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CÉLI REGINA JARDIM PINTO

Paradoxos
da participação
política
da mulher
no Brasil
CÉLI REGINA JARDIM
PINTO é professora
do Departamento
de Ciência Política da
Universidade Federal do
Rio Grande do Sul.

98 REVISTA USP, São Paulo, n.49, p. 98-112, março/maio 2001


política&participação O
exame da participação política da
mulher no Brasil tem trazido para a
discussão a problemática da baixa
participação, quer sejam tomados co-
mo referência os legislativos estadual, federal ou munici-
pal, quer se tomem os cargos executivos em todos os ní-
veis. Mesmo após a lei que garantiu cotas para as mulheres
nas listas partidárias, as dificuldades se mantiveram, ou os
partidos simplesmente não obedecem a lei ou completam
suas listas com “falsas” candidatas que na verdade não
fazem campanha.
A questão, entretanto, necessita ser analisada tomando
outros ângulos da participação política. Reduzi-la a êxitos
em contendas eleitorais não permite a visualização da di-
nâmica da participação política das mulheres no país nos
últimos 25 anos. Esta participação tem tido resultados
concretos que podem ser constatados através de uma série
de indicadores tais como: a criação de um Conselho Na-
cional da Condição da Mulher em 1985, que teve atuação
fundamental na segunda metade da década de 80, princi-
palmente junto à Constituinte; a própria Constituição de
1988, que assegurou um conjunto importantíssimo de
direitos às mulheres; a existência no âmbito do Ministério
da Saúde do Plano de Saúde Integral da Mulher; a mul-
tiplicação pelo país de delegacias de polícia da mulher e
conselhos estaduais e municipais. Simbólico de toda esta
presença é o fato de o site do governo federal na Internet
ter uma página específica para mulher
(www.redegoverno.gov.br/mulhergoverno). A página traz
informações sobre projetos no Congresso Nacional, notí-
cias sobre programas em ministérios e notícias em geral,
tudo se referindo aos direitos das mulheres.

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Ainda deve-se chamar a atenção que como ministras e secretárias de Estado. A
durante o período de campanha eleitoral, segunda questão concerne às formas
pelo menos nas duas últimas eleições, na alternativas de participação das mulheres,
propaganda eleitoral gratuita de TV, foi que permitem a elas obterem êxitos tão
surpreendente a quantidade de candidatos expressivos como os que foram apontados
que colocaram em suas plataformas ques- acima. O propósito deste artigo é discutir
tões relacionadas aos direitos das mulheres. estas duas questões com referência à
O tema não só ganhou legitimidade no realidade brasileira. Com este objetivo está
discurso político, mas se constituiu como dividido em duas partes: na primeira parte
necessário para legitimar a própria preten- será discutida a noção de participação
são eleitoral dos candidatos. política, tratando ao mesmo tempo de
levantar hipóteses sobre a pouca parti-
cipação feminina e mostrando limite da
noção para analisar o processo de inserção
das mulheres na política, principalmente
no Brasil; na segunda parte serão apontados
alguns exemplos da participação tanto
institucional como em suas formas alterna-
tivas. Este texto não pretende fazer um
balanço, nem muito menos um dossiê.
Antes disso pretende ser uma hipótese sobre
participação política que tem as mulheres
brasileiras como centro.

I
A Ciência Política tem feito inúmeras
tentativas de medir participação política: a
tradição da aferição dos níveis de
participação e de interesse por política do
cidadão comum através de survey começou
ainda na década de 50 e teve grande desen-
volvimento desde então (Almond e Verba;
Lazarsfeld; Campbell; Lancelot). No Brasil
estudos de comportamento político e de
Passeata Todos estes indicadores expressam a cultura política sempre têm incluído variá-
existência de uma presença muito firme das veis que pretendem medir os graus de
feminista na
mulheres na defesa de seus interesses. Há participação política da população
década de 60 uma participação efetiva das mulheres no (Baquero; Moisés; Lamounier; Reis). Esses
em Paris cenário da política, que as análises que se estudos constroem escalas para medir
limitam a estudar participação através de interesse e participação que abrangem desde
resultados eleitorais não permitem vislum- a leitura de notícias sobre a política até a
brar. Daí a existência de duas questões de efetiva militância nos partidos políticos.
naturezas distintas quando o tema é a Esse tipo de investigação tem produzido
participação das mulheres: a primeira diz um interessante conjunto de dados,
respeito à fraca participação das mulheres entretanto, carrega consigo algumas sérias
nas esferas estritas da política, isto é, tanto limitações quando se trata de trabalhar a
no campo eleitoral, como no campo dos questão da participação das mulheres: a
cargos de primeiro escalão de governo mais importante delas deriva-se da própria

