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O CORO NAS TRAGÉDIAS GREGA E ELISABETANA

sumário
Déborah Scheidt (doutora) - UEPG

Em termos de suporte físico e expedientes materiais, a tragédia grega era


extremamente simples. As peças eram encenadas ao ar livre em enormes teatros de pedra
desprovidos de cenários, efeitos visuais ou guarda-roupas elaborados. Os atores usavam
máscaras e não podiam, portanto, contar nem mesmo com uma diversidade deexpressões
faciais como suporte para suas atuações. Também a “ação”, propriamente dita, fica em
segundo plano. Peter Burian (2001, p. 199)argumenta que “os personagens entram, falam
uns com os outros e saem. Muito pouco efetivamente “acontece” no palco. [...] A ação
física, mesmo quando dramaticamente crucial, é geralmente limitada [...] a súplicas,
gestos de afeto ou piedade ou lamentação”.A grandeza da tragédia clássica estava, assim,
quase que unicamente no texto. São as palavras que revelam personagens e enredo,
localizando-os no espaço e no tempo. Porém, a capacidade discursiva da tragédia grega
contava com um aliado poderoso: o coro.1
O coro na dramaturgia greganão só antecedeu, como favoreceu o surgimento da
tragédia. Antes mesmo do nascimentodessa modalidade literária, os gregos já utilizavam
produções artísticas envolvendo música e dança,tanto em celebrações religiosas – a
principal delas eram os ditirambos, hinos oferecidos a Dionísio –como seculares –
casamentos ou vitórias militares, por exemplo.A importância do coro é tamanha que, para
Nietzsche (1999, p. 52), “a tragédia surgiu do coro trágico e [...] originariamente ela era
só coro e nada mais que coro”.
O coro consistia de um grupo de pessoas da comunidade (o número variou no
decorrer da história entre12 e 50), contratado e treinado pelo próprio dramaturgo –já que
esses indivíduos não eram atores profissionais – e financiado por um cidadão rico, o

1
Um estudo detalhado sobre o funcionamento do coro na tragédia grega figura em SCHEIDT, Déborah. A
"muralha viva" da tragédia grega: o coro e suas sutilezas. Revista NUPEM (Núcleo de Pesquisa
Multidisciplinar), v. 2, p. 49-57, 2010. Disponível em:
<http://www.fecilcam.br/nupem/revistanupem/documentos/vol2exe3ano2010/artigo03.pdf>. Acesso em:
06 jun. 2015.

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choregos. O coroentrava no palco no início da peça de forma bastante conspícua,


