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“É difícil imaginar um livro mais cheio de graça e discernimento quanto à vida

incomum do pastor comum. Por isso, deixarei a tentativa de encontrar algum


outro e lerei novamente O Pastor Imperfeito, de Zack Eswine. Ninguém hoje
expressa mais discernimento quanto aos perigos e às alegrias do ministério diário
na igreja local – uma meditação refrescantemente honesta, escrita com beleza.”
Mark Galli, editor-chefe, Christianity Today

“Gostaria de ter lido esta obra vinte anos atrás, quando comecei a considerar o
ministério pastoral. O assunto que Zack aborda é vital tanto para pastores
novatos quanto para pastores experientes. Ele nos direciona a evitarmos as
ambições perigosas, as expectativas absurdas e os padrões de trabalho
prejudiciais. No entanto, ele faz isso com inteligência, autocrítica e profundo
realismo. Eswine reacendeu em mim um amor pelo Pastor Perfeito, cuja graça
extraordinária inclui pastores imperfeitos na obra de seu reino. Este livro deveria
estar na lista de leituras indispensáveis de todo pastor!”
Mark Meynell, diretor associado (Europa), Langham Preaching; Autor, A
Wilderness of Mirrors

“Zack Eswine o fez novamente. Em O Pastor Imperfeito, ele estende a mão de


irmandade a cada ministro do evangelho. Muitos soldados fatigados guardam as
linhas de frente; Eswine lembra a todos nós que Cristo é nosso guarda e
defensor, e que nele está o nosso lugar de maior força.”
Lore Fergurson, escritor, designer grá co, palestrante
“Este livro precisa ser lido por todo pastor, para nos resgatar e nos chamar de
volta ao que realmente importa. As expectativas de ministério grande, rápido e
famoso numa cultura pós-cristã podem ser um fardo destrutivo. A sabedoria de
Zack é um bálsamo curador que traz a graça necessária para nos ajudar a
ministrarmos com paciência e perseverança.”
Peter Boyd, pastor, Shore Presbiterian Church, Auckland, New Zeland

“Aqui há sabedoria reminiscente dos pregadores dotados de outras épocas, mas


expressa no tom e no som de nossos dias. Há teologia pastoral escrita, pregada e
vivenciada na vida real e provada do próprio Zack. Há conselho humano e
piedoso. Você deve ler este livro.”
Leighton Ford, presidente, Leigthon Ford Ministries

“Zack Eswine projeta sua prosa numa área muito sensível que nós, pastores e
líderes, odiamos discutir: nós extraímos nosso senso de identidade e estima do
número de pessoas que vão às nossas igrejas, do volume das ofertas e de nossos
seguidores em mídias sociais. Este é um livro cheio não de condenação e sim de
encorajamento cativante. Pude sentir os braços de Zack ao meu redor quando
Deus o usou para me mostrar o caminho adiante – em direção a uma vereda de
cura e esperança.”
Bryan Loritts, pastor de pregação e missões, Trinity Grace Church, New York
City; fundador e presidente, e Kainos Movement; editor, Letters to a
Birmingham Jail

“Este é simplesmente o melhor livro sobre ministério pastoral que já li. Num
mundo de ministério caótico que idolatra tamanho e estrelato, Zack abre nossos
olhos para a única coisa que realmente importa. Leia com oração e releia esta
meditação bela e pungente, e você descobrirá alegria e verdadeira grandeza em
meio à sua extraordinária vida comum diária.”
Ken Shigematsu, pastor, Tenth Church Vancouver;
Autor best-seller, God in My Everything

“O Pastor Imperfeito é um lembrete revigorante do que o ministério realmente


é: andarmos com Jesus, reconhecermos nossos próprios desejos e limitações e
re etirmos uma atitude ouvinte, uma paciência esperançosa e um propósito
restaurador. As experiências pessoais de Zack relacionadas aos altos e baixos do
ministério, bem como sua abordagem contemplativa à espiritualidade, desa arão
e encorajarão qualquer um que busca ministrar em nome de Jesus.”
Wendy Der, diretor de mobilização no México, Avance Internacional
Para Mamaw, Papaw e Jessica.
Aguardo ansioso o momento de poder apresentá-los
Sumário
Agradecimentos
Apresentação à Edição em Português
Introdução
PRIMEIRA PARTE | A Chamada que seguimos
1 | Desejo
2 | Reconquistando nossa humanidade
3 | Saindo de casa
4 | Invisível
SEGUNDA PARTE | As tentações que enfrentamos
5 | Estar em todo lugar para todos
6 | Consertar tudo
7 | Saber tudo
8 | Imediatismo
TERCEIRA PARTE | Reformulando nossa vida interior
9 | Uma nova ambição
10 | Contemplando Deus
11 | Encontrando o nosso ritmo
QUARTA PARTE | Reformulando o trabalho que fazemos
12 | Cuidando dos enfermos
13 | Cuidando dos pecadores
14 | Conhecimento Local
15 | Liderança
16 | Realismo Romântico
Agradecimentos
Quero agradecer a Dave Dewit, cujo coração em favor de líderes no ministério
e dedicação a este livro me humilha e encoraja. Obrigado também a Lydia
Brownback por seu trabalho de edição.
Sou grato à Bruwer Vroon, Matt Blazer, e aos presbíteros da igreja de
Riverside que leram os esboços iniciais e zeram sugestões. Obrigado, Jessica,
pelas muitas leituras que fez tarde da noite e aos sábados. Sua sensibilidade,
sugestões e seu estímulo em nossa mútua parceria me abençoam.
Sou grato à Igreja de Riverside, de cujo contexto de cotidiana vida mútua e de
meios comuns eu escrevo este livro.
Apresentação à Edição em
Português
Lidando com o aconselhamento pastoral por alguns anos, tenho percebido
que muitos dos grandes problemas que enfrentamos parecem resultar de uma
equação simples e binária: Não queremos Deus e queremos ser Deus. No m
das contas, o verso e reverso de uma mesma moeda. A marca registrada da
impiedade humana, a qual, desde as suas raízes, caracteriza-se ativamente por
estultícia, soberba e idolatria. Em rigor, a impiedade que acometeu os seres
humanos é isto, a saber, o desprezo a Deus, que se manifesta em virar as costas
para ele e tentar assumir o controle de tudo.
A lógica falida de não querer Deus e querer ser Deus, logo percebi, pode
também ser uma realidade muito fortemente ativa em mim, pastor e conselheiro.
Se você, leitor, pastoreia um rebanho de Cristo, suponho que entende o que
estou tentando dizer. Nós, pastores, estamos constantemente sujeitos à tentação
tão antiga quanto a astuta serpente no jardim: “É certo que não morrereis. Porque
Deus sabe que no dia em que dele comerdes se vos abrirão os olhos e, como Deus,
sereis conhecedores do bem e do mal.” (Gn 3. 4b-5).
O único pastor perfeito, Jesus Cristo, sofreu um ataque semelhante. No quarto
capítulo do Evangelho de Mateus, lemos que ele foi levado pelo Espírito ao
deserto, para ser tentado pelo diabo. Vemos neste texto três áreas de tentações
frequentes no ministério pastoral.
“Manda que estas pedras se transformem em pães” (v. 3). Jesus estava com
fome. “Supra sua necessidade física”, foi o conselho do maligno. A tentação para
ser imediatista, por atender as necessidades do momento, suprir o povo naquilo
que este julga ser as suas mais sérias e importantes necessidades... Em suma, agir
inteiramente referenciado por interesses pessoais. Isso atinge o centro de nossa
identidade. Trata-se de uma tentação muito sutil, pois não é prontamente
reconhecida como tal. Geralmente, trocando alhos por bugalhos, confundimos
esta tentação como sendo um chamado de Deus. E nos indagamos: “A nal de
contas, o Senhor não quer que alimentemos o povo?” “Ele não quer que sejamos
produtivos e e cientes em nosso trabalho?”
Assim, pensar em um ministério que lance raízes, que trabalhe sistemática e
perseverantemente a m de ver vidas serem transformadas, que seja constante e
diacrônico na pregação e no discipulado cotidiano, en m, tudo que exija o
concurso de tempo para o amadurecimento, pode ser inconcebível para alguns de
nós. Há alguns, em nossa atual geração de pastores, que têm imensa di culdade
com processos lentos, que exigem dedicação e esforço e que não trazem
resultados imediatos.
“Então o diabo o levou à Cidade Santa, colocou-o sobre o pináculo do templo.
E lhe disse: Se és lho de Deus, atira-te abaixo, porque está escrito: aos seus
anjos ordenará a teu respeito, que te guardem...” (vv. 5-6). Assim, a tentação para
se realizar algo espetacular não diminui desde os tempos de Jesus. Imagine o
espetáculo que seria Jesus pulando do alto do templo e os anjos apressando-se
em segurá-lo nos céus. Este cenário teria toda uma atmosfera Hollywoodiana. Em
nossos ministérios, também podemos ser seduzidos pelo ideal de sucesso
reluzente ao custo da delidade. Certamente, queremos ser bem sucedidos. Mas
o que isto signi ca? A realidade é que podemos ter nesta área referenciais
absolutamente mundanos, secularizados, e tomá-los como sinais indiscutíveis de
bênção e evidente aprovação de Deus.
Pare um pouco e pense na história do povo de Deus, e sobretudo na pessoa de
Jesus Cristo, o melhor dos pastores. Pode ser difícil lembrarmos que a salvação
vem do “remanescente de Israel”; do “renovo que brota de uma terra seca”. É
difícil acreditar no nascimento despretensioso do Rei dos reis, que veio ao
mundo como servo, entrou em Jerusalém montado num pequeno jumentinho,
morreu em uma cruz ao lado de ladrões e como um criminoso amaldiçoado e
proscrito. Quando lemos o livro de Atos dos Apóstolos, constatamos que o
evangelho se espalhou e tomou força pela pregação de “homens comuns”, de
“pescadores incultos”, e de um outrora fariseu, perseguidor da igreja, que foi o
apóstolo Paulo. E o poder de Deus aperfeiçoou-se em meio àquelas fraquezas, a
m de que a glória fosse inteiramente do Senhor.
Um incansável missionário norte-americano no Brasil, certa ocasião, escreveu
oferecendo um alerta: “É importante compreender que nossa ânsia pelo
espetacular é mais uma manifestação de nossa busca por identidade. Queremos
ser alguém, queremos ser celebrados, ter ministério reconhecido. Se o
espetacular cumpre nossa necessidade íntima, faremos qualquer coisa para
consegui-lo.” Porém, o que realmente importa? Quem realmente somos? O que
nos motiva a provarmos o nosso valor por meio daquilo que fazemos? Nós
pastores sabemos que o cenário do ministério pastoral evangélico, tristemente,
pode ser caracterizado por competições, manipulações e comparações
ministeriais. Aqui neste livro temos um chamado a “permitir” que o poder de
Deus se evidencie através de nós, que somos frágeis vasos de barro, por meio de
nossa fraqueza e pequenez.
“Levou-o ainda o diabo a um monte alto, mostrou-lhe todos os reinos do
mundo e a glória deles, e lhe disse: tudo isso te darei se prostrado, me adorares”
(vv. 8-9). Penso que entendemos ser esta uma tentação contínua no ministério
pastoral. Com alguma frequência, nos encontramos persuadidos de que a busca
de poder e o desejo de servir têm o mesmo signi cado. Em um contexto assim,
facilmente os ns podem justi car os meios, atendendo ao nosso desejo de
sermos mais e cazes no trabalho de Deus. Indagamos intimamente: “Que valor
há em não termos poder, em não causarmos impacto?”.
Nos momentos em que nos virmos sujeitos a tal realidade, ajuda-nos
lembrarmos que o ministério é servir ao Senhor dependendo do seu poder e não
do nosso. No reconhecimento de nossa fraqueza e vulnerabilidade nos tornamos
mais dependentes da graça de Deus, e mais agradecidos por ela, ao mesmo
tempo em que somos levados à empática posição de nos tornamos solidários ao
próximo. Quando o Senhor Jesus Cristo foi tentado, respondeu: “Ao Senhor teu
Deus adorarás, e só a ele darás culto” (v. 10b). Estas palavras nos lembram que
vamos nos tornando parecidos com aquilo que adoramos, e constituem-se em
alerta para que, em nosso ministério, tenhamos os olhos xos em Cristo.
Quando deixamos de olhar para Jesus, podemos ser facilmente conduzidos a
usar pessoas, manipular circunstâncias, armar situações para alcançar os nossos
objetivos, e entrar em vergonhosas e patéticas disputas de poder.
Nunca caremos livres destas tentações em nosso ministério. Elas são
constrangedoras e sedutoras por atingirem a nossa ambição e prometerem
satisfazer a ilusão do ser humano egocêntrico. Eu e você podemos servir ao
Senhor com o coração puro e autêntico. Eu e você podemos servir sem que
dependamos, em todo tempo, de que o nosso valor seja referenciado pelo meio –
e se há uma verdade acerca do meio é que ele é instável e caprichoso. E se o
Senhor nos conceder aquela graça, então estaremos mais livres. E desfrutar do
oxigênio dessa liberdade, provocará uma alegria profunda em servir ao nosso
Deus com um coração inteiramente voltado para ele.
O triste fato, porém, é que reconhecidamente chegamos até aqui com uma
história de fracassos nessas áreas. Cristo, que foi vitorioso nestas tentações tão
prementes, é o único pastor perfeito. Ele é o “supremo pastor e bispo” de nossas
almas que, por natureza, são carentes e mesquinhas. Digno é o cordeiro! Sim.
Nós, assim como Pedro e Paulo, somos todos pastores imperfeitos, com histórias
de fracassos para contar.
O Pastor Imperfeito é o segundo livro de Zack Eswine publicado em português.
O primeiro foi A Depressão de Spurgeon (Fiel, 2015). O Senhor me conferiu a
oportunidade honrosa de revisar e prefaciar a ambos. O Dr. Zachary W. Eswine
foi por seis anos professor assistente de Homilética e diretor do programa de
Doutorado no Covenant eological Seminary, em St. Louis, Missouri, nos
Estados Unidos. Atualmente, ele conduz o ministério pastoral em uma igreja na
mesma cidade. Eswine é também o autor de alguns outros livros, inclusive de um
acerca do método de pregação de Spurgeon — Kindled Fire: How the methods of
C.H. Spurgeon can help your preaching.
Em O Pastor Imperfeito, Eswine faz pulsar, com uma sonoridade simples porém
vibrante, o seu “coração de pastor”. Com acolhedora ternura, sensível compaixão
e graciosa rmeza, ele situa o chamado que seguimos, reposicionando-nos em
nossa humanidade. A seguir expõe a insensatez de engrossarmos as tipologias
ministeriais que re etem o padrão de não querer Deus e querer ser como Deus.
Na terceira parte do livro, faz uma chamada à reformulação de nosso mundo
interior, por situarmos as nossas ambições em perspectivas divinas e realistas. A
parte nal do livro é dedicada a uma reformulação do trabalho pastoral
cotidiano, de uma forma prática e balizada instrumentalmente por
discernimento, critério e medida.
O Pastor Imperfeito, penso eu, é oportuna contribuição à teologia pastoral, e
particularmente à poimênica evangélico-reformada. Ele nos será muito útil, os
quatro presbíteros de nossa igreja, pois pastores imperfeitos é o que somos,
embora nem sempre estejamos lembrados ou crendo nisto. Como João Batista,
eu precisarei relembrar a mim mesmo, aos meus colegas e à nossa preciosa
congregação: “Eu não sou o Cristo”.
Gilson Santos
Introdução
Tornei-me pastor. Mas eu não sabia como ser um deles.
A Serpente viu isso. Aproveitou a oportunidade. “Você pode ser como Deus”,
disse ela. E eu, tolo, acreditei.
Olhando atrás, para esses vinte anos de trabalho pastoral, vêm à minha mente
as palavras de um poeta. Elas preparam o palco para a conversa que quero ter
com você.
É muito provável, arrazoa o pregador,
Que você esteja mais disposto a escutar
Agora que sua cidade desmoronou de onde estivera.1

Estou escutando mais. Convido você, em sua cidade derribada, a juntar-se a


mim.
Quando comecei não sabia que a vocação pastoral em Jesus traria limites, faria
com que eu andasse mais devagar, e desmancharia, dolorosamente, a mal
direcionada orientação de minha vida. Agora sei que meu sucesso e minha
alegria como pastor dependem disso.
O seu também.
Carl Dennis, “Smaller”, em Unknown Friends [Amigos desconhecidos], (New York: Penguin Poets, 2007),
16.
PRIMEIRA PARTE | A
CHAMADA QUE SEGUIMOS
Vocação
O lugar que ele nos dá para habitar.
O pouco que ele nos dá para fazer naquele lugar.
As pessoas a quem convida para que conheçamos ali.
Esses nossos dias,
em que continuamos por aí.

Basta então,
essa velha obra de mãos
Dele e nossa
para aqui amar,
para aprender aqui a sua canção,

como grilos que arranham


e cantam,
dos recantos invisíveis,

continuando a fazer
aquilo para o que foram criados,
a arte noturna de
faces não notadas,
com nossas asas não observadas,

até que, mais uma vez, ele caminhe


no frescor do dia,
para reclamar nossos nomes.

E nós então,
com nossas bandeiras brancas costuradas,
estaremos por trás de suas sempre verdejantes,
nalmente deixando o lugar escondido
e com ele
mais uma vez caminhando juntos.
1 | Desejo
Ele pensa somente naquilo que deseja e não se pergunta se deveria desejar isso.
–B C

Eu me lembro de estar sentado no estacionamento, em uma mesa de


piquenique na casa de meus avós em Henryville, Indiana. Estava no terceiro ano
de meu primeiro pastorado. Tirara uma breve licença de estudo para escrever
meu primeiro artigo para uma publicação ministerial. Mamaw, feliz com a minha
visita mais longa, fez o bolo de especiarias que sempre fazia quando eu vinha à
sua cidade. Pegando minha caneta e olhando rua abaixo, senti o que qualquer
pessoa com certeza sentiria quando começa a realizar aquilo que sabe que foi
feita para fazer — o nobre prazer de sentir que, de alguma forma, basta a nós
esse dia, que o dia não pode nos conter porque brilharemos mais que ele. No
meu caso, sentia um crescente desejo de escrever algo signi cativo para os
pastores. Queria que fosse algo excepcional.
Naquela semana sabática, devorei o assunto que mais me empolgava na época
— os primórdios do Seminário Princeton e a pregação. Isso provavelmente soa
irritante ou incrivelmente maçante para algumas pessoas. Mas, para mim, o
assunto era como o bolo de especiarias da Mamaw. O primeiro reitor de
Princeton, Archibald Alexander, bem como o seu lho, pareciam ter tanto para
dizer, e isso alimentou minha alma com respeito à pregação. Ofereciam alimento
deleitoso para o pastor ferido em que eu estava me tornando. Fazendo uma
retrospectiva, penso que mesmo sendo novo no ministério, eu já estava
profundamente cansado.
De alguma forma, no entanto, aquele sentimento de estarmos realizando algo
signi cativo pode fazer com que nos enganemos, ao ponto de acharmos que as
coisas na verdade não são tão ruins quanto parecem. Uma boa lembrança pode se
juntar a esse sentimento e, juntos, eles alimentam um refúgio de esperança. Dr.
Calhoun compartilhou com regularidade sua sala de estar e uma xícara de chá.
Com o passar dos meses, ele transmitira o amor que sentia pelo velho Princeton
para mim (e para outros). Tendo tal memória jungida à oportunidade de
escrever, e o bolo de especiarias da Mamaw à minha frente, eu me sentia
animado. Sempre quis transformar o mundo. Desejava muito fazer isso.
Olhando para trás, eu achava que esse tipo de desejo era para um grande
momento épico. (As pessoas excepcionais não são presas a uma vida de
momentos nada excepcionais, não é mesmo?) Esses momentos épicos, quando
realizados, não deixariam nada ser o mesmo. O próprio céu teria nos tocado.
Essa ideia de uma grande arremetida ertava com os meus desejos. A aspiração
épica começou a andar de mãos dadas com as minhas tentativas de pregar.
Não estava só nisso. Os meus colegas que se formaram comigo no seminário
partilhavam desses mesmos anseios e sonhos. E em minha mente isso não era
irracional. A nal, os meus professores e colegas de estudo reconheciam
publicamente a minha pregação e a rmavam meus dons. Eu também tinha lido
sobre como Deus atendera a pregadores com o seu Espírito no passado, e
desejava que ele zesse o mesmo conosco no presente. Mas depois de dois anos
em minha primeira igreja, toda a minha pregação parecia apenas dar às pessoas
um motivo para visitar e escolher outras igrejas.
Passei, portanto, a desejar o encontro de um momento épico fora do púlpito.
Tentaria pastorear pessoas com este grandioso m. Porém, o nível de con ito
existente entre meus presbíteros me deixava atônito. Eu estava chegando àquele
pedaço da estrada no deserto que a maioria dos pastores novos têm de passar nos
primeiros dois a quatro anos de um novo chamado — o deserto em que a
maioria de nós desiste. Mas naquela época eu não percebia. Nem percebia o
grande quebrantamento que uma pequena igreja consegue suportar. Naquele
tempo, eu não compreendia o que agora estou compelido a dizer. Os pastores
não são diferentes de outras pessoas. Nós também nos “perdemos em nossos
anseios”.2

Desejo
A Serpente sabe disso. As árvores do jardim eram desejáveis, boas e agradáveis
aos olhos (Gn 2.9). Entretanto, quando Eva viu aquela árvore única, desejou-a
de modo torto. Ela e Adão procuraram consumi-la à parte de Deus, apesar do
propósito declarado para aquela árvore (Gn 3.6). Queriam algo desejável, mas do
modo errado. É possível que façamos o mesmo no ministério.
Não se engane. O desejo é um fogo de artifício. Manuseado com sabedoria,
enche o céu da noite com luz, cor, beleza e deleite. O desejo mal manuseado
pode queimar e incendiar toda a sua vizinhança (Tg 4.1–2).
Conheço em primeira mão a beleza e o incêndio criminoso dos desejos
ministeriais. Sei o que é car perdido nesses desejos e precisar ser reencontrado
em Jesus. Eu era um desses caras a quem as pessoas diziam: “Você é um dos
melhores pregadores que já ouvi, e é tão jovem — mal posso esperar ouvi-lo
daqui a dez anos”. Bem, há muito se passaram dez anos e eu não me tornei aquilo
que foi projetado antes.
Não falo isso com morbidez. Espero que você logo perceba que escrevo como
quem sente profundamente ter sido resgatado de si mesmo pela abundante graça
de Jesus. As águas insalubres da celebridade, consumismo e grati cação imediata
haviam in ltrado a água que eu bebia. Meus desejos pastorais tinham se
maculado sem que eu percebesse. Muitos de nós não percebemos. Nós e nossas
congregações sofremos por isso.
Portanto, estabeleçamos o fato de que a vocação pastoral começa com o desejo.
O apóstolo Paulo diz o seguinte: “Fiel é a palavra: se alguém aspira ao
episcopado, excelente obra almeja (1Tm 3.1). Pedro concorda: “pastoreai o
rebanho de Deus que há entre vós, não por constrangimento, mas
espontaneamente, como Deus quer; nem por sórdida ganância, mas de boa
vontade” (1Pe 5.2).
Re ita comigo por um momento. Quando foi que você tornou conhecido o seu
desejo pelo ministério pela primeira vez? Era mais velho ou mais jovem? A quem
você contou? No meu caso, eu estava na segunda série do ensino fundamental da
escola Saint Anthony. A Sra. Canter escrevera no quadro de giz: “O que você
quer ser quando crescer?”
Eu respondi, e Sra. Canter ajuntou as duas palavras para todos verem: “Zack
— Sacerdote”.
Eu ainda não associara o desejo pastoral ao amor por dinheiro (Lc 16.4),
contatos para angariar posição (Mt 23.6–7), cobiça por poder (At 8.18–21) ou
ao avanço de meu próprio nome. Ainda não sabia que servir a Deus poderia ser
usado, até mesmo por mim, como modo de tentar, alinhado com o velho
sussurro da Serpente, tornar-me como Deus (Gn 3.5). Só sabia, como menino
de oito anos, que eu desejava servir a Deus com minha vida em ministério
vocacional. Eu não estava inquieto naquela época, nem um pouco. Era
maravilhoso.
Desde então, porém, aprendi algo, não como sacerdote, mas como pastor.
Existem muitos tipos de desejos atuando neste mundo, e nem todos eles são
bons.

E se você for uma montanha sem nome?


Meus desejos começaram a correr atrás de toda espécie errada de mentoria. Fui
auxiliar de pastor da juventude em uma igreja pequena, lugar onde iniciei o meu
ministério pastoral. O meu pastor gastou horas e mais horas me ensinando por
três anos. Mas notei algo. Ao entrar em reuniões regionais regulares de pastores
e líderes de igreja, ele e eu entramos calmamente, enquanto outros pastores
geralmente entravam na sala com certo estardalhaço. Eram os pastores de
grandes igrejas. Alguns tinham escrito livros, moderado congressos e pregado a
milhares de pessoas. Embora anos mais tarde eu viesse a conhecer um pouco
dessa espécie de fanfarra, o el pastor que foi meu mentor jamais teria essa
experiência.
Ao longo do caminho, descobri algumas das razões para isso. Eu fazia parte de
uma equipe que oferecia uma conferência anual para pastores. No ano em que
tentamos resistir a um pensamento centrado em celebridade, mal conseguimos
nanciar a conferência. Nossos pregadores eram líderes veteranos, de muito
tempo de ministério, mas desconhecidos. Tristemente, as inscrições para essa
conferência foram poucas.
No ano seguinte voltamos a obter grandes nomes para que as pessoas viessem.
Com certeza, a conferência cou lotada de gente. Na nossa terra, a experiência e
sabedoria do pastor têm pouco valor nanceiro, a não ser que ele seja bem
conhecido. De onde veio essa ideia? Não sei, mas preste atenção. Essa mensagem
gritava alto e claro para mim quando eu era jovem pastor em treinamento.
O que estou tentando dizer a você é que naquela época eu estava com vinte e
seis anos, terminando o seminário, e a pureza do meu desejo de servir a Deus
por aquilo que ele é, enquanto ainda cursava a segunda série do ensino
fundamental, estava se apagando. Estava se tornando bem claro que, se quisesse
obter sucesso no ministério, eu precisaria fazer algo grandioso. Eu teria de
de nir o que seria grande em termos de tamanho, fama e a rapidez com que
conseguiria realizar.
Voltando àquelas introduções iniciais, à cultura pastoral, vem à mente uma
historieta contada sobre o famoso Richard Foster e seu lho, Nathan. Nathan
estava ansioso por conquistar rapidamente as famosas montanhas do Colorado.
Enquanto descansava na encosta rochosa de uma dessas montanhas célebres,
Richard apontou para o lho a beleza de uma montanha adjacente: “Nate, está
vendo aquela montanha? Tem uma cumeeira impressionante. É um pico perfeito.
Se tivesse uns poucos metros a mais de altura, você conheceria o nome e
desejaria subi-la. Como esta é uma montanha sem nome, ninguém liga para ela”.3

Desejando fazer grandes coisas para Deus


Até o tempo em que estava no terceiro ano do primeiro pastorado, comendo o
bolo de especiarias da Mamaw em sua varanda, eu vivia cada dia mais inquieto.
Como muitos de meus colegas, ansiava por fazer diferença para Deus na minha
vocação — o mais rápido possível. Contraste os sinônimos de comum aos
sinônimos para épico, e quem pode culpar-nos?

Aspiro servir como pastor de modo comum, corriqueiro, humano, normal, rotineiro, médio, usual
e sem novidades, a pessoas comuns e em nada excepcionais. Ser banal e medíocre como pastor.

Ou,

Aspiro servir como pastor olímpico, incomum, surpreendente. Ser pastor extraordinário e
especial em uma congregação maravilhosa, notável, singular, excessivamente grande. Ser estelar e
inesquecível como pregador.

Eu me sentia qualquer coisa menos estelar. Quem sabe este artigo seja apenas o
começo, pensei. Não sou pastor ou pregador épico. Mas talvez pudesse escrever algo
que transformasse o mundo para Deus.
Isso foi há vinte anos. Publiquei o artigo, mas o mundo não mudou e ainda tive
de escovar os dentes normalmente no dia seguinte. Nos anos desde então, tenho
visto gente vindo à fé salvadora em Jesus, casamentos curados e vícios vencidos.
Tenho viajado, pregado e obtive um doutorado. Tenho ensinado, aconselhado, e
escrito livros. Jesus tem se revelado tão bondoso, verdadeiro, presente e poderoso
a mim. Mas, conforme já mencionei, existe beleza e destruição no desejo. Entre
aqueles que participaram de minha ordenação ao ministério tempos atrás, um
pastor mentor tirou sua própria vida, e outro já não está no ministério devido à
má conduta moral. Um presbítero e um diácono foram dolorosamente
disciplinados, um por raivosos maus tratos e o outro por um caso amoroso
devastador. Outras amizades acabaram se dissipando entre a feia politicagem
dentro do ministério. E doze anos depois de meu juramento público de ministrar
no evangelho, meu casamento acabou. A única coisa grande, famosa e veloz a
meu respeito e a respeito de muitos de minha turma ministerial era nosso
quebrantamento.
Quando falei sobre o desejo pelo ministério na turma de segundo ano da Sra.
Canter, jamais imaginei que meu futuro requereria que eu aprendesse a viver
como pai solteiro, com a guarda principal dos três lhos, no meio de uma
comunidade de “escândalo” e fofocas. Eu tive de olhar longa e profundamente no
espelho dos meus próprios desejos contaminados. Estou pedindo-lhe para fazer
o mesmo, na esperança de poupar-lhe o custo que paguei. Ser declarado “parte
inocente” não removeu os sussurros ou as calúnias, quer em minha comunidade
ou em minha própria cabeça. Nem isso removeu o que signi ca para cada um de
meus três lhos, e para mim, aprender diariamente, juntos, a novamente ver o sol
e sorrir. Mas, note bem, caso você pense que não é como eu. Tive também de
examinar aqueles que projetavam como eu “deveria” me tornar a seus olhos
dentro de dez anos. Você terá de lutar com isso também. Temos de analisar
friamente o desejo por “coisas grandes, famosas e rápidas” que membros da
congregação e lideranças pastorais parecem almejar constantemente. A ausência
de nossa atenção a esses desejos mal projetados está nos tornando em um bando
maltrapilho.
Agora estou aqui sentado, todos esses anos mais tarde, digitando essas palavras
como pastor de uma pequena igreja no Missouri. E uma ironia sussurra aos
meus pensamentos. Espero que o que escrevo para você prove ser signi cativo.
Balanço a cabeça e quase dou risada —aquela exalação curta de risada pelo nariz.
Engraçado como, antigamente, eu pensava que a signi cância estaria em algum
lugar além de Henryville e da presença de Mamaw — local próximo e amor
comum — como se um artigo numa publicação ou um sermão de púlpito
pudesse fazer mais para glori car a Deus em minha geração do que atender com
delidade a qualquer outro desses dons criativos que Deus deu.

Conversas com um jovem pastor


À luz disso, escute por um momento. Anos depois, do outro lado das ruínas,
encontrei-me escutando os desejos de um jovem pastor. Eu me via e escutava
nele. Talvez você também se identi que.
“Não importa o que vier, quero me entregar totalmente ao ministério”, disse
ele.
A sua paixão me inspirava, mas o contexto me preocupava. Tínhamos acabado
de falar sobre a di culdade dele, como marido e pai, junto a uma dobra
recorrente dentro da estrada de sua alma. Respirei fundo e parei, olhando para a
tigela de pad thai à minha frente.
“Se o ministério for tudo que almejamos alcançar”, comecei dizendo, “então
como de nimos ‘o ministério’ parece importante, sabe?” Levei um pouco de
comida à boca e mastiguei.
“Só quero pregar a Palavra”, ele declarou. “Não importa o que aconteça,
enquanto eu continuar falando o que Deus diz, ele vai me abençoar. Sei que
Deus me deu um propósito”.
Havia urgência em sua voz e pressa em seus olhos. Ambos eram como espelho
para mim. Enrolei o amendoim e o macarrão em volta de meu garfo (os palitos
chineses já haviam começado o trabalho de me humilhar). Eu procurava as
palavras.
“Sim, Deus abençoa a sua Palavra”, comecei. “Você tem um propósito”, a rmei.
Demorei mais um pouco com a tigela, tentando achar o que eu deveria deixar
de dizer. “Certa vez falei em uma conferência. Preguei cinco vezes. Foi um
daqueles momentos quando sentia a presença de Deus de maneira tangível. De
fato, depois daquela conferência especí ca, o resto do meu ano estava planejado,
repleto de pregações por todo o país. Realmente, Deus abençoou a sua Palavra.
Eu vejo isso de primeira mão.”
“Mas”, disse eu, e parei. Em minha cabeça, eu estava numa encruzilhada,
perguntando-me como dizer o que seguiria. “No caminho para casa depois
daquele último sermão, entre as divinas bênçãos daquela noite, a minha esposa
de quinze anos de casamento disse que estava me deixando”.
Houve um silêncio entre meu jovem amigo e eu. Tomei meu refrigerante.
Temia ter falado demais e cedo demais. Ele conhecia as circunstâncias da minha
vida. Mas será que estava pronto para aprender um pouco sobre o que tais
circunstâncias podem nos ensinar? Além do mais, será que eu estava pronto a
tentar e dar uma voz a isso?
“Estou tentando sugerir que o ministério envolve mais do que a questão de
nossos sermões serem poderosos e de como in uenciamos multidões de pessoas.
Entregar tudo a Deus signi ca muito mais do que entregar-se aos sermões e às
multidões.”
Mais tarde, naquela mesma noite, estávamos de pé sob as estrelas.
“Quando chegar em casa”, disse ele, “ nalmente começarei a ser pastor. Quem
sabe, logo estarei no seminário e serei equipado, e então serei professor em algum
lugar. Mal posso esperar para chegar lá. Dois anos de pastorado e então...”
Eu me encontrava tando o cascalho da entrada de carro como se fosse uma
tigela de pad thai. Novamente eu procurei palavras para dizer o que ainda não
fora dito. Eu ouvia a minha voz na voz dele. Ele estava inquieto por fazer algo
grande para Deus. Seu trabalho pastoral era uma plataforma para ajudá-lo a
chegar a outro lugar onde não estava. No entanto, ele não sabia como incluir
trocar as fraldas do lho ou car de mãos dadas com a esposa na sua de nição de
grandeza.
“E se você já estiver onde Deus quer?”, tentei timidamente. “Em Jesus você já é
uma bênção para as pessoas. E se seu lugar no ministério for onde você está com
a família, no lugar em que Deus quer você junto dele?”
Seu rosto demonstrava sofrimento.
“Por favor, me perdoe se estou falando demais”, eu disse. Então z uma pausa.
“É que você está falando com um homem que ganhou tudo que sempre sonhou e
perdeu muito do que realmente importava, tudo em nome de se entregar
totalmente ao ministério para servir a Deus. Apenas estou tentando dizer que
parece realmente importante saber o que queremos dizer por ‘ministério’ se
vamos nos entregar totalmente a isso. Meu desejo é que aquilo a que você está se
entregando totalmente seja realmente aquilo que Deus deseja, com a de nição
que Deus dá a isso.”
Ele olhou novamente para o céu. “Não sei onde começar com isso tudo”,
protestou.

Sem-teto em nossas salas de estar


Na semana seguinte, sentei-me para almoçar com um pastor que está subindo e
se tornando famoso. A igreja na qual ele servia existia apenas há quatro anos,
mas já tinha frequência de várias centenas de pessoas. Ele surgia em nossa
comunidade como o próximo grande acontecimento.
Contudo, havia algo que o perturbava. “Durante os primeiros dois anos de
nosso crescimento explosivo”, ele admitiu, “relacionei-me mal como marido e pai”.
Ele tou sua água gelada e fez careta. “Eu me escondia no meu sucesso como
pastor”, continuou. “Acho que usei isso para evitar ver minhas falhas em casa e
em meu coração”.
Este homem era o exemplo máximo do que meu amigo mais jovem se esforçava
para ser. Contudo, os dois homens revelavam a mesma luta — o reconhecimento
de que alguém pode receber grandes elogios por pregar Jesus, e ao mesmo tempo
conhecer pouco sobre como seguir Jesus nas coisas pequenas e simples do dia a
dia. Conseguem comunicar amor à multidão do púlpito ou num escritório ou
numa sala de aula, mas quando são chamados para entregar a si mesmos (não os
seus dons), são propensos a car desajeitados. Vejo isso em mim.
Meu jovem amigo escreveu-me na primeira semana de seu novo pastorado:

Estou cheio de ansiedade, principalmente sobre o que fazer com todo esse tempo. Fico me
perguntando se z número X de dólares de trabalho para a igreja hoje? Não estou acostumado
com tanto tempo livre em um só dia, e isso me deixa ansioso. Consigo realizar melhor as coisas
quando meu horário está abarrotado e vou a mil por hora. Tenho vivido sob pressão por anos, e
agora que Deus está alargando o meu espaço, de alguma forma quero sabotá-lo. Como posso sair
dessa e encontrar minha vida?

Meu amigo não sabia como fazer um dia de trabalho pastoral se as variáveis da
e ciência, quantidade, rapidez e medidas econômicas fossem removidas. Ele não
fora ensinado sobre os outros tipos de tesouros que eram dele em Jesus, os quais
ele podia desejar usar no seu dia. Eu também não tinha aprendido. O tempo que
ele esteve comigo no passar dos anos não o havia ajudado.

Desejo, pressa, e “as coisas que importam”


Espero, contudo, que mesmo em meio a a dores você e eu possamos ajudá-lo
agora. Poderíamos dizer algo como isto, não poderíamos?
Ao entrar no ministério, você será tentado a orientar os seus desejos para fazer grandes coisas, de
maneira notória, com a maior rapidez e e ciência possível. Mas, preste atenção. Uma encruzilhada
espera por você. Jesus é essa encruzilhada. Como quase tudo na vida que realmente tem
importância, ele exigirá que sejam feitas coisas pequenas, não notadas em sua maioria, durante
um longo período de tempo com ele. A vocação pastoral, porque visa ajudar as pessoas a cultivar
aquilo que é realmente importante, não é exceção.

Por quê? O que são essas coisas que importam para nossos desejos? Bem,
primeiro, amor a Deus. Este nobre desejo leva tempo. Perdão, reconciliação,
chegar à sensatez, crescimento espiritual em fé, esperança e amor; conhecimento
e entrega aos ensinos da Escritura em Jesus, crescimento na obediência,
mansidão, paz, paciência, bondade e domínio próprio, junto com enfrentar os
vícios, as idolatrias e os pecados com o evangelho; aprender o contentamento em
Jesus, quer em abundância quer em escassez; aguardar a vinda do Senhor e seu
reino bem como o cumprimento de todas as promessas de Deus para sua glória e
nosso bem. A linha de chegada na satisfação desses desejos não poderá ser
atravessada com uma corrida de quarenta metros, não importa quão
furiosamente tentemos.
Segundo, amor ao próximo em seus prazeres também é importante, e isso
também leva tempo. Aprender a andar e falar e contar, crescer, fazer matemática,
aprender a dirigir ou viver de forma independente, junto com começar ou
participar de uma igreja ou ministério. A pressa não consegue realizar essas
coisas, quanto menos continuar solteiro, encontrar verdadeiras amizades,
desfrutar de um bom casamento, fazer amor que satisfaz, ser pai ou mãe, avós ou
criar integridade e boa reputação no seu trabalho. Aprender a tocar um
instrumento, subir ao ápice em um esporte ou tornar-se especialista em uma arte
ou ofício, não acontece da noite para o dia. Porém, muitas pessoas a quem você
serve acreditam que essa espécie de amor a Deus e ao próximo acontece
instantaneamente.
Tome, por exemplo, um marido frustrado. Ele me disse: “Simplesmente não
suporto mais; é demais! Ou ela trata a questão ou é óbvio que não se importa
com nosso casamento! Não vou mais suportar isso não!”
Quando disse essas palavras para mim, ele estava casado há apenas três meses.
A questão a que se referia era de seis dias atrás. Ele citava a Bíblia e falava em
termos épicos sobre o que Deus deseja para um casamento e para uma vida. No
entanto, se ele tivesse de esperar seis dias para consertar a questão, em um
contexto conjugal de, ao todo, oitenta e nove dias, estava claro para ele que Deus
não estava no casamento ou que sua esposa não o amava, e que ele tinha de
preparar-se para seguir em frente. Este homem consegue citar a Bíblia, mas não
tem garra para esperar em Deus em meio a algo de que não gosta. Com toda a
conversa grandiosa sobre coisas maravilhosas que Deus quer, não ocorre a ele
como é grandioso o que Deus diz sobre aprender a perseverar e esperar nele.
Muitos de nós pastores expressamos o mesmo tipo de inabilidade emocional de
esperar em Deus em e por nossas congregações.
Nosso problema é que a maioria das alegrias dadas por Deus que almejamos
são deterioradas quando palavras como instantaneamente, pressa e impaciência são
lançadas contra nós. Muitos estão confusos sobre o que signi ca verdadeira
alegria se tiverem de assumir uma grati cação adiada entre as velocidades
menores requeridas pelas coisas que importam mais para Jesus.
Ora, imagine amar a Deus e ao próximo em meio aos desalentos ou desolações
da vida. A desolação não consegue suportar facilmente um ritmo pastoral
acelerado. Isso explica por que muitos de nós não têm paciência no cuidado
pastoral. Ossos e mentes quebrados não estão propensos à pressa. Pele queimada
ou almas vitimizadas têm de chegar a uma coceira miserável a m de se curar, e
nós que esperamos ao lado do leito temos de esperar mais ainda. Morte, luto,
perda, recuperação dos vícios, como também traumas emocionais ou físicos, ser
pais e mães de crianças portadoras de necessidade especiais, aprender a se ajustar
a doenças crônicas, depressão, incapacidades ou doenças — todas essas
desolações são tratadas pobremente quando se requer delas “e ciência” e
“medidas quantitativas”. Para o pastor importante, que faz coisas grandes e
notórias rapidamente, o fato das pessoas estarem quebradas, na verdade, parece
uma intrusão que o impede de fazer sua importante obra para Deus. Estou
escrevendo essa última frase, e isso me faz desmoronar. Releia. Em seguida, caia
comigo, está bem? Caia de joelhos comigo perante o Salvador. Ele é quem ergue
nossa cabeça. Precisamos desse soerguimento gracioso, pois ainda não falamos
sobre palavras como instantâneo e impaciente não nos oferecerem recursos para
tratar das coisas que realmente importam – de amar nossos inimigos no
ministério. E não se engane: eventualmente você também terá de aprender o
mais difícil dos amores ao próximo.
Em geral (e isso muitas vezes nos surpreende), a pressa não é amiga do desejo.
O sábio entendeu isto quando disse que “não é bom proceder sem re etir, e peca
quem é precipitado” (Pv 19.2). Seu ponto está bastante claro. A pressa tem o
hábito de não completar as coisas que realmente importam. Numa crise pode até
ajudar. Mas quando chegamos ao entendimento, dedicação e cumprimento dos
desejos de uma alma humana, a precipitação constantemente e legitimamente é
processada por negligência. A rapidez oferece promessas imediatas para nossos
desejos conjugais, ou ministeriais, ou para o trabalho, ou para os nossos lhos,
mas, na verdade, a pressa nunca entrega o que promete naquilo que é mais
precioso para nós.
O ponto que quero destacar é o seguinte. Nosso desejo por grandeza no
ministério não é o problema. O problema surge quando a pressa de fazer grandes
coisas de maneira notória e com a maior rapidez possível reformula nossa
de nição do que seja uma grande coisa. Deseje grandeza, querido pastor! Mas,
submeta a sua de nição de grandeza àquilo que Jesus nos dá. No mínimo
teremos de começar a tomar posição quanto a este importante fato: a
obscuridade e a grandeza não são opostas.

O que você quer que Jesus faça por você?


Jesus colocava a questão do desejo de modo muito claro quando treinava os seus
ministros. “O que queres que eu faça?”, ele pergunta (Mc 10.36).
Pare aqui por um instante. Vá mais devagar se puder. Você tem uma lista do
que quer para o ministério, e todas as demais realizações ministeriais que deseja
conseguir em nome de Cristo antes de morrer? Você não iria estar sozinho se
esse fosse o caso. Basta ler os anúncios. Uma miríade de desejos daqueles que
compõem a sua congregação e comunidade serão revelados.
Tiago e João tinham suas listas. “Queremos que nos concedas o que te vamos
pedir”, disseram. “Permite-nos que, na tua glória, nos assentemos um à tua
direita e o outro à tua esquerda” (Mc 10.35–37).
Tiago e João sutilmente começaram a almejar que seu ministério com Jesus
lhes providenciasse uma plataforma de grandeza. Seus anseios começavam a
estragar sua comunidade (Mc 10.41). Jesus não impediu que essa fricção ou
destruição potencial acontecesse. Ainda hoje ele não impede. Você marcou bem
isso? Tiago e João eram muito amados, dotados, chamados, frutíferos, e centrais
no ministério terrestre de Jesus. Ele graciosamente escutou os seus desejos. Mas
sua proximidade com Jesus, e sua fecundidade no ministério, não signi cavam
que tudo que faziam era bom, certo e útil para os que os conheciam.
Em vez de dar-lhes tal imunidade, Jesus confrontou-os, e o que ele disse nos
deixa mais sóbrios. É possível que líderes ministeriais desejem grandeza de
formas nada diferentes daqueles que se encontram ao nosso redor, ou em
qualquer lugar em nossa cultura. Ligar o nome de Jesus a esses desejos não muda
o fato de serem idênticos aos anseios do mundo.
Faça uma pausa aqui. Repita a leitura dessa última sentença se for necessário.
Em oração, vá mais devagar. Os líderes humanos em toda parte desejam
grandeza e domínio sobre outros. “Não é assim convosco”, Jesus declarou. Se
grandeza é o que você deseja, de agora em diante você tem de entregar sua vida a
uma outra espécie de grandeza. “Quem quiser tornar-se grande entre vós, será
esse o que vos sirva” (Mc 10.43). Servos entregam os seus dias a tarefas
pequenas, muitas vezes não notadas por longos períodos de tempo, e sem
receber nenhum elogio.
Jesus, então, toma Tiago, João e seus outros alunos de discipulado para um
vivo e real estudo de caso. Ele mostra-lhes um monte sem nome, pertencente a
um homem. Este era pobre e cego. Jesus lhe oferece a mesma pergunta poderosa
que fez aos “maiorais” que viajavam com ele: “O que queres que eu faça?” (Mc
10.51).
Ali mesmo, a graça de Jesus nos humilha, contrastando os desejos que são
revelados. Tiago e João estavam no centro do ministério, junto com Jesus, e
estavam entre os melhores pupilos de Jesus. Mas isto não bastava para eles.
Queriam lugares melhores. Enquanto isso, o pobre pede a Jesus apenas duas
coisas, sendo a primeira misericórdia. A segunda era que pudesse ver.
Penso na classe da Sra. Canter no passado, nos meus estágios de seminarista,
no meu primeiro pastorado, na varanda da casa de Mamaw, e nos restos
destroçados da minha turma ministerial. Quando, em minhas ambições por
ministério, deixei de sentir minha necessidade de desejar misericórdia quando
estava com Jesus? Quando comecei a supor ter o privilégio de ver corretamente
com meus olhos e a de nir grandeza do ponto de vista desse meu privilégio, em
vez de vê-la do ponto de vista da graça de Jesus?
Existe um jeito de desejar entregar-se totalmente ao ministério que o dividirá
em dois, causando dor para aqueles a quem você serve, revelando o quanto você
se desviou e o quanto está longe da de nição de Jesus do que seja a grandeza.
Conheço isso em primeira mão. Mas estou aprendendo mais uma coisa. Existe
mais graça e esperança aqui do que você talvez saiba — nas mãos de Deus, uma
chamada para o trabalho pastoral entre a preciosidade de pessoas e lugares
vagarosos e sobrecarregados de trabalho, pode se tornar em dons, verdadeira
alegria, contentamento que perdura e uma boa vida. Por quê? Porque esse é o
caminho de Jesus. Onde Jesus é nossa porção e nosso desejo, não nos faltará
nenhum verdadeiro tesouro. “O reino do céu é como um tesouro escondido no
campo, que um homem encontra e enterra. Em sua alegria ele vai, vende tudo
que tem, e compra esse campo” (Mt 13.44).
Será que vender tudo que temos com alegria inclui abrir mão de nossas
desorientadas listas para o ministério? E se as alegrias que desejamos em Jesus
forem como tesouros escondidos em um campo, que muitas pessoas, mesmo as
que estão no ministério, desprezam e raramente compram?
Você se lembra como eram as coisas antes que desejasse um ministério
vocacional? Você não possuía treino. Era desconhecido no mundo. Jesus era belo
para você. Ele o havia salvo. Havia comunicado o seu amor a você. Era um
imenso tesouro, verdade que satisfaz, e sobremodo belo. Ele era a sua porção.
Era o seu desejo. No princípio, tal deslumbrante provisão de Jesus despertou os
seus afetos para servi-lo com a sua vida em um ministério vocacional. Não era de
admirar que, quando Pedro declarou que excederia e seria maior que todos os
seus colegas ministeriais, o canto do galo não demorasse a chegar. Para restaurar
Pedro ao ministério, Jesus o levou de volta às primeiras coisas, ao primeiro amor.
“Pedro, tu me amas? Apascenta as minhas ovelhas” (cf. Jo 21.15–17). Aqui
começa a nossa vocação. O chamado pastoral para alimentar o próximo é
secundário e decorrente do desejo anterior pela beleza do próprio Jesus. Vem-me
à mente o antigo hino: “Propenso a vaguear, Senhor, eu sinto-me, propenso a
deixar o Deus de amor”. Mas Pedro aprendeu o que todos deveríamos fazer com
as cinzas deixada pelos cantos de galo ministeriais. Jesus vem ao nosso encontro.
Ele não nos abandona. Sua benignidade dura para sempre.

Conclusão
Fechemos esta conversa introdutória sobre o desejo pastoral com uma parábola
da vida real.
Dois homens saíram de casa para plantar uma igreja numa cidade necessitada.
O primeiro que chegou sonhou com uma cidade alcançada por Jesus com o
evangelho. Por meio desse primeiro pastor, pessoas conheceram a Jesus, os
crentes se reuniram e nasceu uma comunidade de seguidores de Cristo. Foi um
trabalho vagaroso, mas estava acontecendo. As suas orações estavam sendo
respondidas.
Com o tempo, ele começou a se reunir com o segundo plantador de igrejas. Fez
isso com o intuito de encorajar o segundo pastor em seu trabalho incipiente. O
mais experiente e o novato oravam para que Jesus alcançasse a cidade. Através do
iniciante, as pessoas passaram a conhecer a Jesus, os crentes se reuniram e nasceu
uma comunidade de seguidores de Jesus.
Dez anos mais tarde, aquele que veio primeiro serve como pastor de uma igreja
“simples”. Seus mais de duzentos membros demonstram o amor de Jesus de
formas inexistentes ali dez anos atrás. O novato que veio em segundo lugar é
pastor de uma igreja “épica”. Seus milhares de membros e múltiplas congregações
pela cidade demonstram o amor de Jesus de maneiras que não existiam dez anos
atrás. As orações de ambos foram respondidas.
Por que então, um deles está triste?
Por que então, somente um deles recebe nossos convites para falar nas
conferências e para nos oferecer os seus conselhos?
Kathleen Graber, “Book Nine”, Poetry Foundation website, acessado em 3 de dezembro de 2014, http://
www .poetryfoundation .org /poem /241278.
Nathan Foster, Wisdom Chasers: Finding My Father at 14,000 Feet (Seguidores de sabedoria: encontrando
meu pai aos 4.000 metros), (Down¬ers Grove, IL: InterVarsity, 2010), 41.
2 | Reconquistando nossa
humanidade
Não temos lar neste mundo, eu costumava dizer. Então, eu voltei pela estrada para este velho
lugar e preparava um bule de café e um sanduíche de ovo frito.
–M R

“Você poderá ser como Deus”, diz a Serpente.


“Mas, como?”, pergunto eu.
Eu leio a Bíblia com óculos.
Ajoelho-me para orar pelas pessoas com hálito de café.
Fico em pé e prego Jesus com uma bolha no pé.
Sirvo a Ceia do Senhor com pão comprado por $1.99 no mercadinho
Schnuck’s.
“Apenas nja que é diferente”, a Serpente diz. “As pessoas adoram quando
fazem isso”.

Conselho a um aspirante ao pastorado


Fiquei sabendo recentemente que um antigo pastor e mentor pessoal cometeu
suicídio. Tirei um período sabático do seminário onde servia como professor e
passei seis meses como pastor interino com a família e a congregação do meu
amigo falecido. Eu havia pastoreado antes uma igreja. Havia servido como pastor
interino antes. Mas não desse jeito. Nós teríamos de buscar juntos sucatas de
graça e verdade em meio às ferragens. O Cristo vivo habitaria conosco em meio
aos destroços. Aprenderíamos dele em meio ao lixo. Ele jantaria conosco no vale
de sombra.
Eu estava sentado junto de uma multidão de professores e estudantes para o
ministério com seus tênis e jeans. Pediram que eu desse uma palavra. O que eu
poderia dizer para ajudar um iniciante no ministério?
A atmosfera era leve, mas meu coração estava pesado. Eu pensava em como
meu pastor mentor poderia até ter escolhido deixar o ministério, e ainda assim
ser importante para todos nós. Mas para ele, rebaixar-se em meio às
assombrações interiores não indicava humanidade, e sim fracasso. Ele não
conseguia ver-se como útil se não tivesse mais a posição de pastor, com os
cuidados pastorais que essa posição requeria. Eu sentia sua falta. Estava, pela
primeira vez em minha vida, fazendo as mesmas perguntas. Será que eu sabia
que poderia servir a Cristo humanamente e de forma signi cativa, quer fosse
pastor ou um líder ministerial quer não? Eu não sabia naquela época, mas logo
teria de responder a essa pergunta de uma maneira dolorosa e pública. Mas
naquele momento, entre aqueles seminaristas, com dor no coração e sobriedade,
eu confrontava meus pressupostos sobre o que signi ca liderar no ministério.
Agora era a minha vez de falar. Respirei uma oração relâmpago, quei em pé e
disse: “Jonathan Edwards peidava”.
Alguns riram. Eu não. Alguns tinham sorrisos de canto de boca com a minha
irreverência. Talvez eu tenha sido irreverente. Mas eu não estava tentando ser
engraçado. Provavelmente poderia ter encontrado linguagem melhor para
descrever o que eu estava enfrentando. Não tinha intenção de difamar o grande
teólogo e pastor da história norte-americana. Estava tentando pôr palavras no
estrago e no mito de sua celebridade assim como de outros. Sentia-me
perturbado por um novo questionamento: O que signi caria para nós se viesse o
avivamento e continuássemos noite adentro com orações enviadas ao céu? Em
algum ponto ainda teríamos de usar o banheiro? Queria dizer-lhes que até
mesmo os maiores teólogos ou pregadores entre nós ainda são pessoas comuns,
carentes da graça de Jesus. Eu estava cansado de ngir outra coisa.

As primeiras coisas primeiro


Numa conferência, enquanto prego sobre Cristo para você, estou incomodado
por uma hemorroida e meus livros estão à venda no saguão. Ainda mais, posso
ter me enxergado nos olhos de meus lhos naquela manhã e ter pedido perdão
por algo que aconteceu no dia anterior. Ou talvez eu ainda esteja cego enquanto
falo a você sobre o que minha esposa, ou meus lhos ou minha congregação
ainda precisam desesperadamente que eu veja. Quando visito no hospital, tenho
de amarrar os sapatos pela manhã ou calcular qual blusa de frio me fará parecer
um pouco mais magro ou clamar a Deus com respeito às minhas próprias
dúvidas, enquanto você se sente ferido e eu não tenho resposta sobre as razões de
sua dor. Enquanto você é transformado pela graça mediante algo que eu disse ou
escrevi, é provável que eu tenha tomado uma tigela de mingau de aveia no café da
manhã ou tenha me deliciado com o som da coruja que visita a nossa casa.
Portanto, ao começar a pensar a respeito dos desejos, temos de clamar de cima
dos telhados que o ministério pastoral é algo pertencente a criaturas. O pastor é
um ser humano. Creio que a vida e o ministério cristão são um aprendizado com
Jesus em direção à recuperação de nossa humanidade e, mediante o seu Espírito, uma
ajuda para que nosso próximo faça o mesmo. Tudo isso é para ele, por meio dele,
com ele e nele, para a glória de Deus.
Creio também que a ausência geral dessa recuperação de nossa humanidade
dentro do ministério pastoral está nos matando espiritualmente. Quero que seja
feito algo sobre isso. Eu reconheço que colocar nossa humanidade em Cristo na
frente e no centro da vida cristã e da tarefa pastoral fará com que alguns de nós
se sintam desconfortáveis, e com razão. Pode parecer que quero apenas repetir
mais da espiritualidade egocêntrica que a nossa geração e nossos corações
perigosamente querem.
Para corrigir tais temores, penso em um professor e amigo meu. Ele, às vezes,
manda que os seus ministros em treinamento se virem ao resto da classe e
confessem em voz alta para os outros: “Eu não sou o Cristo”. Nessas palavras de
João Batista aprendemos que, conquanto seja verdade que possamos
perigosamente fazer pouco caso de Deus ao chamar a atenção sobre nós mesmos
impropriamente, é igualmente verdade que não podemos glori car plenamente a
Deus sem que confessemos que não somos divinos. Dizer: “Eu não sou o Cristo”
é simultaneamente expor para todos que nós, pastores, que somos meros
humanos e apenas pessoas locais.
Uso as palavras meros humanos e apenas pessoas locais para diferenciar-nos de
Jesus. Jesus é humano, mas não meramente. Jesus é local, mas não apenas.
Esclarecemos essa distinção entre Jesus e nós como um ato de adoração e
compromisso. Como líderes de ministério, esforcemo-nos para entregar nossa
vida, de modo que toda pessoa a quem servimos saiba que não somos Deus.
Cada um de nós não é Deus; é apenas um ser humano.
Então, ressaltemos este ponto. A grandeza, mesmo no ministério, não pode
fugir à humanidade. Ser humano não macula a grandeza; antes, a informa e
marca seus nobres limites. Como chegamos a pensar de maneira diferente? Seja
qual for o desejo que tenhamos para o ministério, haveremos de realizá-lo como
quem pode ter coceira no dedão do pé, e cujo pé sem meias passa frio no inverno.

A sicalidade humana
Os desejos pastorais, por mais grandiosos e nobres, não nos livram dos limites
físicos que temos.
O estudo teológico me ensinou a doutrina da Criação. Fui examinado para a
ordenação acerca do meu ponto de vista sobre os dias da criação e o legado de
Darwin. Mas o signi cado de Deus ter nos criado humanos, corpóreos,
localizados, nitos e à sua imagem não se traduzia em minha teologia de
ministério pastoral nem informava a forma que o trabalho pastoral devia
assumir. Hoje penso que deveria.
Por exemplo, sou um dos pastores de Wendell. A paralisia infantil tem
impedido o movimento das pernas de Wendell há setenta anos. Wendell
também tem se sujeitado ao regime da diabetes, com as exigências de sargento de
tiro de guerra sobre as suas rotinas diárias. Duas ocasiões com o câncer atacaram
terrivelmente a vida dele. A morte da sua esposa arrasou seu coração e esvaziou
sua cama à noite. As suas mãos tremem. Às vezes sua voz ca arrastada.
Com sua cadeira motorizada, Wendell faz as suas tarefas diárias, lê a sua
Bíblia, ora a Deus e compartilha Cristo com outras pessoas, expressando louvor
pelo cuidado de Deus por todos esses anos. Para cuidar como um médico da
alma de Wendell, temos de levar em conta seu corpo físico.
Nas palavras do pastor-poeta G. M. Hopkins, somos como uma “cotovia” em
nossa “casa de ossos”, “almas e corpos”.4 Ainda cedo na liderança pastoral, soube
que a luta que travava não seria contra “carne e sangue” (Ef 6.12). Mas eu não
entendia como a carne e o sangue formariam a arena para esta luta. “Amado,
acima de tudo, faço votos por tua prosperidade e saúde, assim como é próspera a
tua alma” (3Jo 2). João, o apóstolo, orava assim, e aprendemos com ele.