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noção de participação da qual esses estu- mulheres politizando enfaticamente o pri-
dos partem – escalas de participação to- vado.
mam como parâmetro de alta participação A nova posição da mulher no mundo
o envolvimento político partidário; a outra do trabalho ao lado das lutas do movimen-
limitação é a ausência, em muitos casos, de to feminista trouxe mudanças importantes
variáveis de sexo, que permitiriam a análise na relação das mulheres com o mundo pú-
comparativa dos dados tanto em relação à blico e, certamente, alavancou muitas das
participação dos homens, como à das lutas das mulheres na segunda metade do
mulheres em uma série histórica. Soma-se século XX, inclusive no âmbito das polí-
a esses limites a estreita relação que esses ticas públicas. Entretanto, não houve uma
estudos fazem entre interesse, participação ocupação na mesma proporção pelas mu-
política e interesse por processos eleitorais. lheres na vida político-partidária que
Sejam quais forem as limitações dessas corresponda, mesmo de longe, à sua entrada
análises o fato é que elas medem um im- no mundo do trabalho. Não se trata de
portante tipo de participação política, onde argumentar que deveria haver uma cor-
os índices de participação da mulher têm respondência entre a entrada no trabalho e
sido historicamente muito baixos em quase a entrada na política; o que, todavia, não
todas as democracias ocidentais. Este pode deixar de chamar a atenção é a grande
quadro tem experimentado mudanças distância entre esses dois movimentos.
significativas apenas nos últimos dez anos A causa da tímida presença das mulheres
em países como Inglaterra, França e nos no mundo da política, portanto, é uma
países escandinavos. Um complexo questão bastante mais complexa, que não
conjunto de causas explica essa ausência, se resolveu com a entrada da mulher no
entre elas é mister enfatizar a rígida divisão mundo do trabalho. Para cercar com um
entre o público e o privado estabelecida pouco mais de acuidade a questão, duas
pelo pacto democrático liberal, onde o outras dimensões do problema devem ser
público é o lugar da cidadania e da política consideradas: a primeira diz respeito à pró-
e o privado da família e das relações entre pria natureza da participação política posta
os gêneros. O público se constituiu como pela democracia liberal e a segunda refere-
um espaço masculino por excelência se à dinâmica do movimento feminista e
enquanto o privado – o espaço da casa – sua relação com a política.
seria o espaço da mulher. A segunda metade Inúmeros trabalhos têm contestado a
do século XX experimentou transformações forma como se constitui a esfera pública
importantes nessa rígida divisão, princi- (política) nas democracias liberais, que, por
palmente, a partir da entrada forte da mulher sua natureza, parte do reconhecimento de
no mercado de trabalho. Esse movimento uma igualdade fundamental entre os
ocorreu em todas as classes sociais e em cidadãos através do qual se estabelece as
todos os ramos profissionais, sendo que os regras do regime democrático (Young;
dados sobre essa entrada no Brasil não Fraser; Phillips; Benhabib; Mouffe). A
deixam dúvidas sobre uma nova confi- crítica dirige-se à construção de esferas
guração do mundo do trabalho. Segundo os públicas onde as desigualdades devem ficar
dados da última PNAD, no Brasil, 49% das entre parênteses, o que na prática significa
mulheres estão no mercado de trabalho ou a exclusão dos grupos mais frágeis, ou
(www.ibge.gov.br). Soma-se a essa saída a pura dominação no próprio interior da
de casa das mulheres a grande presença do esfera pública: trata-se de capitais diferentes
movimento feminista, a partir da década de para agir no campo político, que resulta, no
80, que problematizou a rígida distinção caso do Brasil pelo menos, em um campo
entre o público e o privado, questionando a dominado por homens brancos, com nível
natureza privada das relações chamadas educacional e de rendimentos muito acima
domésticas, o que resultou na importante da média da população. A questão, portanto,
publicização da violência contra as é mais ampla do que a questão da mulher e

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diz respeito a um pacto que, tomando os Se o movimento feminista no Brasil em
desiguais como iguais, exclui os desiguais. seus primeiros anos teve um difícil relacio-
Conseqüência disso é o fato de que grupos namento com a política institucional e
excluídos econômica ou culturalmente, mormente com a política partidária, tal si-
quando abrem mão de interesses específicos tuação parece não se reproduzir atualmente.
em nome de interesses gerais, facilmente Poder-se-ia afirmar, sem nenhuma dificul-
estão abrindo mão de seus próprios inte- dade, que tem havido um constante esforço
resses em nome de interesses de outros (do no sentido de aumentar a participação. O
dominante), transformados em interesses resultado mais concreto desse esforço foi a
gerais por força da posição dos agentes no aprovação do projeto de lei de autoria da
campo de luta. Tal condição é fundamental então deputada Marta Suplicy, que esta-
para entender a problemática da participa- beleceu cotas para mulheres nas listas par-
ção política da mulher, tanto no que concer- tidárias. A primeira lei (9.100/95) esta-
ne a sua baixa presença nos espaços de re- belecia 20% de mulheres nas listas parti-
presentação institucional, como no que se dárias para as eleições do ano de 1996. Em
refere às próprias estratégias levadas a efeito 1997 foi votada a lei eleitoral no 9.504, que
pelo movimento feminista ao longo das aumentou o percentual para 30% a partir
últimas décadas. do ano 2000, estabelecendo o percentual
Daí advém um dos mais claros limites intermediário de 25% para as eleições de
da participação política expressa em car- 1998. A existência da lei não mudou subs-
gos conquistados em disputas eleitorais: a tancialmente a participação das mulheres,
falta de recursos (capital político) dos gru- mas provocou movimentos no sentido de
pos dominados e/ou mais frágeis para trazer as mulheres para dentro dos partidos
disputar com reais oportunidades os cargos e instrumentalizá-las para a vida política:
eletivos. Não se trata evidentemente de são muitos os diretórios partidários em todo
advogar uma representação estatística da o Brasil que promovem cursos para mulhe-
população, isto seria um absurdo por várias res candidatas a cargos eletivos.
razões, entre outras porque esta represen- Uma relação interessante se inverte: se
tação é impossível de se conseguir, na antes as mulheres eram barradas nas listas
medida em que não há forma de acordar partidárias, agora os partidos buscam
quais clivagens devem ser representadas, mulheres para compô-las. Isso, entretanto,
quais não. E mais, mesmo que admitísse- não garantiu qualquer condição de disputa
mos a possibilidade de uma amostra perfeita real por cargos eletivos.
esta não garantiria representação de Se, por um lado, a presença de mulheres
interesses organizados. Isto posto, deve- pode ter apenas o intuito de tentar cumprir
se, entretanto, pensar no outro extremo, a lei eleitoral, por outro, a resistência das
onde temos parlamentos dominados por mulheres em entrar na arena política
setores muito exclusivos da população: o também é responsável pelo seu pequeno
número de trabalhadores, negros e mu- número.
lheres, só para tomar três exemplos, é Deve-se ter presente que não se trata
irrisório no parlamento brasileiro, contras- apenas da transferência da militância do
tando por exemplo com o avantajado movimento feminista para o partido
número de proprietários de terra. Enfatizo político, mas de trazer para dentro da arena
estas questões porque entendo muito política mulheres que estão no mundo
importante desfocar a pouca participação público, mas que não são feministas ou
através de cargos eletivos da sua exclusiva militantes de movimentos sociais O pri-
condição de mulher colocando-a em um meiro cenário pressupõe dificuldades que
contexto amplo de exclusão. Não há dúvida, ficam por conta, em grande medida, de uma
entretanto, que o fato de ser mulher deter- espécie de preconceito mútuo: o partido não
mina as condições específicas desta não- vendo potencialidade de voto de uma
participação. feminista; a feminista vendo o partido, seu