marchando à maneira militar, e lá permanecia até o final do espetáculo. Quando não
estavam cantando, dançando e/ou recitando, os membros do coro ficavam de costas para
o público. A formação usual era circular ou retangular. O cantor-líder, chamado corifeu,
podia também entoar canções-solo ou até mesmo falas em prosa.
Vários são os usos do coro na tragédia grega. Sua função principal era realizar as
odes que estruturavam a peça, dividindo-a em partes: prólogo (introdução), párodo
(primeira ode), episódios (partes que corresponderiam hoje aos atos), estásimos (odes
intermediárias entre dois episódios) e êxodo (ode final). Outrafunção, do ponto de vista
prático, era proporcionar um intervalo para que os atores pudessem trocar de roupa ou
relaxarpor uns instantes entre as cenas, já que vários deles desempenhavam mais do que
um papel na peça. Gilbert Norwood (1960, p. 80) observa também que algumas frases
soltas, aparentemente irrelevantes para o desenrolar do enredo, que aparecem ao final de
algumas intervençõesdo coro, normalmente após falas importantes de protagonistas,
seriam meramente sobressalentes e não fariam grande falta se não fossem ouvidas pelo
público enquanto este aplaudia e expressava apreço pelas atuações precedentes.
O coro também era uma fonte de ritmo, pois sua atuação era acompanhada por um
músico tocando um instrumento chamado aulos, um ancestral do oboé. O tom das canções
era normalmente solene, podendo às vezes tornar-se mais vivaz (Taplin, 1989, p. 12), já
que o ritmo e as coreografias refletiam os acontecimentos no palco.Os efeitos sensoriais
produzidos pelo conjunto de trajes, máscaras, movimentos corporais e acompanhamento
instrumental contribuíam para o encantamento e fascinação que a peça inspirava no
público (Easterling, 2001, p. 156).
Mas é do ponto de vista literário que o coro demonstra sua maior riqueza e
sutileza. Numa modalidade em que vigoravam os preceitos das unidades de tempo, espaço
e ação – ou seja, em que os enredos normalmente se passavam num período de 24 horas,
em um único local, concentrando-se nos personagens principais – uma das funções
principais do coro seria a de fornecer os detalhes que fugissem desse escopo, mas que
ainda assim fossem necessáriosà perfeita compreensão da trama. O párodo de
Agamêmnoné um bom exemplo de como o coro reaviva a memória do público sobre os
acontecimentos ocorridos há dez anos eque levaram Agamêmnon e Menelaua partir para
a guerra causada pelo rapto de Helena (Ésquilo, 2003, p. 21).
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Outras duas funções do coro são a de comentarista e, ao mesmo tempo, como bem
expressa Easterling (2001, p. 163), “testemunha embutida, produzindo respostas coletivas
e normativas aos eventos da peça”.Muitos coros expressam suas próprias ideiase
sentimentos em relação aos acontecimentos que presenciam no palco, estabelecendo,
direta ou indiretamente, padrões morais, éticos e religiosos.Talvez seja essa a razão para
que a escolha mais frequente dos personagens que comporão os coros de várias tragédias
recaia sobre personagens idosos, que seriam mais experientes, ponderados e preocupados
com o bem-comum.Um exemplo fornecido por Easterling, é o dos cidadãos argivos, os
quais são até mesmo fisicamente ameaçados por suas opiniões, ao final de Agamêmnon
(Ésquilo, 2003, p. 80).
Consequência direta da função acima descrita, ainda segundo Easterling (2001, p.
163), seria a de influenciar na resposta emocional do próprio público. Em Agamêmnon,
por exemplo, o coro instiga a piedade dos espectadorespor Cassandra:

Corifeu:
Eu, todavia, não me sinto exasperado,
pois tenho pena dela. Vai, desventurada!
Apeia deste carro! Cede ao teu destino!
Recebe pela vez primeira o jugo duro! (Ésquilo, 2003, p. 56)

Também nas Coéforas, um coro formado de escravas troianas, abertamente


simpático às provações dos irmãos Orestes e Electra, tem grande poder discursivo para
influenciar a opinião pública, em várias de suas falas. O coro também podia interagir com
os personagens, lamentando seu destino trágico, confortando-os ou consolando-os em
momentos de crise, sem porém, ter o poder de mudar o desenrolar dos acontecimentos.
Para alguns críticos mais tradicionalistas, tais como Lauchlan M. Watt, a atuação
do coro, ao demonstrar em uníssono reações intensas de contentamento, pesar, ou
simpatia pelo destino das personagens, mas ao mesmo tempo manter-se à parte da ação
principal, seria“the ideal spectator, the soul being purged, as Aristotleexpressed it, by Pity
and Fear, flinging its song and its cryamong the passions and the pain of others. It was
the ‘Vox Humana’ amid the storm and thunder of the gods” (Watt, 1908, 14-15).
Nietzsche (1999, p. 52), no entanto, discorda de que a tragédia representaria a
polis grega, ou a opinião pública, pois argumenta que as raízes puramente religiosas da
tragédia excluiriam a possibilidade de articulação sócio-política. O coro,para o filósofo

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alemão, teria uma função eminentemente literária ou artística. Adotando a metáfora de


