Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Luciana Piccoli
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
luciana.piccoli@ufrgs. br
Resumo
Neste texto, discute-se a formação inicial do professor alfabetizador nos
cursos de Pedagogia das Universidades Federais da Região Sul do Brasil.
Faz-se uma caracterização curricular das disciplinas mais diretamente
relacionadas à formação do alfabetizador para problematizar os limites
de tal formação nos currículos vigentes. Argumenta-se que o professor
alfabetizador se constitui, ao longo da graduação, quando se dirige a
essa área específica como preferencial, canalizando suas atuações para
turmas de alfabetização, o que não ocorre com todos os licenciandos em
Pedagogia. Em decorrência, entende-se que se garante, de modo parcial,
a formação do pedagogo como alfabetizador, devido ao próprio caráter
generalista dos currículos.
Palavras-chave: Alfabetização. Professor alfabetizador. Formação inicial.
Currículo. Curso de Pedagogia.
Abstract In this paper, we address the issue of the initial training of literacy teachers
in Pedagogy courses at the Federal Universities of Southern Brazil. A
curriculum characterization of the disciplines most directly related to the
training of literacy teachers is made in order to question the limits of such
training in the existing curricula. It is argued that the literacy teacher is
trained, during the graduation course, by addressing this particular area
as a preferred one, thus channeling his/her performance towards literacy
classes, which does not occur with all undergraduates in Pedagogy. As
a result, it is understood that the training of the pedagogue as literacy
teacher is only partly ensured, due to the very nature of the generalized
curriculum.
Keywords: Literacy. Literacy teacher. Initial training. Curriculum. Faculty
of Pedagogy.
Introdução
1 O PNAIC é “um acordo formal assumido pelo Governo Federal, estados, municípios e entidades para
firmar o compromisso de alfabetizar crianças até, no máximo, 8 anos de idade, ao final do ciclo de alfabe-
tização” (BRASIL, 2012a, p. 5). A formação continuada dos professores alfabetizadores é o eixo principal
do PNAIC.
2 Enunciados como esses circulam nos números 34, 37 e 38 do Letra A, o jornal do Alfabetizador, conforme
Desenhos curriculares
Nos currículos escolares, o “ciclo de alfabetização” passa a ser o alvo do PNAIC como política pública
4
voltada ao professor alfabetizador, por ser considerado como “[... ] o tempo necessário para que meninos
e meninas consolidem suas aprendizagens sobre o sistema de escrita, possam produzir e compreender
textos orais e escritos com autonomia e compreender conceitos básicos das diferentes áreas de conhe-
cimento” (Brasil, 2012a, p. 22).
Essa é a última resolução em vigência. Em uma reunião promovida pela Faced/UFRGS em março de
5
2015, o relator no CNE, Luiz Dourado, disponibilizou uma proposta preliminar da resolução que define
diretrizes curriculares nacionais para a formação inicial, em cursos de licenciatura, de profissionais de
magistério para a educação básica. Mesmo tal documento ainda estando em processo de aprovação no
CNE, indica-se que nele não estão abordadas as especificidades da formação docente na Licenciatura
em Pedagogia.
6 Neste texto não faço uma discussão conceitual sobre currículo, apenas refiro que uso o termo em uma
acepção alargada que contempla desde as práticas até grades curriculares dos cursos de graduação.
7 Ocorrido durante o mês de maio do ano de 2015.
8 O acesso aos dados curriculares nem sempre é óbvio e direto, sendo, muitas vezes, exigido realizar um
da Língua Portuguesa”: leitura, produção de textos escritos, oralidade, análise linguística. (BRASIL,
2012c, p. 31)
Alfabetização
Alfabetização
Alfabetização: teoria e prática I
Alfabetização: teoria e prática II
Ensino de Língua Portuguesa: conteúdo e metodologia
História e Metodologia da Alfabetização para Crianças, Jovens e Adultos
Língua Portuguesa
Língua Portuguesa e Educação
Língua Portuguesa e Ensino
Linguagem e Educação
Linguagem e Educação I
Linguagem e Educação II
Linguagem e Educação III
Linguagem Escrita e Criança
Linguística e Alfabetização
Literatura e Educação
Literatura e Educação
Literatura e Infância
Literatura Infantil
Literatura Infantil e Juvenil
Literatura Infanto-juvenil
Metodologia da Alfabetização para Crianças, Jovens e Adultos
Metodologia de Ensino da Língua Portuguesa
Metodologia do Ensino em Língua Portuguesa para Crianças,
Jovens e Adultos I
Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa para Crianças,
Jovens e Adultos II
Oralidade, Leitura e Escrita
Processos da Leitura e da Escrita I
Processos da Leitura e da Escrita II
Teorias e Práticas Alfabetizadoras I
Teorias e Práticas Alfabetizadoras II
os riscos implicados, que os títulos das disciplinas sugerem que grande parte
delas centra-se na ação pedagógica na alfabetização e na língua portuguesa
com crianças, jovens e adultos. Certamente um exame acurado das ementas
das disciplinas seria produtivo, mas, por ora, posso afirmar que, sob uma
rápida análise das súmulas, foram identificadas múltiplas abordagens, tanto
do ponto de vista da aquisição da linguagem quanto de seu ensino, quais
sejam, linguísticas, fonológicas, cognitivas, psicogenéticas, psicolinguísticas,
socioculturais, sociolinguísticas, entre outras.