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programa e ideologia como limitantes de Se, por um lado, é bastante difícil a re-
sua atuação. lação das mulheres com o mundo da polí-
O segundo cenário é o da arregimen- tica institucional, isto é, o que se poderia
tação de mulheres de forma mais ampla, chamar participação como representação,
fora dos limites do movimento; as dificul- por outro, deve-se prestar atenção a uma
dades encontradas aí derivam-se de uma outra esfera de participação para se traçar
complexa posição da mulher no mundo um quadro mais preciso da relação entre as
público. A posição das mulheres no mundo mulheres e a política.
do trabalho é bastante ilustrativa: em que A questão necessita ser examinada a
pese a grande presença em todas as pro- partir da relação entre representação e par-
fissões, como já foi comentado anterior- ticipação tomando a primeira como uma
mente, o número de mulheres em cargos de forma entre outras da segunda, e tomando
liderança é, proporcionalmente, muito as diferentes formas de participação como
inferior se comparado com a situação dos fundamentais para a realização de uma re-
homens (Puppim, 1994). O mesmo pode- presentação mais adequada ao conjunto dos
se dizer em outras atividades, como as interesses em luta. Em resumo, a preocu-
partidárias e as sindicais. É bastante comum pação é tratar da relação entre represen-
a situação em que sindicatos de categorias tação-participação, onde nenhum dos
de trabalhadores eminentemente femininas termos se esgota no outro. É na comple-
tenham presidentes masculinos: categorias mentaridade e na tensão entre representação
como a dos professores da rede pública, e participação que a questão das mulheres
dos enfermeiros, dos assistentes sociais, se coloca e pode ser mais adequadamente
etc., são exemplos que se multiplicam no apropriada.
Brasil (Sartori). A posição da mulher em A partir de meados da década de 70 o
situação de liderança é sempre uma posição mundo ocidental assistiu à eclosão dos
marcada, isto é, sempre o fato de ser mulher chamados novos movimentos sociais que
vai contar contra ou a favor no julgamento trouxeram, entre outras novidades, a auto-
de sua atuação, o que dificilmente acontece
com os homens: nunca se coloca entre as
críticas a um ministro de Estado o fato de
ser homem, o que facilmente acontece no
caso de o ministro ser uma mulher.
Outra razão para as dificuldades da
entrada das mulheres no mundo da política
que não pode ser menosprezada é a posição
que a mulher ainda ocupa na organização da
vida familiar (Bruschini, 1990). Se sua
entrada no trabalho trouxe modificações em
sua posição na família e muitas vezes
reestruturou afazeres, não houve uma mu-
dança na forma de significar sua posição,
radical o suficiente, para banir do vocabulá-
rio que descreve as reações entre a mulher e
marido/filhos o verbo “ajudar”, o que revela
que a responsabilidade pela organização do
cotidiano familiar está, ainda, com a mulher.
Em um país com as dimensões do Brasil a
entrada na política, com exceção da política
municipal, acarreta um afastamento por
longos períodos do núcleo familiar. Os
maridos e filhos ficam sem ter a quem ajudar.

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nomia em relação aos partidos políticos (o da própria representação. Esta recon-
que não quer dizer autonomia em relação à figuração não é um movimento automático,
ideologia); a eclosão de novas clivagens nem assegurado, entretanto a tensão pro-
que tiravam da classe a sua condição de vocada pela presença dos novos sujeitos é
clivagem política essencial; a heteroge- fundamental para o alargamento da demo-
neidade organizacional. Esses movimentos cracia nos espaços de representação. Trata-
podiam ter tanto abrangência planetária, se aqui de pensar a incorporação de novas
como os movimentos pelo desarmamento demandas, novos interesses e novos sujeitos
nuclear na década de 80 passada, como no discurso daqueles que pretendem ser re-
poderiam ser movimentos muito pontuais presentantes.
e localizados, como os movimentos de mães A pergunta que agora cabe responder é:
em bairros populares de grandes cidades que novos recortes presentes na sociedade
de um país periférico. Proliferam-se, por- não podem ficar fora do discurso sob pena
tanto, formas alternativas de participação de este perder a sua legitimidade? A resposta
política que se constroem como públicos não envolve questões éticas e morais, mas
alternativos à chamada esfera pública cen- só pode ser respondida a partir da análise do
tral. No Brasil o aparecimento desses movi- próprio discurso. É neste que se revela a
mentos tem como contingência imediata o posição de poder das forças políticas em luta
regime militar, que era altamente limitador em um dado momento, como é exemplo, ao
da participação política através dos parti- longo da década de 80, o discurso público de
dos como canais para se chegar à repre- direitos das mulheres pautado por diversas
sentação (Boschi e Diniz, 1989). É dentro instâncias do movimento feminista que
desse quadro que o movimento feminista logrou importante espaço na agenda política
eclode com grande força em meados da dé- parlamentar e teve na Constituinte de 1988
cada de 70 e se desenvolve durante os anos um momento privilegiado.
80 (Alvarez, 2001). Os movimentos sociais, entretanto, não
Os movimentos sociais em geral trazem se articularam apenas como promotores de
para a arena pública um contingente interesses e modificadores do discurso
considerável de pessoas que até então não político, mas têm também protagonizado
haviam se expressado publicamente e que um tipo distinto de participação, que se
constituem interesses e sujeitos comple- poderia chamar de participação não-repre-
tamente novos: mulheres começam a se ex- sentativa, no sentido de não-eleita. As
pressar como mulheres, indígenas como militantes do movimento feminista, por
indígenas, negros como negros, entre ou- exemplo, têm tido, no Brasil, uma impor-
tros. E, ao se expressarem dessas formas, tante participação política em momentos
batem de frente com as clivagens tradi- cruciais da vida nacional, como foi o caso
cionais contidas no interior dos partidos da Constituinte de 1988, entretanto, não se
políticos. A tensão entre os novos movi- pode dizer que o movimento representa as
mentos e os partidos é fundamental na mulheres, a não ser de uma forma retórica.
dialética entre representação e participação: A organização da sociedade civil cria novos
em primeiro lugar porque se conformam espaços de participação que desorganiza
espaços públicos de participação e constru- os princípios rígidos da representação e de
ção de demandas e identidades, que certa forma subverte a esfera pública
extrapolam partidos políticos e processos excludente. A década de 90 experimenta
eleitorais. Esses espaços tornam-se muitas um novo fenômeno nesse âmbito, que é o
vezes importantes canais de pressão frente da explosão das chamadas ONGs e que tem
ao Estado e, muitas vezes, tornam-se locais grande centralidade nessas novas formas
de tomada de decisões importantes de de participação. As ONGs organizadas em
políticas públicas. Em segundo lugar, a torno de causas defendidas historicamente
existência desses espaços públicos outsider pelo movimento feminista ou movimentos
provoca a reconfiguração, de alguma forma, de mulheres têm se tornado parceiras