Schiller, Nietzsche(1999, p. 54) alega que o coro é como uma “muralha viva que a
tragédia estende à sua volta a fim de isolar-se do mundo real e de salvaguardar para si o
seu chão ideal e a sua liberdade poética” . O coro daria ao teatro grego um aspecto bastante
contemporâneo ao século XXI: a “desobriga[ção] de efetuar uma penosa retratação servil
da realidade”, sem retirar do texto a sua verossimilhança interna (1999, p. 54).
Quando os dramaturgos ingleses retomaram o uso do coro na tragédia elisabetana,
cerca de dez séculos após o apogeu da tragédia clássica, importantes mudançasocorreram.
Uma delas foi a extinção dos dançarinos e cantores e os papéis destinados ao
coropassaram a envolver somente versos ou falas em prosa. Outra inovação foia
diminuição drástica no número de integrantes: o coro passou a ser representado, na maior
parte das vezes, por um único personagem, uma espécie de comentarista embutido na
peça como um personagem secundário, que não participa da trama eque em
geraldesempenha suas falas nos prólogos e/ou epílogos.
Um bom exemplo é o de Dr. Fausto, de Christopher Marlowe. Nessa peçao coro
introduz o enredo, em linguagem formal e elaborada, esclarecendo o público sobre a
temática da tragédia. O mito deÍcaro é apresentado como um paralelo para a trajetóriade
Fausto e sua queda é atribuída ao seu envolvimento com forças ocultas. Nos comentários
finais o coro reaparece, lamentando a morte do protagonista ereforçando a natureza de
sua falha trágica, ao mesmo tempo em que adverte o público sobre os perigos da ambição
desmedida. É possível perceber pelo exemplo de Marlowe, que a retomada do coro nos
séculos XV e XVI pela tragédia inglesa, apesar das diferenças estruturais, manteve a
característica básica de intermediação entre o dramaturgo e o público para
esclarecimento, admoestação e perpetuação da moral e da ética.
Como um autor que não receava experimentalismos, demonstrava grande
habilidade emencontrar soluções para os problemas do teatro de seu tempo eprocurava
sempre adaptar práticas clássicas para que satisfizessem os gostos e necessidades de
seupúblico, Shakespeare também adota personagens-coro em dois de seus trabalhos,
Romeu e Julieta e Henrique V.Mas, mesmo quando não faz uso do coro, especificamente,
é possível entreverem algumas peças – dentre elas destaca-se Rei Lear – a presença de
personagens secundários que realizam funções semelhantes às do coro na dramaturgia
grega.
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Omais conspícuo dos coros shakespeareanos é o que introduz, com grande


ufanismo (por vezes irônico), cada um dos atos de Henrique V.Nessa peça histórica de
1599,o dramaturgoexplora a Batalhade Azincourt (1415), em que os ingleses, mesmo em
inferioridade numérica, conseguem uma vitória espetacular contra os batalhões franceses.
No enredo, que remete ao épico e é repleto de movimentação física, o coro tem a função
principal de preencher lacunas históricas efazer a ligação entre os atos,compensando as
dificuldades de encenação de um enredo em que há saltos no tempo e grande quantidade
de personagens e cenários. No início do segundo ato, por exemplo, o coro esclarece que

o rei partiu de Londres, e a cena agora transporta-se, gentis senhores, gentis senhoras, para
Southampton. Lá é onde está agora esta casa de espetáculos, é lá onde deveis sentar-vos e assistir-
nos, e dali até a França nós vos conduziremos em segurança – e vos traremos de volta –, enfeitiçando
o nosso estreito oceano para dar-vos passagem pacífica, pois, se estiver ao nosso alcance, não vamos
ofender nem um único estômago com nossa encenação (Shakespeare, 2009, p. 41).

Os toques cômicos também são característicos da postura metarreferente


percebida por Nietzscheque questiona (talvez com falsa modéstia?) a capacidade da
própria peça de realizar a tarefa a que se propôs:

Porém, perdoai, damas e cavalheiros, os espíritos rasos e não-elevados que ousaram, neste tablado
que não é digno de vós, apresentar tema tão grandioso. Poderá este escasso espaço conter em si os
espaçosos campos da França? E conseguiremos nós abarrotar dentro deste círculo de carpintaria os
capacetes que aterrorizaram o próprio ar de Azincourt? (Shakespeare, 2009, p. 23).

E agora deve a nossa cena voar para a batalha, onde – senhores e senhoras, tenham dó! – iremos
desonrar o nome da Batalha de Azincourt com cinco ou seis floretes defeituosos e desprezíveis,
manuseados de qualquer jeito em ridículas rixas. No entanto, sentem-se e assistam, imaginando a
realidade onde enxergam dela imitação (Shakespeare, 2009, p. 98).

