Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
“Gostaria de ter lido esta obra vinte anos atrás, quando comecei a considerar o
ministério pastoral. O assunto que Zack aborda é vital tanto para pastores
novatos quanto para pastores experientes. Ele nos direciona a evitarmos as
ambições perigosas, as expectativas absurdas e os padrões de trabalho
prejudiciais. No entanto, ele faz isso com inteligência, autocrítica e profundo
realismo. Eswine reacendeu em mim um amor pelo Pastor Perfeito, cuja graça
extraordinária inclui pastores imperfeitos na obra de seu reino. Este livro deveria
estar na lista de leituras indispensáveis de todo pastor!”
Mark Meynell, diretor associado (Europa), Langham Preaching; Autor, A
Wilderness of Mirrors
“Zack Eswine projeta sua prosa numa área muito sensível que nós, pastores e
líderes, odiamos discutir: nós extraímos nosso senso de identidade e estima do
número de pessoas que vão às nossas igrejas, do volume das ofertas e de nossos
seguidores em mídias sociais. Este é um livro cheio não de condenação e sim de
encorajamento cativante. Pude sentir os braços de Zack ao meu redor quando
Deus o usou para me mostrar o caminho adiante – em direção a uma vereda de
cura e esperança.”
Bryan Loritts, pastor de pregação e missões, Trinity Grace Church, New York
City; fundador e presidente, e Kainos Movement; editor, Letters to a
Birmingham Jail
“Este é simplesmente o melhor livro sobre ministério pastoral que já li. Num
mundo de ministério caótico que idolatra tamanho e estrelato, Zack abre nossos
olhos para a única coisa que realmente importa. Leia com oração e releia esta
meditação bela e pungente, e você descobrirá alegria e verdadeira grandeza em
meio à sua extraordinária vida comum diária.”
Ken Shigematsu, pastor, Tenth Church Vancouver;
Autor best-seller, God in My Everything
Basta então,
essa velha obra de mãos
Dele e nossa
para aqui amar,
para aprender aqui a sua canção,
continuando a fazer
aquilo para o que foram criados,
a arte noturna de
faces não notadas,
com nossas asas não observadas,
E nós então,
com nossas bandeiras brancas costuradas,
estaremos por trás de suas sempre verdejantes,
nalmente deixando o lugar escondido
e com ele
mais uma vez caminhando juntos.
1 | Desejo
Ele pensa somente naquilo que deseja e não se pergunta se deveria desejar isso.
–B C
Desejo
A Serpente sabe disso. As árvores do jardim eram desejáveis, boas e agradáveis
aos olhos (Gn 2.9). Entretanto, quando Eva viu aquela árvore única, desejou-a
de modo torto. Ela e Adão procuraram consumi-la à parte de Deus, apesar do
propósito declarado para aquela árvore (Gn 3.6). Queriam algo desejável, mas do
modo errado. É possível que façamos o mesmo no ministério.
Não se engane. O desejo é um fogo de artifício. Manuseado com sabedoria,
enche o céu da noite com luz, cor, beleza e deleite. O desejo mal manuseado
pode queimar e incendiar toda a sua vizinhança (Tg 4.1–2).
Conheço em primeira mão a beleza e o incêndio criminoso dos desejos
ministeriais. Sei o que é car perdido nesses desejos e precisar ser reencontrado
em Jesus. Eu era um desses caras a quem as pessoas diziam: “Você é um dos
melhores pregadores que já ouvi, e é tão jovem — mal posso esperar ouvi-lo
daqui a dez anos”. Bem, há muito se passaram dez anos e eu não me tornei aquilo
que foi projetado antes.
Não falo isso com morbidez. Espero que você logo perceba que escrevo como
quem sente profundamente ter sido resgatado de si mesmo pela abundante graça
de Jesus. As águas insalubres da celebridade, consumismo e grati cação imediata
haviam in ltrado a água que eu bebia. Meus desejos pastorais tinham se
maculado sem que eu percebesse. Muitos de nós não percebemos. Nós e nossas
congregações sofremos por isso.
Portanto, estabeleçamos o fato de que a vocação pastoral começa com o desejo.
O apóstolo Paulo diz o seguinte: “Fiel é a palavra: se alguém aspira ao
episcopado, excelente obra almeja (1Tm 3.1). Pedro concorda: “pastoreai o
rebanho de Deus que há entre vós, não por constrangimento, mas
espontaneamente, como Deus quer; nem por sórdida ganância, mas de boa
vontade” (1Pe 5.2).
Re ita comigo por um momento. Quando foi que você tornou conhecido o seu
desejo pelo ministério pela primeira vez? Era mais velho ou mais jovem? A quem
você contou? No meu caso, eu estava na segunda série do ensino fundamental da
escola Saint Anthony. A Sra. Canter escrevera no quadro de giz: “O que você
quer ser quando crescer?”
Eu respondi, e Sra. Canter ajuntou as duas palavras para todos verem: “Zack
— Sacerdote”.
Eu ainda não associara o desejo pastoral ao amor por dinheiro (Lc 16.4),
contatos para angariar posição (Mt 23.6–7), cobiça por poder (At 8.18–21) ou
ao avanço de meu próprio nome. Ainda não sabia que servir a Deus poderia ser
usado, até mesmo por mim, como modo de tentar, alinhado com o velho
sussurro da Serpente, tornar-me como Deus (Gn 3.5). Só sabia, como menino
de oito anos, que eu desejava servir a Deus com minha vida em ministério
vocacional. Eu não estava inquieto naquela época, nem um pouco. Era
maravilhoso.
Desde então, porém, aprendi algo, não como sacerdote, mas como pastor.
Existem muitos tipos de desejos atuando neste mundo, e nem todos eles são
bons.
Aspiro servir como pastor de modo comum, corriqueiro, humano, normal, rotineiro, médio, usual
e sem novidades, a pessoas comuns e em nada excepcionais. Ser banal e medíocre como pastor.
Ou,
Aspiro servir como pastor olímpico, incomum, surpreendente. Ser pastor extraordinário e
especial em uma congregação maravilhosa, notável, singular, excessivamente grande. Ser estelar e
inesquecível como pregador.
Eu me sentia qualquer coisa menos estelar. Quem sabe este artigo seja apenas o
começo, pensei. Não sou pastor ou pregador épico. Mas talvez pudesse escrever algo
que transformasse o mundo para Deus.
Isso foi há vinte anos. Publiquei o artigo, mas o mundo não mudou e ainda tive
de escovar os dentes normalmente no dia seguinte. Nos anos desde então, tenho
visto gente vindo à fé salvadora em Jesus, casamentos curados e vícios vencidos.
Tenho viajado, pregado e obtive um doutorado. Tenho ensinado, aconselhado, e
escrito livros. Jesus tem se revelado tão bondoso, verdadeiro, presente e poderoso
a mim. Mas, conforme já mencionei, existe beleza e destruição no desejo. Entre
aqueles que participaram de minha ordenação ao ministério tempos atrás, um
pastor mentor tirou sua própria vida, e outro já não está no ministério devido à
má conduta moral. Um presbítero e um diácono foram dolorosamente
disciplinados, um por raivosos maus tratos e o outro por um caso amoroso
devastador. Outras amizades acabaram se dissipando entre a feia politicagem
dentro do ministério. E doze anos depois de meu juramento público de ministrar
no evangelho, meu casamento acabou. A única coisa grande, famosa e veloz a
meu respeito e a respeito de muitos de minha turma ministerial era nosso
quebrantamento.
Quando falei sobre o desejo pelo ministério na turma de segundo ano da Sra.
Canter, jamais imaginei que meu futuro requereria que eu aprendesse a viver
como pai solteiro, com a guarda principal dos três lhos, no meio de uma
comunidade de “escândalo” e fofocas. Eu tive de olhar longa e profundamente no
espelho dos meus próprios desejos contaminados. Estou pedindo-lhe para fazer
o mesmo, na esperança de poupar-lhe o custo que paguei. Ser declarado “parte
inocente” não removeu os sussurros ou as calúnias, quer em minha comunidade
ou em minha própria cabeça. Nem isso removeu o que signi ca para cada um de
meus três lhos, e para mim, aprender diariamente, juntos, a novamente ver o sol
e sorrir. Mas, note bem, caso você pense que não é como eu. Tive também de
examinar aqueles que projetavam como eu “deveria” me tornar a seus olhos
dentro de dez anos. Você terá de lutar com isso também. Temos de analisar
friamente o desejo por “coisas grandes, famosas e rápidas” que membros da
congregação e lideranças pastorais parecem almejar constantemente. A ausência
de nossa atenção a esses desejos mal projetados está nos tornando em um bando
maltrapilho.
Agora estou aqui sentado, todos esses anos mais tarde, digitando essas palavras
como pastor de uma pequena igreja no Missouri. E uma ironia sussurra aos
meus pensamentos. Espero que o que escrevo para você prove ser signi cativo.
Balanço a cabeça e quase dou risada —aquela exalação curta de risada pelo nariz.
Engraçado como, antigamente, eu pensava que a signi cância estaria em algum
lugar além de Henryville e da presença de Mamaw — local próximo e amor
comum — como se um artigo numa publicação ou um sermão de púlpito
pudesse fazer mais para glori car a Deus em minha geração do que atender com
delidade a qualquer outro desses dons criativos que Deus deu.
Estou cheio de ansiedade, principalmente sobre o que fazer com todo esse tempo. Fico me
perguntando se z número X de dólares de trabalho para a igreja hoje? Não estou acostumado
com tanto tempo livre em um só dia, e isso me deixa ansioso. Consigo realizar melhor as coisas
quando meu horário está abarrotado e vou a mil por hora. Tenho vivido sob pressão por anos, e
agora que Deus está alargando o meu espaço, de alguma forma quero sabotá-lo. Como posso sair
dessa e encontrar minha vida?
Meu amigo não sabia como fazer um dia de trabalho pastoral se as variáveis da
e ciência, quantidade, rapidez e medidas econômicas fossem removidas. Ele não
fora ensinado sobre os outros tipos de tesouros que eram dele em Jesus, os quais
ele podia desejar usar no seu dia. Eu também não tinha aprendido. O tempo que
ele esteve comigo no passar dos anos não o havia ajudado.
Por quê? O que são essas coisas que importam para nossos desejos? Bem,
primeiro, amor a Deus. Este nobre desejo leva tempo. Perdão, reconciliação,
chegar à sensatez, crescimento espiritual em fé, esperança e amor; conhecimento
e entrega aos ensinos da Escritura em Jesus, crescimento na obediência,
mansidão, paz, paciência, bondade e domínio próprio, junto com enfrentar os
vícios, as idolatrias e os pecados com o evangelho; aprender o contentamento em
Jesus, quer em abundância quer em escassez; aguardar a vinda do Senhor e seu
reino bem como o cumprimento de todas as promessas de Deus para sua glória e
nosso bem. A linha de chegada na satisfação desses desejos não poderá ser
atravessada com uma corrida de quarenta metros, não importa quão
furiosamente tentemos.
Segundo, amor ao próximo em seus prazeres também é importante, e isso
também leva tempo. Aprender a andar e falar e contar, crescer, fazer matemática,
aprender a dirigir ou viver de forma independente, junto com começar ou
participar de uma igreja ou ministério. A pressa não consegue realizar essas
coisas, quanto menos continuar solteiro, encontrar verdadeiras amizades,
desfrutar de um bom casamento, fazer amor que satisfaz, ser pai ou mãe, avós ou
criar integridade e boa reputação no seu trabalho. Aprender a tocar um
instrumento, subir ao ápice em um esporte ou tornar-se especialista em uma arte
ou ofício, não acontece da noite para o dia. Porém, muitas pessoas a quem você
serve acreditam que essa espécie de amor a Deus e ao próximo acontece
instantaneamente.
Tome, por exemplo, um marido frustrado. Ele me disse: “Simplesmente não
suporto mais; é demais! Ou ela trata a questão ou é óbvio que não se importa
com nosso casamento! Não vou mais suportar isso não!”
Quando disse essas palavras para mim, ele estava casado há apenas três meses.
A questão a que se referia era de seis dias atrás. Ele citava a Bíblia e falava em
termos épicos sobre o que Deus deseja para um casamento e para uma vida. No
entanto, se ele tivesse de esperar seis dias para consertar a questão, em um
contexto conjugal de, ao todo, oitenta e nove dias, estava claro para ele que Deus
não estava no casamento ou que sua esposa não o amava, e que ele tinha de
preparar-se para seguir em frente. Este homem consegue citar a Bíblia, mas não
tem garra para esperar em Deus em meio a algo de que não gosta. Com toda a
conversa grandiosa sobre coisas maravilhosas que Deus quer, não ocorre a ele
como é grandioso o que Deus diz sobre aprender a perseverar e esperar nele.
Muitos de nós pastores expressamos o mesmo tipo de inabilidade emocional de
esperar em Deus em e por nossas congregações.
Nosso problema é que a maioria das alegrias dadas por Deus que almejamos
são deterioradas quando palavras como instantaneamente, pressa e impaciência são
lançadas contra nós. Muitos estão confusos sobre o que signi ca verdadeira
alegria se tiverem de assumir uma grati cação adiada entre as velocidades
menores requeridas pelas coisas que importam mais para Jesus.
Ora, imagine amar a Deus e ao próximo em meio aos desalentos ou desolações
da vida. A desolação não consegue suportar facilmente um ritmo pastoral
acelerado. Isso explica por que muitos de nós não têm paciência no cuidado
pastoral. Ossos e mentes quebrados não estão propensos à pressa. Pele queimada
ou almas vitimizadas têm de chegar a uma coceira miserável a m de se curar, e
nós que esperamos ao lado do leito temos de esperar mais ainda. Morte, luto,
perda, recuperação dos vícios, como também traumas emocionais ou físicos, ser
pais e mães de crianças portadoras de necessidade especiais, aprender a se ajustar
a doenças crônicas, depressão, incapacidades ou doenças — todas essas
desolações são tratadas pobremente quando se requer delas “e ciência” e
“medidas quantitativas”. Para o pastor importante, que faz coisas grandes e
notórias rapidamente, o fato das pessoas estarem quebradas, na verdade, parece
uma intrusão que o impede de fazer sua importante obra para Deus. Estou
escrevendo essa última frase, e isso me faz desmoronar. Releia. Em seguida, caia
comigo, está bem? Caia de joelhos comigo perante o Salvador. Ele é quem ergue
nossa cabeça. Precisamos desse soerguimento gracioso, pois ainda não falamos
sobre palavras como instantâneo e impaciente não nos oferecerem recursos para
tratar das coisas que realmente importam – de amar nossos inimigos no
ministério. E não se engane: eventualmente você também terá de aprender o
mais difícil dos amores ao próximo.
Em geral (e isso muitas vezes nos surpreende), a pressa não é amiga do desejo.
O sábio entendeu isto quando disse que “não é bom proceder sem re etir, e peca
quem é precipitado” (Pv 19.2). Seu ponto está bastante claro. A pressa tem o
hábito de não completar as coisas que realmente importam. Numa crise pode até
ajudar. Mas quando chegamos ao entendimento, dedicação e cumprimento dos
desejos de uma alma humana, a precipitação constantemente e legitimamente é
processada por negligência. A rapidez oferece promessas imediatas para nossos
desejos conjugais, ou ministeriais, ou para o trabalho, ou para os nossos lhos,
mas, na verdade, a pressa nunca entrega o que promete naquilo que é mais
precioso para nós.
O ponto que quero destacar é o seguinte. Nosso desejo por grandeza no
ministério não é o problema. O problema surge quando a pressa de fazer grandes
coisas de maneira notória e com a maior rapidez possível reformula nossa
de nição do que seja uma grande coisa. Deseje grandeza, querido pastor! Mas,
submeta a sua de nição de grandeza àquilo que Jesus nos dá. No mínimo
teremos de começar a tomar posição quanto a este importante fato: a
obscuridade e a grandeza não são opostas.
Conclusão
Fechemos esta conversa introdutória sobre o desejo pastoral com uma parábola
da vida real.
Dois homens saíram de casa para plantar uma igreja numa cidade necessitada.
O primeiro que chegou sonhou com uma cidade alcançada por Jesus com o
evangelho. Por meio desse primeiro pastor, pessoas conheceram a Jesus, os
crentes se reuniram e nasceu uma comunidade de seguidores de Cristo. Foi um
trabalho vagaroso, mas estava acontecendo. As suas orações estavam sendo
respondidas.
Com o tempo, ele começou a se reunir com o segundo plantador de igrejas. Fez
isso com o intuito de encorajar o segundo pastor em seu trabalho incipiente. O
mais experiente e o novato oravam para que Jesus alcançasse a cidade. Através do
iniciante, as pessoas passaram a conhecer a Jesus, os crentes se reuniram e nasceu
uma comunidade de seguidores de Jesus.
Dez anos mais tarde, aquele que veio primeiro serve como pastor de uma igreja
“simples”. Seus mais de duzentos membros demonstram o amor de Jesus de
formas inexistentes ali dez anos atrás. O novato que veio em segundo lugar é
pastor de uma igreja “épica”. Seus milhares de membros e múltiplas congregações
pela cidade demonstram o amor de Jesus de maneiras que não existiam dez anos
atrás. As orações de ambos foram respondidas.
Por que então, um deles está triste?
Por que então, somente um deles recebe nossos convites para falar nas
conferências e para nos oferecer os seus conselhos?
Kathleen Graber, “Book Nine”, Poetry Foundation website, acessado em 3 de dezembro de 2014, http://
www .poetryfoundation .org /poem /241278.
Nathan Foster, Wisdom Chasers: Finding My Father at 14,000 Feet (Seguidores de sabedoria: encontrando
meu pai aos 4.000 metros), (Down¬ers Grove, IL: InterVarsity, 2010), 41.
2 | Reconquistando nossa
humanidade
Não temos lar neste mundo, eu costumava dizer. Então, eu voltei pela estrada para este velho
lugar e preparava um bule de café e um sanduíche de ovo frito.
–M R
A sicalidade humana
Os desejos pastorais, por mais grandiosos e nobres, não nos livram dos limites
físicos que temos.
O estudo teológico me ensinou a doutrina da Criação. Fui examinado para a
ordenação acerca do meu ponto de vista sobre os dias da criação e o legado de
Darwin. Mas o signi cado de Deus ter nos criado humanos, corpóreos,
localizados, nitos e à sua imagem não se traduzia em minha teologia de
ministério pastoral nem informava a forma que o trabalho pastoral devia
assumir. Hoje penso que deveria.
Por exemplo, sou um dos pastores de Wendell. A paralisia infantil tem
impedido o movimento das pernas de Wendell há setenta anos. Wendell
também tem se sujeitado ao regime da diabetes, com as exigências de sargento de
tiro de guerra sobre as suas rotinas diárias. Duas ocasiões com o câncer atacaram
terrivelmente a vida dele. A morte da sua esposa arrasou seu coração e esvaziou
sua cama à noite. As suas mãos tremem. Às vezes sua voz ca arrastada.
Com sua cadeira motorizada, Wendell faz as suas tarefas diárias, lê a sua
Bíblia, ora a Deus e compartilha Cristo com outras pessoas, expressando louvor
pelo cuidado de Deus por todos esses anos. Para cuidar como um médico da
alma de Wendell, temos de levar em conta seu corpo físico.
Nas palavras do pastor-poeta G. M. Hopkins, somos como uma “cotovia” em
nossa “casa de ossos”, “almas e corpos”.4 Ainda cedo na liderança pastoral, soube
que a luta que travava não seria contra “carne e sangue” (Ef 6.12). Mas eu não
entendia como a carne e o sangue formariam a arena para esta luta. “Amado,
acima de tudo, faço votos por tua prosperidade e saúde, assim como é próspera a
tua alma” (3Jo 2). João, o apóstolo, orava assim, e aprendemos com ele.
Pregando descalço
Quando um casal entra no ministério, o amor jovem de vidas comuns poderá ser
pressionado a ponto de deixá-los. Poderá ser o caso de ela ter acabado de dar à
luz um lho. Ou então, são recém-casados. E já estão exaustos pelo ritmo do
treinamento bíblico que zeram, e começando a obra do ministério como quem
já precisa de uma folga. Mas começar o trabalho para Deus signi ca pouco
tempo para cansaço. E assim, a esposa vai com seu líder no ministério a um novo
local, sem raízes, com uma criança pequena e um novo emprego. A igreja espera
que ele chegue correndo e vencendo a corrida. Ele quer mostrar que vale o
dinheiro pelo qual foi contratado. Trabalha demais o tempo todo por amor a
Jesus, enquanto a sua esposa recente e seu bebê ainda novinho tentam aprender a
con ar em Jesus em meio a lavar pratos e o programa da Galinha Pintadinha, sem
amigos locais e saber ainda os nomes das ruas de sua nova vizinhança. A pessoa
solteira que se forma depois do treinamento bíblico, semelhantemente, enche
todas as horas em que está acordada para Deus, cando exausta, dizendo com
seus botões que no dia em que se casar vai diminuir o ritmo da correria (sem
perceber que o hábito do ritmo atual será muito difícil de ser interrompido).
Por que pressionamos nossos jovens no ministério a produzir resultados
ministeriais dessa maneira? Por que eles acham que têm de se tornar algo mais
que um ser humano normal, que mora sicamente em um determinado local?
Por que deixamos implícito que, no ministério, eles têm de ser mais do que um
casal jovem apaixonado em amor sagrado, que tiveram seu primeiro lho e estão
aprendendo em seu primeiro chamado no mundo?
O meu pastor/mentor colocou sua própria vida no meio de tudo que
chamaríamos de sucesso. Ele tinha um programa de construção em duas fases,
estava plantando igrejas e era notável como conselheiro e pregador em
conferências. Porém, às vezes, as coisas do ministério que desejamos na nossa
cultura não são as coisas importantes que Jesus nos dá. Falamos aos empresários
que não vale a pena ganhar o mundo e perder a alma. Não seria possível fazer o
mesmo em um ministério vocacional?
No meu primeiro pastorado tínhamos dezoito alqueires de terra. Quando
propus que cortássemos nossos programas de ministério pela metade, para que
as pessoas pudessem descansar mais com as suas famílias e estar em casa na sua
vizinhança para compartilhar o evangelho, alguns me julgaram como quem
conduz a igreja para trás (mesmo que tivéssemos uns trinta programas numa
igreja de oitenta e cinco pessoas).
