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ALÉM DAS FRONTEIRAS DA CRISTANDADE: AS COMUNIDADES

CRISTÃS PRÉVIAS À CONSOLIDAÇÃO DO CORPO ECLESIÁSTICO


NA ESCANDINÁVIA MEDIEVAL
KMIECIK, Rodrigo1

RESUMO: O objetivo deste trabalho é analisar as comunidades cristãs presentes na


Escandinávia medieval antes da consolidação de um corpo eclesiástico na região. Para
tal propósito, serão utilizados trechos da Vita Anskarii, hagiografia composta por
Rimbert no final do século IX, e trechos do primeiro livro das Gesta Hammaburgensis,
composto por Adam de Bremen na segunda metade do século XI. A abordagem é
norteada pela Vorstellungsgeschichte (história das concepções), metodologia trazida
por Hans-Werner Goetz. Deste modo, busco entender como as fontes lidam com essas
populações cristãs, e compreender, partindo das percepções dos autores, qual a
função de mencioná-las e como elas são mostradas pelo hagiógrafo e pelo historiador,
de forma a trazer uma outra perspectiva sobre a cristianização da Escandinávia, e
como ela foi percebida e registrada por autores da Idade Média.

PALAVAS-CHAVE: Cristianização; Escandinávia medieval; Hagiografia medieval;


Historiografia medieval; História da religião.

ABSTRACT: This research aims to analyze the Christian communities present in


medieval Scandinavia before the consolidation of an ecclesiastical body in the region.
For this purpose, I will use excerpts from the Vita Anskarii, a hagiography composed by
Rimbert at the end of the 9th century, and excerpts from the first book of the Gesta
Hammaburgensis, composed by Adam of Bremen in the second half of the 11th
century. The approach is guided by the Vorstellungsgeschichte (history of conceptions),
methodology explained by Hans-Werner Goetz. Thus, I intend to understand how the
sources deal with these Christian populations, and understand, based on the authors'
perceptions, what is the function of mentioning them and how they are shown by the
hagiographer and the historian, so to convey a different perspective on the
Christianization of Scandinavia, and on how it was perceived and recorded by the
authors from the Middle Ages.

KEYWORDS: Christianization; Medieval Scandinavia; Medieval Hagiography; Medieval


Historiography; History of religion.

1. Introdução
Existem diversos trabalhos historiográficos que abordaram a cristianização da
Escandinávia medieval 2 . O enfoque é multifacetado, dada a longa duração deste
processo, havendo abordagens que vão desde os primeiros ímpetos conversores

1
Graduando em História (UEL). Orientado pelo professor Dr. Lukas Gabriel Gzybowski (UEL).
rodrigo.siepen@gmail.com
2 As fontes primárias e a bibliografia estudada em língua inglesa, utilizadas nesse trabalho, foram

traduzidas de forma livre pelo autor. O texto original das citações foi anexado como nota de rodapé.
realizados na região até os fins do processo, com a institucionalização da igreja. As
fontes do período são tão diversas quanto suas abordagens, oferecendo ao historiador
amplas possibilidades de análises e problemas ao tema e seus documentos.
Para os fins deste trabalho, foram escolhidas duas fontes textuais medievais que
possibilitassem a análise do tema sob prismas, autores e contextos temporais
diferentes. O tema a ser discutido é a presença de cristãos na Escandinávia antes do
corpo eclesiástico católico lá haver se consolidado, portanto, uma comunidade cristã
sem igreja. As duas fontes abordam esse motivo. O problema em questão é entender a
função das menções a esses cristãos e como eles são mostrados nas fontes.
Uma das fontes é a Vita Anskarii3, hagiografia do missionário franco Ansgar,
composta por Rimbert por volta de 869 e 8764, poucos anos após a morte de seu
mestre Ansgar. A outra fonte é o primeiro livro das Gesta Hammaburgensis Ecclesiae
Pontificum, compostas por Adam de Bremen no último quartel do século XI 5 . Foi
selecionado por mim um trecho específico de cada fonte, que abordam a temática
então proposta. Partindo do escopo metodológico da Vorstellungsgeschichte6, exposta
por Hans-Werner Goetz, analiso os trechos selecionados e busco entendê-los partindo
das percepções e significações dos autores a respeito de seu tempo e seu mundo.

