americana.
24
HALL, Mitchell K., op cit, pag 89.
25
SANTOS, José Rodrigues dos (2002). Crónicas de guerra. De Saigão a Bagdade. 2ª ed., Lisboa: Gradiva, pag 28.
26
Bombardeamento sistemático do Vietname do Norte que se tinha iniciado em 2 de março de 1965 conforme
HALL, Mitchell K., op. cit. pag 38.
27
HALL, Mitchell K., op cit pag 96.
91
As forças armadas, qualquer que seja o ponto de vista político com que se
observe o conflito, cumpriram de forma exemplar o seu papel de instrumento
militar do estado. A forma como souberam adaptar-se ao ambiente operacional
e à missão, a forma como inovaram, designadamente na utilização da acção
psicológica e na “conquista das populações”, é hoje amplamente reconhecida.
A opinião pública portuguesa evoluiu na maneira como encarou a guerra, à
medida que o tempo passava. “Numa primeira fase a adesão à causa ultramarina
foi sincera”28. O regime e os OCS è óbvio que contribuíram para isso. “A
propaganda funcionou”29. Mas é indiscutível que a opinião pública apoiava a
defesa do ultramar e considerava que dessa luta sairíamos vitoriosos. A partir de
meados dos anos sessenta, com a extensão do conflito a Moçambique e à Guiné,
e com uma “aceleração” bem marcada depois da morte política de Salazar em
Setembro de 1968, a opinião pública muda a sua percepção do conflito. Os
próprios militares começam a questionar a legitimidade da nossa presença em
África. Estas mudanças de sentimento podem ser atribuídas a várias causas: a
imprensa portuguesa, de uma forma geral, sentiu-se mais livre com a “primavera
marcelista” e, embora continuando sujeita à censura, já não estava tão receptiva
à propaganda; a imprensa estrangeira pressionava constantemente o governo
português; os militares atingiram o ponto de saturação ao verificar que o “tempo
que estavam a ganhar” não servia para o regime encontrar uma solução política.
“Quando ocorre o golpe militar de 25 de Abril de 1974 ninguém sai à rua a
defender as teses salazaristas/marcelistas sobre o ultramar”30.
Poderemos afirmar que a informação e a opinião públicas durante a Guerra de
África, não tendo influenciado directamente a conduta e o resultado das campanhas
militares (a censura impedia-o), acabaram por ter um impacto não negligenciável na
queda do regime, o que se traduziu no fim da missão ultramarina das forças armadas.
92
nacional em relação ao governo militar, em torno de um objectivo por todos
assumido. A resposta da Inglaterra e do seu Governo, na altura chefiado por
Margareth Thatcher, não se fez esperar. As forças britânicas reconquistaram as
ilhas ao fim de cerca de 2 meses de combate.
Na Argentina, a questão da posse das ilhas Malvinas/Falklands é absolutamente
consensual. Por isso, a imprensa colocou-se sem hesitações ao lado da Junta na sua
decisão de reconquistar as ilhas (a censura, que era permanente, neste caso nem
seria necessária!). A opinião pública também. Foi possível ver enormes e sinceras
manifestações de apoio a Galtieri (Presidente argentino) em frente da Casa Rosada
em Buenos Aires31.
Do lado inglês o consenso foi também alargado. A Sra. Thatcher obteve, na
Câmara dos Comuns, uma votação esmagadora de apoio à reocupação das ilhas
(33 votos contra, em 646!)32. Uma sondagem realizada pela London Weekend
Television a 21 de Maio, data dos primeiros desembarques britânicos, “indicava
que 76% era a favor da ofensiva”33. Os ingleses estabeleceram restrições de acesso
ao teatro de operações por parte de jornalistas britânicos, impediram a presença de
jornalistas estrangeiros e controlaram os artigos antes da sua publicação. Em nome
da segurança e não como restrição á liberdade de opinar.
A informação e a opinião públicas de ambos os contendores sustentaram o
esforço de guerra e apoiaram as decisões dos respectivos governos. Não terá sido
por falta de apoio popular e da imprensa que os argentinos se renderam.
b. Elementos de Síntese
31
DOBSON, C., MILLER, J. e PAYNE, R. (1982). Malvinas contra Falklands. 1ª ed., Lisboa: Europress, pag 12.
32
Idem, pag. 112.
33
Ibidem, pag. 112.
93
• Nas guerras mundiais, no conflito das Malvinas e nas guerras civis, a
informação e a opinião publicas de ambos os contendores tomaram parte,
voluntariamente, no “esforço de guerra”; a informação pública nem sequer
se esforçou por parecer objectiva: porque sentia que estava em causa a
própria sobrevivência nacional (guerras mundiais); porque apoiava a
disputa de território considerado “chão sagrado” e, portanto, não sujeito
a discussão (Malvinas); ou porque o conflito, sendo interno e visando a
conquista do poder, reflectia posições extremadas, e não “moldáveis”, de
carácter político e económico;
• Nos conflitos coloniais e na guerra revolucionária, a “conquista dos
corações e das almas” assumiu um carácter determinante; as potências
coloniais (nos casos da Indochina/Argélia e da África Portuguesa) e a
grande potência interveniente (Vietname) foram percebidas, por uma
parte muito significativa das opiniões públicas e da informação pública,
como estando ilegitimamente presentes – porque o colonialismo era
sentido como um fenómeno ultrapassado, ou porque a presença da grande
potência era considerada uma ingerência imperial; nestes conflitos,
marcados pela ideologia, sobressaíram as “referências aos quadros de
valores” presentes na imprensa;
• Na guerra do Vietname o aparecimento da televisão no “campo de batalha”
assumiu uma importância fundamental.
94
4. Conclusões
Informação Pública
Questiona
Legitimidade,
Justiça, Tempo,
Letalidade
Pode influenciar
as Forças Morais-Vontade
95
Epílogo
Bibliografia
Obras referenciadas no texto
• BEAUFRE, André (1965). Introduction a la Stratégie. 3ª ed., Paris : Librairie Armand Colin.
• CLAUSEWITZ, Carl Von (1976). Da Guerra. 1ª ed., Lisboa: Perspectivas e Realidades.
• DEPARTMENT OF DEFENSE USA (2005) Joint Publication 3-61-Public Affairs Doctrine.
Washington, DC: Department of Defense.
• DOBSON, C., MILLER, J. e PAYNE, R. (1982). Malvinas contra Falklands. 1ª ed., Lisboa: Europress.
• GILBERT, Martin (2000). La Grande Storia della Prima Guerra Mondiale. 1ª ed., Milano:
Mondadori.
• HALL, Mitchell K. (2003). La Guerra del Vietnam. 1ª ed., Bologna: Il Mulino.
• IAEM (2000). Estudos sobre as Campanhas de África (1961-1974). 1ª ed., S. Pedro do Estoril:
Atena e Lisboa: IAEM.
• LARTÉGUY, Jean (1989). Os Centuriões. 10ª ed., Lisboa: Bertrand.
• MITCHELL, Reid (2003). La Guerra Civile Americana. 1ª ed., Bologna: Il Mulino.
• MOREIRA, Adriano (coord) (2004). Informações e Segurança – Estudos em Honra do General
Pedro Cardoso. 1ª ed., Lisboa: Prefácio.
• PRESTON, Paul (1999). La Guerra Civile Spagnola. 1ª ed., Milano: Mondadori.
• ROY, Jules ( ? ). A Batalha de Dien Bien Phu. 3ª ed., Lisboa: Bertrand.
• SANTOS, José Rodrigues dos (2002). Crónicas de guerra. Da Crimeia a Dachau. 5ª ed., Lisboa:
Gradiva.
• SANTOS, José Rodrigues dos (2002). Crónicas de guerra. De Saigão a Bagdade. 2ª ed., Lisboa:
Gradiva.
• SUN ZI (1990). L’Art de La Guerre. 1ª ed., Paris : Economica.
96
A CAMPANHA DE 1805. AUSTERLITZ
97
98
A CAMPANHA DE 1805. AUSTERLITZ
99
Desagradável, senão humilhante, para a Inglaterra, o tratado de Amiens
reconhecia à França a posse de todos os territórios conquistados na Europa, e
obrigava a Inglaterra a devolver-lhe as colónias conquistadas durante a guerra, a
entregar o território do Cabo da Boa Esperança à Holanda, e a devolver Malta
à soberania da Ordem dos Cavaleiros Hospitalários. Vitória inquestionável da
diplomacia francesa e reflexo da glória militar da Republica, Amiens aparecia como
a paz duradoura por todos ambicionada, e no entanto….
….. E no entanto o tratado fracassou de forma estrondosa, com queixas e
culpas de parte a parte, mais ou menos verdadeiras, mais ou menos justificadas.
Clamava a França que os ingleses não abandonavam Malta, não abrandavam as
pressões comerciais, mantinham ao largo das costas francesas as suas poderosas
Esquadras e, pecado dos pecados, apoiavam à descarada todas as intentonas e toda
a propaganda dos emigrados realistas acolhidos à sua protecção, e permitiam a
constante humilhação do Primeiro Cônsul pela imprensa britânica. Retorquiam
os ingleses que a má fé de Napoleão era mais do que evidente, e para o provar
apontavam as ocupações da Holanda, da Republica Cisalpina, de Génova, Elba e
Piemonte, todas em operações executadas durante a elaboração do tratado. Alem
disto, a expedição francesa a Santo Domingo, muito embora destinada a resgatar
a ilha das mãos dos rebeldes de Toussaint l’Ouverture, tinha de ser vista como um
sinal claro do reacender da rivalidade colonial e, com dados comprovativos bem à
vista, a crescente actividade de espionagem nas costas e portos ingleses e irlandeses,
era motivo bastante para considerar a segurança britânica em perigo iminente. E
como se tudo isto não bastasse, a visita do Coronel Sebastiani às potencias do
Mediterrâneo Oriental e a venda da Louisiana aos Estados Unidos por 80 milhões
de francos, eram vistas pelo governo britânico como evidentes preliminares de uma
situação de conflito.
Assim, aqueles meses preciosos de Março de 1802 a Março de 1803, tempos
inapreciáveis para a consolidação de uma paz tão ambicionada, foram gastos na luta
diplomática e politica que sempre esconde o nascimento de um conflito, e foram,
esta é a verdade histórica, aproveitados pelas grandes potencias europeias para a
preparação, mais ou menos secreta, mais ou menos discreta, das suas máquinas
militares.
Em Março de 1803, pese embora as nuvens de fumo da diplomacia, tudo
indicava que a guerra era inevitável, e assim, quando em 10 de Maio o governo
Addington lançou um ultimato à França e a 16 de Maio uma fragata inglesa atacou
um comboio comercial francês no canal da Mancha, ninguém no mundo da politica
europeia de então ficou surpreendido. A guerra pelo poder na Europa e no mundo,
a grande guerra imperial do século XIX, a guerra que só iria acabar na “morne
plaine” de Waterloo, acabava de começar.
A partir de 16 de Maio de 1803, data da declaração de guerra da França
à Inglaterra, os acontecimentos políticos e militares no continente europeu
100
precipitaram-se em catadupa. Assim, do lado francês, Napoleão considerou que uma
guerra puramente naval contra o seu inabalável inimigo, dado o estado lastimoso da
Marinha de Guerra francesa, a grande vitima militar do passado terror revolucionário,
apenas podia conduzir ao desastre. No entanto, a enorme superioridade do Exército
saído das guerras da Revolução, se devidamente acompanhada por uma manobra
de estratégia naval audaz e competentemente dirigida, tinha, no seu entender, a
capacidade de permitir uma invasão vitoriosa da Inglaterra, com o consequente
ditar de uma paz definitiva que garantisse à França uma posição dominante sobre
a Europa e, certamente, sobre o mundo. Do lado britânico, onde William Pitt iria
regressar à chefia do governo, a situação criada pela ruptura da Paz de Amiens
levara uma vez mais o poder politico a encarar os problemas inerentes à fraqueza
do Exército e, como sempre, a garantir a segurança do território insular com a
força extraordinária da sua Marinha, aliada à enorme capacidade económica dos
comerciantes da City.
Analisando mais em detalhe o pensamento estratégico das duas grandes
potencias em conflito, vemos que, do lado da França e sob um ponto de vista global, o
isolamento da Inglaterra era capital, não só para permitir uma invasão bem sucedida,
mas também para lhe negar a possibilidade do habitual recurso ao arregimentar
de aliados para levantar coligações. Assim, a diplomacia francesa, superiormente
dirigida por Talleyrand, procurou desde o inicio garantir a neutralidade da Rússia
e da Prússia, já que quanto à Áustria, e dadas as violações da Paz de Luneville por
parte da França, as coisas pareciam de difícil solução. No que respeita à Rússia, a
sua tão desejada neutralidade viu-se comprometida de má maneira pela antipatia
que o Czar Alexandre I, ao contrário do seu pai, sempre sentiu pela França, antipatia
agravada pela ambição francesa sobre os estados alemães e, muito especialmente,
pela alarmante aproximação tentada por Talleyrand face à Turquia. Quanto à
Prússia, a sua neutralidade parecia à partida garantida pela concessão do Hanover,
recentemente ocupado pelos franceses.
No campo das alianças, a França contava com a Espanha e, alem desta, com
Baden, Baviera e Wurtenberg, os pequenos estados alemães que estavam na origem
da antipatia do governo de São Petersburgo….
Sob um ponto de vista militar, podemos resumir o planeamento da invasão
de Inglaterra ao lançamento de uma grande operação anfíbia a realizar nas costas
de Kent, operação essa que seria protegida pelo isolamento do canal da Mancha,
durante um período mínimo de 48 horas, por parte da Esquadra Francesa. Para
garantir este isolamento, Napoleão concebeu uma manobra que levaria a Esquadra
do Mediterrâneo, forte de 11 navios de linha comandados pelo Almirante Latouche-
Treville, a zarpar de Toulon para Oriente (enganando Nelson e a Esquadra Inglesa
que bloqueava aquele porto), fazendo-se depois de vela para o estreito de Gibraltar,
juntar de seguida no Atlântico a Esquadra Espanhola do Almirante Gravina e,
enquanto o Almirante Ganteaume forçava o bloqueio de Brest para “amarrar” a
101
Esquadra do Almirante Cornwallis, navegar para o canal da Mancha e garantir o
seu isolamento durante 48 horas. Então, e a coberto deste isolamento, o “Exército
de Inglaterra”, forte de 160 mil homens comandados por Napoleão, deixaria os
seus estacionamentos em Etaples, Boulogne, Vimereux, Ambleteuse, Calais,
Dunkerque e Ostende e, embarcando em mais de duas mil embarcações de todos
os tipos, rumaria à costa inglesa e à vitória. Porém….porém uma Esquadra não
se comanda como um Exército, e muito menos naquele tempo da navegação de
vela e, para piorar ainda mais as coisas, o Almirante Latouche-Treville morreu da
febre contraída em Santo Domingo, e para o substituir, Decrés, então Ministro da
Marinha, indicou o infeliz Almirante Villeneuve. O destino da Esquadra Francesa e
o desastre de Trafalgar estavam traçados.
E sob um ponto de vista politico, depois de atentados frustrados, conjuras
desmontadas, plebiscitos esmagadores e desesperadas lutas de interesses, em 2 de
Dezembro de 1804, na Catedral de Notre Dame de Paris e em presença do Papa
Pio VII, Napoleão Bonaparte coroava-se a si próprio como “Imperador eleito pela
vontade da Nação”.
Analisando agora o comportamento estratégico de William Pitt, começamos
por admirar a sua determinação, a sua frieza e, acima de tudo, a sua preocupação
permanente em afastar o conflito das costas do seu país. Regressado ao poder em
Maio de 1804, Pitt encontrou uma Inglaterra extremamente preocupada com toda
a actividade militar francesa nos acampamentos de Boulogne, e (mal endémico na
sua História….) ciente da fraqueza do seu Exército para se opor a uma invasão.
Assim, a sua atenção virou-se de imediato para a segurança que as Esquadras
podiam garantir ao território insular, e procurou garantir que a guerra iria ter lugar
no continente europeu e, acima de tudo, levada a cabo pelas potências continentais.
No entanto, e considerada a hipótese de um fracasso diplomático, Pitt organizou de
forma magistral a defesa do território inglês e das suas costas com base no pequeno
Exército Permanente, mas, muito especialmente, à custa do levantamento de um
sistema de tropas territoriais, judiciosamente dispostas na costa e na profundidade
do território. Este sistema de tropas estava destinado a apoiar de imediato as
forças militares permanentes dispostas defensivamente nos pontos da costa mais
facilmente abordáveis por um desembarque, mas estava igualmente preparado para
passar à “guerrilha” no caso de um muito possível fracasso da estrutura defensiva
mais avançada. Porém, o esforço principal de toda a defesa recaía sobre o Exército
que estava a ser preparado e instruído nos campos de manobras de Shornecliffe sob
o comando competentíssimo de Sir John Moore. Com este General ombreavam
na liderança das forças regulares soldados que, tempos depois, iriam entrar na
lenda: Stuart, Hill, Crawford, Dundas. Entrincheirados em Dover, Chatham,
Chelmsford, cobertas as costas por baterias de artilharia e obras defensivas, 100
mil homens das tropas permanentes, o chamado Regular Army, e mais de 80 mil
milicianos, esperavam, naqueles meses de 1803 e 1804, a chegada do Exército de
102
Invasão. Enquanto isto, no mar sempre dominado pelas suas Esquadras, as forças
navais britânicas de Nelson, Calder, Collingwood, Campbell, Cornwallis e Keeth,
bloqueavam e patrulhavam Brest, Toulon, Rochefort, Cádiz. E alimentando todo
este sistema, no campo das informações e espionagem, uma rede de agentes actuava
em França e nas cortes onde a diplomacia francesa tinha mais peso. Curiosamente,
um destes agentes, famoso pela correspondência deixada para a posteridade sob o
nome de código de “L’ Ami de l’ Angleterre” (nunca se veio a saber quem era….),
reportava para Londres desde os gabinetes das Tullerias, de Saint Cloud e do
Luxemburgo!!!
Sabendo do poder do inimigo, e recorrendo a todos os processos para o anular,
o governo britânico também ajudou “certas” acções “secretas”…
…. Falésias de Biville na Normandia, 20 de Agosto de 1803. De bordo do navio
inglês “El Vencejo” desembarca em França o primeiro grupo de emigrados realistas
com a missão específica de “neutralizar” o Primeiro Cônsul. Arregimentando pouco
tempo depois homens da coragem temerária de Coster de Saint-Victor, Armand e
Jules de Polignac, do marquês de Riviere e, acima de todos, de George Cadoudal,
estes intrépidos e idealistas monárquicos, veteranos da “chouanerie” vendeana e
prontos a jogar a vida pela causa dos Bourbons, constituíram, juntamente com os
Generais Pichegrou, Dumouriez e Moreau, o núcleo duro de uma conspiração que
iria conduzir não só à sua perda mas, em 21 de Março de 1804, ao fuzilamento do
Duque d’Enghien (totalmente alheio à conspiração) e ao imediato desatar, contra
Napoleão, do ódio implacável das Monarquias europeias. E se é permitida uma
“nota de rodapé” sobre este assunto, convém dizer que nem o Conde de Artois, nem
o Duque de Berry, e muito menos ainda o futuro Luís XVIII, mereceram o heróico
sacrifício dos homens da falésia de Biville….
Porém, o trágico fuzilamento do Duque d’Enghien, teve como consequência
imediata a materialização do sonho de William Pitt, objectivo estratégico de toda a
sua actividade diplomática, e sorvedouro inevitável de mais de um milhão de libras
anuais: A formação da “terceira coligação” contra a França.
Obra prima do tacto diplomático e do poder do dinheiro inglês, a “terceira
coligação” teve as suas raízes mergulhadas na chamada “Liga da Neutralidade
Armada”, organização que, juntamente com a Paz de Luneville, sucedeu, em
Fevereiro de 1801, à derrota da “segunda coligação”. Envolvendo a Prússia, a
Rússia, a Dinamarca e a Suécia esta Liga teve curta duração, pois não viveu para
além de 1801 e terminou com o assassinato do Czar Paulo I e a vitória de Nelson
em Copenhaga. Porém, o medo dos avanços territoriais e ideológicos da Republica
Francesa e o interesse comum de russos e suecos nos assuntos do Báltico, ligou
estas Coroas aos interesses da Áustria e de Nápoles, também elas objecto da
força militar de Napoleão, e das perdas territoriais ditadas pela vitória francesa de
Marengo. Ciente da necessidade de pressionar a França desde Leste para a obrigar
a abandonar os projectos de invasão da Inglaterra, Pitt constituiu, em Maio de 1804,
103
a “Liga Europeia para a restauração da paz e do equilíbrio de poder”, organização
que ao envolver a Áustria, a Rússia, a Suécia, Nápoles e a Inglaterra (e muito
embora sem um carácter de aliança militar), constituía uma evidente ameaça contra
a França.
Foi pouco depois da morte do Duque d’Enghien que, em Maio de 1804, o
senado francês ofereceu a Napoleão a coroa imperial, coroa que, votada em
esmagador plebiscito, deu a Napoleão o título de Imperador em 2 de Dezembro
de 1804. Conhecendo a vaga de revolta que o fuzilamento de d’Enghien tinha
levantado nas cortes europeias, Pitt encontrou-se em 19 de Janeiro de 1805 com o
embaixador russo em Londres e propôs-lhe a formação de uma aliança militar contra
a França, a troco de um papel preponderante de São Petersburgo na futura politica
europeia. Já ligada à Áustria pela “Liga”, a Rússia procurou alargar a nascente
aliança à corte de Viena, o que foi facilitado pela coroação de Napoleão como Rei
de Itália em Janeiro de 1805. Inimigo irreconciliável da França, o Rei da Suécia
assinou, em Janeiro de 1805, uma aliança militar com a Rússia, tendo como objecto
a resistência à ambição francesa na Alemanha e o equilíbrio de poder na Europa,
curiosamente o “cavalo de batalha” da manobra diplomática de William Pitt. Assim
nascia a “terceira coligação”, aliança que, prontamente alargada à Áustria e a
Nápoles (e com o acordo da Turquia) obrigava à mobilização de 180 mil russos,
315 mil austríacos e 12 mil suecos, que, pagos por Londres pelo subsidio anual de
1.250.000 libras, deviam marchar contra a França. Quanto à Prússia, muito embora
a sua antipatia relativamente à França fosse notória, a verdade é que a perspectiva
da posse de Hanover sem disparar um tiro levava-a, por enquanto, a manter um
estado de “neutralidade oscilante” que, se por um lado irritava as potencias aliadas,
por outro convinha perfeitamente aos planos de Napoleão.
Entrava o mês de Agosto de 1805 quando, ciente das exigências e animosidade
da Áustria, a par da agressiva atitude russa, Napoleão começou a alimentar a ideia de
matar à nascença o perigo que uma invasão de mais de 500 mil homens representava
para a vida do Império. Sem dúvida que é deste rolar de acontecimentos que data o
planeamento da imortal campanha de 1805, por muitos autores chamada “campanha
da Alemanha”, mas não podemos esquecer o papel fundamental que as Marinhas
Francesa e Inglesa tiveram igualmente na decisão do Imperador.
Efectivamente, desde Janeiro de 1805 que o Contra-Almirante Villeneuve,
sucessor de Latouche-Treville no comando da Esquadra do Mediterrâneo e agora
encarregado de levar por diante a empresa de isolamento do canal da Mancha,
tentava romper o bloqueio a Toulon e sair para o Atlântico. Como parte da sua
missão para atrair os ingleses, Villeneuve devia juntar os seus navios com os do
Contra-Almirante Missiessy ao largo das Antilhas e depois navegar rapidamente
para a Mancha. Porém os franceses falharam o seu objectivo, como o voltariam a
falhar mesmo depois de Villeneuve, reforçado pela Esquadra Espanhola de Frederico
Gravina, ter conseguido chegar a Martinica. Constantemente receoso de enfrentar
104
os navios ingleses que o seguiam, especialmente quando Nelson lhe aparecia no
caminho, o melhor que Villeneuve conseguiu foi chegar até ao cabo Finisterra,
travar uma escaramuça com um pequeno esquadrão inglês comandado por Calder,
retirar para Vigo e, abandonando o projecto de isolamento da Mancha, regressar a
Cadiz onde Nelson o bloqueou. Confrontado com o fracasso do seu sonho naval,
e com a Esquadra de Gantheaume bloqueada em Brest, o Imperador abandonou a
ideia de invadir a Inglaterra, e lançou-se rapidamente para a fronteira do Reno.
Sem dúvida que o resultado desta primeira fase da guerra tinha sido favorável
a William Pitt e à sua estratégia, mas era agora que o génio de Napoleão, inigualável
no combate em terra, ia ditar a sua lei.
Animados, melhor seria dizer “fanatizados”, pelas grandiosas cerimónias
da entrega das medalhas da “Legião de Honra” em Boulogne, e das “Águias” às
diferentes unidades no Campo de Marte em Paris, cerimónias que tiveram lugar
entre 16 e 18 de Agosto de 1805, os soldados do “Exército de Inglaterra”, a partir de
então chamado de “Grande Exército”, receberam ordem para marchar para Leste.
Reunidos naquele que muitos autores consideram o mais perfeito aparelho militar
da História, os soldados do “Grande Exército”, numa força total de 188 mil homens,
estavam organizados em sete Corpos de Exército, Guarda Imperial, e Reserva de
Cavalaria e Artilharia a Cavalo. Para os comandar, elevados agora ao título de
Marechal de França, estavam alguns dos nomes que a memória dos homens fez
entrar no imaginário da lenda: 1º Corpo, Bernardotte; 2º Corpo, Marmont; 3º Corpo,
Davout; 4º Corpo, Soult; 5º Corpo Lannes; 6º Corpo Ney; 7º Corpo, Augereau;
Guarda Imperial, Bessieres; e Reserva de Cavalaria, Murat.
Debruçado sobre os mapas da Alemanha desde o dia 5 de Agosto de 1805, o
Imperador ditou a Daru, Intendente Geral do Grande Exército, todo o plano para
levar as suas tropas de Boulogne na costa de Calais até à margem esquerda do Reno.
E fê-lo a coberto do maior segredo, sem que lhe faltasse incluir o mais pequeno
pormenor, quer em datas e unidades, quer em itinerários e áreas logísticas. De
uma actividade diplomática febril, em 22 de Agosto renovou a oferta de Hanover à
Prússia para lhe garantir a neutralidade, assinando depois alianças com Wurtenberg
e Baviera. A Berthier, seu Chefe de Estado-Maior, revelou que era sua intenção
ganhar vinte dias aos movimentos do Exército Austríaco para, marchando sobre
o Danúbio, vencê-lo separado dos russos. Para garantir a segurança estratégica
do corpo principal do seu Exército, enviou Massena, antes do fim de Agosto para
Itália, e já em Setembro, Gouvion Saint-Cyr contra os napolitanos, uma vez que
estes tinham aderido à coligação no dia 10 daquele mês. E tudo isto feito com
uma precisão matemática, alternando o ditar das ordens, com o ditar de cartas para
outros destinatários e sobre os mais diversos assuntos. Absolutamente fantástico!
Quanto aos aliados, os seus planeamentos apontavam para uma marcha do
Exército Austríaco do General Mack sobre o Danúbio, abrindo o caminho para a
sua junção aos Exércitos Austro-Russos concentrados na Galicia, criando assim
105
uma massa de decisão capaz de levar de vencida a linha do Reno. Suportando este
ataque principal, o Arquiduque Carlos devia cair sobre a Itália do Norte, enquanto
que napolitanos, russos e ingleses marchariam ao seu encontro apoiados nos
Apeninos, e suecos e russos atacariam na Pomerania….
Aproximava-se o fim de Agosto, e as unidades do Grande Exército começaram
os seus movimentos naquela que passou à História com o nome de “Manobra de
Augsburgo”. Os Corpos de Exercito de Bernardotte e de Marmont, 1º e 2º, tinham
como base de partida o Hanover e a Holanda. Bernardotte concentrou as suas
Divisões (17 mil homens) em Goettingen e daí, a 6 de Setembro, marchou para Sul
direito a Wurzburg, onde chegou a 27 de Setembro. Reforçado por 20 mil bávaros,
o 1º Corpo de Exército marchou então para Weissenburg. Porém, como naquela
altura os austríacos de Mack já se encontrassem concentrados em Ulm, Memmingen
e Stockach, era imperioso para a manutenção da rapidez do movimento sobre o
Danúbio (para impedir uma possível junção de austríacos e russos), que Bernardotte
cruzasse o território de Anspach, violando assim a neutralidade prussiana. Isto
feito, já nada podia travar a entrada da Prússia na coligação, o que sucedeu em
3 de Novembro, quando, em Potsdam e junto do túmulo de Frederico o Grande,
Frederico Guilherme, Alexandre I e a rainha Luísa da Prússia (no dizer de Napoleão,
o único homem da família!), assinaram essa mesma adesão. Obrigava-se a Prússia a
actuar contra as comunicações do Grande Exército além Reno, mas reservava-se o
direito de só entrar em operações com os seus 100 mil homens na segunda semana
de Dezembro de 1805. Assim, a Napoleão urgia andar mais depressa, cada vez mais
depressa.
Em 2 de Setembro de 1805, um correio imperial chegou a galope ao Quartel-
General do 2º Corpo de Exército em Zeist, na Holanda, com as ordens de marcha
para Marmont. Partindo dos seus estacionamentos no mesmo dia 2, os 24 mil
homens do 2º Corpo de Exército marcharam para Mayence apoiados na margem
esquerda do Reno e daí para Francforte e Wurzburg, onde chegaram a 1 de Outubro.
Juntamente com as tropas do Eleitor da Baviera marcharam então para Munique
e, uma vez ali chegados, a segurança estratégica do flanco Sul da “Manobra de
Augsburgo” estava garantida.
A marcha do centro do Grande Exército para o Reno começou em 27 de Agosto
de 1805, quando a Divisão de Couraceiros de Nansouty, pertencente à Reserva de
Cavalaria de Murat, iniciou o movimento do escalão de reconhecimento. Partindo
de Ambleteuse a 2 de Setembro, o 3º Corpo (de Davout) seguiu por Cassel, Namour
e Mannheim, onde chegou a 25 de Setembro. A 29 de Agosto saiu de Boulogne o
4º Corpo (de Soult) que por Douai, Cambrai, Sedan e Metz, alcançou Spires em
25 de Setembro. O 5º Corpo (de Lannes) deixou Vimereux a 30 de Agosto, e por
Estrasburgo chegou a Metz em 24 de Setembro. Saindo de Etaples a 28 de Agosto,
o 6º Corpo (de Ney) avançou a marchas forçadas por Peronne, La Fere, Nancy, e
chegou a Hagenau a 25 de Setembro. A 22 de Setembro, a Guarda Imperial já tinha
106
montado o Grande Quartel-General em Estrasburgo, enquanto que a Reserva de
Cavalaria de Murat, desde 16 de Setembro que ocupava as saídas da Floresta Negra
em Pirmasens, Schlettstadt, Molsheim e Obernheim. Quanto aos 14 mil homens
do 7º Corpo (de Augereau), a sua missão era cobrir o flanco direito do Grande
Exército, da Floresta Negra aos Alpes Tiroleses.
Vivendo do campo e recebendo todo o apoio das populações francesas que
os vitoriavam, os soldados do Grande Exército conseguiram fazer uma marcha
formidável da costa até ao Reno, e em tempo tão reduzido, que quando as suas
colunas se preparavam para atravessar o rio ainda os Exércitos Aliados estavam na
Morávia, concentrados em Olmutz, com o Exército de Mack isolado na região de
Ulm.
Enquanto Napoleão lançava a sua ofensiva sobre a Alemanha, os aliados
debatiam-se com os profundos desentendimentos que, desde o começo das
operações, marcaram todo o relacionamento entre eles. Assim, os austríacos, por
decisão do Conselho Aulico, tomaram como Teatro Principal de Operações a Itália,
e para aí mandaram o Arquiduque Carlos com um Exército de 95 mil homens
(a quem os franceses opunham os 50 mil do 8º Corpo de Exército de Massena).
Defendendo o Tirol, estavam os 23 mil homens do Arquiduque João, que eram
igualmente o elemento de ligação entre o Arquiduque Carlos e o Arquiduque
Fernando que, nominalmente, comandava os 58 mil homens que Mack concentrara
na região de Ulm. Quanto a esta ultima força, a sua missão envolvia a defesa das
saídas da Floresta Negra e a cobertura do avanço dos Exércitos Russos de Kutusov e
Benningsen. Uma vez feita a junção dos austro-russos em Ulm, o Comando Supremo
Aliado passaria para o Imperador Francisco da Áustria, e o Exército Austro-Russo
avançaria, pela Floresta Negra, Suábia e Francónia, sobre Estrasburgo. De acordo
com o comprometimento do Czar, Kutusov, com 35 mil homens, devia chegar à
Baviera antes de 20 de Outubro, imediatamente seguido dos 40 mil homens de
Buxhowden, enquanto que o Exército de Bennigsen, forte de 20 mil homens,
operaria desde essa data na Boémia e na Francónia. Mas o Estado-Maior Aliado
esqueceu-se que os russos ainda usavam o calendário Juliano, o que lhes marcava a
junção para dez dias depois da data prevista pelo calendário gregorian.
O plano de Napoleão para ganhar uma vitória decisiva sobre os aliados era
muito simples. A coberto de uma série de fintas nas saídas da Floresta Negra a
cargo da Cavalaria de Murat, o Grande Exército tornearia Ulm pelo Norte a partir
do Reno (e direito ao Danúbio em Donauworth e Neuburgo), atacaria os austríacos
concentrados em Ulm (e com a retirada cortada), avançando depois contra os
russos para os vencer numa batalha decisiva. Garantindo a segurança estratégica
da manobra no Teatro Alemão, Massena “agarrava” o Arquiduque Carlos na Itália,
Gouvion Saint-Cyr impedia o desembarque aliado em Nápoles, e Brune ficava a
defender Boulogne de um possível ataque inglês. E o que mais impressiona quem
estuda esta campanha… é que foi precisamente isto o que sucedeu!
107
A passagem do Reno pelo Grande Exército começou ainda em 25 de Setembro,
quando o 5º Corpo de Lannes avançou de Estrasburgo para Freudenstadt, através
da Floresta Negra. Com Mack “hipnotizado” pelas fintas de Murat nas saídas da
Floresta Negra, a 3 de Outubro as testas dos Corpos de Exército ocupavam a linha
Estugarda-Ansbach, com Lannes e Ney em Estugarda. Marchando entre 12 e 40
quilómetros por dia, as tropas (com a guerra a alimentar a guerra, sobrevivendo à
custa de batatas, cebolas, e do pouco mais que apanhavam, e sofrendo um tempo
que piorava a olhos vistos), conseguiram o feito memorável de, em 15 de Outubro,
terem o 6º Corpo a fechar Ulm pelo Norte; os 2º, 4º e 5º Corpos, concentrados entre
os rios Iller e Lech, bloqueando Ulm por Sudeste e pela linha do Danúbio; o 1º e o
3º Corpos na linha do Isar para, eventualmente, parar os russos; e o Grande Quartel-
General em Augsburgo. Porém, desde 8 de Outubro que estas mesmas tropas, como
se mais não tivessem feito do que um agradável passeio pelo campo, combatiam
contra as forças austríacas de Ulm que, sentindo-se apanhadas numa armadilha
mortal, se batiam com a coragem do desespero. Primeiro foi Dupont que se cobriu
de glória em Wertingen, na margem Norte do Danúbio, quando a sua Divisão
enfrentou uma força de 25 mil austríacos. Depois, em 14 de Outubro, foi a vez de
Ney ganhar o sangrento combate da ponte de Elchingen, vitória que lhe iria valer
o título de Duque, e que abria definitivamente a possibilidade de cercar Ulm. E tão
certa era essa possibilidade que, na noite de 14 para 15 de Outubro, o Arquiduque
Fernando abandonou Ulm com 6 mil cavaleiros, tão prontamente perseguidos por
Murat, (numa das acções de cavalaria mais brilhantes da sua carreira), que deles
só 11 esquadrões conseguiram a junção com Werneck (em Heidenheim). Nessa
acção, concluída com as vitórias de Trochtelfingten e Neustadt, conseguiu Murat a
rendição de 12 mil austríacos e uma fama imortal. As cargas de Murat, chamadas
então de “tempestade cavaleira”, juntamente com a vitória de Ney em Michelsberg,
levaram à inevitável rendição de Mack em 20 de Outubro de 1805. Na manhã
de 21 de Outubro, 25 mil infantes e 2 mil cavaleiros do Exército Austríaco do
General Karl Mack von Leiberich, depunham as armas perante o Grande Exército
formado em parada nas encostas do Michelsberg. Chegara ao fim a “Manobra de
Augsburgo”. Austerlitz ia agora começar.
Aquela mesma hora e naquele mesmo dia, a milhares de quilómetros de
distancia e ao largo de um cabo da costa atlântica espanhola, a Esquadra Inglesa
de Lorde Horatio Nelson acabava igualmente de ganhar aquela que foi, por tudo o
que consigo originou, a verdadeira batalha decisiva das “Guerras da Revolução e
do Império”: A batalha de Trafalgar.
Absolutamente ciente de que uma paragem prolongada do Grande Exército
no Danúbio, em expectativa estratégica, ou uma retirada para a linha do Reno em
manobra defensiva, abriria aos aliados a possibilidade de concentrar na Baviera e
no Palatinado mais de 120 mil austríacos e 100 mil russos, e que essa concentração
levaria à imediata adesão da Prússia à coligação, Napoleão decidiu avançar o
108
mais rapidamente possível contra os russos de Kutusov, por forma a impedir a sua
junção com o Exército que o Czar concentrava na Morávia. Sabendo que Kutusov
se encontrava em Braunau, no rio Inn, desde 20 de Outubro, Napoleão ordenou ao
Grande Exército que marchasse de Augsburgo para Munique no dia 21 e, com os
flancos cobertos pelo 6º Corpo de Ney no Tirol, e pelo 1º Corpo de Bernardotte
sobre Salzburgo, avançou a marchas forçadas, e entrou com o grosso das suas
tropas em Braunau no dia 29 de Outubro. Procurava o Imperador forçar Kutusov
a aceitar batalha, mas o Marechal russo, considerando muito bem que os seus 40
mil homens não podiam aguentar no Inn até à chegada do Exército de Buxhowden
(então ainda em Olmutz), resolveu retirar por Krems para Norte do Danúbio e,
coberto por uma poderosa guarda de retaguarda de 15 mil homens comandados por
Bagration, internar-se na Morávia ao encontro de Buxhowden e do Czar.
Com Ney no Tirol, Augereau em Ulm e o 2º Corpo de Marmont em Leoben, o
Grande Exército avançou para Viena e, a 5 de Novembro, a sua força de cobertura,
comandada por Murat, repeliu Bagration no combate de Amstetten. Sempre na
busca de “agarrar” Kutusov, o Imperador mudou o seu Quartel-General para Linz
e aí, com três Divisões tiradas aos Corpos de Ney, Lannes e Marmont, formou um
novo Corpo de Exército comandado por Mortier. E foram os dragões de Klein,
a cavalaria deste novo Corpo, que no dia 11 de Novembro iniciaram o combate
de Durrenstein, contra os russos de Miloradovitch e Doctorov. Foi depois deste
combate, indeciso tacticamente mas de grande importância para a acção retardadora
planeada por Kutusov e Bagration, que os russos evacuaram a margem direita do
Danúbio e deixaram desguarnecida a estrada para Viena. Com Viena considerada
“cidade aberta”, o Imperador entrou na capital austríaca em 13 de Novembro, depois
de Murat e Lannes, com tropas do 5º Corpo (os famosos granadeiros de Oudinot) e
da Reserva de Cavalaria terem, num audacioso “golpe de mão”, garantido a posse
da ponte de Tabor sobre o Danúbio.
No seu Quartel-General estabelecido no palácio imperial de Schonbrunn,
Napoleão recebeu no dia 14 a notícia de que Massena, no dia 30 de Outubro,
tinha repelido o Arquiduque Carlos no Adige (na “segunda batalha de Caldiero”),
obrigando-o a retirar, através da Venécia e do Frioul, para os Estados Hereditários
dos Habsbourgos. Tendo agora o seu flanco estratégico Sul seguro durante algum
tempo, o Imperador marchou então o Grande Exército para Norte do Danúbio.
Deixando a Davout a ligação com o 2º Corpo de Marmont, e a Mortier a guarnição
de Viena (e a guarda dos seus depósitos e paióis), Napoleão mandou avançar para
a Morávia, pela estrada de Znaim, os Corpos de Soult, e Lannes, mantendo-se em
Viena com toda a Guarda Imperial. Seguindo as forças de cobertura de Murat, no
dia 15 de Novembro os franceses apanhavam finalmente Kutusov em Hollabrunn,
e estabeleciam contacto com a sua guarda de retaguarda. O combate de Hollabrunn,
que envolveu os couraceiros franceses de Hautpoul e Nansouty, mais os dragões de
Walther e os granadeiros de Oudinot, contra os hussardos austríacos e os cossacos
109
de Nostitz (cobrindo as unidades ligeiras de Kiew, Azoff e Podolia, para além dos
fuzileiros de Narva e Novgorod), foi “tempo perdido” para Napoleão, já que Kutusov,
uma velha raposa da arte da finta e da decepção, aproveitou brilhantemente as horas
gastas no vai e vem das mensagens para uma possível capitulação, e escapou com
os seus 40 mil homens para Brunn e Olmutz, iludindo Murat, e arranjando a este
Marechal uma séria reprimenda do Imperador.
Furioso por ter sido enganado em Hollabrunn, Napoleão saiu de Viena em 17 de
Novembro e, seguido da Guarda a marchas forçadas pela estrada de Znaim, entrou
em Brunn (capital da Morávia) no dia 20, aí estabelecendo o seu Quartel-General.
Preocupado com a situação politica aberta pela adesão da Prússia à coligação e
pela vitória de Nelson em Trafalgar (…onde a Inglaterra ganhou uma batalha mas
perdeu um homem…), o Imperador enviou reconhecimentos em todas as direcções
e, em 22 de Novembro, já estava ciente da força e posição do inimigo. De acordo
com os relatórios chegados a Brunn, os austro-russos, nominalmente comandados
pelos Imperadores Alexandre e Francisco, mas tendo como Comandante de campo
o Marechal russo Mikail Iladorich Golenichev Kutusov, estavam concentrados
em Olmutz, 50 quilómetros a Norte de Brunn, numa força de cerca de 90 mil
homens. Tendo como Chefe de Estado-Maior o General austríaco Weyrother, este
enorme Exército Aliado reunia os Corpos Russos de Bagration (13 mil homens),
Przebyswskyi (10 mil homens), Langeron (11, 700 homens) e Doctorov (8. 500
homens), mais o Austríaco de Kollowrath (23. 900 homens), para além das Cavalarias
de Lichtenstein (4.600 homens) e Kienmayer (5.100 homens), e da Guarda Imperial
Russa do Grão-Duque Constantino (8.500 homens). Para Noroeste de Brunn, e a
cerca de 140 quilómetros desta cidade, concentravam-se em Praga os 9 mil homens
do Arquiduque Fernando, enquanto que muito longe para Sul de Brunn, a mais de
200 quilómetros de distancia e vigiados por Ney e Marmont, estavam os 80 mil
homens do Arquiduque Carlos, desviados do Teatro Principal por um erro histórico
do Conselho Aulico. Fruto do Tratado de Potsdam, 100 mil prussianos estavam-se
a concentrar na Saxónia, mas tudo indicava que só poderiam entrar em operações
na segunda semana de Dezembro.
Perante este quadro estratégico, impunha-se a Napoleão obrigar os aliados a
travar batalha, e que essa batalha tivesse lugar o mais rapidamente possível … e
fosse uma vitória esmagadora e decisiva. Assim, e como base da manobra que o
seu génio começava a desenhar, o Imperador concentrou em Brunn o 5º Corpo de
Lannes (12.700 homens) e os 5.500 homens da sua Guarda Imperial (comandada
por Bessiéres). Chamou de Viena o 3º Corpo de Davout (10.500 homens) e deixando
Mortier a guarnecer a capital austríaca, concentrou o 1º Corpo de Bernardotte (19
mil homens Chegados de Iglau) em Znaim, e enviou os 5 mil homens da Reserva de
Cavalaria de Murat, como força de cobertura, entre Brunn e Olmutz. Para um castelo e
uma pequena vilória, a menos de 15 quilómetros a Leste de Brunn, Napoleão destacou
os 24 mil homens do 4º Corpo de Soult. Chamava-se essa vilória, Austerlitz.
110
Quem vai pela estrada de Brunn para Olmutz, percorre um terreno de suave
compartimentação transversal, limitado pelos rios Schwartzawa (que atravessa
Brunn) e Morawa (que atravessa Olmutz). Quebrando a monotonia do terreno, a
cerca de 10 quilómetros de Brunn, aparece uma pequena linha de alturas correndo
no sentido Norte-Sul, de onde se destacam (a Norte da estrada) o mamelão de
Bosevitz, chamado pelos franceses de Santon, e (a Sul da estrada) o planalto
de Pratzen e os seus dois pequenos cabeços, o Prazberg e o Stare Vinohrady.
Marcando, a Oeste, estas elevações, corre (de Norte para Sul) a ribeira de Goldbach,
pontuada pelas aldeolas de Schlapanitz, Puntowitz, Kobelnitz, Sokolnitz, Telnitz,
Moenitz… Para Oeste desta linha o terreno é plano, e está marcado pelas vilórias
de Turas (mais a Norte) e de Raigern (mais a Sul). Em Moenitz, o Goldbach
encontra o ribeiro de Littawa, que vindo de Noroeste bordeja o Pratzen em
Austerlitz, Krenowitz e Augezd, aldeias que se encontram a Leste e Sudeste do
planalto. Em frente ao Santon, e a Leste do riacho e aldeia de Bosenitz (que o
limita até ao Goldbach), estão as aldeias de Girzikowitz e Blaschowitz, e a Norte
da estrada de Olmutz (e ainda, mais para Norte de Bosenitz) estão dois lugarejos,
Posoritz e Raussnitz, de onde, para Sudeste, saem as estradas que em Austerlitz
se ligam à grande estrada da Hungria. E de Brunn, na direcção de Raigern e
Znaim, sai (para Sul) a grande estrada de Viena, a principal via de comunicação
da Morávia. Limitando a Sudeste todo este terreno, estão os lagos de Kobelnitz,
Satchan e Moenitz (hoje já não existem…) que naquele fim de Outono de 1805,
já se encontravam gelados.
Ainda hoje, quem se desloca pela estrada de Brunn a Olmutz e tem o cuidado
de olhar para a direita, ao ver esse terreno que sobe suavemente do Goldbach e
forma um planalto…vê o coração do campo de batalha de Austerlitz.
Durante o tempo que mediou entre a sua chegada a Brunn e o dia da batalha,
Napoleão percorreu cuidadosamente todo o terreno acima descrito, e ali pensou
na forma perfeita de destruir, de forma decisiva, o Exército Austro-Russo. Vendo
perfeitamente que o planalto do Pratzen era o “terreno decisivo”, o Imperador
concebeu uma manobra capaz de atrair o inimigo por forma a garantir que esse
“terreno decisivo”, para além de “decisivo” se tornasse na “posição central”, tão
querida ao seu ideal de manobra. Assim, decidiu que o Pratzen seria abandonado
aos austro-russos como se os franceses estivessem apavorados e quisessem retirar
para Viena pela estrada de Brunn (e a coberto do Goldbach), enquanto que para
melhor simular esse temor ao inimigo, a região de Sokelnitz, Telnitz e Moenitz
ficaria pobremente guarnecida (como se o Exército Francês se concentrasse à
pressa em Brunn para fugir), o que constituía um “convite obrigatório” para um
envolvimento que cortasse o Grande Exército do caminho de Viena. Para melhor
convidar o ataque do inimigo, Napoleão abandonou Austerlitz e todo o terreno
além do Goldbach, como se quisesse apoiar naquele ribeiro uma desesperada orla
anterior da sua zona de resistência. Convencendo os austro-russos de que temia ser
111
envolvido pela sua esquerda, o Imperador decidiu concentrar no Santon um grande
aparato de tropas…. Como num livro aberto pelo génio napoleónico, a imortal
manobra de Austerlitz acabava de nascer…. Era o dia 23 de Novembro de 1805.
Simples, manhosa, decisiva, e de um completo cinismo, a manobra de Austerlitz
convidava o inimigo a marchar sobre o Pratzen, “terreno decisivo”, mas com toda
a evidencia levava-o a concentrar toda a sua força sobre o espaço “aberto” de
Sokolnitz, Telnitz e Moenitz, para um envolvimento que cortasse as comunicações
e a retirada aos franceses. Claro que para agarrar os franceses ao terreno, a força que
os fixasse no Santon tinha que ser importante… Mas a grande massa de manobra
seria concentrada a Sul do Pratzen, e com as forças que o ocupassem. E aí….
