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UNIVERSIDADE PRESIDENTE ANTÔNIO CARLOS – UNIPAC
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PROF. HELDER RODRIGUES PEREIRA

FILOSOFIA

BARBACENA
2016
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Universidade Presidente Antônio Carlos – UNIPAC.

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Equipe EaD

P436f

Pereira, Helder Rodrigues.


Filosofia. / Helder Rodrigues Pereira – Barbacena:UNIPAC, 2016.
107p.: il.: color.

ISBN:

1. Filosofia I. Título II. Universidade Presidente Antônio Carlos - UNIPAC

CDD: 101

Catalogação na fonte elaborada por Rosy Mara Oliveira – CRB 6/2083


EMENTA
A filosofia como antropologia filosófica. O fenômeno humano estudado a partir da questão do conhecimento:
definição, possibilidade, origem e tipos de conhecimento. A filosofia em busca da compreensão do ser humano:
as concepções do ser humano na história antiga, medieval, moderna e contemporânea e uma abordagem
sistemática do ser humano, desde suas estruturas e relações fundamentais, passando pela compreensão da
realização humana e culminando na compreensão do ser humano como pessoa. Etnocentrismo. A questão
racial como tema da identidade nacional. As revisões acerca da identidade étnico-racial. Relações raciais e
miscigenação. Cultura e Ideologia. Noções de Direitos Humanos.
CONHEÇA O AUTOR

Helder Rodrigues Pereira é graduado em Filosofia pela Universidade Federal de


São João del Rei. Fez Especialização em História de Minas Gerais (Século XIX) pela
Universidade Federal de São João del Rei e em Saúde Mental pela Escola de Saúde
Pública de Minas Gerais. Mestre em Letras pela Universidade Federal de São João del Rei.
Doutor em Linguística do Texto e do Discurso pela Universidade Federal de Minas Gerais.
Atua na orientação de trabalhos de conclusão de cursos de especializações em Gestão e
Coordenação Escolar da Universidade Federal de Ouro Preto, atuando também na clínica
psicanalítica em Barbacena. Professor e pesquisador na Universidade Presidente Antônio
Carlos - Campus Barbacena.
APRESENTAÇÃO DA DISCIPLINA
Há questionamentos que acompanham o homem ao longo de sua vida. Na maior parte das vezes, somos
convidados a esquecer as perguntas e a nos contentar somente com respostas. Nem sempre, no entanto, as
respostas que nos são apresentadas conseguem aquietar-nos. Somos seres pensantes e o pensamento, ainda
que nos provoque dor, é a grande conquista humana ao longo de sua trajetória no planeta. Se abdicarmos
de nosso direito de pensar, acabaremos por fazer o que outros pensam e, por certo, seremos servos de uma
vontade que nem sempre nos conduz à liberdade. Os caminhos da filosofia nos levam a percursos tortuosos,
mas são eles que nos conduzem à realização daquilo que temos de mais belo: a nossa própria humanidade,
que jamais pode ser alienada.
É apenas a primeira semente.
Desejamos-lhe bons estudos!
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO....................................................................................................................................................11
OS CAMINHOS DO PENSAMENTO..................................................................................................................12
UNIDADE I - CONSIDERAÇÕS SOBRE MITO E FILOSOFIA..........................................................................15
O PENSAMENTO MÍTICO..................................................................................................................................16

UNIDADE II - A CONQUISTA DA RAZÃO..........................................................................................................23


OS DESAFIOS NA BUSCA PELO CONHECIMENTO.......................................................................................24
DA NATUREZA À CULTURA DO MITO À RAZÃO...........................................................................................24
PROMETEU E PANDORA.................................................................................................................................25
A AQUISIÇÃO DE CONHECIMENTO NA FILOSOFIA DE PLATÃO................................................................29
A ALEGORIA DA CAVERNA.............................................................................................................................30

UNIDADE III - PENSANDO SOBRE O PODER.................................................................................................35


PODER E DOMINAÇÃO....................................................................................................................................36
SOBRE A POSSIBILIDADE DE UMA POLÍTICA PARA TODOS......................................................................36
ANTÍGONA: AS LEIS DA CIDADE E A LEI DO CORAÇÃO.............................................................................37
“O PRÍNCIPE”....................................................................................................................................................43
CAP. III: “SOBRE OS PRINCIPAIS MITOS”......................................................................................................43
CAP. V: “DE QUE MODO SE DEVE GOVERNAR AS CIDADES
OU PRINCIPADOS QUE, ANTES DE SEREM OCUPADOS
VIVIAM COM SUAS PRÓPRIAS LEIS”.............................................................................................................44
CAP. VIII: “DOS QUE CHEGARAM AO PRINCIPADO POR MEIO DE CRIMES”............................................44
CAP. XIV: “O QUE COMPETE A UM PRÍNCIPE A CERCA DA MILÍCIA”........................................................44
CAP. XVII: “DA CRUELDADE E DA PIEDADE - É MELHOR SER
AMADO QUE TEMIDO, OU ANTES TEMIDO QUE AMADO”..........................................................................45

UNIDADE IV - O SONHO DA LIBERDADE........................................................................................................47


LIBERDADE E MATURIDADE...........................................................................................................................48
ÉDIPO: A ESTRANHA RELAÇÃO AMOROSA E SUAS CULPAS”..................................................................48

UNIDADE V - OS CAMINHOS DO AMOR.........................................................................................................59


A BUSCA PELA COMPLETUDE........................................................................................................................60
EROS E PSIQUE................................................................................................................................................60
EROS E PSIQUE - FERNANDO PESSOA........................................................................................................63

UNIDADE VI - ARTE E BELEZA........................................................................................................................71


A ARTE E O HOMEM.........................................................................................................................................72
NARCISO E ECO...............................................................................................................................................73
A DEFINIÇÃ DE BELEZA EM HEGEL - ROBSON STINGAR..........................................................................76

UNIDADE VII - FINITUDE E ETERNIDADE.......................................................................................................81


FILOSOFIA E RELIGIÃO...................................................................................................................................82
MEDUSA............................................................................................................................................................83
O PENAMENTO DE KARL MARX SOBRE RELIGIÃO....................................................................................86

UNIDADE VIII - ENTRE O BEM E O MAL.........................................................................................................89


ÉTICA: A FILOSOFIA DA MORAL.....................................................................................................................90
ORFEU E EURÍDICE..........................................................................................................................................91
NIETZSCHE E O CONHECIMENTO DA MORAL..............................................................................................95

REFERÊNCIAS................................................................................................................................................105
IMAGENS
Figura 1: Julgamento de Sócrates, Academia de Atenas.................................................12
Figura 2: O Pensador, de Rodin...........................................................................................16
Figura 3: Pegasos e Belerofonte..........................................................................................16
Figura 4: Deus Dionísio.........................................................................................................17
Figura 5: Jovem defendendo-se de Eros, de Bouguereau (1825 –1905).........................17
Figura 6: Via Láctea segundo a Mitologia Grega..............................................................17
Figura 7: A escolha de Hércules, de Annibale Carracci(1595).........................................18
Figura 8: Os Doze Trabalhos de Hércules, mosaico romano S. III D.c..........................18
Figura 9: Zeus e Ganimedes descansam enquanto prometeus rouba o fogo................24
Figura 10: Deuses no Monte Olímpo......................................................................................26
Figura 11: Prometeu entrega a razão ao homem.................................................................26
Figura 12: A Caixa de Pandora................................................................................................26
Figura 13: Prometeu sendo devorado pelo Abutre...............................................................27
Figura 14: Homem de Barro...................................................................................................27
Figura 15: Adão e Eva e o fruto proibido..............................................................................28
Figura 16: Os Dominados.......................................................................................................36
Figura 17: A tragédia Antígona, de Sófocles........................................................................37
Figura 18: Creonte..................................................................................................................38
Figura 19: A batalha entre Etéocles e Polinices...................................................................39
Figura 20: Antígona e Ismenia................................................................................................39
Figura 21: O sepultamento de Polinices...............................................................................40
Figura 22: Antigona vela o corpo de Polinices.....................................................................40
Figura 23: Antígona é surpreendida pelos guardas.............................................................40
Figura 24: espetáculo composto pela tragédia grega de Sófocles e
pelo drama francês homônimo de Jean Anouilh...............................................................41
Figura 25: Antígona é condenada a morte por Creonte........................................................41
Figura 26: Tirésias, o Sábio...................................................................................................42
Figura 27: Liberdade, angústia e solidão..............................................................................48
Figura 28: Édipo e a Esfinge...................................................................................................49
Figura 29: Laio visita o oráculo(dir.);
Jocasta chora o desaparecimento de seu filho (esq.)...................................................49
Figura 30: Imagem de Apolo....................................................................................................50
Figura 31: Édipo e a Rainha Jocasta.....................................................................................50
Figura 32: Pólibo segurando Édipo.......................................................................................51
Figura 33: Adoção de Édipo pelo Rei de Corinto,
Pólibo, e sua Rainha Mérope................................................................................................51
Figura 34: A dor de Édipo.......................................................................................................52
Figura 35: Édipo chega a Tebas.............................................................................................52
Figura 36: Édipo e a Esfinge...................................................................................................53
Figura 37: Édipo e a Esfinge..................................................................................................54
Figura 38: Édipo, o Rei Maldito..............................................................................................55
Figura 39: Cupido e Psique....................................................................................................60
Figura 40: Afrodite admirada..................................................................................................61
Figura 42: Psique e Eros: a confiança quebrada..................................................................62
Figura 43: O Rapto de Psique................................................................................................62
Figura 44: A alma encantada pelo amor.................................................................................63
Figura 45: Eros e Psique.........................................................................................................63
Figura 46: O despertar de Eros..............................................................................................64
Figura 47: O Banquete ou Simpósio, diálogo de Platão, de Anselm Feuerbach.................65
Figura 48: Monalisa.................................................................................................................72
Figura 49: Eco e Narciso...................................................................................................…..73
Figura 50: Hera, esposa fiel, mãe não afetuosa.....................................................................74
Figura 51: Não havia beleza a ser contemplada....................................................................75
Figura 52: Narciso e as Ninfas................................................................................................75
Figura 53: A Beleza é irrepresentável....................................................................................78
Figura 54: Cruz, símbolo de fé................................................................................................82
Figura 55: Poseidon................................................................................................................83
Figura 56: Athena x Poseidon.................................................................................................84
Figura 57: Medusa...................................................................................................................84
Figura 58: Perseu decaptando a Medusa..............................................................................85
Figura 59: O bem e o mal, os inversos...................................................................................90
Figura 60: Orfeu rodeado de animais.....................................................................................91
Figura 61: Orfeu guiando Eurídice do submundo.................................................................91
Figura 62: Barco de Caronte...................................................................................................92
Figura 63: Orfeu e Eurídice.....................................................................................................92
Figura 64: Cérberos, o cão do inferno....................................................................................92
Figura 65: Orfeu e Eurídice.....................................................................................................93
Figura 66: Orfeu e Eurídice (segunda figura)........................................................................92
INTRODUÇÃO

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OS CAMINHOS DO PENSAMENTO
Figura 1: Julgamento de Sócrates, Academia de Atenas.

Obra "A morte de Sócrates" por David Jacques -Louis - Wall

Pensar é uma aventura. Pensar é ser capaz de se articulam na vontade de fazer da juventude o momento
construir um mundo novo, onde haja justiça e paz para em que a liberdade não se contente com simulacros, mas
todos. Ao longo de nossa história, no entanto, nem sempre busque a verdade – ainda que ela se faça impossível de
o incentivo ao pensamento foi bem vindo. Talvez em função ser alcançada.
de termos uma história construída em bases econômicas A filosofia é uma busca. Um constante debruçar-
altamente exploradoras dos homens e do meio ambiente, se sobre o conhecimento, um contínuo questionamento
percebemos que nem sempre somos convidados ao das coisas e uma recusa em consumir ideias fechadas
pensamento. A construção de novas ideias possibilita a e definitivas. O percurso filosófico está aqui direcionado
criatividade que, por sua vez, aponta para novos caminhos por pessoas que, ao longo da história, demonstraram-se
com novas possibilidades. insatisfeitos com a mediocridade e apresentaram outras
Pensar é um risco. Nem todos se propõem a tanto. O propostas para a arte, a política, a ética e a ciência. Por isto,
pensamento nos leva a buscar respostas em nós mesmos o presente estudo vem convidar a todos para inserirem-se
e a empreender uma viagem ao nosso próprio interior. Esta, no cotidiano de filósofos que, mesmo antigos, revelam-
talvez, seja a maior coragem humana: a de olhar-se para se presentes em nosso cotidiano. Veremos que suas
si mesmo, conhecer-se, saber de suas possibilidades e de ideias continuam influenciando o modo de as pessoas se
seus limites para, então, ser capaz de reconstruir-se. organizarem e definirem seus objetivos. Por esta razão, é
É certo que somos produtos da sociedade também. importante que tenhamos contato com seus escritos para
Mas, em certo momento, percebemos que esse destino que melhor participemos de suas ponderações.
não pode ser o único. Então nos tornamos pensadores Nossa proposta é a de construir o pensamento filosófico
e rompemos com os velhos destinos para nós traçados. a partir da enigmática e instigante narrativa fantasiosa dos
Quando pensamos, somos capazes de reescrever nosso mitos. Em todas as unidades, leremos um mito grego e,
próprio projeto de vida e rompemos com a tirania dos que a partir dele, faremos aproximações filosóficas. Veremos,
querem manter esse domínio sobre nossa fragilidade. O desta forma, como é possível questionar os dogmas e
pensador não é frágil: ele percebe que, na verdade, toda partir para caminhos diversos daqueles que nos foram
fragilidade é forjada, pois há uma certa necessidade de apresentados como os únicos possíveis.
manter um lado inerte para que outro se eleve soberano e O pensamento, como veremos, é uma opção individual
poderoso. e inalienável. No entanto, ele se torna mais forte e denso se
Há que se pensar. Há que se cultivar todas as formas for compartilhado. Este é o sentido coletivo de nossa busca
de pensamento. Há que se formar o pensamento livre. pela conquista cotidiana da liberdade: algo que construímos
Nossa proposta neste Curso de Filosofia é empreendermos juntos, rompendo com o individualismo e suas propostas de
um caminho que nos leve a questionar sobre nós mesmos vitórias pequenas e excludentes. Toda liberdade somente
e nossas escolhas. Por vezes, bem sabemos, escolhemos faz sentido se for vivida por todos. Essa coletividade é
o silêncio. Por vezes, escolhemos obedecer. Por vezes, melhor proporcionada quando expomos o que pensamos e
escolhemos abdicar de nossa liberdade e, então, ouvimos o que o outro tem a dizer. Esperamos que a filosofia
gradativamente, perdemos nossa humanidade. seja nossa aliada, nossa companheira cotidiana que não
Os textos aqui apresentados para reflexão foram nos deixa em paz diante das injustiças e das misérias que,
escolhidos com cuidado e respeito. As relações propostas ao longo de tanto tempo, fomos condenados a cultivar.
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UNIDADE

CONSIDERAÇÕES SOBRE
MITO E FILOSOFIA

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Figura 2: O Pensador, de Rodin.
CONSIDERAÇÕES SOBRE MITO
E FILOSOFIA

Para estudarmos a Filosofia, vamos partir de uma


compreensão prévia que temos a partir dos mitos. A Filosofia que
estudamos no Ocidente é aquela que nos vem da Grécia Antiga.
Podemos considerar a marca do século VI a.C. como o momento
em que os primeiros filósofos iniciaram seus questionamentos
acerca da origem das coisas, do mundo e do homem. Tais
questionamentos visavam a superar a explicação mítica e
introduzir um pensamento sistemático, baseado na razão e não
na alegoria fantasiosa das narrativas míticas.
Mesmo assim, vamos utilizar os mitos como base para
nossas discussões filosóficas.
Por quê?
Parece não haver relações, pois o mito possui uma narrativa
enigmática, imaginária, fantasiosa, ao passo que a Filosofia se
caracteriza por um saber sistematizado, lógico e racional.
Como Filosofia e mito podem dialogar? Fonte: Pixabay
Este será o caminho pelo qual trilharemos nossos estudos.
Comecemos por compreender os mitos e sua estrutura.

Figura 3: Pegasos e Belerofonte.

O PENSAMENTO MÍTICO
Mito é uma palavra grega (mythos - μυθος). Signi-
fica palavra. Uma palavra livre, sem qualquer preocu-
pação com a lógica explicativa. O mito, assim como a
Filosofia, se organiza a partir de um problema e uma
vontade de explicá-lo. Podemos mesmo afirmar que
muitas de nossas concepções atuais derivam dos mi-
tos. Por exemplo, a Astronomia, que estuda os astros,
suas características e mesmo seu comportamento no
universo têm, em várias de suas designações, nomes
que derivam dos mitos: a constelação de Centauro, o
planeta Marte, por exemplo. Segundo a mitologia, o
Fonte: http://portal-dos-mitos.blogspot.com.br/ Acesso em:16/05/2016
Centauro é um ser híbrido, parte homem e parte cava-
lo – uma criação que mostra a tentativa de aliar a força sentimentos de amor e ódio. Ele confunde o comporta-
do cavalo com a inteligência do homem? Seria esta mento adulto com o comportamento infantil. Por isto é
realização possível? Talvez sim. Os seres humanos que os gregos lhe atribuíam a divindade sobre o vinho.
sempre quiseram fazer junções de opostos a fim de Ao consumirem a bebida, os homens tornavam-se
compensar as carências de um no outro. No entanto, confusos e imprevisíveis, alegres e tristes, maduros e
no mundo da natureza, os opostos não se unem, sob infantis. Por isto, Dionísio era um deus respeitado, mas
pena de perderem suas características originais. Se também profundamente temido. As pessoas compre-
na natureza e no mundo humano é impossível que os endiam que era melhor mantê-lo por perto do que de-
opostos se miscigenem, no mundo dos mitos este de- safiá-lo. A cidade que não acolhesse esse deus corria
sejo pode se realizar. Assim é que os mitos costumam o risco de se ver ridicularizada, de perder suas colhei-
misturar o dia e a noite; o amor e o ódio; o macho e a tas e de ter seus comportamentos confundidos.
fêmea; a razão e a bestialidade; o adulto e a criança; Pelo fato de serem os mitos constituídos por uma
o real e o imaginário; os deuses e os homens. Os mi- narrativa, dizemos que eles se fundam em uma orali-
tos, portanto, apresentam um discurso livre, mas que dade. Em função desse caráter oral, o mito não obede-
fazem um certo sentido para os que neles acreditam. ce a uma sequência lógica e fixa que possa ser repe-
Os mitos contam também a história dos deuses. tida sem o risco de se modificar e de perder-se. Assim
O deus Dionísio (Διώνυσος) é uma divindade mista. é que um mesmo mito pode ser contado de muitas for-
Ele é homem e mulher; bestial e divino. Ele mescla os mas diversas.
17
Figura 4: Deus Dionísio.
va ser alimentado com o leite de uma deusa, a fim de
obter a força que lhe permitiria alcançar a imortalidade.
No entanto, ele era mais que um mortal, mas ainda
não era um deus. Hércules era um semideus. Zeus,
então, concebeu um plano para conseguir que seu fi-
lho fosse amamentado por uma deusa – a deusa Hera,
sua esposa. Havia um problema: a deusa era muito
ciumenta e, se soubesse que seu marido havia tido
um filho com uma mortal, decerto que mataria o meni-
no. Para ludibriá-la, Zeus colocou o menino à margem
da estrada e lá o deixou a chorar de fome. Convidou
Fonte: https://professorjoaopaulo.com sua esposa a um passeio, no qual simulou encontrar
Acesso em: 16/05/2016 a criança por acaso e tocou o coração de Hera, fa-
zendo-a compadecer-se da pobre criança abandonada
que chorava de fome. Zeus sugeriu-a a oferecer-lhe
o peito e amamentar o pequeno, a fim de livrá-lo da
Também Eros (Ἔρως), o deus do amor, era um morte certa. Penalizada, Hera atendeu aos apelos do
deus que suscitava sentimentos dúbios no meio do marido e ofereceu seu leite à criança. Quando, pois,
povo. Ele era amado mas também muito temido. Os o menino sugou seu seio, ela sentiu uma força além
gregos consideravam que Eros tinha flechas de ouro, da humana e, imediatamente, retirou-o de seu peito. O
mas também tinha as de bronze. Se ele flechasse al- leite jorrou e espalhou-se pelo céu, dando origem à Via
guém com uma de suas flechas de ouro, provocaria Láctea que, na linguagem mítica, é o caminho formado
intenso amor. Mas se, ao contrário, ele alvejasse al- pelo leite da deusa.
gum coração com as flechas de bronze, provocaria
Figura 6: Via Láctea segundo a Mitologia Grega.
uma profunda indiferença. Desde a mitologia, os gre-
gos já sabiam que o contrário do amor não é o ódio,
mas a indiferença. Eles já sabiam que amor e ódio não
são sentimentos opostos, mas irmãos, complementa-
res. Alguém que é amado hoje pode ser odiado dentro
de algum tempo. O contrário também é válido: quem
é odiado por ser profundamente amado. No entanto,
quando a indiferença se opõe ao amor, este sentimen-
to se torna inócuo e sem poder. Sabedoria dos mitos...
Tomemos outro exemplo de uma narrativa míti-
ca: o mito de Hércules (os gregos diziam Héracles -
Ἡρακλῆς). Segundo o mito, Hércules era filho do deus Figura 1.5: Via Láctea segundo a Mitologia Grega.

Zeus com a mortal Alcmena. Quando nascera, precisa-


Desta forma, vemos como a Astronomia mantém
Figura 5: Jovem defendendo-se de Eros, de Bouguereau (1825 –1905).
seu vínculo com a narrativa
mítica que lhe deu origem.

Quadro de William Adolphe Bouguereau, Uma jovem defendendo-se de Eros


18
Figura 7: A escolha de Hércules, de Annibale Carracci(1595).
Quando apareceram os primeiros filósofos na Gré-
cia Antiga, a ideia era iniciar uma explicação que não
fosse sustentada pela narrativa mítica. Como a dizer:
explique o fenômeno, retirando de sua fala a versão
dos deuses. A partir de então, o mundo dos mistérios
foi cedendo lugar ao mundo do pensamento; a narrati-
va enigmática foi recuando, dando espaço à narrativa
lógica. O mito foi sendo, gradativamente, substituído
pela Filosofia.
Mas, em se considerando o fascínio que os mitos
exercem sobre nós, propomos um caminho filosófico
a partir dos mitos. Antes, porém, há algo a conside-
rar: entre mito e Filosofia há uma ruptura definitiva ou
Figura 1.6: A escolha de Hércules, de Annibale Carracci(1595).
haveria entre eles uma certa continuidade? Vejamos
Hércules, no entanto, conseguira ingerir um pouco o que considera Marilena Chauí, uma importante pen-
do leite divino e desenvolveu uma força descomunal, sadora brasileira:
que o colocou acima dos outros homens. Hércules pre- “Em sua História da Filosofia, o filósofo alemão do
cisava atingir a perfeição e, então, ser admitido defini- século XIX, Hegel, fala em ‘filosofia oriental’ e ‘filosofia
tivamente como um deus, no monte Olimpo, onde os grega’. A primeira é descrita por ele como religião, di-
gregos acreditavam ser a morada dos imortais. Ora, ferentemente da filosofia grega, descrita como ruptura
para atingir a imortalidade, a ele foram impostos doze em face da religião. No caso dos orientais – mais preci-
trabalhos muito árduos. Ele os cumpriu e, ao final, samente, para Hegel, chineses e hindus –, o ‘elemento
pôde habitar o mundo dos imortais. filosófico’ da religião encontra-se na admissão de que
Figura 8: Os Doze Trabalhos de Hércules, mosaico romano S. III D.c. não existe a individualidade ou a singularidade (o indi-
víduo é uma aparência evanescente, uma ilusão efê-
mera) e que só existe a substância universal ou total,
sempre idêntica a si mesma e na qual o indivíduo se
dissolve, cessa de existir e desaparece na inconsci-
ência. Só existe o ser infinito; o finito é insubstancial e
apenas existe na sua unidade indissolúvel com o indi-
víduo que, por sua infinitude mesma, é um ser sempre
indeterminado que não pode ser pensado e do qual
nada se pode dizer. Inefável, inominável, indizível, im-
pensável.
Contrastando com a filosofia-religião oriental, diz
Hegel, surge na Grécia a filosofia propriamente dita,
isto é, aquilo que era uma substância indefinida e in-
determinada torna-se definida, determinada, qualifica-
da, rica em individualidades reais, e não aparentes e
Figura 1.7: Os Doze Trabalhos de Hércules, mosaico romano S. III D.c.
efêmeras. O Ser pode ser visto, nomeado e pensado
porque possui forma e qualidade, possui diferenças in-
Para saber melhor sobre o mito de Hércules e ternas e nele os indivíduos existem (coisas, animais,
seus doze trabalhos, acesse: vegetais, homens) sem perder sua realidade virtual.
Se nos lembrarmos de que a tese orientalista mos-
tra a herança oriental da filosofia grega pelo fato de
www.youtube.com/watch?v=RpZ-lLF64c0
que nesta, como na religião oriental, está presente a
ideia de uma unidade primordial e divina que cria de
dentro de si mesma todos os seres, compreendere-
Vemos, pois, que os mitos se organizam de forma mos melhor a diferença que Hegel pretende estabele-
fantasiosa e não racional. Nos mitos, todas as coisas cer entre filosofia oriental e filosofia grega: a unidade
na natureza e no universo humano aconteciam a partir oriental seria a única realidade e os seres criados nela
da vontade dos deuses. Eles eram quem decidia a his- e por ela seriam meras aparências efêmeras, irreais,
tória de cada um. No universo mítico, o homem é mero inconsistentes; em contrapartida, para os gregos a
joguete, submetido à vontade dos deuses que, muitas unidade do princípio primordial se realizaria criando
vezes, era uma vontade caprichosa, contra a qual não diferenças reais no interior dele mesmo. O princípio
havia o que fazer.
19

primordial guarda sua própria realidade, produz outras É verdade, diz Burnet, que isto foi facilitado
realidades (os indivíduos do mundo) e separa-se delas porque os dois maiores antepassados do pensamento
para que sejam sempre indivíduos dotados de quali- grego – Homero e Hesíodo – já haviam liberado,
dades próprias, formas próprias e realidade própria. em muito, o mito das superstições mais primitivas
Esta capacidade para dar origem aos diferentes, aos e selvagens. A tarefa também fora facilitada pelas
elementos diferenciados (quente, seco, frio, úmido, viagens comerciais: os viajantes percorriam os locais
fogo, terra, ar, água, astros, plantas, animais, ho- cantados pelos mitos e ali não descobriam seres
mens etc.) e às relações entre eles seria a marca maravilhosos ou monstruosos, nem deuses e heróis,
própria do nascimento da filosofia grega. mas outros seres humanos, prosaicamente vivendo
Ao descrever as condições históricas objetivas uma vida humana. As viagens desencantaram um
que determinaram (isto é tornaram possível) o mundo que o mito encantara. Enfim, a tarefa fora
nascimento da filosofia grega, Hegel aponta: facilitada pela prosperidade material, que não só
o desaparecimento da sociedade patriarcal, o libertava os homens dos medos que a miséria produz
surgimento das cidades livres e organizadas por leis, e seu cortejo de superstições, como ainda liberava
nas quais passaram a ter proeminência ‘homens muitos deles para a vida contemplativa, sem a qual
de talento, poder e imaginação e conhecimento a filosofia não seria possível.
científico’, muitos deles reverenciados pelos demais Todavia, nenhuma dessas condições teria feito
e sete deles tornaram conhecidos como os Sete surgir a filosofia se uma mudança mental e de atitude
Sábios, entre os quais, Sólon e Tales de Mileto. O não tivesse tido lugar, isto é, se os primeiros filósofos
primeiro, ilustre na política; o segundo, fundador da não tivessem feito a descoberta, sozinhos e por si
filosofia. A descrição hegeliana, independentemente mesmos, do que chamamos de pensamento ou
de ser ou não acurada historicamente, possui um razão. E o fizeram graças a duas realidades próprias
traço importante e que já mencionamos nos tópicos da inteligência grega: o espírito de observação e o
anteriores: não podemos separar o início da filosofia e poder do raciocínio. Com eles, uma descontinuidade
da política, pois são duas invenções eminentemente radical se impõe na história das civilizações. O
gregas. A descrição hegeliana é interessante nascimento da filosofia é o nascimento da ciência
também porque nela o primeiro filósofo grego já não ocidental, da lógica e da razão.
aparece na condição que teria um ‘filósofo oriental’, Contra a continuidade da filosofia a partir do
isto é, não é um sacerdote, um mago, uma figura da mito, Burnet afirma que há, pelo menos, duas
religião, mas é um homem político e pensador. características definidoras do mito que são contrárias
A descrição hegeliana do nascimento da às da filosofia nascente:
filosofia produziu uma linhagem de historiadores 1. O mito pergunta e narra sobre o que era
da filosofia para os quais esse nascimento significa antes que tudo existisse, enquanto o filósofo
descontinuidade ou ruptura integral com a religião pergunta e explica como as coisas existem e
e os mitos. Um caso exemplar dessa posição é o são agora; o mito narra o passado, a filosofia
do historiados inglês John Burnet, que afirma que a explica o presente.
filosofia nasce quando as velhas explicações míticas 2. O mito não se preocupa com as contradições e
e religiosas da realidade já não podiam explicar coisa irracionalidades de sua narrativa; aliás, usa as
alguma e haviam-se tornado contos fantasiosos aos contradições e irracionalidades para justificar o
quais ninguém dava crédito. Assim, em sua obra A caráter misterioso dos deuses e suas ações; a
Aurora da Filosofia Grega (Early greek philosophie), filosofia afasta os mistérios porque afirma que
Burnet escreve: tudo pode ser compreendido pela razão e esta
suprime e explica as contradições.
Os primeiros gregos que tentaram
compreender a natureza não eram como os Finalmente, afirmando que os primeiros filósofos
homens que entram num caminho que nunca lançaram as bases da ciência experimental do
fora percorrido. Já existia uma visão do mundo Ocidente, Burnet enumera as descobertas positivas
passivelmente consistente, ainda que apenas que alguns filósofos fizeram: Anaximando de
pressuposta e implícita no rito e no mito e não Mileto teria feito descobertas de biologia marinha
distintamente concebida como tal. Os primeiros confirmadas no século XIX; Empédocles de
pensadores fizeram algo muito maior do que Agrigento teria descoberto a clepsidra, antecipando-
um simples começo. Despojando-se da visão se a Harvey e Torricelli. Sem dúvida, os filósofos
selvagem das coisas, renovaram a juventude gregos possuíram uma grande limitação científica:
delas e, com elas, a juventude do mundo, em admitiam o geocentrismo (a Terra, imóvel, no centro
um tempo em que o mundo parecia abatido do universo, os demais astros girando á sua volta),
pela senilidade. A maravilha foi que o tivessem mas, escreve Burnet:
feito de modo tão completo quanto o fizeram.
Justamente, os gregos foram os primeiros
(BURNET, p. 34) a encarar o geocentrismo como hipótese
20

geocêntrica e por isso nos permitiram quatro regiões principais do mundo ordenado
ultrapassá-la. Os pioneiros do pensamento (cosmos), isto é, o céu de fogo, o ar frio, a terra
grego não tinham, evidentemente, uma ideia seca e o mar úmido;
clara do que era uma hipótese científica (...),
3. Os opostos começam a se reunir, a se mesclar,
mas a eles devemos a concepção de uma
a se combinar, mas, em cada caso, um deles
ciência exata que iria tornar o mundo todo um
é mais forte que os outros e triunfa sobre
objeto de investigação.
eles, sendo o elemento predominante da
(BURNET, p. 32). combinação realizada; desta combinação e
mescla nascem todas as coisas, que seguem
Sob as afirmações de Burnet, encontramos uma um ciclo de repetição interminável. A união faz
ideia muito difundida, desde o século XVIII: a ideia nascer, a separação faz morrer, ambas dando
de evolução e de um progresso contínuo da civiliza- origem aos astros e seus movimentos, às
ção ocidental, progresso identificado com o aumento estações do ano e ao nascimento e morte de
cumulativo e contínuo dos conhecimentos técnicos e tudo o que existe (plantas, animais e homens).
científicos. Este será o modelo seguido pelos filósofos
Contrapondo-se a Burnet, encontramos o helenis- quando elaborarem suas cosmologias: unidade
primordial, segregação ou separação dos
ta Cornford, que, em dois de seus livros – Da Religião
elementos, luta e união dos opostos, mudança
à Filosofia (de 1912) e Principium Sapientiae (de 1952)
cíclica eterna.
– contestou a ideia de um nascimento da filosofia por
ruptura direta e total com a religião e os mitos, contes-
Desta forma, a filosofia continuaria carregando
tando também a ideia de Burnet de que, com os primei-
dentro de si as construções míticas, simplesmente de
ros filósofos, forma fincados os princípios da ciência
forma laica e secularizada. Em outras palavras, os fi-
experimental.
lósofos deram respostas às mesmas perguntas feitas
A ciência nascente, diz Cornford, não observa a
pelos mitos e seguiram, nas respostas, a mesma es-
natureza nem faz experimentos, desconhece a ideia de
trutura que os mitos propunham. Retiraram o lado fan-
verificação e de prova. Que faz ela? Transporta, numa
tástico e antropomórfico que os mitos possuíam, mas
forma laica e num pensamento mais abstrato, as for-
permaneceram no mesmo quadro de questões que os
mulações da religião e do mito sobre a Natureza e os
mitos haviam proposto para a origem do mundo e das
homens.
coisas.
Na verdade, aquilo que Burnet chama de ‘física’,
Na mesma linha de continuidade vai o alemão
diz Cornford, é uma cosmologia. A pergunta feita pelas
Werner Jaeger, que em sua obra Paidéia: os ideais da
cosmogonias é sempre a mesma: como do caos surgiu
cultura grega considera que a filosofia nasce passando
o mundo ordenado (cosmos)? De que modo as cos-
pelo interior da epopeia homérica e dos poemas de He-
mogonias respondem? Fazendo uma genealogia dos
síodo, de tal modo que ‘o começo da filosofia científica
seres, isto é, por meio da personificação dos elemen-
não coincide com o princípio do pensamento racional
tos (água, ar, terra, fogo) e de relações sexuais entre
nem com o fim do pensamento mítico’.
eles explicam a origem de todas as coisas e a ordem
O mito recebe da filosofia a forma lógica ou a con-
do mundo. Que fazem os primeiros filósofos? Por que
ceituação lógica, enquanto a filosofia recebe o mito
fazem, agora, cosmologias? Porque despersonalizam
os conteúdos que precisam ser pensados.” (CHAUÍ,
os elementos, não os tratam como deuses individu-
1994).
alizados, mas como potências ou forças impessoais,
Vemos, então, que a filosofia diz o mesmo que o
naturais, ativas, animadas, imperecíveis, embora ainda
mito, só que de outra maneira.
divinas, que se combinam, se separam, se unem, se di-
Este é, pois, o percurso que seguiremos em nos-
videm, segundo princípios que lhe são próprios, dando
sos estudos filosóficos: partiremos de uma narrativa
origem às coisas e ao mundo ordenado.
mítica e, em seguida, faremos a aproximação filosófica
Examinando a Teogonia de Hesíodo, Cornford
do tema sugerido pelo mito.
mostra que nela se encontra o modelo geral que será
seguido depois pelas cosmologias dos primeiros filó-
sofos:
1. No começo há o caos, isto é, um estado de
indeterminação ou de indistinção onde nada
aparece;
2. Dessa unidade primordial vão surgindo, por
segregação e separação, pares de opostos –
quente-frio, seco-úmido – que diferenciarão as
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23

UNIDADE

A CONQUISTA DA RAZÃO

Universidade Presidente Antônio Carlos - UNIPAC

UNIPAC ON-LINE
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OS DESAFIOS NA BUSCA PELO Figura 9: Zeus e Ganimedes descansam enquanto prometeus rouba o fogo

CONHECIMENTO

Para iniciar nossos estudos, vamos partir de um iní-


cio quase óbvio. Aqui, nesta unidade, vamos ser guia-
dos por questionamentos importantes, quais sejam: o
que diferenciou os homens dos outros seres do planeta?
Como ele desenvolveu o pensamento racional, que lhe
proporcionou a inteligência e a habilidade de situar-se
no mundo? O que significou a conquista do pensamento
racional?
Como optamos por nos deixar guiar pelos mitos
para, posteriormente, sistematizarmos o pensamento
Obra de Christian Griepenkerl ( 1839 – 1912).
em torno de argumentos racionais, podemos afirmar que
muitas são as narrativas míticas que tentam apresentar uma explicação plausível para o início da conquista da ra-
zão, admitindo que tal conquista inaugurou o mundo humano, mas também lhe trouxe uma série de complicações,
afinal, “optar” pelo caminho racional fez com que o homem se afastasse da natureza.
Vamos compreender melhor este processo? O percurso é fascinante!