Preparando os sentidos de nosso corpo


para o ministério
Não podemos nos esquecer de que aqueles a quem servimos são também
criaturas corporais.
Pediram que eu visitasse uma senhora de meia-idade da comunidade.
Mentalmente, ela tinha quatro ou cinco anos, apesar de já ter vivido quarenta ou
cinquenta. Quando entrei pela porta, vi que ela tinha um babador e estava
tentando comer uma pratada de espaguete. Ela deu um amplo sorriso
maravilhado quando me sentei ao seu lado.
“Quem é você?”, perguntou, coberta de molho vermelho e pedacinhos de
macarrão.
“Meu nome é Zack. Sou pastor”, respondi.
Ela imediatamente e com grande animação respondeu. “Aprendi o ‘Pai Nosso’
de cor”, disse ela. “Quer que eu recite?”
“Adoraria”, disse eu.
Depois de declamar orgulhosamente a Oração do Senhor, ela recitou de cor o
Salmo 23.
“Fiz bonito?”, ela perguntou.
“Com certeza!”, disse eu.
“Eu creio em Deus!”, ela continuou. “Ele me ama. Eu o amo. Ele morreu na
cruz por mim. Um dia ele voltará para me levar para sua casa”.
Ela disse isso com a maior seriedade, olhando nos meus olhos. Era como se
soubesse qual era o meu papel. E falar sobre Deus com um pastor é coisa normal.
Ela também estava me avaliando. Quem sabe procurando detectar o tipo de
pastor que eu era. De repente, ela deixou cair o garfo, estendeu a mão coberta de
macarronada salpicada de saliva, e perguntou: “Quer orar? Segura a minha mão”.
Eu o z e oramos com nossas mãos molhadas de molho de macarronada, numa
sala desconhecida para o mundo, mas amada por Deus.
Pare aqui por um instante. Demore em oração com esta pergunta: O que
signi ca para você o fato de que o ministério é um ato de amor ao próximo e
amar o próximo vai requerer proximidade física? Se atualmente você não tem
paciência com os sentidos, nada de atenção ao corpo a não ser naquilo que é
lascivo, é bem possível que você ainda tenha pouca ideia quanto ao que consiste a
vida de um pastor e o que ela vai requerer de você.
Localidade Humana
Nossa teologia pastoral do Éden nos lembra que as criaturas com corpos
também são locais.
Elas habitam lugares. No jardim que Deus plantou, Adão e Eva comiam
comida, cuidavam de animais, plantavam sementes, oravam, trabalhavam e se
amavam. Não havia pornogra a no mundo e eles repousavam em sua nudez.
Agradar a Deus signi cava nada mais que escutar suas palavras, segui-lo pelo
Éden, e, com gratidão, nadar nas águas seguras da companhia um do outro. De
mãos dadas, cortando a grama, resistindo às vis tentações, e aprendendo a amar
aquele que os criou, tinham o su ciente para uma vida signi cativa com Deus.
Mas parece que isso não lhes bastava. Adão e Eva ouviram sórdidos sussurros
rastejando pelo capim. O dom de Deus, de um signi cado local com ele,
começou a entediar o casal.
Pause aqui por um momento. Considere o que deixa você entediado e inquieto.
E observe também aquilo que Deus considera revigorante.
1. Fomos criados para honrar a Deus e não colocar nada mais em seu lugar,
entregando-nos a ele. Em outras palavras, deveríamos amar a Deus.
2. Deveríamos amar um ao outro (unir-se à sua mulher, Gn 2.24), relacionar-
nos corretamente com nossa família mais extensa (deixar pai e mãe, v. 24), e
cultivar a comunidade (ser fecundos e multiplicar, Gn 1.22). Noutras
palavras, fomos feitos para amar o nosso próximo.
3. Deveríamos reconhecer a bondade e qualidade sagrada do lugar, das
criaturas e das coisas que Deus criou, cuidando dessas boas dádivas.
Deveríamos contribuir para o cultivo da criação (cultivar e guardar, Gn 2.15)
e para uma cultura que re ita essa bondade concedida.
Estes primeiros textos de Gênesis nos ensinam que os seres humanos têm o
propósito de amar a Deus e ao próximo, ao viverem localmente em um lugar,
para a glória de Deus. O que isso nos diz sobre grandeza?
1. Deus deu a si mesmo para que nos entregássemos e amássemos a ele. Isto
quer dizer que orientar nossa vida para um relacionamento diário com Deus
a cada momento traz glória a ele.
2. Deus nos deu um punhado de pessoas a quem amar. Você não tem de se
tornar outra pessoa ou olhar constantemente sobre os ombros dessas pessoas
que estão bem à nossa frente. Atender à obra de Deus entre os rostos, nomes
e histórias onde nos encontramos já é fazer o que Deus considera
signi cativo.
3. Deus nos dará um lugar em que habitar e algo para fazer nesse lugar. Isso
signi ca que devemos atentar ao que está ali, no local onde estamos. Habitar
com conhecimento e hospitalidade, no lugar que Deus nos dá, é glori cá-lo.
À luz disso, o que você supõe que seja a obra do pastor? No mínimo,
presumimos uma atenção local ao amor divino, entre pessoas comuns e lugares
ordinários, com temperatura e histórias locais. Aqui, as palavras “atenção” a
“pessoas comuns e locais ordinários” desa a grandemente o nosso tédio, pois nós
pastores temos uma tendência para encontrar o propósito do trabalho pastoral,
não com Deus no Éden, no precioso local de limites com ele, mas, em vez disso,
com a Serpente, que descaradamente sussurrou ali, falando ilusões de uma vida
sem limites no mundo.

Você vê esta mulher? Vê este homem?


“O que queres que eu faça?”, Jesus pergunta.
“Alarga os meus limites e os de minha congregação, para a glória de Deus, em
minha geração!”, podemos dizer.
Mas quando passamos a pedir “alarga os meus limites”, não somos os primeiros
a fazer essa oração. Um desejo de “tire agora os meus limites!” estragou o Éden
em primeiro lugar e requereu que Jesus viesse morrer por nós.
Ando fazendo essas perguntas dolorosas a mim mesmo. Se estou entediado
com gente comum, em lugares comuns, então não estaria eu entediado com
aquilo em que Deus se deleita? Se penso que os limites locais de corpo e lugar
são estreitos demais para uma pessoa tão talentosa quanto eu, não desejaria fugir
daquilo em que o próprio Deus habita com alegria e a cada dia?
Se olho para um rosto, uma or, uma criança, ou uma congregação dizendo:
“Não isto, Deus! Quero fazer algo grandioso para ti!”, não estaria eu
profundamente enganado quanto ao que Deus diz ser uma grande coisa?
Faça aqui uma pausa por um momento, se puder. Demore um pouco nas frases
seguintes.
A mulher lavou os pés de Jesus com suas lágrimas e os secou com seus cabelos.
Os “homens da Bíblia” viram isso e murmuraram sobre o “tipo” de gente que ela
era. Mas Jesus confrontou os ataques de postagens de blog, seus rostos franzidos
e recusa em dar as mãos, as pressões dos que votaram nele, a ameaça de destituí-
lo dentre os que tinham posição no ministério. Enquanto aqueles que treinou
para o ministério observavam o desenrolar desse cenário, Jesus desviou o olhar,
voltando-se, em vez disso, para ela, e perguntou ao líder desses homens
conhecedores da Bíblia: “Vês esta mulher?” (Lc 7.44).
O que dizer dos homens? Quando conta sobre a hora em que Jesus chamou
Mateus para lhe seguir, Lucas identi ca Mateus por seu trabalho. Jesus “saindo,
viu um publicano, chamado Levi, assentado na coletoria, e disse-lhe: Segue-me!”
(Lc 5.27).
Quando narra esse mesmo momento, no entanto, Marcos identi ca Mateus
não tanto por seu tipo de trabalho, mas por seu pedigree na família. “Quando ia
passando, viu a Levi, lho de Alfeu, sentado na coletoria” (Mc 2.14). Fico a me
perguntar: Ser lho de Alfeu curava ou corroía o coração de Levi? Não sei. Mas
sei que Mateus não menciona a família quando lembra para si esse momento, e
coloca o emprego nos bastidores: “Partindo Jesus dali, viu um homem chamado
Mateus sentado na coletoria e disse-lhe: Segue-me! Ele se levantou e o seguiu”
(Mt 9.9).
O ponto? Marcos via a família de Mateus. Lucas via a pro ssão de Mateus.
Jesus viu Mateus. Suponha que você estivesse nesse cenário, se preparando para
o ministério com Jesus.
“Você veria esta mulher?”
“Você veria este homem?”
Um dos privilégios contínuos de nosso ministério pastoral em Jesus é aprender
a ver as pessoas como pessoas e a nós mesmos como alguém entre elas.

Pregando descalço
Quando um casal entra no ministério, o amor jovem de vidas comuns poderá ser
pressionado a ponto de deixá-los. Poderá ser o caso de ela ter acabado de dar à
luz um lho. Ou então, são recém-casados. E já estão exaustos pelo ritmo do
treinamento bíblico que zeram, e começando a obra do ministério como quem
já precisa de uma folga. Mas começar o trabalho para Deus signi ca pouco
tempo para cansaço. E assim, a esposa vai com seu líder no ministério a um novo
local, sem raízes, com uma criança pequena e um novo emprego. A igreja espera
que ele chegue correndo e vencendo a corrida. Ele quer mostrar que vale o
dinheiro pelo qual foi contratado. Trabalha demais o tempo todo por amor a
Jesus, enquanto a sua esposa recente e seu bebê ainda novinho tentam aprender a
con ar em Jesus em meio a lavar pratos e o programa da Galinha Pintadinha, sem
amigos locais e saber ainda os nomes das ruas de sua nova vizinhança. A pessoa
solteira que se forma depois do treinamento bíblico, semelhantemente, enche
todas as horas em que está acordada para Deus, cando exausta, dizendo com
seus botões que no dia em que se casar vai diminuir o ritmo da correria (sem
perceber que o hábito do ritmo atual será muito difícil de ser interrompido).
Por que pressionamos nossos jovens no ministério a produzir resultados
ministeriais dessa maneira? Por que eles acham que têm de se tornar algo mais
que um ser humano normal, que mora sicamente em um determinado local?
Por que deixamos implícito que, no ministério, eles têm de ser mais do que um
casal jovem apaixonado em amor sagrado, que tiveram seu primeiro lho e estão
aprendendo em seu primeiro chamado no mundo?
O meu pastor/mentor colocou sua própria vida no meio de tudo que
chamaríamos de sucesso. Ele tinha um programa de construção em duas fases,
estava plantando igrejas e era notável como conselheiro e pregador em
conferências. Porém, às vezes, as coisas do ministério que desejamos na nossa
cultura não são as coisas importantes que Jesus nos dá. Falamos aos empresários
que não vale a pena ganhar o mundo e perder a alma. Não seria possível fazer o
mesmo em um ministério vocacional?
No meu primeiro pastorado tínhamos dezoito alqueires de terra. Quando
propus que cortássemos nossos programas de ministério pela metade, para que
as pessoas pudessem descansar mais com as suas famílias e estar em casa na sua
vizinhança para compartilhar o evangelho, alguns me julgaram como quem
conduz a igreja para trás (mesmo que tivéssemos uns trinta programas numa
igreja de oitenta e cinco pessoas).
Enquanto isso, poderíamos discutir sem trégua nossas declarações de visão e
debater com eloquência perguntas chatas (tais quais se João Calvino teria
removido a cruz de madeira pendurada na parede de nosso santuário, ou se nós,
como protestantes, devemos rebatizar alguém que foi anteriormente batizado na
igreja católica, ou se devemos ter o nome “Presbiteriano” no logotipo de nossa
igreja). Mas como líderes, muitas vezes demonstramos pouca capacidade de
demonstrar o amor, a graça ou a humildade de Jesus em nossos relacionamentos
diários. Nossos sonhos e planos de realizar algo grande para Deus injeta-nos
energia. Nosso tratamento uns com os outros, porém, só nos ferem e fatigam. É
fácil fazer grandes coisas para Deus desde que essa grandeza não requeira
humildade interior, amor prático pelas pessoas bem à nossa frente nem
submissão à presença de Jesus no lugar em que já estamos.
Estou tentando dizer que quando um homem iracundo se torna manso em
Cristo, existe mais poder do que em trinta homens cheios de ira que vieram a
nosso evento ministerial e foram para casa sem transformação. O problema para
mim e para muitos dos que tenho servido é que a assistência de trinta pessoas
soa melhor que a de uma só. Mesmo que, querendo nosso Senhor, viessem trinta
e esses trinta fossem transformados, por mais que nos alegremos, ainda teríamos,
nalguma altura, de usar o banheiro.
Marque bem isso aí: Nós também podemos tentar resistir à nossa
humanidade, dizendo com convicção algumas coisas horríveis diante de um
santuário, dentre todos os lugares, durante a oração: “Deus, eu te agradeço
porque não sou como outros homens” (Lc 18.11). Lá está: o ar mortífero, a
crença envenenada que, de algum jeito, nós que desejamos realizar grandes coisas
para Deus não sucumbimos a ser meros humanos, do modo que são as outras
pessoas.
Talvez seja por isso que, trinta anos após falar pela primeira vez sobre meu
chamado na sala de aula da Sra. Canter, eu tenha pregado descalço em meu
primeiro domingo como novo pastor titular, tendo uma segunda chance.
Permanecer em pé ali, com a Bíblia na mão, sobre um fundamento comum e não
escondido, com pelos de hobbit sobre os dedos calosos do pé, era um ato de
testemunho pessoal, um lembrete tolo, mas tangível, de que eu não sou o Cristo.
Por tempo demais, ignorei nas minhas aspirações por grandeza, o fato de que
sou humano. Talvez seja isso, em parte, o que aconteceu a meu amigo pastor que
se matou. Ele era um “sucesso”. Eu estava me tornando assim. Foi por isso que eu
disse: “Jonathan Edwards peida”.
Gerard Manley Hopkins, “ e Caged Skylark”, [A cotovia engaiolada] em Hopkins: Poems and Prose
(New York: Knopf, 1995), 17.
3 | Saindo de casa
O ministério pastoral é uma peregrinação pelo deserto.
–D H .

Quando um cão selvagem entrava no nosso quintal, Papaw irrompia pela porta
de tela, correndo para carregar a seu ri e. Enquanto o metal arranhado batia
forte contra o fundo da casa para então retornar de volta em seu lugar, Papaw,
agora de pé e calçando as meias, rme sobre a entrada do carro, mirava a arma e
atirava. Não se importava com o ganido resultante. Na verdade, parecia ter
prazer nisso, como se tivesse acabado de defender a sua família do ataque de uma
manada de lobos. Tentava esconder seu largo sorriso e xingava o vira-lata que
uivava de dor, como se fosse um homem chamando Papaw para brigar. Assim,
quando ele me disse bem cedo na manhã no dia de Natal que ia atirar no Papai
Noel, eu acreditei.
Não era nada fácil possuir um coração sensível no mundo daquele querido
homem quando ele era mais jovem. “Abaixe as calças e corra, Mamaw! Você tem
cinta de babados e calcinha de rendas”. Foi o que Papaw me ensinou a dizer para
minha Mamaw quando eu era um menino bem pequeno, e eu dizia. Aprendi a
ver as mulheres não somente pelo jeito que Papaw falava a Mamaw, mas também
pelas revistas Playboy e pelos calendários de mulheres nuas que não eram segredo
para Mamaw ou para nós, e que eram colocados estrategicamente pela casa que
ele construiu.
À mesa de jantar, aprendi que havia no mundo alguns chamados de “negros”.
Os pregadores não eram melhores em sua estimativa. A casa pastoral da igreja
metodista era vizinha da nossa. Pregadores nada mais eram que hipócritas, e
Papaw tinha várias histórias para provar isso.
Quando eu voltava da escola no ensino fundamental, a primeira coisa que
Papaw perguntava era se eu tinha levado uns petelecos do diretor da escola por
ter aprontado naquele dia. Quando eu respondia: “Não, Papaw”, ele ria, me dava
um tapa no braço e dizia: “Puxa vida, rapaz, o que é que você consegue fazer de
bom?”
Papaw nunca me fez sentar para dar uma aula sobre como ver e interpretar os
cachorros perdidos, as mulheres, os pregadores ou a pele não branca, mas o jeito
do Papaw ver o mundo, junto com outros em minha jovem vida, ia treinando e
formando o meu próprio jeito.
Os jeitos ensinam. Formam as principais salas de aula de nosso aprendizado.
Para melhor e para o pior, aprendemos a ver o mundo e a nos apresentar nele
como testemunhas, não somente das declarações de crença que aprendemos na
aula, mas também pela mentoria relacional com aqueles com os quais vivemos
(Pv 13.20; 22.24–25). Seria ingênuo se acreditasse que meu ministério atual,
como adulto em St. Louis, Missouri, fosse estranho ao meu Papaw e ao modo
como ele e eu compartilhávamos juntos a vida comum e cotidiana de Henryville,
Indiana. Você também não é diferente disso.
Você e eu aprendemos muitas coisas em casa, e nem todas concordam com
Jesus. E o que é pior, quando saímos de casa para o ministério, levamos conosco,
para o bem ou para o mal, as coisas que a nossa casa nos ensinou.

A mentoria que trazemos conosco


Os discípulos repreenderam as crianças por tomarem o tempo de Jesus (Lc
18.15). Quando a mulher quebrou o vaso de alabastro, perfumando Jesus com a
sua adoração, eles se indignaram e repreenderam a mulher (Mt 26.7–10).
Quando viram Jesus conversando com uma mulher samaritana, esses discípulos
judeus caram confusos ( Jo 4.27). Vendo Jesus prestes a ser traído,
desembainharam as suas espadas para uma ação violenta (Lc 22.49). Ao
testemunharem um homem rico indo embora, em vez de seguir a Jesus,
indagaram: “Quem poderá ser salvo?” (Lc 18.25–26). Quando viram o cego de
nascença, presumiram que a de ciência fosse um castigo pelo pecado ( Jo 9.1–3).
Assumiram que as diferenças entre os pregadores de Jesus fossem motivo para a
rejeição e a separação imediata (Mc 9.38–41).
As pessoas que viviam em volta dos discípulos tinham lentes similares pelas
quais viam o mundo. Por exemplo, ao vir Jesus receber bem a um cobrador de
impostos, “todos murmuraram” (Lc 19.7). O morador de sepulturas, quando
teve a mente curada por Jesus, foi obrigado a “deixar sua região” (Mt 8.34).
Quando aconteceu uma tragédia e pessoas inocentes morreram, presumiram
seriamente que tragédias só acontecem aos piores pecadores (Lc 13.4).
Cada um de nós carrega “Teologias” e “teologias” para o ministério. As
realidades “maiúsculas” foram aprendidas em sala de aula com bons professores
bíblicos. As “minúsculas” muitas vezes aprendemos sem perceber, do lado de fora
ou apesar da sala de aula. O problema é que, não importa o que professemos
sobre nossa Teologia, todas as nossas pequenas teologias aparecem nas horas
menos esperadas. Por exemplo, Jesus ensinou a seus pastores em treinamento a
amar ao próximo, até mesmo os inimigos. Tenho certeza de que esses seguidores
sinceros concordaram com essa “Teologia”. Mas a primeira vez em que os
samaritanos ofenderam a Jesus, Tiago e João queriam, em nome de Deus, matá-
los (Lc 9.54).

Homens com punhos e temores


No primeiro ano de meu primeiro pastorado, contava vinte e seis anos de idade.
A reunião de educação cristã tinha terminado, mas a raiva estava só começando.
Esse homem, trinta anos mais velho que eu, começou a vociferar: “Você nunca
vai . . .”. Nos próximos minutos, ele deixou patente que eu não tinha sido
chamado por Deus e que era uma desgraça como pastor, e que, como homem, eu
somente era digno de desrespeito. Usando um vocabulário de lme impróprio
para menores, ele escolheu palavras que deixaram claro para mim que se eu o
contrariasse novamente estaria arrasado como pastor. (Foi uma ameaça que mais
tarde ele tentou cumprir). Meu coração batia acelerado. A ansiedade inundou
minhas veias. Lembrei-me de que “a resposta branda desvia o furor, mas a
palavra dura suscita a ira” (Pv 15.1). Tentei, mas ele não desviou a ira. “Sinto
muito”, disse eu.
Ele fez uma careta mais para baixo, à altura possível para atacar minha cabeça,
ergueu o dedo em riste e ameaçou: “Vou vigiar você para ver se está sendo
sincero”. Depois de longa pausa, saiu. Eu permaneci de olhos no chão e chorei
como se fosse um bebezinho (ou será que chorei como homem?).
Como é que um homem que já sacri cou tantos de seus recursos e tempo
desejando o ministério, e que já realizou tanto bem, pode ter tanto apetite por
uma briga caso seja contrariado?
Como eu podia desmoronar desse jeito? O fato é que, por mais que eu tivesse
aprendido no seminário, quando a tempestade rugia saindo do nada e a chuva
jorrava, eu era como um menino do primeiro ano de ensino médio, fugindo dos
punhos de meu padrasto em Clarksville, Indiana.
Eu era um pastor chamado por Deus a fazer o bem para este homem e para a
congregação, resistindo ao pior dele e procurando seu maior bem em Cristo. Mas
naquela hora, tudo que eu via era um homem de punhos cerrados. As
lembranças de menino amontoavam-se na sala. Temores de menino roubavam as
minhas credenciais e as escondiam em algum lugar do armário. Eu não as
encontrava em meio àquele estouro de raiva.
Porém, o temor de menino não é a única fotogra a que tenho de minha
história de mentoria. Meu padrasto me esmurrou com as mãos abertas de
adulto; as marcas vermelhas da surra em minhas bochechas e as lágrimas
produzidas tiveram como resultado tornar-me mais duro. A primeira vez em que
eu, já pastor, me escutei dizer: “Vai mexer comigo?”, para um homem que não
estava em seu melhor momento, na la em uma loja de móveis, eu me surpreendi
e quei sério. Caiu a cha. Estava correndo perigo de ser nada diferente dos
homens que eu tentara vencer.
Sendo pastor, vejo homens na congregação e comunidade todos os dias.
Alguns homens também estão sempre me vendo. Jesus vê a ambos.

Mulheres com corpos


Mas os homens também enxergam as mulheres. De mãos dadas, minha esposa e
eu caminhamos pelo bar Llywellyns numa sexta-feira. Os homens agarram-na
com os olhos. Não se importam por eu ser dela ou por ela ser minha ou por
nossa aliança diante de Deus ser sagrada e feliz para nós. Acabei aprendendo que
ela tem de conviver com aqueles olhos da maioria dos homens na vida que
dizem: “Você não quer se embebedar comigo?”
June era conhecida por “tentar se insinuar”. Ela estava bêbada no McDonalds.
“Oi, Zack”, chamou. “Quer car aqui comigo?” June deu uma piscada, enrolou as
palavras e tropeçou, enquanto meus amigos sorriram. “En a ela no carro”, disse
um deles. “Põe ela no seu carro!” Eu não o z. Não sei onde está June agora. Será
que ela veio a conhecer o descanso gracioso e digni cante dos olhos de Jesus,
totalmente isentos de pornogra a? Será que eu possuo tais olhos ao abrir a
Bíblia, orar ou mesmo tomar minha refeição na presença de uma mulher?
Penso em Judy, sentada no meu escritório na igreja. “Você tem de deixá-lo”, eu
disse a ela com respeito ao seu namorado abusivo. “Eu sei, mas não posso”, disse
ela. Orei silenciosamente em minha cabeça. Vi a vergonha do seu rosto.
Arrisquei uma declaração no contexto de nossa história e longo conhecimento:
“Estou imaginando que o sexo nem é assim tão bom”, eu disse quase em um
sussurro.
Ela me olhou. O rosto duro atenuou. Abaixou os olhos e as lágrimas
começaram a escorrer. “Não, não é”, admitiu, balançando a cabeça. “Sinto-me tão
suja depois, com as coisas que ele quer que eu faça. Fico tomando banhos de
chuveiro. Mas não consigo me limpar”.
“Então por que você continua com ele?”, perguntei-lhe. “Porque pelo menos
por um momento eu me sinto desejada”.
Lembro do canal da Playboy da casa de meus avós postiços, da coleção de
revistas pornográ cas Hustler no armário debaixo da pia no quarto de cima.
Penso no armário de Papaw, e sou esmagado com uma percepção. Não consigo
ver ou ministrar a mulheres até que eu aprenda a graça de ver além do seu corpo,
para aquilo que ela é. Escrevo um pouco de minha própria poesia:

Você escondeu no armário as suas Playboys


junto com tudo mais.
Você também me escondeu ali
e foi isso em que nos tornamos.

Assim, quando Jesus nos pergunta: “Vês esta mulher?” (Lc 7.44), pergunto-me
como deve ter sido para ela. Não havia luxúria nos olhos de Jesus, nem abuso por
trás de seu sorriso, nenhuma cantada familiar ou bajulação em seu tom. Sua
beleza era notada e admirada; seu coração e sua mente eram compreendidas e
conhecidas. Será que já teria sido observada dessa maneira por algum homem?
Será que os homens ali de pé sabiam que eles também, pela graça, poderiam
olhar deste modo para uma mulher?
Os netos se esquecem de que as Mamaws são mulheres. Seu nome era Pauline.
O nome dele era Bud. Na sua juventude, imagino que ela colocasse seu melhor
vestido e passasse perfume no pescoço, esperando que os dedos dele também a
tocassem ali com ternura. Havia gratidão e ternura, um anseio nos olhos ao dizer
seu nome ou relembrar a sua presença. Naqueles anos ela cava sentada com ele
na sala, descascando batatas com ele na cozinha, deitava com jeito de mulher
diante dele em seu leito de vários anos juntos. Gosto de pensar que no nal ele
via a ela, e os anos das revistas Playboy tiveram os olhos vazados. Gosto de
pensar que a mulher, que conhecia e amava esse homem de punhos cerrados,
nalmente teve as suas envelhecidas orações por ele nalmente respondidas,
enquanto os punhos dele se abriam ternamente. Punhos nalmente relaxados e
acariciados, nos cacos de uma velha promessa e um longo amor.

Racismo na conversa
Outra coisa também mudou, não plenamente, mas verdadeiramente. Papaw
estava se recuperando no Hospital Municipal da cidade de Clark. Ele havia
trabalhado ali como zelador durante muitos anos. Agora era ele que precisava de
reparos. O seu coração estava cansado e queria parar antes da hora. Por isso,
deve ter sido algo notável para Papaw naquele dia, quando um estranho veio
visitá-lo entre os tubos e monitores presos aos seus braços. Esse “alguém” era um
capelão afrodescendente com as boas novas de Jesus, trazendo cuidado pastoral
para os enfermos. Eu queria ter sido uma mosca na parede para ver aquele
momento.
Mas como lho do meu Papaw, eu mesmo tenho tido necessidade de muitos
“capelães negros”.
“Você está se esforçando demais”, disse o meu amigo afrodescendente. “Você
não tem de frequentar todas essas reuniões, sessões de planejamento e eventos
contra o racismo. Tem um jeito mais fácil”, ele insistiu. Seus olhos transmitiam
seu amor enquanto falava essas palavras. Ele tinha idade para ser meu pai.
“O que você quer dizer com isso?”, perguntei.
“O seu escritório ca em um pequeno centro comercial perto de alguns
comerciantes negros, certo? Então, quanto tempo levaria para você chegar do seu
escritório até a uma dessas lojas?”
Fiz uma pausa. Tenho certeza de que também parei de mastigar o meu
sanduíche. Dava para ver que um senso de convicção estava prestes a me
cumprimentar. Sentei para trás na cadeira. Ele sorria agora, e era gentil.
“Uns três segundos”, respondi nalmente.
“É isso que estou dizendo”, disse ele. “Você está se esforçando demais,
frequentando na correria todas essas reuniões. Ao invés disso, ande três
segundos até ali, en e a cabeça à porta, e simplesmente diga ‘olá’. Se ninguém
retribuir o seu cumprimento, tente de novo na semana seguinte. Se eles lhe
derem um alô, simplesmente converse como um ser humano sobre coisas de
humanos”.
Fiquei pensando no que ele disse. Admiti em voz alta o que eu sentia por
dentro.
“Parece que essa caminhada de três segundos é mais difícil. Por que é assim?”,
perguntei.
Ele não me respondeu. Ele não precisava me responder. Ambos demorávamos
com o pensamento, enquanto comíamos as fritas devagar.
Jesus entra em nossa mentoria e reformula as narrativas com as quais
mapeamos o mundo. Os discípulos cresceram ouvindo histórias que deixavam
implícito que os pobres estavam no inferno e os ricos iam para o céu. Mas Jesus
inverte isso (Lc 16.19–31). Os samaritanos são vizinhos nobres (Lc 10.25–37),
pecadores arrependidos são justi cados diante de Deus, e os arrogantes mestres
da Bíblia não o são (Lc 18.9–14). E as crianças, longe de serem repreendidas e
silenciadas, são exatamente como devemos nos tornar a m de entrar no reino de
Deus (Lc 18.15–17). Trazemos histórias de casa conosco quando entramos no
ministério. Jesus entra nelas e dá à luz novas histórias para que as contemos.

O ajuste doloroso
Estas novas narrativas da graça para nossa família não são baratas. Não apenas as
levamos conosco de casa; também quando voltamos para casa de tempos em
tempos. Fazer com que isso dê certo requer graça e tempo.
Na sua própria cidade, enquanto Jesus era “o lho do carpinteiro, lho de
Maria e irmão de Tiago e José e Judas e Simão” junto a suas irmãs, Jesus era
bem-vindo. Era parte do povo e do lugar (Mc 6.3). Mas uma vez que Jesus
“começou a ensinar na sinagoga”, as pessoas, em sua maioria, retiraram suas boas-
vindas. “Se ofenderam com ele” (Mc 6.1–8; Lc 4.16–30).
Meu jeito de tratar minha pequena semelhança ao que Jesus experimentou por
vezes tem feito as coisas piorarem. Ao tentar separar aquilo que é menos
parecido com Jesus na mentoria de nossa família, frequentemente o fazemos mal,
como a vez quando escrevi um tratado de sessenta páginas que chamei “Por que
sou o que algumas pessoas chamam de ‘calvinista’.” Fiz cópias e mandei para
todos os membros da minha família no sul de Indiana. Que maneira melhor
haveria de mostrar o amor de Jesus aos entes queridos do que escrever e enviar
um documento que eles não esperariam, respondendo perguntas que não
estavam fazendo, com um tom que não era necessário, para defender uma
discussão na qual eles não estavam envolvidos, e isso tudo para surpreendê-los,
sem que tivéssemos tido qualquer conversa pessoal a respeito disso?
Assim, quando tentarmos orar ou dizer algo de signi cado espiritual, os
membros da família não nos deixarão esquecer dessas coisas. Como isso pode se
tornar um dom de graça! Nós todos podemos olhar para trás e dar risada devido
ao perdão necessário e concedido. Novas histórias de família poderão tornar-se
fonte de encorajamento para todos.
Porém, a lembrança de nossos momentos de tolice não vai embora com os
outros membros da família. Eles cam contentes em ter um encanador na família
quando os canos estouram, ou um cabeleireiro que corte o cabelo de graça, mas
raramente pensam na bênção que um ministro humilde pode oferecer à família.
Não reconhecem a agulhada que trazemos conosco por causa disso. Talvez nos
assemelhemos ao hipócrita que os feriu. O seu cinismo põe a culpa sobre aquilo
que nós representamos.
Muitas vezes, as vozes críticas ou decepções implícitas vem numa disposição
bem-intencionada. A família sente nossa falta e desejaria que estivéssemos em
casa. “Filho, por que zeste assim conosco?” (Lc 2.48), poderão dizer. A família
de Jesus sentia-se ferida por Jesus. Maria acrescenta, “Teu pai e eu, a itos,
estamos à tua procura” (Lc 2.48).
Jesus faz uma pergunta direta e gentil em resposta: “Por que me procuráveis?
Não sabíeis que me cumpria estar na casa de meu Pai?” (Lc 2.49). Como seria
para José ouvir que Jesus tinha de estar na casa de um Pai diferente, e que esse
Pai não era ele, José, e não incluía a provisão e a habitação de José? Deve ter
doído.
Quando Jesus e sua família começaram a ter esse ajustamento dolorido, sua
família “não entendia” o que Jesus estava lhes revelando (Lc 2.50). Teriam de
ponderar essas coisas nos corações e ruminá-las por algum tempo (Lc 2.51).

Tempo de car de pé
Na hora que as multidões se juntam e Jesus não tem tempo para comer, a sua
família reage mal. Poderiam ter trazido comida para ele, encorajando-o com a
mensagem de que o Senhor, que o chamou, o sustentaria e sempre seria el. Em
vez disso, olharam as coisas boas que Jesus fazia e denegriram seu caráter.
Enquanto outros se ajuntavam para aprender sobre Deus através de Jesus, “sua
mãe e seus irmãos” caram do lado de fora (Mc 3.31). Naquele momento
público eles se referem a Jesus como um homem fora de si (Mc 3.21). Em termos
humanos, existem pouquíssimas críticas mais dolorosas do que aquelas feitas
contra nós por aqueles que nos conhecem por mais tempo.
Normalmente, Jesus se maravilhava dessa falta de boas-vindas em sua própria
casa; suportava a dor produzida por isso, e simplesmente prosseguia em seu
ministério (Mc 6.5–6). Mas chegou a hora. Desde os doze anos, Jesus havia se
submetido e amado sua família respeitosamente, mesmo quando eles não o
compreendiam. Agora, aos trinta anos, ele cumpriria o seu chamado, quer eles
entendessem quer não. Certas coisas até eles teriam de aprender de Deus. Não
podiam continuar a apoquentá-lo desse jeito. A manipulação, os xingamentos e a
utilização da culpa para envergonhá-lo tinham de parar. Jesus os amaria, mas não
faria concessões à descaracterização que faziam dele, bem como das
interpretações sobre quem Deus é e de como o ministério de Deus deveria
funcionar. A família e Jesus teria de se entregar aos propósitos de Deus para eles
— não havia como evitar. Jesus continuaria em seu chamado, quer eles
quisessem quer não, quer estivessem envergonhados por ele quer não, quer
achassem que seriam maltratados quer não. “Quem é minha mãe e meus
irmãos?”, ele pergunta (Mc 3.31–35). Este momento na vida de Jesus me deixa
boquiaberto.
Certamente, naquele dia a família foi para casa furiosa ou ferida. Jesus só
con rmou as suas suspeitas. Está fora de si. Eles estão certos em car do lado de
fora e não se juntar aos que o seguem. Ou talvez acreditassem mesmo que ele se
importava mais com os outros do que com eles. Pode ser que tivessem se sentido
desrespeitados por ele falar as coisas tão claramente. Talvez pensassem no
homem egoísta e orgulhoso que seu lho e irmão se tornara, amando as
multidões, a fama e a atenção.
O que sabemos com certeza é que, enquanto se entregava à obra do Pai, Jesus
não parou de amar a sua família ( Jo 19.26). Com o tempo, sua mãe viria a
entender todas essas coisas que foram profetizadas e as guardaria no coração.
Com o tempo, o seu irmão Tiago se curvaria a ele afetuosamente como Senhor e
Salvador. Mas não os vemos muito todos juntos.
As percepções da sua família estendida e dos seus concidadãos acerca do
ministério são uma confusão — era assim até mesmo para nosso Senhor na
plenitude de sua humanidade. Mas até mesmo aqui, a graça não desiste.

Conclusão
Eu estava saindo da reunião do almoço de Dia de Ação de Graças da casa dos
Guernseys. Havia passado trinta e cinco anos ou mais desde que Papaw me
dissera que planejava atirar no Papai Noel; seis ou sete anos desde que chegara o
capelão negro; e seis ou sete anos desde que eu lhe escrevera uma carta contando
do meu amor por ele e por Jesus, aquela carta que ele referiu como algo para ser
guardado junto ao peito. Foi um ano ou dois antes da morte de Mamaw. E foi
após mais de cinquenta anos que Mamaw orava.
“O que você sabe, jovem?”, disse ele com muita magreza e cabelos de prata. Há
muito sumiram as costeletas fortes e escuras emoldurando o rosto murcho. A
seriedade e clareza de seus olhos castanhos me surpreendeu. “Não tem muita
gente que sabe o que tem dentro desse velho aqui”.
“Ah é?”, disse eu perguntando.
“Dois anos atrás, esse velho aqui começou a dar graças a Deus toda noite”, ele
disse. “Uns meses atrás, o velho aqui começou a voltar para a igreja”.
Eu estava chocado com a sacralidade daquele momento. Remexi as minhas
chaves, vasculhando o vazio profundo do bolso de meus jeans, tentando
encontrar palavras. “Como é isso para o senhor, Papaw?”, ousei indagar.
“Bem, não concordo com tudo isso”, disse. “Mas, para dizer a verdade, tenho
sentido falta”.
Ele se aproximou de mim para me abraçar.
Então sorriu ao falar: “A gente nunca sabe o que vai acontecer com esse velho
aqui, não é mesmo?”
“Nunca se sabe”.
4 | Invisível
O fato é que os pastores são invisíveis seis dias da semana... Grande parte de nosso trabalho mais
importante é feito nos bastidores.
–E H. P

O que dissemos até aqui:


Pastores anseiam.
Pastores pregam com pele e osso.
Nossa pressa não ajuda muito.
Entediados com a verdadeira grandeza que nos foi dada, tentamos sair de casa,
mas levamos nossa casa conosco.
Estamos esgotados por correr atrás das falsas grandezas.
Somos encharcados por sucessos, mas secos quanto a Deus.
Estamos fazendo de novo antigas perguntas, olhando para trás.
Mas de que adianta ser pastor?

Trabalho monótono
“Quero agradecer-lhe por aquilo que você disse da última vez em que nos
encontramos”.
Ele disse isso em uma cafeteria. A lha pequena de meu amigo dizia com
linguagem de garotinha: “Num quero Deus” ou “mim não ora”. Sofrendo, esses
pais preocupavam-se que estivessem fazendo algo errado. Eu respondi dizendo
algo sobre como nós adultos, muitas vezes, não gostamos de Deus em nossa vida
ou não queremos orar.
“Quem sabe o deus que sua lha não gosta seja um que nós também não
gostaríamos nem desejaríamos crer; talvez não seja, a nal, uma imagem
verdadeira de como Deus realmente é”, eu sugeri. Então z uma pausa. Não
tinha certeza, como era costumeiro, se aquilo que em oração eu tentava entender
estava plenamente correto. Eu orava daquele jeito estranho que podemos fazer,
silenciosamente, entre as sentenças e os pequenos silêncios que perduram
enquanto en amos a colher em uma tigela de caldo quente.
“Em vez de fazer sua garotinha parar de falar que não gosta de Deus”, eu disse,
“que tal admitir que, às vezes, mesmo como adultos, nós desgostamos de Deus, e
deixar que isso molde as suas orações em família? A nal de contas, os Salmos ou
Eclesiastes, Jonas ou Jó nos mostram orações dessa espécie. Nos ensinam que
Deus nos ouve em Cristo, mesmo quando temos sentimentos feios e quando
esses sentimentos feios são dirigidos a ele. Quem sabe se neste exato momento é
isto que ela pode aprender com você? Que tal se, em vez de ler a Bíblia por uma
temporada, você convidasse os lhos a dramatizar as cenas escritas nos
Evangelhos? Alguém é o que está doente. Um outro atua como o fariseu
zangado. E alguém começa a dizer o que Jesus fez e a estender a mão ao que está
enfermo ali mesmo em sua sala de estar”.
Nas semanas seguintes aconteceu algo maravilhoso. Aquela criança começou a
relacionar-se de maneira diferente quanto à oração, e deixou de falar que não
gostava de Deus. Um momento como este nos ajuda a entender por que não é
fácil descrever o que um pastor faz. É também desagradável e fere nosso inquieto
desejo de legados maiores e mais famosos.
• Comum e cotidiano. Este momento quase não se nota no mundo e não será
documentado pela história. Dois homens tomavam sopa e conversaram por
alguns minutos numa terça-feira em uma cidade do Missouri.
• Invisível. Ninguém mais da congregação viu ou sabe sobre isso.
• Incontrolável. Não existe uma fórmula. Nunca me zeram antes aquela
pergunta e eu poderia não ter sabido como dizer, ou errar completamente no
que disse. Foram feitas orações. Dar um passo à frente foi um ato de esperar
em Deus quanto ao desconhecido.
• Inacabado. Demos graças com risadas quando se falou dessa boa nova. Mas
ambos sabemos que essa menina pequenina tem toda uma vida em frente
para construir sua trajetória com Deus ou o contrário. “Daqui a dez anos”, eu
digo, “talvez estejamos sentados aqui nessa mesma lanchonete, tomando sopa,
conversando sobre sua lhinha, que a essa altura será uma jovem! Certamente
estaremos olhando juntos ao Senhor novamente, buscando toda a ajuda e
graça que pudermos!” Rimos e balançamos as cabeças.
Andamos até o estacionamento. Sem mais palavras a dizer, demos tapinhas
nas costas um do outro, como muitas vezes fazem os homens. Ele voltou ao seu
escritório. Eu fui ao encontro de outra pessoa.
Eu não visionava essa espécie de vida diária. Pensava que ser pastor seria algo
parecido a um conferencista itinerante, profeticamente originando e dando uma
visão de pregação a grandes multidões e organizações, para que pudesse
constantemente demonstrar que não somos como outras igrejas e eu não sou
como outros pregadores. A cada semana, eu mobilizaria e gerenciaria programas,
contratando, despedindo e treinando o pessoal, para que pela força de minha
personalidade, pela perícia de minha liderança organizacional e singularidade
sábia de nossa presença, eu (quero dizer, claro, nós) poderia construir uma
plataforma mais notável para o evangelho, de onde eu (ops, quero dizer nós)
poderia subir em maior proeminência no evangelho. E então eu (aqui não estou
falando de nós) poderia ir embora, passando a fazer coisas cada vez maiores e
melhores para Deus no evangelho.
Porém, se aspiro a essa outra visão, quem cará sentando sem pressa,
escutando alguém em nome de Deus enquanto toma sopa no meio de um dia
comum, em lugar corriqueiro, para que uma família desconhecida para o mundo,
que ama a Jesus, encontre seu caminho nele em meio do que realmente os
machuca, confunde ou os deixa mais maravilhados?

Jesus Cristo: timidez e fama


Anseio por palavras como estas que foram faladas para Jesus: “Todos estão te
procurando” (Mc 1.37).
São essas as palavras de fama. No entanto, se Jesus era o famoso, por que as
pessoas teriam necessidade de procurar por ele? A sabedoria convencional
concordaria com o conselho da própria família de Jesus. “Porque ninguém há
que procure ser conhecido em público… Se fazes estas coisas, manifesta-te ao
mundo.”, cinicamente eles insistiam ( Jo 7.4). Não entendiam como um grande
obreiro de Deus escolheria um modo de vida que podia ser caracterizado por
trabalhar “em segredo”. Não tenho certeza de que eu, ou a maioria das igrejas que
eu já servi, teria entendido isso. O zunido a respeito de Jesus era tão público que
ele não conseguia entrar abertamente numa cidade (Mc 1.45). Será que ele não
deveria agarrar essa oportunidade de palco para Deus?
Contudo, seus irmãos reconheceram algo a respeito de Jesus que os irritou.
Quando comecei a entender, isso também me incomodou (no sentido de
convicção). Jesus não é atraído aos holofotes, mas é tímido quanto à fama. Os
discípulos e amigos tinham de procurá-lo. Ele não estava tuitando. Seu blog não
era visitado. As respostas dos e-mails não eram imediatas. Muitas vezes o
encontravam sozinho, orando em lugares isolados (Lc 5.16). Na verdade, parece
que quando Jesus estava no lugar certo, no tempo certo, e a oportunidade de
avançar seu trabalho por meio de maior celebridade aparecia, ele
intencionalmente permitia que essa chamada fosse para a caixa postal e
desaparecesse por algum tempo ( Jo 6.15).
Jesus teria deixado desnorteado qualquer publicitário ou mesmo qualquer
congregação. Na verdade, após fazer algo grandioso, muitas vezes Jesus pedia que
ninguém falasse a respeito.5 Talvez o pedido de Jesus para que ninguém
alardeasse fosse em parte uma estratégia de marketing de falsa humildade. Os
artistas fazem isso ao indicar que não querem nosso aplauso, enquanto por outro
lado, simultaneamente, o estimulam. Talvez simplesmente fosse provado ser
nada prático para Jesus ministrar livremente a outros se soubessem quem ele era.
Vemos essa analogia com estrelas de rock e celebridades de nossos dias, as quais
têm de viajar em horários estranhos e usar disfarces quando andam em público.
Mas revisitando tais explicações, e se a razão de Jesus para diminuir a conversa
a seu respeito fosse simplesmente proveniente de viver aquilo que ele ensinou?
“Guardai-vos de exercer a vossa justiça diante dos homens, com o m de serdes
vistos por eles; doutra sorte, não tereis galardão junto de vosso Pai celeste” (Mt
6.1), ele ensinou.
De alguma forma diminuímos as coisas que glori cam a Deus quando
“tocamos a trombeta diante de nós, como fazem os hipócritas” (Mt 6.2). Ele cria
que fazemos melhor as grandes coisas para Deus quando a mão esquerda não
sabe o que faz a direita — quando aquilo que fazemos para ele passa
despercebido e não é reconhecido pela imprensa, pela igreja, e até mesmo pelos
que estão mais próximos a nós (Mt 6.3). Existem questionamentos que me
perturbam: Será que tenho garra para passar despercebido? Posso lidar com o
fato de ser ignorado? Minha espiritualidade me capacita a fazer algo
desconhecido para a glória de Deus?
Não é de admirar que Paulo esperasse muitos anos antes de contar a uma alma
sequer sobre uma experiência que teve com Deus. Ele nem a contava como sendo
sua própria experiência. Relatou-a como se fosse a história de outra pessoa,
desviando a atenção de si (2Co 12.2–4).
Jesus não ignorava os benefícios tentadores da fama. Obtemos recompensa real
do aplauso de outrem. Mas quando cessa o aplauso, também acaba sua provisão
(Mt 6.5). O momento deslumbrante se apaga no teatro vazio de nossa vida, onde
as questões fundamentais ainda permanecem. Assim, três vezes, quando Jesus
enumera as coisas justas que fazemos, ele nos compele a considerar “vosso Pai
que vê em secreto” (Mt 6.4; veja também os vv. 6, 18). Ao fazer isso, ele inverte o
sentido tomado no Éden. Fomos feitos para viver sob o olhar do Criador, livres
da procura da fama proveniente dos outros.
Aqui vem à mente um pensamento perturbador. Como a indiferença à fama
por parte de Jesus informa o modo de tratarmos o desenvolvimento de nossos
ministérios ou de modelar um ministério para ele? Estamos dispostos a abrir
mão do que dá certo no mundo por aquilo em que Jesus nos ensina a con ar? Eu
co confuso.
Novamente vem à tona um pensamento que fortalece. Deus é aquele que
lembra. Isso não quer dizer que somos esquecidos — não por ele. De fato, ser
lembrado por Deus signi ca que não tememos mais o sermos esquecidos pelo
mundo. Viver sendo lembrados por Deus é o su ciente.

Pessoas invisíveis, Orações invisíveis


Jesus vive de forma poderosa essa joia de verdade e a compra para nós. Você já
notou a rede estratégica de comunicação por parte de Jesus no Evangelho de
Lucas? Quase não existe (pelo menos em relação a conhecer e se conectar com
aqueles que são importantes). Parece que Jesus intenciona notar e orientar sua
agenda em volta das montanhas sem nome a seu alcance. Ele faz visitas pessoais
aos que estão doentes sicamente e espiritualmente, incluindo uma sogra, um
leproso, um paralítico e um cobrador de impostos (Lucas 4–5). Houve também
o homem com a mão atro ada, a doença do servo de um gentio, e uma viúva e
seu lho morto (Lucas 6–7).
Jesus nalmente passa tempo com centenas de pessoas numa multidão. Porém,
naquela turma, não são os ricos, os conhecidos e bem situados que Jesus procura.
O seu foco continua sendo os enfermos e conturbados (Lc 6.17–18).
Até mesmo João Batista ca confuso. O jeito de Jesus fazer as coisas parece
estrategicamente desconcertante. “És tu aquele que estava para vir ou havemos
de esperar outro?”, João pergunta (Lc 7.19). Não é estranho que a vida de amar
pessoas desconhecidas, em meio à sua miséria, zesse com que outros entre nós
questionassem se era hora de nos afastarmos, indo adiante de Jesus?
Mas, assegurando a João, por meio das Escrituras, que essa maneira de gastar o
tempo é exatamente o que Deus quer, Jesus veio ao encontro da mulher
pecadora, e em seguida, a várias mulheres comuns e alquebradas. Depois, a
quilômetros de distância, havia aquele homem nu, que gritava entre os túmulos
também entre gentios (Lucas 7–8). Jesus o procurou igualmente.
A essa altura, algumas multidões começaram a car confusas quanto ao
comportamento de Jesus. Pediram que os deixasse em paz (Lc 8.34). Jesus
concede o seu pedido. Está disposto a permitir que a multidão se ajunte sem a
sua presença. Em seguida, ele gasta tempo com outra mulher enferma e a lha
enferma de um dirigente da sinagoga (Lc 8.40–56).
O rei Herodes agora ca perplexo e deseja uma audiência com Jesus. Jesus
parece não ter interesse em mudar a sua agenda para incluir tal encontro (Lc
9.7–9)! Em vez disso, Jesus manda seus discípulos gastarem tempo com os que
são física e mentalmente perturbados. Em seguida, começa a falar sobre a morte
e a cruz que, com o tempo, tem de se tornar tanto dele quanto de seus seguidores
(Lc 9.21–27).
Finalmente, Jesus se revela como verdadeiro Filho de Deus, maior que Moisés
e Elias! Mas ele limita essa visão a apenas três pessoas, e ninguém deve falar a
respeito disso (Lc 9.29–36).
Na verdade, durante este tempo, Jesus continua a se afastar, indo a lugares
desertos para extensos períodos de oração (Lc 4.42; 5.16; 6.12; 11.1). Após
passar tempo com alguns samaritanos e duas mulheres obscuras que eram suas
amigas (Maria e Marta), os discípulos (que recentemente haviam discutido qual
deles seria o mais famoso, Lc 10.46–48) notam o estilo de vida de Jesus e dizem-
lhe: “Senhor, ensina-nos a orar” (Lc 11.1).
Então Jesus começa a envolver aqueles que possuem boas conexões e in uência
na comunidade. Mas tais conversas não são nada diplomáticas. Terminam com
um advogado altamente respeitado que exclama a Jesus: “Mestre, dizendo estas
coisas, também nos ofendes a nós outros!” (Lc 11.45). E quanto aos líderes da
elite na comunidade? A sua atitude frente a tudo isso foi car à espreita, “com o
intuito de tirar das suas próprias palavras motivos para o acusar”, (Lc 11.54).
A ideia de Jesus de fazer grandes coisas para Deus signi ca uma rotina que
acentuava uma grandeza diferente. Sua agenda pode parecer um pouco como a
seguinte.
Particular:

– Cedo de manhã e no m da noite: desaparecer frequentemente para orar.

– Após o café da manhã até pouco antes do jantar: procurar pessoas desconhecidas e
assustadoramente quebrantadas e oferecer-lhes a maior parte do tempo. Separar tempos para o
ensino público e para explicações em particular àqueles que você está oferecendo mentoria.

– Começo da noite após o jantar: passar tempo juntos e ter prazer um no outro

Geral:
– Comer e dormir.

– Ajudar os outros líderes para que entendam pela Palavra de Deus que este modo de ministério
vem de Deus e não é um desperdício.

– Suportar e apoiar as pessoas que você ajuda mas que se distanciam de você porque o seu estilo
de vida e ministério os assusta.

– Não se preocupar por sua verdadeira glória ser encoberta a quase todos a seu redor.

– Não marcar tempo demais na agenda com os que acreditam ser as colunas no governo ou na
igreja. Lembrar-se de que eles também são apenas pessoas. Eles têm seus próprios pecados dois
quais se arrepender e seus próprios chamados para cumprir. Não são mais importantes do que os
perdidos e aqueles que estão quebrantados a quem você foi chamado a ministrar.

Frequentando o seminário de Jesus


Afastar-se para a oração? Tempo prioritário com pessoas comuns e quebrantadas
que não são notadas pelo mundo? Uma ativa indiferença aos que não têm cacife?
O modo de Jesus não é o caminho da celebridade.
Talvez esta seja a razão por que Jesus treinava os trabalhadores para o
ministério de modo tão diferente de nós. Note, por exemplo, aonde Jesus conduz
seus discípulos para torná-los pescadores de homens (Mc 1.17–45). Ele os leva
entre os enfermos, os pobres, os possuídos por demônios, e pessoas de toda
sorte, incluindo professores, “hippies” urbanos, gente da roça e a sogra de Pedro.
Em certa altura os discípulos estão cercados de todos os enfermos e
endemoniados da área. Imagine o que signi cava seguir e aprender de Jesus no
meio dessa visão, desses sons, desses cheiros trágicos e pútridos.
Por todo o Evangelho, observamos a Jesus ensinando teologia
consistentemente no meio da ala psiquiátrica. Assentou seus aprendizes como se
estivessem no pronto-socorro. Os introduziu a vistas horrendas, sons
angustiados e aromas acres de pessoas humanas de verdade, com suas doenças,
suas batalhas contra demônios, suas disputas, sua pobreza e sua perda de
cônjuges. Ele os levou para bem perto dos preconceitos étnicos, das injustiças,
ansiedades e traumas, e também das alegrias, prazeres, deleites e anseios de seres
humanos comuns. Os discípulos de Jesus aprenderam a respeito de Deus dentro
do contexto de situações de vida corporal, que realmente existem no mundo, as
rami cações sensoriais da realidade debaixo do sol.
Imagine aprender nossa doutrina de Deus, estudando nossos melhores
teólogos, enquanto sentados no pronto-socorro, em meio a pais ansiosos,
crianças traumatizadas, ferimentos de armas de fogo e ataques de asma. Imagine
ler teologia entre o cheiro de café velho, o som do choro, e as visões de
perplexidade, trauma e frustração. Que impacto teria isso sobre como
processamos as doutrinas e categorias da onipotência, onipresença e onisciência
de Deus? Que tal lermos nossa doutrina da salvação onde pacientes mentais
vagueiam assustados pelos corredores, onde medicamentos, orações e pais
impotentes lutam com problemas com o seguro, papelada e a pressão de
orçamentos estourados?
Dentro desse ritmo corporal diário, não é de se admirar que Jesus se retirasse
em tempos estratégicos para oração — e nos convida a segui-lo do mesmo modo.

Mas isso não funciona!


Eu conversava com um pastor que serve em uma congregação grande, famosa e
muito elogiada. Mas, internamente e em particular, sua equipe pastoral está
esgotada e sofrida. Ele explicou: “Nas últimas semanas tenho trabalhado com
nossa equipe, tentando identi car os valores atuais praticados em nossa igreja —
não os valores que esperamos que nossa igreja tenha, mas os valores revelados
pelas queixas, caminhos e desejos expressos entre os que a frequentam”.
Ele fez uma pausa, olhou para baixo e balançou a cabeça.
“Nós determinamos que na cultura de nossa igreja valorizássemos o
pro ssionalismo, a excelência e a Bíblia. Pro ssionalismo é interpretado de
maneira que a transparência ou honestidade relacional seja suspeita e um sinal de
fraqueza. Excelência quer dizer que é difícil ser humano. Qualquer erro é rápida
e severamente criticado. Nossa posição quanto à Bíblia, conforme interpretada
através dessa visão de pro ssionalismo e excelência, signi ca que a informação
bíblica é prezada, mas não que nos exponha ou derreta, especialmente se não for
ensinada com os mais altos padrões acadêmicos”.
Ele continuou: “Recentemente, tentamos convidar os membros da igreja para
um jantar sem nenhuma agenda, somente para conhecer melhor uns aos outros.
Muitas pessoas nos disseram depois que, como pastores, havíamos desperdiçado
o seu tempo porque não lhes demos nada a fazer exceto permanecer sentados
junto a outras pessoas, conversando, comendo e olhando as crianças brincar”.
Ao escutá-lo, meu coração doía. Este pastor querido estava esgotado por anos
de constante pressão para esconder seu coração, não cometer nenhum erro e ter
constantes e novas informações da Bíblia a transmitir. Neste ambiente, no qual
cultivar os relacionamentos é visto como perda de tempo, falei algo sobre uma
citação do livro de Eugene Peterson: A Vocação Espiritual do Pastor.6
“É, eu não leio mais Eugene Peterson”, disse ele com sorriso sofrido. “Ele extrai
de mim os anseios por aquilo que uma comunidade de seguidores de Jesus deve
ser e como meu tempo de pastor deve ser gasto. Mas se eu enfrentar meu dia real
nesse sistema, não consigo sair daqui para lá e ainda manter o meu emprego. O
Senhor sabe que já tentei”.
Ele passou então a dizer algo perspicaz: “Para que essa igreja cresça de modo
saudável teria de haver uma mudança de cultura. Mas isso signi caria que
provavelmente perderíamos várias centenas de pessoas. Tão logo deixemos
implícito que o evangelho demonstra a força na fraqueza, graça pelos erros que
cometemos, e a verdade bíblica quanto ao contexto relacional e visão sacramental
do tempo, muitos carão agitados e irão embora. A boa notícia é que não nos
curvaríamos mais aos pressupostos congregacionais imaturos e nocivos, e
poderíamos pastoreá-los mais à maneira de Jesus”, ele disse.
Então ele sorriu, irônico. “Mas aqui está o fator contra: ainda que alguns se
juntassem a nós para tentar refazer uma mente voltada para um pensamento de
celebridade, moldando-a à mente de Jesus, nossa comunidade externa como um
todo observaria essa perda de pessoas na igreja estabelecida e concluiria que nós,
os pastores, fracassamos. Seríamos conhecidos na comunidade que nos cerca e
em nossa denominação como aqueles em cuja vigília a igreja passou de dois mil
para menos de mil e quinhentos membros. Por causa disso, eu não acho que
nossos líderes tenham estômago para tal redirecionamento. Estamos atolados, e
eu também estou”.
Não existe aqui resposta simplista. Uma igreja da contracultura, que seja
“orgânica”, “inquieta”, e “casual” pode facilmente ser medida pelas celebridades
com as quais nos comparamos, julgando os outros e mantendo nossos
seguidores. Talvez você também tenha observado isso. Aqueles irmãos e irmãs
que lutam com o desa o que Jesus faz quanto à celebridade do pro ssionalismo e
excelência geralmente se vestem do mesmo modo: empresário formal ou
empresário casual. Esses irmãos e irmãs que lutam com o desa o de Jesus à
celebridade daquilo que é orgânico e de última geração igualmente se vestem em
geral de maneira igual: jeans estreito, camisetas obscuras, pulseira larga do
relógio, óculos de aro estreito. Em ambos os casos, temos de reconhecer o
elefante na sala — prestamos muita atenção aos detalhes de nossa aparência.

Con ando em Jesus mais que nas aparências


Para onde nos levam essas coisas? O pastor, e também a maioria de nós, tinha
dois temores: (1) as pessoas irão embora; (2) nós seremos julgados como
fracassados. Esses dois mantras — mantenha as pessoas chegando e continue
mantendo elevado o nosso índice de aprovação — são o caminho da celebridade.
Consequentemente, não é tarefa fácil dizer: “Chega disso!”
É requerido de nós coragem, porque alguns vão ameaçar a perda de nosso
emprego se procurarmos fazer essa espécie de mudança quanto à disposição
mental de celebridade ( Jo 12.42). Seremos passados para trás e reduzidos em
nossa in uência caso persistamos.
É necessária a paciência, porque as categorias de Jesus para o sucesso são tão
estranhas a tantos de nós — essa espécie de mudança não acontece da noite para
o dia.
É necessária a graça, porque quem poderia arriscar uma perda dessas em nosso
mundo eclesiástico e cultural, e quem poderia amar longa e rmemente a ponto
de mudar à parte do mundo?
Nessa altura, temos de nos lembrar de duas coisas que estão diante de nós.
Primeiro, as pessoas criticaram, resistiram, desprezaram e abandonaram Jesus.
Lembre-se de que Jesus tinha sobre sua vida uma ameaça de morte porque ele
curara alguém. As multidões de milhares foram reduzidas a doze porque Jesus
expôs as suas razões mal dirigidas para segui-lo ( Jo 6.1–15). Pense nisso por um
pouco. Realizar o que cura a alguns no evangelho vai provocar e deixar outros
com raiva. O tamanho da turma não tem nada a ver com isso.
Se uma multidão se reduz porque a maneira, o caminho, e os valores de Jesus
estão ausentes num líder, então é justamente a hora de haver mudança. Mas, se
as multidões vão embora porque o modo de agir e o sistema de valores de Jesus
os confrontou e conturbou a atração de uma mente xada em
mundo/carne/diabo, então é hora de apoiarmos este líder. Ele precisa de nossa
ajuda, e não de nosso malquerer. Basta o que ele já sofre com isso.

Já descoberto
Eu era universitário de cabelo comprido. Bob era pastor no campus, servindo ao
ministério cristão dos Navegadores. Regularmente ele me convidava para orarmos
juntos em lugares ermos. Olhando hoje para trás, co maravilhado de como Bob
não viu isto como perda de tempo. Sou grato. Frequentemente, depois de umas
duas horas de oração, cávamos sentados juntos e conversávamos. Certa vez,
Bob olhou para mim.
“Zachary”, disse ele. “Você já foi descoberto”.
“O quê?”, perguntei.
“O que quer que aconteça em seu futuro, com todos os seus sonhos e
esperanças, quero que saiba que o ser descoberto já aconteceu. Jesus já o conhece,
ouve as suas orações e se deleita em conhecê-lo”.
Em retrospectiva, penso nessas palavras. Será que eu já tinha sido descoberto
por Jesus muito antes do seminário, dos tempos de aprendizado, dos prêmios
recebidos, das viagens, livros publicados, e, tristemente, dos dez errôneos anos de
projeções? Já era conhecido antes dos escombros e da ruína, e de pregar descalço
no santuário da segunda oportunidade?
Como poderia ser isso, a não ser que Jesus tivesse como hábito dar o seu tempo
para pessoas desconhecidas e alquebradas, nos lugares fora de mão, desprezados
pelo mundo, e tendo ele prazer em mim?
Ocorre-me o pensamento que me faz parar, surpreso. Se o trabalho pastoral de
Jesus consistisse em realizar grandes coisas, de maneira famosa e mais e ciente, e
o mais depressa que pudesse, eu jamais o teria conhecido.
Ver, por exemplo, Mateus 8.4; 9.30; Marcos 1.44; 3.12; 5.43; 7.36; Lucas 8.56.
Eugene H. Peterson, A Vocação Espiritual do Pastor: Redescobrindo o chamado ministerial (São Paulo, SP:
Mundo Cristão, 2006)
SEGUNDA PARTE | AS
TENTAÇÕES QUE
ENFRENTAMOS
5 | Estar em todo lugar para
todos
Existe um dia, quando a estrada não vai e nem vem, e o caminho não é um caminho, mas um
lugar.
–W B

É tão óbvio quanto o ar.


Para se fazer algo, é necessário estar em algum lugar.
Tem mais.
Você eventualmente acaba chegando aonde vai chegar. Já pensou nisso?
Uma coisa é fazer o que você precisa para chegar a algum lugar.
Outra bem diferente é saber como car por algum tempo uma vez que tenha
chegado lá.