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importantes em políticas públicas, haven- Os dados sobre a presença da mulher
do uma real participação política de mu- nos diversos níveis legislativos e executi-
lheres na interlocução com o Estado. Essa vos dão um panorama interessante.
nova forma de participação parece ainda O quadro abaixo revela dados muito
mais complexa do que a dos movimentos significativos sobre a participação da mu-
sociais, mas deve ser considerada para se lher: o primeiro que chama a atenção é o
traçar um quadro que se aproxime da com- salto que os números dão da eleição de 1993
plexidade dos mecanismos de participação para a de 1997. Em que pese essa presença
política neste início de século e, particular- ainda ser muito pequena, representando
mente, se o foco da análise for a participa- 5,5% das prefeituras do país em 96, não se
ção política das mulheres. pode deixar de chamar a atenção que essa
Em síntese, a questão que se coloca é a é a primeira eleição em que a lei de cotas
de um novo padrão de participação política está em vigência. Evidentemente, a lei não
colocado pela presença dos movimentos se aplica a candidatas a prefeitas, mas se
sociais e posteriormente pelas ONGs. Essas pode admitir reflexos, na medida em que
novas formas não substituem a repre- os partidos tiveram de fazer, pela primeira
sentação parlamentar, mas provocam mu- vez, algum tipo de esforço para trazer mu-
danças nesta e com ela interagem. lheres para suas listas de candidatos.
Um segundo aspecto refere-se à concen-
tração de prefeitas na região Nordeste do
país. Infelizmente não existe um estudo
II compreensivo que indique as trajetórias po-
líticas dessas mulheres. Mesmo assim
O quadro da presença da mulher nos algumas inferências podem ser tiradas:
cargos eletivos em todo o Brasil aponta para estamos frente a um quadro em que uma
uma situação muito precária. Em que pese das regiões politicamente mais conser-
a forte atuação do movimento feminista ao vadoras do país tem o maior número de
longo dos últimos 25 anos e da construção prefeitas. Essa presença, entretanto, tende
de lideranças de mulheres em muitas áreas, a diminuir em eleições mais recentes que
isto não se reflete em um aumento signifi- correspondem, paradoxalmente, a um
cativo do número de mulheres entre ve- período de aumento da participação da
readoras, deputadas, senadoras, prefeitas e mulher. O fenômeno, portanto, dificilmente
governadoras. pode ser explicado como conseqüência das

PREFEITAS ELEITAS NO BRASIL POR PERíODO DE GESTÃO NAS GRANDES REGIÕES

Grandes Regiões 1973-76 1977-82 1983-88 1989-92 1993-96 1997-2000

Brasil 58 58 83 107 171 304

Norte 4 – 6 8 19 30

Nordeste 44 52 51 74 92 153

Sudeste 7 1 20 17 38 64

Sul 0 2 4 5 11 30

Centro-Oeste 3 3 2 3 11 27

Fonte: Participação Feminina na Construção da Democracia (Rio de Janeiro, Ibam, 2000, p. 31)