É interessante reparar que a palavra “Alfabetização” foi contabilizada
sete vezes, o mesmo número de “Língua Portuguesa”, sendo essa expressão
constantemente referida junto a “Ensino” ou “Educação” (com exceção de
uma vez). Tal aproximação levou-me a buscar, no Glossário Ceale11, o verbete
“Ensino de Língua Portuguesa”, que considerei esclarecedor para a discussão
dos currículos de Pedagogia aqui em pauta:
dos anos iniciais do Ensino Fundamental (Frade, Costa Val, Bregunci, 2014).
12 O que discuto se centra nos indícios recolhidos apenas nos dados por ora mencionados. Assim, não
posso afirmar em quais outras disciplinas tal abordagem é contemplada, mas o que interessa aqui é
justamente discutir o fato de a linguística encabeçar uma disciplina.
13 Na página 17 deste texto há exemplos de produções orais de crianças registradas por professoras em
[... ] o professor tem de, primeiro, dominar muito bem a língua portu-
guesa, formação que não é dada de forma adequada para que saiba
usar a língua escrita nas suas diferentes variantes; tem de ter formação
sociolinguística; psicolinguística; de fonologia – sem o que é impossível
entender o processo da criança para relacionar fonemas com grafemas;
tem de conhecer literatura infantil, que é com o que se deve trabalhar
para que a criança aprenda a língua escrita; gêneros textuais, teorias da
leitura e diferentes estratégias exigidas por diferentes gêneros textuais.
Para dar visibilidade aos enunciados “locais”, foi realizado um estudo sobre
a trajetória de doze alunas do curso de Pedagogia da UFRGS que realizaram a
graduação no currículo aqui sob análise18 e que atuaram ou atuam como alfa-
betizadoras. Foram convidadas alunas que cursaram sua graduação integral-
mente ou na maior parte durante a vigência do atual currículo de Pedagogia e
que fizeram o estágio de docência em turmas de alfabetização19. Para a geração
dos dados, elas foram solicitadas a narrar, por escrito, sua trajetória no cur-
so na relação com sua formação como alfabetizadoras. Tomei, portanto, tais
relatos como representativos de movimentos de licenciandas, em direção a sua
formação como alfabetizadoras, que venho acompanhando desde a implanta-
ção do currículo vigente. Como qualquer situação de interlocução, considero o
endereçamento do relato como constituinte dos dados, uma vez que as narrati-
vas são construídas levando-se em conta o destinatário (Silveira, 2007).
Dentro de vários aspectos citados, darei destaque aos que tiveram mais força:
as disciplinas cursadas e a opção pelo estágio curricular dos anos iniciais em
turmas de alfabetização. Outros aspectos também foram enumerados, mas em
menor ocorrência, tais como a atuação em monitorias, pesquisas de iniciação
científica, programas de extensão universitária, programas de iniciação à
docência; a realização de estágios extracurriculares; a pesquisa empreendida
como trabalho de conclusão de curso. Irei me dedicar, então, aos dois primeiros
aspectos, buscando compreender o que mobilizou mais intensamente as alunas
a direcionarem sua trajetória à alfabetização.
Este primeiro conjunto de excertos20 e nota que há uma construção do
interesse pessoal para atuar na alfabetização. Os aspectos mais afetivos, pelos
sentimentos despertados durante as disciplinas que “marcaram o curso” e
suscitaram “encantamento e paixão por alfabetizar”, parecem ser um disparador
para sustentar a predileção pela área.