Lançando raízes
“Zack, a sua vida é como um incêndio que faz soar todos os alarmes. Você vem e
vai por tantas direções diferentes. Eu me preocupo com você”. As palavras de Bill
me abalaram quando eu era jovem.
Uma de minhas chefes expressou o mesmo sentimento dez anos mais tarde.
“Você está fazendo tantas coisas diferentes”, ela disse. “Queremos que você esteja
por aqui por muito tempo, então, marque melhor seu compasso, está bem?”
Dois colegas me convidaram para almoçar, enquanto outro me telefonou.
“Estamos preocupados com você”, disseram todos.
Foi então que recebi uma carta. Era daquele tipo de antigamente, com um selo
no envelope. Abri e ouvi a voz da minha mãe enquanto lia. Ela também deve ter
ouvido o alarme. “Filho, uma árvore tem de ter raízes para oferecer sombra”.
Marque bem isso aqui, certo? Nós nunca fomos feitos para nos arrepender por
não estarmos em todos os lugares, para todas as pessoas, e tudo de uma só vez.
Fomos feitos para nos arrepender daquilo que tentamos ser e fazer.
Avançando pela limitação
Uma jovem mulher fez uma lista de tudo que não teria se escolhesse para si a
carreira de poeta. Avaliou seus amores mais verdadeiros e abandonou todas as
outras vidas possíveis e imagináveis por amor à vida de uma poetisa.7
Quando me tornei pastor eu não z tal lista. Nunca imaginei que se eu
dissesse: “Jesus, toma-me e leva-me a todo e qualquer lugar contigo!”, seria
possível que eu o visse dizer sim a outros com o mesmo pedido, enquanto dizia
não a mim (Mc 5.19).
Não é que a Bíblia não tenha me preparado para isto. O apóstolo Paulo
colocou uma lista parecida com essa da poetisa em plena luz do dia, para que
todos a vissem. Mas eu estava ocupado demais estudando 1Coríntios 12 ou
Romanos 12 para exames que requereriam o meu ponto de vista sobre línguas,
profecia, apóstolos e milagres. Na verdade, eu nunca havia tratado da mensagem
clara e simples das palavras de Paulo — ou seja, que algumas pessoas possuem
este dom, mas não aquele, e que esses limites revelam a provisão de Deus para o
nosso bem. Paulo diz que as mãos precisam dos pés e o olho precisa do ouvido.
Eu teria resistido, supondo que pudesse me tornar todos os quatro de uma só
vez!
Jamais teria imaginado que o chamado que me foi dado pelo amor de Cristo
poderia ser considerado “mais fraco”, “menos honrado” ou “não apresentável” em
comparação ao chamado de outros (1Co 12.22–26).
Pelo contrário, quando li na história de Jesus que Deus dá a alguns cinco, a
outros dois, e a outros apenas um talento, naturalmente eu presumi ter os cinco
(Mt 25.14–30). Quando li a história de Jesus sobre alguém cuja ceifa produziu
de cem, sessenta ou trinta vezes o que foi semeado, jamais imaginei que eu seria
o cara dos trinta, vivendo a vida à sombra de meus colegas que produzem cem
(Mt 13.18–23).
Meu ponto é o seguinte. Se quisermos usar os nossos dons, é requerido de nós
que tomemos um passo. Mas em qualquer direção que colocarmos nosso pé,
necessariamente deixaremos todas as outras direções vazias para os passos de
outra pessoa.
Assim, se Jesus tivesse me perguntado: “O que você quer que eu faça por
você?”, eu nunca teria respondido: “Senhor, desejo uma vocação que me limite e
me torne dependente dos outros”. Mas ca claro que eu deveria. “E ele deu a uns
para apóstolos, outros para profetas, outros para evangelistas, e outros para
pastores e mestres...”, Paulo diz (Ef 4.11). Como pastor, posso até ser apostólico,
mas não sou um apóstolo. Sou profético, quem sabe, mas não sou profeta. Sou
evangelístico, mas não um evangelista. A minha vocação, portanto, não é
itinerante e móvel como esses outros três.
Em contraste, eu sou pastor mestre. Pastor signi ca “pastor” mesmo. Os
pastores são os que retornam. Pastores permanecem quando o apóstolo, o
profeta, e o evangelista chegam e depois vão embora. Somos confrontados por
questões do coração aqui. O que signi ca para alguém viver uma vocação em que
se faz necessário aprender a voltar? O que signi ca abrir mão de uma vida
itinerante?
Aprender a car parado em um mesmo lugar me deixa inquieto. Raramente
em minha vida tenho visto pessoas que permanecem juntas em famílias ou
igrejas ou denominações. Como é que alguém que vem de um lar desfeito,
tendente a subir na vida, irrequieto por querer algo maior, mais notável e atual,
pode querer tornar-se pastor?
Jesus.

Aprendendo o nome das árvores


Fui criado no vale do rio Ohio, na região sudeste mais baixa de Indiana, perto de
Louisville, Kentucky. Muitas dessas cidades têm nomes de homens —
Charlestown, Georgetown, Scottsburg. Em Clarksville aprendi a ter con ança
no futebol e timidez com as garotas. Aprendi a dirigir em Floyd’s Knobs. Ainda
adolescente eu podia dirigir de olhos fechados pela estrada de Buck Creek.
Mas Henryville foi designada como a cola que grudou minha vida. Meu nome
está rabiscado em giz ali, num armário debaixo das escadas, na casa que meu
papaw construiu. A Igreja Metodista Unida de Henryvillle tem um longo, belo e,
por vezes, tumultuado relacionamento com minha família. O cemitério Monte
Sião dá repouso a muitos da minha gente — aqueles a quem tenho conhecido,
amado e de quem sinto saudades — e também aqueles sobre quem só ouvi falar.
De fato, as famílias de minha mãe e de meu pai, os Guernseys e os Eswines,
ambas têm suas raízes nesta pequena cidade. Meu papaw tinha uma caneca lá no
Tanners, reservada só para ele e seu amigo de longa data, que deram a si mesmos
o nome “clube de mentirosos”. Na maioria das manhãs, eles se assentavam para
desfrutar da companhia um do outro antes de começar o trabalho do dia.
Pessoas que moram em Henryville já trocaram a minha fralda. Me encontro com
elas nos enterros. Só por olharem para mim, dizem que devo ser o lho de Vern.
Foram os demônios que primeiro chamaram a minha atenção para o senso de
lugar que Jesus demonstrava (claro que me re ro àqueles demônios que a Bíblia
menciona). Não estou acostumado a aprender nada de demônios. Um homem
que tem pouco tempo para as árvores em seu terreno vai ter ainda menos tempo
para criaturas invisíveis. Mas o Evangelho de Marcos documenta uma conversa
entre Jesus e demônios. “Que temos nós contigo, Jesus Nazareno?”, eles
sibilaram. “Vieste nos destruir? Bem sei quem és: o Santo de Deus!” (Mc 1.24).
Primeiro, os demônios identi caram Jesus com Nazaré; e, segundo, sabiam que
este Jesus era o Santo da parte de Deus. Ponderei a conexão. Revirei-a na minha
cabeça. Jesus de Nazaré é o Santo da parte de Deus. O santo de Deus é Jesus de
Nazaré. De repente a luz acendeu. Vi o que me fugira antes. Se o Santo da parte
de Deus é Jesus de Nazaré, então o santo de Deus tem uma cidade de onde
procede.8 Aquilo que dá sombra tem raízes.
Jesus estava em um lugar, não em todo lugar ao mesmo tempo. Tinha uma
igreja de origem. Tinha uma família e um ofício conhecido, e às vezes era
desa ado pela sua comunidade (Lc 4.16–30). Se o rio Ohio está sempre
presente na minha criação, para Jesus era o rio Jordão. Eu pescava e andava de
barco nos lagos Patoka e Deam. O lago conhecido como Mar da Galileia oferecia
praias, águas e peixes para Jesus. Ele conhecia todos os atalhos e caminhos na
região da Galileia, da mesma maneira em que eu conheço os que são próprios do
vale do Ohio. O Santo de Deus tornou-se homem — e esta encarnação incluiu
limitar-se e habitar determinado local na terra.
Enquanto morava nesse lugar, Jesus conhecia o nome das árvores. Construía
com eles o que a sua mente imaginava e que sua habilidade desenvolvera no
tempo. Entre os aromas de madeira recém-cortada, os ossos e sangue das mãos
de Jesus formavam uma aliança. Elas davam forma e lixava longos troncos e
pranchas de madeira, que se transformavam em mesas e cadeiras.
Jesus transformava essas madeiras em artefatos durante o tempo que os
teólogos se referem como seus “anos de obscuridade”. Penso nisso quando me
lembro de Papaw e Mamaw visitando a minha casa em St. Louis. Eles me
disseram em poucos minutos o que eu não aprendi em dois anos — o nome das
árvores e dos arbustos na minha propriedade alugada. Andamos devagar. Eu
precisava escutar, mas escutar exige sossego. Eu lutava com ambas essas coisas
enquanto Papaw e Mamaw deram o nome a meu lugar por mim.
Estou tentando dizer como isso tudo me deixa inquieto! Fico confuso sobre
tudo que Jesus está fazendo entre as lascas de madeira. Você não ca? O que
signi ca essa serragem presa na barba de Jesus e pendurada do seu sorriso — e
toda essa obscuridade de casca de árvore durante trinta anos? Trinta anos! Jesus
tinha um mundo a salvar, injustiça a confrontar, leprosos a tocar. Será que a
grandeza por Deus não estava sendo desperdiçada pelos anos obscuros? Que
negócio é esse do salvador aprender o nome das árvores?

Subindo montanhas
Em meu mundo de colarinho branco de pastor, planejamos nos encontrar, e nos
encontramos frequentemente para planejar. “Em algum outro lugar estão
fazendo alguma outra coisa maior”, é o lema não falado de nosso avanço
missional. “Maior” signi ca mais santo e melhor. Como disse um pastor titular
ao explicar por que ele raramente gasta tempo com a sua equipe: “Teremos toda
espécie de tempo para nos reunir no céu. Mas agora temos um trabalho a fazer!
Temos almas a salvar e discípulos a formar”.
Essa ideia parece tão estranha ao carpinteiro de Nazaré! Em lugares como
Nazaré ou Henryville, avançar para algum outro lugar fazendo algo diferente é
raridade. Em contraste aos pastores e gente de colarinho branco, igrejas de
colarinho azul aprendem a testemunhar sobre o que viram ou ouviram nos dias
comuns, porque o dia ordinário é o grande evento do dia, porque é a grande
coisa que aconteceu. Aquilo que se viveu naquele dia torna-se o que realmente se
fala naquela noite.
Por exemplo, o sorriso da neta lá no conhecido supermercado torna-se em
história de quinze minutos, e que leva todo mundo a dar risada até doer a
barriga. Esse sorriso foi su ciente para ser notado e a história valiosa bastante
para ser contada. A risada, a história e o sorriso formam uma agenda su ciente
para a conversa. Nada mais se requer para passar tempo juntos. Nos meus anos
mais jovens, eu não prestava atenção ao comum que faltava. Enquanto eu me
tornava certo da minha vocação pastoral, queria conversas “reais” sobre a vida
“real”. Queria que falássemos sobre coisas importantes, coisas que faziam uma
diferença na vida. Agora, começo a re etir mais sobre esses sentimentos. Desde
quando falar sobre aquilo que vive não serve para uma conversa de verdade?
Desde quando o sorriso de uma neta não é mais assunto substancial para se falar,
especialmente para um pastor a quem foi dado testemunhar de Deus em um
determinado local?
Quando certa vez perguntaram a George Mallory por que ele queria escalar o
Monte Everest, ofereceu uma resposta que se tornou célebre: “Porque o monte
está ali”. Mas em uma carta pessoal à sua esposa, Ruth, ele revelou ainda mais
sobre o que o levava a subir a montanha. “Minha querida”, ele escreveu, “ ...você
deve saber que meu estímulo para realizar meu melhor é você, e você [...] quero
acima de tudo provar-me digno de você”. George deixou um legado signi cante
que provou ser digno de lembrança na história. Mas John, o lho de George,
escreveu algo que me desa ou. Orgulhoso de seu pai, mas também triste, John
escreveu: “Eu teria preferido tanto ter conhecido meu pai do que ter crescido à
sombra de uma lenda, de um herói, como algumas pessoas entendem que ele
era”.9
As respostas que George deu quanto a seus motivos vem confrontando as
minhas próprias respostas. A montanha “estava ali”, mas John, o lho de George,
também estava. A montanha trouxe um senso de alegria e lhe deu um senso
humano de luta para subir na própria vida. Porém, se George tivesse conhecido o
lho, teria trazido também alegria e um senso de luta pelo propósito da vida.
Subir a montanha capacitava George a se provar digno de sua família. Mas amar
e prover para sua família nas rotinas comuns de uma longa vida, dia após dia
também teria conferido essa dignidade. Então, por que George escolheu
enfrentar o desa o da montanha, mas não o de sua sala de estar?
Nessa altura, estou duvidoso, sentindo que estabeleci uma falsa dicotomia
entre, por um lado, o trabalho ou os sonhos de uma pessoa e, por outro, sua
família e rotina. A nal, não há nada moralmente errado com escalar o Monte
Everest. George Mallory era um professor de escola com três lhos. Embora ele e
Ruth estivessem geogra camente separados quase tanto tempo quanto juntos,
temos indicações de que isso não era fácil para George. Assim, tenho de reforçar
a pergunta: Por que George Mallory escolheu a montanha, quando entendia que
isso poderia tirar a sua vida?10 Por que a procura de Mallory por alegria,
signi cado da vida, valor da família, e lealdade para completar uma tarefa era
ligada mais a subir uma montanha do que às rotinas diárias de amar e viver, de
trabalhar e brincar reunido em sua casa?
Penso em meu Senhor, que aprendeu o nome das árvores de Nazaré.
Ouço o sussurro da Serpente.
E se, para muitos de nós, o corriqueiro fosse a maior montanha?

Aprendendo a retornar
Parece estranho dizer isto, mas os pastores de Belém oferecem textos de teologia
pastoral. Foram peritos em lidar com o anticlimático. Lembra-se?
Os anjos penetram os céus bem diante dos olhos desses pastores. Troveja em
coro a glória de Deus. Antigas promessas são cumpridas e testemunhadas. O
medo toma conta desses homens cuidadores de ovelhas. Boas novas lhes são
comunicadas: “Nasceu o Salvador, e este será o sinal que o con rmará”. Ver e
ouvir os anjos em si já era espetacular. Imagine como seria vistoso o sinal do
Messias. Talvez Deus estendesse sua mão para criar um novo planeta. Aí ele o
seguraria entre o dedão e o indicador e o colocaria em sua nova posição no
universo, bem ali diante de seus olhos! Com certeza este seria um sinal digno de
um salvador vindo de Deus!
Porém, aqui começa o anticlímax. Não foram formados planetas. “Encontrareis
uma criança, envolta em panos, deitada numa manjedoura”. O sinal da fama de
Deus estava deitado ali no aroma de gado e feno — a placenta de um novo
nascimento, os choros e o calor da vida comum.
Não havia forma altiva que pudéssemos conhecer,

Não havia halo sobre sua cabeça

Nem trombeta a tocar,


Nenhuma majestosa fanfarra a alardear.

Ele nasceu no comedouro dos animais.

A estes pastores comuns, Deus revelou maravilhas gloriosas e fantásticas!


Agora, o segundo anticlímax nos confronta. De acordo com o Evangelho de
Lucas, depois de contemplar e participar deste evento grande demais para
palavras, “os pastores retornaram” (Lc 2.20). Eles voltaram? Este fato me
confunde. Depois de contemplar a glória, os pastores voltaram para casa.

A mesma coisa velha


Como podia ser isso? Eram pastores, homens que trabalhavam com as mãos. O
aroma de animais e da vida no campo assumia residência na sua pele. Eram
operários de colarinho azul, gente do tipo sal da terra. Entendiam o que quer
dizer trabalhar no turno da noite. “À noite”, Lucas diz, eles vigiavam os seus
rebanhos (Lc 2.8). Vigiar, não cometer nenhum erro, é uma palavra de
adrenalina, que signi cava car de olhos abertos quando a maior parte da
comunidade estava de olhos fechados. Anos dessa espécie de trabalho criam
reclamação nas juntas e nos ossos das pessoas. Acrescente a isso a zombaria e as
piadas feitas contra o estilo de vida do pastor, e minha pergunta inquieta parece
ainda válida. Por que os pastores não tomaram o rumo da estrada?
Com tudo que viram, podiam ter começado uma série de conferências,
planejado uma turnê promocional para seu livro, e conseguido instantaneamente
milhares de seguidores de seu blog. Fazer a mesma coisa, no mesmo lugar, pelo
resto da vida era a sua sina e o seu legado. Eles podiam ter mudado tudo isso. O
momento de celebridade os encontrara. Grandeza é coisa digna demais para ser
diminuída pelo retorno às coisas ordinárias da vida!
Mas aqui, Deus em sua graça nos desconcerta. Com os pastores retornando,
parece que Deus deixa seriamente implícito que ver a glória de Deus, ouvir sua
voz, receber suas boas novas, e contemplar seu amor nunca deveria nos livrar da
vida e do amor comum em um lugar — ao invés disso, deveria prover o meio
para nos preservar ali.
Pare aqui por um momento. Não passe correndo por aqui. Não ignore o que
acabei de dizer.
A oportunidade de ser celebridade não remove as demandas de amor ao
próximo que ainda existem. Alguém ainda terá de cuidar das ovelhas, criar
roupas para as pessoas, prover leite e alimento para os vizinhos. Mesmo que os
pastores pegassem um ônibus de turismo e viajassem juntos, o seu chamado para
amar um ao outro e a seu próximo, comer, lavar suas roupas, procurar e conceder
perdão um ao outro em momentos comuns, assistir aos enfermos, celebrar
aniversários e buscar a Deus não iria embora.
Todo viciado sabe disso. O momento glorioso fornecido pela droga não remove
o chamado comum da vida. É esse o problema. O “barato” não dura. Caímos na
real, e nossos amados ainda estão ali, ansiosos por fazer coisas comuns na vida
juntos, sofrendo pelo que está sendo tirado deles.
Todo herói sabe disso. O homem que faz o gol ganhador da Copa do Mundo
sabe que amanhã à noite ou na próxima estação ele terá de começar de novo —
vem aí outro jogo. Ele ainda tem de aprender a escutar a sua mulher e a amá-la,
resistir ao apoquentar dos lhos, aprender como dar o coração com
autenticidade a Deus e receber amor e sabedoria de Deus para sua vida. O
bombeiro que salva uma vida, o executivo que salva o dia nanceiramente, a mãe
que salva o dia por seu lho — o momento que parece céu empolga e celebra.
Mas não é o céu.
Para os pastores “voltar” expressa a sabedoria de Deus. Retornamos à mesma
realidade velha, à mesma velha coisa, mas somos transformados e recebemos
poder para ali habitar e ter prazer naquilo que testemunhamos da sua graça.
Alguém poderá dizer: “Esse é um bom sentimento, mas a mídia social permite
que eu esteja em todo lugar o tempo todo. Os pastores não estão mais assim tão
limitados”.
Só posso lhes dizer que meu livro foi premiado. Aqueles que escutaram minha
entrevista na rádio foram grandemente ajudados e me zeram saber disso. Mas
dei a entrevista de pijama e olhos vermelhos, de uma casa de retiro na mata de
Missouri. Eu estava quebrantado. Nunca poderia ter falado pessoalmente
daquele jeito, e se tivesse tentado, eu teria de ngir muito. O meu ponto é que
não importa o quanto a tecnologia permite que nossos dons viajem, nós mesmos,
as pessoas que realmente somos, permanecem arraigadas em um só lugar em um
só tempo.
Eu o saúdo sentado em meu assento particular nessa cadeira especí ca com
esse velho e vagaroso laptop nesta sala. Não estou em todo lugar ao mesmo
tempo. Só estou aqui — em um lugar de cada vez. Na plenitude da humanidade
de Jesus, assim era também com ele. Para seguirmos a Jesus, temos de passear
por uma carpintaria em Nazaré.

Indo enquanto permanece no mesmo lugar


Várias vezes eu tenho falado a pastores que anseiam deixar o seu lugar e
chamado atual, não corretamente, por causa do esgotamento ou segurança para
si mesmos ou para suas famílias, mas devido aos limites e tédio ou trabalho duro
que encontram em meio ao terreno rochoso do mesmo lugar e da mesma coisa.
Permanecer parado enquanto outros colegas parecem avançar e subir para
chamados mais empolgantes e aparentemente mais in uentes do ministério, em
meio a uma cultura que os elogia e nos ignora, só intensi ca essa inquietação.
Então, esses pastores se aplicaram a outros chamados, mas nenhuma porta se
abriu para que saíssem. Com propósitos que só Deus sabe, aquele que governa a
providência tem em mente que eles permaneçam mais tempo do que querem. Na
minha própria inquietação, às vezes tenho voltado não só para a mentoria dos
pastores do primeiro natal, como também aos exilados de Jeremias 29. Primeiro,
eu o faço para lembrar a mim mesmo que, como os antepassados da fé, ter de
car no lugar onde estou não possui o nível de sofrimento que talvez eu
erradamente imagine. Segundo, é aprender o que signi ca seguir a Deus quando
estou num lugar que desejo deixar.
Em Jeremias 29, dois tipos diferentes de pregadores estão fazendo sermões aos
exilados. O primeiro é Jeremias. Jeremias fala da parte de Deus. Diz aos exilados
que eles terão de reinventar a vida onde eles se encontram. Não vão para outro
lugar nos próximos setenta anos. Isso signi ca que todos, com exceção dos bebês
nascidos naquele tempo, terão falecido e suas vidas já terão terminado. Os bebês
terão vivido a maior parte de suas vidas antes do tempo em que terão a chance de
voltar “para casa”. Esta mensagem é dura de engolir.
Um outro grupo de pregadores está dizendo o contrário. “Não nquem suas
raízes!” “Deus não iria manter vocês exilados desse jeito!” “Ele vai tirar vocês
daqui!” “Sonhem, mexam-se, arrumem a bagagem; este lugar é temporário;
aprontem-se para mudar!”
Qual igreja você prefere frequentar se estiver no exílio? Acho que eu também
preferiria não escutar a Jeremias. De fato, durante toda minha vida um versículo
dessa passagem tem sido citado para lançar uma visão para meu futuro e o seu.
“Eu é que sei que pensamentos tenho a vosso respeito, diz o S ;
pensamentos de paz e não de mal, para vos dar o m que desejais” ( Jr 29.11).
O que não percebo quando assumo essa maravilhosa promessa é que quase
todo mundo que originalmente ouviu essa promessa sabia que nunca iria
experimentar a sua realização em Jerusalém, onde eles queriam estar. Eles
tiveram de lidar, em vez disso, com a verdade de que o futuro e a esperança com
Deus tomariam o lugar certo onde eles estavam, isto é, no exílio – lugar onde
iriam viver e morrer. Os seus bisnetos experimentariam a plenitude do futuro e a
esperança de voltar para Jerusalém. A próxima geração iria começar a se mover,
mas não eles. O que signi ca para nós se, o futuro e a esperança que Deus tem
em vista para o nosso bem, no m das contas, implica em que teremos de con ar
nele exatamente onde estamos?
Eles querem ir embora, mas Deus estará com eles na cidade onde estiverem. A
cada dia olharão novamente para Deus a m de cultivar um lugar em que viver,
fazer seu trabalho, amar, casar, cultivar uma herança para a família, e realmente
buscar o bem da cidade que queriam deixar, enquanto cultivam uma vida de
oração habitando nela ( Jr 29.5–7).
Isto signi ca que Deus estará com eles para sustentá-los e ensiná-los, o que
implica em andar com ele em meio a obstáculos que prefeririam não ter de
enfrentar.
• Limites. Terão uma vida na qual não poderão estar em todo lugar em geral e
em nenhum lugar em particular. Não somente terão de decidir o que farão,
como também terão de se entender com aquilo que não poderão fazer.
• Ambições. Terão de aprender a reorientar as suas ambições para o bem da
glória de Deus e do seu próximo, naquilo que é o comum da vida, para o bem
de seu lugar.
• Frustrações. Terão de suportar imperfeições, irritações, desgostos e
di culdades.
• Emoções. Aprenderão que aquilo que nos faz alegres, tristes, zangados ou
assustados, não pode ser resolvido apenas por uma mudança geográ ca.
• Espírito crítico. Serão tentados a “ligar os pontos” de tudo que está errado.
Eles aprenderão a gratidão neste lugar.
• Sofrimentos. Terão de estar no mesmo lugar das pessoas que os feriram ou
sobre os quais falaram mal. Aprenderão sabedoria e cura neste lugar.
• Tempo e medidas de progresso. Setenta anos (aprenderão paciência neste
lugar).

Exultando na monotonia
Mas como retornarmos dia a dia para congregações e situações em que nos
sentimos inquietos pela vontade de ir embora?
Retornar a essa comunidade signi ca sofrer. Como eu volto para perdoar ou
suportar narrativas a meu respeito acerca de algumas coisas?
Existem lugares aqui que me entediam. Quando os vejo, sinto que já voltei.
Como eu retorno à chatice?
Aqui existem pensamentos, emoções e histórias. Quando as ouço, co
assoberbado. Como voltar para aquilo que eu não consigo consertar?
Há beleza aqui, e esperança, o anseio por redenção e propósito. Como retornar
sem desprezar esses dons por causa de minha dor, meu tédio, minha
incapacidade?
Tais questões iniciam discussões dentro de mim. Então, olho pela minha janela
em Webster Groves ou Henryville ou onde quer que estivermos. “O S é
meu pastor”, podemos dizer. “O meu pastor é um daqueles que retorna. Ele
retorna para aqui também. Toma-me pela mão ou me carrega até o dia, vez após
vez, e vez após vez. Ele volta, e nós encontramos esperança em sua companhia
aqui. Ele está nos ensinando a ‘exultar na monotonia’.” Não tudo de uma só vez,
mas aos poucos, com o passar do tempo.
Porque as crianças têm abundante vitalidade... elas sempre dizem: “Faz de novo”, e a pessoa
crescida faz de novo quase até morrer. As pessoas adultas não são fortes o bastante para exultar na
monotonia. Mas talvez Deus seja forte o su ciente para exultar na monotonia. É possível que
Deus diga, cada manhã, ao sol: “Faz de novo”; e a cada anoitecer, à lua: “Faz de novo”. Pode não
ser uma necessidade automática que todas as margaridas sejam parecidas; pode ser que Deus
tenha feito cada margarida em separado, mas não se canse de criar nenhuma delas em
particular.11

Aos poucos, estou começando a ver aqueles pastores do Natal como se, tempos
mais tarde, eles sentassem ao redor da fogueira no frescor da noite — com lhos
e netos olhando xos o crepitar e bruxuleio do fogo, de olhos sonolentos,
prontos para dormir.
A glória não os havia livrado da lide diária. Não havia livrado das mãos de
Herodes, da matança de todo menino abaixo de dois anos de idade, da ocupação
romana ou de uma igreja corrupta que no m gritaria: “Cruci ca-o!” Ver a glória
não os livrou disso.
No entanto, um pastor idoso remexe as brasas e diz: “O seu velho avô já lhe
falou do tempo quando os anjos...” — De repente um coral de netos interrompe.
Com a expressão de “outra vez”, eles gemem: “Sim, vovô, já ouvimos essa história,
muitas vezes!”
O velho cutuca a madeira que queima. Faz uma pausa, direcionando o olhar
para os jovens olhos dos netos. Seu sorriso só ca mais largo. “Deixem que eu
conte de novo”, ele dirá. Enquanto os novinhos reclamam desse exultar na mesma
velha história, o homem idoso demonstra ausência de fadiga. Com senso de
maravilha, espanto e lembrança em sua voz, e uma baita dor nas costas devido ao
longo dia, começa a recontar a história. “Era uma noite ordinária, e estávamos
vigiando nossos rebanhos”, diz ele.
Assim surge uma exaltação entre a monotonia. Adoração, esperança e
testemunho recusam parar. Ao falar, o velho está olhando de novo as margaridas,
e a mesma velharia está trazendo vida à sua rotina. Por um momento eu sinto a
sua alegria por entre as ovelhas. Os seus lhos e netos crescerão e indagarão com
senso de maravilha. Algo maior que essa velha barraca e os dias compridos
colocaram fogo no coração e na vida do vovô e em seus olhos. É quase como se
ele tivesse uma notícia, como se Deus estivesse com ele, aqui entre os currais das
ovelhas nessa encosta imperdoável, desconhecida pelo mundo, mas conhecida
por Deus.

Fechando o círculo todo


Uma declaração do velho Samuel Rutherford tem sido minha companheira.
Con nado a um só lugar pelas autoridades de sua época, devido à sua fé, ele
escrevia cartas.
O grande Mestre Jardineiro, Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, em sua maravilhosa providência,
por sua própria mão, me plantou aqui, onde, por sua graça, nesta parte de sua vinha, cresço; e aqui
habitarei até que o grande mestre da vinha considere propício me transplantar.12

Falei sobre essas coisas a Mamaw antes dela morrer. Sentávamos sobre velhas
cadeiras em Henryville.
“Há muito tempo estou pensando em sair daqui”, eu lhe disse. “Agora parece
que estou triste por causa da distância e da ausência”.
“Bem”, disse ela, olhando as paredes como se elas fossem janelas, “parece que
você já deu uma volta inteira”.
Isso é o que as raízes requerem de uma pessoa que não está em nenhum lugar
especí co. Ela precisa dar a volta completa e encontrar a graça de dizer: “Faça de
novo” às belezas comuns a seu redor. Temos de aprender a contar velhas histórias
nos lugares conhecidos, entre pessoas a quem aprendemos a conhecer
profundamente. Temos de crer que isto basta para dar signi cado à vida. Como
aprender a realizar esse trabalho de retornar, exceto por meio daquele que
conhece o nome de todas as árvores? Aquele que nos chamou para onde estamos
declara que não precisamos nos arrepender por estar em apenas um lugar de
cada vez. Você não precisa se arrepender por realizar apenas uma pequena obra
em um lugar extraordinário, mas desconhecido. Permanecer de pé em um só
lugar por algum tempo permite que as raízes se aprofundem. Permite que os
pastores se tornem pastores. Devagar a sombra cresce e entrega a vida. É Jesus de
Nazaré que anda com você.
Mary Oliver, Writer’s Almanac website, acessado em 7 de fevereiro de 2015. http://
writersalmanac.publicradio .org /index .php ?date=2011 /09 /10.
Mt 13.54; Lucas 2.4, 39, 51.
David Breashears and Audrey Salkeld, Last Climb: e Legendary Everest Expeditions of George Mallory
[Última subida: As lendárias expedições de George Mallroy ao Everest], (Washington, DC: National
Geographic, 1999).
Após seu desaparecimento no Everest, amigos mais chegados diziam que Mallory havia tomado a decisão
com pressentimentos, dizendo-lhes que o que ele enfrentaria desta vez seria “mais como guerra do que
aventura” e que duvidava que voltaria. Sabia que ninguém o criticaria se recusasse ir, mas sentia compulsão.
É impossível dizer agora se esses eram mais que momentos passageiros de sentimento de culpa por ter de
deixar sua esposa Ruth mais uma vez com toda a responsabilidade por seus lhos pequenos. Seja o que for,
uma vez mais na estrada para o Tibet, Mallory era sua personalidade enérgica e animada. “Sinto-me forte
para a batalha”, escreveu do acampamento da base para Ruth, “mas sei que cada grama de força será
necessário. Tenho de olhar do ponto de vista da lealdade à expedição” escreveu a seu pai num momento em
que vacilava, “e de cumprir uma tarefa iniciada”. Audrey Salkeld, “Mallory”, http:// www .pbs .orgwgbh
/nova /Everest /lost /mystery /Mallory.htm.
G. K. Chesterton, Orthodoxy: e Romance of Faith (New York: Image Books, 1990), 60.
Samuel Rutherford, e Lovelineness of Christ: Selections from Samuel Rutherford’s Letters (Edinburgh:
Banner of Truth, 2007), 1.
6 | Consertar tudo
Vi um homem à beira do rio, coberto de lama até os joelhos. Alguns vieram ajudá-lo a sair, mas o
empurraram mais fundo, até ao pescoço.
–B W

Os pastores são aqueles que retornam.


Às vezes voltamos às cinzas, ao rasgar das vestes.
Às vezes voltamos a rosnadas e dentes assassinos dentre as sombras das tochas.
Fechamos os punhos. Miramos nossa espada em direção à orelha do inimigo.
“Abaixe sua espada”, diz o mestre cercado de lobos.
Não é de admirar que queiramos fugir correndo.

Varandas quebradas
Lá estava ela deitada na varanda da frente, enrolada como uma bola, descalça e
de pijama, em posição fetal contra a porta de chapa de alumínio. Sua mãe
chorava, mas mantinha a porta fechada, instigada pelo marido a manter Lori
para fora. Exasperado, o pai tentava consertar a situação à força, com “amor
severo”. Eu e mais dois presbíteros tínhamos andado pelas ruas do bairro em
busca de Lori. Só sabíamos que “ela fugiu de novo”. Nossa busca terminou na
varanda da frente. Ali estava Lori deitada, para fora, trancada em suas lágrimas, e
nós estávamos ali, cobertos e também trancados em nossas lágrimas.
De alguma forma, eu não imaginara que um ministério vivido em nome de
Jesus signi caria que minha vida andaria por entre varandas como esta. Não sei o
porquê. Um pastor cumpre sua obra entre os fracos, os doentes, os feridos, os
desgarrados e os perdidos da vida (Ez 34.4–5). O pastor, em contraste ao
mercenário contratado, aprende a amar entre os lobos, porque é isto que as
ovelhas fazem. Ele cuida delas no meio desses perigos ( Jo 10.12–13). No seu
livro Strong at the Broken Places, Richard Cohen coloca em termos claros: “Nós,
os feridos, estamos por toda parte”.13
Eu não tinha a mínima ideia de que os pastores pudessem tentar evitar dias
maus para promover sua própria segurança e avanço pessoal. Se a aversão do
pastor a coisas quebradas, ou sua impaciência com essa espécie de intrusão em
seu dia for desa ada, é possível que ele se torne forçoso e severo, até mesmo com
o seu rebanho (Ez 34.4).
Agora eu entendo a ferida e a tentativa de controlá-la, ainda que por meios
duros. Ali, nas varandas de pessoas feridas em todo lugar, sentimo-nos fora do
controle, fortemente tentados a lutar por algo como a onipotência — a posse
imediata de poder sem limites: “Vendo a mulher que a árvore era boa... tomou-
lhe do fruto” (Gn 3.6).
Em varandas quebradas existe pouca surpresa de que a oferta da serpente
reluza e brilhe pedindo preferência. “Vocês serão como Deus”, a serpente
prometeu (Gn 3.5). “Com certeza não morrerão”, sibilou (v. 4). Como pastor,
desejo essa espécie de promessa, e se não tiver cuidado, tomarei de seu
amaldiçoado fruto. Posso ser deus para eles na varanda. Posso consertá-los.
“Não é tão ruim assim”, posso lhes dizer. “Vocês não vão morrer de verdade, vou
fazer com que isso seja bom para vocês”, eu direi. “Farei isso passar”. Qualquer
coisa que possa agarrar, comer ou dizer que farei, qualquer coisa para me sentir
capaz de fazer algo construtivo em meio à minha incapacidade. Arranho e agarro
para me tornar onipotente nessa varanda. Procuro usar estratégias que não são o
evangelho para consertar todas as coisas que estão quebradas. Todos nós
fazemos isso.

Multiplicando Palavras
No meio dos ferimentos, às vezes camos dizendo: “Você não deve fazer isso”.
Ao pregar sobre o pecado de Davi, por exemplo, a minha tendência era dizer:
“Está vendo o que ele fez? Ora, não vá fazer isso”. O problema, claro, é que Davi
já havia pecado, como muitos dos que me escutavam naquele momento. E daí?
Da mesma forma, quando se trata de cuidado pastoral pessoal, o que se pode
dizer ali na varanda, quando você está à frente com a Bíblia na mão? Podemos
dizer o quanto quisermos: “Não que aqui!”, ou, “Você não deve fazer isso!”. O
problema é que todo mundo já fez e já é. E agora? Será que existe esperança no
evangelho?
Impacientes por uma resposta e um remédio, começamos a multiplicar
soluções. Consequentemente, alguém como Jó não somente terá de suportar
tudo que sofre, também terá de lidar com a inundação de textos, e-mails, cartas e
telefonemas daqueles que estão tentando endireitá-lo em nome de Deus.
Provérbios nos lembra de olhar pela nossa janela para escutar o que o mundo
de verdade pode estar dizendo (Pv 7.6–23). A vista e os sons podem parecer
trágicos, como quando se está na sala de uma coordenadora de ministério e seu
marido. Não é uma varanda, mas o estrago permanece ali.
“Não sou mais cristão!”, ele grita com ela.
“Você não tem de seguir a Jesus para continuarmos casados e encontrarmos
uma boa vida”, ela responde. “Eu sou sua; tenho compromisso com você.
Podemos fazer aconselhamento. Podemos pedir ajuda”, ela lhe assegura.
“Eu não vou fazer aconselhamento junto com você e não vou pedir ajuda,
especialmente de Deus”, ele declara. “Estou cansado da hipocrisia das igrejas.
Odeio essa vida”, retruca.
“Eu peço demissão amanhã mesmo”, ela implora. “Não preciso estar em um
ministério na igreja. Vamos começar de novo”, pede ela. “Eu amo você”, declara.
“Mas eu não amo você e nunca amei”, ele retruca. “Não quero car com você.
Nunca quis”.
Ela está calada. As suas palavras começam a falhar. Talvez, enquanto você a
escuta, as suas palavras também sumam.
“Para mim, esse casamento acabou há dez anos”, ele revela.
“Você não quer dizer isso”, ela murmura. “Não posso acreditar que isso seja
verdade”.
Você observa que ela quase diz as próximas palavras para ela mesma, em vez de
falar a ele. “E os nossos lhos, nossas lembranças, nossa vida juntos em todos
esses anos?”
“Eu preciso respirar”, diz ele ao se levantar do sofá. “Já acabou para mim”.
Naquele momento, quando as suas palavras falham, você vê que ela faz algo
que nunca fez em quinze anos de casada.
O que um arremessador de beisebol faz quando o outro time rebate o seu
melhor arremesso? Onde é que o “trenzinho” vai quando enfrenta uma
montanha maior que todas as outras, íngreme demais para ser vencida? O que
acontece quando o trenzinho não consegue? Sem resposta, vendo-o
simplesmente se afastar e ir embora, sem palavras para fazê-lo parar, ela se
levanta, o agarra e tenta bloquear o caminho com seu corpo. Ele vai para um
lado, e ela também. As palavras dissolvem com a força de vontade.
“Eu não vou deixar você ir embora!”, ela grita.
“Deixa eu passar!”, ele grita, e começa a empurrá-la.
A consciência a chama. Ela deixa ele passar, mas depois cede novamente a
palavras que se multiplicam. Ela vai atrás dele pelo corredor, pela sala de estar,
até a porta da frente da casa.
“Me deixe em paz!”, ele grita, batendo a porta atrás dele.
“Eu não vou deixar você!”, ela berra atrás da porta.
“É isso mesmo!”, ele grita ao andar até o carro. “Eu é que estou deixando você!”

Espalhando palavras bíblicas por todo lado


Nos dias seguintes, você observa como os amigos, membros da família e gente da
igreja multiplicam as palavras. “Você descuidou da sua aparência. Precisa car
mais bonita para que ele a note mais”, outra lhe diz.
Agora multiplicam-se as palavras da Bíblia. “Ele só precisa saber o que a Bíblia
diz, e fazê-lo”, um pastor lhe diz. Somos tentados a lançar versículos contra as
pessoas quase como se fosse um encantamento. Às vezes agimos com se houvesse
poder até mesmo só em dizer as palavras, como um feiticeiro que recita seus
encantamentos. Fale as palavras corretas e o encantamento dará certo. Se falar
errado as sílabas, a mágica não funciona.
Mas a presença de coisas que não podemos controlar ou consertar
imediatamente nos lembra de que, embora a Bíblia seja a revelação de Deus, ela
em si mesma não é uma solução mágica. Ela alumia nosso caminho por seu
Espírito, mas nem sempre poderá nos proteger daquilo que ele nos mostra ali.
Somente o Cristo que os versículos bíblicos revelam pode fazer isto.
Marque bem isto aqui: Um dos primeiros sinais de que estamos nos
aproximando das margens de tentar ser onipotentes é este: acreditamos que
outro esteja escolhendo um curso de ação porque ele (ou ela) simplesmente está
confuso sobre o que é certo. Assim, acreditamos que se nos esforçarmos bastante
para explicar a verdade, ele ou ela obviamente e imediatamente fará o que é certo.
Ninguém foi mais claro, verdadeiro e razoável que Jesus, e eles o cruci caram. A
clareza é muito importante. Mas a clareza nem sempre consegue solucionar ou
consertar as coisas que estão quebradas.
Imagine como teria sido a varanda naquela manhã se tivéssemos acreditado
que a melhor esperança para aquela moça, para sua mãe e seu pai, em meio às
ruínas, fosse nosso palavreado de fórmulas prontas, nossas múltiplas
pomposidades preenchendo todo o espaço, a dor e o silêncio? Os amigos de Jó
acertaram ao sentarem-se em silêncio, nas cinzas. O prejuízo começou quando
começaram a falar. Jesus se assentará nas cinzas de varandas quebradas de nossa
vida e nos ensinará a con ar nele mais do que em nossas muitas palavras.

Levantando a voz e apontando o dedo


À medida que falham as palavras para resolver o problema, aqueles que estão
envolvidos começam a falar mais alto e a mirar o caráter. Jó não estava acima da
necessidade de correção e crescimento. Mas os ataques a seu caráter feitos pelos
seus amigos estavam errados e eram cruéis.
As pessoas que querem consertar tudo pensam assim: Não é possível que estas
coisas estejam assim. Elas já deviam estar se endireitando. Deve haver alguma coisa
escondida que está errada. Temos de falar mais um pouco, mas desta vez com mais
rmeza, mais força, mais confrontação. Quando isso acontece, tornamo-nos como
aquele que fala mais alto com a pessoa cega ou levanta a voz para o estrangeiro
que fala outra língua.
Agora, imagine novamente a situação da diretora do ministério. Talvez alguns
homens e mulheres se tornassem descarados apontadores de dedo e a
chamassem de hipócrita. Eles remexeriam à procura de algum pecado escondido
em sua vida, migalhas e bocados para conversas e orações.
Ela merece ser culpada. Precisa crescer e mudar além do que sabe. Mas neste
caso, os seus pecados não são do tipo feito para programas de conversas de
televisão. Ela não possui nenhum escândalo escondido em seu armário para as
revistas de fofoca. Os seus pecados e seus limites não justi cam o marido
abandoná-la. Contudo, a comunidade de Jesus, por trás de portas fechadas, é
tentada a cochichar especulações obscuras nas reuniões que começaram com
oração. Assim, às vezes a varanda não basta. Deve haver alguma sujeira por trás
dela. Impacientes com as coisas que não estão consertadas, enchemos o espaço
com o pensamento rápido e especulações velozes. Criamos cenários podres e os
relatamos.
“Você não teve um caso?”, “Você ca enchendo a paciência dele? Você está
ensinando mal os lhos? O que foi que você fez para ele ir embora e estragar o
seu ministério?”
É mais fácil tratar de uma doença de nome claro e causa precisa. Ficar sentado
no consultório médico entre a falta de um diagnóstico e dias sem m de “eu não
sei” é muito mais difícil. Detestamos os sentimentos que acompanham os
momentos incontroláveis e impossíveis de consertar. Não sabemos como passar
um dia com sentimentos vagos, e assim nos debatemos e derrubamos a louça dos
armários. Pelo menos estamos exercendo nosso poder, justi camos. Sentimos
que estamos fazendo alguma coisa.
Escrever um longo e prosaico tratado em e-mail pontuado por palavras
MAIÚSCULAS também pode dar a sensação de poder. Mas no nal, tem
pouca força como palavras racionais para consertar aquilo que nos perturba.
Imagine como teríamos tratado aquele encontro na varanda se acreditássemos
que tratados de letras MAIÚSCULAS desfariam o problema e o controlariam?
Imagine se tivéssemos projetado sobre a moça, sobre a mãe e sobre o pai coisas
piores do que as que realmente estavam ali, e enchêssemos a varanda já detonada
com os nossos dedos acusatórios?

Temor e intimidação
É possível então começar a praticar o temor e a intimidação como estratégia de
liderança ou “cuidado pastoral”. Podemos começar a gritar, ameaçar, tentar
induzir verbalmente ou mesmo sicamente, e mesmo dar o tratamento silencioso
àqueles que estão na varanda.
O problema é que temor e intimidação funcionam enquanto a cura no
evangelho não for o nosso alvo. Lembro-me de um líder de ministério que lutava
com uma crise pessoal. Um presbítero foi incumbido de cuidar desse líder e
formou uma delegação o cial que se encontrasse com ele “para saber como
cuidar pastoralmente dele”. Mesmo que o alvo declarado fosse o cuidado pastoral,
a reunião falhou, tornando-se interrogatório, e acabou gerando acusações e
palavras duras da parte de todos. O presbítero compartilhou comigo sobre o
quanto se sentia mal sobre essa situação. Disse ele que cedeu à pressão de saber
que os outros envolvidos iram fazer perguntas muito duras, e teve de se certi car
de que nada casse sem ser revelado, a m de aplacá-los. Tendo em mente o
exame que fariam, ele chegou a apontar para o homem carente de ajuda, de cara
vermelha de intensidade, chamando-o de hipócrita. Conheço bem essa tentação.
Dentre nós que estamos no ministério pastoral, a maioria faz isso: buscamos a
aprovação de alguém, em nossa imaginação ou na realidade, em vez do evangelho
de Jesus, e tropeçamos.
O ponto principal é que o medo, a intimidação e as ameaças não consertam a
moça com anorexia que se encontra em posição fetal na varanda, enquanto sua
mãe e seu pai desmoronam numa avalanche de ansiedade.
Faça uma pausa aqui, por favor? Releia a última sentença.

Defensividade
A defensividade também não vai nos ajudar. Minha defensividade vem, em sua
maior parte, em estouros de emoção — lágrimas, súplicas, declarações fortes.
Outros se defendem redigindo listas calmamente. Os que fazem listas se
defendem do jeito que eu imagino que os sacerdotes da história do bom
samaritano devem ter feito. Seu pecado não era de comissão — algo que zeram.
O seu pecado era de omissão — algo que eles não zeram. Ao deixar o homem
surrado e alquebrado ao lado da estrada, poderiam facilmente ter se defendido.
Poderiam prontamente demonstrar que já tinham cumprido todo o dever
daquele dia sem jamais chamar atenção ao homem caído. A nal de contas, a sua
presença não estava dentro das suas responsabilidades normais. Se alguém
descobrisse o homem ferido, o que toma nota dos acontecimentos poderia ter
mostrado que eles não zeram nada de mal àquele homem, e os justi caria
respectivamente por haverem tratado do caso como zeram.
A primeira espécie de defensividade, o estouro emocional, é fácil de ver e faz
com que as outras pessoas se remexam para reassumir o controle. O segundo
tipo, documentação, funciona para manter todo mundo mais confortável,
aparentemente mais em controle, com detalhada defesa, e assim, nossa
capacidade de reconhecer esse substituto ao evangelho leva muito mais tempo.
De qualquer modo, a defensividade só prova o ponto do nosso
quebrantamento e exagera nossas falhas aos olhos dos outros, particularmente se
essas outras pessoas já enxergam aquilo que querem que seja verdadeiro a nosso
respeito, em vez do que realmente é verdade sobre nós. Defensividade não tem o
poder de cura.
Fico sentado por um tempo com um amigo. “A ira não produz o reino de
Deus”, ele me diz gentilmente. Ficamos sentados no silêncio tomando chá.
Sentamo-nos nas cinzas e esperamos juntos. Esperamos por Jesus. Aos poucos,
ele dá a força para nos aquietar quando a calúnia continua, silentes quando falam
mal de nós, con ando nossa reputação cada vez mais a ele e cada vez menos às
nossas palavras, emoções ou documentação.
Não fomos feitos para nos arrepender por não conseguirmos consertar todas
as coisas. Devemos nos arrepender por termos tentado. Mesmo que pudéssemos
ser Deus para as pessoas e consertar tudo, permanece o fato de que,
frequentemente, Jesus não tem em mente essa espécie de “conserto” que você e eu
desejamos.

As coisas inconsoláveis
Não se pode consertar as “coisas inconsoláveis”. As coisas inconsoláveis são
identi cadas primeiro pelos “não podes” do ensino de Jesus. Por exemplo, não
importa quem somos, “ninguém pode servir a dois senhores”, ninguém (Mt
6.24). Mesmo que sejamos sábios e, por sua graça, conhecedores, ainda há coisas
e estações na vida em que “não o podeis suportar agora” ( Jo 16.12). Por maior
que seja a força de vontade da pessoa, “Como não pode o ramo produzir fruto de
si mesmo, se não permanecer na videira, assim, nem vós o podeis dar, se não
permanecerdes em mim” ( Jo 15.4). Não importa quantos juramentos zermos
ou quanto torçamos as palavras em jactância, “não podes tornar um cabelo
branco ou preto”, Jesus diz (Mt 5.36).
Esses “não podes” de Jesus nos ensinam que a doença, morte, pobreza, e o
pecado que nos assedia e infesta o ser humano, não serão removidos com base no
esforço humano, por mais forte, piedoso ou sábio que seja seu esforço. Por isso é
que Jesus nos ensina que a fé do tamanho de um grão de mostarda pode mover
uma montanha e “nada vos será impossível” (Mt 17.20). Assim, levamos a fé ao
que nos perturba. Parece até que não há nada no mundo que não possa ser
consertado se tivermos a mínima semente da fé. Mas essa não é a conclusão que
Jesus nos mostra. Embora nada nos seja impossível pela fé, “os pobres, sempre os
tendes convosco”, Jesus diz (Mt 26.11). Surge o paradoxo. Quanto à pobreza,
não existe garantia ou decisão sempre a seu favor. Você tem de entrar na roda
com fé, sabendo que você não ganha do jeito que você quer.
Também não temos o poder de produzir as coisas que crescem. Por “coisas que
crescem”, eu me re ro ao fruto que nós, pelos nossos ministérios, esperamos
produzir. Não me entendam mal. Podemos realizar trabalho pastoral
signi cativo entre as coisas que importam, mas só Deus pode dar o crescimento
(1Co 3.6–7). Jesus nos ensina que o poder de dar salvação é inconsolável no que
nos diz respeito. Não podemos, por nós mesmos, dar às pessoas o novo
nascimento em Deus ( Jo 3.3–5). Não temos como justi car a alguém, torná-la
justa, santa, adotá-la, convencê-la do pecado ou transformar o seu coração (Lc
19.27; 1Co 12.3). Não existe nada que possamos fazer no ministério que não
requeira a ação de Deus, se o verdadeiro fruto for produzido ( Jo 15.5). Tudo que
os pastores esperam que ocorra na vida de uma pessoa com Deus permanece fora
do poder do próprio pastor.
Também não conseguimos consertar a ausência de paz do jeito que as pessoas
muitas vezes querem que façamos. Por quê? Porque Jesus dá a paz, mas não do
jeito do mundo ( Jo 14.27).
Conheci Estevão anos antes, em meu primeiro estudo bíblico na Casa de
Repouso Grand Village. Ele foi o único a assistir no meu primeiro dia. Eu estava
nervoso e com pressa de fazer uma oração para terminar rapidamente a reunião.
Mas esse dono de uma medalha Purple Heart (maior honra para o militar que se
destaca em serviço ao país) tinha em mente outras ideias. “Padre, eu não tenho
ido à igreja em mais de cinquenta anos”, ele me disse. Eu não era católico, mas
para este homem de noventa anos de idade eu era o “Padre”. “Deus nunca
poderia me perdoar por tudo que já z na vida”, disse ele, enquanto olhava além
de mim para um mundo que lhe causava dor. Naquele dia, a graça deu-me
palavras para falar de Jesus e seu perdão. Jesus atraiu Estevão para si.
Agora, Estevão estava no hospital. Suas mãos foram amarradas porque ele
cava arrancando os tubos dos braços. Estava preso a um mundo de alucinações.
Mandou que eu tomasse cuidado com o carteiro que estava ali no pé da cama,
querendo me prejudicar. Garanti a Estevão que estava tudo bem comigo. Disse a
ele que eu o amava. Ele não deu nenhuma indicação de que me ouvira. Estava
inquieto e gemia no mundo que imaginava. Fiquei ali sentado por longo tempo.
Cantei. Orei. Durante todo esse tempo, Estevão não me reconheceu. Então, na
hora em que eu ia embora, abaixei-me e disse: “Eu amo a você, Estevão”.
Ele atirou-me um olhar. O remexer-se, os gemidos e as ilusões deixaram seus
olhos. Por um momento ele me viu com clareza. “Eu te escutei da primeira vez!”,
declarou. Então, por mais um instante, olhamos um para o outro e nos vimos um
no outro. Esse momento passou, e a confusão voltou. Mas o amor se a rmava
ali, por entre as alucinações, e as mãos amarradas, e a mente que ia se perdendo.
Há uma espécie de paz que Jesus dá, que vai aonde outros tipos de força não
conseguem. Faz o que outras espécies de poder não podem.
O seu poder se encontra quando cantamos “Maravilhosa Graça” para uma
mulher numa casa de repouso, chiando no escuro, procurando respirar. Cantar
de sua graça faz com que os pulmões relaxem, e a respiração que mais fácil. A
morte não vai parar. Coisas inconsoláveis não cessarão, ainda não, por mais um
tempo. Mas chega a graça. Algo mais poderoso do que a morte canta ao seu lado
e segura a sua mão.
Não podemos fazer tudo o que precisa ser feito. Isso quer dizer que Jesus nos
ensinará a viver com as coisas que não podemos controlar nem consertar. Vamos
querer resistir a Jesus e agir como se fôssemos onipotentes, mas quando
tentamos isso, só ferimos aos outros e a nós mesmos. Outros também resistirão a
Jesus. Usando o seu nome, nos louvarão ou criticarão, nos promoverão ou
descartarão, de acordo com o seu desejo de que consertemos tudo por eles e que
o façamos imediatamente. Mas eles também precisarão aprender que só Jesus é
capaz de consertar todas as coisas, e que existem coisas que Jesus deixa sem
conserto para a sua glória.
Isso é excruciante, às vezes. Todo dia entramos em situações nas quais sabemos
não ter nenhum controle, em que é difícil colocar fé con ante em nossa única
esperança verdadeira, e que, neste desconfortável silêncio, Deus fará o que
somente ele é capaz de fazer conforme sua capacidade e seu amor. Não é de
surpreender que nos apressemos para consertar tudo. É tão menos humilhante
nos mexer, falar, fazer planos, e apressar-nos para agir, em vez de esperar um
pouco mais para ver; ou cair no chão, rasgar a roupa, e entrar na choradeira com
as pessoas. Mas chorar com as pessoas é o que Jesus nos conduz a fazer. Esperar
para ver o que Deus fará não é desperdício de tempo.

Quando ferimos simpaticamente


O rei Herodes jamais concordaria com essa espécie de poder. As suas estratégias
para a resolução de problemas faziam sumir os con itos, mas não curavam nada
(Mt 2.18). O rei Herodes não era nenhum “curador ferido”.14
Talvez sejamos mais bonzinhos do que o rei Herodes. O fato é que, quando
lutamos para consertar as coisas sem Jesus, até mesmo bons líderes de ministério
podem se tornar simpáticos prejudicadores. Entramos em uma longa leira.
• Os amigos de Jó, faltando-lhe empatia sincera, achavam que sabiam mais do
que realmente conheciam. Nas suas mãos, a doutrina desculpava a ignorância.
Ser correto justi cava a palavra cruel. Aprendemos deles que a verdade pode
ser usada sem sentimentos e de maneira tola. A verdade pode ser usada para
ferir as pessoas. A ordem de falar a verdade em amor é modi cada para “Eu
vou contar como as coisas são”.
• Os pastores de Ezequiel 33 usavam o ministério para manipular as pessoas, a
m de obter status, conforto e reputação. Deixavam os quebrantados, os
perdidos e os perturbados aos lobos.
• O irmão mais velho do Filho Pródigo representava os fariseus (Lc 15.11–
32). Esses mestres de Bíblia justi cavam a ingratidão e amargura em nome de
se posicionarem pela justiça. Carentes de graça, eles martelavam as virtudes
religiosas sobre as pessoas.
• Os líderes religiosos da história do Bom Samaritano (Lc 10.25–37) não
entendiam o conceito de amor ao próximo quando estavam “de folga”.
• De fato, para qualquer dentre nós que tenha vocação para o ministério, é
triste entender que as palavras mais duras proferidas por Jesus (e também dos
profetas que o antecederam) eram dirigidas aos líderes ministeriais de seus
dias (Mt 23.1–36).
Escrutine os heróis de nossa fé. A tentação para os líderes autênticos de ferir a
outros e ofender a Deus não é menos destacada.
• Conhecemos tanto o desastre da embriaguez de Noé quanto a sua coragem e
sua fé.
• Honramos com justiça a fé de Abraão, enquanto nos lembramos
corretamente do fato de que seu medo egoísta ainda conseguiu dominá-lo.
• Moisés foi assassino. Ele se acovardou. Seu temperamento estourado jogou
fora a oportunidade de entrar sicamente na Terra Prometida. No entanto,
ele também creu e conduziu seu povo com coragem.
• Cantamos os salmos de um “homem segundo o coração de Deus”. Mas este
homem também fez coisas terríveis e, às vezes, fez escolhas trágicas, muito
aquém de seu chamado e da graça que lhe foi dada.
• Jonas levantou os punhos contra a graça.
• Tiago e João quiseram invocar fogo do céu para consumir os que não
recebiam a Jesus.
• Paulo nos ensina. Mas Deus quer que recebamos o ensino de Paulo e de sua
integridade enquanto conhecemos a amarga história de Saulo de Tarso.
• Pedro exalta a Cristo por nós. Mas não somos desconhecedores quanto à
espécie de pecado covarde que ele exempli cou quando Jesus foi preso.
De alguma forma, eu achava que os contornos de minha vida e ministério
estariam longe desses líderes e heróis da Bíblia. Pensei que eu jamais cometeria
os mesmos erros nem compartilharia a mesma vulnerabilidade. Mas naquela
varanda, naquele dia, eu era um vaso quebrado, sem nenhuma capa de super-
herói. Éramos todos vasos de barro quebrados naquela varanda — a mãe atrás
da porta, o pai ao telefone, os dois presbíteros que vieram comigo, e a menina
empilhada entre as ruinas.
Naquele dia conseguiríamos tirar Lori da varanda, continuaríamos em nossas
rotinas normais de tarefas, alimentação, oração, leitura da Bíblia, aulas de música
para os lhos e dormir. Mas as coisas que levaram Lori até aquela varanda em
primeiro lugar permaneceriam sem conserto naquela noite, e em muitas e muitas
noites que ainda viriam. Portanto, cada um de nós teria de aprender como viver
cada dia um com o outro, sem que nada ou ninguém tenha sido consertado.

Montando uma ofensiva


Em suas notáveis memórias a respeito da batalha contínua e crônica com artrite
reumatoide, Mary Felstiner pergunta: “Como a alma consegue subir na ocasião
da doença?”15 Por “doença”, Mary se refere à destruição do corpo enfermo que
não se conserta. Ao inquirir como a alma poderá subir nessa ocasião, ela quis
dizer: escolhendo e aprendendo a viver perseverantemente, vibrantemente e
cheia de amor, indo para a frente, tendo destroçada a carne que outrora fora seus
dedos e suas pernas.
A sua enfermidade é sádica para as juntas e os ossos. Ela os pulveriza com
sorriso cínico. Ela os arranca e puxa. Ela os torce em um emaranhado confuso,
enquanto dá risadinhas. Assim, quando a ouço conclamar-nos a “subir nessa
ocasião”, reconheço que ela tem intenção de lutar. Mas seu modo de lutar me
assusta. “Pelo menos agora eu sei qual é a tarefa”, diz ela. “Monte uma ofensiva
quando não possuir nenhuma defesa que possa vencer”.16
Neste ano que passou, recebi uma carta de um dos presbíteros que esteve
comigo há tantos anos naquela manhã, naquela varanda. Pela carta, quei
sabendo que a vida de Lori, durante todos esses anos após o acontecido, foi
curada. O que ele descreveu quanto à graça que a encontrou e ainda a segura, me
levou às lágrimas, maravilhado.
De que maneira a paz de Jesus acalmou sua vida? Para ser sincero, não tenho
plena certeza. Não existe resposta grandiosa, notável, e ciente e veloz. As únicas
coisas que conseguimos eram pequenas respostas acerca de coisas que não se
viam, durante um longo período de tempo. Um dos presbíteros escrevia um e-
mail semanal para Lori durante todo o período de trauma. Toda segunda-feira
simplesmente ele começava: “Bom dia”. Ali ele falava da beleza que via nela e da
graça de Jesus, a quem ele orava pedindo por ela.
Outro presbítero permitiu que Lori vivesse por algum tempo com a sua
família, enquanto a família dela buscava a graça para passar pela crise. Houve
aconselhamento. Houve muitas lágrimas e contratempos. Os Salmos eram
clamados e derramados.
Passou-se muito tempo, anos de dias incertos em que parecia não haver
respostas ou remédios. Então, como foi que essa cura veio em meio a coisas tão
inconsoláveis? Como Jesus continuaria com ela entre as coisas inconsoláveis nas
quais ela ainda teria de navegar?
Realmente, eu não posso dizer. Na verdade, ao lembrar daquela varanda só sei
com certeza o seguinte: a luta não era nossa para ser vencida. Era dele. E ele
venceu.
Richard M. Cohen, Strong at the Broken Places: Voices of Illness, a Chorus of Hope (New York: Harper,
2008), xvi.
Henri Nouwen, e Wounded Healer: Ministry in Contemporary Society, (New York: Doubleday, 1979).
Mary Felstiner, Out of Joint: A Private and Public Story of Arthritis, (Lincoln: University of Nebraska Press,
2007), 89.
Eugene Peterson, “Spirituality for All the Wrong Reasons,” Christianity Today, March 2005,
http://www.christianitytoday.com/CT/2005/March/26.42.html?start=y
7 | Saber tudo
Qualquer que pense entender as divinas Escrituras ou qualquer parte delas, sem compreender e
edi car nesse amor a Deus e ao próximo, ainda não conseguiu entendê-las.
–A

Eu havia acabado de dar a Eric a sua primeira Bíblia. Ele só havia orado em
nome de Jesus quatro ou cinco vezes em sua vida (e isso nos últimos dois dias!).
Um presbítero tinha parado para buscar alguma coisa para sua classe de escola
dominical. “Ei, Jason!”, eu disse ao presbítero.17 “Quero que você conheça o Eric,
um novo cristão. Estamos nos encontrando pela primeira vez hoje. Acabei de dar
ao Eric sua primeira bíblia”.
O presbítero apertou a mão do novo convertido e o cumprimentou. O que ele
disse em seguida me deixou boquiaberto. “Então, Eric”, disse ele. “Qual é a sua
opinião sobre o Catecismo Maior de Westminster, pergunta 109?”
Eric deu um sorriso vago e olhou para mim.
Lembro-me daquele momento de muito tempo atrás. Olho-o como um
espelho que me adverte e me faz uma pergunta. Como chegamos ao ponto de
esquecermos de que houve um tempo em que nós não conhecíamos o que era o
Evangelho de João, e muito menos sabíamos onde encontrá-lo na Bíblia ou como
deveríamos lê-lo quando o encontrássemos? O que faz com que nós cristãos, às
vezes, vejamos o crescimento no conhecimento como algo que nos faz diminuir,
julgar, confundir ou sobrecarregar uma pessoa que abre a sua primeira Bíblia
pela primeira vez? A resposta assombradora é que a serpente ainda nos sussurra
sua tentação: “Porque Deus sabe que no dia em que dele comerdes se vos abrirão
os olhos e, como Deus, sereis conhecedores. . .” (Gn 3.5).
Somos tentados a algo parecido com onisciência — a capacidade de saber tudo.
Mas não fomos chamados a nos arrepender por não sabermos todas as coisas.
Somos chamados a nos arrepender por tentarmos saber tudo.

