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“Aldeias do mal” 31/10/2007

Governantes sempre associaram favelas ao crime e à falta de


higiene

Romulo Costa Mattos

Em 5 de julho de 1909, o jornal Correio da Manhã escreveu sobre


o Morro da Favela: “É o lugar onde reside a maior parte dos
valentes da nossa terra, e que, exatamente por isso – por ser o
esconderijo da gente disposta a matar, por qualquer motivo, ou,
até mesmo, sem motivo algum –, não tem o menor respeito ao
Código Penal nem à Polícia, que também, honra lhe seja feita,
não vai lá, senão nos grandes dias do endemoninhado vilarejo”.

Essa reportagem mostra que a percepção social da violência


urbana nas favelas vem de muito tempo, assim como o estigma
imposto aos seus habitantes. Pelo menos desde a década de 1900,
os moradores das favelas são comumente vistos como grandes
promotores da criminalidade na cidade do Rio de Janeiro. Ainda
mais antiga é a idéia de que as moradias populares em geral
seriam prejudiciais à ordem pública.

Há projetos datados de 1855 que propunham a colocação de portões


de ferro nos cortiços, que deveriam ficar trancados a partir de
certa hora. Mas foi nas últimas décadas do século XIX que a
crise de habitação assumiu maiores proporções. Isto se deu em
virtude das transformações desencadeadas pela decadência da
cafeicultura no Vale do Paraíba, pela abolição da escravatura e
pelo desenvolvimento do processo de industrialização – ainda que
este último fosse incipiente.

Nesse contexto, muitos ex-escravos e europeus – principalmente


portugueses – acorreram para a cidade do Rio de Janeiro. O
extraordinário crescimento populacional sobrecarregou sua área
central, que concentrava, havia décadas, as temidas habitações
coletivas. A perseguição a essas moradias populares culminou na
demolição, em 1893, do cortiço Cabeça de Porco, localizado
próximo à região da Central do Brasil.

O prefeito Candido Barata Ribeiro (1843-1910) justificou o


desalojamento de cerca de duas mil pessoas em nome da higiene
pública. Os jornalistas foram além e festejaram o fim de um
lugar que, segundo eles, abrigaria assassinos. Mas os interesses
particulares não devem ser esquecidos, pois novos terrenos
seriam abertos à exploração imobiliária.

Um grupo de ex-moradores do Cabeça de Porco conseguiu


autorização para levar consigo ripas de madeira – muitos quartos
ali se assemelhavam aos barracões das futuras favelas.

Caminharam então poucos metros até o Morro da Providência, onde


levantaram novas moradias. Entre 1893 e 1894, soldados que
combateram a Revolta da Armada obtiveram licença do governo para
morar no Morro de Santo Antônio, no Centro. Começava assim a
história das favelas no Rio de Janeiro.

Pouco tempo depois, em 1897, soldados retornados da Guerra de


Canudos instalaram-se no já habitado Morro da Providência. No
beligerante arraial baiano, a tropa do governo ficara na região
de um morro chamado Favela, sendo esse o nome de uma planta
resistente, que causava irritação no contato com a pele humana.
Por abrigar pessoas que haviam tomado parte naquele conflito, o
Morro da Providência foi popularmente batizado de Morro da
Favela. O apelido pegou, e na década de 1920 as colinas tomadas
por barracões e casebres passaram a ser conhecidas como favelas.

Já na década de 1900, os moradores das favelas eram comumente


vistos como os grandes promotores da criminalidade no Rio de
Janeiro.

Nos primeiros anos, o Morro de Santo Antônio chamava mais a


atenção dos poderes públicos por se localizar na área central da
cidade. A prefeitura vez por outra demolia os barracos, que
teimavam em reaparecer. O Morro da Favela ficava um pouco mais
distante, na região portuária, que era tida como violenta e
incivilizada devido a seu alto percentual de negros. Foi assim
que, por um lado, a localização dessa colina deixou-a protegida
das marretas municipais em um momento inicial. Por outro,
contribuiu para que ela fosse considerada o território por
excelência das “classes perigosas” – conceito esse que, na
prática, colocava os pobres como perigosos.