DA NATUREZA À CULTURA adaptação ao meio natural. A Razão nos fez emergir


DO MITO À RAZÃO da Natureza. Não somos mais seres que simplesmen-
te acatamos a ordem biológica. Fomos capazes de
MISTÉRIOS TAMBÉM NA RAZÃO nos distanciarmos da Natureza e construir um mun-
do humano, pleno de significados, de respostas e de
O processo pelo qual houve a hominização ainda problemas. Criamos um universo de símbolos, no qual
é objeto de investigação por vários ramos das ciências. a linguagem é, sem dúvida, o mais importante deles.
Ao pensarmos a respeito, imaginamos cenas pré-his- Ora, como sabemos, todo desenvolvimento traz tam-
tóricas, nas quais o ser humano, totalmente desprovi- bém seus problemas. A Razão foi a saída encontrada
do de maiores proteções naturais – como pelos, gar- pelo homem para se colocar diante da Natureza, mas
ras, dentes afiados – se viu perdido em uma natureza não foi uma saída isenta de suas consequências. Ao
inóspita e nem sempre favorável a ele. Mas, como raciocinarmos, colocamo-nos também diante de nós
isto teria acontecido? Não teria sido um processo pelo mesmos e passamos a nos questionar também. Sabe-
qual, aos poucos, o homem, como todo ser vivo, foi mos que a conquista da Razão trouxe consigo os com-
se colocando de forma diferenciada diante do mundo plexos mentais, formados por organizações que nos
e nele construiu seu próprio jeito de viver? Todos os fazem tender para a vida e para a morte. A conquista
animais fazem isto. Eles, de acordo com suas capaci- da Razão trouxe consigo a angústia.
dades, modificam o meio natural a fim de fazê-lo favo- Tudo isto compreendemos de forma sistemática,
rável à sua sobrevivência. No caso do ser humano, no conforme foi dito pela filosofia e pelas ciências. No en-
entanto, a questão foi mais complexa, pois a resposta tanto, vamos partir de um mito? A partir dele vamos
encontrada diante das forças da natureza não consis- tentar compreender juntos como se deu a organização
tiu em desenvolver o corpo biológico para a adaptação, das explicações sobre a vida do homem no planeta e
mas no desenvolvimento da inteligência, das relações como ele constituiu-se como animal pensante.
lógicas, das propostas racionais. O meio encontrado Trata-se de um mito grego: a história de Prometeu
pelo homem para se colocar na natureza foi, pois, a e Pandora. Leia-a para que possamos tecer considera-
Razão. O homem começou a usar o pensamento para ções a respeito em seguida.
compreender a natureza, para modificá-la e para con-
quistar melhores condições de vida.
Consideramos que a Razão foi uma conquista, um
processo gradual e que continua em desenvolvimento
nos dias atuais. Isto quer dizer que o homem, assim
como os outros seres vivos, continua se desenvolven-
do, cada qual de acordo com suas particularidades de
25

PROMETEU E PANDORA dois titãs e lhe deram uma incumbência: dividir entre
os seres todas as qualidades disponíveis, a fim de não
Foi no tempo em que o mundo estava sendo for- sucumbirem na superfície da Terra. Então, Epimeteu
mado. Os gregos não acreditavam em uma criação do tomou todos os dons, que estavam em grandes ces-
mundo operada a partir do nada, como acredita a tradi- tos, e iniciou a distribuí-los entre os seres. A uns, deu a
ção hebraica e, por conseguinte, a religião cristã. Para capacidade de voar; a outros, ensinou a arte de nadar;
os gregos, todos os seres são provenientes da Terra, a uns seres, deu escamas e venenos para se defen-
a quem eles chamavam Geia, que significa a Grande derem dos predadores; a outro, deu um tamanho tão
Mãe de todos os seres. Na mitologia grega, também os pequeno que eram capazes de se ocultar entre as
deuses vêm da Terra. Segundo pensaram, as ida- ramagens; a uns, deu cores, a outros deu espi-
des da humanidade assim dividiam: Idade de nhos. Esta tarefa consumiu toda a semana de
Ouro – nesta idade, os homens viviam em Epimeteu e ele estava exausto de tarefa tão
paz consigo e com a natureza, jamais enve- dura e responsável.
lheciam e tampouco guerreavam, não se No final desses dias, o titã percebeu
odiavam e nem envelheciam, a primave- que os cestos dos dons estavam vazios...
ra era eterna e os homens morriam paci- mas ainda faltava um ser para receber suas
ficamente; depois, veio a Idade de Prata – qualidades. Este ser era o homem. Quando
nesta idade, a primavera foi reduzida Epimeteu viu que era uma raça frágil, sem pe-
e começaram as estações do ano, o los ou garras para uma defesa eficaz contra
homem desenvolveu a agricultura e o frio e as feras, ficou muito preocupado e
a juventude também foi encurtada, chamou seu irmão: “Prometeu, meu caro
os homens se negavam a ofere- amigo. Eis que fiz uma tarefa grandio-
cer culto aos imortais e morriam sa. Durante toda uma semana, saí pela
com sofrimento; em seguida, veio Terra a distribuir os dons para todas as
a Idade do Bronze – nesta idade, criaturas produzidas. A uns dei garras,
os homens eram violentos e cru- a outros dei asas; a uns dei escamas e
éis, faziam armas de bronze e a venenos, a outros ensinei como habitar
guerra era sua ocupação, morriam debaixo das entranhas do chão. Nesta
terrivelmente e não deixavam seus tarefa, consumi meu trabalho e meus
nomes sobre a Terra; depois, veio dias. Agora, quando chego a esta úl-
a Idade dos Heróis, formada de ho- tima criatura produzida pelo barro da
mens bravos e valorosos, que com- Terra, o homem, não tenho mais nada
batiam o mal e acreditavam no bem. a lhe dar. Decerto que essa raça pe-
Esses heróis, depois que morriam, recerá diante das estações do ano e do
subiam para habitar com os deuses ataque dos animais e das doenças. Estou
no monte Olimpo, onde se tornavam perdido e serei duramente castigado pe-
também imortais; a última idade é a los deuses... A não que tu, meu irmão,
Idade de Ferro, que são tempos de sensato por natureza, me ajude a re-
misérias, angústias e sofrimentos. mediar para o homem essa total falta-
Nesta idade, os homens não se -de-ser!”
amam: o filho não respeita o pai Também Prometeu preocupou-se
e o amigo trai o amigo. Há mi- severamente, e começou a engendrar
séria e fome. Depois da morte, um plano para salvar a mais frágil de
os bons vão para os Campos todas as criaturas.
Elíseos, onde ficam por cerca Ora, naquela época, apenas os
de mil anos, até que se extin- deuses dominavam o fogo. Ele ar-
ga o que de terreno há neles. dia na pira olímpica, situado no
Então, esquecem sua existên- monte Olimpo, onde vivem todos
cia e reencarnam, a fim de reiniciar os imortais...
novo ciclo de vida).
Quando, então, o mundo estava se
formando, e com ele todos os seres na
Idade do Ferro, ainda havia a raça dos titãs,
que eram seres anteriores aos homens e que
possuíam beleza e inteligência. Dentre os ti-
tãs, havia um que se chamava Prometeu e
seu irmão, chamado Epimeteu. Quan-
do os seres começaram a surgir,
os deuses chamaram os
26
Figura 10: Deuses no Monte Olímpo
À noite, calmo e sorrateiro, enquanto os deuses
descansavam, Prometeu subiu ao monte dos deuses.
Lá chegando, ele roubou deles um pouco do fogo. O
fogo é importante para os deuses: ele é que garante a
imortalidade e a sabedoria. Somente os deuses são
sábios e imortais. O roubo da razão divina
Então, Prometeu chegou ao homem e lhe deu o
fogo: “Filhos da Terra, inseguros e pobres, pequenos
e miseráveis. Não temos mais dons a oferecer à tua
estirpe. Por esta razão, eu, Prometeu, o audacioso
titã, fui até o monte Olimpo e, da pira onde ele crepi-
ta eternamente, retirei dos deuses um pouco do fogo.
Com o fogo, vem a sabedoria e a imortalidade. Dou-o
a ti, criatura frágil. Faça o melhor uso que puder. De
hoje em diante, tu não serás sábio, mas participará da
sabedoria dos deuses; também não serás imortal, mas
participará da imortalidade deles. Toma o fogo e domi-
na a Terra, os animais silvestres e todas as criaturas
que vivem debaixo do chão. Exerce teu poder sobre
as aves e os peixes, mas não te esqueças que os deu-
ses são superiores a ti e a toda a tua descendência.” http://conhecimentos-verdadeiros.webnode.com/
A partir de então, o homem passou a construir a
razão e, com ela, pôde superar tudo aquilo que não ideia de enviar para o homem um presente: a mulher.
Ela seria tudo aquilo que falta ao homem, a fim de
Figura 11: Prometeu entrega a razão ao homem.
completá-lo: teria doçura e pele macia; teria suavida-
de e voz sonora; teria olhar doce e belas mãos; teria
um corpo ondulado, capaz de levar o homem para os
abismos do desejo. Ela se chamou Pandora, que sig-
nifica a mulher formada por todas as qualidades, pois
cada deus lhe deu uma capacidade diferente: de falar,
de seduzir, de cantar e de envolver. Pandora, então,
foi enviada ao homem a quem dera um presente dos
deuses: uma caixa.

Figura 12: A Caixa de Pandora.

Obra de Heinrich Friedrich Fuger, 1817

recebeu como dom da natureza: pelos, asas, garras


e força.
Quando os deuses perceberam que haviam sido
enganados, reuniram-se na sala das decisões do mon-
O bra de John William Waterhouse
te Olimpo. Foi então que engendraram a grandiosa
27

O homem, encantado pela beleza de Pandora, Façamos, por exemplo, um breve caminho pela
abriu a caixa. Então, dela saíram todos os males que Bíblia Sagrada que, no livro de Gênesis, narra a forma-
se espalharam pela Terra: angústia, terror, fome, ira, ção do homem: um ser frágil, criado do barro da terra.
ganância, inveja, perversão, chantagem, crueldade,
Figura 14: Homem de Barro.
delinquência. Por fim, saiu a esperança, sem a qual,
bem sabiam os deuses, todos esses males seriam in-
suportáveis. Foi um castigo para suplantar a razão tra-
zida com o fogo.
Quanto a Promoteu, os deuses ficaram tão ira-
dos que o ataram com fortes correntes a uma rocha:
o Cáucaso. Ele jamais morreria. Durante o dia, o sol
de Apolo lhe queimaria impiedosamente. À tarde, um
abutre viria para lhe devorar o fígado, causando-lhe
dores lancinantes e, de tal forma ele se debatia que
todo o Cáucaso se estremecia, causando violentos ter-
remotos por toda a Grécia. À noite, seu fígado regene-
raria para que, novamente, o abutre viesse devorá-lo a
cada tarde.
Figura 13: Prometeu sendo devorado pelo Abutre.

Imagem: http://www.madrugando.com/. Acesso: 30/01/2016

Frágil, sem quaisquer condições de defender-se,


Deus soprou nele a vida, a alma, a Razão. Este ser se
fez, então, com a Inteligência de Deus. Viviam, homem
e mulher, em um paraíso construído por Deus na terra.
Era um lugar de harmonia, no qual não havia qualquer
risco ou temor. Mas, no íntimo da humanidade, já havia
a curiosidade – vinda do próprio Deus, do sopro da
Alma Divina, pois a curiosidade não está no barro da
terra. A curiosidade, por sua vez, vem da vontade de
questionar, de perguntar, de saber mais. Assim foi que,
no meio do paraíso, homem e mulher viram uma árvo-
re diferente de todas as outras, uma árvore fascinan-
te, frondosa, tentadora, cheia de perfumes, insetos e
pássaros. Mas, justamente esta, era-lhe proibida. Era
a fonte do Bem e do Mal. Era a fonte do conhecimento.
Surgiu uma serpente que os advertiu: comer des-
Óleo sobre tela 100% algodão núcleo Peter Paul Rubens
ta árvore é ser igual a Deus. Eles não resistiram ao
Este foi o destino daquele que ousou desafiar os encantamento e se aproximaram da Razão, aproxima-
deuses e seus caprichos, mostrou-se afável para com ram-se da vontade de conhecer todas as coisas. Sa-
os homens e se apiedou de sua desgraça. biam que tinham condições para isto. Mas, tão logo se
aproximaram e se envolveram com os pensamentos
O homem é um problema para si mesmo. mais questionadores, viram-se também a si mesmos.
Enquanto os outros seres estão imersos na Perceberam-se fora da ordem da Natureza e foram ex-
natureza e não se defendem senão de perigos pulsos do paraíso. A partir de então, o homem preci-
reais, o homem deve se defender também dos
perigos imaginários (medo da morte, medo
sou construir o seu próprio mundo, formado de suas
do futuro, medo das doenças e da fome). No próprias convicções. Um mundo de muitos erros, mas
entanto, a Razão lhe proporciona também outras também de muitos acertos.
façanhas: a liberdade, a felicidade, a esperança, Nesta narrativa mítica da origem do homem, en-
o amor. contramos também uma explicação para uma com-
preensão do paraíso: lugar onde existe uma harmonia
Também em outras culturas diferentes da grega, intrínseca. Quando o homem desenvolve a Razão, ele
podemos encontrar narrativas similares sobre a perda compreende que é capaz de construir ideias e explica-
da segurança advinda com o uso da Razão. ções para todas as coisas.
28

Estamos, pois, diante de explicações míticas sobre Isto os torna deuses? Certamente que não. Mas isto
a origem do homem e do desenvolvimento da Razão. os torna parecidos com Deus, haja vista que começam
Sem dúvida, o mito é uma das explicações possíveis. a participar também da posse da Razão. Para tanto,
Como vimos anteriormente, na unidade introdutória eles precisavam desobedecer, assim como Prometeu
aos nossos estudos, a filosofia procurou destituir os mi- desobedeceu aos deuses.
tos de seu lugar de verdade. Mas os mitos têm uma for- Em ambas as narrativas, há algo peculiar: o casti-
ça surpreendente. As pessoas acreditam neles. Muito go. Ao conseguir acessar a Razão, o homem é castiga-
provavelmente em função de sua linguagem simples, do. No mito de Prometeu, ele foi preso nos rochedos do
os mitos têm maiores condições de atingir o maior nú- Cáucaso e, dia após dia, viria um abutre comer-lhe as
mero de pessoas. Quando a filosofia propõe que as entranhas, provocando-lhe dores lancinantes. Na nar-
explicações míticas sejam questionadas, a principal rativa de Adão e Eva, o castigo veio pela expulsão do
proposta é: Pense! Pense por si mesmo! Construa paraíso e pela negação de acesso ao céu, que simbo-
suas próprias ideias! Não seja um mero consumidor de liza a vida eterna. Os homens, então, não morreriam.
ideias alheias! A partir da desobediência, a morte entrou no mundo.
Não podemos afirmar que o mito traz uma mentira, Outra particularidade importante é o lugar ocupado
mas podemos dizer que ele traz uma verdade parcial, pela mulher em ambas as narrativas. Eva e Pandora se
mínima, que carece ainda de outros desdobramentos. parecem bastante. Elas são as principais responsáveis
Figura 15: Adão e Eva e o fruto proibido.
pela entrada do sofrimento no mundo humano. Melhor
dizendo: o Mal toma a mulher como porta para acessar
o mundo dos homens e, então, causar toda sorte de
sofrimentos. É por isto que o mito não pode ser des-
prezado: ele traz uma verdade contida que precisa ser
desvelada. Os mitos que hoje estamos estudando nos
alerta para o aspecto misógino de nossa sociedade.
Durante muito tempo, a mulher foi vista como um ser
inferior. Esta inferioridade foi causada pelo mito, ou a
narrativa mítica apenas a ilustra?
Para melhor esclarecimento, vamos ler um excerto
do historiador Jean Delumeau que, em sua obra His-
tória do Medo no Ocidente, discorre sobre a aversão
ao feminino – fenômeno observado principalmente na
Idade Média – período histórico em que a Igreja Cató-
Imagem: logosapologetica.com Acesso:30/01/2016 lica assumiu toda a responsabilidade pela organização
do conhecimento sistematizado. Eis o que expõe De-
Voltemos ao mito de Prometeu. É um mito que fala lumeau:
sobre como o homem adquiriu a Razão e as possibili- “No começo da Idade Moderna, na Europa oci-
dades de construção do pensamento racional. O fogo dental, antijudaísmo e caça às feiticeiras coinci-
era de propriedade unicamente dos deuses. Aqui, o diram. Não foi por acaso. Do mesmo modo que
o judeu, a mulher foi então identificada como um
fogo simboliza a inteligência, a Razão, o pensamento
perigoso agente de Satã; e não apenas por ho-
livre. Ora, somente os deuses possuíam a inteligência mens de Igreja, mas igualmente por juízes leigos.
e a sabedoria. Como o homem estava jogado no mun- Esse diagnóstico tem uma longa história, mas foi
do, carente de maiores proteções, Prometeu assaltou formulado com uma malevolência particular – e
os céus. Ele assaltou o Monte Olimpo e, sorrateira- sobretudo difundido como nunca anteriormen-
mente, enquanto os deuses dormiam, roubou-lhes um te, graças à imprensa – por uma época em que
pouco do fogo e o entregou aos homens. A partir deste no entanto a arte, a literatura, a vida de corte e a
evento corajoso e ousado, os homens passaram a par- teologia protestante pareciam levar a uma certa
promoção da mulher. Precisamos esclarecer essa
ticipar da Razão Divina. Eles passaram a possibilida-
situação complexa e, além disso, acompanhar, a
de de buscar aquilo que somente os deuses tinham: a partir de um novo exemplo, a transformação pela
sabedoria. Deixaram de ser meros consumidores das cultura dirigente de um medo espontâneo em um
verdades dos deuses e passaram a ter sua própria ca- medo refletido.
pacidade. A atitude masculina em relação ao ‘segundo
O mito de Adão e Eva é semelhante. Vejamos: sexo’ sempre foi contraditória, oscilando da atra-
também neste mito o homem e a mulher vivem tran- ção à repulsão, da admiração à hostilidade. O
quilos, imersos na natureza, até que descobrem a ca- judaísmo bíblico e o classicismo grego exprimi-
ram alternadamente esses sentimentos opostos.
pacidade de eles próprios buscarem o conhecimento.
Da idade da pedra, que nos deixou muito mais
29

representações femininas do que masculinas, até O historiador Delumeau encontra ainda outras
a época romântica a mulher foi, de uma certa ma- considerações a respeito da mulher e as expõe em
neira, exaltada [...]. sua obra. Vamos ler mais este trecho de um texto de
Essa veneração do homem pela mulher foi Petrarca:
contrabalançada ao longo das eras pelo medo que
ele sentiu do outro sexo, particularmente nas so-
“A mulher é um verdadeiro diabo, uma inimiga
ciedades de estruturas patriarcais. Um medo que
da paz, uma fonte de impaciência, uma ocasião de
por muito tempo se negligenciou estudar [...]. No
disputas das quais o homem deve manter-se afas-
entanto, a hostilidade recíproca que opõe os dois
tado se quer gozar a tranqüilidade. Que se casem,
componentes da humanidade parece ter sempre
aqueles que encontram atrativo na companhia de
existido e traz todas as marcas de um impulso in-
uma esposa, nos abraços noturnos, nos ganidos
consciente [...].
das crianças e nos tormentos da insônia. Por nós,
Não é por acaso que em muitas civilizações os
se está em nosso poder, perpetuaremos nosso
cuidados dos mortos e os rituais funerários cabem
nome pelo talento e não pelo casamento, por livros
à mulheres. Elas eram consideradas muito mais
e não por filhos, com o concurso da virtude e não
ligadas do que os homens ao ciclo – o eterno re-
com o de uma mulher”.
torno – que arrasta todos os seres da vida para a
morte e da morte para a vida [...].
(DELUMEAU, 1996, p. 319).
No peso da ciência aristotélica, só o homem
desempenha um papel positivo na geração, sen-
do a mulher apenas receptáculo. Não há verda- Vemos, então, que mito e Razão se mesclam na
deiramente senão um único sexo, o masculino. A construção da verdade. Os mitos trazem, então, uma
mulher é um macho deficiente. Portanto, não é es-
inquietação humana, interna e profunda. Uma inquieta-
pantoso que, ser débil, marcado pela imbecilitas
ção carente de explicações, mas uma inquietação ver-
de sua natureza – um clichê mil vezes repetido
na literatura religiosa e jurídica –, a mulher tenha dadeira. O que a filosofia faz é tentar elucidar melhor
cedido às seduções do tentador. Assim, ela deve os aspectos dos mitos, tornando suas considerações
permanecer sob tutela. A mulher tem necessidade acessíveis às considerações que ultrapassem o mun-
do macho não só para gerar, como entre os outros do da fantasia.
animais, mas até mesmo para governar-se: pois o
macho é mais perfeito por sua razão e mais porte
em virtude” .

(DELUMEAU, 1996, p. 310-317).

A AQUISIÇÃO DO CONHECIMENTO tação, seria necessário elaborar o pensamento, para


NA FILOSOFIA DE PLATÃO que sua exposição não se configurasse como ingênua
e assistemática. A filosofia platônica chegou até nós
Platão é considerado um dos filósofos mais im- por meio dos diálogos que ele escreveu e que foram
portantes da Grécia Antiga. Seu nome era Arístocles. traduzidos para o latim. Precisamos compreender que
Nasceu em Atenas, no século V a.C. Muito de nossa diálogos são gêneros textuais nos quais o filósofo ex-
forma de ver o mundo e pensar as coisas nos veio de põe suas principais ideias, mantendo uma conversa-
Platão, que foi divulgado em função de sua maneira de ção com um interlocutor que, por vezes, apresenta opi-
construir o universo racional em torno da aquisição do niões que o filósofo vai elaborando, a fim de melhor se
conhecimento. fazer entender.
Quais as bases de sua filosofia? Uma das obras de Platão é a República. Nesta
Platão afirmava que a conquista do conhecimento obra, ele utiliza uma alegoria (a alegoria da caverna)
é uma tarefa que não se consegue sem esforço. Pro- para dizer: há dois mundos – um mundo sensível, mar-
vavelmente porque ele sabia o quanto o universo míti- ca pelas sensações cotidianas e que é de fácil apreen-
co é pródigo em oferecer explicações simplistas sobre são; há também o mundo inteligível, das abstrações,
determinadas questões que precisavam de maiores difícil de ser alcançado. O mundo das sensações é
explicações. O conhecimento trazido pelo mito era su- mutável e, portanto, imperfeito. Como é que se pode
perficial demais e, para chegar ao conhecimento ra- acreditar que se conhece algo que se modifica continu-
cional, haveria que ter um grande esforço por parte do amente? O mundo das ideias (ou das formas) é imutá-
homem. vel e, portanto, perfeito. Neste mundo estão as essên-
Platão foi o fundador da Academia – uma Escola cias das coisas e é o único mundo onde se alcança o
Filosófica onde todos que quisessem podiam se mani- conhecimento verdadeiro.
festar. A exigência era que, antes de qualquer manifes-
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A alegoria da caverna
A República (514a-517c)

Sócrates: Agora imagine a nossa natureza,


segundo o grau de educação que ela recebeu ou
não, de acordo com o quadro que vou fazer. Imagi-
ne, pois, homens que vivem em uma morada sub-
terrânea em forma de caverna. A entrada se abre
para a luz em toda a largura da fachada. Os ho-
mens estão no interior desde a infância, acorren-
tados pelas pernas e pelo pescoço, de modo que
não podem mudar de lugar nem voltar a cabeça
para ver algo que não esteja diante deles. A luz
lhes vem de um fogo que queima por trás deles, ao
longe, no alto. Entre os prisioneiros e o fogo, há um
caminho que sobe. Imagine que esse caminho é cor- passam ao longo do pequeno muro falasse, não acha
tado por um pequeno muro, semelhante ao tapume que eles tomariam essa voz pela da sombra que des-
que os exibidores de marionetes dispõem entre eles fila à sua frente?
e o público, acima do qual manobram as marionetes
e apresentam o espetáculo. Glauco: Sim, por Zeus.

Glauco: Entendo Sócrates: Assim sendo, os homens que estão


nessas condições não poderiam considerar nada
Sócrates: Então, ao longo desse pequeno muro, como verdadeiro, a não ser as sombras dos obje-
imagine homens que carregam todo o tipo de objetos tos fabricados.
fabricados, ultrapassando a altura do muro; estátuas
de homens, figuras de animais, de pedra, madeira Glauco: Não poderia ser de outra forma.
ou qualquer outro material. Provavelmente, entre os
carregadores que desfilam ao longo do muro, alguns Sócrates: Veja agora o que aconteceria se eles
falam, outros se calam. fossem libertados de suas correntes e curados de
sua desrazão. Tudo não aconteceria naturalmente
Glauco: Estranha descrição e estranhos prisio- como vou dizer? Se um desses homens fosse solto,
neiros! forçado subitamente a levantar-se, a virar a cabeça,
a andar, a olhar para o lado da luz, todos esses mo-
Sócrates: Eles são semelhantes a nós. Primeiro, vimentos o fariam sofrer; ele ficaria ofuscado e não
você pensa que, na situação deles, eles tenham visto poderia distinguir os objetos, dos quais via apenas as
algo mais do que as sombras de si mesmos e dos sombras anteriormente. Na sua opinião, o que ele po-
vizinhos que o fogo projeta na parede da caverna à deria responder se lhe dissessem que, antes, ele só
sua frente? via coisas sem consistência, que agora ele está mais
perto da realidade, voltado para objetos mais reais,
Glauco: Como isso seria possível, se durante e que está vendo melhor? O que ele responderia se
toda a vida eles estão condenados a ficar com a ca- lhe designassem cada um dos objetos que desfilam,
beça imóvel? obrigando-o com perguntas, a dizer o que são? Não
acha que ele ficaria embaraçado e que as sombras
Sócrates: Não acontece o mesmo com os obje- que ele via antes lhe pareceriam mais verdadeiras do
tos que desfilam? que os objetos que lhe mostram agora?

Glauco: É claro. Glauco: Certamente, elas lhe pareceriam mais


verdadeiras.
Sócrates: Então, se eles pudessem conversar,
não acha que, nomeando as sombras que vêem, Sócrates: E se o forçassem a olhar para a pró-
pensariam nomear seres reais? pria luz, não achas que os olhos lhe doeriam, que ele
viraria as costas e voltaria para as coisas que pode
Glauco: Evidentemente. olhar e que as consideraria verdadeiramente mais ní-
tidas do que as coisas que lhe mostram?
Sócrates: E se, além disso, houvesse um eco
vindo da parede diante deles, quando um dos que Glauco: Sem dúvida alguma.
31

Ele não pensaria antes, como o herói de Homero,


Sócrates: E se o tirarem de lá à força, se o fizes- que mais vale “viver como escravo de um lavrador”
sem subir o íngreme caminho montanhoso, se não o e suportar qualquer provação do que voltar à visão
largassem até arrastá-lo para a luz do sol, ele não so- ilusória da caverna e viver como se vive lá?
freria e se irritaria ao ser assim empurrado para fora?
E, chegando à luz, com os olhos ofuscados pelo bri- Glauco: Concordo com você. Ele aceitaria qual-
lho, não seria capaz de ver nenhum desses objetos, quer provação para não viver como se vive lá.
que nós afirmamos agora serem verdadeiros.
Sócrates: Reflita ainda nisto: suponha que esse
Glauco: Ele não poderá vê-los, pelo menos nos homem volte à caverna e retome o seu antigo lugar.
primeiros momentos. Desta vez, não seria pelas trevas que ele teria os
olhos ofuscados, ao vir diretamente do sol?
Sócrates: É preciso que ele se habitue, para que
possa ver as coisas do alto. Primeiro, ele distinguirá Glauco: Naturalmente.
mais facilmente as sombras, depois, as imagens dos
homens e dos outros objetos refletidas na água, de- Sócrates: E se ele tivesse que emitir de novo
pois os próprios objetos. Em segundo lugar, durante um juízo sobre as sombras e entrar em competição
a noite, ele poderá contemplar as constelações e o com os prisioneiros que continuaram acorrentados,
próprio céu, e voltar o olhar para a luz dos astros e enquanto sua vista ainda está confusa, seus olhos
da lua mais facilmente que durante o dia para o sol e ainda não se recompuseram, enquanto lhe deram
para a luz do sol. um tempo curto demais para acostumar-se com a es-
curidão, ele não ficaria ridículo? Os prisioneiros não
Glauco: Sem dúvida. diriam que, depois de ter ido até o alto, voltou com a
vista perdida, que não vale mesmo a pena subir até
Sócrates: Finalmente, ele poderá contemplar o lá? E se alguém tentasse retirar os seus laços, fazê-
sol, não o seu reflexo nas águas ou em outra super- -los subir, você acredita que, se pudessem agarrá-lo
fície lisa, mas o próprio sol, no lugar do sol, o sol tal e executá-lo, não o matariam?
como é.
Glauco: Sem dúvida alguma, eles o matariam.
Glauco: Certamente.
Sócrates: E agora, meu caro Glauco, é preciso
Sócrates: Depois disso, poderá raciocinar a res- aplicar exatamente essa alegoria ao que dissemos
peito do sol, concluir que é ele que produz as esta- anteriormente. Devemos assimilar o mundo que
ções e os anos, que governa tudo no mundo visível, apreendemos pela vista à estada na prisão, a luz do
e que é, de algum modo a causa de tudo o que ele e fogo que ilumina a caverna à ação do sol. Quanto à
seus companheiros viam na caverna. subida e à contemplação do que há no alto, consi-
dera que se trata da ascensão da alma até o lugar
Glauco: É indubitável que ele chegará a essa inteligível, e não te enganarás sobre minha esperan-
conclusão. ça, já que desejas conhecê-la. Deus sabe se há al-
guma possibilidade de que ela seja fundada sobre a
Sócrates: Nesse momento, se ele se lembrar de verdade. Em todo o caso eis o que me aparece tal
sua primeira morada, da ciência que ali se possuía e como me aparece; nos últimos limites do mundo in-
de seus antigos companheiros, não acha que ficaria teligível aparece-me a idéia do Bem, que se percebe
feliz com a mudança e teria pena deles? com dificuldade, mas que não se pode ver sem con-
cluir que ela é a causa de tudo o que há de reto e de
Glauco: Claro que sim. belo. No mundo visível, ela gera a luz e o senhor da
luz, no mundo inteligível ela própria é a soberana que
Sócrates: Quanto às honras e louvores que dispensa a verdade e a inteligência. Acrescento que
eles se atribuíam mutuamente outrora, quanto às é preciso vê-la sequer comportar-se com sabedoria,
recompensas concedidas àquele que fosse dotado seja na vida privada, seja na vida pública.
de uma visão mais aguda para discernir a passagem
das sombras na parede e de uma memória mais fiel Glauco: Tanto quanto sou capaz de compreen-
para se lembrar com exatidão daquelas que prece- der-te, concordo contigo
dem certas outras ou que lhes sucedem, as que vêm
juntas, e que, por isso mesmo, era o mais hábil para
conjeturar a que viria depois, acha que nosso homem
teria inveja dele, que as honras e a confiança assim
adquiridas entre os companheiros lhe dariam inveja?
32

Para conhecer melhor as discussões modernas sobre a alegoria da caverna de Platão, assista:

https://www.youtube.com/watch?v=XvKzrsAk168

No texto de Platão, portanto, a Razão é algo que guro... mas terrivelmente sem graça.
deve ser buscado. Ainda que o ser humano já nasça Sair da caverna é uma das atitudes humanas mais
com a capacidade de elaborar relações lógicas, sua in- desafiadoras, pois envolve abandonar mitos, crenças,
teligência deve ser desenvolvida e torná-lo capaz de certezas e, finalmente, encontrar outras formas de co-
pensar por si mesmo, ao invés de ser um mero consu- nhecer e de viver.
midor das ideias que lhe chegam como prontas e defi- Na sua Alegoria da Caverna, Platão nos aler-
nitivamente determinadas como verdades. ta também para a questão da fotofobia. No grego:
Platão nos ensina que a busca da verdade é uma φωτοφοβία. Esta palavra significa, literalmente, aver-
constante e, por certo, jamais será alcançada. Mas, o são à luz. Podemos fazer as devidas aproximações:
que torna o homem um ser fascinante, é esta vontade aversão à verdade; constatação de que o conhecimen-
de alcançar a verdade, ainda que ele reconheça que to mais profundo não é simples e vai exigir maiores es-
não é um alcance definitivo. forços; sensação de repúdio diante de novas ideias, já
A busca da verdade, na filosofia platônica, é uma que as antigas explicações míticas soam como muito
atividade que envolve esforço pessoal, pois que a ig- melhores de compreender, dado seu caráter simples e
norância pode parecer bem mais tranquila. Afinal, estar fantástico.
imerso no mundo da caverna proporciona uma paz que
é fruto da ignorância. Os ignorantes estariam silencio-
sos, já que, para eles, todo o conhecimento possível já
lhes é dado e que, portanto, não há outras verdades a
buscar. O mundo do interior da caverna é tépido e se-
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ANOTAÇÕES

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UNIDADE

PENSANDO SOBRE
O PODER

Universidade Presidente Antônio Carlos - UNIPAC

UNIPAC ON-LINE
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PODER E DOMINAÇÃO Figura 16: Os Dominados.

Nesta unidade, vamos refletir sobre as


relações de poder que estão presentes no nosso
cotidiano. Normalmente, o exercício do poder nos
deixa indignados pois, se aprendemos que nos
espaços democráticos ele deve ser exercido para
o bem de todos, percebemos que nem sempre
é isto que acontece. Vivenciamos um exercício
político cujas ações acabam vinculadas a
interesses particulares em detrimento das grandes
necessidades da população. Nossas reflexões
vão nos conduzir para uma crítica importante da
política em nosso meio, levando-nos a questionar
a nós mesmos e nosso afastamento das atitudes
que deveriam pautar nossas preocupações, pois
que dizem respeito às nossas vidas diárias e à Fonte: jornalggn.com.br. Acesso em 31/02/2016
construção da felicidade coletiva.

PODER: CONQUISTAS
pessoas há séculos. Todas as pessoas, ao que pare-
E DERROTAS ce, querem influenciar outros, a fim de terem a ilusão
POLÍTICA E COTIDIANO de sua própria imortalidade, marcada pela perpetua-
ção de seu nome, de suas ideias, de seus domínios.
Então, sabemos que o exercício do poder acaba
SOBRE AS POSSIBILIDADES DE também por estar envolvido em relações de disputas
UMA POLÍTICA PARA TODOS de forças. A grande diferença é que nós, humanos, dis-
putamos as nossas forças pelos símbolos, pela eloqu-
Quando falamos em poder, remetemo-nos ao seu ência, pela argumentação, pela retórica. Mas também
exercício. Antes, porém, para compreendermos o que fazemos isto pelas armas.
é o poder, podemos considera-lo como um dos mais Se retomarmos um pouco mais da cultura grega,
eloquente desejos humanos. O poder envolve a de- poderemos rememorar dois ideais importantes: a de-
monstração de força e, de alguma forma, significa algo mocracia e a vontade de alcançar o espaço público.
da nossa luta pela sobrevivência. Na natureza, os pro- Para o grego antigo, estar no espaço público era a
cessos que envolvem a seleção natural são por nós grande conquista da educação. É no espaço público
compreendidos como a vitória dos mais fortes, dos que o homem se realiza como pessoa. Estar no es-
mais aptos à vida e, por conseguinte, a derrota dos paço privado era degradante. O homem livre é aquele
mais frágeis – aqueles que, dada sua conformação físi- que vai à praça pública (que eles chamavam de ágo-
ca, não lograriam sucesso na sobrevivência. Sabemos ra), apresenta suas ideias, defende-as e, por isto mes-
que, pelo processo da seleção natural, os seres da na- mo, livra-se de seus prepotentes agressores.
tureza vão se aperfeiçoando, tornando-se melhores e A formação política era, então, considerada a mais
mais belos. No mundo humano, no entanto, as coisas importante forma de educação em Atenas. Para cons-
não acontecem de forma exclusivamente biológica. Di- truir a democracia, as pessoas deveriam ser capa-
zemos que a lógica humana não é apenas a natural. zes de argumentar e trazer para a discussão as suas
Vimos, anteriormente, que o homem já se afastou su- ideias, que seriam as leis que eles, livremente, iriam
ficientemente da natureza e foi capaz de construir um obedecer.
mundo humano, ou melhor, vários mundos humanos, Há um episódio marcante na vida da Grécia Antiga
que são pautados pela vivência simbólica – no sentido – especificamente em Atenas. Nesta cidade, habitava
que é o homem quem atribui valor às coisas de seu Sócrates, um importante filósofo. Por alguns motivos,
próprio universo. ele foi condenado à morte. Quando estava no seu ca-
Quando falamos em poder, essas coisas são rea- labouço, aguardando o momento de ser executado,
vivadas. Trata-se de compreender como é que, nas so- recebeu a visita de seu amigo, Críton, que também
ciedades, são exercidas as influências de uns sobre os era seu discípulo. Ele foi à prisão a fim de subornar
outros. Em princípio, podemos entender como a preva- os guardas e livrar Sócrates da morte. No entanto, en-
lência de uns sobre outros – pois o poder acarreta uma quanto conversavam, o filósofo explicou-lhe que sem-
certa capacidade de influenciar de forma eloquente o pre havia se dedicado a pensar as leis, a defende-las e
destino do outro. Isto é fascinante. Isto tem movido as a honrá-las. Explicou-lhe que foram as leis que lhe pro-
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piciaram uma vida livre em Atenas. Naquele momento, to, vamos partir de um mito? A partir dele vamos tentar
entretanto, em que as leis se voltavam contra ele a fim compreender juntos como se deu a organização das
de matá-lo, ele não iria dizer que as leis eram inconve- explicações sobre a vida do homem no planeta e como
nientes e, por fim, submeteu-se à força delas. ele constituiu-se como animal pensante.
Agora, vamos entrar no universo mítico. Vamos ler Trata-se de um mito grego: a história de Prometeu
o mito de Antígona. Nele as leis são discutidas, bem e Pandora. Leia-a para que possamos tecer considera-
como o exercício do poder. ções a respeito em seguida.
isto compreendemos de forma sistemática, con-
forme foi dito pela filosofia e pelas ciências. No entan-

ANTÍGONA: AS LEIS DA CIDADE Figura 17: A tragédia Antígona, de Sófocles.