Aprendizes
No seu Aprendiz de Feiticeiro, Goethe escreve sobre um mestre que deixa seu
jovem estudante cuidando das coisas. Ambicioso, o jovem aprendiz conclui que
está pronto para substituir seu mestre porque já “memorizou o que dizer e
fazer”.18 Os que conhecem a versão famosa desse poema feita pela Disney se
lembrarão da confusão e dos estragos resultantes. Embora tentasse imitar as
tarefas do mestre, ele não entendia o jeito do seu mestre nem a profundidade dos
poderes que estavam diante dele. Assim, todos os seus esforços só pioravam a
situação até que nalmente ele se humilhou, implorou que o mestre voltasse, e
recebeu de entrega socorro gracioso e poderoso.
É óbvio o ponto do poeta. A tentativa de acessar o poder de uma vocação
apenas pela memória e encantamento rapidamente resultará em grande
confusão.
A Bíblia concorda. Vários pregadores itinerantes viram o apóstolo Paulo
expulsar demônios e realizar milagres em Jesus. Eles pensaram em si mesmos e
concluíram que poderiam fazer igual ao que Paulo zera. Assim, quando
encontraram tais espíritos maus, esses pregadores imitaram o que tinham
observado.
“Esconjuro-vos por Jesus, a quem Paulo prega”, exclamou um deles. Mas o
espírito maligno lhes respondeu: “Conheço a Jesus e sei quem é Paulo; mas vós,
quem sois?” Imediatamente, os pregadores que tentaram praticar aquilo que
memorizaram, mas que não assumiram para si, foram atacados e fugiram
daquele lugar, feridos e nus (At 19.11–16).
O demônio era astuto. Reconhecia que não importava o quanto os pregadores
usassem palavras e ações semelhantes às de Jesus, a qualidade da autoridade,
vida, e ensino de Jesus estavam ausentes.
Nós também, dessa maneira, podemos usar mal o conhecimento. Em meus
primeiros dias de seminário, nós, alunos de uma classe intensiva de grego, nos
propusemos a uma pausa a m de orar uns pelos outros a cada dia. Não
demorou muito, e nessa rotina diária de nos reunirmos para a oração à sombra
de uma árvore de verão, um seminarista de último ano se aproximou de nós
ousadamente e nos repreendeu:

Irmãos, eu os advirto! É óbvio que vocês são orgulhosos e contumazes. Está na cara que querem
que o restante de nós veja como vocês são espirituais e santos. Eu sei. Eu também era novato no
seminário como vocês. Eu também queria exibir-me a todos, como vocês estão fazendo agora.
Mas eu estava errado, e vocês também estão! Jesus nos conclama a “entrarmos em nosso quarto
para orar”. Vocês se chamam de futuros pastores? Vocês têm do que se arrepender!

Se houve luz no caminho da bondade da Escritura citada pelo nosso irmão,


nós tivemos di culdade em vê-la. O seu uso da “luz” fazia com que nossos olhos
fechassem ou olhassem só meio abertos contra ela. Se havia algo belo e redentivo
quanto a quem ele foi quando iniciou o seminário, nós não conseguimos
enxergar com a luz que ele tentava nos oferecer.
Objetamos: “Somos justi cados ao repreender apaixonadamente as pessoas,
sem discernir se elas sabem um pouco mais ou se não têm nada a aprender que
as ajude a crescer? Será que Jesus é contra qualquer pessoa que estiver orando na
frente de outros? Jesus não orava na frente de seus discípulos e na presença de
outros?”
Embora todo nosso conhecimento mútuo da Bíblia, não acho que nós
aprendizes tenhamos ajudado uns aos outros a ver naquele dia. Um farolete
mirando diretamente nos olhos de alguém faz com que seja mais difícil ver, não
mais fácil. Na verdade, um farolete usado erradamente pode nos roubar a luz que
já nos tem sido providenciada.

In ados
Frequentemente, o conhecimento dado com a intenção de nos ajudar apenas nos
incha (1Co 8.1–2), e o mal uso do zelo não é diferente disso. Nos Estados
Unidos, os saquinhos de batatas fritas são in ados. Mas quando se abre o saco,
ele se esvazia. O que parecia ser um saquinho cheio de batatas fritas na verdade
era mais um saco cheio de ar. Como crentes autênticos em Jesus, somos
suscetíveis a tornar-nos in ados e cheios de ar quente dessa forma (entre outras),
e especialmente os pastores. Nosso zelo com a novidade da fé pode exagerar
nosso conhecimento e o fazer in ado (1Tm 3.6).
Nosso zelo por controvérsia teológica, debates e discussão a m de demonstrar
nosso intelecto superior ou capacidade persuasiva sobre outros também nos in a
(1Tm 6.4).
“Dr. Pregador Conhecido” era um pastor que ajudava muita gente e às vezes
pregava apaixonadamente, com uma percepção profética, a respeito do
sofrimento pelo evangelho. Por alguns anos, houve um grupo de estudantes que
se modelavam como seus discípulos. Escutavam os seus sermões, liam os seus
livros e assistiam suas conferências (embora, que eu saiba, nenhum deles
conhecesse pessoalmente o “Dr. Pregador Conhecido”, exceto por um aperto de
mão numa conferência). Com forte paixão, pregavam na classe bíblica sobre o
sofrimento. Procuravam viver vidas mais ascéticas em seu campus do seminário.
Mas, por adotar apenas um aspecto da mensagem de seu mentor celebridade,
sem o contexto e a experiência pessoal de seus anos de trabalho pastoral em favor
das pessoas, na verdade, feriram colegas, julgaram mal os professores, criticando
fortemente a ambos, e isso no nome de Deus.
Pareciam cegos para o fato de que, apesar de todo o seu zelo, tinham, na
verdade, pregado apenas quatro sermões em sua vida. Encobriram o fato de que
nunca tinham servido um dia sequer como pastor em uma igreja. Eles rejeitaram
a verdade de que o que tinham aprendido ontem na sala de aula, o professor que
lhes ensinava vinha procurando fazer na vida e ministério antes de terem
nascido.
Jonathan Edwards observa: “Nada que pertença à experiência cristã é mais
suscetível a uma mistura corrupta do que o zelo”.19 Não é que desejemos menos
zelo. Pelo contrário, a vida e o ministério isento de sinceridade é como ter um
aquecedor que não funciona num dia frio, parado em uma sala úmida e fria. Nós
o acendemos, trêmulos e arrepiados, com os dedos dos pés carentes de
aquecimento, mas a ajuda não vem. Graças ao Senhor por jovens zelosos, tanto
homens quanto mulheres!
Mas um fogo não pode aquecer com segurança se não estiver à distância
correta de nós. Se carmos perto demais, em nome do aquecimento, seremos
queimamos. Nosso zelo deverá ser derivado “com discernimento” (Rm 10.2).
Quando Jesus diz seu “Ai” àqueles que usam mal a chave do conhecimento, ele
destaca os sinais que exibimos quando o conhecimento estiver indo por rumos
errados:
O conhecimento bíblico nos deixa analfabetos em termos da operação interior
de nossa alma (Lc 11.37–40).
O aprendizado que ganhamos deixa-nos ignorantes do verdadeiro amor por
Deus (Lc 11.42–44).
Apesar de todo nosso empenho acadêmico e erudição, permanecemos sem
prática de amor ao próximo, humildade, sabedoria, bem como dos dons que
realmente honram a Deus (Lc 11.45–51).
Somos inteligentes com as passagens bíblicas, mas sem habilidade em termos
do sentido ou signi cado dessas passagens no que diz respeito a Jesus. De fato,
noutro lugar Jesus fala a especialistas em Bíblia que eles conheciam as Escrituras
mas desconheciam aquele a quem a Bíblia aponta ( Jo 5.39). “Ai de vós,
intérpretes da Lei! Porque tomastes a chave da ciência; contudo, vós mesmos não
entrastes e impedistes os que estavam entrando” (Lc 11.52).
De acordo com Jesus, quando se trata de descrever a porta de Deus, tais
mestres da Bíblia eram especialistas credenciados em portas. Passavam os dias
ajuntando as pessoas para olhar essa porta, meticulosamente memorizando cada
linha, rachadura, canto, cor e detalhe. Contudo, de acordo com Jesus, esses
mestres e suas congregações possuíam um conhecimento especializado de uma
porta que eles mesmos não podiam abrir. Irônica e tragicamente, na verdade,
com o seu conhecimento eles tornavam inoperante a própria chave que tanto
propunham conhecer. Um velho pastor estava certo quando disse: “É possível
que desenvolvamos uma noção falsa do conhecimento”.20
Podemos participar de um estudo bíblico local durante anos. Podemos obter
graduação em um seminário ou cumprir um programa de aprendizado de um
ano na igreja local. Mas isso não quer dizer que sejamos capazes de iluminar em
vez de cegar, admoestar com calor em vez de chamuscar.

Conhecendo em parte
Certa vez eu desisti da lua. Era nal de tarde e as nuvens haviam sequestrado a
noite. Comandando o palco central, a lua iluminou con antemente o escuro
hemisfério. As crianças e eu assistimos à exibição pelos vidros de nossa van.
“O que é que você acha, Caleb?”, perguntei. “O que você pensa dessa lua?”
Caleb é meu caçula. Ele olhou atento para o céu. O luar o alcançava pela janela
e tocou levemente a sua bochecha esquerda. O pequeno Caleb nos surpreendeu a
todos.
“Quebrou, papai”, ele disse.
Com urgência repentina ele lançou o braço à frente e com o dedo apontou para
fora da janela. “Lua quebrada”, ele esclareceu.
Olhei de novo pela janela para o palco principal. “Ah, Caleb”, expliquei. “A lua
não está quebrada. É lua crescente”.
Caleb não entendia a palavra crescente, pois ela soava como nome de monstro.
Sua cara caiu, sério. Com cenho franzido ele implorava: “Conserta, Papai!”
Todos rimos alto. “Papai não consegue consertar a lua, amigão”, eu ria. “Ela
está longe demais e é grande demais”. Caleb olhou de novo pela janela e então
olhou para mim.
Sem hesitação, Caleb me tou rme e disse: “Papai, vai lá. Vai lá e conserta
lua!”
Meus olhos vieram ao encontro da expectação dos seus, e senti-me
desconcertado. Eu havia identi cado a lua como “crescente” e parara de dar
maiores observações. Mas Caleb não estava satisfeito com minha explanação
sobre qual tipo de lua era aquele. A luminária estava em sombras, e o pequeno
Caleb tentava entender as sombras. A lua que eu chamei de “crescente”, Caleb
chamou “quebrada”. Queria que ela fosse consertada, que casse inteira de novo.
O jeito como eu vi a lua, nomeei seu tipo e descartei dar mais atenção a ela (em
contraste ao jeito como Caleb olhou além do tipo de lua, para a própria lua)
expõe outro problema do conhecimento. “Se este fora profeta, bem saberia quem
e qual é a mulher que lhe tocou, porque é pecadora” (Lc 7.39).
Não é que seja errado em si mesmo conhecer em parte. De acordo com a
Bíblia, esse fariseu identi cou corretamente qual a espécie daquela mulher (Pv
7.1–21). Jesus igualmente possuía esse conhecimento. Ele também identi cou
corretamente a mulher como uma pecadora (Lc 7.48). Em relação à espécie de
mulher que ela era, o mestre e o aluno concordavam.
Note bem. Porque estamos certos quanto a alguma coisa não quer dizer que
estejamos certos quanto a tudo, e nem quanto àquilo que é mais importante.
O verdadeiro arrependimento acontece bem na frente desse fariseu, e ele não o
reconhece (v. 48). Ou ele não possui uma categoria para o arrependimento igual
à sua categoria para o pecado, ou, ainda que a possua, não tem experiência
quanto à sua aplicação.
Apesar de todo conhecimento de Deus, o tratamento relacional desse homem
quanto a Jesus está profundamente empobrecido (vv. 44–46). Ou ele não possui
uma categoria igualmente palpável de hospitalidade pessoal, ou ele tem, mas não
quer ou não pode aplicá-la.
Essa mulher está buscando perdão bem à sua frente, e ele não consegue
enxergar (vv. 41–43). Ou ele não tem um modo saudável de discernir o perdão,
ou o tem, mas está cego para sua incapacidade de colocá-lo em prática.
Verdadeiro amor a Deus e ao próximo está acontecendo bem à sua frente, e ele
o despreza, enquanto permanece cego à sua própria ausência de visão (v. 47). Ele
não possui um critério de nido para separar o que é o verdadeiro amor por Deus
e pelo próximo, ou não tem muito dele em seu próprio ser.

O propósito de saber
O que, a nal, senão o amor em Cristo, forja o propósito do nosso conhecimento
(Mt 22.38–39)? O presbítero tinha conhecimento do Catecismo Maior de
Westminster. O aluno veterano tinha conhecimento das palavras de Jesus a
respeito da oração em secreto. Eu tinha o conhecimento de seis semanas de aula
de grego. Mas cada um de nós lutava por relacionar-nos de maneira sã (ou seja, à
semelhança do amor de Jesus) com as pessoas à nossa frente. As Escrituras, em
Jesus, nos conduzem a “uma epistemologia de amor, um modo de saber que se
manifesta em amar”.21 “Assim, qualquer que pensa ter entendido as divinas
Escrituras ou qualquer parte delas, mas com esse conhecimento não consegue
edi car o amor de Deus e do próximo, ainda não terá obtido sucesso em
entendê-las.”22
No decorrer dos anos tenho tomado essas questões para a minha leitura da
Bíblia e pregação, como vacina contra essa espécie de conhecimento que se in a e
esquenta, mas não alcança aquilo que Jesus intenta.
• O que esta passagem mostra sobre a amabilidade de Deus? Ou, noutras
palavras, o que a respeito de Deus nesta passagem me conclama a amá-lo
mais?
• O que esta passagem me mostra a respeito das pessoas, e o que o amor
requer de mim em relação a elas?
• Sendo alguém que viu a misericórdia e o amor de Deus, que poder preciso da
parte dele para vencer os meus maiores obstáculos ao amor? O que, no amor
de Deus em Jesus, me dá esperança e provisão para minha própria falta de
amor?
Se algo que eu leio não parece amável, eu anoto, dou um passo para trás,
mantendo em mente aquilo que vi claramente em outras páginas da Bíblia. Sem
deixar de ver essas coisas belas, faço perguntas sobre o texto que não me parece
belo. Começo um diálogo com o Pai em Jesus sobre a beleza que ele vê ali, e em
um relacionamento de comunhão, con o que com o tempo ele, por seu Espírito,
me mostrará o que vê.

Tempo de graça, tempo, e ainda mais tempo


Outra ajuda contra nossa tentação de saber das coisas de maneira errada é o
modo de Jesus tratar com Pedro. Ao olhar para a vida de Pedro, quando você
diria que ele “chegou”, “aprendeu”, ou “soube tudo”? Ele anda sobre a água, mas se
preocupa com a tempestade. Contudo, Jesus não age como se Pedro não tivesse
fé. Reconhece que a fé de Pedro é real, ainda que “pouca”. Então Jesus convida a
Pedro para um diálogo de aprendizado. “Por que você duvidou?” Não é um tom
duro. A repreensão não é do tipo que diminui a pessoa. O relacionamento não
acabou. Ficar aquém do ideal e fazer nova tentativa faz parte do treinamento (Mt
14.29 –33).
Então Pedro tenta impedir a Jesus de lavar os seus pés ( Jo 13.6–8), isso
também não é um pecado (Jo 13.6–8). Jesus nos diz isso. Jesus tem espaço para
que Pedro encontre as coisas que ainda terá de aprender, as quais ele ainda não
tem categorias para aprender. Podemos dizer a Jesus que não entendemos (Mt
15.15).
Em seguida, Pedro declara: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”. (Mt 16.16).
Nesse momento pensamos: com certeza agora Pedro chegou!
Mas imediatamente depois disso, aprendemos com Pedro que uma pro ssão
autêntica de fé em Jesus não apaga a insensatez que ainda permanece em nós.
“Arreda-te de mim, Satanás!”, são as palavras de nosso Senhor para o desejo
insensato de Pedro de impedir que Jesus vá para a cruz (Mt 16.23). Contudo, até
mesmo essas duras palavras não separaram Jesus de Pedro. Jesus não o lançou
para fora nem deixou de tratá-lo como verdadeiro amigo, discípulo e irmão.
Mesmo assim, as tolices de Pedro continuam abundantes. Ele declara que sua
fé é superior e a sua dedicação é forte (Mt 26.33–34). Ele não tem ideia do
quanto é terrível o seu exagero em estimar-se além do que convém, nem quanto
suas circunstâncias são espiritualmente carregadas de ataques satânicos. Não
fosse pela intercessão de Jesus, Pedro, junto com os outros, teria sido peneirado
como o trigo (Lc 22.31). Contudo, Pedro continua caindo no sono quando Jesus
manda que ele vigie e ore (Mc 14.37).
Pedro, depois, corta a orelha de Malco e é repreendido por Jesus ( Jo 18.10–
11). Pedro nega a Jesus, xingando e blasfemando. O galo canta e ele chora
amargamente (Mc 16.66–72). Ainda assim Jesus o busca, o ama e o guarda (Mc
16.7).
Pedro está ferido e sente-se atingido pelas palavras de Jesus, mas essas mesmas
palavras o restauram ( Jo 21.15–19). Mesmo após a ressurreição, Pedro se
esconde de medo depois de ver o túmulo vazio ( Jo 20.10, 19–22) e mais tarde é
repreendido por Paulo por causa do modo que o medo novamente o dominara
(Gl 2.11–14).
Contudo, com todos esses erros cometidos por ele, toda essa estultícia e
pecado, o que Pedro precisava era espaço gracioso para crescer. Pedro não é
Caifás, nem Pôncio Pilatos, nem Herodes nem o fariseu que estava em sua casa
julgando tanto Jesus quanto a mulher pecadora. Jesus via enganos, erros e
pecados em Pedro. Mas isso não fez com que Pedro fosse excluído, nem
signi cava que ele merecia de Jesus a mesma resposta que esses outros
mereceram.
Surgem uma ou duas perguntas sobre as quais devemos pensar: Como você
age quando as outras pessoas fazem coisas erradas? Alguém a quem você serve
tem espaço para cometer um erro? O que signi ca para você, como pastor,
precisar repetidas vezes da graça de Jesus?

Conhecimento impaciente
No decorrer dos anos, na família do evangelicalismo norte-americano a que
pertenço, tem sido raro o ambiente da graça em que erros e pecados são
diferenciados e no qual é concedido o tempo necessário para que haja
crescimento em relação a ambos.
Imagine o “Rev. Autor Famoso”. Por muito tempo ele tem escrito sobre o
evangelho de Jesus de maneira verdadeira e útil para muitas pessoas. Mas em seu
mais recente livro ou postagem de blog, ao tentar tratar o evangelho em meio à
nossa cultura, parece ter errado quanto a um ensino fundamental. Isso é um
verdadeiro problema.
Apolo também teve este problema. Pregador talentoso de Jesus, ele precisou da
graciosa provisão de Priscila e Áquila para aprender. Eles o ouviram pregar.
Deram graças a Deus por isso. Cresceram através disso. Mas, ao mesmo tempo,
o convidaram para o jantar. Eles o ensinaram em particular. Fizeram
pessoalmente suas perguntas desa adoras (At 18.24–28). Foi dado a Apolo
espaço para crescer. Seu bom ensino não foi anulado por ele ter entendido
erradamente algumas coisas.
Com frequência, nós somos menos pacientes. Tomamos as discussões da alta
noite, os ataques de blogs, e dardos dos tuítes, como se a cultura, em vez de Jesus,
fosse nosso mestre. Dessa maneira, “Dr. Pregador Conhecido” e “Sr. Blogueiro
Nacional” imediata e publicamente castigam o “Rev. Autor Famoso” e se
distanciam de um relacionamento com ele.
Depois o “Erudito de Longa Carreira” e o “Dr. Pregador de Conferências”
oferecem uma resposta do tipo tudo ou nada, que age como se, ao cometer um
único erro, o “Rev. Autor Famoso” esteja todo errado e só tenha erros. Isso soa
mais como Jesus tratou os fariseus do que como ele tratou a Pedro, ou como foi
tratado Apolo. No mínimo, a sabedoria nos ensina que é necessário tempo para
determinar qual a postura do coração do irmão que está em erro.
Estou tentando dizer que existe algo sobre nossa forma de conhecimento que
luta contra manter duas verdades ao mesmo tempo: (1) “Rev. Autor Famoso”
está cometendo um erro fundamental com este aspecto de seu ensino; (2) “Rev.
Autor Famoso” ama a Jesus, o tem seguido elmente por muitos anos, tem
ajudado os éis, e precisa de nossa companhia e argumentação cordata para ter
uma oportunidade de crescer. (Quem sabe com essa espécie de companhia e
diálogo em família nós também aprendamos alguma coisa?)
Tenho nutrido a ideia sutil de que o crescimento no conhecimento signi ca
que eu dependa cada vez menos e controle cada vez mais. Porém, Jesus indica
justamente o oposto. O humilde sabe mais e não acha que sabe (conhece mais e o
desconhece).
O Pastor sabe-tudo em casa
Imagine como seria viver com seu pastor se ele fosse um sabe-tudo. O uso do seu
conhecimento de Deus o deixa in ado. Ele deixa as pessoas cegas de tanto
avaliar e de caras queimadas por tanto zelo. Por maior que seja o zelo pela Bíblia,
você não consegue se lembrar da última vez que soube o que é sentir-se
compreendido, prezado, conhecido ou amado com profundidade.
Frequentemente você tem sido corrigido, até mesmo com brandura e
razoabilidade, por que você errou de novo, e não ele. Não consegue se lembrar da
última vez que ele lhe presenteou com a humilde dignidade de dizer: “Sinto
muito. Eu estava errado e você estava certo”.
Temos medo de desejos humildes.
Resistimos ser como criaturas e seres humanos.
Esquecemo-nos de quem éramos outrora e a maneira pela qual Jesus nos amou
e andou conosco antes que conhecêssemos muita coisa, mesmo lá naquele tempo
quando tudo o que sabíamos estava fora dos eixos.
Aos poucos, o jovem estudante de seminário suspeita da imaturidade de sua
esposa porque ela não conhece nem sabe agir de certo modo teológico, mesmo
que ele mesmo nunca tivesse ouvido falar sobre o assunto até a aula da tarde
passada.
O pastor impacientemente exige que seus lhos saibam, creiam e façam o que
levou vinte e cinco ou quarenta e cinco anos com Jesus para saber, crer e fazer.
Como é que em sua própria vida de prática erros ele tem se endurecido, em vez
de amolecido a sua compaixão, visto que ele mesmo tem necessidade de tanta
graça?

Conclusão
Alguém me ouvirá e dirá: “Certo! Não precisamos do conhecimento bíblico; só
precisamos de Jesus!”
Mas não é isto que estou a rmando. Tal sentimento em si já é um meio de
conhecimento. Raramente é sábio sugerir que possamos conhecer a Jesus sem
pelo menos alguns retalhos do que suas palavras nos revelam a seu respeito.
Em vez disso, estou falando sobre conhecer de acordo com o que Jesus diz que
o conhecimento é. Nosso trabalho pastoral precisa dessa mentoria. Ele é quem
retorna, o Bom Pastor. Ele conhece as suas ovelhas — incluindo aquela mulher
destacada pelo mestre de Bíblia. Mas de que modo ele a conhece? Ele a conhece
pelo nome. Ele a chama, vai diante dela, a conduz para fora. Ele é o seu portal
para os pastos verdes de descanso. Ele está junto dela no meio de problemas,
necessidades, vulnerabilidades e dignidade. Ele dá a sua vida por suas ovelhas ( Jo
10.2–4). Ela é conhecida de tal forma que aprendeu a conhecer algo também —
ela conhece a sua voz, o seu caminho a seguir. Nossa esperança não está em que
saibamos tudo, mas que o nosso Pastor conheça.
“Conhecimento parcial” é o endereço da rua em que cada um de nós tem de
construir a vida (1Co 13.12). Assim, comece cada dia admitindo isto: com
relação a cada pessoa, pedacinho da criação e circunstância que me encontro
hoje, tenho de dizer a Deus, “Estou no escuro” e “fui ensinado a distorcer aquilo
que está diante de meus olhos”. Tenho de me lembrar que quando subo ao
púlpito, co ao lado de um leito hospitalar, faço uma caminhada ou me assento
em minha poltrona para aconselhar outra pessoa, sicamente eu vejo pessoas e
coisas como na penumbra. A oração de Josafá se torna nossa. “Não sabemos nós
o que fazer; porém os nossos olhos estão postos em ti” (2Cr 20.12).
Receba a oração de Paulo e a faça novamente:
Por esta causa, me ponho de joelhos diante do Pai, de quem toma o nome toda família, tanto no
céu como sobre a terra, para que, segundo a riqueza da sua glória, vos conceda que sejais
fortalecidos com poder, mediante o seu Espírito no homem interior; e, assim, habite Cristo no
vosso coração, pela fé, estando vós arraigados e alicerçados em amor, a m de poderdes
compreender, com todos os santos, qual é a largura, e o comprimento, e a altura, e a profundidade
e conhecer o amor de Cristo, que excede todo entendimento, para que sejais tomados de toda a
plenitude de Deus. Ora, àquele que é poderoso para fazer in nitamente mais do que tudo quanto
pedimos ou pensamos, conforme o seu poder que opera em nós, a ele seja a glória, na igreja e em
Cristo Jesus, por todas as gerações, para todo o sempre. Amém! (Ef 3.14–21).

Não é o verdadeiro nome desse querido homem.


Johann Wolfgang von Goethe, “ e Sorcerer’s Apprentice”, http:// www /has /vcu .edu /for /Goethe
/zauber .html.
Jonathan Edwards, “Some oughts Concerning the Present Revival of Religion in New England”, em e
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D. Martyn Lloyd-Jones, “Knowledge False and True” [Conhecimento falso e verdadeiro], em e Puritans:
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Steve Garber, “ e Epistemology of Love” [A epistemologia do amor], Washington Institute, http:// www
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Agostinho, On Christian Teaching, Oxford World’s Classics, trad. R. P. H. Green (New York: Oxford
University Press, 1997), 27.
8 | Imediatismo
Penso que o pecado que mais atinge os pastores, especialmente os pastores evangélicos, é a
impaciência.
–E P

Recentemente, assisti a uma reunião regional de pastores na qual eles caram


sabendo que oitenta por cento das igrejas que começaram nos últimos dez anos
não existiam mais. Oito em cada dez pastores tinham falado sobre seus sonhos,
sobre o trabalho de Deus e uma congregação que zesse diferença em nossa
geração. Eles oraram e tinham esperanças e se gastaram. Todos celebraram,
zeram planos e oraram. Mas logo depois, muitos retornaram para casa entre os
feridos e com curativos.
Contrariamente, algumas poucas igrejas não somente começam bem como
também crescem numericamente, e depressa. Essas poucas igrejas se
desenvolvem tão rapidamente que as multidões criam um alvoroço na
comunidade. Pastores têm de contratar mais ajuda imediatamente. As pessoas
têm de contratar e desenvolver mais programas — e isso bem depressa. Têm de
lutar e correr, apenas para manter o passo na corrida, da gente que corre para “o
novo lugar para estar na cidade”. Após pouco tempo, a liderança está exausta, e as
estruturas requeridas pela pressa não são adequadas para cuidar das pessoas
continuamente, no tempo todo. Não existem raízes. A árvore é pesada em cima,
e sem base para sustentá-la. Tem de acontecer uma reestruturação e um
reposicionamento, senão os líderes e voluntários esgotados da igreja irão
desmoronar. Têm de andar mais devagar a m de continuar em frente, mas não
sabem como; nunca aprenderam isso.
Semelhantemente, meu amigo que falava ao telefone estava em seu terceiro ano
de pastorado. Ele estava exausto; demonstrava sinais de desgaste total.
“Mais tarde eu vou mais devagar”, ele disse. “Mas, se eu diminuir o passo agora,
o que vai acontecer com o ministério?”
“Mas se você não diminuir seu ritmo agora, o que acontecerá com o seu
ministério?”, perguntei. “Se você permanecer neste seu compasso atual, o que
você teme provavelmente acontecerá de qualquer modo”.
12
Compartilho essas três histórias como quem lembra a tontura que sinalizava a
minha própria iminente queda. Batiam em minha cabeça e reviravam a minha
visão nos piores momentos. Eu era pastor titular com uma jovem família e uma
igreja em crescimento, que me preparava para a conclusão do programa de
doutorado – tudo ao mesmo tempo. Os médicos realizaram exames a m de
detectar possível disfunção do ouvido interno ou do cérebro. Após vários meses,
nada surgia. Finalmente, um médico me perguntou: “Existe algum estresse em
sua vida?”
Pensando nisso agora eu dou risada. Você tem algum estresse? Se meu corpo
fosse árvore, minhas raízes estariam lutando para permanecer rmes no chão. Eu
começava a balançar até mesmo nos dias de céu azul sem nuvens ou ventos. Às
vezes, as circunstâncias nos forçam a reconhecer a necessidade de paciência para
nosso trabalho pastoral. Teremos de nos entregar à mentoria do Espírito para
obter seus frutos, senão bateremos a cara no chão, expondo raízes mortas para o
mundo inteiro.
O que torna tão difícil ir mais devagar? São nossos anseios por algo mais do
que um trabalho de pouca fama, nosso desejo de estar em todo lugar para todos,
de saber tudo, consertar tudo: a tentativa de tomar o lugar de Deus, e nossa falta
de oração, que nos deixa sobrecarregados com um fardo que só Deus é capaz de
carregar. Sim, mas as circunstâncias também não ajudam muito.

Por que as pessoas saem


Geralmente as pessoas saem de uma igreja que tem um novo pastor por uma de
duas razões (frequentemente, nos primeiros dois ou três anos da chegada desse
novo pastor): (1) o novo pastor não é su cientemente igual ao antigo pastor e as
coisas estão mudando depressa demais; ou (2) o novo pastor é parecido demais
com o pastor anterior e as coisas não estão mudando o su ciente. Grupos se
ajuntam e falam uns aos outros sobre qual lado tomar. Eles reforçam o seu
desprazer.
Mas outros fatores negativos também podem colidir e conspirar para o
aumento das pressões.
Para nós, foi uma recessão econômica que varreu o país inteiro como uma
enorme tempestade de areia. Muitas instituições sem ns lucrativos e igrejas
estavam sofrendo. Nós não éramos exceção. Os presbíteros e eu começávamos a
conversar com a equipe pastoral sobre as possíveis implicações para todos os
nossos empregos. Reuniões até tarde da noite estavam se tornando norma para
nossa liderança. Tínhamos olhado páginas impressas cheias de numerosos fatos.
Havíamos examinado orçamentos apertados que não tinham onde apertar mais.
Havíamos orado por pessoas que iam embora, as quais tínhamos amado e orado,
e por pessoas que permaneciam, mas estavam esgotadas. Com o tempo, teríamos
de tomar duras decisões, que causariam impacto sobre outros de nossa equipe, e
estávamos olhando rmes, sem palavras, uns aos outros.
Não ajudava o fato de que eu havia iniciado meu pastorado ali trabalhando em
tempo parcial. Nosso plano era que eu iria gradativamente tornar-me pastor de
tempo integral no decorrer de dois anos. Essa ideia era nobre, mas não deu certo.
Quando alguém me telefonava na quarta-feira, às quinze horas, pedindo para
falar imediatamente comigo, eu dizia: “Posso te ligar hoje à noite ou então
amanhã à tarde. Se esses horários não servirem, posso vê-lo na sexta-feira”. Essa
pessoa se sentia ofendida. Para eles, assim como para mim, era estranho ter de
esperar. Eles sentiam que eu não me importava em cuidar deles. Eu me sentia
culpado. Quando o imediato for nossa norma, ter de esperar por um telefonema
daqui a três horas às vezes fará com que nos sintamos desprezados.
Reclamaremos.
Eu também estava pregando em meio a sofrimento devido a muitas coisas.
Anos mais tarde, rimos muito, com lágrimas nos olhos, por causa do sermão de
páscoa que, em retrospectiva, mais parecia um ofício fúnebre, bem no início do
meu tempo ali. Em vinte minutos, eu havia explorado a morte e escuridão e a dor
tão completamente, com tanta tristeza, que quando tentei falar da ressurreição
ninguém conseguia enxergá-la. Hoje damos risada com a graça da memória —
da humilhante paciência de amigos que aguentaram permanecer juntos. Mas
aquela realidade exigiu muito das pessoas que tinham pouca paciência para isso.
Além de tudo isso, ironicamente, tínhamos oferecido uma visão rápida demais
da paciência. Passar juntos, em comunidade, por esse tempo parecia estranho,
até entediante. Ver a congregação como um grupo de pessoas com as quais viver
a vida ao invés de um produto a mobilizar, ou, ter como experiência, ver um
pastor como alguém a amar ao invés de consumir — era uma novidade para a
maioria de nós.
Tendo dito e feito tudo, cento e cinquenta pessoas saíram de nossa igreja em
três anos. Cento e cinquenta mil dólares do nosso orçamento foram com eles.
Tivemos de despedir três pessoas de nossa equipe que trabalhavam em tempo
integral. Demos vários meses de aviso prévio e compensação. Todos nos
sentíamos feridos. Nos questionávamos. Tornamo-nos a igreja mais comentada
da comunidade. Mas os comentários não eram esperançosos, e frequentemente
eram maldosos. Isso não é algo fácil de superar — não pela pressa. Pelo
contrário, a disposição mental impaciente de tentar fazer grandes coisas de
maneira notória e imediata foi o que parcialmente atacou-nos como um torpedo.
Nós quase afundamos. Quase.
Estávamos fazendo, com lágrimas sinceras e corações humilhados, uma
pergunta importante entre as coisas que tinham importância: “Senhor ensina-
nos a seguir-te naquilo que poderá recuperar esse navio que está afundando”.

A atração da pressa
Para começar, tínhamos de aprender o que o trabalho pastoral realmente requer.
Eugene Peterson termina a citação que mencionei anteriormente da seguinte
maneira:

Penso que o pecado que mais atinge os pastores, especialmente os pastores evangélicos, é a
impaciência. Temos um alvo. Temos uma missão. Vamos salvar o mundo. Vamos evangelizar a
todos, e vamos fazer muitas coisas boas para encher as nossas igrejas. Isto é maravilhoso. Todos os
objetivos estão certos. Mas essa obra de trabalhar com as almas é um trabalho vagaroso, que anda
bem devagar ... e camos impacientes e começamos a tomar atalhos para encurtar o caminho.23

“Ande”, dissemos a meu lhinho de um ano e pouco, que queria correr com
seus amiguinhos ao lado da piscina pública. Eu o oriento a ir mais devagar, não
porque quero que ele perca suas marcas, mas exatamente porque indo mais
devagar ele terá melhores chances de realmente atingir o marco.
Assim, é possível descrever pressa como “o sentimento de estar atrasado” ou
“achar que temos de correr”. Onde quer que estejamos, é como se estivéssemos
com coceira para ir embora. Temos outro lugar em que devemos estar, e onde
estamos nunca é aquele lugar. Nós constantemente sentimos que estamos
perdendo algo, perdendo nossa chance, ou abrindo mão daquilo que poderíamos
ter se pudéssemos chegar lá antes da areia da ampulheta acabar. No nosso caso,
primeiro tínhamos de avaliar por que achávamos estar perdendo alguma coisa.
1) Para começar, a pressa faz parte do ar que respiramos. Ainda que devagar na
Bíblia seja mais usado para descrever o bom caráter de Deus (tardio para se irar),
para a maioria de nós, devagar é igual a desperdício ou desrespeito.
2) O passado de nossa igreja especí ca. Antigamente, a nossa igreja tinha sido
popular, ou seja, isso foi antes de nossa divisão. Estávamos progredindo na
comunidade, e cresciam as conversas sobre as coisas que Deus estava fazendo
entre nós. As orações das pessoas que deixaram o conforto de uma igreja de
origem para começar este novo trabalho evangelístico estavam sendo
respondidas. Mas então, veio uma fratura devastadora entre gente boa, e isso
saqueou grande parte do que tínhamos. Quando eu cheguei, havia um desejo
palpável de obter de volta aquilo que tinha sido perdido. Mas a essa altura, eu
estava na quarta liderança pastoral em seis anos. Nos primeiros meses, cinco
casamentos se des zeram, dois grupos de pessoas caluniaram e arruinaram os
relacionamentos, e um grupo nos lares implodiu de forma totalmente perniciosa.
Estávamos agora fazendo perguntas difíceis e con ssões. Se a nossa
popularidade realmente fosse sinônimo de saúde da igreja, como é que nossos
relacionamentos internos remavam tão prontamente para a divisão e fraturas?
Um anseio por avivamento imediato e um retorno poderá nos tentar a dizer não
à paciência e sim aos atalhos.
3) Não estávamos longe da igreja de maior “sucesso” na cidade. Na mesma rua,
um pouco mais para baixo, há uma igreja que cresceu depressa e grandemente.
Hoje seus recursos estão espalhados por toda a cidade. Alguns achavam que
estávamos a caminho de ser iguais àquela igreja. Outros se entristeceram porque
muitos do nosso povo saíram e foram para lá. Outros se irritaram ou zangaram-
se, cando inseguros, sentindo como uma loja pequena de proprietário local na
presença de uma rede gigante, tentando competir quando a loja da rede constrói
cada vez mais ao redor da nossa. Embora a maioria das igrejas na América do
Norte não seja desse tamanho nem cresça tão depressa, o restante de nós é
tentado a acreditar que a sua história, e não a nossa, é a norma para o mundo
evangélico. Medir-nos pela igreja da mesma rua pode nos tentar a acreditar que
camos para trás e fomos ultrapassados. Começamos a nos apressar, medindo-
nos pelo chamado deles, e não pelo nosso.
4) Eu fui considerado um grande negócio. Olhando para trás, somos humilhados
pelos exageros que faziam a meu respeito também. O pastor anterior era meu
amigo. Nosso coração batia no mesmo ritmo. Em nossa comunidade eu era um
peixe de tamanho médio num lago pequeno. Chegou o “Dr. Eswine”. Todo
mundo esperava que grandes coisas acontecessem. Quem sabe a mentalidade
pró-celebridades que infecta nossa cultura geral estivesse nos fazendo tropeçar. A
presença de um líder que atrai as pessoas pode nos tentar a negligenciar o que a
paciência normal no trabalho pastoral requer, não importa quem sejamos.
5) Nosso coração pelo evangelho excedia as nossas habilidades com o evangelho.
Essa igreja é realmente notável. Fez o que poucos fariam. Chamou para ser seu
pastor um pai que tem cuidado sozinho de seus três lhos. Tentando recuar do
processo de candidatura, eu lhes dissera: “Não sei ser pai solteiro e pastor ao
mesmo tempo”. Eles responderam: “Nós também não sabemos, mas vamos
aprender juntos”. Falarei mais a esse respeito mais adiante. Mas para agora, basta
dizer que éramos como missionários estrangeiros que, depois de um ano, cam a
se perguntar em que loucura estiveram pensando. O que esse compromisso na
verdade requereu de todos nós em amar uns aos outros foi mais real e tangível do
que a graça que sonhávamos oferecer. Anote bem isto aqui: fazer a transição de
uma declaração de visão missional de amor ao próximo para o verdadeiro amor
ao próximo pode nos tentar a desistir com impaciência e procurar por atalhos.
Tivemos de encontrar um paradigma diferente.

Nossas necessidades na maratona


“Corramos com perseverança”, disse o apostolo sobre “a carreira que nos está
proposta” (Hb 12.1).
Uma maratona é criatura que mastiga e tritura aqueles que tentam atacá-la
com um lance. Maratonistas também falam sobre “bater contra a parede”. Entre o
vigésimo e o vigésimo terceiro quilômetro, as pernas cedem. Pulmões queimam.
Multiplicam-se as razões que justi cam desistir. Multidões animadas não
providenciam mais o combustível inspirativo que davam nos marcadores de
quilometragem anteriores.
Essa experiência não faz os maratonistas pararem de correr, ou a alertarem
com gritos assustados a uma pessoa que tem a intenção de participar de uma
maratona: “Vá embora! No quilômetro vinte e três você quer deitar e morrer!
Por que correr?” Em vez disso, saber sobre essa parede alimenta nossa educação,
nosso preparo e nosso treino. Em vez de fugir da corrida, eles se lançam a ela,
treinando o que fazer quando chegar a hora.
Em contraste, quando os pastores batem em muros nos seus primeiros três
anos, ou no décimo-quarto ano ou no vigésimo, cam indagando se realmente
foram chamados ao ministério, como se algo singular e inesperado estivesse
acontecendo com eles. Quando os relacionamentos, casamentos, pais, novos
empregos, ou pequenos grupos na igreja batem contra a parede, sua primeira
reação é achar que algo está errado. Eles cometeram algum erro, e têm de desistir.
O que aconteceria se, em vez disso, aprendêssemos a antecipadamente nomear
os muros e falar do ritmo que se requer, não só para enfrentá-los como também
para permanecer além deles, e caminhar adiante com força até a linha de chegada
dos chamados ao evangelho?
Esquecendo-nos de nossas próprias necessidades na maratona, sentimos essa
espécie de estresse que sente o plantador de igreja em seus primeiros dois anos,
ou o estresse que um jovem pastor experimenta numa igreja rural, ou o estresse
que sente um pastor com grande potencial e expectações. “Já estou servindo a
dois anos, e ainda temos apenas vinte e cinco pessoas”, diz ele para si mesmo.
“Será que fui chamado? Será que Deus está operando? Eu deveria me mudar
para outro lugar? Cometi um erro ao vir para cá?”
Nossas circunstâncias eram diferentes, mas a crença por baixo do que
acontecia era a mesma. Porque a realidade era menor, mais vagarosa, dolorida,
imperfeita, desconfortável e aparentemente ordinária, estávamos nos
perguntando: “Por quê? O que foi que aconteceu? Será que estamos fazendo
alguma coisa errada?” Aqueles que foram embora logo estavam fazendo a mesma
coisa.
Na verdade, havíamos contratado além da curva. Esta era a razão pela qual
nosso treinador era a situação imediata. Por “curva”, nos referíamos ao
crescimento numérico que viria. Em retrospectiva, vejo que estávamos nos
perguntando: Por que presumimos que viria em curva? Por que sentíamos
necessidade disso? E por que havíamos achado que se viesse, seria assim tão
rápida?
O apóstolo Paulo oferece textos de maratona para o nosso trabalho pastoral.
Os pastores são como soldados que suportam sofrimento, atletas cujo modo de
vida compete de acordo com o que requerem os regulamentos da corrida;
lavradores trabalhando pesado, entre os terrenos, as estações e as condições
climáticas. Então, Paulo recomenda-nos a “pensar a respeito” do que ele diz (veja
2Tm 2.3–7). O pastor que medita, necessariamente também tem de andar mais
devagar.
Não é de surpreender, conforme Paulo vê, que necessitemos de muita força e
perseverança, para aguentar as longas distâncias de maneira cristã, ao nos
relacionarmos com os amigos e críticos, nas tempestades e nos dias ensolarados,
nos estouros e na calma. Os pastores são atletas da corrida da graça, corrida de
longa distância. As congregações oferecem o roteiro que seus corredores na
maratona tomarão.

Paciência como uma virtude pastoral


Este paradigma pastoral estava nos levando a enfrentar frente a frente uma velha
piada dos círculos cristãos. “Ore pedindo qualquer coisa exceto paciência”, sugere
a piada. “Você não quer ver o que Deus lhe dará se você lhe pedir por isso. Orar
pedindo paciência é muito perigoso”.
Já ri ao contar essa piada. Agora acho que a piada me pegou. Nunca havia
percebido o quanto ela presume erroneamente que é possível seguir a Jesus sem
ter paciência. Ela também presume que Deus não se importa com a paciência em
nossas vidas, a não ser que peçamos por ela. Tenho estado errado em ambos os
casos. Uma presunção da piada, porém, é verdadeira: frequentemente a paciência
se aprende dentro do contexto de tribulação. As provações parecem interrupções
em nossas vidas, que em outros aspectos são boas. Mas, mais vezes do que
imaginamos, essas provações se tornam em cachorros que latem contra a
impaciência e a pressa que tentam entrar de soslaio nos salões de nossa vida. Não
veríamos o intruso escondido que procura nos ferir, não fossem essas latidas de
alarme. E a impaciência realmente nos fere. Aos olhos de Deus, ela nos prejudica
mais do que as provações (Tg 1.2–4).
Experimentamos dor relacional entre as torrentes de amigos que foram embora
à procura de outras igrejas. Também gastamos horas conversando tarde da noite
ou em longos almoços, tomando decisões em meio à nossa fadiga. Como separar
e colocar em ordem a diferença entre amigos e inimigos em meio ao turbilhão de
reclamações, sofrimentos, e queda livre?
Paulo treinava Timóteo e Silvano nesta obra, e nós encontramos aqui a sua
ajuda: “Exortamo-vos, também, irmãos, a que admoesteis os insubmissos,
consoleis os desanimados, ampareis os fracos e sejais longânimos para com todos.
Evitai que alguém retribua a outrem mal por mal; pelo contrário, segui sempre o
bem entre vós e para com todos” (1Ts 5.14–15).
“Tenha certeza de que são os indolentes e não os de coração fraco que vocês
admoestam. Seja claro quanto aos desanimados e não aos indolentes que você
está encorajando”, Paulo diz. Então Paulo revela o que esta obra congregacional
do discernimento e cuidado exigirá: “Quer a pessoa seja indolente, desanimada,
ou carente de ajuda, quer você esteja admoestando ou encorajando a pessoa,
esteja certo disto”: Paulo disse: “Sede paciente com todos”.
Mas, como mostrar paciência em meio a acusações maldosas ou
descaracterizações? Paulo ofereceu a resposta. Mesmo quando alguém lhes zer
mal, ele os exorta a, em vez de cuspir as emoções para fora, esperar pelas
legítimas. Deverão suportar sua ferida profunda.
Em nossos dias, isso seria igual a esperar dois ou três dias antes de responder o
e-mail e deixar de usar a fúria de uma mensagem imediata de voz. Eles (e nós)
devem encontrar perspectiva e cura de uma fonte diferente da grati cação
temporária de correr para pagar pelo mal que foi feito a eles. Devem esperar
passar os pensamentos e emoções até que possam escolher o bem, até mesmo
para um inimigo. Então essa luta pelo louvor, oração e gratidão sem cessar, em
todas as circunstâncias que enfrentam, e a busca por aquilo que vem do Espírito
de Deus (abrindo mão daquilo que não provém dele) — revelam o caminho
tomado pela paciência (1Ts 5.16–22). “Ora, é necessário que o servo do Senhor
não viva a contender, e sim deve ser brando para com todos, apto para instruir,
paciente, disciplinando com mansidão os que se opõem, na expectativa de que Deus
lhes conceda não só o arrependimento para conhecerem plenamente a verdade”
(2Tm 2.24–25).
Resistir ao desejo ilusório de defesa, conserto e alívio imediato não é algo fácil
de se fazer de maneira pastoral. Brandura paciente requer coragem e força. Por
exemplo, um e-mail parece uma isca sedutora para uma briga. Notei que eu não
via uma família querida na igreja por algum tempo. Eu os contatei perguntando
como é que estavam passando. Recebi como resposta um e-mail do chefe da casa.
Eu não via a família porque eles tinham deixado nossa igreja. Lê-se assim o e-
mail:
Resumindo, a despeito das muitas boas experiências que tivemos em Riverside, e das pessoas a
quem realmente apreciamos, resolvemos tentar encontrar uma igreja mais apropriada ao que
entendemos ser nossa necessidade. Basicamente, estamos à procura de uma igreja onde o
evangelho é muito apresentado; onde a doutrina é abraçada e ensinada, onde passagens inteiras da
Bíblia são apresentadas a cada domingo. Eu não culpo a Riverside por ser a igreja que é. Ela é uma
igreja que está seguindo a mesma direção que MUITAS igrejas americanas parecem estar indo.
Espero que seja de grande efeito para muitas pessoas. Só para constar, ainda não encontramos
nenhum lugar em que nos encaixemos. Está cando muito frustrante, e chegamos a ponto de
tentar (arrepios!) começar uma pequena igreja em casa. Eu me sinto totalmente despreparado
para isso. Mas a coisa é esta: conheço diversos outros (homens em particular, nenhum deles da
Riverside) que estão igualmente frustrados com a moderna igreja americana e que conversaram a
respeito conosco, e pretendemos começar outra. Não que tenhamos tempo para isso, e, claro,
nenhum de nós é pregador.

Um e-mail como esse — especialmente durante uma semana ou estação de


múltiplas críticas — nos desa a. Ouvir que eu não apresento muito o evangelho,
não ensino doutrina nem dou destaque à Bíblia, e que junto com a maioria das
igrejas temos pregado mais sobre sociologia e terapia do que o evangelho, é duro
de engolir. Pode parecer um soco no estômago de tirar o fôlego, particularmente
quando conhecemos a nós mesmos como quem busca o evangelho aberta e
biblicamente em tudo que fazemos. Tais críticas se tornam ainda mais difíceis
quando, no contexto da amizade, o remetente jamais mencionou antes essas
coisas.
Além do mais, não há espaço para falhas ou intenções de crescer. Quando a
perfeição do padrão desejado não for atingida, a pessoa vai embora, em vez de
entrar para trabalhar junto e fazer acontecer. Finalmente, sair de ninho, sem
conversar, e se isolar, é desconcertante para um pastor. Somos tentados a tomar
como uma declaração pessoal sobre a nossa identidade. Contudo, correr para me
defender, para instruir (não) bondosamente, ou tentar imediatamente consertar
tudo também não é escolha sábia. Prova ser de nenhuma ajuda. Alguma espera é
necessária. Às vezes a espera vai continuar. O quadro de nenhuma resolução
continuará. Nenhuma solução virá até que venha Jesus.
Toda essa espera durante as partes invisíveis da semana poderá também
penetrar nossa pregação se não tomarmos cuidado. “Prega a palavra, insta, quer
seja oportuno, quer não, corrige, repreende, exorta com toda a longanimidade e
doutrina”. (2Tm 4.2)
Temos de resistir à presunção ingênua ou manipulativa de que, só porque
pregávamos ou dizíamos alguma coisa a alguém uma vez, desde então e
imediatamente, elas sempre e eternamente acertarão no que dizem. Isso é
pregação impaciente. A pregação impaciente capacita o ouvinte a evitar a luta
contra uma pergunta — espera que o ouvinte sempre escute, sinta ou pense do
jeito certo imediatamente; ela presume que crescer em Jesus não requeira dias,
semanas, meses e anos.
O que Paulo ensina a pastores sobre seu trabalho de paciência, Jesus também
ensinava. Aqueles que suportam os ataques do diabo (Lc 8.11–12), as provações
do mundo (Lc 8.13) e os desejos mal dirigidos da carne (Lc 8.14) exigem
paciência em Jesus para isso. “A que caiu na boa terra são os que, tendo ouvido de
bom e reto coração, retêm a palavra, e produzem fruto com paciência” (Lc 8.15).

Temos de ajudar um ao outro


Eu não era capaz de fazer ou ser isso. Precisava de ajuda, e essa ajuda veio.
Um furacão tem um olho no centro, onde habita a calma. No meio das piores
tempestades de vento em nossa igreja, aos poucos cou claro para mim que no
centro de tudo, nossas famílias e líderes-chave estavam se mantendo rmes. Os
seus amigos estavam saindo. Mas eles, não. Eu não era o único a segurar,
tentando conseguir forças para uma corrida que não queria disputar. Eles
também seguravam as pontas. Sem esse compromisso central de continuar
juntos na distância, não teríamos vencido. Quando a tempestade bate, é útil
avaliar quem está dentro do olho do furacão e o quê os mantem unidos. Neste
caso, foi nossa esperança em comum do que Jesus ainda poderia fazer em nossa
igreja, para o bem desta comunidade.
Depois da minha peste negra de sermão de páscoa, Joe me perguntou se
poderia almoçar comigo. Conversamos sobre as nossas famílias, um e outro,
Jesus, nossa igreja. No nal ele disse uma coisa pequena que era enorme: “Zack,
eu o respeito como homem, pai e nosso pastor. Estou com você nisso. Vamos
fazer juntos. Observei algo, uma coisinha, e queria saber se você dará algum
tempo para pensar sobre isso”.
“Sim”, eu disse. “Qualquer coisa. Claro”.
“Sabe como na música temos acordes maiores e acordes em tom menor?”
Acenei.
“Ultimamente, tenho notado que você tem enfatizado os acordes menores em
sua pregação. Não me entenda mal. Precisamos de graça nos acordes menores.
Não sei como eu estaria aqui de pé agora mesmo se eu fosse você. Você me
inspira. Mas talvez haja um acorde maior ou que possa tocar mais
frequentemente do que está fazendo no momento. Acho que isso pode ajudar a
você, e ajudará também a nós. Você se importa em pensar sobre isso?”
Na verdade, eu pensei nisso. Este presbítero deu-me palavras de graça, de
compromisso e ajuda. Enquanto muitos estouravam em sua volta, fustigados
pelo vento e fora de si quanto ao sermão e outras coisas, do olho do furacão ele
simplesmente falou comigo. Jamais me esquecerei disso.
Vem à mente o que Paulo falou a respeito de Tito: “nenhum alívio tivemos;
pelo contrário, em tudo fomos atribulados: lutas por fora, temores por dentro.
Porém Deus, que conforta os abatidos, nos consolou com a chegada de Tito”
(2Co 7.5–6).
Paulo e sua equipe sentiram fadiga de corpo, temores internos e con itos
externos em uma localidade especí ca. O conforto veio da maneira menor e
quase invisível, principalmente por gastar pequenas porções de tempo com um
amigo. Nós, os sofredores, não suportamos mais entrar sozinhos nessa
maratona.
De fato, quando penso sobre tudo que tínhamos visto em meus primeiros
quatro anos, quei maravilhado pela força das mudanças no grupo-chave da
igreja. Eles tiveram quatro mudanças de liderança em seis anos. Deixaram a
estabilidade de uma igreja maior, mais estabelecida, pelo desconforto de crer que
Jesus lhes daria poder para um novo esforço evangelístico nesta parte da cidade,
para a sua glória. Ainda estavam aqui, esperando. Como isso poderia ser?
Comecei a pensar com os meus botões: E se eles fossem os verdadeiramente
honoráveis? E se sua fé em meio a esses dias de pequenas coisas revelasse que eram
eles as verdadeiras histórias de sucesso espiritual em nossa comunidade?
Eu os admirei e aprendi com a paciência desse grupo cerne. Nunca precisei
aprender paciência com os que se desviavam. Todos nós requeremos paciência de
outros para conosco. Eu havia saboreado uma espécie de traição, incluindo o
ferrão dos evangélicos que não estavam nos melhores momentos, quando sentem
um cheiro de escândalo em você. Eu havia sido assustado, estava com medo de
pessoas, particularmente por gente da igreja, uma novidade desconfortável. Os
arranhões emocionais da crítica, a maior da minha vida e ministério, haviam me
levado a, por duas vezes, apresentar o meu pedido de demissão. Ainda no
começo desse período, a constante vulnerabilidade como pai solteiro parecia
demais. Eventualmente voltei a namorar e me casei, como pastor, sob o olhar
público, às vezes, cruel. Mas estes presbíteros continuaram a dizer que
acreditavam que Deus estava operando. “Seja paciente”, diziam. “Aguente rme”.
Certa noite, compartilhei meus temores com meus presbíteros. Lágrimas e
temores uíam, embaraçosamente livres. “Zack”, disse Ty, “se acontecesse o pior,
e esta igreja que amamos fechasse, nós ainda estaríamos com você, seríamos os
últimos a apagar as luzes. Estamos com você e esperamos que você que
conosco, ainda que chegue a esse ponto”.
Existe uma estranha doçura que pode ser encontrada entre a dor de uma
ameaça iminente e sem respostas, quando se passa dias sem aquilo que se sabe
seria mais fácil se apenas já o tivesse em mãos. Diz a paciência às mãos vazias:
“Deus está aqui”. A paciência, que parece de rosto pior, declara: “Deus não vai
abandoná-lo”.

A paciência leva tempo


Estou tentando dizer que Deus fala sobre esse “não abandono” nas formas
menores, quase desprezadas. Frequentemente é em presença e sentenças como as
de Tito; são estes os dons que Deus nos manda, sussurrando entre o som
estridente e barulhento.
Estava sentado com meu amigo pastor em uma cafeteria local que frequento
em Webster Groves. Ele é Quiuí — quer dizer, veio da Nova Zelândia. Eu sou
“Hoosier” — que quer dizer que vim de Indiana (só que aqui em Missouri a
palavra Hoosier tem a conotação de “não presta para nada”).
Saboreava meu café e começava a sentir pena de mim, ligando ponto a ponto
temas desanimadores. Com o tempo, eu precisaria resistir e desfazer essas
ligações negativas. Também precisaria conduzir nossa congregação por sua
própria necessidade de fazer o mesmo, para que nalmente saíssemos debaixo
das narrativas velhas e apagadas, que não mais descreviam aquilo em que
estávamos nos tornando e a boa obra que Deus havia realizado entre nós. Mas
isso viria mais tarde.
No momento, meu amigo Quiuí simplesmente escutou com bondade e calma,
enquanto eu entrava em parafuso de autoabsorção, sofrimento e reclamações. Ele
é um homem que pastoreia em lugares onde as igrejas evangélicas são tão poucas
que às vezes não existe uma igreja na região para os pastores ou congregantes
procurarem. Às vezes os pastores têm de trabalhar em outra coisa só para
conseguir pagar o aluguel. Vivendo naquele contexto, ele demonstrava uma
consideração bondosa e sábia para com meus pressupostos grandes, notáveis.
Pressupostos sobre tudo que eu imaginava que deveria ter acontecido até agora.
“Zack”, arriscou. “Você se lembra de sua crença de fazer pequenas coisas,
devagar, por longo tempo?”
“Sim”, acedi.
Ele fez uma pausa. “Isso vai levar algum tempo”.
Eu quei olhando-o xamente. Demoramos ali. Ele começou a sorrir.
A verdade de suas palavras começou a penetrar. Encostei-me para trás em
minha cadeira e z um não com a cabeça. Suspirei fundo e me veio à mente: Ele
também come. Comecei a dar meia risada com a ideia, e ele também começou a
rir.
Logo o riso e a graça se encontraram.
A paciência requer paciência.
Ir longe leva mais tempo do que a velocidade.
Às vezes precisamos de um amigo comum, em algum momento despercebido
de impaciência com as orações não respondidas, que possa nos lembrar disso.
Ibid.
TERCEIRA PARTE |
REFORMULANDO NOSSA
VIDA INTERIOR
9 | Uma nova ambição
Todo homem tem dentro de si alguém que deve morrer.
–C W

Havia certa vez um homem que se importava tanto com as árvores que viajava
constantemente em favor delas. Porém, enquanto educava por toda parte e
cuidava pessoalmente de arvores infectadas, de longe e de perto, de tempos em
tempos as tempestades e os enxames varriam a cidade desse homem. As rojadas
sopraram e derrubaram os pinheiros e carvalhos de seu bairro. Suas raízes locais
acabaram ocas e enfraquecidas pela podridão. Enquanto era respeitado e muito
ocupado dispensando sabedoria para a casca e a folha, as árvores do quintal
daquele homem estavam tombando. Ninguém estava lá para cuidar delas.

