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UNIDADE 3 AMOR UNIDADE

DE PERDIÇÃO,
4 OSdeMAIAS,
CAMILOdeCASTELO BRANCO
EÇA DE QUEIRÓS

OS MAIAS, de EÇA DE QUEIRÓS


OS TEMAS D’OS MAIAS

• O
s principais temas d’Os Maias associam-se à ideologia e às preocupações
nucleares do Realismo e do Naturalismo, que são as principais referências artís-
ticas do romance.
a) O
amor é um dos temas centrais d’Os Maias. Trata-se da força motriz que
desencadeia e faz avançar a intriga principal — a relação sentimental entre
Carlos e Maria Eduarda —, mas também do ingrediente que precipita as
personagens para um desfecho desditoso, infeliz: o fim de um amor verda-
deiro e de um projeto de vida a dois, mas também a morte de Afonso.
A ligação amorosa entre as duas personagens centrais termina quando se
descobre que são irmão e irmã e, portanto, que vivem em situação de
incesto (outro tema da obra), ainda que involuntário e inconsciente. Carlos
sobrevive, profundamente desiludido, à frustração sentimental. De alguma
maneira, a possibilidade de realização pessoal no amor e de uma existência
feliz naufraga com a separação dos dois irmãos.
b) T
ema profundamente realista, o adultério assume, assim, uma expressivi-
dade considerável neste romance. A infidelidade amorosa está presente em
linhas narrativas secundárias do romance, condicionando a vida de certas
personagens. N’Os Maias estuda-se literariamente este fenómeno social,
revelando como ele se associa à futilidade e à esterilidade do modo de vida
e da mentalidade das classes burguesa e aristocrática bem como à educa-
ção que os seus membros receberam.
Em primeiro lugar, é o amor o responsável pelos sobressaltos da vida de
Pedro da Maia: a saída, em rutura, do lar paterno, a paixão inflamada por
Maria Monforte e o seu suicídio. Aqui emerge outro tópico relevante da nar-
rativa: o adultério, que é praticado por figuras femininas como a condessa
de Gouvarinho, Raquel Cohen e, como vimos, Maria Monforte.
c) A educação é outro tema da obra. Desde logo porque condiciona o trajeto de
vida de várias personagens do romance, como Carlos, Pedro da Maia e Euse-
biozinho, mas também, pela análise que o processo narrativo se encarrega de
fazer, Maria Monforte e Dâmaso, entre outras. Ao longo da narrativa, equa-
ciona-se o problema de apurar qual o melhor modelo a seguir para educar um
jovem português do século XIX. (A educação era um tópico de reflexão dos
pensadores da Geração de 70, que acreditavam que ela podia ser a pedra
filosofal que resgataria o povo português do seu atraso e da sua decadência.)
Dois modelos de educação são colocados em confronto: o modelo tradicio-
nal português, orientado pelos valores da fé católica, baseado no estudo
teórico e livresco e na aprendizagem do latim; e o modelo britânico, apolo-
gista do exercício físico, do contacto com a natureza, de uma formação
moral sólida e humanista e do estudo das línguas vivas.
O modelo de educação português produz indivíduos de carácter fraco, de
condição débil e sem uma orientação prática para a vida; exemplos disso
são Pedro da Maia e Eusebiozinho. Carlos é educado segundo o modelo
britânico mas falha na vida, ainda que não por causa deste tipo de educa-
ção: são as circunstâncias da sua existência e os condicionalismos do
Portugal em que vive que o tornarão um «vencido da vida». (Desta forma,
o diletantismo — de Carlos, de Ega e da classe dirigente — acaba por
constituir outra questão relevante da obra.)

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Conteúdos literários

d) D
o que foi dito se depreende que a decadência é outro tema d’Os Maias
(para alguns estudiosos da obra, o tema é a própria ideia de Portugal no
contexto do século XIX). Isto porque o romance procede a uma análise dos
aspetos e das causas da decadência nacional.
A análise social empreendida identifica o problema em vários domínios da
sociedade, como a degradação dos costumes e da moral (por exemplo, a
falta de carácter dos portugueses), a incompetência e a indiferença da
classe dirigente (com políticos como Gouvarinho, banqueiros como Cohen),
a falta de civismo da sociedade burguesa (recorde-se o episódio das corridas
de cavalos), o provincianismo, a futilidade, a falta de cultura (lembre-se o
Sarau no Teatro da Trindade), etc.
A decadência é política, social, económica, cultural e moral. E as personagens
do romance traduzem a descrença numa regeneração da pátria e das menta-
lidades, facto que é ilustrado na conversa galhofeira do jantar no Hotel Central.
e) O
utro tema d’Os Maias, que se associa ao da decadência, é a família, tópico
que será analisado na secção «O título e o subtítulo» desta sistematização.
Leia-se esta mesma secção para compreender de que forma o próprio
Romantismo, enquanto mentalidade dominante, é tematizado nesta obra
(cf. também Reis, 2000: 40-42).
f) P
or outro lado, a própria literatura e as ideias artísticas realistas/naturalistas
(mas também as românticas) constituem questões temáticas que são abor-
dadas por personagens do romance e problematizadas por Eça de Queirós
na composição d’Os Maias, pela forma como mostra a falência do Roman-
tismo (sobretudo na personagem de Alencar) ou como questiona a ideologia
do Naturalismo (demonstrando que a hereditariedade e a educação não são
fatores que garantam a realização pessoal, o carácter forte e a prosperidade
de um indivíduo).
• P
odemos incluir neste elenco outros temas (ou subtemas) da obra, que ocupa-
rão uma posição secundária ou subordinada em relação aos temas principais:
o progresso, o jornalismo, o donjuanismo ou o tédio.