E A LEI DO CORAÇÃO
Antígona é uma personagem fascinante na mitolo-
gia grega. Ela era filha do rei Édipo, que ficou bastante
conhecido entre nós como aquele homem que foi con-
denado pelos deuses a matar seu próprio pai e casar-
-se com sua mãe. Édipo era bondoso, mas cumpria
uma maldição antiga. Seu avô, Lábdaco, havia inserido
a prática da pederastia na cidade e, por isto, os deu-
ses o amaldiçoaram. Na concepção grega, se alguém
recebesse uma maldição divina, essa maldição perpe-
tuaria por várias gerações, até que os deuses aplacas-
sem sua ira. Desta forma, o filho de Lábdaco, que se
chamava Laio, também era maldito. O filho de Laio era
Édipo.
Ao cumprir sua maldição, Édipo se uniu a Jocasta,
sua mãe e, sem que soubessem de seus laços san-
guíneos, tiveram filhos. Seus filhos foram, igualmente,
amaldiçoados, pois os gregos tinham a noção de algo
que se perpetuava por gerações, passando de pais
para filhos. No caso da linhagem de Édipo, todos eram
malditos desde Lábdaco, pois que este havia introduzi-
do na polis grega a prática da pederastia.
Ora, os filhos de Édipo e Jocasta eram: Etéocles
Fonte: http://brasilescola.uol.com.br/ Acesso em 31/01/2016.
e Polinices – os homens; e Antígona e Ismênia – as
mulheres.
Antes que descobrirem o cruel destino, eles viviam Creonte era justo e honrado e se propôs a um go-
felizes e, na paz e na justiça, governavam a cidade verno de sabedoria e retidão.
de Tebas com benevolência e honra. Seus dias eram Um dos seus primeiros atos legislativos denotava
marcados pela beleza, pelo perfume e pelo reconheci- suas retas intenções para com a cidade, os cidadãos
mento de todos os seus súditos. e sua família. Eis o que pronunciou na ágora: “Povo
Os meninos, tão logo cresciam, eram iniciados nas de Tebas! Cidadãos tebanos! Ouçam o que diz o vos-
artes da guerra, da política e da filosofia. As meninas so rei, eu, que sou Creonte, subi ao trono trazido pela
eram educadas para a sutileza e a música. De acordo tragédia que assolou minha pobre irmã Jocasta e seu
com os costumes, o governo da cidade caberia aos ho- infeliz filho e marido, Édipo. Não venho para desafiar
mens e não às mulheres. os deuses, mas apenas para propor uma trégua na se-
Quando, enfim, a verdade veio à tona e Édipo se quência das maldições. Eis que governo a todos com
descobriu como o cruel assassino de seu próprio pai e sabedoria, mas bem sei que o trono pertence a Etéo-
o devasso marido de sua própria mãe, destinou-se a cles e Polinices. Quando eles alcançarem a idade de
uma vida miserável, sem lar e sem luz. Jocasta, por governar, assim o farão. Mas não quero mais ver o
sua vez, suicidou-se. sangue da maldição correndo nas escadas do Palá-
Mas a cidade de Tebas não poderia ficar sem o cio de Tebas. Eis que proporei um governo de reve-
seu rei. Os filhos de Édipo, que tinham o direito da zamento para que a cidade fique em paz e alcance o
sucessão garantido, eram ainda jovens demais para progresso e a prosperidade.”
assumirem o trono e seus desafios. Então, por direito, O povo aplaudiu Creonte, pois o povo também
o irmão de Jocasta deveria governar Tebas. Seu nome queria a paz, mas temia a maldição dos deuses. E
era Creonte. Creonte governou Tebas em sabedoria e grandeza.
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Quando chegou o tempo em que os rapazes atin- de Tebas. Hoje eu te anuncio, pois tu quebraste um
giram a idade de governar, Creonte os chamou ao pacto firmado na presença da autoridade de nosso tio
trono: “Cheguem perto, Etéocles e Polinices, doces Creonte que, por respeito a Édipo e Jocasta, procurou
príncipes de meus encantos, sangue de minha irmã, a unir-nos pelos laços da fraternidade. No entanto, teu
quem amo mesmo depois da morte. Chamo-vos para coração está endurecido pelo poder... Eu te prometo
propor um governo de paz. Eis que é chegada a idade que também endurecerei o meu. Saio hoje, mas volta-
de assumirem o trono. Ambos têm o direito, mas é rei. E, quando voltar, não habitarei os quartos do pa-
a Etéocles, por ser o primogênito, o direito ao trono. lácio, mas retomarei o trono, que é o meu lugar, para
Quero ousar e solicitar que ambos os filhos de Édipo sempre.” E se foi.
governem Tebas. Sejam justos e honrados. Amem- Durante sete anos, Polinices habitou fora de Te-
-vos mutuamente e amem também o povo. Os deuses bas. Durante este tempo, porém, ele reuniu seus exér-
haverão de abençoar vossas decisões. Proponho que citos. Exércitos de mercenários, de homens que lutam
Etéoclesassuma o trono por este ano e, no seguinte, pelo ouro e pelo prazer do sangue. Polinices estava
venha Polinices para nos governar a todos com justiça tomado pelo ódio. Ele não sabia, mas vinha cumprin-
e piedade.” do, secretamente, a terrível maldição de seus antepas-
Figura 18: Creonte.
sados. Durante sete anos, a cidade de Tebas voltou a
crescer e seus habitantes eram felizes sob o reinado
de Etéocles.
Quando, enfim, chegou o tempo, a cidade de Te-
bas foi surpreendida com um terrível ataque noturno.
As sentinelas da cidade já estavam acostumadas à paz
do cotidiano e, de repente, foram atacadas com armas,
pedras, lanças e fogo. Assim, a cidade foi destruída.
Os soldados de Polinices eram inclementes. Mataram
todos os guardiães de Tebas, sequestraram todas as
crianças, violaram as virgens, destruíram os templos
e os edifícios públicos. Em uma única noite, a cidade
pegou fogo e pereceu sob as mãos de Polinices. Mas
ele não queria apenas destruir a cidade. Ele queria o
trono, o poder – o seu poder, como ele mesmo dizia.
No meio da confusão, Polinices correu ao palácio
e entrou na sala do trono. Lá, ele encontrou seu irmão
Obra de Diotti Joseph (1779/ 1846). Etéocles: “Pensaste que eu havia desistido do trono,
meu irmão? Pensaste que eu tenho medo e que a co-
Os irmãos se olharam e se abraçaram, selando a vardia habita comigo?”
proposta de Creonte. Mas Etéocles lhe respondeu: “Nunca duvidei de
Etéocles iniciou a governar Tebas. Mostrou-se teu amor pelo poder, apenas não pensei que tua ga-
forte e valoroso como Édipo. Mostrou-se sagaz como nância fosse capaz de matar nossa cidade!” “Não é
Jocasta. A cidade cresceu. O povo o amava. minha ganância que agora destrói Tebas” – dizia Polini-
Depois de um ano, eis que Polinices veio reclamar ces – “mas a tua ganância que nos mata a todos! Não
seu direito ao trono: “Meu irmão, fruto do amor inces- sejas covarde! Desce do trono e vem lutar comigo!”
tuoso de nossos pais, cá estamos com a vontade firme Os irmãos tinham o sangue de Édipo: eram cora-
de fazer acabar a maldição. Eis que me apresento ao josos e valorosos. Partiram para uma luta sangrenta.
teu trono e, humildemente, me prostro, rogando que o Desafiaram-se, humilharam-se e, por final, mataram-
abandone, para que eu o assuma desde já.” -se.
Mas Etéocles sentiu-se estremecer no poder: “Po- Toda a cidade de Tebas caiu em uma profunda tris-
linices, sei que queres o poder. Como nosso pai, sei teza jamais vista.
que amas governar. Mas sou eu que te rogo que saia Mais uma vez, o trono de Tebas estava vazio...
da sala do trono e me deixe no poder por mais um tem- Mais uma vez, Creonte se apresenta para reinar. Um
po. Tu vês como a cidade cresce? É o meu amor e reinado de ruínas e melancolias. Um reinado obscuro
minha dedicação que assim fazem. Se eu não amar e triste que o trono pertence a Etéocles e Polinices.
Tebas, não terei mais nada a amar nesta vida. Peço Quando eles alcançarem a idade de governar, assim
que saias, por favor. Mas, se tu insistires em ficar, farei o farão. Mas não quero mais ver o sangue da maldi-
valer meus direitos de rei e te ordenarei a sair debaixo ção correndo nas escadas do Palácio de Tebas. Eis
das lanças de meus soldados.” que proporei um governo de revezamento para que a
Polinices não gostou do que ouviu, mas obedeceu. cidade fique em paz e alcance o progresso e a prospe-
Não sem antes dizer: “Não precisas, meu irmão, das ridade.”
lanças dos teus soldados. Fui criado para o amor e O povo aplaudiu Creonte, pois o povo também
no amor pautarei meus dias. Não quero a rudeza do queria a paz, mas temia a maldição dos deuses. E
teu coração. Saio da sala do trono, mas saio também Creonte governou Tebas em sabedoria e grandeza.
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Figura 19: A batalha entre Etéocles e Polinices.

Fonte: http://ancientrome.ru/ Acesso em:16/5/2016

Os irmãos tinham o sangue de Édipo: eram cora- dãos de Tebas, eu, Creonte, irmão da rainha Jocasta,
josos e valorosos. Partiram para uma luta sangrenta. mais uma vez venho ao trono ser vosso rei. Mais uma
Desafiaram-se, humilharam-se e, por final, mataram- vez, chamo todos para reconstruirmos a cidade de Te-
-se. bas. A maldição e a ruína tem sido constante entre
Toda a cidade de Tebas caiu em uma profunda tris- nós, mas é preciso apaziguar os deuses... E os deuses
teza jamais vista. só ficam em paz quando veem a justiça no meio dos
Mais uma vez, o trono de Tebas estava vazio... homens. É por isto que, hoje, faço todos saberem des-
Mais uma vez, Creonte se apresenta para reinar. Um ta lei: Etéocles, rei de Tebas, que morreu defendendo
reinado de ruínas e melancolias. Um reinado obscuro nossos direitos e nossa liberdade, será sepultado com
e triste. todas as honras que a cidade puder lhe dar. Quan-
Outra vez no trono, Creonte anuncia sua lei: “Cida- to a Polinices, este traidor, proíbo que lhe seja dada
Figura 20: Antígona e Ismenia.
sepultura. Seu cadáver há de ficar na praça pública,
servindo de pasto aos cães e às aves do céu. Seu cor-
po será coberto pela vergonha, pois é a vergonha que
deve acompanhar os traidores em todos os tempos.”
Assim dizendo, voltou ao palácio e reiniciou seu
governo.
À noite, Antígona, irmã de ambos, foi até o quarto
de sua irmã, Ismênia:
“Minha irmã, viu a arrogância do rei Creonte, nos-
so tio? Viu como ele proibiu que o pobre Polinices te-
nha sepultura?”
“Bem ouvi” – disse Ismênia – “mas vamos deixar
as coisas como estão. Não podemos mais atrair mais
maldições para nossa família. Há muito, estamos so-
frendo com a dor que nos é imposta pelos deuses. É
preciso parar com isto, minha irmã. Vamos voltar a
dormir. Deixe Creonte reinar em paz.”
“Mas, Ismênia, não podemos deixar que uma in-
justiça tão grande se abata sobre Polinices. Ele tam-
bém tinha direito ao trono – todos sabemos bem disto.
Nosso irmão não pode ser envergonhado. Não posso
aceitar esta lei. Vm, minha irmã. Sai comigo agora
do palácio. Vamos nos encontrar com o pobre corpo
de Polinices. Vamos dar-lhe a sepultura que merece,
porque ele também tem nosso sangue, ele também é
justo!”
Fonte: http://piratesandrevolutionaries.blogspot.com/ Acesso em 16/05/2016 “Não vou contigo, minha irmã. Deixe-me sozinha,
chorando a morte de meus pais e meus irmãos. Não
40

quero ser a cúmplice das maldições em nosso palácio.” Mais uma vez, Antígona chamou Ismênia. Mais
Vendo-se sozinha, então, Antígona saiu pelas uma vez, ouviu sua recusa em acompanhá-la. Mais
ruas, até chegar à praça pública onde, vergonhosa- uma vez, sepultou Polinices, aguardando que o guarda
mente, jazia seu irmão Polinices. Ferido, envergonha- fosse tomado pelo sono.
do, nu. Os animais já iniciavam a devorar seu corpo
marcado pela derrota e pela morte. Figura 22: Antigona vela o corpo de Polinices.
Antígona afugentou os animais e, usando a força
de seu amor e de seu ódio, sepultou seu irmão.

Figura 21: O sepultamento de Polinices..

Obra de Benjamin CONSTANT (c.1806) ( Musée des Augustins, Toulouse)

No entanto, enquanto lamentava seu destino e de


seu irmão, o guarda despertou e surpreendeu-a. Para
Obra de Marie Stillman Spartali. cumprir as ordens, levou-a ainda de madrugada à sala
do trono e mandou vir Creonte:
Na manhã seguinte, o rei Creonte foi informado “Altíssimo rei. Eis que cumpro fielmente tua vonta-
que o corpo de Polinices já não mais estava exposto de e não te falto ao respeito e ao amor. Desde a tarde
aos animais. Creonte enfureceu-se e ordenou aos sol- de ontem, guardo o corpo do infeliz Polinices, a quem
dados que descobrissem a sepultura, que desenterras- tua honra despojou-o e, por isto, a teu mando, impeço
sem o corpo e, novamente, o deixassem sobre a terra, que ele ganhe a sepultura devida a todos os seres que
para ser envergonhado para sempre. morrem sobre a terra e que devem descer ao Hades.
Assim foi. Os soldados descobriram a sepultura Eis que, já de madrugada, a jovem princesa Antígona
e desenterraram Polinices, permanecendo de guarda, se aproximou do corpo. E chorava como a andorinha
por ordem do rei. que perdeu seus filhotes. Suas lágrimas não se con-

Figura 23: Antígona é surpreendida pelos guardas.

Fonte: https://auroracultural.wordpress.com Acesso em: 16/02/2106


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tinham e ela abraçava o corpo já putrefato do irmão. Figura 24: espetáculo composto pela tragédia grega de Sófocles e
pelo drama francês homônimo de Jean Anouilh.
Fiquei admirando-a ao longe, e vi que ela mesma se
dispunha a levá-lo da praça e dar-lhe sepultura. Pou-
pa, ó rei, a minha vida e de minha família, pois eu te
falo a verdade.”
Creonte encolerizou-se:
“Pobre princesa Antígona. Então não sabes que,
sobre você, eu tenho o poder da vida e da morte?”
“Meu rei, meu tio, meu amado. Sei que o poder é
teu. Mas tu não o terias se não fosse pela maldição de
minha família, de meu pai, de minha mãe e de meus
pobres irmãos que se mataram enquanto duelavam
pelo poder.”
“Mas tu não sabias de minha ordem para manter
insepulto o corpo de Polinices?”
“Sabia, mas não pude obedecê-la, pois fui criada
para o amor, e não para o ódio!”
“Polinices deve ser odiado, pois ele destruiu nossa Fonte: Fredi Kleemann Cedoc-Funarte. Acesso em 31/01/2016.

cidade de Tebas!”
“Não é tu que me dizes a dimensão do amor e do “No entanto, é uma lei. E toda lei representa o Es-
ódio... nem tuas leis. Aprendi desde sempre a amar tado Tebano. Todo aquele que ama seus pais e seus
com os deuses e a eles devo minha gratidão. Não irmãos mais que ao Estado, não é digno do Estado!”
posso obedecer uma lei tão injusta!”

Figura 25: Ant´gona é condenada a morte por Creonte.

Obra de Diotti Giuseppe (1779/ 1846).

“O Estado nada é, sem o amor. Amo meu irmão e duzida para uma caverna onde seria encerrada para
a ele devoto toda minha alma!” sempre, a fim de ver chegar a morte devagar, a cada
“Pois se amas tanto assim os mortos, vá com eles. dia, tomada pelo pavor, pela fome e pela sede, sentin-
Eis minha segunda lei – Antígona será sepultada viva, do seu corpo ser devorado pelos insetos da terra, sem
pois ela ama demais os mortos e com eles vai estar poder se defender. Apenas se ouvia os seus lamentos:
ainda esta noite! Enquanto eu viver, uma mulher não “Tebas, cidade grandiosa. Quantos dias fui feliz
assumirá o poder!” em tuas ruas. Como corri contente por teus campos.
Era uma lei extremamente maldosa, mas que não Como tua terra me encheu de perfumes e frutos. Para
poderia ser desobedecida. Antígona foi presa e con- sempre lembrarei de ti, no mundo dos mortos, cidade
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de meus pais e meus irmãos. Que os deuses voltem Dentro de algum tempo, o guarda veio lhe anun-
a te abençoar e teus bosques voltem a ver os belos ciar a chegada de seu filho, o jovem Hémon, que re-
jovens, plenos de felicidade e ternura!” tornava de batalhas. Creonte autorizou sua entrada e,
Passado o sepultamento em vida, o rei voltou ao quando lhe viu, abraçou-o com emoção e afeto, pois
palácio. Já na sala do trono, aguardava-o o sábio Ti- dele sentia saudades imensas, já que, pelo exército de
résias. Ele era cego e era considerado o homem mais Tebas, ele andava combatendo em outras terras. Eis
sábio de Tebas. Tirésias ouvia os presságios pelos o que Hémon disse:
cantos dos pássaros. Assim ele se dirigiu a Creonte: “Meu pai, assim que soube das tragédias que so-
“Os pássaros já não mais me dizem o futuro. Eles bre nós se abatem, corri para teus braços, a fim de
não cantam nem gorjeiam: estão fartos pela carne de abrandar tua angústia, pois bem sei de teu amor por
Polinices. Não conseguem abrir o bico, pois a gordu- Tebas. Mas, quando cheguei, soube da tragédia de
ra desse corpo morto lhes grudou e seus trinados não Antígona, e não pude deixar de chorar sua morte. Eu
podem falar de justiça. Trago, mesmo assim, a men- e ela, mesmo sendo parentes, escondíamos uma se-
sagem do deus Hades. Ele está irado, pois tu manténs creta paixão que nutríamos um pelo outro. Era manti-
sobre a terra um corpo morto que lhe pertence – Po- da em segredo, pois temíamos que nosso amor fosse
linices. Da mesma forma, tu lhe deste um corpo vivo proscrito, por causa da maldição de Édipo. Meu co-
– Antígona. Rei insensato: tu bem sabes que Hades ração era de Antígona e, por ela, eu combatia todos
odeia a vida e ama a morte. Mesmo assim, tu lhe dás os dias travando, comigo mesmo, a maior de todas as
a vida e lhe negas a morte. Eis o que ele manda dizer: guerras. Eu queria voltar a Tebas e fazer um reinado
O sol não se põe este dia, sem que o sangue volte a de prosperidade ao lado dela, aplacando a ira dos deu-
correr no palácio de Tebas.” ses e trazendo a felicidade para os tebanos. Mas hoje,
Tomado pelo terror, o rei ordenou que Polinices meu sonho foi sepultado para sempre. Se as guerras
fosse enterrado, para aplacar a ira de Hades, o rei dos não me mataram, foi para que eu vivesse para chorar
mortos. Da mesma forma, ordenou que Antígona fos- a morte de minha amada. Mas perecerei pela minha
se libertada, para que o deus o perdoasse. Mas já era própria espada, pois não quero viver em um castelo
tarde: o corpo de Polinices já havia sido devorado to- longe do meu amor.”
talmente e, quanto a Antígona, não podendo suportar a Assim dizendo, tomou sua própria espada e enter-
solidão da sepultura, cortou o pescoço com as pedras rou-a no seu coração. Para tentar contê-lo, Creonte
longas da caverna onde estava presa. correu para junto dele, mas Hémon já caía nas portas
Então, o rei ordenou que todos fossem para suas do castelo, abrindo-as com o peso de sua morte.
casas e se fechassem até o pôr-do-sol. Ele queria que Tirésias: “O sol não se põe neste dia, sem que o
Hades o perdoasse e, de alguma forma, queria evitar sangue volte a correr no palácio de Tebas.”
novas catástrofes sobre Tebas. Também ele se tran-
cou em seu palácio, em companhia da princesa Ismê-
nia, que já estava entregue à terrível paz da solidão.
Do ponto de vista do mito de Antígona, o poder
Figura 26: Tirésias, o Sábio. não é capaz de corromper o homem, mas de revelá-
lo à sociedade. Portanto, não é a política que destrói
o sujeito, mas ela lhe concede o poder. Portanto,
se queremos conhecer alguém em sua verdade,
concedamos-lhe poder – assim ele vai mostrar quem
ele é na verdade.

Nas discussões apresentadas pelo mito, Antígo-


na questiona o poder de Creonte, por considerá-lo por
demais arrogante e prepotente. Diz a ele que não obe-
decerá leis injustas. Por seu lado, Creonte considera
que as leis do Estado devem estar acima das vontades
parciais das pessoas. Ainda que vejamos Antígona
com boa vontade, percebemos também que as con-
siderações do rei não estão equivocadas. Atualmente,
sabemos que um dos grandes problemas do exercício
do poder é quando ele se alia às vantagens particula-
res, ao benefício de amigos em detrimento do bem-es-
tar coletivo.
Vejamos, agora, algumas considerações filosó-
ficas sobre o poder. Para tanto, faremos um breve
percurso sobre o pensamento político de Nicolau Ma-
Fonte: http://www.astrologiarchetipica.it Acesso em 31/01/2016 quiavel. Algumas ressalvas se fazem necessárias. A
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primeira delas diz respeito ao próprio nome Maquiavel. governante a governar o povo. Mas isto não é assim
É desse nome que veio o adjetivo “maquiavélico”, que tão verdadeiro. A outra ressalva diz respeito às formas
passou a significar o indivíduo ardiloso, aquele que de se compreender O Príncipe. Trata-se de uma obra
executa ações maldosas, que engana o povo. Qual que ensina ao governante como enganar o povo? Ou
o motivo da derivação desse adjetivo? Vejamos: uma trata-se de uma obra que ensina o povo a melhor com-
das obras de Maquiavel – a mais famosa – chama-se preender como vem sendo governado? São leituras
O Príncipe. Nesta obra, Maquiavel se propõe a discutir possíveis. Ambas nos auxiliam a compreender o exer-
a política. Ele faz isto não de uma forma ideal, ou seja, cício do poder.
ele não trata a política como ela deveria ser, mas como Vamos, pois, ler alguns excertos desta importante
ela é de fato. Ele não estabelece um tratado sobre o obra. As ilustrações nos ajuda a refletir que, embora
governo ideal e justo, mas sobre o governante real. En- a obra tenha sido escrita no século XVI, apresenta-se
tão, ele apresenta, por exemplo, as formas de adquirir como uma abordagem atual, em exemplos dos séculos
o poder. E diz que nem sempre é a verdade e a ética XX e XXI:
que conduzem tais formas, mas a coragem e a esper-
teza. Então, ele foi interpretado como quem ensina o

– O PRÍNCIPE –
ESCRITO EM 1505,
PUBLICADO EM 1515

CAPÍTULO III – SOBRE OS


PRINCIPADOS MITOS.
Deve, ainda, quem se encontre à frente de uma
província diferente, como foi dito, tornar-se chefe e
defensor dos menos fortes, tratando de enfraquecer
os poderosos e cuidando que em hipótese alguma
aí penetre um forasteiro tão forte quanto ele. E sem-
pre surgirá quem seja chamado por aqueles que na
província se sintam descontentes, seja por excessiva
ambição, seja por medo, como viu-se terem os etólios
introduzido na Grécia os romanos que, aliás, em to-
das as outras províncias que conquistaram, fizeram- Neste ponto, Maquiavel afirma que os
-no auxiliados pelos respectivos habitantes. E a ordem governados aderem facilmente ao governante que
das coisas é que, tão logo um estrangeiro poderoso os dirige, principalmente se forem os mais fracos
penetre numa província, todos aqueles que nela são da sociedade. Assim o fazem por inveja contra o
mais fracos a ele dêem adesão, movidos pela inveja poderoso. O governante não tem muito trabalho
contra quem se tornou poderoso sobre eles; tanto as- para obter o apoio dos mais fracos, mas não lhes
sim é que emrelação a estes não se torna necessário deve dar muito poder e muita autoridade, ou seja,
grande trabalho para obter seu apoio,pois logo todos os mais fracos devem encontrar a força exatamente
eles, voluntariamente, formam bloco com o seu Esta- onde ela está: no centro do governo.
doconquistado. Apenas deve haver o cuidado de não
permitir adquiram eles muitopoder e muita autoridade,
podendo o conquistador, facilmente, com suas forças Os romanos, nas províncias de que se assenho-
ecom o apoio dos mesmos, abater aqueles que ainda rearam, observaram bem estespontos: fundaram colô-
estejam fortes, para tornar-sesenhor absoluto daquela nias, conquistaram a amizade dos menos prestigiosos,
província. E quem não encaminhar satisfatoriamente- semlhes aumentar o poder, abateram os mais fortes e
esta parte, cedo perderá a sua conquista e, enquanto não deixaram que osestrangeiros poderosos adquiris-
puder conservá-la, teráinfinitos aborrecimentos e difi- sem conceito.
culdades.
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CAPÍTULO V – DE QUE MODO SE CAPÍTULO VIII – DOS QUE CHEGARAM


DEVE GOVERNAR AS CIDADES AO PRINCIPADO POR MEIO DE CRI-
OU PRINCIPADOS QUE, ANTES DE MES.
SEREM OCUPADOS, VIVIAM COM AS
Mas, porque pode-se tornar príncipe ainda por
SUAS PRÓPRIAS LEIS. dois modos que não podem ser atribuídos totalmente
à fortuna ou à virtude, não me parece acertado pô-los
de parte, ainda que de um deles se possa mais ampla-
Quando aqueles Estados que se conquistam, como mente cogitar em falando das repúblicas. Estes são,
foi dito, estão habituados a viver com suas próprias leis ou quando por qualquer meio criminoso e nefário se
e em liberdade, existem três modos de conservá-los: ascende ao principado, ou quando um cidadão priva-
o primeiro, arruiná-los; o outro, ir habitá-los pessoal- do torna-se príncipe de sua pátria pelo favor de seus
mente; o terceiro, deixá-los viver com suas leis, arreca- concidadãos.
dando um tributo e criando em seu interior um governo
de poucos, que se conservam amigos, porque, sendo
esse governo criado por aquele príncipe, sabe que não Pode-se ser governante por dois modos, segundo
pode permanecer sem sua amizade e seu poder, e há Maquiavel: pela fortuna ou pela virtude. Por fortuna,
que fazer tudo por conservá-los. Querendo preservar compreendemos as situações favoráveis, como o
uma cidade habituada a viver livre, mais facilmente poder hereditário, por exemplo. Assim é que, pelas
que por qualquer outro modo se a conserva por inter- vias da sucessão, um príncipe da Inglaterra se torna
médio de seus cidadãos. Como exemplos, existem os o rei. Por virtude, compreendemos a coragem de
espartanos e os romanos. Os espartanos conservaram conquistar, a virtude do homem corajoso, que parte
Atenas e Tebas, nelas criando um governo de poucos; em conquista, que envia exércitos e impõe seu poder.
todavia, perderam-nas. Os romanos, para manterem Há, ainda, outros dois modos de se conquistar o
Cápua, Cartago e Numância, destruíram-nas e não as poder: por meio do crime ou por meio do favor de
perderam; quiseram conservar a Grécia quase como o seus cidadãos. Neste sentido, matar o ocupante do
fizeram os espartanos, tornando-a livre e deixando-lhe poder deixa o lugar vazio e passível de ser ocupado
suas próprias leis e não o conseguiram: em razão dis- pelo criminoso – como ocorreu com alguns poderes
so, para conservá-la, foram obrigados a destruir muitas sucessório. De igual modo, ascender ao poder pelo
cidades daquela província. favor dos seus concidadãos é outra forma igualmente
É que, em verdade, não existe modo seguro para possível. Aqui, podemos entender o poder do voto
conservar tais conquistas, senão a destruição. E quem nas democracias, por exemplo.
se torne senhor de uma cidade acostumada a viver livre
e não a destrua, espere ser destruído por ela, porque a
mesma sempre encontra, para apoio de sua rebelião,
o nome da liberdade e o de suas antigas instituições,
jamais esquecidas seja pelo decurso do tempo, seja
CAPÍTULO XIV – O QUE COMPETE A
por benefícios recebidos. UM PRÍNCIPE ACERCA DA MILÍCIA
Deve, pois, um príncipe não ter outro objetivo
Neste ponto, Maquiavel diz que o príncipe, se nem outro pensamento, nem tomar qualquer outra
quiser conquistar um povo que vive livre com suas coisa por fazer, senão a guerra e a sua organização e
próprias leis, deve aniquilá-lo. Pode mesmo ser um disciplina, pois que é essa a única arte que compete
aconselhamento ao governante, mas ele diz isto por a quem comanda. E é ela de tanta virtude, que não
constatar que assim se portaram aqueles que obtiveram só mantém aqueles que nasceram príncipes, como
sucesso em suas conquistas. Em contrapartida, fica o também muitas vezes faz os homens de condição
povo atento aos seus governantes, observando se ele privada subirem àquele posto; ao contrário, vê-
quer manter o poder destruindo a liberdade. O povo, se que, quando os príncipes pensam mais nas
como ele afirma, sempre encontra apoio na rebelião a delicadezas do que nas armas, perdem o seu
fim de defender suas instituições. Estado. A primeira causa que te faz perder o governo
é negligenciar dessa arte, enquanto que a razão que
te permite conquistá-lo é o ser professo da mesma.

A conquista e a manutenção do poder não se faz


sem a guerra – diz Maquiavel. Portanto, esta é uma
atitude daqueles que nasceram príncipes. Aqui, a
guerra é tomada como uma arte: a arte da conquista e
da manutenção do poder.
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CAPÍTULO XVII – DA CRUELDADE E DA PIEDADE – SE É MELHOR SER AMADO


QUE TEMIDO, OU ANTES TEMIDO QUE AMADO.
Nasce daí uma questão: se é melhor ser amado maus, é quebrado em cada oportunidade que a eles
que temido ou o contrário. A resposta é de que seria convenha; mas o temor é mantido pelo receio de
necessário ser uma coisa e outra; mas, como é castigo que jamais se abandona.
difícil reuni-las, em tendo que faltar uma das duas Deve o príncipe, não obstante, fazer-se temer
é muito mais seguro ser temido do que amado. Isso de forma que, se não conquistar oamor, fuja ao ódio,
porque dos homens pode-se dizer, geralmente, mesmo porque podem muito bem coexistir o ser
que são ingratos, volúveis, simuladores, tementes temido e onão ser odiado.
do perigo, ambiciosos de ganho; e, enquanto lhes
fizeres bem, são todos teus, oferecem-te o próprio
sangue, os bens, a vida, os filhos, desde que, como
se disse acima, a necessidade esteja longe de ti; Ao tratar do amor e do temor, Maquiavel os
quando esta se avizinha, porém, revoltam-se. E o considera como sentimentos inalienáveis do mundo
príncipe que confiou inteiramente em suas palavras, humano. Os homens amam e temem. E o governante?
encontrando-se destituído de outros meios de Deve se fazer amado ou temido? Fazendo-se
defesa, está perdido: as amizades que se adquirem temido, ele tem o medo como arma, mas poderá
por dinheiro, e não pela grandeza e nobreza de alma, sofrer perseguições. Ao fazer-se amado, ele pode
são compradas mas com elas não se pode contar experimentar a ingratidão pois, como ele mesmo
e, no momento oportuno, não se torna possível diz, os homens tendem a submeter-se àqueles que
utilizá-las. E os homens têm menos escrúpulo em temem e, por outro lado, tendem a maltratar aqueles
ofender a alguém que se faça amar do que a quem que amam. É uma importante questão humana que
se faça temer, posto que a amizade é mantida por também permeia pelos caminhos da política.
um vínculo de obrigação que, por serem os homens

ANOTAÇÕES

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UNIDADE

O SONHO DA LIBERDADE

Universidade Presidente Antônio Carlos - UNIPAC

UNIPAC ON-LINE
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Figura 27: Liberdade, angústia e solidão.
LIBERDADE E
MATURIDADE
De uma forma geral, todos fomos edu-
cados para a liberdade. Se as práticas, por
vezes, nos parecem um tanto escraviza-
doras e desencorajadoras de pensamen-
tos ousados, as lições que aprendemos
remetem-nos aos sonhos de liberdade.
No caso brasileiro, somos ensinados a
admirar e a festejar aqueles que lutaram
por este ideal. Todos nos lembramos do
mártir Tiradentes, por exemplo que, no
caso da Inconfidência Mineira, passou a
significar coragem, destemor, audácia, fir-
meza, caráter – qualidades que se juntam
para a formação da liberdade.
Fonte:http://onedio.com/ Acesso em 31/02/2016
Na História Universal não é diferente:
os povos cultuam aqueles que simbolizam
a luta contra a servidão. No âmbito da filosofia, no entanto, vamos refletir sobre a liberdade como uma conquista
dos povos e que deve ser assumida a cada dia pelos indivíduos. Há mesmo aqueles filósofos que afirmam que a
liberdade é uma condenação para o homem. Na maior parte das vezes, conforme afirmam, as pessoas preferem
seguir ordens do que agir por si mesmas, pois a liberdade exige também que as atitudes sejam respondidas com
maturidade por quem as pratica.
Portanto, a liberdade segue acompanhada pela maturidade. Há condições tais que impedem a liberdade. Va-
mos, pois, conhecer aqueles pensamentos sobre a conquista da liberdade.