Desintoxicação
Quando Jesus começa a nos livrar da tentativa de consertar tudo, saber tudo,
estar em todo lugar para todos, o mais rápido e da forma mais notória possível,
encontramo-nos em situação difícil. Muitas vezes nos encontramos naquilo que,
nos velhos tempos, chamavam de “noite escura da alma”.24 Temos de voltar para
casa e cuidar de nossas próprias raízes. A ausência de movimento nos
desestabiliza. Uma espécie de detox espiritual toma lugar. Somos como fumantes
que tentam parar de fumar. Resmungamos e andamos de lá para cá, inquietos.
Até agora, por exemplo, se procurou estar em todo lugar para todos, você
conseguiu passar cada dia utilizando telas tecnológicas, mídia social, e-mail e
telefones, assistindo a mais uma reunião, apoiando mais outra causa ou agenda,
de novo. Inveja, cobiça e autopromoção estão sempre à espreita aqui. Muitas
pessoas o têm aplaudido por sempre estar dando-lhes apoio. Mas isso também
fez com que as pessoas se sentissem presas a você por sua presença pegajosa,
arrogante, por sua constante autopromoção, ou se sentissem não con áveis se
tentassem fazer alguma coisa sem você. As pessoas de casa sentiam que você as
deixava para trás ou sentiam-se abandonadas por sua necessidade de sempre
estar em algum lugar que não onde e com quem você estava. Essa carência
sombria e crescente por precisarem de você é mais aparente para elas do que para
você.
Se você tem se caracterizado como sabe-tudo, até agora habitualmente passa o
dia dependendo do noticiário, das manchetes, dos blogs, livros, palavras,
teologias, comentários, conferências, vídeos, bibliotecas, apresentações de
televisão, conversas ou salas de estudo. Ser conhecedor das respostas e daqueles
que respondem é o que você usa para passar o dia e fazer funcionar o seu
ministério. A fofoca, a maledicência e a arrogância também têm espreitado por
aqui. As pessoas amam isso e o elogiam pelo seu modo de manter as suas
respostas ao mundo claras e diretas. Porém, outros começam a se sentir mais
usados do que conhecidos por você. Aprenderam que não podem discordar de
você. Em algum ponto da linha, simplesmente pararam de tentar contribuir com
seus pensamentos. Você perdeu a capacidade de car quieto quando outra
pessoa tem um pensamento a contribuir. Mesmo que concordem com você, é
difícil imaginar deixar que saiam em frente, sem ter certeza de que estão levando
com eles os pensamentos que você emitiu.
Tentados a consertar tudo, camos acostumados a reagir febrilmente,
impacientes para encontrar algo, qualquer coisa que constantemente impeça as
pessoas que nos incomodam. Conseguimos passar cada dia com fortes emoções,
quando não passividade manipulativa veloz e com estardalhaço, junto a uma
constante recriação (“re-creação”) de programas, slogans, sinais, palavras, pessoas
em sua equipe e até mesmo do jeito de arranjar as cadeiras para resolver
problemas. As pessoas têm amado o jeito que você sempre as manteve se
mexendo com os passos que necessitam par resistir ao desconforto. Mas a
impaciência também tem espreitado por aqui. Você começa a se utilizar de raiva
irre etida, medo, tristeza ou interrupções. As pessoas começam a se sentir
emocionalmente agitadas, na roda-viva, insu cientemente ocupadas, e incapazes
de fazer o bastante para tornar as coisas boas para você. Mesmo quando estão
bem emocionalmente, você não consegue acreditar. Perdeu a sua capacidade de
lidar com emoções negativas e começa a encontrar soluções onde não existem
problemas. Feito para uma crise, não sabe o que fazer em tempo de paz porque
você mesmo pouco sabe sobre paz e quietude. Eventualmente, as pessoas
começam a guardar para si os seus próprios problemas.
Você não somente transmitiu elmente o bom conteúdo do evangelho, como
também percebe que transmitiu o desconforto mal dirigido de tentar ser como
Deus. Em Cristo, você sabe que é hora de deixar de lado todo esse aparato. Mas
são duas e quinze da tarde de quarta-feira. A coisa parece pior antes de car
melhor. Nos próximos sessenta minutos nada dessa lista vai ajudá-lo, e você
sente o desconforto da saúde.

Olhe para a tela (TV, computador, fone, tablet, aparelho); veri que a mídia social; veri que seus
e-mails; compre qualquer coisa; faça um telefonema; cheque a sua agenda; encontre qualquer
pessoa a não ser sua esposa e lhos; participe de uma reunião; veri que o noticiário; leia um livro;
veri que uma postagem de um blog; vá até a biblioteca; vá a uma loja de café; escute um podcast;
prepare um sermão; prepare um estudo bíblico; jogue um jogo; use um aplicativo; crie um
programa de ministério; avalie um método; mexa com a declaração de visão; elabore um folheto;
mexa com os móveis ou cartazes; mude o logotipo ou algum cartaz; veri que seu orçamento;
ponha a sua ira ou seu temor ou tristeza sobre outra pessoa; diga a primeira coisa que vem à
cabeça; expresse a primeira emoção que sente; coma ou beba ou fale com as pessoas; procure o
noticiário.

Se você não consegue fazer qualquer dessas coisas nos próximos sessenta
minutos, o que sobra para fazer? Não é que tais coisas sejam ruins. Já vimos que
ajudam. Mas quando elas se tornam aquilo que impulsiona o nosso tempo em
vez de suporte para quando estamos à espera, perdemos de vista o jogo que
fomos chamados a jogar. Tire as muletas e temos de aprender a andar de novo.
Mas como? Primeiro, temos de voltar a uma vida centrada em Deus.

Interrompendo a Deus
Meus lhos gostam da brincadeira da “vaca interruptora”. Na brincadeira, a vaca
sempre faz “muuu” quando a outra pessoa começa a falar. A vaca é impaciente.
Não pode esperar. Ela interrompe com a voz certa na hora errada, para que
aquilo que a outra pessoa vá dizer nunca seja ouvido.
Você e eu temos de confessar que nós, os sabe-tudo, conserta-tudo e em-todo-
lugar-para-todos somos as vacas interruptoras. Mas as nossas interrupções não
são brincadeira. Com toda a nossa atividade ministerial de erroneamente tentar
ser como Deus, na verdade tornamos difícil para as pessoas ver ou escutá-lo.
Calvino deixou isso bem claro. Assustei-me na primeira vez que li isso:
Não ouvimos Deus falando a nós com calma, quando pensamos que somos muito sábios, mas,
por nossa pressa, o interrompemos quando ele se dirige a nós… e, sem dúvida, ninguém pode ser
verdadeiro discípulo de Deus, a não ser que o escute em silêncio. Porém, ele não requer o silêncio
da escola de Pitágoras, de modo a mostrar que não é certo inquirir sempre que desejamos
aprender o que é necessário ser conhecido; mas ele quer somente nos corrigir e restringir nossa
presunção, para que não, como acontece comumente, o interrompamos despropositadamente, e
para que quando ele abrir sua sagrada boca, possamos abrir para ele nossos corações e ouvidos, e
não impedir que ele nos fale.25

Por todos os nossos sermões, estudos bíblicos, declarações de visão, almoços,


reuniões, postagens, podcasts, e sessões de gerenciamento de igreja,
constantemente ouvimos nossa própria voz. Os outros também. Para muitos de
nós, faz muito tempo que não escutamos a Deus no silêncio, sabendo que era a
sua voz e não a nossa. Fitamos nossa desintoxicação e começamos a perceber que
fomos como um palestrante grosseiro na presença de nosso an trião. A etiqueta
requer que o an trião dê as boas-vindas e convide a todos. Somente então é que
o an trião informa a todos os presentes sobre a presença de seu porta-voz, que
pode responder quaisquer perguntas ou atender às suas necessidades naquela
ocasião em lugar dele. O porta-voz só fala após o an trião ter falado e então,
somente para manter aquilo que o an trião deseja. Imagine como seria para nós,
como hóspedes, se o porta-voz casse tentando falar primeiro ou interrompesse
aquilo que o an trião estava nos dizendo? Estou tentando dizer que nunca
imaginei que com meu ministério da Palavra de tentar consertar tudo, saber
tudo, estar em todo lugar de modo notório, eu estaria na verdade, como diz
Calvino, “interrompendo a Deus” enquanto ele fala aos que ele me chamou para
servir em seu nome, ou quando ele está falando comigo. Existe, sim, um “tempo
para falar”, mas também há “um tempo para se calar” (Ec 3.7). Para deixar de
lado esse mecanismo, é necessário conhecer o silêncio que se requer quando se
está na presença do Deus vivo.

Silêncios, não apenas sentenças


Quando iniciei meu trabalho pastoral, os textos formativos foram “prega a
palavra” (2Tm 4.2) e “Faze o trabalho de um evangelista, cumpre cabalmente o
teu ministério” (2Tm 4.5). No decorrer dos anos eu escrevi extensamente e
procurei sinceramente cumprir esses aspectos essenciais da obra pastoral.26
Mas passei a ver também que nós, pastores, temos a tendência de “usar muitas
palavras”.27 Não estou falando do tamanho do sermão. Sermões curtos não demonstram necessariamente
nada sobre a condição da vida interior do pastor. Eu me re ro a como nós
pastores usamos palavras para gerenciar nossa família, ministérios ou nos
preservar de enfrentar com vulnerabilidade aquilo que não conseguimos
controlar. Ao longo do caminho, portanto, um texto de sabedoria se junta a esses
outros textos para informar meu trabalho pastoral diário. “Sabeis estas coisas,
meus amados irmãos. Todo homem, pois, seja pronto para ouvir, tardio para
falar, tardio para se irar” (Tg 1.19).
Ser pronto para ouvir quer dizer que não falamos a primeira coisa, nem tudo
que pensamos (devagar para falar), mesmo quando estamos certos, mesmo
quando somos pregadores ou evangelistas. Também não damos voz imediata ou
ventilamos até mesmo as mais fortes emoções que pulsam em nosso peito (tardio
para se irar), por mais que sintamos vontade.
Se você não se importa, tome um momento para reler essas últimas duas frases
de Tiago.
Quando Tiago diz “todo homem”, inclui aquele entre nós que prega e ensina.
Mais tarde ele faz essa conexão ainda mais clara. Ele adverte: “não vos torneis,
muitos de vós, mestres” porque estes enfrentarão juízo mais rígido. Então Tiago
identi ca nossa capacidade de tropeçar como motivo para a cautela no ensino
(Tg 3.1). Tiago a seguir desenrola metáfora após metáfora para descrever o
perigo de falar muito (Tg 3.2–12). Fica claro o seu ponto. Falar é perigoso. Os
mestres são palradores. Portanto, grande cuidado tem de ser tomado. Os sábios
têm de aprender a “ouvir” (Pv 1.5) antes de falar.
Jesus possuía tal sabedoria. Ele nos conduz a um aprendizado de fala
secundária. Falamos somente como quem primeiro escutou. A primeira palavra
em cena não é nossa. “Porque eu não tenho falado por mim mesmo, mas o Pai,
que me enviou, esse me tem prescrito o que dizer e o que anunciar. E sei que o
seu mandamento é a vida eterna. As coisas, pois, que eu falo, como o Pai mo tem
dito, assim falo” ( Jo 12.49–50).
A quietude de Jesus não é um tratamento silencioso de manipulação. Não é
uma desculpa para negligência passiva. Também não é artifício para se evitar as
palavras enquanto nos julga em silêncio. “Simplesmente deixar de falar, sem que
o coração escute a Deus, não é aquietar-se” no sentido desta sabedoria.28 Em vez
disso, Jesus nos mostra que ele aguarda em silêncio pela voz do Pai. Então ele
fala.
“Silêncio nada mais signi ca do que aguardar pela Palavra de Deus”.29 Ficamos
quietos cedo de manhã porque Deus deverá ter a primeira palavra, e somos
silentes antes de dormir porque a última palavra também pertence a Deus.30
Passamos a ser mais quietos antes de falar no decorrer do dia, como se a cada
momento, em cada cenário, aguardássemos ouvir outro em cuja presença
propomos falar. O que, senão esse esperar em Deus na presença dos outros é
nossa alegria e tarefa? A obra pastoral, como a adoração corporativa (Ec 5.1–3) e
oração (Mt 6.7), não é um fórum no qual multiplicar nossas palavras e escutar
nossa voz. Falamos apenas como quem escuta a voz de outro. Jesus não nos
deixou. Nele encontramos graça restauradora para dizer de sua voz o que o poeta
disse sobre a coruja: “Um som de coruja foi vagando comigo pela estrada. Eu não
a ouvi — respirei-a em meus ouvidos.”31
Marque isso se puder. Os silêncios, não apenas as sentenças, formam o
trabalho do ministério pastoral. Os pastores sábios são pregadores que escutam.

Ambição por quietude


Quando Jesus pergunta: “Que queres que eu faça?”, começamos de novo nossa
desintoxicação. Aprendemos a dizer: “Por favor, me dê nova ambição por uma
vida calma”. Imediatamente, ouço-me queixar: “Uma vida calma não vai fazer
diferença! Se eu não falar e zer acontecer, como é que vou efetuar as mudanças?
Se eu deixar minha voz passar despercebida, como é que serei ouvido? Se eu não
falar, não vão me entender. Se eu não mantiver as coisas em movimento, quem
vai fazê-lo? O que será da obra de Deus?”
Mentores sábios nos pedem uma pausa aqui. Dizem-nos para escutar o que
dizem os pensamentos. Ensinam que nossa queixa quanto ao silêncio pode expor
ambições nocivas que espreitam por dentro. O velho Matthew Henry disse desta
maneira:

Temos de estudar para sermos quietos... Os homens, na maioria, são ambiciosos da honra de
grandes empreitas, e poder, e preferências; eles as cobiçam, eles as cortejam, eles atravessam mar e
terra para obtê-las; porém, a ambição do cristão deverá ser desenvolvida em direção à quietude.32

Henry estabelece essa nova ambição nas palavras do próprio Paulo “e a


diligenciardes por viver tranquilamente, cuidar do que é vosso e trabalhar com as
próprias mãos, como vos ordenamos” (1Ts 4.11). Estudar essa tranquilidade
inclui disposição de ser ignorado “lá fora”, abrir mão do que o mundo deseja, a
m de ser el a Deus com a porção que lhe foi dada.
Mas como encontrar forças para ser ignorado no mundo, a não ser que essa
quietude descreva também um sábado do coração a cada momento com Deus?33
Um coração de sábado descreve uma vida interior que busca repouso nele. Não
tememos perder a atenção do mundo apenas porque temos prazer na companhia
do verdadeiro tesouro. A atenção dele basta. Nossa con ança está em que ele
mantém coesas todas as coisas. Cremos ser esta a verdade para qualquer pessoa a
quem servimos. Esse descanso interno faz parte do que nós os ajudamos a
cultivar.
Mas, por quê? Porque a quietude desta espécie tem seu lucro. Quando as
circunstâncias nos assediam, estudamos a quietude de alma para que possamos
nos manter inabaláveis “em meio às maiores provocações”34 e “desigualdades da
Providência”.35 Quando as pessoas vêm contra nós como tempestade, com sua
incapacidade de escutar e insistência por falar tudo que pensam e sentem,
descansamos mais solidamente sobre este fato: “Uma verdade necessária, falada
acaloradamente, pode causar mais danos do que bem, ofendendo ao invés de
satisfazer.”36 Suportamos a tempestade e esperamos para reagir, se for esse o caso,
depois que os ventos se acalmarem.
Ouço novamente dentro de mim o resmungar das objeções. “Mas Paulo
escreve essas palavras dentro do contexto particular de cristãos que lutavam por
cuidar de seu lugar local com trabalho de verdade. Paulo não queria dizer o
mesmo que Matthew Henry disse, de que todos os cristãos devam fazer da
quietude o seu estudo e ambição. Certamente ele não quis dizer que os pastores
deviam fazer isso. Os pastores não devem se tornar ambiciosos por uma vida
calma! Supõe-se que eles façam a diferença!”
As palavras de Henry voltam para mim e eu me pergunto: “Se, sendo pastores,
nós não devemos estudar para sermos calmos, isso quer dizer que, ao contrário
dos outros crentes, nossa tarefa é estudar para sermos barulhentos? Somos
intencionados a insistir com os outros a essa espécie de descanso interno por
entre as provocações da vida, quando nós mesmos não a possuímos? E nessa
murmuração, você não está se esquecendo, Zack, que sob sua vocação como
pastor, você é um cristão ordinário, que precisa colocar seu coração para
descansar em Deus — não por amor de seu ministério, mas por amor de sua
própria vida?”
Ainda mais, Henry não identi ca a quietude com tom de voz ou um dia
passado entre os lírios para repousar. Por mais signi cativos que esses possam
ser, Henry conecta o repouso interior com nossa consciência. “Estamos
acostumados a dizer: ‘Eu daria tudo por uma vida calma’ — Eu digo, qualquer
coisa por uma consciência calma”.37
Não é nossa consciência o nosso agitador? Ela grita para nós, e nós,
febrilmente, procuramos saber como consertar e ser mais rápido possível, a m
de assegurar ao nosso ser interior ou àqueles a quem servimos que somos
su cientes e que nosso ministério é bom. Alvoroçamo-nos ao tentar ser como
Deus porque não sentimos sensivelmente que seja bom e aceitável não ser assim.
Talvez agora nos sintamos desconsertados. Em Eclesiastes 9.17, a palavra “em
silêncio” carrega a ideia de con ança ou descanso em contentamento.38 A
primeira vez que você tenta passar um dia inteiro sem acesso a nada exceto a
Deus em um centro de retiro local, você começa a se inquietar até car frustrado.
Ficar parado entre os silêncios nos faz parecer crianças começando a andar,
quando entram no berçário domingo pela manhã. No momento em que nosso
pai ou mãe nos deixa ali, sentimo-nos abandonados. Ou explodimos em choro
raivoso ou nos agarramos a qualquer pessoa ou coisa ou promessa que nos
segure.
Charles Spurgeon, velho pregador batista, explica a razão. “Alguns homens não
suportam a quietude”, diz ele, “porque isso revela sua pobreza interior”. Tire as
muletas que usamos para manter de pé nossa persona conserta-tudo, sabe-tudo e
sou onipresente, e as pernas quebradas de nossa intimidade com Deus se
dobram. “Por mais valioso que seja o dom de elocução”, diz ele, “a prática do
silêncio em alguns aspectos o excede em muito”. Ele acrescenta:
Estou persuadido de que a maioria de nós considera demais a fala, que é, a nal, apenas a casca do
pensamento. A calma contemplação, a adoração em silêncio, o enlevo sem palavras... não roubam
de seu coração os mares profundos da alegria; não deixem de alcançar a vida nas profundezas por
tagarelar para sempre entre as conchas quebradas e os surtos espumantes da praia.39

A quietude é um meio da graça de Deus. Dentro dela, Deus nos mostra nossa
pobreza interna e nossas ambições mal dirigidas. Ele esperou pacientemente,
com calmo coração, enquanto nós fervilhávamos nossa vida com tempestades e
espumas, constantemente o interrompendo. Agora que nalmente estamos em
silêncio, ele tem cura para proclamar, consertos a realizar. Ficamos agarrados no
conserto dos outros, no saber e ser tudo e no estar em todo lugar o mais depressa
possível, com a maior fama possível, como o pequenino que não consegue passar
um dia sequer sem seu cobertorzinho de consolo. Mas chega uma hora quando a
criança tem de amadurecer em sua sabedoria e aprender a dormir sem ele. A
primeira noite e dia tentando fazer isso é uma horrível desintoxicação. Mas logo
vem o descanso, e a liberdade abençoa a todos na casa.

As provocações de um pastor
A este respeito, dois velhos pastores e um mais jovem nos dão bom conselho
sobre nosso processo de desintoxicação. Sei muito bem que cada um desses
pastores mais velhos era imperfeito; também, que eles talvez representem
tradições das quais você discorde. Mas ser um pastor imperfeito, ou até mesmo
profundamente errado, não é sinal de não ter nada certo ou bom em Cristo para
nos dizer. Vejo isto toda vez que prego. Então, continue escutando se puder.
Temos ajuda sábia aqui.
1) Os limites do seu chamado revelam o cuidado pastoral de Deus por você.
João Calvino quer que saibamos que para nos proteger de virar nossa vida de
cabeça para baixo com as ansiedades, empenhos, anseios mal dirigidos, arfadas e
colisões precipitadas, “cada indivíduo tem sua própria espécie de vida designada a
ele pelo Senhor, como uma espécie de posto de sentinela, para que ele não
vagueie sem rumo e sem cuidado”.40
É quarta-feira, duas da tarde. Você tenta se aquietar. Mas então você imagina o
chamado de outra pessoa e queria que tivesse o mesmo chamado dela. Você tenta
atravessar os limites de suas atribuições e ajunta para si as responsabilidades dela
também. A calma não se encontra aqui. Não por muito tempo. Abra mão disso.
Con e na paz de Deus para você. Não é “pequeno alívio dos cuidados, labores,
problemas e fardos para um homem saber que Deus” tem dado a ele esse posto
especí co de sentinela neste tempo. Ao se libertar de tentar fazer algo que Deus
não pediu que você zesse, ele quer que você experimente sua contente
“consolação”. Saber que essa posição lhe foi dada por Deus o torna capaz de
“suportar e engolir o desconforto, a vexação, o cansaço e as ansiedades em seu
modo de vida”, pois pelo menos você está “persuadido que este fardo foi
colocado” sobre você “por Deus”.41
Noutras palavras, até mesmo a vocação pastoral faz parte do cuidado pastoral
de Deus por aqueles a quem ele chamou. Assim, estou em meu escritório em
Webster Groves na segunda de manhã. Os céus estão nublados com chuva e
gelo, a semana começa gelada. Ao contrário de fazer outra coisa grandiosa que
imagino para mim, Jesus também está aqui vestindo seu casaco de frio. Estava
acordado antes de mim. Tem trabalho para ser feito nessa cidade do Missouri.
Por seus propósitos, ele me chamou, e não você, para entrar nesse trabalho cheio
de alegrias e de lágrimas com ele. Se ele é quem chamou, o trabalho deve ser
importante. Se eu sou a pessoa para fazer isso, deve haver uma razão sábia. Isso
quer dizer que tenho trabalho que é importante para fazer, mesmo se em toda a
minha vida eu nunca conseguir fazer o trabalho que você realiza — o trabalho
valioso que você tem para fazer ali fora e que às vezes eu, irrequieto e ingênuo,
imagino que me faria mais feliz ou mais signi cante. Por favor, me perdoe.
Tenho orações a fazer por pessoas sobre as quais você nunca ouviu falar. É
melhor eu continuar com essa boa obra do dia. É melhor você também continuar
com o que você tem a fazer.
2) Ao tentar tanto não perder nada, na verdade produzimos aquilo que tememos.
João Cassiano descreve ministros inquietos não só pelo chamado dos outros
como também por seus dons. “Eles ouvem pessoas, as quais são comentadas,
devido ao zelo ou virtude que não a sua própria”.42 Qualquer coisa que outro
ministro faz bem torna-se ocasião, não para nossa gratidão a Deus pelo outro
ministro e pela causa do evangelho em nossa geração, mas para torcermos as
mãos e nos pressionar porque agora teremos de igualar ou fazer melhor aquilo
que o outro ministro consegue fazer. Se nós não conseguirmos realizar o que
todos os outros fazem o tempo todo, acreditamos que de alguma forma somos
fracos no ministério. Quando tentamos agarrar os dons que Deus não nos deu,
perdemos a calma e aumentamos nosso “tumulto espiritual”, desejando
inquietamente “assumir buscas diferentes de” nossa própria tarefa. Porém, essa
inquietação é “perigo mortal” a nal, “às vezes acontece que aquilo que alguns
fazem corretamente, outros imitam erradamente”.43
Portanto, lembre-se: “é impossível que um único homem brilhe com destaque”
em todos os dons dados na lista de Paulo. “Se alguém tenta buscar todos esses
dons simultaneamente, necessariamente acontece que, ao correr atrás de todos,
não recebe realmente nenhum deles, e nessa mudança e variedade constante,
obtém-se perdas e não ganhos”.44 Noutras palavras, perdemos todo dom
agradável que Deus já tinha para nós. Não enxergamos tais deleites porque eles
já estão diante de nós.
3) Menor sempre é melhor do que maior, a não ser que, e somente no caso em que
Deus nos impulsione.
Perdemos o descanso da alma quando acreditamos que o maior é sempre
melhor. A serpente nos tenta a acreditar que alguns lugares são mais importantes
que outros, que algumas pessoas são mais signi cantes que outras, e que nossas
estratégias e nossos dons são respostas mais valiosas do que o sábio chamado de
Deus.
Mas em Lucas 14.7–11, Jesus instrui aos que o seguem que busquem os
lugares mais baixos à mesa, não os mais altos. Francis Schae er aponta que
muitos pastores acreditam no oposto do que Jesus ensina. Em nosso modo de
pensar, “somos tentados a dizer: ‘Tomarei o lugar mais alto porque isso me dará
mais in uência por Jesus Cristo”. Mas Jesus nos ensina que devemos tomar o
lugar mais baixo, a não ser que o próprio Senhor nos desloque para o maior.45
Somos tentados a assumir algo “grande” a nossos olhos ou aos olhos de outros
em nome de Deus, perdendo-o totalmente de vista. O lugar menor não somente
nos torna capazes de tomar lugar à mesa com gratidão e humildade, como
também nos capacita a sentarmo-nos diariamente à sua presença, comer do seu
alimento, ouvir suas palavras, alegrarmo-nos nele. Quem iria querer deixar este
lugar? Assumimos papéis maiores sem termos força para tanto, a não ser para
desapontar as pessoas importantes que esperam por nós ali. A nal de contas, se
formos para a posição maior, faremos isso rebaixando-as para que nós e elas
ainda possamos escutar a Deus. Então, tome o assento menor, o assento que lhe
permite tal presença com Jesus, em vez daquele lugar que tiraria de você essa
calma. Somente vá até lá se aquele que chama estiver indo com você. Somente vá
até lá se você estiver pronto, não importa o tamanho do lugar, para permanecer
em seu compromisso com os menores, com as coisas que geralmente são
despercebidas em Jesus.
A maioria de nós não possui categoria para aquilo que acabei de dizer. Na
maior parte de meu ministério pastoral, eu também não tinha. Precisamos de
ajuda, e o socorro vem. Os pastores precisam do pobre homem sábio.

Entregadores esquecidos
Em Eclesiastes 9.13-16 lemos a história de um pobre homem sábio que certa vez
libertou uma cidade pequena, com pequena população, de ser violentamente
tomada por um rei arrogante. O rei e o seu exército atacaram, viram a pobreza
daquele homem e o consideraram irrelevante, não prestando atenção a ele. Mas
esse poderoso rei subestimara a sabedoria. O rei foi logrado pelo pobre homem
sábio e foi derrotado. O pequeno grupo de pessoas e seu pequeno lugar no
mundo foram salvos!
O que você supõe que aconteceu em seguida? Eu imaginei uma história de
pobreza para riqueza, em que esse homem que livrou a cidade se tornou célebre.
Mas nessa história bíblica, aquilo que muitos de nós tememos aconteceu mesmo.
A cidade esqueceu-se dele. Esta não era uma plataforma para maior relevância.
Não é necessário dizer que para mim este não foi um texto de teologia pastoral
no começo de meu ministério. Você pode me culpar? Observe o obituário.
Toda sua vida, ele viveu com muito pouco, em um pequeno lugar, no meio de
pequeno número de pessoas, fazendo um bem que ninguém lembrava.
Mas note o que Deus fala a respeito desse pobre homem sábio e sua vida de
vitórias não lembradas: “melhor é a sabedoria do que a força, ainda que a
sabedoria do pobre é desprezada, e as suas palavras não são ouvidas. As palavras
dos sábios, ouvidas em silêncio, valem mais do que os gritos de quem governa
entre tolos” (Ec 9.16–17). Leia de novo, sim?
O rei, como a loucura, era barulhento. Fazia alarde de sua fama (grande),
posição (rei), recursos visíveis (levantou grandes baluartes), poder (força), e
seguidores (sitiou a cidade) (Ec 9.14).
Em contraste, o homem que ouviu em silêncio, esse homem de Deus, era
pobre. Um homem pobre só possui seu próprio e humilde ser a oferecer. Não há
gritaria em sua aparência. Neste caso, sua pobreza era física, não emocional ou
mental. Sua falta tinha a ver com bens materiais e aparências, não substância ou
graça.
A obra pastoral requer presença. Quer sejamos introvertidos ou extrovertidos,
rurais ou urbanos, de grandes igrejas ou igrejinhas pequenas, nossa tentação de
resistir à presença humilde permanece a mesma. Somos propensos, erradamente,
a seguir o grande governante nessa história sobre sabedoria do que seguir o
pobre homem sábio. Nós nos apresentamos como quem conserta as coisas, sabe
das coisas, que está em todo lugar e é rápido para curar. Mas o sábio de
Eclesiastes nos redireciona. A pobreza do homem sábio signi ca que não
podemos usá-lo por seu dinheiro, status, posição política, poder, realizações, ou
pessoas que ele possa conhecer, as quais poderão ajudar com as conexões e rede
de contatos com outras pessoas. Não há nada que esse homem possa nos
oferecer no mundo, exceto seu testemunho de Deus, a integridade de seu
caminho e a graça em sua vida. Essas duas diferentes maneiras de ser
representam dois poderes contrastantes para nossa con ança — o poder da
estultícia versus o poder da sabedoria. Sabedoria é encontrada na presença
humilde do pobre homem. Assim também, o poder de Deus.
Agora eu me encontro pedindo a Deus nos domingos pela manhã: “Senhor,
livra-me de orar e pregar nalguma espécie de voz de pregador. Salva-me para que
eu ore e pregue com a voz que tu ouves nas vigílias da noite ou no dia em que
clamo a ti e não há mais ninguém por perto.”
Também estou pedindo a Deus que me livre de achar que eu deva oferecer
engano com minha presença, para que eu seja bem-sucedido no ministério do
evangelho. Peço a resistência de ser esquecido, até mesmo na igreja, por aqueles
que não estavam buscando o que é humildemente sábio. Estou pedindo isso
porque não tenho capacidade em mim mesmo de fazer qualquer dessas coisas.
Mas Jesus tem. Embora ele fosse alguém de quem “os homens escondem o rosto”,
ele carregava sobre si as nossas dores, levando nossas tristezas, sendo ferido por
nossas transgressões, e moído por nossas iniquidades. Do nosso tolo ponto de
vista, nós o “reputávamos por a ito, ferido de Deus e oprimido”, e buscávamos
salvação em outro lugar. Mas o castigo que nos trouxe a paz estava realmente
sobre ele o tempo todo, e por suas pisaduras somos sarados — mesmo aqueles
entre nós que éramos como ovelhas desviadas do caminho (Is 53.3–6)! Jesus é o
pobre homem sábio, a nal de contas, não é mesmo? O pobre que libertou
aqueles que se esqueceram dele. Ele salvou nossa cidade no silêncio, e nos
conclama a uma relevância de uma espécie diferente.

Solitude, presença hospitaleira, sabedoria


Quando constantemente interrompemos o que Deus está dizendo aos nossos
corações, interrompemos a solitude — o senso de que estando a sós com Deus
não somos solitários, mas estamos verdadeiramente com ele, da maneira como
nós somos e como ele é. A solitude aguarda palavra e direção. Ela nos torna
capazes de tratar de tudo que gira em nosso interior e de discernir entre a sua
voz e a nossa, a sua voz e as vozes dos que nos cercam, para que respondamos a
ele em vez de reagir ao pensamento e às emoções que vêm de primeira mão. A
calma solitude do coração com Deus graciosamente nos transpõe de reações para
respostas.
Acrescentamos ainda que, quando constantemente interrompemos o que Deus
está dizendo aos que nos cercam, estamos interrompendo a hospitalidade. Por
“hospitalidade”, não me re ro a pôr uma mesa e colocar comida gostosa sobre ela.
Estou me referindo ao que essa gura indica. Somos capazes de dar boas-vindas
a outros seres humanos exatamente como eles são, mesmo quando eles creem ou
dizem, e se pareçam ou cheirem diferente do que nós queremos que sejam. A
hospitalidade nos transpõe graciosamente de sermos pessoas consumidoras para
lhes dar boas-vindas, sem consertar, saber ou ser para eles aquilo que só Deus
pode ser e fazer.
Quando constantemente interrompemos o tempo de Deus nas circunstâncias
que nós e outros enfrentamos, estamos interrompendo a sabedoria. Sabedoria é
“o temor do S ” (Pv 19.10), o reconhecimento de que Deus nos precede a
cada momento e sua voz a respeito desse momento é verdadeira. O tempo de
Deus, os seus valores, as coisas menores e em sua maior parte desprezadas, mas
que importam, nem sempre nos parecem e cientes, grandes ou imediatas.
Nas nossas tentativas de fazer por Deus, sem esperar por ele, perdemos nossa
solitude, nossa capacidade de tratar o próximo com hospitalidade, em vez de usá-
lo como nossa plataforma ou nosso plano estratégico, e, com isso, perdemos a
capacidade de esperar com discernimento pelo tempo e o modo de Deus.
Tornamo-nos reativos, consumidores dos outros, apressados, e tudo isso para
Deus. Isso quer dizer que somos propensos também a ensinar tais qualidades
aos outros.

Com Jesus, sozinho com o Pai


Não estou falando nada disso de modo trivial. Sou um homem ansioso. Surtos
de pânico ou depressão são características minhas. Acrescente a isso minhas
ambições, inquietação por qualquer coisa exceto o silêncio com Deus. Essas
coisas assombram minha alma e encontram aplauso mal dirigido por todo lado
que olho. Não se engane. Um coração calmo é uma graça dada e pela qual se luta
com nosso Senhor. Ore comigo, está bem? Aqui, na desintoxicação resistente ao
que signi ca nalmente aquietar-se. Lembre-se de seu Salvador. Ele sabe o que é
ser desprezado, esvaziado, estar dolorosamente sozinho. Mas ele nos diz que não
está sozinho. Mesmo no lugar de maior desolação, o Pai lhe fazia companhia ( Jo
16.32). Assim, deixe que o velho pastor Richard Baxter reconte essa promessa de
solitude para você também. Em Cristo, não importa por quanto barulho e
gritaria, em nosso pecado, tenhamos sido consumidos, nós também podemos
dizer, agora mesmo, pela graça: “Não estou sozinho porque o Pai está comigo”.46
Permita, então, que Baxter provoque sua fé em uma declaração. Talvez você
sinta o terrível desconforto da saúde. Permita que eu lhe diga palavras bondosas.
Neste momento, se você se encontra em um deserto em vez de em sua cidade
preferida, numa prisão em vez de em um palácio, saiba o seguinte: quando
estamos com o Pai, podemos dizer, sem sermos banais ou ingênuos: “Que este
deserto seja a minha cidade, e essa prisão o meu palácio, enquanto eu habito a
terra”. Enquanto eu tiver essa companhia com Deus isso “não é desvantagem”,
ainda que “por olhos mortais eu não seja mais visto”.47
Assim, enquanto barulhentos reis fazem algazarra e as multidões aplaudem, a
relevância fala humildemente no lugar desolado. Na quietude Deus é ouvido e
começa o conserto.
S. João da Cruz, Noite escura da alma, (Dark Night of the Soul; Nova York, Doubleday, 1999).
João Calvino, “Commentary on James 1:19–21,” em Commentaries on the Catholic Epistles, trad. John Owen,
Christian Classics Ethereal Library, acessado em 28 de abril de 2015, http:// www .ccel .org /ccel /calvin
/calcom45 .vi .ii .vi .html ?scrBook = Jas & scrCh = 1 & scrV = 19 #vi .ii .vi –p 9 .1.
Ver meu Preaching to a Post-Everything World: Crafting Biblical Sermons at Connect with Our
Culture (Grand Rapids, MI: Baker, 2008); e Kindled Fire: How the Methods of C. H. Spurgeon Can Help
Your Preaching (Ross-shire, UK: Mentor, 2006).
Henri Nouwen, e Way of the Heart: Connecting with God rough Prayer, Wisdom, and Silence [O
caminho do coração: conectando a Deus mediante a oração, sabedoria, e o silêncio], (New York: Ballantine,
1981), 48.
Richard Foster, Celebration of Discipline: e Path to Spiritual Growth, (New York: Harper San Francisco,
1988), 86.
Dietrich Bonhoe er, Life Together: e Classic Exploration of Christian Community, (New York: Harper San
Francisco, 1988), 84–85.
Ibid., 85.
William Sta ord, “Malheur Before Dawn,” em Even in Quiet Places [Sentimentos maus antes da
madrugada: Mesmo em lugares calmos], (Lew¬iston, ID: Con uence Press, 1996), 49.
Matthew Henry, “A Discourse Concerning Meekness and Quietness of Spirit” [Discurso sobre mansidão e
quietude de espírito], em e Complete Works of Matthew Henry, (Grand Rapids, MI: Baker, 1997), 133.
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Ibid.
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Michael A. Eaton, Ecclesiastes, Tyndale Old Testament Commentaries (Downers Grove, IL: InterVarsity,
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Charles Spurgeon, Lectures to My Students (Grand Rapids, MI: Zondervan, 1954), 51.
João Calvino, Institutas, trad, Ford Lewis Battles (Philadelphia: Westminster, 1960), 2.3.10.
Ibid.
João Cassiano, Conferences: e Classics of Western Spirituality [Conferências: os clássicos da espiritualidade
occidental], trad. Colm Luibheid (New York: Paulist Press, 1985), 158.
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Ibid.
Francis Schae er, No Little People [Não há gente pequena], (Wheaton, IL: Crossway, 2003), 29
Richard Baxter, Converse with God in Solitude [Conversa com Deus na solidão], (New York: C. Wells,
1833), 153–54.
Ibid., 100-101.
10 | Contemplando
Deus
Deus é um bem deleitoso.
–T W

Quietos com Deus na presença de nossa solidão, crescemos na solitude do


coração.
Calmos com Deus na presença das pessoas, damos boas-vindas hospitaleiras.
Tendo quietude com Deus na presença de nossas circunstâncias, damos a
todos uma chance de sabedoria.

Um propósito diferente
Quando fazemos do estudo da quietude a nossa ambição, e propomos nos tornar
pregadores que escutam entre as coisas que têm importância, surge um problema
severo para nossa abordagem ao ministério. Se nosso propósito como pastores
for realizar grandes coisas de maneira notória, o mais depressa possível, para que
todos se mobilizem a fazer grandes coisas, consertando tudo, sabendo tudo e
estando em todo lugar para Deus, esse nosso propósito e a quietude estão em
contraposição.
Tenho necessidade de ver como o estudo da quietude e da vocação pastoral
andam juntos. Encontrei ajuda em Isaías 50. Destaco o versículo 4:
OS Deus me deu língua de eruditos, para que eu saiba dizer boa palavra ao cansado. Ele
me desperta todas as manhãs, desperta-me o ouvido para que eu ouça como os eruditos.

Nosso tema do último capítulo volta aqui. Deus é quem toma a iniciativa. Ele
nos desperta a cada dia. Ele nos ensina na solidão a falar a outros como quem foi
ensinado. Falamos como aqueles que escutam diariamente a Deus. Mas por que
este servo sofredor acorda e escuta no ritmo matutino a iniciativa de Deus? Ele
nos diz claramente: “para que eu saiba dizer boa palavra ao cansado”.
Os cansados estão no m da linha. Não lhes restam recursos que os sustentem.
Do que precisam essas pessoas “cansadas” e “exaustas”? Saber que existe alguém
que “faz forte ao cansado e multiplica as forças ao que não tem nenhum vigor...
os que esperam no S renovam as suas forças, sobem com asas como
águias, correm e não se cansam, caminham e não se fatigam” (Is 40.28–31).
Jesus cumpre e assume essa conversa. Como servo sofredor, aprendeu
diariamente do Pai como fazê-lo, e o fez (Mt 11.28–30). A presença hospitaleira
(sustentando aquele que está cansado) é possibilitada pela solitude do coração
com Deus (a cada manhã ele me acorda).
O apóstolo Paulo aprendeu de Jesus esse mesmo propósito e habilidade da
graça. “A vossa palavra seja sempre agradável, temperada com sal”, disse Paulo.
Mas, por quê? “Para saberdes como deveis responder a cada um” (Cl 4.6).
Falamos do que é bom “para edi cação, conforme a necessidade”. Por quê? “Para
que assim, transmita graça aos que a ouvem” (Ef 4.29).
Quando Jesus pergunta: “O que queres que eu faça?” Colocamos em nossa lista
a pregação que também ouve. Pedimos para estudar a quietude. Agora,
acrescentamos: “Ó Senhor, concede que, no m de meus dias, eu tenha
aprendido de ti como sustentar com a palavra aquele que está cansado”. O
propósito da quietude com Deus é dar hospitaleiras boas-vindas àqueles que se
encontram cansados.
Quando Jesus emprega todas as formas de silêncio e de sentenças, “jamais
esmagará a cana quebrada, nem apagará a torcida que fumega” (Is 42.3). Em
meus anseios por fazer grandes coisas para Deus eu não teria identi cado esse
propósito como meu. Tal propósito soa pequeno demais. É como dizer que
quero ser pastor porque minha grande ambição na vida é aprender a ajudar uma
pessoa comum em sua luta por encontrar a Deus. Dou risada com pesar e abano
a cabeça. Diga-me: quando aconteceu que uma vida com o propósito de ajudar
pessoas comuns em suas lutas ordinárias a encontrar a Deus tornou-se coisa
demasiadamente pequena?

Um modo diferente de aprender


Para aprendermos a ter ambição por quietude, a m de sustentar os cansados de
modo hospitaleiro, teremos de ajustar ou expandir o modo como aprendemos.
Uma história antiga descreve um jovem que implorou a um velho sábio: “Ó
mestre, por favor, seja meu professor”. A partir daquele momento o velho sábio
convidou o moço jovem a acompanhá-lo por onde quer que fosse e em tudo
quanto fazia. Depois de algum tempo, o jovem cou impaciente, pois embora o
mestre recebesse muitos visitantes e frequentemente lhes desse conselho, o velho
sábio nunca falou da mesma maneira para o jovem. Finalmente, o jovem não
suportou mais isso. Gritou: “Mestre, dei tudo para seguir o senhor! Por que o
Senhor não me ensina como ensina aos outros?”
O velho sábio escutou com compaixão e respondeu: “Você não sabe que em
todo momento que você gasta comigo tenho lhe oferecido o meu ensino? Tudo
que faço e digo, quer em público, quer em particular, está claramente diante de
você.”
O jovem permaneceu frustrado e confuso. Depois de um momento, de repente,
o velho sábio gritou: “Diferente de meus outros alunos, o que você recebe de
mim, recebe diretamente!”
Naquele momento, foram abertos os olhos e o coração do jovem.48
Na história, um dos seguidores de Jesus teve experiência similar. Jesus disse a
Filipe e aos outros que eles conheciam Deus Pai, e o viram. Confuso, Filipe disse
a Jesus: “Senhor, mostra-nos o Pai, e isso nos basta”.
Jesus respondeu:

Há tanto tempo estou convosco, e não me tens conhecido? Quem me vê a mim vê o Pai; como
dizes tu: Mostra-nos o Pai? Não crês que eu estou no Pai e que o Pai está em mim? As palavras
que eu vos digo não as digo por mim mesmo; mas o Pai, que permanece em mim, faz as suas
obras. Crede-me que estou no Pai, e o Pai, em mim; crede ao menos por causa das mesmas obras
( Jo 14.4–9).

É como se Jesus dissesse, em resposta: “Que outras de minhas palavras, obras e


modo de ser vocês precisam para aprender, que eu já não tenha oferecido ao dar-
lhes acesso íntimo à minha vida diária?”
É quase como se Filipe só soubesse prestar atenção às multidões que se
ajuntavam, ao ensino público e às palavras diretas. Filipe não sabia que era
necessário discernir o Pai também nas sombras surgidas devido a coisas maiores
e mais importantes. Nas sombras que via das coisas pequenas de Jesus, e em sua
maior parte menos atraentes.
Se quiser aprender quietude, você terá de estar atento às graças implícitas e
entediantes que transbordam de vida bem à nossa frente. Pregadores que
escutam aprendem a contemplar.

Aprendendo novamente a contemplar


O verbo contemplar é usado numerosas vezes nas Escrituras. Contemplar é parar
tudo mais por um momento a m de xar completa atenção sobre alguma coisa.
Meditativamente, demoramos nessa situação para que a partir da contemplação
silenciosa possamos discernir a relação de Deus com tal situação e obter dele o
signi cado.
Os sábios, como o pobre sábio do nosso último capítulo, aprendiam a
contemplar a criação e as criaturas de Deus, incluindo as condições da criação
(Pv 24.31), os caminhos das pessoas em seu pecado (Pv 7.10), as dores das
pessoas contra as quais outros pecaram (Ec 4.1), e as operações interiores do
nosso coração diante de Deus (Pv 24.12).
Essa comunidade de sabedoria também buscou contemplar a Deus em sua
providência, incluindo as obras de Deus na história (Sl 46.8), a boa provisão de
Deus na vida comum (Ec 5.18), a verdade de algo bom que está sendo vivido em
nossa experiência (Sl 133.1), a boa presença de Deus em nosso favor a cada
momento (Sl 33.18) e a promessa do auxílio de Deus (Sl 54.4).49 Por todos os
Evangelhos, Jesus chama-nos a contemplar desses modos sábios.
Quando fazemos isso, aquilo que antes era confuso para nós por causa da
aparente proximidade, pequenez e simplicidade, entra graciosamente em foco
entre as coisas que têm importância. Contemplar a Deus em todas essas
mudanças diárias muda nosso modo de aprender e altera aquilo que olhamos.
Começamos a escutar e olhar as pessoas de modo a ajudá-las a encontrar o que
de outro modo seria a “não aparente presença de Deus”.50 A contemplação nos
leva a dizer, pouco a pouco, que pela graça

Agora estão abertos os ouvidos de meus ouvidos. Agora abertos estão os olhos dos meus olhos.51

O trabalho pastoral contemplativo, sob essa perspectiva, arranja e trata todas


as coisas do ponto de vista do temor do Senhor, de modo a contemplar a Deus
com reverência e gratidão como nosso criador, governador, o único que cura e o
verdadeiro intérprete de qualquer coisa que conheçamos com respeito a tudo que
existe, em qualquer lugar e tempo que estejamos.
Em tudo isso, estamos dizendo basicamente duas coisas. (1) “O principal
cuidado e solicitude de nossa vida é buscar a Deus, aspirar por ele com todos os
afetos de nosso coração, e não encontrar repouso em nenhum outro lugar senão
somente nele”;52 e (2) as pessoas precisam de sua ajuda pastoral para encontrar a
Deus, para que elas também encontrem nele seu descanso.

Contemplar muda a forma de estarmos


com as pessoas
Em ocasiões de crise, não se pode evitar a rapidez, mas, como norma diária, a
contemplação nos conduzirá a fazer uma pausa entre reuniões (e telefonemas e e-
mails) para escutar e orar. Como isso lhe parece?
Para começar, você confessa que essa reunião não poderá consertar todas as
coisas, não possui todo conhecimento, não consegue ser tudo para uma pessoa,
nem oferece alívio completo e nal. É só Jesus que mantém juntas e dá
subsistência a todas essas coisas (Cl 1.17).
Em seguida, você lembra que Deus precedeu aqueles que você encontrará. Ele é
ativo com as pessoas com as quais você vai se encontrar (quer elas saibam, quer
não) muito antes delas chegarem em seu gabinete, e a atividade divina nelas
continua depois que forem embora. Isso nos diz pelo menos duas coisas. (1) O
encontro dos outros com Deus não começa nem termina quando você se
encontra com eles. (2) Consequentemente, você não é a parte mais central ou
importante dessa reunião. Deus é. Deus está permitindo que você assista junto a
outros que ele amou e seguiu por todos os outros dias.
Assim, agora, antes das reuniões, estou aprendendo a pedir que Deus “abra
portas” e me dê graça para saber o que dizer se alguma coisa deve ser dita (Cl
4.2–6). Após a reunião, também estou aprendendo a fazer uma pausa para
oração. Sei que a atividade diabólica se junta aos cuidados e pesares do mundo,
tentando sufocar qualquer coisa boa que tenha sido dita (Mt 13.19–22).
Durante a própria reunião há também “pausas entre as sentenças e os
parágrafos”, às vezes desajeitadas. A nal, como foi Deus que nos precedeu, eu
não devo tomar a frente desse encontro, pelo menos não em primeira mão,
exceto para convidar-nos a escutar enquanto conversamos. Assim como é
estultícia um paramédico chegar em cena sem veri car diversos sinais antes de
correr para uma ação prescritiva, o sábio ou servo sofredor contemplativo não
propõe respostas sem primeiro ter escutado, questionado e meditado. Nós
escutamos palavras e pausas. Não temos intenção de deixar nenhuma delas cair
ao chão duro.53 Pelo menos ainda não. Nós as ajuntamos todas, como se fosse
para o Senhor, que está presente. Pedimos que ele ponha essas palavras em
ordem e faça disso tudo o que ele quiser.
Então, poderia dizer: “Eu já o ouvi dizer isso antes”. “Um momento atrás,
também o ouvi expressar outra coisa”, acrescento. Então, faço uma pergunta ao
levantar esses dois os de sentenças. Agora estou escutando tanto quanto eles
estão ouvindo. “Já notou como essas suas sentenças parecem conectadas (ou são
desconexas)? O que você supõe que Deus quer lhe mostrar acerca dele em tudo
isso?”
Ao nos tornar mais atentos a esses os, uma passagem da Palavra de Deus, ou
secundariamente, um apoio à Palavra de Deus, uma analogia da criação de Deus,
uma cena ou história sobre a providência de Deus poderá vir à mente. Isso não
signi ca que estamos certos nem que tenhamos resolvido a questão. Ainda não
sabemos se esse versículo, analogia ou cenário é o certo para esse momento, se é
nascido de nosso próprio engano ou iluminado de forma maravilhosa para que,
por seu Espírito, nosso caminho em Jesus seja clareado.
Talvez um longo e desajeitado silêncio resulte dessa pergunta. Estou
aprendendo a resistir à tentação de encher todos esses silêncios. Em vez disso,
começo a orar internamente e esperar. Eles encontram suas palavras. Eu as ouço.
Agora as sentenças vêm mais livres. Ele é aquele a quem buscamos, a nal. Ali,
em comunidade, ancorados por sua Palavra, escutando em meio aos silêncios,
aguardando, pedindo, buscando o Cristo sempre presente, muitas vezes
experimentamos o encontro com ele! Paulo a rma “para buscarem a Deus se,
porventura, tateando, o possam achar, bem que não está longe de cada um de
nós” (At 17.27).
Não sou bom nisso, mas recentes comentários me instigam a não desistir.
“Fiquei surpreso por esse encontro”, ele me disse. Tínhamos acabado de gastar
uma hora e quinze minutos almoçando juntos.
“Você não olhou para seu relógio nenhuma só vez”, ele continuou. “Tenho
tentado falar do meu coração rapidamente. Calculava que você iria me apressar
ou então car sentado impacientemente comigo, com pressa de ir a seu próximo
encontro”.
O que ele disse em seguida me comoveu. “Senti que estava sendo ouvido com
um ser humano”, ele disse. Em seguida parou e sorriu. “Sabe, quase nunca tinha
me sentido desse jeito. Muito obrigado”.
Pode ser que nem todo encontro seja assim. Às vezes, momentos de crise
requerem respostas de sala de emergência. Nem todos que se encontraram
comigo podem dizer o que esse homem disse. Tomar o tempo para resolver com
oração, por amor de escutar pastoralmente e contemplar a Deus enquanto nos
encontramos com outro ser humano não é natural para mim. Mas é natural para
aquele a quem seguimos. Como embaixadores e pessoas que podem discernir,
entramos na história dos outros dizendo: “Vá mais devagar. Olhe aqui, escute;
Deus está lhe mostrando quem ele é.” As sábias palavras de Deus, ouvidas no
silêncio, livram a ambos.

Contemplar muda o jeito que oramos


pelos outros
Fazer essa espécie de transição tem sido mais difícil do que eu pensava, mas não
porque o chamado para orar e escutar não esteja claro. “E, quanto a nós, nos
consagraremos à oração e ao ministério da palavra” (At 6.4), disseram com
clareza os apóstolos. Dedicar-nos é fazer com que algo seja nossa
responsabilidade, a tarefa em volta da qual gira tudo mais. Não tem nada
confuso quanto a isso.
Mas bem cedo ainda, pensei nessa obra pastoral da oração e da Palavra
principalmente nas suas formas mais visíveis e públicas. Imaginava as orações
públicas que eu faria domingo pela manhã, em frente ao ajuntamento da
multidão prestes a adorar (2Tm 2.1), ou em como fez Jesus quando orou de
modo público e sacerdotal ( Jo 17.1–26). Pensava na palavra em termos dos
sermões que pregaria. Não entendia que a vocação do pastor com a oração, a
Palavra e seu cuidado muitas vezes é invisível, escondida com Jesus, em
momentos um a um ou de pequenos grupos ocultados dos olhos de nossa
congregação, procurando contemplar a Deus nas providências individuais de um
ser humano comum.
Assim, eu subestimava em muito onde uma vocação de oração, Palavra e de
entrar nas dúvidas e perguntas de outro ser humano pode nos conduzir. Debaixo
de uma ameixeira ou encharcado de chuva ao lado da sepultura de uma criança;
em um estacionamento ou numa varanda de uma casa, num banheiro de
de ciente ou num tribunal de sofrimento; em um hospital de desconhecidos ou
num bar. Eu não imaginava um elevador ou ao lado de uma lareira, num salão de
festas ou numa rua de tumultos e protestos. Ou em pé ao lado de carros com
janelas arrebentadas por ladrões, quebradas como as mentes daqueles da ala
psiquiátrica que procuravam a minha mão. É aqui que leva a contemplação. Ele
nos conduz aos lugares desconhecidos pelo mundo, por amor de gente
desconhecida ao mundo, para que saibamos que Deus está conosco, mesmo que
seja eu. Então, sinceramente em oração, “lutamos para descer às profundezas do
coração e de lá buscamos a ele, e isso não somente com a língua ou garganta”, mas
com nosso coração, do jeito que estiver.54
Tomamos esse trabalho de contemplação, feito ali pela providência daqueles a
quem servimos, de volta conosco para nosso escritório. Aprendemos a buscar a
Deus por aqueles que servimos, mesmo quando não estamos com eles.
Contemplamos o quanto são amados por Deus. Como a própria Bíblia está cheia
de orações,55 talvez ajuntemos esses trechos das Escrituras, tomando o nosso
diretório da igreja. Andando pelo templo vazio, pela vizinhança ou no silêncio
sob a luz de vela numa manhã gelada, lemos uma sentença de uma oração dada
na Bíblia e voltamos essa sentença para louvor e petição em favor da família ou
do indivíduo.
Enquanto fazemos essa obra de contemplação pela oração, o telefone continua
a tocar, e-mails ainda chegam, as exigências não param, e quase todas soam mais
urgentes e promissoras de minha produtividade do que isso. A nal de contas,
“dirigir a igreja”, por mais importante que seja, parece mais produtivo e a rmador
do que simples contemplação silenciosa. Mas tal sentimento mente para nós. Os
dois tipos de trabalho são importantes.
Assim, fazemos nossos salmos ao Senhor, não de modo autoritário para todo o
povo de Deus como fez o Rei Davi, mas como aluno em sua escola de oração,
clamando nossas orações em resposta ao que nos confronta a cada dia.56 Esse
tipo de salmo pode às vezes parecer uma confusão.
Batem à porta de meu escritório. Levanto do chão de onde estive ajoelhado em
oração, encostado no fundo da cadeira de meu Papaw, aquela em que ele me
segurava quando eu era menino. Pego um lencinho de papel, assoo o nariz, e
abro a porta. “Ei! Entra”, digo. Então acrescento: “Não ligue para mim. Eu estava
apenas chorando, só isso”.
“Ah”, ele diz. “Você está bem? Devo voltar mais tarde?”
Quero dizer sim. Tenho medo de ser conhecido como eu sou. Mas, pela graça,
estou aprendendo a escolher a fé e dizer: “Ah, não se preocupe. Algumas
lágrimas valem à pena chorar, não sabe? Entre. Estou ansioso por compartilhar
um tempo com você”.
Essas cenas são aves raras na minha vida — incomuns de se ver, mas belíssimas
quando vistas.

Contemplar muda o modo que nos encontramos com


Deus
Às vezes acendo uma vela. Encosto contra a parede do meu escritório ou sento
na poltrona de couro gasta do meu Papaw. Talvez seja umas duas horas da tarde.
Leio uma promessa da Escritura — “Ele cuida de vós” (1Pe 5.7). Dou graças
pelo que diz. Con o na promessa, o que quer dizer que abro meu coração para
ela. A Palavra de Deus ilumina meu caminho. É minha verdadeira lâmpada. Em
seguida digo algo como: “Aqui estou, Senhor. Tu és meu amor, meu deleite.
Quero te conhecer e lançar sobre ti os meus cuidados. Quero con ar que tu
cuidas de mim e daqueles a quem amo e sirvo”.
Então, tento aguardar sem palavras por um momento na presença daquele que
me ama e me enxerga em segredo. Mas, nos primeiros poucos minutos, a minha
mente não está silente. Os pensamentos e sentimentos que passaram sem ser
notados por entre o tagarelar do dia agarram a oportunidade e surgem altos para
a superfície enquanto eu tento me acalmar. A primeira rodada desses
pensamentos é como a espuma do refrigerante ou a nata no leite. Tiramos para
obter o que está por baixo. Assim, tomo cada pensamento que procura angariar
minha atenção, não importa o que seja, tolo ou terrível, comum ou orientado
para o cumprimento de tarefas, biblicamente errado ou teologicamente sadio, eu
o transformo em oração, dizendo de cada um: “Ouço-me neste pensamento,
Senhor, e o trago a ti. Deixo-o contigo”.
Ao levar cada pensamento a ele, estou fazendo o que Pedro ordenou:
“lançando sobre ele todos os vossos cuidados, porque ele cuida de vós” (1Pe 5.7).
Lançar nossos cuidados é como en ar a mão numa pilha de roupa misturada
para lavar, separando cada pano, e colocando de volta cada peça onde deve ser
posta. Ou vasculhar uma velha garagem cheia de ferramentas espalhadas por
todo lado. Uma a uma, eu pego na mão cada ferramenta e a entrego a Deus, e ele
a coloca onde ela deve ser guardada. Conforme disse Calvino, essa oração é como
“uma comunicação entre nós e Deus, onde expomos a ele nossos desejos, nossas
alegrias, nossos suspiros, em todos os pensamentos de nosso coração.”57
Ora, o primeiro estouro de pensamento foi limpo. É importante saber que
muitas vezes, após limpar a espuma e antes de beber profundamente em oração a
sós com Deus, o tédio, a mente inquieta, sentimentos de tempo desperdiçado, e
sentimentos de ansiedade corroboram numa gangue que procura nos assaltar,
fazer qualquer coisa diferente do que estamos fazendo. Eles nos picam como
mosquitos, e queremos nos levantar, apagar a luz e fazer qualquer coisa, menos
isso.
Ao invés disso, eu o convido a permanecer rme. Preciso que você também
insista que eu faça o mesmo. Vamos enfrentar nossos estouros ou nossas almas
pegajosas numa desintoxicação deliberada. Com a bondade e misericórdia de
Jesus diante de nós, olhemos novamente para o livro aberto à luz de vela;
permitamos que entre a mentoria do homem sábio.

Conversas imaginárias
Contemplar a Deus em oração nos oferece uma espécie de resistência às
conversas imaginárias também. Esaú se confortou e consolou com o pensamento
de matar seu irmão Jacó (Gn 27.42). Ele imaginou a cena repetidas vezes, e essa
conversa imaginária ofereceu um console torto para seu ser interior.58
Sabemos que estamos em uma conversa imaginária quando ferimos e falamos a
nós mesmos sobre outra pessoa, usando a segunda voz e não a terceira presença
de Deus, como se o amigo que o traiu estivesse ali de pé ao seu lado. Ele passa da
linguagem de terceira-pessoa (ele) à de segunda pessoa (tu):
Com efeito, não é inimigo o que me afronta; se o fosse, eu o suportaria; nem é o que me odeia
quem se exalta contra mim, pois dele eu me esconderia; mas és tu, homem meu igual, meu
companheiro e meu íntimo amigo. Juntos andávamos, juntos nos entretínhamos e íamos com a
multidão à Casa de Deus (Sl 55.12–14).

O que fazemos quando nos encontramos falando constantemente com uma


pessoa, de formas imaginárias, ao invés de falar diretamente com Deus sobre
nossa dor? Paramos em meio à sentença ou damos um basta ao e-mail que
estávamos prestes a mandar. Voltamo-nos ao Senhor que está presente e
fazemos de nossa ansiedade uma conversa em tempo real com ele. Pode ser que
façamos isso cinquenta vezes num dia. Podemos esperar e nem mandar aquele e-
mail agora. Não importa. Jesus está conosco, fazendo-nos aprendizes que voltam
todas as ansiedades diretamente ao Pai. Foi esse o seu jeito também (Hb 5.7).

Contemplar muda nossa de nição de uma hora


silenciosa
Sugiro que estar a sós com Deus por uma hora requer uma mudança de
metáfora. Uma hora de silêncio semelhante a uma sala de aula tem o seu lugar.
Nós a utilizamos para obter mais informação da Bíblia, e isso é bom. Sem a
informação correta da Bíblia nosso caminho não tem luz.
Mas a solitude do coração no deserto nos relembra de que “está escrito” não era
questão de informação mental para Jesus, e sim a fonte pela qual ele manteve
intacta a sua identidade. Ele foi às palavras do Pai porque o diabo as desprezava.
O diabo não descartava a existência, a verdade ou a utilidade da Palavra de Deus.
O diabo descartava o amor do Pai pelo Filho contido nelas. “Se és lho de Deus”,
o diabo zombou. Você não é lho do mesmo modo que Jesus. Mas não se
engane, você é um amado lho de Deus em Cristo — real e verdadeiro. Você luta
contra um inimigo que quer causar dúvida quanto a quem você é para o Pai.
Assim, siga a Jesus para o deserto como estrutura de referência para a sua hora
silenciosa. Escreva ou anote todas as razões armazenadas em seu pensamento
quanto a não ser mais amado por Deus, ser deserdado como lho. Olhe para o
Pai por meio de sua Palavra, contemplando seu amor por você em Jesus. Nesse
tempo silencioso você luta contra as mentiras quanto a ser amado. Coloca sua
con ança nas promessas de Deus.
Também fale abertamente ao Pai sobre o seu desejo de estar em todo lugar
para todos. A nal de contas, para vir ao Pai pela contemplação das suas palavras,
Jesus teve de con ar ao Pai as opiniões de outros, e você, em seu pequeno modo,
terá de fazer o mesmo. Desaparecer por quarenta dias no deserto naquele
momento não era algo sem sentido para Jesus. As pessoas comentariam. Sem
telefone ou computador, eles cavam se indagando, e ele não tentou gerenciar o
desconforto deles. Jesus não estava em todo lugar para todos, e sim, com o Pai,
no deserto, com a Palavra.
Essa coisa toda de deserto era também vagarosa: “quarenta dias sendo tentado
pelo diabo” (Lc 4.2). Todo osso e músculo do corpo viciado no imediatismo vai
retorcer e doer. Nenhuma resposta vem rapidamente aqui. Um dia terminado no
deserto pode ser seguido por outro e ainda outro mais. Nesse tempo de hora
silenciosa você leva seus anseios pelo imediato ao Pai, para ser curado.
Jesus poderia consertar sua fome se apenas tomasse o pão (Lc 4.4). Jesus
poderia provar que era Filho de Deus se apenas se lançasse para baixo (Lc 4.6).
Ele poderia ser o rei celebridade e possuir todas as coisas e habitar todo lugar (Lc
4.5). Jesus peneira essas feias acusações, tentações, memórias, temores e
mentiras, detecta a voz do Pai e ca de pé ali, entre as sentenças. “Está escrito”,
ele a rma. Por este ato, Jesus faz o que não conseguimos, para que também
possamos separar as coisas no silêncio, quando as sentenças a rmarem tudo
diabólico, bestial, e estéril, tentando nos dilacerar e desviar da verdade. Esta é
uma hora silenciosa de diferente espécie, de pensamentos não falados e emoções
que não ventilamos por causa de nossa tentativa de rapidez em vez de escutar.
Mais uma vez, aprendemos nesse tempo de silêncio no deserto que somos
amados. Dali voltamos, “no poder do Espirito”, ao lugar que nos foi dado (Lc
4.14–15).