A REPRESENTAÇÃO DE ESPAÇOS SOCIAIS E A CRÍTICA DE COSTUMES

• A
ação d’Os Maias decorre, em grande parte, em vários lugares de Lisboa e dos
seus arredores, como em Sintra; no entanto, na infância e na juventude
de Carlos da Maia, o leitor vai encontrar a personagem e o seu avô na quinta de
família de Santa Olávia e em Coimbra.
sses lugares, que constituem o espaço físico do enredo do romance, são olha-
• E
dos de outra forma quando criam ambientes povoados com personagens
da narrativa — várias delas personagens-tipo — e proporcionam momentos de
caracterização de grupos sociais, de figuras individuais e, sobretudo, de crítica
de costumes. A estes cenários que convidam à análise de comportamentos
e de personagens dá-se o nome de espaço social.
• L
isboa é o grande palco onde se desenrola o enredo d’Os Maias porque é na
capital portuguesa que se movimenta a sociedade nacional, que é estudada e
criticada no romance. É nos episódios que têm lugar em vários espaços lisboe-
tas e dos arredores da cidade que assistimos ao vícios e à decadência da socie-
dade burguesa da segunda metade do século XIX. Subtilmente, estabelecem-se
contrastes entre Lisboa e outras capitais europeias — sobretudo Paris e Londres
— para melhor dar a conhecer os vícios cívicos e civilizacionais do nosso país.

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• E ntre vários espaços da capital onde a ação do romance se desenrola,


destaca-se o Ramalhete, a casa dos Maias em Lisboa, que alberga a família ao
longo de várias gerações e que, por isso, assiste aos seus reveses e aos momen-
tos trágicos. É ela que corresponde à noção de lar da família na capital. Por
outro lado, a quinta de Santa Olávia, propriedade dos Maias no Douro, repre-
senta as origens rurais da família, o que lhe confere uma ligação ao campo, à
natureza e ao que há de mais genuinamente português e não foi corrompido
pela cidade. Funciona também como um santuário onde Carlos cresce e o avô
Afonso se refugia.
• J á a Toca, vivenda dos Olivais com um nome simbólico e que serve de ninho ao
amor de Carlos e Maria Eduarda, é um lugar afastado e resguardado do epicen-
tro da vida social de Lisboa e, até certa altura, dos rumores e da maledicência.
Por fim, a Vila Balzac é a casa que acolhe os amores de Ega e de Raquel
Cohen. Ambas as casas estão marcadas pelo signo dos sentimentos impuros:
a primeira, porque está associada ao adultério, e a segunda, ao incesto.
• P
or seu lado, Coimbra, onde Carlos estuda, é a cidade que forma a futura classe
dirigente do reino. Aí chegam as ideias filosóficas e científicas de filósofos e
cientistas da Europa, como Hegel, Proudhon, Comte, Darwin, etc. Mas, na vida
boémia estudantil coimbrã, encontramos já o embrião da vida diletante e estéril
que minará personagens centrais do romance como Carlos da Maia e Ega.
• J á Sintra é a vila pitoresca aonde Carlos se
desloca, no Capítulo VIII, na esperança de
encontrar Maria Eduarda. Pela sua beleza
natural e pela proximidade de Lisboa, este
local afigura-se como um cenário que con-
vida, com algum recato, aos amores… tanto
aos puros como aos impuros.
o Hotel Central, onde jantam Carlos, Ega e
• N
outras personagens da narrativa (Capítulo VI),
o leitor assiste a uma discussão literária (que
encena a polémica entre o Ultrarromantismo
e o Realismo/Naturalismo) e às reflexões tro-
cistas sobre a situação política e económica
de Portugal. Nesta confraternização entre
personagens com formação e com relevo na
vida nacional (Cohen é um banqueiro e um
homem influente; Alencar, o tipo do poeta
ultrarromântico), não só observamos a indife-
rença e a insensibilidade perante a decadên-
cia do País como a incapacidade de alguns
membros da elite lisboeta se comportarem
com civismo e dignidade.
• N
o episódio das corridas de cavalos (capítulo X),
que decorre no hipódromo, é denunciado o
culto da aparência da sociedade burguesa e a
sua aspiração de se mostrar requintada e cos-
mopolita, imitando a realidade das corridas George Leonard Lewis,
inglesas. No entanto, o evento revela-se monótono e entediante, e os comporta- Palácio da Pena (1883).

mentos, artificiais. Mais ainda, o ambiente apenas anima quando o provincia-


nismo lusitano vem à superfície numa cena de discussão e pugilato que põe a
nu a genuína falta de civismo do português.

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o jantar em casa dos condes de Gouvarinho (Capítulo XII), é a classe dirigente


• N
da nação — representada pelo conde de Gouvarinho, político proeminente, e
por Sousa Neto, alto funcionário da Instrução Pública — que revela a sua falta
de cultura bem como a mediocridade das suas ideias e das propostas que tem
para o País. Tal facto é notório quando estas personagens abordam tópicos
relacionados com a educação (das mulheres), a filosofia e a literatura.
• P
or outro lado, os vícios do jornalismo e a aspiração da burguesia são tratados
nos episódios que decorrem nas redações dos jornais A Corneta do Diabo e
A Tarde (Capítulo XV).
o sarau artístico no Teatro da Trindade (Capítulo XVI) critica-se a futilidade da
• N
sociedade burguesa. A cultura das classes privilegiadas é pobre e falta-lhes
o gosto e a sensibilidade pela arte mais exigente.