O SONHO DA LIBERDADE Alguém fala por elas, escolhem seus nomes, suas rou-
LIBERDADE E MATURIDADE pas, seus alimentos. Privadas da escolha (arbítrio),
elas também são privadas da liberdade e, portanto, de-
Todos os homens nasceram para a liberdade? To- vem ser protegidas pelos adultos. A sensação de pro-
dos merecem ser livres? Todos querem ser livres? Pa- teção é tão preciosa que, já na idade adulta, algumas
rece que sim. Desde que são pequenas, as pessoas pessoas abdicarão de seus direitos de fala, preferindo
resistem às formas de prisão e de contenção de suas a segurança (ainda que falsa) da obediência.
ações. Parece pairar sobre todos um desejo de ser li- Com a finalidade de discutirmos o problema da li-
vres. Ser capaz de escolher, de deliberar – este é o berdade, vamos nos aproximar do mito de Édipo. Se-
sentido do livre arbítrio. Escolher sem qualquer tipo de gundo a mitologia grega, ele era o rei da cidade-estado
coação, sem ameaças ou constrangimentos conduz as de Tebas. No entanto, ele estava marcado por um ter-
pessoas à conquista do ideal de liberdade. Desta for- rível destino e, por mais que dele tentasse se libertar,
ma, todo julgamento só faz sentido se tiver como base agia inexoravelmente de acordo com as determina-
a concepção prévia da ação livre do sujeito. ções dos deuses. Édipo era livre?
Mas há quem diga que alguns homens preferem
não ser livres. Há quem afirme que o peso da liberdade ÉDIPO: A ESTRANHA RELAÇÃO
é grande demais para ser suportado pelas pessoas.
Por isto, não raro, os homens preferirão a tirania à de- AMOROSA E SUAS CULPAS
mocracia. Preferirão ser manipulados a ser educados.
Preferirão a espada à lógica. Por isto, a liberdade é O mito de Édipo é o mito de toda a Grécia. Sua
um tema filosófico que precisa ser melhor explorado. história se desenrola em várias localidades. O palco
Na verdade, quando somos deixados à livre escolha, principal é a cidade de Tebas, a grandiosa cidade das
pesa-nos a maturidade. Então, desejamos voltar à in- sete portas, tamanha era a sua extensão. Mas ela
fância, quando não tínhamos voz e nos cabia apenas a também se passa na cidade de Corinto e na ilha de
obediência. Sendo obedientes, certamente, corríamos Delfos, onde se localizava o templo do deus Apolo, tido
menos riscos. A palavra infância tem em sua concep- como o deus da Verdade. Os gregos associavam o sol
ção a ausência da fala (in fans). Ora, quem não fala, a Apolo ou, melhor dizendo, ao olho de Apolo: o que
não responde por si mesmo. Isto quer dizer que quem está acima de tudo e de todos, tudo vê, tudo contem-
não faz o uso livre da palavra, não responde por suas pla, tudo conhece.
escolhas. De fato, as crianças não falam: são faladas.
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Os gregos tinham a noção do que se transmitia por Figura 28: Édipo e a Esfinge.
hereditariedade. A noção de ghénos (palavra que hoje
se utiliza para derivar a palavra genética, como carac-
teres que se transmitem por gerações por meio das
diversas fecundações). Para os gregos antigos, havia
algo que se passava de pai para filho, de geração em
geração. Eles ainda não sabiam do que se tratava,
mas utilizaram-se dos mitos para falar da maldição.
A maldição era tido como algo extremamente con-
flitante para o pensamento racional pois, por ela, os
inocentes acabam herdando as consequências de um
mal praticado por um antepassado qualquer, ainda que
em tempos remotos.
O mito de Édipo está envolvido na luta do homem
por se libertar de um destino que não lhe agrada e por
construir uma liberdade que se projeta para além das
maldições.
Comecemos por Tebas. Entremos nesta cidade.
Vemos uma cidade grandiosa, exuberante, com belas
pessoas e edifícios públicos ornamentados com gosto
e beleza. Tebas é rica. Suas plantações se estendem
por longas extensões de trigo e uva. Seu exército é
forte e vigoroso. Os tebanos são felizes e se orgulham
de habitar nesta cidade que lhes garante plenitude e
segurança.
Tebas é governada pelo rei Laio e pela rainha Jo-
casta. São justos, nobres e felizes. São amados por Obra de Jean Auguste-Dominique Ingres.(1808-1825)
seus súditos e conduzem seu reinado sob as bênçãos
da verdade. Algo, no entanto, cobre com uma triste O rei Laio, envergonhado por não ser pai, dedica-
sombra a vida do casal: eles não têm filhos. va-se a Tebas e às caçadas. Gostava de sair à floresta
A rainha se lamentava todos os dias e não cessa- com seus servos, ouvir que falassem de seus filhos,
va de oferecer sacrifícios à deusa Afrodite, para que dar-lhes conselhos sábios, indicar-lhes bons cami-
seus encantos trouxessem seu marido para junto de nhos. Sentia-se, de alguma forma, pai de seus servos,
si a cada dia, para que ele viesse fecundar o ventre mas um desejo lhe queimava o peito, um desejo de
jovem e carente de ser habitado pela fina flor de uma embalar seus filhos nos braços, de acolher seus solu-
criança. A rainha se vestia com gala e beleza e, assim, ços, de alimentar suas crias.
caminhava nas ruas de Tebas. Queria se encontrar Ao chegar no templo, Laio pôde ler a inscrição:
com as mulheres do povo, para com elas dividir suas “Gnósis seautón” (“Conheça-te a ti mesmo”) – ou seja,
dores femininas. Apesar das lágrimas, era lindo de se “Lembra-te que tua condição de mortal é como a po-
ver a rainha partilhando suas angústias com suas sú- eira diante de Apolo, filho de Zeus, o grande imortal”.
ditas. Assim foi que Laio se dirigiu ao oráculo do deus: “Es-
cuta, que meu coração está aflito.
Figura 29: Laio visita o oráculo(dir.); Jocasta chora o desaparecimento de seu filho (esq.).
Venho de Tebas, a grandiosa polis
abençoada por todos os deuses.
Sou o rei dos tebanos, com quem
mantenho a sagrada aliança de
bem governar para a paz e a pros-
peridade. Desde pequenos, eles
crescem felizes, pois eu, o seu rei,
os governo com justiça e piedade.
Também minha esposa, a rainha
Jocasta, está plena de angústia.
Passam-se todos os dias e não
conseguimos ainda um filho que
nos sucederá no trono da justi-
ça. Meu coração está pesado. A
vergonha da infertilidade o abate
a cada dia. Meu deus, Apolo de
todas as verdades, venho suplicar
Obra de Bernard van Orley (1525-1535).
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pela tua sabedoria. Dize-me o que fazer para que mi- a fêmea lhes é infinitamente inferior, não podem os
nha esposa seja fecundada pelo líquido do amor, do machos reter apenas para si o amor de outro homem.
qual estou pleno, mas de cuja infertilidade pereço!”. Esta é a sentença. Não queiras ter o filho que vai te
matar e deitar-se com sua esposa.”
Figura 30: Imagem de Apolo.
Figura 31: Édipo e a Rainha Jocasta.

Obra de Bernard van Orley (1525-1535).

Fonte: http://www.nova-acropole.pt/ Acesso em: 16/02/2016 O rei Laio retirou-se da presença do oráculo. E era
triste e amedrontado. Sua justiça jamais seria sabida
Dentro de algum tempo, o oráculo se pronunciou: por toda a Grécia. Ele era o mais pobre dos mendigos.
“Em nome do deus da Verdade, Apolo do Sol, Olho do Todos os seus súditos eram mais preciosos que ele
Universo, o grandioso e indissolúvel, te digo, rei Laio, próprio. Nunca seria feliz no reino de Tebas e nem em
de Tebas. Eis o que o deus te comunica: ‘Tu não tens outra cidade... Ao entrar no palácio, revelou a verda-
filho, és mendigo, mesmo sendo rei. Tu és um rei mal- de para a rainha Jocasta. Os dois se abraçaram em
dito, ainda que governe na justiça. Tu jamais serás lágrimas e se prepararam para se conformar ao seu
abençoado com um fruto de suas sementes. Suas destino firmado pelos deuses.
súplicas comovem as pedras, mas não a Verdade de Não tardou, porém, que chegaram as festas das
Apolo. Tua geração é maldita para sempre. Não terás colheitas. Nessas festas, as pessoas se alegravam
um filho. Humilha-te diante desta sentença. Não de- diante dos alimentos que a terra produzia. Era a festa
safies os imortais. Se te atreveres – tu e tua esposa do vinho e da fartura. Nessas festas as pessoas dan-
– sentirão cedo o peso do que é maldito.’ Nada disse çavam ao som do prazer e se inebriavam com o vinho
mais o deus.” e se abraçavam com o calor dos corpos e da vida. As
Laio estremeceu-se: “Diga-me, oráculo: por que alegrias estavam nos campos, nas casas, nas ruas: os
sou maldito? Por que minha geração está amaldiço- deuses abençoavam a todos com o alimento que dava
ada?” A resposta veio: “Seu antepassado, o rei Láb- cor à vida.
daco, fez penetrar nas cidades gregas a prática da No palácio de Tebas também havia alegria. Rei,
pederastia. Os deuses ficaram irados, pois logo não rainha e toda a corte estavam felizes com os frutos da
teriam mais filhos a povoar a terra. Se os machos se terra. A rainha Jocasta também quis seu próprio fruto,
amassem a si mesmos, exclusivamente, não haveria uma criança de seu ventre. E assim se aproximou de
procriação. Por isto, os deuses tiraram de sua famí- Laio: “Rei de minha terra, não podem os deuses ser
lia a possibilidade de gerarem filhos. Se, por acaso, mais poderosos que meu desejo. Venha ao meu leito
insistirem, eles te darão filhos amaldiçoados. Assim é esta noite. Faça que meu ventre se alegre como a
que tu és maldito e teu filho também o será, caso de- terra nesta festa de colheita. Prometo-te que logo tu
sobedeças a sentença que vem do reino dos imortais.” mesmo colherás a mais bela criança, que desafiará os
Laio indignou-se: “Mas eu não desafiei os deuses. deuses e firmará nossa descendência na Grécia.” O
Jamais faria isto!” Mas o oráculo replicou: “Tudo o que rei estava ressabiado. Sobre seus ombros ainda pe-
fazem os pais é passado ao filhos, em igual vigor e savam as palavras de Apolo. Mas a rainha havia lhe
força. Logo, ainda que os deuses admitam que os ho- servido vinho... As mulheres são inconstantes e des-
mens só devem amar outros do seu próprio sexo, pois confiadas. Elas se movem pela emoção e a razão não
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lhes alcança, pois elas são ousadas e desafiadoras. sim como as mulheres, também são inconstantes. Os
Elas não respeitam as leis eternas e, diante delas, os servos têm coração de coelho. À medida que caminha-
imortais se reduzem a mentiras. A rainha Jocasta es- va, o peso da criança ia se tornando suave, seu choro,
tendeu seu manto de luxúria, perfumou seu leito com uma canção, e o servo apiedou-se da sorte do menino.
os aromas da natureza. Desvelou seu corpo e atraiu o Sentiu que não poderia abandoná-lo. Por isso é que,
rei para o seu leito. Naquela noite, se amaram inten- ao se aproximar da montanha, encontrou-se com um
samente. Os deuses, então, fizeram a semente ger- pastor de ovelhas. Era Pólibo, rei de Corinto. Ora,
minar e a rainha iniciou a gerar aquele que seria seu há muito Pólibo e sua esposa Mérope queriam ter um
filho, seu predileto. Aquele que encheria o palácio de filho. Ele, então, viu naquela criança a possibilidade de
alegria. Aquele que reinaria em Tebas após sua mor- ser feliz como um pai que acolhe seu filho nos braços
te. Os deuses permitiram. Quando os dois mortais se e se encanta com ele. Desde esse dia, Pólibo acolheu
amavam e julgavam serem os vencedores, no silêncio o menino consigo, e lhe chamou de Édipo, porque ele
da noite Apolo fez a semente de Laio germinar no ven- tinha os pés feridos.
tre de Jocasta. Assim são os deuses: permitem que os Pólibo amava Édipo como a um filho. Mérope, sua
homens se sintam vencedores para, então, lançá-los esposa, também se encantou com as belas formas da
no abismo. Mas o rei Laio estava temeroso: ninguém criança. Juntos, finalmente, formaram uma família,
desafia os deuses e permanece impune. A criança que para a felicidade do rei e da rainha de Corinto.
estava sendo gerada trazia em si o ghénos da maldi-
ção. Logo ela nasceria. Figura 33: Adoção de Édipo pelo Rei de Corinto,
Pólibo, e sua Rainha Mérope
Depois do tempo previsto para as mulheres gera-
rem, um menino nasceu. Era belo e radiante. Suas
formas demonstravam graça e luz. Era um meni-
no saudável – digno de um príncipe. No dia de seu
nascimento, o sábio Tirésias foi chamado ao palácio.
Tirésias era cego. Ele era respeitado pela sua sabe-
doria. Ele era capaz de conhecer a verdade que lhe
era comunicada pelos trinados dos pássaros. Quando
entrou, ele tinha o rosto pesado. Chegou à rainha e
lhe disse; “Tu não és uma mãe amorosa. Ouvi os pás-
saros esta manhã e seus gorjeios só me comunicaram
tristezas. O cantar triste da
Figura 32: Pólibo segurando Édipo.
cotovia me disse que este
menino estenderá a maldi-
ção de Lábdaco. Não há
como fugir. Com este nasci- Obra de Bernard van Orley (1525-1535).
mento, a maldição estendeu
seus tentáculos no palácio.” O menino crescia em sabedoria e graça. Os súdi-
Pediu desculpas pela verda- tos de Corinto já o amavam como seu futuro rei. Póli-
de. Saiu. bo o educava na justiça e na misericórdia, de forma a
Desde então, Laio e assumir o trono com amor. Édipo crescia e se dedica-
Jocasta não puderam mais va aos jogos olímpicos. Era valoroso e respeitado por
encontrar a paz no palácio e todos.
nem a alegria naquele meni- Em um dia de competições em que, mais uma vez,
no. Chamaram um servo – saíra vitorioso, Édipo se orgulhava bondosamente de
o mais leal entre eles – e lhe seus feitos. Sentia-se cada vez mais grandioso e o
confiaram a penosa tarefa poder estava com ele. Chamou seu amigo e, do alto
de levar o menino do palá- da montanha, falou orgulhoso: “Sou Édipo, príncipe de
cio. Pediram que o abando- Corinto e seu futuro rei. Logo, toda esta extensão de
nasse nas montanhas, lon- terra será governada por mim. Serei justo e bondoso,
ge de Tebas, a fim de que e a misericórdia será a marca de meu reinado.” Ouvin-
tivesse a sorte melhor que do isto, seu amigo lhe confidenciou: “Ouve, Édipo, não
os deuses lhe pudessem quero destruir tua felicidade, mesmo porque teu vigor
conceder. Com isto, pen- é imbatível, seja nos jogos olímpicos, seja nas grande
savam, se livrariam da mal- batalhas. Mas, em certa ocasião, ouvi que me conta-
dição que o menino trazia. ram que tu não és o filho de Pólibo. Ele andava a pas-
Mas os deuses não condu- torear, quando tu foste entregue a ele, para escapar de
zem suas ações no engodo. uma maldição. Perdoe, meu príncipe, meu amigo, eu
E assim foi. O servo não sei o que digo... mas devo dizer-te todas as coi-
partiu com o menino nos sas, porque não quero que sombras de dúvidas pairem
Fonte: braços. Mas os servos, as- sobre a fronte de tua glória.”
52

Ao ouvir estas palavras, Édipo ficou perturbado: a terrível tristeza em seu peito: não retornaria a Corin-
“Como posso não ser o filho de Pólibo, o pai a quem to. Ele amava demais seu pai e sua mãe e, segundo
devoto todo o meu amor? Como não seria eu o filho pensava, não poderia concordar em matar a ele e a
de Mérope, a mais sublime criatura forjada pela terra e deitar-se com ela. Era o terror. Estava decidido a não
pelos deuses?” A tristeza e a dúvida tomaram o peito voltar jamais para o palácio de Pólibo. Mandou que
de Édipo. Todas as glórias dos jogos olímpicos não um servo levasse a mensagem: “Jamais me busquem,
eram capazes de lhe devolver a paz. Passava seus pois de todos os olhos eu me farei oculto. Não me pro-
dias tomado pela sombra e pelo desejo de conhecer curem, pois tornei-me uma rocha pela tristeza e uma
a verdade. Quis perguntar a seu pai e a sua mãe a pedra pelo pavor.”
verdade sobre sua vida e seu nascimento. Mas tremia A melhor cidade para tentar recomeçar a vida era
ao pensar em ouvir algo que lhe afastasse da casa do Tebas. Era uma cidade famosa pelos seus reis e pelas
rei de Corinto. suas riquezas. Era preciso ir a Tebas. E, desta forma,
Édipo dirigiu-se para lá. Decerto que recomeçaria a
Figura 34: A dor de Édipo.
ser feliz naquela cidade que se erigia no alto das belas
montanhas da Grécia.
Ao se aproximar, encontrou-se com três homens
que saíam para caçar. Eles interromperam seu cami-
nho: “Quem és tu? O que queres em Tebas? Acaso
vem roubar nosso povo e prostituir nossas virgens?”
Mas Édipo estava triste demais para entrar em discus-
sões. Ele não queria o mal de pessoa alguma. Procu-
rava apenas sua felicidade. Mas os tebanos não tole-
ravam os estrangeiros. Desde cedo, aprenderam a ser
xenófobos, pois lutaram muito para construírem uma
Tebas livre e próspera. Não iriam perdê-la. Não iriam
Fragmento “ Descendimiento de la cruz “ Roger Van der Weyden permitir que aventureiros incomodassem seus dias de
Temeu imensamente pelo seu futuro. Mas reuniu glória. Tentaram impedir a entrada daquele forasteiro.
suas coragens e se dirigiu a Delfos, para o templo de Mas Édipo era valoroso nos combates. Ele havia sido
Apolo, aquele que conhece toda a verdade. Ao che- treinado nos jogos olímpicos, era ágil e forte. Sua for-
gar ao templo, humilhou-se diante do deus, suplican- ça associada à tristeza o fez matar o primeiro dos ho-
do: “Rogo-te, ó imortal, diante de quem o próprio Sol mens. Em seguida, matou também outro deles. Ven-
obedece e ouve. Diga-me, na linguagem dos homens, do a força e a determinação daquele jovem, o terceiro
a sombra que paira sobre mim. Diga-me se sou filho homem fugiu desesperado. Édipo entrou em Tebas.
de Pólibo. Caso sim, voltarei exultante para o palácio Mas seus dias ainda eram tristes. Por algum tem-
de meu pai, e a alegria há de me acompanhar como po, buscou trabalho e tentou ingressar no exército de
amiga e amante. Caso não, rasgarei minhas vestes Tebas, mas os tebanos não queriam estrangeiros em
e não mais aceitarei ser tratado como o príncipe de seus exércitos. Édipo fazia o que sabia, o que podia e,
Corinto.” O oráculo ouviu... pensou... foi ao altar, su- aos poucos, ia se afastando de sua maldição.
plicou a Apolo a verdade. No final de algum tempo,
Figura 35: Édipo chega a Tebas.
retornou para Édipo: “Sobre a paternidade que Pólibo
pode ter sobre ti, Apolo não disse nada. Sobre tu seres
o rei de Corinto, o grande deus também se calou: a ele
não importam as riquezas torpes dos homens. Mas ele
confirma a tua sombra. Ele diz que sobre tu há uma
maldição. Tu és o filho maldito de uma geração que
turvou as relações amorosas entre dois homens. Tu
és a marca da desobediência e da astúcia. Por isso,
Apolo te diz que pelas tuas mãos, teu pai será mor-
to. Não bastasse esta tragédia, no leito de tua mãe é
que te deitarás. E não encontrarás mulher alguma em
toda a terra que te sacie os desejos. Desejarás ape-
nas aquela que te deu à luz e, com ela, terás filhos e,
desta forma, expandirá a maldição dos reis pederastas
e falsos.” “Mas, que parte tenho eu na culpa de meus
antepassados? O que diz o deus?” “Nada mais disse
Apolo. Ele cumpre apenas a regra eterna, de dizer a
verdade e aplicar suas consequências.”
Édipo viu seus dias de glória desabarem. Viu suas
vitórias serem reduzidas a nada. Saiu de Delfos com
Obra de Bernard van Orley (1525-1535).
53

Um dia, na praça da cidade, ouviu que o arauto do Os homens tebanos eram corajosos. Iam, pois,
palácio trazia uma mensagem para os súditos de Laio: um a um, apresentar-se à esfinge. Mas os enigmas
“A rainha Jocasta, mergulhada na tristeza pelo desa- eram indecifráveis e, uma a um, eles iam perecendo
parecimento de seu marido, manda um aviso a todos nas garras do monstro que tudo destruía e que não
os homens tebanos: o deus Apolo, irado com a morte tinha piedade de criatura alguma. A cidade de Tebas
do rei Laio, enviou uma esfinge para castigar a cidade. ia, desta forma, ficando sem os seus guerreiros, seus
Ela ficará na porta da cidade e lançará um enigma a homens, seus pedagogos, seus filósofos. A terra ia
todos quantos dela se aproximarem. Se forem mulhe- secando, pela falta de forças masculinas que a irrigas-
res, ela devorará. Se forem homens, ela os poupará, sem. Os rebanhos iam morrendo, porque não havia
desde que decifrem o enigma. A rainha Jocasta roga mais trabalhadores para os conduzir e defendê-los das
aos homens de Tebas que enfrentem o monstro e o feras. Tebas ia caindo nas trevas do desespero e da
destruam, para que a cidade volte a viver em paz.” miséria. Aquela cidade, que havia sido a maior de to-
A esfinge era um monstro sábio e terrível. Forma- das, via seus guerreiros mais valorosos morrerem pelo
do por um misto de mulher, serpente, leão e águia, ela poder do enigma.
guardava em si a argúcia desses três seres que vivem A rainha, então, tomou uma decisão mais forte.
na terra. Assim disse o arauto do palácio: “A nobre rainha Jo-
casta manda dizer aos seus súditos que, desde o de-
Figura 36: Édipo e a Esfinge. saparecimento de Laio, o reino de Tebas está vazio.
Ela encontra-se triste e abatida com a ausência de seu
rei e com a morte dos homens da cidade. Diz então,
a rainha, que promete o trono de Tebas para aquele
homem que, com coragem e inteligência, destruir a es-
finge que assola a todos com sua ira. O homem que
vencer terá a mão da rainha em casamento e passará,
com ela, a governar Tebas”.
Ora, Édipo já estava desanimado e abatido pelo
seu destino. Nunca se viu no direito de defender Te-
bas, pois que não era um tebano. Mas, diante da men-
sagem, encheu-se de uma nova coragem. Iria à esfin-
ge, sem dúvida. Caso a vencesse, deixaria de ser um
forasteiro e se tornaria rei de Tebas. Caso perdesse,
seria morto e sua maldição chegaria ao fim. Ele mes-
mo escreveria sua nova sentença.
Diante da esfinge, assombrado pela sua grandeza
e terror, Édipo ouviu o enigma: “Em toda a extensão da
terra, a natureza é sábia em produzir seres. Há os que
voam, os que rastejam, os que deslizam na superfície
das águas e em suas profundezas. Há sementes que
produzem flores e frutos, há sementes que se transfor-
mam em ervas, que alimentam os homens e perfumam
os campos. Dos seres da terra, há um que, de manhã,
é quadrúpede; mas ao meio dia, é bípede e, quando
chega o entardecer, só pode caminhar em três patas.
Eis o enigma: diga-me qual é este animal. Se tu não
me decifrares, serás devorado pelo meu saber, ditado
por Apolo, o grande deus da Verdade.”
Édipo não sabia a resposta. Mas deixou-se levar
pelo espelho dos olhos da esfinge. Neles, viu a si mes-
mo e respondeu: “Eu sou o maldito dos deuses. Eu
sou o homem que, na infância, caminhei com os quatro
membros, sob os cuidados carinhosos de minha mãe,
Mérope. Quando cresci e me fiz um homem, meu pai,
Pólibo, me deu coragem para caminhar nas duas per-
nas e erguer meu olhar. Quando, enfim, eu ficar velho
o bastante e não mais puder ser sustentado por mim
mesmo, hei de me apoiar no bordão, na bengala, que
comigo trilhará as estradas, até a morte.”
A esfinge eriçou-se de pavor. A verdade de Apolo
estava ali, na sua frente. Em sua vida de monstro,
Obra de Gustave Moreau 1864. jamais esteve diante de alguém que, assim como ela,
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Figura 37: Édipo e a Esfinge.
Tirésias, como vamos punir uma fera dos cam-
pos?”
“A fera que procuras, rainha, pode estar neste pa-
lácio, pois os pássaros viram a batalha que destruiu a
vida do infeliz e maldito Laio.” Édipo interveio: “E o que
mais os pássaros viram? Ordeno que digas a verdade,
Tirésias, ou serás condenado à morte, por não salvar
a cidade.” “Grande rei, não me peça para dizer o que
não queres ouvir”, disse o sábio. “Eu amo a verdade.
Não me oculto dela. Que ela seja clara como este dia,
como o Sol de Apolo, que acima de nós cuida de tudo
saber”, replicou Édipo.
Então, Tirésias disse a terrível verdade: “És tu
mesmo o assassino que procuras. És tu quem deve
ser punido, para que a cidade volte à paz de seus dias.
Condena-te, rei, de acordo com a justiça do teu cora-
ção.”
Neste momento, a rainha Jocasta deixa ecoar uma
retumbante gargalhada, que ecoa por todo o palácio.
“Por que assim ri minha rainha?”, pergunta Édipo.
“Ela ri de sua própria ignorância.” – sentencia Ti-
résias.
Jocasta, então, explica: “Não sou eu a ignoran-
Copo do sótão . Museu do Vaticano, Roma. Saiba mais em: te. O grande ignorante é Apolo, aquele que todos têm
http://www.cosmovisions.com/$Oedipe.htm#jRWDd3teXefeKQlb.99
como o deus da Verdade. Sabias, Édipo, que Apolo
mente?” “Impossível. Ele sempre diz a verdade. Diga-
reunisse num só corpo vários homens diferentes: pai, -nos, rainha, quando foi que o rei Laio desapareceu?”
irmão e esposo. Morreu a esfinge. Tebas fora, enfim, “Dias antes de Apolo enviar a esfinge. Ele saiu para
libertada. Édipo foi o seu libertador e, daquele dia em caçar com dois de seus servos e nunca mais voltou
diante, seria o seu rei. ao palácio.” Édipo sentiu-se estremecer: “Lembro-me
A própria rainha Jocasta recebeu o herói de Te- que, quando estava para entrar em Tebas, fui impedido
bas. Houve festas, houve casamento, houve alegria. por três homens com roupas de caçadores. Decerto
A cidade voltou a crescer. As pessoas voltaram a se que não sabia eu tratar-se do rei de Tebas. Do contrá-
alegrar nas praças e campos da cidade. A vida voltou rio, teria acatado suas ordens. Foi então que me pus a
com toda a força. Édipo se tornou o novo rei de Tebas, lutar com eles. Matei dois deles, com minhas próprias
habitando o palácio, junto à rainha. Eles se amavam. mãos e, desde este dia, entrei em Tebas. Não há dú-
Uma força imensa os unia. Tebas tornou-se novamen- vida... eu sou o assassino que deve ser punido, para o
te a maior cidade da Grécia. bem desta cidade que aprendi a amar.”
Juntos, tiveram quatro filhos, frutos desse amor: Mas Jocasta volta a gargalhar: “Apolo é o mais tolo
Etéocles, Polinices, Antígona e Ismênia. entre todos os imortais. E mesmo entre os mortais,
Depois de algum tempo, as chuvas cessaram de todos são mais sábios que ele. Anos passados ele
cair sobre os campos. Os rebanhos foram definhando havia sentenciado que seria morto pelas mãos de seu
e morrendo. A fome voltou a Tebas. Com a fome, veio próprio filho. Eis porque me alegro. Se tu mesmo ma-
a peste. A cidade ia caindo em uma profunda noite de taste Laio, a sentença de Apolo é vaga e tola: ele não
tristezas e lágrimas. Édipo e Jocasta sofriam com o morreu pelas mãos de seu filho.” Édipo, mais uma vez,
povo. Eram reis justos e amorosos. sentia o coração apertado em fogo: “Mas, foi esta a
Édipo mandou chamar Tirésias, o sábio cego, que sentença que recebi de Apolo: eu mesmo haveria de
ouvia a verdade no trinado dos pássaros. Ao chegar matar o meu pai e unir-me à minha mãe, em seu leito
no palácio, o sábio sentenciou: “As chuvas foram re- de amor.” Jocasta explica melhor: “Mas tu me disseste
tiradas pela deusa Deméter, aquela que faz a terra que viera de Corinto, sendo amado por Pólibo e Méro-
brotar. Ela secou a terra de Tebas a pedido do imor- pe – seu pai e sua mãe.” “Sim, mas me disseram que
tal Apolo. Os pássaros não emitem presságios, pois os reis de Corinto não eram meus pais.”
não encontram os frutos que alimentam seus ninhos. Tirésias, então, volta a declarar: “Os pássaros vi-
Mas, em seus gorjeios tristes, ouvi que não voltarão as ram que aquele menino que deveria ter sido abandona-
chuvas sobre a cidade até o dia que o rei descobrir e do na montanha, foi entregue a um pastor de ovelhas.
punir o assassino do rei Laio.” Jocasta ficou assusta- Ora, Apolo confundiu o servo. Ao invés de entregar o
da: “Mas não sabemos se o rei Laio foi assassinado. menino à morte, entregou-o ao rei de Corinto, o pró-
Ele saiu com dois servos para caçar... e nunca mais prio Pólibo, que cuidou do menino com afetos de pai.
retornou a Tebas. Na certa, alguma fera das florestas Os pássaros viram quando tu, Édipo, quis fugir do seu
o devorou... Diga, destino maldito mas, quanto mais acreditava afastar-
55

-se dele, mais se aproximava de teu pai, para matá-lo, se lhe configurava maior do que a sua própria vonta-
e de tua mãe, para amá-la como esposa. Está cumpri- de? O mito narra a trajetória de um jovem bondoso,
da minha tarefa. A cidade está perdida nas mãos dos imensamente dedicado aos seus pais e que, quando
malditos.” soube da maldição, procurou fugir de seu destino. No
entanto, quanto mais ele buscava escapar, mais ele
Figura 38: Édipo, o Rei Maldito.. corria em direção de sua própria destruição.

O mito de Édipo foi melhor divulgado pela


Psicanálise pois, segundo seu fundador, Sigmund
Freud, todas as pessoas já cultivaram desejos secretos
quando de sua infância. Os meninos desejaram a
morte do pai para se unirem à sua mãe. As meninas
desejaram a morte da mãe para ficarem com o pai. Em
razão disto, todos carregam um forte sentimento de
culpa e de angústia.

O mito de Édipo ilustra a fragilidade do ser humano


e da inconsistência de suas escolhas. Todos ficamos
compadecidos da tragédia deste jovem. Identificamo-
-nos com ele. Consideramos injustas todas as formas
de castigo e nos ligamos à sua história de forma íntima,
pois Édipo nos conta a nossa própria história. Estar
submisso ao destino parece-nos uma imposição muito
grande, de forma tal que não podemos nos considerar
inteiramente livres se temos que nos submeter a uma
Fonte: http://www.monologuedb.com/ Acesso em: 16/05/216 força superior à nossa. Assim é que consideramos que
Édipo foi injustiçado, pois não tinha condições de fazer
Édipo não pôde conter sua imensa tristeza e, escolhas – tudo o que lhe ocorria vinha pelas mãos
como rei, sentenciou: “Povo de Tebas, sou seu rei, o do destino. Édipo não era um homem livre. Ainda que
mais maldito entre todos. Eis minha última sentença: buscasse unicamente o bem de todos e de si mesmo,
de hoje em diante, condeno-me ao exílio. Sou banido havia uma força maior que o subjugava e o conduzia
para sempre da cidade. Poderia ter me condenado inexoravelmente para a destruição total.
à morte, mas a morte é um prêmio para mim. Devo A figura da esfinge surge também como um emble-
ser exilado, para viver como mendigo e sem lar, a fim ma, um desafio, um enigma a ser resolvido. Do ponto
de reparar todos os males que causei a mim, à minha de vista cotidiano, cada vez que vencemos um desafio
mãe, aos meus filhos e aos meus súditos. Nego-me nos preparamos para um outro novo, maior, mais forte,
a contemplar o Sol de Apolo, por ter desafiado sua que nos concede sempre a sensação de que podemos
Verdade.” Dizendo isto, furou os próprios olhos com continuamente vencer os próprios limites. No caso de
o broche de ouro que prendia suas vestes. A rainha Édipo, a esfinge trazia a maldição. Quanto mais Édi-
Jocasta, enforcou-se. po pensava que vencia a esfinge, mais ele era por ela
O palácio de Tebas mergulhava na solidão, mas a vencido. Quando ela elaborava o enigma, Édipo se
cidade estava salva da ira de Apolo. reconhecia e respondia com veracidade: o enigma é
“Que terrível mal recai, agora, sobre mim? Por o homem – o que engatinha na infância, está sobre
que o amor me trouxe ao sofrimento? Por que os as duas pernas na idade adulta e se apoia no bordão
deuses me retiraram das terras dos prazeres para me na velhice (quatro, duas e três patas). Mas, ao mesmo
deixarem nos monturos da dor? Perdido estou para tempo, Édipo decifrou o enigma porque se respondia
sempre. Perdida está minha mãe, o único amor de nele, ou seja, ele próprio era o homem – ele era, ao
minha vida. Perdidos para sempre estão meus filhos, mesmo tempo, o filho, o pai e o irmão naquela relação
de quem sou pai e irmão. Não fui o vencedor da esfin- incestuosa com sua mãe.
ge. Antes, foi ela quem me venceu ao me mostrar, no Vejamos, agora, o que a filosofia diz sobre a li-
espelho de seus olhos, que sou eu, ao mesmo tempo, berdade. Para tanto, vamos ler as considerações do
o filho de meus pais, o irmão de meus filhos e o espo- filósofo francês Jean-Paul Sartre. Antes da leitura,
so de minha mãe – o único ser que reúne sobre si o precisamos considerar que Sartre tem uma importan-
menino, o adulto e o ancião. Naquele dia em que eu te concepção sobre o ser humano. Para ele, não se
acreditava ter vencido a esfinge e me tornado o rei de pode falar em essência humana. Isto quer dizer que,
Tebas, na verdade, encontrei a miséria e a dor.” em suas concepções, o homem não está pronto e não
Neste mito, a liberdade é colocada em discussão. pode se fixar na ideia de dons naturais. Na verdade, o
Poderia Édipo ser considerado culpado por seus terrí- homem se constrói a si mesmo, ele se projeta a cada
veis atos se ele próprio era vítima de um destino que dia e somente ele é responsável pelo seu destino.
56

O texto a seguir é de Ilda Helena Marques e traz alguns conceitos cruciais da filosofia de Jean-Paul Sartre.