2. Base metodológica
O que especialmente difere as fontes escolhidas são sua tipologia, a Vita
Anskarii sendo uma hagiografia e a Gesta Hammaburgensis sendo uma obra de
historiografia. Quanto a isso, é necessário analisar algumas especificidades da
abordagem de um texto hagiográfico, por motivos metodológicos que se alinham à
metodologia principal, a Vorstellungsgeschichte, essa servindo para as duas fontes.

As obras hagiográficas do medievo oferecem rica fonte de análise quando as


entendemos em sua completude documental, como defendeu Néri de Barros Almeida
(2014). Segundo a autora,

Na abordagem documental do testemunho, a parte “confiável” ou “verdadeira”


não pode ser discernida da parte “não confiável” ou “fabulosa”. Desse ponto de
vista o testemunho enquanto realidade formal e seu conteúdo são submetidos
a perguntas de cujas respostas se depreendem as razões de sua própria

3 Optei por manter os títulos originais em latim de ambas as fontes ao longo deste artigo. Em uma
tradução livre, seriam os títulos: Vida de Ansgar (Vita Anskarii) e História dos Arcebispos de Hamburgo-
Bremen (Gesta Hammaburgensis Ecclesiae Pontificum).
4 PALMER, 2004, p. 236.
5 GRZYBOWSKI, 2019, p. 145.
6 Em tradução livre, Vorstellungsgeschichte seria equivalente à “história das concepções”.
especificidade. Nesse caso, a historicidade do documento reside não apenas
nos dados que comunica mas em sua totalidade enquanto fato cultural. Assim,
os textos de história escritos na Idade Média, não mentem, não estão
enganados, nem traem a tradição de escrita histórica mas se situam nela de
maneira específica. (ALMEIDA, 2014, p. 95)

Portanto, o uso dos documentos vai além da sua função de fonte, como chama
Almeida, em informar o factual – datas e eventos –, abrangendo também o que a
autora chama de documental, compreendendo o documento, assim, em sua totalidade.
Tal proposta, ainda que desvinculada da Vorstellungsgeschichte, condiz com os
objetivos de análise que esta metodologia nos torna capazes de exercer, sendo o
documento parte do passado e carregado dos presentismos de seu próprio tempo.
Ainda, guiado pelas orientações de Marc Bloch (2001), direciono meus esforços ao que
as fontes podem responder quando interrogadas, “sobre as maneiras de viver ou de
pensar particulares às épocas em que foram escritas, todas as coisas que o hagiógrafo
não tinha o menor desejo de nos expor” (BLOCH, 2001, p. 78). Tais definições buscam
trazer luz sobre a mão do autor e suas percepções, visões de mundo, opiniões, cargas
institucionais e tudo que vem junto de sua pena, desvencilhando a análise de
quaisquer amarras factuais que possam limitá-la.

A base metodológica principal foi estudada no artigo “Constructing the Past:


Religious Dimensions and Historical Consciousness in Adam of Bremen's Gesta
Hammaburgensis ecclesiae pontificum”, de Hans-Verner Goetz (2006), no qual o autor
expõe seu método e o aplica numa leitura das Gesta Hammaburgensis de Adam de
Bremen. Alguns apontamentos de Goetz são centrais para o entendimento das fontes
selecionadas para essa pesquisa. Ele entende que “os autores não escreveram o que
realmente aconteceu, mas o que eles pensavam ou acreditavam (ou queriam) que
havia acontecido.” (GOETZ, 2006, p. 17) 7. Portanto, o factual muitas vezes está além
do alcance do historiador pois, mesmo no tempo em que os registros foram
concebidos, estes foram “construídos” por quem os registrou. Ainda segundo Goetz,

Lidando com a historiografia como tal, contudo, o nosso interesse deslocou-se


dos fatos para sua percepção (ou, como argumentei, para as concepções do
autor), da 'realidade' para a sua 'construção', e das evidências dadas nas
'fontes' aos seus autores como testemunhas contemporâneas de seu tempo.
(GOETZ, 2006, p. 19)8