OS ESPAÇOS E O SEU VALOR SIMBÓLICO E EMOTIVO

1. O jardim do Ramalhete
• Antes de Afonso e Carlos decidirem habitar o Ramalhete, este espaço «possuía
apenas, ao fundo de um terraço de tijolo, um pobre quintal inculto, abando-
nado às ervas bravas, com um cipreste, um cedro, uma cascatazinha seca, um
tanque entulhado, e uma estátua de mármore ([…] Vénus Citereia) enegre-
cendo a um canto na lenta humidade das ramagens silvestres.» (Capítulo I).
• Depois de avô e neto se terem instalado neste espaço, o jardim é descrito da
seguinte forma: «tinha o ar simpático, com os seus girassóis perfilados ao pé
dos degraus do terraço, o cipreste e o cedro envelhecendo juntos como amigos
tristes e a Vénus Citereia parecendo agora, no seu tom claro de estátua de par-
que, ter chegado de Versalhes, do fundo do grande século… e desde que a
água abundava, a cascatazinha era deliciosa, dentro do nicho de conchas, com
os seus pedregulhos arranjados em despenhadeiro bucólico, melancolizando
aquele fundo de quintal soalheiro com um pranto de náiade doméstica esfiado
gota a gota na bacia de mármore.» (Capítulo I).
• F
inalmente, quando Ega e Carlos visitam o Ramalhete, dez anos depois, depa-
ram com este cenário: «Em baixo o jardim, bem areado, limpo e frio na sua
nudez de inverno, tinha a melancolia de um retiro esquecido, que já ninguém
ama: uma ferrugem verde, de humidade, cobria os grossos membros da Vénus
Citereia; o cipreste e o cedro envelheciam juntos, como dois amigos num ermo;
e mais lento corria o prantozinho da cascata, esfiado saudosamente gota a gota,
na bacia de mármore.» (Capítulo XVIII).
• D
ado que Maria Monforte surge aos olhos de Pedro como uma deusa, é possí-
vel associá-la à estátua de Vénus Citereia na sua primeira fase. É como se a
presença desta figura feminina fosse sugerida obscuramente no quintal do
Ramalhete, simbolizando a possibilidade de uma nova tragédia.
• C
om a vinda de Afonso e de Carlos para Lisboa, a estátua renova-se, passando a
simbolizar uma nova deusa que surge em Lisboa: Maria Eduarda. De notar, no
entanto, que, apesar da nota de alegria proporcionada pela referência ao renasci-
mento da estátua e à «cascatazinha deliciosa», a verdade é que o ambiente de
melancolia se mantém parcialmente, sendo sugerido pela comparação do cipreste
e do cedro a dois «amigos tristes» e pela alusão ao «pranto de náiade doméstica».
É possível, pois, considerar que se aponta desta forma para a presença de um
destino funesto, cuja ameaça, mesmo em momentos felizes, parece estar latente.

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• Q
uando pratica o incesto, Carlos começa a sentir alterações na forma
como via o corpo de Maria Eduarda: fora aquele corpo dela, adorado
sempre como um mármore ideal, que de repente lhe aparecera, como
era na realidade, forte de mais, musculoso, de grossos membros de
amazona bárbara, com todas as suas belezas copiosas do animal de
prazer.» (Capítulo XVII). Esta imagem pode ser associada à que a
estátua tem no momento em que Carlos regressa ao casarão após o
seu abandono: «uma ferrugem verde, de humidade, cobria os grossos
membros da Vénus Citereia» (Capítulo XVIII).

2. O interior do Ramalhete no epílogo


• No epílogo (isto é, no Capítulo XVIII), Carlos e Ega visitam o Rama-
lhete, espaço a propósito do qual o primeiro afirma: «— É curioso!
Só vivi dois anos nesta casa e é nela que me parece estar metida
a minha vida inteira!» O seu amigo refere que tal se fica ao dever ao
facto de ter sido naquele espaço que Carlos viveu «aquilo que dá
sabor e relevo à vida — a paixão.» Com efeito, o protagonista tem
uma intensa relação emotiva com este espaço não só pelo facto de
ele estar associado à vivência do seu amor com Maria Eduarda, mas Vénus Citereia (Bertel Thorvaldsen,
também pelas recordações que lhe proporciona do seu avô, Afonso Vénus com uma maçã, 1813-1816).
da Maia.
• N
esta medida, a redução do Ramalhete à condição de um depósito de recorda-
ções do passado torna-se muito pungente, sendo possível interpretar a destrui-
ção que neste espaço se operou como um símbolo da efemeridade da vida: «De
repente, deu com o pé numa caixa de chapéu sem tampa, atulhada de coisas
velhas — um véu, luvas desirmanadas, uma meia de seda, fitas, flores artifi-
ciais. Eram objetos de Maria, achados nalgum canto da Toca, para ali atirados
no momento de esvaziar a casa! E, coisa lamentável, entre estes restos dela,
misturados como na promiscuidade de um lixo, aparecia uma chinela de veludo
bordada a matiz, uma velha chinela de Afonso da Maia!» (Capítulo XVIII).
• A morte é também simbolicamente representada neste passo pelos panos
brancos que cobrem os móveis do escritório de Afonso da Maia — e que são
designados como «sudários brancos» (Capítulo XVIII).

3. A Toca
• O
nome «Toca» aponta para um espaço de proteção, imune às perturbações do
exterior. O próprio Carlos sugere que se lhe ponha «Uma divisa de bicho egoísta
na sua felicidade e no seu buraco: Não me mexam!» (Capítulo XIII). Com efeito,
os elementos perturbadores da relação (o artigo difamatório da Corneta do Diabo
e o encontro de Guimarães com Maria Eduarda e subsequentes revelações) pro-
vêm de Lisboa ou decorrem após Maria Eduarda regressar à Rua de S. Francisco.
No entanto, podemos ainda considerar que esta designação pode referir-se sim-
bolicamente uma relação de carácter animalesco, porque incestuosa.
• O
facto de Carlos introduzir «a chave devagar e com inútil cautela na fechadura
daquela morada», o que «foi […] um prazer» (Capítulo XIII), pode ser entendido
como um símbolo da relação sexual entre os dois amantes.
• Q
uanto ao quarto de Maria Eduarda, está carregado de símbolos que se assu-
mem como presságios do desfecho trágico desta relação amorosa. Em primeiro
lugar, temos a referência ao facto de a alcova se assemelhar ao «interior de um
tabernáculo profanado, convertido em retiro lascivo de serralho» (Capítulo XIII).

