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1. Introdução
Existem diversos trabalhos historiográficos que abordaram a cristianização da
Escandinávia medieval 2 . O enfoque é multifacetado, dada a longa duração deste
processo, havendo abordagens que vão desde os primeiros ímpetos conversores
1
Graduando em História (UEL). Orientado pelo professor Dr. Lukas Gabriel Gzybowski (UEL).
rodrigo.siepen@gmail.com
2 As fontes primárias e a bibliografia estudada em língua inglesa, utilizadas nesse trabalho, foram
traduzidas de forma livre pelo autor. O texto original das citações foi anexado como nota de rodapé.
realizados na região até os fins do processo, com a institucionalização da igreja. As
fontes do período são tão diversas quanto suas abordagens, oferecendo ao historiador
amplas possibilidades de análises e problemas ao tema e seus documentos.
Para os fins deste trabalho, foram escolhidas duas fontes textuais medievais que
possibilitassem a análise do tema sob prismas, autores e contextos temporais
diferentes. O tema a ser discutido é a presença de cristãos na Escandinávia antes do
corpo eclesiástico católico lá haver se consolidado, portanto, uma comunidade cristã
sem igreja. As duas fontes abordam esse motivo. O problema em questão é entender a
função das menções a esses cristãos e como eles são mostrados nas fontes.
Uma das fontes é a Vita Anskarii3, hagiografia do missionário franco Ansgar,
composta por Rimbert por volta de 869 e 8764, poucos anos após a morte de seu
mestre Ansgar. A outra fonte é o primeiro livro das Gesta Hammaburgensis Ecclesiae
Pontificum, compostas por Adam de Bremen no último quartel do século XI 5 . Foi
selecionado por mim um trecho específico de cada fonte, que abordam a temática
então proposta. Partindo do escopo metodológico da Vorstellungsgeschichte6, exposta
por Hans-Werner Goetz, analiso os trechos selecionados e busco entendê-los partindo
das percepções e significações dos autores a respeito de seu tempo e seu mundo.
2. Base metodológica
O que especialmente difere as fontes escolhidas são sua tipologia, a Vita
Anskarii sendo uma hagiografia e a Gesta Hammaburgensis sendo uma obra de
historiografia. Quanto a isso, é necessário analisar algumas especificidades da
abordagem de um texto hagiográfico, por motivos metodológicos que se alinham à
metodologia principal, a Vorstellungsgeschichte, essa servindo para as duas fontes.
3 Optei por manter os títulos originais em latim de ambas as fontes ao longo deste artigo. Em uma
tradução livre, seriam os títulos: Vida de Ansgar (Vita Anskarii) e História dos Arcebispos de Hamburgo-
Bremen (Gesta Hammaburgensis Ecclesiae Pontificum).
4 PALMER, 2004, p. 236.
5 GRZYBOWSKI, 2019, p. 145.
6 Em tradução livre, Vorstellungsgeschichte seria equivalente à “história das concepções”.
especificidade. Nesse caso, a historicidade do documento reside não apenas
nos dados que comunica mas em sua totalidade enquanto fato cultural. Assim,
os textos de história escritos na Idade Média, não mentem, não estão
enganados, nem traem a tradição de escrita histórica mas se situam nela de
maneira específica. (ALMEIDA, 2014, p. 95)
Portanto, o uso dos documentos vai além da sua função de fonte, como chama
Almeida, em informar o factual – datas e eventos –, abrangendo também o que a
autora chama de documental, compreendendo o documento, assim, em sua totalidade.
Tal proposta, ainda que desvinculada da Vorstellungsgeschichte, condiz com os
objetivos de análise que esta metodologia nos torna capazes de exercer, sendo o
documento parte do passado e carregado dos presentismos de seu próprio tempo.
Ainda, guiado pelas orientações de Marc Bloch (2001), direciono meus esforços ao que
as fontes podem responder quando interrogadas, “sobre as maneiras de viver ou de
pensar particulares às épocas em que foram escritas, todas as coisas que o hagiógrafo
não tinha o menor desejo de nos expor” (BLOCH, 2001, p. 78). Tais definições buscam
trazer luz sobre a mão do autor e suas percepções, visões de mundo, opiniões, cargas
institucionais e tudo que vem junto de sua pena, desvencilhando a análise de
quaisquer amarras factuais que possam limitá-la.
7 “The authors did not write down what actually happened but what they thought or believed (or even
wanted) to have happened.”
8 “Dealing with historiography as such, however, our interest has shifted from facts to their perception (or,
as I have argued, rather the author's conceptions), from 'reality' to its 'construction', and from the
evidence given in the 'sources' to their authors as contemporary witnesses of their times.”