…E aí o Grande Exército cairia velozmente sobre o Pratzen desocupado,
ganharia a “posição central”, e destruiria por partes o inimigo partido em dois.
Para materializar esta manobra, Napoleão concentrou na sua esquerda, no
Santon e à sua volta, os Corpos de Lannes e Bernardotte, toda a Guarda Imperial e
a Cavalaria de Murat. Estendido entre Puntowitz e Moenitz, o Corpo de Exército
de Soult exercia o esforço inicial, defendendo as aldeias de Kobelnitz, Sokelnitz e
Telnitz, com a Divisão Legrand e a Cavalaria Ligeira de Margaron. Porém, e para
surpreender o inimigo “embalado” no envolvimento por este flanco, o Corpo de
Exército de Davout avançava desde Viena, para ocupar o terreno entre Kobelnitz
e Moenitz e parar o inimigo na sua marcha para Turas. Mas era no centro deste
“tabuleiro de xadrez” que o Imperador visualizava a decisão da batalha. Para isso,
ainda Soult, com as Divisões Vandame e Saint Hilaire, marcharia sobre Pratzen e
Stare Vinohrady (logo que o inimigo abandonasse o planalto) no que seria seguido
pelo Corpo de Bernardotte, pela Reserva de Cavalaria, e pela Guarda (se fosse caso
disso), para agarrar a posição central. E uma vez tomado o Pratzen, rebater sobre a
esquerda (onde Lannes detinha a direita aliada) e sobre a direita (atacando o flanco
das forças detidas por Davout), para arrumar a questão e a batalha.
Enquanto Napoleão traçava em Brunn o destino do Exército Austro-Russo, os
Comandantes aliados planeavam em Olmutz uma vitória que julgavam certa.
Animados pelo temor demonstrado pelos primeiros movimentos do inimigo,
e recebendo inúmeros relatórios referindo a sua retirada, fraqueza do flanco direito
e múltiplas tentativas de evitar o combate, Alexandre, Francisco, Weirother,
Liechtenstein, e toda a juventude sedenta de glória que os cercava, ansiavam por
começar a batalha que iria arrumar de vez o “monstro revolucionário” Para os animar
ainda mais no seu desejo, Napoleão enviou Savary com medrosas propostas de
suspensão de armas, e pedidos aflitivos de uma conferência de paz. Como resposta,
os aliados zombaram da situação desgraçada do Imperador (do “chefe do governo
francês”, como eles lhe chamavam) e, num desprezo humilhante, mandaram-lhe
um dos pedantes mais famosos do Exército, o Príncipe Dolgoruki, com a proposta
de paz… a troco do regresso da França às sua fronteiras naturais, e do imediato
abandono da Bélgica e da Holanda.
112
Recebido pelo Imperador nos postos avançados do Santon, Dolgoruki foi de
tal maneira arrogante e provocador, que Napoleão e o seu Estado-Maior só por
milagre não perderam a cabeça com ele.
Durante todo o dia 1 de Dezembro, as pesadas colunas aliadas desceram a
estrada de Olmutz e, como se tivessem ouvido os estudos de Napoleão, ocuparam
o planalto do Pratzen e a estrada de Olmutz em Posoritz. Numerosas patrulhas
e esquadrões de Infantaria e Cavalaria Ligeira começaram então a reconhecer as
passagens do Goldbach entre Kobelnitz e Telnitz, numa altura em que os franceses
recolhiam todas as suas patrulhas para lá do Goldbach….
Aldeola de Krenowitz, Quartel-General Aliado, fim da tarde de 1 de Dezembro
de 1805.
Enquanto o Marechal Kutusov, que tanto avisara quanto à loucura de
menosprezar Napoleão, dormia num sofá, os Imperadores Francisco e Alexandre
assinavam a ordem de operações concebida pelo Estado-Maior do General Weirother.
Segundo essa ordem, o Exército Austro-Russo, forte de 85.700 homens, marcharia
na madrugada de 2 de Dezembro, por forma a, com o ataque principal, envolver
a direita do inimigo, empurrando-a para a linha Turas-Puntowitz e cortando-lhe a
retirada para Viena, Posteriormente, as forças de envolvimento, juntamente com
as forças do ataque secundário lançado contra a esquerda francesa, meteriam o
inimigo entre dois fogos, obrigando-o à rendição ou ao aniquilamento. Para lançar
o ataque secundário, o Corpo do Príncipe Bagration marcharia contra o Santon, e
daí para Brunn. Quanto ao ataque principal, comandado pelo General Buxhowden,
seria lançado a coberto da Cavalaria do General Kienmayer, e teria a sua massa
de manobra formada pela coluna do Tenente-General Docturov, que marcharia do
Pratzen sobre Telnitz; pela coluna do Tenente-General Langeron, que marcharia do
Pratzen sobre Telnitz e Sokolnitz; pela coluna do Tenente-General Przybyszewsky,
que desceria do Pratzen para atacar Sokolnitz e Kobelnitz; e pela coluna do Tenente-
General Kolowrat que, seguindo a coluna de Przybyszewsky, atacaria Kobelnitz.
Um vez passado o Goldbach e derrotada a direita francesa, as quatro colunas
avançariam para a linha Turas-Puntowitz, e daí atacariam Schlapanitz.
Entre os ataques de Bagration e de Buxhowden, os 82 esquadrões da Cavalaria
do Príncipe de Liechtenstein atacariam na direcção de Blasowitz e contra o flanco
sudeste do Santon, em apoio do ataque secundário.
A Guarda Imperial Russa do grão-duque Constantino, constituiria a Reserva
em Austerlitz.
Cabeço do Santon, Quartel-General Imperial, noite de 1 de Dezembro de
1805.
Depois de ter instruído cada um dos seus Comandantes na especificidade da
sua missão, o Imperador resolveu visitar os bivaques das tropas. Entrava o dia 2
de Dezembro, aniversário da coroação em Notre-Dame, e os soldados do Grande-
Exército, em toda a linha de batalha, levantando archotes acesos na ponta das
113
baionetas e dos sabres, aclamaram Napoleão com gritos de “Viva o Imperador!!!”…
que ecoaram como um aviso sinistro para todo o Exército Austro-Russo.
Depois de se ter certificado dos movimentos do inimigo a caminho da armadilha
de Telnitz, o Imperador recolheu ao seu bivaque no Santon.
Poucas batalhas na História Militar terão seguido tão a par e passo, tão momento
a momento o traçado no planeamento, como a batalha de Austerlitz.
Os primeiros combates do duelo entre 74 mil franceses e 85 mil austro-
russos, tiveram lugar em Sokelnitz e Telnitz quando, na madrugada gelada e densa
de nevoeiro de 2 de Dezembro, as unidades ligeiras de Kienmayer abordaram as
aldeias para forçar a linha do Goldbach. Por volta das sete da manhã, as colunas de
Buxhowden, abandonando o planalto do Pratzen, começaram a atacar as Brigadas
da Divisão Legrand e os Esquadrões de Margaron, numa luta desesperada que as
tropas francesas não pareciam ser capazes de suportar. Subitamente, e para espanto
dos Comandantes aliados, Regimento atrás de Regimento da Infantaria Francesa,
como se saídos do chão, fizeram a sua entrada na batalha. Era o Corpo de Exército
de Davout que, seguindo rigorosamente o planeado, chegava de Viena a marchas
forçadas para selar no Goldbach a armadilha tão criteriosamente preparada. Perante
este inesperado reforço da “débil e condenada” direita francesa, Kutusov enviou em
reforço de Buxhowden mais e mais tropas retiradas do Pratzen. Entrincheirados nas
aldeias e usando o Goldbach como obstáculo, os homens de Legrand e das Divisões
de Davout transformaram o flanco direito francês num verdadeiro sorvedouro
para as três colunas que as atacavam, e nem Przybyszewsky, nem Langeron, nem
Docturov, conseguiam resolver a situação.
Por volta das 9 da manhã, e quando um sol magnifico subia no horizonte por
detrás do Pratzen, Napoleão, vendo o planalto, o “terreno decisivo”, fracamente
ocupado, deu ordem a Soult para o conquistar. E batendo tambores, luzentes de
baionetas e bandeiras, as Divisões Vandamme e Saint Hilaire avançaram a passo de
carga para travarem no Pratzen um furioso combate. É que vendo então o logro em
que havia caído, o Comando aliado deu ordem a Kolowrat para defender o planalto
até ao último homem, e à Guarda Imperial Russa, reforçada com parte da Cavalaria
de Liechtenstein, mandou que carregasse de flanco a Infantaria Francesa.
Combates terríveis sucederam então no planalto do Pratzen, com Vandamme
e Saint Hilaire formados em quadrados para receberem as cargas de Cavalaria, e
manobrando de seguida para formar em coluna e abrir em linha contra a Infantaria
de Kolowrat e Miloradovitch. Confrontado com um desastre total, o Imperador
Alexandre (que pessoalmente presenciou esta fase da batalha), deu ordem a
Miloradovitch para retirar para Austerlitz. Foi então que a Cavalaria da Guarda
Imperial Rrussa atacou no Pratzen. E foi também então que o General Rapp, à
frente da Cavalaria da Guarda Imperial Francesa, lhe saiu ao caminho… A derrota
dos russos foi total, devastadora, e o planalto do Pratzen ficou finalmente em mãos
francesas.
114
Enquanto os combates se sucediam na direita e centro dos franceses, Lannes,
Bernardote, e Murat com a Reserva de Cavalaria, desbaratavam a direita russa e
obrigavam Bagration a abandonar o campo de batalha.
Depois…depois a batalha de Austerlitz estava decidida (mesmo antes de
começar…). O Corpo de Soult e partes dos de Bernardotte e Davout, rodaram para
Sul e vieram abrir em linha nas ladeiras do Pratzen que dominam o vale do Littawa.
Dali, o fogo de Artilharia e as cargas à baioneta sobre os russos detidos em frente
do Goldbach, foram o dobre de finados para milhares de homens que, ou se rendiam
em massa, ou se afogavam no lago gelado de Satschan (batido impiedosamente
pela artilharia francesa), única e traiçoeira via para fugir aquele desastre…
Campo de Batalha de Austerlitz, 4 e meia da tarde de 2 de Dezembro de
1805.
A batalha que liquidava a “terceira coligação” chegava ao fim, e com ela a
“Campanha de 1805”. 11 mil prisioneiros, 27 mil mortos e feridos, 180 canhões
e 45 bandeiras, selavam o maior feito de armas da História da França e o apogeu
militar do génio de Napoleão.
115
116
O “TESTAMENTO” DO CZAR PEDRO I
117
118
O “TESTAMENTO” DO CZAR PEDRO I
UMA LEITURA EM GEOPOLÍTICA
Preâmbulo
1. Apresentação
119
Governo da nação russa. O Todo-Poderoso, a quem devemos a existência, leva-nos
a pensar que o povo russo, constantemente guiado pela sua luz e apoiado na sua
Força Divina, é chamado a ser no futuro a raça dominante na Europa. Esta ideia
é-nos sugerida pelo facto de as nações europeias terem na sua maior parte chegado
a um estado decrepitude e declínio, ou, em qualquer caso, disso se aproximarem
a passos largos. Daqui resulta que as referidas nações deveriam ser conquistadas
por um povo jovem e novo, quando este último tiver alcançado a plenitude da sua
força e poderio.
Vejo na próxima invasão das nações ocidentais e orientais pelo Norte um
movimento periódico determinado pela Providência, que da mesma forma
regenerou o povo romano por meio da invasão dos bárbaros. Esta emigração de
homens do Norte é como o refluxo do Nilo, que em certas épocas alimenta com os
seus detritos as terras ocidentais do Egipto. Descobri que a Rússia é esse rio, e
por isso aqui vivo. Os meus sucessores farão dela um grande mar para fertilizar
a Europa depauperada e, se os meus descendentes souberem como canalizar
as águas, as suas ondas inundarão todas as margens que a queiram limitar. É
justamente para isso que deixo estas instruções e que as recomendo a atenção e
observação constante dos meus descendentes.
120
Se as potências vizinhas levantarem dificuldades, tranquilizá--las
por algum tempo, dividindo o país até podermos reaver tudo aquilo que
tivermos cedido.
V. Escolher sempre princesas alemãs para os nossos príncipes por forma a
promover alianças de família, reunir os nossos interesses e assim trazer
a Alemanha para o nosso campo, reforçando a nossa influência.
VI. Induzir a Suécia a atacar-nos, de maneira a termos um pretexto para
a subjugar. Em seguida, isolar a Dinamarca da Suécia e favorecer a
rivalidade entre estes dois países.
VII. Dar preferência a uma aliança com a Inglaterra no comércio, sendo
esta a potência que tem maior necessidade de nós para a sua marinha,
enquanto ao mesmo tempo nos pode ser extremamente útil para o
desenvolvimento da nossa própria marinha. Trocar a nossa madeira e
produtos pelo seu ouro e estabelecer relações permanentes entre nós, no
que respeita às suas mercadorias e sector naval, o que será do interesse
deste país no que toca à navegação e ao comércio.
VIII. Expandirmo-nos sem cessar para Norte, ao longo do Báltico, e para Sul,
em direcção ao Mar Negro.
121
XI. Interessar a Casa de Áustria na expulsão dos turcos da Europa,
neutralizar o seu ressentimento no momento da nossa conquista de
Constantinopla, quer aliciando-a à guerra com as grandes potências
da Europa ou concedendo-lhe uma parte dos territórios conquistados,
que lhe retiraremos mais tarde.
2. Estabelecimento do texto
Não tendo sido possível o cotejo do texto com a fonte indicada, procuraram-
se outras com vista ao estabelecimento de uma base de partida sobre a qual fosse
possível fazer uma leitura.
122
Assim, foram encontradas as seguintes:
1
http://www.luiznogueira.com.br/noticiasluiz.php?=2628 editoria=ensaios
2
http;//www. letras libres.com/revista convívio/testamento - político
3
(PDF) catholicapedia.net/c 347-Mgr-Gaume-Testament….Paris, 12DEZ1816, pag 1e2.
4
http://en.wikipedia. org/wiki/usec:Rossavia/Testament
5
Chaliand, Gerard, Anthologie Mondiale de la Stratégie.Robert la Foffont, Paris,1990,pág 680 e seg.
123
Deste modo, adoptar-se-á para “leitura” o texto publicado no “Diário de
Notícias”, acima transcrito, com a opinião de que apócrifo, ou não,
tendencioso, ou não, é um documento importante, que deve ser analisado.
a. Preâmbulo
124
– No que se refere a Portugal e à época, pode encontrar-se um paralelo da
titularia régia na numismática nacional, por exemplo, na moeda de D. João
V denominada “Português”, 1718, ouro, com as seguintes legendas8:
Anverso: IOANES. V. D. G. REX. PORT. ETALG. CIT. ET. VLTR. /
MARE. IN. AF. D. GVI. C. N. C. E. A. P. I. ETC.
Abreviaturas de IOAN. QUINTUS. DEI GRATIAE REX PORTUGALIAE
ET ALGARBII CITRA ET ULTRA IN AFRICA DOMINUS GUINEE.
CONQUISITIONIS. NAVEGATIONIS COMMERCII ETHIOPIAE
ARABIAE PERSIAE INDIAE ETC.
JOÃO V PELA GRAÇA DE DEUS REI DE PORTUGAL E DOS
ALGARVES D’AQUEM E D’ALÉM-MAR, EM ÁFRICA, SENHOR DA
GUINÉ, DA CONQUISTA, NAVEGAÇÃO E COMÉRCIO DA ETIÓPIA
ARÁBIA, PÉRSIA, ÍNDIA, ETC.
Reverso: IN HOC SIGNO VINCES, (POR/COM ESTE SINAL
VENCERÁS)
Numa alusão à visão do Imperador Constantino, em 312, pouco antes
da sua vitória sobre Maxêncio na batalha da Ponte de Mílvia.
8
VAZ, J. FERRARO, “LIVRO DAS MOEDAS DE PORTUGAL” 1973, pg 311.
9
Clausevitz, Carl Von, “Da guerra (Vom Kriege)”, Berlim 1832, Livro I, Capítulo I, nº 24, in “Anthologie
Mondiale de la Stratégie, pág 825, Tradução do autor.
125
c. “Atrair, por todos os meios possíveis, de entre os povos mais inteligentes
da Europa, Oficiais durante a guerra e sábios em tempo de paz por forma
a (fazer) progredir a Rússia a expensas de outras nações e sem perda das
nossas vantagens.
Realce da importância do factor Científico do Potencial.
126
• Assegurar uma saída a sul, para o Mar Negro e, depois, para o
Mediterrâneo (estreitos do Bósforo e dos Dardanelos).
127
um dos lados e a Alemanha pelo outro. Conquistados estes dois países,
o resto da Europa ficará facilmente sob o nosso jugo sem necessidade de
combate.
É assim que podemos e devemos subjugar a Europa”.
– A concepção desta operação conjunta introduz, implicitamente, o domínio
do Heartland de Mackinder, que se completaria com o território alemão,
a “adicionar” a parte russa.
e. Releva o facto de que uma grande Potência, para o ser, tem de ser,
simultaneamente, terrestre e marítima (não cabe aqui referência ao Poder
Aéreo).
Mas também releva o papel do Comércio,(terrestre, mas, sobretudo
marítimo);
128
As características desta faixa, à época, seriam: posição de charneira; acesso
ao Mediterrâneo e ao Índico, recursos e domínio do Comércio Mundial.
NOTA: - Por decisão pessoal, o autor não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico.
129
130
UMA ANÁLISE DA OBRA E DO PENSAMENTO
DO GENERAL LOUREIRO DOS SANTOS
131
132
Uma análise da obra e do pensamento do
General Loureiro dos Santos
1. Introdução
Q uando nos anos oitenta servi como subalterno e depois como capitão no então
Centro de Instrução de Artilharia Antiaérea de Cascais (CIAAC), os camaradas
de armas, os escritos das revistas, as paredes da cidadela e as pedras da parada
D. João IV lembravam-me regularmente, com elevação, o General Loureiro dos
Santos, ex-Comandante da Unidade e distinto oficial do Exército.
Entretanto, o privilégio e a honra do meu contacto directo com o General
Loureiro dos Santos só viria a ter lugar no âmbito da Revista de Artilharia, em
1990, quando desempenhei as funções de secretário do então Presidente da
Revista (nas instalações provisórias de Oeiras e posteriormente nas do Castelo
de S. Jorge) e Director do Instituto de Altos Estudos Militares (IAEM). Durante
essa saudosa e atribulada direcção da Revista, em que o General Loureiro dos
Santos assumiu inesperadamente as funções de Chefe do Estado-Maior do
Exército (CEME – em substituição do General Firmino Miguel que falecera
em trágico acidente de viação), encontrava-me nas funções de Comandante da
4.ª Companhia de Alunos da Academia Militar. Esse contacto, simultaneamente
profissional e pessoal com o General Loureiro dos Santos, marcou-me
profundamente pelo exemplo de trabalho, de rigor, de trato esmerado, de bom
senso, de coragem moral, e de excepcional dedicação postos ao serviço da causa
pública através do Exército.
Mais tarde, e já depois do General Loureiro dos Santos ter passado à situação de
reforma, fui seu aluno no mestrado de Estratégia no Instituto Superior de Ciências
Sociais e Políticas (ISCSP) e testemunha do seu elevado sentido pedagógico e
grande conhecimento das matérias relacionadas com a história militar, a estratégia
e a segurança e defesa em geral. Foi depois meu orientador da tese de Mestrado,
tendo-me apoiado com o seu saber, incentivado com o seu exemplo e estimulado
com palavras sempre desafiantes. A partir de então acompanhei ainda mais de perto
133
a pessoa e a obra, desde as conferências e palestras, aos escritos, passando pelas
intervenções públicas nos diferentes órgãos de comunicação social. Nas minhas
diferentes actividades e em resposta às minhas solicitações como professor da
Academia Militar, assessor do Instituto da Defesa Nacional ou Comandante do
Regimento de Artilharia Antiaérea nº 1 (RAAA1), o General Loureiro dos Santos
disse sempre Presente, como aliás responde regularmente aos apelos dos camaradas
de armas, da Artilharia, do Exército, das Forças Armadas, de Portugal e dos
Portugueses.
Compreenderá agora melhor o leitor a razão do meu regozijo, mas sobretudo
da honra e do privilégio que tive em aceitar o desafio que me foi lançado pelo
Estado-Maior do Exército (EME) para escrever algumas páginas sobre a obra
e o pensamento do General Loureiro dos Santos. O facto de ter participado no
lançamento da grande maioria das obras que publicou, de as ter lido e citado
e de as ter reflectido com os meus alunos, dá-me assim uma responsabilidade
acrescida, que traduzirei por uma (haverá com toda a certeza outras) análise da
obra e pensamento. Pertencendo à geração que beneficiou da sua luta (e da de
outros camaradas e amigos como o General Ramalho Eanes e o General Espírito
Santo) com a espada e a pena por um Portugal livre, independente e democrático,
a análise será sempre marcada pelas palavras parcialidade, agradecimento,
respeito, consideração e estima.
Para um melhor entendimento da obra e pensamento, começarei por uma
biografia resumida do General Loureiro dos Santos. Seguir-se-á uma análise da obra
escrita, tendo por base os livros publicados entre 1979 e 2012, e uma metodologia
de análise que transcenderá as meras recensões, no sentido de identificar grandes
linhas metodológicas que facilitem a identificação do pensamento, cautelosamente
resguardado para um último capítulo, necessariamente incompleto, parcial e
discutível.
134
Como oficial de Artilharia foi promovido sucessivamente a Alferes (1957),
Tenente (1959), Capitão (1961), Major (1969), Tenente-Coronel (1976) e Coronel
(1979). Serviu na Escola Prática de Artilharia e no CIAAC, pouco antes de
embarcar para uma comissão na Região Militar de Angola, entre 1962 e 1965,
inicialmente como Comandante de Bateria de Artilharia Antiaérea 386 e mais
tarde como adjunto da Repartição de Operações.
De volta ao continente, serviu no Centro de Instrução de Condução Auto
nº 3 de Elvas e logo no ano seguinte frequentou o curso de Estado-Maior no
IAEM (entre 1966 e 1969) com a classificação de Distinto e pouco depois o
Curso de Comando e Estado-Maior do Exército Brasileiro (em 1971 – onde fez
um doutoramento em Ciências Militares). A partir de então, não mais deixaria de
ser “o Professor”, não só do IAEM, mas também do Instituto de Altos estudos da
Força Aérea, do Instituto da Defesa Nacional e mais tarde do ISCSP, muitas vezes
em acumulações com funções de elevada responsabilidade.
As contingências da “condição militar” e da “guerra do ultramar” levariam
o então Major de artilharia a uma nova comissão em África, a partir de 1972 em
Cabo Verde, missão que seria interrompida pelo 25 de Abril de 1974 – altura em
que, com 36 anos foi Encarregado do Governo, delegado da Junta de Salvação
Nacional e Comandante-Chefe das Forças Armadas em Cabo Verde (entre Maio
e Setembro de 1974).
O Major Loureiro dos Santos voltaria ao continente para servir no EME
(como Adjunto na Repartição de Gabinete), e pouco depois no Estado-Maior
General das Forças Armadas, como Adjunto do Gabinete, Secretário Permanente
do Conselho da Revolução (entre março e agosto de 1975) e Vice-Chefe do
Estado Maior General das Forças Armadas (VCEMGFA a 6 de Abril de 1977
- por inerência de funções membro do Conselho da Revolução), então como
Tenente-Coronel graduado em General. Neste período pós revolucionário,
participou no planeamento e execução das operações que contiveram o golpe do
25 de novembro de 1975.
Terminadas as suas funções enquanto VCEMGFA (exonerado a seu pedido,
no início de 1978) voltou a ser professor no IAEM e assessor no IDN, mas por
pouco tempo. Foi depois empossado nas funções de Ministro da Defesa Nacional
(MDN) dos IV e V Governos Constitucionais (com Carlos Mota Pinto – entre
22 de novembro de 1978 e 7 de julho de 1979 - e depois com Maria de Lurdes
Pintassilgo – entre 7 de Julho de 1979 e 3 de janeiro de 1980).
Após o exercício das funções governamentais voltou ao Exército como
Coronel Comandante do CIAAC, entre 1980 e 1981. Interromperia estas funções
para servir no IAEM como professor do Curso Superior de Comando e Direcção,
tendo então sido promovido a Brigadeiro (1982) e indigitado como Director do
Departamento de Operações do EME.
135
Como oficial general (Tenente-General em 1987), Loureiro dos Santos viria
a desempenhar várias funções, algumas delas em acumulação e de que destaco:
Comandante da Zona Militar da Madeira e Comandante-Chefe das Forças
Armadas na Madeira (1985-1987); Director da Arma de Artilharia; Quartel-
Mestre General do Exército; e Director do Instituto de Altos Estudos Militares, de
onde saiu (para o desempenho das funções de Chefe do Estado-Maior do Exército
(e Director da Revista de Artilharia em acumulação no biénio 1990/1) entre 1991
e 1992. Entretanto, deixaria estas nobres funções, na sequência de um exemplar
pedido de demissão, quando entendeu (no âmbito da famosa lei dos Coronéis)
“não ter condições para conseguir que o poder político anuísse a pontos de vista
seus, alicerçados na opinião generalizada dos seus subordinados, sobre assuntos
essenciais para a sua carreira…” (2000:244).
Com a passagem à situação de reforma, o General Loureiro dos Santos
fechou uma porta que limitava a sua liberdade enquanto chefe militar, abrindo
simultaneamente outra porta (situada em Carnaxide) ao serviço da Nação,
enquanto observador e comentador atento das questões de Segurança e Defesa.
Efectivamente, desde então, o General Loureiro dos Santos ganhou um espaço
único na sociedade portuguesa, enquanto comentador respeitado (e por isso ouvido
e lido) sobre assuntos de Estratégia, Segurança, Defesa e Relações Internacionais
em vários órgãos de comunicação social.
O General Loureiro dos Santos foi entretanto agraciado, entre outras,
com as seguintes condecorações: Grã-Cruz da Ordem Militar de Cristo; Grau
de Comendador da Ordem Militar de Avis; Grã-Cruz da Ordem do Infante D.
Henrique; cinco medalhas de serviços distintos (uma de ouro e quatro de prata);
duas medalhas de mérito militar (1.ª e 2.ª classes); medalhas de ouro e de prata de
comportamento exemplar; medalhas Comemorativas das Campanhas de Angola
e das Comissões de Serviços Especiais – Cabo Verde; Medalha de Ouro do
Município de Sabrosa (2012); Medalha de Ouro do Município de Vila Pouca de
Aguiar; Medalha de Mérito, Grau Ouro do Município de Oeiras. Possui ainda
as seguintes condecorações estrangeiras: Medalha do Pacificador do Brasil, grã-
cruz da Ordem de Mérito Militar com distintivo Branco, de Espanha; grã-cruz de
Mérito Naval, de Espanha; Grande Oficial da Medalha da Ordem de Mérito da
República Italiana; Grã-Cruz da Ordem do Mérito Militar, do Brasil.
Entretanto foi Presidente da Assembleia Geral da Associação dos Militares
na Reserva e na Reforma (ASMIR) e é sócio efectivo da Academia das Ciências
de Lisboa (um marco significativo no reconhecimento dos militares mais ilustres,
como o seu antecessor na secção de letras, o General Câmara Pina) e membro
do Conselho Cientifico do Centro de Investigação de Segurança e Defesa do
Instituto de Estudos Superiores Militares (IESM – sucessor e herdeiro do IAEM),
do Conselho de Honra do ISCSP e membro (cooptado) do Conselho Geral da
Universidade Nova de Lisboa.
136
Após esta curta (e limitada) resenha, fica então o leitor com uma noção
mais realista da dificuldade do autor em analisar a obra do General Loureiro dos
Santos, Soldado por convicção, Político pelas contingências (da revolução de 25
de abril de 1974), Diplomata por natureza, Professor pelo saber e Comentador por
reconhecimento (dos camaradas em particular e dos portugueses em geral).
3. Da obra escrita
137
Este livro de História Militar foi fundamentalmente dirigido aos oficiais do
IAEM, para quem ainda hoje (no IESM) constitui uma referência. Loureiro dos
Santos começou por destacar a necessidade do estudo da História (“o estudo
da história tem por objecto o passado e por finalidade o presente e o futuro”;
1979:10), algo que nunca descurou ao longo da sua vasta obra. A questão
conceptual da guerra (“um facto histórico permanente e sempre presente
mesmo quando ausente”) também está nela presente, não só na perspectiva de
Clausewitz, mas na sua visão pessoal de que “tem por objectivo uma situação
de paz mais vantajosa”. Eric Muraise (Introdução à História Militar), Raymond
Aron (Pensar a Guerra, Clausewitz), Arnold Toynbee (Um Estudo da História)
e Fuller (Influência do Armamento na História), são alguns dos autores e obras
que mais o influenciaram na sua análise de factos da História Militar, centrados
normalmente no estudo da evolvente política e da envolvente técnica dos
períodos em estudo. Trabalhou com particular cuidado “a influência da técnica na
ciência-arte da Guerra” e os “elementos essenciais do combate” (fogo, choque,
movimento, protecção e o comando/ligação), assumidamente estruturais nas
suas análises dos conflitos. No seu respigar da antiguidade clássica ao Portugal
do final do século XX, onde Clausewitz (Da Guerra) e Maquiavel (O Príncipe
e a Arte da Guerra) assumiram algum protagonismo, sublinhou então que “o
exército das democracias é aquele que se baseia no serviço geral, pessoal e
obrigatório.” (1979: 41).
A segunda parte da obra deduz algumas conclusões de interesse para uma
possível subversão, tendo por base uma análise estratégica da História de Portugal.
Ao longo do livro dirigiu algumas mensagens aos políticos e militares de
então, designadamente no que respeita à legitimidade do poder de que dependem
as Forças Armadas (FA; o principio da subordinação das FA ao poder político)
e à necessidade de reformar a estrutura superior da defesa nacional, utilizando
uma metodologia comparativa com exemplos das democracias europeias (França,
Inglaterra, Bélgica…).
Mais recentemente (em 2010), esta obra foi reeditada (com o título História
Concisa de Como se Faz a Guerra) exclusivamente na sua primeira parte,
a qual foi melhorada e actualizada, com especial destaque para a inclusão de
um novo capítulo sobre “a era da informação” (“uma era não definitivamente
caracterizada, mas bem distinta da anterior” – a era electrónica-nuclear)
nos sistemas de coacção militar. O agora General Loureiro dos Santos tratou,
com especial pormenor, os fundamentos da “era da informação”, a guerra nos
novos teatros de operações, a guerra da informação e as ameaças e respectivas
respostas, tendo como referência vários estudos de casos actuais, desde a Guerra
do Afeganistão à Guerra dos Cinco Dias na Geórgia.
O livro Forças Armadas, Defesa Nacional e Poder Político foi publicado
pela Imprensa Nacional – Casa da Moeda, em 1980, quando Loureiro dos Santos
138
era Coronel e Comandante do CIAAC. Sem qualquer dedicatória, reúne artigos
publicados entre 1976 e 1980 e diz fundamentalmente respeito à reestruturação
das Forças Armadas (o mais marcante dos quais publicado na revista Baluarte, em
1976), com contributos que seriam em parte atendidos na Lei da Defesa Nacional e
das Forças Armadas (Lei 29/1982).
Nesse período instável, interessava democratizar o Estado e as FA e as suas
mensagens iam no sentido de os militares contribuírem para a estabilidade, a
segurança e o bem-estar. Reestruturar as FA em 1980 (e atribuir-lhe novas missões
e dependências) era uma tarefa ciclópica, que exigiu de Loureiro dos Santos uma
grande determinação, uma enorme coragem moral e um conhecimento profundo
do País. Buscando na História de Portugal e nas obras de autores consagrados as
amarras para discorrer sobre o presente e o futuro de Portugal, Loureiro dos Santos
usou uma linguagem cuidada, rigorosa, legalista e sobretudo com sentido de Estado.
Já então “os portugueses, ansiosos por estabilidade e segurança, desejando atingir
os padrões europeus […] veem-se perante a necessidade de modificar o seu «género
de vida» e de se reencontrarem nas suas verdadeiras fronteiras.” (1980:39).
A sua voz relativamente à necessidade de Portugal manter os seus compromissos
na NATO foi então determinante, face a visões mais politizadas e menos objectivas.
As justificações geopolíticas e geoestratégicas rigorosas desarmavam militares e
civis menos informados ou demasiado sectários em termos políticos.
Nesta obra já apelava à criação de um Secretariado-Geral da Defesa
Nacional, que idealmente deveria integrar militares e civis para apoio do
Presidente da República e do Primeiro-Ministro (1980:74). Numa perspectiva
global da segurança (em que as FA Portuguesas eram o instrumento que garantia o
cumprimento da vontade livremente expressa do Povo a que pertenciam; 1980:97),
apelava também ao apoio das Forças de Segurança Militarizadas, quando fosse
ultrapassado o limite das suas possibilidades (1980:90). A linguagem utilizada
nos seus escritos e discursos tinha na altura uma vertente pedagógica acentuada,
claramente orientada para a formação de militares e civis entusiasmados pela
revolução, mas sem a noção do papel das FA enquanto instituição nacional
num país democrático. Por isso, Loureiro dos Santos insistia na necessária
isenção partidária das FA, entendida como “emanação do próprio pluralismo
político, tendo em vista o interesse nacional ou o bem comum” (1980:109). Os
seus contributos para a Lei de Defesa Nacional foram tanto institucionais, no
exercício de funções de Estado, como pessoais, enquanto professor que publicava
as suas reflexões em revistas ou jornais (então alvo de rigoroso escrutínio…).
Para Loureiro dos Santos, o que era necessário era “que o país dispusesse de um
sistema de organização da defesa nacional” (1980:199). O rigor imposto nos seus
trabalhos foi especialmente orientado para as questões conceptuais relacionadas
com a segurança e a defesa, justificando as suas posições com exemplos de países
europeus democráticos.
139
O último texto do livro, já escrito enquanto Comandante do CIAAC, diz
respeito às relações entre as FA e o Poder Político, onde envia uma mensagem clara
às elites políticas no sentido de “não renegarem a história, e de não confundirem
o acessório com o essencial, a conjuntura com as linhas de força definidoras de
orientações e o sectário com o nacional” (1980:290).
Em 1983, o então Brigadeiro publicava as Incursões no Domínio da Estratégia,
numa altura em que desempenhava as funções de Director do Departamento de
Operações do EME.
Nesta obra, editada pela Fundação Calouste Gulbenkian, reproduziu a maior
parte das suas lições enquanto professor de Estratégia do Curso Superior de
Comando e Direcção, no IAEM, no ano lectivo de 1981-1982. Os agradecimentos
desta obra estenderam-se dos seus alunos aos camaradas que então serviam no
IAEM, em especial ao seu professor do Curso de Estado-Maior, o então Coronel
Abel Cabral Couto.
Para além de tratar com grande clareza a teoria das relações internacionais, a
teoria geral da guerra, a teoria geral da estratégia, a estratégia da época nuclear e a
estratégia da guerra subversiva, apresentou dois trabalhos colectivos sobre os temas
“Desenvolvimento de um cenário de crise” e “O Futuro da Estratégia e a Estratégia do
Futuro”. Neste livro ficou clara a diferença entre as aspirações nacionais (configura o
que o Estado-Nação pretende ser), os objectivos nacionais (expressam aquilo que o
Estado-Nação programa atingir) e os interesses nacionais (desejam o que o Estado-
Nação pretende salvaguardar), linguagem estruturante por parte de Loureiro dos
Santos nas suas análises políticas e estratégicas (1983:45). As citações de Clausewitz
estendem-se ao longo de todo o livro, muito para além da teoria geral da guerra
e designadamente da parte conceptual. O planeamento estratégico (influenciado
pela escola francesa de Beaufre e Poirier) e o planeamento de forças surgem como
uma novidade nesta altura, devidamente adaptada à situação portuguesa da época
através da apresentação de um modelo, naquilo que constitui sempre o objectivo
dos estudos e análises de Loureiro dos Santos: criar um Portugal melhor hoje do que
ontem. Naturalmente, esta obra tornou-se rapidamente numa referência obrigatória
no domínio da Estratégia (não exclusivamente militar) em Portugal.
Em 1991, o IAEM publicou a obra Como Defender Portugal, talvez a mais
representativa do pensamento (com sentido estratégico) de Loureiro dos Santos.
Este livro reúne os artigos publicados desde 1986, com a curiosidade do prefácio do
General Mário Firmino Miguel (então CEME) ter sido entregue para edição poucos
dias antes da sua súbita morte. O livro foi então dedicado “ao Militar insigne, ao
Político ilustre, e ao Amigo sincero.” (1991:5).
Para o General Firmino Miguel, o livro constitui “uma análise com perspectiva
histórica da evolução do pensamento da Nação relativamente à sua segurança e à
aplicação da estratégia global que lhe correspondia.” (1991:11). O livro exibe acima
de tudo um “quadro global de grande coerência e unidade intelectuais” (1991:8)
140
e sobre Portugal “faz evidenciar naturalmente os fundamentos e as constantes das
linhas de orientação estratégica que tão proficuamente utiliza na análise dos factores
estratégicos e políticos e na construção dos conceitos de defesa militar…” (1991:9).
Efectivamente, Loureiro dos Santos reflecte a sua perspectiva histórica de
defesa militar de Portugal, dividindo-a nas seguintes partes: da fundação a D. Dinis,
quando o eixo dos conflitos tinha predominantemente a direcção Norte-Sul; a longa
e fértil época entre D. Dinis e a restauração; do fim da Guerra dos Trinta Anos à
Conferência de Viena; e da Conferência de Viena aos nossos dias.
As conclusões do seu estudo deixam-nos algumas lições claramente
estruturantes de que destacaria (1991:38-39):
141
num poderoso instrumento de força ao serviço de uma facção política que pretenda
instalar uma autocracia” (1991:152) e que “Portugal não possui capacidade
económica para se dar ao «luxo» de manter umas Forças Armadas exclusivamente
constituídas por soldados profissionais” (1991:155)1.
Mais adiante e a propósito de um conceito estratégico de defesa nacional,
salientou que “As opções estratégicas de Portugal devem visar intransigentemente
a defesa dos interesses nacionais e terem como base de partida real a sua Geografia
bem como a sua História” (1991:217). Era já o cerne de uma metodologia orientada
para a Segurança e o Desenvolvimento de Portugal e sustentada na História.
Em 2000, o General Loureiro dos Santos publicou, com chancela das
publicações Europa-América, o primeiro volume de uma colecção intitulada
Reflexões sobre Estratégia, que se estenderia, com grande sucesso editorial, até
ao sexto volume editado em 2009. Efectivamente, encontrando-se numa situação
(de reforma) que lhe dava maior liberdade de acção, o General Loureiro dos Santos
passou a ser ainda mais interventivo na sociedade civil, quer como comentador,
quer como escritor. O primeiro volume desta colecção foi dedicada aos netos “para
que vejam como é perigoso o mundo em que vivem, e onde agora dão os primeiros
passos”. O ano seguinte, com o 11 de setembro, daria razão a esta dedicatória,
afastando o avô do convívio com os seus em face da sua frequente intervenção nos
órgãos de comunicação social. O livro foi prefaciado pelo Professor Doutor José
Medeiros Ferreira, amigo de longa data, e de cujas palavras destaco:
1
Mais tarde, Loureiro dos Santos chegou a considerar um sistema misto que incluísse um núcleo permanente de ca-
rácter voluntário profissional e um contingente nacional, com base no serviço militar obrigatório, cuja mobilização
era enquadrada pelo núcleo profissional.
142
Secretariado-Geral da Segurança Nacional, na dependência do Primeiro-
Ministro e de um Conselho Superior de Segurança Nacional na dependência do
Presidente da República. Nesta linha de pensamento propõe ainda a elaboração
de um documento classificado, o Conceito Estratégico de Segurança Nacional,
que deveria ser submetido como segredo de Estado (2000:87-89). Para sustentar
o seu posicionamento caracteriza em pormenor os conceitos e a prática da
“segurança e defesa”2, assim como as necessárias e adequadas linhas de acção
para que o aparelho militar português (desde a componente operacional ao ensino
superior militar, passando pela cooperação internacional) se integre no novo
Portugal decorrente da situação internacional (caso do capítulo “Forças Armadas
– Situação e Evolução”). Na “estratégia em acção”, vai ao encontro dos conflitos
de então (Kosovo, Timor, Chechénia) e das questões militares e de segurança em
Portugal (como a nomeação dos chefes militares, o associativismo militar, o caso
dos submarinos, etc.), terminando com palavras que infelizmente continuam a
ter especial acuidade mais de uma década depois: “os militares não podem ser
cidadãos de segunda…A democracia não é compatível com menoridades desta
natureza” (2000:277).
Reitera a sua satisfação pelo investimento de Portugal no “braço longo das
FA”, na maior integração entre a política externa e a política de defesa, no consolidar
do novo papel das FA de Portugal enquanto instrumento indispensável da política
externa (Bósnia, Kosovo, Eurofor, Euromarfor, Angola, Moçambique…).
Nesta altura, o General Loureiro dos Santos estava particularmente empenhado
na defesa do associativismo militar, na linha dos seus escritos de 1979, quando
propôs a criação de uma provedoria das Forças Armadas para defesa dos direitos
dos militares enquanto cidadãos. No entanto, o seu posicionamento em nada
feria a hierarquia das Forças Armadas, circunscrevendo o papel das associações
ao tempo de paz e sem interferência na área operacional, incluindo o apoio
logístico e administrativo nos domínios doutrinário, organizacional e disciplinar
(2000:247). Para Loureiro dos Santos, as organizações socioprofissionais (que
se tornam necessárias em função das forças militares estarem a ser gradualmente
afastadas da estrutura do Estado – caso das nomeações das chefias militares)
podem inclusivamente constituir óptimos auxiliares no exercício do comando, à
semelhança do que se passa noutros países da NATO.
No segundo volume da colecção, Segurança e Defesa na Viragem do
Milénio, editado poucos dias depois do 11 de setembro de 2001, mais uma vez teve
a coragem de defender Portugal, defendendo as suas Forças Armadas, a começar
pela dedicatória:
2
Segurança é um estado ou uma situação a atingir, abrangendo um conjunto de actividades para alcançar esse estado
ou situação, actividades de vária natureza correspondentes aos diversos sectores das estratégias gerais (económico-
financeiras, política externa, política interna, cultural, transportes, comunicações, energia e militar, etc.). Defesa
traduz tudo o que se refere à actividade militar (2000:86).
143
“Às Forças Armadas Portuguesas que, apesar de não estarem a merecer a
atenção do poder político, com a prioridade que a sua dignidade e as actuais
responsabilidades estratégicas de Portugal exigem, se têm comportando com
elevado patriotismo, mostrando excepcional profissionalismo nos vários teatros de
operações onde têm actuado.
À Associação dos Oficiais das Forças Armadas (AOFA) que, apesar da
incompreensão de muitos, tem desempenhado um papel de alto mérito para a
dignificação das Forças Armadas.” (2001:11).
Com prefácio de Luísa Meireles, “todo o texto é um tremendo libelo acusador
ao poder político, cujo desinteresse para com a «coisa militar» a tem feito decair a
limites impensáveis... Organização, equipamento, modalidades de emprego, tudo
é decidido caso a caso, ad-hoc… com as necessárias consequências técnicas e
económicas gravosas.” (2001:23).
A partir deste livro, os escritos de Loureiro dos Santos são ainda mais
dirigidos ao grande público, numa linguagem simples que começa por trabalhar
o Estado da Segurança e Defesa no Mundo (estudando e analisando os vários
conflitos), para depois tirar as necessárias e mais adequadas ilações para Portugal.
Independentemente de tratar com mais acuidade as questões tecnológicas, sociais,
económicas ou militares, Loureiro dos Santos nunca deixa de destacar a Segurança
e Defesa em Portugal (acompanhando as medidas dos sucessivos ministros, da
racionalização de recursos à profissionalização do serviço militar). Acompanha
com particular atenção a evolução da União Europeia (e em especial a Política
Europeia de Segurança e Defesa), da NATO, dos EUA no quadro da luta contra
o terrorismo transnacional e naturalmente de Portugal, sem deixar de sublinhar
a evolução das suas FA (redução de efectivos, profissionalização, sistema de
forças, integração das mulheres, necessidade de modernização e de reforço do
orçamento, etc.). Acompanha ainda a crescente globalização, a consolidação da
era da informação, o domínio das ameaças de cariz global, o declínio dos EUA e o
gradual protagonismo da China e da Ásia/Pacífico nas relações internacionais, com
a consciência de que “as estratégias com maior utilização nos conflitos actuais são
a económico-financeira e a mediático-cultural, além da diplomática.” (2001:48).
No meio das inúmeras análises e conferências sobre o 11 de setembro, o General
Loureiro dos Santos teve ainda tempo, em 2002, para participar na colecção “Batalhas
de Portugal” publicando um livro (que não considera de investigação histórica)
sobre Ceuta 1415 – A Conquista. Limitado pela metodologia da colecção, não
deixou de marcar o livro com a sua análise estratégica do ambiente geral e particular,
de desenvolver o processo de decisão estratégica, de trabalhar com especial rigor
a expedição e a batalha e de deixar as necessárias e adequadas mensagens para os
dias de hoje (“porque a História é uma realidade que não há maneira de poder ser
alterada…”). Na linha do que aprendeu com o General Câmara Pina, não deixou
de visitar Ceuta “para analisar rigorosamente o terreno, estudar nos documentos
144
geográficos e urbanísticos existentes a sua configuração, com a finalidade de pôr
de parte as opções contadas por diversos autores que trataram o tema desde que
ele ocorreu, tendo chegado à conclusão que muitas delas eram inexequíveis, dados
os condicionamentos geográficos existentes.” (2010).
O terceiro volume, A Idade Imperial, foi editado em 2003 e foi marcado
pelas repercussões do 11 de setembro para o Mundo, para os EUA e para Portugal.
Esta obra foi prefaciada pelo General Ramalho Eanes (considerado por Loureiro
dos Santos como “uma das figuras chave na implantação do regime democrático
em Portugal” 2003:11), que destaca a determinada altura: “Abre-nos Loureiro dos
Santos, janelas de entendimento sobre a situação que a nova condição imperial
dos EUA configura para os diferentes países, organizações regionais e até para a
globalização em curso” (2003: 23).
Os EUA são tratados neste livro como a potência imperial que “tenta evitar
a anarquia global e impedir o surgimento de uma potência rival”. A nova era da
Idade Imperial é profusamente caracterizada por Loureiro dos Santos, a que se segue
uma visão prospectiva relativamente ao “futuro da Estratégia”, tanto a nível global,
como regional e nacional. Faz de imediato o reajustamento do posicionamento
estratégico de Portugal e levanta as novas capacidades para as FA. Deixa ainda
algumas mensagens relativas a casos concretos da segurança em Portugal e relembra
as contribuições da História para a segurança nacional.
Entretanto, Loureiro dos Santos assume o conceito anglo-saxónico de
segurança (2003:266) de que Portugal não se pode alhear e reitera algumas das suas
propostas anteriores como o Gabinete para a Segurança Nacional (que compara ao
Nacional Security Council dos EUA), na dependência directa do Primeiro-Ministro
(2003:271). Nesta nova linha conceptual, recorda ainda a necessidade do Conceito
Estratégico de Segurança Nacional (enquanto Lei) ser trabalhado ao nível dos
diferentes ministérios e não exclusivamente pela Defesa. Propõe ainda a criação de
um Conselho de Segurança Nacional na dependência do Presidente da República
(em substituição do Conselho Superior de Segurança Nacional). Relembra ainda a
necessidade de reforçar o vector militar como instrumento de afirmação nacional,
na mesma altura em que critica o poder político por descurar as Forças Armadas
deixando-as num estado “à beira da paralisia ou já paralisadas” (2003:373).
O quarto volume, intitulado Convulsões, foi publicado em 2004 e dedicado
“a todos aqueles que, nas vésperas do dia 25 de Abril, arriscaram as suas vidas e
carreiras, bem como das suas famílias, para que Portugal e os portugueses tivessem
passado a participar do espaço dos países democráticos.” (2004:11).
Volume ainda marcado pelas consequências do 11 de setembro, designadamente
pela invasão do Iraque, pela estabilização do Afeganistão e pelo 11 de março, pelo
equilíbrio entre liberdade e segurança e pelo alargamento estratégico para Leste,
tem um assumido entendimento da evolução do esforço estratégico global do
Atlântico para a Ásia Pacifico.
145
Relativamente ao nosso País, o seu sentido prospectivo já antecipava o que os
políticos não queriam ver: “Em Portugal encontramo-nos em situação económica
difícil e ainda não foi resolvida a questão orçamental. Continua sem existir
uma estratégia nacional orientadora e mobilizadora; a estratégia de segurança
e defesa mantém-se com muitas fragilidades. As Forças Armadas então numa
situação de debilidade confrangedora e as medidas que lhe estão a ser aplicadas
são desgarradas…”. (2004:14).