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Conteúdos literários

Tal como este lugar sagrado, também a relação de Carlos e de Maria Eduarda
acabará por perder a sua dimensão sublime e converter-se, após a descoberta
do seu grau de parentesco, numa ligação meramente sensual. O carácter ilícito
deste amor (não pela sua dimensão adúltera, mas pelo facto de os amantes
serem irmãos) é sugerido pela referência aos «amores de Marte e de Vénus»
(Capítulo XIII), bem como a Lucrécia Bórgia — figura histórica conhecida pela
luxúria e pelas relações incestuosas. A alusão a Romeu funciona também como
um indício de uma relação amorosa que culminará de forma trágica. Final-
mente, também a referência a S. João Batista aponta para a denúncia de uma
relação considerada, na época, incestuosa (dado que Herodes casara com a sua
cunhada — grau de parentesco equivalente, nesta fase, ao de irmã — e deseja
a enteada, Salomé). Os indícios de catástrofe são também reiterados pelo olhar
agoirento de uma coruja embalsamada. Finalmente, a insistência nas cores
amarela e dourada pode ser entendida como uma referência à vitalidade e ao
carácter ardente do seu amor, mas também à perversão que marca esta relação
amorosa, dado que a cor amarela pode também ter esta conotação negativa.
• N
a Toca, é posto em destaque um armário «“divino” do Craft, obra de talha do
tempo da Liga Hanseática, luxuoso e sombrio» e que «tinha uma majestade
arquitetural: na base quatro guerreiros, armados como Marte, flanqueavam as
portas, mostrando cada um em baixo-relevo o assalto de uma cidade ou as
tendas de um acampamento; a peça superior era guardada aos quatro cantos
pelos quatro evangelistas, João, Marcos, Lucas e Mateus, imagens rígidas,
envolvidas nessas roupagens violentas que um vento de profecia parece agitar:
depois, na cornija, erguia-se um troféu agrícola com molhos de espigas, foices,
cachos de uvas e rabiças de arados; e, à sombra destas coisas de labor e far-
tura, dois faunos, recostados em simetria, indiferentes aos heróis e aos santos,
tocavam, num desafio bucólico, a frauta de quatro tubos.» (Capítulo XIII).
É possível considerar os dois faunos como Carlos e Maria Eduarda, na medida
em que os amantes, tal como as figuras míticas, se entregam exclusivamente à
sensualidade, indiferentes a valores fundamentais representados pelas restan-
tes figuras: o heroísmo, a religião e o trabalho.
• De notar que no epílogo, quando Carlos regressa ao Ramalhete, verifica que
houvera «um desastre na cornija, nos dois faunos que entre troféus agrícolas
tocavam ao desafio. Um partira o seu pé de cabra, outro perdera a sua frauta
bucólica…» (Capítulo XVIII).
• Finalmente, destaca-se ainda, como «génio tutelar» (Capítulo XIII) da Toca,
«um ídolo japonês de bronze, um deus bestial, nu, pelado, obeso, de papeira,
faceto e banhado de riso, com o ventre ovante, distendido na indigestão de todo
um universo — e as duas perninhas bambas, moles e flácidas como peles mor-
tas de um feto.» (Capítulo XIII). Esta figura de contornos grotescos pode ser
considerada como um símbolo da dimensão monstruosa do próprio incesto que
será cometido naquele local.

4. Os espaços de Lisboa percorridos no passeio final de Carlos e Ega


• C
arlos e Ega começam por percorrer o Loreto, espaço em que a estátua de
Camões representa simbolicamente a época áurea dos Descobrimentos, que
contrasta com a estagnação, inércia e decadência que marcam a sociedade do
século XIX (daí a caracterização da estátua de Camões como «triste»).
• A
decadência da sociedade está associada à degenerescência da própria
população portuguesa, que é descrita como «feiéssima, encardida, molenga,
reles, amarelada, acabrunhada» (Capítulo XVIII).

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João Christino, Lisboa, Avenida da Liberdade (litografia publicada na Mala da Europa, n.o 488, 1905).

e seguida, os dois amigos chegam à Avenida da Liberdade, espaço que repre-


• D
senta simbolicamente um Portugal pretensamente moderno e cosmopolita.
• N
o entanto, podemos verificar que as tentativas de modernização do espaço
urbano se resumem a uma zona muito limitada, terminando de forma abrupta
no fim da Avenida, não passando, portanto, de um «curto rompante de luxo
barato» (Capítulo XVIII).
• N
este espaço se confirma também a degenerescência dos portugueses —
neste caso, especificamente, através da descrição da juventude. Com efeito,
esta «mocidade pálida» (Capítulo XVIII) — cuja falta de vitalidade é, provavel-
mente, uma consequência da educação tradicional portuguesa — limita-se a
passear pela Avenida da Liberdade sem propósito aparente. Assim — ao con-
trário da geração de Carlos e de Ega —, nem sequer tem qualquer ideia de
transformação do país, tendo apenas o objetivo de ostentar um luxo artificial
com o qual não se sente confortável. O absurdo desta situação é agravado pelas
botas que estes jovens calçam: na sua ânsia de parecerem muito civilizados, os
portugueses copiaram o modelo do estrangeiro, mas levaram-no ao excesso,
acabando por cair no ridículo. De acordo com Ega, este é o processo seguido
por toda a sociedade portuguesa da época que, no seu provincianismo, julga
que este é o caminho para a modernização.
• F
inalmente, Carlos aponta para os «velhos outeiros da Graça e da Penha», que
representam simbolicamente a hipótese de orientação para aquilo que é genui-
namente português. No entanto, como Ega refere, esta solução também não é
satisfatória, uma vez que implicaria o regresso ao um passado decrépito, asso-
ciado ao domínio do clero e da nobreza.

A DESCRIÇÃO DO REAL E O PAPEL DAS SENSAÇÕES

• E
ça de Queirós revela-se exímio a compor descrições, tanto de espaços sociais
urbanos como de cenários campestres. No romance Os Maias, o narrador des-
creve a realidade social do seu tempo em vários lugares de Lisboa e arredores:
a casa dos Gouvarinho, o Hotel Central, o teatro da Trindade, o hipódromo, etc.
Por outro lado, demora-se também na caracterização de ambientes naturais,
como Sintra ou a Quinta de Santa Olávia.