Liberdade divíduo mente para si próprio, tentando, desta


forma, ludibriar as responsabilidades que lhe
A existência antecede e ordena a essência e são pertencentes. “A má-fé é evidentemente
toda a vontade em se delimita. A liberdade faz-se uma mentira, pois dissimula a total liberdade
contraditória, pois a ela instaura-se como fun- do engajamento” (Sartre, 1989, p. 19).
damento de todas as essências. Portanto, para Ao considerar que um homem se esconde
Sartre, o único fundamento do ser é a liberdade. atrás de desculpas de suas paixões, que inven-
O homem escolhe o que projeta ser, usando de ta um determinismo, esse homem é um sujeito
sua liberdade. E os seus valores serão criados dotado de má-fé. Ele se encontra representan-
através da escolha por ele feita, escolha da qual do um eterno teatro.
não há como fugir, pois mesmo a recusa em não
escolher já é uma escolha. Assim, ao escolher, Deus
nota-se com evidência a sua liberdade. “A es-
colha é possível, em certo sentido, porém o que Ao colocar o homem como responsável por
não é possível é não escolher” (Sartre, 1987, p. sua existência, Sartre afirma ser um existen-
17). Na doutrina existencialista, a liberdade é cialista ateu. Desse modo, conclui que não há
conceituada de uma forma totalmente diferente uma natureza humana e que não há um Deus
da concepção clássica, ou seja, na concepção para originá-la. Com isso, o homem torna-se
clássica de liberdade é compreendida com livre responsável pela sua existência, mas não so-
arbítrio. Todavia, na visão sartreana, o conceito mente em relação à sua individualidade, este
de liberdade é diferente do simplesmente poder homem torna-se responsável também pelos
optar ou não por se fazer algo, ou seja, é agir com outros homens. “Portanto, a nossa responsa-
liberdade, incorporada à responsabilidade. A li- bilidade é muito maior do que poderíamos su-
berdade, no existencialismo, possui a capacida- por, pois ela engaja a humanidade inteira” (Sar-
de do sujeito encaminhar o que será de sua vida, tre, 1987, p. 7). E ao sermos responsáveis por
responsabilizando-o por seus atos. No entanto, nossa existência e pela existência dos outros
torna-se necessário ressaltar que essa liberdade homens, deparamo-nos com a angústia”.
é condicionada, pois é limitada pela sociedade e A não existência de Deus na filosofia exis-
suas regras, às quais devemos nos “submeter”. tencialista é, a princípio, o conceito de que tudo
E é devido a “essa” “submissão” que, em deter- é permitido, desse modo o homem encontra-se
minados momentos da vida, o homem entra em só, pois não pode procurar em Deus e nem no
conflito com o meio social, em que vive, isto é, mundo nada para se segurar, tendo respaldo
ao vivermos em sociedade deparamo-nos com somente em si próprio e em sua existência.
fatos sociais com os quais devemos conviver, Como diz Sartre (1987, p. 6): “O existencia-
para vivermos em comunidade. Sartre entende lismo ateu, que eu represento, é mais coerente.
que o homem, ao desejar a liberdade, a faz para Afirma que, se Deus não existe, há pelo menos
si e para toda a humanidade, tomando tal fato de um ser no qual a existência precede a essên-
caráter universal, isto é, quando o homem esco- cia, um ser existe antes de poder ser definido
lhe, o faz de maneira universal. por qualquer conceito: este ser é o homem”.
Nesse ponto, pode-se fazer um paralelo com Por conseguinte, encontramo-nos solitários,
o imperativo categórico de Kant, onde o ato do condenados à liberdade. E o fato da não exis-
indivíduo deve ter uma correspondência ética tência de Deus faz com que não tenhamos um
universal. paradigma e, consequentemente, não existem
Sem dúvida, a liberdade enquanto definição valores que devemos seguir, valores que lega-
do homem, não depende de outrem mas, logo lizem nosso modo de ser como correto ou não.
que existe um engajamento, o homem é forçado a O ateísmo existencialista não é compre-
querer, simultaneamente, a sua liberdade e a dos endido e aceito por outras formas de pensar.
outros, não pode ter objetivo a sua liberdade, a Todavia, o que Sartre pretende é que o homem
não ser que seu objetivo seja também a liberdade enxergue que, independente de Deus existir ou
dos outros (Sartre, 1987, p. 199). não, este não é o ponto fundamental. O neces-
sário é que o homem compreenda que nada
Má-fé poderá livrá-lo dele próprio, nem mesmo a con-
cretude de Deus.
A má-fé, segundo Sartre, não se trata de
um comportamento que o sujeito adota contra
outro sujeito, mas sim, contra ele próprio. O in- Ilda Helena Marques
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ANOTAÇÕES

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UNIDADE

OS CAMINHOS DO AMOR

Universidade Presidente Antônio Carlos - UNIPAC

UNIPAC ON-LINE
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A BUSCA PELA Figura 39: Cupido e Psique.

COMPLETUDE
Muitas são as constatações
que deixam o ser humano pen-
sativo e mergulhado nos senti-
mentos da angústia. Uma delas
é a certeza da morte. A outra é
a constatação de sua incomple-
tude. Sentir-se falho, imperfeito,
incompleto é um dos sentimentos
mais preocupantes do homem.
Ele queria ser autossuficiente,
queria conquistar o mundo com
sua própria força, queria fazer-se
inabalável e eterno. No entanto,
bem sabe, é frágil e carente de
afetos e de ternura. É um ser ca-
rente do outro, pois não pode vi-
ver sozinho.
Há aquelas afirmações que Obra de Jean-Louis David 1817.
consideram que aquelas atitudes
mais monstruosas tomadas por algumas pessoas, revelam o quanto lhes faltou ternura, o quanto elas foram priva-
das do amor, de olhares ternos, de palavras doces. A falta do amor, portanto, teria as levado ao mundo do crime e
da desordem. Desde que se compreende sozinho, o homem busca encontrar-se com outra pessoa. Investe neste
sentimento, organiza-se em torno dele para se fazer completo com a presença de alguém que também se permite
aproximar-se.
Para a filosofia, o amor é um sentimento que abre a todos a certeza de sermos falhos, de não sermos completos
e da necessidade do outro. Quando nos aproximamos de alguém escolhido para ser o depositário de nossos afetos,
temos a ilusão de que, por algum motivo, seremos plenos. Consideramos que o que nos falta está presente no outro
e, por este motivo, se nos unimos a ele, seremos completos. É uma ilusão. Mas, ao longo da História, vemos que
este é o sentido do amor.
Para os gregos, há o amor e o ódio – que não são contrários, mas complementares. Amor e ódio são irmãos.
Andam juntos. São companheiros inseparáveis. O contrário do amor é a indiferença. O ódio também é um sentimen-
to que indica investimento de afeto

OS CAMINHOS DO AMOR
partir de um mito importante para esta compreensão:
A BUSCA PELA COMPLETUDE
é o mito de Eros e Psique. Eros significa o Amor e Psi-
que significa a Alma. São personagens que representa
As pessoas, não raro, escolhem alguém para in-
a Alma Humana em busca pelo Amor.
vestirem seus afetos. E assim fazem, enquanto julga-
rem que este investimento é compensatório. Se, por
algum motivo, aquele que recebe o afeto desaparece EROS E PSIQUE
(por morte ou por abandono), o investidor do afeto vai
sentir uma grande tristeza – que designamos por luto.
Aquele era mais um dos corriqueiros dias na vida
O luto é um sentimento que nos mostra que o outro,
eterna dos imortais deuses gregos. A bela deusa Afro-
que recebia o nosso afeto, não existe mais. Então, o
dite, como sempre, amada e respeitada por sua beleza
mundo fica sem sentido, pois o objeto de nosso amor
sem igual, que atraía a si os olhares de homens de
deixou de existir. Todas as pessoas sentem tristeza. É
deuses. A doçura de suas formas e a firmeza de suas
um sentimento humano. Não há por que medicalizar a
palavras encantavam a todos. Afrodite vivia encanta-
tristeza. Em nossa sociedade, que apregoa a felicida-
dores momentos, recebendo as honras daqueles que
de sem limites, as pessoas sentem-se impossibilitadas
se espelhavam nela como ideal jamais alcançável de
de se entristecerem. No entanto, a tristeza é também
beleza. Não havia quem se aproximasse de seu altar e
nossa companheira e ela sempre aparece quando per-
não se comovia com a serenidade que a certeza traz.
cebemos que não temos mais onde investir afetos. Por
isto a filosofia se dispõe a pensar sobre o amor. Muitos
são os filósofos que tratam sobre este tema. Vamos
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Figura 40: Afrodite admirada. controu-a em sua beleza natural, em uma das praças
de cidade. Observou-a de longe e também se encan-
tou com a singeleza de seus traços. Mas a contem-
plação não era uma das características da deusa. Ela
jamais admiraria alguém. Tomada pela ira, chamou a
si, em segredo, o seu filho Eros, o deus do Amor. Ele
tinha o poder imenso de converter os corações para o
amor, para o ódio ou para a fria indiferença. Chamou-o
e lhe confidenciou sua tristeza:

Figura 41: Psique Entra no Jardim de Cupido.

Obra “La nascita di Venere” de William-Adolphe Bouguereau, 1879.

Mas, no mundo dos homens mortais, aos poucos


ia ganhando a graça da juventude a pequena Psique.
Ela ia, à medida que crescia, apresentando formas per-
feitas no corpo e, no seu caráter, ia sendo esculpido os
mais profundos sentimentos de amor, sobriedade, deli-
cadeza e doçura. Ao entrar na juventude, Psique cami-
nhava pelas ruas com graça e vigor. Seus passos eram
leves e a brisa abria-lhe passagem sempre que a via Obra de John William Waterhouse 1905.
chegar. Os pássaros, ao verem-na, gorjeavam felizes
diante da beleza que se humanizava. Ela tinha irmãs - Filho, meu filho eterno. O Amor mais puro está
belas, mas nenhuma se lhe igualava em amor e felici- em ti condensado. Todos os astros do universo se cur-
dade. Os olhos de todos iam, a cada dia, percebendo- vam diante de teus dons, pois és tu que os aproxima e
-a e se encantando com suas belas feições e perfeita os afasta. Se queres, podes provocar tormentas terrí-
simpatia. De tal modo que começou a se comparada veis e catástrofes, pois em ti está o poder de unir e se-
com Afrodite. Havia os que diziam que, finalmente, parar. Foi assim que separaste a noite e o dia, o frio e o
uma mortal suplantava a deusa em sua beleza. Havia calor, o arroubo e a paz, a calma e a euforia. Filho, meu
até quem dissesse que ela seria a própria Afrodite que, filho, dono dos mais ardentes desejos de meu coração,
cansada do mundo eterno, vinha a caminhar no meio escuta a dor de tua mãe. Vê como estou aflita diante
dos homens. Eram ditos, apenas. Por seu lado, Psique da solidão de meus altares. Os homens já não se in-
vivia sua vida calma com seu pai e irmãs e com eles clinam diante de mim, implorando meus encantos para
partilhava os ideais de felicidade – esses que estão no seus empreendimentos. Sou a mais desolada das deu-
meio dos homens. sas. O sol se pôs em meus olhos e, desde que surgiu
a mortal que rouba a minha beleza, já não há luz em
A beleza de Psique chegou até Afrodite. Ela per- minha eternidade. Só tu podes devolver-me a alegria.
cebeu que seus altares iam se esvaziando, pois as - Diga, minha mãe, o que foi que te causou tama-
pessoas tinham uma nova beleza a contemplar. Es- nho mal. Diga-me e eu irei apartar este ser de toda
tarreceu-se diante de uma mortal que lhe roubava as alegria da terra. Não posso suportar tuas lágrimas e,
admirações. Irou-se a deusa. Estremeceu-se em seus para mim, elas são como o trovão. Tua tristeza clama,
íntimos segredos femininos. Procurou por Psique. En- grita e eu, teu filho dileto, hei de trabalhar para que o
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sorriso do sol volte para sua face. Dize-me, pois, quem castelo para sua amada. Afastou perigos e doenças,
te causou tanta dor? reuniu belas flores e pássaros, trouxe tudo para o cas-
- Psique, a mortal, dona da beleza que encanta os telo e nele colocou Psique.
homens, tem sido a ruína de minha divindade. Eis que - Minha doce Alma, por ti enfrentei a ira de minha
a inveja corrói minha alma. Ao vê-la, sinto-me tomada mãe. Por ti, construí este castelo para amar-te eterna-
pelo desencanto e pela ira. É uma mulher que caminha mente. A partir de hoje, tu és a mais amada das mortais
suavemente pelas ruas desta cidade. Seus passos são pois eu, o deus do Amor, tomei-te por esposa. Eis que
suaves e inaudíveis. A natureza dotou-a de perfume e ficarás feliz em todos os teus dias e desfrutarás das
delicadeza. Ao passar pelos caminhos, as flores lhe mais doces presenças. Aqui, neste lugar, serás servida
saúdam com harmonia, oferecendo-se para embelezar todos os dias por servos amáveis, que a ti devotarão
mais ainda sua fronte e seus cabelos leves. Psique é todas as suas artes. Terás à tua disposição artistas,
bela, mas não pode destruir-me. Por isto, quero puni- floristas, cozinheiros, amas e pajens. Todos te servirão
-la. Filho meu, querido Eros, não me entenda mal. Não com ternura. Eu, teu amante, virei todas as noites para
sou a deusa da maldade. Quero apenas de volta os te amar. Mas proíbo-te contemplar-me, pois meus olhos
meus dias de glória que esta jovem me roubou. Casti- já encontraram em ti a mais suave de todas as bele-
gai-a, meu filho. Vá até onde ela repousa. Fira-a com zas. Somente tu és bela. Não me olhes, pois. Quando
sua flecha, de modo que ela se apaixone pelo homem for declinando a luz do dia – eis minha ordem – apague
mais horrível e vil e, desta forma, seus dias de sofri- todas as luzes do castelo. Vá tu mesma e toque delica-
mento destruam sua beleza para sempre. damente as chamas alimentadas pelo azeite de Atena.
Diante do clamor de sua mãe, Eros voou apres- Abra as janelas de nosso quarto e deita-te em nosso
sado para o leito de Psique. Encontrou-a adormecida, leito. Silencioso chegarei e me deitarei contigo para o
suave, acalentada pelos pássaros e perfumada pelas gozo de meus mais ardentes sonhos de amor.
flores do campo. Ele próprio encantou-se por ela. Sua Assim, pois, Psique passou a viver os seus dias,
mãe tinha razão: era a dona da beleza jamais contem- encantada com a ideia de ser amada pelo próprio deus
plada. Aproximou-se mais para contemplá-la com as do Amor e, à noite, deitar-se com ele e sentir a suavi-
flechas na mão, pronto a seguir as ordens de Afrodite. dade e vigor de seu corpo divino e imortal.
Mas a beleza encanta, atrais homens e deuses para No entanto, com o passar dos dias, Psique foi
caminhos brancos. Uma de suas setas o feriu e o deus tomada por uma tristeza Figura 43: O Rapto de Psique.
do Amor se viu apaixonado por Psique. constante e que ia se tor-
nando profunda. Queria ver
Figura 42: Psique e Eros: a confiança quebrada. suas irmãs e seu pai. Que-
ria dividir com eles sua ale-
gria. Queria correr de novo
pelos campos com suas ir-
mãs, enfeitar seus cabelos
com flores, cantar cantigas
alegres no final da tarde.
Confiou este desejo a seu
amado, que lhe disse:
- Bela Psique, ainda
que tenhas tudo aqui, não
posso me esquecer que és
a Alma Humana – incons-
tante e sonhadora, que
jamais encontra paz nes-
te mundo, mesmo sendo Obra de William Bouguereau (1895)

amada. Não te esqueça


que te espero. Vá, pois, ao encontro de teu pai e tuas
irmãs, pois o Amor não mantém ninguém preso para
Obra de John Roddam Spencer Stanhope - 1880. si. Vá e faze tua vontade. Mas volte. Estarei esperando
por você em nosso castelo. Quando fores, por certo
No entanto, era preciso seguir as ordens da deusa, que teus servos estarão tristes, esperando tua volta.
mas Eros estava de tal forma apaixonado pela peque- Mas vá. Vou esconder-te dos olhos de Afrodite para
na mortal que decidiu leva-la dali. Tomou-a enquanto que a ira não volta a ti.
dormia e levou-a ao mais alto rochedo. Lá ele a toma- Em uma tarde, Psique desceu os caminhos do ro-
ria por esposa e dela afastaria toda a ira de sua mãe. chedo, caminhou silenciosamente para não ser notada
Haveria de ficar oculta pelo amor e embalada pelos en- e chegou em sua casa paterna. Suas irmãs ficaram to-
cantos da ternura. madas pela alegria ao revê-la. Foi um reencontro ma-
Tomou Eros a pequena para si. Reuniu, pelo amor, ravilhado pela saudade. Ficaram conversando ao pé
belas e reluzentes rochas e cristais, fazendo erigir um do fogo da cozinha durante a noite. No dia seguinte,
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brincaram como crianças no meio das borboletas e dos Pensativa, Psique voltou ao castelo. Não estava
peixes. Chegou, no entanto, a hora de voltar. Suas ir- mais feliz. Sua alma estava consumida pela dúvida.
mãs, felizes pela presença de Psique, mas tomadas Não quis acreditar que seu amado a traía para destruí-
pela inveja, resolveram argumentar: -la. Era o mais doce e intenso amante. Por certo que
- Tu nos dizes que estás casada com o deus do suas irmãs estavam erradas.
Amor... Ficamos felizes com o teu destino mas, ao Chegou ao castelo à tarde. Os servos a aguarda-
mesmo tempo, preocupadas. Por que ele não se per- vam com rosas. Serviram um jantar esplêndido, en-
mite contemplar? Por que chega ao castelo somente feitando a mesa com pássaros e borboletas, que não
à noite? É uma proibição insensata. Fosse ele o gentil cessavam de alegrá-la com seus movimentos gracio-
Eros, não te proibiria vê-lo. Por certo que mente. Teu sos e suas cantigas de amor.
marido deve ser um monstro enviado por Afrodite, que A noite ia caindo e os servos foram se recolher.
finge te amar mas, por fim, te destruirá. Não te esque- Ficou Psique, pensativa. Seu coração palpitava quan-
ças, inocente Psique: o Amor quer ser visto e contem- do resolveu seguir os conselhos de suas irmãs. Tomou
plado. Se ele isto veta, não é o Amor. Toma, pois, nos- uma das lâmpadas e escondeu-a acesa.
so conselho. Guarda nossas palavras: à noite, quando Pegou uma espada e deixou-a debaixo da cama.
o sol de Apolo se esconder atrás das montanhas, não Ora, um leito de amor não pode ser maculado pelas
apague todas as lâmpadas. Conserva uma delas em armas da violência... Mas foi isto que ela decidiu.
segredo. Quando teu marido chegar, entrega-te a ele Eros, enfim, chegou. Amaram-se profundamente.
com ternura. Envolve-o em beijos e carícias. Volúpia. Os ares encheram-se de ternura. Os astros da noite
Quando, enfim, ele se cansar e adormecer, toma a cantaram a harmonia dos corações ardentes. Quando
lâmpada e a espada. Aproxima-te dele e, por certo, ve- estavam exaustos, o Amor encostou-se para descan-
rás um terrível monstro. Fere-o, pois, com a espada. sar.
Mostra que és mais forte que Afrodite. Destrói o mons-
Figura 45: Eros e Psique.
tro que te quer devorar.

Figura 44: A alma encantada pelo amor.

Obra de Antonio Canova 1783

Na hora mais calma da madrugada, quando os


olhos estão pesados e o sono conduz as imagens para
o misterioso caminho dos sonhos, Psique manteve-se
desperta. A dúvida lhe corroia o coração e lhe propunha
uma investigação que ela relutava em praticar. Eros lhe
era tão devotado... Tratava-lhe como uma princesa...
Havia desobedecido a própria mãe para defendê-la...
Seria ele um monstro? Não! Claro que não! E tenta-
va adormecer, mas a dúvida continuava a propor-lhe
conhecer a verdade. Bastaria a ela iluminar o rosto
daquele que adormecia a seu lado. Seria uma olhada
rápida, sem ruídos. Mas deveria encorajar-se imedia-
Fonte: artlira.blogspot.com Acesso em 15/02/2016 tamente. Logo a noite partiria e, com ela, seu amado.
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Coração aos pulos, visão adensada pelo medo, todos os dias, mas jamais me encontrará novamente.
Psique buscou a lâmpada de azeite. Com cuidado, Terás apenas rápidas ilusões quando pensares que,
aproximou-se da cama e iluminou o rosto de seu ama- finalmente, me reencontraste, mas não me disponibili-
do. Ficou sobressaltada. De fato, quem ali adormecido zarei novamente para ti. A verdade é a mesma: o Amor
estava era o próprio deus do Amor, com toda a sua não pode conviver com a desconfiança.
exuberância e beleza. Olhou devagar suas formas, en- E partiu.
cantou-se com a suavidade de sua respiração. O per-
fume de seu suor era intenso como as florestas verdes.
Psique estava tranquilizada. Ela não estava sendo
Uma das mensagens mais eloquentes deste mito é
enganada pelo seu amante. Aquele que ali estava era
a constatação de que a Alma Humana não pode viver
o Amor – não havia como negar.
sem o amor. Vive procurando por ele, mas ele sempre
Figura 46: O despertar de Eros.
lhe escapa. Ela tenta encontrá-lo, mas não o pode ver.
Outra questão importante é a relação impossível entre
o Amor e a desconfiança.

Depois da leitura deste mito, passemos à leitura


de uma poesia de Fernando Pessoa sobre o mesmo
tema:
EROS E PSIQUE
FERNANDO PESSOA

Conta a lenda que dormia


Uma Princesa encantada
Obra Amore e Psiche de Giuseppe Maria Crespi
A quem só despertaria
Um Infante, que viria
A ingênua Psique estava tão encantada que não Do além do muro da estrada.
percebeu que o azeite da lâmpada começo a derramar Ele tinha que, tentado,
e, gota a gota, deslizou nos ombros de Eros. Ele des- Vencer o mal e o bem,
pertou no sobressalto. Antes que, já libertado,
- Tola Psique, duvidaste de mim? Deixasse o caminho errado
- Não, meu amado, claro que não? Por o que à Princesa vem.
- Por que, então, quebraste nosso acordo e vieste, A Princesa adormecida,
Se espera, dormindo espera.
na escuridão da noite, contemplar o meu rosto? Não
Sonha em morte a sua vida,
havia te proibido de ver-me? Não era esta a nossa con-
E orna-lhe a fronte esquecida,
dição? Acaso não rompi as ordens da deusa Afrodite
Verde, uma grinalda de hera.
para te proteger? Acaso não erigi para você este cas-
Longe o Infante, esforçado,
telo e nele coloquei os mais fiéis servos para te enche-
Sem saber que intuito tem,
rem de alegria? Não fui para ti o mais intenso amante? Rompe o caminho fadado.
O que te faltou? A verdade? Não fui o único a te dizer Ele dela é ignorado.
a verdade todos os dias? Ela para ele é ninguém.
- Sim, tu és tudo para mim. Não me iludo. Tu és o Mas cada um cumpre o Destino -
verdadeiro Eros. Ela dormindo encantada,
- Mas eu já havia dito isto a ti. Por que duvidaste? Ele buscando-a sem tino
- Minhas irmãs me fizeram crer que eras um mons- Pelo processo divino
tro e que querias devorar-me. Que faz existir a estrada.
- Tola Psique, acaso sou eu um monstro? Acaso E, se bem que seja obscuro
quer o Amor devorar alguém? O Amor não devora. O Tudo pela estrada fora,
Amor não destrói. O Amor não mata. E tu, o que fa- E falso, ele vem seguro,
zias? Querias matar-me? Por que trazes esta espada? E, vencendo estrada e muro,
Não sabes que sou imortal? Chamo-te tola, mas o tolo Chega onde em sono ela mora.
sou eu mesmo, que confiei em ti e construí para ti este E, inda tonto do que houvera,
leito de amores e delícias. Leito que maculaste com À cabeça, em maresia,
tua maldade. Vou-me para sempre, Psique. Ergue a mão , e encontra hera,
- Imploro-te que voltes esta noite. E vê que ele mesmo era
- Impossível. Não voltarei mais. À noite, este caste- A Princesa que dormia.
lo não mais existirá. Todas as suas delícias serão apa-
gadas. Partirei para sempre. Tu tentarás me alcançar Fernando Pessoa
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No mito grego, a Alma é frágil e inconstante, ao que, na linguagem, designa o sexo feminino). Os an-
passo que o Amor se apresenta como forte e verda- dróginos eram, pois completos. Eram fortes e ágeis, o
deiro. que faltava à parte feminina era complementada pela
Por estas questões, a filosofia se põe a perguntar: parte masculina.
como se relaciona a alma dos homens com o amor? Por isto, nada lhes faltava. Com tal disposição, eles
Que sentimento é este que arrebata as pessoas? se sentiam seres superiores e se aproximavam dos
Como elas se portam quando amam? E quando não deuses. Estes, por sua vez, temendo a força dos an-
amam? Seria possível não amar? Tanto no mito quanto dróginos, deliberaram e decidiram cindi-los, separando
na filosofia, o amor é um sentimento que se concretiza as partes e dividindo-as em macho e fêmea. A partir
com a presença do outro. É pelo amor que se reali- de tal cisão, os andróginos deixaram de ser completos
zam os encontros que tornam a vida humana possível. e se sentiram faltosos de alguma parte. Foram então,
A ausência do amor seria a total indiferença, a falta procurando-se – como quem procura a alma gêmea,
completa de investimentos. Em um de seus diálogos, a outra metade, o que permitiria a plena felicidade. O
o filósofo Platão falou sobre o Amor. O diálogo se cha- Amor, portanto, desempenha seu papel de unir as pes-
ma O Banquete (ou Simpósio - do grego Συμπόσιον) soas, fazendo-as sentirem felizes novamente. Embo-
e foi escrito em 380 a.C. Nas considerações que faz, ra saibamos que toda completude é ilusória, mesmo
Platão propõe que o Amor seja considerado o mais assim buscamos pelo outro e queremos sua presença
importante dos deuses, devendo a ele ser devotadas constante em nossas vidas. De acordo com Platão, o
todas as honras, pois é ele quem une e faz possível Amor desconhece as diferenças sexuais do ponto de
todas as coisas. Ao se banquetearem, os filósofos vão vista biológico. Assim é que, se alguém encontra, em
tecendo considerações sobre este sentimento. Alguns pessoas do mesmo sexo, aquilo que lhe complementa-
retomam um importante aspecto mítico que muito tem ria, tenderá a se aproximar desse alguém, pois o Amor
a dizer sobre o Amor. Trata-se do mito dos andróginos. que une não se preocupa com diferenças biológicas de
Os andróginos eram seres que se formavam de am- sexo, idade, raça ou condição social. O Amor é forte,
bos os sexos. Eles eram homens e mulheres (andros soberano, verdadeiro.
é uma palavra grega que significa homem e ginos está
relacionado à partícula gen, que tem a ideia de gerar e

Vamos ler uma parte do texto de Platão para melhor compreendermos o que ele diz:

Figura 47: O Banquete ou Simpósio, diálogo de Platão.

Obra de Anselm Feuerbach.

Assim, de muitos lados se reconhece que -amado. Aquilo que, com efeito, deve dirigir toda
Amor é entre os deuses o mais antigo. E sendo o a vida dos homens, dos que estão prontos a vivê-
mais antigo é para nós a causa dos maiores bens. -la nobremente, eis o que nem a estirpe pode in-
Não sei eu, com efeito, dizer que haja maior bem cutir tão bem, nem as honras, nem a riqueza, nem
para quem entra na mocidade do que um bom nada mais, como o amor. A que é então que me
amante, e para um amante, do que o seu bem- refiro? À vergonha do que é feio e ao apreço do
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que é belo. Não é com efeito possível, sem isso, resumo, a ciência dos fenômenos de amor, pró-
nem cidade nem indivíduo produzir grandes e be- prios ao corpo, no que se refere à evacuação, e o
las obras. Afirmo eu então que todo homem que que nestes fenômenos reconhece o belo amor e
ama, se fosse descoberto a fazer um ato vergo- o feio é o melhor médico; igualmente, aquele que
nhoso, ou a sofrê-lo de outrem sem se defender faz com que eles se transformem, de modo a que
por covardia, visto pelo pai não se envergonharia se adquira um em vez do outro, e que sabe tanto
tanto, nem pelos amigos nem por ninguém mais, suscitar amor onde não há mas deve haver, como
como se fosse visto pelo bem amado. E isso mes- eliminar quando há, seria um bom profissional.
mo é o que também no amado nós notamos, que É de fato preciso ser capaz de fazer com que os
é sobretudo diante dos amantes que ele se enver- elementos mais hostis no corpo fiquem amigos
gonha, quando surpreendido em algum ato ver- e se amem mutuamente. Ora, os mais hostis são
gonhoso. Se por conseguinte algum meio ocor- os mais opostos, como o frio ao quente, o amar-
resse de se fazer uma cidade ou uma expedição go ao doce, o seco ao úmido, e todas as coisas
de amantes e de amados, não haveria melhor ma- desse tipo; foi por ter entre elas suscitado amor e
neira de a constituírem senão afastando-se eles concórdia que o nosso ancestral Asclépio, como
de tudo que é feio e porfiando entre si no apreço dizem estes poetas aqui e eu acredito, constituiu
à honra; e quando lutassem um ao lado do outro, a nossa arte. A medicina portanto, como estou di-
tais soldados venceriam, por poucos que fossem, zendo, é toda ela dirigida nos traços deste deus,
por assim dizer todos os homens. Pois um ho- assim como também a ginástica e a agricultura;
mem que está amando, se deixou seu posto ou e quanto à música, é a todos evidente, por pouco
largou suas armas, aceitaria menos sem dúvida que se lhe preste atenção, que ela se comporta
a idéia de ter sido visto pelo amado do que por segundo esses mesmos princípios, como prova-
todos os outros, e a isso preferiria muitas vezes velmente parece querer dizer Heráclito, que aliás
morrer. E quanto a abandonar o amado ou não em sua expressão não é feliz.
socorrê-lo em perigo, ninguém há tão ruim que o “Na verdade, Erixímaco, disse Aristófanes, é
próprio Amor não o torne inspirado para a virtu- de outro modo que tenho a intenção de falar, dife-
de, a ponto de ficar ele semelhante ao mais gene- rente do teu e do de Pausânias. Com efeito, pare-
roso de natureza; e sem mais rodeios, o que dis- ce-me os homens absolutamente não terem per-
se Homero “do ardor que a alguns heróis inspira cebido o poder do amor, que se o percebessem,
o deus”, eis o que o Amor dá aos amantes, como os maiores templos e altares lhe preparariam, e
um dom emanado de si mesmo. os maiores sacrifícios lhe fariam, não como agora
Com efeito, quanto a ser duplo o Amor, pare- que nada disso há em sua honra, quando mais
ce-me que foi uma bela distinção; que porém não que tudo deve haver. É ele com efeito o deus mais
está ele apenas nas almas dos homens, e para amigo do homem, protetor e médico desses ma-
com os belos jovens, mas também nas outras les, de cuja cura dependeria sem dúvida a maior
partes, e para com muitos outros objetos, nos felicidade para o gênero humano. Tentarei eu por-
corpos de todos os outros animais, nas plantas tanto iniciar-vos em seu poder, e vós o ensinareis
da terra e por assim dizer em todos os seres é aos outros. Mas é preciso primeiro aprenderdes
o que creio ter constatado pela prática da medi- a natureza humana e as suas vicissitudes. Com
cina, a nossa arte; grande e admirável é o deus, efeito, nossa natureza outrora não era a mesma
e a tudo se estende ele, tanto na ordem das coi- que a de agora, mas diferente. Em primeiro lugar,
sas humanas como entre as divinas. Ora, eu co- três eram os gêneros da humanidade, não dois
meçarei pela medicina a minha fala, a fim de que como agora, o masculino e o feminino, mas tam-
também homenageemos a arte. A natureza dos bém havia a mais um terceiro, comum a estes
corpos, com efeito, comporta esse duplo Amor; o dois, do qual resta agora um nome, desaparecida
sadio e o mórbido são cada um reconhecidamen- a coisa; andrógino era então um gênero distinto,
te um estado diverso e dessemelhante, e o des- tanto na forma como no nome comum aos dois,
semelhante deseja e ama o dessemelhante. Um ao masculino e ao feminino, enquanto agora nada
portanto é o amor no que é sadio, e outro no que mais é que um nome posto em desonra. Depois,
é mórbido. E então, assim como há pouco Pausâ- inteiriça era a forma de cada homem, com o dorso
nias dizia que aos homens bons é belo aquiescer, redondo, os flancos em círculo; quatro mãos ele
e aos intemperantes é feio, também nos próprios tinha, e as pernas o mesmo tanto das mãos, dois
corpos, aos elementos bons de cada corpo e sa- rostos sobre um pescoço torneado, semelhan-
dios é belo o aquiescer e se deve, e a isso é que tes em tudo; mas a cabeça sobre os dois rostos
se o nome de medicina, enquanto que aosmaus opostos um ao outro era uma só, e quatro orelhas,
e mórbidos é feio e se deve contrariar, se vai ser dois sexos, e tudo o mais como desses exemplos
um técnico. É com efeito a medicina, para falar em se poderia supor. E quanto ao seu andar, era tam-
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bém ereto como agora, em qualquer das duas di- mutilou em duas, ansiava cada um por sua pró-
reções que quisesse; mas quando se lançavam a pria metade e a ela se unia, e envolvendo-se com
uma rápida corrida, como os que cambalhotando as mãos e enlaçando-se um ao outro, no ardor
e virando as pernas para cima fazem uma roda, do de se confundirem, morriam de fome e de inér-
mesmo modo, apoiando-se nos seus oito mem- cia em geral, por nada quererem fazer longe um
bros de então, rapidamente eles se locomoviam do outro. E sempre que morria uma das metades
em círculo. Eis por que eram três os gêneros, e e a outra ficava, a que ficava procurava outra e
tal a sua constituição, porque o masculino de iní- com ela se enlaçava, quer se encontrasse com a
cio era descendente do sol, o feminino da terra, e metade do todo que era mulher - o que agora cha-
o que tinha de ambos era da lua, pois também a mamos mulher — quer com a de um homem; e
lua tem de ambos; e eram assim circulares, tanto assim iam-se destruindo. Tomado de compaixão,
eles próprios como a sua locomoção, por terem Zeus consegue outro expediente, e lhes muda o
semelhantes genitores. Eram por conseguinte de sexo para a frente - pois até então eles o tinham
uma força e de um vigor terríveis, e uma grande para fora, e geravam e reproduziam não um no
presunção eles tinham; mas voltaram-se contra outro, mas na terra, como as cigarras; pondo as-
os deuses, e o que diz Homero de Efialtes e de sim o sexo na frente deles fez com que através
Otes é a eles que se refere, a tentativa de fazer dele se processasse a geração um no outro, o
uma escalada ao céu, para investir contra os deu- macho na fêmea, pelo seguinte, para que no enla-
ses. Zeus então e os demais deuses puseram-se ce, se fosse um homem a encontrar uma mulher,
a deliberar sobre o que se devia fazer com eles, que ao mesmo tempo gerassem e se fosse cons-
e embaraçavam-se; não podiam nem matá-los e, tituindo a raça, mas se fosse um homem com um
após fulminá-los como aos gigantes, fazer desa- homem, que pelo menos houvesse saciedade em
parecer-lhes a raça - pois as honras e os templos seu convívio e pudessem repousar, voltar ao tra-
que lhes vinham dos homens desapareceriam balho e ocupar-se do resto da vida. E então de
— nem permitir-lhes que continuassem na im- há tanto tempo que o amor de um pelo outro está
piedade. Depois de laboriosa reflexão, diz Zeus: implantado nos homens, restaurador da nossa
“Acho que tenho um meio de fazer com que os antiga natureza, em sua tentativa de fazer um só
homens possam existir, mas parem com a intem- de dois e de curar a natureza humana. Cada um
perança, tornados mais fracos. Agora com efeito, de nós portanto é uma téssera complementar de
continuou, eu os cortarei a cada um em dois, e ao um homem, porque cortado como os linguados,
mesmo tempo eles serão mais fracos e também de um só em dois; e procura então cada um o seu
mais úteis para nós, pelo fato de se terem tomado próprio complemento. Por conseguinte, todos os
mais numerosos; e andarão eretos, sobre duas homens quesão um corte do tipo comum, o que
pernas. Se ainda pensarem em arrogância e não então se chamava andrógino, gostam de mulhe-
quiserem acomodar-se, de novo, disse ele, eu res, e a maioria dos adultérios provém deste tipo,
os cortarei em dois, e assim sobre uma só perna assim como também todas as mulheres que gos-
eles andarão, saltitando.” tam de homens e são adúlteras, é deste tipo que
Logo que o disse pôs-se a contar os homens provêm.
em dois, como os que cortam as sorvas para a Todas as mulheres que são o corte de uma
conserva, ou como os que cortam ovos com mulher não dirige muito sua atenção aos ho-
cabelo; a cada um que cortava mandava Apolo mens, mas antes estão voltadas para as mulhe-
voltar-lhe o rosto e a banda do pescoço para o res e as amiguinhas provêm deste tipo. E todos
lado do corte, a fim de que, contemplando a pró- os que são corte de um macho perseguem o ma-
pria mutilação, fosse mais moderado o homem, cho, e enquanto são crianças, como cortículos
e quanto ao mais ele também mandava curar. do macho, gostam dos homens e se comprazem
Apolo torcia-lhes o rosto, e repuxando a pele de em deitar-se com os homens e a eles se enlaçar,
todos os lados para o que agora se chama o ven- e são estes os melhores meninos e adolescen-
tre, como as bolsas que se entrouxam, ele fazia tes, os de natural mais corajoso. Dizem alguns,
uma só abertura e ligava-a firmemente no meio é verdade, que eles são despudorados, mas es-
do ventre, que é o que chamam umbigo. As ou- tão mentindo; pois não é por despudor que fazem
tras pregas, numerosas, ele se pôs a polir, e a isso, mas por audácia, coragem e masculinidade,
articular os peitos, com um instrumento seme- porque acolhem o que lhes é semelhante. Uma
lhante ao dos sapateiros quando estão polindo prova disso é que, uma vez amadurecidos, são
na forma as pregas dos sapatos; umas poucas os únicos que chegam a ser homens para a polí-
ele deixou, as que estão à volta do próprio ventre tica, os que são desse tipo. E quando se tornam
e do umbigo, para lembrança da antiga condição. homens, são os jovens que eles amam, e a casa-
Por conseguinte, desde que a nossa natureza se mentos e procriação naturalmente eles não lhes
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dão atenção, embora por lei a isso sejam força- mem deve seguir, celebrando-o em belos hinos, e
dos, mas se contentam em passar a vida um com compartilhando do canto com ele encanta o pen-
o outro, solteiros. Assim é que, em geral, tal tipo samento de todos os deuses e homens.
torna-se amante e amigo do amante, porque está São esses então os casos de amor em que
sempre acolhendo o que lhe é aparentado. Quan- talvez, ó Sócrates, também tu pudesses ser inicia-
do então se encontra com aquele mesmo que é do; mas, quanto à sua perfeita contemplação, em
a sua própria metade, tanto o amante do jovem vista da qual é que esses graus existem, quando
como qualquer outro, então extraordinárias são se procede corretamente, não sei se serias capaz;
as emoções que sentem, de amizade, intimidade em todo caso, eu te direi, continuou, e nenhum
e amor, a ponto de não quererem por assim di- esforço pouparei; tenta então seguir-me se fores
zer separar-se um do outro nem por um pequeno capaz: deve com efeito, o que corretamente se en-
momento. E os que continuam um com o outro caminha a esse fim, começar quando jovem por
pela vida afora são estes, os quais nem saberiam dirigir-se aos belos corpos, e em primeiro lugar,
dizer o que querem que lhes venha da parte de se corretamente o dirige o seu dirigente, deve ele
um ao outro. A ninguém com efeito pareceria que amar um só corpo e então gerar belos discursos;
se trata de união sexual, e que é porventura em depois deve ele compreender que a beleza em
vista disso que um gosta da companhia do outro qualquer corpo é irmã da que está em qualquer
assim com tanto interesse; ao contrário, que uma outro, e que, se se deve procurar o belo na forma,
coisa quer a alma de cada um, é evidente, a qual muita tolice seria não considerar uma só e a mes-
coisa ela não pode dizer, mas adivinha o que quer ma a beleza em todos os corpos; e depois de en-
e o indica por enigmas. Se diante deles, deitados tender isso, deve ele fazer-se amante de todos os
no mesmo leito, surgisse Hefesto e com seus ins- belos corpos e largar esse amor violento de um
trumentos lhes perguntasse: Que é que quereis, só, após desprezá-lo e considerá-lo mesquinho;
ó homens, ter um do outro?, e se, diante do seu depois disso a beleza que está nas almas deve
embaraço, de novo lhes perguntasse: Porventu- ele considerar mais preciosa que a do corpo, de
ra é isso que desejais, ficardes no mesmo lugar modo que, mesmo se alguém de uma alma gentil
o mais possível um para o outro, de modo que tenha todavia um escasso encanto, contente-se
nem de noite nem de dia vos separeis um do ou- ele, ame e se interesse, e produza e procure dis-
tro? Pois se é isso que desejais, quero fundir-vos cursos tais que tornem melhores os jovens; para
e forjar-vos numa mesma pessoa, de modo que que então seja obrigado a contemplar o belo nos
de dois vos tomeis um só e, enquanto viverdes, ofícios e nas leis, e a ver assim que todo ele tem
como uma só pessoa, possais viver ambos em um parentesco comum, e julgue enfim de pouca
comum, e depois que morrerdes, lá no Hades, em monta o belo no corpo; e que veja também a be-
vez de dois ser um só, mortos os dois numa mor- leza das ciências, e olhando para o belo já mui-
te comum; mas vede se é isso o vosso amor, e se to, sem mais amar como um doméstico a beleza
vos contentais se conseguirdes isso. Depois de individual de um criançola, de um homem ou de
ouvir essas palavras, sabemos que nem um só di- um só costume, não seja ele, nessa escravidão,
ria que não, ou demonstraria querer outra coisa, miserável e um mesquinho discursador, mas vol-
mas simplesmente pensaria ter ouvido o que há tado ao vasto oceano do belo e, contemplando-o,
muito estava desejando, sim, unir-se e confundir- muitos discursos belos e magníficos ele produza,
-se com o amado e de dois ficarem um só. e reflexões, em inesgotável amor à sabedoria, até
É ele [o Amor] que nos tira o sentimento de que aí robustecido e crescido contemple ele uma
estranheza e nos enche de familiaridade, promo- certa ciência, única, tal que o seu objeto é o belo.
vendo todas as reuniões deste tipo, para mutu- Tenta agora prestar-me a máxima atenção possí-
amente nos encontrarmos, tornando-se nosso vel.
guia nas festas, nos coros, nos sacrifícios; incu- Eis, com efeito, em que consiste o proceder
tindo brandura e excluindo rudeza; pródigo de corretamente nos caminhos do amor ou por ou-
bem-querer e incapaz de mal-querer; propício e tro se deixar conduzir: em começar do que aqui
bom; contemplado pelos sábios e admirado pe- é belo e, em vista daquele belo, subir sempre,
los deuses; invejado pelos desafortunados e con- como que servindo-se de degraus, de um só para
quistado pelos afortunados; do luxo, do requinte, dois e de dois para todos os belos corpos, e dos
do brilho, das graças, do ardor e da paixão, pai; belos corpos para os belos ofícios, e dos ofícios
diligente com o que é bom e negligente com o que para as belas ciências até que das ciências acabe
é mau; no labor, no temor, no ardor da paixão, no naquela ciência, que de nada mais é senão da-
teor da expressão, piloto e combatente, protetor quele próprio belo, e conheça enfim o que em si
e salvador supremo, adorno de todos os deuses e é belo. Nesse ponto da vida, poderia o homem
homens, guia belíssimo e excelente, que todo ho- viver, a contemplar o próprio belo. Se algum dia
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o vires, não é como ouro ou como roupa que ele que é vida vã a de um homem a olhar naquela di-
te parecerá ser, ou como os belos jovens adoles- reção e aquele objeto, com aquilo com que deve,
centes, a cuja vista ficas agora aturdido e dispos- quando o contempla e com ele convive? Ou não
to, tu como outros muitos, contanto que vejam consideras, disse ela, que somente então, quan-
seus amados e sempre estejam com eles, a nem do vir o belo com aquilo com que este pode ser
comer nem beber, se de algum modo fosse pos- visto, ocorrer-lhe-á produzir não sombras de vir-
sível, mas a só contemplar e estar ao seu lado. tude, porque não é em sombra que estará tocan-
Que pensamos então que aconteceria, disse ela, do, mas reais virtudes, porque é no real que esta-
se a alguém ocorresse contemplar o próprio belo, rá tocando?
nítido, puro, simples, e não repleto de carnes, hu-
manas, de cores e outras muitas ninharias mor-
tais, mas o próprio divino belo pudesse ele em
sua forma única contemplar? Porventura pensas