Enquanto isso, poderíamos discutir sem trégua nossas declarações de visão e
debater com eloquência perguntas chatas (tais quais se João Calvino teria
removido a cruz de madeira pendurada na parede de nosso santuário, ou se nós,
como protestantes, devemos rebatizar alguém que foi anteriormente batizado na
igreja católica, ou se devemos ter o nome “Presbiteriano” no logotipo de nossa
igreja). Mas como líderes, muitas vezes demonstramos pouca capacidade de
demonstrar o amor, a graça ou a humildade de Jesus em nossos relacionamentos
diários. Nossos sonhos e planos de realizar algo grande para Deus injeta-nos
energia. Nosso tratamento uns com os outros, porém, só nos ferem e fatigam. É
fácil fazer grandes coisas para Deus desde que essa grandeza não requeira
humildade interior, amor prático pelas pessoas bem à nossa frente nem
submissão à presença de Jesus no lugar em que já estamos.
Estou tentando dizer que quando um homem iracundo se torna manso em
Cristo, existe mais poder do que em trinta homens cheios de ira que vieram a
nosso evento ministerial e foram para casa sem transformação. O problema para
mim e para muitos dos que tenho servido é que a assistência de trinta pessoas
soa melhor que a de uma só. Mesmo que, querendo nosso Senhor, viessem trinta
e esses trinta fossem transformados, por mais que nos alegremos, ainda teríamos,
nalguma altura, de usar o banheiro.
Marque bem isso aí: Nós também podemos tentar resistir à nossa
humanidade, dizendo com convicção algumas coisas horríveis diante de um
santuário, dentre todos os lugares, durante a oração: “Deus, eu te agradeço
porque não sou como outros homens” (Lc 18.11). Lá está: o ar mortífero, a
crença envenenada que, de algum jeito, nós que desejamos realizar grandes coisas
para Deus não sucumbimos a ser meros humanos, do modo que são as outras
pessoas.
Talvez seja por isso que, trinta anos após falar pela primeira vez sobre meu
chamado na sala de aula da Sra. Canter, eu tenha pregado descalço em meu
primeiro domingo como novo pastor titular, tendo uma segunda chance.
Permanecer em pé ali, com a Bíblia na mão, sobre um fundamento comum e não
escondido, com pelos de hobbit sobre os dedos calosos do pé, era um ato de
testemunho pessoal, um lembrete tolo, mas tangível, de que eu não sou o Cristo.
Por tempo demais, ignorei nas minhas aspirações por grandeza, o fato de que
sou humano. Talvez seja isso, em parte, o que aconteceu a meu amigo pastor que
se matou. Ele era um “sucesso”. Eu estava me tornando assim. Foi por isso que eu
disse: “Jonathan Edwards peida”.
Gerard Manley Hopkins, “ e Caged Skylark”, [A cotovia engaiolada] em Hopkins: Poems and Prose
(New York: Knopf, 1995), 17.
3 | Saindo de casa
O ministério pastoral é uma peregrinação pelo deserto.
–D H .
Quando um cão selvagem entrava no nosso quintal, Papaw irrompia pela porta
de tela, correndo para carregar a seu ri e. Enquanto o metal arranhado batia
forte contra o fundo da casa para então retornar de volta em seu lugar, Papaw,
agora de pé e calçando as meias, rme sobre a entrada do carro, mirava a arma e
atirava. Não se importava com o ganido resultante. Na verdade, parecia ter
prazer nisso, como se tivesse acabado de defender a sua família do ataque de uma
manada de lobos. Tentava esconder seu largo sorriso e xingava o vira-lata que
uivava de dor, como se fosse um homem chamando Papaw para brigar. Assim,
quando ele me disse bem cedo na manhã no dia de Natal que ia atirar no Papai
Noel, eu acreditei.
Não era nada fácil possuir um coração sensível no mundo daquele querido
homem quando ele era mais jovem. “Abaixe as calças e corra, Mamaw! Você tem
cinta de babados e calcinha de rendas”. Foi o que Papaw me ensinou a dizer para
minha Mamaw quando eu era um menino bem pequeno, e eu dizia. Aprendi a
ver as mulheres não somente pelo jeito que Papaw falava a Mamaw, mas também
pelas revistas Playboy e pelos calendários de mulheres nuas que não eram segredo
para Mamaw ou para nós, e que eram colocados estrategicamente pela casa que
ele construiu.
À mesa de jantar, aprendi que havia no mundo alguns chamados de “negros”.
Os pregadores não eram melhores em sua estimativa. A casa pastoral da igreja
metodista era vizinha da nossa. Pregadores nada mais eram que hipócritas, e
Papaw tinha várias histórias para provar isso.
Quando eu voltava da escola no ensino fundamental, a primeira coisa que
Papaw perguntava era se eu tinha levado uns petelecos do diretor da escola por
ter aprontado naquele dia. Quando eu respondia: “Não, Papaw”, ele ria, me dava
um tapa no braço e dizia: “Puxa vida, rapaz, o que é que você consegue fazer de
bom?”
Papaw nunca me fez sentar para dar uma aula sobre como ver e interpretar os
cachorros perdidos, as mulheres, os pregadores ou a pele não branca, mas o jeito
do Papaw ver o mundo, junto com outros em minha jovem vida, ia treinando e
formando o meu próprio jeito.
Os jeitos ensinam. Formam as principais salas de aula de nosso aprendizado.
Para melhor e para o pior, aprendemos a ver o mundo e a nos apresentar nele
como testemunhas, não somente das declarações de crença que aprendemos na
aula, mas também pela mentoria relacional com aqueles com os quais vivemos
(Pv 13.20; 22.24–25). Seria ingênuo se acreditasse que meu ministério atual,
como adulto em St. Louis, Missouri, fosse estranho ao meu Papaw e ao modo
como ele e eu compartilhávamos juntos a vida comum e cotidiana de Henryville,
Indiana. Você também não é diferente disso.
Você e eu aprendemos muitas coisas em casa, e nem todas concordam com
Jesus. E o que é pior, quando saímos de casa para o ministério, levamos conosco,
para o bem ou para o mal, as coisas que a nossa casa nos ensinou.
Assim, quando Jesus nos pergunta: “Vês esta mulher?” (Lc 7.44), pergunto-me
como deve ter sido para ela. Não havia luxúria nos olhos de Jesus, nem abuso por
trás de seu sorriso, nenhuma cantada familiar ou bajulação em seu tom. Sua
beleza era notada e admirada; seu coração e sua mente eram compreendidas e
conhecidas. Será que já teria sido observada dessa maneira por algum homem?
Será que os homens ali de pé sabiam que eles também, pela graça, poderiam
olhar deste modo para uma mulher?
Os netos se esquecem de que as Mamaws são mulheres. Seu nome era Pauline.
O nome dele era Bud. Na sua juventude, imagino que ela colocasse seu melhor
vestido e passasse perfume no pescoço, esperando que os dedos dele também a
tocassem ali com ternura. Havia gratidão e ternura, um anseio nos olhos ao dizer
seu nome ou relembrar a sua presença. Naqueles anos ela cava sentada com ele
na sala, descascando batatas com ele na cozinha, deitava com jeito de mulher
diante dele em seu leito de vários anos juntos. Gosto de pensar que no nal ele
via a ela, e os anos das revistas Playboy tiveram os olhos vazados. Gosto de
pensar que a mulher, que conhecia e amava esse homem de punhos cerrados,
nalmente teve as suas envelhecidas orações por ele nalmente respondidas,
enquanto os punhos dele se abriam ternamente. Punhos nalmente relaxados e
acariciados, nos cacos de uma velha promessa e um longo amor.
Racismo na conversa
Outra coisa também mudou, não plenamente, mas verdadeiramente. Papaw
estava se recuperando no Hospital Municipal da cidade de Clark. Ele havia
trabalhado ali como zelador durante muitos anos. Agora era ele que precisava de
reparos. O seu coração estava cansado e queria parar antes da hora. Por isso,
deve ter sido algo notável para Papaw naquele dia, quando um estranho veio
visitá-lo entre os tubos e monitores presos aos seus braços. Esse “alguém” era um
capelão afrodescendente com as boas novas de Jesus, trazendo cuidado pastoral
para os enfermos. Eu queria ter sido uma mosca na parede para ver aquele
momento.
Mas como lho do meu Papaw, eu mesmo tenho tido necessidade de muitos
“capelães negros”.
“Você está se esforçando demais”, disse o meu amigo afrodescendente. “Você
não tem de frequentar todas essas reuniões, sessões de planejamento e eventos
contra o racismo. Tem um jeito mais fácil”, ele insistiu. Seus olhos transmitiam
seu amor enquanto falava essas palavras. Ele tinha idade para ser meu pai.
“O que você quer dizer com isso?”, perguntei.
“O seu escritório ca em um pequeno centro comercial perto de alguns
comerciantes negros, certo? Então, quanto tempo levaria para você chegar do seu
escritório até a uma dessas lojas?”
Fiz uma pausa. Tenho certeza de que também parei de mastigar o meu
sanduíche. Dava para ver que um senso de convicção estava prestes a me
cumprimentar. Sentei para trás na cadeira. Ele sorria agora, e era gentil.
“Uns três segundos”, respondi nalmente.
“É isso que estou dizendo”, disse ele. “Você está se esforçando demais,
frequentando na correria todas essas reuniões. Ao invés disso, ande três
segundos até ali, en e a cabeça à porta, e simplesmente diga ‘olá’. Se ninguém
retribuir o seu cumprimento, tente de novo na semana seguinte. Se eles lhe
derem um alô, simplesmente converse como um ser humano sobre coisas de
humanos”.
Fiquei pensando no que ele disse. Admiti em voz alta o que eu sentia por
dentro.
“Parece que essa caminhada de três segundos é mais difícil. Por que é assim?”,
perguntei.
Ele não me respondeu. Ele não precisava me responder. Ambos demorávamos
com o pensamento, enquanto comíamos as fritas devagar.
Jesus entra em nossa mentoria e reformula as narrativas com as quais
mapeamos o mundo. Os discípulos cresceram ouvindo histórias que deixavam
implícito que os pobres estavam no inferno e os ricos iam para o céu. Mas Jesus
inverte isso (Lc 16.19–31). Os samaritanos são vizinhos nobres (Lc 10.25–37),
pecadores arrependidos são justi cados diante de Deus, e os arrogantes mestres
da Bíblia não o são (Lc 18.9–14). E as crianças, longe de serem repreendidas e
silenciadas, são exatamente como devemos nos tornar a m de entrar no reino de
Deus (Lc 18.15–17). Trazemos histórias de casa conosco quando entramos no
ministério. Jesus entra nelas e dá à luz novas histórias para que as contemos.
O ajuste doloroso
Estas novas narrativas da graça para nossa família não são baratas. Não apenas as
levamos conosco de casa; também quando voltamos para casa de tempos em
tempos. Fazer com que isso dê certo requer graça e tempo.
Na sua própria cidade, enquanto Jesus era “o lho do carpinteiro, lho de
Maria e irmão de Tiago e José e Judas e Simão” junto a suas irmãs, Jesus era
bem-vindo. Era parte do povo e do lugar (Mc 6.3). Mas uma vez que Jesus
“começou a ensinar na sinagoga”, as pessoas, em sua maioria, retiraram suas boas-
vindas. “Se ofenderam com ele” (Mc 6.1–8; Lc 4.16–30).
Meu jeito de tratar minha pequena semelhança ao que Jesus experimentou por
vezes tem feito as coisas piorarem. Ao tentar separar aquilo que é menos
parecido com Jesus na mentoria de nossa família, frequentemente o fazemos mal,
como a vez quando escrevi um tratado de sessenta páginas que chamei “Por que
sou o que algumas pessoas chamam de ‘calvinista’.” Fiz cópias e mandei para
todos os membros da minha família no sul de Indiana. Que maneira melhor
haveria de mostrar o amor de Jesus aos entes queridos do que escrever e enviar
um documento que eles não esperariam, respondendo perguntas que não
estavam fazendo, com um tom que não era necessário, para defender uma
discussão na qual eles não estavam envolvidos, e isso tudo para surpreendê-los,
sem que tivéssemos tido qualquer conversa pessoal a respeito disso?
Assim, quando tentarmos orar ou dizer algo de signi cado espiritual, os
membros da família não nos deixarão esquecer dessas coisas. Como isso pode se
tornar um dom de graça! Nós todos podemos olhar para trás e dar risada devido
ao perdão necessário e concedido. Novas histórias de família poderão tornar-se
fonte de encorajamento para todos.
Porém, a lembrança de nossos momentos de tolice não vai embora com os
outros membros da família. Eles cam contentes em ter um encanador na família
quando os canos estouram, ou um cabeleireiro que corte o cabelo de graça, mas
raramente pensam na bênção que um ministro humilde pode oferecer à família.
Não reconhecem a agulhada que trazemos conosco por causa disso. Talvez nos
assemelhemos ao hipócrita que os feriu. O seu cinismo põe a culpa sobre aquilo
que nós representamos.
Muitas vezes, as vozes críticas ou decepções implícitas vem numa disposição
bem-intencionada. A família sente nossa falta e desejaria que estivéssemos em
casa. “Filho, por que zeste assim conosco?” (Lc 2.48), poderão dizer. A família
de Jesus sentia-se ferida por Jesus. Maria acrescenta, “Teu pai e eu, a itos,
estamos à tua procura” (Lc 2.48).
Jesus faz uma pergunta direta e gentil em resposta: “Por que me procuráveis?
Não sabíeis que me cumpria estar na casa de meu Pai?” (Lc 2.49). Como seria
para José ouvir que Jesus tinha de estar na casa de um Pai diferente, e que esse
Pai não era ele, José, e não incluía a provisão e a habitação de José? Deve ter
doído.
Quando Jesus e sua família começaram a ter esse ajustamento dolorido, sua
família “não entendia” o que Jesus estava lhes revelando (Lc 2.50). Teriam de
ponderar essas coisas nos corações e ruminá-las por algum tempo (Lc 2.51).
Tempo de car de pé
Na hora que as multidões se juntam e Jesus não tem tempo para comer, a sua
família reage mal. Poderiam ter trazido comida para ele, encorajando-o com a
mensagem de que o Senhor, que o chamou, o sustentaria e sempre seria el. Em
vez disso, olharam as coisas boas que Jesus fazia e denegriram seu caráter.
Enquanto outros se ajuntavam para aprender sobre Deus através de Jesus, “sua
mãe e seus irmãos” caram do lado de fora (Mc 3.31). Naquele momento
público eles se referem a Jesus como um homem fora de si (Mc 3.21). Em termos
humanos, existem pouquíssimas críticas mais dolorosas do que aquelas feitas
contra nós por aqueles que nos conhecem por mais tempo.
Normalmente, Jesus se maravilhava dessa falta de boas-vindas em sua própria
casa; suportava a dor produzida por isso, e simplesmente prosseguia em seu
ministério (Mc 6.5–6). Mas chegou a hora. Desde os doze anos, Jesus havia se
submetido e amado sua família respeitosamente, mesmo quando eles não o
compreendiam. Agora, aos trinta anos, ele cumpriria o seu chamado, quer eles
entendessem quer não. Certas coisas até eles teriam de aprender de Deus. Não
podiam continuar a apoquentá-lo desse jeito. A manipulação, os xingamentos e a
utilização da culpa para envergonhá-lo tinham de parar. Jesus os amaria, mas não
faria concessões à descaracterização que faziam dele, bem como das
interpretações sobre quem Deus é e de como o ministério de Deus deveria
funcionar. A família e Jesus teria de se entregar aos propósitos de Deus para eles
— não havia como evitar. Jesus continuaria em seu chamado, quer eles
quisessem quer não, quer estivessem envergonhados por ele quer não, quer
achassem que seriam maltratados quer não. “Quem é minha mãe e meus
irmãos?”, ele pergunta (Mc 3.31–35). Este momento na vida de Jesus me deixa
boquiaberto.
Certamente, naquele dia a família foi para casa furiosa ou ferida. Jesus só
con rmou as suas suspeitas. Está fora de si. Eles estão certos em car do lado de
fora e não se juntar aos que o seguem. Ou talvez acreditassem mesmo que ele se
importava mais com os outros do que com eles. Pode ser que tivessem se sentido
desrespeitados por ele falar as coisas tão claramente. Talvez pensassem no
homem egoísta e orgulhoso que seu lho e irmão se tornara, amando as
multidões, a fama e a atenção.
O que sabemos com certeza é que, enquanto se entregava à obra do Pai, Jesus
não parou de amar a sua família ( Jo 19.26). Com o tempo, sua mãe viria a
entender todas essas coisas que foram profetizadas e as guardaria no coração.
Com o tempo, o seu irmão Tiago se curvaria a ele afetuosamente como Senhor e
Salvador. Mas não os vemos muito todos juntos.
As percepções da sua família estendida e dos seus concidadãos acerca do
ministério são uma confusão — era assim até mesmo para nosso Senhor na
plenitude de sua humanidade. Mas até mesmo aqui, a graça não desiste.
Conclusão
Eu estava saindo da reunião do almoço de Dia de Ação de Graças da casa dos
Guernseys. Havia passado trinta e cinco anos ou mais desde que Papaw me
dissera que planejava atirar no Papai Noel; seis ou sete anos desde que chegara o
capelão negro; e seis ou sete anos desde que eu lhe escrevera uma carta contando
do meu amor por ele e por Jesus, aquela carta que ele referiu como algo para ser
guardado junto ao peito. Foi um ano ou dois antes da morte de Mamaw. E foi
após mais de cinquenta anos que Mamaw orava.
“O que você sabe, jovem?”, disse ele com muita magreza e cabelos de prata. Há
muito sumiram as costeletas fortes e escuras emoldurando o rosto murcho. A
seriedade e clareza de seus olhos castanhos me surpreendeu. “Não tem muita
gente que sabe o que tem dentro desse velho aqui”.
“Ah é?”, disse eu perguntando.
“Dois anos atrás, esse velho aqui começou a dar graças a Deus toda noite”, ele
disse. “Uns meses atrás, o velho aqui começou a voltar para a igreja”.
Eu estava chocado com a sacralidade daquele momento. Remexi as minhas
chaves, vasculhando o vazio profundo do bolso de meus jeans, tentando
encontrar palavras. “Como é isso para o senhor, Papaw?”, ousei indagar.
“Bem, não concordo com tudo isso”, disse. “Mas, para dizer a verdade, tenho
sentido falta”.
Ele se aproximou de mim para me abraçar.
Então sorriu ao falar: “A gente nunca sabe o que vai acontecer com esse velho
aqui, não é mesmo?”
“Nunca se sabe”.
4 | Invisível
O fato é que os pastores são invisíveis seis dias da semana... Grande parte de nosso trabalho mais
importante é feito nos bastidores.
–E H. P
Trabalho monótono
“Quero agradecer-lhe por aquilo que você disse da última vez em que nos
encontramos”.
Ele disse isso em uma cafeteria. A lha pequena de meu amigo dizia com
linguagem de garotinha: “Num quero Deus” ou “mim não ora”. Sofrendo, esses
pais preocupavam-se que estivessem fazendo algo errado. Eu respondi dizendo
algo sobre como nós adultos, muitas vezes, não gostamos de Deus em nossa vida
ou não queremos orar.
“Quem sabe o deus que sua lha não gosta seja um que nós também não
gostaríamos nem desejaríamos crer; talvez não seja, a nal, uma imagem
verdadeira de como Deus realmente é”, eu sugeri. Então z uma pausa. Não
tinha certeza, como era costumeiro, se aquilo que em oração eu tentava entender
estava plenamente correto. Eu orava daquele jeito estranho que podemos fazer,
silenciosamente, entre as sentenças e os pequenos silêncios que perduram
enquanto en amos a colher em uma tigela de caldo quente.
“Em vez de fazer sua garotinha parar de falar que não gosta de Deus”, eu disse,
“que tal admitir que, às vezes, mesmo como adultos, nós desgostamos de Deus, e
deixar que isso molde as suas orações em família? A nal de contas, os Salmos ou
Eclesiastes, Jonas ou Jó nos mostram orações dessa espécie. Nos ensinam que
Deus nos ouve em Cristo, mesmo quando temos sentimentos feios e quando
esses sentimentos feios são dirigidos a ele. Quem sabe se neste exato momento é
isto que ela pode aprender com você? Que tal se, em vez de ler a Bíblia por uma
temporada, você convidasse os lhos a dramatizar as cenas escritas nos
Evangelhos? Alguém é o que está doente. Um outro atua como o fariseu
zangado. E alguém começa a dizer o que Jesus fez e a estender a mão ao que está
enfermo ali mesmo em sua sala de estar”.
Nas semanas seguintes aconteceu algo maravilhoso. Aquela criança começou a
relacionar-se de maneira diferente quanto à oração, e deixou de falar que não
gostava de Deus. Um momento como este nos ajuda a entender por que não é
fácil descrever o que um pastor faz. É também desagradável e fere nosso inquieto
desejo de legados maiores e mais famosos.
• Comum e cotidiano. Este momento quase não se nota no mundo e não será
documentado pela história. Dois homens tomavam sopa e conversaram por
alguns minutos numa terça-feira em uma cidade do Missouri.
• Invisível. Ninguém mais da congregação viu ou sabe sobre isso.
• Incontrolável. Não existe uma fórmula. Nunca me zeram antes aquela
pergunta e eu poderia não ter sabido como dizer, ou errar completamente no
que disse. Foram feitas orações. Dar um passo à frente foi um ato de esperar
em Deus quanto ao desconhecido.
• Inacabado. Demos graças com risadas quando se falou dessa boa nova. Mas
ambos sabemos que essa menina pequenina tem toda uma vida em frente
para construir sua trajetória com Deus ou o contrário. “Daqui a dez anos”, eu
digo, “talvez estejamos sentados aqui nessa mesma lanchonete, tomando sopa,
conversando sobre sua lhinha, que a essa altura será uma jovem! Certamente
estaremos olhando juntos ao Senhor novamente, buscando toda a ajuda e
graça que pudermos!” Rimos e balançamos as cabeças.