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lutas do movimento feminista. É bastante ve uma real redução na representação: em
provável que a grande maioria dessas mu- 1984 foram eleitas 34 deputadas, o que re-
lheres pertença a famílias políticas de suas presentava 6,6% do total de deputados; em
regiões e esteja substituindo nas prefeituras 1998, esse número foi reduzido para 28,
maridos, pais e irmãos. Uma terceira cons- representando 5,4% (Ibam, 2000).
tatação que o quadro anterior permite é a Os dados acima são contundentes no
quase total ausência de prefeitas na região sentido de mostrar que a lei de cotas não
Sul, uma das mais desenvolvidas e com teve força para provocar mudanças na
níveis de alta politização nacionalmente posição das mulheres nas casas legislativas,
reconhecidos. Chama a atenção nesses todavia seria prematuro decretar sua
números a presença do estado do Rio nulidade como elemento de mudança. É
Grande do Sul, o mais populoso, com o sabido que uma lei não muda costumes,
maior número de municípios e o mais nem a cultura de um povo, mas certamente
reconhecidamente politizado. Também é o não pode ser desconsiderada como instru-
estado onde a esquerda representada pelo mento fundamental para uma mudança de
Partido dos Trabalhadores tem tido uma situação, principalmente se houver um
presença importante. A ausência das grupo organizado que luta por seu efetivo
mulheres, no mínimo, revela a pouca cumprimento.
relação entre essas variáveis e faz pensar Se não há uma significativa presença de
em buscar as causas na cultura do estado, mulheres no Congresso Nacional e mesmo
historicamente, misógina. Mas isto é tema as mulheres que lá estão não são obriga-
para um outro artigo. toriamente ligadas ao movimento feminis-
O número de prefeitas eleitas em 2000 ta ou pelo menos sensíveis às suas principais
manteve-se praticamente inalterado. Foram bandeiras, a questão que se coloca é a de até
eleitas 317 mulheres, perfazendo 5,7% das onde o feminismo brasileiro conseguiu
prefeituras de todo o país (Jornal Fêmea, canais de expressão e de luta a favor de
n. 92). O fato interessante a ressaltar nessa uma legislação que garanta o conjunto de
eleição é o de que foram eleitas 6 prefeitas direitos pelo qual tem se debatido ao longo
em capitais, entre as quais a prefeita de São de sua história. A investigação desses canais
Paulo. Um trabalho importante a ser feito, parece-me o veio mais profícuo para
em que pese sua dificuldade, é o da con- apreender as formas de participação política
tagem dos votos das candidatas mulheres das mulheres no Brasil.
(eleitas e não-eleitas), o que possibilitaria Antes de entrar na descrição de algumas
uma real aferição do crescimento do voto situações concretas, vale uma pequena
nas mulheres no país. digressão para retomar o tema da parti-
A eleição para vereadoras em todo o cipação. Quando se discute as noções de
Brasil acompanha o mesmo padrão da elei- participação-representação de grupos que
ção para prefeitas, mesmo com a lei de cotas se constituíram como postulantes a serem
vigente: em 1993, quando a lei ainda não representados através de um processo de
vigia, o percentual de eleitas foi de 7,46%; construção de uma identidade que os dife-
em 1996, já com a lei em vigor, esse rencia dos demais, ao ponto de não se
percentual passou para 11,23%. No ano de sentirem representados em nenhuma das
2000 o percentual se manteve inalterado: clivagens existentes, a questão que aparece
11,61% (1). O refluxo no crescimento de como central é a de quem deve representar
eleitas também se expressou no pleito de quem, em outras palavras: a luta das
1 Estes dados não são exatos
porque existe um grupo de 1998 para as Assembléias Legislativas e para mulheres é pela representação de mulheres,
eleitos em que o nome tanto
pode ser de homem como de
o Congresso Nacional: nas primeiras o total que são mais da metade da população
mulher. Nos dados do Ibam, de deputadas eleitas em 1994 representava brasileira, ou pela representação de mulhe-
que estão sendo usados para
este artigo, encontro 146 7,6%; em 1998 representou 9,8%. Se no res que se constituem politicamente como
nomes dúbios entre os eleitos plano estadual houve um crescimento tal? Essa distinção é fundamental na dis-
em 1992 e 98 nomes entre os
eleitos em 1996. mesmo que pequeno, no plano federal hou- cussão do espaço da participação política.

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A primeira situação diz respeito a uma si- que estou tratando de desenvolver.
tuação estrita de justiça numérica na repre- A atual legislatura no Congresso conta
sentação, a segunda ao significado político com 28 deputadas e 5 senadoras. Das
da participação. Essa questão não é de fácil deputadas, 11 estão em primeiro mandato;
resolução: por um lado, parece adiantar das senadoras, 2 foram eleitas nas últimas
pouco para as mulheres (ou para qualquer eleições de 1998 e 3 foram eleitas em 1994.
outro grupo nessa mesma situação) eleger Partidariamente se distribuem da seguinte
muitas mulheres que não tenham nenhum forma: PMDB, 8; PSDB, 6; PT, 5; PFL, 5;
compromisso com as causas defendidas PCdoB, 2; PDT, 1; PSB, 1 (Jornal Fêmea,
pelo feminismo, por outro, entretanto, a n. 7). Das 33 deputadas e senadoras, 8 são
pergunta que se impõe é a de que, se ho- esposas de ex-governadores, 1 de prefeito,
mens de todos os matizes ideológicos, de 1 de senador e 1 é filha de tradicional família
todas as posições sobre os mais diversos de políticos. Treze delas têm alguma forma
temas podem ter assento no Legislativo, de ligação com atividades relacionadas
por que só as “mulheres conscientes” me- com a mulher (conselhos da mulher,
receriam esse privilégio? atuação parlamentar, associações das mais
A presença de muitas mulheres nas diversas naturezas). Entre essas mulheres
casas legislativas sem dúvida seria revela- três perfis se destacam: o primeiro é o da
dora de um aumento da participação política mulher que foi primeira-dama em seu
da mulher e isso estabeleceria um novo pa- estado e se elege através de uma situação
tamar a partir do qual a questão da repre- duplamente tradicional da mulher na
sentação se coloca. A presença de um política: pela popularidade do marido e
conjunto de propostas defendidas pelo por sua atuação na área da assistência
feminismo revela uma outra situação, que é social. Essas deputadas tendem a ser de
a da participação na política institucional de partidos mais conservadores e um bom
um sujeito político construído a partir de sua exemplo é a senadora Maria do Carmo do
condição como mulher em relação às outras Nascimento do PFL de Sergipe, que,
posições políticas e identitárias presentes no segundo dados biográficos publicados no
campo político. No caso brasileiro chama a Jornal Fêmea de janeiro de 1999, “iniciou
atenção que, apesar de uma muito baixa as atividades públicas durante a atuação
presença de mulheres nas casas legislativas, do marido, o ex- governador João Alves
há uma presença muito constante dos temas Filho, desenvolvendo projetos socais
dos direitos das mulheres principalmente na como ‘desfavelamento’ e o ‘Pró-mulher’
Câmara dos deputados. E deve-se levar em (prevenção do câncer de colo de útero).
conta que as deputadas não são em sua Assume no Senado o seu primeiro mandato
esmagadora maioria feministas ou ligadas a eletivo” (Jornal Fêmea, n. 72).
movimentos de mulheres. O segundo perfil é o da mulher –
Em outra oportunidade examinei a geralmente de partidos considerados mais
atuação da bancada feminina no Congres- à esquerda – que tem uma trajetória mais
so Constituinte de 1988, onde mostrei como próxima do movimento feminista. Essas
as deputadas mulheres que tinham entre si mulheres aparecem no PT, no PSDB e no
grande diversidade de posições políticas e PCdoB e são exemplos: Iara Bernardi, do
de trajetórias na vida pública assumiram PT de São Paulo, que “atuou no Conselho
unidas um conjunto de propostas sobre os Municipal dos Direitos da Mulher em
direitos das mulheres colocados pelo mo- Sorocaba e foi autora, já no Congresso, de
vimento feminista, conseguindo fazê-las projeto que criou o albergue para a mulher
matéria constitucional (Pinto,1994). Aqui vítima da violência”; Fátima Pelaes, do
examinarei, ainda que rapidamente, a atua- PSDB do Amapá, que “participou no
ção da atual bancada feminina do Congres- Congresso das Comissões de Inquérito que
so Nacional com o propósito de avançar na investigam a esterilização de mulheres no
discussão da representação-participação Brasil, foi vice-presidente da Comissão