Após a leitura deste texto, podemos compreen-


der como os filósofos viam o Amor e quais são as
formas de amar por eles discutidas. A imagem de
No século XIX, o fundador da Psicanálise admitiu
Eros, como aquela força capaz de unir pessoas e que o homem é movido por dois tipos de pulsões, ou
coisas se faz presente em suas falas. O amor não energias psíquicas: uma que o leva a construir e se
apenas aproxima pessoas, mas é capas de construir aproximar (chamada de Eros – Amor) e outra que
reinos e vencer batalhas, bem como direcionar o ho- o leva a destruir e afastar (chamada de Thanatos –
mem no caminho do conhecimento, dado seu amor Morte).
à sabedoria. É o Amor, portanto, o deus responsável
por todas as realizações humanas.

ANOTAÇÕES

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UNIDADE

ARTE E BELEZA

Jussara Fernandes Leite

Universidade Presidente Antônio Carlos - UNIPAC

UNIPAC ON-LINE
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Figura 48: Monalisa.
A ARTE E O HOMEM
Desde que estudamos as formas de o homem
se relacionar com os fenômenos, aprendemos que
a manifestação artística sempre esteve presente.
Sendo uma forma do fazer humano, a arte signifi-
ca muito para a compreensão das pessoas, como
elas constroem o espaço onde vivem e como elas
se constroem a si mesmas. Em filosofia, a produção
artística significa uma vontade de se aproximar da
Beleza, pois o que é Belo encanta o ser humano.
Não é raro que nos surpreendamos diante de um
pôr-do-sol vibrante; ou com belas aves; ou com a
harmonia da música; ou com a suavidade das cores.
A beleza nos faz sentir melhores. O contato com a
arte faz com que as pessoas tragam a beleza para
dentro de si mesmas. Quando têm possibilidade de
acesso à arte, o homem tende à evolução, deixa de
querer mal, procura organizar-se. Não que a arte seja
mágica, mas o próprio ser humano compreende que,
por meio da arte, ele tem a possibilidade de ser gran-
dioso. Durante a história, a vontade de embelezar o
mundo sempre esteve presente nas ações humanas.
As representações divinas sempre mostram seres
belos. A beleza tem relações com a sociedade e a
época. Determinados padrões de beleza são válidos
para algumas pessoas enquanto que, para outros,
eles não seriam capazes de representar a beleza
tal qual imaginam. Podemos dizer que a beleza tem
uma conotação ideal. Isto quer dizer que terá sempre
formatos diferentes para se referir a um Belo abs-
trato, maior, indisponível para os olhos inconstantes
do homem. Já é bem conhecida a afirmação: “Só se
vê bem com o coração. O essencial é invisível aos Obra de Leonardo Da Vinci, 1503-1507

olhos.” Este essencial pode ser a Beleza em plenitu-


de, que todos buscam nas produções artísticas, mas que só pode ser alcançada em parte. Por isto, os artistas são
respeitados. Eles trazem a imagem de uma época e conseguem retratar as expectativas de um povo. Assim é que
compreendemos que respeitar a arte é respeitar o povo que a produziu. A beleza pode ser representada de várias
formas diferentes: escultura, arquitetura, pintura, música, danças. Todas essas formas são imagem de um povo e,
por isto, devem ser respeitadas.

ARTE E BELEZA pessoas se submetam a uma certa ordem de coisas


A ARTE E O HOMEM e se coloquem em busca de um ideal de beleza nem
sempre alcançável? Todos sabemos que existe uma
O que é belo é belo aos olhos. Isto basta. No en- indústria em torno da beleza. Existe uma forma de or-
tanto, o que é bom, pode se tornar subitamente belo. ganização de trabalho que visa ao lucro, utilizando o
O Bom e o Belo estão unidos. A imagem de um é a desejo do Belo como objeto de consumo. Nesta con-
imagem do outro. Não raro, consideramos belo alguém cepção, são organizadas falas e imagens que, à sua
que é simplesmente bom, ainda que não corresponda maneira, divulgam um ponto de vista – que se arroga
aos padrões de beleza ditados por uma sociedade em o poder de ser o único ponto de vista válido. Então, as
uma determinada época. Ao estudarmos a beleza do pessoas acabam por perseguir aquele modelo ditado
ponto de vista filosófico, haveremos que nos atentar e, em alguns casos, percebem que uma contemplação
para modelos definidos e partirmos para o questiona- exagerada de si mesmo pode o conduzir à morte, à
mento: quem define o modelo? A quem foi dado o po- destruição total, além de afastar o outro, a quem po-
der de dizer e demonstrar a todos o que é belo e o que deria amar e admirar, ao mesmo tempo em que seria
é feio? Quem possui tal autoridade, de fazer com que amado e admirado. Contemplar-se a si mesmo pode
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ser o cultivo de uma imagem para o outro. Nós, hu- nho, o sujeito não é capaz de grandes construções e
manos, não somos simplesmente os seres prontos grandes conquistas. Para discutirmos as relações do
da natureza. Somos serem em constante construção. homem com a Beleza, vamos ler um mito importante
Ao construirmo-nos, levamos em consideração nos- da cultura grega. É o mito de Narciso e da ninfa Eco.
sos projetos e também a presença do outro. É uma
relação que não pode se fazer sem se levar em conta
esses dois aspectos: o que quero de mim mesmo e o
que quero dar ao outro – aquele que comigo partilha
o mundo. Qualquer exagero em um dos dois lugares
seria prejudicial à pessoa. Um olhar exagerado para o
outro faz com que ele seja o único e grande responsá-
vel pelas decisões do indivíduo; um olhar exagerado
sobre si mesmo anula completamente o outro e, sozi-

NARCISO E ECO
Figura 49: Eco e Narciso John William Waterhouse, 1903. Walker Art Gallery, Liverpool.

Obra de John William Waterhouse, 1903. Walker Art Gallery, Liverpool.

Era uma linda ninfa. Seu nome era Eco. Filha do ses, mais irrequietas ficavam e mais riam entre si da
Rio com a Terra. Alegre e jovial, ela percorria as planí- fragilidade dos deuses. Viviam suas vidas assim, des-
cies em graciosos passeios e diversões por todo o dia. preocupadas de tudo e de todos. Nada poderia afetar
Tinha muitas irmãs, todas alegres e afoitas como an- a paz e a beleza das ninfas.
dorinhas. Riam enquanto nadavam nas águas quentes Houve um dia em que Zeus não se conteve. Seu
do rio e quando perseguiam borboletas no meio das poder era imenso demais para que ele se conformasse
flores. Mesmo no meio das tempestades, elas não se à vida eterna no Olimpo a deliberar sobre o destino dos
tornavam quietas ou tímidas. Balançavam nos galhos homens. Ele queria mais emoções. O riso constante
das grandes árvores e tudo o que existia se tornava das ninfas lhe pareceu um bom convite. Animou-se o
feliz no contato com aquelas jovens, belas e radiantes, grande Zeus. Desceu as montanhas com alegria e foi
felizes e inteligentes. O próprio Zeus era encantado se juntar aos risos sensuais das graciosas ninfas. Mas
com aquelas jovens alvoroçadas. No alto do Olimpo não tardou que sua esposa, a deusa Hera, sentisse
ouvia seus gracejos e queria se juntar a elas, em uma sua falta na imensidão dos céus. Também ela desceu
dança lúdica e sedutora, na qual ele poderia amar a as montanhas e se pôs a procurá-lo.
todas e a cada uma particularmente. As ninfas, sabe- Chegou, enfim, onde se divertiam as ninfas, no
doras do desejo que despertavam no deus dos deu- meio do bosque. Ao aproximar-se, encontrou-se com
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Eco e lhe perguntou: sabes por ti mesma. Tudo o que falares será apenas a
- Bela ninfa, filha do Rio e da Terra, ternura eter- repetição de algo que te falarem antes. Se ninguém te
na da juventude, perfumada de pêssegos e seduções, dirigir a ti, ficarás muda para sempre.
eis que procuro por Zeus, meu marido. Temo que ele E retirou-se.
venha no meio de tuas irmãs para galantear e usufruir Eco entristeceu-se instantaneamente. Quis falar
de horas de prazeres entre a eterna juventude. Viste, com suas irmãs, mas não encontrava palavras.
acaso, o senhor dos céus, meu marido eterno? - O que houve, Eco?
Ora, Eco era uma ninfa tagarela. Ela falava muito - O que houve, Eco?
e envolvia a todos em uma conversa sem fim. Falava - Por que estás tão triste e assustada?
de nuvens, ventos e poeiras. Falava de pássaros, bor- - Por que estás tão triste e assustada?
boletas e insetos. Conversava sobre flores, colheitas Ora, a pobrezinha ninfa, que tudo sabia de tudo
e árvores. Falava de perfumes, gostos e toques. Era por aí afora, não podia falar nada além do que repetir
sabida e a todos queria falar de tudo. Aproveitando-se tudo o que lhe dissessem. Lembrou-se de que havia
de tudo isto, Eco decidiu que melhor seria enganar a ensinado muitos passados a cantar e, agora, limita-
deusa Hera com suas histórias infindáveis e, desta for- va-se a repetir-lhes os trinados. Muitos pássaros se
ma, impedir que ela visse Zeus nas alegrias da juven- afastaram dela para aprenderem novas canções com
tude com suas irmãs e, desta forma, protegê-las de um outras ninfas. Eco entristeceu-se. Como era triste viver
castigo terrível que a deusa pudesse maquinar. sem voz e não fazer nada mais do que repetir o que
Figura 50: Hera, esposa fiel, mãe não afetuosa.
dizem outras vozes...
Caminhando entristecida pelo bosque, Eco viu um
belo rapaz. Era Narciso. De longe observava sua bele-
za e o seguia por cada trilha que ele entrava.
- Quem está aí? – perguntava Narciso.
- Quem está aí? – respondia Eco.
- Qual é o seu nome? Mostre-se a mim!
- Qual é o seu nome? Mostre-se a mim!
- Venha cá! Quero te ver!
- Venha cá! Quero te ver!
Pensando que estava sendo zombado por alguma
donzela, Narciso afastou-se, entristecido. Eco, por sua
vez, também se afastava, pois não podia chegar perto
do jovem e dizer-lhe de sua admiração.
Enquanto caminhava, Narciso foi se afastando da
estrada que lhe conduzia de volta para casa. Viu-se,
então, cansado e sedento. Abaixou-se para beber das
águas de um límpido lago. O que viu o deixou perple-
Obra Juno e Argus de Peter Paul Rubens
xo. Ele admirava, pela primeira vez, o mais belo rosto
Mas a deusa não se deixou enganar. Por muito que jamais vira. Era o seu próprio rosto que ele via
tempo ela convivia com Zeus e bem sabia de seus en- refletido nas águas.
cantos pelas belas ninfas. Desconfiou. Esperou. Ou- - Por muito tempo eu buscava a beleza que iria
viu. Sentenciou: me alegrar e ensolarar os meus dias. Por muito tempo
- És mesmo uma insolente, criança! Como podes andei à procura de quem pudesse admirar. Eis que,
querer enganar a senhora dos céus, a poderosa Hera? finalmente, este lago me revela a beleza que sempre
Bem sei que meu marido se embebeda no néctar das esteve comigo. Aqui está: sou eu, o belo Narciso, a
uvas e, perdido de amor, deleita-se com o perfume e a quem todos os homens invejam. Jamais encontrarei
suavidade das ninfas, tuas irmãs. Mas sei que tu tentar face mais bela, seja entre os deuses ou entre os mor-
protege-las de minha ira. Não te julgo mal. No entan- tais.
to, não posso permitir ser enganada por uma inocente Os seres da natureza se encantaram com ele e
criança. Eu sou a deusa de todos e por todos tenho pe- aplaudiram sua beleza. Estavam todos embalados
dido incansavelmente a Zeus que delibere favoravel- pela contemplação da Beleza que, no rosto de Narciso,
mente. Pelo a ele que afaste a seca, as tempestades e se mostrava clara e radiante.
as doenças do meio dos homens. Mas tu, com teus do- Ainda que a bela Eco voltasse a lhe chamar, a par-
tes de tudo falar, encheste meus ouvidos de magia e, tir daquele instante, Narciso tinha olhos somente para
por longo tempo, dei-te meus ouvidos. Fica por aí com si e não via encantos em ninguém mais.
tuas irmãs sedutoras. Logo Zeus se cansará de tanta
juventude e, por certo, voltará a mim, buscando minha
maturidade e correto julgamento. Não volto, pois, ao
Olimpo, sem antes desejar que tu não mais fales. De
agora em diante, serás incapaz de dizer tudo o que
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Figura 51: Não havia beleza a ser contemplada. lago estava perdido de amor por ele e, por sua vez, o
lago o envolveu e o conduziu ao fundo, afogando-o em
sua própria beleza.
Foi o dia em que o lago também se viu nos olhos
do jovem e se perdeu naqueles olhos. Foi o dia em
que o lago perdeu-se ao contemplar-se nos olhos de
Narciso.
Ao vê-lo irremediavelmente afogado, as ninfas
compadeceram-se de seu destino. Recolheram-no
para junto de si e o transformaram em uma flor – o nar-
ciso. Flor bela e simples, colocada pelas ninfas às mar-
gens do lago, para que o belo jovem continuasse se
contemplando sem o risco de ser afogado pelas águas.
O mito de Narciso nos ensina sobre a busca da
Beleza e na contemplação de si mesmo. Narciso nos
ensina três pontos importantes de sua trágica história:
a imagem, a identificação e o investimento. A imagem
como algo que construímos do ponto de vista ideal e
que indica a nós mesmos quem somos. Todos criamos
uma imagem ideal. Não é raro que, ao vermos nossa
própria fotografia, estranhemos algumas formas e não
Fonte: artsoo.com Acesso em 16/02/2016.
gostemos de alguns traços. Por certo eles não corres-
Foi o dia mais feliz da vida de Narciso. Ele, fi- pondem a uma imagem que temos. Não é raro tam-
nalmente, havia encontrado a Beleza em sua forma bém que tendemos a admirar mais aquelas pessoas
humana. Ele era a própria Beleza que caminhava no que nos devolvem essa mesma imagem ideal. Pesso-
meio dos homens. as que nos repetem exatamente aquilo que queremos
Passaram os dias. Narciso era o mais feliz dos jo- ouvir. A identificação demonstra nossa ligação à ima-
vens. Ia ao lago várias vezes durante o dia. Esquecia- gem criada. Acreditamos naquilo que dizemos de nós
-se de tudo o mais que o rodeava. mesmos. O narcisismo é uma importante marca psico-
Um dia, porém, tão embevecido estava com sua lógica. Ele implica principalmente em desconsiderar o
beleza refletida que não percebeu que o lago o envol- que está ao redor e em fixar apenas naquela ideia que
via aos poucos e ia o sugando para junto de si. Tam- diz de nós mesmos. Mas é importante enfatizar: essa
bém o lago queria reter aquele belo jovem. Também o identificação não precisa ser necessariamente um

Figura 52: Narciso e as Ninfas,.

Obra de John William Waterhouse 1896.


76

elogio. Pode ser uma identificação com uma imagem um jovem inconsequente. O mito de Narciso é a nossa
negativa e nós mesmos – isto também é narcisismo, própria história.
pois nega o entorno. O terceiro ponto é o investimento. Vamos, agora, conhecer sobre a Beleza do ponto
Todas as relações humanas estão marcadas pelo in- de vista da filosofia. Utilizaremos o texto a seguir, que é
vestimento de afeto. Há uma quantidade de afetos que de Robson Stigar. Ele tem uma importante considera-
dedicamos a certas imagens, em detrimento de outras. ção sobre a Estética conforme pensada por um filósofo
Ao conhecermos Narciso, conhecemos a nós mesmos. chamado Hegel.
Por isto é que seu mito não pode ser simplesmente Eis seu texto:
desprezado como se fosse uma narrativa inocente de

A definição de beleza em Hegel espacialmente.


Robson Stigar Como a simetria diga respeito fundamentalmente às
artes plásticas, Aristóteles não a menciona na Retórica,
Para Hegel existe uma diferenciação fundamental onde volta ao assunto. A ordem encontra-se na estrutu-
entre o belo artístico e o belo natural. O belo da arte ra formal da tragédia; a limitação diz respeito à extensão
está diretamente relacionado com a pureza do espírito da tragédia. Estes princípios filosóficos são aplicados à
enquanto que o belo natural encontra-se diretamente literatura na Poética: “o belo consiste na grandeza e na
submisso à realidade da natureza. ordem, e, portanto, um organismo vivente pequeníssi-
Nesta perspectiva o “belo artístico exclui o belo na- mo não poderia ser belo (…); e também não seria belo,
tural” uma vez que para o espírito é preciso desenvol- grandíssimo.” (1450b). Não se encontra em Aristóteles,
ver as suas potencialidades, enquanto que a natureza contudo, uma especulação sistemática sobre o belo.
já possui todas as condições determinadas e suas leis Em As Enéadas, Plotino também discorre breve-
são duras. mente sobre o assunto, pondo em causa a ideia de que
Assim, Hegel contraria a opinião corrente que consi- o belo possa ser medido pela grandeza e pela ordem.
dera “a beleza criada pela arte seria inferior a da natu- Plotino segue ainda Platão e conclui que tais critérios
reza” sendo, portanto, contrário também à proximidade apenas servem à beleza física, ignorando a beleza mo-
da beleza artística em relação à natureza, imitar não é a ral.
maior virtude de beleza artística. O conceito de belo entra na crítica da obra de arte
Deste modo, “julgamos nós poder afirmar que o belo de parceria com as noções de gosto, de equilíbrio, de
artístico é superior ao belo natural por ser um produ- harmonia, de perfeição - efeitos que se produzem no
to do espírito, que superior à natureza comunica esta sujeito apreciador. Parece ser condição necessária ao
superioridade aos seus produtos e, por conseguinte, à despontar do sentimento do belo a sensação de pra-
arte” sendo superior ao belo natural o belo artístico. zer e/ou de simpatia. As duas principais conceituações
Desta maneira, a criação mais bela emana do es- clássicas do belo apresentam-no como “o que é agradá-
pírito porque é nele que as coisas são puros objetos, vel à vista e ao ouvido” (Platão, Hípias Maior e S. Tomás
realidades perfeitas e potencialmente organizadas sem de Aquino).
condicionamento prévio ou limitação de beleza. Hípias propôs a Sócrates que o belo fosse o útil.
Na Antiguidade, o belo é tratado por Platão, Aristó- Mas sabemos que são coisas distintas, porque as coi-
teles e Plotino. O Hípias Maior é o diálogo que mais de- sas úteis não são necessariamente belas e vice versa.
moradamente se ocupa da definição do belo em si (auto O útil está circunscrito a uma situação particular e re-
to kalon), um traço que seja comum a todos os objetos lativa; o belo é independente de qualquer condição. O
supostamente belos. No Simpósio e no Fedro, o proble- belo julga-se por si mesmo, ao passo que o útil deseja-
ma do belo concorre com o do amor. O Simpósio é em -se em função de um propósito. Como observou Kant,
grande parte a procura de uma solução para a questão: o belo “agrada sem conceito”, porém só podemos dizer
“Eros é o amor do belo?”(204d). de algo que é útil quando o sujeitamos à experiência ou
O amor é sempre um delírio (mania) que nos conduz à ponderação.
à visão do belo sensível (“Somente a Beleza tem a ven- O sublime não é apenas o belo elevado ao seu mais
tura de ser mais perceptível e cativante!”, Fedro, 250d). alto grau. Da mesma forma, por analogia, o bonito não
Neste diálogo, Sócrates pergunta a Agatão: “Não achas é simplesmente o belo reduzido à sua expressão mais
que o belo é simultaneamente bom?” (201c). comum. O sublime exige a condição de ilimitado: é su-
O diálogo não chega a ser conclusivo. Aristóteles, na blime o que se nos escapa no juízo imediato do belo. O
Metafísica, chama já a atenção para a diferença entre o sublime é aquilo que a imaginação não consegue deter;
belo e o bem: o bem implica sempre ação e o belo pode o belo é detível pela imaginação e encontra-se num ob-
ser encontrado nas coisas imóveis. Aristóteles conside- jeto finito. O bonito (e todas as variantes de menoridade
ra depois três formas superiores do belo: a ordem, a do belo como o gracioso, o lindo, o encantador) é o belo
simetria e o limite, formas que a matemática demonstra sem grandeza de espécie limitada.
77

A avaliação de um objeto em termos de sublime, Os comentadores posteriores do belo parecem con-


belo ou bonito é a mais subjetiva das atividades judica- cordar com a existência de duas espécies de belo. He-
tivas do homem. Trazida tal avaliação para a literatura, gel começa a sua Estética distinguindo desde logo o
não se aceita hoje que tais atributos possam ser de- belo artístico do belo natural. Este segundo tipo de belo
terminados objetivamente para a leitura crítica do texto (que equivale ao “belo livre” de Kant) fica de fora da
literário. A crítica impressionista que dominou o século estética que se deve ocupar apenas do belo criado pela
XIX pode reclamar o contrário, mas todas as correntes arte.
críticas do século XX tendem a não considerar os juízos É a única forma de trazermos o conceito do belo
meramente subjetivos como aceitáveis na apreciação para a teoria literária: o belo do texto literário é, invaria-
das obras de arte literária. velmente, um belo artístico, conquanto a literatura seja
Não é possível dissociar o belo do seu antônimo: uma obra de arte. Nenhum texto literário pode ter uma
o feio. O adágio “Quem o feio ama bonito lhe parece.” beleza como a do Sol, que é absoluta e não é um pro-
mostra que os juízos sobre o belo e o feio são poten- duto do gênio.
cialmente arbitrários. Se um objeto é considerado feio Hegel defende o belo artístico como o único com in-
é porque não possui aquilo que se julga ser belo, mas teresse estético. O belo artístico é um produto do espíri-
como tal consideração é sempre subjetiva, o que é feio to, por isso só o podemos encontrar nos seres humanos
para uns pode ser até sublime para outros e vice versa. e nas obras que eles produzem. Segundo Hegel, a Ideia
Nem o cômico pode servir de meio de apuramento do do bem, da verdade e do belo completam-se, porque,
belo e do feio, porque tanto podemos rir de uma coisa em suma, só há uma Ideia. Tudo o que existe contém a
bela como de uma feia, embora seja esta última, quan- Ideia. A estética ocupa-se em primeiro lugar da Ideia do
do associada sobretudo ao ridículo, que provoca mais belo artístico como ideal.
vezes o riso. A estética hegeliana foi desprezada no século XIX,
O belo só faz sentido para o homem, por isso tem vencida pelo psicologismo dominante. Na Itália, Fran-
que ser uma categoria que está presente no Ser do ho- cesco de Sanctis preservou a lição de Hegel e o seu su-
mem. Mas o belo não é determinante do Ser de todas cessor, Benedetto Croce, com a Estética come scienza
as coisas para que se dirige. Daquilo que dizemos ser dell’espressione e linguistica generale (1902), redesco-
belo, extrai-se um juízo de valor que afeta a existência bre a visão idealista do belo. Propondo a abolição das
em si do objeto analisado. Como defende Kant, na Crí- fronteiras entre todas as artes e entre todos os gêne-
tica da Faculdade de Julgar (I, 2), uma coisa é bela em ros literários, Croce defende todo o ato artístico como
função de uma simples observação subjetiva, não se expressão, origem do “lirismo”. Conquanto as obras de
colocando em causa a existência que a coisa tem em si arte sejam formas de lirismo, serão sempre arte com
mesma. Kant distingue o belo do bom (o que agrada por valor estético.
meio da razão) e do agradável (o que exige a aceitação No marxismo, a estética de Hegel também encon-
dos sentidos). trou defensores. Se os fundadores do marxismo apenas
O belo resulta de uma reflexão subjetiva sobre um dedicaram ao problema do belo breves comentários,
objeto, sem haver necessidade de saber que coisa deva autores contemporâneos como Lukács e Brecht empe-
ser esse objeto (a não ser que queiramos determinar nharam-se na definição do belo artístico como expres-
se ele é bom), ou seja, uma coisa bela não pede um são do homem social, trabalhador e criador. Visando
conceito sobre a coisa em si. Uma flor pode ser consi- a unidade do verdadeiro, do bom e do belo, a estética
derada bela sem produzirmos um conceito sobre a sua marxista-leninista vai mais além da obra de arte na pro-
realidade como flor. Como o juízo do belo é meramente cura do significado do belo.
contemplativo (por isso tem um alcance crítico limitado Toda a obra de arte é um reflexo da consciência so-
na apreciação de uma obra de arte) e sem qualquer in- cial. O belo não é uma realidade absoluta e intocável
teresse, não pode ser um juízo do conhecimento. Quer pelo humano: o belo é o resultado do trabalho humano
dizer, o belo não está alicerçado em conceitos nem tem realizado em comunidade.
por fim chegar até eles.
Desta definição parte Kant para uma importante dis-
tinção: “Há duas espécies de beleza: a beleza livre (pul-
chritudo vaga) e a beleza simplesmente aderente (pul-
chritudo adhaerens). A primeira não pressupõe nenhum
conceito do que o objeto deva ser; a segunda pressu-
põe um tal conceito e a perfeição do objeto segundo o
mesmo. (…) Flores são belezas naturais livres. (…) No
entanto, a beleza de um ser humano (…) pressupõe um
conceito do fim que determina o que a coisa deve ser,
por conseguinte um conceito da sua perfeição, e é por-
tanto beleza simplesmente aderente.” (I, 16).
78
Figura 53: A Beleza é irrepresentável.

Fonte: www.imanmaleki.com.

Os estudos psicanalíticos demonstram que uma contemplação excessiva de si mesmo pode levar o sujeito a um
isolamento que pode se tornar patológico. É por se considerar o único objeto de desejo da mãe que a criança se perde
nas relações que compõem o Complexo de Édipo.

ANOTAÇÕES

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ANOTAÇÕES

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UNIDADE

FINITUDE E ETERNIDADE

Universidade Presidente Antônio Carlos - UNIPAC

UNIPAC ON-LINE
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Figura 54: Cruz, símbolo de fé.

FILOSOFIA E RELIGIÃO
Dos seres da natureza, o homem é o único insatisfeito com sua condição. Sempre em busca, uma das carac-
terísticas do ser humano é o desejo de viver para sempre. A ideia de finitude que se lhe apresenta na concretude
da morte lhe é insuportável. Esta é, pois, uma das razões pela qual o ser humano busca a religião. O contato com o
transcendente - aquilo que não pode ser apreendido pelos sentidos - está presente em todas as culturas. Todos os
grupos humanos, desde os primórdios do surgimento do homem no planeta, apresentam uma relação com o sagra-
do. Então, o homem estabelece uma diferenciação simbólica e delimita áreas e ações que designa por sagradas.
Essas distanciam-se da vida comum e se revestem de um caráter excepcional, caracterizando-se mesmo por uma
exceção, uma separação. Nessa separação, o homem se coloca como ser privilegiado e se eleva acima dos outros
seres da natureza. Ao sacralizar espaços, palavras e coisas, novos sentidos são incorporados e esses espaços,
essas palavras e essas coisas deixam de fazer parte do mundo humano e são designadas para a divindade. As
religiões, desta forma, dão um outro sentido à vida humana, que se envolve em um caráter místico, diferenciado.
Em termos filosóficos, podemos considerar o que disse Feuerbach: “De uma maneira geral, os homens se dizem
criaturas de Deus e, não raro, dizem que foram criados à imagem e semelhança de um ser superior, sábio e imortal.
Há que se considerar o contrário, ou seja, não foram os deuses que criaram os homens. A ação foi justamente a
contrária: os homens criaram os deuses à sua imagem e à sua semelhança. Portanto, se quisermos conhecer uma
determinada cultura, precisamos conhecer seus deuses.” É uma forma de pensar a religião: como produto humano
e não como revelação divina. São muitas as formas que o homem criou, ao longo de sua trajetória, para lidar com o
inexplicável e, principalmente, com o enigma da morte.

evitar o mal, afastar os vícios, abrir mão dos prazeres?


FINITUDE E ETERNIDADE
São questionamentos cujas respostas não são tão
FILOSOFIA E RELIGIÃO
claras. Para melhor conduzi-las, o homem criou a ideia
de eternidade. Alguns filósofos pensam sobre essa
Somos seres finitos. Uma das funções da angús-
criação. Por exemplo, René Descartes. Ele argumen-
tia em nossa existência é presentificar a morte. Temos
ta que nós, humanos, somos imperfeitos, incompletos,
consciência disto. Sabemos que vamos perecer. En-
mortais. Portanto, não haveria como criarmos a ideia
quanto os outros seres vivem imersos no determinis-
de imortalidade. Tal ideia somente poderia ser-nos co-
mo biológico, o ser humano está envolto em pergun-
municada por um ser imortal - Deus.
tas. A maior parte delas, ele não consegue responder.
Junto à ideia de imortalidade, concebemos a ideia
Por isto, prefere não se haver com questões que lhe
de divindade e, a partir delas, formamos as mais diver-
implicam em um pensamento mais aprofundado: Por
sas religiões. A vivência religiosa é capaz de conduzir-
que estou aqui? Qual o sentido da vida? Com a morte
-nos a pensamentos gratificantes, que nos faz acredi-
todas as expectativas estão acabadas? Se tudo ter-
tar em uma série de possibilidades para a vida e para
mina com a morte, há algum sentido em fazer o bem,
a morte. A religião concede um outro sentido à vida
83

e, por ela, somos capazes de praticar o bem e o mal.


Mesmo sabendo da diversidade de manifestações re-
ligiosas, tendemos a crer que a nossa é a melhor, a
única, a verdadeira, enquanto as dos outros são tidas
como inferiores, falsas, errôneas, indutoras ao engano
e ao erro.
Um dos problemas das religiões talvez seja o fa-
natismo do fundamentalismo, que consiste em tomar o
nosso Deus de tal forma superior que as outras cren-
ças se tornam intoleráveis e passíveis de combate e
eliminação.
No senso comum, diz-se que não se discute a re-
ligião. Na filosofia, a religião deve ser discutida para
uma melhor compreensão do homem. Para tanto, va-
mos partir de um mito: a Medusa.