Ao longo da obra reforça a importância do Portugal Atlântico, Peninsular,
Europeu e Português, e do Triângulo Estratégico Português materializado pelo
Continente, Açores e Madeira (numa perspectiva diferente de Paiva Couceiro).
O quinto volume, intitulado O Império debaixo de fogo (2006), foi dominado
pela crise do poder global dos EUA, fruto do seu isolamento na guerra contra o
terrorismo e do falhanço no Iraque. Mais uma vez (metodologia habitual nesta
colecção) começa por caracterizar a situação internacional como enquadramento
de um último capítulo relativo à situação (presente e futura) da Segurança e Defesa
em Portugal.
Loureiro dos Santos analisa profundamente a estratégia de segurança dos EUA
e critica a opção da administração Bush em classificar o terrorismo transnacional
ou catastrófico como uma ameaça (que levou a deslocar as opções para a esfera
do emprego da força militar) em vez de uma táctica, ou seja, ”como um método
ou táctica de actuação, que envolve a utilização de processos por combatentes não
cobertos pela lei internacional, atacando civis.” (2006:40).
No caso de Portugal, mais uma vez alerta para factos estruturais: “está
em vias de esgotamento o modelo económico-social de criação, obtenção
e distribuição de riqueza, em que temos vivido desde 25 de Abril de 1974,
encontra-se profundamente alterado o ambiente estratégico que nos condicionou
nessa altura e justificou o modelo de segurança e defesa prosseguido desde
aquela data, por um outro, que nos afecta actualmente e nos afectará no futuro
previsível. […] Um modelo mais ágil e ligeiro, sem meios militares pesados,
orientado prioritariamente para as novas ameaças, está ao nosso alcance em
termos económicos…” (2006:273-274).
Com a coragem habitual, e por razões diferentes, volta ao tema do
associativismo militar, insistindo na sua utilidade para os Chefes Militares, mas
chamando simultaneamente a atenção para que não ultrapassem os seus direitos
pois “a opinião pública é muito sensível ao comportamento menos adequado dos
militares, o que, a verificar-se, se virará contra eles.” (2006:287).
Entretanto, Loureiro dos Santos edita em 2008 A Ameaça Global – O Império
em Cheque, obra específica, que reúne os seus artigos publicados sobre a Guerra
do Iraque entre agosto de 2002 e março de 2008. Dedica-a “às valorosas Forças
Terrestres dos EUA - Exército e Marines -, pelo seu profissionalismo, noção do
dever, determinação no cumprimento da missão e dedicado espírito de sacrifício,
146
bem demonstrados ao longo destes últimos anos, nos teatros de operações onde
têm estado empenhadas, particularmente no Iraque e no Afeganistão.” (2008:11).
Neste livro tentou responder “às grandes questões estratégicas de natureza geral
que a guerra ia levantando”, dar explicação aos acontecimentos mais significativos,
“à luz dos princípios da estratégia” e mesmo da tática e prever a evolução do
conflito e das suas consequências. É uma obra sobre um período da ordem
internacional dominada pelos EUA, necessariamente unipolar sem contestação e
em que conclui: “a guerra do Iraque produziu alterações na forma como os EUA
abordavam as grandes questões mundiais. De uma postura predominantemente
unilateral para uma atitude em que prevalece o multilateralismo e se procuram
ou aceitam soluções negociadas. De uma visão idealista que assentava na crença
de que o hard power tudo resolvia e tudo alcançava, para uma abordagem
realista dos problemas, caracterizada pelo recurso mais frequente ao soft power,
sem descurar a importância e o emprego adequado da força, incluindo a força
militar.” (2008:9).
O sexto volume da colecção, publicado no final de 2009 com o título As guerras
que já aí estão e as que nos esperam, foi organizado com a mesma metodologia
dos anteriores, desde a caracterização do mundo em transição e dos olhares sobre
o mundo globalizado, ao Portugal em transição (passando pelos EUA, pela NATO,
Médio-Oriente, Afeganistão, Cáucaso e Europa). O livro foi dedicado aos militares
das Forças Armadas e da GNR e outros membros das Forças e Serviços de Segurança,
pelos relevantes serviços que prestam à segurança e defesa de Portugal.
Este volume incorpora a “prevista” crise económica e financeira, assim como
o aumento de poder das potências emergentes, com a consequente alteração da
relação de forças mundial. Com uma nova América presidida pelo democrata
Barack Obama e uma estratégia mais multilateral, numa era da informação em que
as potências em ascensão como a China e a Índia buscam mais fontes energéticas e
alimentares, para Loureiro dos Santos os equilíbrios não são necessariamente mais
fáceis de encontrar.
No que respeita ao Portugal em transição, reitera a necessidade de um novo
Conceito Estratégico de Segurança Nacional, mas sobretudo a desconsideração
de que têm sido alvo os militares das FA. Face à situação de degradação das FA
e dos militares em geral, deixa mais uma vez uma mensagem aos políticos e à
sociedade: “Leiam os sinais preocupantes que estão a vir à superfície relativamente
ao que sente a Instituição Militar, dêem atenção aos chefes militares e corrijam as
injustiças.” (2009:373).
Mais uma vez refere que “conviria substituir na Constituição a expressão
“defesa nacional” pela expressão “segurança nacional”, que deveria ser alargada
a toda a legislação que a abrangesse.” (2009:294). Apresenta ainda subsídios para
um Conceito Estratégico Nacional, segundo a identificação de duas grandes linhas
de abordagem: “ameaças que é necessário preservar e linhas de orientação gerais
147
e específicas (a cada sector – não militares e militar) para lhes fazer face; e reforço
da massa crítica nacional para gerar capacidade de encaixe, de resistência e de
reacção.” (2009:297).
Num dos últimos capítulos aborda a questão da segurança ciberespacial
(ao tornar-se indispensável nas sociedades tornou-se numa das suas maiores
vulnerabilidades) como uma área de esforço nacional e militar e a necessidade de
se levantar uma Estratégia Nacional de Informação. É a demonstração clara da sua
capacidade de adaptação aos novos tempos da era da informação, socorrendo-se de
peritos civis e militares e aplicando depois a sua matriz de análise.
Após um período curto de interregno, imposto por razões de saúde, o General
Loureiro dos Santos voltou à escrita com o livro Forças Armadas em Portugal,
dedicado “À Instituição Militar, o último esteio da Pátria. Aos militares portugueses,
tantas vezes glorificados e outras tantas desprezados, mas sempre cumprindo o seu
dever. Que pode incluir o sacrifício máximo.” (2012:11).
Esta última obra, editada pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, tem
um cariz simultaneamente informativo e formativo, numa altura em que a crise
financeira limita a liberdade de acção de Portugal enquanto Estado soberano. O
General Loureiro dos Santos começa este livro com um enquadramento relativo
ao “Poder Nacional e as FA”, relembrando que não existe bem-estar nem liberdade
sem segurança, e que, num país democrático, são os soldados que, em última
instância, cuidam da segurança dos cidadãos quando falharem todos os outros
instrumentos à disposição do Estado. Trabalha depois, com especial cuidado, uma
segunda parte relativa às “Razões para que Portugal tenha FA”, onde sublinha
a posição geoestratégica de Portugal e a importância de continuar a ser um país
produtor e fornecedor de segurança. Nas terceira e quarta partes caracteriza as FA
Portuguesas (como estão organizadas e que missões desempenham), sublinhando
a moldura legal da estrutura das FA, no âmbito da Segurança Nacional e da
Defesa, onde compara a rendibilidade entre as FA Portuguesas e as da Bélgica, da
Holanda e de Espanha, e onde destaca alguns “indicadores”, como o fim do serviço
militar obrigatório, a profissionalização militar, a modernização de armamentos e
equipamentos e a participação em operações de paz e acções humanitárias e na
cooperação técnico-militar. Desenvolve ainda a relação entre o Estado (militares
versus poder político; relação dos chefes militares com os órgãos de soberania) e a
Nação (valores cívicos, ensino superior militar, percepções sobre as FA, condição
militar…) e as suas FA, antes de umas conclusões sucintas mas marcantes, de que
destacamos: “Ao longo da nossa História, as Forças Armadas portuguesas têm
mostrado que constituem o mais sólido e firme bastião da continuidade de Portugal
livre e soberano e o mais fiel guardião dos valores nacionais. Na actualidade, as
forças nacionais destacadas têm atuado em todas as partes do mundo – em terra,
no mar e no ar –, mostrando a sua elevada capacidade e eficiência e prestigiando
o nosso país.” (2012:125).
148
No final da leitura das cerca de 130 páginas, que incluem alguns sinais
preocupantes ao poder político, a maioria dos leitores ficará seguramente mais
conhecedor das Forças Armadas Portuguesas, mas simultaneamente marcado
pela principal mensagem que o General Loureiro dos Santos transmitiu no dia do
lançamento do livro, ou seja, que “nenhum país cumprirá de graça as missões que
nos competem. Nenhum dos nossos parceiros estará disponível para nos defender,
nem sequer para nos apoiar, se não formos nós a garantir a parte substancial da
nossa segurança. Até porque as crises financeiras e económicas conseguem levar-
nos os anéis, mas as crises de segurança além dos anéis podem arrancar-nos os
dedos…, quando não as próprias vidas.”.
4. Do pensamento
Apos a leitura das principais obras publicadas pelo General Loureiro dos
Santos, reforçamos a ideia de que a política de defesa e segurança em Portugal foi
claramente marcada pelo autor nos últimos quarenta anos, quer de modo directo,
através da sua intervenção em funções institucionais (desde MDN a CEME), quer
de modo indirecto, enquanto comentador e autor prolífero.
A maioria das obras publicadas inclui artigos relativos à sua intervenção
pública em conferências, revistas e jornais, devidamente organizados e interligados.
Os temas são sempre actuais (muitas vezes sensíveis ou mesmo tabu para as chefias
militares), associados à análise, crítica e contributos para situações concretas
ligadas à segurança e defesa: defesa de Portugal, lei da defesa nacional e das forças
armadas, lei do serviço militar, conceito estratégico de defesa nacional, programas
do governo, racionalização das Forças Armadas, associativismo militar, condição
militar, relação entre os militares e o poder político, etc.
A postura do General Loureiro dos Santos é normalmente a da defesa dos
interesses de Portugal e das suas Forças Armadas (às quais se orgulha de pertencer),
assente numa matriz de constantes e variáveis da História de Portugal. No seu
pensamento, Portugal está sempre primeiro e as Forças Armadas constituem o pilar
fundamental para que haja segurança, o investimento indiscutível para que um
futuro de paz sustentada.
A metodologia (à luz dos estudos de Estado-Maior) inclui normalmente a
caracterização do ambiente geral, a que se segue o estudo da situação particular,
a análise de possíveis modalidades de acção e a opção pela defensa dos interesses
de Portugal e das suas Forças Armadas. Mesmo no caso da análise mais política e
estratégica de conflitos espalhados pelo Mundo, tem sempre o cuidado de analisar
as consequências para Portugal (comparando por vezes com outros países) ou as
opções estratégicas de Portugal no novo contexto. Os princípios e a trilogia da
estratégia (meios-objectivos-ameaças) estão presentes ao longo dos seus escritos
149
e intervenções, sempre consistentes em termos doutrinários, simples e claros na
apresentação, mas suficientemente flexíveis para acolherem a inovação e fazerem
face a novas situações.
O General Loureiro dos Santos nunca confunde o acessório com o essencial,
nem a conjuntura com as linhas de força estratégicas, sustentadas pela História
Militar de um País com mais de oito séculos. Entre os pensadores que mais o
influenciaram estão certamente Clausewitz, Fuller, Gaston Bouthoul, Beaufre,
Raymond Aron, Eric Muraise, Liddel Hart, Thomas Schelling, Walter Laqueur,
Sun-Tzu, Mao Tse-Tung e Maquiavel. No entanto, não deixa de citar nas suas
obras autores portugueses como Kaulza de Arriaga, Ramires de Oliveira, Lopes
Alves, Cabral Couto, Firmino Miguel, Ramalho Eanes, Martins Barrento,
António de Albuquerque, Araújo Geraldes, Garcia Leandro, Lyon de Castro, José
Medeiros Ferreira e Luísa Meireles (e inclusivamente o apoio permanente de
António Teixeira e José Paulo).
O General Loureiro dos Santos tem tido a coragem de defender
a instituição militar (“à beira da paralisia”) e os militares aos olhos da
sociedade em geral e dos políticos em particular, mas simultaneamente
de chamar a atenção (pelo menos desde 2003) para a degradante situação
económica, financeira e social do País. A sua ligação privilegiada aos militares
fez com que transmitisse, de modo mais vincado, a situação degradante a que
temos assistido de “tratamento desigual” dos militares no sentido pejorativo,
de destruição dos estandartes da disciplina e da acção de comando dos chefes
militares, de depauperação do sistema social de portugueses que juram dar a
vida pela Pátria.
Podemos assim concluir que o General Loureiro dos Santos tem um pensamento
claramente estratégico, individualizado, coerente e sustentado, reformador, de
sentido prospectivo e orientado prioritariamente para a defesa dos interesses de
Portugal enquanto Estado-Nação e das Forças Armadas Portuguesas enquanto
“último esteio da Pátria”.
5. Considerações finais
O General Loureiro dos Santos é um dos mais ilustres militares da sua geração,
que combateu pela democracia e pela liberdade e que, como soldado, político,
diplomata professor e escritor, vem servindo Portugal nas áreas da estratégia, da
segurança, da defesa e das relações internacionais, sem deixar de defender as suas
fortes convicções.
Militar superiormente inteligente e com profundos conhecimentos militares
e culturais, teve na vida académica uma parte importante da carreira, a qual
se prolongaria na situação de reforma, como professor, escritor e comentador,
150
tendo-se tornado numa referência incontornável, pelo menos em Portugal, em
assuntos de História Militar, de Estratégia, de Segurança e Defesa e de Relações
Internacionais.
Na parte que diz respeito ao comentador e escritor3 sobre assuntos de segurança e
defesa, o General Loureiro dos Santos tornou-se num símbolo da Instituição Militar
e numa referência como militar e como cidadão para a sociedade civil como um
todo. É lido, ouvido e estimado pelos seus pares, pelos responsáveis políticos e pelo
cidadão comum. Constitui um exemplo de inteligência, de capacidade de adaptação
a novas situações, de visão estratégica, de espírito de bem servir a Nação, mas
também de coragem moral, de camaradagem, de capacidade pedagógica invulgar,
de defesa permanente dos interesses nacionais, de grande seriedade e capacidade
diplomática, de grande cultura multidisciplinar e de pensamento livre… com
sentido de Estado.
Termino estas linhas tal como comecei. Orgulhoso de continuar a privar (e a
aprender) com o General Loureiro dos Santos, e de ter tido o privilégio e a honra
de reler a sua obra e de sobre ela poder reflectir, comungando com os leitores
(sobretudo sobre os assuntos da “espada”) através da “pena” que o General sempre
usou com destreza ao serviço da Nação.
Deixo, no entanto, as palavras finais ao saudoso General Mário Firmino
Miguel, que no prefácio da obra “Como Defender Portugal”, antecipava já aquilo
que viria a ser uma realidade: “É, pois, o General Loureiro dos Santos … uma
figura e uma personalidade marcante na comunidade intelectual portuguesa ligada
à estratégia, à geopolítica e à geoestratégia, com projecção no mundo académico
e na vida social nacional.” (1991:7).
3
Muito especialmente após o seu afastamento da vida activa. Na sequência da passagem à reforma prometeu publi-
camente intervir no debate que a nossa democracia permite, quando o entendesse conveniente e a sua experiência e
conhecimentos ao seu alcance justificassem.
151
Bibliografia
152
A GUERRA MUDA (1789-1815)
153
154
A Guerra Muda (1789-1815)
155
própria sobrevivência dos mais próximos, não têm como nem quem lhes possa
contar os feitos. É uma parte fundamental da guerra, a soma e a permanência desta
ações provocam e alteram o decurso da mesma mas, quase sempre, esquecida e
pouco contada.
Durante as Guerras da Revolução (1789-1815) o papel desempenhado pelas
populações foi fundamental. Estas guerras trouxeram para o campo de batalha
o fervor revolucionário e as motivações ideológicas de centenas de milhares de
soldados e simples cidadãos. Foi uma guerra combatida por gente em uniforme e
sem uniforme, foi uma guerra entre o povo e com o povo.
Em Portugal foi uma guerra que envolveu toda a nação e a que poucos puderam
escapar. Os relatos sobre o povo português na luta pela sua sobrevivência foram
mesmo muito esquecidos, raramente contada, por vezes deliberadamente omitida.
Para centenas de milhares de “anónimos combatentes” e de milhares de “ações de
combate” esquecidas, as guerras da Revolução foram, pela ausência de relatos, uma
guerra “Muda”.
Vamos contar um pouco sobre a parte “muda” da guerra. Lembrar o enorme
esforço das populações portuguesas, tantas vezes esquecidas no resultado final da
vitória aliada (anglo-portuguesa) e que durante muito tempo, apenas foi atribuída
à glória de alguns, quase sempre britânicos e de elevada patente. Para tal iremos
utilizar, exclusivamente, o pensamento do estratega e historiador militar, General
Loureiro dos Santos. Assim, em todas as referências bibliográficas apenas
colocaremos, entre parêntesis, a data da publicação e página respetiva (porque
o autor é sempre o mesmo). No final do texto está a bibliografia que contém as
referências completas das obras consultadas da autoria do Sr. General. A sua obra é
tão vasta que pudemos, num trabalho que se destina a um livro em sua homenagem,
cruzar os nossos pensamentos e reflexões com as suas e, desta forma, encontrámos
um meio de “excelência” para dar significado e enquadramento “estratégico” ao
nosso estudo.
Sendo um período histórico muito alargado vamos tentar evitar cair no que
Loureiro dos Santos apelida de “tentação das sínteses” (2010:20) mas, devido à
limitação de espaço, dificilmente as deixaremos de as fazer. Assim iniciamos com
uma possível síntese do período em análise.
As guerras, no final do século XVIII, não eram apenas combatidas por Exércitos
ditos tradicionais. Os Exércitos, em si, também tinham evoluído desde o princípio
do século, crescido em equipamentos, meios e, enormemente, em número de
combatentes. De poucas dezenas de milhares de soldados para os incríveis números
que em breve ultrapassariam os centenas de milhares. Em 1812, na Campanha da
Rússia, ultrapassariam mesmo a barreira do meio milhão de homens. A guerra
tinha mudado o seu “rosto” e para além de enormes exércitos, havia inúmeras
organizações e grupos de combatentes, por vezes espontâneos, que acorriam ao
combate. Estes grupos, também de números muito elevados, praticamente não
156
foram contabilizados, nem para o combate e menos ainda para contagem final das
baixas. Combateram e morreram pela sua pátria mas apenas se contaram os mortos
em uniforme que estavam presentes nos exércitos de primeira linha, ou seja, uma
tremenda injustiça que importa repor.
O Cidadão, nas guerras da Revolução, em especial na França “revolucionária”,
adquiriu um papel central. Naturalmente que se assistiu a muitas manipulações da
informação, ideologias e políticas de oportunidade, mas efetivamente, o cidadão
“comum” adquirira, ainda que conjunturalmente, uma voz própria. Mais tarde, por
causa de imensos abusos, da anarquia vigente e mesmo de um certo caos instalado,
a voz do “cidadão” ficou perdida no meio do fervor revolucionário que levou inclusiva-
mente a uma insana campanha de terror na jovem República Francesa (1793-1795).
Muitos que gritaram nas ruas de Paris não se aperceberam dos efeitos das
suas ações no futuro, “os homens não têm consciência da sua posição no devir
histórico” (2010:15) e como tal não tiveram a perceção que essa imensa revolta de
1789 ainda fosse hoje considera como a “Revolução”. Um marco, que se utiliza
para descrever períodos históricos e alterações profundas na sociedade, é o antes
e depois da Revolução Francesa de 1789. A força das populações era, à data, um
dos fatores intangíveis mais importantes do potencial estratégico da Nação. O
“sentimento nacional/sentido de destino” gritado e mostrado pelo voluntarismo nas
ruas de Paris e pela presença em massa nas fileiras do exército “nacional”, são uma
marca forte destes momentos revolucionários e que se traduzem na “vontade de o
país se autogovernar” (2012:17).
A adesão voluntária e fervorosa das populações começou efetivamente a perder
ímpeto a partir de 1793. Em Setembro de 1792, junto ao moinho de Valmy, dá-se
um importante evento, são milhares de indisciplinados voluntários, comandados
por experientes militares como Kellerman e Dumouroiez, que enfrentam e obrigam
à retirada os orgulhosos exércitos austríacos e prussianos (2010:135). Nos anos
seguintes este tipo de recrutamento, voluntarista mas caótico, irá sendo substituído
por um sistema de conscrição, de massas, legislado, de carácter universal e
obrigatório. Em pouco tempo será um sistema adotado em muitos países e por
diferentes regimes políticos (2010:76).
Um fenómeno “revolucionário” que coloca voluntários ao lado de profissionais
exponenciados por uma outra revolução, a industrial, que permitia o acesso a
tecnologias e meios crescentes, resulta numa expansão global dos efeitos da guerra
(2010:64 e 117). Entre outras consequências, a organização das forças para o
combate, é agora tão importante como a organização da nação para a guerra (1979:
15 e 2010: 21). Na “Nação” todos contam: civis e militares, políticos, diplomatas
e comerciantes, exército de primeira linha, milícias e ordenanças. É o conceito de
“Nação em Armas” que se estabelece em França, primeiro levado pela ideologia de
“liberdade, igualdade e fraternidade” e depois pelo “culto do imperador” (2010:66)
e que, como conceito, se vai espalhando em muitos países no mundo.
157
Loureiro dos Santos propõe, como um método possível para analisar a evolução
na história militar, o recurso aos denominados “elementos essenciais de combate”
(1979: 25 e seguintes e 2010: 31 e seguintes): fogo, choque, movimento, proteção
e comando/ ligação. Nas guerras da revolução todos os elementos estão presentes
e serão exponenciados. O “movimento” materializa-se em 1805 na inovadora
manobra de Napoleão Bonaparte em Ulm permitindo separar forças para as poder
bater por partes. A “proteção” afirma-se na “muralha” nas linhas de Torres Vedras
em 1810 barrando decisivamente a progressão francesa em direção a Lisboa. O
“fogo” é elucidativo na força da artilharia que dizima milhares em Borodino em
1812 durante a malograda campanha da Rússia. Por último, a “comunicação”
demonstra a sua indispensabilidade pela ausência, quando a ligação não se faz
entre os corpos franceses na Península Ibérica em 1813 e no choque final entre as
formações em Waterloo em 1815. Até ao final do século XVIII ainda podíamos
circunscrever a ação armada à área onde se desenrolavam as operações militares
mas, a partir da revolução francesa, a guerra passa a afetar diretamente não só as
tropas como, de forma muito intensa, as populações em geral (2010: 66), e assim a
abrangência passa a ser (muito mais) geográfica, psicológica e demográfica. Assim
passamos a analisar os efeitos de cada um dos elementos essenciais de combate
muito para além do “campo de batalha”. A “Grande Estratégia” implica uma visão
sobre o movimento de forças, de populações e na forma como as interligar. As
campanhas não se fazem mais de batalha em batalha e nem sempre serão batalhas
a garantir o desfecho decisivo de determinadas campanhas. Na Guerra Peninsular
torna-se evidente esta forma de entender a guerra, será o desgaste, a ação contínua
sobre as forças francesas que levarão a uma vitória aliada e as grandes batalhas,
relevantes e marcantes, não serão em si a única explicação para a retirada final
para além dos Pirinéus.
A crescente participação dos povos na guerra também implica que o poder
exercido pelos governos e pelos generais no comando dos exércitos passe a estar
menos isolado da vontade e sentir dessas mesmas populações. O “Poder era o
intérprete da vontade geral da comunidade” (2010: 135) e, ainda que de forma
marginal, muito longe da “plena democracia representativa” dos sistemas políticos
atuais, o “despotismo iluminado” foi dando lugar a um crescente liberalismo e a
uma crescente e afirmativa voz das populações.
Portugal, consciente dos “ventos de mudança” causados pela revolução
francesa, temeu pelos seus territórios, espalhados em cinco continentes. A guerra
generalizada que se seguiu iria colocar, frente a frente ou de forma indireta, as
grandes potências europeias e, consequentemente, despertando o apetite ancestral
pelos territórios portugueses. Assim, nos anos seguintes, iriamos assistir a inúmeros
ataques, disputas, ou mesmo, ocupações. Portugal hesitou de início afrontar a França
mas, a partir de 1793, participa (tímida e discretamente) em ações armadas, em terra
e no mar, contra as forças armadas francesas um pouco por todo o mundo e de forma
158
quase contínua até 1817. No entanto a sua diplomacia “pública” foi a de tentar a
neutralidade, evitar a todo o custo que o território português na Europa entrasse nos
projetos e ambições expansionistas francesas. Tentou mas não conseguiu. No final
de 1807 acabaria por se registar a entrada de tropas francesas e espanholas para
ocupar Portugal.
Nessa altura, como ainda hoje, sabia-se que um país com a dimensão europeia
de Portugal não teria possibilidades de vencer uma guerra convencional contra os
maiores e melhores exércitos do mundo: o Francês reforçado com o Espanhol. A
dimensão europeia de Portugal, quando comparada com países como a Espanha
ou semelhantes, que pouco ultrapassa algumas das regiões desses “grandes” países
europeus (como a Andaluzia, Catalunha, Galiza), traduzia-se numa capacidade “de
encaixe estratégico reduzida” (2009b:137). Como tal a estratégia para resistir teria
de ser outra. Não era possível “apostar” numa defesa direta do território nacional.
Portugal, para se opor às grandes potências, procurou sempre duas soluções,
cumulativas, por um lado associar-se a uma grande potência (historicamente a
Inglaterra) e por outro, preparando a sua população para fazer uma forte resistência
ativa contra o invasor, privilegiando assim, no caso de se tornar impossível a defesa
direta do território, o uso de estratégias assimétricas (2009b:138). Sempre dentro de
uma estratégia global, de coerência no emprego de meios, que possibilitasse uma
natural coordenação das ações dos exércitos com a das populações. Para além do
papel tradicional dos exércitos, de ocupar, conquistar e defender o terreno, estão bem
presentes também as suas tarefas essenciais no contacto direto com as populações,
para lhes garantir segurança, para lhes explicar a razão dos seus combates, para as
incluir no âmbito dos sentimentos, afetos e emoções (2012:22). No caso Português
foi, e é, um exército das populações onde as populações são exército, um “corpo
militar que emerge da população do país” assente em “estruturas militares por
regiões” (2012:64). Este é o “segredo”, secular, da defesa e soberania de Portugal.
Quando possível expõe-se em batalha e bate-se como os melhores (como o foi em
Aljubarrota em 1385 ou em Montes Claros em 1665) mas, contando sempre com o
apoio e a vontade de resistir da população que o legitima, reforça e complementa
como força de combate (como veremos entre 1807 e 1814).
Mais do que apostar em fortes exércitos do tipo mercenários, Portugal
incentivou o espírito dos valores, os tais outros fatores intangíveis do potencial
estratégico de uma nação, assentou parte da sua estratégia em valores e moral
das forças, das suas populações. Os valores nacionais “não são específicos dos
militares, todos os portugueses refletem esses valores” (2009b:140) ou “não são
apenas valores dos combatentes, mas sim de todos os que integram o corpo social
português” (2003:235). Para mobilizar os portugueses para a resistência contra
um possível invasor foi preciso procurar o apoio dos mesmos à causa que se
defendia, pois este é um elemento crucial do “potencial estratégico global” de um
país (2003:202).
159
Naturalmente que a defesa e a existência de valores nacionais, alicerçado num
velho Estado-Nação, como era Portugal à época, foi importante, mas houve outros
valores que também se demonstraram vitais para garantir a resistência ao invasor,
como os valores religiosos. Além de uma “luta” contra os “pedreiros livres”
emergentes surgiu a organização popular liderada pelos sacerdotes, e em especial,
pelo “baixo” clero” no interior do País (2003:344).
A força do potencial estratégico “população” ficou visível na forma como se
conjugou o esforço convencional de defesa com o poder da insurreição popular e
na forma do uso de “táticas e guerrilha e terrorismo” (2003:345). Esta componente
essencial da estratégia de defesa foi essencial e obteve efeitos “muito significativos,
se não decisivos, em todo o teatro de guerra” (2003:345), que constituíram “a base
da guerrilha que assolou e desgastou as tropas de Napoleão” (2012:65). Dos 300.000
franceses empregues na guerra contra Portugal e Espanha, cerca de 230.000 eram
empregues fundamentalmente para o controlo “das águas territoriais e respetivas
populações, a que a insurreição generalizada obrigou” (2003:345).
Para vencer esta guerra era preciso mais do que vitórias ou derrotas, era preciso
ter a convicção das populações de que era possível derrotar os melhores entre os
melhores, porque o que “interessa na guerra, mais do que a realidade é de facto a
ilusão” (2009a:72). Tão importantes são as corretas informações sobre o estado das
forças como são os “sentimentos e emoções” de quem se combate.
Entre os principais pensadores que se debruçaram sobre a Guerra Peninsular
encontram-se Jomini e Clausewitz. Ambos incidiram o seu estudo sobre a estratégia
militar propriamente dita mas não deixaram de alargar o seu estudo para a estratégia
total, em especial, Clausewitz, que ao abordar as restantes componentes da estratégia,
deu um significativo destaque ao papel das populações no esforço global de guerra
(2005:329). Jomini fez uma leitura demasiado “geométrica” da história (2005:329)
e como tal não chegou à abordar a estratégia das restantes componentes, ou seja,
não olhou para além dos exércitos em campanha, não percebeu a força do “exército
das populações”. Mas os inúmeros autores que interpretaram e exponenciaram o
pensamento de Clausewitz, quando tinham de ilustrar o poder das “populações”
na guerra contra Napoleão, ilustravam os seus argumentos através das ações da
“guerrilha espanhola” sem se referir ao esforço das milícias, ordenanças e guerrilhas
portuguesas1.
Infelizmente ainda hoje se houve falar muito mais das guerrilhas espanholas do
que do esforço essencial das populações portuguesas. É ainda afirmado em muitas
1
Do autor existe uma descrição mais detalhadas do que são e do que fizeram as milícias e ordenanças no período
compreendido entre 1808 e 1811: “Milícias e Ordenanças no Norte de Portugal durante as primeiras invasões
Francesas” (2009), no I volume de o “O Porto e as Invasões Francesas”, Câmara Municipal do Porto e Edições
Público, pp. 157 - 192; “O papel das Milícias e das Ordenanças na Terceira Invasão” (2011) no III volume
do livro “O Exército Português e as comemorações dos 200 anos da Guerra Peninsular”, Edições Exército e
Tribuna da História, Lisboa, pp. 75-104.
160
obras que a “guerrilha” nasceu em Espanha. De facto, os portugueses falaram pouco
dos seus feitos em batalha, e ainda menos as populações, que foram muito parcas
a contar as suas ações. No outro lado da fronteira criaram-se mitos, escreveram-se
inúmeras descrições, romancearam-se vidas de guerrilheiros. Os espanhóis fizeram
e fazem bem, nós é que fizemos mal em não contar, salvo raras exceções, poucas são
as descrições da fundamental ação das “gentes” portuguesas. Porque estas gentes
não a contaram, relembramos, ficou esta parte importantíssima da guerra, muda.
Se não fosse Clauzewitz também não se conheceriam tão bem as outras
componentes da estratégia. Para a História tinham ficado somente os principais
feitos dos comandantes britânicos, escritos pela pena de Oman, Napier ou os dos
comandantes Franceses, revelados nas memórias Junot, Soult e Marbot ou os relatos
“romanceados” da bravura guerrilheira espanhola. Mesmo os “raros cronistas”
portugueses da época, embora tenham referido o esforço das populações, deram um
grande destaque à ação das forças regulares e falaram pouco das populações no seu
esforço direto, como Cláudio de Chaby e Acúrsio das Neves. Mas vamos analisar
com um pouco de mais detalhe o esforço português, em especial, das populações,
na Guerra Peninsular.
Portugal estava na altura, mais uma vez, entre os interesses da potência
marítima britânica e da terrestre francesa e, quer quisesse quer não, viu-se
envolvido numa guerra que não desejou (2005:330). Entrando com mais pormenor
na descrição da guerra na Península Ibérica, uma das áreas de maior importância,
foi a fronteira entre Portugal e Espanha. A fronteira separou a França e a sua
aliada, Espanha, dos territórios portugueses até 1808 e a partir desta data, quando
a Espanha mudou a sua posição e decidiu combater os franceses, entre o território
base das forças aliadas britânicas e portuguesas contra o território ocupado pelos
franceses. Parece por isso evidente que a fronteira terrestre entre os dois países
peninsulares tenha ganho uma enorme importância, em especial, até ao ano de
1812, quando se passou à ofensiva estratégica anglo-portuguesa para libertar
Espanha do jugo francês.
A defesa da fronteira portuguesa foi permanente e, durante a maior parte do
tempo, vigiada e defendida pelas populações raianas. Esta fronteira é uma das mais
antigas no mundo, resultado de “uma inteligente ação política externa de D. Diniz
que leva à assinatura do Tratado de Alcanizaes (1297) com Castela (…) alinhando-
as quando possível por acidentes geográficos naturais que facilitassem a sua defesa”
(2002:23). O Exército aliado Anglo-português de Wellington não tinha efetivos nem
capacidade para estabelecer uma linha defensiva contínua ao longo da fronteira. A
estratégia seguida para vigiar e defender os cerca de 800 km de fronteira entre
Espanha e Portugal foi recorrer às fundamentais milícias e ordenanças portuguesas.
Os comandantes regionais nomeados eram quase sempre portugueses, Sepúlveda,
Freire de Andrade e Silveira a Norte, Alorna e depois Miranda Henriques ao centro,
Paula Leite no Alentejo e Algarve.
161
Wellington sempre contou com as populações, na forma organizada, ou
através do seu espírito de sacrifício para lutar ou abandonar os seus bens e recursos.
Podia utilizar o seu exército anglo-português com toda a liberdade operacional na
Península, fazer incursões em Espanha, como em 1809 sobre Talavera ou em 1812
sobre Madrid, porque confiava nas forças de segunda (e terceira) linha do Exército
Português para lhe garantirem a defesa do seu santuário, Portugal. Mesmo dentro
de Portugal podia movimentar-se livremente porque a área estava segura pelas
milícias e ordenanças e, onde tais organizações não tivessem a necessária presença
e eficácia, sabia que podia contar com a iniciativa local comandada por párocos, por
aventureiros, por guerrilheiros de circunstância.
As pequenas organizações de milícias e ordenanças não podiam efetuar
significativas manobras militares e obter vitórias em grandes batalhas mas podiam
utilizar dois dos princípios mais importantes da guerra: a segurança e a surpresa
(2009a:122). Aplicando o princípio da segurança impediram a atividade de
reconhecimento e de busca de informações dos franceses sobre o exército aliado
anglo-português e, atuando sempre pela surpresa, causaram, além das baixas
diretas, acima de tudo, um clima de incerteza, de medo, entre as tropas francesas,
que sempre e crescentemente, limitaram mais as suas ações na Península Ibérica.
Mas esse esforço e o grande significado estratégico não foi nem contado nem
devidamente reconhecido.
Podemos ler inúmeros relatos sobres as Batalhas do Vimeiro ou da Roliça que
ocorreram em Agosto de 1808, mas praticamente nada sabemos sobre a primeira
grande derrota das forças francesas na Península Ibérica, em Junho desse ano,
conhecida como a Batalha dos Padrões da Teixeira (ou da Régua). Nessa Batalha,
o mais temível general francês, o “maneta” Loison, foi derrotado pelos 3.000
(seriam 10.000?) bravos portugueses, razoavelmente coordenados e apoiados por
Francisco da Silveira nas encostas do Marão. A palavra “comandados” seria forte
demais até porque no comando direto das inúmeras e variadas forças estavam
Oficiais das Milícias, das Ordenanças e do Exército, Monsenhores, Abades e
Cónegos, Mestres-Escola, etc. (uma descrição interessante e feita em cima do
acontecimento pode ser encontrada na Minerva Lusitana nº9 de 21 de Julho de 1808).
Milícias, ordenanças, guerrilhas, religiosos e populares, até umas poucas de peças
de artilharia, numa manobra tática (possível) de envolvimento, fixação e ataque
em profundidade, assente numa enorme capacidade de sacrifício dos populares,
naturalmente, a par de muito caos e desordem típicos de forças constituídas “ad-
hoc”. Esta Batalha (quase muda nos relatos internacionais) garantiu a Portugal a
primeira grande vitória internacional sobre os invasores franceses. Com a Batalha
dos Padrões da Teixeira ficava quebrado “o mito da invencibilidade das tropas
napoleónicas” (2005:332).
Porque nesta batalha não havia britânicos ou espanhóis praticamente não foi
contada, porque foi um exército de populares, os “puristas” da estratégia militar
162
decidiram ignorá-la, no entanto, foi uma vitória “grande”, intensa, da alma da defesa
portuguesa, foi o verdadeiro grito de liberdade. Foi a demonstração da enorme
força da melhor arma que uma nação dispõe: a vontade de se defender.
Já em 1801 Manuel Godoy, o principal responsável pelo governo de Espanha
e também o planeador da ofensiva espanhola contra Portugal na famigerada
“guerra das laranjas” tinha ficado admirado pelo efeito multiplicador do potencial
estratégico português possibilitado pelas milícias e ordenanças. Em 1808 seriam
as milícias e ordenanças a empurrar “o melhor exército do mundo” para uma área
limitada entre Lisboa e Badajoz. Quando Wellington chegou e desembarcou em
Agosto de 1808 para derrotar definitivamente as tropas francesas de Junot podia
contar com um “exército de voluntários” portugueses que garantiam a defesa e a
segurança de 9/10 do País, desde o Minho a Trás-os-Montes até ao Algarve. No mês
anterior, Junot desesperava por manter a linha aberta para Espanha e não hesitou
em ordenar o massacre das populações em Beja ou Évora que teimavam em se
apresentar em terreno aberto perante os corpos bem treinados do exército francês.
Morreram dezenas de milhares e os portugueses aprenderam uma dura lição: de que
não poderiam continuar a combater dessa forma.
Em 1809 privilegiar-se-iam táticas de guerrilha que transformaram a invasão
de Soult no norte de Portugal num inferno permanente. Quando as diminutas e
ainda pouco eficazes forças “convencionais” portuguesas se tentaram opor ao bem
treinado Exército de Soult, foram de novo, massacradas em Braga e no Porto. Mas
enquanto o exército francês ocupava o Porto, Silveira com as suas forças “populares”
fecharam o caminho ao invasor. Soult conquistou o Porto mas Silveira reconquistou
Chaves, Soult tentou avançar para sul e os portugueses avançaram no norte pela
Galiza para cercar e ajudar a libertar Vigo. No resto do país, nas fronteiras, foram
colocadas inúmeras forças a vigiar e a defender. Os franceses tentaram mas não
conseguiram ligar-se junto a Bragança, ou nas Beiras e menos ainda no Alentejo. O
elemento essencial de combate, “comando e ligação”, estava comprometido entre
os corpos franceses devido à ação das forças portuguesas. Estavam lá as milícias e
as ordenanças.
Mas para a História, dos 4 meses que durou esta tentativa fracassada dos
franceses na denominada segunda invasão, ficaram os inúmeros relatos sobre
a tomada do Porto por Wellington e as crónicas sobre o avanço do General
Beresford para Norte. Muito pouco, mesmo muito pouco, sobre as decisivas ações
dos portugueses de Silveira e nada, praticamente nada, sobre o enorme esforço
permanente de defesa nas fronteiras entre Espanha e Portugal. Para além dos efeitos
diretos do combate contra o invasor, estavam também os efeitos indiretos, porque
o empenhamento de uma parte significativa do exército francês na tentativa de
conquistar Portugal resultou num “enfraquecimento das forças que atuavam em
outros teatros de operações mais decisivos a nível global” (2005:334). Também
este esforço de fixação e cometimento do esforço francês foi esquecido, quem lê
163
algumas obras sobre a guerra peninsular, até parece que tudo se resumiu às três
semanas do avanço de Wellington, como se os milhares de portugueses mortos na
defesa do território não tivessem existido.
Na derradeira tentativa francesa, na denominada terceira invasão, nem o
melhor general francês enviado por Napoleão seria suficiente para ocupar Portugal.
O Marechal André Massena, o “filho querido da vitória”, seria derrotado por uma
brilhante estratégia delineada por Wellington que contava com a significativa
contribuição de um país “em armas”, esgotado, faminto mas determinado. Massena
chegou ao Bussaco em Setembro de 1810 onde enfrentou os anglo-portugueses de
Wellington e descobriu que tinha a sua retaguarda permanentemente atacada pelas
milícias e ordenanças portuguesas. Reforçou os pontos de abastecimento e deixou
para trás inúmeros efetivos. As tropas francesas, quando procuravam abastecimentos
na “terra queimada” determinada por Wellington, eram constantemente atacadas
pelas populações locais. Quando tentou mandar mensageiros a França, estes
raramente chegaram a meio do percurso e nunca conseguiam atingir a fronteira.
Apenas conseguiu passar o futuro General Foy, que teve de levar de escolta, três
batalhões de franceses. E, claro, se pouco se falou destas ações pouco ou quase
nada se falou sobre a defesa da fronteira de Trás-os-Montes ou do Alentejo e
Algarve no ano de 1810. Wellington manobrou todo o seu exército operacional
entre o Bussaco e as Linhas de Torres Vedras porque Silveira, Wilson, Trant, Paula
Leite, etc. mantinham o fundamental de Portugal ao comando essencialmente de
forças de milícias.
O esforço das populações deve ser entendido em várias dimensões. De um
lado o da ação direta sobre o invasor mas também pelo esforço que recaiu sobre
homens, mulheres e crianças que se viram “vítimas” de uma denominada estratégia
de “terra queimada”. Embora esta estratégia impedisse o invasor de encontrar
recursos, também e principalmente privava os habitantes de deles dispor para a sua
sobrevivência. As populações, como parte integrante da estratégia de Wellington,
tinham recebido ordens no verão de 1810 para transportar para fora do alcance
das tropas de Massena “tudo o que pudesse servir-lhes, destruindo o que não fosse
possível preservar” (2003:347).
Quando Massena chegou, esgotado e exaurido em recursos, às denominadas
Linhas de Torres Vedras em Outubro de 1810, encontrou uma muralha de
fortificações e um sistema defensivo coeso, também ele erguido à custa de 150.000
trabalhadores populares. O teatro de operações ficou isolado para os franceses e
os possíveis reforços impedidos de progredir. Quando, muito mais tarde do que
pretendia, Massena finalmente recebeu alguns reforços, estes ficaram a meio do
caminho empenhados em combates contra as milícias de Trant, Wilson, Bacelar e
Silveira.
Em 1812 os aliados anglo-portugueses puderam passar à ofensiva porque a
defesa de Portugal estava firme. Em 1813 a enorme vitória na Batalha do mesmo
164
nome em 21 de Junho, em plena região basca com a participação de cerca de 30.000
portugueses, provocou ondas de choque por toda a Europa levando ao “apertar do
cerco” das restantes nações europeias sobre Paris e Napoleão.
Na Guerra Peninsular tiraram-se importantíssimas lições sobre o emprego
de adequadas estratégias navais e terrestres. Sem uma adequada estratégia
naval não teria sido possível inverter o avanço francês sobre a Europa, sem a
indispensabilidade da estratégia terrestre aliada não teria sido possível retomar os
territórios ocupados e atingir o coração de França em 1814. Sem a combinação
entre uma adequada estratégia naval e terrestre nada teria sido possível (2005:332).
Mas foi a combinação entre as várias componentes da estratégia que fez a diferença
na guerra peninsular. Foi o esforço das populações, no resistir e no combater, com
efetivos entre as forças de primeira linha, nas fundamentais milícias e ordenanças
ou simplesmente, na defesa dos seus haveres e parco património, que residiu a força
dos valores “intangíveis” portugueses.
Magnífica lição de estratégia o que Wellington nos deu ao saber contar com
todas as forças desta ancestral nação. Extraordinária a lição de coragem oferecida por
uma população que nunca deixou de querer ser portuguesa. Espantosa demonstração
de arrogância por todos aqueles que clamaram a glória dos seus feitos ignorando a
voz dos que tanto se sacrificaram para uma estratégia coletiva que, no final, levou
à derrota de Napoleão.
Afinal ficou provada a “capacidade de resistência e de sacrifício notável, na
defesa dos valores em que acreditam, em especial os religiosos e os nacionais” (2005:
337) por parte de uma população portuguesa “tão diversificada, com interesses e
origens diferentes (…) unida por práticas e sentimentos comuns (…) submetidas à
vontade do mesmo príncipe (…) com unidade e identificação” (2002:23-24).
Em Portugal os comandantes sempre consultaram os seus subordinados antes
das decisões finais, era assim no século XV e XVI, passou a ser ainda mais assim
com o estabelecimento formal do estado-maior a partir do século XVIII. Uma
forma sábia de comandar: ouvir, discutir, envolver na sua decisão os que depois a
vão aplicar; finalmente decidir. Com as populações foi-se ainda mais longe, além
do Rei discutir com as populações (nas cortes), foram as populações que se fizeram
ouvir em determinados e vitais momentos da história de Portugal. Fizeram-se
ouvir e fizeram-se notar. Porque quando não havia “estado” houve “povo”. Sem
demagogias, a realidade desta “guerra muda” mostrou-nos o valor essencial das
populações, primeiro na defesa do que é seu, depois, participando na defesa do que
é português. Por último, contribuindo para um esforço aliado.
Em muitos momentos a ação das populações foi caótica, errática e, até,
contraproducente. Basta lembrarmos o terrível linchamento do comandante
português em 1809, Bernardim Freire de Andrade, em Braga. Ao primeiro tiro
milhares fugiam e nos momentos decisivos de alguns combates muitos populares
desapareciam. Verdade. Mas também foi verdade que muitos acorreram aos
165
quartéis para se oferecerem para o exército no Verão de 1808, milhares pegaram em
armas e combateram nas milícias e ordenanças, ou formaram pequenas guerrilhas.
Tantos que combateram ao lado de párocos locais, de “improvisados chefes” ou
mesmo sem chefes. Combateram, reforçaram e ouviram o que lhes era pedido.
Fizeram a diferença. A História foi-lhes indiferente. Que a guerra “muda” se torne
falada, porque se hoje existimos como Nação soberana é porque sempre o fomos e
continuaremos a ser unidos na vontade de sermos portugueses. E se nos lembrarmos,
sempre, que somos exército emergente de um povo que é um povo que, quando
necessário, se sabe transformar em exército.
Bibliografia
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(2010), História Concisa de como se faz a Guerra, Lisboa, Europa-América.
(2012), Forças Armadas em Portugal, Lisboa, Fundação Francisco Manuel dos Santos.
166
AS RELAÇÕES CIVIS-MILITARES E O CONTROLO
DO USO DA FORÇA.
UMA PERSPETIVA CLAUSEWITZIANA
167
168
As Relações Civis-Militares e o Controlo do Uso da Força.
Uma Perspetiva Clausewitziana
Q objetivo deste texto é estabelecer uma base teórica de referência para as relações
civis-militares em relação ao controlo político do uso da força, em situação de
guerra ou de crise, baseada na obra de Carl von Clausewitz: “Da Guerra”. A principal
razão para termos optado por “Da Guerra” resulta do facto de ser uma obra de
referência no âmbito da estratégia, que estabelece muito claramente as referências
para o estudo do fenómeno da guerra como empreendimento de uma sociedade
dirigida por uma classe política e conduzida pelos militares1. Portanto, de acordo
com a definição de relações civis-militares que a seguir apresentamos, aquela obra
tem todos os ingredientes para fornecer o corpo de conceitos que necessitamos para
descrever as relações civis-militares.
Clausewitz, que viveu entre 1780 e 1831, foi simultaneamente soldado e
teorizador do fenómeno da guerra. O seu mais importante trabalho foi “Da Guerra”,
no qual tentou registar os elementos mais importantes da estratégia tal como os
percecionava2. Publicada a título póstumo em 1832, a obra “Da Guerra” tornou-se
um clássico na compreensão da relação entre guerra e política e de onde continuam
a ser retirados conhecidos aforismos. Clausewitz estabelece uma base relacional
entre guerra e política até ao nível das considerações e dinâmicas que regem a
relação entre os líderes militares e os líderes políticos, uma vez que o seu ponto
de referência é a eficácia estratégica. Para Clausewitz, a manutenção do controlo
político não é apenas uma questão de princípio, mas a chave para o sucesso
na guerra.
1
Na verdade, Carl von Clausewitz é essencialmente conhecido pelo estudo da guerra no seu livro “Da Guerra”.