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de Beijing e Membro da Comissão Mista conjunto das deputadas contando com uma
incumbida de relatar o veto ao projeto de coordenação pluripartidária que se reno-
lei que trata do planejamento familiar”; va a cada seis meses. A deputada Jandira
Jandira Feghali do PCdoB do Rio de Ja- Feghali, que pertenceu à primeira coorde-
neiro, que “é relatora dos projetos de lei nação, ao definir a proposta da coor-
sobre o aborto e teve destacada atuação denação da bancada, afirma : “A Coorde-
em defesa dos direitos da mulher” (Jornal nação tem como principal objetivo articu-
Fêmea, n. 72). lar a bancada feminina no sentido de
O terceiro perfil é o de mulheres de aprovar os projetos de lei de interesse das
partidos de esquerda que fazem parte do mulheres, bem como pressionar a rejeição
que se poderia chamar da elite partidária, daqueles que retiram direitos já conquis-
que tiveram carreiras políticas vitoriosas e tados, tais como as novas modificações
que jamais se envolveram com questões apresentadas no projeto da previdência”
específicas das mulheres. Os melhores (Jornal Fêmea, n. 82).
exemplos desse perfil são duas importantes A partir do fim de 1999, a bancada
mulheres da política paulista: Luiza publica um boletim mensal com notícias
Erundina, do PSB, que foi vereadora, de interesses das mulheres no Congresso.
deputada estadual, prefeita de São Paulo e As atividades da bancada se organizaram
ministra; Telma Souza, do PT, que foi em torno de três estratégias: o trabalho
vereadora, prefeita de Santos, dirigiu o parlamentar propriamente dito; a inter-
diretório do partido em São Paulo e foi venção junto aos órgãos do governo federal,
secretária nacional do PT para Assuntos principalmente ministério; a interface com
Institucionais. ONGs, movimento feminista e movimentos
Em que pesem as diferenças contidas de mulheres. Em relação à primeira, as par-
nesses três perfis não há entre todas as de- lamentares, no ano de 1999, organizaram
putadas uma única cuja biografia aponte uma pauta de prioridades para assegurar
para uma entrada na vida pública através que projetos de interesse das mulheres
de uma militância feminista. O único caso fossem desarquivados e colocados em
de deputada que tem na origem de sua ati- regime de urgência, tais como o projeto que
vidade pública uma efetiva participação em regulamenta o atendimento de vítimas de
movimentos de mulheres é a deputada do crimes sexuais; o que promove as condições
PT por Santa Catarina, Luci Teresinha para o mutirão habitacional com mulheres;
Choinacki, que, em 1984, iniciou o Movi- o que garante o exame gratuito de DNA
mento de Mulheres Agricultoras de Santa para fins de reconhecimento de paternidade.
Catarina. Deve-se, todavia, chamar a aten- Em relação às atividades internas no
ção que mesmo essa deputada não é uma Congresso cabe ainda destacar a criação da
agricultora que se constrói como política a CPI da Mortalidade Materna, a aprovação
partir de sua condição de mulher agri- na Comissão de Seguridade Social e
cultora, mas é uma militante das Comu- Familiar da emenda sobre o Programa de
nidades Eclesiais de Base que esteve Planejamento Familiar; a aprovação, na
envolvida de perto com o MST (Jornal Comissão de Direitos Humanos, da emenda
Fêmea, n. 72). sobre as Casas Abrigo e a instalação de
O que interessa particularmente em Subcomissão Especial para analisar a
relação a esse grupo de políticas que detém situação da mulher no mercado de trabalho.
cargos eletivos no Congresso é sua atuação Em relação à pressão que a bancada trata
em relação à defesa dos direitos das mulhe- de exercer sobre as autoridades do
res. Novamente para o mandato que se inicia Executivo, são exemplos as audiências com
em 1999 as deputadas e as senadoras têm o ministro da Previdência Wernek Ornelas
uma destacada atuação na defesa desses e com o ministro Sepúlveda Pertence do
direitos. Já no primeiro ano, em 1999, STF para pressionar pela manutenção do
criaram a “bancada feminina” composta do salário-maternidade garantido pelo INSS e