Andamos até o estacionamento. Sem mais palavras a dizer, demos tapinhas
nas costas um do outro, como muitas vezes fazem os homens. Ele voltou ao seu
escritório. Eu fui ao encontro de outra pessoa.
Eu não visionava essa espécie de vida diária. Pensava que ser pastor seria algo
parecido a um conferencista itinerante, profeticamente originando e dando uma
visão de pregação a grandes multidões e organizações, para que pudesse
constantemente demonstrar que não somos como outras igrejas e eu não sou
como outros pregadores. A cada semana, eu mobilizaria e gerenciaria programas,
contratando, despedindo e treinando o pessoal, para que pela força de minha
personalidade, pela perícia de minha liderança organizacional e singularidade
sábia de nossa presença, eu (quero dizer, claro, nós) poderia construir uma
plataforma mais notável para o evangelho, de onde eu (ops, quero dizer nós)
poderia subir em maior proeminência no evangelho. E então eu (aqui não estou
falando de nós) poderia ir embora, passando a fazer coisas cada vez maiores e
melhores para Deus no evangelho.
Porém, se aspiro a essa outra visão, quem cará sentando sem pressa,
escutando alguém em nome de Deus enquanto toma sopa no meio de um dia
comum, em lugar corriqueiro, para que uma família desconhecida para o mundo,
que ama a Jesus, encontre seu caminho nele em meio do que realmente os
machuca, confunde ou os deixa mais maravilhados?
– Após o café da manhã até pouco antes do jantar: procurar pessoas desconhecidas e
assustadoramente quebrantadas e oferecer-lhes a maior parte do tempo. Separar tempos para o
ensino público e para explicações em particular àqueles que você está oferecendo mentoria.
– Começo da noite após o jantar: passar tempo juntos e ter prazer um no outro
Geral:
– Comer e dormir.
– Ajudar os outros líderes para que entendam pela Palavra de Deus que este modo de ministério
vem de Deus e não é um desperdício.
– Suportar e apoiar as pessoas que você ajuda mas que se distanciam de você porque o seu estilo
de vida e ministério os assusta.
– Não se preocupar por sua verdadeira glória ser encoberta a quase todos a seu redor.
– Não marcar tempo demais na agenda com os que acreditam ser as colunas no governo ou na
igreja. Lembrar-se de que eles também são apenas pessoas. Eles têm seus próprios pecados dois
quais se arrepender e seus próprios chamados para cumprir. Não são mais importantes do que os
perdidos e aqueles que estão quebrantados a quem você foi chamado a ministrar.
Já descoberto
Eu era universitário de cabelo comprido. Bob era pastor no campus, servindo ao
ministério cristão dos Navegadores. Regularmente ele me convidava para orarmos
juntos em lugares ermos. Olhando hoje para trás, co maravilhado de como Bob
não viu isto como perda de tempo. Sou grato. Frequentemente, depois de umas
duas horas de oração, cávamos sentados juntos e conversávamos. Certa vez,
Bob olhou para mim.
“Zachary”, disse ele. “Você já foi descoberto”.
“O quê?”, perguntei.
“O que quer que aconteça em seu futuro, com todos os seus sonhos e
esperanças, quero que saiba que o ser descoberto já aconteceu. Jesus já o conhece,
ouve as suas orações e se deleita em conhecê-lo”.
Em retrospectiva, penso nessas palavras. Será que eu já tinha sido descoberto
por Jesus muito antes do seminário, dos tempos de aprendizado, dos prêmios
recebidos, das viagens, livros publicados, e, tristemente, dos dez errôneos anos de
projeções? Já era conhecido antes dos escombros e da ruína, e de pregar descalço
no santuário da segunda oportunidade?
Como poderia ser isso, a não ser que Jesus tivesse como hábito dar o seu tempo
para pessoas desconhecidas e alquebradas, nos lugares fora de mão, desprezados
pelo mundo, e tendo ele prazer em mim?
Ocorre-me o pensamento que me faz parar, surpreso. Se o trabalho pastoral de
Jesus consistisse em realizar grandes coisas, de maneira famosa e mais e ciente, e
o mais depressa que pudesse, eu jamais o teria conhecido.
Ver, por exemplo, Mateus 8.4; 9.30; Marcos 1.44; 3.12; 5.43; 7.36; Lucas 8.56.
Eugene H. Peterson, A Vocação Espiritual do Pastor: Redescobrindo o chamado ministerial (São Paulo, SP:
Mundo Cristão, 2006)
SEGUNDA PARTE | AS
TENTAÇÕES QUE
ENFRENTAMOS
5 | Estar em todo lugar para
todos
Existe um dia, quando a estrada não vai e nem vem, e o caminho não é um caminho, mas um
lugar.
–W B
Lançando raízes
“Zack, a sua vida é como um incêndio que faz soar todos os alarmes. Você vem e
vai por tantas direções diferentes. Eu me preocupo com você”. As palavras de Bill
me abalaram quando eu era jovem.
Uma de minhas chefes expressou o mesmo sentimento dez anos mais tarde.
“Você está fazendo tantas coisas diferentes”, ela disse. “Queremos que você esteja
por aqui por muito tempo, então, marque melhor seu compasso, está bem?”
Dois colegas me convidaram para almoçar, enquanto outro me telefonou.
“Estamos preocupados com você”, disseram todos.
Foi então que recebi uma carta. Era daquele tipo de antigamente, com um selo
no envelope. Abri e ouvi a voz da minha mãe enquanto lia. Ela também deve ter
ouvido o alarme. “Filho, uma árvore tem de ter raízes para oferecer sombra”.
Marque bem isso aqui, certo? Nós nunca fomos feitos para nos arrepender por
não estarmos em todos os lugares, para todas as pessoas, e tudo de uma só vez.
Fomos feitos para nos arrepender daquilo que tentamos ser e fazer.
Avançando pela limitação
Uma jovem mulher fez uma lista de tudo que não teria se escolhesse para si a
carreira de poeta. Avaliou seus amores mais verdadeiros e abandonou todas as
outras vidas possíveis e imagináveis por amor à vida de uma poetisa.7
Quando me tornei pastor eu não z tal lista. Nunca imaginei que se eu
dissesse: “Jesus, toma-me e leva-me a todo e qualquer lugar contigo!”, seria
possível que eu o visse dizer sim a outros com o mesmo pedido, enquanto dizia
não a mim (Mc 5.19).
Não é que a Bíblia não tenha me preparado para isto. O apóstolo Paulo
colocou uma lista parecida com essa da poetisa em plena luz do dia, para que
todos a vissem. Mas eu estava ocupado demais estudando 1Coríntios 12 ou
Romanos 12 para exames que requereriam o meu ponto de vista sobre línguas,
profecia, apóstolos e milagres. Na verdade, eu nunca havia tratado da mensagem
clara e simples das palavras de Paulo — ou seja, que algumas pessoas possuem
este dom, mas não aquele, e que esses limites revelam a provisão de Deus para o
nosso bem. Paulo diz que as mãos precisam dos pés e o olho precisa do ouvido.
Eu teria resistido, supondo que pudesse me tornar todos os quatro de uma só
vez!
Jamais teria imaginado que o chamado que me foi dado pelo amor de Cristo
poderia ser considerado “mais fraco”, “menos honrado” ou “não apresentável” em
comparação ao chamado de outros (1Co 12.22–26).
Pelo contrário, quando li na história de Jesus que Deus dá a alguns cinco, a
outros dois, e a outros apenas um talento, naturalmente eu presumi ter os cinco
(Mt 25.14–30). Quando li a história de Jesus sobre alguém cuja ceifa produziu
de cem, sessenta ou trinta vezes o que foi semeado, jamais imaginei que eu seria
o cara dos trinta, vivendo a vida à sombra de meus colegas que produzem cem
(Mt 13.18–23).
Meu ponto é o seguinte. Se quisermos usar os nossos dons, é requerido de nós
que tomemos um passo. Mas em qualquer direção que colocarmos nosso pé,
necessariamente deixaremos todas as outras direções vazias para os passos de
outra pessoa.
Assim, se Jesus tivesse me perguntado: “O que você quer que eu faça por
você?”, eu nunca teria respondido: “Senhor, desejo uma vocação que me limite e
me torne dependente dos outros”. Mas ca claro que eu deveria. “E ele deu a uns
para apóstolos, outros para profetas, outros para evangelistas, e outros para
pastores e mestres...”, Paulo diz (Ef 4.11). Como pastor, posso até ser apostólico,
mas não sou um apóstolo. Sou profético, quem sabe, mas não sou profeta. Sou
evangelístico, mas não um evangelista. A minha vocação, portanto, não é
itinerante e móvel como esses outros três.
Em contraste, eu sou pastor mestre. Pastor signi ca “pastor” mesmo. Os
pastores são os que retornam. Pastores permanecem quando o apóstolo, o
profeta, e o evangelista chegam e depois vão embora. Somos confrontados por
questões do coração aqui. O que signi ca para alguém viver uma vocação em que
se faz necessário aprender a voltar? O que signi ca abrir mão de uma vida
itinerante?
Aprender a car parado em um mesmo lugar me deixa inquieto. Raramente
em minha vida tenho visto pessoas que permanecem juntas em famílias ou
igrejas ou denominações. Como é que alguém que vem de um lar desfeito,
tendente a subir na vida, irrequieto por querer algo maior, mais notável e atual,
pode querer tornar-se pastor?
Jesus.
Subindo montanhas
Em meu mundo de colarinho branco de pastor, planejamos nos encontrar, e nos
encontramos frequentemente para planejar. “Em algum outro lugar estão
fazendo alguma outra coisa maior”, é o lema não falado de nosso avanço
missional. “Maior” signi ca mais santo e melhor. Como disse um pastor titular
ao explicar por que ele raramente gasta tempo com a sua equipe: “Teremos toda
espécie de tempo para nos reunir no céu. Mas agora temos um trabalho a fazer!
Temos almas a salvar e discípulos a formar”.
Essa ideia parece tão estranha ao carpinteiro de Nazaré! Em lugares como
Nazaré ou Henryville, avançar para algum outro lugar fazendo algo diferente é
raridade. Em contraste aos pastores e gente de colarinho branco, igrejas de
colarinho azul aprendem a testemunhar sobre o que viram ou ouviram nos dias
comuns, porque o dia ordinário é o grande evento do dia, porque é a grande
coisa que aconteceu. Aquilo que se viveu naquele dia torna-se o que realmente se
fala naquela noite.
Por exemplo, o sorriso da neta lá no conhecido supermercado torna-se em
história de quinze minutos, e que leva todo mundo a dar risada até doer a
barriga. Esse sorriso foi su ciente para ser notado e a história valiosa bastante
para ser contada. A risada, a história e o sorriso formam uma agenda su ciente
para a conversa. Nada mais se requer para passar tempo juntos. Nos meus anos
mais jovens, eu não prestava atenção ao comum que faltava. Enquanto eu me
tornava certo da minha vocação pastoral, queria conversas “reais” sobre a vida
“real”. Queria que falássemos sobre coisas importantes, coisas que faziam uma
diferença na vida. Agora, começo a re etir mais sobre esses sentimentos. Desde
quando falar sobre aquilo que vive não serve para uma conversa de verdade?
Desde quando o sorriso de uma neta não é mais assunto substancial para se falar,
especialmente para um pastor a quem foi dado testemunhar de Deus em um
determinado local?
Quando certa vez perguntaram a George Mallory por que ele queria escalar o
Monte Everest, ofereceu uma resposta que se tornou célebre: “Porque o monte
está ali”. Mas em uma carta pessoal à sua esposa, Ruth, ele revelou ainda mais
sobre o que o levava a subir a montanha. “Minha querida”, ele escreveu, “ ...você
deve saber que meu estímulo para realizar meu melhor é você, e você [...] quero
acima de tudo provar-me digno de você”. George deixou um legado signi cante
que provou ser digno de lembrança na história. Mas John, o lho de George,
escreveu algo que me desa ou. Orgulhoso de seu pai, mas também triste, John
escreveu: “Eu teria preferido tanto ter conhecido meu pai do que ter crescido à
sombra de uma lenda, de um herói, como algumas pessoas entendem que ele
era”.9
As respostas que George deu quanto a seus motivos vem confrontando as
minhas próprias respostas. A montanha “estava ali”, mas John, o lho de George,
também estava. A montanha trouxe um senso de alegria e lhe deu um senso
humano de luta para subir na própria vida. Porém, se George tivesse conhecido o
lho, teria trazido também alegria e um senso de luta pelo propósito da vida.
Subir a montanha capacitava George a se provar digno de sua família. Mas amar
e prover para sua família nas rotinas comuns de uma longa vida, dia após dia
também teria conferido essa dignidade. Então, por que George escolheu
enfrentar o desa o da montanha, mas não o de sua sala de estar?
Nessa altura, estou duvidoso, sentindo que estabeleci uma falsa dicotomia
entre, por um lado, o trabalho ou os sonhos de uma pessoa e, por outro, sua
família e rotina. A nal, não há nada moralmente errado com escalar o Monte
Everest. George Mallory era um professor de escola com três lhos. Embora ele e
Ruth estivessem geogra camente separados quase tanto tempo quanto juntos,
temos indicações de que isso não era fácil para George. Assim, tenho de reforçar
a pergunta: Por que George Mallory escolheu a montanha, quando entendia que
isso poderia tirar a sua vida?10 Por que a procura de Mallory por alegria,
signi cado da vida, valor da família, e lealdade para completar uma tarefa era
ligada mais a subir uma montanha do que às rotinas diárias de amar e viver, de
trabalhar e brincar reunido em sua casa?
Penso em meu Senhor, que aprendeu o nome das árvores de Nazaré.
Ouço o sussurro da Serpente.
E se, para muitos de nós, o corriqueiro fosse a maior montanha?
Aprendendo a retornar
Parece estranho dizer isto, mas os pastores de Belém oferecem textos de teologia
pastoral. Foram peritos em lidar com o anticlimático. Lembra-se?
Os anjos penetram os céus bem diante dos olhos desses pastores. Troveja em
coro a glória de Deus. Antigas promessas são cumpridas e testemunhadas. O
medo toma conta desses homens cuidadores de ovelhas. Boas novas lhes são
comunicadas: “Nasceu o Salvador, e este será o sinal que o con rmará”. Ver e
ouvir os anjos em si já era espetacular. Imagine como seria vistoso o sinal do
Messias. Talvez Deus estendesse sua mão para criar um novo planeta. Aí ele o
seguraria entre o dedão e o indicador e o colocaria em sua nova posição no
universo, bem ali diante de seus olhos! Com certeza este seria um sinal digno de
um salvador vindo de Deus!
Porém, aqui começa o anticlímax. Não foram formados planetas. “Encontrareis
uma criança, envolta em panos, deitada numa manjedoura”. O sinal da fama de
Deus estava deitado ali no aroma de gado e feno — a placenta de um novo
nascimento, os choros e o calor da vida comum.
Não havia forma altiva que pudéssemos conhecer,
Exultando na monotonia
Mas como retornarmos dia a dia para congregações e situações em que nos
sentimos inquietos pela vontade de ir embora?
Retornar a essa comunidade signi ca sofrer. Como eu volto para perdoar ou
suportar narrativas a meu respeito acerca de algumas coisas?
Existem lugares aqui que me entediam. Quando os vejo, sinto que já voltei.
Como eu retorno à chatice?
Aqui existem pensamentos, emoções e histórias. Quando as ouço, co
assoberbado. Como voltar para aquilo que eu não consigo consertar?
Há beleza aqui, e esperança, o anseio por redenção e propósito. Como retornar
sem desprezar esses dons por causa de minha dor, meu tédio, minha
incapacidade?
Tais questões iniciam discussões dentro de mim. Então, olho pela minha janela
em Webster Groves ou Henryville ou onde quer que estivermos. “O S é
meu pastor”, podemos dizer. “O meu pastor é um daqueles que retorna. Ele
retorna para aqui também. Toma-me pela mão ou me carrega até o dia, vez após
vez, e vez após vez. Ele volta, e nós encontramos esperança em sua companhia
aqui. Ele está nos ensinando a ‘exultar na monotonia’.” Não tudo de uma só vez,
mas aos poucos, com o passar do tempo.
Porque as crianças têm abundante vitalidade... elas sempre dizem: “Faz de novo”, e a pessoa
crescida faz de novo quase até morrer. As pessoas adultas não são fortes o bastante para exultar na
monotonia. Mas talvez Deus seja forte o su ciente para exultar na monotonia. É possível que
Deus diga, cada manhã, ao sol: “Faz de novo”; e a cada anoitecer, à lua: “Faz de novo”. Pode não
ser uma necessidade automática que todas as margaridas sejam parecidas; pode ser que Deus
tenha feito cada margarida em separado, mas não se canse de criar nenhuma delas em
particular.11
Aos poucos, estou começando a ver aqueles pastores do Natal como se, tempos
mais tarde, eles sentassem ao redor da fogueira no frescor da noite — com lhos
e netos olhando xos o crepitar e bruxuleio do fogo, de olhos sonolentos,
prontos para dormir.
A glória não os havia livrado da lide diária. Não havia livrado das mãos de
Herodes, da matança de todo menino abaixo de dois anos de idade, da ocupação
romana ou de uma igreja corrupta que no m gritaria: “Cruci ca-o!” Ver a glória
não os livrou disso.
No entanto, um pastor idoso remexe as brasas e diz: “O seu velho avô já lhe
falou do tempo quando os anjos...” — De repente um coral de netos interrompe.
Com a expressão de “outra vez”, eles gemem: “Sim, vovô, já ouvimos essa história,
muitas vezes!”
O velho cutuca a madeira que queima. Faz uma pausa, direcionando o olhar
para os jovens olhos dos netos. Seu sorriso só ca mais largo. “Deixem que eu
conte de novo”, ele dirá. Enquanto os novinhos reclamam desse exultar na mesma
velha história, o homem idoso demonstra ausência de fadiga. Com senso de
maravilha, espanto e lembrança em sua voz, e uma baita dor nas costas devido ao
longo dia, começa a recontar a história. “Era uma noite ordinária, e estávamos
vigiando nossos rebanhos”, diz ele.
Assim surge uma exaltação entre a monotonia. Adoração, esperança e
testemunho recusam parar. Ao falar, o velho está olhando de novo as margaridas,
e a mesma velharia está trazendo vida à sua rotina. Por um momento eu sinto a
sua alegria por entre as ovelhas. Os seus lhos e netos crescerão e indagarão com
senso de maravilha. Algo maior que essa velha barraca e os dias compridos
colocaram fogo no coração e na vida do vovô e em seus olhos. É quase como se
ele tivesse uma notícia, como se Deus estivesse com ele, aqui entre os currais das
ovelhas nessa encosta imperdoável, desconhecida pelo mundo, mas conhecida
por Deus.
Falei sobre essas coisas a Mamaw antes dela morrer. Sentávamos sobre velhas
cadeiras em Henryville.
“Há muito tempo estou pensando em sair daqui”, eu lhe disse. “Agora parece
que estou triste por causa da distância e da ausência”.
“Bem”, disse ela, olhando as paredes como se elas fossem janelas, “parece que
você já deu uma volta inteira”.
Isso é o que as raízes requerem de uma pessoa que não está em nenhum lugar
especí co. Ela precisa dar a volta completa e encontrar a graça de dizer: “Faça de
novo” às belezas comuns a seu redor. Temos de aprender a contar velhas histórias
nos lugares conhecidos, entre pessoas a quem aprendemos a conhecer
profundamente. Temos de crer que isto basta para dar signi cado à vida. Como
aprender a realizar esse trabalho de retornar, exceto por meio daquele que
conhece o nome de todas as árvores? Aquele que nos chamou para onde estamos
declara que não precisamos nos arrepender por estar em apenas um lugar de
cada vez. Você não precisa se arrepender por realizar apenas uma pequena obra
em um lugar extraordinário, mas desconhecido. Permanecer de pé em um só
lugar por algum tempo permite que as raízes se aprofundem. Permite que os
pastores se tornem pastores. Devagar a sombra cresce e entrega a vida. É Jesus de
Nazaré que anda com você.
Mary Oliver, Writer’s Almanac website, acessado em 7 de fevereiro de 2015. http://
writersalmanac.publicradio .org /index .php ?date=2011 /09 /10.
Mt 13.54; Lucas 2.4, 39, 51.
David Breashears and Audrey Salkeld, Last Climb: e Legendary Everest Expeditions of George Mallory
[Última subida: As lendárias expedições de George Mallroy ao Everest], (Washington, DC: National
Geographic, 1999).
Após seu desaparecimento no Everest, amigos mais chegados diziam que Mallory havia tomado a decisão
com pressentimentos, dizendo-lhes que o que ele enfrentaria desta vez seria “mais como guerra do que
aventura” e que duvidava que voltaria. Sabia que ninguém o criticaria se recusasse ir, mas sentia compulsão.
É impossível dizer agora se esses eram mais que momentos passageiros de sentimento de culpa por ter de
deixar sua esposa Ruth mais uma vez com toda a responsabilidade por seus lhos pequenos. Seja o que for,
uma vez mais na estrada para o Tibet, Mallory era sua personalidade enérgica e animada. “Sinto-me forte
para a batalha”, escreveu do acampamento da base para Ruth, “mas sei que cada grama de força será
necessário. Tenho de olhar do ponto de vista da lealdade à expedição” escreveu a seu pai num momento em
que vacilava, “e de cumprir uma tarefa iniciada”. Audrey Salkeld, “Mallory”, http:// www .pbs .orgwgbh
/nova /Everest /lost /mystery /Mallory.htm.
G. K. Chesterton, Orthodoxy: e Romance of Faith (New York: Image Books, 1990), 60.
Samuel Rutherford, e Lovelineness of Christ: Selections from Samuel Rutherford’s Letters (Edinburgh:
Banner of Truth, 2007), 1.
6 | Consertar tudo
Vi um homem à beira do rio, coberto de lama até os joelhos. Alguns vieram ajudá-lo a sair, mas o
empurraram mais fundo, até ao pescoço.