Portanto, os fatos do passado devem ser interpretados como percepções dos
autores sobre sua realidade e, cabendo a nós entender, como isso é construído na
fonte. Os autores, como testemunhas de seu tempo, carregam consigo – em seus
textos – sua concepção a respeito do que é registrado. Assim, intenções pessoais do
autor e suas impressões sempre vão impregnar o registro textual, muitas vezes
determinado por tradições linguísticas ou literárias, ou pela estrutura (função) do
gênero. Essa base metodológica de análise das fontes nos permite ler e interpretar
tanto a Vita Anskarii de Rimbert quanto as Gesta Hammaburgensis de Adam de
Bremen, buscando compreender o sentido que esses autores dão ao falar dos cristãos
vivendo na Escandinávia antes de lá existir igreja, nos inícios da cristianização.
9 “Through archeology, we may study this slow seepage in the adoption of Christian burial practices and
the embrace of Christian symbols. […] On the other hand, there was the institutional conversion of the
region. During this process Scandinavian kings destroyed pagan temples, built churches, established
dioceses, and introduced Christian kingship. This process began later and played out faster. It began
when Ansgar had the first churches in Birka and Hedeby built in the 830s.”
que “o material arqueológico nos fala sobre o processo de cristianização, enquanto as
fontes escritas focam na conversão institucional, no batismo de chefes e reis, na
construção de igrejas e instalações de bispos” (WINROTH, 2012, p. 104) 10 . Tal
afirmação traz uma carga um tanto problemática, uma vez que a argumentação de
Winroth aponta numa direção definidora de que as fontes arqueológicas oferecem
possibilidades de abordagem mais competentes ao historiador do que as fontes
escritas, no que se refere ao período de cristianização.
Para Winroth, por exemplo, Adam de Bremen relata apenas o que sabia e o
que via a respeito da cristianização dos escandinavos, o que é verdade, mas isso é
tomado pelo medievalista como um problema de insuficiência documental. Winroth se
propôs a contrariar a perspectiva do cônego bremense a partir das fontes
arqueológicas que datam do período que começa com a morte de Ansgar até a época
em que Adam escreve. Eis um problema, dado que o papel do historiador não é
preencher as lacunas do passado com fontes de outra matriz, mas entendê-las em
suas diferentes especificidades temporais e espaciais. O que interessa aqui é saber o
que pensavam o historiador (Adam de Bremen) e o hagiógrafo (Rimbert) a respeito da
cristianização da Escandinávia, uma vez que esse trabalho não se lança aos “aspectos
tangíveis do passado, mas centra-se nas ideias que os indivíduos do passado tinham
de seu meio, suas visões de mundo.” (GRZYBOWSKI, 2012, p. 156).
10 “The archeological material tells us about the process of Christianization, while the written sources
focus on institutional conversion, on the baptism of chieftains and kings, and on the building of churches
and the installations of bishops.”
11 “A second layer of distortion comes from how conversion was understood by medieval writers.”
12 “By analysing this 'distortion' or, more adequately, the specific 'construction' of a chronicle or report, we
4. A Vita Anskarii
13 “In the Scandinavian world, for example, the missions had to be based on the merchants and the
trading posts, or they could not be undertaken at all.”
14 “If a Christian Community were found to exist beyond the frontier […], the Church would consecrate a
18 “There were many who were well disposed towards their mission and who willingly listened to the
teaching of the Lord. There were also many Christians who were held captive amongst them, and who
rejoiced that now at last they were able to participate in the divine mysteries.”
19 “He visited Birka, in southern Sweden, in 830 and 852.”
20 “A little later he built a church on his own ancestral property and served God with the utmost devotion.”
21 GRZYBOWSKI, 2019, p. 145.
ideia. Além disso, como dito, a Vita Anskarii fora escrita para ser lida pelos
eclesiásticos do monastério de Corbie, um dos principais centros de fomentação das
ideias missionárias. Como apontou Palmer, ao falar sobre os últimos capítulos da
hagiografia, “em vez de afirmar que Ansgar tinha convertido o Norte, a história foi
deixada em aberto, com Ansgar ansioso para que outros continuassem seu trabalho.”
(PALMER, 2004, p. 245) 22 . Assim, o documento vai tanto no sentido de exaltar as
ações daqueles que rumaram ao norte para evangelizar, bem como um apelo aos
novos monges para prosseguirem a empreitada iniciada por Ansgar, um “modelo
missionário”23 a ser seguido, como Rimbert assim o seguira.
Ainda há o fator político24. Scott A. Mellor (2008) defendeu a ideia de que a Vita
Anskarii não foi apenas uma hagiografia com função de santificar Ansgar, mas também
um texto de história eclesiástica (Historia ecclesiastica). Segundo esse autor, “Rimbert
não se concentrou apenas na vida de Ansgar, mas também no que diz respeito à
fundação de uma arquidiocese em Hamburgo e da importância dessa nova instituição
nas missões na Dinamarca e na Suécia.”. (MELLOR, 2008, p. 44)25.