Assim como os antigos cortiços, as favelas do início do século


XX eram vistas como um problema de saúde pública e segurança.
Mas o contexto no qual elas ganhavam notoriedade era outro. O
Rio de Janeiro estava sendo construído como uma nova cidade,
moderna, europeizada, capaz de ser o cartão-postal da recém-
criada República. Contrariando esse ideal, as favelas passaram a
ser vistas como outras cidades, corpos estranhos dentro da urbe
formal.

As reformas urbanas do prefeito Francisco Pereira Passos (1836-


1913) foram a maior realização daquela época. Entre 1902 e 1906,
as principais ruas do Centro foram alargadas e novas artérias
foram abertas, entre as quais a imponente Avenida Central.
Quarteirões inteiros de cortiços foram destruídos. Quem não
podia arcar com os custos do transporte e morar nos subúrbios
teve de se virar para permanecer na valorizada área central. As
habitações coletivas situadas nas suas imediações foram uma
opção. Outra alternativa bastante aproveitada foram os seus
morros.

A expansão das favelas durante a Reforma Passos transformou-as


na principal representação de moradia popular, substituindo as
habitações coletivas. Para jornalistas e escritores, a pobreza
agora se encontraria ali. No fim da década de 1900, o Morro da
Favela passou a ser considerado o lugar mais perigoso da
capital, reforçando a má fama conquistada por seus moradores
depois da participação na Revolta da Vacina, em 1904.

Na já citada edição de 5 de julho de 1909, o Correio da Manhã


afirmava: “A Favela (...) é a aldeia do mal. Enfim, e por isso,
por lhe parecer que essa gente não tem deveres nem direitos em
face da lei, a polícia não cogita de vigilância sobre ela”. Na
mesma reportagem, o morro foi chamado ainda de “aldeia da
morte”.

Esse era o atalho que levava à negação da condição de cidadãos


de seus moradores. Pelo menos desde o “bota-abaixo” promovido
por Pereira Passos, existia a percepção de que essa colina seria
também habitada pelos trabalhadores honestos. Mas a valoração
positiva de seus habitantes só ganhou força nos anos 1920,
quando as favelas tiveram sua expansão definitiva no cenário
urbano.

Após a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), foi se consolidando


uma certa descrença no ideal de civilização que a Europa até
então representava, com o surgimento de intelectuais empenhados
em definir os traços de nossa nacionalidade. Ao mesmo tempo,
artistas europeus começaram a visitar o Morro da Favela para
conhecer a cultura proveniente dos povos africanos, em moda no
Velho Continente, no que foram acompanhados pelos brasileiros.
Em 1924, o modernista Oswald de Andrade escreveu em seu
“Manifesto da poesia pau-brasil”: “Os casebres de açafrão e ocre
nos verdes da Favela, sob o azul cristalino, são fatos
estéticos”.

Apesar de os morros serem considerados àquela altura símbolos


nacionais – principalmente o da Favela –, seus moradores
continuavam a ser relacionados à violência urbana. Segundo o
Jornal do Brasil de 19 de maio de 1926, “a Favela é o Rio, mas o
Rio integral, sincero, o Rio tal como Deus o fez. E tanto mais
pitoresco, para ser visto, quando é lá que vimos um pouco da
alma turbulenta, desordeira e, à sua maneira, épica da cidade”.
Ainda na década de 1920, as favelas foram incluídas pela
primeira vez em um plano para o Rio de Janeiro. Com a chegada do
urbanista francês Alfred Agache (1875-1959), em 1927, o fim das
favelas foi oficialmente arquitetado. O prefeito Antônio Prado
Júnior (1880-1955) o convidara para elaborar um projeto que
abordasse a cidade como um todo, um sistema, um corpo integrado.
Esse pensamento sobre seu espaço diferia das meras ações
pontuais de embelezamento e higiene de outrora. Agache
justificou a destruição das favelas “não só sob o ponto de vista
da ordem social e da segurança, como sob o ponto de vista da
higiene geral da cidade, sem falar da estética”.

