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“Geci”

Um roteiro

de

Isaac Bleitel
“Geci”

1 - EXT.PORTA DA CASA DE GECI - DIA

RITA, vizinha de GECI, está batendo na porta da casa de


Geci e chamando por ela de forma atônita, de onde está
saindo uma música altíssima.

2 - INT.CASA DE GECI - SALA DE ESTAR - DIA

Geci está bêbada, dançando muito e com uma garrafa de vinho


na mão.

CORTA PARA:

3 - INT.CASA DE GECI - QUARTO - NOITE

Retorna-se para 3 dias antes.

Geci está sentada na cama da cama de quarto, olhando para


uma foto de um garoto, adolescente. Ao fundo, ela ouve
música no rádio que ela gosta. Enquanto olha a foto,
aparecem algumas marcas que parecem ser hematomas pelo seu
corpo. Ela ouve a porta abrir. É RAIMUNDO, seu marido,
chegando em casa. Ela sai do quarto.

4 - INT. CASA DE GECI - SALA DE JANTAR - NOITE

Raimundo e Geci estão jantando à mesa, em silêncio. Eles


mal se olham. Até que Geci diz algo.

GECI 

Preciso de dinheiro pra fazer as compras amanhã. 

RAIMUNDO

Quer quanto?

GECI

Uns 50.
RAIMUNDO

Vou deixar em cima da mesa antes de sair amanhã. 

Pausa.

O silêncio retorna à mesa. Ao fim do jantar, Raimundo sai


da mesa. Geci retira os pratos e copos sozinha.

5 - INT. CASA DE GECI - SALA DE ESTAR - NOITE

Geci chega na sala e Raimundo está senta no sofá, no canto.


Ela senta no outro canto do móvel. Ela observa que tem uma
garrafa de vinho super cara na mesa de centro e que
Raimundo está bebendo numa taça. Ela fica surpresa e ao
mesmo tempo curiosa.

GECI 

Onde comprou? 

 RAIMUNDO 

Num mercado chique que tem lá perto do trabalho. 

Com medo e já prevendo a resposta, Geci ainda sim se


arrisca.

GECI

Me dá um pouquinho? 

Raimundo lança um olhar fulminante a Geci, que fica


intimidada.

RAIMUNDO

Você sabe que mulher direita não bebe. 

GECI

Mas é só um pouco. Você sempre bebe e eu fico só olhando.

RAIMUNDO 

Eu posso! Trabalho o dia inteiro e chego cansado todo


dia. Sempre quis comprar um vinho do bom e eu mereço.
GECI 

Você não acha que eu também mereço, Raimundo? Passo o dia


inteiro trabalhando aqui em casa, cuidando de tudo,
lavando, passando, cozinhando. Você chega em casa e sua
comida tá mesa, sua roupa tá lavada e passada e a casa tá
arrumada. Eu também mereço algo de bom.

Raimundo lança um olhar de desdém a Geci.

RAIMUNDO

Você não sabe o que é trabalho, Geci. Nunca soube. Nem pra
ser mãe você serviu. Deixou nosso filho se perder nas
imundícies da bandidagem. Nosso filho, Geci. Faz 6 meses
que eu espero o Otávio voltar por aquela porta e ele não
vai mais voltar. Você só tinha que cuidar do meu menino. E
nem isso você conseguiu. Então me deixa em paz tomando meu
vinho.

Pausa.

Geci fica sem palavras. Lágrimas discretas correm pelo seu


rosto.

6 - INT. CASA DE GECI - QUINTAL - TARDE

No dia seguinte, Geci cuida das plantas que estão no seu


quintal. Ela cuida de uma delas com mais atenção, a Comigo-
ninguém-pode, pelo fato de ser uma planta mística. O sol da
tarde bate mais forte em seu rosto. Ela fecha os olhos e
levanta a cabeça em direção a ele.

7 - INT.CASA DE GECI - COZINHA - NOITE

Geci está arrumando na geladeira as compras que fez mais


cedo. Para tentar organizar o espaço, ela retira o vinho
que Raimundo colocou na geladeira e o coloca na mesa por um
momento. Aparece nela uma vontade de tomar o vinho
escondida. Ela pega um copo, mas ao pegar na garrafa, ela
recua e desiste. Ela coloca a mão na barriga, pois sente
uma vontade de ir ao banheiro e sai em direção a ele.

Raimundo vai a cozinha no intuito de pegar o vinho na


geladeira e não o encontra, até que percebe que ele está em
cima da mesa junto ao copo que Geci pegou. Ele supõe que
Geci pegou o vinho para beber e se enfurece. Quando ela
volta a cozinha, ela já percebe a situação e fica
estatelada, mas procura se justificar.