O seu legado em termos do estudo das operações militares tem sido negligenciado, apesar de ter elaborado um
texto publicado pelo US Army War College intitulado “Two Letters on Strategy”, cujo objetivo principal era lidar
com os problemas do planeamento de uma campanha colocados pelo Chefe de Estado-Maior da Prússia em 1827
(Cf. Clausewitz, Carl von (1984), Two Letters on Strategy, Edit. And Trans. Peter Paret and Daniel Moran, Fort
Leavenworth: US Army Command and General Staff College, p. ix).
2
Clausewitz, Carl von (1976), On War, Trans. and Eds. Michael Howard and Peter Paret, Princeton: Princeton
University Press, p. 76.
169
O modelo de análise que vamos utilizar corresponde à definição teórica das
relações civis-militares. Estas descrevem a relação entre os militares de um Estado,
as instituições e a população que servem, especialmente como comunicam, como
interagem e como se regula a sua a ligação. Do mesmo modo, o controlo civil
significa o grau de controlo que os líderes políticos utilizam para exercer a sua
autoridade sobre as forças armadas3. Assim, consideramos que devemos responder
às seguintes questões: Qual é a relação adequada entre o comandante e o líder
político do Estado? Quais são os limites das suas responsabilidades? Que grau de
controlo político deve existir sobre as operações militares? Será que atualmente
há pouco espaço para a interferência dos fatores políticos? Que influência tem
aquela relação na conduta da guerra? Onde está a fronteira que limita a influência
política na conduta das operações militares? O que deve fazer o general se o
governante faz uma leitura desadequada da situação? Tem o general o dever e o
direito de desobedecer?
Alguns autores têm-se debruçado sobre este importante assunto nos últimos
anos, especialmente depois de um movimento “anti-Rumsfeld”, levado a cabo
por alguns generais norte-americanos na reserva por causa da decisão em avançar
na guerra contra o Iraque em 2003 e das críticas de quanto à estratégia seguida
no Afeganistão4. Por essa razão, estabelecer uma base teórica para as relações
civis-militares é um importante contributo para elevar a eficácia no emprego
do instrumento militar. Neste âmbito, tem especial relevância compreender os
processos de relacionamento civil-militar para determinar a linha que separa
as respetivas responsabilidades e onde se confundem, que dinâmicas existem
na assessoria estratégica por parte do chefe militar e que influência tem
aquele relacionamento na eficácia das operações5. Iremos deixar de parte as
considerações relativas aos tipos de regime e sua influência nas relações civis-
militares, apesar de serem um fator extraordinariamente importante. Em regimes
autocráticos, onde normalmente desempenham importantes cargos políticos, as
altas patentes militares estão numa posição que lhes permite exercerem pressão
que pode redundar na queda do líder político. Por essa razão, as nomeações e as
promoções podem ter esse dado como fator decisivo. Por outro lado, em regimes
3
Cf. Hooker, Jr., Richard D. (2011), “Soldiers of the State: Reconsidering American Civil-Military”, Parameters
(Winter 2011-12), pp. 1-14.
4
Cf. Cook, Martin L. (2008), “Revolt of the Generals: A Case Study in Professional Ethics”, Parameters (Spring
2008), pp. 4-15. Cf. Owens, Thomas Mackubin (2006), “Rumsfeld, The Generals, and Civil-Military Relations”,
Naval War College Review, Vol. 59 (4), pp. 68-80. Cf. Desch Michael C. (2007), “Bush and the Generals,”
Foreign Affairs, Vol. 86 (May/June), disponível em http://www.foreignaffairs.com/articles/62616/michael-c-
desch/bush-and-the-generals# [Consultado em 28 de agosto de 2012].
5
Relativamente à influência das relações civis-militares e eficácia das operações Cf. Brooks, Risa A. (2007),
“Civil-Military Relations and Military Effectiveness: Egypt in the 1967 and 1973 Wars”, em Brooks, Risa e
Elisabeth A. Stanley (Eds.), Creating Military Power: The Sources of Military Effectiveness, Stanford University
Press, p. 107.
170
democráticos há uma tendência para o não envolvimento dos militares nas
atividades políticas em tempo de paz. Porém, em tempo de guerra, a sua relação
deve ser muito mais próxima. Isto é tanto mais evidente quanto é a dificuldade
em caracterizar atualmente o fenómeno da guerra, especialmente devido ao facto
de o Estado estar a deixar de ter o monopólio do uso da força, ao surgimento de
atores transnacionais capazes de expandir a violência a nível global, à prevalência
dos conflitos de baixa intensidade1 e à irrelevância da confrontação direta no
campo de batalha.
Neste âmbito, um dos autores mais relevantes é Mary Kaldor que, em muitos
aspetos, exemplifica uma corrente que propõe um novo tipo de guerras. Argumenta
que o pensamento de Clausewitz deixou de ser relevante porque não há lugar para
uma confrontação direta entre Estados com meios exclusivamente militares7. O
general Ruppert Smith afirma que os conflitos atuais não se resolvem pelo resultado
de uma confrontação militar porque são os assuntos de mobilização política através
do uso da violência que se tornou o seu principal objetivo8. Muitas vezes os objetivos
políticos estão ausentes porque os combatentes pretendem manter um estádio de
conflitualidade permanente porque procuram o lucro. A sua hipótese centra-se no
facto de que este tipo de conflitos será o responsável por desintegrar o Estado-nação
de Vestefália tal como o conhecemos. Adianta M. Kaldor que o fim da Guerra Fria
marcou o início do fim dos conflitos entre Estados, sendo substituídos por conflitos
caracterizados por uma luta civil isenta de racionalidade9.
Uma outra referência é Thomas X. Hammes, que nos apresenta uma imagem
de um novo tipo de conflitos que vem evoluindo ao longo do tempo10. O seu
argumento baseia-se na evidência de que a guerra progrediu ao longo da História
por gerações, estando a Guerra de Quarta Geração (G4G) atualmente em evidência.
T. Hammes sustenta que a guerra evolui em paralelo com as mudanças mais
significativas da sociedade. A G4G mudou o foco do emprego da força da destruição
do adversário para a mudança de opinião dos líderes políticos adversários. Este
foco não se alcança através da superioridade no campo de batalha, mas através
da utilização de todas as redes disponíveis – sociais, políticas e culturais – a fim
de mostrar ao adversário que o preço a pagar é demasiado elevado. O estratega
da G4G pretende mostrar que os exércitos da Terceira Geração (G3G) não são
6
Independentemente do nível de análise (estratégico, operacional ou tático), consideramos que o conflito de baixa
intensidade está na faixa do espetro que engloba as operações militares que não têm como missão primária a
derrota ou destruição das forças do adversário.
7
Kaldor, Mary (2005), “Elaborating the ‘New War’ Thesis”, em Duyvesteyn, Isabelle e Jan Angstrom (eds.),
Rethinking the Nature of War, New York: Frank Cass, 2005, p. 221.
8
Ibid., p. 212 e 221. Para Rupert Smith o campo de batalha é o povo, o qual representa os alvos, os objetivos e
as ameaças (Smith, Ruppert (2005), The Utility of Force: The Art of War in Modern War, NY: Alfred A. Knof,
pp. 5-6).
9
Smith, pp. 210-220; Kaldor (1996), pp. 505-554.
10
Hammes, Thomas X. (2004), The Sling and the Stone, MN: Zenith Press.
171
invencíveis num campo de batalha caracterizado pelas dinâmicas da globalização.
Se recordarmos o conflito entre o Hezbollah e Israel, ocorrido no Verão de 2006,
rapidamente se pode associar a G4G ao grupo islâmico e a G3G às Forças de
Defesa de Israel (FDI). O Hezbollah capitalizou de forma soberba todos os danos
colaterais, a maior parte delas provocadas intencionalmente, das FDI sobre as
populações para radicalizar o conflito junto das populações libanesas11. O modus
operandi do grupo Al Qaeda é também um claro exemplo de G4G. A Al Qaeda
e seus franchisados pretendem evidenciar ao Ocidente que o esforço na “guerra
contra o terrorismo” não produzirá os resultados pretendidos e que terá um
elevado preço a pagar.
Apesar de se ter vindo a assistir a uma evidente alteração – evolucionária
ou revolucionária – do caráter da guerra e as forças armadas poderem deixar de
desempenhar o papel principal na sua condução, a herança de Clausewitz continua
a manter-se relevante. Talvez o seu mais conhecido e importante aforismo seja
que a guerra é a continuação da política por outros meios12. Isto quer dizer que
a guerra é um método para proteger interesses, alcançar objetivos e que tem uma
natureza intrinsecamente política. Por esta razão, é também aplicável a todos os
grupos ou centros de decisão política para além do Estado, colocando, todavia, a
política no centro da guerra. Em Clausewitz encontramos também a guerra como
um duelo entre dois adversários que atuam de acordo com as circunstâncias do
momento, o qual é dominado pela fricção, pela desordem, pela fluidez e pela
dimensão humana.
Qual é a relação adequada entre o comandante e o líder político do Estado?
Quais são os limites das suas responsabilidades? Que grau de controlo político
deve existir sobre as operações militares? Será que há pouco espaço para a
interferência dos fatores políticos?
Responder a estas questões é um enorme desafio. Sun Tzu, que se crê ter
escrito “Arte da Guerra” no século IV A.C., argumenta que a decisão de ir para
a guerra deve ser meramente política, mas que o general deve atuar de forma
autónoma a partir do momento em que a decisão é tomada13. Contudo, este
aforismo terá uma óbvia aplicação se a finalidade da ação militar for a inequívoca
vitória militar.
A História está repleta de casos em que existe um excessivo controlo político
sobre as operações militares e sobre a estratégia militar. Apenas para citar alguns
exemplos, referimos que na recente História de Portugal, o general António
de Spínola, como governador e comandante-chefe na Guiné, sofreu intensas
11
Cfr. Barroso, Luís (2007), “Forças de Defesa Israelitas VS Hezbollah: A Guerra de 4ª Geração”, Jornal do
Exército (Maio 2007), pp. 12-21.
12
Clausewitz, p. 87.
13
Quando o “general é competente e não sofre interferência do soberano será vitorioso” (Tzu, Sun (2002), A Arte
da Guerra, Trad., Introd. e Notas de Luís Serrão, Queluz: Edições Coisas de Ler, p. 35).
172
influências na sua estratégia por parte de Marcelo Caetano14. Durante a 2ª Guerra
Mundial, Adolf Hitler influenciou de forma determinante a conduta das operações,
especialmente a partir de 1941 aquando da preparação e invasão da União
Soviética15.
Estes dois exemplos referem-se a duas guerras com caráter diferente –
subversiva e clássica, respetivamente. Porém, em ambos os casos, a intervenção do
líder político foi em sentido contrário ao da avaliação militar. Mais recentemente, a
decisão em avançar para a invasão do Iraque em 2003 pela coligação liderada pelos
Estados Unidos da América e a conduta das operações deixaram muitas marcas
nas relações entre os líderes militares e os políticos, com consequência que todos
sabemos16.
A obra escrita por Clausewitz é essencialmente conhecida por causa dos
aforismos que relacionam a guerra com a política, devendo por essa razão ser
considerada uma obra de referência no estudo das relações civis-militares e no uso
da força. Antes de mais, temos de ter em conta que o general prussiano considerava
a guerra como uma atividade humana única, que se distinguia das outras devido a
alguns dos seus atributos: inerência do perigo, a incerteza, a dimensão humana e o
acaso. Além do mais, considerava que a guerra não poderia ser analisada sem estar
enquadrada pelo contexto político e social.
A reflexão orientada na teoria da guerra é uma componente crucial na
educação dos líderes militares e um aspeto essencial para o estudo da relação entre
meios e fins. Para Clausewitz, esta relação focaliza-se na orientação política do
uso da força. A guerra é uma atividade especial por causa da natureza específica
dos meios empregues, e “os meios” da guerra são sempre o combate17. Ao mais
baixo nível da guerra – nível tático – é mais fácil definir aquela relação, uma vez
que os meios são as forças de combate e o objetivo é a vitória18. Porém, aos níveis
estratégico e operacional da guerra os meios são muito mais variados e os fins estão
mais relacionados com os objetivos que levam à paz19. Este aspeto é central para
respondermos às questões formuladas anteriormente, uma vez que indica o domínio
da atividade política sobre os assuntos estritamente militares. Curiosamente, em “Da
Guerra”, Clausewitz não refere as relações civis-militares em tempo de paz, quando
o foco é gerar os meios e organizá-los para utilização em tempo de guerra20.
14
Cf. Rodrigues, Luís Nuno (2010), Spínola: Biografia, Lisboa: a Esfera dos Livros. Ver o Capítulo 3.
15
Cf. Manstein, Erich Von (2004), Lost Victories, Zenith Press, pp. 176-177
16
Cf. West, Bing (2008), The Strongest Tribe: War, Politics and the Endgame in Iraq, NY: Random House. Ver
especialmente o Cap. V e Cap. XV.
17
Ibid., p. 95.
18
Ibid., p. 142.
19
Ibid., p. 143.
20
Ibid., pp. 131-132.
173
A guerra, como atividade humana singular, tem como meio principal o combate,
o qual decorre num ambiente de incerteza, exaustão física e pressão psicológica. A
relação entre a guerra e outras atividades políticas baseia-se no facto de que aquela
é apenas uma ramificação, sendo por essa razão uma atividade não autónoma21.
A guerra é o produto de forças políticas que se mantêm ao longo do tempo,
razão pela qual a origem da guerra é política e é uma atividade não autónoma com
objetivos por si definidos e moldados. Assim, a lógica política da guerra estabelece
as características desejadas para a paz que se lhe segue22.
Por ser um ato de força para compelir o adversário, em termos abstratos não
há limites para a sua utilização na prossecução dos objetivos pretendidos. Porém,
a realidade impede que a guerra seja absoluta porque não se resume a um único
e curto confronto. Isto deriva do facto de os recursos de um Estado, próprios ou
resultantes de alianças, não poderem ser utilizados de uma vez só23. Este é mais
um fator que reforça o aforismo de que a guerra é a continuação da política por
outros meios, a sua causa, quem lhe estabelece os objetivos e se mantém como fator
supremo na sua conduta24.
Um outro ponto de referência quanto à relação entre os assuntos políticos e
guerra é a sua conceção trinitária: a violência primordial; o jogo das probabilidades
e do acaso; e subordinação à política25. Cada um destes elementos pode caracterizar
um determinado tipo de guerra. Contudo, é o domínio da finalidade política
que assume em Clausewitz a importância principal, uma vez que a política é a
inteligência orientadora e a guerra apenas o seu instrumento, e não o contrário. Não
existe mais nenhuma possibilidade do que a subordinação dos assuntos militares
aos assuntos políticos26.
E quanto à conduta da guerra? Que influência tem a relação entre aqueles
elementos?
Clausewitz salienta que os interesses políticos que levam à eclosão da guerra
podem ser encontrados num espetro alargado de possibilidades, que vão desde a
sobrevivência do Estado (guerra total) a outras causas que não refletem interesses
vitais em causa (guerra limitada), como o caso de se combater por um aliado27.
Como a guerra é um instrumento da política, o objetivo militar deve ser visto
como seu subordinado. Assim, como a conduta da guerra deve ser orientada pela
racionalidade política, os interesses em causa determinam o grau de esforço a levar
a cabo28.
21
Ibid., p. 127; p. 605.
22
Cf. Ibid., p. 70.
23
Cf. Ibid., p. 70.
24
Cf. Ibid., p. 87.
25
Ibid., p. 89.
26
Ibid., p. 607.
27
Ibid., p. 94.
28
Ibid., p. 81.
174
Apesar da correspondência entre os meios e os objetivos poder explicar, em
parte, o carácter de uma guerra, é importante referir que a conceção trinitária
da guerra ajuda a aprofundar este assunto. Em primeiro lugar, o envolvimento
do elemento “povo”, que Clausewitz considera a fonte da violência primordial,
pode fazer variar grandemente o caráter da guerra, uma vez que este pode não
estar disposto a pagar o preço por objetivos não vitais29. Também o jogo das
probabilidades e do acaso deixa espaço ao “general” para aplicar o seu génio
na batalha e tirar partido das forças morais, da dimensão humana e do perigo30.
Para analisar a guerra em abstrato ou compreender uma guerra em particular, mas
também para planear ou conduzir a guerra, é necessário o estudo e a interação
daqueles três elementos31. Afinal, a guerra consiste numa trindade paradoxal que é
afetada pelo papel do povo, pelo caráter do comandante e do seu exército e pelos
objetivos políticos definidos pelo governo. É a complexa interação entre estes três
elementos que mais faz variar o caráter de uma guerra e nos dá importantes pontos
de ligação para as relações civis-militares conforme as definimos anteriormente e
que serviram de modelo de análise.
Um outro ponto que é necessário ter em consideração nas relações civis-
militares é que o objetivo político pode variar durante a conduta da guerra. Isto está
relacionado com o facto de a atividade política não cessar durante a guerra, podendo
modificar a sua orientação uma vez que pode ser influenciada pelos acontecimentos
e pelas suas consequências32.
A relação entre política e guerra tem também implicações na influência contínua
entre a execução das operações e o seu objetivo político. Sendo a guerra uma
manifestação pura de violência, pode tomar o lugar da política fora do “gabinete”
e ser regida pelas suas próprias regras33. Esta afirmação de Clausewitz indica que a
guerra pode perder a sua racionalidade – subordinação à política –, apesar de referir
que a linhas principais ao longo das quais progridem as operações militares, e às
quais devem estar restringidas, são linhas políticas que pretendem alcançar a paz
subsequente34.
Pelo facto de a guerra ser um ato de política e um meio para alcançar o seu
objetivo, determinar o grau de esforço que aquele objetivo justifica tem de ser uma
decisão política. Esta decisão não é apenas requerida no início do conflito, mas, por
causa das inerentes incertezas, deve ser continuamente avaliada35. Se influencia o
esforço necessário, então também influencia a conduta das operações, uma vez que
29
Ibid., p. 81.
30
Ibid., p. 86.
31
Cf. Paret, Peter, “Clausewitz”, em Paret, Peter (Ed.), Makers of Modern Strategy: From Machiavelli to the
Nuclear Age, p. 201.
32
Clausewitz, On War, p. 92.
33
Ibid., p. 87.
34
Ibid., p. 605.
35
Ibid., p. 92.
175
Clausewitz rejeita a ideia de que existe apenas um caminho para a vitória. O que é
importante é que o “general” tenha o conhecimento completo da política nacional
e atue em conformidade36.
Aos níveis mais elevados, a ideia de uma solução puramente militar não faz
muito sentido, porque nenhum objetivo pode ser definido com ignorância dos fatores
políticos37. Um importante elemento relativo à ideia de que a política é a inteligência
que governa as operações militares, é o reconhecimento do facto que o governo tem
um importante papel na determinação do sucesso das operações militares. Neste
âmbito, Clausewitz refere que o governo é o custódio dos interesses do povo, pelo
que o “general” não serve o governo em si mesmo, mas toda a comunidade38.
Apesar de subtil, em “Da Guerra” há também espaço para a crítica à ação
política. Clausewitz serviu nas forças prussianas durante as guerras napoleónicas,
tendo sido capturado pelos franceses em outubro de 1806 e ficado retido em França,
uma experiência que considerou humilhante. A sua estadia em França permitiu-
lhe obter contacto direto com a sociedade e cultura francesas e a oportunidade
para estabelecer as suas diferenças em relação à sociedade prussiana. Clausewitz
considera que a derrota dos prussianos se deveu principalmente ao facto de o seu
governo não ter utilizado a guerra como instrumento da política externa e de ter
dado uma missão impossível ao seu exército. Além do mais, a sociedade prussiana
considerava que a guerra era assunto apenas do foro militar39. Portanto, Clausewitz
criticava o seu governo por não ter sabido envolver a sociedade prussiana. Assim,
considera que a chave para o sucesso militar de Napoleão estava relacionada com
as mudanças na sociedade que os seus adversários não conseguiram identificar.
Afinal, a principal marca da Revolução Francesa não foi a revolução dos métodos
militares de Napoleão, mas as radicais mudanças na sociedade, administração e
a tenacidade do povo francês em manter os ventos da revolução40. Foi o general
francês que percebeu e tirou vantagem do facto de que o “coração e a têmpera”
de uma nação podem ser um enorme contributo para a soma total do seu potencial
político e potencial de combate41.
Operando nestas condições, a mais importante das quais foi o papel do
envolvimento do povo na guerra, Clausewitz considera que Napoleão merece ser
elogiado pela sua determinação em perseguir “objetivos grandiosos”. Na realidade,
aperfeiçoou e explorou o potencial das suas forças armadas, tendo sido considerado
por si como “Deus da Guerra”42. Por conseguinte, os governos podem também
36
Cf. Ibid., p. 94; p. 111.
37
Cf. Ibid., pp. 607-608. Cf. Clausewitz, Two Letters on Strategy.
38
Ibid., p. 607.
39
Paret, “Clausewitz”, pp. 191-192.
40
Ibid., p. 609.
41
Clausewitz, On War, p. 202.
42
Ibid., p. 583.
176
contribuir para o sucesso do seu país se interpretarem com precisão os fundamentos
das relações internacionais. Tudo depende de afiliações políticas, interesses,
tradições, linhas de ação política e personalidades dos príncipes e ministros43.
Todavia, é importante notar que a habilidade para analisar estes fatores deve
ser do líder político e não do comandante militar. Para além disso, deve assegurar a
mobilização dos necessários recursos a tempo de serem utilizados. Esta proposição
leva-nos a questionar como Clausewitz considerava ser julgado o mérito de uma
determinada estratégia. Uma estratégia ótima alcança os objetivos políticos com
o mínimo de recursos. Assim, o príncipe pode demonstrar o seu génio gerindo a
campanha através da adequação dos seus objetivos e meios. Neste caso, o génio
é demonstrado não pelo método da ação mas pelo seu sucesso em relação aos
objetivos pretendidos44. Aplicar o máximo esforço onde e quando não é justificável
por motivos políticos é meio caminho para o desastre, uma vez que objetivos
“menores” não são suficientes para motivar as pessoas ao sacrifício extremo e o
esforço de guerra pode vacilar por razões domésticas45. Por isso, os meios devem
ser proporcionais aos fins46.
Isto não implica apenas uma gestão judiciosa dos recursos, mas também a
procura de outras linhas de ação para além do uso da força máxima para alcançar
os objetivos47. Na realidade, Clausewitz sublinha que o governante pode escolher
a guerra como o caminho mais adequado para alcançar os seus objetivos políticos,
mas deve também considerar que ao fazê-lo está a assumir o preço a pagar pela
sua opção. Apesar de considerar que a atividade central na guerra é o combate,
não significa que este ocorra sempre, uma vez que só se deve levar a cabo se as
probabilidades de sucesso forem elevadas48.
Como é lógico, deve estabelecer-se uma criteriosa comparação entre o preço
a pagar em território, população e outros recursos com os objetivos a alcançar.
Apesar de Clausewitz ser relutante em estabelecer comparações, considera
que o povo pode pretender pagar um preço elevado pela sobrevivência da sua
comunidade política49. Ou seja, quando a sobrevivência está em jogo, Clausewitz
considera dever haver pouca relutância na aplicação dos meios. A política deve
permitir todas as operações militares, e, na medida em que a sua natureza violenta
o admita, deve ter uma influência continua no decurso da campanha50.
43
Ibid., p. 569.
44
Ibid., p. 177.
45
Cf. Ibid., p. 78; p. 585.
46
Ibid., p. 602.
47
Ibid., p. 93.
48
Cf. Ibid., p. 97.
49
Cf. Ibid., p. 286; p. 483.
50
Cf. Ibid., p. 87.
177
Onde está a fronteira que limita a influência política na conduta das operações
militares? Que relação deve existir entre o governante e o comandante militar?
51
Ibid., p. 602.
52
Ibid., p. 608.
53
Ibid., p. 608.
54
Ibid., p. 606.
55
Ibid., p. 88; p. 111; p. 222.
178
a relação entre aqueles dois. Se o príncipe é o general, como foi o caso de Napoleão,
então deve ter as características de governante e de comandante. Se por um lado
o general deve ter as perícias necessárias para avaliar a situação política, deve
também ser perito na utilização dos meios ao seu dispor56. Neste caso não existem
tensões entre os dois.
Uma outra possibilidade é o príncipe e o general serem duas pessoas diferentes.
Neste caso, Clausewitz dá primazia ao governante. Refere que é esperado que as
principais linhas de ação na guerra sejam resultado de forte influência política57.
Para além do estabelecimento dos objetivos políticos, que são da responsabilidade
do governo, espera até que as considerações mais importantes sobre o potencial
do exército e seu sistema logístico sejam assuntos da política58. Por conseguinte, o
general aceita os recursos dados pelo seu governo e aplica-os o mais eficazmente
possível.
Clausewitz considera também importante que exista muita proximidade entre
o general e o político, considerando que o comandante deve ter lugar no gabinete
para que os seus membros possam ser envolvidos nas atividades militares e vice-
versa59. Porém, não faz referências explícitas a situações de tensão entre os dois.
Por essa razão, o que deve fazer o general se o governante faz uma leitura
desadequada da situação? Tem o general o dever e o direito de desobedecer?
Clausewitz dá-nos poucas indicações a esse respeito, referindo que a obrigação do
general é não favorecer o inimigo e que nesse caso não se trata de uma verdadeira
guerra60. Portanto, considera como ponto de partida a existência de harmonia entre
os dois níveis. Possivelmente, Clausewitz considera que o papel do líder militar é
apoiar o líder político na sua máxima capacidade e que a última opção é sempre
do governante. Se considerarmos as democracias ocidentais, em que a eleição do
governante é da responsabilidade do povo, o argumento para o controlo civil do
instrumento militar é ainda mais forte. Apesar de Clausewitz não referir qualquer
limite na influência do líder político, espera que a sua influência seja extensiva para
que a guerra seja um verdadeiro instrumento da política.
56
Ibid., p. 112.
57
Ibid., p. 608.
58
Ibid., p. 89; 196; 337; p. 360,
59
Ibid., p. 608.
60
Ibid., p. 604.
179
O primeiro a ter em conta é o de que a guerra, sendo um ato de política,
deve ser dominada pelas suas considerações. A finalidade da guerra é alcançar um
objetivo político, pelo que os objetivos militares decorrem dessa dependência. Além
do mais, como a atividade política não termina com o início da guerra, durante a
sua conduta as considerações políticas continuam a exercer a sua influência nas
operações militares. Por seu lado, com a finalidade de levar a cabo com sucesso as
políticas do Estado, é importante que o comandante não seja apenas um bom general
mas que seja imbuído do espírito do governante e com sólidos conhecimentos da
política nacional e política internacional.
Um segundo ponto a referir é o facto de os líderes políticos se envolverem
claramente na conduta das operações militares. Para Clausewitz, o governante
representa os interesses de toda a comunidade. Em conjunto com o comandante, o
governante procurará os meios necessários para obter sucesso na guerra, defendendo
desse modo os interesses da população e assegurando que os objetivos compensam
o esforço de toda a comunidade. Por essa razão, os dois, comandante e líder político,
devem estar em permanente contacto, sendo ideal que o comandante tenha assento
no seu gabinete. Afinal, se o governante não tem perícia nos assuntos militares deve
socorrer-se dos conselhos do líder militar.
Em terceiro lugar, apesar de Clausewitz esperar que alguns detalhes operacionais
estão para além da influência do líder político, isso não delimita uma linha clara
para separar as suas responsabilidades. Assim, podemos considerar que em cada
caso o governante e o comandante devem acertar os respetivos âmbitos de atuação.
Se estiver em causa a sobrevivência da comunidade política é lógico que a linha de
separação seja muito ténue, uma vez que os objetivos políticos são muito parecidos
com os militares, orientando-se na derrota militar inequívoca do seu adversário.
Onde “Da Guerra” tem pouca expressão é na possibilidade de tensão entre
o comandante e o governante. Possivelmente, tal como deve ser conhecedor do
potencial interno e da situação externa, Clausewitz considera que o líder político,
ao dever conhecer os meios que tem á sua disposição, também considera dever
manter harmoniosas as relações com o comandante. No mínimo deve socorrer-se
dos seus conselhos.
Clausewitz não nos dá sugestões quanto à possibilidade de intervenção do
general contra ordens suicidas do governante nem que tipo de autonomia deve ter
na conduta das operações militares. Porém, a conceção trinitária orienta-nos para a
responsabilidade do general na relação entre o povo e o príncipe.
Ler Clausewitz continua a ser um desafio para estadistas e para comandantes. O
estadista deve pensar como estrategista e deve estar familiarizado com os assuntos
militares. O comandante, por seu lado, deve ser um claro conhecedor dos assuntos
de política nacional para saber qual o seu verdadeiro contributo para a consecução
dos objetivos do país.
180
O SISTEMA DE DEFESA ANTIMÍSSIL
DA ALIANÇA ATLÂNTICA
181
182
O Sistema de Defesa antimíssil da Aliança Atlântica
Porquê?
183
proliferação, assumindo particular relevo a ameaça que constitui a possibilidade
de grupos terroristas terem acesso a tecnologia nuclear e poderem chantagear,
destabilizar ou concretizar acções de terror.
Hoje são nove os Estados identificados com arsenais nucleares, de um total de
12 que têm programas de armamento nuclear. Há ainda um total de 27 países que
possuem mísseis balísticos.
Um outro perigo prende-se com a criação de stocks elevados de material
nuclear e radioactivo, estando algumas quantidades armazenadas em condições que
oferecem pouca segurança.
O factor humano desempenha também um importante papel. Há cientistas
que trabalham no sector que expressaram a sua disponibilidade em trabalhar para
Estados considerados proliferadores. Um outro exemplo surge com Qadeer Khan,
“pai” do programa nuclear paquistanês, que criou o Walmart do sector privado da
proliferação. Ao que tudo indica, Khan foi o grande responsável pela proliferação
Sul-Sul, tendo criado uma rede internacional clandestina relacionada com a
proliferação de tecnologia de armamento nuclear, do Paquistão para a Líbia, Irão e
Coreia do Norte.
Nestas circunstâncias, o risco de acesso por elementos terroristas a tecnologia
nuclear aumenta significativamente, e não podemos deixar de ter em conta que a
liderança da al-Qaeda tem tentado, de forma sustentada, adquirir, furtar ou conceber
uma ADM.
Esta persistência na proliferação, para além dos motivos de prestígio
internacional e mesmo de economia, acontece sobretudo pela percepção de segurança
que a posse de uma arma nuclear confere, nomeadamente quanto a uma eventual
intervenção militar norte-americana. Mas a proliferação também se prende com a
crença existente entre os estados com capacidade nuclear, do atual e contínuo valor
daquele tipo de armamento, o que nos conduz ao círculo da dissuasão, incentivando
aqueles que o não possuem, a adquiri-lo.
O atual Conceito Estratégico, assinado em novembro de 2010 em Lisboa,
carateriza o ambiente estratégico contemporâneo, considerando que a área
euroatlântica se encontra em paz e que a ameaça de um ataque convencional,
embora não podendo ser ignorada, é baixa; porém a aquisição e desenvolvimento de
capacidades militares modernas em diversas regiões do mundo, com consequências
difíceis de prever para a estabilidade internacional, nomeadamente para a segurança
do espaço euroatlântico, onde se inclui a proliferação de mísseis balísticos, que
coloca uma ameaça real e crescente.
No atual complexo ambiente estratégico, a Aliança considera como principal
ameaça, que terá de enfrentar durante os próximos 10 a 15 anos, a proliferação de
ADM e o Terrorismo nuclear.
184
Mas apoiemos as nossas afirmações nas palavras do Secretário-Geral da NATO,
proferidas no verão de 2011 no Royal United Services Institute em Londres:
“As we sit here discussing missile defence, some people elsewhere in the
world are discussing missile attack” 1
1
O discuros intitulado “How NATO can defence against ballistic missile attack”, pode ser consultado na íntegra em
http://www.rusi.org/events/ref:E4CF77C90E3362/info:public/infoID:E4DF8CB5F15F42/
2
Mark Fitzpatrick (2010) considera que há evidências que o Irão procura uma capacidade de armas nucleares
devido, sobretudo, ao ambiente de secretismo em que o seu programa nuclear está envolvido; à falta de lógica
económica das suas aquisições; ao desenvolvimento tecnológico de mísseis balísticos; e, aos laços militares para
o programa e atividades relacionadas com o nuclear.
185
Como?
3
Sobre esta temática podemos desenvolver na documentação oficial da NATO, editada no seu site:
http://www.nato.int.
186
Defesa antimíssil Territorial
4
Tratámos este assunto detalhadamente no artigo: O Regresso do Nuclear e a Aliança Atlântica; In Estratégia.
Lisboa: Instituto Português da Conjuntura Estratégica, Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas e Academia
Internacional da Cultura Portuguesa, Vol. XX, p. 107-148.
5
Podemos detalhar sobre o sistema quer no site da NATO quer no site da Agência de Defesa antimíssil, norte-
americana.
187
com o Japão e a instalação de três novos “sites”, dois em terra (Roménia
em 2015 e Polónia em 2018) e um no Mediterrâneo. Nesta fase também
se terá novas capacidades de detecção e deverá cobrir todo o território e
populações dos países da NATO contra MRBM/IRBM (até 5500 km);
• Finalmente, em 2020, o sistema deverá ter capacidade de interceptar
mísseis intercontinentais (+ 5.500 km), conferindo cobertura completa do
território europeu da Aliança.
188
Este projeto ilustra bem os benefícios da Smart Defence conseguida com as
economias de escala de abordagens multinacionais, tendo a Aliança anunciado a
Interim NATO BMD Capability na Cimeira de Chicago em maio de 2012, capacidade
que permite a máxima cobertura, com os meios já disponíveis, assente sobretudo no
USS Monterey, equipado com o sistema de combate Aegis.
Na declaração de Chicago é feita uma ressalva extremamente importante,
o acordo do Conselho para um pré-arranjo de regras de comando, controlo e de
procedimentos, tendo em conta ainda as consequências da interceção compatível
com os requisitos de cobertura e proteção requeridos.
Em Chicago foi também aprovada a nova postura de Defesa e Dissuasão
da Aliança, onde vem reafirmada a importância das forças nuclares e da defesa
antímissil, sendo esta capacidade aqui tida como puramente defensiva e
complementar e não uma substituta da dissuasão nuclear. O documento sobre a
revisão da postura conclui que a NATO deve manter capacidades de largo espetro,
necessárias para a sua defesa contra ameaças à segurança das suas populações e
território, mantendo-se assim uma appropriate mix de capacidades, onde se incluem
forças convencionais.
Todo este sistema deve ser avaliado de uma forma global, inserido no âmbito
de uma estratégia de dissuasão norte-americana que engloba diversos parceiros. Na
Ásia o Japão, a Coreia do Sul e Taiwan; no Médio Oriente Israel, Arábia Saudita,
Kuwait e Turquia e, na Europa, a Alemanha, Holanda, Espanha e Grécia, todos
dotados de sistemas Patriot. De lembrar que a Espanha e Noruega possuem também
navios Aegis.
Este relacionamento não é, contudo, isento de percalços. Para que seja eficaz e
efetivo, para que seja consequente e para que beneficie ambas as Partes, terá sempre
de se basear na confiança mútuas, nos princípios da transparência e reciprocidade,
sem que tal signifique um direito de veto da Rússia sobre os destinos da NATO.
Há um acordo de princípios, negociar sobre assuntos em que se concorda discordar
(agree to disagree).
189
O MD é no entanto central em todas as negociações com a Rússia. De entre
os programas em curso no âmbito do Nato Russia Council (NRC), é de destacar a
cooperação a nível Theatre Missile Defence. Este programa tem como objectivo
conseguir a interoperabilidade entre os meios da Rússia e da NATO, com o
consequente aumento da eficácia global do sistema.
A mais recente doutrina militar russa considera o alargamento da NATO uma
das principais ameaças à sua segurança, isto em paralelo com o desenvolvimento do
eventual sistema antimíssil, perturbadores da actual estabilidade e alinhamento no
campo do nuclear, bem como da militarização do espaço e a projecção de sistemas
de armas estratégicas não nucleares6.
A Rússia reserva o direito de empregar armas nucleares em resposta à
utilização deste tipo de armas ou de qualquer outro tipo de ADM contra si ou
contra os seus Aliados, ou também de qualquer outro tipo de armas contra a
Federação, desde que a existência do Estado esteja sobre ameaça, Deixa no
entanto a “porta aberta” para negociações no que ao MD diz respeito, pois admite
a possibilidade da criação de mecanismos para a regulação e cooperação bi e
multi-lateral neste âmbito. Tudo depende do papel que lhe for atribuído e do grau
de participação no processo de decisão.
Mas porquê a preocupação e a insistência com o envolvimento russo no MD?
Com efeito, a Rússia possui capacidades de deteção, identificação e tracking de
um qualquer disparo, que seriam não só um contributo útil, como um corte nos
custos de todo o projeto MD territorial. Esta cooperação é ainda fundamental pelas
consequências associadas aos destroços que surgirão após a interceção/destruição
de um qualquer míssil cujo alvo se localize em certas regiões da Europa, uma vez
que o território russo terá a probabilidade de ser o território mais afetado7.
Os EUA referem e forçam mesmo no seio da Aliança esta eventual cooperação
com os russos na partilha de informação e na área dos radares, aproveitando a
sua oferta, em 2007, de utilização das instalações em Karbala (Azerbeijão),
e, em Armavir (Rússia), devido à sua capacidade para uma deteção precoce de
lançamentos a partir do Irão.
Esta cooperação deve assentar numa relação de confiança, no acordo de
princípios e objetivos políticos, mas as Autoridades russas continuam a mostrar
6
Na doutrina vem expresso :”(…) The main external military dangers are: a) the desire to endow the force
potential of the North Atlantic Treaty Organization (NATO) with global functions carried out in violation
of the norms of international law and to move the military infrastructure of NATO member countries closer
to the borders of Russian Federation, including by expandig the bloc (…) c) the deployment (buildup) of
troop contingents of foreign states (groups of states) on the territories of states contiguous with the Russian
Federation and its allies and also in adjacent waters (…)”. Podemos detalhar em http://russianforces.org/
blog/2010/02/new_russian_military_doctrine.shtml.
7
Podemos detalhar sobre esta temática no artigo do autor: O Regresso do Nuclear e a Aliança Atlântica.
190
preocupação quanto às fases III e IV do sistema e, desde março de 2011 que
pretendem obter garantias legais que os futuros intercetores não afetam o equilíbrio
estratégico e que o sistema não está dirigido para a Rússia. Recordamos que na
perceção da ameaça, a Rússia não equaciona o Irão como capaz de desenvolver
misseis intercontinentais, precisos, num futuro previsível, e que o único ator com
essa capacidade na região é a própria Rússia.
8
O Secretário Geral, Anders Rasmussen enfatizava na Chatam House em Londres a 4 de julho de 2012: “(…) But
I have three points to make. Firstly, we have explained to the Russians and we have had experts on both sides to
meet. We have explained to the Russians that our system is not designed to attack Russia or undermine Russian
deterrence policies. So technically it’s not designed to threaten Russia. Secondly, politically of course we don’t
have any intention to attack Russia. Actually 15 years ago we signed a joint document called The Founding Act.
In that Founding Act, Russia and NATO declared that we will not use force against each other. We stay commit-
ted to that declaration; I hope the Russians do the same. We are prepared to reiterate that political commitment.
And thirdly we have suggested that the best way for Russia to see with their own eyes that our system is not
directed against Russia would be to engage in practical cooperation. In concrete terms, we have suggested the
establishment of two jointly staffed centres that could create a framework for exchange of data, preparation of
joint exercises, the elaboration of joint threat analyses, etc., so they could see with their own eyes that our system
is not directed against Russia. Well so far we have not reached a conclusion. The dialogue will continue and I
hope at a certain stage we will reach an agreement (...)”. Para mais detalhes consultar http://www.nato.int/cps/
en/natolive/opinions_88886.htm
191
Missile Data Fusion Centre), e outro para negociações e trabalho de estado-maior
(Joint Planning Operations Centre). Estes centros permitirão a obtenção de um
panorama operacional comum. A informação fluirá para o Centro através dos
sensores da NATO e da Rússia.
O conceito apresentado mantém dois sistemas independentes, protegendo
NATO o território da Aliança e a Rússia o seu território; esta independência de
sistemas permite que o ciclo de controlo de disparo fique também ele independente
do centro conjunto de processamento de dados. Na Cimeira em Chicago foi
novamente enfatizada a proposta de um regime transparente, baseado na troca
regular de informação acerca das capacidades de defesa antimíssil da Aliança e
da Rússia. Uma cooperação assente nestas bases é entendida pela NATO como a
melhor forma de a Rússia ter assim as suas garantias de segurança relativamente
aos seus planos e capacidades.
Dois anos após a Cimeira de Lisboa, é possível testemunhar evoluções nas
posições russas em relação ao desafio lançado pela NATO. Da reunião do NRC
ocorrido a quatro de julho de 2011, em Sochi, o Secretário-Geral da Aliança
reiterou na conferência de imprensa, o empenhamento da Aliança e da Rússia no
estabelecimento de um ambiente de confiança recíproca em prol da segurança
internacional, considerando que esta postura dará um novo impulso ao compromisso
estabelecido pelo programa de defesa antimíssil da Aliança. Rogosin, embora não
ocultasse ainda algum ceticismo, reconhecia que o sistema antimíssil da Aliança é
possível de concretizar com a Rússia ou contra a Rússia.
Um ano volvido sobre Sochi, em Chicago, foi reafirmado o empenho
da Aliança em se manter ligado a estados terceiros, numa base caso a caso, de
forma a incrementar a transparência, confiança e a incrementar a efetividade da
defesa antimíssil. Na declaração final da Cimeira é enfatizada a manutenção do
empenho da cooperação com a Rússia, avançando formalmente com as mesmas
propostas concretas de cooperação e de garantias de que esta capacidade não mina
a estabilidade estratégica e que esta também não se dirige à Rússia, mas que se
destina sim a ameaças hipotéticas que possam emergir fora da área euro-atlântica,
encorajando ainda declaração, a continuação do diálogo com o propósito de se
alcançar um acordo de cooperação.
O link transatlântico
192
negação. Um sistema de defesa antimíssil efectivo pode ser complementar e
eventualmente, a seu tempo, o substituto da nuclear sharing, como meio de manter
os EUA empenhados na Defesa Europeia; acresce que alguns Estados-Membro,
não sentirão a necessidade de desenvolver os seus próprios meios nucleares, e
ainda, este sistema não manterá na Aliança o estatuto diferenciador entre países
nucleares e não nucleares.
Reflexões Finais
193
Bibliografia e outras fontes:
194
DA GUERRA DE ÁFRICA 1960-1975
Análise Estratégica e Militar
195
196
DA GUERRA DE ÁFRICA 1960-1975
Nota de Agradecimento
A o General José Alberto Loureiro dos Santos, o militar português a quem todo
o cidadão nacional reconhece saber estratégico de professor; o cidadão que
todo o militar tem como exemplo de comandante.
Página de Rosto
197
Portugal conduziu a guerra de forma a minimizar o seu impacto nas estruturas
sociais portuguesas e a manter um ritmo lento e de baixa intensidade na sua
condução, disseminando o mais possível o encargo pelos territórios africanos. A
estratégia de contrassubversão adoptada assentou nas clássicas formas de coacção:
diplomática, de forma a garantir a cooperação ou a acomodação dos aliados
tradicionais e conter a oposição dos países vistos como ameaça política: económica,
para melhorar as condições de vida das populações autóctones, fazendo-as sentir-se
parte integrante do Portugal d’áquem e d’álem mar; psicológica, que se destinava
a obter apoio das populações e a desmoralizar o inimigo, fortalecendo o moral
das próprias forças; militar, que visava manter a ordem pública nas províncias,
anulando acções subversivas, e garantir a integridade territorial, combatendo as
guerrilhas africanas.
O texto analisa a Estratégia Militar desenvolvida pelo Estado Português na
Guerra de África, assente em dois pontos: em que moldes foi reorganizado o aparelho
militar; qual foi a metodologia do emprego de forças. Assim, no âmbito da estratégia
estrutural (composição, organização e articulação dos meios), procura-se compreender
a amplitude da reorganização militar portuguesa para fazer face ao conflito. A análise
da metodologia do emprego de forças releva da estratégia operacional.
198
Também a 2ª Guerra Mundial contribuiu para essa cooperação. Consciente
que assegurar a neutralidade passava por igual pressuposto na política espanhola,
Salazar procurou obter garantias similares de Franco. A chave do sucesso assentou
na intermediação da Inglaterra e na assinatura do Pacto Ibérico de 1940, onde a
neutralidade e a não-agressão mútuas ficaram vincadas.
A criação da OTAN foi o terceiro acontecimento que influiu na relação entre
os países ibéricos. Devido a razões geopolíticas de natureza funcional centradas
nas ilhas do Atlântico, Portugal foi convidado para membro fundador da Aliança
Atlântica, em 1949, o mesmo não acontecendo com a Espanha, situação que
esfriou as relações na Península. Contudo, a Salazar não interessava o isolamento
da Espanha, pelo que procurou conciliar os princípios e objectivos da Aliança
com os do Pacto Ibérico; inviabilizada a intenção de inserir a Espanha na Aliança,
obteve-se um acordo bilateral com os Estados Unidos, em 1953, incluindo-se,
assim, Madrid no sistema de defesa ocidental.
Quando Portugal aderiu à OTAN, a estrutura militar do País assentava num
Exército de massas resultante da reorganização de 1937, situação contrária às
intenções da Aliança, que pretendia que “Portugal contribuísse para a defesa
euro-atlântica com uma pequena força aero-naval.1 A verdade é que a NATO
acabou por influir nas prioridades estratégicas para a utilização das forças
militares e na mentalidade dos oficiais. Militarmente, as prioridades foram
fixadas, por esta ordem, na defesa de Portugal Continental (ilhas atlânticas
incluídas), na contribuição para a defesa da Europa, na reserva geral e na defesa
nos Pirenéus2. Quanto à mentalidade castrense, a cooperação inter oficiais
na esfera da Aliança fez surgir “no final dos anos 50 uma geração NATO”3,
geração que originou clivagens dentro das Forças Armadas e entre estas e o
poder político, como aconteceu com a campanha presidencial de Humberto
Delgado, em 1958, e a tentativa de golpe de Estado do General Botelho Moniz,
em 1961, para depois reverter num «cerrar fileiras» entre o poder político e a
componente militar, que a Guerra do Ultramar cimentou. O facto de a Aliança
Atlântica não incluir as possessões a Sul do Trópico de Câncer, obrigou ao
desenvolvimento de uma estratégia nacional específica para o Ultramar. Pelo
que se infere, o dispositivo geopolítico do País tornou-se claramente Atlântico
que, associada ao facto da sua base geoeconómica estar em África, originou
um afastamento estratégico do continente europeu, quase cingido aos contactos
bilaterais com a Espanha.
1
António Silva Ribeiro, Organização Superior de Defesa Nacional. Uma Visão Estratégica (1640-2002), Lisboa,
Prefácio, 2004.
2
Pedro Cardoso, “Evolução do Conceito Estratégico Nacional no Século XX”, in Estratégia, Vol. IV, Lisboa,
Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas.
3
António José Telo, Portugal e a NATO. O Reencontro da Tradição Atlântica, Lisboa, Edição Cosmos, 2006.
199
2. Na Antecâmara da Guerra
4
Destacam-se um conjunto de factores que o favoreceram: quebra da supremacia estratégica global de uma Europa
devastada; a Carta das Nações Unidas, que advoga o direito à autodeterminação dos povos; a descolonização
asiática e o “patrocínio” da Conferência de Bandung, que motiva o recurso ao uso da força armada para a
libertação africana; o confronto bipolar no âmbito da guerra fria, pelo qual a URSS e os EUA se substituem às
potências europeias em África.
5
Em 1960, dezoito países africanos declararam a independência, num processo que só terminou em 1994 quando
a Eritreia se separou da Etiópia.
6
Em 1963, quando o PAIGC sublevou a Guiné, Salazar ainda ameaçou os revoltosos anunciando para o Ultramar
três tomadas de posição possíveis: “a mais estreita e amigável colaboração, se julgarem útil; a maior correcção
se formos dispensados de colaborar; a defesa dos territórios que constituem Portugal até ao limite dos nossos
elementos humanos e dos nossos recursos, se entenderem por bem converterem as suas ameaças em actos de
guerra e trazê-la aos nossos territórios”: Oliveira Salazar, Discursos e Notas Políticas, Vol. 6, Coimbra, Editora
Coimbra, 1967.
7
Não obstante, os EUA demitiam-se de debater formalmente, no seio da Aliança, questões relativas à política
africana portuguesa, atendendo que o bloco afro-asiático presente na ONU se aproximava dos interesses sovié-
ticos. Acresce que tanto a França como a Inglaterra receavam uma retracção de Portugal em África e a inerente
ingerência dos EUA na África Austral.
8
António Silva Ribeiro, ob. cit.