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Conteúdos literários

• A
s descrições de lugares, personagens e comportamentos concretizam-se
em anotações que resultam sobretudo de observações do narrador. Tal significa
que o registo descritivo assenta em perceções visuais desses elementos;
ou seja, nesta obra de ficção, simula-se que o narrador caracteriza os espaços
e as figuras que, pretensamente, estaria a observar.
• E
ncontramos um exemplo de descrição pautada pela perceção visual no
seguinte passo do sarau da Trindade: «De ambos os lados se cerravam filas de
cabeças, embebidas, enlevadas, atulhando os bancos de palhinha até junto ao
tablado, onde dominavam os chapéus de senhoras picados por manchas claras
de plumas ou flores.»
• E
sta caracterização dos espaços, em que domina a técnica da verosimilhança,
procura representar os lugares «como eles são». Ela serve os princípios artísti-
cos e os objetivos do Realismo, pois, ao representar o mundo social, analisa-o
também socialmente.
utra técnica descritiva importante usada por Eça é a técnica impressionista.
• O
Como sucede na pintura do Impressionismo, neste tipo de descrição de lugares,
figuras e elementos dá-se maior relevo à luz e às manchas de cor de um
conjunto (uma paisagem, um pôr do Sol) do que à forma exata ou aos contor-
nos desses elementos. Veja-se como a cor e os reflexos de luz sobressaem
na representação da multidão e de outros elementos no episódio das corridas
de cavalos.
• H
á, no entanto, momentos d’Os Maias em que as descrições se destacam por
referências ou sugestões a sensações olfativas, auditivas e táteis. As sensa-
ções olfativas estão frequentemente associadas a cenários naturais e decorrem
das fragrâncias exaladas pela vegetação: «as chaminés […] ornavam-se de
braçadas de flores, como um altar doméstico; era ainda aí, nesse aroma e nessa
frescura, que ele gozava melhor o seu cachimbo» (Capítulo I).
• R
elativamente a perceções sensoriais auditivas e táteis, também elas podem
ser sugeridas na caracterização de cenários campestres, como os de Sintra
(Capítulo VII). Encontramos exemplos de tais caracterizações quando Carlos e
Cruges estão a chegar a Sintra: «envolvia-os pouco a pouco a lenta e embala-
dora sussurração das ramagens e o difuso e vago murmúrio das águas corren-
tes» (auditivo); e «o ar subtil e aveludado» (tátil). Desta forma se dá conta de
como o cenário envolvia plenamente e fascinava as duas personagens.
• E
m algumas descrições irrompe a sinestesia, ou seja, expressões em que se
cruzam ou se fundem diferentes perceções sensoriais: «transparentes novos
dum escarlate estridente» (visual e sonoro); «luz macia» (visual e tátil).

REPRESENTAÇÕES DO SENTIMENTO E DA PAIXÃO

1. Diversificação da intriga amorosa


• N
’Os Maias, a diversificação da intriga amorosa é conseguida através da refe-
rência a diferentes tipos de relação — entre os quais se destacam as ligações
Pedro da Maia/Maria Monforte, Ega/Raquel Cohen e Carlos da Maia/Maria
Eduarda.

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UNIDADE 4 OS MAIAS, de EÇA DE QUEIRÓS

Pedro da Maia/Maria Monforte


• P
edro, personagem marcadamente naturalista, é vítima da hereditariedade, da
educação e do meio em que viveu. Com efeito, além de ser «pequenino e ner-
voso» (Capítulo I) como a sua mãe, acaba por se tornar um ser apático, passivo
e nervoso, em consequência da educação tradicional portuguesa.
• A
paixão obsessiva que nutre pela mãe — e que o leva a roçar a loucura
aquando da sua morte — acaba, na idade adulta, por ser transferida para Maria
Monforte, figura feminina bela, fútil, caprichosa e manipuladora.
• I nfluenciado pelo Romantismo, Pedro revolta-se contra o pai, que não aprova o
casamento com a filha de um antigo traficante de escravos, e casa com Maria.
• No entanto, a leviandade de Maria Monforte leva-a a fugir com Tancredo.
• A
fragilidade psicológica de Pedro torna-o incapaz de sobreviver à fuga da
mulher, suicidando-se.

Ega/Raquel Cohen
paixão da vida de Ega acaba por ser o romance adúltero com Raquel Cohen,
• A
mulher do banqueiro Cohen.
• O
carácter ilícito desta relação, bem como o facto de os amantes se encontra-
rem na Vila Balzac, espaço cuja decoração — em tons de vermelho e tendo
como ponto fulcral o leito — é propícia à sensualidade, mostra que, tal como
sucedera com Pedro e Maria Monforte, também a paixão entre Ega e Raquel
Cohen é influenciada pelos ideais do amor romântico.
• E
sta relação termina no momento em que Cohen, descobrindo o adultério,
expulsa Ega. No entanto, este episódio — que poderia ter contornos trágicos
— acaba por ser investido de um tom grotesco, uma vez que, porque tudo
sucedeu num baile de máscaras, Cohen se encontrava vestido de beduíno e
Ega, de Mefistófeles. Além disso, Raquel é espancada pelo marido, mas acaba
por se reconciliar com ele.
• D
este modo, o único elemento sublime que acaba por restar desta relação
amorosa são as recordações de Ega, que este evoca junto de Carlos e Craft,
mas cujo dramatismo é, mais uma vez, diluído pelo facto de aquele se encon-
trar profundamente ébrio.

Carlos/Maria Eduarda
• A
pós uma relação fugaz com a condessa de Gouvarinho — que nutre por ele
uma intensa paixão não correspondida —, Carlos acaba por encontrar o grande
amor da sua vida em Maria Eduarda.
• T
odas as relações anteriormente referidas (Pedro/Maria Monforte, Ega/Raquel
Cohen e Carlos/condessa de Gouvarinho) contribuem para exaltar o carácter
sublime desta última relação amorosa.
• Com efeito, no amor de Carlos e de Maria Eduarda, não temos uma relação
marcada pela manipulação (como sucedera com Pedro e Maria Monforte) nem
pela superficialidade (como acontecia nos casos de Ega e Raquel Cohen e de
Carlos e da condessa de Gouvarinho). A paixão entre os protagonistas decorre
de uma sintonia de personalidades — já que ambos são inteligentes, cultos e
requintados — que os eleva acima da sociedade mesquinha em que vivem e
lhes permite superarem todas as contrariedades — até que um destino impie-
doso se abate definitivamente sobre eles.