7 “The authors did not write down what actually happened but what they thought or believed (or even
wanted) to have happened.”
8 “Dealing with historiography as such, however, our interest has shifted from facts to their perception (or,

as I have argued, rather the author's conceptions), from 'reality' to its 'construction', and from the
evidence given in the 'sources' to their authors as contemporary witnesses of their times.”
Portanto, os fatos do passado devem ser interpretados como percepções dos
autores sobre sua realidade e, cabendo a nós entender, como isso é construído na
fonte. Os autores, como testemunhas de seu tempo, carregam consigo – em seus
textos – sua concepção a respeito do que é registrado. Assim, intenções pessoais do
autor e suas impressões sempre vão impregnar o registro textual, muitas vezes
determinado por tradições linguísticas ou literárias, ou pela estrutura (função) do
gênero. Essa base metodológica de análise das fontes nos permite ler e interpretar
tanto a Vita Anskarii de Rimbert quanto as Gesta Hammaburgensis de Adam de
Bremen, buscando compreender o sentido que esses autores dão ao falar dos cristãos
vivendo na Escandinávia antes de lá existir igreja, nos inícios da cristianização.

3. Evangelização da Escandinávia medieval


Muito se discute a respeito da periodização do processo de evangelização da
Escandinávia medieval. Esse trabalho segue os moldes de periodização propostos por
Anders Winroth (2012), nos quais o autor estabeleceu uma divisão do processo de
evangelização em duas fases: conversão e cristianização.

Através da arqueologia, podemos estudar essa lenta infiltração na adoção de


práticas cristãs de sepultamento e na adoção de símbolos cristãos. Por outro
lado, houve a conversão institucional da região. Durante esse processo, os reis
escandinavos destruíram templos pagãos, construíram igrejas, estabeleceram
dioceses e introduziram a realeza cristã. Esse processo começou mais tarde e
se desenvolveu mais rapidamente. Começou quando Ansgar fundou as
primeiras igrejas em Birka e Hedeby em 830. (WINROTH, 2012, p. 103)9

Winroth descreveu a cristianização como um lento processo de assimilação


das crenças e das práticas na Escandinávia desde seu contato com o mundo cristão.
Define tal processo como lento, inconstante e ligado às espiritualidades individuais. Por
outro lado, o processo de conversão diz respeito à fase institucional da conversão,
quando os reis se convertem, as igrejas são construídas e os bispados são formados.

Partindo do que propôs Winroth, o recorte temático se encaixa no que o autor


chamou de cristianização, uma vez que o objeto de análise nas fontes, as
comunidades cristãs, são prévias à institucionalização da igreja na Escandinávia, ainda
que registradas por autores que marcam o início da fase conversora. Winroth afirma

9 “Through archeology, we may study this slow seepage in the adoption of Christian burial practices and
the embrace of Christian symbols. […] On the other hand, there was the institutional conversion of the
region. During this process Scandinavian kings destroyed pagan temples, built churches, established
dioceses, and introduced Christian kingship. This process began later and played out faster. It began
when Ansgar had the first churches in Birka and Hedeby built in the 830s.”
que “o material arqueológico nos fala sobre o processo de cristianização, enquanto as
fontes escritas focam na conversão institucional, no batismo de chefes e reis, na
construção de igrejas e instalações de bispos” (WINROTH, 2012, p. 104) 10 . Tal
afirmação traz uma carga um tanto problemática, uma vez que a argumentação de
Winroth aponta numa direção definidora de que as fontes arqueológicas oferecem
possibilidades de abordagem mais competentes ao historiador do que as fontes
escritas, no que se refere ao período de cristianização.