Quanto aos cristãos prévios, Scott A. Mellor trouxe em seu texto uma das
interpretações possíveis, pensada por Carl F. Hallencreutz, que teorizou que tanto a
igreja quanto os francos eram contra a escravidão, naquele momento, e isso é um dos
motivos narrativos presentes na hagiografia. Segundo Hallencreutz, na leitura de
Mellor, “embora a igreja possa ter condenado a escravidão, foi a mudança do império
franco da escravidão para a servidão que moldou a economia e a política regionais"
(MELLOR, 2008, p. 47)26. A menção desses cristãos nas fontes estudadas por mim
também pode ir na direção das mudanças do período, refletindo as opiniões de seus
autores. Tanto Mellor quanto Hallencreutz enxergam um caráter político na Vita
Anskarii de Rimbert; seja a menção aos cristãos de cunho político ou não, elas têm
como primeiro objetivo incentivar a junção desses cristãos à cristandade.
22 "Rather than claiming that Anskar had converted the north, the story was left open-ended, with Anskar
keen for others to take up his work.”
23 PALMER, 2004, p. 242.
24 As interpretações de que a Vita Anskarii carrega cunho político foram criticadas por James T. Palmer
no artigo aqui já citado, uma vez que o documento tinha como destino o mosteiro de Corbie e seus
eclesiásticos que, de acordo com o autor, pouco sabiam ou se importavam sobre a situação política de
Hamburgo-Bremen e sua unificação. Seja qual fosse a recepção dos leitores, é notável que Rimbert
realizou esforços para legitimar a arquidiocese e os feitos de seus bispos.
25 “Rimbert was not solely concerned with Ansgar’s life, but also with relating the foundation of Hamburg
as an archdiocese (archbishopric), and the importance of this new institution to the missions in Denmark
and Sweden.”
26 “Although the church may have condemned slavery, it was the Frankish empire’s move from slavery to
27 “Now Saint Rimbert, like Moses, was a man exceedingly meek, as says the Apostle, one who had
compassion on infermities of all; but especially was he concerned about relieving the poor and the
ransoming captives. And so at one time when he went into the Danish country, where he had a church
built for the young Christendom in a place called Schleswig, he saw a multitude of Christians dragged
captive by a chain. Why say more? There he worked a twofold miracle: for he both broke the chain by his
prayer and redeemed the captives with his horse.”
28 “Christianity was to be a missionary religion.”
dos missionários. Em Adam, eles são libertos através de oração e resgatados.
Entende-se que são reintegrados à cristandade a partir desse momento.
6. Considerações finais
Essas menções e a percepção dos autores a respeito das comunidades cristãs
prévias à institucionalização do corpo eclesiástico na Escandinávia são um argumento
em favor da existência desse corpo eclesiástico. Existem cristãos lá fora, além das
fronteiras da cristandade, que precisam ser administrados e partilhar da Palavra, dos
“mistérios divinos”. Da mesma forma que existem pagãos que devem ser convertidos e
batizados. A retórica desses autores gira em torno de fundamentar as bases da
conversão de almas e da cristalização da igreja católica na Escandinávia medieval,
além de funcionar como legitimadora das ações da arquidiocese de Hamburgo-
Bremen. Quando Rimbert fala dos escravos cristãos em Birka, na Suécia, pretende
reforçar o argumento de que as ações missionárias precisavam existir em função da
reintegração desses cristãos “perdidos”, bem como do batismo das populações pagãs.
Quando Adam de Bremen fala dos escravos cristãos em Schleswig, na Dinamarca,
reitera a ação milagrosa de Rimbert em função de elevar o papel da ação missionária.
Desde os primeiros esforços conversores no início do século IX à fase
institucional com a conversão dos reis escandinavos no século XI, a presença de não-
conversos é sempre registrada, o que justifica a manutenção de argumentos narrativos
nos documentos que sustentaram essa pesquisa. Como outros exemplos, há o relato
do diplomata árabe Ibrahim ibn Yakub al-Turtushi, que visitou a cidade de Hedeby, na
Dinamarca, no século X, e relatou que ela era “habitada tanto por pagãos quanto por
cristãos” (WINROTH, 2012, p. 89) 29 . Ainda depois da conversão dos reis, persiste
material hagiográfico que reverbera a necessidade conversora numa tradição literária
notável, como a Passio et Miracula beati Olavi 30 , hagiografia do rei Olavo II da
Noruega, escrita no século XI, na qual em dado momento o rei, após converso, desce
de seus estrados para pregar. “Não contente com a sua própria salvação, ele [Santo
Olavo] se esforçou em incansável urgência para converter as pessoas a quem ele fora
nomeado pela providência divina para governar. (ERLENDSSON, 2001, p. 27)31.
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WOOD, Ian. The missionary life: Saints and the evangelisation of Europe, 400 ‐
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