–B W
Varandas quebradas
Lá estava ela deitada na varanda da frente, enrolada como uma bola, descalça e
de pijama, em posição fetal contra a porta de chapa de alumínio. Sua mãe
chorava, mas mantinha a porta fechada, instigada pelo marido a manter Lori
para fora. Exasperado, o pai tentava consertar a situação à força, com “amor
severo”. Eu e mais dois presbíteros tínhamos andado pelas ruas do bairro em
busca de Lori. Só sabíamos que “ela fugiu de novo”. Nossa busca terminou na
varanda da frente. Ali estava Lori deitada, para fora, trancada em suas lágrimas, e
nós estávamos ali, cobertos e também trancados em nossas lágrimas.
De alguma forma, eu não imaginara que um ministério vivido em nome de
Jesus signi caria que minha vida andaria por entre varandas como esta. Não sei o
porquê. Um pastor cumpre sua obra entre os fracos, os doentes, os feridos, os
desgarrados e os perdidos da vida (Ez 34.4–5). O pastor, em contraste ao
mercenário contratado, aprende a amar entre os lobos, porque é isto que as
ovelhas fazem. Ele cuida delas no meio desses perigos ( Jo 10.12–13). No seu
livro Strong at the Broken Places, Richard Cohen coloca em termos claros: “Nós,
os feridos, estamos por toda parte”.13
Eu não tinha a mínima ideia de que os pastores pudessem tentar evitar dias
maus para promover sua própria segurança e avanço pessoal. Se a aversão do
pastor a coisas quebradas, ou sua impaciência com essa espécie de intrusão em
seu dia for desa ada, é possível que ele se torne forçoso e severo, até mesmo com
o seu rebanho (Ez 34.4).
Agora eu entendo a ferida e a tentativa de controlá-la, ainda que por meios
duros. Ali, nas varandas de pessoas feridas em todo lugar, sentimo-nos fora do
controle, fortemente tentados a lutar por algo como a onipotência — a posse
imediata de poder sem limites: “Vendo a mulher que a árvore era boa... tomou-
lhe do fruto” (Gn 3.6).
Em varandas quebradas existe pouca surpresa de que a oferta da serpente
reluza e brilhe pedindo preferência. “Vocês serão como Deus”, a serpente
prometeu (Gn 3.5). “Com certeza não morrerão”, sibilou (v. 4). Como pastor,
desejo essa espécie de promessa, e se não tiver cuidado, tomarei de seu
amaldiçoado fruto. Posso ser deus para eles na varanda. Posso consertá-los.
“Não é tão ruim assim”, posso lhes dizer. “Vocês não vão morrer de verdade, vou
fazer com que isso seja bom para vocês”, eu direi. “Farei isso passar”. Qualquer
coisa que possa agarrar, comer ou dizer que farei, qualquer coisa para me sentir
capaz de fazer algo construtivo em meio à minha incapacidade. Arranho e agarro
para me tornar onipotente nessa varanda. Procuro usar estratégias que não são o
evangelho para consertar todas as coisas que estão quebradas. Todos nós
fazemos isso.
Multiplicando Palavras
No meio dos ferimentos, às vezes camos dizendo: “Você não deve fazer isso”.
Ao pregar sobre o pecado de Davi, por exemplo, a minha tendência era dizer:
“Está vendo o que ele fez? Ora, não vá fazer isso”. O problema, claro, é que Davi
já havia pecado, como muitos dos que me escutavam naquele momento. E daí?
Da mesma forma, quando se trata de cuidado pastoral pessoal, o que se pode
dizer ali na varanda, quando você está à frente com a Bíblia na mão? Podemos
dizer o quanto quisermos: “Não que aqui!”, ou, “Você não deve fazer isso!”. O
problema é que todo mundo já fez e já é. E agora? Será que existe esperança no
evangelho?
Impacientes por uma resposta e um remédio, começamos a multiplicar
soluções. Consequentemente, alguém como Jó não somente terá de suportar
tudo que sofre, também terá de lidar com a inundação de textos, e-mails, cartas e
telefonemas daqueles que estão tentando endireitá-lo em nome de Deus.
Provérbios nos lembra de olhar pela nossa janela para escutar o que o mundo
de verdade pode estar dizendo (Pv 7.6–23). A vista e os sons podem parecer
trágicos, como quando se está na sala de uma coordenadora de ministério e seu
marido. Não é uma varanda, mas o estrago permanece ali.
“Não sou mais cristão!”, ele grita com ela.
“Você não tem de seguir a Jesus para continuarmos casados e encontrarmos
uma boa vida”, ela responde. “Eu sou sua; tenho compromisso com você.
Podemos fazer aconselhamento. Podemos pedir ajuda”, ela lhe assegura.
“Eu não vou fazer aconselhamento junto com você e não vou pedir ajuda,
especialmente de Deus”, ele declara. “Estou cansado da hipocrisia das igrejas.
Odeio essa vida”, retruca.
“Eu peço demissão amanhã mesmo”, ela implora. “Não preciso estar em um
ministério na igreja. Vamos começar de novo”, pede ela. “Eu amo você”, declara.
“Mas eu não amo você e nunca amei”, ele retruca. “Não quero car com você.
Nunca quis”.
Ela está calada. As suas palavras começam a falhar. Talvez, enquanto você a
escuta, as suas palavras também sumam.
“Para mim, esse casamento acabou há dez anos”, ele revela.
“Você não quer dizer isso”, ela murmura. “Não posso acreditar que isso seja
verdade”.
Você observa que ela quase diz as próximas palavras para ela mesma, em vez de
falar a ele. “E os nossos lhos, nossas lembranças, nossa vida juntos em todos
esses anos?”
“Eu preciso respirar”, diz ele ao se levantar do sofá. “Já acabou para mim”.
Naquele momento, quando as suas palavras falham, você vê que ela faz algo
que nunca fez em quinze anos de casada.
O que um arremessador de beisebol faz quando o outro time rebate o seu
melhor arremesso? Onde é que o “trenzinho” vai quando enfrenta uma
montanha maior que todas as outras, íngreme demais para ser vencida? O que
acontece quando o trenzinho não consegue? Sem resposta, vendo-o
simplesmente se afastar e ir embora, sem palavras para fazê-lo parar, ela se
levanta, o agarra e tenta bloquear o caminho com seu corpo. Ele vai para um
lado, e ela também. As palavras dissolvem com a força de vontade.
“Eu não vou deixar você ir embora!”, ela grita.
“Deixa eu passar!”, ele grita, e começa a empurrá-la.
A consciência a chama. Ela deixa ele passar, mas depois cede novamente a
palavras que se multiplicam. Ela vai atrás dele pelo corredor, pela sala de estar,
até a porta da frente da casa.
“Me deixe em paz!”, ele grita, batendo a porta atrás dele.
“Eu não vou deixar você!”, ela berra atrás da porta.
“É isso mesmo!”, ele grita ao andar até o carro. “Eu é que estou deixando você!”
Temor e intimidação
É possível então começar a praticar o temor e a intimidação como estratégia de
liderança ou “cuidado pastoral”. Podemos começar a gritar, ameaçar, tentar
induzir verbalmente ou mesmo sicamente, e mesmo dar o tratamento silencioso
àqueles que estão na varanda.
O problema é que temor e intimidação funcionam enquanto a cura no
evangelho não for o nosso alvo. Lembro-me de um líder de ministério que lutava
com uma crise pessoal. Um presbítero foi incumbido de cuidar desse líder e
formou uma delegação o cial que se encontrasse com ele “para saber como
cuidar pastoralmente dele”. Mesmo que o alvo declarado fosse o cuidado pastoral,
a reunião falhou, tornando-se interrogatório, e acabou gerando acusações e
palavras duras da parte de todos. O presbítero compartilhou comigo sobre o
quanto se sentia mal sobre essa situação. Disse ele que cedeu à pressão de saber
que os outros envolvidos iram fazer perguntas muito duras, e teve de se certi car
de que nada casse sem ser revelado, a m de aplacá-los. Tendo em mente o
exame que fariam, ele chegou a apontar para o homem carente de ajuda, de cara
vermelha de intensidade, chamando-o de hipócrita. Conheço bem essa tentação.
Dentre nós que estamos no ministério pastoral, a maioria faz isso: buscamos a
aprovação de alguém, em nossa imaginação ou na realidade, em vez do evangelho
de Jesus, e tropeçamos.
O ponto principal é que o medo, a intimidação e as ameaças não consertam a
moça com anorexia que se encontra em posição fetal na varanda, enquanto sua
mãe e seu pai desmoronam numa avalanche de ansiedade.
Faça uma pausa aqui, por favor? Releia a última sentença.
Defensividade
A defensividade também não vai nos ajudar. Minha defensividade vem, em sua
maior parte, em estouros de emoção — lágrimas, súplicas, declarações fortes.
Outros se defendem redigindo listas calmamente. Os que fazem listas se
defendem do jeito que eu imagino que os sacerdotes da história do bom
samaritano devem ter feito. Seu pecado não era de comissão — algo que zeram.
O seu pecado era de omissão — algo que eles não zeram. Ao deixar o homem
surrado e alquebrado ao lado da estrada, poderiam facilmente ter se defendido.
Poderiam prontamente demonstrar que já tinham cumprido todo o dever
daquele dia sem jamais chamar atenção ao homem caído. A nal de contas, a sua
presença não estava dentro das suas responsabilidades normais. Se alguém
descobrisse o homem ferido, o que toma nota dos acontecimentos poderia ter
mostrado que eles não zeram nada de mal àquele homem, e os justi caria
respectivamente por haverem tratado do caso como zeram.
A primeira espécie de defensividade, o estouro emocional, é fácil de ver e faz
com que as outras pessoas se remexam para reassumir o controle. O segundo
tipo, documentação, funciona para manter todo mundo mais confortável,
aparentemente mais em controle, com detalhada defesa, e assim, nossa
capacidade de reconhecer esse substituto ao evangelho leva muito mais tempo.
De qualquer modo, a defensividade só prova o ponto do nosso
quebrantamento e exagera nossas falhas aos olhos dos outros, particularmente se
essas outras pessoas já enxergam aquilo que querem que seja verdadeiro a nosso
respeito, em vez do que realmente é verdade sobre nós. Defensividade não tem o
poder de cura.
Fico sentado por um tempo com um amigo. “A ira não produz o reino de
Deus”, ele me diz gentilmente. Ficamos sentados no silêncio tomando chá.
Sentamo-nos nas cinzas e esperamos juntos. Esperamos por Jesus. Aos poucos,
ele dá a força para nos aquietar quando a calúnia continua, silentes quando falam
mal de nós, con ando nossa reputação cada vez mais a ele e cada vez menos às
nossas palavras, emoções ou documentação.
Não fomos feitos para nos arrepender por não conseguirmos consertar todas
as coisas. Devemos nos arrepender por termos tentado. Mesmo que pudéssemos
ser Deus para as pessoas e consertar tudo, permanece o fato de que,
frequentemente, Jesus não tem em mente essa espécie de “conserto” que você e eu
desejamos.
As coisas inconsoláveis
Não se pode consertar as “coisas inconsoláveis”. As coisas inconsoláveis são
identi cadas primeiro pelos “não podes” do ensino de Jesus. Por exemplo, não
importa quem somos, “ninguém pode servir a dois senhores”, ninguém (Mt
6.24). Mesmo que sejamos sábios e, por sua graça, conhecedores, ainda há coisas
e estações na vida em que “não o podeis suportar agora” ( Jo 16.12). Por maior
que seja a força de vontade da pessoa, “Como não pode o ramo produzir fruto de
si mesmo, se não permanecer na videira, assim, nem vós o podeis dar, se não
permanecerdes em mim” ( Jo 15.4). Não importa quantos juramentos zermos
ou quanto torçamos as palavras em jactância, “não podes tornar um cabelo
branco ou preto”, Jesus diz (Mt 5.36).
Esses “não podes” de Jesus nos ensinam que a doença, morte, pobreza, e o
pecado que nos assedia e infesta o ser humano, não serão removidos com base no
esforço humano, por mais forte, piedoso ou sábio que seja seu esforço. Por isso é
que Jesus nos ensina que a fé do tamanho de um grão de mostarda pode mover
uma montanha e “nada vos será impossível” (Mt 17.20). Assim, levamos a fé ao
que nos perturba. Parece até que não há nada no mundo que não possa ser
consertado se tivermos a mínima semente da fé. Mas essa não é a conclusão que
Jesus nos mostra. Embora nada nos seja impossível pela fé, “os pobres, sempre os
tendes convosco”, Jesus diz (Mt 26.11). Surge o paradoxo. Quanto à pobreza,
não existe garantia ou decisão sempre a seu favor. Você tem de entrar na roda
com fé, sabendo que você não ganha do jeito que você quer.
Também não temos o poder de produzir as coisas que crescem. Por “coisas que
crescem”, eu me re ro ao fruto que nós, pelos nossos ministérios, esperamos
produzir. Não me entendam mal. Podemos realizar trabalho pastoral
signi cativo entre as coisas que importam, mas só Deus pode dar o crescimento
(1Co 3.6–7). Jesus nos ensina que o poder de dar salvação é inconsolável no que
nos diz respeito. Não podemos, por nós mesmos, dar às pessoas o novo
nascimento em Deus ( Jo 3.3–5). Não temos como justi car a alguém, torná-la
justa, santa, adotá-la, convencê-la do pecado ou transformar o seu coração (Lc
19.27; 1Co 12.3). Não existe nada que possamos fazer no ministério que não
requeira a ação de Deus, se o verdadeiro fruto for produzido ( Jo 15.5). Tudo que
os pastores esperam que ocorra na vida de uma pessoa com Deus permanece fora
do poder do próprio pastor.
Também não conseguimos consertar a ausência de paz do jeito que as pessoas
muitas vezes querem que façamos. Por quê? Porque Jesus dá a paz, mas não do
jeito do mundo ( Jo 14.27).
Conheci Estevão anos antes, em meu primeiro estudo bíblico na Casa de
Repouso Grand Village. Ele foi o único a assistir no meu primeiro dia. Eu estava
nervoso e com pressa de fazer uma oração para terminar rapidamente a reunião.
Mas esse dono de uma medalha Purple Heart (maior honra para o militar que se
destaca em serviço ao país) tinha em mente outras ideias. “Padre, eu não tenho
ido à igreja em mais de cinquenta anos”, ele me disse. Eu não era católico, mas
para este homem de noventa anos de idade eu era o “Padre”. “Deus nunca
poderia me perdoar por tudo que já z na vida”, disse ele, enquanto olhava além
de mim para um mundo que lhe causava dor. Naquele dia, a graça deu-me
palavras para falar de Jesus e seu perdão. Jesus atraiu Estevão para si.
Agora, Estevão estava no hospital. Suas mãos foram amarradas porque ele
cava arrancando os tubos dos braços. Estava preso a um mundo de alucinações.
Mandou que eu tomasse cuidado com o carteiro que estava ali no pé da cama,
querendo me prejudicar. Garanti a Estevão que estava tudo bem comigo. Disse a
ele que eu o amava. Ele não deu nenhuma indicação de que me ouvira. Estava
inquieto e gemia no mundo que imaginava. Fiquei ali sentado por longo tempo.
Cantei. Orei. Durante todo esse tempo, Estevão não me reconheceu. Então, na
hora em que eu ia embora, abaixei-me e disse: “Eu amo a você, Estevão”.
Ele atirou-me um olhar. O remexer-se, os gemidos e as ilusões deixaram seus
olhos. Por um momento ele me viu com clareza. “Eu te escutei da primeira vez!”,
declarou. Então, por mais um instante, olhamos um para o outro e nos vimos um
no outro. Esse momento passou, e a confusão voltou. Mas o amor se a rmava
ali, por entre as alucinações, e as mãos amarradas, e a mente que ia se perdendo.
Há uma espécie de paz que Jesus dá, que vai aonde outros tipos de força não
conseguem. Faz o que outras espécies de poder não podem.
O seu poder se encontra quando cantamos “Maravilhosa Graça” para uma
mulher numa casa de repouso, chiando no escuro, procurando respirar. Cantar
de sua graça faz com que os pulmões relaxem, e a respiração que mais fácil. A
morte não vai parar. Coisas inconsoláveis não cessarão, ainda não, por mais um
tempo. Mas chega a graça. Algo mais poderoso do que a morte canta ao seu lado
e segura a sua mão.
Não podemos fazer tudo o que precisa ser feito. Isso quer dizer que Jesus nos
ensinará a viver com as coisas que não podemos controlar nem consertar. Vamos
querer resistir a Jesus e agir como se fôssemos onipotentes, mas quando
tentamos isso, só ferimos aos outros e a nós mesmos. Outros também resistirão a
Jesus. Usando o seu nome, nos louvarão ou criticarão, nos promoverão ou
descartarão, de acordo com o seu desejo de que consertemos tudo por eles e que
o façamos imediatamente. Mas eles também precisarão aprender que só Jesus é
capaz de consertar todas as coisas, e que existem coisas que Jesus deixa sem
conserto para a sua glória.
Isso é excruciante, às vezes. Todo dia entramos em situações nas quais sabemos
não ter nenhum controle, em que é difícil colocar fé con ante em nossa única
esperança verdadeira, e que, neste desconfortável silêncio, Deus fará o que
somente ele é capaz de fazer conforme sua capacidade e seu amor. Não é de
surpreender que nos apressemos para consertar tudo. É tão menos humilhante
nos mexer, falar, fazer planos, e apressar-nos para agir, em vez de esperar um
pouco mais para ver; ou cair no chão, rasgar a roupa, e entrar na choradeira com
as pessoas. Mas chorar com as pessoas é o que Jesus nos conduz a fazer. Esperar
para ver o que Deus fará não é desperdício de tempo.
Eu havia acabado de dar a Eric a sua primeira Bíblia. Ele só havia orado em
nome de Jesus quatro ou cinco vezes em sua vida (e isso nos últimos dois dias!).
Um presbítero tinha parado para buscar alguma coisa para sua classe de escola
dominical. “Ei, Jason!”, eu disse ao presbítero.17 “Quero que você conheça o Eric,
um novo cristão. Estamos nos encontrando pela primeira vez hoje. Acabei de dar
ao Eric sua primeira bíblia”.
O presbítero apertou a mão do novo convertido e o cumprimentou. O que ele
disse em seguida me deixou boquiaberto. “Então, Eric”, disse ele. “Qual é a sua
opinião sobre o Catecismo Maior de Westminster, pergunta 109?”
Eric deu um sorriso vago e olhou para mim.
Lembro-me daquele momento de muito tempo atrás. Olho-o como um
espelho que me adverte e me faz uma pergunta. Como chegamos ao ponto de
esquecermos de que houve um tempo em que nós não conhecíamos o que era o
Evangelho de João, e muito menos sabíamos onde encontrá-lo na Bíblia ou como
deveríamos lê-lo quando o encontrássemos? O que faz com que nós cristãos, às
vezes, vejamos o crescimento no conhecimento como algo que nos faz diminuir,
julgar, confundir ou sobrecarregar uma pessoa que abre a sua primeira Bíblia
pela primeira vez? A resposta assombradora é que a serpente ainda nos sussurra
sua tentação: “Porque Deus sabe que no dia em que dele comerdes se vos abrirão
os olhos e, como Deus, sereis conhecedores. . .” (Gn 3.5).
Somos tentados a algo parecido com onisciência — a capacidade de saber tudo.
Mas não fomos chamados a nos arrepender por não sabermos todas as coisas.
Somos chamados a nos arrepender por tentarmos saber tudo.
Aprendizes
No seu Aprendiz de Feiticeiro, Goethe escreve sobre um mestre que deixa seu
jovem estudante cuidando das coisas. Ambicioso, o jovem aprendiz conclui que
está pronto para substituir seu mestre porque já “memorizou o que dizer e
fazer”.18 Os que conhecem a versão famosa desse poema feita pela Disney se
lembrarão da confusão e dos estragos resultantes. Embora tentasse imitar as
tarefas do mestre, ele não entendia o jeito do seu mestre nem a profundidade dos
poderes que estavam diante dele. Assim, todos os seus esforços só pioravam a
situação até que nalmente ele se humilhou, implorou que o mestre voltasse, e
recebeu de entrega socorro gracioso e poderoso.
É óbvio o ponto do poeta. A tentativa de acessar o poder de uma vocação
apenas pela memória e encantamento rapidamente resultará em grande
confusão.
A Bíblia concorda. Vários pregadores itinerantes viram o apóstolo Paulo
expulsar demônios e realizar milagres em Jesus. Eles pensaram em si mesmos e
concluíram que poderiam fazer igual ao que Paulo zera. Assim, quando
encontraram tais espíritos maus, esses pregadores imitaram o que tinham
observado.
“Esconjuro-vos por Jesus, a quem Paulo prega”, exclamou um deles. Mas o
espírito maligno lhes respondeu: “Conheço a Jesus e sei quem é Paulo; mas vós,
quem sois?” Imediatamente, os pregadores que tentaram praticar aquilo que
memorizaram, mas que não assumiram para si, foram atacados e fugiram
daquele lugar, feridos e nus (At 19.11–16).
O demônio era astuto. Reconhecia que não importava o quanto os pregadores
usassem palavras e ações semelhantes às de Jesus, a qualidade da autoridade,
vida, e ensino de Jesus estavam ausentes.
Nós também, dessa maneira, podemos usar mal o conhecimento. Em meus
primeiros dias de seminário, nós, alunos de uma classe intensiva de grego, nos
propusemos a uma pausa a m de orar uns pelos outros a cada dia. Não
demorou muito, e nessa rotina diária de nos reunirmos para a oração à sombra
de uma árvore de verão, um seminarista de último ano se aproximou de nós
ousadamente e nos repreendeu:
Irmãos, eu os advirto! É óbvio que vocês são orgulhosos e contumazes. Está na cara que querem
que o restante de nós veja como vocês são espirituais e santos. Eu sei. Eu também era novato no
seminário como vocês. Eu também queria exibir-me a todos, como vocês estão fazendo agora.
Mas eu estava errado, e vocês também estão! Jesus nos conclama a “entrarmos em nosso quarto
para orar”. Vocês se chamam de futuros pastores? Vocês têm do que se arrepender!
In ados
Frequentemente, o conhecimento dado com a intenção de nos ajudar apenas nos
incha (1Co 8.1–2), e o mal uso do zelo não é diferente disso. Nos Estados
Unidos, os saquinhos de batatas fritas são in ados. Mas quando se abre o saco,
ele se esvazia. O que parecia ser um saquinho cheio de batatas fritas na verdade
era mais um saco cheio de ar. Como crentes autênticos em Jesus, somos
suscetíveis a tornar-nos in ados e cheios de ar quente dessa forma (entre outras),
e especialmente os pastores. Nosso zelo com a novidade da fé pode exagerar
nosso conhecimento e o fazer in ado (1Tm 3.6).