Para Winroth, por exemplo, Adam de Bremen relata apenas o que sabia e o
que via a respeito da cristianização dos escandinavos, o que é verdade, mas isso é
tomado pelo medievalista como um problema de insuficiência documental. Winroth se
propôs a contrariar a perspectiva do cônego bremense a partir das fontes
arqueológicas que datam do período que começa com a morte de Ansgar até a época
em que Adam escreve. Eis um problema, dado que o papel do historiador não é
preencher as lacunas do passado com fontes de outra matriz, mas entendê-las em
suas diferentes especificidades temporais e espaciais. O que interessa aqui é saber o
que pensavam o historiador (Adam de Bremen) e o hagiógrafo (Rimbert) a respeito da
cristianização da Escandinávia, uma vez que esse trabalho não se lança aos “aspectos
tangíveis do passado, mas centra-se nas ideias que os indivíduos do passado tinham
de seu meio, suas visões de mundo.” (GRZYBOWSKI, 2012, p. 156).

Ainda segundo Winroth, “uma segunda camada de distorção vem de como a


conversão foi entendida pelos escritores medievais” (WINROTH, 2012, p. 120)11. Ora,
as impressões dos autores medievais não se caracterizam como distorções dos fatos,
que devem ser restituídas pela arqueologia, como propôs Winroth. Ao contrário, as
“distorções” são intrínsecas às percepções dos autores pois, como apontou Hans-
Werner Goetz (2006), “ao analisarmos essa ‘distorção’ ou, mais adequadamente, a
‘construção’ específica de uma crônica ou relato, adquirimos valiosos insights sobre o
autor e sua obra.” (GOETZ, 2006, p. 20)12. Logo, o documento deve ser compreendido
em sua totalidade, na qual tudo é verdade e carrega significado.

10 “The archeological material tells us about the process of Christianization, while the written sources
focus on institutional conversion, on the baptism of chieftains and kings, and on the building of churches
and the installations of bishops.”
11 “A second layer of distortion comes from how conversion was understood by medieval writers.”
12 “By analysing this 'distortion' or, more adequately, the specific 'construction' of a chronicle or report, we

acquire valuable insights into the author and his work.”


Em alguns trabalhos foi discutida a presença de cristãos além das fronteiras da
cristandade, como no texto “Christianity and the northern barbarians”, de Edward A.
Thompson (1957), uma pequena tese geral sobre a conversão dos povos ditos
bárbaros da Europa, com enfoque nos povos que partilhavam contato com os romanos
nos fins do Império, especialmente nas proezas de Úlfilas e sua tradução da Bíblia para
a língua gótica. Segundo Thompson, “no mundo escandinavo, por exemplo, as
missões tinham de ser baseadas nos comerciantes e nos postos comerciais, caso
contrário seria impossível realizá-las”. (THOMPSON, 1957, p. 6) 13 . Essa afirmação
entra em consonância com o que Winroth apontou a respeito da cristianização,
gradual, lenta, através do tráfego cultural nas cidades mercantes em pleno auge
durante os séculos IX e X, e, ainda, aponta na direção dos cristãos existentes nessas
cidades que, segundo a Vita Anskarii, eram majoritariamente escravos.

Amparando a análise em termos gerais, Thompson afirma que “se uma


comunidade cristã fosse encontrada além da fronteira [...], a igreja consagraria um
bispo para administrá-la.” (THOMPSON, 1957, p. 9) 14 . Já é bem entendido que a
cristianização da Escandinávia não foi um processo de imposição e muito menos que
os nortenhos foram agentes passivos. Tanto havia resistências entre os pagãos,
quanto havia cristãos vivendo e praticando sua fé antes da institucionalização da igreja
na Escandinávia, numa pluralidade cultural, e as fontes escolhidas importam-se em
abordar esse motivo em sua construção narrativa. Cabe à pesquisa entender qual a
função dessas menções e sob qual argumento elas funcionam nas fontes. É importante
ressaltar que tanto a Vita Anskarii quanto as Gesta Hammaburgensis surgem, apesar
de separadas por quase duzentos anos em sua concepção, mas num contexto
semelhante de esforços direcionados à evangelização da Escandinávia – um inicial,
com os primeiros bispos missionários, Ansgar, Witmar e Rimbert; e a outro pouco mais
tardio, sublinhando os êxitos e as incompletudes dessas empreitadas de outrora –, e
seus autores reverberam, de várias formas, apoios e defesas ao modelo de expansão
missionária vigente no tempo em que escrevem esses documentos.