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o encontro com o ministro da Saúde José sença muito pouco significativa de mulhe-
Serra para discutir a garantia de exames res em todas as instâncias do poder
pré-natal, anestesia no parto e prevenção Legislativo, por outro, entretanto, deve-se
dos cânceres femininos. apontar para uma atuação, pelo menos no
Em relação à terceira atividade é muito plano do Congresso Nacional, muito pre-
clara a estreita relação entre a bancada sente no que diz respeito às questões
feminina e a ONG CFEMEA (Centro concernentes aos direitos das mulheres.
Feminista de Estudos e Assessoria), com Esta última característica tem um elemento
sede em Brasília, que tem como principal de surpresa na medida em que as trajetórias
atividade o acompanhamento e assessoria das deputadas e senadoras não dão
às atividades parlamentares. No próprio elementos para se pensar que se está frente
boletim da bancada ao relatar as reuniões a uma bancada de feministas ou a deputadas
havidas no ano de 1999, apontam para a comprometidas com a causa dos direitos
presença, nas reuniões, “de assessores do das mulheres
CFEMEA que acompanham diariamente Para explicar esse quadro temos de re-
nosso trabalho legislativo” (Boletim da correr às questões levantadas na primeira
Bancada Feminina, dez./ 99). O ano de parte deste artigo sobre as formas de parti-
2000, por ser um ano eleitoral, contou com cipação vis-à-vis a atuação das mulheres
uma atividade voltada a promover no espaço público brasileiro, nos últimos
candidaturas de mulheres. Foi reativada a 30 anos no país. Se a questão da participa-
campanha “Mulheres sem Medo do Poder”. ção for reduzida à representação não é
Em maio realizou-se o “Seminário Nacional possível explicar nenhuma das duas carac-
Mulher na Política – Mulheres no Poder”. terísticas levantadas acima, isto é, não se
Muitas outras atividades foram realizadas explica nem a pouca presença, nem a forte
no ano 2000. No presente artigo a nomeação atuação. Para avançar no entendimento
de atividades tem o intuito precípuo de desse processo um elemento deve aqui ser
ilustrar, não há intenção de fazer um introduzido, que é a participação política
balanço. extra-representação. Não cabe, no limite
As atividades das parlamentares indi- deste artigo, uma história do movimento
cam uma tendência muito significativa – já feminista no Brasil e das formas de sua
observada em outras oportunidades – de atuação. Minha preocupação é apontar
uma espécie de conversão à causa dos di- para a existência, no país, de uma extensa
reitos das mulheres por parte das deputadas. rede de organizações feministas e de mu-
Sem nenhuma ligação orgânica anterior lheres que têm tido uma atuação muito
com o movimento feminista e mesmo na presente no campo das lutas pela garantia
sua maioria com qualquer tipo de movi- de direitos das mulheres. Atualmente essa
mento organizado de mulheres, essas rede se organiza através de um grande
deputadas e senadoras tornam-se no Parla- número de ONGs.
mento reais representantes das lutas levadas Nessa rede as ONGs mais ativas podem
a efeito historicamente pelo feminismo. E ser classificadas em três tipos: o primeiro é
essas deputadas, salvo em questões que o que se poderia chamar de organizações
envolvam princípios morais, como a do de assessoria, que têm como base um grupo
aborto, tendem a comportarem-se como de profissionais que prestam serviços
uma bancada independentemente dos seus diretamente ao Congresso Nacional e se-
partidos, o que não envolve dizer que em cundariamente para outras ONGs. Um bom
questões outras do cotidiano do Congresso exemplo desse tipo de ONG é o CFEMEA,
não tenham posturas muito distintas. já aqui citado, que atua junto ao Congresso
No cômputo geral, em relação à Nacional. Em seus documentos, o
participação como representação, duas CFEMEA assim se caracteriza: “[Tem]
situações revelam um quadro bastante como traço característico o trabalho junto
complexo. Por um lado, temos uma pre- ao poder Legislativo, onde atua de forma

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democrática,suprapartidária, autônoma e Movimento das Mulheres sem Terra e al-
comprometida com o movimento de mu- gumas organizações do Movimento das
lheres” (www.cfemea.org.br). O CFEMEA Mulheres Negras caem nessa categoria,
distribui nacionalmente um jornal mensal como o Geledés. Em seu site, especifica-
impresso com o nome de Fêmea que mente sobre políticas públicas, é decla-
também conta com uma versão on-line. A rado: “desenvolvemos intensa articula-
importância desse tipo de organização não ção política com outras organizações
está no número de mulheres que articula ao governamentais e movimentos sociais,
redor de si, mas na sua capacidade de procurando interferir na elaboração e
provocar eventos e ações de grande reper- implantação de políticas públicas na área
cussão além do próprio trabalho de asses- da saúde, para que as necessidades das
soria legislativa e publicações de interesse mulheres negras sejam contempladas”
das mulheres que pretendem se integrar na (www.geledes.org.br).
política. Um interessante exemplo de como as
Um segundo tipo de organização é o ONGs atuam como uma forma alternativa
que se poderia chamar de prestadoras de de participação política é a existência de
serviços, entre elas as que promovem um documento elaborado em 1998 por três
advocacy. São ONGs que pretendem dessas organizações sob o título “Propostas
instrumentalizar as mulheres de outras para o estado brasileiro – níveis federal,
ONGs e organizações em geral em defesa estadual e municipal – medidas concretas
de seus interesses. A Themis, de Porto para o enfrentamento da violência contra a
Alegre, que forma promotoras legais mulher no âmbito doméstico/familiar”
populares, é um bom exemplo, junto com (www.cfemea.org.br). Esta proposta foi de-
a Agende, de Brasília, que promove cursos senvolvida por três importantes ONGs
de advocacy stricto sensu. Também nesse feministas no Brasil: o CFEMEA, o Cepia
grupo de prestação de serviços estão (Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação
muitas ONGs da área da saúde da mulher, e Ação) e a Themis (Themis Assessoria
algumas tendo inclusive repasse do Minis- Jurídica), juntamente com o Cladem
tério da Saúde para fazer atendimentos. (Comitê Latino-americano e do Caribe para
Em 1991 foi formada a Rede Nacional a Defesa dos Direitos da Mulher) e em
Feminista de Saúde e Direitos Repro- parceria com a Comissão de Direitos Hu-
dutivos conhecida como RedeSaúde, que manos da Câmara de Deputados. O extenso
congrega 182 filiadas em 20 estados. A documento que prevê um conjunto de ações
Rede tem tido um importante papel no nos âmbitos do Executivo, Legislativo e
acompanhamento da implantação de Judiciário, mais algumas dirigidas ao que o
políticas públicas referentes à saúde da documento designa como “instituições
mulher. É particularmente ilustrativa do essenciais à justiça”, foi elaborado a partir
tipo de participação política das ONGs a de uma matriz redigida pelos grupos
elaboração, por parte da RedeSaúde, de participantes e mandada para 80 grupos e
uma plataforma para as eleições que se pessoas, além de ter sido disponibilizado
realizaram no ano 2000 intitulada na Internet . Essa mesma matriz foi discutida
“PAISM: uma política municipal viável” em um seminário sobre “Os Direitos
(www.redesaude.org.br). Humanos das Mulheres e a Violência
Finalmente aparecem ONGs que estão Intrafamiliar” promovido pela Comissão
muito próximas, em sua estrutura, aos mo- dos Direitos Humanos da Câmara dos
vimentos sociais da década de 80 passada, Deputados e pelas entidades relatoras do
isto é, organizações onde há uma grande documento.
coincidência entre a missão da ONG e a O documento final é resultado do
militância das componentes onde o aspecto complexo procedimento descrito acima.
profissional dos componentes não é o mais Para o poder Executivo recomenda políticas
central das características do grupo: o públicas, campanhas e programas edu-