Contemplar muda nosso jeito de ir à


Palavra de Deus
Escrevi extensamente sobre o ministério da Palavra em outro lugar.59 Aqui,
menciono apenas três implicações para a contemplação de Deus quando nos
aproximamos de sua Palavra. Primeiro, o velho pastor e professor presbiteriano
Archibald Alexander descreve nosso estudo da Bíblia como um estudo que
espera receber a impressão que Deus intencionava que suas palavras tivessem
sobre nossa alma. “Não é o crítico, o teólogo especulativo ou polêmico, o mais
propenso a receber a impressão certa”, diz Alexander, “mas o cristão humilde,
simples de coração, cristão contemplativo”.60
De acordo com Alexander, quer sejamos o “mais culto crítico” ou o “mais
profundo teólogo”, temos de nos aproximar da Bíblia como quem “aprende aos
pés de Jesus com o espírito de uma criança”.61 Somos pupilos de Maria,
aprendendo dela a escolher a Jesus como porção, escutando e aprendendo a seus
pés, não importa quão importante nosso mundo eclesiástico diga que somos (Lc
10.39–42). Quando a tentação de ser tudo, nos apreende com a velocidade, aos
poucos nos voltamos à Bíblia simplesmente como caixa de ferramentas para fazer
funcionar nossos programas ou para tornar os nossos sermões aplaudíveis, em
vez de serem iguais às palavras do nosso Amado, as quais ajudam qualquer um a
encontrar o caminho para casa.
Mas Deus nos perdoa. Que ele nos recupere mais uma vez, para que
aprendamos novamente a abrir a Bíblia não como “livro comum, com coração
comum e irreverente; mas no pavor e amor por Deus, seu autor”.62 Abrimos o livro não
para contemplar o livro, mas aquele que é revelado a nós na Palavra. Logo, a
Bíblia se torna novamente para nós como o destilar dos favos, mais doce do que
qualquer lucro material ou status deste mundo (Sl 19.10).
Segundo, precisamos da ajuda um do outro para nos lembrar de que somos
como o eunuco etíope, que diz, quando nossas Bíblias estão abertas: Como
entenderei se não tenho quem me guie? (At 8.31). Dependemos uns dos outros
na comunidade, como esse etíope dependeu Filipe. Amamos os livros e
comentários, podcasts e conversas que nos ajudem a entender as palavras de
Deus.
Contudo, não devemos nos esquecer que enquanto é uma honra para um autor
ter pessoas que abram o seu livro, o citem detalhadamente, e passem horas
falando a outros sobre o que pensam ser o signi cado do autor, seria estranho,
até mesmo rude, se toda essa atividade ocorresse enquanto o autor estivesse
presente na sala e ninguém falasse uma só palavra com ele e nem olhasse em sua
direção. Contemplar a Deus em sua Palavra é perguntar diretamente a ele qual
seu signi cado. Vem à mente uma parábola do deserto:
Os irmãos vieram a Abba Antônio e apresentaram-lhe uma passagem de Levíticos. O velho saiu
para o deserto, seguido secretamente por Abba Ammonas, que sabia ser este o seu costume. Abba
Antônio retirou-se para longe e cou ali orando, clamando em alta voz contemplativa: “Deus,
envie Moisés, para me fazer entender estes dizeres”.63

Richard Baxter disse-o claramente: “Antes e depois de ler a Escritura, ore


sinceramente para o Espírito que a inspirou exponha a Bíblia a você”.64 A
sabedoria de um velho pastor vem também à mente: “Se aspiramos sinceramente
a uma autêntica contemplação de Deus, eu digo que temos de ir para a palavra”.65

Contemplar o fruto de um sonho


Mas, às vezes, estações de severas provações tornam essa contemplação de Deus
em sua Palavra impossível. Não conseguimos encontrá-lo. Mas ele nos encontra.
Um raro cenário de meu próprio deserto estéril vem à mente. Eu havia colapsado
em uma pilha de orações feias, entre lencinhos amassados sobre o chão da sala.
Caí no sono e sonhei.
No sonho, deveria pregar, mas minha mente estava tão exausta que não
conseguia achar um texto bíblico. As pessoas que esperavam pelo sermão eram
sensíveis à minha condição desalinhada. Cada um me chamava ao Salmo 138.
Alguém veio até o púlpito e pacientemente ajudou-me a encontrá-lo. Esta cena
parecia se repetir, de modo que, quando acordei, sentia como se tivesse sonhado
isso a noite inteira. As palavras do “Salmo 138” acenderam a luz do sol em meu
coração.
Sentei-me no chão da sala de estar e tomei minha Bíblia. Já estava aberta e
amontoada pelos lencinhos usados na noite anterior.
Nas últimas semanas eu havia chorado como quem estivesse só em um
cômodo vazio, caindo mortas ao chão as minhas palavras, sem ninguém a não ser
os corvos para escolher entre suas carcaças. Contudo, cada palavra agora deixava
sua calorosa impressão — como se ele fosse meu e eu dele, e de alguma forma as
suas palavras naquela página fossem realmente presentes de amor por mim.
Chorei ao ler:
Render-te-ei graças...
te cantarei louvores...
No dia em que eu clamei, tu me acudiste,
e alentaste a força de minha alma.
OS é excelso, contudo, atenta para os humildes;
os soberbos, ele os conhece de longe.
Se ando em meio à tribulação,
tu me refazes a vida;
estendes a mão contra a ira dos meus inimigos;
a tua destra me salva.
O que a mim me concerne o S levará a bom termo;
a tua misericórdia, ó S , dura para sempre;
não desampares as obras das tuas mãos. (Salmo 138)

Aquele dia todo eu guardei essa porção da Escritura como uma carta de amor.
Acariciei cada palavra, sentindo os ternos beijos de verdadeiro amor sobre os
lábios, rosto e testa da minha alma. Senti-me criança acolhida nos braços fortes
do meu Pai, de coração alegre, que proveria por mim e promoveria a minha
causa, mesmo correndo risco próprio. Nenhuma das minhas circunstâncias havia
mudado. Destroços dignos de lágrimas e calúnia ainda latiam como os cachorros
do vizinho debaixo das minhas janelas e portas. Mas, eu não estava só. O Senhor
estava perto. Pela primeira vez em muito tempo, eu sabia que isso era verdade.
Eu gostaria que você visse não tanto o sonho em si, mas o fruto dele. Foi-me
dada uma palavra para sustentar-me em meu cansaço.

Contemplando a Deus em nossa sala de estar


A primeira vez que tive contato com essa obra de contemplar em oração, na
Palavra, e no cuidado das coisas comuns, eu não percebi. Estava segurando um
ursinho de pelúcia. “Vamos fazer nossas orações”, disse Mamaw ao sentar-se ao
lado de minha cama. Eu fechei os olhos e juntei as mãos.
“Agora deito para dormir”, eu disse. “Peço ao Senhor que guarde minha alma.
Se eu morrer sem acordar, peço a ti, Senhor, para minha alma levar”. Eu era
criança e orava como uma criança.
Mas, trinta anos mais tarde, havia na casa de Mamaw e Papaw um descanso
restaurador. Passava a noite tendo em mente a Mamaw. “Se eu morrer sem
acordar” não era mais uma distante oração de um menino com seu ursinho de
pelúcia.
“Vamos orar”, sugeri. Sentamos sobre velhas cadeiras. Mamaw parecia
inquieta.
“Está tudo bem?”, eu lhe perguntei.
Ela parecia assustada e disse, como prestes a confessar-me um pecado ou
acontecimento terrível: “Hoje eu orei por mim mesma”. Os lábios tremiam. Os
olhos marejavam.
“Você acha que isso está certo?”, perguntou. “Acha que Deus aceita que eu ore
por mim mesma hoje?”
Como neto de Mamaw, isso me tocou profunda e ternamente. Em todos esses
anos que orava pelos outros, Mamaw jamais arriscou fazer uma oração em seu
próprio favor? Eu estava atônito de amor por ela.
Mas como um homem, um pastor, sentia-me empolgado e fortalecido para me
inclinar, olhar direto nos seus olhos e sussurrar palavras de graça e direção
espiritual à sua terna consciência.
“Sim, Mamaw, está bem em Jesus você orar por você mesma. O Senhor que a
ama anseia ouvir as suas orações, mesmo as que têm a ver com você. Pode lançar
todos os seus cuidados pessoais sobre ele porque ele tem cuidado de você.”
Ela acenou com a cabeça e nós choramos, sorrimos e contemplamos.
Depois do enterro de mamaw, recebi de presente a sua Bíblia. Ela está em
minha mesa enquanto escrevo.
Ela deixou marcadores de livro em diversos lugares. O marcador da casa de
repouso está em João 17. O cabeçalho da Bíblia de estudo diz: “Jesus ora por si
mesmo”. Mamaw marcou com um círculo esse cabeçalho.
Outro marcador está em Isaías 53, que prediz Jesus como homem de dores.
Mamaw destacou com amarelo todo o capítulo.
Outro marcador está no Salmo 130. “Das profundezas clamo a ti, S .
Escuta, S , a minha voz; estejam alertas os teus ouvidos às minhas
súplicas” (vv. 1–2).
Em minha memória eu a vejo ali, à porta da morte, perguntando o que signi ca
agradar o seu Salvador com a oração. Percebo agora que ela não estava
perguntando só para mim, mas perguntava sinceramente a Deus, indo de
promessa em promessa na sua Palavra. Quem sabe os remédios, a fadiga, o
câncer e o medo faziam mais difícil de ouvir a voz de amor, mais difícil de
contemplar. Assim, nesta oração e Palavra trabalhando juntos, penso sobre o
lugar onde estávamos — numa sala com cheiro de casa de repouso de idosos,
balançando em velhas cadeiras, com uma história de um longo amor,
necessitando localizarmos juntos a Deus.
Penso comigo mesmo: Isto é um dom, esse momento pequeno, quase despercebido
entre as coisas importantes. Um dom, digo eu, porque Deus estava ali para ser
encontrado, e foi achado.
Adaptado de Henri Nouwen, Spiritual Direction: Wisdom for the Long Walk of Faith [Direção espiritual:
Sabedoria para a longa caminhada de fé], (New York: Harper Collins, 2006), 4.
A contemplação também pode pedir a Deus que pause e cresça em atenção xa a um anseio de nosso
coração ou um compromisso ou uma condição de nossa vida (Sl 17.2; 39.5; 84.9; 119.40).
M. Craig Barnes, e Pastor as Minor Poet: Texts and Subtexts in the Ministerial Life [O pastor como poeta
menor: textos e assuntos na vida ministerial], (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 2009), 22
E. E. Cummings, “Walking on Water” [Andando sobre a água]
João Calvino, Instruction in Faith [Instrução na fé] (Louisville, KY: Westminster, 1992), 21
Leighton Ford, “Wholly and Holy Listening,” [Escutando santamente e inteiramente] trabalho não
publicado, Mentoring Gathering [Ajuntamento de mentoria], (Maio 2014), 5.
Calvino, Instrução na fé, 57.
Para uma lista completa das orações na Bíblia, veja, de Herbert Lockyer, All the Prayers of the Bible http://
gospelpedlar .com /articles /Christian %20Life /Prayer .pdf.
Veja, por exemplo, os Salmos 3; 7; 18; 30; 34; 52; 54; 56; 57; 59; 63.
Calvino, Instrução na fé, 57 (ênfase acrescentada).
Mesmo que a conversa imaginária tenha em mente um m positivo, como a conversa imaginada entre o
lho pródigo com seu pai, nossas conversas unilaterais são pobres substitutas para fazer salmos. Faz-nos
adivinhar erradamente como o outro poderá responder. Inadvertidamente, nós projetamos sobre eles aquilo
que não é verdadeiro. O lho, por exemplo, só podia imaginar o desdém do pai, o não ser mais lho e sim,
escravo (Lucas 15.18–19).
Zack Eswine, Preaching to a Post-Everything World [Pregando em um mundo pós-tudo], (Grand Rapids,
MI: Baker, 2008) e Kindled Fire: How the Preaching Methods of C. H. Spurgeon Can Help Your Preaching
[Fogo ateado: Como os métodos de pregação de C.H. Spurgeon podem ajudar na sua pregação], (Ross-
shire, Reino Unido: Christian Focus, 2003).
Archibald Alexander, oughts on Religious Experience [Pensamentos sobre a experiêcia religiosa], (1844;
repr. Edinburgh: Banner of Truth, 1989), 162.
Ibid.
Richard Baxter, A Christian Directory, vol. 1, Christian Ethics, (1846; repr. Morgan, PA: Soli Deo Gloria,
1996), 477.
e Sayings of the Desert Fathers, [Os dizeres dos Pais do deserto], trad. Benedicta Ward, (Kalamazoo, MI:
Cistercian, 1984), 7.
Baxter, A Christian Directory, 478.
João Calvino, Institutas, trad. Ford Lewis Battles (Philadelphia: Westminster, 1960), 1.6.3.
11 | Encontrando o nosso
ritmo
Você pediu cargas para levar — e como reclamou quando elas foram colocadas sobre os seus
ombros! Será que tinha imaginado outra espécie de cargas?|
–D H

Emocionalmente, às vezes trabalhamos um dia inteiro em apenas uma hora.


Gastamos uma semana inteira de preocupação em nossas orações, e é apenas
quarta-feira.
Sempre me disseram: “Cuidado com as emoções — não pode con ar nelas”.
Mas eu acredito que meus pensamentos não são menos volúveis que as
emoções, e são tão impacientes por atenção quanto elas.

O fardo por e o fardo de


Uma ambição por quietude nos conduz a aprender a contemplar a Deus. Calma
contemplação muda o nosso ritmo. Um compasso propício às condições que
enfrentamos pode nos ajudar muito, porque ansiedades estão chegando.
As ansiedades me encontraram bem antes de me tornar pastor. Como dizia
meu pai: “Eu as consegui honestamente”. Surtos de ansiedade aparentemente
salpicam a biologia de meus parentes. Acrescente a isso meu próprio quinhão de
traumas providenciais, e esses sentimentos ansiosos de quem parece ter
formigueiro nas calças, que rastejam, tremem e picam não são surpreendentes. O
que pode surpreender é que entrar no ministério pastoral não nos livra da
ansiedade. O apóstolo Paulo deixa isto bastante claro: “Além das coisas
exteriores, há o que pesa sobre mim diariamente, a preocupação com todas as
igrejas. Quem enfraquece, que também eu não enfraqueça? Quem se escandaliza,
que eu não me in ame?” (2Co 11.28–29).
Os pesos podem car parados como esgoto estagnado em nosso porão ou
como um rio cujas margens transbordam e chegam ao campo próximo de nossa
casa. Qualquer dia as águas fétidas terão de ser enfrentadas. Mas o sofrimento e
os pesos nem sempre são ocasião de crise. Às vezes o fardo da pessoa é como os
dedos com artrite. Aprendemos a abrir o vidro de picles ou a abrir a torneira a
cada dia, com estremecimento. Nosso trabalho pastoral nos leva aos fardos que
outros suportam, e também aos nossos próprios. Esses pesos geralmente vêm em
duas formas: fardos por e fardos de.
Sentimos o fardo por:
• Nossas famílias: “Eis que se chegou a ele um dos principais da sinagoga,
chamado Jairo, e, vendo-o, prostrou-se a seus pés e insistentemente lhe
suplicou: Minha lhinha está à morte; vem, impõe as mãos sobre ela, para
que seja salva, e viverá” (Mc 5.22–23).
• Nossos vizinhos e igrejas: “Além das coisas exteriores, há o que pesa sobre
mim diariamente, a preocupação com todas as igrejas” (2Co 11.28).
• Ministros colegas: “para que eu não tivesse tristeza sobre tristeza” (Fp 2.27).
Temos fardos que vêm de:
• Pecado pessoal: “os pecadores, dos quais eu sou o principal” (1Tm 1.15).
• Limites e orações não respondidas: “Por causa disto, três vezes pedi ao
Senhor que o afastasse de mim” (2Co 12.8).
• Nosso corpo: “... por causa do teu estômago e das tuas frequentes
enfermidades” (1Tm 5.23).
• Nossas famílias: “E, quando os parentes de Jesus ouviram isto, saíram para o
prender; porque diziam: Está fora de si” (Mc 3.21).
• Membros de igreja: “Alexandre, o latoeiro, causou-me muitos males” (2Tm
4.14).
• Colegas pastores: “Alguns, efetivamente, proclamam a Cristo por inveja e
por a” (Fp 1.15); “Houve entre eles tal desavença, que vieram a separar-se”
(At 15.39).
• Vizinhos: “como surgisse um tumulto dos gentios e judeus, associados com
as suas autoridades, para os ultrajar e apedrejar” (At 14.5).
Uma vez, após dirigir o louvor e a pregação, andamos até o estacionamento e
descobrimos que vários carros tiveram os vidros quebrados e pertences pessoais
roubados de dentro deles. Quando eu fazia o seminário, imaginava sermões
poderosos pelos quais as pessoas agradeceriam, enquanto as multidões se
ajuntariam com apreço, mas provavelmente não pensava no cuidado pastoral de
um pregador que escutasse, tomando uma vassoura para limpar o vidro
quebrado em meio à chuva, e com humilde presença, abraçasse um ser humano
que rompia em lágrimas. Encontramos ajuda nanceira para consertar os carros
que foram vandalizados e mobilizamos visitas por causa dos pensamentos
amedrontados. Esses fardos da vida oferecem a nós pastores um profundo
privilégio. Conseguimos ver a ação misericordiosa de Deus de primeira mão e
repetidamente. Mas também podemos nos esgotar se não tivermos ajuda,
desanimados pela ironia de constantes pesos e batalhas espirituais. (Por
exemplo, o sermão daquela manhã foi em Efésios 4.28: “Aquele que roubava não
furte mais”).

A cada momento
Jesus trata as nossas ansiedades pedindo que as coloquemos em compasso de um
dia de cada vez, por toda a vida. “Portanto, não vos inquieteis com o dia de
amanhã, pois o amanhã trará os seus cuidados; basta ao dia o seu próprio mal”
(Mt 6.34).
Enquanto meu papaw laborava com pulmões cheios de líquido na última
estação de sua vida, eu telefonava para ele.
“O que é que você sabe, jovem?”, ele dizia. Eu podia escutar o chiado da
respiração destroçada em sua voz.
“Estive pensando em você, Papaw. Como vão as coisas pra você hoje?”
“Ah, estou indo. As coisas são o que são,” ele dizia. “Não adianta reclamar, né?”
Então ele acrescentava um pedaço de conselho que tinha se tornado lugar
comum para ele. Parecia decidido a passar adiante. “Levando um dia de cada vez”,
dizia. “Você sabe que isso é tudo que podemos fazer, a nal. Não estou certo,
meu jovem?”
Eu fazia uma pausa em minhas tentativas confusas de praticar o que ele falava.
“Bem, acho que tenho muito a aprender sobre isso”, eu reunia coragem para
dizer. Eu ouvia um sorriso em sua voz, seus pulmões se esforçando em cada
migalha de ar.
“Eu amo você, Papaw”, eu dizia.
“Também amo você, Zack”, ele respondia (palavras raramente proferidas por
ele quando era homem jovem, mas maravilhosamente, livremente ditas agora).
Então acrescentou o que tinha se tornado seu pedido regular: “Não se esqueça
de fazer uma oração em favor desse velho”.
“Não vou me esquecer, Papaw. Oro por você todo o tempo”, eu lhe assegurava.

As quatro porções
Jesus nos dá esse dom: porções de um dia de cada vez para suportar o peso que
encontramos. O salmista nos dá um começo de como reaprender que cada dia
basta em seu anseio. “À tarde, pela manhã e ao meio-dia, farei as minhas queixas
e lamentarei; e ele ouvirá a minha voz” (Sl 55.17).
Às vezes, o salmista usa palavras mais especí cas quanto ao que engloba uma
“tarde”, e em outros lugares na Bíblia (por exemplo, Lm 2.19), ele se refere às
vigílias da noite (Sl 63.6).
O salmista identi ca quatro partes do dia de vinte e quatro horas. Passei a
pensar nessas quatro partes como porções. Em todo este dia ele está presente, e
isso nos basta.
Manhã: do nascer do sol, ou seis da manhã, até o meio dia
Meio-dia: do meio-dia até às seis da tarde
Início da noite: do pôr do sol, ou seis da tarde, até dez da noite (às vezes
referida como “primeira vigília da noite”).
As vigílias da noite: das dez da noite até às seis da manhã.66
Marque bem isto. Para correr numa maratona, primeiro temos de correr uma
milha. Correr uma milha não é coisa que se despreze.

A graça da manhã
O Novo Testamento nos conta coisas a respeito de Jesus pela manhã: ele orava
(Mc 1.35). Ele tinha fome. Ele andava (Mt 21.18). Ele ensinava ( João 8.2).
Para o salmista, a manhã nas mãos de Deus testi ca-nos que as lágrimas têm
m, o alívio é signi cante, e “vem alegria” (Sl 30.5). Na manhã surgem cânticos
de louvor e ações de graças, porque a força de Deus nos fez passar a noite (Sl
59.16). A noite não venceu. Acordamos e vemos novamente que o amor de Deus
não desiste de nós, e pedimos que ele nos acompanhe e nos guie para aquilo que
nos aguarda (Sl 143.8). A manhã nos provoca a oração, e, portanto, para
observar como Deus responderá essas orações no decorrer do dia (Sl 5.3).
A manhã foi feita como um poema ou sermão que consola os desanimados. Ela
nos faz pensar de novo sobre a bondade de Deus e perguntar por que ele demora
em revelar sua bondade a nós (Sl 88.13–14). O nal da noite também nos
desperta a uma convicção renovada de aproveitar o dia como meio de oposição
ao que é ignóbil no mundo, e proteger aquilo que é bom, belo e direito (Sl
101.8). De fato, o sol não é melancolia matutina como eu sou ao acordar,
cansado de brilhar novamente sem ser notado, viajando pelo mesmo velho
percurso a cada dia, entediado com tudo isso. Não mesmo! Porque Deus dá esse
signi cado para a manhã, ele poeticamente imagina o sol como um noivo
apaixonado, ansioso e feliz por ver a sua noiva (Sl 19.5). O sol brilha obstinado
por amor acima das nuvens e trovões.
Historicamente, foi de manhã que os inimigos de Jesus amarraram as suas
mãos e determinaram que o matariam (Mc 15.1). Porém, poeticamente, será que
o nascer do sol traria alguma esperança a nosso Senhor, enquanto homens
possuídos pelos terrores da noite o jogaram na rua? Era de manhã. Ele sabia
disso, não sabia? Em tantas manhãs ele conhecera a intimidade com seu Pai.
Houve muitas manhãs antes que esses homens presos em ciladas tivessem
nascido. As manhãs continuariam depois que eles morressem. De fato, haveria
um dia em que na manhã do terceiro dia, quando ainda estivesse escuro, a morte
morreria, esses homens ímpios seriam confundidos, e Jesus ressuscitaria! A
manhã proclamou que essa ressurreição e vida ultrapassaram a noite. Será que
essa proclamação sussurrou a ele? Seria essa uma parte da “alegria que lhe estava
proposta...” (Hb 12.2)? Será que o sol, de alguma forma, piscou para Jesus
quando eles amarraram suas mãos e procuraram extinguir seu fôlego?
Por essa razão é que venho pessoalmente pensando na manhã como o tempo
da graça. Claro, dia e noite, todo o tempo, depende da graça. Só estou inferindo
que parece que a graça surge à frente na porção matutina, porque sentimos que
não somos su cientes para enfrentar aquilo que nos aguarda; perguntamos se o
sol vai brilhar nas nossas circunstâncias como brilha pela manhã.
Levantamos; o amor de Deus está aqui! Oramos; a direção de Deus está
conosco! Esperamos novamente e clamamos de novo; Deus está vencendo as
trevas! Comemos o pedaço diário que temos; Deus proveu! Chegamos ao
trabalho que está diante de nós; Deus tem algo a nos mostrar! A aurora raiou; o
túmulo está vazio! A estação da manhã começa e termina. Deus tem sido nossa
porção em nossos fardos até a chegada do meio-dia. Isto é graça e realização!
Louvamos a Deus. Passamos a primeira milha do dia.

Sabedoria do meio-dia
Nos Salmos, “o meio-dia” simboliza, para o povo de Deus, a luz com a qual
brilham a justiça e a virtude (Sl 37.6). É aqui que agimos com escolhas sábias
com respeito ao trabalho, circunstâncias e pessoas à mão.
Sendo assim, a tarde nos fatiga. Foi ao meio-dia que Jesus, cansado de sua
viagem, sentou para uma pausa e um copo de água ( Jo 4.6). Os afazeres do dia
recebem novo impulso e aumentam de velocidade. O trabalho tem de ser feito.
Chamadas anotadas, tarefas completadas, e-mails escritos, reuniões e
compromissos atendidos, campos arados, ferrolhos apertados, mais três fraldas a
trocar, jantar a preparar, doença a suportar. Poeticamente, Jesus faz um retrato
da porção do meio-dia como “a fadiga e o calor do dia” (Mt 20.12). O trabalho
nos agasta até sua conclusão, cheques de pagamento são entregues e os ossos
parecem estalar dentro de nossos músculos doloridos.
Frequentemente, umas duas horas depois do almoço a fadiga começa a tomar
conta. Alguns de nós experimentamos o que é chamado de “o demônio do meio-
dia”, uma nuvem escura de mau humor que movimenta as nossas pernas, nos
contorce onde nos assentamos, e gira nossos polegares. Tais rabugices instilam
em nós “um ódio pelo lugar” que nos foi dado e um “ódio pelo trabalho com as
mãos”.67 Não é de surpreender que coquetéis e happy hours tentem homens e
mulheres empresários às tardes. A distração nos conclama.
Não é de admirar que o período do meio-dia até lá pelas seis da tarde muitas
vezes coloque os caminhos virtuosos em prova. Se a manhã é tempo de conduzir
nossas lágrimas, nossos planos, nosso trabalho e os questionamentos do dia ao
seu trono de graça para ali encontrar esperança, a tarde parece ser tempo de
iluminação, em que nossa intenção de descansar sobre essa graça é peneirada e os
verdadeiros objetivos de nossa esperança tiram as suas máscaras.
Ao meio-dia o sol está em sua maior altura. Ele dá seu mais forte calor e a mais
ofuscante luz que podemos ver, o maior calor para que nos humilhemos. Fomos
feitos para nos assemelhar ao meio-dia. Mas Pilatos falhou. Como também
fraquejou o povo de Deus.
Foi na parte do meio-dia que Pilatos escolheu a vantagem política e ordenou
que o inocente fosse maltratado, o Filho de Deus fosse morto ( Jo 1.14–15).
Foi também ao meio-dia que Jesus deu seu último suspiro e o brilho do sol
inexplicavelmente falhou (Lc 23.44). As trevas e o meio-dia ensolarado trocaram
de lugar. Viraram o dia de cabeça para baixo, como fazendo uma comparação
entre o mal que estava sendo chamado de bem, e o bem que estava sendo
acusado de mal.
Se a manhã nos conclama a cantar, a tarde nos humilha, lembrando-nos que
precisamos da sua salvação. A manhã nos ensina a louvar. A tarde nos ensina a
ter paciência e perseverança. O dia (e a corrida) tem um começo e um nal.
Atravessar a linha de chegada é graça e força! Mais uma milha e nossos fardos
são carregados.

Hospitalidade de m da tarde
No cair da tarde, vieram os discípulos a Jesus e lhe disseram: O lugar é deserto, e vai adiantada a
hora; despede, pois, as multidões para que, indo pelas aldeias, comprem para si o que comer.
Jesus, porém, lhes disse: Não precisam retirar-se; dai-lhes, vós mesmos, de comer. Mas eles
responderam: Não temos aqui senão cinco pães e dois peixes (Mt 14.15–17).

“O dia agora acabou”. O mestre e o ensino chegam ao nal. É tempo para


comer e gozar um pouco de descanso na companhia de outros que também
estejam descansando e queiram um pouco de comida. Não precisamos levar
nosso trabalho conosco para casa. É importante estar sem trabalho à noite.
O cair da noite destaca a hospitalidade. Nós estendemos a bondade e proteção
de uma presença pací ca a nossos vizinhos. É bondosa porque leva em conta as
necessidades físicas e da alma de nosso próximo, providenciando-lhes aceitação e
sustentação prática. A hospitalidade é também protetora, porque permanecer
hospitaleiro para com o próximo signi ca que não transgredimos, usamos mal,
ou os consumimos. Ela permite que façam companhia em nossa presença, de
maneira que saibam que não nos aproveitaremos deles para satisfazer nossa
lascívia nem exigiremos que eles ajam como se não estivessem cansados ou
necessitados de alimento.
A manhã nos ensina a cantar. A tarde nos ensina a perseverar. O anoitecer nos
ensina a dar graças a Deus pelo tédio sagrado de bênçãos corriqueiras que
podemos contar (Sl 141.2).
Mas a poesia dos Salmos também mostra um retrato da noite como tempo de
sombras (Sl 59.6–7; 102.11; 104.23). A nal de contas, aqueles cujas tardes
foram entretidas pela sedução da insensatez ameaçam a hospitalidade. As
imaginações de “happy hours” fruti cam no cair da noite (Pv 7.7–9). Os que não
tiraram tempo para parar e levar suas disposições irritadas a Deus antes da
inauguração da noite igualmente nos instigam à rebeldia. Muitos de nós
chegamos à mesa de jantar irritadiços. Enchemos a sala do entardecer com o lixo
de nossas frustrações e ansiedades não intencionadas. Aqueles que fazem parte
de nossa turma pagam por isso sem merecer — muitas vezes e especialmente
aqueles que estão mais próximos de nós, os que dizemos amar acima de todos.
Nesses casos, a escuridão da noite dá ousadia aos abusos ilícitos dos corações uns
dos outros. As trevas fazem surgir aqueles que desrespeitam a Deus.
Por esta razão, nosso m de tarde precisa de Jesus. Algumas tardes ele saía
para orar (Mt 14.23). Agia como se fosse seguir adiante. Então dizemos a ele,
como os que estavam no caminho para Emaús: “Fica conosco, porque é tarde, e o
dia já declina”. Como eles, nosso coração arde enquanto Jesus está conosco,
partindo o pão conosco, falando-nos das Escrituras (Lc 24.29–31).
Ao anoitecer, Jesus era hospitaleiro para com os enfermos e os possuídos por
demônios (Mc 1.32). Duas vezes, entre tempestades noturnas, Jesus mostrou aos
seus seguidores que estava com eles no meio do que os assustava na noite (Mc
4.35; 6.37). Trancados atrás de portas fechadas por medo do que a comunidade
cruci cadora faria com eles, era noite quando Jesus os buscou e lhes falou: “Paz
seja convosco”, alegrando os seus corações ( Jo 20.19). A alegria por sua bondade
redime a noite, e isto é muita bondade de Deus, porque as vigílias da noite virão.
Quanta bondade direcionar nossa meditação às alegrias ordinárias em meio à
feliz companhia de vizinhos que amamos, antes que venham os “ladrões da
noite” para nos assustar como bicho-papão. Graça veio. O início da noite nos deu
gratidão. Os pesos são levados, Mais uma milha foi realizada.
Solitude e as vigílias da noite
Como de banha e de gordura farta-se a minha alma; e, com júbilo nos lábios, a minha boca te
louva, no meu leito, quando de ti me recordo e em ti medito, durante a vigília da noite (Sl 63.5–
6).

Sempre tenho visto a solitude como característica matutina. Mas a poesia dos
Salmos mostra as vigílias da noite como lugar de solitude. Historicamente,
quando estava acordado sozinho à noite, nos lugares ermos de oração,
certamente este testemunho do Salmo 63.5–6 era a espécie de porção que Jesus
experimentava junto ao Pai (Lc 6.12).
As vigílias da noite nos oferecem um retrato de um soldado militar em seu
posto de sentinela. A sentinela permanece acordada e olha cada movimento da
noite em potencial para nos proteger dos inimigos e guardar o sono de seu povo.
Também vigia pelos mensageiros ou reforços que chegam, trazendo clareza ou
resgate em ação secreta. Cama para descanso, vigilância para clareza ou resgate;
sono e falta de sono — são estes os movimentos da profundeza da noite. Jesus
trata dessas vigílias da noite em sua parábola:

Vigiai, pois, porque não sabeis quando virá o dono da casa: se à tarde, se à meia-noite, se ao cantar
do galo [três da madrugada], se pela manhã (Mc 13.35).

Solitude, silêncio, conversa enquanto se escuta, e humilde presença voltam


todos a nós. Esta não é uma “hora silenciosa” em geral, só para analisar verdades
abstratas. A solitude assume com Deus as emoções e questionamentos muito
reais que sobraram do dia.

Irai-vos e não pequeis; consultai no travesseiro o coração e sossegai (Sl 4.4)

Um propósito para nossa cama à noite é ponderar no coração aquilo que nos
perturba e falar sobre essas coisas diante de Deus. Disso resulta o sono. O sono é
um ato sabático. Repousamos e deixamos tudo aos cuidados de Deus enquanto
estamos deitados sem mexer com o mundo por um pouco.
Mas há terrores na noite também (Sl 91.5). Pesadelos. O choro sem sono pode
se estender (Sl 30.5). A ições podem manter nossas “pálpebras abertas” (Sl
77.4). O silêncio desolado permite ao coração perguntas inquiridoras, em
agitada inquietação (Sl 77.7–9).
É também verdade que nossa estultícia não coibida da tarde pode nos conduzir
a uma noite não hospitaleira e encher de tropeços nossas vigílias noturnas. “Vem,
embriaguemo-nos com as delícias do amor, até pela manhã”, dizem os que
escolhem ter casos fora do casamento (Pv 7.18). A escuridão antes do alvorecer
muitas vezes nos assombra com culpa e vergonha. Chamamos, meio bêbados,
um taxi, tendo deixado nossa dignidade mal-usada na cama de uma estranha,
perguntando-nos em que raios estávamos pensando. Ou trabalhamos a noite
inteira porque procrastinamos no trabalho. Não temos sono nem solitude calma
para nos fortalecer para a manhã. A profunda noite então torna-se em um lugar
de con ssão, uma escola onde o conselho de Deus nos encontra e instrui (Sl.
16.7).

Antecipo-me ao alvorecer do dia e clamo; na tua palavra, espero con ante. Os meus olhos
antecipam-se às vigílias noturnas, para que eu medite nas tuas palavras
(Sl 119.147–48).

Sonhos na Noite
Alguns de nós sonhamos à noite, portanto, vamos fazer aqui uma pausa para
relembrar sobre esses sonhos. Podem vir de três lugares, assim como são os
nossos pensamentos durante o dia, quando estamos acordados. Podem ter sua
origem em nós mesmos, ou em nosso inimigo, o diabo, ou podem ser
sussurrados a nós por Deus. Em qualquer dos casos, os sonhos são atos da
providência, ou seja, estão também entre as circunstâncias de nossa vida que
Deus governa, e pelas quais ele nos governa para sua glória e nosso verdadeiro
bem ( Jó 33.15–18).
Qualquer que seja nosso sonho, levamos a Deus o seu conteúdo, bem como os
pensamentos e emoções resultantes. Com ele, podemos repousar a atividade
poética e a estrutura de nosso coração em Jesus. Se houver pessoas em nossos
sonhos que se destacam para nós, podemos interceder por elas, assim como
frequentemente fazemos quando vêm à mente as pessoas durante as horas em
que estamos acordados. Igualmente, nós con amos a ele as nossas impressões
temerosas ou jubilosas, acreditando que ele vai, como sempre, nos informar,
transformar e conduzir de acordo com seu amor e seu tempo perfeito em Jesus.
Foi na vigília da noite que Jesus orou clamando em alta voz com lágrimas no
Getsêmane. Ele sabe o que signi ca chorar no escuro. Sua empatia por nós é
profunda e nós também precisamos aprender isso.
Após a noite e os sonhos, vem a madrugada. O Senhor que nos guarda não
dormita, mas nos atende (Sl 121.4). O sol começa a romper para sua noiva. Raia
um novo dia. Por um dia inteiro agora, ele o tem carregado, com seus fardos e
tudo mais.

Nossas agendas diárias


Que diferença prática faz esse ritmo de quatro porções do dia?
Primeiro, pense em manhã, meio-dia, entardecer e noite como porções
su cientemente grandes para sua atenção e pequenas o bastante para gerenciar a
cada dia. Não tente mais acumular tudo isto de uma forma indistinta e nem
correr para fugir delas.
Segundo, ao chegar ao nal daquela porção do dia, faça uma pausa e olhe para
trás antes de começar a sua nova porção e correr para frente. Dê graças a Deus
pelos sinais de graça que você experimentou. Ou chore e lamente pela dor. Ou
reconheça seus humores agitados e pergunte a ele sobre o que dá origem a tais
emoções. Peça que ele mostre os seus erros, pecados e falhas naquela porção,
para que o conduza a confessar e, com gratidão, se desviar de repeti-los. Ou
interceda por qualquer situação ou propósito que se destacou durante aquele
tempo. Então, nessa pausa, louve a ele e peça que o dirija pela mão na próxima
porção do dia.
Quanto a isso, digamos que são onze horas e quarenta e sete minutos da
manhã. A manhã está prestes a repousar. Olhamos em retrospectiva e
agradecemos pelo que essa manhã trouxe a nós. Prestamos também atenção a
nosso ânimo. Procuramos ver a causa de qualquer disposição negativa.
Localizamos aquele cenário ruim da manhã e o lançamos sobre o Senhor. Agora,
por sua graça, aguardamos a chegada do meio-dia. Não queremos levar
disposições não meditadas da manhã para a tarde. Basta o que a tarde já tem.
Jesus carrega as nossas manhãs.
Está chegando o anoitecer. São cinco e meia da tarde (ou seis e meia porque
estamos com tudo atrasado). A comida está borbulhando no fogão. O trânsito
aguarda nosso retorno para casa. Pausamos e re etimos. Pedimos perdão;
buscamos sua coragem para endireitar as coisas onde precisamos, quanto mais
isso for possível para nós; damos graças pela força que ele nos deu e pelas
respostas às orações matutinas que recebemos; celebramos a virtude do seu
Espírito que, por sua graça, permaneceu conosco. Notamos nossos músculos
doloridos ou cérebro cansado. Buscamos o seu descanso. Lutamos por crer que
nosso trabalho não acabado estará lá amanhã, esperando por nós. A manhã nos
dará tempo para levá-lo ao Senhor antes que volte de novo para nós. Tudo vai ser
feito. Por enquanto, tem crianças com quem brincar, cônjuge a quem vir ao
encontro, ou família, amigos, ou vizinhos a encorajar. Deixe por agora o meio-
dia. Entregue suas indisposições para Jesus, para que não as leve indevidamente
com você e jogue sobre os outros à mesa de jantar.
Talvez seja nove e quarenta e cinco da noite. Já tiramos a mesa e desligamos o
televisor. Os lhos já estão na cama (a não ser que sejam adolescentes). Nossos
amigos estão indo para as suas casas. Paramos para agradecer pela boa comida e
companhia com que nos abençoou. Buscamos perdão pelas disposições ruins que
derramamos sobre os outros. Animamo-nos que a manhã seguinte nos dará um
novo momento para levar a Deus essas coisas e, esperamos cantar e encontrar
louvor renovado. Levamos a ele nossos temores, nossa doença, e nossas sentidas
opressões na comunhão da noite. Ele ca conosco e fala de paz. Escovamos os
dentes. Para alguns de nós, a hora de ir para a cama se aproxima. Para outros,
chegou a hora de quietude e oração. Empregos de terceiro turno, permanência
em hospital, festas sazonais, deveres de casa de última hora — cada uma dessas
realidades acometem a noite. Mas a segunda e terceira vigília da noite não são
criadas para que nós assistamos televisão, para o trabalho que sobrou do dia, ou
para divertimentos após a festa, pelo menos não como norma. A noite vem. A
madrugada foi feita para estarmos a sós com Deus. Ele nos espera com amor
para nos carregar.
Quando uma porção termina e a outra começa, é como se olhássemos para trás
para ajuntar tudo que é belo da porção anterior antes de ir adiante. São como as
ores espalhadas por aí que nós ajuntamos, colocamos em nosso vaso com água,
e agradecemos a Deus por elas. Também ajuntamos qualquer coisa difícil,
dolorosa, assustadora ou pecaminosa, como se fossem pedaços de um vaso que
se espatifou, o qual nós, ou outra pessoa, derrubamos da nossa mesa. Varremos
esses pedaços para dentro de uma caixa e os trazemos diante de Deus.
Colocando nossas ores e nossos cacos quebrados diante de Deus dessa forma,
damos graças e lançamos nossas ansiedades. Ele os segura agora, e podemos ir
adiante para a próxima porção do dia.

Porções semanais
Um dia em cada sete, procuro viver essas quatro porções como um dia de
descanso. Por vinte e quatro horas sou ajudado, exceto com autênticas
emergências, deixando o e-mail, telefonemas, compromissos e o trabalho pastoral
diário para tomar fôlego. Isso tem mudado com o passar dos anos, à medida que
os lhos cresceram e suas faixas etárias mudaram. Às vezes eu durmo até mais
tarde. Ou, depois que as crianças estão na escola, assisto a um lme antigo ou
escuto música. O almoço é folgado. Pode ser que eu tire uma soneca à tarde
antes de buscar os lhos na escola. Durmo sem senso de culpa (pelo menos este
é meu alvo). Não é uma perda de tempo. Não hoje.
Mas quando os ritmos semanais de descanso são melhores para mim,
encontro-me sentado no chão sobre um forro de piquenique para almoçar. Se for
outono ou começo do inverno, visto boina, luvas e roupas su cientemente
quentes para aguentar três horas no relento. Numa sacola plástica levo Bíblia,
papel, e uma pilha de poesias ou um livro de cção. Aninhado entre a sombra
das árvores de um de meus lugares prediletos de descanso de sábado, eu olho por
cima do Lago Creve Ceour, ou talvez olhe morro abaixo para as fontes de águas
do Parque da Floresta. Calço tênis e caminho, talvez por quilômetros. Às vezes,
quando chove, eu co sentado em minha velha caminhonete vermelha olhando
por cima da lagoa.
Aqui neste lugar corriqueiro, entre essas coisas que importam, estou entregue
mais uma vez à escuta. Sou escutado por Deus. Entregando os meus fardos.
Sendo tomando no seu colo. Voltam risadas gratas e alegres. Às vezes choro sem
mesmo saber o porquê. Mas ele sabe. Esses fardos são dele.
Quando perco sextas ou segundas de folga, e estou irritado e exausto pela falta
deles em minha vida, já notei que só um dia de descanso não oferece muito
repouso. Aí é necessária uma espécie de desintoxicação. Tenho de me lembrar de
que a presença humilde, a conversa em que se escuta e a solitude entre essas
porções semanais têm um efeito cumulativo; assim como acontece com as quatro
porções do dia. Uma vez que eu comece a colocar várias porções diárias e
semanais em seguida no meu ritmo, torna-se notável a transformação em meu
ser. Pode ser que meus fardos tenham aumentado. Mas sou novamente capaz de
oferecer descanso e presença hospitaleira aos outros, porque eu mesmo
realmente tenho algo disso. A graça disso me deixa maravilhado.
Quando primeiro introduzi essa ideia de “meses de descanso” à nossa
congregação, eles não gostaram. Três meses por ano, dávamos a todos os nossos
ministérios semanais uma folga sem culpa (abril, agosto e dezembro). Eu z isso
principalmente por causa da idade de nossa congregação, composta
principalmente por jovens famílias com crianças. Essas mesmas famílias eram os
principais voluntários na igreja e na comunidade. Entre servir e voluntariar, ir
aos estudos bíblicos e grupos nos lares, as pessoas estavam se esgotando. No lado
engraçado, se alguém tirasse uma folga sentia culpa enorme, como se estivesse
desapontando a Deus e a nós. É claro, não ordenamos que nossos membros
observem meses de descanso; as pessoas podem continuar a se reunir se assim
desejam. Mas no decorrer dos anos, a maioria tem cado grata pelo ritmo
embutido que essas folgas oferecem. Descansamos estrategicamente a m de
continuar com vigor. Se não zermos isso, acabamos tendo de tirar folgas não
planejadas porque adoecemos ou nos esgotamos devido a nossos horários
desgastantes.

Marcando nosso passo


Como, então, essas porções diárias e semanais podem nos ajudar? Uma pequena
cena de uma história nos dá uma resposta. Nate e seu pai se prepararam para
uma caminhada em uma difícil montanha. Nate nos conta a história.
“Nate, acho que se nos mexermos em passo bem devagar não vamos ter de
parar tanto. Aqui, olhe”. Meu pai mexeu os pés metodicamente, devagar, mas
rme.
“Pai, você está louco!”, dei risada. “Nunca vamos chegar lá. Olhe como você
está andando devagar. Eu podia rastejar mais depressa que isso. Está ridículo!”
“Faça o que você quiser”, murmurou. “Eu vou andar devagar!”
Eu descartei a sabedoria do meu pai e corri adiante, subindo a montanha.
Depois de cerca de meia hora de caminhada numa trilha íngreme, notei que, com
todas as minhas paradas doloridas, ele me acompanhava. Eu estava exausto.
Papai não parou nenhuma vez, e parecia estar deslizando montanha acima.
Como ocorre muitas vezes na vida, a dor tornou-me disposto a aprender.
Naquele dia foi por pulmões queimando e pernas bambas... Dei uma
experimentada na teoria do meu pai e me juntei à sua marcha ridiculamente
vagarosa. Logo descobri que se eu continuasse indo devagar, era mais fácil não
ter de parar. Não dava para acreditar. Ali na encosta da montanha, um dos
dilemas de toda minha vida estava sendo revelado. A resposta era tão simples.
Marque bem o seu ritmo.
Vá devagar.
Não pare.68
Para mais a esse respeito veja Dictionary of Biblical Imagery, ed. Leland Ryken, James C. Wilhoit, and
Tremper Longman III (Downers Grove, IL: InterVarsity, 1998).
Kathleen Norris, Acedia and Me: A Marriage, Monks, and a Writer’s Life (New York: Riverhead, 2008), xiv.
Nathan Foster, Wisdom Chaser: Finding My Father at 14,000 Feet, (Down¬ers Grove, IL: Intervarsity,
2010), 34.
QUARTA PARTE |
REFORMULANDO O
TRABALHO QUE FAZEMOS
12 | Cuidando dos enfermos
A visitação aos enfermos . . . é de suma importância [...] Aqui se aprendem lições que jamais se
aprenderiam no gabinete pastoral.
–C B

No segundo ano de meu primeiro pastorado, comecei a cantar corinhos e


dirigir um estudo bíblico semanal num lugar de assistência a idosos. Depois do
estudo e do cântico, os olhos de uma senhora idosa brilhavam com lágrimas. Ela
veio em minha direção, beijou meu rosto (como muitos idosos fazem), e me
agradeceu. Eu dei-lhe de volta um beijo no rosto. Era costume delas, não meu, e
admito que eu me sentia desconfortável. Mas eu a abracei e tomei um momento
para orar por ela. Ela agradeceu a Deus. Não pensei mais no assunto.
Na quarta-feira seguinte, depois do estudo e do cântico, levantei-me do piano e
quei boquiaberto notando que uma la de homens e mulheres imediatamente
se formou. Cada um parecia esperar a sua vez. As senhoras idosas beijavam meu
rosto; os homens de cabelos de prata e calvície apertaram-me a mão. Desajeitado,
eu devolvia esses gestos e orava por eles. Os abraços a oraram. Sorrisos se
abriam como pétalas; lágrimas umedeciam e acumulavam como encharcados
pelo orvalho de uma manhã ensolarada. Estranho!
Com o passar dos meses, essa espécie de la que se formava para que os tocasse
e orasse por eles passou a ser uma espécie de prática normativa na comunidade.
Aquelas manhãs de quarta-feira, os muitos ofícios fúnebres que seguiam, esse
modo terno de cuidado ao próximo e gratidão a Deus em Jesus — estes
tornaram-se como desenhos preciosos e fotos que as pessoas às vezes colam com
íman em suas geladeiras.

As pessoas que nos ensinam


O toque forma uma parte do nosso trabalho pastoral. Em geral tenho sido
desajeitado e alerta nessa obra, tomando cuidado para não haver toques não
apropriados. Falarei a respeito dessa espécie perigosa de toque no próximo
capítulo. Mas o Senhor começou a me ensinar sobre o tipo bom de toque a cada
semana.
Lembro-me de Betty, em um leito de hospital, a boca coberta com uma
máscara que alimentava aos poucos a respiração dos pulmões. O bipar constante
de um aparelho indicava o pingar de medicamentos no tubo preso com ta
adesiva em suas veias. Eu procurava uma passagem da Bíblia para ler, nervoso
com a minha juventude, incerto quanto a como mostrar Jesus para a viúva de
oitenta anos ali deitada, pressionada embaixo de todas aquelas coisas. Antes de
eu dizer uma palavra, Betty levantou seu braço cheio de tubos, e conseguiu falar
uma frase sob a máscara: “Vamos orar, Pastor?” Disse isso menos como pergunta
e mais como uma declaração. Em retrospectiva, agora acredito que essa velha
santa estava me ensinando o que seria o desejo de Deus para um momento como
aquele. Ela estava me ensinando. Com o seu presente poder, levantei com força a
minha voz.
Antes que Betty tivesse erguido a mão eu a tomei e segurei. Coloquei a outra
mão levemente sobre sua testa. Ali juntos, no nome de Jesus e pedindo oração
naquele dia, ela já havia me ensinado algo bom a respeito do toque humano
ocasional entre homens e mulheres que estão unidos como família em Jesus.
Confesso que eu a enxergava mais como avó do que como irmã. Mas até mesmo
aqui eu tinha muito que aprender, e acho que ela via isso. Para ela, eu era seu
pastor — como um neto, sim, mas assim mesmo um homem de Deus, enviado
para lhe fazer o bem em Jesus. Embora secretamente muitas vezes eu temesse ser
visto como um tanto juvenil na sábia presença dos idosos, ela me via como o
homem adulto que eu era. Ela me tratava de acordo com o chamado que eu
recebera. Isso sempre me humildou.
De qualquer modo, era o aniversário da morte de seu marido. Ele havia
morrido há mais de vinte anos. Ela perguntou se poderíamos sentar e conversar
um momento. De repente estourou a represa e as lágrimas jorraram. Ficamos
sentados. Ela chorou. Meu ombro segurava sua cabeça fatigada e apoiava seu
torso arfante. Eu não sabia mais o que fazer. Orava enquanto ela chorava.
Na verdade não havia mais nada a fazer. Antes, eu não imaginara quão pouco
uma viúva experimenta o toque conforme deveria ser. Os membros da família
moram longe e visitam esporadicamente. Além das piadinhas do pessoal médico,
os idosos frequentemente entram numa escassez de toque, como se vivessem no
deserto durante muitos anos de suas vidas. Sobre o ombro de quem uma viúva
pode encostar quando sofre a perda do marido a quem amava? Só fui esse ombro
uma vez para Betty. Provavelmente é assim que deve ser. Mas lembrou-me do
papel que desempenhamos um pelo outro na comunidade. Meu ombro era
seguro e forte. Por um momento, foi o travesseiro irmão para seu sofrimento
autêntico. Espero que um dia um ombro cristão possa bondosamente permitir
que eu me encoste no meio de meu próprio luto por alguém amado a quem
perdi, enquanto aguardo o feliz reencontro no céu com Jesus.
Não era de surpreender que Betty fosse uma das pessoas na la ao lado do
piano desde o começo. Olho para trás agora e reconheço que eu era desajeitado
com esse toque do tipo certo. Os homens e as mulheres formavam la porque o
toque humano fraternal, seguro, era como uma joia rara. Um aperto de mão, um
abraço, a presença, um beijo no rosto, oração — toque humano do jeito que a
família em Cristo deveria oferecer uns aos outros — é um bem entesourado do
qual se aproveitar enquanto durar.
No caso de Betty, Paulo nos dá a categoria. Os homens jovens devem tratar as
mulheres mais velhas como mães, que implica que as mulheres mais idosas
devem tratar os homens mais jovens como lhos (1Tm 5.2). A “mãe” encontrou
um momento para o ombro de um “ lho”.
O toque no Evangelho, portanto, deve ser semelhante ao toque
normativamente apropriado entre membros da família. Esta é a sua direção. O
cuidado pastoral pela alma tem de levar em conta também o corpo. Portanto, o
toque abusivo, negligente, presunçoso ou sensual não tem lugar no toque da vida
e do ministério evangélicos. Aqueles entre nós que só possuem tais categorias de
toque nocivo precisam da graça curadora e da mentoria de Jesus, antes que
tentemos o toque familiar no nome de Jesus. Até que o evangelho transforme
corretamente nosso uso do toque, estamos menos prontos para um ministério do
que percebemos, não importa o quanto estamos preparados para ensinar ou
pregar ou aconselhar.

Jesus e o toque dos enfermos


O contato da pele de Jesus com as coisas da terra salpica as páginas dos
Evangelhos: pão e peixe, uma bacia d’água, uma toalha, um cálice, vinho, trigo,
cascas de árvores e mesas, lírios do campo. Foi Jesus que juntou terra em suas
mãos, cuspiu nela com sua saliva, massageou com a mão a mistura para fazer
lama, e espalhou generosamente a mistura úmida sobre os olhos quebrados do
homem que nasceu cego ( Jo 9.6).
Jesus tocou os doentes, e frequentemente tocava a ferida. Jesus tocou a lepra do
leproso (Mt 8.3), o ouvido do surdo (Lc 22.51), o olho do cego, a mão dos que
tinham febre (Mt 8.5), e a língua do mudo (Mc 7.33). Esse era o toque da
piedade (Mt 20.34), o acariciar de quem sentia piedade.
Não é de surpreender que “todos os que tinham enfermidades pressionaram . .
. para tocar” em Jesus (Mc 3.10). Tal toque, como um exército de justiça, arranca
completamente o abuso e a negligência de mãos inimigas que têm intenção de
machucar os enfermos. Nós, os enfermos, ansiamos por esse toque de Jesus, que
defende e consola. Esse toque ou nos cura agora ou signi ca, de maneira
impactante, que a cura virá com o céu. Embora possa demorar, em Cristo a cura
não falhará. O toque da compaixão de Jesus rega essa esperança.
Por essa razão, Jesus nos conduzirá, na vida e ministérios, aos cheiros de leitos
de doentes, com ossos medicados entre músculos embriagados de misturas
prescritas. Os quartos de viúvas e enfermarias de câncer de cada comunidade
revelam-nos onde Jesus visitará com certeza. Nós, os assustados ou endurecidos,
precisamos que Jesus nos tome pela mão em nossas comunidades. Qualquer
pessoa adulta cujo estágio da vida a tenha colocado no papel de principal
cuidador de seu pai ou sua mãe sabe que não podemos cuidar do enfermo
sozinho. Qualquer membro da família que viva horas de distância, ou qualquer
pastor que só pode estar em um lugar de cada vez em meio a uma congregação
que está envelhecendo, precisa de ajuda para lembrar que nós não somos Jesus, e
nossa capacidade de cuidar é mais limitada do que queríamos que fosse. Há
gente demais e sofrimento demais para os nossos dois ombros. Mas, em Jesus, a
comunidade de ombros pode tocar de maneira substancial aos enfermos,
literalmente e gurativamente.
Pode ser que não toquemos a ferida diretamente como Jesus fazia. E jamais
devemos tocar quem não quer que o façamos. Mas quando oramos pelos
enfermos, podemos perguntar: “Posso segurar sua mão para orar?” Ou no caso
dos que estão em estado crítico, podemos colocar levemente a mão sobre sua
cabeça ou seu braço. Um leve toque no ombro com uma palavra bondosa, ou um
abraço, pode ir longe para aqueles que ainda conseguem car em pé.

Ao lado da sepultura
O cuidado pastoral é, em sua maior parte, uma questão de presença, estar com
alguém no meio do que o perturba. O toque do tipo certo é uma sentença.
Sentado numa cadeira no quarto, enquanto os membros da família se ajuntam, é
nosso parágrafo. No cuidado pastoral, o contato dos olhos, um pequeno aceno
ou balançar a cabeça, uma lágrima, um sorriso, disposição de segurar um guarda-
chuva sobre a cabeça da pessoa enlutada na chuva, disposição para cortar o pão
para sanduíches, compromisso de ajudar a cabeça confusa a tomar decisões sem
fazer a decisão por ela — tudo isso descreve uma garra desajeitada e imperfeita,
que está presente com as pessoas sem tentar chamar atenção ou “fazer acontecer”
ou inventar arti cialmente um “momento divino”. Isto, mais do que as suas
palavras, forma as ferramentas de sua vocação de cuidados.
Meu primeiro funeral como pastor foi de uma vizinho que eu não conhecia.
Ouvi o diretor chegar a mim na sala separada: “É hora”, diz ele. Ouço meu
estômago roncar. Escuto o barulho dos meus sapatos sobre o carpete gasto. Eu
me ouço tentando juntar palavras de vida junto àqueles que, em sua maioria, são
estranhos a mim. Percebo que minha voz começa a tremer ali na multidão
arrasada.
Naquele tempo, eu tinha pouco conhecimento dos sons da morte. Os anos
desde então mudaram isso, mas era a primeira ocasião em que ouvi as gaitas de
fole tocar. Depois do culto, ao lado da sepultura, o tocador de gaita de fole cou
parado como se fosse feio e segurasse um ganso na mão. Soprou para dentro e
para fora, num gemido que puxava o ar transformando-o na melodia assombrosa
de “Preciosa Graça” [Amazing Grace]. O vento revirava as folhas de outono.
Postes de alumínio alugados produziam clangor com a corda e a lona. Eu ouvia o
som de ores jogadas em cima do caixão. Era um sepultamento militar, bandeira
dobrada e dada à família, ri es armados para uso; os tiros de morte chocando o
silêncio para honrar uma vida. Relembro como parecia estranho encontrar
homens e mulheres adultos, suspirando alto e dolorido. Ondas de fungadas,
como a maré, iam e voltavam em ondas mansas. Os chavões se apressavam para
pôr fantasias sobre os silêncios desajeitados. Perguntas sobre Deus ou sobre a
vida eram sussurradas embaraçosamente ou em repentina raiva. Surgia
frequentemente a risada nos lugares mais estranhos para um consolo, o que não é
nada estranho.
Pat havia morrido. A sua irmã começa a trazer uma história aos meus ouvidos.
“Pat costumava encontrar gatos perdidos e levá-los para casa”, diz ela.
Dou uma risadinha com essa introdução surpreendente.
Ela continua: “Pat não somente dava um lar para esses gatos; ela punha roupa
nos gatos danados —roupa de bonecas!”
“Verdade?” pergunto.
“Ah, sim!”, ela diz. Começa a rir enquanto pensa no coração sobre tempos mais
felizes. Eu também começo a rir.
“Então, ali estava a Pat, com todos aqueles gatos vestidos, fazendo pose para
uma fotogra a, e Pat sorrindo de orelha a orelha!”
Agora nós dois estamos rindo e dependendo dos lencinhos para manter o
decoro.
“Ah meu, essa era a Pat! Com certeza era uma maluquinha!”
Rimos por mais um momento e então respiramos fundo para uma descida
repentina. A contadora de histórias agora olha para longe e ca quieta no
silêncio. Sem me encarar, ela diz: “Vou sentir muita falta dessa Pat”.
Ouvir essas histórias de lembranças é parte do seu trabalho. Quando alguém
conta a respeito de um ente querido falecido, pergunte ternamente qual era o
nome da pessoa. Demore aqui e escute. Quando cumprimentar alguém que
esteja de luto, não precisa dizer: “Como vai você?” ou “Como foi seu dia?” Tal
pergunta força a pessoa na confusão de colocar realidades inexplicáveis numa só
sentença. Se pararmos e pensarmos nisso, é provável que já saibamos como essas
pessoas enlutadas estão passando. Em vez disso, cumprimentamos simplesmente
dizendo algo como: “Estou grato por encontrar você; tenho pensado muito e
estou orando por você” ou, “Você é amado por todos”. E normalmente não
perguntamos: “O que posso fazer por você?” A pergunta coloca o enfermo em
posição de dirigir o seu horário e inventar um monte de tarefas. Melhor é
oferecer algo especí co que permita uma resposta sim ou não, como: “Posso lhe
trazer café da manhã?” ou “Você gostaria de descansar hoje?” ou “Seria de ajuda
se eu pegar a sua lha na escola amanhã?” Essas coisas especí cas também nos
ajudam a resistir à tentação de perguntar o que podemos fazer, não por amor
deles, mas de nós, porque sentimo-nos sem saber o que fazer e queremos fazer
algo diferente. Conheço bem essa tentação. Mas se eles pudessem, também
fariam as coisas de um jeito diferente. Ali estamos nós, cada qual olhando junto
para Jesus no silêncio confuso.
Em seu sermão, portanto, você fala da calma de ter escutado e amado. Você diz
algo como:
“Entendi que Pat estava sempre procurando gatos sem dono”.
Com isso, aqueles que a amavam dão uma risadinha com as lembranças.
“Será que ouvi certo que Pat não somente dava um lar para esses gatos como
também os vestia com roupas de boneca?”
Agora os risos de amor jorram por entre as lágrimas de luto daqueles que a
conheceram. Eu também sorrio com gratidão. As risadas duram um pouco.
Depois as lágrimas recuperam o seu lugar, e o silêncio volta.
“Sabe, quando penso em Pat querendo dar um lar e roupas aos gatos eu
lembro-me de uma história que Jesus contou sobre ovelhas espalhadas e
perdidas. Ele disse que Deus era como o pastor buscando encontrá-las para
trazê-las para casa. Obrigado por ter me contado esta história sobre Pat e seu
amor por ela. Isso me lembra de minha necessidade de ser encontrado e de
ganhar um lar. Todos nós precisamos ser encontrados. Antes de car doente, Pat
compartilhou como ela esteve perdida todos esses anos, mas que nalmente Jesus
a encontrou. Ele pode nos encontrar também e nos levar para o lar”.