18 Instituído no ano de 2007 em função da resolução exposta na primeira seção deste texto.
19
No curso de Pedagogia da UFRGS, o Estágio de Docência caracteriza-se por ser uma disciplina obriga-
tória/alternativa, já que é possível realizá-lo em Educação Infantil ou anos iniciais do Ensino Funda-
mental ou na Educação de Jovens e Adultos. No estágio nos anos iniciais para crianças, considera-se
que as turmas de alfabetização são as que compõem o já referido “ciclo de alfabetização”, ou seja, do
1º ao 3º ano.
20 Todos os nomes apresentados são fictícios, mantendo-se apenas a letra inicial. Os realces feitos nos
Foi a partir desse conjunto de relatos que pincei, então, o que considerei como
experiências que atraíram as alunas para a área de alfabetização. Vê-se que
há um caminho, canalizando estudos e atividades de formação, o qual é eleito
pelas licenciandas que, por interesse pessoal, optam pela alfabetização. Mesmo
que com o esperado (e produtivo) temor inicial em relação às responsabilidades
do estágio, especialmente no que se refere às aprendizagens das crianças, os
relatos das alunas estão marcados por experiências positivas que sinalizam
que a formação do alfabetizador na Faced/UFRGS, considerando-se os limites
do curso, vem sendo realizada de forma satisfatória. A questão é que apenas
uma parcela das alunas realiza estágio em turmas de alfabetização. Sobre este
tópico tratarei a seguir.
Como ressaltei, a opção pelo estágio dos anos iniciais se colocou como um
aspecto marcante para a formação inicial do alfabetizador. Considerando as
alternativas de estágio, não são todas as alunas quem optam pela sua realização
em turmas de alfabetização. O estágio é um momento privilegiado por ser o
único do curso e, provavelmente, das carreiras docentes, em que as alunas terão
duas professoras acompanhando a prática pedagógica: a titular da turma e a
orientadora. Por isso considero que a situação que temos presenciado na Faced/
UFRGS merece certa vigilância: alunas que realizam estágio de docência fora
do ciclo de alfabetização, quando licenciadas, podem exercer suas atividades
profissionais como alfabetizadoras sem ter se aproximado, durante a graduação,
dessa experiência21. Vale ressaltar que esta formação poderá acontecer sim no
exercício continuado da docência; entretanto, chamo a atenção, aqui, para uma
trajetória cuja opção já foi sendo construída, de maneira sistemática, desde a
graduação.
Ao longo do curso, percebe-se, então, o movimento das alunas que
vão direcionando suas escolhas para desenvolver práticas docentes22 em
alfabetização e optam pela realização do estágio curricular nos anos iniciais,
supervisionado por uma orientadora que realiza um acompanhamento intenso
e sistemático dessa experiência pedagógica. É disso que vou me ocupar agora,
21
Obviamente, essa mesma situação pode ocorrer em qualquer outra etapa da escolarização na qual o
estágio de docência for realizado.
22 Na 4ª, 5ª e 6ª etapa do curso de Pedagogia da UFRGS, com vistas à aproximação aos espaços do exercício
profissional, as alunas realizam observações e práticas docentes de uma semana cada em turmas de
Educação Infantil, anos iniciais do Ensino Fundamental ou Educação de Jovens e Adultos.
Nota-se, neste aspecto, o reflexo da formação continuada na formação inicial, uma vez que as alunas
23
realizam o estágio em escolas públicas cujas professoras titulares participaram das formações do PNAIC.
Para fins de exemplificação da descrição das propostas e intervenções, sugere-se a leitura do texto “Planejar
24
para incluir a todos: por que precisamos discutir ‘como’ diferenciar o ensino no ciclo de alfabetização”
(Piccoli, no prelo).
mento.
Referências
BAGNO, Marcos. Língua. In: FRADE, Isabel Cristina Alves da Silva; COSTA VAL, Maria
da Graça; BREGUNCI, Maria das Graças de Castro (orgs.). Glossário Ceale: termos de
alfabetização, leitura e escrita para educadores. Belo Horizonte: UFMG/Faculdade de
Educação, 2014. p. 190-192.
BRASIL. Pacto nacional pela alfabetização na idade certa. Formação do professor alfabeti-
zador: caderno de apresentação. Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica,
Diretoria de Apoio à Gestão Educacional. Brasília: MEC, SEB, 2012a.
BRASIL. Manual do Pacto nacional pela alfabetização na idade certa. Ministério da Edu-
cação, Secretaria de Educação Básica, Diretoria de Apoio à Gestão Educacional. Brasília:
MEC, SEB, 2012b.
BRASIL. Pacto nacional pela alfabetização na idade certa. Currículo na alfabetização: con-
cepções e princípios. Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, Diretoria
de Apoio à Gestão Educacional. Brasília: MEC, SEB, 2012c.