GECI

Raimundo...
RAIMUNDO

Então é isso que você fez enquanto eu não tava? Tomando


do meu vinho escondida? (gritando) Que porra é essa?

GECI

Não! Eu só tava arrumando a geladeira, daí eu só saí


rapidinho pro...

RAIMUNDO

Arrumando a geladeira? Vem aqui que eu vou mostrar como


arruma a geladeira!

Raimundo pega Geci pelo pescoço e a joga no chão, começando


a agredi-la. Nesse momento, a câmera não mostra a ação
apenas só conseguimos ouvir os gritos de Geci e a voz
furiosa de Raimundo. Por fim, ele sai da cozinha e deixa
Geci sozinha no chão da cozinha, aos prantos.

8 - INT. CASA DE GECI - SALA DE ESTAR - NOITE

Machucada, Geci sai da cozinha e se senta no chão da sala


se apoiando no sofá, chorando muito. A tv está ligada num
jornal, pois era o que Raimundo estava assistindo antes de
agredi-la. Começa a passar uma reportagem sobre plantas que
podem ser venenosas aos seres humanos e uma das citadas é a
Comigo-ninguém-pode. Logo ela reconhece que se trata da
planta que ela estava observando pela tarde no quintal e
fica surpresa. Ela se levanta e vai em direção ao quintal.

9 - INT.CASA DE GECI - QUINTAL - NOITE

Chegando no quintal, Geci constata que é a planta falada no


jornal. Ela olha fixamente para a planta, com um olhar de
quem teve uma ideia genial.

10 - INT.CASA DE GECI - QUARTO - DIA

Geci não consegue dormir após a agressão sofrida. Ela


amanhece acordada na cama com o marido do lado. Ele acorda
pra trabalhar, mas ela não levanta.
11 - INT. CASA DE GECI - COZINHA - DIA

Ao chegar na cozinha, ela vê um recado do marido escrito à


mão, onde dizia: “Desculpe. Exagerei. Eu te amo.”. Ela
amassa o recado com a mão e joga no lixo.

12 - INT.CASA DE GECI - QUINTAL - DIA

Geci vai até o jardim e lá pega várias folhas de Comigo-


ninguém-pode para colocar na comida de Raimundo.

13 - EXT.PORTA DA CASA DE GECI - DIA

Rita, sua vizinha, aparece em sua casa com uma xícara na


mão, com a desculpa de pedir um pouco de farinha de trigo.
Ela toca a campainha. Na COZINHA, Geci ouve a campainha e
sai da cozinha pra atender.

GECI

Oi Rita.

RITA

Oi Geci, tudo bem? Então, eu queria um pouco de farinha. Tô


fazendo um bolo mas faltou pra completar.

GECI

Tenho sim. Entra que eu já pego pra você.

14 - INT. CASA DE GECI - SALA DE ESTAR - DIA

A vizinha entra na casa de Geci e começa a olhar toda a


casa de Geci, como se procurasse algo de anormal. Geci se
encaminha pra cozinha. Da sala, Rita começa a conversar com
Geci.

RITA

Então Geci, eu ouvi ontem de noite um barulho estranho


vindo daqui. Tá tudo bem?
GECI (O.S.)

Tá sim (responde meio gaguejante)? Por que não estaria?

RITA

Imagina, tô só perguntando. É porque eu realmente ouvi um


barulho e parecia estar vindo da sua casa e fiquei
preocupada.

15 - INT.CASA DE GECI - COZINHA - dia

O tempo que Geci pensava numa resposta, a vizinha adentrou


na casa até a cozinha. Quando Geci já estava levando a
farinha de trigo para a mulher, a vizinha chega na cozinha
e ambas dão uma risada forçada de embaraço.

RITA

Desculpa querida, só entrei porque queria te ouvir


melhor...

GECI

Tudo bem, Rita (dá um “sorriso amarelo” a vizinha). Aqui


sua farinha.

Rita observa as folhas da planta sobre a mesa.

RITA

O que é isso?

GECI

É Comigo-ninguém-pode. Vou fazer uma chá pra mim porque tô


com uma dor aqui na lombar sabe? É bom pra aliviar as
dores.

RITA

Comigo-ninguém-pode? Mas até onde eu sei, ela é tóxica pra


gente. Não se pode tomar ela assim.

GECI

(desconversando) Sim, eu sei. Mas eu tenho uma técnica pra


tirar o veneno dela. Daí vou usar pra fazer o chá.
RITA

Entendi. Então você pode me ver um pouco dessas folhas


também? Porque as vezes eu também tenho umas dores na
lombar e é horrível. E aí você me ensina como faz pra tirar
o veneno.