Chamado de oração para os presbíteros


Está alguém entre vós doente? Chame os presbíteros da igreja, e estes façam oração sobre ele,
ungindo-o com óleo, em nome do Senhor (Tg 5.14).

Nas igrejas que tenho servido no decorrer dos anos, às vezes separamos um dia
de oração. Junto a essas reuniões públicas regulares, de quando em quando vem
um chamado, e nos reunimos em uma sala ao lado de um leito de hospital.
“Chame”, diz Tiago. Suas palavras trazem à mente os ossos tortos e olhos
cegos, aqueles que cam assentados em esteiras, esquecidos, no lado das
estradas. Notícias alcançavam esses seres humanos de pulmões chiando e pele
cheia de chagas. “Jesus está chegando!”, ouviam dizer. “Jesus está se
aproximando!”
Abruptos em encontrar sua voz, essas pessoas com tosse de sangue tentavam
falar uma palavra ou se arrastar de joelhos no chão de pedregulhos para tocar um
o da roupa de Jesus. De qualquer modo, mãos trêmulas ou artríticas lutavam
com seus dedos para levantar a bandeira do seu coração, clamando: “Filho de
Davi, tem misericórdia de mim!” Ele responde, e aprendemos que os enfermos
possuem voz. O seu chamado não se assemelha a nada de incômodo ou
constrangedor. Na mente de Jesus, os que estão mentalmente perturbados não
são empurrados para as margens. Não é de surpreender, portanto, que orar pelos
enfermos esteja a rmado na descrição do trabalho do presbítero feita por Tiago.
Os presbíteros não são Jesus. Mas estes que retornam são pastores dados para
re etir aos outros e se assemelhar com a presença, ensinamentos, tom e
expressão do verdadeiro e bom Pastor, o qual conhece as suas ovelhas pelo nome
( Jo 10.3). De algum modo, elas ouvem a voz de Jesus na nossa voz.
Às vezes há dois de nós. Outras vezes mais, juntos com amigos e membros do
grupo dos lares que entram no quarto, pé ante pé, nervosos por amor daquele
que está sofrendo. Um dos presbíteros, de dia um zelador, estende suas mãos
manchadas de sujeira ao bolso para o frasquinho de óleo. Ele o entrega ao pastor.
O óleo foi comprado numa livraria local. Tinha cheiro de incenso. Mas qualquer
óleo serve, porque é como a sujeira nas mãos do zelador. A sujeira não é o
trabalho, mas sinal de que o trabalho foi feito. Tanto a terra quanto o óleo não
têm defesa contra o sabão. Ambas soltarão seu apego da pele e serão lavados,
escoando pela pia ou no tanque naquela noite. Mas, embora desapareça o
símbolo, o trabalho que ele revelou permanece. Como na unção do Antigo
Testamento, ocorreu uma separação.
O trabalho é feito “em nome do Senhor”. Aqui não existe feitiço ou
encantamento. É possível recitar as palavras “em nome de Jesus” e ainda conhecer
bem pouco do que signi ca orar no nome do Senhor. Falar os nomes
importantes é uma ferramenta usada pelos arrogantes para mostrar aos outros os
seus recursos, amizades e conexões. Entre os humildes, referir-se aos nomes
importantes raramente é usado, exceto quando surge uma necessidade pela qual
não existe outro remédio. A oração em seu nome é uma declaração de que só
Jesus possui a sabedoria, os recursos, a provisão e o poder para governar aquilo
que nos fere. Mesmo nosso bom uso da medicina e nossa ativa gratidão por bons
médicos e enfermeiros são como sapatos, que em última instância são ajuntados
e mantidos pela costura e pelos laços de Deus.

A Oração da Fé
Em algum ponto, um dos presbíteros explica brevemente essas coisas ao que os
chamou. Então, quem chamou expressa, se puder, o que está pedindo de Jesus.
Em meio a chinelos de dedo ou sapatos de grife, hálito de café e fungadas, um
presbítero põe um pouquinho de óleo no dedo e toca a testa do enfermo, orando
em silêncio ou com palavras de misericórdia (Tiago não oferece nenhuma
diretiva quanto a isso). Se for com palavras, pode soar, em substância, assim:

Bárbara, Jesus pertence a você. Você pertence a ele. Só ele pode salvá-la e consertar a você. Você
foi criada por ele. Por ele é que foi resgatada. Por ele temos acesso ao trono de graça. Você é lha
do Rei. Levamos o seu caso até ele. Seu trono é um trono de graça. Vamos até ele nessa hora de
necessidade.

Em seguida, as orações de fé começam. Diferentes anciãos oram, calmamente e


em voz alta, cada um na sua vez ou todos de uma vez (segundo o costume
cultural), assim como outros presentes oram ao lado. A oração da fé não tem
tom de voz ou uma postura corporal necessária. Deus nos ouve não porque
somos fortes ou mansos. Não há nenhuma quantidade ou tipo de palavras. Deus
nos ouve não porque usamos palavras su cientes ou grandiosas. A fé é “a certeza
de coisas que se esperam, a convicção de fatos que se não veem” (Hb 11.1). Em
Jesus, os presbíteros oram com segurança e convicção, ainda que tenham apenas
um grão de mostarda de ambos.
Mas por que a fé tem de atender às orações dos presbíteros? Isto não é uma
oração de tipo preparação para a morte. O presbítero fala ao Senhor como quem
vê um futuro em Jesus para aquela pessoa enferma. Existe outro lado para essa
doença. Ela não terá a última palavra! “E a oração da fé salvará o enfermo, e o
Senhor o levantará; e, se houver cometido pecados, ser-lhe-ão perdoados” (Tg
5.15).
Crer que o Senhor reina sobre a lama que nos suja e dizer uma palavra que nos
cure é um desa o para os presbíteros. Às vezes, com olhos humanos vemos
naquele momento somente homens, mulheres e crianças que estão tendentes à
doença, assombrados por maus pensamentos ou com o cérebro deteriorado. E
quando nossa porção tangível do sagrado é um pouquinho de óleo que
compramos por cinco reais e noventa e cinco centavos na rua debaixo, pode
parecer que as palavras caem surradas do céu em um ataque relâmpago de
doenças. A nal de contas, nós que estamos orando acabamos de comer um
hambúrguer com fritas no carro a caminho daqui do hospital.
Mas “Elias era homem semelhante a nós, sujeito aos mesmos sentimentos, e
orou, com instância, para que não chovesse sobre a terra, e, por três anos e seis
meses, não choveu”, Tiago asseverou. “Muito pode, por sua e cácia, a súplica do
justo”, ele nos assegura (Tg 5.16–17). Nossa fé não está em nossas palavras,
emoções, agitação inquieta ou em nossa natureza frágil e limitada. Nossa fé está
no Senhor, cuja vontade, sabedoria e poder são capazes de sustentar os nossos
entes queridos em seu sofrimento ou então livrá-los parcialmente ou totalmente
desse sofrimento.
Tenho orado desta forma por muitas pessoas no decorrer dos anos (embora
não tantas quantas eu poderia ter feito, devido a meus temores iniciais sobre o
mau uso da fé dos curandeiros e de tais textos). Porém, na maioria dessas
ocasiões, quando eu oro desta maneira, como um presbítero, a cura pela qual
orei não veio. Parece-me que oramos de um ou de outro jeito: fé que Deus pode
nos consertar com uma palavra em um instante, fé que Deus pode nos sustentar
por sua graça, ainda que não tire nosso sofrimento (Lc 22.42) ou nos deixe com
nossa doença (2Co 12.8–9).

Confessar e perdoar
Não é de se maravilhar que Tiago mude de ênfase da cura do corpo para a cura
da alma.

A oração da fé salvará o enfermo, e o Senhor o levantará; e, se houver cometido pecados, ser-lhe-


ão perdoados. Confessai, pois, os vossos pecados uns aos outros e orai uns pelos outros, para
serdes curados. Muito pode, por sua e cácia, a súplica do justo (Tg 5.15–16).
Conquanto a doença possa indicar, em raras ocasiões, a presença de um pecado
como uma causa (1Co 11.30), na maioria das ocasiões a doença não tem nada a
ver com um pecado individual ( Jó 2.1–7; Jo 9.1–3), mas representa o fato de que
o Éden foi quebrado e o céu ainda não chegou.
Contudo, quando a doença grita na nossa cara, nos a igindo como um brigão,
e ninguém vem nos socorrer, ali, na lama, começamos a ver coisas nos
pensamentos e emoções de nosso ser interior que não percebíamos existir —
coisas feias, que revelam que não somos tão justos quanto pensávamos ser.
Vemos ainda mais a nossa necessidade de um salvador. Começamos a confessar.
A doença de corpo e de mente joga um tijolo no espelho de nossa imagem
perfeita. Vemos nosso re exo esmiuçado e encontramo-nos mais carentes de
graça e do mérito de Jesus do que podíamos imaginar quando nossas juntas e
músculos funcionavam bem.
Não vai demorar muito. Na verdade não. É provável que eu também, com o
tempo, que à beira do caminho, afastado dos limites da comunidade, clamando:
“Filho de Davi, tem misericórdia de mim!” Esperançoso, eu imagino algum
jovem pastor sentindo-se um tanto desajeitado, junto a um presbítero com hálito
de café e suas Bíblias vindo ao lado de minha cama em nome de Jesus. Eu os
escutarei pedindo a meu Senhor em meu favor. Sua presença, empatia, seu bom
toque, e sua tenacidade em apreender aquilo que eu não posso ver, sua graciosa
recepção de minhas recém-descobertas con ssões sobre a minha verdadeira
necessidade de perdão me conduzirão a Jesus. O trono de graça aguarda. Esses
ossos adoecidos sobre o sofá ou cama em que estou deitado não poderão me
impedir disso.
13 | Cuidando dos pecadores
Esses olhos—buracos de uma máscara.
–J U

Domingo de manhã, havia um homem que regularmente dava “ósculo santo” a


diversas mulheres na congregação, cumprimentando-as à porta do culto matinal.
Com o tempo, sussurros de reclamação começaram a encher os meus ouvidos.
Em especial, duas mulheres nal e desajeitadamente descreveram esse beijo
como não parecendo nada com o que é santo.
No Novo Testamento, dois tipos de toque físico são colocados em contraste
brutal. O primeiro é o beijo de Judas no rosto de Jesus. Essa espécie de beijo usa
erradamente o toque físico para consumir ou preservar os próprios desejos,
lascívia ou agendas egoístas (Lc 22.47–48). Usa erradamente a adultos e crianças
sob guisa de “ósculo santo” em nome de Deus. Em contraste, o “ósculo santo” do
Novo Testamento vê um jeito da comunidade cristã recuperar, em Jesus, a
maneira pela qual os seres humanos originalmente foram feitos para tocar uns
aos outros.69 Entre nós, poucos conhecem por experiência o que signi ca tocar
ou ser tocado de modo santo. O toque profano já foi nosso mentor e quebrou a
maioria de nós.
Essas duas espécies de toque formam um retrato das duas espécies de cuidado
pastoral, não somente para os doentes como também para os pecadores. Quando
falei de meu desejo pelo ministério, e Jesus me perguntou o que eu queria que ele
zesse por mim, jamais teria dito: “Por favor, ensina-me a cuidar dos enfermos e
dos pecadores com a minha vida. Por favor, capacita-me a fazê-lo de tal forma
que o teu amor por ambos seja imitado em meus caminhos”.

Disciplina e pecado
No exame oral para meu ministério, eu estava diante de cinquenta presbíteros
que me perguntaram: “Qual o propósito da disciplina da igreja?”
Recém-saído do seminário, e de acordo com minha tradição teológica,
respondi que “o propósito da disciplina eclesiástica é elevar o caráter e ensino de
Jesus e proteger o bem estar do rebanho”.
Depois disso, um pastor gentil e experiente chegou até mim no corredor e
perguntou se ele poderia sugerir uma resposta mais plena. “Existe um terceiro
propósito para a disciplina na igreja”, disse ele bondosamente. “Esse terceiro
propósito tem a ver com o bem-estar daquele que pecou. Isso é uma boa notícia
para qualquer um entre nós”.
“Certo!”, eu disse. “Eu havia me esquecido disso”.
Com o passar dos anos, tenho entendido que quando alguém é pego no
pecado, ainda é possível que nos esqueçamos deste propósito.

Relacionar-se com os endurecidos


Às vezes nossa resposta in amada surge porque o pecador defende o seu pecado.
Por quase dois anos eu tentei me reunir com o homem que dava “ósculo santo”
profano. Tivemos de pedir que ele parasse. Não muito depois, apareceu um caso
amoroso, e seu casamento estava em frangalhos no escuro. Eu quei sem jeito e
limitado, mas apelei a ele com duas mensagens. Primeiro foi a mensagem de que
faríamos todo o possível para andar com ele e sua família através deste terrível
sofrimento, para testemunho nos anos vindouros que Deus lhe daria em Jesus. A
segunda mensagem foi que sua recusa contínua em admitir suas ações contrárias
ao evangelho colocaria em questionamento a sua correspondência com Jesus e
exigia que nós tristemente disséssemos isso a ele. Eventualmente, ele nos
escreveu isto:

A não ser que vocês considerem as leis dos homens como autoridade superior às leis de Deus, o
adultério começado em novembro de 1979 terminará em 2000. Minha esposa não é minha
esposa, Lucas 16.18. Em referência à sua reunião, não os considero mais a minha igreja. [...]. Os
jovens não têm a mínima importância na sua igreja, ninguém, durante os últimos sete meses, tem
estendido a mão a meus lhos. A resposta de Jesus ao que seria o maior mandamento foi: “Amarás
o teu próximo como a ti mesmo”, Mateus 22.39.

Quando alguém se recusa a admitir que está errado (incluindo nós), todo o
raciocínio para justi car o erro é empregado. No bilhete, esse homem sadio,
biblicamente respeitado e querido, na verdade chamou seu casamento de vinte e
um anos de adultério. Arrazoou que, uma vez que seu casamento foi feito por
um juiz de paz em vez de um pastor, não era reconhecido por Deus. Na sua
cabeça, a Bíblia apoiava e recomendava que ele tivesse um caso e abandonasse sua
esposa. Alguém que use a Bíblia desse jeito pode incendiar nossa impaciência.
Também podemos lutar porque, quando alguém recusa admitir o erro, assume
terreno moral altaneiro e acredita ser mais justo que as outras pessoas. Neste
caso, ele nos atacou como liderança fraca, enquanto ele mesmo, como líder na
igreja, estava tendo um caso e defendendo o mesmo pela Bíblia. Ele nos atacou
por não cuidar de seus lhos enquanto ele, pai, estava enganando a mãe deles e
separando-se deles. Ele via ciscos em potencial em nossos olhos, enquanto a
trave permanecia nos olhos dele sem ser detectada.
Em tudo isso nós lutamos também porque simplesmente pôr a culpa em
outrem dói. Também queríamos que nosso grupo de jovens estivesse melhor.
Estendíamos a mão à sua mulher e lhos, mas nos sentíamos terrivelmente
incapazes. Oramos e tentamos — fazíamos refeições, íamos tomar café,
mandávamos bilhetes. É difícil levar echadas de alguém que está atirando em
todo mundo a seu redor e precisa, ele mesmo, de ajuda.

Começando conosco mesmo


Entrar no quebrantamento de outro pode nos deixar expostos. Talvez estejamos
com medo de nossa esposa nos deixar. Talvez sejamos lhos de um pai que
deixou nossa mãe por outra mulher. Talvez tenhamos pensado secretamente
sobre o desmoronamento de nosso próprio casamento e estamos de olho na
mulher sentada dois bancos à frente na igreja a cada domingo. Nossa reação
emocional pode agarrar-nos pelos cabelos. Vê-lo faz com que olhemos coisas em
nossa própria vida que preferíamos não enxergar.
Alguns entre nós nos tornamos passivos. Acendemos o pavio mais comprido e
corremos para nos proteger atrás de abrigos distantes. Detonamos pecadores
pela negligência em vez de por nossos atos — o que omitimos e não o que
cometemos. Dizemos que nosso afazeres estavam em outro lugar. Arranjamos a
vida como líder de ministério para viver a mentira de jamais ter de dizer a
ninguém: “estou arrependido”.
Não é de surpreender que Paulo dissesse: “Guarda-te para que não sejas
também tentado” (Gl 6.1). Você já se escutou dizendo: “Eu jamais faria isso?”
Existe nessa sentença uma armadilha.
Quando o meu amigo pastor tirou sua própria vida, várias pessoas nos meses
seguintes confessaram que pensavam em suicídio. Alguém cometeu o ato. A
igreja quebrada teve de andar fatigada e entorpecida através de tudo isso
novamente.
Quando o meu primeiro casamento estava implodindo e eu lutava
desesperadamente para obter ajuda, havia um homem que repetidamente me
aconselhava, dizendo que o divórcio não era tão mal assim. Mais tarde quei
sabendo que o casamento desse homem estava com profundos problemas. O seu
conselho, em vez de ser bíblico, estava manchado com as suas próprias tentações.
Eu me lembro de um homem que compartilhou comigo os sites de pornogra a
que ele usava. Ele o fez como um ato de con ssão para “trazer à luz”. Mas os
nomes dos endereços da web me tentavam a clicar neles nos próximos três dias.
“Porque, se alguém julga ser alguma coisa, não sendo nada, a si mesmo se
engana. Mas prove cada um o seu labor e, então, terá motivo de gloriar-se
unicamente em si e não em outro” (Gl 6.3–4).

A situação inevitável
O líder mencionado anteriormente acabou com o seu casamento e continuou
com a sua nova amante. Não foi uma espécie de pecado privado, que pudesse ser
tratado apenas de modo particular. Seu pecado era público, e todo mundo estava
observando. Ele era nosso amigo. Estávamos profundamente sentidos. Alguns
queriam ação rápida, com veemência. Nós resistimos a essa ideia. Se fôssemos
errar no caso, erraríamos por dar tempo demais para que ele voltasse à razão.
Quase dois anos de apelos, andando junto dele e tentativas de ajudá-lo haviam
passado e não adiantaram nada. Não tivemos sucesso em ganhar nosso querido
irmão (Mt 18.15). Ele se recusou a escutar (v. 17). Tivemos de “considerá-lo
como gentio e publicano” (v. 17).
O que isso signi cava? Eu não sabia. Procurei nos Evangelhos para ver como
Jesus se relacionava com os gentios e publicanos. Do seu jeito, cava claro que
ainda amaríamos esse homem. Diríamos “Como vai?”, e comentaríamos o tempo
se o encontrássemos no shopping. Talvez ele dissesse: “Será que poderíamos nos
encontrar para tomar um café?”, e responderíamos: “Claro, mas o que está em
minha mente é a situação do seu coração. Quando nos encontrarmos, poderemos
falar também sobre isso?”, “Não”, ele poderá responder. “Está certo”, diríamos.
“Eu oro por você e anseio por seu bem. Qualquer hora que você quiser conversar
sobre as coisas, carei feliz em tomar café com você. Mas, sinceramente, eu
também preciso de Jesus. E ainda tenho esperança de que você admita que o que
fez com sua família não é o que Jesus deseja para nós, e que você queira voltar aos
braços da graça de Jesus”.
Quando fala sobre o pecador endurecido que se chama de seguidor de Jesus:
“Com ele não comais”, Paulo não nos convida a desprezar maldosamente ou a
desconsiderar ou maltratar essa pessoa. Uma refeição juntos seria como um
presente sobre nossa mesa se essa pessoa visse a sua necessidade de perdão.
Ansiamos por isso, mas esperamos. Nosso amor, anseio, bondade e orações por
ele não tiram a realidade de que em Jesus essa pessoa agora está identi cada
“como se” não zesse mais parte da comunidade dos crentes. Nossa comunhão
não é a mesma que antes nem o que ela poderia ser.
Reconhecemos que seu casamento provavelmente (se bem que não certamente)
está perdido para sempre. Mas, que alegria e liberdade signi cariam, se ele
simplesmente dissesse: “Sei que eu estava errado. Eu preciso perdoar, ser
perdoado e mudar”. A comunidade poderia então se juntar a ele com lágrimas,
mas também alegre esperança!
Ele ainda poderia abençoar os seus lhos com instrução sábia. Ele poderia
remover a loucura — a ideia de que Jesus diga que está certo aos papais deixarem
as mamães por outra mulher, a noção que tal ensino põe na cabeça delas sobre
quem são como lhas que um dia se tornarão mulheres. Essa clareza tomaria as
mãos de suas lhas para que elas possam andar por caminhos mais seguros em
seu futuro.
Ele ainda poderá dizer à sua ex-esposa: “Eu estava errado. Por favor, me
perdoe”. Pode ser que nunca mais voltem à posição de amizade. Mas a simples
admissão pode retirar os raios e trovões das nuvens de tempestade que cortinam
o céu de seus cuidados mútuos de pai e mãe.
Mais importante, a honra de Jesus e os seus ensinamentos encontrariam
clareza renovada em sua vida pública para todos quantos o observassem. Em seu
coração, diante de Deus, ele estaria reconciliado. Todo aquele esforço por torcer
os versículos bíblicos, inverter o plano moral mais alto e lançar a culpa nas outras
pessoas pode se acalmar. Os músculos tensos de cada minuto poderão relaxar.
Os corações que batem a cada segundo podem passar a ir mais devagar. Ser
novamente “ganho” em Jesus. Defender o amor ao próximo e encontrar repouso
para a alma — tais bênçãos revelariam o terceiro propósito da disciplina,
produzindo seu doce fruto em uma vida comum.

Relacionar-se com os amolecidos


Surpreendentemente, também podemos lutar para nos relacionar, não somente
com os resistentes, mas também com aqueles que admitem seus erros e
ativamente procuram o perdão. De começo, queremos que a pessoa que pecou
contra nós ou contra nossa comunidade sinta dor. Se ela confessa rapidamente
demais seu erro, achamos injusto. Nossas emoções estão apenas começando a se
mexer. O que fazemos com elas se não pudermos lançá-las contra o ofensor?
Quando alguém for realmente transformado pela graça, isso requer que nós
também mudemos, não somente aquele — e nós não gostamos disso. Imagine
um marido e sua esposa. O marido tem lutado contra a ira durante anos. Ela tem
orado por ele. Depois de todo esse tempo, Jesus começa a mudá-lo. Durante a
sua próxima briga, ela o trata como se ele estivesse expressando sua ira com falta
de amor como sempre fez. Mas o problema é que, na verdade, ele a está amando
bem. De repente, é ela que extrapola os limites pelo jeito que o está tratando no
momento. Agora, é ele que está ferido. Ela é que precisa pedir perdão. A oração
por ele, agora respondida, convida-a a que também mude.
Mas ela não gosta disso. Por muitos anos, ele expressava sua ira. Agora ela
deveria ter licença para fazer o mesmo! Instantaneamente, ela é tentada a
remover as boas-vindas à oração respondida. Faz sentido. A nal de contas, ela
não pode mais falar mal de seu marido do jeito que sempre fez. Seus pedidos de
oração por seu marido no grupo de mulheres têm de mudar. Ela não tem mais
razão para evitar prestar atenção aos seus próprios erros. Todo esse tempo ele
estava sempre na defensiva e era impaciente. Agora, ela descobre que ela está na
defensiva e é impaciente — não porque ele é maldoso, mas porque ele é gracioso!
Às vezes, ir juntos a um novo lugar de liberdade no evangelho é um lindo
sonho, mas é assustador de se assumir.
Ouça como Paulo escreve àqueles que confessaram:

Porque, no meio de muitos sofrimentos e angústias de coração, vos escrevi, com muitas lágrimas,
não para que cásseis entristecidos, mas para que conhecêsseis o amor que vos consagro em
grande medida (2Co 2.4).

Sua postura está cheia de lagrimas, cheia de anseio e preocupação pelo bem-
estar deles. Eles são queridos para ele. O seu propósito é expressamente
designado, não para feri-los, mas para fortalecer seu senso de como são amados
naquilo que ainda têm para aprender e confrontar.
De fato, Paulo inicialmente lastimou ter escrito para eles, temendo tê-los ferido
injustamente (2Co 7.8). Ele esclarece sua gratidão por eles não terem sido
feridos de modo injusto. “Agora, me alegro não porque fostes contristados, mas
porque fostes contristados para arrependimento; pois fostes contristados
segundo Deus, para que, de nossa parte, nenhum dano sofrêsseis” (2Co 7.9).
A postura de Paulo não é nada semelhante ao pai errado que bate muito na
criança até ter certeza de que ela esteja ferida bastante pelo pecado que cometeu,
como se forçar alguém a sentir a convicção do pecado seja tarefa dele e não do
Espírito Santo ( Jo 16.8–9). Ele não quer que seu lho esqueça do que fez. Isso
se traduz em sempre ter de vestir a sobrecapa cinzenta de ter pecado e nunca
poder vestir as cores alegres do perdão.
Em contraste, Paulo ressalta que, porque aquele que foi pego em pecado está
realmente sendo transformado, a comunidade também tem de agir de acordo
com o que diz a Palavra. “Basta-lhe a punição pela maioria. De modo que deveis,
pelo contrário, perdoar-lhe e confortá-lo, para que não seja o mesmo consumido
por excessiva tristeza. Pelo que vos rogo que con rmeis para com ele o vosso
amor” (2Co 2.6–8).
O castigo para aquele que se arrependeu não deve continuar para sempre.
Respondemos à tristeza excessiva do coração arrependido pelo evangelho.
“Perdoar, confortar, rea rmar seu amor”, é o que Paulo implora que seja feito.
O fato de ter sido perdoado não justi ca a estultícia nem remove todas as
consequências do erro. Não há como uma pessoa que odeie o fato de ter sido
molestador, mesmo tendo sido perdoado, receber a responsabilidade de cuidar
do berçário. O seu lugar na comunidade requererá que ele empregue seus dons
de outras formas.
A amizade nem sempre segue ao perdão entre aqueles que foram vitimados.
Embora sejamos capazes de perdoar pela graça, a pessoa que foi prejudicada
talvez frequente uma igreja diferente da pessoa que a feriu ou vice-versa. É raro
para o perdão ter um nal feliz, de conto de fadas, no momento, mas ele nos
conduz a um nal redentivo para todos os envolvidos — um nal que o céu
curará completamente.
Mas por que isso tem importância? Porque, de acordo com Paulo, a maneira
como tratamos o pecador arrependido agora é um ato de batalha espiritual. Estas
situações nos “provam” com respeito à extensão de nossa obediência (2Co 2.9).
Obedecer ao perdoar e rea rmar nosso amor pelo pecador arrependido é
necessário para a luta contra os “desígnios” de Satanás na comunidade (2Co
2.11). É Satanás e não Deus que in ige tristeza excessiva sobre a pessoa
arrependida, junto com a ausência de amor, negligência de consolo, e castigo que
nunca acaba. Nesta altura, Paulo nos relembra, portanto, que ao tratar de
disciplina e pecado, somos tentados a re etir uma aproximação diabólica mais do
que divina.

Discernir as tristezas
Acenda um fósforo em uma fogueira no acampamento, e tanto a gasolina quanto
o jornal pegarão fogo. Ambos são capazes de iniciar o fogo para fazer o jantar.
Ambos são capazes de destruir o acampamento todo. Mas um deles é volátil e
não é digno de con ança.
Do mesmo modo, tanto o diabo quanto Deus falam sobre o pecado. Mas seu
impacto difere de modo dramático. Conquanto o Espírito Santo nos convença
do pecado, nunca o Espírito Santo é identi cado como o acusador. O modo de
Deus confrontar o seu povo em seus pecados é o que Paulo chama de “tristeza
segundo Deus” (2Co 7.9–11).
Primeiro, a tristeza segundo Deus não produz apenas lágrimas ou novas
resoluções. Na verdade, produz arrependimento — isso signi ca um verdadeiro
ponto de virada. A mudança é terna, é nova e incompleta, mas é real.
Segundo, a tristeza segundo Deus leva a pessoa de volta a um novo
conhecimento da provisão da salvação — o mérito e a misericórdia de Jesus. As
suas sandálias, a cruz, o túmulo vazio, sua presente intercessão e defesa — fazem
um feliz reencontro no ser da pessoa. A pessoa sabe que no nal, foi contra Deus
que ela pecou e a Deus ela volta quando vem para casa.
Terceiro, a tristeza segundo Deus propõe mandar embora o remorso: “Porque
a tristeza segundo Deus produz arrependimento para a salvação, que a ninguém
traz pesar” (2Co 7.10). Em contraste, existe uma espécie de sofrimento pelo
pecado que nada tem a ver com Deus. No decorrer dos anos, tenho observado
que aqueles apreendidos do pecado da mentira, por exemplo, exigem energia e
tempo mais ativos — especialmente se a mentira tem se tornado o seu estilo de
vida.
Por que é assim? De um lado, uma longa vida nesse pecado dá à pessoa uma
forte habilidade com a manipulação. Essa pessoa é adepta às lagrimas, citação
dos versículos certos, dar olhares signi cativos e dizer aquilo que a pessoa à sua
frente quer ouvir. É fácil concluir que alguém tem tristeza piedosa quando, na
verdade, ela sente tristeza por ter sido pega e está simplesmente tentando fazer o
que precisa para tirar todo mundo de cima das suas costas, para que tudo volte
ao normal.
Por outro lado, quando a graça começa a ensinar de novo ao mentiroso como
amarrar os seus sapatos, como com qualquer outro pecado e pecador, a mudança
frequentemente não acontece tudo de uma só vez, mas em acessos e aos trancos e
barrancos. Isto quer dizer que a pessoa mentirosa exige tempo para ver quão
profundamente ela mente e como as suas palavras giram saturando sua vida
diária. Por esta razão, uma pessoa a quem Jesus esteja transformando poderá
contar a verdade numa mesma conversa em que mentiras não percebidas
também estejam presentes. É fácil concluir que não há mudança, quando, de
fato, uma poderosa mudança está ocorrendo. Só que leva muito mais tempo do
que desejaríamos.
À luz de tudo isso, o ponto que Paulo destaca é de grande valor. Uma tristeza
autogerada, que o diabo aproveita para aumentar, “produz morte”, diz Paulo (v.
10). Isto é, derrama lágrimas, mas não converte; faz resoluções e cita versículos.
Mas não descansa somente em Jesus nem se submete a Deus.
O pesar ainda conta a história na primeira pessoa e no presente, como se ainda
estivéssemos naquele momento. Aconteceu anos atrás, mas as pessoas que estão
ouvindo têm a ideia, vinda de você, de que tenha acontecido recentemente.
O pesar também guarda segredos. Colocamos a tampa sobre ele e não
contamos a ninguém, a m de preservar nossa imagem. Aos poucos isso nos
corrói. Mas a tristeza segundo Deus eventualmente vira nossos segredos
pecaminosos em testemunhos da graça.

Por onde começar?


Em Gálatas 6 Paulo diz: “Irmãos, se alguém for surpreendido nalguma falta” (v.
1). Por “alguém”, (qualquer um), Paulo se refere no contexto àqueles que
professam seguir a Jesus. Ele expõe isso em outro lugar:
Já em carta vos escrevi que não vos associásseis com os impuros; re ro-me, com isto, não
propriamente aos impuros deste mundo, ou aos avarentos, ou roubadores, ou idólatras; pois, neste
caso, teríeis de sair do mundo. Mas, agora, vos escrevo que não vos associeis com alguém que,
dizendo-se irmão, for impuro, ou avarento, ou idólatra, ou maldizente, ou beberrão, ou roubador;
com esse tal, nem ainda comais. Pois com que direito haveria eu de julgar os de fora? Não julgais
vós os de dentro? Os de fora, porém, Deus os julgará. Expulsai, pois, de entre vós o malfeitor.
(1Co 5.9–13)

Primeiro, de acordo com Paulo, nossa tarefa não é nos separar ou julgar os
nossos vizinhos não cristãos. Para fazer isso teríamos de sair do mundo (muitos
de nós entendemos isso muito erradamente).
Segundo, quando Paulo diz: “em alguma falta”, nosso coração é sondado,
porque ele inclui toda espécie de coisa maculada com a qual podemos nos
deparar no armário de outra pessoa.
Antes do ministério vocacional, trabalhei com as vítimas de crimes no
município de Blackford, Indiana. Eu estava despreparado para os tipos de
transgressões que existiam fora de minha janela. O trabalho abriu as cortinas do
mundo — assassinato, abuso sexual, violência doméstica, abuso infantil, uso de
drogas. No ministério pastoral, o fato de que essas questões ocorram também
nas igrejas, muitas vezes, me pegou desprevenido. Um pastor da mocidade que
tem sexo com as meninas do grupo de jovens, um homem que forja a morte do
lho para seus colegas de trabalho, uma mulher que leva sua família à falência ao
mentir habitualmente e manipular os fundos do banco. As palavras de Paulo:
“qualquer transgressão” prendem nossa atenção e localizam nosso trabalho
pastoral.
Terceiro, Paulo esclarece que entrar na confusão da recuperação de um pecador
que foi pego em seu pecado está fora dos limites para a maioria de nós. Como
isso é diferente! Em minha experiência de igreja, muitas pessoas tomam sobre si
e acreditam ser o seu papel confrontar aquilo que enxergam em qualquer pessoa
que veem. Mas Paulo diz de outro modo. Somente aquele “que é espiritual”
deverá restaurá-lo (Gl 6.1)
Por “espiritual”, Paulo evidencia o contexto dos versículos anteriores com os
quais ele tratou do fruto do Espírito em contraste com as obras da carne. Se
intentamos ou nos encontramos confrontando um pecador que foi “pego no ato”
com o uso de ferramentas de inimizade ou contendas ou estouros de ira, por
exemplo, então nós não somos um daqueles que deverá andar com o pecador que
foi surpreendido. Outra pessoa que seja “espiritual”, isto é, entregue à graça de
envolver o pecador com amor, paz, paciência, bondade e autocontrole, tem essa
tarefa, porque esse pecador deve ser restaurado “com espírito de brandura” (v. 1).
Além do mais, estamos tratando de uma transgressão ou pecado. A disciplina
da igreja (como ocorre com qualquer espécie de disciplina, a de pais com seus
lhos por exemplo) tem a ver com pecados. Isso quer dizer que nós não podemos
disciplinar alguém por ter opinião diferente da nossa, estilo de ensino diferente,
por expressar um temperamento diferente do nosso, não fazer o que queremos
que faça ou não fazer algo quando achamos que deve ser feito.
Nem toda fraqueza ou luta advém do pecado. Imagine uma mãe cujo lho
derramou o leite. Pecado não é a única causa possível para o leite derramado, e,
portanto, a mãe não tem razão para tratar a criança como se ela estivesse em
enroscada. Para começar, as crianças (como os adultos) têm limites. Um
garotinho de dois anos não consegue fazer o que seu irmão de cinco anos
consegue. Uma criança terá de fazer cinco anos antes de ter dez anos de idade.
Assim como não disciplinamos uma aluna de primeiro ano por ela errar em um
problema de matemática de quinta série, um garotinho de dois anos de idade
pode derramar seu leite porque suas mãos e coordenação ainda não são aquilo
que serão no futuro.
As crianças não têm apenas limites; elas também sofrem acidentes. Uma
criança pode simplesmente ter tentado passar as ervilhas para a pessoa a seu lado
na mesa, e, sem malícia e sem querer, derrubou o leite. Neste caso, nossa
frustração é problema nosso, para ser levado diante do Senhor, e não algo pelo
qual disciplinamos legitimamente nosso lho. Os acidentes podem ter maiores
consequências quando envolvem arremessar uma bola de beisebol ou dirigir um
carro. Um motorista adolescente que, enquanto dirige dentro do limite de
velocidade, não viu a criancinha correr de trás de um carro estacionado, terá de
enfrentar o pesadelo de uma situação que não escolheu. Aqueles que cuidam dele
mantém por ele a sua consciência de que há uma diferença entre ele e alguém que
tente dirigir temerariamente ou até mesmo premeditando o mal a uma criança.
Uma nuança ainda mais séria é que para os adultos, os acidentes também
podem ser provenientes de pontos cegos, particularmente em relacionamentos.
Pequenos grupos e ministérios frequentemente se deparam com isso. “Como o
louco que lança fogo, echas e morte, assim é o homem que engana a seu
próximo e diz: Fiz isso por brincadeira” (Pv 26.18–19).
Muitas vezes, os adultos in igirão dor sobre os outros por suas palavras ou
ações relacionais e depois se surpreenderão que outra pessoa tenha se ofendido.
Adultos respondem à dor que causaram dizendo: “Não z por mal”, “Não foi
minha intenção”, ou, “Era só brincadeira”. Isto é verdade. Eles não tinham
intenção ativa de machucar alguém. Muitas vezes, portanto, eles assumem que o
problema está com quem se sente ferido. “Ela não deveria se sentir desse jeito.
Ela tem um problema”, e então o adulto prossegue adiante. O “acidente” na
verdade é um pecado devido, não à intenção, mas a uma falta de instrução.
O problema é que adultos assim estão cegos quanto ao impacto de seu jeito de
relacionar-se, porque não enxergam nem aprenderam a estultícia do que estão
fazendo. Assim, sem querer, é causado ferimento. Embora às vezes seja verdade
que a pessoa ofendida possa aprender a se tornar menos sensível, igualmente é
verdade que dizer “Eu z sem querer” ou “Isso não signi ca nada”, pode ser uma
desculpa esfarrapada. A ajuda vem quando esses adultos deixam a ferida não
intencionada mudar de uma desculpa para uma bandeira vermelha. Causar
constantemente feridas não intencionadas é convite ao adulto para se afastar para
o lado da estrada e olhar novamente o jeito que está dirigindo. Talvez seja
necessária uma mudança pela graça.
Um pecado é diferente de um limite ou um acidente exatamente nisto: se a
criança ergue o copo e, de cara ousada ta seus pais, os pais dizem não
(presumindo-se que a criança tenha aprendido o que essa palavra signi ca), e a
criança deixa cair o copo sem desviar o olhar, estamos agora no âmbito do
pecado. Contudo, mesmo aqui Paulo nos ensina que o erro feito não justi ca que
emprestemos as obras da carne para disciplinar o que cometeu o erro.
A propósito, um líder individual pode não ter a graça de entrar em
determinada situação de um pecador (como uma pessoa molestada por um
abusador, uma mulher assediada por um molestador), mas em um todo, toda a
comunidade de Jesus deverá ter a capacidade de fazê-lo. Surge a pergunta: Existe
alguma espécie de pecado que não nos encontraríamos dispostos a enfrentar ou
seríamos incapazes de tratar da forma como Jesus faria? Nossa resposta nos
mostra onde precisamos da graça individual e de uma comunidade em Jesus que
possa tratar mais coisas de modo coletivo do que pessoalmente.

Conclusão
Muitas vezes penso em Judas e Pedro. Ambos pecaram terrivelmente. Ambos
choraram amargamente.
O pesar conforme o mundo e a tristeza piedosa são exibidos e apresentados em
contraste.
Um lastimou seu erro, mas não voltou atrás. Ele não era deprimido. Nenhum
teve um surto doentio devido a alguma disfunção química. Era diferente. Ele
enforcou-se como a própria solução para o seu pecado. Remorso, e não salvação,
foram as duas mãos que amarraram a corda.
O outro homem encontrou mais do que choro — salpicado na oração e
intercessão de um Salvador. Todo dia, pelo restante de sua vida, os galos ainda
cantavam. Não foram embora de Jerusalém. Todo dia as aves da lembrança
continuavam a gritar e Pedro as ouvia. Mas a cruz permaneceu. O túmulo se
esvaziou. O pesar murchou. O caráter cresceu. Desvaneceu a multidão. Deus
segurou o homem em suas mãos.
Ver Rm 16.16; 1Co 16.20; 2Co 13.12; 1Ts 5.26.
14 | Conhecimento Local
Como é que chegamos a essa oresta quebrada? Será possível construirmos uma casa aqui, fazer
amigos desses tocos destroçados?
–E M

Deus assim planejou. Abrir o seu livro exige necessariamente um ato de amor
por vizinhos e lugares sem renome, desconhecidos. Para acessá-lo, temos de ler
páginas de histórias de pessoas cujos nomes não conseguimos pronunciar, vindos
de lugares dos quais nunca ouvimos falar. Para o conhecer, temos de tratar do
contexto e pano de fundo nas coisas especí cas da vida comum entre pessoas
que, à primeira vista, são irrelevantes para nós. Pense nisso por um momento,
sim? A nal de contas, você é uma pessoa desconhecida em um mundo
desconhecido, que parecerá irrelevante para a maioria das pessoas do mundo de
hoje, quanto mais para aqueles que lerão a respeito de sua vida daqui a um
século. Contudo, Deus ajunta todos os detalhes de nossos dias com amor e
interesse. A próxima vez que você abrir o seu livro, lembre-se disso: Deus quer
que você habite no conhecimento local, está bem?

Chamado
A maioria de nós, em nossos lugares ordinários, quando dizemos que Deus nos
chamou, queremos dizer que, com o passar do tempo nos tornamos mais atentos
a um desejo interno que diminui e aumenta, mas não se apaga. Colocamos então
esse desejo em oração diante de Deus a cada momento, dia a dia. Tomamos
passos nesse tempo para provar na comunidade, com as Escrituras, se temos ou
não os dons que combinam com esse desejo. Ao longo do caminho, aqueles que
nos conheciam melhor no local, bem como aqueles a quem tentamos servir, nos
disseram que foram fortalecidos em Jesus por causa de nosso uso desses dons.
Consequentemente, depois de um tempo (talvez anos), tomamos passos
desajeitados e assustadores de fé, sem saber para onde esses passos nos levariam.
Mas, a essa altura estávamos seguros por esse desejo que não se apagava e essas
a rmações da comunidade dentro do contexto da Palavra de Deus, que talvez
Deus estivesse realmente nos conduzindo a isso. As oportunidades
circunstanciais chegaram, então, nós entregamos nossa vida àqueles que nos
foram dados em obediência e gratidão a Deus.
O que acabo de descrever soa como um curso intensivo no escutar devagar,
comum, que se aprende do pobre sábio ou do servo sofredor contemplativo, não
é mesmo?
Minha pergunta é a seguinte: E se o jeito que Deus usa para chamar a maioria
de nós ao ministério for, em si mesmo, uma educação na espécie de habilidades
que o ministério requer?
Contudo, algo estranho nos acontece. Uma vez que nos tornamos pastores,
muitos de nós deixamos completamente de escutar desse jeito. Em vez disso,
reagimos, falamos muito, e constantemente nos apresentamos como indivíduos
peritos e experimentados, que já sabem o que é necessário e conseguem
rapidamente agir para resolver qualquer questão ou problema que se apresenta.
Isso é especialmente visível quando tentamos a rmar nossa visão e mudar a
cultura de uma congregação. Isso é um problema.

Exploradores e construtores de estradas


Os antigos exploradores do ártico cometeram esse mesmo erro crucial. Eles
animadamente previram o lugar e foram até lá fortalecidos com seus próprios
pressupostos culturais. O resultado? Morreram. Foram encontrados sob o gelo,
com seus volumes de livros e louça na, usando casacos impróprios para a região,
feitos para lidar com os invernos que eles sempre conheceram. Outros tiveram
situação melhor. Esses exploradores agiam como se o ártico tivesse uma linha de
história das condições, pessoas e lugares que os precederam. Andaram mais
devagar, estudaram o terreno, estudaram e aprenderam das pessoas que ali
viviam. Estes exploradores viveram.
Prestar atenção à “tecnologia nativa”, fazendo reconhecimento local do lugar,
forjou o destino diferente dessas duas expedições. Enquanto o primeiro grupo
levou cavalos que não sobreviveriam ao clima, o segundo grupo pensou em fazer
perguntas tais quais por que os nativos não utilizavam cavalos, mas dependiam
de cachorros para seu transporte.70
Uma analogia similar surge entre os que abrem trilhas e os que constroem
estradas. Onde nossa primeira história expõe os danos que exploradores
visionários podem fazer contra si mesmos, essa segunda história nos lembra dos
danos que exploradores visionários podem fazer contra os lugares aonde chegam.
Os que abriam trilhas na América antiga criaram meios de viagem procurando
manter intacto o lugar que os precedia. Em contraste, os construtores de estrada
usavam dinamite para estourar qualquer coisa que estivesse no caminho de sua
direção preferida. Existe uma observação convincente nesta história. Muitas
vezes, os que abriam trilhas habitavam no próprio lugar onde faziam esses
caminhos, enquanto os que construíam estradas frequentemente não tinham
nenhum conhecimento detalhado da região nem compromisso duradouro para
com ela.

Porque não pertenciam a nenhum lugar, era quase inevitável que se comportassem com violência
nos lugares a que vinham.71

O que as duas histórias destacam é uma tendência de a rmar nossa visão para
determinado lugar sem tê-lo conhecido ou amado antes. Nos dois casos ocorrem
danos desnecessários. Quando os pastores fazem isso com as congregações (ou
vice-versa), os danos são feitos em nome de Deus.

Cedo demais para saber


Em 1Reis 12, Roboão se torna rei e imediatamente deseja fazer prevalecer a sua
visão para as pessoas de sua terra. O povo expressa sua fadiga. Recontam a
Roboão as condições e histórias de como tem sido a vida para eles. Pedem por
um passo mais lento do que ele intenta.
Roboão procura conselho de dois grupos diferentes — um jovem e um velho.
Os mais velhos pediram que ele escutasse o povo. Se quiser conhecê-los e esperar
pelo amor deles a curto prazo, esse povo, sentindo-se ouvido e compreendido, o
seguirá de todo coração no decorrer do tempo. Em contraste, os jovens
aconselham que, sendo Roboão o rei, ele não precisaria escutar o povo. Pelo
contrário, Roboão teria de demonstrar seu poder e exigir submissão e trabalho.
A essa altura, podemos dizer, esses jovens ainda não tinham ouvido falar sobre
o pobre homem sábio. Eles não imaginavam que escutar com paciência, aprender
e atender pudesse servir como verdadeiro ato de poder do rei. Uma postura
humilde de ouvir poderia abrir o caminho para uma visão clara de sabedoria, que
pudesse ser conduzida por longo período de tempo.
Roboão desprezou o passo vagaroso do sábio. Escutou a estultícia. O reino foi
dividido contra ele e acabou dividido contra si mesmo (1Reis 12.1–16).
Não é raro ouvir pastores que reclamam nos primeiros capítulos de seu
ministério em um novo lugar: “As pessoas não me seguem”, dizemos. “Elas não
partilham de minha visão”. “Eu já expus o plano que Deus me deu, apresentei
diretivas claras, e estabeleci estruturas bem projetadas, mas só tenho divisão e
dor de um lado e apatia do outro. Quem sabe, já é tempo para eu ir embora”.
Dizemos isso tudo e só estamos ali a dezoito ou vinte e nove meses.
Pode ser hora de ir embora, mas estou aprendendo que, na maioria dos casos, é
cedo demais para saber. Particularmente, se tentamos importar nossa própria
visão sem atentar para a tecnologia nativa, ou se usamos dinamite como nosso
estilo de liderança para explodir buracos que poderiam construir nossas
“estradas” de visão, para que assim nós possamos passar.
Tome nota disso, se puder. Na maioria das vezes, uma congregação e seu
pastor não são perturbados um pelo outro em termos de seu propósito comum
de ver pessoas transformadas pelo evangelho. O problema, muitas vezes, tem
mais a ver com os pressupostos culturais que a congregação e nós, como pastores,
trazemos a este propósito comum. Consequentemente, depois de dois anos no
trabalho estamos feridos e frustrados. Eu só queria ver indivíduos transformados
para Jesus, nós pensamos. Por que então algumas pessoas estão chateadas porque eu
mudei a reunião de oração para as manhãs de sábado? E por que aquele presbítero
está tão incomodado comigo? Eu não consigo pensar em qualquer coisa que tenha dito
ou feito para ofendê-lo. E qual é o grande problema de eu não usar pontos na agenda
de reuniões de diáconos ou slides do PowerPoint quando estou pregando? E os crentes,
porque estão incomodados por, durante o sermão, eu estar ajudando os visitantes a
localizarem o texto do sermão na Bíblia? Oh, e onde as pessoas têm a ideia de que eu
não me preocupo com os nossos voluntários de berçário, e quem se importa que eu não
usei gravata no domingo passado?
Marque bem isso aqui. Quando pastoreia uma congregação, você não apenas
cultiva a formação espiritual das pessoas, como também a formação cultural de
um lugar.

Humilhando-nos
Dezoito meses depois de pregar descalço naquele auditório de segundas chances,
muitos da nossa congregação não estavam mais impressionados. Assim, certo
domingo de manhã (na mesma semana que eu dirigira uma conferência sobre
pregação em outro estado), pedi a todos que me escutavam em minha própria
congregação aquilo que jamais imaginei que eu lhes pediria: “Vocês me ensinam
a pregar? Preciso de sua ajuda”.
As pessoas estavam, por muitas razões, deixando a nossa congregação em
turmas. Uma das razões era a minha pregação. Eu tinha três escolhas. Desistir,
estourar usando a minha autoridade (como os conselheiros jovens de Roboão
zeram), ou me humilhar e escutar o que o conhecimento local tinha a dizer.
Às vezes eu queria desistir e ter um acesso de raiva. Mas con ar em Jesus
signi ca que você e eu temos de fazer o que não queremos, a m de que aqueles a
quem servimos vejam o que precisam ver em Jesus ( Jo 21.18).
Portanto, eu me humilhei, e estabelecemos várias casas abertas. As pessoas
vinham e me diziam o quanto eu poderia melhorar minha pregação. No meu
orgulho eu reclamava a Deus: “Com certeza eles se ofenderiam, e com razão, se
eu entrasse em seus escritórios, sem treino ou experiência naquilo que fazem, e
lhes dissesse como deveriam fazer melhor o seu trabalho”. Então eu gritava ainda
mais alto a Deus. “Não mereço isto. Algumas dessas pessoas querem até mesmo
me ferir. Não querem me amar. Querem que eu produza a experiência que eles
desejam, ou vão embora para outro lugar”.
Era a ameaça do consumidor de “ir para outro lugar”. Às vezes os pastores
desejariam fazer a mesma ameaça. Mas daí viriam os lobos, e de que adiantaria?
Finalmente, as brandas graças vinham como as chuvas suaves, lembrando-me
nas vigílias da noite de que eu não sou empresário, mas pastor de ovelhas, não
sou um servo contratado, mas um pastor com a tarefa de prover cuidado
espiritual a um povo amado por Deus. Minha vida não me pertence. Nem a sua.
Então, que textos há para nos ensinar sobre fazer caminhos que contribuam
para o que é nativo em vez de dinamitar o caminho da congregação com a nossa
visão?
Tito
Creta era uma igreja iniciante, precisando de ajuda real e difícil labor. Era
distante, sem prestígio e sem reputação, exceto de ser notoriamente corrupta.
Mas havia uma história se fazendo em Creta. Jesus tem algo a dizer ali. O que
Tito, esse grande homem com dons superiores deveria fazer por Jesus quando
chegasse ali? Paulo nos diz:
• Fique conhecendo pessoas comuns do local e comece a instruir aqueles que têm
dons de liderança (“para que... constituísse presbíteros”, Tt 1.5). Tito deverá
aprender o nome e a história das pessoas do local.
• Gaste tempo conhecendo cada cidade próxima e, desta forma, busque o bem delas
(“em cada cidade”, v. 5). Tito deverá aprender o nome, a condição e as
necessidades das cidades de sua região.
• Fique sabendo das narrativas locais que se opõem ao evangelho (“Porque existem
muitos insubordinados... É preciso fazê-los calar...”, vv. 10–11). Tito deverá
gastar tempo aprendendo os ensinos, os preconceitos e as personalidades que
desa am o evangelho.
• Gaste tempo para conhecer as famílias do local para cuidado pastoral (“porque
andam pervertendo casas inteiras, ensinando o que não devem”, v. 11). Tito
deverá equipar as famílias em seu andar com Jesus em meio a esses desa os
locais.
• Familiarize-se com a história e literatura do lugar (“Foi mesmo, dentre eles, um
seu profeta [poeta], que disse: Cretenses, sempre mentirosos...”, v. 12 ). Tito
precisa ler as notícias e os porta-vozes locais.
• Cultive uma cultura congregacional que seja de ética relacional (homens mais
idosos, homens mais jovens, mulheres mais velhas, mulheres mais jovens,
2.1–6). Tito deve cuidar da formação de um ambiente relacional, em que
vivam a vida juntos.
Nada disso acontece em um só dia.
Eis algumas coisas que nos fazem andar mais devagar, deixando-nos atentos
antes de acender um fusível ou levar seu órgão portátil à tundra.

Palavras e Memórias
Primeiro, lembre-se de que essa cultura e essas pessoas existiam antes de você
chegar. Eles já usaram palavras e deram a elas seus signi cados, algo que todos
nós fazemos.
Mencione a mim a palavra Mamaw, e minha memória desperta. Ouço a voz
dela dizendo: “As minhas terras”, ou: “ele é um peralta”, ou se referindo a mim
como “Charlie Brown”. Eu a vejo assistindo programas de viagens na televisão,
usando blusa amarela de manga curta, andando pelo quintal catando os pedaços
de pau ou sentada calmamente com os sentidos não falados que às vezes
dançavam e às vezes choravam em seus olhos no Natal. Sinto o cheiro de seu
perfume ou o efeito de suor na pele, das horas gastas cozinhando vagens com
bacon. Vejo a sujeira debaixo de suas unhas por cavoucar seu jardim e horta, nos
quais plantava e colhia as mesmas vagens. Sinto o cheiro do sabonete após um
banho de chuveiro, da madeira bolorenta das escadas que Papaw construiu.
Sinto o sabor de sua macarronada com tomates, os franguitos que ela me trazia
depois do trabalho quando eu era menino, e das lágrimas que beijei em seu rosto
antes dela morrer. Sinto seu abraço na varanda quando ia voltar para a faculdade.
Sinto seu cabelo escuro seco e entregue sobre sua fronte quando ela estava na
casa de repouso.
Mencionar a palavra Mamaw de modo leviano, até mesmo de jeito inofensivo,
é entrar em minha história e revirar as águas emotivas de meu ser. Meu ser
desperta com sentimentos.
Quando se diz qualquer palavra, tal como mamaw, lhos, morte, teologia, Bíblia,
evangelismo ou graça, você o faz num contexto de signi cados estabelecidos antes
de você chegar. Talvez tenha de esclarecer o que quer dizer por algum tempo, e
aprender deles o que eles estão querendo dizer. Fazer isso não é enfrentar
problemas indevidos, mas se envolver no trabalho pastoral normativo.

Conhecimento local dos pastores


Segundo, isso também signi ca que você não é o primeiro pastor na vida de
alguém neste lugar.
As experiências positivas que pessoas tiveram com pastores anteriores
aparecerão em seus comentários e lembranças. Eles vão lhe dizer as coisas
maravilhosas que o pastor anterior (ou os pastores anteriores) disseram ou
zeram e lembrá-lo (sem maldade e bastante inconscientemente) de como todos
esses outros pastores teriam tratado alguma coisa de maneira diferente de você.
Os que tiveram experiências sofridas com pastores estarão nervosos perto de
você, ainda que você não tenha feito ou dito nada que pudesse ofendê-los ou
prejudicá-los.
Se você for casado, e se tiver lhos, ouvirá que a esposa do pastor anterior fazia
assim ou assado. Os lhos do pastor de dois pastorados anteriores eram isso ou
aquilo.
Em tudo isso, somos propensos a pensar que chamado quer dizer que nós
falamos alguma coisa e a igreja obedece. A falta de con ança e comparações,
suspeitas ou hesitações regulares ofendem nosso orgulho. Mas demora um
tempo para desenvolver con ança e delidade. Não podem ser exigidos quando
se aceita um chamado nem podem ser adulados por nossas credenciais.
Durante este estágio, muito do que as pessoas não gostam a nosso respeito tem
pouco a ver conosco e mais a ver com como eles estão tentando se ajustar à
ausência do outro pastor. Ansiamos pelo dia (em nossos melhores momentos)
quando seremos criticados porque alguém nos conhece. Por amor, eles nos
trazem suas perguntas ou preocupações em nossos próprios termos, sem atribuir
maus motivos a nós nem lamentar nossa óbvia (para eles) falta de amor por Jesus
em comparação ou contraste a esta ou aquela outra pessoa.
Meu ponto é que estou descrevendo algo típico para a mudança cultural, algo
que não é singular a você. Aprender a car atento a m de navegar nesse terreno
faz parte normal do trabalho pastoral.

Lembranças locais de tempo


Vale a pena perguntar: “Quantos pastores estiveram aqui antes de mim e por
quanto tempo eles permaneceram?”
Se os pastores anteriores cavam uma média de três anos, muitos de sua
congregação têm uma espécie de relógio na cabeça (sem nem mesmo perceber).
Conterão os níveis de con ança porque assumem que você também vai deixá-los
logo. No aproximar do terceiro ano, poderão até car nervosos com você sem
saber o motivo.
Não era surpresa, portanto, que um membro chave de nossa congregação me
encontrasse para um café no meio de meu terceiro ano e me perguntasse
claramente (com humilde bondade): “Então, penso que você está aqui a uns três
anos agora. Não quero ser indiscreto, mas muitos de nós estamos gratos, e temos
nos perguntado se você está com intenção de ir a outro lugar qualquer ou se está
pensando em assumir a causa e car conosco por um tempo.”
Na mesma época, por acidente, os presbíteros e eu nos aproximamos mais. Eu
calculei que eles estivessem querendo secretamente que eu fosse embora.
Acontece que eles achavam que eu provavelmente iria lhes dizer que estava
saindo (já que eu estava ali por mais de três anos). Ambos descobrimos que
nenhum dos lados queria deixar o outro. Rimos e choramos. Desde aquela
época, também con amos mais.
Enquanto escrevo isso, quase quatro anos se passaram desde que ocorreram
aquelas conversas. Uma vez que as pessoas sabiam que eu estava com elas por
um tempo (e eu o soube em reverso), muita coisa mudou. Cresceu a con ança.
Também cresceu nossa próxima temporada de vida e ministério juntos.

Cultura da liderança local


Terceiro, alguém liderou antes de você chegar. Essas pessoas não têm
necessariamente o título de líder, mas você sabe quem são, porque quando é
necessário que se tome uma decisão numa reunião, são delas as vozes que as
pessoas esperam ouvir. A congregação espera por essas vozes de liderança por
causa de uma longa história de sabedoria encontrada ali. Você não conhecerá
esses líderes a não ser que tenha tirado o tempo para conhecer as pessoas. É mais
provável que tais líderes silenciosos provem ser de ajuda enquanto você procura
conhecer e aprender dos outros, e busca o bem da congregação. Sem esse
cuidado atencioso, alguns de nós jamais reconhecemos que empurramos para
longe essa espécie de líder, para fora do caminho, quando logo que chegamos
empurramos a nossa visão.
Outras vezes, porém, as congregações aguardam essas vozes de liderança
porque elas estão com medo e cansadas. Sabem que discordar é trazer con ito.
Assim, muito tempo atrás, eles aprenderam a car calados e aguentar. Uma
cultura se desenvolveu, onde as pessoas pisam em ovos com esse líder, que, cego,
talvez pense que isso acontece por ele ser sábio e forte. Essas pessoas sabem o
que estão fazendo, e cam fazendo isso porque dá certo. Conseguem o que
querem.
Com o tempo, você poderá ensiná-los e redirecioná-los, e descobrirá que
outras pessoas que foram maltratadas começam a se sentir protegidas pela
primeira vez em anos. Algumas começarão a ajudar. Outros, porém, podem
sentir medo de que você não vá permanecer. Se você os confrontar, e eles se
juntarem a você, mas depois você for embora cedo, eles cam sem saída. Mas, à
medida que as pessoas veem que você tem um intento el, aprenderão com você e
o seguirão. Além disso, bem à parte desse líder assustador, você continua a
investir na congregação como um todo. As pessoas começam a agradecer por sua
liderança e aquilo que estão aprendendo com você. Enquanto isso acontece, aos
poucos esse líder assustador está recebendo a oferta de uma oportunidade no
evangelho. Talvez pela primeira vez em muitos anos, ele esteja sendo convidado a
mudar e crescer. Com o tempo, ele terá de decidir se quer se entregar ao convite
ou se quer endurecer e lutar. Tenho visto ambas as reações. A primeira é
incrivelmente bela. O segundo caminho não é bonito.
Em tudo isso, não subestime duas verdades óbvias. (1) Frequentemente, o líder
primário que o levou para a igreja como seu maior defensor no começo lutará
contra você no nal. Um líder com essa espécie de in uência não entrega
facilmente sua liderança quando você chegar. (2) As diferenças de personalidade
entre você e o pastor anterior ou líderes antigos causa mais destruição do que
geralmente sabemos. Se o pastor anterior era um poeta introvertido, que usou
metáforas por seis anos, e você aparece com pontos salientes e extrovertidos,
prosa sucinta e seca e listas para tudo, todo mundo (pelo menos dessa cultura
orientada pelo consumismo) terá de se ajustar.