Henrique V é um trabalho de um Shakespeare mais experiente e ousado do que


aquele que havia escritoRomeu e Julieta (1595-6), em que o personagem-coro – bem mais
tradicional, mas não menos hábil – aparece no prólogo geral e no prólogo do ato II,
executando dois belos sonetos. O primeiro e mais famoso deles situa o espectador no
tempo e no espaço, apresentando não só os temas que serão desenvolvidos – conflito
familiar, amor predestinado e suicídio–como também um resumo do enredo e até mesmo
o desfecho:

Two households both alike in dignity Duas casas, iguais em seu valor,
(In fair Verona, where we lay our scene) Em Verona, que a nossa cena ostenta,
From ancient grudge break to new mutiny, Brigam de novo, com velho rancor,
Where civil blood makes civil hands unclean. Pondo guerra civil em mão sangrenta.
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From for the fatal loins of these two foes Dos fatais ventres desses inimigos
A pair of star-cross’d lovers take their life, Nasce, com má estrela, um par de amantes,
Whose misadventur’d piteous overthrows Cuja derrota em trágicos perigos
Doth with their death bury their parents’ strife. Com sua morte enterra a luta de antes.
The fearful passage of their death-mark’d love A triste história desse amor marcado
And the continuance of their parents’ rage, E de seus pais o ódio permanente,
Which, but their children’s end, nought could remove, Só com a morte dos filhos terminado,
Is now the two hours’ traffic of our stage; Duas horas em cena está presente.
The which, if you with patient ears attend, Se tiverem paciência para ouvir-nos,
What here shall miss, our toil shall strive to mend. Havemos de lutar pra corrigir-nos.
(Shakespeare, 1997, p. 16) (Shakespeare, 1997, p. 17)

Na verdade,spoilers não eram vistos como prejudiciais à apreciação literária na


Inglaterra elisabetana, uma vez que, em geral,os enredos mais populares eram os já
conhecidos do público (entre outras mais antigas, havia uma versão italiana de Romeu e
Julieta de 1530 e outra inglesa de 1562). Certamente é a qualidade do texto que fez da
versão shakespeareanadeRomeu e Julietauma das histórias de amor mais famosas de
todos os tempos.
Há várias semelhanças entre os coros de Romeu e Julieta e de Henrique V.
Também em Romeu e Julietao prólogo lembra o público de que este está diante de uma
peça de teatro (“Where we lay our scene” / “Is now thetwo-hour traffic of our stage”),
proporciona modelos de comportamento esperado da parte do público (“The which of you
with patient ears attend”) e pede desculpas antecipadas pelas possíveis deficiências
(“What hereshall miss, our toilshallstrive to mend”).
A principal diferença está na opção pela forma poética em Romeu e Julieta, em
contraposição à prosa de Henrique V. É importante lembrar, como faz Barbara Heliodora
(1998, p. 176), que“[e]m Shakespeare o verso é rotineiramente identificado com o
pensamento harmônico, e a prosa, em geral, usada para estabelecer diferenças sociais,
estados anormais e alterações de tom”. No caso de Romeu e Julieta, a presença do soneto
elisabetano tradicional – o esquema de rimas do prólogo é ababcdcdefefgg e existe um
tema bem delimitado para cada um dos três quartetose um dístico final que conclui o
poema com chave de ouro –indicaria, de acordo com o preceito acima uma atmosfera
predominante de harmonia e lirismo para a peça, e especialmente para o ato que vem em
sequência.
Entretanto, o que se tem é uma fina ironia na adoção dessa forma ortodoxa, que
prima pelaorganização e rigidez formal, para introduzirum enredo que em grande parte é
composto deperturbações familiares e sociais, discórdia, equívocos, brigas,derramamento
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de sangue e expresso nalinguagem rude e provocante de vários personagens.Essa aparente