4. A Vita Anskarii

13 “In the Scandinavian world, for example, the missions had to be based on the merchants and the
trading posts, or they could not be undertaken at all.”
14 “If a Christian Community were found to exist beyond the frontier […], the Church would consecrate a

bishop to minister it.”


A Vita Anskarii foi composta por Rimbert poucos anos depois da morte de seu
mestre, Ansgar, que faleceu em 865. O texto hagiográfico foi composto em Latim,
tendo como objetivo principal santificar a pessoa de Ansgar, com ênfase em suas
visões que o levariam ao martírio, o que acabou não ocorrendo. Narra a vida de
Ansgar, sua relação com o bispado de Bremen e o rei Luís, o Piedoso, e suas
incursões à Escandinávia, onde evangelizou na Dinamarca, nas cidades de Hedeby e
Ribe, e na Suécia, na cidade portuária de Birka. Como apontou James T. Palmer
(2004), o texto de Rimbert fora “endereçado ao monastério de Corbie, em Flanders”
(PALMER, 2004, p. 236)15, próximo a Amiens, na Picardia. O fato de conhecermos o
destino da hagiografia pode suscitar algumas interpretações a respeito de sua função.
Seria lida por eclesiásticos do mosteiro onde o próprio Ansgar havia se educado desde
tenra idade, em Corbie. Diferentes de Ansgar que se tornara bispo em Bremen e assim
partira ao norte para evangelizar, os religiosos de Corbie seguiam a ordem beneditina e
assim eram afastados das atividades missionárias. Na conclusão de Palmer, o autor
entende que Rimbert busca apoio franco às missões de Hamburgo-Bremen.
Rimbert poderia, portanto, usar a Vita Anskarii para encorajar os monges
beneditinos a suspender seus votos e trabalhar no campo missionário,
informando-os sobre o que esperar. Além disso, Rimbert poderia encorajar os
bispos a se tornarem generosos patronos da missão para assegurar que os
planos se concretizassem. (PALMER, 2004, p. 256)16

Palmer destaca que “conforme desenvolveu-se, a hagiografia não permaneceu


como um gênero único, mas adotou uma multiplicidade de formas interligadas, sendo
escrita para uma série de fins espirituais e políticos.” (PALMER, 2004, p. 239)17. A ideia
de que as hagiografias são um gênero bastante plural foi discutida por diversos autores
que abordaram a Vita Anskarii e trouxeram diversas perspectivas a respeito. Faz-se
necessária tal ideia, evidentemente, nessa pesquisa, buscando entender a função e o
sentido de Rimbert mencionar os escravos cristãos vivendo na Escandinávia. O
hagiógrafo assim escreveu no capítulo XI da Vita Anskarii:
Havia muitas [pessoas] dispostas a cumprir sua missão e que ouviam de bom
grado os ensinamentos do Senhor. Havia, também, muitos cristãos escravos

15 “Addressed to the monastery of Corbie in Flanders.”


16 “Rimbert could therefore use the Vita Anskarii to encourage the Benedictine monks to suspend their
vows and work in the mission field, while informing them of what to expect there. Furthermore, Rimbert
could encourage bishops to become generous patrons of the mission to ensure that the plans came to
fruition.”
17 “As hagiography developed it became not a single genre but adopted a multiplicity of interlocking

forms, being written for a number of spiritual and political ends.”


(captives) entre eles, que regozijaram por finalmente poderem participar dos
mistérios divinos (divine mysteries). (RIMBERT, 1921, p. 18)18.