MEDUSA
- Das grutas escuras e profundas, lanço o meu gri- A deusa Atena tinha por Poseidon uma infinita
to de dor... Não posso suportar a vida errante e mal- estima. A força dos mares também a encantava. Dos
dita, onde vivo a lamentar meu triste destino... Olho deuses do Olimpo, Atena nutria por ele um profundo
em volta a procura de minhas irmãs, minhas dádivas, respeito, jamais abalado. Gostava de caminhar nas
meus amores... Não as encontro. Tudo o que vejo são praias para sentir a paradoxal suavidade das vagas
as estátuas de pedra espalhadas pela planície. Não que quebravam nas areias, ocultando o furor das gran-
posso mais habitar as cidades. A população dos vivos des ondas.
me rejeita, por isto, odeio a todos. Busquei, sem tré- - Nobre Poseidon, eis que minha arte e sabedoria
guas, o carinho, mas meu olhar não é capaz de atrair se curvam perante suas ondas sonoras e poderosas.
a candura das noites estreladas e nem as cantigas de Aconteceu que, em uma tarde tórrida de verão,
ternura. Todos os dias que dediquei a Atena foram du- enquanto a sacerdotisa Medusa colhia flores e com
ramente esquecidos e, por isto, vivo o meu lamento. elas enfeitava o altar de Atena, virou-se e viu, à porta
Este é o pranto de Medusa, uma das górgonas. do templo, a figura imponente de Poseidon. Sentiu-se
Tinha duas irmãs: Euriale e Esteno. Filhas de Ceto e tremer e o cheiro do mar tomou toda a imensidão do
Fórcis, que eram divindades do mar. Medusa, Euria- templo.
le e Esteno eram jovens belas e esguias. A natureza - Meus olhos miram a mais terna imagem de meus
presenteou-as com asas de ouro, para realçar suas desejos. Sinto o arrepio das ondas e a água pulveriza-
belezas. Tinham a pele luminosa e perfumada e seus da que delas vem. Teu perfume tem o vigor de todos
passos eram graciosos e leves. Das três irmãs, apenas
Medusa era mortal e, por isto, fez-se sacerdotisa da Figura 55: Poseidon.
deusa Atena, cujo templo servia com alegria e dedica-
ção, levando beleza e graça para a deusa.
Ora, Poseidon, o grande deus dos mares, encan-
tou-se por Medusa e começou a seduzi-la com seu
poder.
A jovem sacerdotisa deixou-se levar pelos seus
enlevos.
- Poderia os mares ter maior encanto do que a be-
leza que se encontra no templo de Atena? A sabedoria
da deusa, decerto, escolheu o que havia de melhor no
reino dos mortais e eis que vejo, diante de meus olhos,
a mais bela criatura que a terra já conheceu.
- Nobre deus de todos os mares, tua força encan-
ta os meus olhos e, por ti, seria capaz de abandonar
tudo o que me enriquece. O forte odor das águas que
emana de teu corpo enche meu ser de ardente desejo.
Por ti, seria eu não apenas a mais bela, mas também
a mais abençoada de todas as mortais que esta terra
jamais conheceu.
84

Figura 56: Athena x Poseidon. - Eis teu castigo, infame! Não mais serás capaz de
atrair os amores para ti, apenas o ódio será teu com-
panheiro inseparável! Eis minha condenação: todo
aquele que olhar diretamente para os teus olhos será
transformado em pedra!
De nada adiantaram os lamentos. De bela, trans-
formou-se em uma criatura horrível e rastejante, feroz,
forte, furiosa. Passou a odiar as pessoas e refugiou-se
em uma ilha distante. Uma ilha que foi se povoando
com estátuas de pedra: a maldição de Atena fazia com
que o olhar de Medusa petrificasse todos aqueles que
a miravam.
- Foram embora para sempre os meus dias de
amores. Perdi para sempre Poseidon, pois fui odiada
eternamente por Atena. Minhas únicas companhias
são as serpentes e as estátuas que, continuamente,
Fonte: http://medeaslair.net/athena.html Acesso em 18/05/2016
relembram o quanto fui indigna de oficiar o culto da
deusa.
os mares e vejo o cortejo das sereias e das conchas A fúria de Medusa persistiu por muitos anos. Com
que te circundam. a fúria, a dor e o sofrimento.
- Meus olhos já anteviam a maciez de tua pele. Or-
denei às marés que suavizem toda a superfície aquá-
tica para te receber em meu reino, bela sacerdotisa de Figura 57: Medusa.
Atena. Vem comigo e serás a graciosa princesa das
sereias que amas. Os cavalos marinhos te servirão e
as algas apreciarão tua doçura. Quando, enfim, finda-
rem os teus dias, eu mesmo te receberei em doce
sepultura, tendo o sol como baluarte a iluminar
sua face serena.
Seus corpos se entrelaçaram e se en-
tregaram no doce amor dos amantes, ali
mesmo, no templo de Atena, aos pés
do altar da deusa. Mas Atena não
pôde suportar tal profanação. Eis
que sua estátua ganhou vida e, de
sua boca saiu a terrível sentença.
- Ingrata sacerdotisa! Não
fui eu a deusa a te recolher do
mundo dos mortais e te abrigar
no meu templo? Não fui eu a te
escolher como minha preferida
e te confiar os meus cuidados
e o meu culto? Como te elevas
assim diante de mim, em meu
próprio altar? Não posso supor-
tar tamanha afronta! Eis que meu
templo se profana no ardor do
amor carnal, estúpido e efêmero!
De agora em diante, não és mais a
minha preferida. Devolvo-te aos de-
jetos dos mortais. Não te quero mais...
Reduzirei tua beleza à monstruosidade
da morte e, de bela que és, serás o mais
terrível monstro!
Assim dizendo, a deusa transformou Me-
dusa: seus belos cabelos se tornaram terríveis ser-
pentes venenosas, seu lindo corpo foi coberto de es-
camas e suas mãos se transformaram em cobre. Seus
olhos passaram a brilhar com uma luz tenebrosa...
Medusa, Caravaggio, 1598-1599 , óleo sobre tela montada sobre madeira, Uffizi , Florença
85

A górgona foi morta pelo herói Perseu que, para A função petrificadora de Medusa pode ser encon-
vencer o titã, cortou sua cabeça, utilizando um escudo trada também nas instituições. Ao criarmos nossas ins-
que o permitia ver o monstro sem olhar em seus olhos. tituições, procuramos criar mecanismos que nos prote-
jam de nossa agressividade, de nossa prepotência, de
Figura 58: Perseu decaptando a Medusa. nosso desejo de destruição. No entanto, as instituições
podem se tornar nossas ameaças e, então, impedir-
-nos de realizar nossa subjetividade.
Tomemos, pois, o exemplo da religião. Ela é uma
das instituições que criamos. Neste caso, foi criada
para possibilitar as relações que estabelecemos com
o transcendente. Nas concepções filosóficas, as religi-
ões são obra humana e, assim sendo, por vezes elas
podem petrificar as pessoas, retirar-lhes a capacidade
de reflexão e desencorajar o pensamento.
Aqui, vamos tomar as considerações do filósofo
Karl Marx. Ele viveu no século XIX e foi um grande
crítico do sistema capitalista. De acordo com Marx, o
capitalismo opera na destituição do homem de sua ca-
pacidade crítica ao submetê-lo a condições de trabalho
que o empobrecem em prol do enriquecimento de uma
classe social. A sociedade estaria, pois, dividida em
classes: uma dominante - aquela que detém os meios
de produção (chamada genericamente de burguesia),
e outra, dominada, que não detém os meios de produ-
ção e que deve, necessariamente, vender sua força de
trabalho pelo preço do salário, cujo valor é estabeleci-
do pela burguesia. Esta classe dominada é chamada
de proletariado. Neste contexto, o capitalismo é uma
poderosa estrutura econômica que, para se sustentar,
conta com superestruturas ideológicas, que sustentam
o processo de dominação e divulga como naturais as
situações de dominação.
No bojo do capitalismo selvagem, foi construída
uma ideia de religião que, de acordo com Karl Marx,
funciona como uma política invertida nos seguintes
moldes: as pessoas têm a necessidade de acreditarem
Perseu de Benvenuto Cellini. Loggia della Signoria ou Loggia dei Lanzi,
em um paraíso para compensar uma vida social dura;
Piazza della Signoria, em Florença, Itália. Autor Marcos Romerini elas têm a necessidade de acreditarem em um Deus
justo para que compensem a realidade de dirigentes in-
Esta narrativa mítica pode ser compreendida pela justos e ardilosos, que tudo fazem em proveito próprio,
concepção filosófica. Veja as considerações do filósofo a despeito da pobreza do povo; elas precisam acredi-
francês Jean-Paul Sartre a respeito dela: tar que os outros são irmãos para que compensem a
realidade de uma sociedade marcada pela competitivi-
dade. Com base neste raciocínio, Marx qualifica a reli-
A mitologia grega traz a imagem de Medusa.
gião como ópio do povo, produzida por uma sociedade
Terrível monstro, com um olhar petrificador. O injusta. Quando, enfim, formos capazes de superar as
grande poder de Medusa é transformar, com um formas de injustiça, não teríamos mais a necessidade
simples olhar, pessoas em pedras. O poder de Medusa de uma religião criada para as suplências econômicas.
é transformar gente em coisa; sujeitos em objetos. Mas Marx não acredita que os líderes religiosos
Sob o seu olhar, a subjetividade é perdida. Esta sejam enganadores do povo. Ele considera que tam-
imagem exemplar do monstro nos remete a situações bém os líderes são produtos da sociedade capitalista
semelhantes. Há pessoas que conseguem petrificar e frutos da necessidade humana de compensar suas
as outras com o seu olhar de reprovação, de ameaça, angústias.
de tirania. Mas também há pessoas que se permitem O texto da página seguinte, de Robertino Lopes,
petrificar. Por isto, em filosofia, preferimos pensar traz as considerações do filósofo.
que o poder de transformar pessoas em pedra não
está especificamente no olhar de quem transforma,
mas na fragilidade de quem se deixa petrificar.
86

O PENSAMENTO DE KARL MARX a partir da maneira como os homens produzem os


SOBRE A RELIGIÃO bens materiais (LESBAUSPIN, 2011).
Marx entende que a religião é uma consciên-
Marx era ateu muito antes de ser comunista. cia equivocada, errada em relação ao mundo. En-
Sua atitude anticapitalista não foi pressuposto, quanto protesto contra as situações humanas é
mas confirmação. Aceitara o ateísmo da esquerda protesto ineficiente, falho, porque desvia atenção
hegeliana de Berlin e de Feuerbach. A inteligên- desse mundo e de sua transformação para outro,
cia de Marx conseguiu que o ateísmo se tornasse para o Além, algo que, de antemão, não oferece
o fundamento e a ideologia para o socialismo até garantia nenhuma, firmeza ou mesmo certeza con-
os nossos dias. Diz Zilles (1991), citando os ma- creta, sendo possível apenas abstrair ou até nomi-
nuscritos econômico-filosóficos de Paris: “O ateís- nar pela fé, por sentimentos; ou seja, não é algo
mo é o humanismo pela superação da religião, e confiável pelo viés da razão, nem tampouco pela
o comunismo é o humanismo pela superação da práxis histórica.
propriedade privada”. Sua passagem por Paris, o Dessa maneira a religião funciona como cal-
contato com as idéias socialistas, com a miséria mante: “É o ópio do povo”. A religião retira a ca-
do proletário industrial - embora ele próprio nun- pacidade humana de ver a realidade, hipnotizando
ca tenha sido operário - fez com que se tornasse os homens pela falsa superação da miséria, com
socialista e comunista. Engendra em pensamento falsas imagens, destruindo sua força de revolta;
uma organização dos trabalhadores e torna-se “o revolta essa que poderia levar o homem a uma
teórico do proletariado” (Zilles, 1991). Para Marx superação dessa realidade - em outras palavras,
o ateísmo é algo bem claro, tão claro que não ca- a religião anula todas as possibilidades, todas as
rece de nenhuma investigação mais apurada de tentativas do homem mudar, superar, transpor as
sua parte. Deus não passa de uma projeção do barreiras impostas pelo capitalismo à sua existên-
homem, e assim a religião nada mais é que pro- cia. Para Marx o homem deve entender o processo
dução e alienação do homem; Berg diria que ela histórico e superá-lo e isso só acontece na medida
(a religião) seria uma legitimadora das questões em que o homem sai do plano teórico para a práxis,
humanas, logo, manipulável. “A religião serve, as- ou seja, não basta entender, é preciso ainda supe-
sim, para manter a realidade daquele mundo so- rar. A religião entravaria este processo, tornando o
cialmente construído no qual os homens existem homem passivo neste contexto, daí sua condição
nas suas vidas cotidianas” (BERG, 1985). alienante. Para ele não há uma ordem natural das
O homem é o criador da religião. Quando pro- coisas, tudo pode ser transformado.
põe uma análise da religião, Marx quer verificar os Na alienação religiosa, o homem projeta para
conflitos dela oriundos, sua superação e conse- fora de si, de maneira vã e inútil, seu ser essencial,
quente destruição desses conflitos. A religião é o o que faz com que ele não veja a realidade (ou a
sentimento de paz e harmonia de uma sociedade veja de forma deformada) e perde-se na ilusão de
alienada. É um momento necessário em um mun- um mundo transcendente, bem melhor que o atual,
do alienado porque o justifica, legitima-o (BERG, digamos, um mundo seguindo outra lógica, haven-
1985) O protesto religioso contra este mundo per- do compensações em relação ao daqui, oferecen-
manece inconsequente porque propõe uma so- do uma esperança possível apenas nesse mundo
lução para além da história, para além-túmulo. A transcendente. A religião nada mais é que a proje-
religião apenas oferece a libertação espiritual do ção do ser do homem em um mundo ilusório. Com
homem, a libertação imaginária e ilusória, mera- ela aliena-se a si mesmo. Em outras palavras: “A
mente aparente e abstrata. Somente a práxis re- religião é então reflexo ilusório, fantástico, das re-
volucionária, o exercício dialético-histórico, seria lações de dominação de classe, de exploração: as
capaz de emancipar plenamente o proletário in- idéias religiosas exprimem, justificam e escondem
dustrial, dispensando o protesto e o consolo reli- a realidade da dominação. A religião é ideologia,
giosos. falsa consciência”. (LESBAUSPIN, 2011). É a idéia
Na primeira fase, então, Marx trabalha a religião que a religião não tem substância própria.
como alienação. Numa segunda fase, iniciada na A religião faz do sujeito, predicado, alcançan-
Ideologia Alemã (1845) – onde se firmam os princí- do Deus sobre as nuvens em vez de dar-se conta
pios teóricos que serão o fundamento de sua pro- de que o céu está sobre a terra. Marx admite que
dução intelectual – Marx classifica a religião como a religião é uma ilusão, mas não só intelectual. A
ideologia. Na Ideologia Alemã, Marx e Engels con- alienação religiosa deve ser analisada, compreen-
sideram as ideias como carentes de autonomia dida e até refutada a partir da situação histórico-
própria, como produto da atividade material do ho- -social concreta. Porém a religião é a expressão
mem. A formação das idéias - sejam elas filosófi- mais viva da alienação do homem e não seu fun-
cas, morais, religiosas ou de outro tipo – explica-se damento. A essência da alienação do homem en-
87

contra-se no contexto econômico, no tipo das re- povo, porque contribui para esta visão distorcida
lações de produção geradas no mundo capitalista, de si e do seu entorno. Para libertar o proletariado
contexto esse que a religião aceita passivamente. e a humanidade da miséria seria preciso destruir o
Essa relação de produção reduz o homem a um mundo que gera a religião.
estado de engrenagem, de mera peça, subtraindo Na história da humanidade primeiro agem as
do homem sua essência pensante e transformado- forças da natureza, depois as forças sociais, resul-
ra: “Destruindo essa estrutura econômica também tando em um arcabouço de situações, ideias, con-
se destrói a religião que é o seu produto. São as ceitos - enfim, na cultura. Em decorrência, todos
estruturas econômicas que, segundo ele, geram os atributos naturais e sociais dos muitos deuses
falsa consciência, que é a religião. Assim a idéia são vinculados a um único Deus onipotente, refle-
de Deus é resultado de uma economia alienante” xo do homem abstrato. No mundo da economia
(LESBAUPIN, 2011). burguesa diz-se: “O homem pensa e Deus ajuda”.
É uma forma da existência humana intrinseca- Mas para Marx Deus é apenas consolação interes-
mente falsa. A religião nasce, segundo Marx, da seira, justificação ilegítima para coisas legítimas.
convivência social e política perturbada dos ho- Segundo Marx, a religião não terá mais razão de
mens, de lacunas deixadas pela própria condição ser quando a vida social aparecer como “obra de
humana. O crente suspira uma felicidade ilusória homens livremente associados, agindo conscien-
para esquecer sua desgraça presente, ignorando temente e mestre de seu próprio movimento so-
a realidade prática e histórica; significa dizer que cial” (MARX, 1965).
seu olhar está difuso, pois não enxerga o que está
diante de si. Desta forma a religião é o ópio do

O diálogo que propomos entre o mito de Medusa e a questão da religião é justamente a coisificação do homem,
impedindo-o de ser sujeito e de buscar alternativas para o seu mundo e superar as injustiças sociais. No sentido
marxiano, o sentimento religioso retira do homem a vontade de agir e de buscar transformações sociais e históricas,
transferindo-as para uma expectativa futura – o céu, a vida eterna.
As ideias de Karl Marx são importantes para a compreensão do homem em seu contexto social.
Assista o vídeo abaixo indicado. Ele traz discussões importantes sobre a religião e a ciência.

https://www.youtube.com/watch?v=iHUeG7ofrRA
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89

UNIDADE

ENTRE O BEM E O MAL

Universidade Presidente Antônio Carlos - UNIPAC

UNIPAC ON-LINE
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ÉTICA: A FILOSOFIA Figura 59: O bem e o mal, os inversos.

DA MORAL
Um estranho e insistente jogo de
opostos se faz presente no cotidiano
do homem. É um jogo que nosso apa-
relho psíquico percebeu na própria na-
tureza: noite e dia; frio e quente; seco e
úmido; vida e morte. No pensamento,
esse jogo tomou outras formas que, de
maneira mais geral, estão condiciona-
das nos opostos de Bem e Mal. Cien-
tes disto, iniciamos a fazer julgamentos
morais sobre os comportamentos das
pessoas, classificando-os como bons
ou maus. Atualmente, sabemos que
não há um Bem puro, da mesma forma
que também não há o Mal Absoluto. As
questões se misturam e percebemos
Fonte: www.psychologytoday.com Acesso em: 18/02/2016
que Bem e Mal se misturam, se mes-
clam e constituem a vida humana.
Ao longo da História, acostumamo-nos a admirar os grandes heróis que, via de regra, são aqueles que destro-
em os grandes vilãos. Os grandes heróis se nos apresentam como a imagem personificado do Bem e, para todos,
seguir as suas ações como exemplo é uma forma de se aproximar do Bem, de ser bem quisto e de ser moralmente
aprovado pela sociedade. De forma contrária, identificar-se com o vilão é seguir o Mal e, portanto, ser proscrito pela
mesma sociedade. Podemos, então, compreender que a moral é constituída pelo conjunto de costumes presentes
em uma sociedade. Em determinados grupos humanos, o que é bom pode assim ser considerado em função de sua
cultura e forma de lidar com a vida e seus limites. O chamado mau se dá por forma análoga. Portanto, costumes
culturais influenciam em concepções éticas. Então, a filosofia busca compreender os costumes (moral) para melhor
compreender as concepções éticas. Sabemos que várias são as situações humanas que exigem um comportamento
ético: profissão, política, religião, ciência são alguns exemplos. Sabemos que se a ética estivesse na base de todas
as decisões, teríamos o tão sonhado triunfo do Bem sobre o Mal, como bem nos contam as histórias infantis – que
revelam um antigo desejo da humanidade. Este é outra característica que pode ser encontrada em todos os grupos
humanos: uma terra sem males, onde todos viveriam bem, sem ódio e sem morte. Esta terra sem males ocupa uma
dimensão utópica mas, seja como for, é alimentada por uma preocupação ética, cujo desejo do Bem suplantaria o
desejo do Mal.

ENTRE O BEM E O MAL O pensamento filosófico nos convida a questionar


ÉTICA: A FILOSOFIA DA MORAL sobre as vantagens da obediência cega. Ela pode nos
levar a enganos extremos se não levarmos em conta
Um dos aspectos morais presentes na vida hu- nossa capacidade reflexiva e argumentativa. Algumas
mana é a obediência. Desde cedo somos educados concepções éticas, por exemplo, não significam mais
para obedecer. Os conselhos são os mais variados do que uma obediência sem limites diante de princí-
mas, normalmente, somos informados que é preciso pios corporativos. Então, muitos profissionais preferem
ouvir a maturidade pois, em função da experiência, es- defender-se a si mesmo do que dizer a verdade e, com
tariam os adultos em melhores condições de dizer o isto, colocar em risco a visão que a população pudesse
que é bom ou não para as crianças. Isto não é falso. ter de suas ações cotidianas. Todos estamos sujeitos
No entanto, acabamos por seguir uma pedagogia da a erros. Não há infalibilidade no meio humano. Se um
obediência que preconiza um único bem – o do adulto grupo se diz infalível, é preciso questioná-lo, pois é
– como o favorável para todos. Pode ser que os adul- bem provável que esteja ocultando sinais importantes
tos se enganem, pois bem sabemos que eles não são de sua falha. O que é o Bem? O que é o Mal? Estão
os donos da verdade. No entanto, eles são capazes de fora ou dentro do homem? São questionamentos que
convencer pois, ao lado da experiência, se alia o saber nos fazemos continuamente. A narrativa mítica a se-
científico ou o religioso. Assim, somos suficientemente guir vai nos auxiliar a pensar sobre a ética e a moral.
convencidos a obedecer, não obstante nossas próprias
convicções.
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ORFEU E EURÍDICE No entanto, ele é que foi tocado. Em uma tarde,


em que andava pelos bosques a enchê-lo de música,
De acordo com a narrativa mítica, Orfeu era um viu a banhar-se a bela donzela Eurídice. Sua beleza o
músico cujos dons jamais foram vistos entre todos os fez calar e ele percebeu que seu coração se enchia de
homens. Era filho do deus Apolo que, sendo o deus júbilo diante da doçura daquela mulher.
da música, ensinou-lhe sua arte. Orfeu encantava a Orfeu tocou de leve o riacho onde ela se banhava.
todos com sua lira e, ao tocá-la, enchia toda a terra Delicadamente, deixou-se levar pelas águas suaves
com a magia de seus sentimentos. A lira de Orfeu to- até que seus olhos se encontraram refletidos naque-
cava a todos os seres. As aves se emudeciam para las formas, naquele corpo. Ainda cabisbaixo, não sen-
ouvir suas melodias. As árvores abaixavam-se para tia coragem para olhar a donzela nos olhos, mas ela,
captar a doçura de suas notas na brisa. As pedras desejando também perder-se no amor e nas águas,
se moviam em silêncio para junto dele se deterem ao procurou o olhar de Orfeu e, naquele instante, eles se
sabor da música. entregaram para as carícias e os perfumes.
A tarde estava quente e calou-se para admirar o
amor que surgia do meio das águas que envolviam
Figura 60: Orfeu rodeado de animais (Museu Cristão-Bizantino, Atenas). seus corpos.
Orfeu, então, encantado por Eurídice, fez-se dela.
E ela fez-se dele. Nunca mais se separariam. Todas
as canções de Orfeu eram, daquele dia em diante, para
sua donzela. Dizem mesmo que suas canções ficaram
mais lindas, mais densas, mais cheias de ternura. Eu-
rídice, por sua vez, respondia às canções com belos
sorrisos e carinhos intensos. A natureza se alegrava
sempre mais, pois se via envolta na música – esta que
toca todos os corações.

Figura 61: Orfeu guiando Eurídice do submundo.

Fonte: Museu Cristão-Bizantino, Atenas. Obra de Jean-Baptiste Camille Corot. 1861.

A vida os fazia belos e felizes. A música de Orfeu


Com sua canção, ele podia modificar as estações era a alegria de seus dias. Juntos embalavam sua feli-
do ano, trazendo chuva ou sol, frio ou ardor, conforme cidade no toque da lira. Dizem que jamais foi visto tan-
as notas que fazia vibrar nas cordas de sua lira. Assim, to amor em toda a Grécia. O rumor das árvores fazia
ele podia também modificar o coração dos homens, fa- coro à música. Pastores e navegantes brindavam seu
zendo abrandar a cólera, mitigar a ira e desencorajar trabalho com a canção. Não a luta, mas a arte é que
a soberba. Por isto, Orfeu era amado. É certo que, fazia dos homens os grandes vencedores, os grandes
desta maneira tocando, ele podia conquistar o amor de amantes, os intensos amigos, os fiéis irmãos.
qualquer donzela. Bastava dedilhar as cordas e, as- Dizem que, com sua lira, Orfeu teria sido capaz de
sim, tomaria em seu leito o coração de quem quisesse, conquistar o coração da donzela que quisesse, pois
atraindo-o para junto do seu. não poderia haver quem resistisse ao amor de sua mú-
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sica. Mas foi Eurídice, uma moça que corria no campo chorava a falta que lhe fazia sua amada. As pedras
e se banhava no lago, que lhe conquistou o coração. chegavam mais perto, procurando a canção, mas a lira
Eles se amaram com fervor e não mais se separaram estava silenciada. Os pássaros começaram a cantar a
desde este dia. Orfeu e Eurídice caminhavam e can- tristeza de Orfeu e toda a floresta mergulhou na noite
tavam juntos, alegrando toda a natureza no embalo do da solidão.
amor e do respeito.
Foi assim que a felicidade de Eurídice tocou na Figura 63: Orfeu e Eurídice.

inveja de outras moças, suas amigas. Elas se indig-


navam como é que ela havia sido escolhida entre tan-
tas donzelas que habitavam a Grécia. Foi assim que
permitiram que o rancor tomasse seu coração... e se
distanciaram de Eurídice. Foi assim que, então, arqui-
tetaram um plano de terminar com sua inveja – pois
toda inveja faz mal. Mas para se livrarem da inveja,
elas precisavam se livrar da causa dela, ou seja, a feli-
cidade de Eurídice. Quiseram matar Orfeu, mas quan-
do dele se aproximaram, sentiram um ardor tão grande
provocado pela canção, que não puderam executar
qualquer ação maldosa. Quiseram então matar Eurídi-
ce, e assim fizeram: chamaram-na para um passeio no
campo, no meio das flores. Eurídice sentiu o coração
em festa, pois há muito não era convidada por suas
amigas para os passeios nas tardes quentes.
Obra de Louis Ducis, 1826.
Ora, aquela era também a estação das serpentes.
E elas estavam por toda parte, deslizando seu corpo
Um dia, sem mais poder suportar a dor que a falta
macio pela relva. Assim que viram uma víbora, as ami-
lhe fazia, resolveu ir ao mundo dos mortos, onde jazia
gas atraíram Eurídice para ela, que não teve como es-
sua doce esposa. Mas chegar até lá não era tarefa
capar do vigor de seu veneno. Sentiu a picada, uma
para humanos. A entrada do mundo dos mortos era
grande dor no pé que logo passou a todo o corpo. Em
guardada pelo terrível Cérbero: o horrendo cão de três
seguida, sentiu que a luz do dia ia se esvaindo, ao pas-
cabeças, que só obedecia as ordens do deus Hades.
so que a mão da morte a acariciava, convidando-a a
Cérbero era mortal e não conhecia a misericórdia. Ele
partir para o reino dos mortos, o reino do deus Hades.
destroçava todos que se aproximassem do mundo dos
Figura 62: Barco de Caronte. mortos, pois sentia pavor pela vida.

Figura 64: Cérberos, o cão do inferno.

Obra de Jose Benlliure, 1919. Valencia, Museu de Belas Artes

Obra de Cristian Penas.


Caronte era o barqueiro que a todos conduzia para
o mundo inferior. Por isto os gregos enterravam seus Mas até mesmo o duro cão-dos-mortos baixou
mortos com uma dracma na boca: uma moeda que seus olhos quando ouviu a lira de Orfeu que usava
serviria de pagamento ao barqueiro para atravessar a sua canção novamente para chegar onde estava sua
alma pelo rio Lethes, em cuja passagem as almas ex- esposa. À entrada do reino de Hades, o cão se er-
perimentavam o profundo esquecimento de sua vida gueu para destruir aquele homem que se aproximava,
na terra dos vivos. arfando para afastá-lo. Mas Orfeu estava decidido a
Logo que Eurídice foi sepultada, Orfeu não mais entrar. Tocou uma suave canção infantil... tão suave
cantou. Não quis mais sentir-se feliz. As outras don- que Cérbero se lembrou, em suas rudes memórias de
zelas tentaram dele se aproximar... em vão. Ele só cão, das lambidas doces que recebia de sua mãe, que
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se compadecia de sua deformidade e o amava com enganado pelo astucioso deus dos mortos? Seria sua
o instinto que faz todas as mães se aproximarem de canção forte o bastante para conseguir a vida de sua
suas crias e as protegerem contra o frio e a fome. Cér- esposa?
bero cedeu à canção e, ganindo de saudades, permitiu Mas caminhava, mesmo assim. Por vezes, lhe vi-
que Orfeu passasse. nha uma louca vontade de olhar um pouco para trás,
Assim foi que Orfeu chegou à sala do trono, onde só para ver se, de fato, sua esposa o acompanhava.
estava o robusto Hades ao lado se sua rainha, a bela Orfeu sentiu novamente o peso da solidão. Mais uma
Perséfone. vez, seu coração ficou em trevas e ele sentiu que toda
Hades urrou sua cólera ao ver se aproximar um sua trajetória não teria valido a pena. Ele tinha sido en-
homem vivo. Hades reinava sobre os mortos. Os vivos ganado pelo deus dos mortos, que sempre detestava
não eram de sua benevolência merecedores. Urrou e os vivos. Baixou a cabeça e resignou-se.
urrou, ordenando que o homem se afastasse definiti-
vamente, pois o cheiro da vida fazia estremecer sua Figura 66: Orfeu e Eurídice.
cólera. Mas Orfeu não teve medo. Parou. Escutou.
Tomou a lira e iniciou a tocar uma canção triste... uma
canção de morte... uma canção que falava do vazio
e da solidão da morte. Lágrimas de chumbo rolaram
pela dura face do deus dos mortos.

Figura 65: Orfeu e Eurídice.

Obra de Paul Rubens 1636-38.

Então, Orfeu pediu ao deus que lhe devolvesse Obra de Federico Cervelli 1625 – 1700. Fondazione Querini-Stampalia, Venezia (Italia)
Eurídice. Mas este não era um costume de Hades. Os
mortos jamais poderiam voltar para o mundo dos vivos. Quando, enfim, viu os primeiros raios do sol, per-
Mas a rainha Perséfone estava igualmente tocada pela cebeu que já estava alcançando o mundo da vida.
canção... mas as almas dos mortos também se toca- Sentiu que se alegrava novamente. Sentiu que as
ram e todos rogavam a Hades que deixasse ir Eurí- trevas da morte o estavam oprimindo grandemente.
dice com seu amado Orfeu. Hades permitiu. Como Quando saiu da caverna da morte e sentiu o perfume
agradecimento, a música dos amantes encheu todo o da natureza, pensou que já estava a salvo da escuri-
mundo dos mortos e, pelo breve instante da canção, o dão. Foi então que ele olhou para trás. Mas sua doce
aquele mundo sentiu vibrar a nota do amor, aquela que Eurídice ainda não estava totalmente na luz. Ela já es-
dá vida a todas as coisas. Havia, no entanto uma con- tava saindo, mas ainda estava coberta pelas sombras
dição: Orfeu deveria ir à frente e caminhar sem cessar, da morte...
até que saísse do mundo subterrâneo. Eurídice iria Eurídice, com um grito aflito, foi novamente traga-
atrás, no silêncio dos espíritos. Quando chegasse no da pelas trevas. Orfeu ouviu uma voz que vinha da
mundo exterior, aí poderiam se abraçar e, juntos, volta- escuridão: “Por que me desobedeceu, homem insen-
rem a viver as alegrias das primaveras. Se ele olhasse sato? Eu, o deus Hades, não odeio os homens, mas
para trás, perderia para sempre sua esposa, pois o co- minha palavra não volta atrás. Jamais verá novamen-
ração de Hades não haveria de amolecer duas vezes. te Eurídice no mundo dos vivos!”. Ele tentou voltar ao
Orfeu entoou uma canção de gratidão e se pôs a reino de Hades, mas as pedras da caverna se fecha-
caminhar para fora. Atrás dele, sem poder ser vista ram definitivamente. Orfeu nunca mais cantou.
ou ouvida, ia Eurídice. Durante a subida, Orfeu foi to-
mado pela dúvida – esta que acompanha todos os ho-
mens: estaria mesmo Eurídice atrás de si? Teria sido
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Não é nada novo na história da humanidade o


Em correspondência influenciada pela Liga das convite a não olhar para o que já passou. O senso co-
Nações, Einstein escreveu a Freud, perguntando-o mum diz coisas absurdas, indicando que o passado
sobre os motivos de os homens ainda fazerem pertence unicamente aos museus. No entanto, se não
guerra, não obstante os grandes desenvolvimentos olharmos para trás, corremos o risco de repetirmos os
tecnológicos. Freud lhe responde que a tecnologia mesmos erros de nosso passado recente ou remoto.
não é capaz por si mesma de deter os intensos Por isto, é preciso arriscar-nos ao passado. É preciso
impulsos de destruição que o homem traz consigo. que olhemos para trás.
O texto completo se chama Por que a guerra? e pode O filósofo que melhor discutirá sobre isto é Niet-
ser encontrado nas obras completas de Freud. É zsche.
uma leitura instigante e nos auxilia a compreender
melhor o ser humano.

Mesmo já sendo habituado a ouvir a dor e o clamor


dos mortos, o deus Hades se compadece de Orfeu e
lhe permite ter de volta sua esposa. No entanto, ele
impõe a seguinte condição: não olhar para trás. Esta
foi a razão da perda de Orfeu. Ele nada ouvia que lhe
desse sinais da presença de sua esposa morta atrás
de si. E olhou para trás.
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O texto abaixo é de Roberto Kahlmeyer-Mertens e nos auxilia na compreensão da genealogia da moral. De


acordo com Nietzsche, não há uma moral eterna, válida para todos os povos em todos os tempos e em todos
os lugares. Toda moral tem uma história e, como tal, tem uma origem. É preciso olhar para as origens da moral,
a fim de que sigamos aquilo que está de acordo com nossas concepções.