contradição faz com que o coro de Romeu e Julietanos remeta a um dos papéis da
arte:apreender o belo de qualquer situação, não importa o quanto mundana, feia ou triste
ela seja. Também não interessa se a história já tenha sido contada antes,porém, para tudo
isso, o prólogo deixa bem claro, é necessária a colaboração do leitor/espectador.
Mas se Romeu e Julieta é a única tragédia em que Shakespeare adota um coro
propriamente dito, outras tragédias podem apresentar personagens secundários que
desempenham um papel de comentaristas das atitudes sendo representadas ou até mesmo
que espelham as opiniões do próprio público.Rei Learse destaca nesse aspecto. Nessa
peça datada de 1604, há alguns personagens que, de alguma forma,podem ter papéis
semelhantes ao do coro na tragédia grega. Há, por exemplo, comentários esparsos de Kent
/ Caio (nobre que se disfarça de criado para acompanhar Lear durante sua provação) sobre
asações de Lear, ou o esclarecimento do Duque de Albany, quando este percebe a
verdadeira natureza de sua esposa Goneril (ato 4, cena ii). Mas o personagem que mais
diretamente nos remete ao coro grego em grande parte de suas falas é certamente o Bobo
da Corte de Lear.
Por se tratar de um papel cômico numa tragédia, a crítica tradicionalista muitas
vezes considerou o Bobo como um personagem perfeitamente dispensável em Rei Lear,
e que,inclusive depreciariaa qualidade do texto de Shakespereare.Em 1947 George
Orwell (2015, online, minha tradução)fez a defesa do Bobo, destacando também sua
função de coro: “O Bobo é parte essencial da peça. Ele funcionanão só como uma espécie
de coro, esclarecendo a temática principal e a interpretando de forma mais inteligente do
que outros personagens, como também chamando a atenção para os desvarios de Lear.”
Suas falas – em forma de versinhos, canções, piadas, rimas e adivinhas – e que beiram ao
nonsenseseriam ainda, paradoxalmente, de acordo com Orwell, “um pequeno fluxo de
sanidade que percorre a peça.”
Nas sociedades monárquicas europeias desde a Idade Média, os bobos da corte
eram artistas cômicos profissionais. Sua função era entreter os reis e a nobreza, ao
ridicularizar os defeitos humanos por meio de canções e rimas, as quais eram
normalmente acompanhadas de ações físicas, tais como saltos e acrobacias.Como os
personagens integrantes do coro grego, o Bobo em Rei Learé um sujeito comum entre a
nobreza,cujos comentários enfatizam os temas sendo discutidos na peça, esclarecem o
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comportamento dos demais personagens e fazem crítica social,sem que, no entanto, sua
atuação influencie no desenrolar dos acontecimentos (em muitos episódios, suas falas
nem sequer são ouvidas por Lear e pelos outros destinatários de suas crítica mordaz, cf.
Ato 1, cena v).
Na verdade, o Bobo é o único personagem que – protegido por seu disfarce de
palhaço, o qual étambémconcessão de sua profissão – pode criticar abertamente o
comportamento de Lear e, ainda assim, ser carinhosamente chamado de “pretty knave”
[marotinho] (Shakespeare, 2000, p. 82-83). Suas falasservem, principalmente, para
denunciar o descaso da nobreza pelas classes inferiores, mas, principalmente, realçar as
falhas de julgamento de Lear e o caos a que seu comportamento submete toda a sociedade.
Em sua primeira aparição (Ato 1, cena iv), o Bobo oferece seu barrete (chapéu
característico) a Kent/Caio:

Why, this fellow has banish’d two on’s Sabes, esse sujeito aí baniu duas de suas filhas
daughters, and did the third a blessing against e, contra a sua vontade, abençoou a terceira; se
his will: if thou follow him thou must needs tu o segues, tens de usar o meu barrete! Olá, Tio!
wear my coxcomb. How now, Nuncle! Would I Ah! Se eu tivesse dois barretes e duas filhas!
had two coxcombs and two daughters. (Shakespeare, 2000, p. 83)
(Shakespeare, 2000, p. 82)

Percebe-se nessas falas (que parodiam, por meio de inversão, o que realmente
ocorreu) uma denúncia do mundo às avessas que se anuncia pelo ato irresponsável da
divisão do reino, um assunto-tabu em qualquer monarquia e que também aparece
inteligentemente nas falas do bobo, quando este insinua querer ter dois barretes para
dividir com as filhas.Outro tema levantado pela peça que aparece nas falas do Bobo é a
relação distorcida entre Lear e as filhas, em que a luta pelo poder e bens materiais
substituem os laços de dever e respeito entre pais e filhos:

Fathers that wear rags. De pai que veste só molambo


Do make their children blind, Os filhos desviam o olhar;
But fathers that bear bags Mas pai com bolsos tilintando,
Shall see their children kind. Estes, eles vão adorar.
Fortune, that arrant whore, A Fortuna, rameira rematada,
Ne’er turns the key to th’ poor. Nunca ao pobre abre a porta e dá entrada.
(Shakespeare, 2000, p. 142) (Shakespeare, 2000, p. 143)

Ao mesmo tempo em que denuncia o materialismo O Bobo deixa claro nos versos
acima, que Lear inverteu a ordem natural da sociedade ao doar suas terras e evadir-se de

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suas obrigações de governante,o que também se reflete na inversão da hierarquia familiar:


“thymad’stthydaughtersthymothers; for [...] you gav’st them the rod and putt’st down
thine own breeches” [tu fizeste de tuas filhas tuas mães; [...] quando lhes entregaste a vara
e arriaste as calças] (Shakespeare, 2000, p. 88-89).
Como percebe BenteVidebaek (1996, p. 126), ao enfatizar a falha trágica e a
consequente queda de Lear, o Bobo encoraja os sentimentos de empatia, piedade e medo
que caracterizam a tragédia na visão aristotélica. Também de forma um tanto paradoxal,
as várias intervenções humorísticas do bobo e seus trejeitos – comumente classificados
de“alívio cômico” –ao mesmo tempo que provocam o riso, acabam porintensificaras
controvérsias, polêmicase provações pelas quais os personagens passam. As falas do
Bobo remetem ao tema da cegueira que percorre todo o textoe passam a ser irrelevantes
após Lear abandonar sua atitude arrogante e perceber seus erros de julgamento e sua falha
em enxergar o outro, tanto que o personagem, misteriosamente, desparece de cena depois
disso.
Apesar de sua aparente simplicidade, o coro grego apresenta complexidades e
sutilezas que foram reconhecidas e retomadas, com sucesso, pelos dramaturgos
elisabetanos vinte séculos após o auge da tragédia clássica. Desde então o coro tem feito
parte deimportantes trabalhos dramáticos, tais como MourningBecomes Electra (1931)
de Eugene O’Neal, peça que retoma a Orestéia de Ésquilo, situando-a durante a Guerra
da Secessão norte-americana, e Murder in the Cathedral (1935), de T. S. Eliot, sobre o
assassinato de Thomas Beckett em Canterburyno século XII, mas que também remete à
ascensão do fascismo na Europa moderna.Mais do que se tornar obsoleto ou datado, o
coro da tragédia grega se firmou, ao longo da história da literatura, como uma interessante
e versátil possibilidade para dramaturgos de vários períodos e contextos.

REFERÊNCIA

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Cambridge companion to Greek tragedy. Cambridge: CUP, 2001.

EASTERLING, P. E. Form and performance. In: EASTERLING, P. E. (ed.). The Cambridge


companion to Greek tragedy. Cambridge: CUP, 2001.

ÉSQUILO. Oréstia. Tr. Mário da Gama Kury. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

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NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia. São Paulo: Cia das Letras, 1999.

NORWOOD, Gilbert. Greek tragedy. New York: Hill and Wang,1960.

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______. Rei Lear. Edição bilíngue. Tr. Aíla de Oliveira Gomes. Rio de Janeiro: UFRJ, 2000.

______. Romeu e Julieta. Edição bilíngue. Tr. Barbara Heliodora. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1997.

TAPLIN, Oliver. Greek tragedy in action. Los Angeles. University of California Press, 1979.

VIDEBAEKE, Bente. The stage clown in Shakespeare’s theatre.Westport: Greenwood Press,


1996.

WATT, Lauchlan Maclean. Attic and Elizabethan tragedy. London: J.M. Dent & Sons, 1908.
pp. 13-17. Disponível em <http://www.theatrehistory.com/ancient/chorus001.html>Acesso em
25 mai 2007.

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