200
como uma razão de Estado: “Sem ela, seríamos uma pequena nação; com ela
somos um grande país”, fundamentava Marcello Caetano9. Essa obsessão com
a «Pátria Negra» justificava-se, de acordo com Salazar, com a trilogia geografia,
heroísmo e comércio10.
Desenvolveram-se, então, mediadas estruturais de Fomento destinadas
a melhorar o nível de vida das populações, acelerar o povoamento e atrair aos
territórios ultramarinos os grandes capitais e as indústrias. As questões sócio-
económicas sobrepunham-se a qualquer acto militar ostensivo de imposição da
soberania
É a partir de 1958 que o Regime assume que um conflito no Ultramar era
inevitável, equacionando uma inversão estratégica, ou seja, dar prioridade a África
em detrimento da OTAN, da Europa e da Espanha.
No entanto, as opiniões divergiam entre os que argumentavam que a defesa
dos territórios portugueses passava por uma maior aproximação à OTAN e os que
entendiam que a reorganização se devia fazer no sentido de privilegiar a defesa dos
territórios ultramarinos. Efectivamente, em 1959, enquanto o Ministro da Defesa,
General Botelho Moniz, ainda considerava que no contexto de guerra fria a Europa
constituía o teatro a privilegiar, o Ministro da Marinha, Almirante Quintanilha Dias,
defendia a necessidade de mais navios de “alto mar” e o Subsecretário da Aeronáutica,
General Kaúlza de Arriaga, pedia mais meios aéreos, Salazar afirmava que “o certo
é que temos uma guerra no Ultramar e ela será de guerrilhas. Para isso, temos que
estar preparados”. Enquanto isso, o Ministro do Exército, Brigadeiro Afonso de
Almeida Fernandes, aconselhava numa directiva datada de 29 de Abril: “a urgente
disponibilidade de unidades terrestres que, pela sua organização, apetrechamento
e preparação possam ser empregadas na execução de operações de tipo especial:
operações de segurança interna de contra-subversão e de contra-guerrilha”11, para
actuarem na Guiné, em Angola e em Moçambique.
Em 25 de Janeiro de 1960, a Directiva do General CEMGFA provocou
uma alteração profunda nos objectivos estratégicos nacionais, apontando para a
preparação de uma guerra no Ultramar, face às seguintes ameaças: acção insidiosa
dos países vizinhos; guerra subversiva conduzida no interior dos territórios;
sublevação12. Depois, a 25 de Novembro desse ano, o Conselho Superior de Defesa
Nacional procedeu a uma readaptação estratégica do emprego de forças: o esforço
militar da Europa foi transferido para África; reduziu-se a cooperação com a
Espanha na defesa peninsular nos Pirenéus a uma atitude mais política que militar;
9
Valentim Alexandre, “O Império Africano (Séculos XIX-XX) - As Linhas gerais”, in O Império Africano. Séculos
XIX e XX, Lisboa, Edições Colibri, Setembro de 2000.
10
P. John Cann, Contra-Insurreição em África 1961-1974. O Modo Português de Fazer a Guerra, S. Pedro do
Estoril, Atena, 1998.
11
António Silva Ribeiro, ob. cit.
12
Francisco Proença Garcia, Análise Global de uma Guerra. Moçambique 1964-1974, Lisboa, Prefácio, 2003.
201
foi revisto o plano de defesa interno do Território Nacional e os compromissos com
a NATO sofreram novos ajustamentos13.
1961 é o ano horribilis de Oliveira Salazar: em Janeiro/Fevereiro desenvolve-se
a Operação Dulcineia e o sequestro do paquete Santa Maria, pelo Capitão Henrique
Galvão; em Fevereiro, o assalto à prisão, postos de polícias e de alfândega em
Luanda por activistas negros; em 15-16 de Março, a UPA acomete as fazendas no
Norte de Angola chacinando brancos e negros; em Abril, ocorre a tentativa de golpe
militar pensada pelo Ministro da Defesa, General Botelho Moniz; em Dezembro, a
União Indiana ataca as possessões portuguesas de Goa, Damão e Diu.
Nesse ano, o Estado Novo assumiu a inevitabilidade de uma guerra nos
domínios africanos, com a convicção que estava em causa a integridade do
território, a preservação do Regime e a sobrevivência do próprio Estado, objectivos
vitais pelos quais se predispôs a combater. Acontece que, em 1960, o estado de
prontidão das Forças Armadas era preocupante. Para além das dificuldades de
ordem financeira, impunha-se uma reafectação de meios (humanos e técnicos),
um novo conceito de instrução e treino e uma harmonização de mentalidades no
seio das Forças Armadas, necessários para uma remodelação profunda do aparelho
militar adequável à nova tipologia de conflito.
Portanto, a partir de 1961 a “geração NATO”, que pensou a guerra de
contrassubversão e adequou o aparelho militar, cedia o passo à “geração MATO”14,
que a sustentou durante treze anos.
De facto, os ataques da UPA aos fazendeiros do Norte de Angola,
obrigam o Estado Novo a adoptar medidas. Enquanto na metrópole as
notícias eram silenciadas, em Angola o terror tomava conta das populações
e a insegurança sentia-se pela primeira vez. Quando, a 1 de Maio desse ano,
um corpo expedicionário desfila em Luanda a guerra seguia o curso dos
acontecimentos precedentes15. Uma guerra que duraria 13 anos em Angola,
11 anos na Guiné, depois de o Partido Africano da Independência da Guiné e
Cabo Verde (PAIGC) pegar declaradamente em armas em 1963 16, e 10 anos em
13
Uma prática constante ao longo da década de 1950: fixação de compromissos (1951-1953); definição de compro-
missos (1954-1956); consolidação de compromissos (1957-1959); alteração de compromissos (1959-1961): Silva
Ribeiro, ob. cit.
14
«Da NATO para o Mato» é um feliz trocadilho da autoria de João Vieira Borges, “Da Segunda Guerra Mundial
à Guerra Colonial”, in O Pensamento Estratégico Nacional, Lisboa, Edições Cosmos/IDN, 2006.
15
Em Angola, a reocupação de toda a região foi conseguida através do empenhamento de forças portuguesas em
operações militares de grande envergadura, as quais, apesar do êxito inicial, não puderam impedir o progressivo
alastramento das acções de guerrilha a outras regiões de Angola. Estas acções foram da iniciativa não só da
UPA, mas também, e sobretudo, do MPLA e, mais tarde, da UNITA.
16
Na Guiné, as acções de guerrilha foram iniciadas pelo Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo
Verde (PAIGC) em Janeiro de 1963, com um ataque ao quartel de Tite, a Sul de Bissau. As operações estende-
ram-se rapidamente a quase todo o território, em contínuo crescendo de intensidade, que exigiu o empenhamen-
to de efectivos cada vez mais numerosos.
202
Moçambique, cabendo à Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) o
ónus da insurreição, a partir de 196417.
A instrução militar passou, então, a incorporar as técnicas de contra-guerrilha,
com O Exército na Guerra Subversiva a servir de manual do treino militar, enquanto
um conjunto de oficiais procedeu à recolha de ensinamentos e lições aprendidas em
conflitos similares: no Quénia aprendeu-se a recrutar nas forças adversárias; na
Malásia a retirar apoio da população e a garantir mobilidade; na Argélia, assimilou-
se as valências das unidades de quadrícula e de intervenção, extrair as vantagens
de emprego dos meios aéreos e desenvolver um eficaz sistema de informações; no
Vietname, a captação das populações foi o ensinamento recolhido18.
3. Reorganização Militar
Foram umas Forças Armadas de massas, com elevados efectivos e baixo nível
de equipamentos e armamentos, que combateu nos três teatros de operações em
África19. As limitações de ordem política, financeira e tecnológica impediram a
constituição de forças mais adequadas ao cumprimento das missões, como seria
o caso, no Exército, de unidades de cavalaria ligeira, com viaturas blindadas para
abertura de itinerários e escoltas a colunas e, na Força Aérea, aeronaves de transporte
e de combate modernos e adequados à tipologia do conflito.
Quando a guerra estalou, as forças portuguesas em Angola contavam com 6
500 militares, dos quais 1500 eram europeus e 5 000 recrutados localmente, numa
altura em que as Forças Armadas Portuguesas contavam 79 000 efectivos, dos
quais 58 000 pertenciam ao Exército, 8 500 à Marinha e 12 500 à Força Aérea20.
Espalhavam-se por toda a província e não estavam preparados para repelir uma
subversão em grande escala. A máquina de guerra portuguesa foi incapaz de levar
para a região efectivos em número suficiente até 1 de Maio de 1961, e demorou
até 13 de Junho para reocupar o primeiro e pequeno posto administrativo de
Lucunga21. Contudo, perto do final de 1961, Portugal movera 40 422 das suas
tropas europeias para as três colónias e, no final do conflito, em 1974, Portugal
tinha 217 000 homens em armas, dos quais 149 000 se localizavam nos três palcos
africanos22.
17
Em Moçambique, a FRELIMO executou a primeira acção em Setembro de 1964, com um ataque à localidade de
Chai, no distrito de Cabo Delgado, estendendo depois a sua acção ao Niassa, a Tete e ao centro do território.
18
P. John Cann, ob. cit.
19
Aniceto Afonso e Carlos Matos Gomes, Guerra Colonial. Angola - Guiné – Moçambique, Lisboa, Diário de
Notícias, 1995.
20
P. John Cann, ob. cit.
21
Comissão para o Estudo das Campanhas de África, Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-
1974), 2º Vol., Lisboa, Estado-Maior do Exército, 2ª edição, 1998.
22
P. John Cann, ob. cit.
203
Porém, os problemas com o recrutamento existiram e foram graves,
principalmente ao nível dos quadros. À míngua de pessoal do quadro permanente,
desgastado por sucessivas comissões, o governo reforçou o quadro de complemento
para o exercício de funções e a execução de tarefas para as quais não tinham
suficiente qualificação23.
Em 1974 a situação era extremamente preocupante, pois nas fases de
instrução básica e especial todos os quadros eram, na prática, oficiais e sargentos
milicianos. E, assim, com o decorrer das campanhas, foi evidente a degradação da
preparação técnica e da formação moral na instrução ministrada na Metrópole, com
consequências ao nível da eficácia das unidades. Se o início do conflito coincidiu
com um período de entendimento entre o Poder Político e as Forças Armadas, a sua
continuação e as exigências crescentes da afectação de recursos humanos para o
«alimentar» preocupou as chefias. O voluntarismo inicial dos oficiais e sargentos,
a quem eram permitidas comissões de quatro anos seguidos ou seis alternados, deu
lugar à imposição, por manifesto cansaço do Ultramar24.
Quanto às praças, que eram obrigadas a uma comissão de dois anos, o moral
começou a diminuir, principalmente quando as rendições passaram a sofrer atrasos
e o número de refractários cresceu.
A solução foi o recuso ao recrutamento localizado, a denominada
africanização dos efectivos. Inicialmente, a finalidade destes efectivos era a
autodefesa das populações e a actuação como guias ou pisteiros. Mas rapidamente
esta norma foi subvertida, criando-se unidades que se tornaram verdadeiras
forças operacionais. Para se ficar com uma ideia do crescimento destas forças de
segurança, milícias e organizações paramilitares, no início da guerra, em 1961,
a percentagem média das topas africanas no quadro das tropas metropolitanas
era da ordem dos 20,9%, atingindo os 38,7% em 1974, com uma distribuição
desigual: triplicou em Angola (de 14,9% para 42,4%), duplicou em Moçambique
(26,8% para 53,6%) e manteve-se praticamente inalterável na Guiné-Bissau
(cerca de 20%).25.
23
Por razões de ordem financeira, tanto Salazar como Caetano não reforçaram os quadros, como exigia a situação,
argumentando que “os quadros eram duradouros e a guerra temporária”:. Luís salgado de Matos, “A Orgânica
das Forças Armadas Portuguesas”, in Nova História Militar de Portugal, Vol. 4, Rio de Mouro, Círculo de
Leitores, 2004.
24
Luís Salgado de Matos, ob. cit.
25
Comissão para o Estudo das Campanhas de África; Nuno Severiano Teixeira, “Portugal e as Guerras de Desco-
lonização”, Nova História Militar de Portugal, ob. cit.
Foi em 1966, em Angola, que surgiram as primeiras Tropas Especiais (TE’s), constituídas por antigos guerri-
lheiros capturados ou apresentados às tropas portuguesas. Em 1968, formaram-se também em Angola os Grupos
Especiais (GE’s), que estavam vocacionados para actuarem nas áreas do seu nascimento ou da sua actuação.
Havia ainda outros grupos como os Flechas, os Fiéis ou os Leais: os Flechas, que chegaram a ser uma dúzia
de grupos, eram organizados, instruídos e controlados pela PIDE/DGS; os Fiéis, organizados em companhias
de caçadores, foram recrutados entre os soldados da gendarmerie catanguesa que, a partir de 1967, abando-
naram o território do Congo/Zaire, juntamente com os mercenários brancos; os Leais formavam apenas uma
204
Em 1959, a Marinha interrompeu 40 anos de presença em África cingida
a serviços que se ocupavam do Fomento Marítimo. Tomaram-se, então, um
conjunto de medidas que permitissem a defesa das linhas de comunicação fluviais
e lacustres, com o duplo objectivo de garantir a sua utilização segura e de exercer
uma acção de contra-penetração, operando com as esquadrilhas de lanchas de
fiscalização e de desembarque26. Paralelamente, competia-lhe desenvolver
o esforço logístico mediante a ligação teatro de operações – zona do interior
e apoiar as diversas unidades das forças militares e de apoio às populações.
Nesse sentido, instituíram-se os Comandos Navais (Angola, Moçambique), que
visavam assegurar a eficácia a nível regional e a sua correcta ligação aos centros
de decisão e aos pontos de apoio da Metrópole, foram criados os Comandos de
Defesa Marítimos (Cabo Verde e Guiné) subordinados aos Comandos Navais e
organizaram-se unidades navais, de fuzileiros e de mergulhadores sapadores.
Se, à Marinha, se deveu o controlo das vias fluviais e apoio logístico e operacional
efectuado com as esquadrilhas de lanchas de fiscalização e de desembarque,
operando, principalmente, no lago Niassa e no rio Zambeze (Moçambique), nos
rios do Leste, rio Zaire e Chiloango (Angola) e em toda a Guiné, a actuação da
Força Aérea revelou-se imprescindível para a conduta da actividade operacional das
forças terrestres e da sua sustentação logística, apesar de a maioria das aeronaves
estarem tecnicamente ultrapassadas, com excepção dos helicópteros e dos meios de
transporte estratégicos B-707, adquiridos já na fase terminal da guerra.
Assim, procedeu-se ao levantamento de infra-estruturas, concretamente,
Bases Aéreas, Aeródromos Base e Aeródromos de Manobra. Nas Bases Aéreas
ficavam sedeados os meios com capacidade de emprego a nível do teatro de
operações, funcionando ainda como terminais de transporte aéreo estratégico que
asseguravam o funcionamento das linhas de abastecimento logístico de natureza
urgente a partir de Lisboa. Os Aeródromos Base estavam dotados, também, com
meios aéreos e capacidade de manobra e abastecimento, enquanto os Aeródromos
de Manobra, que não tinham meios aéreos atribuídos em permanência, constituíam
uma malha em torno dos Aeródromos de Base vocacionados para apoio a
operações prolongadas27.
Ainda antes do início do conflito, deu-se prioridade de planeamento à missão
de transporte, constituindo o Noratlas o avião vocacionado para essa função mas,
companhia, constituída por refugiados zambianos opositores ao regime do Presidente Keneth Kaunda, que ac-
tuavam no saliente do Cazombo. Em Moçambique formaram-se alguns GE’s tendo, em 1971, sido criados os
Grupos Especiais Pára-quedistas (GEP’s). Na Guiné as forças auxiliares eram todas chamadas milícias e, tal
como nos outros teatros de operações, verdadeiras unidades operacionais: John Cann, ob. cit.
26
António Emílio Sachetti, “A acção da Armada nas Campanhas de África”, in Estudos Sobre as Campanhas de
África (1961-1974), Lisboa, Edições Atena, 2000.
27
Aurélio B. Aleixo Corbal, “O vector aéreo nas campanhas de África. Análise conceptual e estrutural”, in Estudos
Sobre as Campanhas de África (1961-1974), Lisboa, Edições Atena, 2000.
205
de facto, alguns tipos de aeronaves cumpriram com grande dificuldade as missões
para as quais tinham sido concebidas. Como exemplo, temos o T-6, um avião de
instrução utilizado sem grande sucesso pelos franceses na Argélia, o F-84, avião
caça-bombardeiro já abatido e que foi, entretanto, recuperado, o B-26, avião
utilizado na 2ª Guerra Mundial. O próprio Fiat G-91, avião de construção mais
recente, estava no limiar de ser considerado tecnicamente obsoleto. Apesar dessa
constatação, a chefia da Força Aérea não conseguiu durante os 13 anos de guerra
ver aprovado qualquer projecto de modernização, que previa a aquisição do Cessna
e do Aviocar para melhorar capacidades de apoio logístico às forças terrestres28.
A ausência de oposição aérea e a reduzida expressão inicial da ameaça anti-
aérea permitiram que a Força Aérea cobrisse praticamente todo o espectro de
modalidades de acção aéreas de reconhecimento, fogo e transporte29. Entretanto, a
guerrilha evolui em poder anti-aéreo e adquiriu mísseis terra-ar (strella), fazendo
aumentar, gradualmente, o número de aeronaves abatidas, particularmente na
Guiné. Consequentemente, algumas missões essenciais para a manobra das forças
terrestres, como reconhecimentos visuais e PVC, deixam de se fazer nos moldes
habituais, afectando também o transporte do correio e a sustentação logística. Apesar
das limitações do seu raio de acção, o Fiat G-91 é a única aeronave com poder de
fogo e flexibilidade suficientes para atacar anti-aéreas, constituindo os helicópteros
alouette as medidas anti-míssil, apesar de ser vulnerável às armas anti-aéreas e
ligeiras, principalmente durante as manobras de aproximação e de descolagem.
Seja como for, a adopção de medidas de protecção contra os mísseis diminuíram
as vulnerabilidades das aeronaves e aumentaram a confiança dos pilotos, não
deixando no entanto de afectar para sempre a liberdade de actuação da Força Aérea,
colocando severas restrições a alguns tipos de operações efectuadas.
Mas a guerra desenrolou-se, essencialmente, em terra. Assim, foi sobre o
Exército que recaiu o esforço de guerra, cabendo às forças navais e aéreas apoiar
as operações terrestres. Nesse sentido, acabou-se com a diferenciação entre
Exército Metropolitano e Exército Colonial (que vinha do tempo das Campanhas
de Ocupação Africanas, no século XIX) e atribuiu-se ao Exército a missão
abrangente de “assegurar a defesa terrestre do território nacional metropolitano
e ultramarino contra qualquer agressão externa e interna” 30. Foi criada a 3ª
Região Militar (Angola, que incluía também S. Tomé e Príncipe), a 4ª Região
Militar (Moçambique) e 7 Comandos Territoriais Independentes (onde se incluía a
Guiné). Determinou-se a criação de «unidades especiais de intervenção imediata»,
de modo que, organizadas, apetrechadas e preparadas, pudessem ser empregues
na execução de operações de segurança interna de contra-subversão e de contra-
guerrilha. Assim, em 1959, criou-se o Centro de Instrução de Operações Especiais,
28
Aurélio B. Aleixo Corbal, ob. cit.
29
Idem.
30
Decreto-Lei nº 42564, de 7 de Outubro de 1959.
206
de onde saíram as Companhias de Caçadores Especiais31. Em 1962, foi retomada
a ideia de se constituírem unidades especiais de contra-guerrilha, ministrando-
se instrução intensiva a grupos de combate e a alguns batalhões de quadrícula,
que foram empenhados como grupos de intervenção. Esta experiência permitiu a
criação do Centro de Instrução de Comandos (6 de Junho de 1965), que deu provas
do seu valor no conjunto dos teatros de operações.
31
Apesar da meritória capacidade operacional, as Companhias de Caçadores Especiais acabaram por ser extintas,
decidindo-se, em determinada altura, “não há Caçadores Especiais, são todos normais”: As razões prendem-se
com o “aligeirar” dos critérios de selecção das praças, a diminuição do número de militares do quadro perma-
nente e a restrição do tempo de formação: António S. Soares Carneiro, “As transformações Operadas nas Forças
Armadas para Responder às Exigências do Conflito em África”, in Estudos Sobre as Campanhas de África
(1961-1974), ob. cit.
32
Documento Política Militar Nacional – Elementos para a sua Definição (Abril de 1959) e Estado-Maior do
Exército, O Exército na Guerra Subversiva, 1963.
33
Francisco Proença Garcia, ob. cit.
34
António Silva Ribeiro, ob. cit.
35
José Freire Antunes, A Guerra de África 1961-1974, vol. I, Círculo de Leitores, 1995.
36
Comissão para o Estudo das Campanhas de África, ob. cit.
207
o apoio à guerrilha e, por outro lado, que procedesse à cativação dos elementos
afectos à guerrilha, com vista aos seu recrutamento e posterior aplicação contra a
mesma guerrilha; a existência de forças de intervenção com elevada mobilidade,
de forma a actuar em tempo oportuno contra formações inimigas; a importância de
um sistema de informações integrado e coordenado para permitir o aproveitamento
adequado das notícias recolhidas.
Portanto, a manobra militar actuava punitivamente sobre os grupos armados
que prejudicassem a manobra sócio-económica, expulsando-os da sua zona
de esforço, por meio de acções de retaliação punitivas, ao mesmo tempo que
procurava aliciar alguns dos seus elementos para o lado da autoridade constituída37.
Assim, a reorganização territorial fixou a divisão em Comandos Territoriais, aos
quais se sobrepunham uma quadrícula que tinha o Batalhão como unidade base.
Porém, as unidades de quadrícula ficavam, tendencialmente, imobilizadas na área
dos aquartelamentos, deixando a maioria das vezes a iniciativa das actuações
operacionais aos elementos das forças de intervenção, mais aptas para operações
de contra-guerrilha, ocupação de áreas sensíveis e escoltas.
Porque a subversão procura apoiar-se no estado de subdesenvolvimento das
populações, a doutrina de contrassubversão aponta como objectivo fundamental
da guerra a conquista da adesão das populações. Ou seja, o estrato social autóctone
apresenta-se como centro de gravidade estratégico da guerra. Nas regiões afectadas
pela subversão, os negros passaram a ser as principais vítimas, razão pela qual as
populações foram reagrupadas nos denominados aldeamentos estratégicos. Eram
projectados com uma dimensão que tornasse possível a autodefesa e justificasse
a implantação de equipamentos de interesse colectivo correspondentes aos seus
anseios e interesses, onde o apoio sanitário, a promoção social, a manutenção da
rotina quotidiana e a segurança estivessem garantidos.
Face às precárias condições de transitabilidade existentes, dizia-se que em
África a subversão começava onde acabava a via de comunicação. Estas tinham
uma grande importância de natureza militar, pela mobilidade que conferiam
às tropas nos movimentos tácticos e logísticos, bem como pelas facilidades que
podiam conceder à aproximação das zonas de refúgio do inimigo. A importância
era ainda maior no desenvolvimento económico dos territórios e na promoção das
populações.
Num continente em processo de descolonização, para Portugal os maiores
problemas de controlo da subversão encontravam-se no seio de etnias cujas áreas
de implantação se estendiam para o interior de territórios africanos recentemente
independentes38. Concretamente, países como o Senegal e a Guiné Conakri no caso
da Guiné-Bissau, o Congo Belga e a Zâmbia relativamente a Angola, a Zâmbia e
37
Francisco Proença Garcia, ob. cit.
38
João José Brandão Ferreira, Em Nome da Pátria. Portugal, o Ultramar e a Guerra Justa, Alfragide, Publicações
Dom Quixote, 2009.
208
Tanzânia para Moçambique apoiavam os movimentos de libertação, autorizando
a instalação nos seus territórios de campos de instrução, de bases operacionais
e logísticas e, também, a circulação de materiais, de pessoas e de guerrilheiros.
Situação que criou sérias dificuldades às forças portuguesas, na medida em que se
tornava difícil evitar a sua entrada no território e, uma vez atravessada a fronteira,
localizá-los.
Operando a partir de uma Base e porque os efectivos eram reduzidos39, a
guerrilha exigia dos combatentes grande rusticidade e mobilidade, características
que fundamentavam a sua adaptação aos terrenos difíceis, que conheciam melhor
do que as forças regulares, mais pesadas e mais lentas40. Como norma, as guerrilhas
evitavam empenhar-se decisivamente com as tropas regulares, privilegiando a
manobra de lassidão, materializada em emboscadas a colunas militares, ataques a
aquartelamentos e utilização de minas/armadilhas nos itinerários. No entanto, os
guerrilheiros africanos tinham vulnerabilidades, porquanto os laços estabelecidos
pela consciência tribal criavam fracturas entre eles. Estas diferenças e os
antagonismos étnicos, as diferenças culturais e ideológicas e, até, as disputas entre
as chefias, minaram-lhes, em alguns casos, a disciplina e o moral, diminuindo-
lhes a eficácia.
Em escassos meses, os efectivos militares portugueses multiplicaram-se e
desdobraram-se por inúmeras e distantes instalações, num teatro de operações com
uma extensa linha de comunicações de onde tinham que receber quase todos os tipos
de recursos necessários. Com algumas carências de determinados abastecimentos
e com reabastecimentos nem sempre oportunos, o dispositivo logístico foi-se
desenvolvendo e adaptando à manobra operacional, baseando-se numa logística de
serviços. Numa guerra subversiva como a que Portugal suportou, o apoio logístico
apresenta características próprias, a saber: descentralização e dispersão dos órgãos
logísticos, com a consequente vulnerabilidade, bem como das comunicações que
a servem; máxima exploração dos recursos locais; necessidade de estabelecer
órgãos polivalentes para o reabastecimento; a carência dos transportes terrestres,
a fraca qualidade das vias existentes e a sua extensão conferem importância
acrescida ao transporte aéreo; a evacuação dos indisponíveis tem que ser realizada
quase exclusivamente por via aérea; a conservação do material adquire a maior
importância; os serviços técnicos são consideravelmente desenvolvidos41. A ligação
39
Em Angola, a FNLA tinha uma força de 6 200 homens com base no Congo Belga, o MPLA estabeleceu-se em
Brazaville (na Zâmbia, a partir de 1966), contando 4700 homens, e a UNITA contava apenas 300-500 guerrilhei-
ros. Em Moçambique, a FRELIMO contava com 9600 guerrilheiros e, na Guiné, o PAIGC tinha 6500 homens em
armas, em 1970.
40
Aniceto Afonso e Carlos Matos Gomes, ob. cit.
41
Adelino Rodrigues Coelho, “O desenvolvimento da Estratégia Militar. A organização logística de apoio aos
teatros de operações – o caso de Moçambique”, in Estudos Sobre as Campanhas de África (1961-1974),
ob. cit.
209
teatro de operações – zona do interior fazia-se preferencialmente por mar, sendo
uma ligação morosa, podendo os meios aéreos transportarem pessoal, material e
equipamentos críticos pouco volumosos.
Resumindo, a componente militar portuguesa assumiu o objectivo de combater
pela defesa da soberania, adequou os meios disponíveis ao binómio terreno/
inimigo e fez a guerra mediante um modelo “comportamental” que ultrapassou o
simples uso da força armada, ou seja, combateu as guerrilhas, garantiu segurança e
bem-estar às populações coagidas (brancas e negras) e desenvolveu uma política
de fomento. Portanto, Portugal a conduzir a guerra de forma a minimizar o seu
impacto nas estruturas sociais portuguesas e a manter um ritmo lento e de baixa
intensidade na sua condução, traduzida naquilo que John Cann designou “o modo
português de fazer a guerra”42.
5. Virar de Página
210
passar forçosamente por uma solução política. O próprio Marcello Caetano intuiu
a crescente gravidade da situação, desabafando: “temos de continuar a guerra e
de apostar na autonomia progressiva e participada. Agora quanto à continuação
da guerra tenho as maiores dúvidas. Porque as Forças Armadas já não se querem
continuar a bater, e o que desejam é fazer a paz. O moral das tropas é péssimo,
e a infiltração comunista nos oficiais milicianos e nos sargentos é enorme. Não
sei dizer por quanto tempo mais aguentarão o grande esforço que lhes é pedido.
Suspeito de que não será por muito”44.
Esta posição «alimentou» a génese de um movimento militar corporativo que
propugnou o fim da guerra e, em última instância, conduziu ao derrube do Estado
Novo através da revolta militar de 25 de Abril de 1974.
Post Scriptum
44
Freitas do Amaral, O Antigo Regime e a Revolução. Memórias Políticas (1941-1975), Lisboa, Círculo de Leitores,
1995.
211
se implantaram nos territórios através de uma malha com objetivos também
psicossociais. E, assim, face a um inimigo com uma base de recrutamento
reduzida e que padecia de coesão, a situação militar no Ultramar estava sob
controlo. Situação fortalecida por um contingente militar africano que chegou
aos 50% dos efetivos das Forças Armadas Portuguesas e a convicção que as
populações autóctones não pretendiam a independência do espaço territorial em
que viviam. Em Angola as Forças Armadas Portuguesas controlavam cerca de 98%
do território, considerando-se a província politicamente sustentada, socialmente
estabilizada e militarmente controlada. Em Moçambique a guerrilha estava a
ser combatida e repelida, limitando a «margem operacional» da FRELIMO ao
eixo Niassa/Tete, sobretudo depois da construção da barragem de Cahora Bassa.
Na Guiné, apesar da complexidade crescente da situação político-militar, a
iniciativa estratégica permanecia do lado português, a despeito da proclamação
unilateral de independência de 1973por Nino Viera e dos acontecimentos
ocorridos em Guilege.
Na África Portuguesa não existiu nem se perspetivava um Dien Bien Phu no
campo de batalha, nem uma retirada dos territórios sob pressão, como acabou por
acontecer com a descolonização.
Portanto, a revolta militar de 25 de Abril de1974 não pode ser justificada com
a degradação militar da guerra, seja ao nível de uma hipotética derrota militar ou
da existência de uma situação crítica no terreno (que não existiu). A conspiração
que desembocou no 25 de Abril evoluiu durante cerca de um ano, várias reuniões
e conheceu três fases45:
45
A divisão do processo, tal como se apresenta, é da autoria de Medeiros Ferreira, O Comportamento Político
dos Militares. As Forças Armadas e Regimes Políticos em Portugal no Século XX, Lisboa, Editorial Estampa,
1992.
212
contemplar as reivindicações dos capitães, agudizou a insatisfação dos
oficiais subalternos e dos capitães «puros»;
(ii) a segunda (Setembro de 1973-Fevereiro de 1974) marca a vontade, por
alguns sectores das Forças Armadas, em encontrar uma solução política
para a guerra;
(iii) da terceira (Fevereiro-Abril de 1974) consta a decisão de derrubar o
regime do Estado Novo.
213
214
A GRANDE ESTRATÉGIA DA CHINA
215
216
A GRANDE ESTRATÉGIA DA CHINA
Visão, Operacionalização e Linhas de Acção a Médio Prazo
1
George F. Kennan (1950). American Diplomacy, 1900-1950. Chicago: University of Chicago Press. Paul Kennedy
(1988). Ascensão e Queda das Grandes Potências (2 volumes). Mem-Martins: Europa-América. Paul Kennedy
foi um dos assistentes de Lidell Hart. John Lewis Gaddis (1982). Strategies of Containment: A Critical Appraisal
of Postwar American National Security Policy. New York: Oxford University Press. Charles Hill (2010). Grand
Strategies: Literature, Statecraft, and World Order. New Haven: Yale University Press.
2
Edward Luttwak (1979). Grand Strategy of the Roman Empire from the First Century A.D. to the Third. Baltimore:
John Hopkins University Press. Edward Luttwak (1983). The Grand Strategy of the Soviet Union. New York: St.
Martin’s Press. Otto Pflanze (1990). Bismarck and the Development of Germany (2nd edition). New Jersey: Princeton
University Press. Donald Kagan (2003). The Peloponnesian War. New York: Viking Press. Richard Samuels
(2007). Securing Tokyo’s Grand Strategy and the Future of East Asia. Ithaca: Cornell University Press.
3
Os mais relevantes são os de Thomas Robinson e David Shambaugh (eds) (1997). Chinese Foreign Policy:
Theory and Practice. Oxford: Clarendon Press. Michael Swaine e Ashley Tellis (2000). Interpreting China’s
Grand Strategy: Past, Present, and Future. Santa Monica: RAND. Avery Goldstein (2006). Rising to the Chal-
lenge: China’s Grand Strategy and International Security. Stanford: Stanford University Press. Sujian Gao (ed)
(2006). China’s “Peaceful Rise” in the 21st Century: Domestic and International Conditions. London: Ashgate.
Ye Zicheng (2011). Inside China’s Grand Strategy: the Perspective from the People’s Republic. Lexington:
���������������
Uni-
versity of Kentucky Press. Os realistas estruturais advogam a noção de que a alteração na distribuição de poder e
da configuração do sistema internacional causa ela própria uma modificação na identidade e na grande estratégia
do país. Os liberais e construtivistas tendem a enfatizar a forma como o aparecimento de novas regras e normas
no sistema internacional do pós-Guerra Fria (globalização, multilateralismo, institucionalismo) provocam uma
alteração nessa mesma identidade e grande estratégia. Por fim, os defensores da teoria crítica centram-se na forma
como a interacção complexa entre a identidade dos Estados e as suas grandes estratégias tornam infrutífera
qualquer tentativa de explicar uma como resultante da outra.
217
Esta fenomenologia derivou do crescente impacto e influência de Pequim,
resultante da sua impressionante ascensão em termos de poder nacional abrangente
(zhonghe guoli), sob a denominação oficial de “desenvolvimento pacífico”
(heping fanzhan).
O debate centrou-se – e centra-se – nas estratégias a adoptar pela China
e face à China, notando-se uma profusão (e confusão) de estudos analíticos
que misturam grande estratégia com estratégia nacional e com estratégia em
sentido lato, num claro atropelo dos clássicos ocidentais e chineses sobre o
que são cada um destes conceitos – em parte pelo facto de não ser assumido
oficialmente por Pequim a adopção e condução de uma grande estratégia e de
muitos países optarem pela denominação de estratégia nacional de segurança e
defesa como um substituto da grande estratégia nacional (e.g. Estados Unidos,
França, Reino Unido).
A grande estratégia foi assim “crucificada no altar do politicamente correcto”,
que tendeu a confundir “grande com grandioso”, associando-a a tendências de
supremacia ou de hegemonia de um Estado, sintomatologia a que nem o Foggy
Bottom (Departamento de Estado Norte-americano) escapou, com muitos dos seus
diplomatas a caracterizá-la como meras “calistenias intelectuais para académicos
com poucas responsabilidades e muito tempo livre”4.
O presente ensaio pretende abordar de forma sumária as questões envolventes
à visão e operacionalização da grande estratégia da China. Procuramos em primeiro
lugar elencar sinteticamente as diferenças entre as perspectivas ocidentais e chinesas
relativamente ao conceito de “grande estratégia”, sabendo que para podermos
analisar a existência ou não de uma grande estratégia por parte da China, parece-
nos da maior importância que “não nos coloquemos no lugar de Pequim, mas antes
que coloquemos Pequim no lugar de Pequim”.
Com base neste referencial avançamos com a definição da visão associada a
esta grande estratégia (oficiosa) de “desenvolvimento pacífico”, bem como a sua
operacionalização.
Terminamos com a identificação das principais linhas de acção a médio prazo,
associadas à consecução da mesma.
4
Richard Fontaine e Kristin Lord (eds) (2012). America’s Path: Grand Strategy for the Next Administration.
Center for New American Security. Disponível em http://www.cnas.org/files/documents/publications/CNAS_
AmericasPath_FontaineAndLord.pdf, p. 6.
218
da concatenação da teoria estratégica, da estratégia organizacional, da cultura
estratégica5, e da estratégia de desenvolvimento de forças6.
Em termos ocidentais, a grande estratégia gere os nexos causais entre os
objectivos estratégicos de um Estado e os meios necessários à sua consecução.
Segundo Barry Posen, “a grande estratégia é a conceptualização da forma como
um Estado melhor pode alcançar a sua segurança sob constrangimentos nacionais e
internacionais ao nível dos recursos”7.
Christopher Layne define a grande estratégia de um Estado como “a
visão geral dos seus objectivos de segurança e a determinação dos meios mais
adequados para os atingir, o que depende da avaliação da distribuição de poder,
da localização geográfica e das capacidades militares próprias e dos outros”. O
5
Ao contrário do que é geralmente entendido, a cultura estratégica da China - à semelhança das suas congéneres
de outros países - não é o resultado apenas de uma meia dúzia de Tratados e obras canónicas (algumas delas
milenares) sobre a governação e a estratégia, mas igualmente de experiências históricas próprias, ideologia e
memórias colectivas, como é realçado na sua ênfase milenar da “paz, harmonia entre a natureza e o homem,
benevolência e boa vizinhança”. Peng Guangqian e Yao Youzhi (2005). The Science of Military Strategy. Beijing:
Military Science Press, p. 31. Peng Guangqian, Zhao Zhiyin e Luo Yong (2010). China’s National Defense.
Singapore: Cengage Learning Asia, p. 7.No entanto a ética confuciana não exclui a possibilidade de emprego da
força para preservação da estabilidade interna caso o governo seja legítimo e benevolente. O emprego da força
para fins de aquisição territorial, incremento económico ou engrandecimento estratégico é refutado. Robert Cox
(2010). “Historicity and International Relations: a Tribute to Wang Gungwu” em Zheng Yongnian (ed), China
and International Relations: The Chinese View and the Contribution of Wang Gungwu. London: Routledge, pp.
3-16. Cao Xufei (1999). “Tupo Zhangzheng Bianyuan: Sikao yu Chaoyue” (Avanços em Vésperas da Guerra:
Pensamento e Transcendentismo). Shijie jingji yu zhengzhi nº6 (Economia e Política Mundial), pp. 29-35. O nú-
cleo da cultura estratégica chinesa é a prossecução da harmonia étnica e da unidade nacional. Peng Guangqian,
Zhao Zhiyin e Luo Yong (2010). China’s National Defense. Singapore: Cengage Learning Asia, p. 28. Outros
cientistas políticos refutam a benevolência e harmonia desta cultura estratégica chinesa, definindo-a como
assente num “paradigma parabellum” com base numa análise do período dos “Estados guerreiros”. Alastair
Iain Johston (1995). Cultural Realism: Strategic Culture and Grand Strategy in Chinese History. New Jersey:
Princeton University Press, pp, 109-117. A título de curiosidade refira-se que desde o início da década de noventa
que o governo chinês apoiou financeiramente a produção de documentários e séries televisivas dedicadas a cada
um dos clássicos da estratégia chinesa (Os Seis Ensinamentos Secretos de Tai Kung; Os Métodos de Ssu-ma; A
Arte da Guerra de Sun Zi; O Wu Tzu de Wu Chi; Os Métodos Militares de Sun Pin; O Wei Liao-Tzu; As Três
Estratégias de Huang Shih-kung; Perguntas e Respostas entre Tang Tai-tsung e Li Wei-kung; Cem Estratégias
Não-Ortoxas; Trinta e Seis Estratagemas) bem como dos princípios da boa governação (Discursos sobre o Sal e o
Ferro, o Mozi) ou ainda romances clássicos (Viagem para Oeste, Na Margem do Rio). Sobre esta ligação entre o
pensamento estratégico histórico chinês e a sua aplicação ao presente, ver Yan Xuetong (2011). Ancient Chinese
Thought, Modern Chinese Power. New Jersey: Princeton University Press.
6
Harry Yarger (2006). Strategic Theory for the 21st Century: The Little Book on Big Strategy. Carlisle Barracks:
Strategic Studies Institute, pp. 17-29.
7
Barry Posen e Andrew Ross (1996). “Competing Visions for U.S. Grand Strategy”. International Security
nº3, pp. 5-53. Disponível em http://www.comw.org/pda/14dec/fulltext/97posen.pdf. Existem muitas outras
definições mas que não variam substancialmente desta ou da de Colin Gray que a refere como sendo o em-
prego de todos os recursos disponíveis a um Estado ou outra qualquer forma de segurança comunitária, na
prossecução de objectivos políticos comuns. Colin Gray (2009). Fighting Talk: Forty Maxims on War, Peace
and Strategy. Washington: Potomomac books, p. 82. Paul Kennedy (1991). “Grand Strategy in War and Peace:
Toward a Broader Definition” em Paul Kennedy (ed), Grand Strategies in Peace, New Haven: Yale University
Press, pp. 1-7.
219
mesmo Layne estabelece uma metodologia prática de aferição da grande estratégia
assente num processo de três passos: “determinar os interesses vitais de segurança
de um Estado; identificar as ameaças a esses interesses; e decidir sobre qual a
melhor forma de aplicar os recursos políticos, militares e económicos para proteger
esses interesses” 8.
Esta definição é distinta da avançada pelos mais importantes estrategistas
chineses, que tendem a adicionar a noção de “visão particular” (tebie shi shili)
sobre a melhor forma de servir e defender os interesses nacionais9.
Ou seja, no caso da China a formulação da grande estratégia é assim dependente
da forma como os seus líderes percepcionam e “aferem” o funcionamento do
sistema internacional. Para formularem uma grande estratégia coerente, os
líderes devem concretizar duas tarefas: devem seleccionar a estratégia adequada
ao poder nacional e às tendências de evolução do sistema internacional; e devem
ser capazes de gerirem desafios e riscos inevitáveis e inesperados que se deparem
ao longo do tempo de implementação dessa grande estratégia. Tal pressupõe uma
análise holística tanto do presente como das tendências de evolução futuras a
médio/longo prazo.
De acordo com Richard Nisbett, existe entre asiáticos e ocidentais um quadro
psicológico e mental distinto que modela as diferentes formas de percepção e
de pensamento: “Os chineses acreditam na mudança constante, com avanços
e recuos. Têm em atenção um conjunto de eventos e procuram inter-relações
entre os objectos [físicos, animais, e humanos] defendendo que não se consegue
entender uma parte sem se compreender o todo, que por si é mais complexo
do que parece. Os ocidentais vivem num mundo mais simples e determinista,
focando a sua atenção nos objectos e nos indivíduos em detrimento da envolvente,
8
Christopher Layne. (1993). “The Unipolar Illusion: Why New Great Powers Will Rise”. International Security
nº4, pp. 5-51. Christopher Layne (2006). The Peace of Illusions: American Grand Strategy from 1940 to the
Present. Ithaca: Cornell University Press, pp. 19-22. Steven Metz (2008). American Grand Strategy: Concepts,
History and Futures. Presentation at the U.S. Army War College Strategic Studies, 1 de Abril. Harry Yarger
(2006). Strategic Theory for the 21st Century: The Little Book on Big Strategy. Carlisle Barracks: Strategic
Studies Institute, pp. 17-29.
9
Peng Guangqian e Yao Youzhi (2005). Op. Cit., pp. 32-33. Liu Yazhou (2004). Da Guoce (A Grande Estratégia
Nacional). Disponível em http://www.yannan.cn/data/detail.php. Liu Yazhou (2005). Xinnian yu Daode (Fé e
Moralidade). Disponível em http://www.yannan.cn/data/detail.php. Yan Xuetong e Sun Xuefeng (2005). Zhon-
gguo Jueqi Jiqi Zhanlue (A Ascensão da China e a sua Estratégia). Beijing: Beijing Renmin Chubanshe. Yang,
Jiemian (2005). Da Hezuo: Bianhuazhong de Shijie he Zhongguo Guoji Zhanlue (Grande Cooperação: Um Mundo
em Mudança e a Estratégia Global da China). Tianjin: Renmin Chubanshe. Chu Shulong (1999). “Zhongguo
de guojia liyi, guojia liliang, he guojia zhanlue” (Interesses nacionais, Poder Nacional e Estratégia Nacional da
China). Zhanlue yu Guanli nº4 (Gestão e Estratégia), pp. 1-21. Chen Peiyao e Xia Liping (2004). Xin Shiji Jiyuqi
yu Zhongguo Guoji Zhanlue (O Período de Oportunidade no Novo Século e a Estratégia Internacional da China).
Beijing: Time Publishers. Liu Mingfu (2010). Zhongguo Meng: Hou Meiguo Shidai de Daguo Siwei yu Zhanlue
Dingwei (O Sonho da China: Pensamento de Grande Potência e Orientação Estratégica na Era Pós-Americana).
Beijing: Zhongguo youyi chuban gongsi.
220
julgando que podem controlar os acontecimentos porque conhecem as regras que
governam o comportamento desses objectos”10.
Estas diferenças podem ser uma consequência do emprego de distintos
instrumentos relativos à compreensão do mundo. Com efeito, enquanto os chineses
desenvolveram um pensamento dialéctico para compreenderem as relações entre
objectos e acontecimentos, contextualizando-o, o pensamento lógico da herança
ocidental grega privilegiou os nexos causais, onde o importante são os objectivos/
fins e não os processos.
Ou seja, o pensamento estratégico oriental é mais orgânico, passível de
improviso, menos mecanicista e determinista que o ocidental, pois reconhece que
existe um conjunto alargado de factores e de forças que estarão sempre fora do
controlo do mais brilhante resoluto estrategista. A qualidade deste baseia-se na sua
capacidade em percepcionar correctamente a situação e a “propensão das coisas”
ou tendências, explorando-as em seu proveito. Um estrategista chinês não elabora
um plano minucioso de projecção do futuro que leve a fins pré-determinados para
depois definir a melhor aplicação dos meios mais adequados para tal desiderato.
Ao invés, começa por efectuar uma avaliação das forças em presença de modo a
poder retirar o máximo proveito dos factores favoráveis associados a esta situação,
explorando-os constantemente, independentemente das circunstâncias e obstáculos
que possa enfrentar.
A virtude não está assim na força e na decisão, mas na sabedoria e na
perspicácia. Quem compreende realmente a forma como o sistema internacional
funciona despenderá menos tempo a planear e mais tempo a efectuar avaliações dos
desenvolvimentos e das tendências ou assessments. Assim se percebe porque é que
os estrategistas chineses enfatizam os estudos de avaliação da situação do seu país
em detrimento da prescrição de políticas a seguir (ao contrário, por exemplo, dos
seus congéneres norte-americanos).
Por isso é que não existe oficialmente uma grande estratégia da China. Existe
sim um conjunto de consensos políticos e analíticos que permitem operacionalizar
um conjunto de acções capaz de rentabilizar em proveito nacional as actuais e
potenciais tendências evolutivas das forças em presença.
Um estrategista chinês procura responder a três questões: quais são as
tendências dominantes na actualidade? Qual é a distribuição de poder no sistema
internacional contemporâneo? Quais são as fontes dos maiores desafios e ameaças
à China?11
10
Richard Nisbett (2003). The Geography of Thought: How Asians and Westerners Think Differently and Why.
New York: Free Press, pp. xxi-xiii.
11
Para uma conceptualização mais ocidental assente na resposta a três questões ver Wang Jisi (2011). “China’s
Search for a Grand Strategy: a Rising Great Power Finds its Way”. Foreign Affairs nº2, p. 68. Quais são os inte-
resses vitais do Estado? Que forças externas os ameaçam? O que pode fazer a liderança nacional para os salva-
guardar? O autor refuta a existência de uma grande estratégia da China porque a forma como coloca a questões
de partida são diferentes das que são colocadas pelos seus congéneres chineses.
221
Tal implica a necessidade de ter em atenção a salvaguarda do interesse nacional,
decomposto no caso da China na defesa da integridade territorial, na salvaguarda da
defesa nacional, na defesa da soberania nacional, no desenvolvimento nacional, na
defesa estabilidade nacional e na defesa da dignidade nacional12.
12
Peng Guangqian e Yao Youzhi (2005). Op. Cit., pp. 39-43.
13
A envolvente externa (shi) é um dos três pilares fundamentais para uma boa compreensão e condução de uma
estratégia de segurança nacional e uma política externa – sendo os outros dois a identidade nacional e a estra-
tégia. A compreensão do shi tem sofrido uma evolução acentuada nos últimos dez anos tendo-se tornado mais
plural e diversificado, que apesar de ser percepcionado como geralmente mais positivo para a China faz com que
esta comece agora a ter de enfrentar situações mais complexas e difíceis no seio do sistema internacional. Zhu
Liqun (2010). China’s Foreign Policy Debates. Chaillot Papers nº121, pp. 11-12. European Union Institute for
Security Studies. Disponível em http://www.iss.europa.eu/uploads/media/cp121China_s_Foreign_Policy_De-
bates.pdf. Existem também estudos interessantes que procuram adaptar e validar a visão de Sun Tzu e do Mozi
ao actual sistema internacional. Yan Xuetong (2008). “Xun Zi’s Thoughts on International Politics and their
Implications”. Chinese Journal of International Politics nº2. Li Bin (2008). “Insights into the Mozi and their
Implications for the Study of Contemporary International Relations”. Chinese Journal of International Politics
nº2. Peng Guangqian e Yao Youzhi (2005). Op. Cit., pp. 49-53.