Cultura teológica local


Quarto, lembre-se de que antes de você chegar, as pessoas já tinham um modo
de pensar, segundo as culturas teológicas pelas quais observavam o mundo. Uma
forma de pensar nisso é por meio de uma rubrica chamada de Valsa do
Evangelho.72 Adaptado para os propósitos de minha igreja local, ela fala de três
movimentos na vida do evangelho:
• confessar nossa confusão (pecado e sendo vítimas do pecado de outros),
• receber o amor de Cristo (voltar para Jesus como lhos perdoados e mui
amados),
• andar nos seus caminhos (conformar nossa vida a Jesus e segui-lo em
obediência).
Esses três movimentos frequentemente são quebrados de alguma forma. As
congregações terão variadas ênfases de dois passos antes da sua chegada:
• Alguns tentam confessar e andar sem ter recebido. Essa gente se esforça
muito. Eles fazem cara feia para graça, alegria e descanso. Quando se fala de
graça, se preocupam com você.
• Alguns estão tentando receber e andar sem confessar. Essas pessoas
continuam fortes. Franzem o cenho aos que aparentam carência de perdão ou
imperfeição. Assim, quando se fala sobre humildade, compartilhar os fardos,
sentir emoções sem tentar manter as aparências, eles se preocupam por você.
• Alguns tentam confessar e receber sem andar. Essas pessoas só querem relaxar. Fazem
careta quando se fala em obediência. Quando se fala sobre a mudança de
direção que a graça de Jesus faz sobre nossos atos e modo de viver, eles passam
a se preocupar com você.
Identi que os tipos de preocupações que as pessoas expressam, e você receberá
dicas quanto à área de ensino e cuidado pastoral que necessitam, bem como por
que as diferenças culturais com você estão causando con itos. Comece a escutar.
Se as pessoas estão preocupadas com a graça ou quebrantamento não velado ou
obediência, pergunte a razão. De onde veio isso em sua história local? O que eles
têm medo que possa acontecer? Como isso foi mal-usado na vida delas? Que
espécie de ensino tiveram sobre essas questões?
Outra rubrica que ajuda a escutar são as três tentações de ser tudo sobre as
quais já falamos. Preste atenção a esta pergunta: O jeito de ser e fazer nesta
congregação louva mais a você ou aos seus líderes quando parece que você é sabe-
tudo (se relaciona com eles como um especialista que tem todas as respostas), ou
conserta-tudo (tem poder e capacidade para apresentar soluções) ou é do tipo
em-todo-lugar-para-todos (sempre acessível)? Sobre quais desses aspectos você
ou outros líderes recebem mais críticas: habilidades, soluções ou acessibilidade?
Escutar nesse modo de valsa do evangelho e de tentações toma bastante tempo
e atenção. Duas coisas emergem disso. (1) Você começa a ter sabedoria pastoral
com respeito ao que e quando ensinar em seus sermões e estudos bíblicos, de
modo a ajudar a igreja a crescer com compaixão e sabedoria, enquanto as
Escrituras os apontam para Jesus. (2) Você pode começar a a rmar aquilo que os
assusta ou preocupa quanto a determinado assunto, e então conduzi-los ao que
as Escrituras a rmam sobre isso, a m de livrá-los de seus temores e
preocupações.
Acrescente a isso mais uma pergunta: Que cultura teológica de evangelismo e
alcance tem sido cultivada nessa congregação? Que barreiras ao evangelho essa
congregação coloca sem querer, que tornam difícil ouvir e crescer em Jesus aos
não cristãos?
No nosso contexto, comecei a perceber que muitas pessoas chegam à nossa
congregação com verdadeiras suspeitas, sofrimentos e cinismo quanto às igrejas
em geral, mas estão compelidas pela pessoa de Jesus. Eu comecei a adaptar o meu
ensino nessa direção. Em vez de dar uma aula ou fazer uma série de sermões
sobre teologia sistemática, enfocamos o que Jesus crê sobre a Bíblia, sobre Deus,
sobre ele mesmo, sobre o mundo, sobre o pecado, sobre a igreja e sobre a vida
futura. Ainda estamos com esse enfoque. Acessamos as outras doutrinas
explicitamente pela centralidade de como Jesus lhes fala. Essa abordagem acaba
sendo de ajuda também para os crentes, não só para eles mesmos, também para
aprender a compartilhar essas doutrinas de maneira que seus vizinhos possam
entender.
Uma mudança como essa, nascida devagar, do conhecimento local, e então
ensinada antes de ser imposta, pode fazer com que os “sabe-tudo”, por exemplo,
quem inquietos. Querem nos ouvir usando linguagem teológica mais histórica
para nossa herança (ainda que eles mesmos não tenham aprendido tal linguagem
até muitos anos depois de andar com Jesus). Eles se esquecem disso e esperam
que as pessoas comecem sua caminhada com Cristo no ponto em que eles já
chegaram. Acima de tudo, eles temem uma mudança cultural em que tenham de
aprender teologia por uma lente explícita de Jesus. O desconhecido os torna
hesitantes e suspeitosos de que nós estejamos cando mais liberais. Os que
tentam receber e andar sem confessar sua confusão, cam nervosos com a ideia
de que pessoas abertamente quebradas poderão começar a frequentar mais a
igreja.
Ouvir o chamado de Deus
Tendo isso tudo, vamos nos lembrar de duas importantes compreensões sobre
entrar na cultura de uma congregação.
Primeiro, todos sabemos que, idealmente, o pastor é agente de transformação
nas mãos de Deus para o bem de uma congregação. Agora, como um pastor mais
experimentado, tenho tentado trabalhar muito e elmente nesse aspecto de
nossa vocação. Mas estou aprendendo algo igualmente, se não mais importante e
raramente valorizado entre nós, pastores. Estou aprendendo que uma
congregação é um agente de transformação nas mãos de Deus para o bem do
pastor também. Deixar de reconhecer o papel da congregação na formação
espiritual do pastor e na transformação evangélica de uma comunidade altera, de
modo negativo, a maneira de enxergarmos o que o pastor deve ser e fazer. Deus
usa uma congregação e seus vizinhos para mostrar as coisas a seu respeito que de
outra feita você não enxergaria. Noutras palavras, pastor, a vida congregacional
não trata primariamente de você. Deus precede a ambos, tanto o pastor quanto a
igreja.
Segundo, às vezes Deus nos chama para uma congregação quando ainda não
temos aquilo de que ela precisa. Às vezes não podemos ajudar as pessoas até
depois que tenhamos estado com elas durante algum tempo, e estar com elas é o
meio que Deus usa para ensinar aquilo que ele quer que lhes ofereçamos. Por
alguma razão, o modo como lidamos com nossa dolorosa incapacidade junto a
Jesus dia a dia se torna formativo para aqueles que cam conosco. Como eles
permanecem com nosso ser incapaz torna-se formativo também para nós. Aos
poucos, emerge o que ambos temos a oferecer, porque Deus nos ajuntou e
porque precisamos uns dos outros.
Em tudo isso, o que acontece se as coisas que temos de ensinar uns aos outros
não podem se formular a não ser que primeiro confessemos aquilo que
precisamos aprender uns dos outros? Uma congregação precisa daquilo que um
pastor leva a ela — provisões centrais e essenciais como oração, direção
espiritual, cuidado pastoral, liderança e o ministério da Palavra. Mas, às vezes, o
pastor não sabe como Deus quer que ele aplique e viva essas provisões centrais,
até que tenha levado uns tropeções na presença da sua congregação por algum
tempo, fazendo com que se torne atento ao que Deus tem feito ali muito antes
dele ter chegado.

Entrevista
Sentávamos ao redor de uma mesa na sala. Nossos pratos do jantar já haviam
sido retirados e estávamos apreciando a sobremesa. Eu estava sendo
entrevistado. Eu já estivera aí tempo su ciente para conhecer as duas grandes
perguntas que os comitês norte-americanos de procura de pastor querem saber.
Já havia respondido à primeira pergunta, e não estava certo de que tivesse feito
isso de maneira satisfatória. Essa era, claro: “Qual é a sua visão para essa igreja?”
Anos antes, em meu primeiro pastorado, eu havia respondido a essa pergunta
com uma declaração de cinco pontos, que incluía um diagrama preparado que
entreguei a todos. “Era impressionante”, disseram eles naquela época, e
aparentemente, eu também achei isso. Mas após todos esses anos, tendo
cometido tantos erros, eu não con ava mais como poderia saber, após passar um
total de apenas quatro dias em três meses com pessoas que nunca tinha
conhecido antes, o que eles precisavam da parte de Deus. Antigamente eu não
pensava assim. Mas isso foi antes de pensar sobre pastores e pobres homens
sábios, silêncios e não apenas sentenças, e a obra contemplativa do servo
sofredor.
Após essa caminhada, a minha visão para a igreja foi: “Não sei. Tenho um
punhado de ideias sobre o que signi ca amar a Deus e ao próximo e como isso
impacta a visão de qualquer congregação que queira seguir a Jesus. Acho que
Atos 2 nos oferece direção para os tipos de ministério que qualquer congregação
deve buscar. Estou familiarizado com alguns truísmos sobre Saint Louis, tendo
vivido aqui por algum tempo, que podem provar ser de ajuda. Mas ainda não
posso responder completamente quanto a como essas diretrizes bíblicas devem
ser formuladas nessa determinada congregação e comunidade. Precisaremos de
muito mais tempo juntos.”
Pelos olhares que se seguiram e as perguntas que recebi dessa boa gente, era
óbvio que minha resposta soou estranha. Assim, quando chegou a segunda
pergunta iminente, eu senti que não tinha nada a perder: “Por que nós
deveríamos convidá-lo para ser nosso pastor?”
“Não tenho certeza. Nem sei se deveriam fazê-lo”, respondi.
Cada membro olhou para o outro e voltou o olhar para mim. Com um sorriso
caloroso, um membro respondeu: “Não acho que é assim que se deve responder
a essa pergunta”. Todos nós demos risadas.
“Eu sei”, disse eu. “Sei como eu deveria responder e posso lhes dizer, se
quiserem. Posso lhes dar meu currículo, minha altura, meus anos de experiência
e livros, e minha visão quanto ao que poderei fazer por essa igreja diferentemente
de qualquer outro. Então posso dizer que Deus colocou isso em meu coração e
dizer que, para a sua glória, eu creio que poderemos nos mobilizar e realizar
grandes coisas para um futuro notável”.
“E tem problema com isso?”, um dos membros perguntou ao dar generosa
risada, se inclinando à frente.
“Sim”, acenei. “Se pudermos ser honestos um com o outro, todos sabemos que
só passamos juntos algumas horas. Têm sido ótimas, mas ainda não nos
conhecemos bem. Vocês querem um pastor, e eu quero um trabalho. Estamos
todos apresentando nossa melhor cara. Mas daqui a um ano, as grandes coisas
sobre as quais conversamos hoje não serão importantes. Até lá, vocês conhecerão
as minhas fraquezas, feridas e pecados, e eu saberei dos seus. Daqui a um ano, o
que vai importar é se realmente amamos uns aos outros com nossos pontos
fortes e fracos, nossas dores e pecados. Se não for assim, nossas declarações de
visão e planos não vão mesmo fruti car, não obstante quão animados ou bem-
enunciados. Assim, não sei como fazer, mas espero que haja um meio de chegar a
essa pergunta mais difícil, porém verdadeira.”
Olho para trás e co humilhado. Não estava tentando ser modesto ou difícil.
Mas sei que não foi fácil para eles. Havia jeito melhor de dizer essas coisas e
agora vejo que eu estava mais cínico e ferido do que queria estar. Contudo, estava
sendo tão sincero quanto eu sabia ser meu coração. Não queria que ngíssemos
juntos, quer eu me tornasse seu pastor quer não. Quaisquer que fossem nossos
grandes planos, havia ainda uma cultura de partilhar a vida juntos com a qual
teríamos de contender. Eu não queria feri-los nem ser ferido por eles, porque não
havíamos levado em conta isso. De algum modo, em minha imperfeição, essa
gente querida graciosamente enxergou tudo e soube disso. Devemos ter sido
criados para estar juntos. Tem sido assim desde então. Existe uma graça sobre
graça.
Annie Dillard, Teaching a Stone to Talk: Expeditions and Encounters [Ensinando uma pedra a falar], (Nova
York: HarperPerennial, 1992), 36–39.
Robert Flayhart, Gospel-Centered Mentoring, D.Min Dissertation, Covenant Teological Seminary, 2001
Robert Flayhart, Gospel-Centered Mentoring, D.Min Dissertation, Covenant eological Seminary, 2001.
15 | Liderança
Mas você tem de entender, existem muitas formas de se estar em um lugar.
–T Á

Você e eu temos aprendido muitas formas de liderança e nem todas elas vêm
de Jesus. E se liderar for principalmente uma questão de tentar incorporar aquilo
que você convida os outros a seguir?

Liderando uma reunião do presbitério


Como aprendemos a liderar as reuniões de maneira a nos ajudar a abrir mão e
resistir às tentações que enfrentamos? Posso descrever o que cinco anos de escuta
tem nos conduzido a fazer. Mas não é uma fórmula. O conhecimento local o
levará a detalhes e estratégias diferentes. Talvez aquilo que estamos aprendendo
possa lhe dar um lugar para começar.
Uma vez reunidos, nós conversamos, às vezes rimos e outras passamos por
aqueles momentos de pausa com silêncio embaraçoso, ouvimos um ao outro e
falamos algumas coisas sobre a semana de cada um e então eu os convido a orar.
Essa é nossa reunião mensal de presbíteros, nossa reunião do conselho. Estamos
aprendendo a dar forma, à luz do que temos examinado neste livro. Então eu
digo algo como: “Ao iniciarmos, vamos nos lembrar de que uma reunião da igreja
e uma reunião de negócios são como maçãs e laranjas. Ambas têm seus papéis
importantes, mas representam duas coisas diferentes”.
Começo, então, por ler a primeira parte de nossa agenda, a qual contém uma
declaração. Algo que fazemos todo mês ao começar cada reunião. Muitas vezes,
sinto-me nervoso por parecer redundante. Mas esses líderes me lembram de que
precisamos dessa redundância. A declaração da agenda os atinge por ser tão
necessária quanto o ar que respiram em seus trabalhos. Sendo assim, eu
continuo lendo:

O que fazemos: Pastoreamos o povo da Igreja Riverside com nossas orações, presença, ensino e
planejamento.
A próxima declaração diz:

Nossa tomada de decisões: Pronto-Socorro (imediato e alívio), Sala de Diretoria (e ciência,


quantidade e dinheiro) e Pastoreio.

Lembramo-nos de que as decisões de “pronto-socorro” dependem de rapidez e


alívio. As decisões de “sala de diretoria” destacam e ciência, quantidade e
dinheiro. Às vezes os presbíteros precisam um do outro, mas nenhuma dessas é
nossa norma. A maior parte do tempo, o crescimento a que Jesus nos conduz
não vem de imediatismos, não necessariamente nos alivia, e não é muito
e ciente.
Então lemos 1Pedro 5.1–5, onde está escrito: “pastoreai o rebanho de Deus
que há entre vós...”
Depois de ler, eu pergunto: “O que este versículo destaca para você hoje?”
Depois de uma boa e longa pausa, alguém diz: “não por sórdida ganância”.
Pelos próximos poucos minutos compartilhamos uns com os outros a tentação
de usar nosso trabalho como presbíteros de modo a lucrar pecaminosamente das
pessoas a quem servimos. Como quando segurar um copo para que nosso
membro da igreja com paralisia cerebral tome com um canudo se torna uma
tenebrosa tentação de ser visto pelos outros pelo modo como cuidamos das
pessoas. Voltamos essa conversa para a oração. Então eu simplesmente leio até a
próxima secção de pontos de destaque. Lembramos:
• Uma reunião da igreja não é reunião de negócios. Nossa linha mestra é
totalmente diferente.
• Como norma, nosso alvo não é fazer grandes coisas de modo notório e com a
maior rapidez possível.
• Nenhum relacionamento está na linha de discussão hoje. Damos a cada um o
benefício da dúvida.
• Na maioria das vezes, a pressa não nos ajudará.
• Edi car os relacionamentos e compartilhar nossa vida faz parte de nossa
agenda e não é perda de tempo.
• Frequentemente, diferimos ou discordamos por questão de temperamento e
perspectiva, e não por um de nós estar pecando enquanto o outro está certo.
• Somos rápidos em dar e receber perdão quando pecamos um contra o outro.
• Procuramos realizar nossas reuniões do modo que presbíteros façam seu
ministério.
• Isto que fazemos é sobre Jesus; não é a nosso respeito.
Agora já se passaram trinta minutos da nossa reunião. Compartilhamos
histórias, repetimos nosso propósito, e brevemente vasculhamos nossos corações
com a Palavra de Deus.

Praticando à velocidade do jogo


Praticar segundo a velocidade do jogo é correr, pegar, ou chutar a bola durante o
treino no mesmo ritmo ou compasso que o jogo vai requerer. Mas o que acontece
se a velocidade de certo presbítero nos força a ir mais devagar? A nal de contas,
um pastor é alguém que retorna, que humanamente está limitado, mas ao
mesmo tempo, como um pobre sábio, quer escutar a história de outra pessoa
com paciência, discernimento, com disposição para ouvir e com oração. Por que
não cultivar um modo de fazer as reuniões praticando a velocidade que o
trabalho pastoral exige?
Se toda vez que nos encontramos, dermos relatórios e falarmos sobre números
e cifras à guisa de e ciência e cuidado relacional, acabamos praticando um certo
tipo de reunião mês após mês, ano após ano. Três anos fazendo as reuniões desse
jeito, acabamos criando uma cultura de liderança que depende da quantidade de
linguagem, ritmo impaciente e habilidades relacionais empobrecidas. Essa
cultura, na maioria das vezes, difere dramaticamente da verdadeira linguagem,
compasso e habilidade que um membro da congregação precisará de nós como
pastores.
Sendo assim, em seguida na nossa agenda, com frequência lemos algo
relacionado ao ministério em tempo real, para então conversarmos a esse
respeito. Esse tempo de recursos faz duas coisas. Permite que nos envolvamos
em mentoria contínua com respeito à nossa tarefa. Também, requer que
caminhemos mais devagar, escutemos outra pessoa ler, e conversemos juntos
sobre coisas importantes, de maneira hospitaleira.
Quando começamos a fazer isso, a maioria de nós cou inquieta. Tínhamos a
forte impressão de que estávamos desperdiçando nosso tempo. Talvez, em
comparação com outros tipos de reunião, estivéssemos mesmo. Mas essa espécie
de velocidade do jogo nos capacita a praticar o que os presbíteros devem se
tornar em primeiro lugar. Essa espécie de prática também tem seu valor sempre
que a tirania do imediato e do alívio lançarem sua tempestade de crise dentro de
nós, e temos de agir rapidamente. Temos uma chance melhor de responder ao
invés de reagir, devido à persistência de maratona que temos treinado.
Depois desses sessenta minutos de relembrar, compartilhar histórias, orar,
recordar, leitura de recursos e discussão, passamos a falar a respeito do cuidado
pastoral dos ministérios e pessoas, nanças e planejamento. Não é que não
conversemos sobre números ou programas. Em vez disso, esses têm de tomar seu
lugar mais para trás na la, cercados de um contexto relacional. Isso leva esforço
doloroso e irrequieto —muitos pedidos de desculpas, perdoar, novas tentativas, e
impaciência. Desintoxicação e deserto se inserem em nós por um tempo. Sermos
despidos de nossos anseios por consertar tudo rapidamente, saber tudo, e estar
em todo lugar para todos, ao mesmo tempo, altera os hábitos de nossa vida
interior. Mudança de cultura demora.

Treinando novos líderes


À luz disso, tivemos de ajustar o modo de treinar novos presbíteros e outros
líderes. Quando comecei como pastor, os meus maiores erros tinham a ver com a
liderança — claro, eram os meus erros, mas era também o meu modo de treinar
os líderes. Eu simplesmente não sabia como fazer. Eu oferecia treze ou dezesseis
sessões em sala de aula com ênfase na teologia, destacando o grandioso chamado
pelo qual lutamos, encorajando cada um a valorizar os seus dons e a encontrar
um modo de fazer diferença em nossa congregação. Sem perceber, entrei
diretamente no jogo que habita em todos nós, de saber, consertar e ser tudo para
todos, com fome de fama. Pagamos um alto preço por isso. Os presbíteros eram
treinados, mas não nas tarefas de seus trabalhos, não como aqueles que retornam
e são servos contemplativos, sabedores dos modos do deserto, capazes de
sustentar com uma palavra aquele que está cansado.
Todo contexto pastoral é diferente. Cada um de nós encontra o caminho e
métodos com o Senhor, onde estivermos. Mas talvez haja aqui algo que seja de
ajuda para você. Agora, é assim que nós treinamos:
1. Uma vez por mês durante três meses. Um candidato ao presbiterato se
encontra comigo uma vez por mês, durante três meses.
2. Sessões de ensino. Quando nos encontramos, conversamos por duas horas a
respeito de:
2.1. Primeira sessão: O que é um presbítero? (1Tm 3.1–7; Tt 1.5–9)
2.2. Segunda sessão: O que é amor e o fruto do Espírito? (1Co 13.1–8; Gl
5.16–26)
2.3. Terceira sessão: Qual é a cultura de nossa igreja especí ca? (História,
propósito, liderança cultural, forças e fraquezas — os pressupostos que
acabo de delinear na seção acima sobre liderar uma reunião)
3. Conversas como tarefas para casa. Entre essas sessões, o restante do mês deve
ser para tarefas em casa e exame ponderado.
• Depois de descobrir pela Bíblia o que é um presbítero, o candidato
pergunta à sua esposa (ou amigo mais próximo, se for solteiro) uma ou duas
quali cações do presbítero que, pela graça, já são fortes e quais as suas
fraquezas, necessidade de graça na vida.
• Após descobrir da Bíblia o que é o amor e qual o fruto do Espírito, o
candidato pergunta o mesmo para sua esposa.
• Depois de descobrir a cultura de nossa igreja, o candidato pergunta para a
esposa (ou amigo mais próximo, se for solteiro) quanto a seus pressupostos
quanto à igreja. Uma coisa é ser quali cado em geral para servir como
presbítero. É questão igualmente importante se alguém está disposto e é
capaz de trabalhar paci camente e respeitosamente com uma equipe e
trabalhar pacientemente com as forças e fraquezas da congregação,
reconhecendo que Deus os precedeu. Quanto a isso eu faço uma importante
pergunta: “O que você mudaria em nossa igreja se pudesse?” Se o candidato
responde: “Eu não mudaria nada; é perfeita!”, é possível que ainda não esteja
pronto para servir como presbítero. À primeira vista, parece que ele não
conhece bem a Riverside. Conheça-nos melhor, e as nossas diversas
necessidades de graça, crescimento e transformação prontamente
aparecerão. Por outro lado, se o candidato oferece uma lista de todas as
coisas que mudaria, ou mudanças que quer fazer contrárias à declaração de
propósito e cultura da igreja, possivelmente esse candidato não esteja
pronto. Trabalhar com nossa equipe por amor por àquilo que graciosamente
Deus nos abençoou requer tempo e paciência que poderão se mostrar
difíceis demais naquele momento.
• A razão de pedirmos aos candidatos que conversem com suas esposas sobre
essas coisas é dupla. (1) É importante um presbítero ser capaz de falar disso
intimamente e não defensivamente com a esposa. Se isso não for possível,
provavelmente ele não está pronto para servir como presbítero. (٢) É
importante que um presbítero fale a respeito de força pessoal com
humildade e sobre a necessidade pessoal que tem de Jesus. Um presbítero
que não consegue falar com transparência sobre a sua necessidade pessoal da
graça tornará difícil para as pessoas da congregação, que se conhecem como
pecadoras, virem a conversar com ele a esse respeito.
• Enquanto isso, os candidatos a presbítero leem os padrões teológicos de
nossa igreja (em nosso caso, a Con ssão de Fé de Westminster), mantendo um
caderno de notas e perguntas. Após os três meses, o candidato e eu (ou um
outro presbítero) nos encontramos para um almoço prolongado ou café uma
ou duas vezes para passar pelas questões levantadas e conteúdos destacados.
Isso leva mais tempo, mas a interação pessoal com teologia e café oferece um
ambiente diferente da interação em grupo, numa sala de aula. Isso pode
revelar muito — não apenas sobre a teologia em si, conforme o candidato a
entende — mas também sobre como ele realmente fala a esse respeito. Ser
capaz de falar com humildade e caridade sobre teologia num contexto
relacional, como o de tomar café juntos, faz parte do trabalho do presbítero.
4. Entrevista. No nosso quarto mês, convidamos o candidato que completou
suas sessões e tarefas de casa para uma entrevista. Posso estar presente ou
não. A ocasião de entrevista tipicamente é composta de dois presbíteros e
dois diáconos. Eles fazem perguntas dentro de um contexto positivo e
relacional sobre as sessões do candidato, suas conversas com a esposa (que
também está presente na entrevista). Em nenhum momento esse processo
será um interrogatório. Somos uma família unida em Jesus, que com oração
buscamos discernir juntos duas coisas: (1) se ele foi chamado para servir
como presbítero, e, se for (2) se essa é a hora certa, à luz de seu ritmo de vida
e suas outras responsabilidades.
5. Pedimos que espere. Se houver causa para hesitação surgida dentro desse
processo, pedimos ao candidato que espere. Nós o convidamos a se encontrar
comigo ou com outro presbítero no decorrer do próximo ano uma vez por
mês, para continuar a desenvolver juntos um relacionamento e ver o que o
Senhor nos mostrará. Geralmente, nesse ponto, o caráter do candidato se
mostra no modo como ele reage. Se car profundamente ofendido, soprar e
bufar e sair da igreja (presumindo, claro, que fomos gentis, cheios de amor e
zemos um feliz convite de continuar nos reunindo uma vez por mês), então
talvez esse candidato não estivesse pronto, e o processo o revelou. Outros
candidatos reagirão com orgulho ferido, mas também corações ensináveis e
humildes. Um ou dois anos mais tarde, essas pessoas provavelmente estarão
servindo como presbíteros.
6. Aprendizado. Se um candidato for convidado a seguir em frente depois dessa
entrevista, a próxima fase é um aprendizado de seis meses. Ele frequenta
todas as reuniões do conselho, recebe correspondência, observa calmamente,
e se encontra comigo ou com outro presbítero uma vez por mês no almoço
para processar aquilo que está observando e aprendendo sobre o presbiterato
em geral, e em nossa equipe em especial. Depois de seis meses, apresentamos
o candidato à congregação para ser reconhecido e con rmado. A essa altura,
o candidato foi treinado por quase um ano.

Tomar decisões
Como a nossa tentativa de valorizar coisas pequenas, geralmente negligenciadas,
que são importantes em longos períodos de tempo, formam o modo como
procuramos tomar decisões como presbíteros? De início, eu me encontro com
cada presbítero uma vez por mês para almoçarmos juntos, e tentamos aos
trancos e barrancos achar tempo para gastar juntos, de modo prático na vida da
igreja. Queremos nos conhecer bem quando não há em pauta nenhuma decisão a
tomar para que, quando chegarem as crises de tarde da noite, tenhamos
con ança relacional su ciente para enfrentar momentos onde qualquer um de
nós não esteja em sua melhor hora.
Então nos movemos, embora imperfeitamente, em direção à tomada de
decisões, com um arcabouço de três perguntas que encontramos nas palavras de
Paulo em 2Timóteo 2.23–26.

1) Essa é a coisa certa?


Timóteo tem de ensinar a Palavra e corrigir os opositores. Contudo, ao mesmo
tempo, ele “repele as questões insensatas e absurdas, pois sabes que só
engendram contendas” (2Tm 2.23). Como os líderes decidem se um con ito
surge devido ao que diz a Palavra de Deus ou por um mau uso dela, uma
tentativa de promover as próprias agendas, especulações ou compromissos
habituais? Uma resposta dessas não é facilmente discernida às pressas.
Imagine uma cena que trate do espaço para o pastor estacionar. Alguns
diáconos defendem que o pastor deve estacionar mais longe da igreja. Outros
diáconos discutem pedindo espaços mais perto da igreja. A discórdia adota tons
bíblicos.
Um lado defende que é mais bíblico estacionar mais longe, porque o pastor
dará exemplo e servirá ao próximo. O outro lado declara que é mais bíblico o
pastor estacionar mais perto, porque digno de honra é o que lidera. Embora a
Bíblia não trate de onde o pastor deve estacionar o seu carro, os dois lados
acreditam que estão lutando por uma verdade em sua igreja.
No nal, porém, o ministério do evangelho é emperrado, a liderança é dividida,
os relacionamentos são abalados, e as famílias vão embora porque os cristãos
discordavam quanto a um lugar no estacionamento em nome de car rme pela
verdade em sua geração.
Delegando os sonhos
Seguindo essas linhas, múltiplas decisões têm pouco a ver com mandados
bíblicos. Boletins do culto de adoração, as cores da tinta, pia batismal, carpetes,
horários de reuniões, estilos de ministério, corais e estacionamentos são o que
considero “decisões sobre carpetes”. Não importa se o tapete é desta ou daquela
cor, isso jamais deveria dividir uma congregação ou ser usado para ferir um
membro dela em nome de Jesus. Isso começa com o pastor e os presbíteros. Eu
tenho cometido erros demais nessas questões.
Considere o que você pensa sobre essa curta cena. Depois de nos reunirmos
numa escola alugada por doze anos, compramos um velho prédio de uma igreja
na cidade. Um jovem amigo no ministério perguntou se eu andaria com ele pelo
prédio para compartilhar meus sonhos para a igreja. Quando eu era jovem pastor
eu teria amado isso! Mas a primeira coisa que me achei dizendo agora ao amigo
era que eu delegara a maior parte dos sonhos.
“O que você quer dizer com isso?”, ele perguntou. Então, olhando o templo
vazio de tinta raspada, cheia de andaimes, ele disse: “Você não quer que as coisas
do templo pareçam de determinada forma ou assumam formato especí co? Qual
é a sua visão para tudo isso?”
Ri um pouco e repeti o que eu tentara dizer. “Deleguei a maior parte disso.
Tem pessoas talentosas, com habilidades em diversas áreas que estão liderando
equipes múltiplas de voluntários, os quais, por sua vez, estão sonhando com o
desenho de cada área da igreja”.
Na pausa, percebi que precisava explicar. “Isso não signi ca que eu não tenha
nada a dizer. Dei os parâmetros amplos junto com os presbíteros, mas cada
equipe faz com liberdade o que é quali cada a fazer, dentro desses parâmetros.
Quer dizer que carei sabendo como o santuário se parecerá em termos de cores,
decoração e design não muito antes que você”.
“Mas o que acontece se você não gostar de alguma coisa que alguém escolheu?”,
ele me perguntou.
“Bem, quase todo mundo na congregação poderá não gostar de alguma coisa
que alguém tenha escolhido. Nisso eu não sou diferente de outro qualquer. Mas
eu não creio mais que ser pastor signi que que Deus tenha favorecido a minha
cor predileta”. Isso eu disse com um pouco de riso.
“Por que você sente desse jeito?”, perguntou. “É totalmente diferente do jeito
que eu pensava que os pastores tratariam essa espécie de coisa”.
Fiz uma pausa. Eu enxergava a seriedade das perguntas. “Personalidade e
poder em demasia”, eu disse. “Se todos estiverem envolvidos no uso de seus dons,
uma congregação como um todo, e não a minha personalidade como indivíduo
dará sustentação ao lugar. Isto tem importância porque algum dia nesta vida eu
não estarei mais aqui, mas muitos deles ainda estarão. Além do mais, muitos
dessa gente querida me consideram tanto que se eu dissesse que queria alguma
coisa, eles fariam isso acontecer. Isso seria poder demais a respeito de coisas que,
a nal, não têm nada a ver com a Bíblia”.
“Não entendo como isso vai dar certo. Parece que esse uso da personalidade e
do poder faz parte da liderança”, disse ele.
“Entendi. E são mesmo. Mas se eu os utilizar dessa forma no momento,
provavelmente estaria perdendo meu papel principal de pastor, e é realmente isso
que quero ser, a razão pela qual fui chamado”.
Outra pausa.
“Estou dizendo que se eu tenho uma opinião declarada sobre o tipo de banco
ou cadeira, por exemplo, ou se acho que elas devem ser colocadas neste lugar em
vez de naquela posição, eu estarei de um lado. Se nosso talentoso time de
voluntários acha determinada coisa sobre o tipo e colocação da cadeira em
contraste ao outro time de voluntários, eu não serei mais um agente honesto
capaz de pastorear essas pessoas. Com a minha ausência de preocupação quanto
à cadeira, dentro de meu interesse maior pela visão geral e cuidado pastoral
individual de cada membro, eu posso ser seu pastor, e conseguiremos passar por
tudo e ir adiante juntos.”
Penso em retrospectiva naquela conversa, e minha memória se enche de
histórias daquele tempo do ministério. Delegar o sonho na verdade envolveu
múltiplas partes que se moviam, equipou os voluntários, exigiu comunicação
constante, signi cou algumas desavenças pelas quais trabalhar para chegar a um
acordo, esclareceu os processos, esclareceu os parâmetros gerais, fortaleceu a
con ança relacional, e, com oração, signi cou resistência a qualquer tentação de
tomar de volta o que eu disse que outros poderiam fazer. Além disso, não era
sempre fácil resistir às minhas próprias preferências de cores ou colocação de pia
batismal, cor do carpete ou detalhes de ar condicionado. Mas se uma equipe
concordar, e elas todas fazem esse tipo de coisa com pro ssionalismo, então eu
também me torno alguém que valoriza os dons dos outros e abro mão de minhas
preferências pessoais por amor de permanecermos unidos e focados no alvo
bíblico que está diante de nós.
O mandamento de amar uns aos outros e a crença de que “Deus me disse que
o logotipo da igreja deve ser assim e assado”, simplesmente não estão no mesmo
plano.

2) Qual é o jeito certo de fazer isso?


É possível também fazer a coisa certa do jeito errado. Quando Timóteo ensina
e corrige, ele deve ser “bondoso para com todos” (2Tm 2.24), “com mansidão” (v.
25), e sem “discórdias” (v. 24). Paulo diz que o servo do Senhor não deve corrigir
os outros entrando em discórdia ou com altivez. Noutras palavras, estar certo
não justi ca arrogância, intimidação, rudez ou dureza no trato. Ter a posição
certa na argumentação jamais justi ca trair o caráter de Jesus.
Imagine um cenário em que um presbítero escreve um artigo de quinze páginas
identi cando por que o divórcio é pecado. Ele inclui argumentos do grego e
exortações quanto à tendência liberal de nossa cultura. Os presbíteros enviam
este artigo à congregação em massa via e-mail, de nindo-a como a posição o cial
da igreja. O resultado não intencionado é de confusão geral, profundos
sofrimentos de pesar e estímulo à autojusti cação, porque, conquanto o escrito
declare a razão pela qual o divórcio é pecado, ele não trata de como o evangelho
se aplica àqueles que já são divorciados. O e-mail não levou em conta as
circunstâncias variadas e muitas vezes trágicas daqueles de sua congregação que são
divorciados. Não houve tratamento para aqueles que foram abandonados por
outro ou que zeram tudo que podiam, em desespero, para salvar o casamento,
ou que sofreram maus-tratos ou perigo físico.
Os sabe-tudo quase sempre identi cam as reações negativas quanto às suas
decisões como o preço a pagar por defender a verdade e sofrimento pelo Senhor.
Porém, os líderes podem não perceber que, às vezes, ferem erradamente as
pessoas, mesmo que pelas coisas certas. Uma vez que determinamos, com
oração, aquilo que é certo a fazer, ainda teremos de contemplar a maneira correta
de fazê-lo.
Às vezes, homens fracos usam esse apelo à brandura e bondade para justi car
sua passividade. Jesus, porém, estava longe de ser passivo. Ele seguia ativamente a
tomada de decisões. Ele interrompia o mal. Expunha esquemas manipulativos e
cultivava movimentos relacionais em meio à sua delidade para com a vontade
do Pai. Brandura não é igual à passividade, nem desculpa.
De modo inverso, outros, no nome de forte liderança, resistem a posturas de
gentileza e bondade. As normas culturais e os ambientes dos negócios muitas
vezes identi cam os frutos do Espírito como fraqueza. Contudo, Jesus falava
diretamente, sem usar de postura intimidante, severa ou feroz. Isso é força
verdadeira.
Alguns, porém, dirão que gentileza e bondade são ine cientes. Conter-se de
usar a coação forçada faz com que as coisas andem mais devagar. Mas, talvez
Deus já tenha levado em conta e valorize o passo mais vagaroso. Ainda assim, se
a maneira de Deus não parece dar certo, ou parece muito lenta, nos atrasando,
aos servos do Senhor é requerido uma liderança diferente daqueles que não o
seguem.

3) Seria essa a melhor hora?


Timóteo também tem de suportar pacientemente o mal (2Tm 2.24). “Prega a
palavra, insta, quer seja oportuno, quer não, corrige, repreende, exorta com toda a
longanimidade e doutrina”. (2Tm 4.2).
Considere o conselho de um presbitério que crê que seja certo descansar do
trabalho aos domingos. Será que os presbíteros terão a humildade de reconhecer
o longo debate doméstico a respeito desse assunto, entre autênticos seguidores
de Jesus, e de forte compromisso com ele?
Eles buscarão o jeito certo de apresentar esse ponto de vista à congregação com
gentileza pessoal e pública, bondade e ensino? Agora surge a questão sobre o
tempo certo. Várias famílias têm os lhos em escolinha de futebol aos domingos.
Como membros da igreja, eles têm participado dessas ligas nos últimos cinco
anos. Será que os presbíteros equiparão os pais com a mesma quantia de tempo e
acesso aos mesmos recursos que eles mesmos precisaram, a m de que eles
cheguem a essas convicções? Além do mais, será que os presbíteros ajudarão os
pais a se lembrar de que seus lhos mais velhos necessitam de tempo igual a esses
mais novos?
Alguém pode objetar que a coisa está errada e deve ser interrompida
imediatamente. Mas o fazem esquecendo-se do que eles mesmos precisaram
receber de Jesus para saber o que é certo. Também se esquecem que existem
muitas coisas erradas que devem ser interrompidas. Enquanto Deus trabalha
conosco quanto a um pecado, ele nos suporta em multidões de outros pecados
que temos. Ele o faz até a hora em que podemos suportar ouvi-lo quanto a essas
outras questões.
Uma pessoa sabe-tudo ou conserta-tudo faz uma decisão e espera obediência
imediata, enquanto é cego quanto ao tempo que ele ou ela precisou para
aprender, e cego quanto à paciência que é estendida a ele em suas muitas outras
desobediências e erros.

O círculo interno
No contexto de tomada de decisões, tenho descoberto o que C. S. Lewis
chamava de “Círculo interno” como sendo o desa o mais difícil à liderança. Isso
nos tenta a abrir mão de “amigos a quem realmente amamos e cuja amizade
poderia ter durado a vida inteira, a m de cortejar as amizades daqueles que
parecem ser mais importantes”.73
O que é uma roda interna ou círculo interior? “Do lado de fora, se você já se
desesperou por não conseguir penetrá-lo, você os chama de ‘aquela turma’ ou
‘eles’ ou ‘fulano de tal e sua panela’”.74 Diáconos, presbíteros, conselhos, mesas
administrativas, assembleias, rol de contribuintes, lista de votantes, comitês,
equipes ministeriais, autoridades, amizades, famílias — todos esses funcionam
como círculos internos. No pior cenário, os círculos internos locais expõem
“nosso anseio por fazer parte deles, nossa angústia quando somos excluídos, e a
espécie de prazer que sentimos quando conseguimos entrar”.75
O ídolo do círculo interior expõe a razão porque somos propensos a desculpar
um líder colega a quem amamos, mesmo quando ele ou ela estiver prejudicando
outras pessoas. Vemos a dignidade ou os dons desse líder com tanta clareza que,
quando experimentamos dor ou preocupação pelo lado mais obscuro de seu
caráter, sentimo-nos desorientados, encontramos meios de racionalizar ou
camos ansiosos quanto a perder nosso relacionamento ou nosso emprego ou
desconcertar a outros. A sabedoria de julgar com lentidão as fraquezas do
próximo passa à loucura de fazer um catálogo de desculpas esfarrapadas.
Lembro-me de um homem que foi candidato a presbítero numa das igrejas em
que eu servi. Surgiu uma divisão entre os outros líderes quanto a este homem ser
capacitado para o serviço. Aqueles que expressaram cautela e acharam que era
melhor esperar perderam no voto. Duas coisas dolorosas vieram à tona quase
imediatamente.
Primeiro, apenas algumas semanas depois de eleito, esse presbítero encurralou
um membro da igreja depois de uma reunião da congregação, tomando sobre si a
tarefa de corrigi-lo intensamente por uma resposta dada na reunião. O membro
da igreja, quase em lágrimas e confuso, gritou pelo corredor pedindo ajuda ao
pastor.
Segundo, veio à luz que, na realidade, nenhum membro da congregação tinha
apresentado o nome desse homem para a liderança. Somente os seus amigos que
já eram presbíteros o zeram. Ingenuamente, esses homens bem-intencionados,
por lealdade e amor a um amigo, haviam usurpado a prática sábia. Sabiam que
ninguém na congregação reconhecia quaisquer dons de pastoreio nessa pessoa.
Mas desculparam isso, porque a seus olhos o homem tinha quali cações e eles,
a nal, eram os líderes. Fecharam os olhos ao fato de que ele não tinha sido
provado em seu cuidado para com as pessoas comuns. Como resultado, o
presbítero foi defendido (mas não ajudado a crescer). Enquanto isso, a
congregação foi mal-usada. A m de minorar os danos feitos por líderes do
círculo íntimo, Paulo relembra a Timóteo:
Conjuro-te, perante Deus, e Cristo Jesus, e os anjos eleitos, que guardes estes conselhos, sem
prevenção, nada fazendo com parcialidade. A ninguém imponhas precipitadamente as mãos. Não
te tornes cúmplice de pecados de outrem... Os pecados de alguns homens são notórios e levam a
juízo... ao passo que os de outros só mais tarde se manifestam. (1Tm 5.21–24).

Por outro lado, um líder de ministério poderá enfrentar a intimidação de uma


congregação com seus diversos bolsões de círculos íntimos. Amigos bem-
intencionados poderão rapidamente empilhar críticas sobre o líder. Se uma
pessoa de um pequeno grupo intimamente unido começa a criticar o pastor, por
exemplo, essa crítica pressiona as lealdades do restante do grupo. Após
reconhecer um padrão dessa espécie de críticas ao pastor, será que eles arriscarão
o relacionamento com o amigo, sugerindo que o grupo não seja o fórum para
dilacerar o pastor, ou que o jeito de falar sobre o pastor provavelmente não está
de acordo com quem é Jesus na vida dele? O desejo de cada um de permanecer
sendo aceito pelo grupo íntimo faz com que cada um seja tentado ou a
permanecer consistentemente quieto ou a participar das críticas.
Para diminuir o mal que círculos internos podem causar dentro das
congregações, Paulo aconselha Timóteo: “Devem ser considerados merecedores
de dobrados honorários os presbíteros que presidem bem, com especialidade os
que se afadigam na palavra e no ensino... Não aceites denúncia contra presbítero,
senão exclusivamente sob o depoimento de duas ou três testemunhas” (1Tm
5.17, 19).
Ser parcial para preservar os crentes do círculo íntimo faz parte de uma cultura
organizacional que defende aquilo que deve ser abandonado e abandona aquilo
que deve ser defendido, deixando a ambos, os abandonados e os defendidos, sem
o evangelho.
O que signi ca con ar em Jesus, em vez de em nosso círculo interno, para nos
salvar? Tal con ança cria líderes de espécie diferente. A graça em tudo isso sopra
sobre nós e nos liberta.
C. S. Lewis, “ e Inner Ring” em e Weight of Glory [O Peso de Glória], (New York: Harper-Collins,
2001), 150.
Ibid., 145.
Ibid., 149.
16 | Realismo Romântico
Nada é mais doce neste mundo triste do que o som de alguém a quem você ama chamando-o pelo
nome.
K D

Criaturas no Éden,
almejando.

Este homem, esta mulher,


vistos por pastores, esses

que retornam,
como pobres homens sábios em lugares pequenos,
esquecidos por aqueles que eles ajudam a libertar,
mas por Ele conhecidos, a quem eles contemplam
nos silêncios, escutando, momento a momento
para sustentar com uma palavra,

uma viúva, um lavrador,


um pastor com um nome e cidade,

esses nossos heróis,


seguidores invisíveis
dos que são tímidos de fama.

Viúvas e lavradores
Sei que o chamado para ser um profeta e rei soa mais nobre do que ser viúva ou
lavrador. A nal, profeta e rei signi cam grandes posições, para momentos
heroicos em uma geração. Não desprezo isso. Ansiamos por uma geração na qual
Deus nos conceda tais líderes. Tomemos, por exemplo, a Elias no Monte
Carmelo, e desejamos que nós também possamos permanecer rmes contra os
falsos ensinos e falsos profetas de nossa época, com a mesma coragem. Não é de
se maravilhar! Considere que nos dias dos juízes, quando “cada um fazia o que
achava mais reto” ( Jz 21.25), Deus levantou homens e mulheres para feitos
poderosos e eventos de campeão. “Suscitou o S juízes, que os livraram da
mão dos que os pilharam” ( Jz 2.16). Ah! Levantar-se como Débora ou Gideão
ou Sansão, não com espadas, mas com verdadeiro poder espiritual! Olhamos
para nossos tempos. Vemos todos fazendo o que acham certo aos próprios olhos.
Nós também ansiamos justamente por tal reforma e avivamento. Os que são
propensos a resignar-se precisam que Jesus desperte esses desejos para a nossa
geração.
Mas, aqueles entre nós que foram chamados ao trabalho pastoral precisarão da
ajuda do lavrador e da viúva mais frequentemente. Esses heróis improváveis nos
ensinam algo vital sobre Deus e a nossa vocação.
Primeiro, existem heróis que nunca receberam os holofotes de sua geração.
Enquanto os juízes participaram publicamente em transformação cultural
substancial, um fazendeiro de nome Boaz calmamente andava pelos campos
enlameados, plantava seus grãos, tratava bem os seus empregados, e buscava o
bem comum de sua comunidade com trabalho diário, duro e cheio de oração.
Esse lavrador amava a mulher gentia e sua família. Tinham uma vida ordinária,
de verdadeiro amor, juntos. Eles amavam a Deus. Aqueles que conhecem a
história argumentarão que esse amor comum, nessa vida comum, provou ser
igual, se não maior, do que os grandes feitos dos juízes naquela geração.
Segundo, momentos heroicos são celestiais, mas não são o céu. Que alívio, que
celebração, que gratidão e felicidade surgem quando uma pessoa é livrada da
opressão, corrupção e maus-tratos; quando as almas são despertadas; quando
dignidade e integridade e decência não são somente divisas, mas as ações dessa
terra! Contudo, os efeitos dos momentos heroicos desvanecem. Isso era verdade
nos tempos dos juízes. O coração humano não foi mudado intrinsecamente, de
modo universal, pelos feitos poderosos. Em pouco tempo surgia outra geração
que precisava de outro juiz. Mesmo essas poderosas libertações não puderam
devolver a família de Noemi ou o marido de Rute. Vieram os avivamentos, mas
as lápides dos túmulos permaneceram em Moabe.
Terceiro, às vezes as visitas de Deus são vistas quando pão comum é colocado
sobre a mesa de uma família comum (Rt 1.6). Às vezes, o auxílio de Deus é
encontrado na provisão de um grão corriqueiro ou em um amigo comum.
Quarto, os momentos heroicos têm como alvo a recuperação daquilo que é
ordinário e comum. Débora e Gideão foram levantados por Deus para que todos
pudessem voltar para suas casas, com uma vida em paz. O grande triunfo de um
Super-homem na cção é libertar do mal os cidadãos de Metrópoles, para que
possam voltar para o trabalho, casar-se, viver e comer e encontrar signi cado
nisso. O grande triunfo da “Grande Geração”76 foi livrar o mundo da tirania para
que as pessoas pudessem voltar à bendita alegria da vida diária e do amor. O
verdadeiro ato de heroísmo em Jesus na cruz e no túmulo vazio é para que o seu
povo retorne para a graça de viver a vida com Deus, em um lugar, com amor por
nossos vizinhos, e com a liberdade de gozar a Deus no trabalho, lazer, descanso e
amor que ali ele nos dá.

Romantismo e resignação
Sem essas lembranças, alguns de nós nos desgastamos com o romantismo. Não
conseguimos encontrar Deus nas coisas comuns, no ordinário. Mexemo-nos,
inquietos, de um grande momento para o próximo. Com regularidade,
empurramos os outros para o mesmo redemoinho. Damos pouco espaço no
ministério para uma Noemi, que não tem o marido de volta, ou para um local
onde a grande visitação de Deus seja o fato de que as comuns mesas de jantar
tenham novamente o que comer. Temos di culdades em glori car a Deus
comendo, aprendendo a amar, indo dormir, levantando na manhã seguinte para
ir ao mesmo trabalho. A ideia de viver e ministrar em um ou dois lugares
desconhecidos e comuns por cinquenta anos, para então ir para casa estar com o
Senhor soa como a morte. De que vale, para Deus, uma vida comum nos campos
de trigo?
Outros se deterioram internamente pela resignação. Se há alguns de nós que
não encontram Deus nas coisas comuns, há muitos que desistiram de qualquer
coisa extraordinária dada por Deus ou realizada por nós. Dizemos com Noemi:
“Não me chameis Noemi; chamai-me Mara, porque grande amargura me tem
dado o Todo-Poderoso” (Rt 1.20). Nenhum amor encontrará de novo a Rute.
Nenhum pão virá à nossa mesa. Nenhum juiz nos salvará. Tudo é amargo e sem
razão de ser; não adianta tentar. Acho que meu amigo pastor que tirou sua
própria vida aterrissou aqui. O que adianta para Deus uma vida comum nos
campos de trigo?
O resultado é um tipo de pensamento de “tudo ou nada”. Ou tudo é
maravilhoso ou não existe nada de bom — de qualquer jeito, um campo de trigo
não é su cientemente grandioso (por exemplo, Adão e Eva no Éden). O
romantismo e a resignação têm esse lema em comum.
Em contraste aos dois, Jesus nos conclama ao realismo romântico. Ele comprou
isto por nós na cruz. Ansiamos por momentos heroicos, mas reconhecemos que
eles não são o céu e que mais provavelmente, outra pessoa entre uns poucos e
raros terá esse papel momentâneo. Somos realistas quanto ao fato de que os
momentos heroicos não são o modo normal em que Deus visita diariamente o
seu povo. No entanto, ainda cremos que Deus está fazendo algo maior do que
conseguimos enxergar atualmente. Em seu amor por nós, ele está recuperando
em Jesus aquilo que foi perdido. Somos realistamente românticos. Vemos pão
sobre a mesa e damos graças a Deus! Pão não é mais apenas pão. Pão é uma
dádiva, um dom — Deus se lembrou de nós. O amor comum, do jeito que deve
ser, junto com uma longa vida de corriqueira delidade a Deus, realiza muito
mais do que sabemos. Um fazendeiro, uma viúva e uma gentia, em um lugar
desconhecido por toda sua vida, poderão revelar, no m, a verdadeira grandeza
de Deus. O realista romântico fala desse modo:

Se você fosse marcar as pessoas mais importantes na geração dos juízes, quem seriam? Gideão?
Débora? Sansão? Que feitos poderosos! Que ajuda Deus trouxe por intermédio deles. Mas Jesus
comprou novos olhos para ver mais do que os juízes heroicos. Mateus, no primeiro Evangelho do
Novo Testamento, nos conta de outros dois que viveram no tempo desses juízes impressionantes.
Ele recorda para nós “o livro da genealogia de Jesus Cristo, lho de Davi, lho de Abraão” (1.1).
Nos versículos 5 e 6, Mateus diz o seguinte: “Boaz; de Rute, gerou a Obede; e Obede, a Jessé;
Jessé gerou ao rei Davi;”

Enquanto todo mundo fazia o que era certo aos próprios olhos e os
reformadores procuravam virar com poder a maré espiritual, a promessa de
Genesis 3.15 estava sendo buscada por Deus em uma simples fazenda, em meio
a sonhos esmiuçados e recuperados de amor e vida comuns.
Os romantizados e os resignados — nenhum deles teria visto a Rute como
senhora real na linha do Rei. Enquanto os romantizados cavam na la para
conseguir o autógrafo de alguém como Gideão, e enquanto os resignados caram
em casa reclamando do exagero, ninguém teria notado o tremendo mover de
Deus em seu meio.
Não importa quão grandes ou talentosos somos, Deus nos convida para ele por
amor local, a pessoas locais, em uma localidade de nida, com a longa sabedoria
aprendida pelo conhecimento local em Jesus, até que ele venha. Isto quer dizer
que, se você estiver se desgastando, tentando ser e fazer mais do que isso, Jesus o
chama para parar com todo esse pisoteio por todo lado e vir nalmente para
casa. A grande obra a ser realizada está bem à nossa frente, com as pessoas e nos
lugares que a sua providência nos concedeu. Para mim, isso quer dizer ler os
jornais Webster-Kirkwood Times ou St. Louis Post Dispatch, quando soaria muito
mais atraente e importante ler o New York Times ou o USA Today. Posso ler os
jornais anteriores sem os últimos, mas não vice-versa, porque aqui é o lugar para
onde ele me chamou. É aqui que ele está operando. Aqui está meu posto, meu
lugar, minha vida, a sua glória.

Palavra e Sacramento
Realismo romântico explica a razão pela qual nos entregamos à leitura e pregação
da Palavra de Deus junto à acolhida regular do pão e do cálice.
Alguns romanticamente fazem uma encantação de um texto bíblico, como se a
mágica estivesse enterrada nas páginas e tinta. Outros se resignam a nada mais
que recitar palavras antigas sobre uma superfície morta. Mas Paulo, o apóstolo,
confunde esses dois pontos de vista e fala de um tempo em que a pregação vem
para certa localidade, com suas pessoas, “em poder, no Espírito Santo e em plena
convicção” (1Ts 1.5).
Alguns romanticamente exageram a voz, como se a santidade tivesse um tom
alto, como se Deus falasse com uma articulação de trombeta, carregada de
tremor ou, em contraste, apenas com uma voz tímida, sussurrando gritos de
glória. Outros fazem raio-X de brincadeiras vocais, sendo cínicos quanto ao
cântico. “Voz”, dizem eles, “ nada mais é que voz”. “A voz é limitada pelas cordas
vocais, vazia. A voz é fria como a religião”.
Mas Paulo diz o contrário. Há tempos em que a voz humana fala em toda sua
grandeza e fragilidade, mas o que a congregação ouve é o próprio Deus, que lhes
fala por meio desse texto impresso e dessa voz humana. “Tendo vós recebido a
palavra que de nós ouvistes, que é de Deus, acolhestes não como palavra de
homens, e sim como, em verdade é, a palavra de Deus, a qual, com efeito, está
operando e cazmente em vós, os que credes” (1Ts 2.13).
O Espírito toma essa Palavra lida e pregada. O alfabeto ordinário, a voz
comum, aqueles que dão vida pelo sopro do Espírito, e pessoas comuns
respondem a um Deus que está presente. Seu Espírito em Jesus lhes fala, e com
seus defeitos e limites eles realmente ouvem: “deixando os ídolos, vos
convertestes a Deus, para servirdes o Deus vivo e verdadeiro e para aguardardes
dos céus o seu Filho, a quem ele ressuscitou dentre os mortos, Jesus, que nos
livra da ira vindoura” (1Ts 1. 9–10).
Da mesma forma, o pão e o vinho anunciam “a morte do Senhor” (1Co 11.26).
Pão e suco, hóstia ou vinho, nada mais são que isso. Compramos em oferta no
mercado da esquina. Contudo, Deus se aproxima de nós aqui; de maneira
singular nós degustamos e provamos, vendo não somente a massa e as uvas
esmagadas, mas a própria bondade do Cristo vivo. Lembrarmo-nos dele torna-se
em recebê-lo. Ele nos encontra em verdadeira presença, enquanto pela fé
mastigamos e engolimos e oramos. A morte espreita aqui entre os pedaços. A
vida surge quando nos ajuntamos para celebrar. O corpo do Senhor é aqui
discernido. É sagrado o que comemos (١Co 11.27–29).
Estou aprendendo que o realista romântico encontra seu caminho em direção a
um longo compasso, em um lugar local. Porque pela fé, existe mais nessa tinta e
nesse texto, nessas vozes variadas de pregadores humanos, nessas pessoas do
local com as suas histórias do cotidiano, nesse pão comprado no mercado ou
assado no forno caseiro e nesses copos de suco ou vinho barato — existe mais
aqui, estou dizendo, do que podemos ver com nossos olhos. Deus está aqui. Essa
mesma velharia, esse mesmo velho de sempre tem asas.

Voltar para casa


Eu me lembro de mim mesmo como adulto, em meu primeiro pastorado. Ali
estava eu, sentado na varanda, comendo o bolo de especiarias de Mamaw. Uma
lembrança de mim quando menino vem à mente. A nal, certa vez os pastores
foram crianças e netos. Lembro-me de Mamaw chamando para o jantar. Às
vezes ela en ava os pés nos velhos sapatos desbotados de lona vermelha e cava
no caminho de cascalho, fora da garagem. Segurava aberta a porta do carro com
a mão esquerda. Com a mão direita ela se inclinava e tocava a buzina com força.
Em resposta à força de Mamaw, a buzina desgastada do carro arfava e lançava ao
ar dois sonidos do tipo rosnada de ganso.
Noutras vezes, ela batia depressa numa lata velha com uma colher de pau. Essa
colher se tornava instrumento de percussão, fazendo estrépito barulhento que
subia no ar da vizinhança ao pôr do sol. Meus tios e a meninada da vizinhança
usavam a mesma lata para o jogo que eu amava: “chuta-lata”. Eu era bem novo, e
Mamaw forçava os seus dois lhos a permitir que eu brincasse. Eles eram jovens
demais para serem os meus tios, mas não podiam fazer nada a respeito disso.
Tinham de deixar que o sobrinho fosse atrás junto deles.
Eu amava isso. Sentia-me mais velho, como se pertencesse. É surpreendente
como uma simples lata velha podia oferecer alegria para uma turma de meninos
na vizinhança. Esse aspecto da lata às vezes me lembra das pessoas também.
Igualmente notável era como a mesma lata tinha utilidade nas mãos de Mamaw.
Mas a buzina de ganso e o barulho da lata desvanecem em comparação com
aquelas vezes em que minha Mamaw simplesmente optava por usar sua voz para
chamar-nos para casa. Talvez estivéssemos lá nos Guthries, escondidos como
soldados entre os arbustos ou subindo nas árvores. Ela chamava primeiramente o
nome dos meus tios e depois o meu. “Bbbbbuuddd”. “Aaaadddddaaaammmm”.
“Zzzaaacckkkk”.
Às vezes, ouvir a voz de Mamaw chamando ao vento me irritava. O jantar
estava pronto. Eu queria brincar, não comer. Queria andar pelo bairro, não car
sentado no mesmo lugar, à mesma velha mesa. Era hora de ir para casa, mas eu
me recusava. Era um prenúncio de obstinação no meu coração que poderia ferir
a mim e, com o tempo, a outras pessoas.
Mas outras vezes, eu cava emocionado ao ouvir a voz de Mamaw chamando
meu nome ao entardecer. Os meninos mais velhos nem sempre eram justos
comigo. Eles zombavam de mim em vez de me convidarem para brincar. Eu sabia
o signi cado de ouvir sua voz levando nossos nomes naquela hora do anoitecer.
A comida estava esperando. Com certeza haveria livramento. Meu coração podia
saltar, minhas lágrimas podiam cessar. Era hora de voltar para casa. E eu fazia
exatamente isso.
Vejo nesse cenário uma lembrança de como Jesus chama qualquer um de nós
para essa vida e ministério. Ele nos chamou a algum ministério, em alguma
localidade, como aqueles que pertenciam a alguém, em algum lugar, cuja família
se tornara a nossa família. Eu era das famílias Eswine e Guernsey. Eu brincava de
jogos como “chuta-lata”. Brincava de caminhõezinhos Tonka com meu tio Adam.
Bebia o caldo de picles (graças a meu tio Bud). Finalmente ouvi meu Papaw falar
de Jesus no salão da Legião Americana em Henryville, Indiana. Era o Dia de
Ação de Graças (sim, isso mesmo).
Preguei sobre Jesus no funeral de minha Mamaw. Ela morreu no dia de Natal.
Canções que eu escrevi foram tocados no CD player, enquanto familiares e
amigos se reuniram. Eu havia sido ordenado pregador pelo Presbitério dos
Grandes Lagos. Mas naquela tarde, falei de Jesus como neto de Pauline, o lho
quebrantado de Vern e Jan. Eu era aquele menino que Mamaw chamava de
“Charlie Brown” e de “fofura” (como ela chamava também seus outros netos).
Depois, comemos frango frito e macarrão com queijo e tomates no salão do
porão da Igreja Metodista Unida de Henryville.
Papaw morreu pouco mais de três anos depois. Apesar das convicções
doutrinárias quanto a ordenação de mulheres ao ministério da Palavra da parte
de seu neto, a pastora Wilma tinha alimentado a fé recente de meu velho Papaw.
Ela cuidara dele com delidade e falou com ele sobre Jesus de coração. Enquanto
todos nós nos sentávamos no culto fúnebre, ela nos convidou ao mesmo Salvador
que havia buscado, encontrado e perdoado a Bud, o mesmo Salvador que
respondera as orações de Mamaw. Mais frango frito seguiu ao serviço fúnebre, e
então fui para casa.
Estou tentando dizer que a vida e o ministério são aprendizados em Jesus, em
que, por sua glória, ele capacita outros a fazer o mesmo. Bernanos estava certo.
“A graça está em todo lugar”.77
NT: Termo popular para se referir a geração que sucedeu à Grande Depressão que ocorreu nos Estados
Unidos a partir de 1929.
Georges Bernanos, e Diary of a Country Priest, (New York: Knoll & Gra , 2004), 298.
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