55

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Conteúdos literários

• N
ão deixa de ser curioso o facto de Carlos, aquando da descoberta do seu grau
de parentesco com Maria Eduarda, considerar que tanto ele como a sua amada
eram seres profundamente racionais que conseguiriam facilmente sufocar os
seus sentimentos agora que sabiam ser irmãos. O desdém que mostra pela
mentalidade romântica rapidamente se desfaz no momento em que se revela
incapaz de contar a verdade a Maria Eduarda, acabando por ceder à tentação
e cometendo incesto voluntariamente.
• Assim, podemos verificar que também a relação amorosa entre Carlos e Maria
Eduarda é influenciada pelos ideais do amor romântico — de forma mais dra-
mática no momento do incesto, mas também pelo facto de ambos enfrentarem
as convenções sociais e decidirem ficar juntos (num primeiro momento, numa
suposta relação de adultério, num segundo momento, numa relação de aman-
tes, que se torna mais controversa pelo passado de Maria Eduarda).
• D
e facto, esta realidade é magistralmente sintetizada na fala de Ega, aquando
da sua última visita ao Ramalhete: «Que temos nós sido desde o colégio, desde
o exame de latim? Românticos: isto é, indivíduos inferiores que se governam na
vida pelo sentimento e não pela razão…» (Capítulo XVIII).

2. A intriga trágica

Revelação da relação de parentesco entre Carlos e Maria


Peripécia/ Eduarda feita por Guimarães a Ega; revelação desta relação
Anagnórise de parentesco feita por Ega a Vilaça, por este a Carlos
e por Carlos a Afonso.
Carlos é incapaz de resistir à paixão que sente por Maria
Hybris /Clímax
Eduarda e comete incesto voluntariamente.
Afonso morre e Carlos e Maria Eduarda separam-se para
Catástrofe
sempre.

CARACTERÍSTICAS TRÁGICAS DOS PROTAGONISTAS

• N
a Poética, Aristóteles afirma que as personagens da tragédia deveriam ter uma
condição elevada.
isto, de facto, o que sucede n’Os Maias: Afonso da Maia, Carlos da Maia e
• É
Maria Eduarda são personagens de condição superior não apenas pelo seu
estatuto de fidalgos, mas também (e sobretudo) pela nobreza do seu carácter.
Ainda que nenhuma destas figuras seja perfeita, a verdade é que todas têm
traços heroicos.

Afonso da Maia
• A
pesar de ter alguns traços de diletantismo (que o levarão a esquecer facil-
mente a dura luta travada pelos seus companheiros liberais em Portugal
enquanto vivia uma vida luxuosa em Inglaterra e a limitar-se a aconselhar Carlos
e os amigos a fazerem algo para mudar Portugal, ao invés de agir), Afonso da
Maia é uma personagem admirável.
• C
om efeito, apesar de os princípios morais o terem levado a desaprovar o casa-
mento de Pedro, quando este regressa, humilhado, após a partida de Maria
Monforte, o seu amor paternal leva-o a reconciliar-se com o filho e a apoiá-lo,
ao invés de o recriminar.

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UNIDADE 4 OS MAIAS, de EÇA DE QUEIRÓS

• A
lém disso, a sua enorme força interior é demonstrada pela capacidade de
sobreviver à morte do filho e de se dedicar com entusiasmo à educação do neto.
• F
inalmente, é uma personagem profundamente digna, que não se deixa sedu-
zir pelo luxo que Carlos tanto aprecia, vivendo de forma simples e austera.
À virtude da sobriedade acresce o facto de ser inteligente, culto e caridoso —
tanto com as pessoas, como com os animais.

Carlos da Maia
• A
pesar do carácter diletante, que prejudica os seus estudos universitários e,
após o regresso a Lisboa, o impede de concretizar os seus projetos no campo
da Medicina, Carlos é também uma personagem na qual ressaltam caracterís-
ticas positivas.
• C
om efeito, ao longo da intriga, destaca-se pela sua inteligência, cultura e sen-
tido de humor, assumindo uma atitude crítica e irónica em relação à sociedade
portuguesa.

Maria Eduarda
• A
pesar de as circunstâncias da vida a terem forçado a viver com Mac Gren
sem se casar e, posteriormente, a tornar-se amante de Castro Gomes, Maria
Eduarda nunca perde a sua dignidade.
• À
semelhança de Carlos e de Afonso da Maia, é inteligente e culta. Além disso,
herda de Afonso da Maia a capacidade de se compadecer dos mais fracos.

Como é apanágio da tragédia, a nobreza de todas estas personagens torna mais


pungente a catástrofe que se abate sobre elas.

LINGUAGEM, ESTILO E ESTRUTURA

1. Os Maias enquanto romance


• A
obra Os Maias deve ser classificada literariamente como um romance; isto
porque, segundo as regras deste género literário, se trata de uma narrativa
longa (mais extensa do que o conto e a novela) em que existe mais do que uma
linha de ação — embora, por regra, domine uma principal — e um número
considerável de personagens. Por esse motivo, multiplicam-se os espaços em
que o enredo se desenvolve e a organização temporal torna-se mais complexa.
relação amorosa entre Carlos e Maria Eduarda constitui a ação principal
• A
d’Os Maias: esta linha narrativa funciona como motor do romance, e é a vida
e o destino destas personagens centrais que dinamizam o texto. Por outro lado,
encontramos uma linha de ação secundária: o casamento de Pedro da Maia
e Maria Monforte.
• N
uma narrativa extensa, de enredo complexo, é natural que o número de per-
sonagens que sobe à cena se multiplique. Além das figuras centrais, Carlos
e Maria Eduarda, que são complexas (modeladas), encontramos n’Os Maias
personagens que participam na ação central (Afonso da Maia, Ega, Castro
Gomes), mas também outras entidades de importância. Assim, personagens-tipo
ou caricaturas, como Palma Cavalão, Sousa Neto, o Neves, estão sobretudo ao
serviço da crítica social porque neles se estudam vícios e tiques sociais.