14
David Lampton (2008). The Three Faces of Chinese Power: Might, Money, and Minds. Berkeley: University of
California Press, p. 14.
222
Um campo liderado por Wang Jisi e Ding Gang, que questiona a existência
de uma “verdadeira grande estratégia”15 dada a perniciosidade deste conceito bem
como a dificuldade existente em conciliar a retórica de “desenvolvimento pacífico”
e de “mundo harmonioso” com a prática, num sistema internacional entendido
como anárquico, Lockeano e propenso ao conflito16.
O outro campo, liderado por Ye Zicheng e Yan Xuetong e por um também
grande número de investigadores chineses, advoga que ela existe e designa-se por
“desenvolvimento pacífico”17, concordando com a afirmação de Edward Luttwak
de que todos os Estados – consciente ou inconscientemente – têm uma grande
estratégia (ainda que nem todas sejam criadas da mesma forma)18.
A análise da grande estratégia (oficiosa) da China deve assim ser feita de
acordo com a aferição de um consenso alargado existente entre a liderança
política e diplomática chinesa, que expressa a importância em equilibrar
operacionalmente duas grandes dimensões interdependentes: uma interna e outra
externa, ambas com um fio condutor comum – o peso da memória histórica do
“século da humilhação”.
Desde 1840, aquando da primeira Guerra do Ópio na qual a China perdeu o seu
papel de primazia regional na Ásia, que o país foi forçado a redefinir-se e a adaptar-
se a um sistema internacional até muito recentemente dominado exclusivamente
por potências ocidentais.
Os primeiros esboços associados à implementação de uma “grande estratégia
de desenvolvimento pacífico” ter-se-ão iniciado aquando do 3º Plenário do 11º
Comité Central do PCC em Dezembro de 1978 com a aprovação de conceitos
como os de “reforma e abertura” e de “desenvolvimento da economia como
tarefa central” e a posterior visão estratégica de Deng Xiaoping formulada
em 1982 de que a tendência mundial era e seria cada vez mais a “paz e o
desenvolvimento”.
A sua operacionalização foi gradativa e sofreu dois incrementos
qualitativos substanciais. Primeiro – e numa dimensão interna – a partir de
1992, após a “visita de inspecção” (nanxun) ao Sul da China de Deng Xiaoping,
que potenciou a libertação dos constrangimentos políticos internos ao
15
Wang Jisi (2011). “China’s Search for a Grand Strategy: a Rising Great Power Finds its Way”. Foreign Affairs
nº2, p. 68. Ding Gang (2009). “Guojia Caifu Yunyong, Guanjian Shi Gongping” (É Justo Aplicar a Riqueza das
Nações ”. Huaiqiu shibao (Tempos Globais), 13 de Março. Disponível em http://world.huanqiu.com/roll/2009-
03/409292.html.
16
Alexandre Carriço (2012). Os Livros Brancos da Defesa da República Popular da China, 1998-2010: Uma Des-
construção do Discurso e das Percepções de (In)segurança. Lisboa: Instituto da Defesa Nacional, p. 138.
17
Ye Zicheng (2011). Op. Cit. p. 9. ���������������������������������������������������������������������
Yan Xuetong (2009). “Guojia Zuichonggao Mubiao Bushi Zhifu” (O Objec-
tivo mais Nobre do País não é o de Enriquecer). Huaiqiu shibao (Tempos Globais), 13 de Março. http://world.
huanqiu.com/roll/2009-03/409292.html.
18
Edward Luttwak (2001). Strategy: The Logic of War and Peace. Cambridge: Belknapp Press of Harvard Uni-
versity Press.
223
desenvolvimento de um “Leninismo de mercado” ou de um “capitalismo com
características chinesas”. Numa segunda fase – e numa dimensão externa – a
partir de 1996, resultado da assimilação perceptiva das consequências negativas
para Pequim e para a segurança regional asiática da crise de Taiwan em 1995-
1996 e da crise financeira asiática de 1997, num período onde ainda estavam
vivamente presentes na memória da comunidade internacional a supressão das
manifestações de Tiananmen em 1989 que levaram a um embargo político,
diplomático e económico à China19. O resultado foi a definição e adopção de
um “Novo Conceito de Segurança” em 1997.
A sua prática tem sido flexível e abrangente, assentando na participação
activa, na contenção de comportamentos, na oferta de garantias, na defesa de um
mercado livre, na interdependência, na criação de interesses comuns e na redução
de conflitos20.
O objectivo de médio prazo acoplado a esta grande estratégia parte de um
pressuposto fundamental que interliga as duas dimensões referidas: a necessidade
de salvaguarda da estabilidade externa e interna ao/e do país, alargando
progressivamente o seu espaço e influência estratégica e diplomática para facilitar
o contínuo acesso aos mercados, a capitais e a recursos naturais, potenciando o seu
desenvolvimento e evitando no processo uma confrontação directa com os Estados
Unidos ou outros países, durante uma “janela de oportunidade” que corresponde às
duas primeiras décadas deste século.
Esta moldura foi “afinada” nos últimos três anos, resultado da percepção de
um declínio do Ocidente face ao Oriente, sintomatologia mais acentuada com a
crise financeira de 2008 que potenciou uma nova série de debates internos – que
já haviam surgido no início do século – sobre a identidade da China no contexto
da sua “ascensão/desenvolvimento pacífico” e qual o seu papel no sistema
internacional.
Esta mais recente vaga21 teve o seu início há pouco mais de um ano, facilitada
por dois acontecimentos relevantes: o facto de a China ter ultrapassado o Japão
em termos de Produto Nacional Bruto, assumindo-se como a segunda maior
economia mundial; e o reajustamento da política e estratégia económica, militar
e de segurança dos Estados Unidos face à região da Ásia-Pacífico, visando a
salvaguarda de um papel que pretende para si como liderante (ou de pivot) neste
“século do Pacífico”.
19
Alexandre Carriço (2006). De Cima da Grande Muralha: Política e Estratégias de Defesa Territorial da Repú-
blica Popular da China, 1949-2010. Lisboa: Prefácio.
20
Zhang Yuling e Tang Shiping (2005). “China’s Regional Strategy” em David Shambaug (ed), Power Shift: China
and Asia’s New Dynamics. Berkeley: University of California Press, p. 54.
21
As duas primeiras foram as associadas ao conceito de “ascensão pacífica” (2001-2004) e à crise financeira in-
ternacional (2008-2010).
224
A visão de um “mundo harmonioso”
22
Robert Suettinger (2004). “The Rise and Descent of ‘Peaceful Rise’”. China Leadership Monitor nº12. Dispo-
nível em http://media.hoover.org/sites/default/files/documents/clm12_rs.pdf. Bonnie Glaser e Evan Medeiros
(2007). “The Changing Ecology of Foreign Policy-Making in China: The Ascension and Demise of the Theory
of ‘Peaceful Rise’”. The China Quarterly nº 190, pp. 291-310.
23
Zhang Zhaozhong (1995). Zhangzheng li women you duo yuan (Quão Afastados Estamos de uma Guerra?). Bei-
jing: Beijing PLA Press; Zhang Zhaozhong (1999). Xia yi ge mubioa shi shei (Quem será o Próximo Inimigo?).
Beijing: China Youth Press; Qiao Liang e Wang Xiangsui (1999). Chao xian zhan (Guerra sem Restrições). Bei-
jing: PLA Literature and Arts Publishing House. Versão em inglês disponível em http://www.missilethreat.com/
repository/doclib/19990200-LiangXiangsui-unrestrictedwar.pdf. Na mesma altura surgiram livros publicados
por jornalistas e académicos sobre a mesma temática. Os mais populares foram os de Cai Jianwei (ed) (1996).
Zhongguo da zhanlue: lingdao shijie de lantu (A Grande Estratégia da China: Um Modelo para uma Liderança
Mundial). Haikou: Hainan chubanshe; He Xin (1996). Zhonghua fuxing yu shijie weilai (O Reavivar da China
e o Futuro do Mundo). Chengdu: Sichuan renmin chubanshe (2 volumes). A título de curiosidade, refira-se o
regresso – após um intervalo de pouco mais de uma década - aos escaparates editoriais chineses de obras que
reivindicam uma maior preponderância de poder da China no sistema internacional. Ainda que estejam longe de
representar a actual estratégia do país, não deixam de ser ilustrativos quanto à “insatisfação” vigente entre alguns
círculos elitistas e nacionalistas e da percepção de um maior poder relativo do país no sistema internacional. Em
1996 o livro Zhongguo Keyi Shou bu (A China Pode Dizer Não) da autoria de Song Qiang (jornalista, editor e
argumentista), Song Xiao Jun (comentador televisivo nacionalista convidado com frequência pela CCTV e pela
Phoenix TV), Wang Xiaodong (um gestor com formação universitária obtida no Japão), Huang Jisu (sociólogo e
editor da versão chinesa da revista Journal of International Social Science) e Liu Yang (comentador conceituado
de questões culturais, históricas e de economia) abriria o caminho, para em 1999 ser publicado o livro Quan-
qiuhua yinmou xia de Zhongguo zhi lu (A China sob a conspiração da globalização) de Wang Xiaodong (um dos
editores da influente revista Zhanlue yu Guanli – Estratégia e gestão – ligada ao EPL tendo sido extinta em 2004
– e Fang Ning (professor da Universidade Normal de Pequim). O “clube da China pode dizer não” voltaria aos
escaparates em 13 de Março de 2009 com uma nova obra intitulada Zhongguo bu gaoxing (China descontente:
tempos auspiciosos, uma grande visão e os nossos desafios). Apesar do novo sucesso de vendas, a agência no-
ticiosa estatal Xinhua caracterizou a obra como “um conjunto de críticas e observações de bloggers e de alguns
académicos clamando por um nacionalismo embaraçoso e não construtivo”. Xinhua (2009). “Book rallying
for social change fails to inspire the masses”. Disponível em: http://news.xinhuanet.com/english/2009-03/25/
content_11072198.htm. Os livros “A China Pode Dizer Não” e “A China sob a Conspiração da Globalização”
estão disponíveis para leitura respectivamente em: http://www.xiaoshuo.com/readindex/index_00118540.html
e em http://www.xiaoshuo.com/readindex/index_0015423.html.
Refira-se que do lado norte-americano também se assistiu na mesma altura a uma exponenciação na publi-
cação de obras sobre a denominada “ameaça chinesa” (Zhongguo weixie lun), bastando para tal consultar as
publicações do politicamente conservador American Enterprise Institute, para além das obras de Constantine
Menges (China: The Gathering Threat); Bill Gertz (The China Threat: How People’s Republic of China Targets
America); Edward Timperlake (Red Dragon Rising: Communist China’s Military Threat to America); Stephen
Leeb e Gregory Dorsey (Red Alert: How China’s Growing Prosperity Threatens the American Way of Life);
Dana Dillon (The China Challenge: Standing Strong against the Military, Economic and Political Threats that
Imperil America); Peter Navarro (The Coming China Wars: Where They Will be Fought and How They Can be
Won); Jed Babbin e Edward Timberlake (Showdown: Why China Wants War with the United States); e Richard
Bernstein e Ross Munro (The Coming Conflict with China). Para a melhor análise sobre esta questão veja-se
Herbert Yee e Ian Storey (eds) (2002). The China Threat: Perceptions, Myths and Reality. London: Routledge.
225
“paz e desenvolvimento” de Deng Xiaoping e a introduzir em 2006 uma nova
conceptualização: a de “mundo harmonioso” (hexie shijie) – numa extensão da
ideia confucionista de “sociedade harmoniosa”. Esta é a visão subjacente à grande
estratégia de “desenvolvimento pacífico” (heping fanzhan).
Para aquilatarmos sobre a validade desta estruturação do “edifício estratégico
chinês”, devemos analisar a visão de “mundo harmonioso”, decompor a concepção
de “desenvolvimento pacífico” com base no seu “Novo Conceito de Segurança”,
bem como identificar quais os seus interesses vitais e interesses nacionais.
Assente numa ancoragem de cariz histórico-civilizacional, nos inelutáveis
“Cinco Princípios da Coexistência Pacífica” de 1954 e no “Novo Conceito de
Segurança da China” de 1997, esta conceptualização “harmoniosa” do sistema
internacional pretende vincar uma certa noção de excepcionalismo chinês,
desejavelmente “mais benigno e menos proselitista” que o seu congénere norte-
americano, sendo ambos no entanto passíveis de coexistirem de forma pacífica
(harmonia na diversidade – he er bu tong). Os quatro pilares para este “mundo
harmonioso” são “a democracia, a amizade, a justiça e a tolerância”, de acordo com
as seguintes guidelines:
24
Zhang Qingmin (2011). China’s Diplomacy. Singapore: Cengage, pp. 6-9.
226
Em Novembro de 2009, Zhang Xiaotong, editor do Centro de Investigação de
Literatura do Comité Central do PCC, publicou nas revistas Liaowang (Perspectiva
Semanal) e Qiushi (Em Busca da Verdade) um artigo intitulado “Propostas da China
com Base no Conceito de Era de Hu Jintao”, onde elencou as linhas de força da
visão de Hu relativamente ao posicionamento da China no sistema internacional,
alicerçada numa política externa assente em “cinco teorias” separadas mas que são
concatenadas de forma a consubstanciarem um todo que se pretende homogéneo.
Esta visão reflecte uma auto-percepção da China como estando num patamar
mais elevado que o que tinha há uma década atrás na escala de poder, descrevendo
as “cinco teorias” que devem pautar o desenvolvimento de um “mundo pacífico e
harmonioso” como:
Pela visão exposta, pode-se afirmar que Hu Jintao efectuou uma “evolução
na continuidade” em termos de liturgia política oficial, ao manter que a grande
estratégia da República Popular da China é de desenvolvimento pacífico e de apoio
e contribuição à consolidação de um “mundo harmonioso”. É refutada a noção
de que a ascensão da China tenderá a criar instabilidade regional e global, pois a
globalização tornou o país dependente comercial e tecnologicamente do exterior,
pelo que o recurso a meios de persuasão e influência são os mais privilegiados, não
tendo o país quaisquer ambições de cariz hegemónico ou expansionista passíveis
de desestabilizar (ou “desarmonizar”) um sistema internacional do qual é um dos
principais beneficiários juntamente com os EUA26.
Ou seja, o reconhecimento do impacto positivo ao nível interno da globalização
e do multilateralismo selectivo potencia, por um lado, a sua maior participação e
envolvimento em organizações internacionais, reflectindo a aceitação dos benefícios
materiais que estes dois fenómenos produzem tanto no seu desenvolvimento
económico como no reforço da sua imagem como “potência responsável” (zhongguo
25
Zhang Xiaotong (2009). “Hu Jintao de shidai guan jichu shang de zhongguo de zhuzhang” (Propostas da China
com Base no Conceito de Era de Hu Jintao). Liaowang (Perspectiva Semanal), 23 de Novembro. Disponível em
http://dlib.eastview.com/browse/doc/21088215/23-11-09/Zhang_Xiaotong_Liaowang.pdf, p. 3.
26
Su Hao (2010). Harmonious World: the Conceived International Order in Framework of China’s Foreign Af-
fairs. National Institute of Defense Studies. Disponível em http://www.nids.go.jp/english/publication/joint_re-
search/series3/pdf/3-2.pdf
227
zeren) defensora da ordem económica e de segurança vigente internacionalmente27.
Por outro lado, o seu comportamento reflecte aparentemente a aceitação de uma
lógica colectivista e de valores subjacentes às normas internacionais – ou seja,
um reconhecimento das limitações que os Estados enfrentam na sua acção em
resultado da crescente interdependência, o que faz com que tenham de aceitar
custos específicos de forma a obterem benefícios comuns.
Assim sendo, o contributo do país para o desenvolvimento e consolidação
da visão de “mundo harmonioso” é enfatizado pelo facto de este dar preferência
a arranjos de natureza multilateral através de organizações internacionais globais
como a ONU, e fora e iniciativas regionais; de implementar programas de apoio ao
desenvolvimento em vários países com respeito pelas diversas culturas e sistemas
económicos; de defender o princípio da soberania nacional; e de desenvolver as
relações com outros Estados de acordo com a Carta da ONU e os “Cinco Princípios
da Coexistência Pacífica”.
27
Os analistas chineses fazem uma destrinça entre “ordem internacional” (guoji zhixu), definida como determi-
nadas normas destinadas a facilitar a interacção entre os Estados; e “ordem mundial” (shijie zhixu), entendida
como um conjunto de normas mundiais que podem por em causa a soberania dos Estados. Esta diferenciação foi
mais enfatizada a partir do momento em que o Presidente George H. W. Bush, no início da década de noventa
declarou o nascimento de uma “nova ordem mundial” (xin shijie zhixu), encarada como uma nova roupagem
para a preservação do domínio global e hegemónico dos EUA. Samuel Kim (1993). “Sovereignty in the Chinese
Image of World Order” em R. J. Macdonald (ed), Essays in Honor of Wang Tieya. London: Kluwer Academic, p. 430.
Ver ainda Allen Carlson (2005). Unifying China, Integrating with the World: Securing Chinese Sovereignty in
the Reform Era. Stanford: Stanford University Press.
28
Yong Deng (2008). China’s Struggle for Status: the Realignment of International Relations. Cambridge: Cambridge
University Press, p. 41. Para uma discussão sobre a tradução desta estratégia formulada por Deng Xiaoping
em Setembro de 1989 e a forma como é mal interpretada no Ocidente ver o artigo do influente General Xiong
Guangkai (2010). “Zhongwen Cihui Taoguang Yanghui Fanyi de Waijiao Zhanlue Yiyi” (O Significado Diplo-
mático e Estratégico da Tradução da Frase Chinesa “Taoguang Yanghui”). Gonggong waijiao jikan nº2 (Revista
Quadrimestral de Diplomacia Pública), pp. 55-59. Taoguang yang hui tem três significados possíveis: (1)
wo xi changdan – sofrer bastante e esperar pela vingança; (2) esconder as capacidades e evitar a liderança;
(3) manter um low profile. Ver Jingbian Chengyu Cidian (2005). “Shanghai Oraz Taoguang Yanghui de Tejiu
Shenmingli” (A Persistente Relevância do Provérbio Taoguang Yanghui). Disponível em http://news.xinhuanet.
com/comments/2005-11/07/content_3744965.htm.
228
Mas no início do século XXI tal já não era possível, por isso e sem refutar a
utilidade desta “mantra”, a grande estratégia de “desenvolvimento pacífico” e os
seus preceitos conceptuais começaram a ser desenhados em finais do século XX
por Yan Xuetong sob a denominação de “ascensão da China”29 e Zheng Bijian, sob
a denominação de “ascensão pacífica da China”, tendo sido bastante mediatizado e
de forma polémica entre 2001 e 200430.
Esta grande estratégia caracteriza o sistema internacional como tendencialmente
multipolar (duojihua) e desejavelmente harmonioso (a visão), ao abrigo do qual a
China refuta a condução de políticas hegemónicas (baquan zhuyi) e defende a paz
e o desenvolvimento (heping hu fanzhan) internacionais31.
De acordo com o China’s Peaceful Development Road de 2005 e o White
Paper on China’s Peaceful Development publicado em 2011, o “desenvolvimento
pacífico da China” parte de uma sedimentação ideológica de raízes históricas
denominada de “socialismo com características chinesas”, que se desdobra em seis
pilares operacionais de desenvolvimento: científico, independente, aberto, pacífico,
cooperativo e comum. Estes visam a obtenção por meios pacíficos de capital,
tecnologia e recursos que são essenciais à continuidade do seu desenvolvimento
e à prossecução do desiderato de em 2020 a China “poder vir a ser uma sociedade
moderadamente próspera e um país próspero em 2050”32.
Deduz-se que o pensamento subjacente à grande estratégia da China é na sua
maior parte autárquico, preocupado com, e direccionado para a manutenção do
crescimento económico e preservação da estabilidade interna, reconhecendo-se
no entanto que uma envolvente externa estável é primordial para tal desiderato.
29
Yan Xuetong (1998). Zhongguo de Jueqi: Guoji Huanjing Pinggu (Ascensão da China: Uma Avaliação da En-
volvente Internacional). Tianjin: Renmin Chubanshe.
30
Zheng Bijian (2005). China’s Peaceful Rise: Speeches of Zheng Bijian, 1997-2004. Brookings Institution. Di-
sponível em http://www.brookings.edu/fp/events/20050616bijianlunch.pdf.
31
Ruan Zongze (2007). “China’s Peaceful Development from the Perspective of the Transition of the International
Order” em Wang Zhongchun e Chen Senlin (eds), World Security Environment. Beijing: College of Defense
Studies, National Defense University, PLA. Yu Xintian (2007). “Harmonious World and China’s Path for Peace-
ful Development” em Wang Zhongchun e Chen Senlin (eds), World Security Environment. Beijing: College of
Defense Studies, National Defense University, PLA.
32
Information Office of the State Council of the People’s Republic of China (2011). White Paper on China’s
Peaceful Development. Disponível em http://www.gov.cn/english/official/2011-09/06/content_1941354.htm.
Information Office of the State Council of the People’s Republic of China (2005). China’s Peaceful Develop-
ment Road. Disponível em http://www.gov.cn/english/2005/Dec/152669.htm. Information Office of the State
Council of the People’s Republic of China (1993).
229
oficialmente incorporado na Estratégia de Segurança Nacional. Tem como pilares
a segurança cooperativa, a segurança abrangente, a segurança coordenada e a
segurança comum (hezuo anquan, zhonghe anquan, xietiao anquan he gongtong
anquan) deixando inferir dois objectivos primordiais: a preservação de condições
de estabilidade externa e interna essenciais à continuação do seu programa de
desenvolvimento económico; e a redução da probabilidade de os EUA e outros
países da região asiática condicionarem negativamente as aspirações regionais
de Pequim.
A defesa da soberania, da integridade territorial e da unidade nacional está
directamente correlacionada com a garantia da continuidade de um desenvolvimento
económico e social sustentável. Para o governo chinês, “a soberania da China parte
do povo e pertence ao povo”, pelo que ao se defender a primeira (se necessário
coercivamente) defende-se os interesses do segundo, potenciando o desenvolvimento
das forças produtivas, o reforço do poder nacional abrangente, e a melhoria das
condições de vida da população33.
O conceito pode ser sumarizado como os “quatro nãos”: não à hegemonia;
às políticas de poder; à corrida ao armamento; e às alianças militares.
Operacionaliza-se com base na criação e aprofundamento das relações com
outros Estados baseadas em princípios de “confiança mútua, mútuo benefício,
igualdade e coordenação” que sinérgica e desejavelmente potenciarão uma
segurança cooperativa.
Com base neste macro-enquadramento, a liderança chinesa definiu em 2010
como interesses vitais (hexin liyi) os seguintes:
• Desenvolvimento económico;
• Unidade e defesa nacional;
33
Peng Guangqian, Zhao Zhiyin e Luo Yong (2010). Op. Cit., p. 30.
34
U.S. Department of Defense (2011). Military and Security Developments Involving the People’s Republic of
China 2011. Disponível em http://www.defense.gov./pubs/pdfs/2011_cmpr_final.pdf. Glaser, Bonnie (2011). A
Shifting Balance: Chinese Assessments of U.S. Power. Center for Strategic and International Studies. Disponível
em http://csis.org/files/publication/110613_glaser_CapacityResolve_web.pdf.
230
• Crescimento do poder e do estatuto do país;
• Reforço da identidade nacional.35
231
• A soberania é um atributo fundamental e simbólico dos Estados-nação pelo
que defende a não interferência nos assuntos internos de outros Estados,
bem como na formulação e condução das respectivas políticas externas e
na adopção de diferentes modelos de desenvolvimento;
• Ao defender a sua independência, está a advogar a democratização do
sistema internacional, ao abrigo da qual todos os Estados, grandes ou
pequenos, poderosos ou fracos possuem os mesmos direitos no seio da
comunidade internacional de acordo com os princípios da Carta da ONU;
• Ao defender a sua independência, enfatiza que não participa em alianças
com outras grandes potências ou blocos, particularmente no plano militar,
recusando entrar em corridas ao armamento e em políticas de expansão
territorial, pois a sua política de defesa nacional é de natureza puramente
defensiva e refuta lógicas hegemónicas e a criação de esferas de influência.
• Ao defender a sua independência, desenvolve relações de amizade e
cooperação com mútuo benefício com todos os países de acordo com
os “Cinco Princípios da Coexistência Pacífica”, não julgando os outros
Estados segundo uma perspectiva puramente ideológica. A sua diplomacia
é omnidirecional, não sendo influenciada ou controlada por um qualquer
assunto específico numa determinada janela de tempo específica;
• Ao defender a sua independência, nunca cederá a pressões externas,
decidindo a sua posição no plano internacional de acordo com os interesses
do povo chinês e do mundo em geral36.
232
• Expandir as relações políticas e económicas da China com os países
vizinhos através de canais bilaterais e multilaterais de forma a impedir as
tentativas de contenção do seu crescente poder e influência regional por
parte dos EUA e do Japão;
• Desenvolver relações de cooperação militar bilateral com países vizinhos
de modo a reduzir as desconfianças e o acentuar do dilema de segurança
regional resultantes da modernização militar chinesa;
• Promover parcerias bilaterais com outras potências e actores globais, capa-
zes de conferirem à China uma maior liberdade de acção face aos EUA;
• Procurar e ampliar áreas de interesses comuns com os EUA e o Japão
passíveis de desenvolverem a cooperação bi e trilateral, mantendo a
estabilidade e evitando um confronto entre as três potências;
• Promover uma imagem positiva da China junto da opinião pública norte-
americana, europeia e internacional;
• Continuar a desenvolver a parceria estratégica com a Rússia, apesar das
ambivalências que a caracterizam;
• Cooperar com a Rússia em questões de segurança regional asiática, mais
concretamente na Ásia Central;
• Desempenhar um papel de liderança no seio da Organização de Cooperação
de Xangai (OCX) de forma a garantir a estabilidade na Ásia Central e
a continuidade de fornecimento de energia a partir dos Estados que
dela fazem parte, contrabalançando ao mesmo tempo as políticas norte-
americanas nesta região (o papel da OCX é essencial para estes desideratos
e mais um: no imediato e após a retracção da presença militar dos EUA e
da NATO na Ásia Central, o continental balancing da China, funcionará
como um contrapeso a um crescente offshore balancing da parte dos EUA
à China na Ásia-Pacífico;
• Recorrer a mecanismos multilaterais para constranger eventuais acções
unilaterais dos EUA, incrementando no processo o estatuto da China como
grande potência no seio das organizações e fora multilaterais internacionais,
especialmente no Conselho de Segurança da ONU;
• Encorajar a ASEAN a desempenhar um papel mais activo na segurança
regional asiática, em contraponto às alianças bilaterais dos EUA na região;
• Encorajar os Estados asiáticos a desenvolverem uma identidade colectiva
(jiti rentong) como base para uma cooperação regional de forma a impedir
as grandes potências externas à Ásia (i.e. EUA) de exercerem uma
hegemonia sobre a região;
• Desempenhar um papel activo e construtivo na resolução das questões de
segurança regional e internacional, contribuindo para a consolidação das
organizações internacionais de que faz parte, agindo como uma “potência
responsável” do sistema internacional;
233
• Procurar resolver as disputas territoriais com outros países asiáticos através
de meios diplomáticos, apoiados no diálogo e na negociação;
• Procurar a reunificação de Taiwan à China por meios pacíficos se possível, e
militares se necessário, desencorajando uma maior assertividade geoestra-
tégica e militar dos EUA e do Japão relativamente à questão de Taiwan;
• Continuar os esforços político-diplomáticos – via mecanismo multilateral
das Six Party Talks – para uma desnuclearização total da Coreia do Norte,
impedindo no processo tanto a sua implosão, como na sequência desta,
uma eventual reunificação coreana. No entanto, e como estratégia cautelar,
continuar a incrementar as relações políticas, económicas e diplomáticas
com a Coreia do Sul, tanto por razões de desenvolvimento económico
mutuamente vantajoso como em antecipação de uma eventual – ainda que
não desejada – reunificação.
• Participar em actividades relativas a questões de segurança não tradicional
(terrorismo, alterações climáticas, crime organizado, etc.) demonstrando
a determinação da China em implementar o estipulado no seu “Novo
Conceito de Segurança”;
• Desenvolver o seu soft power através da atracção gravítica da sua cultura e
civilização, potenciando o incremento da sua influência regional e global, do
qual o conceito de “mundo harmonioso” (hexie shijie) é um bom exemplo;
• Explorar rapidamente todas as oportunidades de comércio e de investimento
regional e global, criando um ambiente propício à continuação da sua
“ascensão/desenvolvimento pacífico”;
• Fortalecer as capacidades militares tanto para projecção continental
terrestre como marítima, tidas como essenciais para a defesa dos seus
interesses vitais e a prossecução do estatuto de grande potência mundial
com um desejada preponderância regional asiática.
Observações finais
Em si mesma, a actual estratégia da China de “desenvolvimento pacífico” não
levanta grandes preocupações, porque assume – por enquanto – uma primazia da
dimensão interna sobre a dimensão externa do país. No entanto devemos reconhecer
que esta é uma grande estratégia para um período de transição e uma janela de
oportunidade. As questões e dúvidas que se levantam são se uma vez atingido o
estatuto de “grande potência mundial”, o seu comportamento se manterá ou se
reivindicará a partir de uma posição de maior preponderância, alterações ao sistema
e à ordem internacional que a beneficiem directamente?
Não só não sabemos como não podemos saber, pelo menos por enquanto.
Ainda que os actuais líderes chineses repitam nos seus discursos que “a China
nunca será uma potência hegemónica, não recorrerá a políticas de poder e nunca
234
constituirá uma ameaça para os países vizinhos ou para a paz mundial”, dúvidas
persistem. Não poderemos saber como no futuro os seus sucessores poderão vir
a considerar os respectivos interesses nacionais e a sua defesa e responder a uma
envolvente internacional que seja diferente da actual.
O país pode continuar a “atravessar o rio, tacteando com os pés as pedras no
leito do mesmo” (mozhe shitou guohe) – como defendeu Deng Xiaoping - mas a
questão que se coloca é quando chegar à outra margem o que irá fazer? Ajudará
outros a atravessarem o rio juntando-se a ela e aos Estados Unidos? Ou empurrará
estes para o leito, ficando com a margem só para si?
A China está uma vez mais numa encruzilhada, numa nova “fase crítica”37. Os
ingredientes do seu modelo de desenvolvimento estão a aproximar-se do final do
prazo de validade, requerendo correcções decisivas para garantir a continuidade do
sucesso económico, da estabilidade política e social do país a longo prazo, para que
esta “não desista de atravessar o rio a meio, correndo risco de afogar-se”.
O país é uma grande potência regional com uma crescente influência global.
Este incremento de poder tanto (auto)percepcionado como efectivo, trar-lhe-á
responsabilidades adicionais, o que implicará a assumpção e/ou a criação de
prescrições de políticas globais alternativas que possam ir para além da visão e
da retórica “algo espiritual” de um “mundo harmonioso”, que se assemelha mais
a uma panaceia do que a uma política concreta que vise a redução de hostilidades
que estão a ser induzidas estruturalmente à sua ascensão, com os perigos que
daqui possam advir, não apenas para Pequim como para a estabilidade do sistema
internacional.
Como instrumento primordial da grande estratégia a sua política externa
evoluiu de forma assinalável, estando cada vez mais assente numa lógica de “defesa
dos interesses nacionais, evitando males” (qiu li bihai), quando há dez anos atrás,
tinha como “objectivo primário o evitar males (yi bihai weizhu), promovendo os
seus interesses nacionais”.
A dificuldade do Zhongnanhai estará cada vez mais em saber como pode
contribuir para a manutenção de um tão delicado quanto importante equilíbrio entre
o desenvolvimento global e a permanente gestão de uma conflitualidade latente
e sistémica; entre a sua ascensão e o declínio relativo de outros actores; entre a
sua crescente confiança e as expectativas e ansiedades que gera, principalmente
no plano regional asiático – área geográfica cada vez mais determinante para a
segurança e estabilidade do sistema internacional.
Avizinham-se tempos interessantes…
37
Como enfatizou o Primeiro-Ministro Wen Jiabao aquando do seu relatório ao Congresso Nacional do Povo, em
5 de Março de 2012, ao advogar reformas estruturais profundas no plano político e económico, sob pena de uma
estagnação e eventual colapso futuro. Wen Jiabao (2012). “Quarterly Chronicle and Documentation”. The China
Quarterly nº 210, pp. 544-545.
235
236
TEORIZAÇÃO SOBRE ESTRATÉGIA MILITAR:
ÂMBITO, OBJETO E PLANEAMENTO
237
238
TEORIZAÇÃO SOBRE ESTRATÉGIA MILITAR:
ÂMBITO, OBJETO E PLANEAMENTO
A estratégia militar, enquanto campo de estudos, tem uma delimitação que não
é fácil de definir, aliás, como a quase totalidade dos campos de estudos no
âmbito das ciências sociais e políticas. Aceita-se a sua subordinação à grande
estratégia e às decisões políticas, por um lado, bem como o seu papel enquadrador
nas opções operacionais e táticas no quadro do emprego da força militar, por outro.
Enquanto nível charneira, ao situar-se entre os níveis da concepção estratégica
global e da execução militar, absorve destes as suas particularidades mas também
os influencia determinantemente, sendo por isso um campo que deve ser estudado
e bem compreendido por todos aqueles que têm responsabilidades políticas e
militares. Interessa por isso, de uma forma necessariamente sucinta, relacionar
a estratégia militar com os seus principais enquadrantes – a política, o poder, a
estratégia, a coação, as operações e a tática – e dessa forma identificar o seu
âmbito e situar o quadro analítico do objeto em estudo.
As decisões estratégicas militares devem ser enquadradas pelas orientações
e decisões políticas. A política, na sua concepção moderna, pode ser entendida
como ciência e como atividade. Enquanto ciência trata dos fundamentos do Poder,
das suas modalidades de aquisição e de utilização, da sua concentração e da sua
distribuição, da sua origem e da legitimidade do seu exercício (Pasquino 2002,
13); enquanto atividade1 trata, lato sensu, das ações dos órgãos do Estado para
conservar a sociedade política e definir e prosseguir o interesse geral (M. Caetano
apud Couto 1988, 215). É precisamente no quadro deste interesse geral que se deve
1
É neste âmbito que se situa a chamada “política pública” (policy). As policies, normalmente, emanam de autoridades
governamentais e constituem respostas a problemas sociais, económicos ou políticos que adquiriram impor-
tância. Implicam processos de decisão e de implementação, podendo agrupar-se em quatro grandes categorias:
distributivas, reguladoras, redistributivas e constitutivas (Pasquino 2002, 251-278).
239
relacionar a política e a estratégia militar. Os interesses das sociedades políticas estão
relacionados com as aspirações, necessidades e preocupações dessas sociedades
e envolvem normalmente quatro grandes áreas: sobrevivência e segurança,
integridade política e territorial, desenvolvimento e bem-estar económico, e
estabilidade. Cabendo à política prosseguir e definir o interesse geral nessas quatro
áreas, através do estabelecimento de finalidades, orientações e objetivos políticos,
caberá à estratégia militar (no quadro da “grande estratégia”, onde se englobam
todos os instrumentos de Poder) estabelecer os objetivos estratégico-militares
que contribuem para, através da utilização do instrumento militar, alcançar esses
desígnios políticos nacionais. Pode-se afirmar que que à política compete sobretudo
a escolha dos fins últimos e a definição do quadro geral de ação, e à estratégia
militar, subsidiariamente, compete gizar os melhores métodos e meios militares
para se atingirem aqueles objetivos que contribuem para alcançar a(s) finalidade(s)
políticas estabelecidas e assim salvaguardar os interesses nacionais.
O instrumento militar é um instrumento de Poder ao dispor das organizações
políticas. A sua utilização estratégica contribui para que num conflito de interesses essas
organizações alcancem os seus objetivos, impondo a sua vontade a outros, se necessário.
O conceito de Poder remete-nos para a capacidade de obrigar, de fazer cumprir, de
impor a vontade a outrem e, consoante as circunstâncias, pode ter sedes diferentes
(conforme o tipo de conflito, interno ou internacional), usar várias componentes
(militar, económica, política, informacional, etc.), e revestir-se de formas diversas
(coação, autoridade, influência, persuasão, controlo, etc.). No quadro do chamado
Poder militar, as discussões atuais centram-se na utilidade da força militar no contexto
estratégico contemporâneo. É possível verificar que o instrumento militar nunca foi
tanto utilizado como na atualidade; e, de facto, as suas diversas capacidades fornecem-
lhe um tal caráter de flexibilidade e adaptabilidade que o tornam imprescindível face à
multidimensionalidade das ameaças atuais. Contudo, em abono da verdade, situações e
conflitos recentes nos EUA, no Iraque, no Afeganistão ou em África, demonstram que é
útil e inteligente utilizar de forma integrada todos os instrumentos de Poder disponíveis
(diplomáticos, militares, civis, económicos, informacionais) para lidar eficazmente
com uma panóplia enorme de situações, despoletadas por diversos agentes adversos, de
natureza política (v.g. terrorismo), económica (v.g. interrupção de fluxos energéticos,
terrestres, marítimos ou aéreos) ambiental (v.g. catástrofes naturais), tecnológica (v.g.,
no âmbito do ciberespaço ou da indústria química.
A Estratégia Militar, enquanto ciência, atividade ou arte, é naturalmente
uma especialização da Estratégia. Não cabendo neste ensaio uma análise
aprofundada sobre o caráter científico da estratégia e o seu corpo axiomático,
interessa escalpelizar brevemente o seu conceito. O conceito de estratégia2, tal como
2
Etimologicamente, o termo estratégia deriva do grego “strategos”, referindo-se ao general, o comandante do exército,
resultando a estratégia das suas decisões. Neste âmbito aconselha-se a leitura de “Definitions of Strategy” de Edward
N. Luttwak (Luttwak 2003, 267).
240
o de segurança e outros, é um conceito que tem evoluído ao longo dos tempos e a
sua aplicação tem-se generalizado a contextos diferentes do original (militar), tais
como o político, o empresarial3, o desportivo, e outros, com as inerentes implicações
conceptuais ao nível da sua natureza, sujeitos, âmbito, finalidade e instrumentos.
Como denominador comum às diversas definições encontramos a estratégia
enquanto método racional que visa atingir os objetivos estabelecidos afetando
a decisão do adversário. Em Portugal, no quadro dos estudos estratégicos, é
geralmente aceite a definição proposta pelo General Abel Cabral Couto, revista
em 1998, de “ciência e arte de, à luz dos fins de uma organização, estabelecer e
hierarquizar objetivos e gerar, estruturar e utilizar recursos, tangíveis e intangíveis,
a fim de se atingirem aqueles objetivos, num ambiente admitido como conflitual
ou competitivo (ambiente agónico).” Mutatis mutandis, para a organização política
“Estado”, a sua estratégia relaciona-se com a melhor forma de gerar, estruturar
e utilizar (mobilizar) os recursos nacionais necessários (militares, diplomáticos,
económicos, informações, etc. – e que poderão também ser geradores de Poder)
para atingir os objetivos por si estabelecidos, num ambiente “de desacordo” (que,
no quadro das relações internacionais, normalmente são aquelas designadas por
conflituais), tendo em vista salvaguardar os seus interesses e garantir os seus fins.
Estratégia Nacional4 envolve pois todos os elementos do Poder nacional (que
poderão servir também como forma de coação) que, por sua vez, são a base das
respetivas “estratégias gerais”5: económica, psicológica, política e militar, etc. É
ao nível destas estratégias gerais que se situa a charneira entre a concepção e a
execução, i.e., entre aquilo que se quer ou deve fazer e aquilo que as condições
técnicas e as possibilidades materiais permitem fazer (Couto 1988, 230). Como já
referido, à estratégia compete utilizar da melhor forma os recursos, mas igualmente
desenvolvê-los e organizá-los da melhor forma tendo em vista os objetivos
estabelecidos. Assim, podem-se distinguir na estratégia os aspetos operacionais
(ligados à utilização e emprego dos meios), os aspectos genéticos (relacionados
com a geração e criação de novos meios) e os aspectos estruturais (correspondentes
à composição, organização ou articulação dos meios). Normalmente, os aspetos
genéticos, em virtude dos elevados custos associados e/ou outras apreciações
3
Na linguagem empresarial, é recorrente hoje em dia associar-se o termo estratégico ao nível de decisão mais
elevado e ao prazo de planeamento mais alargado.
4
Neste sentido, em que o enfoque da estratégia é o Estado, com os seus interesses e os seus elementos de Poder,
Harry Yarger considera estratégia como “o emprego dos instrumentos (elementos) de poder (políticos/diplomáti-
cos, económicos, militares e informacionais) para atingir os objetivos políticos do Estado em cooperação ou em
competição com outros atores que persigam os seus próprios objetivos”. Para Yarger e para Lykke, estratégia tem
fundamentalmente a ver como (métodos - ways or concepts) a liderança usará o Poder (meios - means or resour-
ces) disponível para o Estado exercer o controlo sobre um conjunto de circunstâncias e localizações geográficas
de forma a atingir objectivos (fins - ends) que sustentem os interesses do Estado (2006, 5).
5
A definição do patamar estratégico geral pode variar de acordo com a natureza dos recursos e capacidades disponíveis
(associados à forma de coação), com o nível de decisão ou com a desmultiplicação dos objetivos estabelecidos.
241
críticas, estão na esfera de decisão mais elevada (integral), os aspetos operacionais
estão nas esferas de decisão intermédia (geral) e baixa (particular), e os aspetos
estruturais, dependendo de vários fatores e considerações, encontram-se repartidos
entre os vários níveis de decisão. Um último ponto relacionado com alguma
confusão que surge amiúde entre estratégia enquanto ciência/atividade com o nível
de decisão/condução da guerra (ou das operações em sentido lato). O primeiro
tem a ver com um corpo de princípios, conceitos, conhecimentos e aplicações da
estratégia, e o segundo tem a ver com o nível organizacional em que se situa a
decisão (v.g. político, estratégico, operacional e tático)6.
A estratégia emprega a coação, nas suas diversas formas (diplomática,
militar, económica e política), para alcançar os seus objetivos. Tal como já
referido anteriormente, a coação é uma das formas de que se reveste o Poder e
muitos estrategistas consideram-na mesmo o principal instrumento da estratégia7.
Etimologicamente deriva do latim coactio, que significa genericamente a ação de
obrigar alguém contra a sua vontade; pode-se considerar que difere da coerção no
sentido em que esta corresponde à efetivação da utilização da força ou da violência
enquanto a coação tem um caráter potencial, ameaçando a utilização da força/
violência se determinada obrigação não for cumprida. A coação é pois instrumental
para a estratégia no sentido em que a sua utilização, ao obrigar o adversário a
aceitar o ponto de vista de outrem, por ameaça de utilização da força ou violência,
oferece uma possibilidade muito elevada de resolução do conflito a favor do coator.
A coação pode revestir duas formas principais, uma negativa (a dissuasão)8 e uma
positiva (a persuasão), sendo que em ambas se pretende convencer o adversário a
alterar as suas intenções. Na dissuasão pretende-se desencorajar determinada ação
através da utilização ou demonstração de determinadas capacidades suficientemente
dissuasoras (v.g. posicionamento ou movimentação de forças, mobilização de
reservas, sanções, aquisição de capacidade nuclear, ou entrada para uma aliança
militar)9. Na persuasão (muitas vezes também chamada de coação psicológica)
utiliza-se um conjunto de argumentos de valor para convencer o outro a fazer o
que o persuasor pretende (v.g. benefícios, apelos emocionais ou mera chantagem).
A coação militar visa a capitulação adversária através da ameaça de emprego de
meios militares, acenando à possibilidade de aumento de violência e confronto
6
Ou superior, médio e inferior; ou 1º, 2º, 3º…nível, etc.
7
Cfr. Couto “O objeto da estratégia é a coação, entendida como situação de facto e situação possível” (1988, 209).
8
“Se o objetivo for inibir o Outro de usar meios e/ou de adotar certos comportamentos, (…) impedir a concretização
das ameaças por parte do Outro, então visa-se a dissuasão do adversário relativamente a esses meios e/ou atitudes”
(Santos 1983, 327).
9
Neste âmbito, o General Loureiro dos Santos divide a dissuasão em dois tipos, o defensivo e o ofensivo. O primeiro
baseia-se no levantamento de sistemas que conduzam o adversário a pensar que não é gratificante atacar (por ser muito
difícil de ganhar) e o segundo baseia-se no levantamento de sistemas que permitam infringir uma punição (capacidade
de exercer represálias) ao adversário caso ele tome determinada atitude. Em função dos meios pode haver dissuasão
económica, psicológica diplomática e militar (Santos 1983, 330).
242
militar e, em último caso, à guerra. Na teoria geral da estratégia, esta forma de
coação serve ainda para distinguir estratégias (ou métodos) quanto ao estilo de
ação. Assim, é geralmente aceite que quando o principal instrumento de coação
for o militar estamos em presença de estratégias diretas, quando forem outros
instrumentos de poder, como a diplomacia ou a economia, estamos em presença de
estratégias indiretas.
As operações em sentido lato materializam aquilo que se chama de
“vertente operacional” da estratégia, isto é, o emprego dos meios existentes para
alcançar fins estratégicos. Independentemente do nível de decisão ou condução,
as operações militares podem-se caracterizar genericamente pelo conjunto de ações
levadas a cabo por forças militares para se atingirem os seus objetivos. Envolvem
naturalmente o seu planeamento, considerando fatores de ordem doutrinária, tática,
logística e outros. Dada a variedade, o volume e a complexidade do emprego
das forças militares, a condução (e responsabilidade) das operações militares foi
dividida em níveis. Assim, os níveis de condução das operações militares são
genericamente o estratégico10, o operacional e o tático. Ao nível estratégico as
forças militares são empregues num quadro de atuação definido pela política e de
uma forma sincronizada com outras iniciativas não militares (v.g. diplomáticas
ou económicas), de forma a atingir aqueles objetivos de maior importância, cujo
conjunto materializa a finalidade global. Ao nível operacional, sendo um nível
intermédio entre o estratégico e o tático, planeiam-se e realizam-se campanhas e
“grandes operações” por forma a atingir objetivos estratégico-militares (ou também
operacionais). Este nível está normalmente associado uma grande quantidade e
variedade de meios militares mas representa muito mais do que a mera soma dos
diferentes meios e blocos táticos, pelo que a sua eficácia depende de considerações
de emprego como a integração, sincronização, ritmo e criatividade: a chamada “arte
operacional”. Ao nível tático das operações, as forças militares, normalmente mais
reduzidas e com natureza mais ou menos semelhante, são empregues para realizar
tarefas nas suas áreas de especialidade e alcançar objetivos militares adequados
(v.g. a destruição de determinado inimigo, em lugar x, contribuindo assim para
criar efeito y), objetivos esses que, se alcançados, constituem a base do sucesso
ao nível operacional e estratégico. É pois nestes três níveis que as operações
militares normalmente se desenrolam, planeiam e decidem. É importante vincar
que os três níveis não são estanques; ações ao nível tático terão efeitos ao nível
operacional ou mesmo estratégico, e decisões ao nível estratégico ou operacional
terão necessariamente consequências ao nível tático11.
10
Envolvendo considerações quer políticas quer estratégico-militares.
11
Com a evolução da tecnologia e crescentes preocupações com os efeitos político-estratégicos das ações militares
assiste-se cada vez mais a uma compressão destes três níveis e a uma intromissão de responsáveis estratégicos
ao nível tático, o que tem contribuído para questionar a (real) capacidade de decisão e a (fundamental) iniciativa
dos subordinados.
243
Resta relacionar a estratégia com o seu enquadrante inferior, a tática.
Tática pode-se considerar como um conjunto de preceitos, regras e considerações
que visam o cumprimento adequado e oportuno de tarefas específicas, tendo em
consideração as possibilidades técnicas dos recursos disponíveis, o meio de atuação
e as capacidades e intenções do adversário. Em relação à estratégia, apesar de
usar a mesma lógica em relação ao adversário, o seu âmbito é mais específico,
centrando-se na melhor forma de cumprir determinadas tarefas utilizando os meios
disponíveis, enquanto a estratégia se preocupa mais com a conceção de objetivos,
com a identificação das finalidades e com a existência ou não dos melhores recursos
para materializar determinada intenção. As considerações a ter em conta na tática e
na estratégia militar, apesar de subsidiárias, são assim diferentes no que se relaciona
com a existência e natureza dos meios militares, com os métodos utilizados para
alcançar os respetivos objetivos, com as capacidades e intenções dos adversários e,
fundamentalmente, com os efeitos a obter.