O episódio ocorre durante a primeira viagem de Ansgar à cidade de Birka, junto


de seu companheiro de missão Witmar. “Ele visitou Birka, no sul da Suécia, em 830 e
352” (BROWN, 2013, p. 471) 19 . De acordo com o texto hagiográfico, muitos se
converteram ao cristianismo e aceitaram a graça do batismo, inclusive o prefeito da
cidade, um homem chamado Herigar, que “pouco tempo depois construiu uma igreja
em sua propriedade e serviu a Deus com devoção máxima” (RIMBERT, 1921, p. 18)20.
Além disso, o capítulo fala sobre a aprovação do rei Bjorn para as ações de Ansgar e
Witmar de pregar e espalhar a palavra do Senhor naquela terra.
No que diz respeito aos escravos mencionados, nosso foco de reflexão,
podemos levantar algumas hipóteses. Rimbert destaca que eles “regozijaram por
finalmente poderem participar dos mistérios divinos” (RIMBERT, 1921, p. 18). É
compreensível que o autor percebia esses cristãos como incompletos em sua prática
religiosa, por não possuírem igreja, não possuírem padres ou bispos para guiarem
qualquer culto, e não comungavam dos “mistérios divinos”. O cristianismo era,
sobretudo, uma religião de comunhão, estritamente coletiva, e pode ser que os
“mistérios divinos” ditos por Rimbert só pudessem ser alcançados sob a comunhão e
orientação de um corpo eclesiástico. Além do fato desses cristãos serem escravos
(captives) e estarem submetidos a algum senhor – pagão ou não –, são limitados,
ainda, por seu tipo de fé, individual, distante da igreja que ainda não existe lá. Mas
quando a igreja chega, com Ansgar e Witmar e sua evangelização, esses cristãos
finalmente podem compartilhar da Palavra, podem juntar-se ao corpo religioso, são, em
suma, reintroduzidos, quase como se fossem convertidos. Assim como Rimbert
percebia e significava os pagãos em Birka como um “outro religioso”21, parecia ver os
cristãos de semelhante modo. A reintegração desses cristãos lá viventes soa quase em
pé de igualdade com a importância de converter e batizar os pagãos.
A menção desses cristãos caminha em concordância com o que E. A.
Thompson argumentou em seu artigo de 1957, aqui já citado. Havia comunidades
cristãs além das fronteiras da cristandade, que precisavam ser administradas e
florescidas pela igreja; o julgamento e a construção de Rimbert parece reforçar essa

18 “There were many who were well disposed towards their mission and who willingly listened to the
teaching of the Lord. There were also many Christians who were held captive amongst them, and who
rejoiced that now at last they were able to participate in the divine mysteries.”
19 “He visited Birka, in southern Sweden, in 830 and 852.”
20 “A little later he built a church on his own ancestral property and served God with the utmost devotion.”
21 GRZYBOWSKI, 2019, p. 145.
ideia. Além disso, como dito, a Vita Anskarii fora escrita para ser lida pelos
eclesiásticos do monastério de Corbie, um dos principais centros de fomentação das
ideias missionárias. Como apontou Palmer, ao falar sobre os últimos capítulos da
hagiografia, “em vez de afirmar que Ansgar tinha convertido o Norte, a história foi
deixada em aberto, com Ansgar ansioso para que outros continuassem seu trabalho.”
(PALMER, 2004, p. 245) 22 . Assim, o documento vai tanto no sentido de exaltar as
ações daqueles que rumaram ao norte para evangelizar, bem como um apelo aos
novos monges para prosseguirem a empreitada iniciada por Ansgar, um “modelo
missionário”23 a ser seguido, como Rimbert assim o seguira.
Ainda há o fator político24. Scott A. Mellor (2008) defendeu a ideia de que a Vita
Anskarii não foi apenas uma hagiografia com função de santificar Ansgar, mas também
um texto de história eclesiástica (Historia ecclesiastica). Segundo esse autor, “Rimbert
não se concentrou apenas na vida de Ansgar, mas também no que diz respeito à
fundação de uma arquidiocese em Hamburgo e da importância dessa nova instituição
nas missões na Dinamarca e na Suécia.”. (MELLOR, 2008, p. 44)25.
Quanto aos cristãos prévios, Scott A. Mellor trouxe em seu texto uma das
interpretações possíveis, pensada por Carl F. Hallencreutz, que teorizou que tanto a
igreja quanto os francos eram contra a escravidão, naquele momento, e isso é um dos
motivos narrativos presentes na hagiografia. Segundo Hallencreutz, na leitura de
Mellor, “embora a igreja possa ter condenado a escravidão, foi a mudança do império
franco da escravidão para a servidão que moldou a economia e a política regionais"
(MELLOR, 2008, p. 47)26. A menção desses cristãos nas fontes estudadas por mim
também pode ir na direção das mudanças do período, refletindo as opiniões de seus
autores. Tanto Mellor quanto Hallencreutz enxergam um caráter político na Vita
Anskarii de Rimbert; seja a menção aos cristãos de cunho político ou não, elas têm
como primeiro objetivo incentivar a junção desses cristãos à cristandade.