57

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Conteúdos literários

• E
ssa crónica de costumes que anima Os Maias decorre sobretudo em vários
lugares de Lisboa e dos seus arredores. Assim, a multiplicidade de espaços
físicos lisboetas — como o Hotel Central, o hipódromo, o teatro da Trindade
— constrói uma série de palcos onde podemos analisar os comportamentos de
grupos e figuras típicas da sociedade burguesa oitocentista: espaço social.
• Por seu lado, a organização temporal da narrativa é também complexa neste
romance. A narrativa inicia-se em 1875, quando Carlos da Maia se prepara
para vir viver para Lisboa; mas logo assistimos a uma retrospetiva (analepse)
que leva o leitor a conhecer a vida do avô e do pai do protagonista. Por outro
lado, o romance encerra com um epílogo que tem lugar dez anos após o desfe-
cho da intriga principal.

2. O título e o subtítulo
• O
título do romance, Os Maias, é uma referência direta à família fidalga, oriunda
do Norte do País, que ocupa uma posição central na narrativa. De facto, se
Carlos da Maia é a personagem nuclear da ação principal, a vida do seu pai e
do seu avô assumem relevância no romance. Aliás, o enredo d’Os Maias
remonta a algumas décadas anteriores ao nascimento do protagonista. A perti-
nência do título manifesta-se também no facto de os acontecimentos da intriga
principal, a relação incestuosa de Carlos e Maria Eduarda, serem uma conse-
quência dos infortúnios e dos desencontros dos membros da família Maia.
esse sentido, a obra enquadra-se na classificação de «romance de família»,
• N
porque faz desfilar nos dois capítulos iniciais, de forma resumida, a vida de
quatro gerações de Maias, representando os diferentes períodos do século XIX
português. Numa fugaz presença na narrativa, Caetano da Maia, adepto do
Absolutismo, manterá uma relação tensa (por questões ideológicas) com o seu
filho, Afonso, que defende as ideias do Liberalismo. Já Pedro da Maia, filho de
Afonso, representa a segunda geração liberal e a mentalidade romântica.
Por fim, Carlos da Maia aparece como um contemporâneo da Regeneração
(1851-1906).
• A
ssim, através das personagens desta família, equacionam-se questões da
época: a decadência, o progresso material, o rotativismo político, etc. Assim, até
certo ponto, a família Maia representa metonimicamente Portugal e a decadên-
cia da nação ao longo do século XIX.
• S
e o título aponta para a história de uma família, o subtítulo — Episódios da
vida romântica — abre o leque de possibilidades da narrativa para a tornar um
estudo da sociedade portuguesa (sobretudo) da segunda metade do século XIX.
Nessa medida, este subtítulo aponta para a crónica de costumes, que atravessa
o romance e se desenvolve a par da intriga principal. Nesse estudo da socie-
dade portuguesa analisam-se os comportamentos, os hábitos, as práticas de
um povo, a fim de denunciar e criticar os seus vícios, incongruências e falhas.
ma finalidade maior d’Os Maias, enquanto estudo social, é tentar compreen-
• U
der as «causas da decadência» do povo português no século XIX. Aliás, Eça de
Queirós planeara escrever um conjunto de doze novelas de cariz realista/natu-
ralista, que receberia o título de Cenas da vida portuguesa ou Crónicas da vida
sentimental, mas o projeto não foi concluído. Esta obra multifacetada comporia
um painel de retratos do Portugal de então e versaria temas como o alcoolismo,
o adultério, o jogo, o sacerdócio, etc.

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UNIDADE 4 OS MAIAS, de EÇA DE QUEIRÓS

• Quanto ao método seguido na análise social, Eça concebe uma série de


episódios em que as características dos portugueses se manifestam. Nestes
episódios, desmascaram-se traços da identidade coletiva portuguesa, como o
parasitismo, o oportunismo, a inércia, a falta de cultura e outros vícios que, pelo
menos em parte, explicam a situação do Portugal da Regeneração.
• O subtítulo do romance sugere que no Portugal do fim do século XIX pulsa ainda
uma «vida romântica»; Ega decifra o sentido da expressão: «— E que somos
nós? […] Românticos: isto é, indivíduos inferiores que se governam na vida pelo
sentimento, e não pela razão…». Românticos são Ega, Carlos e os restantes
membros da sociedade burguesa aqui retratada, porque as personagens
do romance, se, por um lado, extravasam paixão, emoção e espontaneidade
(os amores, legítimos ou adúlteros, as amizades e as inimizades virulentas,
a maledicência, a desorganização e a desordem), por outro, revelam-se parcas
em seriedade, organização, equilíbrio, trabalho, disciplina e empenho (razão).
Ou seja, faltam as qualidades necessárias para colocar o País na rota do desen-
volvimento, do civismo e da justiça social.

João Abel Manta, As personagens de Eça (meados do século XX).

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Conteúdos literários

• O
Portugal de Carlos é romântico porque herdou as ideias, os valores e as cren-
ças da segunda geração liberal e romântica e neles se fossilizou. Tipicamente
romântica é também a mentalidade pautada pelo tédio, pela ociosidade e pelo
diletantismo, que minam a existência das personagens desta obra.
• D
ecorrente desta ideia está a segunda explicação para a mentalidade romântica
do fim de século. A sociedade romântica é a sociedade liberal, dominada pela
burguesia e pelos seus valores: materialismo, mercantilismo, elitismo, (pseudo-)
requinte, o luxo, a monarquia. São estes valores decadentes, liberais, burgueses
— românticos! — que ainda conduzem a sociedade portuguesa e o grupo diri-
gente, condenando o País ao atraso e à pobreza (material e de espírito).