Nosso zelo por controvérsia teológica, debates e discussão a m de demonstrar
nosso intelecto superior ou capacidade persuasiva sobre outros também nos in a
(1Tm 6.4).
“Dr. Pregador Conhecido” era um pastor que ajudava muita gente e às vezes
pregava apaixonadamente, com uma percepção profética, a respeito do
sofrimento pelo evangelho. Por alguns anos, houve um grupo de estudantes que
se modelavam como seus discípulos. Escutavam os seus sermões, liam os seus
livros e assistiam suas conferências (embora, que eu saiba, nenhum deles
conhecesse pessoalmente o “Dr. Pregador Conhecido”, exceto por um aperto de
mão numa conferência). Com forte paixão, pregavam na classe bíblica sobre o
sofrimento. Procuravam viver vidas mais ascéticas em seu campus do seminário.
Mas, por adotar apenas um aspecto da mensagem de seu mentor celebridade,
sem o contexto e a experiência pessoal de seus anos de trabalho pastoral em favor
das pessoas, na verdade, feriram colegas, julgaram mal os professores, criticando
fortemente a ambos, e isso no nome de Deus.
Pareciam cegos para o fato de que, apesar de todo o seu zelo, tinham, na
verdade, pregado apenas quatro sermões em sua vida. Encobriram o fato de que
nunca tinham servido um dia sequer como pastor em uma igreja. Eles rejeitaram
a verdade de que o que tinham aprendido ontem na sala de aula, o professor que
lhes ensinava vinha procurando fazer na vida e ministério antes de terem
nascido.
Jonathan Edwards observa: “Nada que pertença à experiência cristã é mais
suscetível a uma mistura corrupta do que o zelo”.19 Não é que desejemos menos
zelo. Pelo contrário, a vida e o ministério isento de sinceridade é como ter um
aquecedor que não funciona num dia frio, parado em uma sala úmida e fria. Nós
o acendemos, trêmulos e arrepiados, com os dedos dos pés carentes de
aquecimento, mas a ajuda não vem. Graças ao Senhor por jovens zelosos, tanto
homens quanto mulheres!
Mas um fogo não pode aquecer com segurança se não estiver à distância
correta de nós. Se carmos perto demais, em nome do aquecimento, seremos
queimamos. Nosso zelo deverá ser derivado “com discernimento” (Rm 10.2).
Quando Jesus diz seu “Ai” àqueles que usam mal a chave do conhecimento, ele
destaca os sinais que exibimos quando o conhecimento estiver indo por rumos
errados:
O conhecimento bíblico nos deixa analfabetos em termos da operação interior
de nossa alma (Lc 11.37–40).
O aprendizado que ganhamos deixa-nos ignorantes do verdadeiro amor por
Deus (Lc 11.42–44).
Apesar de todo nosso empenho acadêmico e erudição, permanecemos sem
prática de amor ao próximo, humildade, sabedoria, bem como dos dons que
realmente honram a Deus (Lc 11.45–51).
Somos inteligentes com as passagens bíblicas, mas sem habilidade em termos
do sentido ou signi cado dessas passagens no que diz respeito a Jesus. De fato,
noutro lugar Jesus fala a especialistas em Bíblia que eles conheciam as Escrituras
mas desconheciam aquele a quem a Bíblia aponta ( Jo 5.39). “Ai de vós,
intérpretes da Lei! Porque tomastes a chave da ciência; contudo, vós mesmos não
entrastes e impedistes os que estavam entrando” (Lc 11.52).
De acordo com Jesus, quando se trata de descrever a porta de Deus, tais
mestres da Bíblia eram especialistas credenciados em portas. Passavam os dias
ajuntando as pessoas para olhar essa porta, meticulosamente memorizando cada
linha, rachadura, canto, cor e detalhe. Contudo, de acordo com Jesus, esses
mestres e suas congregações possuíam um conhecimento especializado de uma
porta que eles mesmos não podiam abrir. Irônica e tragicamente, na verdade,
com o seu conhecimento eles tornavam inoperante a própria chave que tanto
propunham conhecer. Um velho pastor estava certo quando disse: “É possível
que desenvolvamos uma noção falsa do conhecimento”.20
Podemos participar de um estudo bíblico local durante anos. Podemos obter
graduação em um seminário ou cumprir um programa de aprendizado de um
ano na igreja local. Mas isso não quer dizer que sejamos capazes de iluminar em
vez de cegar, admoestar com calor em vez de chamuscar.
Conhecendo em parte
Certa vez eu desisti da lua. Era nal de tarde e as nuvens haviam sequestrado a
noite. Comandando o palco central, a lua iluminou con antemente o escuro
hemisfério. As crianças e eu assistimos à exibição pelos vidros de nossa van.
“O que é que você acha, Caleb?”, perguntei. “O que você pensa dessa lua?”
Caleb é meu caçula. Ele olhou atento para o céu. O luar o alcançava pela janela
e tocou levemente a sua bochecha esquerda. O pequeno Caleb nos surpreendeu a
todos.
“Quebrou, papai”, ele disse.
Com urgência repentina ele lançou o braço à frente e com o dedo apontou para
fora da janela. “Lua quebrada”, ele esclareceu.
Olhei de novo pela janela para o palco principal. “Ah, Caleb”, expliquei. “A lua
não está quebrada. É lua crescente”.
Caleb não entendia a palavra crescente, pois ela soava como nome de monstro.
Sua cara caiu, sério. Com cenho franzido ele implorava: “Conserta, Papai!”
Todos rimos alto. “Papai não consegue consertar a lua, amigão”, eu ria. “Ela
está longe demais e é grande demais”. Caleb olhou de novo pela janela e então
olhou para mim.
Sem hesitação, Caleb me tou rme e disse: “Papai, vai lá. Vai lá e conserta
lua!”
Meus olhos vieram ao encontro da expectação dos seus, e senti-me
desconcertado. Eu havia identi cado a lua como “crescente” e parara de dar
maiores observações. Mas Caleb não estava satisfeito com minha explanação
sobre qual tipo de lua era aquele. A luminária estava em sombras, e o pequeno
Caleb tentava entender as sombras. A lua que eu chamei de “crescente”, Caleb
chamou “quebrada”. Queria que ela fosse consertada, que casse inteira de novo.
O jeito como eu vi a lua, nomeei seu tipo e descartei dar mais atenção a ela (em
contraste ao jeito como Caleb olhou além do tipo de lua, para a própria lua)
expõe outro problema do conhecimento. “Se este fora profeta, bem saberia quem
e qual é a mulher que lhe tocou, porque é pecadora” (Lc 7.39).
Não é que seja errado em si mesmo conhecer em parte. De acordo com a
Bíblia, esse fariseu identi cou corretamente qual a espécie daquela mulher (Pv
7.1–21). Jesus igualmente possuía esse conhecimento. Ele também identi cou
corretamente a mulher como uma pecadora (Lc 7.48). Em relação à espécie de
mulher que ela era, o mestre e o aluno concordavam.
Note bem. Porque estamos certos quanto a alguma coisa não quer dizer que
estejamos certos quanto a tudo, e nem quanto àquilo que é mais importante.
O verdadeiro arrependimento acontece bem na frente desse fariseu, e ele não o
reconhece (v. 48). Ou ele não possui uma categoria para o arrependimento igual
à sua categoria para o pecado, ou, ainda que a possua, não tem experiência
quanto à sua aplicação.
Apesar de todo conhecimento de Deus, o tratamento relacional desse homem
quanto a Jesus está profundamente empobrecido (vv. 44–46). Ou ele não possui
uma categoria igualmente palpável de hospitalidade pessoal, ou ele tem, mas não
quer ou não pode aplicá-la.
Essa mulher está buscando perdão bem à sua frente, e ele não consegue
enxergar (vv. 41–43). Ou ele não tem um modo saudável de discernir o perdão,
ou o tem, mas está cego para sua incapacidade de colocá-lo em prática.
Verdadeiro amor a Deus e ao próximo está acontecendo bem à sua frente, e ele
o despreza, enquanto permanece cego à sua própria ausência de visão (v. 47). Ele
não possui um critério de nido para separar o que é o verdadeiro amor por Deus
e pelo próximo, ou não tem muito dele em seu próprio ser.
O propósito de saber
O que, a nal, senão o amor em Cristo, forja o propósito do nosso conhecimento
(Mt 22.38–39)? O presbítero tinha conhecimento do Catecismo Maior de
Westminster. O aluno veterano tinha conhecimento das palavras de Jesus a
respeito da oração em secreto. Eu tinha o conhecimento de seis semanas de aula
de grego. Mas cada um de nós lutava por relacionar-nos de maneira sã (ou seja, à
semelhança do amor de Jesus) com as pessoas à nossa frente. As Escrituras, em
Jesus, nos conduzem a “uma epistemologia de amor, um modo de saber que se
manifesta em amar”.21 “Assim, qualquer que pensa ter entendido as divinas
Escrituras ou qualquer parte delas, mas com esse conhecimento não consegue
edi car o amor de Deus e do próximo, ainda não terá obtido sucesso em
entendê-las.”22
No decorrer dos anos tenho tomado essas questões para a minha leitura da
Bíblia e pregação, como vacina contra essa espécie de conhecimento que se in a e
esquenta, mas não alcança aquilo que Jesus intenta.
• O que esta passagem mostra sobre a amabilidade de Deus? Ou, noutras
palavras, o que a respeito de Deus nesta passagem me conclama a amá-lo
mais?
• O que esta passagem me mostra a respeito das pessoas, e o que o amor
requer de mim em relação a elas?
• Sendo alguém que viu a misericórdia e o amor de Deus, que poder preciso da
parte dele para vencer os meus maiores obstáculos ao amor? O que, no amor
de Deus em Jesus, me dá esperança e provisão para minha própria falta de
amor?
Se algo que eu leio não parece amável, eu anoto, dou um passo para trás,
mantendo em mente aquilo que vi claramente em outras páginas da Bíblia. Sem
deixar de ver essas coisas belas, faço perguntas sobre o texto que não me parece
belo. Começo um diálogo com o Pai em Jesus sobre a beleza que ele vê ali, e em
um relacionamento de comunhão, con o que com o tempo ele, por seu Espírito,
me mostrará o que vê.
Conhecimento impaciente
No decorrer dos anos, na família do evangelicalismo norte-americano a que
pertenço, tem sido raro o ambiente da graça em que erros e pecados são
diferenciados e no qual é concedido o tempo necessário para que haja
crescimento em relação a ambos.
Imagine o “Rev. Autor Famoso”. Por muito tempo ele tem escrito sobre o
evangelho de Jesus de maneira verdadeira e útil para muitas pessoas. Mas em seu
mais recente livro ou postagem de blog, ao tentar tratar o evangelho em meio à
nossa cultura, parece ter errado quanto a um ensino fundamental. Isso é um
verdadeiro problema.
Apolo também teve este problema. Pregador talentoso de Jesus, ele precisou da
graciosa provisão de Priscila e Áquila para aprender. Eles o ouviram pregar.
Deram graças a Deus por isso. Cresceram através disso. Mas, ao mesmo tempo,
o convidaram para o jantar. Eles o ensinaram em particular. Fizeram
pessoalmente suas perguntas desa adoras (At 18.24–28). Foi dado a Apolo
espaço para crescer. Seu bom ensino não foi anulado por ele ter entendido
erradamente algumas coisas.
Com frequência, nós somos menos pacientes. Tomamos as discussões da alta
noite, os ataques de blogs, e dardos dos tuítes, como se a cultura, em vez de Jesus,
fosse nosso mestre. Dessa maneira, “Dr. Pregador Conhecido” e “Sr. Blogueiro
Nacional” imediata e publicamente castigam o “Rev. Autor Famoso” e se
distanciam de um relacionamento com ele.
Depois o “Erudito de Longa Carreira” e o “Dr. Pregador de Conferências”
oferecem uma resposta do tipo tudo ou nada, que age como se, ao cometer um
único erro, o “Rev. Autor Famoso” esteja todo errado e só tenha erros. Isso soa
mais como Jesus tratou os fariseus do que como ele tratou a Pedro, ou como foi
tratado Apolo. No mínimo, a sabedoria nos ensina que é necessário tempo para
determinar qual a postura do coração do irmão que está em erro.
Estou tentando dizer que existe algo sobre nossa forma de conhecimento que
luta contra manter duas verdades ao mesmo tempo: (1) “Rev. Autor Famoso”
está cometendo um erro fundamental com este aspecto de seu ensino; (2) “Rev.
Autor Famoso” ama a Jesus, o tem seguido elmente por muitos anos, tem
ajudado os éis, e precisa de nossa companhia e argumentação cordata para ter
uma oportunidade de crescer. (Quem sabe com essa espécie de companhia e
diálogo em família nós também aprendamos alguma coisa?)
Tenho nutrido a ideia sutil de que o crescimento no conhecimento signi ca
que eu dependa cada vez menos e controle cada vez mais. Porém, Jesus indica
justamente o oposto. O humilde sabe mais e não acha que sabe (conhece mais e o
desconhece).
O Pastor sabe-tudo em casa
Imagine como seria viver com seu pastor se ele fosse um sabe-tudo. O uso do seu
conhecimento de Deus o deixa in ado. Ele deixa as pessoas cegas de tanto
avaliar e de caras queimadas por tanto zelo. Por maior que seja o zelo pela Bíblia,
você não consegue se lembrar da última vez que soube o que é sentir-se
compreendido, prezado, conhecido ou amado com profundidade.
Frequentemente você tem sido corrigido, até mesmo com brandura e
razoabilidade, por que você errou de novo, e não ele. Não consegue se lembrar da
última vez que ele lhe presenteou com a humilde dignidade de dizer: “Sinto
muito. Eu estava errado e você estava certo”.
Temos medo de desejos humildes.
Resistimos ser como criaturas e seres humanos.
Esquecemo-nos de quem éramos outrora e a maneira pela qual Jesus nos amou
e andou conosco antes que conhecêssemos muita coisa, mesmo lá naquele tempo
quando tudo o que sabíamos estava fora dos eixos.
Aos poucos, o jovem estudante de seminário suspeita da imaturidade de sua
esposa porque ela não conhece nem sabe agir de certo modo teológico, mesmo
que ele mesmo nunca tivesse ouvido falar sobre o assunto até a aula da tarde
passada.
O pastor impacientemente exige que seus lhos saibam, creiam e façam o que
levou vinte e cinco ou quarenta e cinco anos com Jesus para saber, crer e fazer.
Como é que em sua própria vida de prática erros ele tem se endurecido, em vez
de amolecido a sua compaixão, visto que ele mesmo tem necessidade de tanta
graça?
Conclusão
Alguém me ouvirá e dirá: “Certo! Não precisamos do conhecimento bíblico; só
precisamos de Jesus!”
Mas não é isto que estou a rmando. Tal sentimento em si já é um meio de
conhecimento. Raramente é sábio sugerir que possamos conhecer a Jesus sem
pelo menos alguns retalhos do que suas palavras nos revelam a seu respeito.
Em vez disso, estou falando sobre conhecer de acordo com o que Jesus diz que
o conhecimento é. Nosso trabalho pastoral precisa dessa mentoria. Ele é quem
retorna, o Bom Pastor. Ele conhece as suas ovelhas — incluindo aquela mulher
destacada pelo mestre de Bíblia. Mas de que modo ele a conhece? Ele a conhece
pelo nome. Ele a chama, vai diante dela, a conduz para fora. Ele é o seu portal
para os pastos verdes de descanso. Ele está junto dela no meio de problemas,
necessidades, vulnerabilidades e dignidade. Ele dá a sua vida por suas ovelhas ( Jo
10.2–4). Ela é conhecida de tal forma que aprendeu a conhecer algo também —
ela conhece a sua voz, o seu caminho a seguir. Nossa esperança não está em que
saibamos tudo, mas que o nosso Pastor conheça.
“Conhecimento parcial” é o endereço da rua em que cada um de nós tem de
construir a vida (1Co 13.12). Assim, comece cada dia admitindo isto: com
relação a cada pessoa, pedacinho da criação e circunstância que me encontro
hoje, tenho de dizer a Deus, “Estou no escuro” e “fui ensinado a distorcer aquilo
que está diante de meus olhos”. Tenho de me lembrar que quando subo ao
púlpito, co ao lado de um leito hospitalar, faço uma caminhada ou me assento
em minha poltrona para aconselhar outra pessoa, sicamente eu vejo pessoas e
coisas como na penumbra. A oração de Josafá se torna nossa. “Não sabemos nós
o que fazer; porém os nossos olhos estão postos em ti” (2Cr 20.12).
Receba a oração de Paulo e a faça novamente:
Por esta causa, me ponho de joelhos diante do Pai, de quem toma o nome toda família, tanto no
céu como sobre a terra, para que, segundo a riqueza da sua glória, vos conceda que sejais
fortalecidos com poder, mediante o seu Espírito no homem interior; e, assim, habite Cristo no
vosso coração, pela fé, estando vós arraigados e alicerçados em amor, a m de poderdes
compreender, com todos os santos, qual é a largura, e o comprimento, e a altura, e a profundidade
e conhecer o amor de Cristo, que excede todo entendimento, para que sejais tomados de toda a
plenitude de Deus. Ora, àquele que é poderoso para fazer in nitamente mais do que tudo quanto
pedimos ou pensamos, conforme o seu poder que opera em nós, a ele seja a glória, na igreja e em
Cristo Jesus, por todas as gerações, para todo o sempre. Amém! (Ef 3.14–21).
A atração da pressa
Para começar, tínhamos de aprender o que o trabalho pastoral realmente requer.
Eugene Peterson termina a citação que mencionei anteriormente da seguinte
maneira:
Penso que o pecado que mais atinge os pastores, especialmente os pastores evangélicos, é a
impaciência. Temos um alvo. Temos uma missão. Vamos salvar o mundo. Vamos evangelizar a
todos, e vamos fazer muitas coisas boas para encher as nossas igrejas. Isto é maravilhoso. Todos os
objetivos estão certos. Mas essa obra de trabalhar com as almas é um trabalho vagaroso, que anda
bem devagar ... e camos impacientes e começamos a tomar atalhos para encurtar o caminho.23
“Ande”, dissemos a meu lhinho de um ano e pouco, que queria correr com
seus amiguinhos ao lado da piscina pública. Eu o oriento a ir mais devagar, não
porque quero que ele perca suas marcas, mas exatamente porque indo mais
devagar ele terá melhores chances de realmente atingir o marco.
Assim, é possível descrever pressa como “o sentimento de estar atrasado” ou
“achar que temos de correr”. Onde quer que estejamos, é como se estivéssemos
com coceira para ir embora. Temos outro lugar em que devemos estar, e onde
estamos nunca é aquele lugar. Nós constantemente sentimos que estamos
perdendo algo, perdendo nossa chance, ou abrindo mão daquilo que poderíamos
ter se pudéssemos chegar lá antes da areia da ampulheta acabar. No nosso caso,
primeiro tínhamos de avaliar por que achávamos estar perdendo alguma coisa.
1) Para começar, a pressa faz parte do ar que respiramos. Ainda que devagar na
Bíblia seja mais usado para descrever o bom caráter de Deus (tardio para se irar),
para a maioria de nós, devagar é igual a desperdício ou desrespeito.
2) O passado de nossa igreja especí ca. Antigamente, a nossa igreja tinha sido
popular, ou seja, isso foi antes de nossa divisão. Estávamos progredindo na
comunidade, e cresciam as conversas sobre as coisas que Deus estava fazendo
entre nós. As orações das pessoas que deixaram o conforto de uma igreja de
origem para começar este novo trabalho evangelístico estavam sendo
respondidas. Mas então, veio uma fratura devastadora entre gente boa, e isso
saqueou grande parte do que tínhamos. Quando eu cheguei, havia um desejo
palpável de obter de volta aquilo que tinha sido perdido. Mas a essa altura, eu
estava na quarta liderança pastoral em seis anos. Nos primeiros meses, cinco
casamentos se des zeram, dois grupos de pessoas caluniaram e arruinaram os
relacionamentos, e um grupo nos lares implodiu de forma totalmente perniciosa.
Estávamos agora fazendo perguntas difíceis e con ssões. Se a nossa
popularidade realmente fosse sinônimo de saúde da igreja, como é que nossos
relacionamentos internos remavam tão prontamente para a divisão e fraturas?
Um anseio por avivamento imediato e um retorno poderá nos tentar a dizer não
à paciência e sim aos atalhos.
3) Não estávamos longe da igreja de maior “sucesso” na cidade. Na mesma rua,
um pouco mais para baixo, há uma igreja que cresceu depressa e grandemente.
Hoje seus recursos estão espalhados por toda a cidade. Alguns achavam que
estávamos a caminho de ser iguais àquela igreja. Outros se entristeceram porque
muitos do nosso povo saíram e foram para lá. Outros se irritaram ou zangaram-
se, cando inseguros, sentindo como uma loja pequena de proprietário local na
presença de uma rede gigante, tentando competir quando a loja da rede constrói
cada vez mais ao redor da nossa. Embora a maioria das igrejas na América do
Norte não seja desse tamanho nem cresça tão depressa, o restante de nós é
tentado a acreditar que a sua história, e não a nossa, é a norma para o mundo
evangélico. Medir-nos pela igreja da mesma rua pode nos tentar a acreditar que
camos para trás e fomos ultrapassados. Começamos a nos apressar, medindo-
nos pelo chamado deles, e não pelo nosso.
4) Eu fui considerado um grande negócio. Olhando para trás, somos humilhados
pelos exageros que faziam a meu respeito também. O pastor anterior era meu
amigo. Nosso coração batia no mesmo ritmo. Em nossa comunidade eu era um
peixe de tamanho médio num lago pequeno. Chegou o “Dr. Eswine”. Todo
mundo esperava que grandes coisas acontecessem. Quem sabe a mentalidade
pró-celebridades que infecta nossa cultura geral estivesse nos fazendo tropeçar. A
presença de um líder que atrai as pessoas pode nos tentar a negligenciar o que a
paciência normal no trabalho pastoral requer, não importa quem sejamos.