Geci começa a ficar impaciente com Rita.

RITA

Infelizmente não vai dar porque essas aqui já são a


conta pra fazer o chá! Mas eu posso depois te dar umas
folhas quando eu conseguir mais.

Rita observa alguns hematomas no braço de Geci e se


espanta.

RITA

Mulher! O que foi isso no seu braço?

Geci responde a Rita andando pela cozinha, tentando


desconversar sobre o assunto

GECI

O que? Não foi nada, criatura! Eu caí ontem no


quintal e me machuquei foi só isso.

Pausa.

Percebendo que Geci está tentando fugir do assunto, Rita


insiste.

RITA

Eu ouvi seus gritos ontem, Geci.

Geci para. Fica imóvel. Não consegue negar a vizinha. Rita


se aproxima de Geci e toca o seu ombro.

RITA

Não foi culpa sua. Vai ficar tudo bem.


Geci olha para Rita, chorando. Rita segura sua mão.

RITA

É pra fazer chá mesmo que você vai usar as sementes?

Com a cabeça, Geci responde que não. Rita entende a


intenção de Geci. Rita abraça a vizinha.

RITA

Pode contar comigo.

Rita sai da casa de Geci e a deixa chorando na cozinha.

16 - INT. PORTA DA CASA DE GECI - DIA

Imediatamente, Geci tranca as portas e fecha as janelas


para não ser mais incomodada.

17 - INT. CASA DE GECI - SALA DE JANTAR - NOITE

Geci coloca as comidas na mesa e senta na cadeira à espera


dele com um misto de ansiedade e angústia. Ela ainda faz
questão de colocar o vinho dele na mesa. Tudo para fingir
que está agradando ele e o que o perddou. Dá 18, 19, 20,
21, 22 horas e Raimundo não chega pro jantar. Geci olha o
horário no relógio de parede e se destempera. Num ataque de
raiva, ela joga a taça de vinho vazia no chão e começa a
chorar de maneira desconsolada. Não entendia porque ele não
havia aparecido.

Ela olha para torta com veneno e a encara fortemente. Num


rompante emocional, ela tira um pedaço da torta e coloca em
seu prato. Quando ela está prestes a comê-la, a campainha
toca. E começa a tocar de tocar de forma desesperada. Geci
não come a torta e vai atender a porta.

18 - INT. PORTA DA CASA DE GECI - NOITE

Ao abrir a porta, dá de cara com a Rita desesperada.

RITA

Rita do céu, você não imagina o que aconteceu!


GECI

Fala, criatura! O que aconteceu?

RITA

Raimundo foi atropelado! Lá na esquina! Tá uma confusão!


Vem logo!

Geci fica abismada. Antes de sair de casa para verificar o


ocorrido, olha para a torta envenenada, pega a chave e bate
a porta.

CORTA PARA:

19 - EXT. PORTA DA CASA DE GECI - DIA

Voltando do enterro junto com a vizinha, Geci está séria.


Se por um lado não aparenta estar feliz, tampouco aparenta
estar triste.

RITA

Então querida... precisa de alguma coisa?

GECI

Não, Rita. Só quero ficar sozinha agora. Muito


obrigada. Por tudo.

RITA

Não tem o que agradecer. No que precisar, é só bater


lá na porta.

As duas se abraçam e Rita vai embora. Geci entra em casa.

20 - INT. CASA DE GECI - SALA DE ESTAR - DIA

Ao entrar em casa, Geci olha em volta a casa vazia e


percebe que ainda não tinha desfeito a mesa do jantar que
preparou para Raimundo, já que tudo aconteceu tão rápido
que ela nem se tocou nisso.
21 - INT. CASA DE GECI - COZINHA - DIA

Ela pega a torta envenenada que fez para Raimundo comer e


joga toda no lixo e coloca a travessa na pia.

21 - INT. CASA DE GECI – SALA DE ESTAR – DIA

Geci volta a sala para pegar o vinho de Raimundo e liga o


som numa lambada.

23 - INT. CASA DE GECI - QUINTAL - DIA

No quintal e com a garrafa de vinho de Raimundo na mão, ela


olha fixamente pra Comigo-ninguém-pode que ela cultiva. O
sol começa a bater em seu rosto. Ela fecha os olhos e
levanta a cabeça para senti-lo. Ela dá um gole generoso no
vinho de Raimundo e depois sorri. Agora, o vinho era dela.
E a sua vida, também.

FIM

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