BRASIL. Resolução CNE/CP n. 1, de 15 de maio de 2006. Institui Diretrizes Curriculares
Nacionais para o Curso de Graduação em Pedagogia, licenciatura. Diário Oficial da União,
Brasília, DF, 16 maio 2006. Seção 1, p. 11. Disponível em: <http://portal. mec. gov. br/
cne/arquivos/pdf/rcp01_06. pdf>. Acesso em: 29 mar. 2012.
BUNZEN, Clecio. Ensino de Língua Portuguesa. In: FRADE, Isabel Cristina Alves da Silva;
COSTA VAL, Maria da Graça; BREGUNCI, Maria das Graças de Castro (orgs.). Glossário
Ceale: termos de alfabetização, leitura e escrita para educadores. Belo Horizonte: UFMG/
Faculdade de Educação, 2014. p. 97-98.
CAGLIARI, Luiz Carlos. Alfabetização e linguística. São Paulo: Scipione, 1989.
CAMINI, Patrícia. Por uma problematização da classificação das escritas infantis
em níveis psicogenéticos. Porto Alegre, 2015. 155 f. Tese (Doutorado em Edu-
cação) − Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação,
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2015.
FERREIRO, Emilia; TEBEROSKY, Ana. Psicogênese da língua escrita. Porto Alegre: Art-
med, 1985.
GATTI, Bernadete. Análise das políticas públicas para formação continuada no
Brasil, na última década. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v. 13, n. 37,
p. 57-70, jan. /abr. 2008.
GERALDI, João Wanderley (org.). O texto na sala de aula: leitura e produção. Cascavel:
Assoeste, 1985a.
GERALDI, João Wanderley. Unidades básicas do ensino de português. In: GERALDI, João
Wanderley (org.). O texto na sala de aula: leitura e produção. Cascavel: Assoeste, 1985b.
p. 49-69.
LEMLE, Miriam. Guia teórico do alfabetizador. São Paulo: Ática, 1987.
MARQUES, João Vítor. Quem é o professor alfabetizador? Letra A: o jornal do alfabetizador,
Belo Horizonte, n. 38, p. 8-11, maio/jun. 2014.
MORAIS, Artur Gomes de. Ortografia: ensinar e aprender. São Paulo: Ática, 1998.
MORAIS, Artur Gomes de. Sistema de escrita alfabética. São Paulo: Melhoramentos, 2012.
MORTATTI, Maria do Rosário Longo. Aprender com o passado: movimento crucial para
a melhoria da alfabetização. Letra A: o jornal do alfabetizador, Belo Horizonte, n. 34, p.
12-14, maio/jun. 2013. (Entrevista concedida a Júlia Pelinson).
MORTATTI, Maria do Rosário Longo. O texto na sala de aula: uma revolução conceitual
na história do ensino de língua e literatura no Brasil. In: SILVA, Lilian Lopes Martins da;
FERREIRA, Norma Sandra de Almeira; MORTATTI, Maria do Rosário Longo (orgs.). O texto
na sala de aula: um clássico sobre ensino de língua portuguesa. Campinas, SP: Autores
Associados, 2014. p. 5-28.
PICCOLI, Luciana. Planejar para incluir a todos: por que precisamos discutir “como” dife-
renciar o ensino no ciclo de alfabetização (no prelo).
PICCOLI, Luciana; CAMINI, Patrícia. Práticas pedagógicas em alfabetização: espaço, tempo
e corporeidade. Erechim: Edelbra, 2012.
SIMÕES, Luciene. Reflexão linguística e práticas discursivas na infância e na escola. In:
III Encontro Nacional sobre a Linguagem da Criança: saberes em contraponto. Porto Alegre:
UFRGS, 2015. (Comunicação oral).
SILVEIRA, Rosa Maria Hessel. A entrevista na pesquisa em educação: uma arena de sig-
nificados. In: COSTA, Maria Vorraber (org.). Caminhos investigativos II: outros modos de
pensar e fazer pesquisa em educação. Rio de Janeiro: Lamparina Editora, 2007. P. 116-138.
SOARES, Magda. Simplificar sem falsificar. Guia da alfabetização: os caminhos para en-
sinar a língua escrita. São Paulo: Segmento, n. 1, p. 6-11, 2010. (Entrevista).
SOARES, Magda. Letramento e alfabetização: as muitas facetas. Revista Brasileira de
Educação, Rio de Janeiro, n. 25, p. 5-17, jan. /abr. 2004.