5) Nosso coração pelo evangelho excedia as nossas habilidades com o evangelho.
Essa igreja é realmente notável. Fez o que poucos fariam. Chamou para ser seu
pastor um pai que tem cuidado sozinho de seus três lhos. Tentando recuar do
processo de candidatura, eu lhes dissera: “Não sei ser pai solteiro e pastor ao
mesmo tempo”. Eles responderam: “Nós também não sabemos, mas vamos
aprender juntos”. Falarei mais a esse respeito mais adiante. Mas para agora, basta
dizer que éramos como missionários estrangeiros que, depois de um ano, cam a
se perguntar em que loucura estiveram pensando. O que esse compromisso na
verdade requereu de todos nós em amar uns aos outros foi mais real e tangível do
que a graça que sonhávamos oferecer. Anote bem isto aqui: fazer a transição de
uma declaração de visão missional de amor ao próximo para o verdadeiro amor
ao próximo pode nos tentar a desistir com impaciência e procurar por atalhos.
Tivemos de encontrar um paradigma diferente.
Havia certa vez um homem que se importava tanto com as árvores que viajava
constantemente em favor delas. Porém, enquanto educava por toda parte e
cuidava pessoalmente de arvores infectadas, de longe e de perto, de tempos em
tempos as tempestades e os enxames varriam a cidade desse homem. As rojadas
sopraram e derrubaram os pinheiros e carvalhos de seu bairro. Suas raízes locais
acabaram ocas e enfraquecidas pela podridão. Enquanto era respeitado e muito
ocupado dispensando sabedoria para a casca e a folha, as árvores do quintal
daquele homem estavam tombando. Ninguém estava lá para cuidar delas.
Desintoxicação
Quando Jesus começa a nos livrar da tentativa de consertar tudo, saber tudo,
estar em todo lugar para todos, o mais rápido e da forma mais notória possível,
encontramo-nos em situação difícil. Muitas vezes nos encontramos naquilo que,
nos velhos tempos, chamavam de “noite escura da alma”.24 Temos de voltar para
casa e cuidar de nossas próprias raízes. A ausência de movimento nos
desestabiliza. Uma espécie de detox espiritual toma lugar. Somos como fumantes
que tentam parar de fumar. Resmungamos e andamos de lá para cá, inquietos.
Até agora, por exemplo, se procurou estar em todo lugar para todos, você
conseguiu passar cada dia utilizando telas tecnológicas, mídia social, e-mail e
telefones, assistindo a mais uma reunião, apoiando mais outra causa ou agenda,
de novo. Inveja, cobiça e autopromoção estão sempre à espreita aqui. Muitas
pessoas o têm aplaudido por sempre estar dando-lhes apoio. Mas isso também
fez com que as pessoas se sentissem presas a você por sua presença pegajosa,
arrogante, por sua constante autopromoção, ou se sentissem não con áveis se
tentassem fazer alguma coisa sem você. As pessoas de casa sentiam que você as
deixava para trás ou sentiam-se abandonadas por sua necessidade de sempre
estar em algum lugar que não onde e com quem você estava. Essa carência
sombria e crescente por precisarem de você é mais aparente para elas do que para
você.
Se você tem se caracterizado como sabe-tudo, até agora habitualmente passa o
dia dependendo do noticiário, das manchetes, dos blogs, livros, palavras,
teologias, comentários, conferências, vídeos, bibliotecas, apresentações de
televisão, conversas ou salas de estudo. Ser conhecedor das respostas e daqueles
que respondem é o que você usa para passar o dia e fazer funcionar o seu
ministério. A fofoca, a maledicência e a arrogância também têm espreitado por
aqui. As pessoas amam isso e o elogiam pelo seu modo de manter as suas
respostas ao mundo claras e diretas. Porém, outros começam a se sentir mais
usados do que conhecidos por você. Aprenderam que não podem discordar de
você. Em algum ponto da linha, simplesmente pararam de tentar contribuir com
seus pensamentos. Você perdeu a capacidade de car quieto quando outra
pessoa tem um pensamento a contribuir. Mesmo que concordem com você, é
difícil imaginar deixar que saiam em frente, sem ter certeza de que estão levando
com eles os pensamentos que você emitiu.
Tentados a consertar tudo, camos acostumados a reagir febrilmente,
impacientes para encontrar algo, qualquer coisa que constantemente impeça as
pessoas que nos incomodam. Conseguimos passar cada dia com fortes emoções,
quando não passividade manipulativa veloz e com estardalhaço, junto a uma
constante recriação (“re-creação”) de programas, slogans, sinais, palavras, pessoas
em sua equipe e até mesmo do jeito de arranjar as cadeiras para resolver
problemas. As pessoas têm amado o jeito que você sempre as manteve se
mexendo com os passos que necessitam par resistir ao desconforto. Mas a
impaciência também tem espreitado por aqui. Você começa a se utilizar de raiva
irre etida, medo, tristeza ou interrupções. As pessoas começam a se sentir
emocionalmente agitadas, na roda-viva, insu cientemente ocupadas, e incapazes
de fazer o bastante para tornar as coisas boas para você. Mesmo quando estão
bem emocionalmente, você não consegue acreditar. Perdeu a sua capacidade de
lidar com emoções negativas e começa a encontrar soluções onde não existem
problemas. Feito para uma crise, não sabe o que fazer em tempo de paz porque
você mesmo pouco sabe sobre paz e quietude. Eventualmente, as pessoas
começam a guardar para si os seus próprios problemas.
Você não somente transmitiu elmente o bom conteúdo do evangelho, como
também percebe que transmitiu o desconforto mal dirigido de tentar ser como
Deus. Em Cristo, você sabe que é hora de deixar de lado todo esse aparato. Mas
são duas e quinze da tarde de quarta-feira. A coisa parece pior antes de car
melhor. Nos próximos sessenta minutos nada dessa lista vai ajudá-lo, e você
sente o desconforto da saúde.
Olhe para a tela (TV, computador, fone, tablet, aparelho); veri que a mídia social; veri que seus
e-mails; compre qualquer coisa; faça um telefonema; cheque a sua agenda; encontre qualquer
pessoa a não ser sua esposa e lhos; participe de uma reunião; veri que o noticiário; leia um livro;
veri que uma postagem de um blog; vá até a biblioteca; vá a uma loja de café; escute um podcast;
prepare um sermão; prepare um estudo bíblico; jogue um jogo; use um aplicativo; crie um
programa de ministério; avalie um método; mexa com a declaração de visão; elabore um folheto;
mexa com os móveis ou cartazes; mude o logotipo ou algum cartaz; veri que seu orçamento;
ponha a sua ira ou seu temor ou tristeza sobre outra pessoa; diga a primeira coisa que vem à
cabeça; expresse a primeira emoção que sente; coma ou beba ou fale com as pessoas; procure o
noticiário.
Se você não consegue fazer qualquer dessas coisas nos próximos sessenta
minutos, o que sobra para fazer? Não é que tais coisas sejam ruins. Já vimos que
ajudam. Mas quando elas se tornam aquilo que impulsiona o nosso tempo em
vez de suporte para quando estamos à espera, perdemos de vista o jogo que
fomos chamados a jogar. Tire as muletas e temos de aprender a andar de novo.
Mas como? Primeiro, temos de voltar a uma vida centrada em Deus.
Interrompendo a Deus
Meus lhos gostam da brincadeira da “vaca interruptora”. Na brincadeira, a vaca
sempre faz “muuu” quando a outra pessoa começa a falar. A vaca é impaciente.
Não pode esperar. Ela interrompe com a voz certa na hora errada, para que
aquilo que a outra pessoa vá dizer nunca seja ouvido.
Você e eu temos de confessar que nós, os sabe-tudo, conserta-tudo e em-todo-
lugar-para-todos somos as vacas interruptoras. Mas as nossas interrupções não
são brincadeira. Com toda a nossa atividade ministerial de erroneamente tentar
ser como Deus, na verdade tornamos difícil para as pessoas ver ou escutá-lo.
Calvino deixou isso bem claro. Assustei-me na primeira vez que li isso:
Não ouvimos Deus falando a nós com calma, quando pensamos que somos muito sábios, mas,
por nossa pressa, o interrompemos quando ele se dirige a nós… e, sem dúvida, ninguém pode ser
verdadeiro discípulo de Deus, a não ser que o escute em silêncio. Porém, ele não requer o silêncio
da escola de Pitágoras, de modo a mostrar que não é certo inquirir sempre que desejamos
aprender o que é necessário ser conhecido; mas ele quer somente nos corrigir e restringir nossa
presunção, para que não, como acontece comumente, o interrompamos despropositadamente, e
para que quando ele abrir sua sagrada boca, possamos abrir para ele nossos corações e ouvidos, e
não impedir que ele nos fale.25
Temos de estudar para sermos quietos... Os homens, na maioria, são ambiciosos da honra de
grandes empreitas, e poder, e preferências; eles as cobiçam, eles as cortejam, eles atravessam mar e
terra para obtê-las; porém, a ambição do cristão deverá ser desenvolvida em direção à quietude.32
A quietude é um meio da graça de Deus. Dentro dela, Deus nos mostra nossa
pobreza interna e nossas ambições mal dirigidas. Ele esperou pacientemente,
com calmo coração, enquanto nós fervilhávamos nossa vida com tempestades e
espumas, constantemente o interrompendo. Agora que nalmente estamos em
silêncio, ele tem cura para proclamar, consertos a realizar. Ficamos agarrados no
conserto dos outros, no saber e ser tudo e no estar em todo lugar o mais depressa
possível, com a maior fama possível, como o pequenino que não consegue passar
um dia sequer sem seu cobertorzinho de consolo. Mas chega uma hora quando a
criança tem de amadurecer em sua sabedoria e aprender a dormir sem ele. A
primeira noite e dia tentando fazer isso é uma horrível desintoxicação. Mas logo
vem o descanso, e a liberdade abençoa a todos na casa.
As provocações de um pastor
A este respeito, dois velhos pastores e um mais jovem nos dão bom conselho
sobre nosso processo de desintoxicação. Sei muito bem que cada um desses
pastores mais velhos era imperfeito; também, que eles talvez representem
tradições das quais você discorde. Mas ser um pastor imperfeito, ou até mesmo
profundamente errado, não é sinal de não ter nada certo ou bom em Cristo para
nos dizer. Vejo isto toda vez que prego. Então, continue escutando se puder.
Temos ajuda sábia aqui.
1) Os limites do seu chamado revelam o cuidado pastoral de Deus por você.
João Calvino quer que saibamos que para nos proteger de virar nossa vida de
cabeça para baixo com as ansiedades, empenhos, anseios mal dirigidos, arfadas e
colisões precipitadas, “cada indivíduo tem sua própria espécie de vida designada a
ele pelo Senhor, como uma espécie de posto de sentinela, para que ele não
vagueie sem rumo e sem cuidado”.40
É quarta-feira, duas da tarde. Você tenta se aquietar. Mas então você imagina o
chamado de outra pessoa e queria que tivesse o mesmo chamado dela. Você tenta
atravessar os limites de suas atribuições e ajunta para si as responsabilidades dela
também. A calma não se encontra aqui. Não por muito tempo. Abra mão disso.
Con e na paz de Deus para você. Não é “pequeno alívio dos cuidados, labores,
problemas e fardos para um homem saber que Deus” tem dado a ele esse posto
especí co de sentinela neste tempo. Ao se libertar de tentar fazer algo que Deus
não pediu que você zesse, ele quer que você experimente sua contente
“consolação”. Saber que essa posição lhe foi dada por Deus o torna capaz de
“suportar e engolir o desconforto, a vexação, o cansaço e as ansiedades em seu
modo de vida”, pois pelo menos você está “persuadido que este fardo foi
colocado” sobre você “por Deus”.41
Noutras palavras, até mesmo a vocação pastoral faz parte do cuidado pastoral
de Deus por aqueles a quem ele chamou. Assim, estou em meu escritório em
Webster Groves na segunda de manhã. Os céus estão nublados com chuva e
gelo, a semana começa gelada. Ao contrário de fazer outra coisa grandiosa que
imagino para mim, Jesus também está aqui vestindo seu casaco de frio. Estava
acordado antes de mim. Tem trabalho para ser feito nessa cidade do Missouri.
Por seus propósitos, ele me chamou, e não você, para entrar nesse trabalho cheio
de alegrias e de lágrimas com ele. Se ele é quem chamou, o trabalho deve ser
importante. Se eu sou a pessoa para fazer isso, deve haver uma razão sábia. Isso
quer dizer que tenho trabalho que é importante para fazer, mesmo se em toda a
minha vida eu nunca conseguir fazer o trabalho que você realiza — o trabalho
valioso que você tem para fazer ali fora e que às vezes eu, irrequieto e ingênuo,
imagino que me faria mais feliz ou mais signi cante. Por favor, me perdoe.
Tenho orações a fazer por pessoas sobre as quais você nunca ouviu falar. É
melhor eu continuar com essa boa obra do dia. É melhor você também continuar
com o que você tem a fazer.
2) Ao tentar tanto não perder nada, na verdade produzimos aquilo que tememos.
João Cassiano descreve ministros inquietos não só pelo chamado dos outros
como também por seus dons. “Eles ouvem pessoas, as quais são comentadas,
devido ao zelo ou virtude que não a sua própria”.42 Qualquer coisa que outro
ministro faz bem torna-se ocasião, não para nossa gratidão a Deus pelo outro
ministro e pela causa do evangelho em nossa geração, mas para torcermos as
mãos e nos pressionar porque agora teremos de igualar ou fazer melhor aquilo
que o outro ministro consegue fazer. Se nós não conseguirmos realizar o que
todos os outros fazem o tempo todo, acreditamos que de alguma forma somos
fracos no ministério. Quando tentamos agarrar os dons que Deus não nos deu,
perdemos a calma e aumentamos nosso “tumulto espiritual”, desejando
inquietamente “assumir buscas diferentes de” nossa própria tarefa. Porém, essa
inquietação é “perigo mortal” a nal, “às vezes acontece que aquilo que alguns
fazem corretamente, outros imitam erradamente”.43
Portanto, lembre-se: “é impossível que um único homem brilhe com destaque”
em todos os dons dados na lista de Paulo. “Se alguém tenta buscar todos esses
dons simultaneamente, necessariamente acontece que, ao correr atrás de todos,
não recebe realmente nenhum deles, e nessa mudança e variedade constante,
obtém-se perdas e não ganhos”.44 Noutras palavras, perdemos todo dom
agradável que Deus já tinha para nós. Não enxergamos tais deleites porque eles
já estão diante de nós.
3) Menor sempre é melhor do que maior, a não ser que, e somente no caso em que
Deus nos impulsione.
Perdemos o descanso da alma quando acreditamos que o maior é sempre
melhor. A serpente nos tenta a acreditar que alguns lugares são mais importantes
que outros, que algumas pessoas são mais signi cantes que outras, e que nossas
estratégias e nossos dons são respostas mais valiosas do que o sábio chamado de
Deus.
Mas em Lucas 14.7–11, Jesus instrui aos que o seguem que busquem os
lugares mais baixos à mesa, não os mais altos. Francis Schae er aponta que
muitos pastores acreditam no oposto do que Jesus ensina. Em nosso modo de
pensar, “somos tentados a dizer: ‘Tomarei o lugar mais alto porque isso me dará
mais in uência por Jesus Cristo”. Mas Jesus nos ensina que devemos tomar o
lugar mais baixo, a não ser que o próprio Senhor nos desloque para o maior.45
Somos tentados a assumir algo “grande” a nossos olhos ou aos olhos de outros
em nome de Deus, perdendo-o totalmente de vista. O lugar menor não somente
nos torna capazes de tomar lugar à mesa com gratidão e humildade, como
também nos capacita a sentarmo-nos diariamente à sua presença, comer do seu
alimento, ouvir suas palavras, alegrarmo-nos nele. Quem iria querer deixar este
lugar? Assumimos papéis maiores sem termos força para tanto, a não ser para
desapontar as pessoas importantes que esperam por nós ali. A nal de contas, se
formos para a posição maior, faremos isso rebaixando-as para que nós e elas
ainda possamos escutar a Deus. Então, tome o assento menor, o assento que lhe
permite tal presença com Jesus, em vez daquele lugar que tiraria de você essa
calma. Somente vá até lá se aquele que chama estiver indo com você. Somente vá
até lá se você estiver pronto, não importa o tamanho do lugar, para permanecer
em seu compromisso com os menores, com as coisas que geralmente são
despercebidas em Jesus.
A maioria de nós não possui categoria para aquilo que acabei de dizer. Na
maior parte de meu ministério pastoral, eu também não tinha. Precisamos de
ajuda, e o socorro vem. Os pastores precisam do pobre homem sábio.
Entregadores esquecidos
Em Eclesiastes 9.13-16 lemos a história de um pobre homem sábio que certa vez
libertou uma cidade pequena, com pequena população, de ser violentamente
tomada por um rei arrogante. O rei e o seu exército atacaram, viram a pobreza
daquele homem e o consideraram irrelevante, não prestando atenção a ele. Mas
esse poderoso rei subestimara a sabedoria. O rei foi logrado pelo pobre homem
sábio e foi derrotado. O pequeno grupo de pessoas e seu pequeno lugar no
mundo foram salvos!
O que você supõe que aconteceu em seguida? Eu imaginei uma história de
pobreza para riqueza, em que esse homem que livrou a cidade se tornou célebre.
Mas nessa história bíblica, aquilo que muitos de nós tememos aconteceu mesmo.
A cidade esqueceu-se dele. Esta não era uma plataforma para maior relevância.
Não é necessário dizer que para mim este não foi um texto de teologia pastoral
no começo de meu ministério. Você pode me culpar? Observe o obituário.
Toda sua vida, ele viveu com muito pouco, em um pequeno lugar, no meio de
pequeno número de pessoas, fazendo um bem que ninguém lembrava.
Mas note o que Deus fala a respeito desse pobre homem sábio e sua vida de
vitórias não lembradas: “melhor é a sabedoria do que a força, ainda que a
sabedoria do pobre é desprezada, e as suas palavras não são ouvidas. As palavras
dos sábios, ouvidas em silêncio, valem mais do que os gritos de quem governa
entre tolos” (Ec 9.16–17). Leia de novo, sim?
O rei, como a loucura, era barulhento. Fazia alarde de sua fama (grande),
posição (rei), recursos visíveis (levantou grandes baluartes), poder (força), e
seguidores (sitiou a cidade) (Ec 9.14).
Em contraste, o homem que ouviu em silêncio, esse homem de Deus, era
pobre. Um homem pobre só possui seu próprio e humilde ser a oferecer. Não há
gritaria em sua aparência. Neste caso, sua pobreza era física, não emocional ou
mental. Sua falta tinha a ver com bens materiais e aparências, não substância ou
graça.
A obra pastoral requer presença. Quer sejamos introvertidos ou extrovertidos,
rurais ou urbanos, de grandes igrejas ou igrejinhas pequenas, nossa tentação de
resistir à presença humilde permanece a mesma. Somos propensos, erradamente,
a seguir o grande governante nessa história sobre sabedoria do que seguir o
pobre homem sábio. Nós nos apresentamos como quem conserta as coisas, sabe
das coisas, que está em todo lugar e é rápido para curar. Mas o sábio de
Eclesiastes nos redireciona. A pobreza do homem sábio signi ca que não
podemos usá-lo por seu dinheiro, status, posição política, poder, realizações, ou
pessoas que ele possa conhecer, as quais poderão ajudar com as conexões e rede
de contatos com outras pessoas. Não há nada que esse homem possa nos
oferecer no mundo, exceto seu testemunho de Deus, a integridade de seu
caminho e a graça em sua vida. Essas duas diferentes maneiras de ser
representam dois poderes contrastantes para nossa con ança — o poder da
estultícia versus o poder da sabedoria. Sabedoria é encontrada na presença
humilde do pobre homem. Assim também, o poder de Deus.
Agora eu me encontro pedindo a Deus nos domingos pela manhã: “Senhor,
livra-me de orar e pregar nalguma espécie de voz de pregador. Salva-me para que
eu ore e pregue com a voz que tu ouves nas vigílias da noite ou no dia em que
clamo a ti e não há mais ninguém por perto.”
Também estou pedindo a Deus que me livre de achar que eu deva oferecer
engano com minha presença, para que eu seja bem-sucedido no ministério do
evangelho. Peço a resistência de ser esquecido, até mesmo na igreja, por aqueles
que não estavam buscando o que é humildemente sábio. Estou pedindo isso
porque não tenho capacidade em mim mesmo de fazer qualquer dessas coisas.
Mas Jesus tem. Embora ele fosse alguém de quem “os homens escondem o rosto”,
ele carregava sobre si as nossas dores, levando nossas tristezas, sendo ferido por
nossas transgressões, e moído por nossas iniquidades. Do nosso tolo ponto de
vista, nós o “reputávamos por a ito, ferido de Deus e oprimido”, e buscávamos
salvação em outro lugar. Mas o castigo que nos trouxe a paz estava realmente
sobre ele o tempo todo, e por suas pisaduras somos sarados — mesmo aqueles
entre nós que éramos como ovelhas desviadas do caminho (Is 53.3–6)! Jesus é o
pobre homem sábio, a nal de contas, não é mesmo? O pobre que libertou
aqueles que se esqueceram dele. Ele salvou nossa cidade no silêncio, e nos
conclama a uma relevância de uma espécie diferente.
Um propósito diferente
Quando fazemos do estudo da quietude a nossa ambição, e propomos nos tornar
pregadores que escutam entre as coisas que têm importância, surge um problema
severo para nossa abordagem ao ministério. Se nosso propósito como pastores
for realizar grandes coisas de maneira notória, o mais depressa possível, para que
todos se mobilizem a fazer grandes coisas, consertando tudo, sabendo tudo e
estando em todo lugar para Deus, esse nosso propósito e a quietude estão em
contraposição.
Tenho necessidade de ver como o estudo da quietude e da vocação pastoral
andam juntos. Encontrei ajuda em Isaías 50. Destaco o versículo 4:
OS Deus me deu língua de eruditos, para que eu saiba dizer boa palavra ao cansado. Ele
me desperta todas as manhãs, desperta-me o ouvido para que eu ouça como os eruditos.