22 "Rather than claiming that Anskar had converted the north, the story was left open-ended, with Anskar
keen for others to take up his work.”
23 PALMER, 2004, p. 242.
24 As interpretações de que a Vita Anskarii carrega cunho político foram criticadas por James T. Palmer

no artigo aqui já citado, uma vez que o documento tinha como destino o mosteiro de Corbie e seus
eclesiásticos que, de acordo com o autor, pouco sabiam ou se importavam sobre a situação política de
Hamburgo-Bremen e sua unificação. Seja qual fosse a recepção dos leitores, é notável que Rimbert
realizou esforços para legitimar a arquidiocese e os feitos de seus bispos.
25 “Rimbert was not solely concerned with Ansgar’s life, but also with relating the foundation of Hamburg

as an archdiocese (archbishopric), and the importance of this new institution to the missions in Denmark
and Sweden.”
26 “Although the church may have condemned slavery, it was the Frankish empire’s move from slavery to

serfdom that shaped the regional economy and politics”


5. A Gesta Hammaburgensis
Foi selecionado um trecho do primeiro livro da Gesta Hammaburgensis, escrita
pelo cônego Adam de Bremen nos fins do século XI. O texto historiográfico tem como
base diversas obras que estavam disponíveis ao autor naquele tempo, a partir de sua
pesquisa, além de inúmeros relatos orais, de modo que Adam apresenta diversas de
suas fontes e faz releituras de algumas delas ao incrementá-las ao seu texto. Quanto
ao trecho aqui abordado, trata-se de uma releitura da Vita Rimberti, hagiografia
anônima de Rimbert. Adam assim escreveu:
Assim, São Rimbert, como Moisés, foi um homem de extrema brandura, como
diz o Apóstolo, aquele que tinha compaixão com as enfermidades de todos;
mas ele era especialmente preocupado em socorrer os pobres e os mantidos
em cativeiro. Então um dia, quando ele adentrou a Dinamarca, onde ele havia
construído uma igreja para a jovem cristandade em um lugar chamado
Schleswig, ele viu uma multidão de cristãos arrastada em cativeiro por
correntes. Por que dizer mais? Lá ele realizou um milagre duplo: quebrou as
correntes com sua oração e pagou o resgate dos cativos com seu cavalo.
(ADAM DE BREMEN, 1959, p. 40)27.

Segundo Grzybowski (2016), a escolha dessa passagem resgatada do material


hagiográfico por Adam de Bremen reforça a imagem que queria se construir de
Rimbert, o “espírito de um homem piedoso e um líder religioso preocupado não
somente com os grandes círculos, mas com o bem-estar de todos os cristãos sob seu
cuidado.” (GRZYBOWSKI, 2016, p. 155). Nada retoricamente mais poderoso que um
milagre para reforçar uma ideia eclesiástica, uma vez que, ainda segundo Grzybowski,
"para Adam de Bremen, a marca do verdadeiro santo é o seu trabalho missionário”
(GRZYBOWSKI, 2016, p. 156). De acordo com Ian N. Wood (2004), o “cristianismo
deveria ser uma religião missionária” (WOOD, 2004, p. 3)28, tendo sido assim postulado
pelo texto bíblico: “Ide, portanto, e fazei que todas as nações se tornem discípulos,
batizando-as em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo” (MATEUS 28:19). Neste
trecho da Gesta, o trabalho missionário é elevado a um milagre, tal o evento escolhido
por Adam a ser recontado ao falar das ações de Rimbert.
Novamente é mostrado que os escravos são libertos e reintegrados, enfim
salvos. Em Rimbert, eles finalmente podem comungar dos mistérios divinos ao lado