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cativos, incorporação de disciplinas em civis, educação, violência e gênero, saúde
currículos escolares; para o poder Legis- e sexualidade, trabalho e geração de renda
lativo recomenda a aprovação de leis que (www.cfemea.org.br). Atualmente com
garantam recursos orçamentários, refor- sede no CFEMEA, a AMB publica men-
mulação de códigos; para o poder Judiciário salmente um pequeno panfleto com o título
recomenda medidas de sensibilização das de Articulando (também disponível on-
autoridades judiciárias como promoção de line). É, portanto, necessário não perder de
cursos para seus funcionários. vista aqui a imensa diversidade da
Portanto, estamos frente a uma ação de organização das mulheres no Brasil e a sua
grande repercussão que envolveu direta- real e potencial capacidade de intervenção
mente uma Comissão da Câmara de no processo político. Se, por um lado, as
Deputados e criou uma série de demandas ONGs formadas por mulheres altamente
em todos os níveis de poder através da profissionais e especializadas influenciam
atuação de três ONGs. Esta é uma forma de diretamente parlamentares e atuam junto
participação política muito própria do atual aos ministérios, no sentido da imple-
movimento feminista expresso em ONGs. mentação de políticas públicas, por outro,
Deve-se aqui inclusive chamar a atenção 800 grupos de mulheres reunidos conse-
para a condição extra-representação desse guem votar uma plataforma para os candi-
tipo de participação. No escopo deste artigo datos em uma eleição. Pode-se concluir
não é possível avançar no sentido de analisar afirmando que há uma capilaridade nesse
até onde isso é um tipo de ação peculiar à processo participativo que em muito
participação política das mulheres, até onde extrapola os limites dos espaços tradicio-
isso diz respeito aos novos espaços nais da participação política e tende a agir
conquistados pelas ONGs em geral no no sentido de pressionar o último.
campo da política A título de conclusão, poder-se-ia dizer
Cabe ainda ressaltar a existência de uma que existe uma interessante dinâmica no
importante rede de associações e ONGs de que se chama de participação política da
mulheres congregada sob o nome de Arti- mulher no Brasil, que ao mesmo tempo
culação da Mulher Brasileira (AMB). A apresenta aspectos inovadores e revela os
AMB foi criada para preparar a ida das estrangulamentos enfrentados por novos
mulheres brasileiras à Conferência Mundial sujeitos políticos, como as mulheres, no
de Beijing em 1995. Manteve-se posterior- jogo político institucional. A inovação está
mente para fiscalizar a aplicação das reco- tanto na capacidade das mulheres de se
mendações de Beijing. Em relação com esse organizarem nacionalmente de forma ca-
objetivo promoveu a Reunião Nacional em pilar, como na capacidade de influir nas
Natal (1999), que juntou 800 grupos de políticas públicas. Mas vai além disso, pois
mulheres de 24 estados. A reunião elencou se instala também dentro dos próprios
as seguintes prioridades: “socialização e legislativos, criando núcleos, como a ban-
democratização de informações dos pro- cada feminina no Congresso. Os estrangu-
cessos de negociação, diagnósticos e práti- lamentos estão expressos nos baixos índi-
cas relacionadas ao conteúdo da Platafor- ces de presença das mulheres nos cargos
ma de Ação; mobilização e capacitação do públicos eletivos ou não. Estamos frente a
movimento de mulheres para exigir a im- duas possibilidades futuras: se a participa-
plantação da Plataforma de Ação, definin- ção se concentrar na idéia da política
do prioridades na perspectiva da radi- participativa (e de pressão) através de ONGs
calidade do movimento feminista; interven- e grupos, dificilmente este último quadro
ção no processo de preparação para mudará; se essa organização capilar apro-
Beijing+5” (Jornal Fêmea, n. 73). Tam- xima-se da política institucional poten-
bém organizou uma plataforma feminista cializam-se as possibilidades de mudança
para as eleições de 2000 com reivindica- do quadro de baixa presença da mulher da
ções nas áreas de empoderamento, direitos política institucional.

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