Nosso tema do último capítulo volta aqui. Deus é quem toma a iniciativa. Ele
nos desperta a cada dia. Ele nos ensina na solidão a falar a outros como quem foi
ensinado. Falamos como aqueles que escutam diariamente a Deus. Mas por que
este servo sofredor acorda e escuta no ritmo matutino a iniciativa de Deus? Ele
nos diz claramente: “para que eu saiba dizer boa palavra ao cansado”.
Os cansados estão no m da linha. Não lhes restam recursos que os sustentem.
Do que precisam essas pessoas “cansadas” e “exaustas”? Saber que existe alguém
que “faz forte ao cansado e multiplica as forças ao que não tem nenhum vigor...
os que esperam no S renovam as suas forças, sobem com asas como
águias, correm e não se cansam, caminham e não se fatigam” (Is 40.28–31).
Jesus cumpre e assume essa conversa. Como servo sofredor, aprendeu
diariamente do Pai como fazê-lo, e o fez (Mt 11.28–30). A presença hospitaleira
(sustentando aquele que está cansado) é possibilitada pela solitude do coração
com Deus (a cada manhã ele me acorda).
O apóstolo Paulo aprendeu de Jesus esse mesmo propósito e habilidade da
graça. “A vossa palavra seja sempre agradável, temperada com sal”, disse Paulo.
Mas, por quê? “Para saberdes como deveis responder a cada um” (Cl 4.6).
Falamos do que é bom “para edi cação, conforme a necessidade”. Por quê? “Para
que assim, transmita graça aos que a ouvem” (Ef 4.29).
Quando Jesus pergunta: “O que queres que eu faça?” Colocamos em nossa lista
a pregação que também ouve. Pedimos para estudar a quietude. Agora,
acrescentamos: “Ó Senhor, concede que, no m de meus dias, eu tenha
aprendido de ti como sustentar com a palavra aquele que está cansado”. O
propósito da quietude com Deus é dar hospitaleiras boas-vindas àqueles que se
encontram cansados.
Quando Jesus emprega todas as formas de silêncio e de sentenças, “jamais
esmagará a cana quebrada, nem apagará a torcida que fumega” (Is 42.3). Em
meus anseios por fazer grandes coisas para Deus eu não teria identi cado esse
propósito como meu. Tal propósito soa pequeno demais. É como dizer que
quero ser pastor porque minha grande ambição na vida é aprender a ajudar uma
pessoa comum em sua luta por encontrar a Deus. Dou risada com pesar e abano
a cabeça. Diga-me: quando aconteceu que uma vida com o propósito de ajudar
pessoas comuns em suas lutas ordinárias a encontrar a Deus tornou-se coisa
demasiadamente pequena?
Há tanto tempo estou convosco, e não me tens conhecido? Quem me vê a mim vê o Pai; como
dizes tu: Mostra-nos o Pai? Não crês que eu estou no Pai e que o Pai está em mim? As palavras
que eu vos digo não as digo por mim mesmo; mas o Pai, que permanece em mim, faz as suas
obras. Crede-me que estou no Pai, e o Pai, em mim; crede ao menos por causa das mesmas obras
( Jo 14.4–9).
Agora estão abertos os ouvidos de meus ouvidos. Agora abertos estão os olhos dos meus olhos.51
Conversas imaginárias
Contemplar a Deus em oração nos oferece uma espécie de resistência às
conversas imaginárias também. Esaú se confortou e consolou com o pensamento
de matar seu irmão Jacó (Gn 27.42). Ele imaginou a cena repetidas vezes, e essa
conversa imaginária ofereceu um console torto para seu ser interior.58
Sabemos que estamos em uma conversa imaginária quando ferimos e falamos a
nós mesmos sobre outra pessoa, usando a segunda voz e não a terceira presença
de Deus, como se o amigo que o traiu estivesse ali de pé ao seu lado. Ele passa da
linguagem de terceira-pessoa (ele) à de segunda pessoa (tu):
Com efeito, não é inimigo o que me afronta; se o fosse, eu o suportaria; nem é o que me odeia
quem se exalta contra mim, pois dele eu me esconderia; mas és tu, homem meu igual, meu
companheiro e meu íntimo amigo. Juntos andávamos, juntos nos entretínhamos e íamos com a
multidão à Casa de Deus (Sl 55.12–14).
Aquele dia todo eu guardei essa porção da Escritura como uma carta de amor.
Acariciei cada palavra, sentindo os ternos beijos de verdadeiro amor sobre os
lábios, rosto e testa da minha alma. Senti-me criança acolhida nos braços fortes
do meu Pai, de coração alegre, que proveria por mim e promoveria a minha
causa, mesmo correndo risco próprio. Nenhuma das minhas circunstâncias havia
mudado. Destroços dignos de lágrimas e calúnia ainda latiam como os cachorros
do vizinho debaixo das minhas janelas e portas. Mas, eu não estava só. O Senhor
estava perto. Pela primeira vez em muito tempo, eu sabia que isso era verdade.
Eu gostaria que você visse não tanto o sonho em si, mas o fruto dele. Foi-me
dada uma palavra para sustentar-me em meu cansaço.
A cada momento
Jesus trata as nossas ansiedades pedindo que as coloquemos em compasso de um
dia de cada vez, por toda a vida. “Portanto, não vos inquieteis com o dia de
amanhã, pois o amanhã trará os seus cuidados; basta ao dia o seu próprio mal”
(Mt 6.34).
Enquanto meu papaw laborava com pulmões cheios de líquido na última
estação de sua vida, eu telefonava para ele.
“O que é que você sabe, jovem?”, ele dizia. Eu podia escutar o chiado da
respiração destroçada em sua voz.
“Estive pensando em você, Papaw. Como vão as coisas pra você hoje?”
“Ah, estou indo. As coisas são o que são,” ele dizia. “Não adianta reclamar, né?”
Então ele acrescentava um pedaço de conselho que tinha se tornado lugar
comum para ele. Parecia decidido a passar adiante. “Levando um dia de cada vez”,
dizia. “Você sabe que isso é tudo que podemos fazer, a nal. Não estou certo,
meu jovem?”
Eu fazia uma pausa em minhas tentativas confusas de praticar o que ele falava.
“Bem, acho que tenho muito a aprender sobre isso”, eu reunia coragem para
dizer. Eu ouvia um sorriso em sua voz, seus pulmões se esforçando em cada
migalha de ar.
“Eu amo você, Papaw”, eu dizia.
“Também amo você, Zack”, ele respondia (palavras raramente proferidas por
ele quando era homem jovem, mas maravilhosamente, livremente ditas agora).
Então acrescentou o que tinha se tornado seu pedido regular: “Não se esqueça
de fazer uma oração em favor desse velho”.
“Não vou me esquecer, Papaw. Oro por você todo o tempo”, eu lhe assegurava.
As quatro porções
Jesus nos dá esse dom: porções de um dia de cada vez para suportar o peso que
encontramos. O salmista nos dá um começo de como reaprender que cada dia
basta em seu anseio. “À tarde, pela manhã e ao meio-dia, farei as minhas queixas
e lamentarei; e ele ouvirá a minha voz” (Sl 55.17).
Às vezes, o salmista usa palavras mais especí cas quanto ao que engloba uma
“tarde”, e em outros lugares na Bíblia (por exemplo, Lm 2.19), ele se refere às
vigílias da noite (Sl 63.6).
O salmista identi ca quatro partes do dia de vinte e quatro horas. Passei a
pensar nessas quatro partes como porções. Em todo este dia ele está presente, e
isso nos basta.
Manhã: do nascer do sol, ou seis da manhã, até o meio dia
Meio-dia: do meio-dia até às seis da tarde
Início da noite: do pôr do sol, ou seis da tarde, até dez da noite (às vezes
referida como “primeira vigília da noite”).
As vigílias da noite: das dez da noite até às seis da manhã.66
Marque bem isto. Para correr numa maratona, primeiro temos de correr uma
milha. Correr uma milha não é coisa que se despreze.
A graça da manhã
O Novo Testamento nos conta coisas a respeito de Jesus pela manhã: ele orava
(Mc 1.35). Ele tinha fome. Ele andava (Mt 21.18). Ele ensinava ( João 8.2).
Para o salmista, a manhã nas mãos de Deus testi ca-nos que as lágrimas têm
m, o alívio é signi cante, e “vem alegria” (Sl 30.5). Na manhã surgem cânticos
de louvor e ações de graças, porque a força de Deus nos fez passar a noite (Sl
59.16). A noite não venceu. Acordamos e vemos novamente que o amor de Deus
não desiste de nós, e pedimos que ele nos acompanhe e nos guie para aquilo que
nos aguarda (Sl 143.8). A manhã nos provoca a oração, e, portanto, para
observar como Deus responderá essas orações no decorrer do dia (Sl 5.3).
A manhã foi feita como um poema ou sermão que consola os desanimados. Ela
nos faz pensar de novo sobre a bondade de Deus e perguntar por que ele demora
em revelar sua bondade a nós (Sl 88.13–14). O nal da noite também nos
desperta a uma convicção renovada de aproveitar o dia como meio de oposição
ao que é ignóbil no mundo, e proteger aquilo que é bom, belo e direito (Sl
101.8). De fato, o sol não é melancolia matutina como eu sou ao acordar,
cansado de brilhar novamente sem ser notado, viajando pelo mesmo velho
percurso a cada dia, entediado com tudo isso. Não mesmo! Porque Deus dá esse
signi cado para a manhã, ele poeticamente imagina o sol como um noivo
apaixonado, ansioso e feliz por ver a sua noiva (Sl 19.5). O sol brilha obstinado
por amor acima das nuvens e trovões.
Historicamente, foi de manhã que os inimigos de Jesus amarraram as suas
mãos e determinaram que o matariam (Mc 15.1). Porém, poeticamente, será que
o nascer do sol traria alguma esperança a nosso Senhor, enquanto homens
possuídos pelos terrores da noite o jogaram na rua? Era de manhã. Ele sabia
disso, não sabia? Em tantas manhãs ele conhecera a intimidade com seu Pai.
Houve muitas manhãs antes que esses homens presos em ciladas tivessem
nascido. As manhãs continuariam depois que eles morressem. De fato, haveria
um dia em que na manhã do terceiro dia, quando ainda estivesse escuro, a morte
morreria, esses homens ímpios seriam confundidos, e Jesus ressuscitaria! A
manhã proclamou que essa ressurreição e vida ultrapassaram a noite. Será que
essa proclamação sussurrou a ele? Seria essa uma parte da “alegria que lhe estava
proposta...” (Hb 12.2)? Será que o sol, de alguma forma, piscou para Jesus
quando eles amarraram suas mãos e procuraram extinguir seu fôlego?
Por essa razão é que venho pessoalmente pensando na manhã como o tempo
da graça. Claro, dia e noite, todo o tempo, depende da graça. Só estou inferindo
que parece que a graça surge à frente na porção matutina, porque sentimos que
não somos su cientes para enfrentar aquilo que nos aguarda; perguntamos se o
sol vai brilhar nas nossas circunstâncias como brilha pela manhã.
Levantamos; o amor de Deus está aqui! Oramos; a direção de Deus está
conosco! Esperamos novamente e clamamos de novo; Deus está vencendo as
trevas! Comemos o pedaço diário que temos; Deus proveu! Chegamos ao
trabalho que está diante de nós; Deus tem algo a nos mostrar! A aurora raiou; o
túmulo está vazio! A estação da manhã começa e termina. Deus tem sido nossa
porção em nossos fardos até a chegada do meio-dia. Isto é graça e realização!
Louvamos a Deus. Passamos a primeira milha do dia.
Sabedoria do meio-dia
Nos Salmos, “o meio-dia” simboliza, para o povo de Deus, a luz com a qual
brilham a justiça e a virtude (Sl 37.6). É aqui que agimos com escolhas sábias
com respeito ao trabalho, circunstâncias e pessoas à mão.
Sendo assim, a tarde nos fatiga. Foi ao meio-dia que Jesus, cansado de sua
viagem, sentou para uma pausa e um copo de água ( Jo 4.6). Os afazeres do dia
recebem novo impulso e aumentam de velocidade. O trabalho tem de ser feito.
Chamadas anotadas, tarefas completadas, e-mails escritos, reuniões e
compromissos atendidos, campos arados, ferrolhos apertados, mais três fraldas a
trocar, jantar a preparar, doença a suportar. Poeticamente, Jesus faz um retrato
da porção do meio-dia como “a fadiga e o calor do dia” (Mt 20.12). O trabalho
nos agasta até sua conclusão, cheques de pagamento são entregues e os ossos
parecem estalar dentro de nossos músculos doloridos.
Frequentemente, umas duas horas depois do almoço a fadiga começa a tomar
conta. Alguns de nós experimentamos o que é chamado de “o demônio do meio-
dia”, uma nuvem escura de mau humor que movimenta as nossas pernas, nos
contorce onde nos assentamos, e gira nossos polegares. Tais rabugices instilam
em nós “um ódio pelo lugar” que nos foi dado e um “ódio pelo trabalho com as
mãos”.67 Não é de surpreender que coquetéis e happy hours tentem homens e
mulheres empresários às tardes. A distração nos conclama.
Não é de admirar que o período do meio-dia até lá pelas seis da tarde muitas
vezes coloque os caminhos virtuosos em prova. Se a manhã é tempo de conduzir
nossas lágrimas, nossos planos, nosso trabalho e os questionamentos do dia ao
seu trono de graça para ali encontrar esperança, a tarde parece ser tempo de
iluminação, em que nossa intenção de descansar sobre essa graça é peneirada e os
verdadeiros objetivos de nossa esperança tiram as suas máscaras.
Ao meio-dia o sol está em sua maior altura. Ele dá seu mais forte calor e a mais
ofuscante luz que podemos ver, o maior calor para que nos humilhemos. Fomos
feitos para nos assemelhar ao meio-dia. Mas Pilatos falhou. Como também
fraquejou o povo de Deus.
Foi na parte do meio-dia que Pilatos escolheu a vantagem política e ordenou
que o inocente fosse maltratado, o Filho de Deus fosse morto ( Jo 1.14–15).
Foi também ao meio-dia que Jesus deu seu último suspiro e o brilho do sol
inexplicavelmente falhou (Lc 23.44). As trevas e o meio-dia ensolarado trocaram
de lugar. Viraram o dia de cabeça para baixo, como fazendo uma comparação
entre o mal que estava sendo chamado de bem, e o bem que estava sendo
acusado de mal.
Se a manhã nos conclama a cantar, a tarde nos humilha, lembrando-nos que
precisamos da sua salvação. A manhã nos ensina a louvar. A tarde nos ensina a
ter paciência e perseverança. O dia (e a corrida) tem um começo e um nal.
Atravessar a linha de chegada é graça e força! Mais uma milha e nossos fardos
são carregados.
Hospitalidade de m da tarde
No cair da tarde, vieram os discípulos a Jesus e lhe disseram: O lugar é deserto, e vai adiantada a
hora; despede, pois, as multidões para que, indo pelas aldeias, comprem para si o que comer.
Jesus, porém, lhes disse: Não precisam retirar-se; dai-lhes, vós mesmos, de comer. Mas eles
responderam: Não temos aqui senão cinco pães e dois peixes (Mt 14.15–17).
Sempre tenho visto a solitude como característica matutina. Mas a poesia dos
Salmos mostra as vigílias da noite como lugar de solitude. Historicamente,
quando estava acordado sozinho à noite, nos lugares ermos de oração,
certamente este testemunho do Salmo 63.5–6 era a espécie de porção que Jesus
experimentava junto ao Pai (Lc 6.12).
As vigílias da noite nos oferecem um retrato de um soldado militar em seu
posto de sentinela. A sentinela permanece acordada e olha cada movimento da
noite em potencial para nos proteger dos inimigos e guardar o sono de seu povo.
Também vigia pelos mensageiros ou reforços que chegam, trazendo clareza ou
resgate em ação secreta. Cama para descanso, vigilância para clareza ou resgate;
sono e falta de sono — são estes os movimentos da profundeza da noite. Jesus
trata dessas vigílias da noite em sua parábola:
Vigiai, pois, porque não sabeis quando virá o dono da casa: se à tarde, se à meia-noite, se ao cantar
do galo [três da madrugada], se pela manhã (Mc 13.35).
Um propósito para nossa cama à noite é ponderar no coração aquilo que nos
perturba e falar sobre essas coisas diante de Deus. Disso resulta o sono. O sono é
um ato sabático. Repousamos e deixamos tudo aos cuidados de Deus enquanto
estamos deitados sem mexer com o mundo por um pouco.
Mas há terrores na noite também (Sl 91.5). Pesadelos. O choro sem sono pode
se estender (Sl 30.5). A ições podem manter nossas “pálpebras abertas” (Sl
77.4). O silêncio desolado permite ao coração perguntas inquiridoras, em
agitada inquietação (Sl 77.7–9).
É também verdade que nossa estultícia não coibida da tarde pode nos conduzir
a uma noite não hospitaleira e encher de tropeços nossas vigílias noturnas. “Vem,
embriaguemo-nos com as delícias do amor, até pela manhã”, dizem os que
escolhem ter casos fora do casamento (Pv 7.18). A escuridão antes do alvorecer
muitas vezes nos assombra com culpa e vergonha. Chamamos, meio bêbados,
um taxi, tendo deixado nossa dignidade mal-usada na cama de uma estranha,
perguntando-nos em que raios estávamos pensando. Ou trabalhamos a noite
inteira porque procrastinamos no trabalho. Não temos sono nem solitude calma
para nos fortalecer para a manhã. A profunda noite então torna-se em um lugar
de con ssão, uma escola onde o conselho de Deus nos encontra e instrui (Sl.
16.7).
Antecipo-me ao alvorecer do dia e clamo; na tua palavra, espero con ante. Os meus olhos
antecipam-se às vigílias noturnas, para que eu medite nas tuas palavras
(Sl 119.147–48).
Sonhos na Noite
Alguns de nós sonhamos à noite, portanto, vamos fazer aqui uma pausa para
relembrar sobre esses sonhos. Podem vir de três lugares, assim como são os
nossos pensamentos durante o dia, quando estamos acordados. Podem ter sua
origem em nós mesmos, ou em nosso inimigo, o diabo, ou podem ser
sussurrados a nós por Deus. Em qualquer dos casos, os sonhos são atos da
providência, ou seja, estão também entre as circunstâncias de nossa vida que
Deus governa, e pelas quais ele nos governa para sua glória e nosso verdadeiro
bem ( Jó 33.15–18).
Qualquer que seja nosso sonho, levamos a Deus o seu conteúdo, bem como os
pensamentos e emoções resultantes. Com ele, podemos repousar a atividade
poética e a estrutura de nosso coração em Jesus. Se houver pessoas em nossos
sonhos que se destacam para nós, podemos interceder por elas, assim como
frequentemente fazemos quando vêm à mente as pessoas durante as horas em
que estamos acordados. Igualmente, nós con amos a ele as nossas impressões
temerosas ou jubilosas, acreditando que ele vai, como sempre, nos informar,
transformar e conduzir de acordo com seu amor e seu tempo perfeito em Jesus.
Foi na vigília da noite que Jesus orou clamando em alta voz com lágrimas no
Getsêmane. Ele sabe o que signi ca chorar no escuro. Sua empatia por nós é
profunda e nós também precisamos aprender isso.
Após a noite e os sonhos, vem a madrugada. O Senhor que nos guarda não
dormita, mas nos atende (Sl 121.4). O sol começa a romper para sua noiva. Raia
um novo dia. Por um dia inteiro agora, ele o tem carregado, com seus fardos e
tudo mais.
Porções semanais
Um dia em cada sete, procuro viver essas quatro porções como um dia de
descanso. Por vinte e quatro horas sou ajudado, exceto com autênticas
emergências, deixando o e-mail, telefonemas, compromissos e o trabalho pastoral
diário para tomar fôlego. Isso tem mudado com o passar dos anos, à medida que
os lhos cresceram e suas faixas etárias mudaram. Às vezes eu durmo até mais
tarde. Ou, depois que as crianças estão na escola, assisto a um lme antigo ou
escuto música. O almoço é folgado. Pode ser que eu tire uma soneca à tarde
antes de buscar os lhos na escola. Durmo sem senso de culpa (pelo menos este
é meu alvo). Não é uma perda de tempo. Não hoje.
Mas quando os ritmos semanais de descanso são melhores para mim,
encontro-me sentado no chão sobre um forro de piquenique para almoçar. Se for
outono ou começo do inverno, visto boina, luvas e roupas su cientemente
quentes para aguentar três horas no relento. Numa sacola plástica levo Bíblia,
papel, e uma pilha de poesias ou um livro de cção. Aninhado entre a sombra
das árvores de um de meus lugares prediletos de descanso de sábado, eu olho por
cima do Lago Creve Ceour, ou talvez olhe morro abaixo para as fontes de águas
do Parque da Floresta. Calço tênis e caminho, talvez por quilômetros. Às vezes,
quando chove, eu co sentado em minha velha caminhonete vermelha olhando
por cima da lagoa.
Aqui neste lugar corriqueiro, entre essas coisas que importam, estou entregue
mais uma vez à escuta. Sou escutado por Deus. Entregando os meus fardos.
Sendo tomando no seu colo. Voltam risadas gratas e alegres. Às vezes choro sem
mesmo saber o porquê. Mas ele sabe. Esses fardos são dele.
Quando perco sextas ou segundas de folga, e estou irritado e exausto pela falta
deles em minha vida, já notei que só um dia de descanso não oferece muito
repouso. Aí é necessária uma espécie de desintoxicação. Tenho de me lembrar de
que a presença humilde, a conversa em que se escuta e a solitude entre essas
porções semanais têm um efeito cumulativo; assim como acontece com as quatro
porções do dia. Uma vez que eu comece a colocar várias porções diárias e
semanais em seguida no meu ritmo, torna-se notável a transformação em meu
ser. Pode ser que meus fardos tenham aumentado. Mas sou novamente capaz de
oferecer descanso e presença hospitaleira aos outros, porque eu mesmo
realmente tenho algo disso. A graça disso me deixa maravilhado.