Em 1927, quando Alfred Agache afirmou que as favelas teriam de


ser erradicadas, o compositor José Barbosa da Silva, o Sinhô,
freqüentador e defensor do Morro da Favela, escreveu “A Favela
vai abaixo”. Os primeiros versos citavam as casinhas de madeira,
cada vez mais retratadas por intelectuais e artistas: “Minha
cabrocha/ A Favela vai abaixo/ Quantas saudades tu terás deste
torrão/ Da casinha pequenina de madeira/ Que nos enche de
carinho o coração”.

Ao contrário do “Rei do Samba”, Agache se referia às favelas


como “lepras” e “chagas”. O elevado custo financeiro e a
Revolução de 1930, que levou Getulio Vargas ao poder,
contribuíram, porém, para que seu projeto fosse arquivado. O
governo de Getulio deixou as favelas em paz por algum tempo e
chegou a defender, em determinadas instâncias, os seus moradores
contra as ações dos proprietários de terrenos. Isso, decerto,
reforçava a imagem do presidente como “pai dos pobres”.

O Código de Obras da cidade, de 1937, mostrou que essa situação


era provisória. Entre seus objetivos estava a eliminação das
favelas, em cujas casas era vedado qualquer tipo de
melhoramento. Essa foi a primeira política formal de governo
referente às favelas. Na Primeira República, a fiscalização e o
conhecimento delas ficara a cargo da grande imprensa, que
denunciava o surgimento de barracões e casebres, apontava para o
adensamento populacional nos morros e pedia providências a esse
respeito. Agora, os poderes públicos entravam em cena, para
melhor conhecer as favelas e controlá-las.

Relatório elaborado para a prefeitura pelo médico Victor Tavares


de Moura – “Esboço de um plano para o estudo e a solução das
favelas no Rio de Janeiro”, 1940 – é ilustrativo de como os
morros eram vistos como um problema moral: “A vida lá em cima é
tudo quanto há de mais pernicioso. Imperam os jogos de baralho
(...) e o samba é diversão irrigada a álcool. Os barracões (...)
abrigam, cada um, mais de uma dezena de indivíduos (...) em
perigosa promiscuidade”. O médico defendia medidas como o
controle da entrada de indivíduos de baixa condição social no
Rio de Janeiro e o retorno deles para seus lugares de origem.

Outro trabalho destinado ao conhecimento das favelas, no início


da década de 1940, foi o da assistente social Maria Hortência do
Nascimento e Silva, que critica a valorização das favelas entre
os intelectuais entusiastas da chamada cultura popular:
“enquanto alguns se compenetram da gravidade do problema e
procuram remediar a situação desses desgraçados, os cronistas se
encantam pelo morro e o enaltecem (...) Será que do malandro
querem fazer uma personalidade, e do samba um hino nacional?”.

A resposta era: sim. No plano cultural, Getulio Vargas anunciara


o aproveitamento das potencialidades brasileiras, que tinha
relação com a política econômica do país. Em um livro de
exaltação ao Estado Novo, o jornalista Henrique Dias da Cruz
havia explicado: “Não é mais, pois, o malandro, homem da
desordem, que agride, que mata. A navalha e o revólver foram
substituídos pelo pandeiro, pelo violão, pelo cavaquinho”.

Enquanto o médico e a assistente social condenavam o estilo de


vida nas favelas, o jornalista dizia que a vadiagem e o crime
seriam coisas do passado nesses espaços. Essa diferença de
opiniões relacionava-se à ocupação profissional de cada um.
Enquanto os dois primeiros eram mais pragmáticos e justificavam
a intervenção do Estado nas favelas, o último atuava no plano
simbólico e tentava dar uma imagem positiva ao Estado Novo.

Os três autores tinham em comum a idéia da necessidade de uma


assistência educacional, que resolvesse o suposto problema moral
dos moradores das favelas. O jornalista revelou a receita do
regime: “ao invés de polícia, assistência moral; ao invés de
cadeia, escola, hospital, trabalho”. Mas a onda repressiva que
acompanhou a ditadura Vargas atingiu fortemente os tais
malandros e contraventores – que a percepção social insistia em
localizar nos barracões.