Feito o enquadramento genérico do campo de atuação (âmbito) da
estratégia militar interessa agora sintetizar genericamente o seu objeto:
o instrumento militar. Este, como refere o General Loureiro dos Santos,
consubstancia o fator militar do potencial estratégico, constitui a última garantia
do poder do Estado e tem a finalidade de afirmar o poder nacional, em conjugação
com todos os outros vetores. Visa basicamente o objetivo de segurança e,
institucionalmente, detém o monopólio de utilização da violência organizada,
o que lhe assegura o grau último na escala da coerção, i.e., em última instância
e como último recurso, quando for impossível que o emprego combinado de
outros fatores consiga alcançar os objetivos visados e seja necessário aplicar a
violência física de forma organizada (Santos 2012, 18-19). No atual contexto
estratégico a utilização do instrumento militar pode assumir diversas formas,
podendo-se agrupar funcionalmente em três domínios: ação, coação ou apoio. A
função “acção”12 relaciona-se com as missões tradicionais das forças armadas,
nomeadamente, a defesa militar do país, a guerra e a salvaguarda de interesses
vitais ou muito importantes. A função “coacção”, como já referido anteriormente,
visa a capitulação adversária através da ameaça de emprego de meios militares,
acenando à possibilidade de aumento de violência e confronto militar e, em último
caso, à guerra. A função “apoio” tem um carácter essencialmente supletivo. As
capacidades das forças armadas são postas ao serviço de outros instrumentos de
poder, estratégias ou sistemas; pode envolver o uso da força militar (no caso de
apoio à política externa ou à segurança interna) ou, no caso das emergências, a
disponibilização de determinadas capacidades (recursos humanos e materiais)
12
É no âmbito desta função que primariamente são desenvolvidos os programas de treino, adquiridos os equi-
pamentos e desenvolvidas as capacidades. Implica normalmente a mobilização das principais capacidades
das forças militares; a força militar e a violência, se necessário, são utilizadas ao mais alto nível.
244
para complementar as capacidades do sistema de emergência e, assim, minimizar
consequências nefastas; neste último âmbito também podem ser utilizadas
as capacidades das forças armadas para, com carácter limitado, melhorar
as condições de vida das populações (melhoria de estradas, construção de
pontes, etc.).
As possibilidades que o instrumento militar fornece ao decisor estratégico
são pois muitas, o que o torna extremamente útil no campo volúvel da estratégia.
A sua adequabilidade e viabilidade, mas também, a enorme flexibilidade que
as capacidades das forças armadas proporcionam, torna-as vantajosas em
variadíssimas circunstâncias, num contexto “securitário” complexo e indefinido.
Às suas missões tradicionais foram adicionadas outras, cobrindo um variado
espectro de atuação, o que implica novas capacidades e novas formas de atuar; quer
seja para melhorar a segurança, para contribuir para a estabilidade e reconstrução,
para auxiliar em situações de desastre, assistência humanitária, bem como conter,
dissuadir, impor, influenciar, ou destruir potenciais adversários, parece pois certa
a crescente importância do instrumento militar, merecendo por isso a devida
atenção dos decisores.
Os desafios que atualmente se colocam aos Estados, os interesses e os
recursos críticos em jogo não permitem que os Governos e organizações adotem a
intuição como forma de análise e o improviso como atitude13 (aspetos capazes de
gerar riscos enormes) sendo que, por isso, o planeamento da ação estratégica deve
desempenhar um papel capital, conferindo um carácter consciente e calculado às
decisões, permitindo conduzir os acontecimentos em vez de ser arrastado por eles.
Neste sentido, em virtude da criticidade dos meios e ações militares, interessa
uma breve incursão no âmbito do planeamento estratégico militar. A este
nível, há toda a vantagem em distinguir dois tipos de planeamento: planeamento
a prazo e planeamento de circunstância. O primeiro inscreve-se na necessidade
de prever o emprego futuro das forças armadas, está relacionado com as vertentes
genética, estrutural e operacional14 de longo prazo e tem tradução em documentos
como um Plano de Forças, Plano de Defesa, Conceito Estratégico Militar, Leis
de Programação Militar, etc. O segundo destina-se a empregar, de facto, o
instrumento militar e traduz-se genericamente em ordens de execução (Calçada
2001, 21). Em particular neste último tipo, importa perceber genericamente como
a estratégia militar contribui para alcançar os objetivos políticos em situações
de crise. Assim, num primeiro tempo é identificada ao nível estratégico-militar
a contribuição que a força militar pode dar para alcançar os objetivos políticos,
13
Como refere amiúde o CALM Silva Ribeiro.
14
Em Portugal, de acordo com a legislação em vigor, o CEMGFA é responsável pelo planeamento e implementa-
ção da estratégia militar operacional, competindo aos CEM´s dos Ramos formular e propor a estratégia estrutu-
ral do respetivo ramo, a sua transformação e a estratégia genética associada aos sistemas de armas necessários
ao seu reequipamento.
245
fornecendo ao decisor “opções de resposta militar”15 e que genericamente
poderão envolver: 1) identificação de objetivos estratégicos, definição de
objetivos de campanha e estado final desejado; 2) identificação de limitações
políticas, financeiras ou legais ao uso da força; 3) definição de capacidades da
força e a necessidade de uma reserva estratégica; 4) Estabelecimento dos arranjos
de comando; 5) análise do risco militar. Após a decisão política, num segundo
tempo, a estratégia militar é responsável por traduzir a orientação política em
direção estratégica militar para os comandos subordinados (QG´s), os quais
serão responsáveis pelo desenvolvimento de um Plano de Operações de nível
estratégico-militar (NATO 2010, 1-5). Para a eficácia deste processo é necessário
que ao nível estratégico-militar hajam informações que permitam apreciação
adequada da situação e ser parte integrante no processo de aconselhamento e
decisão política.
Feita uma caracterização da estratégia militar através da delimitação do seu
âmbito, da identificação do seu objeto e dos seus contributos para o planeamento
global, resta sintetizar o seu conceito, ao que procederá em jeito de breve revisão
da literatura. O General Abel Cabral Couto define-a “ciência e arte de desenvolver
e utilizar as Forças Armadas com vista à consecução de objetivos fixados pela
política” (Couto 1988, 229). Decorre da classificação da estratégia quanto ao
critério “formas de coação” (ou elementos de poder nacional, segundo outros
autores) e compete-lhe, com base na missão que lhe é definida pela estratégia total,
repartir e combinar as tarefas que deverão ser levadas a efeito nos diversos ramos
de atividade do domínio considerado e assegurar a sua execução (Couto 1988, 229).
Lykke cria e aplica o modelo ends-ways-means à estratégia militar16, daí resultando
que os seus fins são os objetivos militares, os seus métodos relacionam-se com
a aplicação da força militar e os meios os recursos militares (pessoal, material,
forças, logística, financiamento) necessários para cumprir a missão (2001, 180).
Estas duas definições permitem abarcar as duas dimensões e os quatro principais
ingredientes da estratégia militar: ciência e atividade; recursos militares, objetivos
e métodos militares e, principalmente, génio militar, sem o qual a estratégia se
resume ao mero planeamento.
Uma última palavra de homenagem ao General Loureiro dos Santos no âmbito
da teorização sobre Estratégia. Loureiro dos Santos escrevia em 2004 que “Portugal
15
As quais devem considerar aspetos elementares como a adequabilidade militar, a aceitabilidade política e
a exequibilidade financeira. Na sua formulação final deverão identificar objetivos estratégicos, objetivos
militares, estado final, constrangimentos e restrições, análise do risco, e estratégia de saída.
16
Lykke considera ainda que existem dois níveis de estratégia militar: o operacional e o de desenvolvimento da
força. As estratégias baseadas nas capacidades militares existentes são estratégias operacionais e constituem
a base da formulação de planos de ação específicos no curto prazo (a este nível da estratégia também chama
grande tática ou arte operacional). As estratégias de longo prazo podem basear-se em estimativas de futuras
ameaças, objetivos e necessidades; são de natureza mais global, e podem exigir melhorias nas capacidades
militares existentes (2001, 180).
246
não tem um pensamento estratégico próprio”; esta afirmação faz muito sentido se
aplicada ao Estado português nas últimas décadas, mas faz pouco sentido quando
lemos a profunda e vasta obra do General Loureiro dos Santos e percebermos a
sua riqueza conceptual e os seus enormes contributos para a estruturação de um
pensamento estratégico português, principalmente no âmbito do seu planeamento
estratégico. Enfim, também isto faz parte da lógica paradoxal da estratégia.
Bibliografia
247
248
A EVOLUÇÃO DOS SISTEMAS DE COAÇÃO MILITAR
NO ESPAÇO PORTUGUÊS (SÉCULOS VIII-XIII)
249
250
A Evolução dos Sistemas de Coação Militar no Espaço
Português (séculos VIII-XIII)
1. Introdução
251
lecer uma delimitação clara, mas que não prejudique o objetivo. É deste modo
que, quanto aos sistemas de coação a observar, se optou por considerar “cristãos”
e “muçulmanos”, de forma genérica e, quanto aos limites temporais, considerou-se
como momento posterior, o final da Reconquista no território português, em 1249,
ainda bem dentro do que é conhecido como “Período de Evolução Técnica Lenta”,
preconizado por Eric Muraise1.
Analisar o período em causa somente do ponto de vista do confronto entre
cristãos e muçulmanos é perigoso e, certamente, redutor. No entanto, apesar das
relações entre os diversos reinos cristãos que se foram formando, tantas vezes mais
sangrentas que a própria guerra contra muçulmanos, e das convulsões internas do
al-Andalus2, o “pano de fundo” que assiste a grande parte da Alta Idade Média
peninsular é o facto de aqui se encontrar uma fronteira civilizacional.
Entre os séculos VII e XIII, a relação entre os mundos cristão e muçulmano na
Península Ibérica conheceu diversas variações, sendo possível identificar períodos
em que a conflitualidade se acentuou e períodos em que se atenuou, assim como
destrinçar épocas distintas através das diferentes manifestações do emprego do
instrumento militar, tanto no âmbito das caraterísticas das forças e meios, como no
âmbito da arquitetura militar. A divisão em épocas diferenciadas seguiu um critério
relacionado com os períodos de significativos avanços e recuos territoriais das
áreas de influência cristã e muçulmana, tendo sido identificados nove: (I) Invasão,
711-718; (II) Incursões e proventos de guerra, 718-866; (III) Presúrias e fixação
territorial, 866-979; (IV) Recuperação do Califado, 979-1012; (V) Primeiras taifas,
1012-1086; (VI) Avanço almorávida, 1086-1144; (VII) Segundas taifas e instalação
do poder almóada, 1144-1179); (VIII) Almóadas contra cristãos, 1179-1212 e (IX)
Fim do domínio almóada no território português, 1212-12493.
A metodologia utilizada consistiu na observação, em cada período, dos
sistemas de coação militar cristão e muçulmano, ao nível da estratégia geral militar4,
ascendendo ao patamar ideológico-político e/ou descendo à tática e à tecnologia
sempre que for nítida a influência de pelo menos um destes níveis no primeiro.
No final, elaborou-se uma síntese, que pretende retratar, de uma forma sucinta,
como evoluíram ambos os sistemas “genéricos” de coação militar presentes
na Península Ibérica, mais concretamente no espaço português, entre os séculos
VIII e XIII.
1
O século XV e o início da utilização intensiva da pólvora, no ocidente, surge como uma barreira separadora entre duas
épocas, a de “Evolução Técnica Lenta” e a de “Evolução Técnica Rápida”. A respeito da caraterização destes
dois períodos, veja-se Loureiro dos Santos, 2010, pp. 47-78.
2
Designação muçulmana da Península Ibérica.
3
As datas indicadas correspondem, na sua maioria, a referências mais simbólicas do que determinantes, dado que
a transição entre a maioria dos períodos escolhidos ocorre de forma progressiva e estendida no tempo e não de
forma súbita.
4
Como componente fundamental da estratégia total.
252
2. Dos Sistemas de Coação Militar
5
Como a ação psicológica, diplomática, política clandestina no interior do adversário e económica (Couto, 1987,
pp. 86-87).
6
John Keegan sustenta, por exemplo, a forma como a introdução da ideologia islâmica transformou os árabes
num povo militar (Keegan, 1993, p. 259). Um outro exemplo, ainda no campo ideológico, com reflexo ime-
diato no político, está relacionado com o papel que a Igreja desempenhou, durante os séculos XI e XII, na
sustentação teórica da “guerra justa”, levando à sacralização da cavalaria e, em última análise, ao surgimen-
to das ordens militares, com a consequente adaptação/evolução dos sistemas de coação militar cristãos (cf.
Rodríguez-Picavea, 2008, pp.26-28).
7
A título de exemplo, verifica-se que o desenvolvimento e proliferação de proteções para os cavaleiros, no sé-
culo XI, provocou uma transição nos sistemas de coação militar, antes vocacionados para as incursões rápidas
em território inimigo, depois predispostos para a procura da decisão nos confrontos diretos (Barroca, 2003d,
pp. 123-124).
253
3. Observação
Período I – Invasão
8
Dardos, fundas e arcos curtos.
9
O modelo militar visigodo assentava numa hoste, organizada em tiufadias (unidades de 1000 homens), divi-
didas, taticamente, de um modo próximo do romano. Uma tiufadia era composta por dois quingentários (500
homens), cada um destes com cinco centúrias (100 homens). O escalão mais baixo era a esquadra, de 10 com-
batentes, comandada por um decano. Uma vez que a cavalaria era a arma principal, as tiufadias eram corpos
mistos, de cavaleiros e infantes, que se apoiavam mutuamente. Crê-se que, em tempo de paz, o reino visigodo
mantinha a componente de cavalaria em permanência e só mobilizava a infantaria em caso de necessidade.
10
Estas capacidades são a materialização, no sistema de coação militar, das inovadoras possibilidades que a força
da ideia de Islão transferiu para a guerra (Cf. Keegan, 1993, p.259).
11
Sendo até, aceite, que não deviam existir grandes diferenças do ponto de vista do armamento individual, de parte
a parte, como se verificará já no século XII (Campo, 2000, p. 19 e 24).
254
e tática. Esta inovadora conceção de guerra muçulmana seria rapidamente adotada
pelas próprias forças cristãs, mesmo as exteriores à Península12 e perdurou, entre
nós, até meados do século XI.
O único reduto sob controlo cristão, na Península, foi o reino das Astúrias e,
em 718, a aristocracia asturiana elegeu Pelágio como rei. Um seu sucessor, Afonso
I (739-757)13, desencadeou ações militares contra o sul muçulmano, não com a
intenção (porque não tinha possibilidade) de ocupar território, mas para obter
proventos de guerra, através do saque e da captura de prisioneiros. É no seu reinado
que os muçulmanos abandonam a Galiza e retiram o seu controlo sobre as cidades
do Porto, Braga, León, Simancas, Osma, Salamanca, Ávila e Segóvia, tendo esta
retirada ficado a dever-se mais às convulsões atravessadas pelo mundo muçulmano
do que ao resultado de ações ofensivas cristãs14. Criou-se, assim, em torno do vale
do Douro, uma vasta região habitada, maioritariamente por cristãos, mas que não
respondia nem ao reino asturiano, nem ao emirado muçulmano (Barroca, 2003a, p.
22).
As incursões cristãs eram rápidas e apoiadas na cavalaria ligeira, normalmente
sobre territórios próximos, embora haja registo, neste período, de pelo menos
uma ação de grande profundidade, de Afonso II sobre Lisboa, em 798. Menos de
um século depois da invasão muçulmana, a organização militar asturiana difere
significativamente da visigoda e surgem novas designações para as operações
levadas a cabo pelas forças cristãs, destacando-se o fossado, que consistia numa
incursão em território inimigo, normalmente encabeçada por um grupo de cavaleiros
acompanhados de peonagem (Contamine, 1980, p. 147)15.
No lado muçulmano, o curso do século VIII no al-Andalus assistiu à redução
do efetivo de arqueiros apeados e ao aumento da cavalaria ligeira (Nicolle, 2008,
pp. 28-29). Há registo de incursões muçulmanas ao norte, em tudo análogas aos
fossados, a partir de 791 e, até ao final do período analisado, os historiadores árabes
assinalaram, pelo menos, sete grandes expedições16.
Não existem evidências de superioridade tecnológica ou tática de um dos
lados. Do ponto de vista estratégico assistiu-se a um reequilíbrio por parte do lado
12
Os contingentes de cavaleiros ligeiros, incluindo a presença de arqueiros montados, passaram a figurar nos
contingentes da monarquia carolíngia e noutras hostes da Europa Ocidental (Barroca, 2003c: 148).
13
O segundo rei das Astúrias foi Fávila, com um reinado efémero, entre 737 e 739.
14
A partir de 742 sucederam-se revoltas das tribos berberes, quer no norte de África, quer no Andalus, que obri-
garam o califado omíada, com sede em Damasco, a empenhar os seus recursos militares na contenção da crise
(Mattoso, 1992, p. 445).
15
Mais tarde, já no território português, usar-se-á, por oposição, o termo “cavalgada”, que alude a uma incursão
com propósitos idênticos ao fossado, mas em que só participam elementos montados (Barroca, 2003b, p. 84).
16
Em 791, 795, 796, 816, 823, 839 e 846 (Mattoso, 1992, p. 478).
255
cristão, tendo desenvolvido, ambos os lados, uma tipologia de operações assente
em incursões em território inimigo com objetivo económico – de obtenção de
proventos – e não de conquista.
17
Posição em que permaneceria até 987, altura em que uma revitalização militar muçulmana veio alterar o equilí-
brio de poderes nos sistemas de coação militar muçulmanos e cristãos, desta vez em favor dos primeiros.
18
A alcáçova de Mérida (835) é o modelo mais perfeito encontrado na Península. Entre nós, o castelo velho de
Alcoutim e o castelo das Relíquias (igualmente em Alcoutim) são os melhores exemplos (Barroca, 2003c,
p. 115).
19
Pelo menos de conquista de territórios ao mundo muçulmano. Sabe-se que os primeiros reis asturianos tiveram
que vencer alguma resistência, na Galiza, não de muçulmanos, mas de líderes locais (Mattoso, 2011, p. 41).
256
Período IV – Recuperação do Califado (979-1008)
Entre 791 e 975, José Mattoso contabiliza, pelo menos, dezoito grandes ações
ofensivas muçulmanas contra território cristão, admitindo também a ocorrência de
muitas outras, em menor escala ou não narradas pelas crónicas islâmicas (Mattoso,
1992, p. 478), mas a realidade mostrou que, entre estas duas datas, foi o lado cristão
que logrou uma expansão territorial que chegava ao vale do Mondego.
A partir de 979 ocorreu uma mudança determinante no califado: al-Mansur
ibn Abi Amir20 protagonizou uma profunda reforma militar, eliminando a forma
tribal de recrutamento no al-Andalus, passando a assentar a hoste numa estrutura
de mercenários berberes e cristãos que combatiam a troco de recompensas.
Com o reforço dos contingentes provinciais, uma vez convocada a mobilização,
concentrava-se na capital uma força impressionante, que podia depois ser conduzida
em direção aos objetivos estratégicos21.
O exército muçulmano profissionalizou-se e ganhou nova capacidade
ofensiva, permitindo desencadear diversas operações, particularmente violentas,
que fizeram com que a fronteira tornasse a recuar para o vale do Douro22. Entre
estas expedições contam-se incursões em Leão, Castela, Aragão e Navarra,
incluindo o saque de cidades como Zamora (981) e Compostela (997). Nesta
operação sobre a Galiza, destaca-se o desdobramento do contingente em duas
forças: a cavalaria evoluiu desde Córdova, por terra, conquistou Lamego, que
oferecera resistência, e incorporou vários contingentes cristãos ao longo do
trajeto; a infantaria deslocou-se por mar desde Alcácer do Sal. Os contingentes
reuniram-se no Porto e entraram na Galiza, tendo desencadeado o assalto a
Santiago de Compostela cerca de um mês depois de terem saído dos locais de
partida (Barroca, 2003a, p. 27).
Em consequência da profissionalização das hostes muçulmanas, as populações
deixaram, gradualmente, de participar em operações militares, ficando o ofício
da guerra a cargo dos soldados ao serviço do estado, um sistema que perdurará
no al-Andalus (García Fitz, 2005, pp. 267-268). É principalmente a partir deste
período que aumenta o contraste entre o grau de militarização das sociedades cristã
e muçulmana peninsulares, tornando-se este bastante mais elevado na primeira do
que na segunda.
20
Al-Mansur é um cognome que significa “o Vitorioso”. Ao longo dos tempos, vários líderes muçulmanos rece-
beram este cognome, destacando-se, entre outros, o segundo califa abássida de Bagdade (Abu Ja’far Abdalah
ibn Muhamad). Na Península Ibérica, assumem destaque dois chefes, em contextos e épocas diferentes: ibn Abi
Amir (938-1002) e Abu Yusuf Ya’qub (1160-1199).
21
Para uma ideia da dimensão deste exército, sabe-se que, no final do século X, al-Mansur ibn Abi Amir mobili-
zava uma força regular de cavalaria de cerca de 12 000 combatentes (Nicolle, 2001: 12).
22
Embora na faixa ocidental da Península alguns territórios junto ao Vouga permanecessem sob a coroa de Leão,
como Arouca e Santa Maria (Barroca, 2003a, p. 28).
257
Não existindo claras evidências quanto ao desempenho tático, verificou-
se que, entre 979 e 1008, as expedições de ibn Abi Amir e do seu filho, Abd al-
Malik, demonstraram a superior capacidade estratégica do califado - que até
permitia combinar o movimento de forças por terra e por mar para uma operação
na profundidade do território cristão.
23
Entre elas, em 1022, Badajoz, governada pela dinastia aftácida; em 1023, Sevilha, pela dinastia abádida; em
1026, Ossónoba (Faro), governada pelos Banu Harun. Em 1044, a Taifa de Mértola foi absorvida pela de Bada-
joz. Em 1048, é fundada a Taifa de Silves, governada pela dinastia dos Banu Muzayn.
24
Para uma ideia da dimensão deste exército, sabe-se que, no final do século X, al-Mansur ibn Abi Amir mobili-
zava uma força regular de cavalaria de cerca de 12 000 combatentes (Nicolle, 2001: 12).
258
peões fornecidos pelos concelhos, de acordo com o determinado nos forais25. A
este modelo estavam associadas diferentes obrigações militares, consoante o tipo
de guerra pretendido, o que lhe conferia uma grande flexibilidade, quer estratégica,
quer tática. Se o monarca pretendesse uma ofensiva em larga escala, convocava
a hoste; se a operação fosse um fossado, constituía uma força “à medida” da
expedição. No campo defensivo, o “apelido” representava a mobilização de todos
os indivíduos capazes de pegar em armas (Contamine, 1980, p. 148).
A partir de 1055, Fernando Magno desencadeou uma campanha que resultou
na conquista de Lamego (1057), de Viseu (1058) e terminou com a conquista de
Coimbra, em 1064. Com a aquisição de tão vastos espaços, o modelo condal das
civitates, vigente até então, tornou-se ineficaz, sendo substituído pelo modelo das
terrae, unidades mais pequenas, mais fáceis de administrar e que podiam, com
recurso ao apelido, ser defendidas pelos próprios habitantes locais, liderados por
uma nobreza, de origem “obscura”, no dizer de Mário Jorge Barroca, que, já no
século XII, virá dar origem aos ricos-homens e a algumas das mais conhecidas
linhagens da primeira dinastia portuguesa. É o modelo senhorial, que começa a
tornar inúteis os pequenos castelos construídos por iniciativa das populações e os
substitui por castelos centrais, de arquitetura românica, mais evoluída (Barroca,
2000, pp. 39-40).
Não sabemos se a alteração da abordagem estratégica requereu alterações ao
nível da tática ou se teve lugar o processo inverso. No entanto, é no período de
Fernando Magno que surgem os primeiros registos de cercos prolongados, com
a duração de vários meses26. Um cerco prolongado não é possível se o sitiante se
encontrar impossibilitado de reabastecimento, pelo que deverá ter surgido outra
alteração tática com o novo tipo de guerra: a da necessidade de emprego de forças
para a manutenção de linhas de comunicação. Ao nível da técnica, o primeiro registo
do uso de máquinas de cerco ocorre na conquista de Lamego, em 1057. A esta
tendência para o incremento da poliorcética não deve ser alheio o modelo militar dos
reinos taifas que, apesar de seguir, no plano tático (na tipologia de tropas e modo de
emprego), o delineado pelos almorávidas, apresenta bastantes limitações em relação
aos exércitos que o califado anteriormente conseguia mobilizar. Uma vez que, por
um lado, as sociedades muçulmanas peninsulares eram menos aguerridas que as
berberes e, por outro lado, a capacidade de mobilização das taifas dependia seus
limites territoriais, a resultante era uma força pequena, mal armada e com limitada
capacidade militar (García Fitz, 2005, p. 271). A perda de capacidade ofensiva,
aliada à escassez de efetivos, levou a que, do lado muçulmano, se produzisse uma
crescente procura de proteção nas estruturas defensivas, nos castelos.
25
Entre eles, os besteiros. A partir do século XI, a besta torna-se uma arma cada vez mais popular entre os cristãos,
de tal modo que a escola de tiro com arco vai declinando à medida que vão surgindo os besteiros especialistas.
Estes combatentes – apesar de gente do povo – vão adquirindo um estatuto diferenciado nas hostes.
26
O cerco de Coimbra durou de 20 de janeiro a 9 de julho de 1064 (Barroca, 2000, p. 40).
259
O período das primeiras taifas é, por conseguinte, marcado por uma evolução
dos sistemas de coação militar na Península Ibérica, que passam a incorporar, em
ambos os contendores, técnicas e táticas de poliorcética, ao mesmo tempo que
os processos de “incastelamento” ganham um grande impulso. A alteração da
técnica e das táticas teve impactos significativos na estratégia: (i) as operações
ofensivas passavam a ter grande duração, com implicações no sistema de
recrutamento, aspeto que foi obviado, do lado cristão, com a implementação do
sistema senhorial; (ii) a manutenção das linhas de comunicações passa a ser vital,
porque as hostes só podem sobreviver durante longos períodos em território hostil
se puderem ser sustentadas a partir de território amigo; (iii) os castelos assumem,
vincadamente, a materialização de poder do monarca e não somente redutos de
refúgio local, a guerra de cerco ganha convenções próprias e passa a ser o modelo
de guerra dominante.
260
Período VII – As Segundas Taifas e a instalação do poder almóada (1144-1179)
261
combater colocando o desempenho do coletivo acima do desempenho individual,
vão constituir a “ponta de lança” dos reinos cristãos peninsulares, adquirindo, desde
logo, a primazia do controlo territorial das faixas de fronteira da cristandade. Isto
não impede a coexistência de modelos militares com relativo grau de independência
dos monarcas, dos quais é exemplo o do caudilho Geraldo Geraldes, que tiveram
facilidade em obter sucessos por conta própria, em boa medida mercê da situação
de fragmentação muçulmana anterior à ascensão almóada.
No que respeita ao recém-formado reino de Portugal, a guerra contra os
muçulmanos do primeiro reinado é movida, nos primeiros anos, contra um poder
almorávida enfraquecido; até à década de 1150, contra os reinos taifas que lhe
sucederam; e, a partir da segunda metade do século XII, D. Afonso Henriques
(1143-1185) tem pela frente o poder militar almóada.
Durante o período de transição entre os poderes almorávida e almóada o sistema
de coação militar dos reinos cristãos experimenta uma evolução significativa, pela
introdução de um elemento ideológico novo que se materializa no espírito cruzado
e nas ordens militares. Isto permite uma clara superioridade estratégica sobre os
poderes muçulmanos em desagregação e traduz-se, espacialmente, no avanço da
fronteira da cristandade, desde a linha do Mondego – Maciço Central Ibérico, na
década de 1120, até à linha Alcácer – Évora – curso superior do Guadiana, a sul de
Toledo, à data da morte de D. Afonso Henriques, em 1185.
O sistema de coação militar muçulmano também sofre alteração, durante este
período, com o emergir do império almóada, em que a componente militar do estado
passa a ter um papel central. O contacto dos dois modelos, cristão e muçulmano
almóada, ocorrerá nas décadas seguintes, sendo descrito a seguir.
29
Tanto o califado omíada como os almorávidas, viam no exército um instrumento de sustentação do seu poder,
mas não o viam como elemento central (García Fitz, 2005, pp. 269-270).
262
VIII, engrossadas com contingentes de diversas proveniências, incluindo ordens
militares30, provocando uma interrupção do movimento cristão de Reconquista.
O sucesso da máquina militar almóada deve-se à capacidade de comando
e sustentação centralizada de um exército constituído por um núcleo regular
profissional, ao qual são adicionados contingentes locais, voluntários ou não. Não
é conhecida, com exatidão, a organização militar interna almóada, mas tem-se
tomado como referência a exposta por Ibn Huḏayl, já no final do século XIV, que
apresenta uma hoste perfeitamente articulada em unidades de efetivo nominal fixo:
rā’ya de 5000 homens, alam de 1000, liwa de 200 e bend de 40 (García Fitz, 2005,
p. 281).
Em larga medida, o efeito da ofensiva almóada foi absorvido porque os
exércitos cristãos contavam com um núcleo de ordens militares, que logrou reaver,
em pouco tempo, castelos conquistados pelos muçulmanos, ao mesmo tempo que
fortaleceu a defesa da linha do Tejo31.
Os almóadas serão senhores do al-Andalus até à batalha de Navas de Tolosa,
em 1212. A operação que conduziu às Navas começara a ser preparada dois anos
antes, por Afonso VIII, e congregou forças de além-Pirinéus, de Navarra, Aragão,
Leão e Portugal. A gigantesca hoste cristã partiu de Toledo e conquistou vários
castelos na região de Ciudad Real, tendo, de seguida, travado um combate de
encontro com o califa Muhammad al-Nasir.
Durante este período, mais uma vez sem se verificar uma nítida superioridade
tática de um dos contendores, aquele que logrou mobilizar uma hoste numerosa,
com unidade de comando, obteve ganhos territoriais e, em combate de encontro,
pôde infligir ao adversário uma pesada derrota (Alarcos e Navas de Tolosa).
30
“Nos campos de Alarcos ficou toda uma geração de guerreiros, a elite da cavalaria nobre castelhana e alguns dos
mais valorosos militares ibéricos, o que se reflectiu na quebra do esforço de reconquista durante os anos que se
seguiram” (Barroca, 2003a, p. 52).
31
Torres Novas, conquistada por Yacub Yusuf em 1190, foi recuperada pelos templários de Tomar em 1192. A
implantação territorial das fortalezas templárias, a entrega, em 1194, da região da Guidintesta à Ordem do Hos-
pital, e do castelo de Mafra aos cavaleiros de Évora, fizeram da linha do Tejo um obstáculo difícil de transpor
pelos almóadas, mesmo depois da vitória obtida em Alarcos, em 1195.
263
mãos cristãs até 1239, ano em que D. Paio Peres Correia, comendador santiaguista
de Alcácer do Sal, inicia a conquista do Algarve, que culmina em 1249, com a
conquista de Ossónoba (Faro), já no reinado de Afonso III de Portugal.
4. Síntese Conclusiva
264
a uma inversão da eficácia dos sistemas. Aumenta a tendência, em ambos os lados,
para a procura de refúgio em estruturas defensivas o que, por seu lado, catalisa o
desenvolvimento de tática e tecnologia de assédio.
A ascensão almorávida do final do século XI volta a trazer para a Península
um sistema militar que, sob um modelo político unificado, se sobrepõe, de novo, à
cristandade, conferindo aos muçulmanos superioridade ao nível estratégico.
Durante o século XII, o declínio almorávida e as segundas taifas permitem
nova ascensão cristã, apoiada agora na ideia de guerra santa, que se reflete também
na tática (a forma de combater das ordens militares é disso exemplo) e na própria
tecnologia (recupera-se a besta e os equipamentos defensivos individuais aumentam
de robustez).
No final do século XII e início do XIII, o poder almóada permitiu aos
muçulmanos readquirirem superioridade estratégica, mas só até ao momento em
que os reinos cristãos lograram um sistema de coação militar – conjuntural, é certo
– unificado sob Afonso VIII, de Leão.
Apesar de terem tido origens diferentes, os dois sistemas de coação militar,
cristão e muçulmano, cedo se adaptaram mutuamente, no sentido do uso de
soluções similares ou equivalentes em ambos os campos. Por conseguinte, durante
os cinco séculos de presença islâmica na Península Ibérica, assistimos a formas de
combater semelhantes e à utilização de tipologias de forças idênticas (quer através
do recurso à imitação de soluções aprendidas com o opositor, quer recorrendo à
utilização das mesmas forças em ambos os lados). É certo que se identifica um certo
paralelismo entre as manifestações muçulmanas e cristãs, mas estas não devem ser
encaradas, hermeticamente, como diretamente interdependentes. Com efeito, nos
períodos abordados, a alteração dos sistemas de coação militar conta, também, com
inúmeros fatores que são externos ao contexto peninsular.
Na resumida descrição efetuada sobre a ocupação muçulmana do espaço
peninsular até meio do século XIII, ressalta, desde logo, um aspeto: sempre que
uma das entidades se encontra sob um poder forte e centralizado, existe unidade de
comando, coincidindo estes períodos com as alturas de fulgor militar. Isto ocorre
do lado islâmico em quatro momentos bem precisos: logo na invasão de Tariq
(711-718), no governo de ibn Abi Amir (979-1008), com a ascensão dos almorávidas
(1086-1144) e depois com os almóadas (1179-1212). Do lado cristão destacam-se o
período das presúrias de Afonso III (866-879), da conquista territorial de Fernando
Magno (1055-1064) e das operações que conduziram à batalha de Navas de Tolosa
(1210-1212).
É igualmente interessante verificar que, não raras vezes, os momentos de poder
forte e centralizado são sustentados pelo fator ideológico. É ele que, logo em 711,
confere ao islão uma coesão que permite mobilizar um vasto contingente sob um
único comando e, um século mais tarde, empresta aos asturianos a noção sagrada
de “Reconquista”, na procura de restaurar a instituição visigótica. Está na base da
265
ascensão do poder almorávida numa altura em que, no lado cristão, a noção de
guerra santa e a sacralização da cavalaria abrem novas possibilidades estratégicas,
táticas e tecnológicas. Finalmente, o fulgor almóada é também motivado por uma
renovação da religiosidade islâmica. Pode, por isso, afirmar-se que, na origem
de boa parte das alterações dos sistemas de coação militares, em ambos os lados,
encontramos a força das ideias.
Os cerca de cinco séculos percorridos no presente ensaio, inseridos no
que é conhecido como período de evolução técnica lenta, apresentam-nos dois
modelos militares que se foram, progressivamente, desenvolvendo e ajustando
mutuamente. Contrariamente ao que uma visão superficial sugere, todo o percurso
descrito se revestiu de um dinamismo assinalável onde, em cada transformação,
são percecionáveis as causas principais e as consequências, podendo estas estar
relacionadas com fatores de ordem político-ideológica, estratégica, tática ou técnica
ou ainda com a combinação de dois ou mais fatores.
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267
268
A EUROPA NO PALCO MUNDIAL
269
270
A Europa no Palco Mundial
271
humanidade sempre necessitou de desenvolver esforços não só para a alcançar,
mas, de forma igualmente importante, para a preservar. A razão pela qual a espécie
humana nunca foi capaz de viver sem guerra sempre constituiu um enigma para
os estudiosos da natureza humana, fossem eles biólogos, sociólogos, filósofos ou,
até mesmo, cientistas políticos. O filósofo inglês do século XVII, Thomas Hobbes,
adiantou uma possível resposta: o Homem não é um ser pacífico por natureza;
bem pelo contrário, o seu “estado de natureza” é um estado de guerra. Segundo o
filósofo alemão do século XVIII, Immanuel Kant, esta maldade da natureza humana
é perfeitamente visível nas relações entre os povos. Na verdade, sempre existiu
uma determinada lógica de hostilidade, um dilema de segurança a acompanhar a
política mundial, mesmo quando a sua forma básica não era o sistema anárquico de
estados, mas sim o sistema de império mundial ou o sistema feudal.
De igual forma, a História há muito que demonstrou que a manutenção da
paz através da prática do equilíbrio de poder bélico só permite breves períodos
de tréguas, enquanto se tenta adiar o mais possível a próxima guerra. Entre a I e
a II guerras mundiais os europeus já haviam iniciado a primeira tentativa de por
cobro à política baseada no equilíbrio clássico de poder e transformar a fraqueza
em virtude. Pretendiam deixar de estar dependentes do poder militar tendo, pela
primeira vez, desenvolvido esforços no sentido de alcançar uma segurança coletiva.
Após o final da Segunda Guerra Mundial, a Europa passou por mais um período
de grandes dificuldades, uma vez que a esta quase destruiu por completo as nações
europeias enquanto potências mundiais. Por um lado a incapacidade da Europa
no período pós guerra em manter os impérios coloniais retirou-lhe, após cinco
séculos de domínio, protagonismo na escala global, e, por outro, as economias
europeias encontravam-se severamente devastadas e dependentes dos banqueiros
dos Estados Unidos. Mas o facto mais marcante e definidor da mudança de política
de segurança situou-se no campo emocional. Ao contrário do que havia acontecido
aquando do fim da I Guerra Mundial, os europeus já não viam este conflito como
o último dos últimos, mas sim como o prenúncio de que uma nova crise poderia
surgir quando menos se esperasse. As duas guerras, quase simultâneas, destruíram
a vontade europeia de lutar.
Cento e cinquenta anos de nacionalismos exacerbados e guerras sangrentas
culminaram, então, numa construção política supranacional inédita – a União
Europeia. O projeto europeu, desenvolvido por Homens que viveram a tragédia
e os horrores de duas guerras mundiais, apresentava-se como um projeto político
original, de paz, imbuído dos valores humanistas e idealistas do pós-guerra: os
Direitos Humanos, a Liberdade, a Igualdade e a Solidariedade entre os povos e
os Estados, estando grande parte das suas raízes assentes na obra O Projeto de
Paz Perpétua de Immanuel Kant. Os pais fundadores da União Europeia tinham,
consequentemente, como um dos objetivos principais a construção de uma paz
duradoira na Europa.
272
Os Estados Unidos da América esperavam, no entanto, que após a recuperação
económica inicial, a Europa desenvolvesse esforços no sentido de se tornar na
terceira força mundial, suficientemente capaz de enfrentar a União Soviética sem o
seu apoio. Todavia, os europeus não manifestaram qualquer vontade em se tornarem
nessa terceira força militar: se no início da Guerra-fria a economia europeia estava
demasiada debilitada para investir na sua defesa, uma vez recuperada os europeus
continuaram a não mostrar qualquer interesse no desenvolvimento de capacidades
militares, pois ainda tinham bastante presente o perigo das guerras passadas. Em
vez disso a Europa passou a depender dos Estados Unidos em mais um fator, o
militar, para a sua própria defesa e também para a segurança mundial; a garantia
nuclear americana retirava o incentivo em gastar o necessário para transformar a
Europa numa potência militar.
Durante o período da Guerra-fria o território europeu constituiu o palco
onde era disputado o conflito entre o comunismo e o capitalismo democrático
e, consequentemente, a liderança mundial no sistema bipolar da Guerra-fria.
Consequentemente, a estratégia dos Estados Unidos durante este período era
construída em torno da coesão do Ocidente e de boas relações transatlânticas.
Com esta situação a Europa aumentava a sua importância neste sistema de forças
em relação às questões mundiais. A única missão estratégica do velho continente
durante este período consistia em defender o seu território dos soviéticos até à
chegada dos americanos, mas até essa missão se mostrou de difícil execução,
pois aquilo que os europeus gastavam na sua defesa era muito menos do que
aquilo que era pretendido pelos americanos. Esta situação criou alguma tensão
nas relações transatlânticas. Alguns americanos defendiam que os europeus
deviam deter uma capacidade militar efetiva, sob o controlo da OTAN. No
entanto os europeus tinham uma despectiva diferente; confiavam na proteção
oferecida pelo “chapéu” nuclear americano e esperavam que a segurança
europeia fosse mantida pelo “equilíbrio de terror americano-soviético”. Dai que
se preocupassem mais com a construção da Europa, nomeadamente no que diz
respeito ao fator económico.
A década de 90 veio modificar significativamente este panorama. Logo no seu
início, a Europa sofreu a maior alteração estratégica da sua vida, com a queda do
Muro de Berlim, a autonomização dos países da Europa de Leste, a reunificação
da Alemanha, a fragmentação da União Soviética e o termo do Pacto de Varsóvia.
Após o fim do Sistema Internacional de Guerra-fria, o cenário de uma nova grande
guerra tornou-se cada vez menos provável. Consequentemente, muitos conflitos
internos e regionais que haviam sido contidos, mas não resolvidos, pela dinâmica
bipolar, de forma a não perturbarem o equilíbrio geral, ganharam, então, relevância
e rapidamente explodiram em conflitos e crises de extrema violência, de que
constituem bons exemplos a invasão do Kuwait pelo Iraque, a 2 de Agosto de 1990,
e a dissolução da Jugoslávia, em Junho de 1991.
273
Neste período, enquanto se caminhava a passos largos para a União
Monetária, a discussão sobre a Segurança Europeia continuava a ser pautada por
divergências históricas entre os seus principais membros. Esta ambivalência não
passou despercebida na cimeira de Maastricht, realizada em 1992, onde o Tratado
da União Europeia (TUE) substituiu a Cooperação Política Europeia (CPE) por
um pilar de natureza intergovernamental no edifício comunitário. Nascia, assim,
a Política Externa e de Segurança Comum (PESC), que passou a ser conhecida
como o II Pilar da União. Quanto ao futuro da defesa da União Europeia, este
tratado, que tinha por objetivo, no futuro, conduzir a uma defesa comum, refletia
as ambivalências apresentadas pelos estados membros ao referir que “a política
externa e de segurança comum deve incluir todas as questões relacionadas com a
segurança incluindo a progressiva construção duma política de defesa comum que
pode levar a uma defesa comum se o Conselho Europeu assim o decidir”. Ficava
assim muito por explicar e esclarecer. Uma das principais questões que permaneciam
sem resposta tinha por base uma área essencial da soberania: o arranjo de toda a
arquitetura da defesa transatlântica, designadamente a eleição da instituição em que
se realizaria a defesa comum: na OTAN, na UE, ou na OTAN a dois pilares.
O Tratado de Maastricht, assim como a PESC a ele associada, constituíram
um avanço significativo na área da segurança e defesa, não tendo, no entanto,
sido suficientes para colmatar as lacunas nela existente. Este aspeto tornou-se
particularmente notório com os conflitos que entretanto eclodiram no território da
ex-Jugoslávia. As guerras nos Balcãs deixaram a descoberto a dura realidade que
era a incapacidade militar europeia, demonstrando, de forma clara, que sem uma
capacidade militar efetiva a União Europeia nunca conseguiria ser detentora do
poder persuasivo e força moral que pretendia possuir no exterior. Revelava-se de
carácter imperativo o desenvolvimento de um esforço no sentido de melhorar as
suas capacidades bélicas.
A PESD, como Política Europeia de Segurança e Defesa, subsidiária da PESC,
surgiu na Cimeira Franco-Britânica de Saint Malo, realizada a 4 de Dezembro
de 1998, determinando o ponto de partida da Europa da defesa. Nesta Cimeira,
ocorrida durante e como consequência das guerras de secessão da Jugoslávia, a
França e o Reino Unido, verdadeiros motores da Política Europeia de Segurança
e Defesa, perceberam quais eram os limites das respectivas acções individuais e
a necessidade de prevenir e de agir em vez de ficarem resignados à mera reacção,
frequentemente tardia. Daí surgiu a vontade comum de rapidamente fazer progredir
a identidade europeia de defesa, tirando as devidas ilações da tragédia bósnia e
da aparente incapacidade dos europeus de resolverem conflitos nas suas fronteiras
sem a ajuda norte-americana. Este acordo foi finalmente possivel graças à altereção
da posição inglesa, que passou a apoiar a existência de uma capacidade militar
efectiva no seio da União Europeia, permitindo,assim, um compromisso entre duas
opções até aí paralelas, ou mesmo divergentes: a da França, orientada para uma
274
Europa autónoma, e a do Reino Unido, defensora de uma Identidade Europeia no
seio da OTAN. Surgiam, então, três cenários possiveis de actuação para as forças da
UE: em opereções da OTAN com forças da EU, em operações da UE com recurso
a meios e capacidades da OTAN, ou em operações autonónomas da UE.
Em Abril de 1999 realizou-se, em Washington, uma Cimeira da OTAN onde
estes progressos foram fortemente aplaudidos e se reafirmou a anterior Declaração
de Bruxelas de 1994 e de Berlim de 1996 que consideravam a Identidade Europeia
de Segurança e Defesa (IESD) no quadro do reforço do “pilar europeu da Aliança”
um contributo para a sua “vitalidade”. Colocou-se, ainda, a possibilidade de a
UE executar operações autónomas quando a OTAN “como um todo não estiver
empenhada”. Através do estabelecimento dos acordos de Berlim, adoptaram-
se medidas para que a UE pudesse aceder a meios e capacidades colectivas da
Aliança. Posteriormente, esta posição seria traduzida nos acordos “Berlim Plus”
e no reconhecimento da PESD pela OTAN, em Dezembro de 2000, aquando da
Cimeira de Nice.
Uma prova do consenso europeu sobre o assunto da defesa europeia foi o facto do
Conselho Europeu de Colónia, de Junho de 1999, instaurar definitivamente a PESD
e, assim, demonstrar que os quinze membros aceitavam os objectivos estabelecidos.
Durante esse encontro, Javier Solana Madariaga foi nomeado Secretário-geral/Alto
Representante para a PESC(SG/HR), como havia sido já acordado em Amesterdão,
função que iria acumular com a de Secretário-geral do Conselho Europeu. Javier
Solana passou, assim, a articular todo o trabalho de todas as Direcções Gerais do
Conselho e, simultaneamente, a representar externamente a UE, funcionando como
uma espécie de Ministro dos Negócios Estrangeiros e da Defesa desta organização.
A criação de estruturas político-militares permanentes em Bruxelas, como o
Comité Político e de Segurança, o Comité Militar e o Estado-Maior da União
Europeia, constituiu também um passo importante para a institucionalização da
PESD, permitindo que em Dezembro de 2001, durante o Conselho de Laeken, esta
fosse declarada apta a operar e a UE passasse a ser considerada detentora de uma
capacidade parcial2 para efectuar Operações Militares, embora limitada quanto ao
número de operações que podiam decorrer em simultâneo.
A partir desse momento a Europa da defesa não cessou de progredir,
tornando-se, aos poucos, numa realidade semelhante à dos Conselhos Europeus.
O Conselho Europeu de Helsínquia, em Dezembro de 1999, permitiu definir
o primeiro objectivo global (Helsinki Headline Goal 2003) de orientação da
PESD. A UE deveria ser capaz de, até 2003, mobilizar uma força de intervenção
à escala de Corpo de Exército (15 brigadas ou cerca de 60.000 homens), num
2
Os Franceses, liderando os Europeístas, apoiavam incondicionalmente a Declaração de Operacionalidade da EU e os
Britânicos, liderando os Atlantistas, opunham-se à realização de qualquer tipo de declaração, razão pela qual a UE, na
altura, só foi declarada “parcialmente” operacional.
275
período que podia ir de 60 dias a um ano. A definiçao da quantidade de efectivos
teve por base a experiencia da missão da NATO/IFOR, em 1996, na Bosnia e
Herzegovina, tendo este objectivo vindo a comprovar-se demasiado ambicioso
e nunca chegando a ser implementado. Estas forças teriam de ser militarmente
auto-suficientes e dispor das capacidades de comando, de logística, de controlo
e de informações necessárias. De notar que as capacidades em falta para atingir
estes objectivos coincidiam com as que também não existião ao nivel da OTAN.
Foi definido um plano de acção com a finalidade de resolver as deficiências dos
exércitos europeus nas áreas de prevenção de conflitos, de evacuação de cidadãos,
de interposição armada entre partes beligerantes e de assistência humanitária.
Estes trabalhos desenvolveram-se ao longo de várias cimeiras e, perante as
faltas identificadas, o Headline Goal inicial acabou por ser reformulado para um
Headline Goal 2010, como oportunamente se referenciará.
Perante um certo impasse em que a dada altura se encontrava o processo ECAP
(Plano de Ação de Capacidades Europeias), de novo o Reino Unido e a França,
apesar das suas divergências quanto ao futuro da Política de Segurança e Defesa
da União, decidiram impulsionar o processo do desenvolvimento das capacidades
Europeias, e na Cimeira bilateral de Le Touquet, a 4 de Fevereiro de 2003, lançam
o projeto dos Battle Groups (BG). Julga-se não ser alheio a esta iniciativa o facto
de a OTAN ter lançado, na Cimeira de Praga, em 21 de Novembro de 2002, a sua
Nato Response Force (NRF).