NIETZSCHE E O CONHECIMENTO DA MORAL

1 De uma genealogia da moral definição de genealogia que apresentamos, deve-


mos entender uma investigação sobre as origens
O texto é uma interpretação da Genealogia da disso que a tradição filosófica chama de moral, tra-
moral de Nietzsche. Tem como preocupação pri- zendo à luz tudo aquilo quanto a promova.
meira o esclarecimento do processo que o autor Por moral, entendemos o que, tradicionalmen-
apresenta em seu livro. Para tanto, dá ênfase a te, a filosofia compreende como princípios dos
dois momentos da obra, a saber: a Primeira e Ter- costumes e deveres do homem. Isso posto, temos
ceira Dissertações. Esse exercício vem abordar os na pergunta apresentada no início deste parágra-
conceitos centrais desta obra, bem como de todo fo, a iniciativa de esboçar alguns traços para uma
o projeto de transvaloração descrito pelo autor. primeira delimitação do método genealógico que o
Assim, conceitos como vingança, espírito de vin- autor utiliza neste escrito, que utiliza por ferramen-
gança, má consciência, ascetismo estarão presen- tas a filologia e a história para auxiliar certo senso
tes e explicados. Tentaremos também apontar de, seletivo em questões psicológicas, âmbito do qual
maneira breve, como as temáticas de valoração e trafegam os juízos de valor de “bem e mal” (1998).
transvaloração se articulam com os conceitos de Como já dissemos, uma genealogia da moral vai à
vontade de poder e eterno retorno. Todos os es- sua gênese, no “local” onde os valores são cunha-
critos posteriores ao livro Assim falou Zaratustra dos. Com essa investigação, passa a ser possí-
(1885), de Nietzsche, são integrantes de um proje- vel um olhar crítico sobre esses valores. Confor-
to marcado pela idéia da “transvaloração de todos me podemos conferir nas palavras de Nietzsche
os valores”. Isso deixa transparecer (para o autor, (1998): “Necessitamos de uma crítica dos valores
após longa investigação) que o problema da filoso- morais, o próprio valor desses valores deverá ser
fia é um problema de valor. Nesse processo, a Ge- colocado em questão para isso é necessário um
nealogia da moral (1887) vem, a princípio, como conhecimento das condições circunstanciais nas
uma clarificação e complemento de outro texto de quais nasceram, sob as quais se desenvolveram
Nietzsche, intitulado Além do bem e do mal (1886). e se modificam.” Daqui Nietzsche parte para sua
Esta genealogia é um livro que aborda temas de Genealogia da moral, pautando-se, inicialmente,
grande envergadura, como a dor, decadência, von- no estudo dos conceitos que norteiam a tradição
tade, verdade, vida, vingança etc. Nesse exercício, moral. São eles os pré-conceitos de “bem e mal”,
o texto ganha autonomia e não mais se limita a “bom e ruim”.
ser uma obra de esclarecimento, passando a dedi-
car-se ao diagnóstico e análise pormenorizada de 2 Elementos para a caracterização do asce-
certas disposições do espírito humano, tais quais tismo
veremos no decorrer do presente texto.
A Genealogia da moral divide-se em três par-
Adentremos ao tema através da questão: o que tes. A Primeira Dissertação consiste na psicologia
pretende uma Genealogia da Moral? Esta pergun- do cristianismo. Após uma breve introdução (§§
ta parece poder ter resposta pela explicação dos 1-6), Nietzsche inicia a caracterização dos elemen-
termos que a compõem. Por este recurso elemen- tos que compõem esse título por um exercício de
tar, poderíamos obter, por síntese, sua resposta. interpretação histórica das transformações desses
Em sentido literal estrito, o termo genealogia nos conceitos e da análise etimológica dos termos que
remete ao estudo da gênese das coisas, isto é, de dão corpo a estes. Como conclusão desse exercí-
um modo de saber que investiga origens. Daí, po- cio, tem-se que o conceito de “bom” (mesmo nas
dermos fazer a genealogia de uma família, de um manifestações mais antigas da Humanidade, em
grupo étnico etc. No presente caso, Nietzsche pro- suas civilizações mais primitivas) sempre este-
põe uma genealogia da moral. Assim, com base na ve associado ao nobre, ao aristocrático, espiritu-
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almente bem nascido, privilegiado e ao puro. De procura interessada. Este fenômeno ocorre dado a
maneira inversamente proporcional, o “ruim” vem uma espécie de inconformação quanto a sua ime-
dizer respeito ao plebeu, baixio, comum e impu- diatidade e a necessidade de algo que venha dar
ro. Essa distinção, que era apenas estamental, fundamento a essa valoração. Deste modo, com-
adquiriu, com o tempo, à custa do confronto en- preendemos que, quando Nietzsche afirma que a
tre a casta dos nobres com a dos sacerdotes, o alma humana torna-se “má”, isso não é um ates-
caráter irrestrito de valoração através do serviço tado do caráter do homem, mas a constatação de
dessa classe sacerdotal. Os sacerdotes, segundo que agora este trafega num registro de bem e mau,
Nietzsche, interiorizam esses conceitos na forma de bom e de ruim.
ideal de valor, tornando-os intensos ao espírito.
Esse processo merece ser ressaltado pela análise No § 7 da Primeira Dissertação, Nietzsche
da seguinte citação: aponta a facilidade com que o sacerdote transfor-
ma, pela valoração, o “cavalheiresco-aristocrático”
Com os sacerdotes tudo se torna mais perigoso, em seu extremo oposto. Essa valoração parece
não apenas meios de cura e artes médicas, mas ser promovida por certas disposições que ficam
também a altivez, vingança, perspicácia, doença, nítidas na seguinte citação:
mas com alguma eqüidade se acrescentaria que
somente no âmbito desta forma essencialmente Os sacerdotes são, como sabemos, os mais te-
perigosa de existência humana, a sacerdotal, é míveis inimigos __Por quê? Porque são os mais
que o homem se tornou um animal interessante, impotentes. Na sua impotência o ódio toma pro-
apenas então a alma do homem ganhou profun- porções monstruosas e sinistras, torna-se a coisa
didade num sentido superior, e se tornou má (…) mais espiritual e venenosa. Na história universal
(NIETZSCHE, 1998, pp. 24-25). os grandes odiadores sempre foram os sacerdo-
tes, também os mais ricos de espírito __comparan-
Mas por que, para Nietzsche, a atitude do sa- do ao espírito de vingança sacerdotal, todo espíri-
cerdote torna tudo “mais perigoso”? Porque, até to empalidece. A história humana seria uma tolice,
então, a contrariedade entre bom e ruim não tinha sem o espírito que os impotentes lhe trouxeram
conotação valorativa. Isto é, não havia a idéia de (…) é remotamente comparável ao que os judeus
valor formalmente instituída enquanto o “bom” e o contra eles fizeram; os judeus, aquele povo de sa-
“ruim”. Quando esses, que eram apenas conceitos cerdotes que soube desforrar-se de seus inimigos
aplicados, ganham “status” de valor, toda a vida e conquistadores apenas através de uma radical
passa a ser intentada desde a perspectiva dico- transvaloração dos valores deles, ou seja, por um
tômica de uma moral que julga desde o bom e o ato da mais específica vingança (NIETZSCHE,
ruim. Isso institui o risco. O risco de estar entre 1998, pp. 25-26).
dois extremos. Esses extremos se desdobram em
diversos modos de manifestação, como o próprio a Na presente citação, Nietzsche expressa duas
que Nietzsche alude na citação como “altivez, vin- figuras centrais do seu pensamento. São eles: o
gança, perspicácia, dissolução etc…” Por isso, po- “espírito de vingança” e a “transvaloração”. Essas
demos dizer que tudo ficou perigoso. Alguém que ganham explicitação ao longo do texto. Daí, neste
torna a vida tão perigosa, tão arriscada, é, para movimento, vermos uma conotação negativa, des-
Nietzsche, a “forma mais perigosa da existência ta vez como “temíveis inimigos”; entretanto, num
humana” pois é alguém que, enquanto valorador, aparente paradoxo, estes, segundo Nietzsche, são
transforma conceitos em valor, incutindo tal risco. temíveis por serem impotentes. Surge a pergunta:
Essa figura chama-se sacerdote. como alguém que seria impotente poderia ofere-
cer risco e tornar-se assim um “inimigo temível”? A
Por que o sacerdote (tal como foi definido aci- resposta parece vir na seqüência do trecho citado
ma) torna o homem, por essa valoração, um “ani- daquele livro: “Na sua impotência, o ódio toma pro-
mal interessante”? Tornou-se assim por ter ganha- porções monstruosas e sinistras, torna-se a coisa
do profundidade e isto significa que seu espírito mais espiritual e venenosa” (NIETZSCHE, 1998).
não é mais superficial; não é mais imediato. Dizen- Nossa pergunta reincide, embora reformulada:
do de modo claro: o homem torna-se um animal como é que o impotente por intermédio do ódio
interessante quando passa a ter algo “sublança- pode, então, tornar-se um inimigo terrível? Tal res-
do”, quando possui algo recôndito e digno de uma posta requisita uma remissão ao conceito de va-
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lor. O desdobramento dessa análise acrescentará urgência e necessidade. Em linhas gerais, é isso
noções que facilitarão o entendimento da questão que Nietzsche chama de valor e, ao contrário do
bem como outras questões relevantes na filosofia que se poderia pensar, não é uma entidade utiliza-
de Nietzsche. Por esse recurso, poderemos de- da para ajuizamento moral, mas o nome com que
monstrar como o ódio da vingança pode transfor- se designa todo tipo de manifestação engendrada
mar o impotente em inimigo e elevar a disposição por esse conflito. Quanto a sua apreensão, os va-
da vingança à qualidade de espírito de vingança. lores podem apresentar-se sob duas disposições
Explicaremos, durante uma digressão sucinta, al- fundamentais:
guns conceitos fundamentais relacionados a esta
problemática. 1. disposição afirmativa, como aquela que se
faz em sintonia com o lance e cadência do citado
3 Vontade e valor binômio, afirmando-o como modo estrutural da re-
alidade em sua gênese;
O valor em Nietzsche está em ligação direta 2. disposição reativa, que não se conforma com
com o binômio que marca o próprio modo do acon- este modo constitutivo, fazendo que irrompa uma
tecimento arcaico-originário da existência: vonta- perspectiva derivada, que se arroga no direito de
de de poder/eterno retorno. Com este, Nietzsche requerer um modo de realização da existência di-
(1994) procura descrever o caráter de devir sem- verso do que se dá nessa instauração.
pre atual, a sua constante re-inserção no modo de Tais modos são possibilidades de realização
ser da realidade. “Onde encontrei o vivente, aí en- dessa vida.
contrei vontade de poder”. Em uma primeira visão,
o termo vontade nos parece uma referência a uma Os valores, por estarem articulados com o pró-
propriedade de nossa subjetividade. Assim, a von- prio modo de dar-se da vida, isto é, com o movi-
tade é vista por nós como algo que possuímos ou mento da vontade, são sempre passíveis de apre-
não. Destarte, a vontade estaria em ligação direta ensão através de duas disposições fundamentais:
com a possibilidade de uma escolha, com o livre as disposições afirmativa e reativa. Respectiva-
arbítrio. Entretanto, vontade em Nietzsche é o que mente, aquelas que indicam sintonia e des-sinto-
configura a abertura de vida e sua configuração no nia com a compreensão de vida como valor. No
instante, no tempo. Deste modo, constatamos que, primeiro caso, a disposição afirmativa surge na sin-
mesmo o portador de um suposto livre arbítrio, fa- tonia com uma perspectiva que se constrói a partir
z-se em comunhão com o movimento essencial do do aquiescimento do modo de ser sempiterno da
tempo, isto é, na cadência do instante (ainda que gênese de realidade, celebrando a vida enquanto
certo afastamento passe a impressão de uma an- experiência de criação. A esse processo Nietzsche
terioridade frente à realização do instante e uma chama vontade criadora. No segundo caso, a dis-
aparente possibilidade de intervenção arbitrária ou posição negativa irrompe em uma perspectiva que,
subjetiva). ao se instaurar, nega a si mesma enquanto pers-
pectiva e se arroga o direito de determinar (para
Assim, vida eternamente retorna como impulso além de toda e qualquer instância de realização) o
para as realizações de suas possibilidades. Vida, modo de ser da totalidade dos entes. Esta é a com-
segundo Nietzsche, é o movimento sempiterno de preensão da verdade, como uma instância que
diferenciação da vontade, tendo este sempiterno o surge em função da separação radical frente ao
caráter do eterno retorno, que determina o instan- mundo fenomênico, recebe o nome de vontade de
te em sua circularidade. Vontade de poder/eterno verdade. Estas determinações vão se confundin-
retorno diz respeito a toda e qualquer dimensão do aos poucos, no movimento de concretização do
do acontecimento de realidade, narrando, enquan- processo de valoração, com as determinações da
to existência, a assunção fundamental da vida em substancialidade subjetiva, com a natureza da ra-
sua cadência, instauração, vigência e propriedade. zão especulativa. Daí, a vontade de verdade valer
Considerando a dinâmica descrita, podemos cons- como uma vontade de auto-asseguramento, sendo
tatar que existência e suas possibilidades configu- uma experiência derivada que nasce da compre-
ram-se no instante. Entretanto, ali só é capaz de se ensão de que a vida é radicalmente movimento de
concretizar uma possibilidade por vez (uma a cada repetição do momento constitutivo de origem; um
instante). O que acarreta um combate entre possi- momento impossível de ser apropriado pelo pen-
bilidades que se determinam junto ao modo de sua samento lógico-representativo. Essa impossibilida-
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de de apropriação e controle do momento primei- tra maneira”, como o que impulsiona a vingança
ro, que atravessa o acontecimento vida, apesar de contra o modo de ser da própria vida. Não raro,
ser constantemente experimentada pelo homem Nietzsche faz referência que, e este ódio sempre
no caminho histórico de sua realização, pode ser traz junto de si o que o predicado de “venenoso”
degradada por um artifício da imaginação (NIET- e “contagioso”. Vemos uma explicação dessas ca-
ZSCHE, 1998). racterísticas através da seguinte passagem:
Os senhores foram abolidos; a moral do ho-
Após estas considerações (que tiveram por mem comum venceu. Ao mesmo tempo, essa vi-
objetivo introduzir conceitos centrais da filosofia tória pode ser tomada como um envenenamento
de Nietzsche, como o binômio vontade de poder/ do sangue (…) A “redenção” do gênero humano
eterno retorno e, principalmente, responder à per- (do julgo dos senhores) está bem encaminhada;
gunta: como é que o impotente através do ódio tudo se judaíza, cristianiza, plebeíza visivelmente
pode tornar-se inimigo tão terrível?), podemos as- (que importam as palavras!). A marcha desse en-
severar que a valoração efetuada pelo sacerdote venenamento através do corpo inteiro da Humani-
é mais que uma apropriação cultural de conceitos. dade parece irresistível, sua cadência e seu passo
Trata-se de uma interiorização espiritual, ou o que podem inclusive ser mais lento doravante, mais
Nietzsche chama de “transvaloração”, que é pro- refinados, cautelosos, inaudíveis __ há tempo bas-
movida por um sentimento de inconformidade. Não tante… (NIETZSCHE, 1998, p. 28).
só com aquilo que se manifesta fenomenalmente,
mas com o modo como que fenômeno se dá. Esta O que Nietzsche quereria grifar ao apontar este
inconformidade, impotente diante do movimento “envenenamento”? Seria apenas uma figura de re-
constitutivo da realidade, se apresenta como ódio, tórica para grifar o modo com que a atitude vinga-
posto que a dinâmica de constituição da realidade tiva do sacerdote mina o espírito humano através
não se submete à arrogância de uma disposição da transvaloração? Por que esse envenenamen-
negativa da vontade. Deste modo, na impossibi- to, à medida que avança, torna-se mais refinado,
lidade de vingar-se nisso que não pode ser tangi- cauteloso, inaudível? Como se relaciona a trans-
do, a vingança recai sobre aquilo que se encontra formação dos conceitos inicialmente apresenta-
mais próximo dessa vontade. dos: puro e impuro, bom e ruim? Respondendo às
perguntas: Nietzsche, quando se refere a enve-
nenamento, está falando da vontade de vontade,
4 Ressentimento e ascetismo que busca assegurar-se daquilo que é tangível,
tornando “pensável todo ente”, submetendo toda a
Na própria Genealogia da moral, ainda no § 7, realidade a procedimentos de um pensamento es-
dessa Primeira Dissertação, Nietzsche exemplifi- quemático que pretende jogar luz sobre tudo aqui-
ca essa vingança operada pelos sacerdotes que, lo que é indômito, inusitado, inesperado através de
através do judaísmo e do cristianismo, obtiveram determinações cunhadas pelo ódio, pela vingança.
sua desforra contra seus inimigos, invertendo as Estes procedimentos sistemáticos do pensamen-
premissas vigentes. Assim, o bom passa a ser o to cunham determinações que redundam no mo-
pobre; o miserável, em contrapartida, o ruim, o vimento de concretização do processo metafísico.
mau, o impuro são aqueles materialmente ricos. Daí, Nietzsche apontar o aperfeiçoamento, um
Isso Nietzsche identifica como um “ato da mais refinamento deste “modo de envenenar”. Trata-se
espiritual vingança”. De imediato, uma conclusão de um processo da história da humanidade que se
parece esboçar-se após a apresentação dessa confunde com uma experiência da metafísica em
resposta: a atitude sacerdotal, que é caracteriza- seu processo histórico. Esse é o ponto de inter-
da pelo ato da vingança, é manifestação de uma seção entre isso que chamamos de “envenena-
vontade de vontade, que é deduzida de uma pers- mento” e da relação inicialmente abordada sobre
pectiva reativa a experiência de compreensão da conceitos de bom e ruim. Nietzsche (1998) retoma
vontade de poder. Isso comprova que o espírito de a questão do bom e do ruim ao comparar o modo
vingança (que é o que promove o sacerdote) tam- sistemático da atuação da metafísica e aquilo que
bém é manifestação de vontade de poder. ele chama de “rebelião escrava da moral”, carac-
terizada pela atuação do próprio ressentimento
Vimos, nesse processo de transvaloração, o através de vingança ao criar valores (como vi-
ódio contra “aquilo que é, e não pode ser de ou- mos acima). (…) o ressentimento dos seres aos
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quais é negada a verdadeira reação, a dos atos, de subterfúgios, por parte do ressentido, exposto
e que apenas por uma vingança imaginária obtêm por Nietzsche de modo caricato. Uma caricatura
reparação. Enquanto toda moral nobre nasce de que marca a insatisfação que a metafísica tem
um triunfante Sim a si mesma, já de início a moral para com o modo de ser do fenômeno. Isso marca
escrava diz Não é seu ato criador. Esta inversão uma vontade, a vontade de verdade, tal como vi-
do olhar que estabelece valores __este necessá- mos nas primeiras páginas deste escrito.
rio dirigir-se para fora, em vez de voltar-se para si
__ é algo próprio do ressentimento: a moral escra- Após algumas considerações sobre fenômenos
va sempre requer, para nascer, um mundo oposto do comportamento europeu de sua época, como
ao exterior, para agir em absoluto __ sua ação é ao aquiescimento da possibilidade da barbárie,
no fundo reação”. (Assim, Nietzsche acrescenta presente no conceito de “besta loura”, que, em cer-
mais à frente) o homem do ressentimento não é ta medida, era a compreensão de valor vigente ao
franco nem ingênuo, nem honesto e reto consigo. nobre, como o destemido, o voluptuoso. Partimos
Sua alma olha de través ele ama os refúgios, os para o § 14, no qual Nietzsche descreve a mecâni-
subterfúgios, os caminhos ocultos, tudo escondido ca de transvaloração e construção de idéias.
lhe agrada como seu mundo, sua segurança, seu
bálsamo; ele entende do silêncio, do não esqueci- Desde quando apresentamos o conceito de
mento, da espera, do momentâneo apequenamen- “vingança” e o de “espírito de vingança”, vimos
to e humilhação própria (NIETZSCHE, 1998, pp. descrevendo um processo que se resume em
28-29). impossibilidade-ressentimento-vingança-transva-
loração. Talvez a citação acima seja a passagem
Na citação, vemos Nietzsche apresentar o con- da Genealogia da moral na qual fica mais claro o
ceito de ressentimento, que é a atitude daquele processo descrito. Com esta citação, Nietzsche
que se inconforma com o modo de ser da realida- revela no que consiste a transvaloração. Segundo
de, é a postura do sacerdote. É o ódio que marca a esse autor, é uma mentira que muda a fraqueza
reatividade expressa na forma de vingança contra em mérito. Assim, tudo acontece como empecilho,
algo que não se pode alterar, algo já ocorrido de impossibilidade, deficiência, é re-apropriado posi-
forma intangível. O ressentimento é reação contra tivamente. O sacerdote é este que altera certas
a ação da vida, é seu movimento de ser. Vingança perspectivas, revalorando os valores vigentes. Se-
é a atitude daquele que não age tragicamente, isto gundo Nietzsche (1998), essa experiência é o que
é, não aquiesce vida em seu modo constitutivo de transforma o miserável, o doente em pecador, des-
ser enquanto vontade de poder/eterno retorno. Por te modo podendo ser salvo; passando, doravante,
isso, o ressentimento nega ao invés de dizer Sim. a “ter jeito”. Isto desagrava o caráter trágico que a
Nietzsche aponta a negação como o ato criador realidade possui, causando a impressão de que a
do ressentido, pois, ao negar a realidade, este se impossibilidade ante o modo de ser da realidade
remete, se desvia a uma perspectiva interior (daí pode ser vencida. Entretanto, isso não passa de
falarem interiorização de valores da alma do ho- uma impressão, pois a impossibilidade permanece
mem), na qual cria ou transmuta a realidade em e o que aconteceu não retrocede.
novos valores, em ideais. Assim, o ressentimento
acha ter agido, ter feito por onde..., ter feito o que Na verdade, a inconformidade ante aquilo que
pôde… Isso conforta e diminui o sentimento de acontece é um não para esse acontecer, entretan-
impotência ante aquilo que se afirma inalterável. to quando este não é afirmado o acontecimento já
Com isso, justificamos a afirmação de Nietzsche se consumou e, contra isso, nada mais pode ser
de que ressentimento é reação. Embora tenhamos feito. Para que: essa vontade não fosse impotente
dito que ressentimento cria valores, este não é pro- frente à dinâmica desse acontecer, seria preciso
movido pelo que Nietzsche chama de vontade cria- que essa dinâmica estacionasse no instante em
dora, pois (como já vimos) é ela uma disposição que o acontecer se dá; isso conseguido, seria pre-
afirmativa. Destarte, a compreensão de vida como ciso que déssemos um passo atrás desse instante
valor se constrói a partir da assunção do caráter e, então, este poderia ser negado. Vemos que isso
sempiterno da gênese da realidade, a partir da é inteiramente impossível, daí dizer que somos im-
vida enquanto experiência de criação. Na segunda potentes frente à dinâmica de ser no seu instante.
parte da passagem citada, o autor nos aponta um O sacerdote parece saber desse processo, que
comportamento sinuoso, cheio de desconfiança, sua transvaloração é uma adulteração, que seu di-
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zer é um “enganar”, daí Nietzsche afirmar que eles pa da dívida passa a ser encarado como “infrator”,
“suam ao falar disso”. Nessa passagem, na qual um criminoso, isto é, aquele que não cumpriu sua
o autor nos convida a descer à “oficina na qual se parte em um “contrato” em um plano de relação de
fabricam os ideais” (NIETZSCHE, 1998), fica claro algum modo esclarecido. A vingança, neste modo,
que esses ideais são valores transvalorados por recebe o nome de justiça se instituindo enquanto
esse processo, assumidos como premissa orienta- legislação, o que aparentemente se mostra como
dora de um modo de viver instituído, que Nietzsche uma evolução do sentimento e ressentimento e de
reconhece como amesquinhamento do Homem, reatividade (ANSELL-PEARSON, 1997). Por fim,
da Humanidade. Nietzsche (1998) afirma: “a doutrina da vingança
atravessa como um fio vermelho da justiça todos
5 De uma psicologia da consciência moral meus trabalhos e esforços”.

Na Segunda Dissertação, se encerra uma psi- 6 Do ascetismo e sua compreensão de vida


cologia da consciência moral. Contudo, esta par- como “caminho errado”
te não receberá tematização pormenorizada aqui.
Quanto a ela, apresentaremos rapidamente con- A Terceira Dissertação dialoga com a Primeira
ceitos que, embora apresentados no corpo desse que estudamos por tratar de um dos ideais, cunha-
texto, reincidem na Terceira Dissertação. Desta fei- dos pela transvaloração descrita acima. Nietzsche
ta, as considerações que se seguem são extraídas afirma que os filósofos, e logo, a filosofia, compar-
de alguns parágrafos selecionados sob o critério tilha do ressentimento típico do sacerdote, sendo
de serem mais claros na exposição destes concei- assim, fruto de ressentimento. Entretanto, Nietzs-
tos. A saber, §§ 4-6, §§ 11-12, § 14. che quer atingir algo mais específico, ele deseja
saber neste momento: “Qual o significado dos ide-
Também nessa Dissertação encontramos o ais ascéticos?” Resposta que se encaminha a par-
conceito de má consciência, relacionado ao de tir dos seguintes enunciados: “O pensamento em
“culpa”; é, pois, a consciência da culpa. Nietzsche torno do qual aqui se peleja, é a valoração de nos-
sinaliza que o conceito de culpa tal como se com- sa vida por parte dos sacerdotes ascéticos (…)”,
preende hoje tem sua origem na idéia material de asceticismo que encontra definição nas seguintes
dívida. Hoje, embora essa dívida tenha perdido passagens:
seu caráter de material, a culpa continua a dizer
respeito à dívida, ainda que essa seja apenas em O asceta trata a vida como um caminho erra-
uma dimensão psicológica. Assim, alguém que se do, que se deve enfim desandar até o ponto em
sinta culpado, necessariamente está em dívida que começa; ou como um erro que se refuta _ que
com algo; culpa faz referência à consciência da se deve refutar com a ação: pois ele exige que
obrigação, da reparação de uma dívida, cobrada se vá com ele, e impõe, onde pode a sua valo-
materialmente entre os antigos. Desse modo, o ração da existência (…) Pois uma vida ascética é
autor mostra que o credor tinha o direito de “des- uma contradição: aqui domina um ressentimento
contar” quanto achava que valesse a sua dívida ímpar, aquele de um insaciado instinto e vontade
no devedor. Com esse processo, ainda que não de poder que deseja assenhorar-se, não de algo
se obtivesse a reparação material, pelo menos da vida, mas da vida mesma, de suas condições
obtinha o que Nietzsche aponta como satisfação maiores mais profundas e fundamentais; aqui se
íntima, que ameniza o débito como uma descarga faz a tentativa de usar a força para estancar a fonte
dessa impotência. Assim, o ultraje, a punição do da força; aqui o olhar se volta, rancoroso e pérfi-
devedor passa a ser instituído como o direito dos do, contra o florescimento fisiológico mesmo, em
senhores (desses que imprimem a dívida) sobre os especial contra sua expressão a beleza, a alegria;
escravos (estes que arcam com a dívida). enquanto se experimenta a busca a satisfação no
malogro, na desventura, no fenecimento, no feio,
Culpa, nesse processo histórico, ganha o ca- na perda voluntária, na negação de si, autoflagela-
ráter psicológico de sofrimento. Vingança aparece ção e auto-sacrifício (NIETZSCHE, 1998, pp. 107-
aqui na forma dessa restituição, de ressarcimento 108).
da dívida, dessa falta que o indivíduo tem com seu
credor. O credor se vinga do indivíduo, impingindo- Logo ao abrir a citação, Nietzsche afirma que
-lhe martírios. Assim, esse que responde pela cul- “o asceta trata a vida como um caminho errado”.
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Ora, mas o que poderíamos entender com isso? afirmar que o sacerdote encara o desejo de ser
Um caminho errado seria aquele que, num deter- outro. O que seria esse desejo senão a inconfor-
minado momento, se toma equivocadamente. Daí midade ressentida contra o modo constitutivo do
a necessidade de retornar ao ponto em que se efe- ser da vida? O desejo de ser outro é o de não ser
tuou o erro para tomar a trilha certa. Entretanto, em impotente, de concretizar a vontade subjetiva de
se tratando da vida, vê-se que, desde sempre, se dar à natureza a marca irrestrita do homem. É o
esteve nesse caminho e pressupô-lo errado é ne- desejo que o homem tem de não ser surpreendido
gá-lo totalmente, sem a possibilidade de retornar por fatalidades, por tornar a natureza clara, chata,
a um momento anterior; seria, pois, renegar toda sem nenhum traço de mistério, de inesperado, de
a vida. A vida, para o asceta, tem a conotação de espontâneo. Isso é uma febre, uma paixão incon-
erro, algo como: aquilo que não devia ser assim… tida e irrealizável confirmada a cada instante que
; isso é o que chamamos de atitude inconformada, a vida enquanto vontade de poder/eterno retorno
o que resultará numa reação. Essa reação é acar- se afirma. O modo de lida por parte do sacerdote
retada por aquele “ressentimento ímpar”, ao qual ascético com o ressentimento fica claro com a se-
Nietzsche (1998) se refere por “aquele insaciado guinte citação:
instinto e vontade de poder que deseja assenho-
rar-se não de algo da vida, mas da vida mesma…”. (…) o ressentimento é continuamente acumula-
Assenhorar-se da vida significa fazer dela objeto do. Descarregar este explosivo, de modo que não
de posse. É isso que pretende o sacerdote ascé- se faça saltar pelos ares o rebanho e o pastor, é a
tico. Entretanto, ele o faz executando um “instinto sua peculiar habilidade, e suprema utilidade; que-
de cura e proteção de uma vida que degenera”. rendo-se resumir numa breve fórmula o valor da
Um desejo de correção da vida de fazer que essa existência sacerdotal, pode-se dizer simplesmen-
se corrija frente essa noção de erro que o próprio te o sacerdote é aquele que muda a direção do
sacerdote introduziu. ressentimento. Pois todo sofredor busca instintiva-
mente uma causa para seu sofrimento; mais pre-
O ideal ascético é um tal meio: ocorre, portan- cisamente, um agente culpado suscetível de so-
to, exatamente o contrário do que os adoradores frimento_ em suma, algo vivo, no qual possa sob
deste ideal __ a vida luta nele e através dele com algum pretexto descarregar seus afetos, em ato ou
a morte, contra a morte, o ideal ascético é um ar- in effigie pois, a descarga de afeto é para o sofre-
tifício para preservação da vida (…) O sacerdote dor a maior tentativa de alívio. Este pensamento
ascético é a encarnação do desejo de ser outro, de pode ser traduzido da seguinte forma Eu sofro: dis-
ser-estar em outro lugar, é o mais alto grau desse so alguém deve ser culpado __Assim pensa toda
desejo, sua verdadeira febre e paixão: mas preci- ovelha doente. Mas o seu pastor, o sacerdote as-
samente por isso ele se torna o instrumento que cético, lhe diz: Isso mesmo, minha ovelha! Alguém
deve trabalhar para a criação de condições mais deve ser culpado: mas você mesmo é esse alguém
propícias para ser homem (…) Já me entendem: __ somente você é culpado de si… Isto é ousado
este sacerdote ascético, este aparente inimigo da bastante, falso bastante: mas com isso se realça
vida, este negador ele exatamente está em gran- uma coisa ao menos, com isto como disse, a dire-
des potências conservadoras e afirmadoras da ção do ressentimento é __ mudada (NIETZSCHE,
vida (NIETZSCHE, 1998, p. 110). 1998, p. 116).

A primeira parte dessa citação permite que con- Quando falamos da vingança gerada por res-
cluamos que mesmo o ideal ascético (que é um sentimento (que denota descontentamento pela
produto do espírito de vingança, e que se mostra impossibilidade de alterar o modo com que a reali-
como uma negação ressentida do modo de ser da dade se efetiva), talvez não tenha ficado claro que
vida) é manifestação da vontade de poder/eterno a vingança é imposta contra algo ou alguém que,
retorno, pois, no ideal ascético, ainda vige a luta ao contrário do modo de ser da realidade, pode ser
entre vida e morte, entre vontades de poder; ten- afetado. Assim, vingança tem a tendência de ser
são entre crescimento, conservação e definha- a desforra, ou o desconto contra algo ou alguém,
mento, corrupção. O ideal ascético preserva, sem pois o ressentimento busca atingir aquele que é o
saber, o caráter de luta característico da vida (em- “responsável”, o culpado por esta dor que ele sente
bora em um plano muito velado). (assim, torna a funcionar a mecânica apresentada
Em outro momento da citação, vemos o autor nas breves considerações feitas sobre a Segunda
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Dissertação). A busca por culpados é movida pelo não se “deleta” mas antes se torna consciente de
interesse de despejar todo sofrimento, frustração seus defeitos e instintos ruins, transformando-os
ou dor sobre qualquer um que seja suposto cau- em autodisciplina, em uma tábua valorativa que
sador ou responsável dessa comoção. O sacerdo- impõe uma regra moral, uma moral de horda, de
te ascético é aquele que “muda a direção” desse escravos.
ressentimento acumulado, que ameaça recair em
um culpado. Assim, o sacerdote confirma o ressen- Tudo isso é ascético no mais alto grau; ao mes-
timento, ratifica que existe a culpa, mas nega que mo tempo, que não seja engano, é niilista em grau
pertença a outro, afirmando que, na verdade, é de ainda mais elevado! Vemos um olhar triste, duro,
quem verdadeiramente sofre por ressentir-se. Com porém decidido __ um olho que olha para longe,
isso, a “avalanche” é retida, de modo que o ressen- como faz um explorador polar desgarrado (para
timento passa a ser redirecionado, fazendo que o não olhar para dentro? Não olhar para trás?). Há
ressentido tenha que aprender a conviver com sua apenas neve, a vida emudeceu, as últimas gralhas
dor. Observa-se, portanto, que ali, no bojo do pró- que se fazem ouvir dizer “Para que?”, “Em vão!”,
prio ressentimento, cria-se um modo de transvalo- “Nada” __ nada mais cresce ou medra (NIETZS-
ração (em ato de silenciosa vingança) com o qual CHE, 1998, p. 114).
o ressentido parece ter que se contentar.
Nessa passagem, temos o laço que, durante
Nietzsche prossegue, descrevendo a atuação todo o texto, procuramos mostrar quando falamos
do sacerdote: em ressentimento, culpa e vingança. A saber, o
Percebe-se agora o que, segundo minha con- nexo entre asceticismo (ideal ascético) e niilismo.
cepção instinto-curandeiro da vida ao menos ten- O asceticismo é niilismo, pois nivela a Humanidade
tou através do sacerdote ascético, e que lhe ser- a uma dimensão de impessoalidade, submetida a
viu a tirania temporária de conceitos paradoxais princípios morais cunhados por um ressentimento
e paralógicos como “culpa”, “pecado”, “pecami- que não se levou às últimas conseqüências. Desta
nosidade”, “corrupção”, “danação”: para tornar os experiência furtou-se qualquer sinal de decisão, de
doentes inofensivos até certo ponto, para fazer os necessidade, de tragicidade e de coerência para
incuráveis se destruírem por si mesmos, para com com o modo de ser da vida. Agora se vive determi-
rigor orientar os levemente adoentados de volta a nado, vigiado, circunscrito em um código; o viver
si mesmos, voltado para trás seu ressentimento se reduziu a obediência servil, e fora disso, nada.
(uma só coisa é necessária) e desta maneira apro- Vive-se para cumprir um código, vive-se, obede-
veitar os instintos ruins dos sofredores para o fim cendo a esse código sem saber o porquê, ou para
de auto-disciplinamento, auto-vigilância, auto-su- quê. Vive-se sem nenhum horizonte, sem nenhu-
peração (NIETZSCHE, 1998, pp. 117-118). ma perspectiva, a não ser não sofrer; tudo é em
vão. Nietzsche explica isso na seguinte passagem:
Esta citação nos deixa claro que, em certa me-
dida, o sacerdote é um conservador da vida. Isso Se desconsiderarmos o ideal ascético, o ho-
quer dizer que, ainda que declaradamente negan- mem, o animal homem, não teve até agora sentido
do a vida, ele afirma vontade de poder/eterno re- algum. Sua existência sobre a terra não possuía
torno, quando deixa o ressentimento entregue aos finalidade; “para que o “homem?”__ era uma per-
jogos de força dessa. Explicaremos: entre todos os gunta sem resposta; faltava a vontade de homem
ressentidos que buscam livrar-se da dor da impo- e terra; por trás do grande destino humano soa-
tência de alterar o modo constitutivo da vida, exis- va, como um refrão. Um ainda maior “em vão!” O
tem aqueles que, ao saberem pelo sacerdote que ideal ascético significa precisamente isso: que algo
eles são culpados pelo próprio sofrimento, se arruí- faltava, que uma monstruosa lacuna circundava o
nam. Para estes, o ressentimento é grande demais homem (…) A falta de sentido, não o sofrer, era a
para perdoar a culpa; daí a vingança recair sobre maldição que até então se estendia sobre a Huma-
o próprio ressentido, aniquilando-o. Para outros, nidade__ o ideal ascético lhe ofereceu um senti-
que Nietzsche chamará de “menos adoecidos”, é do? foi até agora o único sentido, qualquer sentido
possível suportar essa culpa, acatar a culpa do seu é melhor do que nenhum (…) Nele o sofrimento
sofrimento, assumir a responsabilidade de seu res- era interpretado; a monstruosa lacuna parecia pre-
sentimento. Para esses, o sacerdote propiciou um enchida; a porta se fechava para todo o niilismo
“voltar atrás do seu ressentimento”; com isso, ele suicida. (Daí Nietzsche afirmar na conclusão de
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sua obra) o homem preferirá ainda o querer o nada mais angústia, sofrimento, temor, náusea. O algo
a nada querer… (NIETZSCHE, 1998, pp.148-149) que faltava chegou suprimindo a lacuna do sentido
do Homem e da Humanidade. O ideal ascético dá
Aqui o ideal ascético, surge, como sentido para consolo, mesmo sendo niilismo. Assim, fica claro
a vida, um “porquê” para isso que enquanto vonta- porque o homem prefere querer o nada, pois esse
de de poder/eterno retorno se mostrar ao ressen- “nada” é algo em que ele pode agarrar-se, deste
tido como mistério. O ideal ascético traz finalidade “para nada” o homem extrai consolo, defesas con-
para aquilo que não tem finalidade, cria respostas tra outro nada, o nada que a vida lhe impunha.
que vêm dar explicações através de uma tábua
de valores, vêm explicar a vida dando segurança
para quem vive desde essa perspectiva. O misté-
rio, que é a vida, enquanto vontade de poder/eter-
no retorno, era interpretada pelo ressentido como
o “Em vão”, agora tem um porquê, agora não há
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