Mais ou menos na época desses trabalhos, o Estado Novo se


ocupava da primeira política habitacional voltada para as
camadas pobres da população. Entre 1942 e 1943, foram
inaugurados parques proletários na Gávea, no Caju e no Leblon,
que receberam entre sete e oito mil pessoas de quatro favelas.
Os mecanismos de controle nesses locais eram notáveis. Além da
exigência de atestado de bons antecedentes, seus moradores eram
identificados por meio de cartões. Apesar de os parques
proletários terem sido concebidos como provisórios, sua
população só foi expulsa décadas mais tarde, quando as áreas ao
seu redor se valorizaram no mercado imobiliário.
Na década de 1940, os favelados passaram a despertar um novo
tipo de medo: o de seu possível envolvimento com o comunismo

Nessa época, os moradores de favelas despertavam um novo tipo de


medo, que era o de seu possível envolvimento com o comunismo. A
prefeitura e a Arquidiocese do Rio de Janeiro haviam se
articulado em 1946 para criar a Fundação Leão XIII e subir os
morros antes que deles descessem os “comunistas”. A organização
dos habitantes das favelas estava sendo favorecida pela
restauração da ordem democrática na mesma época em que o Partido
Comunista Brasileiro aparecia como a terceira força política na
capital.

O aprofundamento da relação entre as favelas e a política nos


anos 1950 levou a Igreja e o governo municipal a criarem outras
instituições para atuar nesses espaços – respectivamente, a
Cruzada São Sebastião (1955), que urbanizou favelas e construiu
o conjunto habitacional conhecido como Cruzada, no Leblon, e o
Serviço Especial de Recuperação das Favelas e Habitações Anti-
higiênicas (1956). Datam ainda dessa época o Primeiro Congresso
dos Favelados do Rio de Janeiro e a Coligação dos Trabalhadores
Favelados do Distrito Federal – ambos de 1957. Na mesma década,
a população das favelas cresceu 7%, enquanto que a do restante
da cidade aumentou 2%.

Eleito primeiro governador do Estado da Guanabara, entre 1960 e


1965, Carlos Lacerda deu continuação à febre viária iniciada na
década anterior, construindo viadutos e avenidas. Dentro do
quadro de renovação urbana da metrópole, surgiu o programa de
remoção de favelas. O governador, que, ainda como jornalista do
Correio da Manhã, havia promovido em 1948 uma vigorosa campanha
por sua extinção (a “Batalha do Rio”), iniciou a transferência
de suas populações para lugares distantes da área central.

As remoções de favelas assumiram proporções gigantescas a partir


de 1968. O governo federal criou a Coordenação de Habitação de
Interesse Social da Área Metropolitana do Grande Rio, que atuou
até 1973. Esse órgão unificou a política sobre as favelas com o
objetivo de extingui-las – o que se relacionava à capacidade de
articulação dos chamados favelados. A Federação das Associações
das Favelas do Estado da Guanabara fora criada em 1962, no
contexto da transferência compulsória de moradores para as vilas
populares. Era dessa época o samba “Opinião” (1963), de Zé Kéti:
“Podem me prender/ Podem me bater/ Podem até/ Deixar-me sem
comer/ Que eu não mudo de opinião/ Daqui do morro/ Eu não saio
não”. Entre 1962 e 1974, foram 80 favelas atingidas, 26.193
barracos destruídos e 139.218 habitantes removidos. Em anos de
ditadura militar, líderes favelados foram torturados e
assassinados.
Vitoriosa principalmente na imprensa escrita e nos telejornais,
a associação entre violência e favelas se explica pela
simplificada noção de que pobreza gera violência, quando, na
verdade, esta tem origem na desigualdade social, na dinâmica de
produção de riqueza. O que ocorre nas favelas é apenas a parte
mais visível de um processo. Se as estatísticas insistem em
localizar a violência nas favelas, apontando para o alto índice
de morte de seus jovens, cabe perguntar: por que os seus
moradores são vistos como os produtores do crime e não como os
que possivelmente mais sofrem com ele na cidade? Talvez a
tradição de pensamento sobre as favelas – como um problema de
segurança, higiene e moral – ajude a responder.

Romulo Costa Mattos é doutorando em História pela Universidade


Federal Fluminense (UFF) e autor da dissertação “A ‘Aldeia do
Mal’: o Morro da Favela e a construção social das favelas
durante a Primeira República” (UFF, 2004).

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