3. Linguagem e estilo
m termos de registos de linguagem, a prosa de Eça de Queirós revela-se
• E
admiravelmente versátil e maleável. Por um lado, no melhor registo literário e
elevado, atinge rasgos de grande beleza com a construção frásica elegante e
cuidada, as imagens plásticas sugestivas e o léxico erudito. Por outro lado,
sobretudo na reprodução das falas das personagens, recorre-se aos registos
familiar e corrente e, ocasionalmente, ao calão para reproduzir com naturali-
dade e humor os tiques de linguagem oral do português do fim de século.
• A
inda no que diz respeito à «reprodução do discurso no discurso», o discurso
direto dos diálogos e o discurso indireto livre (técnica em que a voz de uma
personagem e do narrador se sobrepõem) revelam-se estratégias ao gosto da
literatura realista na medida em que se colocam as personagens em interação,
de forma a exporem-se através do que dizem e a denunciarem o seu carácter,
incongruências e vícios, num processo de caracterização indireta em que a
personagem mostra o que é pelo que afirma e pela forma como afirma: Dâmaso
é boçal; Cohen, inculto; Ega, pedante; Palma «Cavalão», hipócrita, etc.
or outro lado, os recursos expressivos conferem originalidade e riqueza à
• P
prosa queirosiana. A ironia é um recurso expressivo cultivado por Eça, tanto
porque serve a crítica social como porque se trata de uma figura de estilo que
confere leveza, encanto e humor à narrativa. Este recurso expressivo revela-se
adequado para denunciar as contradições, as incongruências e as falhas das
personagens e dos comportamentos sociais.
• A
hipálage é outro recurso expressivo que se associa à prosa romanesca
de Eça, tendo em conta a elegância e a expressividade com que o romancista
a usou. A hipálage, recorde-se, consiste em associar uma palavra (normal-
mente um epíteto) não ao termo a que estaria naturalmente ligado mas a um
vocábulo vizinho: «Ega espalhava também pelo quarto um olhar pensativo» (era
Ega quem estava pensativo, não o seu olhar).
• A
comparação e a metáfora são recursos expressivos de capital importância
na caracterização de certas personagens e da vida lisboeta. Em tom irónico ou
trocista, na boca de algumas personagens a comparação e a metáfora são
formas de caracterização insultuosa: por exemplo, «a besta do Cohen».
Facilmente a ironia se associa à metáfora na caracterização de alguém, neste
caso, o conde de Gouvarinho, acerca de quem Ega diz: «— Tem todas as con-
dições para ser ministro: tem voz sonora, leu Maurício Block, está encalacrado,
e é um asno!…».

60

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UNIDADE 4 OS MAIAS, de EÇA DE QUEIRÓS

• N
outros casos, a comparação, a metáfora e as imagens tomam parte nas des-
crições artísticas de paisagens: «Iam ambos caminhando por uma das alame-
das laterais, verde e fresca, de uma paz religiosa, como um claustro feito de
folhagem.» Ou então, traduzem, de forma admirável, os estados de alma
humana, como no caso da metáfora: «os bigodes esvoaçando ao vendaval das
paixões». Para caracterizar o vazio existencial de Pedro da Maia, diz-se que,
para ele, «dias [são] taciturnos, longos como desertos».
• N
o seu período de maturidade literária, Eça de Queirós trabalhou o adjetivo
e o advérbio de forma artística e disciplinada, de modo a obter uma expressivi-
dade admirável. O adjetivo pode ser usado, em Eça, de forma surpreendente,
associando-se a elementos a que não se ligava semanticamente: «sorriso mole»,
«chiar lento das rodas». Nesses casos, projeta na frase a subjetividade e o juízo
do enunciador (narrador ou personagem). Os casos de adjetivação dupla
revestem-se de particular significado, sobretudo quando os adjetivos contrastam
entre si, associando o concreto e o abstrato, o físico e o psicológico, etc.: «maciço
e silencioso palácio», «uns sons de piano, dolente e vago». Alguns dos exem-
plos revelam que o adjetivo pode estar ao serviço da crítica.
• I gual função pode ser desempenhada pelo advérbio, sobretudo quando tem
uma presença inesperada e surpreendente na frase: «remexia desoladamente
o seu café». Aí o advérbio corresponde, como o adjetivo, a um comentário ou a
uma constatação do enunciador; noutras situações, desencadeia um efeito
humorístico. Significativos são os casos em que o advérbio contrasta com o
significado do verbo, como em «Dâmaso sorria também lividamente».
• O
verbo é outra classe de palavras trabalhada criativamente, produzindo em
vários passos combinações sugestivas e plenas de significado: «mordia um sor-
riso», «vamo-nos gouvarinhar», «Ega trovejou», etc. Por outro lado, tanto o pre-
térito imperfeito do indicativo, que alude a ações repetidas, como o gerúndio
conferem dinamismo às descrições. As formas verbais do imperfeito e gerúndio
funcionam também normalmente como modos de dar conta do valor aspetual
habitual ou durativo da ação: «o tédio lento ia pesando outra vez.»
• A inda no domínio do vocabulário, o texto d’Os Maias surge polvilhado de
estrangeirismos, que são criteriosamente usados. Assim, tanto o «anglicismo»
( vocábulo de origem inglesa) como o «galicismo» ou «francesismo» traduzem
frequentemente a pretensão das personagens em exibir um requinte, uma
modernidade e um cosmopolitismo, que, contudo, acabam por ser artificiais.
Vemos aqui o jogo das aparências em que a sociedade burguesa tanto se com-
praz. Por exemplo, no episódio das corridas de cavalos, o vocabulário deste
espetáculo tão pouco nacional é requisitado à língua inglesa: «jockey», «sports-
man», «handicap» ou «dead-beat». Não raro, o estrangeirismo é usado de
forma irónica, como o famoso «chique», de Dâmaso, que denuncia a sua sub-
missão pacóvia ao francesismo, o qual também marca presença no romance
para aludir a questões de moda e sociedade.
• P
or último, o diminutivo pode assumir vários significados: se em alguns casos
se trata de uma expressão de afeto («Carlinhos», «o latinzinho»), mais interes-
sante é a sua utilização irónica para depreciar ou ridicularizar alguém: «Dama-
sozinho, flor, fique avisado de que, de ora em diante, cada vez que me suceder
uma coisa desagradável, venho aqui e parto-lhe uma costela […].» O diminutivo
encarrega-se de participar na atitude trocista do narrador e de algumas perso-
nagens na crítica de comportamentos e de costumes.

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