A “Constituição” da União Europeia, projeto por esta altura em desenvolvimento
e que acabou por não se realizar devido à liquidação do Tratado Constitucional, em
2005, com os referendos negativos da França e da Holanda, falava, pela primeira vez,
em cooperações reforçadas/estruturadas. Os Estados Membros que o pretendessem
podiam, de forma voluntária, desenvolver em conjunto determinadas capacidades
para serem utilizadas no âmbito da PESD. Após a publicação, em Dezembro de
2003, da Estratégia de Segurança Europeia, que explicitava a necessidade de se
conferir à União Europeia uma Capacidade de Reação Imediata que lhe permitisse
responder a uma crise que viesse a surgir na sua área de interesse3, o conceito ganha
força durante a reunião informal dos Ministros da Defesa da UE, em 5 de Abril
de 2004, em Bruxelas. A aprovação final veio a ocorrer em Maio, no Conselho de
Ministros da Defesa e dos Negócios Estrangeiros, e passou a constituir a base do
novo Headline Goal 2010. Este Headline Goal referia que a União Europeia tinha
de criar entre 8 a 10 Battle Groups de modo a conferir-lhe a Capacidade de Reação
Imediata em termos de Forças que esta necessitava.
O conceito de Battle Group, elaborado pelo Estado Maior da União Europeia,
surgiu como um conceito operacional que estabelecia a necessidade de se dotar a
UE de Forças (BG), com um Comando de Forças (FHQ, baseado no comando de
3
Segundo a ESS a área de interesse da União Europeia ia desde os Grandes Lagos até à Coreia do Norte.
276
uma Brigada), e cerca de 1500 militares, tendo como base o Batalhão de Infantaria
e os meios de Apoio de Combate e Apoio de Serviços achados necessários. Esta
Força devia ter uma prontidão até 10 dias, pronta para se projetar para um Teatro
de Operações até 3000 km de Bruxelas, uma capacidade de sustentação até 90 dias
sem ser reabastecida e até 180 dias caso fosse reabastecida, e ser capaz de cumprir
todo o espectro de Missões de Petersberg.
Após ter sido atingido parcialmente o objetivo definido em Helsínquia em
2003, na sequência do desenvolvimento do Conceito Battle Group e mediante a
adoção da Estratégia de Segurança Europeia em Dezembro de 2003, os Ministros
da Defesa da UE definiram um novo objetivo estratégico de desenvolvimento de
Capacidades Militares a atingir em 2010: o já referido Headline Goal 2010 (HG
2010). Este novo HG para além de manter o objectivo definido em Helsinquia
(60 000 homens, 60 dias, auto sustentáveis por um ano, para efectuar missões
de Petersberg), estabelecia ainda que a UE devia desenvolver Capacidades
Suplementares que lhe permitissem afirmar-se como um actor Global, responder de
forma célere a um eventual conflito ou catástrofe natural (Capacidade de Reacção
Imediata) e estar preparada para combater o terrorismo e outros eventuais novos
cenários de planeamento, de acordo com o estipulado no Documento Solana. Ou
seja, o espectro de missões passíveis de serem cumpridas pela UE foi alargado às
missões projectadas pela Estratégia Europeia de Segurança; o ponto fundamental
passou a ser a capacidade de Resposta Rápida, estabelecendo-se todos os conceitos,
mecanismos e procedimentos para o alcançar (a União devia dotar-se de unidades
com alto grau de disponibilidade, o que lhe permitiria desencadear uma operação,
cinco dias depois do Conselho ter aprovado o conceito de gestão da crise, e
desdobrar as suas forças na zona de operações em cerca de dez dias) e o HG 2010
devia assumir o consignado no HHG 2003, mas iniciando, em simultâneo, um novo
processo de desenvolvimento de capacidades militares, que entrasse em linha de
conta com a ameaça do terrorismo.
No ano de 2008 foi apresentada e aprovada uma Declaração sobre Reforço
de Capacidades, que veio esclarecer o nível de ambição para os anos seguintes.
Reafirmando o objetivo dos 60 000 militares a destacar em 60 dias, a Declaração
estipula que “a Europa deverá ser capaz de planificar e conduzir simultaneamente
duas operações importantes de estabilização e reconstrução, apoiadas por 10 000
homens, por dois anos; duas operações de reação rápida com os agrupamentos táticos
da UE; uma operação de evacuação de emergência; uma missão de vigilância ou
interdição marítima ou aérea; uma operação humanitária civil-militar por 90 dias;
uma dúzia de missões civis no quadro da PESD, de diferentes formatos, incluindo
uma de grandes proporções (até 3000 peritos) suscetíveis de demorar vários anos.”4
4
Coronel Luís Villa de Brito em “NATO e União Europeia – A evolução conceptual”, Revista Militar, Outubro de
2010, p.1037.
277
Não podemos, portanto, questionar a ambição da UE. Na prática, no entanto,
verifica-se que os países não têm conseguido suprir as lacunas nem modernizar as
suas capacidades na área da defesa, aplicando mal, de uma forma geral, as verbas
disponíveis. Ou seja, na atualidade a União Europeia continua a apresentar-
se como uma entidade económica e monetariamente forte, mas politicamente
frágil, sofrendo, na maioria das vezes, de falta de vontade política para ir mais
além. No que diz respeito à segurança e defesa, a UE registou uma evolução
muito significativa desde o Tratado de Nice, orientando o seu esforço não para a
defesa comum, mas sim para uma capacidade de gestão de crises internacional.
Embora esta orientação lhe permita desempenhar o papel de ator global, a UE
para ser uma merecedora detentora deste estatuto e para melhor defender os
seus interesses e valores, precisa de ser mais coerente nas suas ações e de
mobilizar os seus recursos mais e melhor. Ou seja, precisa de apostar mais na sua
vertente política.
No início deste século, face às crescentes dificuldades de funcionamento
efetivo das instituições europeias, foi aprovado, na já referida cimeira de
Laeken, em Dezembro de 2001, uma “Declaração respeitante ao futuro da UE”,
em que foi assumido o compromisso da União se tornar mais democrática, mais
transparente e mais eficaz. Para responder a este compromisso foi convocada
uma convenção cujos trabalhos resultariam, após longas e difíceis negociações,
numa proposta de Tratado Constitucional, também conhecido como Constituição
Europeia. A União Europeia, malgrado as suas profundas divergências no
respeitante à intervenção no conflito do Iraque, no período pós 11 de Setembro,
não interrompeu os processos de negociação, bem pelo contrário, continuou, mais
determinada que nunca, o seu trabalho de aprofundamento em torno da União
Política. Apenas dois meses após o fim deste conflito, os trabalhos da Convenção
Europeia, dirigidos por Giscard d’Estaing, chegaram ao seu termo, com cerca
de 90% da matéria, relativa à União Política, aparentemente consensual, o que
permitiu a sua apresentação na Cimeira de Salónica, que marcava o fim da
Presidência Grega. Mas o sonho da criação de uma “Constituição Europeia”
e, consequentemente, de uma União Política, com a criação de um verdadeiro
Estado Europeu sob a forma de uma confederação, caiu por terra com os já
referidos referendos negativos na França e na Holanda. Iniciou-se, assim, uma
crise institucional que só viria a acalmar com a assinatura, a 13 de Setembro
de 2007, do Tratado de Lisboa. Este Tratado expurgou os aspetos politicamente
mais controversos do Tratado Constitucional, recuperando, no entanto, muitos
preceitos institucionais que pretendem reforçar e tornar mais operacional o
papel da União Europeia.
O Tratado de Lisboa, que entrou em vigor a 1 de Dezembro de 2009,
apresenta-se como um ponto de partida para uma maior integração. Não
resolverá, certamente, todos os problemas no domínio da Política Comum de
278
Segurança e Defesa (PCSD)5, mas permitirá facilitar a tomada de decisões e a
adequada utilização das capacidades civis e militares. Todo o trabalho que se tem
desenvolvido e continuará a desenvolver para o pôr em execução determinará
a evolução da União Europeia. A sua regulamentação, como em qualquer lei
nacional, é essencial para que os seus princípios possam ser postos em execução.
O passar da próxima década certamente informar-nos-á sobre qual foi a evolução
que este Tratado permitiu.
Simultaneamente, na atualidade, a Relação Transatlântica ganhou uma nova
dimensão. O mundo está a mudar, e a mudar rapidamente, seguindo uma direção
que ameaça afetar negativamente, e de igual forma, os interesses da Europa e dos
EUA. Felizmente os principais dirigentes políticos do Ocidente já se aperceberam
desta realidade: o Presidente Barack Obama, aquando das comemorações dos
60 anos da NATO, em Abril de 2009, em Strasbourg Town Hall, afirmou: “it is
a fundamental truth that America cannot confront the challenges of this century
alone, but Europe cannot confront them without America”6. Paralelamente, o
Secretário-Geral da NATO, na Conferência de Anders Fogh Rasmussen, realizada
no Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica em 2 de Julho de 2010,
referiu que “a segurança da Europa e da América do Norte é indivisível e que a
instabilidade e insegurança de um dos lados do Atlântico afetarão inevitavelmente
o outro lado”7. É, portanto, inquestionável a necessidade premente de se reavaliar a
Relação Transatlântica, de forma a melhor preparar quer a Europa quer os Estados
Unidos para os novos perigos e desafios que se perfilam no horizonte.
Os EUA e a Europa não querem, de forma alguma, perder o papel de ator
global, já conquistado ou em fase de conquista, no Sistema Internacional atual e
futuro. Para tal, e como paladinos da Civilização Ocidental e, consequentemente,
dos seus valores, entre os quais se destacam a Democracia e o Respeito pelos
Direitos do Homem, estas duas potências económicas têm que ultrapassar as suas
divergências e unirem-se mais do que nunca na defesa de uma Civilização que tem
mostrado fortes indícios de decadência.
A União do Ocidente, no entanto, não é um fim em si próprio. Consiste,
sim, na formação de uma entidade aberta, de uma espécie de núcleo ativo e/
ou operacional que tem por base o aparecimento, a nível mundial, de uma
comunidade crescente de países democráticos, que no inicio do século XXI
detêm já uma posição preponderante no mundo em geral. De uma certa forma
podemos comparar o papel da Europa e dos EUA no desenvolvimento de uma
União do Ocidente aos papéis desempenhados pela França e pela Alemanha, após
5
Com o Tratado de Lisboa, a designação de Política Europeia de Segurança e Defesa (PESD) é substituída pela de
Política Comum de Segurança e Defesa (PCSD).
6
Coronel Luís Villa de Brito em “NATO e União Europeia – A evolução conceptual”, Revista Militar, Outubro de 2010,
p.1027.
7
Ibidem.
279
1950, no lançamento de programas que levaram ao desenvolvimento da atual
União Europeia. Numa cooperação estruturada, próxima mas livre, este tipo de
parcerias costuma conduzir à formação de comunidades ou instituições. Uma
parceria transatlântica efetiva e equilibrada, uma União do Ocidente ou uma
União Transatlântica pode, muito bem, constituir o núcleo de uma comunidade
aberta, democrática e universal. Outros Estados, de toda a parte do planeta,
podem escolher associarem-se de forma mais efetiva a uma tal entidade. Um
núcleo equilibrado é, no entanto, uma condição indispensável a um futuro
estável e duradoiro, uma vez que uma comunidade de cariz mundial que pretenda
prevalecer por um largo período de tempo só o consegue se tiver assente em
princípios justos e democráticos. A visão de que a Relação Transatlântica tem que
transitar para o século XXI através de uma União Europeia mais forte, de uma
NATO mais forte e de uma relação mais nivelada entre elas, é um pressuposto que
tem ganho adeptos inclusive nos EUA.
Mas será que a ideia de uma relação mais nivelada significa que ambos
os lados da parceria têm que possuir exatamente a mesma influência política
e o mesmo poder militar? Não numa aliança onde, sob o valor do interesse
comum, se pratica uma divisão em constante reavaliação das funções e das
responsabilidades entre os seus membros. É o que se prenuncia como ideal para
a Relação Transatlântica.
Isto não significa, no entanto, que a UE se possa dar ao luxo de possuir uma
capacidade militar significativamente inferior à dos EUA, uma vez que para se
poder praticar uma divisão das funções e das responsabilidades adequadas às
necessidades de cada momento é necessário que nenhum dos lados da aliança
possua limitações.
Tendo o capítulo da defesa assegurado pela NATO, a UE tornou-se numa
potência económica e monetária, mas não militar. Desenvolveu diversos
instrumentos civis que lhe permitiram, e permitem, ter uma palavra a dizer
no Contexto Internacional. O seu papel na Cena Internacional só não é mais
preponderante devido à sua fraqueza a nível de capacidades militares, que
em grande parte resulta da falta de vontade política. Tendo-se apercebido
desta realidade, a Europa está agora mais empenhada no desenvolvimento de
mecanismos e capacidades militares que lhe permitam atingir o estatuto pleno
de ator global, com capacidades civis e militares autónomas e suficientes para a
gestão de crises internacionais.
Ou seja, a UE apercebeu-se, finalmente, que para desempenhar um papel
de relevo no atual Sistema Internacional, tem de adicionar ao seu inquestionável
“soft power” uma igual componente de “hard power”, desenvolvendo, assim, o
chamado “smart power” ou poder inteligente, considerado como o mais poderoso
de todos os poderes. O próprio Joseph Nye, professor de Harvard e autor da
expressão “smart power” num livro de 1990 chamado “Destinado a liderar”
280
(“Bound to lead”), explica que o “poder inteligente” é a combinação do “poder
musculado” com o “poder brando”, e não descarta, portanto, o uso da força militar
quando necessário.
Assim sendo, a questão incontornável e inadiável para a União Europeia
coloca-se, portanto, ao nível de uma complementaridade de “hard power”, ou
seja, de capacidade de projeção de força militar em sustentação da ação política e
diplomática, que lhe permita tornar-se numa potência não negligenciável a todos os
níveis, fazendo da UE um parceiro igualmente credível nas questões de segurança
coletiva e de defesa.
Não nos podemos esquecer que as guerras ganham-se e perdem-se devido
essencialmente às diferenças tecnológicas existentes entre as duas partes
intervenientes no conflito. Em relação à maioria dos Teatros de Operações existentes
no Globo, a União Europeia apresenta, na atualidade, Capacidades Militares mais
do que suficientes e tecnologicamente evoluídas para poder intervir de forma
autónoma sem correr grandes riscos.
Os principais instrumentos militares ao dispor da UE, segundo o Headline
Goal 2010, são os Battle Groups, no âmbito de forças no terreno, possivelmente o
Estado Maior da União Europeia, como ator de planeamento e conduta de operações,
associado à Agência Europeia de Defesa, como impulsionadora do desenvolvimento
tecnológico de capacidades e meios, e cujos poderes saíram bastante reforçados do
Tratado de Lisboa. Com a partilha dos meios já existentes e daqueles que ainda estão
a ser desenvolvidos, nomeadamente no âmbito da projeção de forças e dos sistemas
de vigilância e informação estratégica, na EDA, e combinando esta partilha com
a sua gestão centralizada, a Europa poderá, a médio prazo, tornar-se num ator de
grande peso na cena internacional, aproximando-se, cada vez mais, do estatuto por
si pretendido de Actor Global.
Mas, na nossa opinião, falta ainda levantar uma ferramenta muito importante
na área das Capacidades Militares da União Europeia: o estabelecimento de um
Comando Operacional para a UE.
Um outro contratempo que procura ainda resolução reside na demora da
tomada de decisões. Em todos os assuntos relacionados com a área da PESD/PESC
as decisões são tomadas por consenso. Esta constitui a única forma de assegurar
a todos os Estados Membros da UE que as decisões tomadas não vão, nesta área
ainda tão delicada, contra os interesses nacionais de nenhum deles. A necessidade
deste consenso faz com que, muitas vezes, as decisões demorem muito tempo a ser
tomadas, prejudicando, assim, uma eventual reação atempadas a uma crise ou a um
conflito. Por vezes, não é mesmo possível tomar qualquer decisão, dadas as posições
irredutíveis de alguns Estados Membros. Simultaneamente, muito frequentemente
as afirmações presentes nos diversos documentos relativos à PESD/PESC podem
ser passíveis de diversas interpretações, devido ao seu carácter dúbio, resultante de
intermináveis processos negociais.
281
Não é de mais reforçar que desde a fundação da PESD que se prevê que a
União Europeia irá desempenhar um papel singular e de inigualável importância no
âmbito da resolução de conflitos na Cena Internacional. Para além de poder resolver
os problemas na vertente de Segurança e Defesa, através das suas Capacidades
Militares, a UE pode concomitantemente resolvê-los em todas as outras vertentes,
nomeadamente do ponto de vista político e económico, facto que poderá ser
decisivo para auxiliar um qualquer Estado em crise a reerguer-se. Esta Capacidade,
que só a União Europeia possui, é, no nosso entender, uma grande mais-valia que
a UE apresenta relativamente às outras Organizações que trabalham no âmbito da
Segurança e Defesa.
Por último, quero apenas referir que, na atualidade, talvez seja já insuficiente
colocar-nos no período pós 11 de Setembro. Talvez seja ajuizado que nos
coloquemos, igualmente, num período pós queda Lehman Brothers, uma vez que
para fazer frente à atual crise financeira e económica temos que acomodar, em
moldes diferentes dos atuais, atores como a Rússia, a China, o Brasil, o Irão e a
Arábia Saudita. Estamos, portanto, perante uma nova arquitetura e novas relações
geopolíticas, que terão certamente um impacto sobre a Segurança e Defesa global
e, consequentemente, sobre a Segurança e Defesa da Europa, mas de uma forma
que não é possível ainda antecipar.
282
Bibliografia
1
Autores Vários.
283
284
A Defesa Militar de Portugal nos anos
da II Guerra Mundial
285
286
A Defesa Militar de Portugal nos anos
da II Guerra Mundial
287
sido ponderados todos os elementos fundamentais da estratégia nacional de defesa.
Só uma definição detalhada das necessidades de defesa nacional permite edificar
e estruturar adequadamente umas Forças Armadas capazes de defender quer os
interesses quer os objetivos nacionais. Escreve o General Morais Sarmento em
junho de 1939: «No caso de uma organização militar para Portugal, a primeira
questão a estabelecer e a resolver é a definição concreta da sua política de guerra,
que parece não ter o objectivo exclusivo da defesa do território continental ou
imperial, considerada abstractamente, mas sim o objectivo mais geral da defesa
dos interesses nacionais seja qual for o ponto do mundo, onde tenham de ser
defendidos de armas na mão»2.
O muito tempo dedicado por opção do regime às questões da manutenção da
ordem pública interna foi desviando as Forças Armadas daquela que deveria ser
uma das suas principais tarefas – a de planear a defesa militar3 do País. Políticos
e militares não tiveram em devida conta a evolução da conjuntura internacional e
foram incapazes de considerar de forma séria a possibilidade de Portugal poder
vir a estar envolvido, por vontade própria ou alheia, num conflito armado à escala
mundial que tornasse necessária a defesa armada do País.
2
AOS / CLB / MMB-2.
3
O general Loureiro dos Santos define “ Defesa Militar” como sendo a «Ação levada a efeito por meios militares
para garantir a independência nacional, a segurança das populações e, especificamente, a integridade do terri-
tório.» - Santos, José Alberto Loureiro dos, (1991), Como Defender Portugal, Lisboa, IAEM, pp. 15.
4
Couto, Abel Cabral, (1987), Elementos de Estratégia, I, Lisboa, Instituto de Altos Estudos Militares.
288
coloniais; os estudos versando eventuais projetos de operações dos exércitos
estrangeiros com interesse para à defesa do País eram escassos e estavam também
eles desatualizados, etc.
A evolução em quatro fases dos planos de defesa desenvolvidos em resposta
à conjuntura da Segunda Guerra Mundial está intimamente ligada à forma como,
em três momentos distintos, se alterou em Portugal a partir da segunda metade
da década de 1930 a perceção da ameaça, mas também à problemática do auxilio
militar inglês.
O início da Guerra Civil de Espanha provoca a primeira grande alteração na
forma como era percecionada a ameaça e marca o início da primeira fase dos planos
de defesa nacionais. A falta de um inimigo claramente definido e a ausência de
qualquer ameaça percetível à soberania nacional tinha levado a que, no período
entre guerras, pouca atenção tivesse sido dada às questões relacionadas com o
planeamento da defesa militar do País.
Na primeira metade da década de 1930 todas as atenções se voltam para
a consolidação do regime instituído considerando-se então que, mais do que
qualquer ameaça externa, só a ação de “quintas colunas” podia comprometer
a segurança e a estabilidade internas. O início da Guerra Civil Espanhola vai
alterar radicalmente esta visão. A ameaça deixava de ser exclusivamente interna
e era agora de caráter peninsular. O alarme é geral entre a população portuguesa
que pressagia uma iminente invasão terrestre por forças militares espanholas e
teme eventuais ações violentas dos exilados políticos portugueses estabelecidos
no país vizinho. A ameaça espanhola provocava, assim, uma alteração radical
da política militar portuguesa. A prioridade à defesa terrestre dita o fim do plano
de rearmamento naval iniciado em começos da década de trinta5. Em 1936
têm inicio os trabalhos com vista à edificação de uma força armada que, em
três fases sucessivas, haveria de chegar às 15 Divisões! Era necessário adquirir
praticamente tudo: armamento ligeiro, artilharia de diversos tipos, os primeiros
tanques ligeiros, fardamento, munições, etc..
Os primeiros planos de defesa desenvolvidos em resposta à ameaça espanhola
surgem em 1938 na sequência de conversações militares luso-britânicas,
marcadas desde o seu início por um sem número de incidentes e desconfianças.
Preocupado com a defesa dos interesses nacionais Salazar tenta por todos os
meios obter a garantia de auxílio militar britânico em caso de ataque espanhol a
Portugal. Mas, o apoio à causa de Franco tinha levado a um esmorecimento das
relações diplomáticas e comerciais entre os dois velhos aliados. A Inglaterra atrasa
deliberadamente o fornecimento de armamento a Portugal e Salazar ordena a
suspensão de todas as encomendas até então celebradas com fornecedores ingleses.
São tantos os entraves que Salazar decide enviar missões militares à Alemanha
5
Das duas fases inicialmente previstas no plano naval de 1930, apenas a primeira estava concluída.
289
e Itália com o objetivo de aí adquirir o material necessário ao rearmamento
português. Na imprensa inglesa surgem em pouco tempo as primeiras chamadas
de atenção para o facto de Portugal estar a adquirir armamento alemão e italiano
e o Presidente do Conselho logo trata de tirar proveito do alarme lançado
pelos jornais ingleses. A pressão diplomática portuguesa intensifica-se e o
Foreign Office é a cada passo relembrado da importância estratégica de algumas
posições geográficas portuguesas, nomeadamente o triangulo Lisboa – Açores –
Cabo Verde.
A pressão portuguesa acaba por produzir os efeitos pretendidos no dia 20
de Fevereiro de 1938 com a chegada de uma Missão Militar Britânica (MMB)
a Lisboa. As conversações luso-britânicas que se seguem servem para confirmar
o que há muito se temia – Portugal não poderia ambicionar defender a totalidade
do seu território metropolitano e a Inglaterra não poderia prestar qualquer tipo de
apoio terrestre no início de uma guerra. As primeiras divergências entre Lisboa e
Londres irão surgir quando a delegação portuguesa, pretendendo que a Inglaterra se
envolve-se na discussão dos problemas militares de terra, mar e ar, conclui que os
representantes britânicos revelavam uma maior inclinação para o estudo da defesa
naval e aérea enquanto demonstravam um certo, senão total, desinteresse pelas
questões da defesa terrestre portuguesa (exceção feita aos assuntos respeitantes à
defesa das bases navais).
Do decurso das conversações, o chefe da missão militar britânica solicita
por diversas vezes ao seu homólogo português que lhe sejam dados a conhecer os
planos de defesa nacionais para assim se poder estudar a forma mais adequada da
Grã-Bretanha participar na defesa de Portugal. Ora, à data das conversações luso-
britãnicas não existia ainda em Portugal qualquer plano de defesa oficialmente
aprovado e os delegados portugueses, conscientes da lacuna existente, tratarão
sempre de se afastar de respostas comprometedoras. Reagindo ao embaraço da
situação Salazar acorda com o chefe da missão portuguesa, Brigadeiro Tasso de
Miranda Cabral6, e Santos Costa7, a entrega de um esboço de plano de defesa,
desprovido de qualquer valor oficial por não ter sido aprovado pelos organismos
competentes. Cumprindo as diretrizes estabelecidas pelo ministro da Guerra, no
curto espaço de um mês o Brigadeiro Miranda Cabral e o Comodoro Botelho
de Sousa elaboram o designado esboço de “Plano Mínimo de Defesa do País”
(PMDP) O PMDP previa a atuação conjunta de forças militares portuguesas e
britânicas num cenário de invasão terrestre por forças espanholas. Assumindo
a incapacidade de, com os meios existentes, defender a totalidade do território
continental português, estabelece como prioritária a defesa de Lisboa mediante o
pré posicionamento de forças ao longo de duas linhas defesa.
6
Que por essa altura era, para além de chefe da delegação portuguesa, subchefe do EME.
7
Subsecretário da Guerra.
290
O dispositivo de defesa idealizado pelos autores do Plano é imenso para a
realidade portuguesa: 1 grande Quartel-General do exército em campanha, 3 Corpos
de Exército a 9 Divisões; 1 Batalhão de Carros; 2 Regimentos de Artilharia pesada;
2 Brigadas de Cavalaria; 4 Regimentos de Cavalaria; 7 Batalhões de Caçadores
e 3 Batalhões de metralhadoras pesadas. O poderio militar terrestre português
estava reduzido por esta altura a 5 Divisões; 1 Batalhão de Carros; 2 Regimentos
de Artilharia pesada; 2 Brigadas de Cavalaria, 4 Regimentos de Cavalaria; 10
Batalhões de Caçadores e 3 Batalhões de Metralhadoras. Existia por isso um défice
de 4 Divisões que, na opinião de Miranda Cabral, poderiam ser obtidas mediante a
mobilização de licenciados, após a aquisição ou a cedência pela Grã-Bretanha de
todo o equipamento necessário á sua mobilização.
Decorrido quase um ano de conversações, pouco se tinha alcançado e
tudo permanecia mais ou menos como no início. O Estado-Maior britânico
considerava que Portugal apenas podia contar com as unidades já existentes (5
Divisões) e com elas devia estabelecer o dispositivo de cobertura do território.
Com tão poucos meios disponíveis afigurava-se-lhes impraticável a ideia de
levar a cabo uma defesa avançada, tão ao gosto do chefe da delegação portuguesa
(Miranda Cabral).
8
ANTT / AOS/CLB/MMB-2.
291
insurgir-se contra o excessivo protagonismo alcançado por Tasso de Miranda
Cabral nas conversações com a MMB e o facto dos planos entregues às autoridades
inglesas terem sido elaborados com base em estudos preexistentes do mesmo autor.
Morais Sarmento deixava perceber o incómodo causado pelo facto de, sendo o seu
posicionamento hierárquico superior ao de Miranda Cabral e a ele lhe competir
a supervisão das conversações com as autoridades britânicas, ter sido deixado
completamente à margem quer das conversações quer da elaboração dos planos de
defesa então apresentados. Estas críticas veladas não terão por certo sido do agrado
do Ministro da Guerra. A resposta ao questionário do Major-General do Exército só
irá surgir 3 meses depois sob a forma de “Projecto de Plano de Guerra português”
(Plano 38) e onde uma vez mais estará presente a visão estratégica de Tasso de
Miranda Cabral.
Este plano é, como faz questão de salvaguardar o seu autor, um mero ensaio
de “Plano de Guerra” que, dando resposta às questões colocadas pelo Major-
General do Exército relativamente à defesa militar do País, procura explicitar
em termos gerais alguns dos conceitos que o Governo pretendia fossem tidos
em conta aquando da elaboração de um documento definitivo sobre a defesa
nacional. O Plano trata da hipótese de guerra na Península Ibérica, dispensando
especial atenção ao território metropolitano português. Em caso de guerra
caberia ao Exército assegurar, no âmbito da sua “missão normal”, a manutenção
da integridade do território e a soberania do Estado. A defesa poderia então
ser feita de duas formas: posicionando as forças portuguesas num dispositivo
defensivo destinado a garantir a posse de uma parcela do território nacional em
concordância com a “missão mínima” do Exército ou então dispondo o grosso
das forças de forma a cobrir a quase totalidade do território nacional (missão
máxima). A opção do Governo é clara e, não deixando de considerar as duas
hipóteses, opta pela segunda. As forças deveriam então ser dispostas em posições
defensivas que cobrissem a maior parte do território nacional impedindo que o
inimigo marchasse sobre as cidades de Lisboa e Porto. “O Plano 38” descreve,
pela primeira vez, o auxilio militar que se esperava fosse prestado pelas forças
britânicas: defesa das rotas marítimas; defesa de Portugal continental e das suas
possessões ultramarinas a partir do mar e, envio de forças aéreas. De fora fica o
apoio terrestre numa primeira fase da guerra.
Cinco meses volvidos desde a apresentação por parte do governo do
projeto de “Plano de Guerra para o País”, e na sequência da assinatura do
Tratado de Amizade e Não-Agressão com Espanha, o Major-General do
Exército volta a dirigir-se a Salazar desta vez para interrogar se a assinatura de
tal Tratado acarretaria alterações no projeto de Plano de defesa português que
se encontrava ainda no EME para estudo. Respondendo à questão de Morais
Sarmento o Presidente do Conselho insiste que o documento é apenas um
projeto e, afirmando que o mesmo lhe tinha sido enviado para sua avaliação
292
exclusiva não encontrando por isso razão para que tivesse sido enviado ao
EME para estudo. O Plano não fora ainda aprovado pelo Conselho de Ministros
pelo que se revelavam extemporâneos os estudos em curso no EME. Agastado
e ponderando demoradamente os termos da sua resposta, Morais Sarmento irá
uma vez mais aproveitar a oportunidade para criticar as opções tomadas pelo
Governo relativamente ao planeamento da defesa do País ao mesmo tempo que
alerta para o risco causado pela constante ingerência da política na direção das
operações militares9. O Major-General do Exército deixava bem clara a sua total
discordância relativamente à opção estratégica de defesa integral do território
nacional. Em sua opinião, era mais do que evidente que o Exército não estava
dotado de suficientes meios humanos e materiais para garantir a defesa integral do
país. A reorganização da força militar estava ainda no início e o reduzido número
de Divisões então existentes inviabilizava qualquer lógica de defesa integral do
país. Segundo Morais Sarmento, o projeto de Miranda Cabral, apadrinhado por
Salazar e Santos Costa, estava condenado ao fracasso.
9
ANTT / AOS / CLB / MMB-2.
10
A vinda dos técnicos ingleses para o estudo da modernização do dispositivo defensivo daquelas duas regiões
estratégicas constitui um revés para aqueles que, como Miranda Cabral e Santos Costa, preconizavam a defesa
integral do território continental português.
293
nomeiam para o efeito o Major-General F.W. Barron11 (inspetor de defesas fixas) e
o Comandante Vaughan (técnico do Almirantado britânico). A sua chegada a Lisboa
tem lugar durante o mês de Fevereiro de 1939 e os estudos prolongar-se-ão até 24
de Junho, data em que apresentam o relatório que a partir de então passaria a ser
designado de “Plano Barron”.
O “Plano Barron” visa a defesa marítima/costeira e antiaérea dos estuários dos
rios Tejo e Sado e é elaborado a partir da fixação de zonas vulneráveis nas regiões
de Lisboa e Setúbal (cidade e instalações portuárias).
A defesa marítima de Lisboa seria organizada em 4 Grupos de defesa, 2
destinados ao contra bombardeamento (Grupos Norte e Sul - baterias de Alcabideche,
Parede, Raposa e Outão) e 2 grupos para defesa próxima respetivamente do Tejo e
do Sado (Grupos do Tejo e Setúbal - baterias da Parede, Reduto Gomes Freire, Lage
e Raposeira). Ficava completa com as barragens contra lanchas torpedeiras, as zonas
iluminadas, as baterias de defesa das barragens e os projetores de descoberta12.
O dispositivo de defesa antiaérea pensado pelos autores do Plano
contemplava a existência de pelo menos 9 zonas geográficas consideradas vitais
para a sobrevivência da cidade Lisboa: o porto comercial; os cais e as docas que
se estendem até Belém; os depósitos de combustíveis situados na Banática (Este
da Trafaria); os ancoradouros situados a Sul e Sudeste da cidade; o Arsenal do
Alfeite; a estação de caminho-de-ferro do Barreiro e as fábricas dessa localidade;
a fábrica de explosivos de Vale de Milhaços; os paióis de munições e armamento
situados na Serra de Monsanto e em Braço de Prata; o Centro de Aviação Naval
então em construção a Oeste do Samouco (futura Base Aérea do Montijo); fábrica
de munições de Barcarena e as estações de TSF13 situadas “a grandes distâncias de
Lisboa”14.
O dispositivo proposto no Plano para a defesa marítima de Lisboa e Setúbal
não merece, partindo dos pressupostos em que assentou a sua elaboração, reparos
de maior das autoridades portuguesas. A defesa dos estuários do Tejo e Sado obtêm
a maior concordância por parte do Conselho Superior do Exercito (CSE) que
propõe a aquisição das quantidades e tipos de equipamento propostos no Plano. No
11
BARRON, Frederick Wilmot (1880-1963), Major General. Registo de serviço: Royal Artillery 1899; South Afri-
can War 1899-1902; Gunnery Staff Course 1906-1907; Instructor in Gunnery 1909-1913; Staff College 1914; 1ª
Guerra Mundial em França, Gallipoli, Mesopotamia e Pérsia 1914-1918; General Staff, War Office 1920-1924;
Inspector of Fixed Defences, War Office 1934-1938; 2ª Guerra Mundial,1939-1941- Inspector of Fixed Defen-
ces, General Headquarters Home Forces and War Office; reformado em 1941. Fonte: King’s College London
- Liddell Hart Centre for Military Archives.
12
Um relatório das autoridades britânicas datado, de Agosto de 1939, considera adequados os meios propostos
pelo general Barron para a defesa de Lisboa tendo em conta a escala de ataque vislumbrada. Apesar de tudo, o
War Office considerava improvável que tal ataque viesse a ocorrer chegando o autor do texto a interrogar-se se o
valor das instalações portuárias existentes em Lisboa justificaria tamanho investimento. NA - 1/10215.
13
Telegrafia Sem Fio.
14
Sem referir quais sendo provável que se referisse as estações TSF de Alcochete e Amadora.
294
entanto, está longe de ser perfeito. Segundo o CSE, o estudo da defesa de Portugal
não podia ser efetuado de forma parcelar já que podia conduzir a uma apreciação
“defeituosa” do problema e à adoção de uma solução imperfeita e inútil15. Mais,
o CSE considerava que a defesa de Lisboa devia ser estudada de forma mais
aprofundada englobando as vertentes terra, mar e ar e, sempre como parte integrante
de um plano geral de defesa do País. O parecer do CSE relativamente ao plano
para a defesa antiaérea segue o mesmo rumo de crítica. Em causa está a forma
demasiado simples e esquemática como tinha sido estudado o problema já que
Barron apenas se tinha preocupado com a implementação de uma barragem aérea
em torno da cidade, deixando de parte a necessidade de defender todo o espaço
aéreo sobre Lisboa.
Em resumo, e parafraseando o General Carlos Maria Pereira dos Santos «(…)
O trabalho dos referidos peritos não é para desprezar em absoluto. O que há é que
reduzi-lo às proporções que realmente tem: o de uma importante contribuição para
o estudo da defesa de Lisboa».16
15
“Em hipóteses mais gerais assentam os estudos feitos pelos artilheiros portugueses e por isso mesmo os seus projectos
são mais completos do que o do General Barron” - AHM / F29 / 1 / 351.
16
AHM / F29 / 1 / 351.
295
que fosse possível com os meios existentes17. O Governo, agarrando-se uma vez
mais ao irrealismo dos seus planos, opta pela defesa integral do território nacional
seguida da hipótese de defesa parcelar por «(…) serem aquelas [soluções] que
poderiam permitir a reunião no tempo e no espaço de todos os recursos do País e
inclusivamente a chegada e desembarque de elementos de reforço vindos das ilhas
adjacentes, das colónias (…)»18. Como chegariam esses reforços ao continente
português é uma incógnita já que Portugal não dispunha de capacidades navais ou
aéreas que permitissem uma operação de tamanha envergadura.
Sobre o «Plano 40» diria o Chefe do Estado-Maior do Exército, Miranda Cabral
que apesar de ser louvável a intenção manifestada de disponibilizar 12 Divisões para
a defesa do País ela «(…) não passava duma aspiração patriótica, absolutamente
irrealizável (…)» e que com as 5 Divisões à data existentes seria impossível ocupar
e defender a totalidade do território nacional restando por isso «(…) uma defesa
fragmentada, inconsistente, sem eficiência alguma, não recomendável e sempre
de condenar».19 O Ministro da Marinha não era menos crítico nos comentários
que envia ao Presidente do Conselho e escreve da seguinte forma «A preocupação
com a fronteira terrestre desvia-nos do rumo atlântico, segundo o qual criámos o
império e havemos de assegurar a sua existência».20
17
ANTT / AOS / CLB / MMB-2, Pasta 1, Procº 3, fls. 507.
18
ANTT / AOS / CLB / MMB 2, fl. 570.
19
AHM / F6 / D / 4 / 23 - 5.
20
ANTT / AOS /CLB / MMB-3 Pasta III, fl.26
21
ANTT / AOS / CLB / DNAI.
296
chegassem da fronteira franco-espanhola a território português. O cenário era
algo assustador mas, na ótica do EM britânico, seria possível às forças militares
portuguesas resistir, com os meios existentes, numa zona de defesa extrema em
torno de Lisboa (que mais tarde viriam a definir como sendo as Linhas de Torres
Vedras) sendo que a ocupação dessa mesma zona se devia processar logo que fosse
desencadeado o ataque.
As autoridades britânicas sugeriam que se concentrasse o grosso da força numa
linha de defesa imediata de Lisboa deixando a defesa do Porto e do Algarve a cargo
de um mínimo de tropas locais. A defesa da totalidade do território continental
estava definitivamente colocada de parte e caso a defesa parcelar proposta falhasse,
não restaria outra alternativa que não fosse a transferir os órgãos de soberania para
os Açores. A última hipótese equacionada no Plano 40 representava agora a única
tábua de salvação possível para a manutenção da soberania nacional. O Governo
inglês comprometia-se pela primeira vez a prestar uma assistência militar efetiva
que englobava o auxílio na transferência dos órgãos de soberania nacional para os
Açores; o fornecimento das peças de AAA (9,4cm e 40mm) necessárias à defesa
daquelas ilhas e assistência técnica na sua montagem; a cedência de alguns aviões
torpedeiros; disponibilização do material destinado à defesa marítima local (redes,
minas, barragens, etc.); ampliação dos aeródromos existentes.
Este “Plano de colaboração britânica e portuguesa em caso de emergência”
aprovado em Agosto de 1942 compreendia duas fases: A 1ª fase do Plano era da
inteira responsabilidade do Governo português. Era necessário proceder a um
significativo aumento da capacidade de defesa do arquipélago dos Açores bem
como a uma acentuada melhoria das infraestruturas existentes. Além disso seria
necessário constituir reservas alimentares, de combustíveis e de munições para
60 dias. O sucesso da 2ª fase do Plano estava dependente da completa execução
das ações previstas na 1ª fase do plano. Teria início no dia em que o governo
considerasse não estarem reunidas as condições necessárias à manutenção da
neutralidade portuguesa e estimava-se serem necessários de 12 dias a 3 semanas
para que a evacuação dos órgãos de soberania para os Açores pudesse ser levada a
cabo com sucesso e nas melhores condições.
O Plano não sairá uma vez mais do papel e Salazar, desiludido, afirmará
«(...) os delegados portugueses convidados para ajustarem com representantes
militares britânicos um plano de colaboração entre Portugal e a Inglaterra para a
evacuação que se tornasse necessária na hipótese de ataque ao território português
continental, trouxeram de Londres um plano de medidas a tomar pelo Governo
português nas ilhas adjacentes e em Cabo Verde com o objectivo de que estas não
corram perigo em caso de ataque de forças alemãs e estejam preparadas para
nelas actuarem forças navais e aéreas britânicas».22
22
ANTT /AOS / CLB / DNAI-2, fl. 62.
297
Estava-se agora 1943 e a perceção da ameaça iria modificar-se uma vez
mais. A guerra prosseguia mas começava-se lentamente a perceber para que lado
penderiam os pratos da balança. A evolução dos acontecimentos internacionais
força o Governo português a tomar todas as medidas diplomáticas conducentes a
uma aproximação ao bloco vencedor. Ao mesmo tempo, as autoridades britânicas
tentam a todo o custo reatar as boas relações com o velho aliado tendo em vista,
sobre tudo, a concessão de facilidades militares nos Açores. A reaproximação
dos dois velhos aliados surge assim naturalmente e, logo no início de 1943,
Portugal propõe a realização de conversações com o objetivo de rever os planos
de evacuação aprovados em 1942. Decorrem em Londres a partir de Setembro de
1943 e culminam com a aprovação, já após a cedência de facilidades nos Açores,
de um plano para a defesa do território continental português que viria a servir de
referência aos planos de defesa do pós-guerra.
O Plano tinha como objetivo principal a criação das condições consideradas
indispensáveis para a cooperação de forças portuguesas e britânicas na defesa de
Portugal continental mas, como o chefe da delegação britânica deixa claro desde
o início das negociações, não constituía qualquer compromisso oficial vinculativo.
O documento apenas previa, partindo de um cenário prefixado pelas autoridades
portuguesas, o tipo e calendarização de um eventual auxilio militar. Temia-se agora
que a Espanha e/ou a Alemanha reagissem negativamente à presença de militares
ingleses nos Açores. Portugueses e britânicos consideram pouco provável que tal
reação viesse a verificar-se mas, precavendo qualquer ato menos refletido, havia que
preparar o país para o pior e Portugal orientava mais uma vez as suas preocupações
para a defesa terrestre do território continental.
Na ótica de Miranda Cabral23, o inimigo atuaria inicialmente com uma força
de 5 a 8 Divisões, precedidas ou acompanhadas de uma ou duas Grandes Unidades
blindadas e de Cavalaria. Seguindo o mesmo raciocínio considerava que 4 a 5
Divisões seriam destinadas à ocupação de Lisboa enquanto as restantes avançariam
seguindo o curso do rio Mondego.24
O governo português mobilizaria para a defesa terrestre do território continental,
além das 3 Divisões de infantaria existentes, todas as forças de Aeronáutica e de
DTCA. A missão das forças portuguesas, fixada pelas autoridades britânicas,
consistiria, inicialmente, em retardar o avanço das forças invasoras sobre a Península
de Setúbal, Lisboa, Porto e Coimbra25 ao mesmo tempo que garantia a posse dos
principais portos (Porto, Lisboa e Setúbal) por forma a permitir o livre desembarque
das forças militares britânicas que iriam, num segundo momento e com a cooperação
das forças portuguesas, lançar a contraofensiva. Mais pormenorizadamente, a
23
Chefe do Estado-Maior do Exército (CEME).
24
AHM / F15 / 7 / 290 / 59.
25
Seguindo esta ordem de prioridades.
298
participação portuguesa no Plano passaria pela criação de 2 núcleos de defesa (Norte
e Sul). A força do núcleo Norte, composta por 1 Batalhão de infantaria, 1 Grupo de
Artilharia de montanha e um Batalhão de Metralhadoras, teria por missão impedir a
invasão pela fronteira Norte. Resistindo inicialmente na zona da Guarda aguardaria
o desembarque das forças britânicas (1 Brigada) após o que retiraria sobre o Porto.
A força Sul seria constituída por 3 Divisões de Infantaria concentradas da seguinte
forma para a defesa de Lisboa: Divisão A, Pontes de Santarém – Setil; Divisão B,
zona de Arraiolos – Évora -Montemor e, Divisão C, pontes de Belver - Abrantes.
Como se pode verificar, uma Divisão estaria empenhada na proteção dos acessos à
cidade de Setúbal (local de desembarque das forças britânicas) e as restantes duas
na defesa das travessias sobre o rio Tejo.
As forças navais portuguesas ficariam responsáveis pela defesa local dos
portos nacionais, pela luta antissubmarina e desminagem das rotas de aproximação
a esses mesmos portos. Teriam também a seu cargo a escolta e proteção dos
navios mercantes portugueses, sendo auxiliadas nesta tarefa pela aviação naval
que também estaria empenhada em patrulhas antissubmarino ao longo das costas
portuguesas.
O auxílio militar inglês processar-se-ia da seguinte forma: em Z26+16 seria
enviado 1 Batalhão de infantaria, 1 Grupo de elementos destinados a preparar a
chegada do grosso das forças britânicas e alguns sapadores mineiros que iriam reforçar
os sapadores portugueses empenhados nas destruições destinadas a retardar o avanço
das forças invasoras; em Z+29 chegariam a Portugal duas Brigadas destinadas à
defesa de Lisboa e Porto e 1 Regimento blindado (cerca de 50 carros de combate);
em Z+46 seria a vez de chegarem as restantes unidades destinadas a completar o
dispositivo de defesa – 1 Corpo de Exército a duas Divisões de Infantaria (menos um
grupo de brigada) e 1 Divisão Blindada (menos 1 Regimento blindado)27. O apoio
aéreo previsto pelas autoridades britânicas contemplava a instalação de radares e
centros de interceção em Lisboa e Porto; o envio de 2 Esquadrilhas de caça, 2 de
bombardeiros, 1 de reconhecimento e 1 de caça noturna. O auxílio aéreo britânico
passaria também pelo ataque aos centros vitais espanhóis a partir de diversos pontos
situados na periferia peninsular em particular no Norte de África.
À semelhança de conversações anteriores, os trabalhos de revisão dos
planos de defesa portugueses chegam ao fim com resultados pouco favoráveis
aos interesses portugueses. Nos moldes em que tinha sido redigido, o plano de
cooperação militar anglo-português para a defesa de Portugal poucas hipóteses
teria de vir a ser posto em prática. Tasso de Miranda Cabral, referindo-se ao
trabalho dos representantes portugueses e à forma como a delegação britânica
tinha conduzido as conversações, escreve:
26
Dia Z – dia em que as autoridades inglesas aprovassem oficialmente a prestação de auxilio.
27
AHM-F26 / 13 / 336 / 241.
299
«É evidente que, se mais não fizeram ou conseguiram, foi porque tiveram
de lutar com um adversário profundamente agarrado à sua tradicional política
de situações pouco precisas, vagas e por vezes nebulósicas, para que lhe seja
sempre possível tomar, no momento critico, a solução que melhor convier aos
interesses da Inglaterra.»28
28
AHM-F15 / 7 / 290 / 62.
300
Portugal trás uma vez mais à superfície o receio de subordinação à estratégia
britânica tendo em conta que a preservação da soberania nacional estava uma vez
mais dependente da velha Aliança Inglesa.
Salazar tenta a todo o custo evitar que a Grã-Bretanha se imiscua em
demasia nas questões da defesa de Portugal temendo que esse envolvimento
viesse a condicionar as ações e opções das autoridades portuguesas. A evolução
dos acontecimentos acabará por, em nossa opinião, confirmar que os receios
do Presidente do Conselho não eram totalmente infundados na medida em que,
voluntária ou involuntariamente, Portugal ficará cada vez mais dependente do
auxílio militar britânico. Os interesses estratégicos de Portugal e da Grã-Bretanha
eram distintos e as conceções defendidas pelas autoridades britânicas potenciavam
fundadas dúvidas relativamente às verdadeiras intenções dos velhos aliados.
A questão do auxílio militar britânico a Portugal em caso de agressão externa
domina, assim, parte significativa do planeamento militar luso-britânico. Portugal
pretende uma definição concreta desse auxílio mas a Grã-Bretanha não pretende
comprometer-se em demasia. Será logo a partir das primeiras conversações
militares luso-britânicas (1938) que se perceberá que não existia qualquer intenção
da Grã-Bretanha vir a envolver-se num conflito terrestre cujos resultados seriam
de duvidoso interesse para as aspirações britânicas. A ideia de que à Grã-Bretanha
apenas interessava salvaguardar os seus próprios interesses ganha terreno entre
aqueles que, como Tasso de Miranda Cabral, não escondiam o seu desagrado pela
excessiva dependência da assistência britânica. As autoridades britânicas apenas
estavam interessadas na segurança que as costas portuguesas podiam conferir às
principais rotas marítimas do Atlântico e às ligações a Gibraltar e ao Mediterrâneo.
Contrariando aquelas que eram, megalómanas ou não, as conceções de defesa
dos organismos militares portugueses, a Grã-Bretanha tratará sempre de colocar a
tónica na defesa de Lisboa e dos Açores.
Receava-se que a Grã-Bretanha apenas estivesse interessada em servir-se do
território português para defender os seus interesses sem salvaguardar os de Portugal
no entanto, as autoridades portuguesas revelarão ao longo de todo o processo de
planeamento uma estranha aceitação passiva das conceções estratégicas britânicas.
Assumia-se que o interesse da Grã-Bretanha se resumia à obtenção de facilidades
de diverso tipo em território português havendo que tirar o maior benefício possível
da situação.
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