27 “Now Saint Rimbert, like Moses, was a man exceedingly meek, as says the Apostle, one who had
compassion on infermities of all; but especially was he concerned about relieving the poor and the
ransoming captives. And so at one time when he went into the Danish country, where he had a church
built for the young Christendom in a place called Schleswig, he saw a multitude of Christians dragged
captive by a chain. Why say more? There he worked a twofold miracle: for he both broke the chain by his
prayer and redeemed the captives with his horse.”
28 “Christianity was to be a missionary religion.”
dos missionários. Em Adam, eles são libertos através de oração e resgatados.
Entende-se que são reintegrados à cristandade a partir desse momento.

6. Considerações finais
Essas menções e a percepção dos autores a respeito das comunidades cristãs
prévias à institucionalização do corpo eclesiástico na Escandinávia são um argumento
em favor da existência desse corpo eclesiástico. Existem cristãos lá fora, além das
fronteiras da cristandade, que precisam ser administrados e partilhar da Palavra, dos
“mistérios divinos”. Da mesma forma que existem pagãos que devem ser convertidos e
batizados. A retórica desses autores gira em torno de fundamentar as bases da
conversão de almas e da cristalização da igreja católica na Escandinávia medieval,
além de funcionar como legitimadora das ações da arquidiocese de Hamburgo-
Bremen. Quando Rimbert fala dos escravos cristãos em Birka, na Suécia, pretende
reforçar o argumento de que as ações missionárias precisavam existir em função da
reintegração desses cristãos “perdidos”, bem como do batismo das populações pagãs.
Quando Adam de Bremen fala dos escravos cristãos em Schleswig, na Dinamarca,
reitera a ação milagrosa de Rimbert em função de elevar o papel da ação missionária.
Desde os primeiros esforços conversores no início do século IX à fase
institucional com a conversão dos reis escandinavos no século XI, a presença de não-
conversos é sempre registrada, o que justifica a manutenção de argumentos narrativos
nos documentos que sustentaram essa pesquisa. Como outros exemplos, há o relato
do diplomata árabe Ibrahim ibn Yakub al-Turtushi, que visitou a cidade de Hedeby, na
Dinamarca, no século X, e relatou que ela era “habitada tanto por pagãos quanto por
cristãos” (WINROTH, 2012, p. 89) 29 . Ainda depois da conversão dos reis, persiste
material hagiográfico que reverbera a necessidade conversora numa tradição literária
notável, como a Passio et Miracula beati Olavi 30 , hagiografia do rei Olavo II da
Noruega, escrita no século XI, na qual em dado momento o rei, após converso, desce
de seus estrados para pregar. “Não contente com a sua própria salvação, ele [Santo
Olavo] se esforçou em incansável urgência para converter as pessoas a quem ele fora
nomeado pela providência divina para governar. (ERLENDSSON, 2001, p. 27)31.

29“Inhabited by both pagans and Christians.”


30Em tradução livre, “Paixão e Milagres do abençoado Olavo”.
31 “Not content with his own salvation, he strove with unflagging urgency to convert the people he was

appointed by divine providence to govern.”


É bastante perceptível que tal motivo narrativo é recorrente ao longo dos
séculos que duram a conversão. No caso das fontes estudadas, ainda que separadas
por duzentos anos, os escravos cristãos na Escandinávia desse longo período são
mais um motivo para que ação evangelizadora aconteça, e aí reside a importância de
mencioná-los em tantos âmbitos. Ora, a cristianização da Escandinávia é um processo
lento e inconstante, que atravessa séculos, de modo que as fontes ressaltam, quase
que sistematicamente, por motivos e narrativas – e objetivos – semelhantes, as ações
missionárias, especialmente aquelas empreendidas por Hamburgo-Bremen, instituição
a qual Rimbert e Adam de Bremen legitimam em seus trabalhos.

7. Referências bibliográficas

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