Quando primeiro introduzi essa ideia de “meses de descanso” à nossa
congregação, eles não gostaram. Três meses por ano, dávamos a todos os nossos
ministérios semanais uma folga sem culpa (abril, agosto e dezembro). Eu z isso
principalmente por causa da idade de nossa congregação, composta
principalmente por jovens famílias com crianças. Essas mesmas famílias eram os
principais voluntários na igreja e na comunidade. Entre servir e voluntariar, ir
aos estudos bíblicos e grupos nos lares, as pessoas estavam se esgotando. No lado
engraçado, se alguém tirasse uma folga sentia culpa enorme, como se estivesse
desapontando a Deus e a nós. É claro, não ordenamos que nossos membros
observem meses de descanso; as pessoas podem continuar a se reunir se assim
desejam. Mas no decorrer dos anos, a maioria tem cado grata pelo ritmo
embutido que essas folgas oferecem. Descansamos estrategicamente a m de
continuar com vigor. Se não zermos isso, acabamos tendo de tirar folgas não
planejadas porque adoecemos ou nos esgotamos devido a nossos horários
desgastantes.
Ao lado da sepultura
O cuidado pastoral é, em sua maior parte, uma questão de presença, estar com
alguém no meio do que o perturba. O toque do tipo certo é uma sentença.
Sentado numa cadeira no quarto, enquanto os membros da família se ajuntam, é
nosso parágrafo. No cuidado pastoral, o contato dos olhos, um pequeno aceno
ou balançar a cabeça, uma lágrima, um sorriso, disposição de segurar um guarda-
chuva sobre a cabeça da pessoa enlutada na chuva, disposição para cortar o pão
para sanduíches, compromisso de ajudar a cabeça confusa a tomar decisões sem
fazer a decisão por ela — tudo isso descreve uma garra desajeitada e imperfeita,
que está presente com as pessoas sem tentar chamar atenção ou “fazer acontecer”
ou inventar arti cialmente um “momento divino”. Isto, mais do que as suas
palavras, forma as ferramentas de sua vocação de cuidados.
Meu primeiro funeral como pastor foi de uma vizinho que eu não conhecia.
Ouvi o diretor chegar a mim na sala separada: “É hora”, diz ele. Ouço meu
estômago roncar. Escuto o barulho dos meus sapatos sobre o carpete gasto. Eu
me ouço tentando juntar palavras de vida junto àqueles que, em sua maioria, são
estranhos a mim. Percebo que minha voz começa a tremer ali na multidão
arrasada.
Naquele tempo, eu tinha pouco conhecimento dos sons da morte. Os anos
desde então mudaram isso, mas era a primeira ocasião em que ouvi as gaitas de
fole tocar. Depois do culto, ao lado da sepultura, o tocador de gaita de fole cou
parado como se fosse feio e segurasse um ganso na mão. Soprou para dentro e
para fora, num gemido que puxava o ar transformando-o na melodia assombrosa
de “Preciosa Graça” [Amazing Grace]. O vento revirava as folhas de outono.
Postes de alumínio alugados produziam clangor com a corda e a lona. Eu ouvia o
som de ores jogadas em cima do caixão. Era um sepultamento militar, bandeira
dobrada e dada à família, ri es armados para uso; os tiros de morte chocando o
silêncio para honrar uma vida. Relembro como parecia estranho encontrar
homens e mulheres adultos, suspirando alto e dolorido. Ondas de fungadas,
como a maré, iam e voltavam em ondas mansas. Os chavões se apressavam para
pôr fantasias sobre os silêncios desajeitados. Perguntas sobre Deus ou sobre a
vida eram sussurradas embaraçosamente ou em repentina raiva. Surgia
frequentemente a risada nos lugares mais estranhos para um consolo, o que não é
nada estranho.
Pat havia morrido. A sua irmã começa a trazer uma história aos meus ouvidos.
“Pat costumava encontrar gatos perdidos e levá-los para casa”, diz ela.
Dou uma risadinha com essa introdução surpreendente.
Ela continua: “Pat não somente dava um lar para esses gatos; ela punha roupa
nos gatos danados —roupa de bonecas!”
“Verdade?” pergunto.
“Ah, sim!”, ela diz. Começa a rir enquanto pensa no coração sobre tempos mais
felizes. Eu também começo a rir.
“Então, ali estava a Pat, com todos aqueles gatos vestidos, fazendo pose para
uma fotogra a, e Pat sorrindo de orelha a orelha!”
Agora nós dois estamos rindo e dependendo dos lencinhos para manter o
decoro.
“Ah meu, essa era a Pat! Com certeza era uma maluquinha!”
Rimos por mais um momento e então respiramos fundo para uma descida
repentina. A contadora de histórias agora olha para longe e ca quieta no
silêncio. Sem me encarar, ela diz: “Vou sentir muita falta dessa Pat”.
Ouvir essas histórias de lembranças é parte do seu trabalho. Quando alguém
conta a respeito de um ente querido falecido, pergunte ternamente qual era o
nome da pessoa. Demore aqui e escute. Quando cumprimentar alguém que
esteja de luto, não precisa dizer: “Como vai você?” ou “Como foi seu dia?” Tal
pergunta força a pessoa na confusão de colocar realidades inexplicáveis numa só
sentença. Se pararmos e pensarmos nisso, é provável que já saibamos como essas
pessoas enlutadas estão passando. Em vez disso, cumprimentamos simplesmente
dizendo algo como: “Estou grato por encontrar você; tenho pensado muito e
estou orando por você” ou, “Você é amado por todos”. E normalmente não
perguntamos: “O que posso fazer por você?” A pergunta coloca o enfermo em
posição de dirigir o seu horário e inventar um monte de tarefas. Melhor é
oferecer algo especí co que permita uma resposta sim ou não, como: “Posso lhe
trazer café da manhã?” ou “Você gostaria de descansar hoje?” ou “Seria de ajuda
se eu pegar a sua lha na escola amanhã?” Essas coisas especí cas também nos
ajudam a resistir à tentação de perguntar o que podemos fazer, não por amor
deles, mas de nós, porque sentimo-nos sem saber o que fazer e queremos fazer
algo diferente. Conheço bem essa tentação. Mas se eles pudessem, também
fariam as coisas de um jeito diferente. Ali estamos nós, cada qual olhando junto
para Jesus no silêncio confuso.
Em seu sermão, portanto, você fala da calma de ter escutado e amado. Você diz
algo como:
“Entendi que Pat estava sempre procurando gatos sem dono”.
Com isso, aqueles que a amavam dão uma risadinha com as lembranças.
“Será que ouvi certo que Pat não somente dava um lar para esses gatos como
também os vestia com roupas de boneca?”
Agora os risos de amor jorram por entre as lágrimas de luto daqueles que a
conheceram. Eu também sorrio com gratidão. As risadas duram um pouco.
Depois as lágrimas recuperam o seu lugar, e o silêncio volta.
“Sabe, quando penso em Pat querendo dar um lar e roupas aos gatos eu
lembro-me de uma história que Jesus contou sobre ovelhas espalhadas e
perdidas. Ele disse que Deus era como o pastor buscando encontrá-las para
trazê-las para casa. Obrigado por ter me contado esta história sobre Pat e seu
amor por ela. Isso me lembra de minha necessidade de ser encontrado e de
ganhar um lar. Todos nós precisamos ser encontrados. Antes de car doente, Pat
compartilhou como ela esteve perdida todos esses anos, mas que nalmente Jesus
a encontrou. Ele pode nos encontrar também e nos levar para o lar”.
Nas igrejas que tenho servido no decorrer dos anos, às vezes separamos um dia
de oração. Junto a essas reuniões públicas regulares, de quando em quando vem
um chamado, e nos reunimos em uma sala ao lado de um leito de hospital.
“Chame”, diz Tiago. Suas palavras trazem à mente os ossos tortos e olhos
cegos, aqueles que cam assentados em esteiras, esquecidos, no lado das
estradas. Notícias alcançavam esses seres humanos de pulmões chiando e pele
cheia de chagas. “Jesus está chegando!”, ouviam dizer. “Jesus está se
aproximando!”
Abruptos em encontrar sua voz, essas pessoas com tosse de sangue tentavam
falar uma palavra ou se arrastar de joelhos no chão de pedregulhos para tocar um
o da roupa de Jesus. De qualquer modo, mãos trêmulas ou artríticas lutavam
com seus dedos para levantar a bandeira do seu coração, clamando: “Filho de
Davi, tem misericórdia de mim!” Ele responde, e aprendemos que os enfermos
possuem voz. O seu chamado não se assemelha a nada de incômodo ou
constrangedor. Na mente de Jesus, os que estão mentalmente perturbados não
são empurrados para as margens. Não é de surpreender, portanto, que orar pelos
enfermos esteja a rmado na descrição do trabalho do presbítero feita por Tiago.
Os presbíteros não são Jesus. Mas estes que retornam são pastores dados para
re etir aos outros e se assemelhar com a presença, ensinamentos, tom e
expressão do verdadeiro e bom Pastor, o qual conhece as suas ovelhas pelo nome
( Jo 10.3). De algum modo, elas ouvem a voz de Jesus na nossa voz.
Às vezes há dois de nós. Outras vezes mais, juntos com amigos e membros do
grupo dos lares que entram no quarto, pé ante pé, nervosos por amor daquele
que está sofrendo. Um dos presbíteros, de dia um zelador, estende suas mãos
manchadas de sujeira ao bolso para o frasquinho de óleo. Ele o entrega ao pastor.
O óleo foi comprado numa livraria local. Tinha cheiro de incenso. Mas qualquer
óleo serve, porque é como a sujeira nas mãos do zelador. A sujeira não é o
trabalho, mas sinal de que o trabalho foi feito. Tanto a terra quanto o óleo não
têm defesa contra o sabão. Ambas soltarão seu apego da pele e serão lavados,
escoando pela pia ou no tanque naquela noite. Mas, embora desapareça o
símbolo, o trabalho que ele revelou permanece. Como na unção do Antigo
Testamento, ocorreu uma separação.
O trabalho é feito “em nome do Senhor”. Aqui não existe feitiço ou
encantamento. É possível recitar as palavras “em nome de Jesus” e ainda conhecer
bem pouco do que signi ca orar no nome do Senhor. Falar os nomes
importantes é uma ferramenta usada pelos arrogantes para mostrar aos outros os
seus recursos, amizades e conexões. Entre os humildes, referir-se aos nomes
importantes raramente é usado, exceto quando surge uma necessidade pela qual
não existe outro remédio. A oração em seu nome é uma declaração de que só
Jesus possui a sabedoria, os recursos, a provisão e o poder para governar aquilo
que nos fere. Mesmo nosso bom uso da medicina e nossa ativa gratidão por bons
médicos e enfermeiros são como sapatos, que em última instância são ajuntados
e mantidos pela costura e pelos laços de Deus.
A Oração da Fé
Em algum ponto, um dos presbíteros explica brevemente essas coisas ao que os
chamou. Então, quem chamou expressa, se puder, o que está pedindo de Jesus.
Em meio a chinelos de dedo ou sapatos de grife, hálito de café e fungadas, um
presbítero põe um pouquinho de óleo no dedo e toca a testa do enfermo, orando
em silêncio ou com palavras de misericórdia (Tiago não oferece nenhuma
diretiva quanto a isso). Se for com palavras, pode soar, em substância, assim:
Bárbara, Jesus pertence a você. Você pertence a ele. Só ele pode salvá-la e consertar a você. Você
foi criada por ele. Por ele é que foi resgatada. Por ele temos acesso ao trono de graça. Você é lha
do Rei. Levamos o seu caso até ele. Seu trono é um trono de graça. Vamos até ele nessa hora de
necessidade.
Confessar e perdoar
Não é de se maravilhar que Tiago mude de ênfase da cura do corpo para a cura
da alma.
Disciplina e pecado
No exame oral para meu ministério, eu estava diante de cinquenta presbíteros
que me perguntaram: “Qual o propósito da disciplina da igreja?”
Recém-saído do seminário, e de acordo com minha tradição teológica,
respondi que “o propósito da disciplina eclesiástica é elevar o caráter e ensino de
Jesus e proteger o bem estar do rebanho”.
Depois disso, um pastor gentil e experiente chegou até mim no corredor e
perguntou se ele poderia sugerir uma resposta mais plena. “Existe um terceiro
propósito para a disciplina na igreja”, disse ele bondosamente. “Esse terceiro
propósito tem a ver com o bem-estar daquele que pecou. Isso é uma boa notícia
para qualquer um entre nós”.
“Certo!”, eu disse. “Eu havia me esquecido disso”.
Com o passar dos anos, tenho entendido que quando alguém é pego no
pecado, ainda é possível que nos esqueçamos deste propósito.
A não ser que vocês considerem as leis dos homens como autoridade superior às leis de Deus, o
adultério começado em novembro de 1979 terminará em 2000. Minha esposa não é minha
esposa, Lucas 16.18. Em referência à sua reunião, não os considero mais a minha igreja. [...]. Os
jovens não têm a mínima importância na sua igreja, ninguém, durante os últimos sete meses, tem
estendido a mão a meus lhos. A resposta de Jesus ao que seria o maior mandamento foi: “Amarás
o teu próximo como a ti mesmo”, Mateus 22.39.
Quando alguém se recusa a admitir que está errado (incluindo nós), todo o
raciocínio para justi car o erro é empregado. No bilhete, esse homem sadio,
biblicamente respeitado e querido, na verdade chamou seu casamento de vinte e
um anos de adultério. Arrazoou que, uma vez que seu casamento foi feito por
um juiz de paz em vez de um pastor, não era reconhecido por Deus. Na sua
cabeça, a Bíblia apoiava e recomendava que ele tivesse um caso e abandonasse sua
esposa. Alguém que use a Bíblia desse jeito pode incendiar nossa impaciência.
Também podemos lutar porque, quando alguém recusa admitir o erro, assume
terreno moral altaneiro e acredita ser mais justo que as outras pessoas. Neste
caso, ele nos atacou como liderança fraca, enquanto ele mesmo, como líder na
igreja, estava tendo um caso e defendendo o mesmo pela Bíblia. Ele nos atacou
por não cuidar de seus lhos enquanto ele, pai, estava enganando a mãe deles e
separando-se deles. Ele via ciscos em potencial em nossos olhos, enquanto a
trave permanecia nos olhos dele sem ser detectada.
Em tudo isso nós lutamos também porque simplesmente pôr a culpa em
outrem dói. Também queríamos que nosso grupo de jovens estivesse melhor.
Estendíamos a mão à sua mulher e lhos, mas nos sentíamos terrivelmente
incapazes. Oramos e tentamos — fazíamos refeições, íamos tomar café,
mandávamos bilhetes. É difícil levar echadas de alguém que está atirando em
todo mundo a seu redor e precisa, ele mesmo, de ajuda.
A situação inevitável
O líder mencionado anteriormente acabou com o seu casamento e continuou
com a sua nova amante. Não foi uma espécie de pecado privado, que pudesse ser
tratado apenas de modo particular. Seu pecado era público, e todo mundo estava
observando. Ele era nosso amigo. Estávamos profundamente sentidos. Alguns
queriam ação rápida, com veemência. Nós resistimos a essa ideia. Se fôssemos
errar no caso, erraríamos por dar tempo demais para que ele voltasse à razão.
Quase dois anos de apelos, andando junto dele e tentativas de ajudá-lo haviam
passado e não adiantaram nada. Não tivemos sucesso em ganhar nosso querido
irmão (Mt 18.15). Ele se recusou a escutar (v. 17). Tivemos de “considerá-lo
como gentio e publicano” (v. 17).
O que isso signi cava? Eu não sabia. Procurei nos Evangelhos para ver como
Jesus se relacionava com os gentios e publicanos. Do seu jeito, cava claro que
ainda amaríamos esse homem. Diríamos “Como vai?”, e comentaríamos o tempo
se o encontrássemos no shopping. Talvez ele dissesse: “Será que poderíamos nos
encontrar para tomar um café?”, e responderíamos: “Claro, mas o que está em
minha mente é a situação do seu coração. Quando nos encontrarmos, poderemos
falar também sobre isso?”, “Não”, ele poderá responder. “Está certo”, diríamos.
“Eu oro por você e anseio por seu bem. Qualquer hora que você quiser conversar
sobre as coisas, carei feliz em tomar café com você. Mas, sinceramente, eu
também preciso de Jesus. E ainda tenho esperança de que você admita que o que
fez com sua família não é o que Jesus deseja para nós, e que você queira voltar aos
braços da graça de Jesus”.
Quando fala sobre o pecador endurecido que se chama de seguidor de Jesus:
“Com ele não comais”, Paulo não nos convida a desprezar maldosamente ou a
desconsiderar ou maltratar essa pessoa. Uma refeição juntos seria como um
presente sobre nossa mesa se essa pessoa visse a sua necessidade de perdão.
Ansiamos por isso, mas esperamos. Nosso amor, anseio, bondade e orações por
ele não tiram a realidade de que em Jesus essa pessoa agora está identi cada
“como se” não zesse mais parte da comunidade dos crentes. Nossa comunhão
não é a mesma que antes nem o que ela poderia ser.
Reconhecemos que seu casamento provavelmente (se bem que não certamente)
está perdido para sempre. Mas, que alegria e liberdade signi cariam, se ele
simplesmente dissesse: “Sei que eu estava errado. Eu preciso perdoar, ser
perdoado e mudar”. A comunidade poderia então se juntar a ele com lágrimas,
mas também alegre esperança!
Ele ainda poderia abençoar os seus lhos com instrução sábia. Ele poderia
remover a loucura — a ideia de que Jesus diga que está certo aos papais deixarem
as mamães por outra mulher, a noção que tal ensino põe na cabeça delas sobre
quem são como lhas que um dia se tornarão mulheres. Essa clareza tomaria as
mãos de suas lhas para que elas possam andar por caminhos mais seguros em
seu futuro.
Ele ainda poderá dizer à sua ex-esposa: “Eu estava errado. Por favor, me
perdoe”. Pode ser que nunca mais voltem à posição de amizade. Mas a simples
admissão pode retirar os raios e trovões das nuvens de tempestade que cortinam
o céu de seus cuidados mútuos de pai e mãe.
Mais importante, a honra de Jesus e os seus ensinamentos encontrariam
clareza renovada em sua vida pública para todos quantos o observassem. Em seu
coração, diante de Deus, ele estaria reconciliado. Todo aquele esforço por torcer
os versículos bíblicos, inverter o plano moral mais alto e lançar a culpa nas outras
pessoas pode se acalmar. Os músculos tensos de cada minuto poderão relaxar.
Os corações que batem a cada segundo podem passar a ir mais devagar. Ser
novamente “ganho” em Jesus. Defender o amor ao próximo e encontrar repouso
para a alma — tais bênçãos revelariam o terceiro propósito da disciplina,
produzindo seu doce fruto em uma vida comum.
Porque, no meio de muitos sofrimentos e angústias de coração, vos escrevi, com muitas lágrimas,
não para que cásseis entristecidos, mas para que conhecêsseis o amor que vos consagro em
grande medida (2Co 2.4).
Sua postura está cheia de lagrimas, cheia de anseio e preocupação pelo bem-
estar deles. Eles são queridos para ele. O seu propósito é expressamente
designado, não para feri-los, mas para fortalecer seu senso de como são amados
naquilo que ainda têm para aprender e confrontar.
De fato, Paulo inicialmente lastimou ter escrito para eles, temendo tê-los ferido
injustamente (2Co 7.8). Ele esclarece sua gratidão por eles não terem sido
feridos de modo injusto. “Agora, me alegro não porque fostes contristados, mas
porque fostes contristados para arrependimento; pois fostes contristados
segundo Deus, para que, de nossa parte, nenhum dano sofrêsseis” (2Co 7.9).
A postura de Paulo não é nada semelhante ao pai errado que bate muito na
criança até ter certeza de que ela esteja ferida bastante pelo pecado que cometeu,
como se forçar alguém a sentir a convicção do pecado seja tarefa dele e não do
Espírito Santo ( Jo 16.8–9). Ele não quer que seu lho esqueça do que fez. Isso
se traduz em sempre ter de vestir a sobrecapa cinzenta de ter pecado e nunca
poder vestir as cores alegres do perdão.
Em contraste, Paulo ressalta que, porque aquele que foi pego em pecado está
realmente sendo transformado, a comunidade também tem de agir de acordo
com o que diz a Palavra. “Basta-lhe a punição pela maioria. De modo que deveis,
pelo contrário, perdoar-lhe e confortá-lo, para que não seja o mesmo consumido
por excessiva tristeza. Pelo que vos rogo que con rmeis para com ele o vosso
amor” (2Co 2.6–8).
O castigo para aquele que se arrependeu não deve continuar para sempre.
Respondemos à tristeza excessiva do coração arrependido pelo evangelho.
“Perdoar, confortar, rea rmar seu amor”, é o que Paulo implora que seja feito.
O fato de ter sido perdoado não justi ca a estultícia nem remove todas as
consequências do erro. Não há como uma pessoa que odeie o fato de ter sido
molestador, mesmo tendo sido perdoado, receber a responsabilidade de cuidar
do berçário. O seu lugar na comunidade requererá que ele empregue seus dons
de outras formas.
A amizade nem sempre segue ao perdão entre aqueles que foram vitimados.
Embora sejamos capazes de perdoar pela graça, a pessoa que foi prejudicada
talvez frequente uma igreja diferente da pessoa que a feriu ou vice-versa. É raro
para o perdão ter um nal feliz, de conto de fadas, no momento, mas ele nos
conduz a um nal redentivo para todos os envolvidos — um nal que o céu
curará completamente.
Mas por que isso tem importância? Porque, de acordo com Paulo, a maneira
como tratamos o pecador arrependido agora é um ato de batalha espiritual. Estas
situações nos “provam” com respeito à extensão de nossa obediência (2Co 2.9).
Obedecer ao perdoar e rea rmar nosso amor pelo pecador arrependido é
necessário para a luta contra os “desígnios” de Satanás na comunidade (2Co
2.11). É Satanás e não Deus que in ige tristeza excessiva sobre a pessoa
arrependida, junto com a ausência de amor, negligência de consolo, e castigo que
nunca acaba. Nesta altura, Paulo nos relembra, portanto, que ao tratar de
disciplina e pecado, somos tentados a re etir uma aproximação diabólica mais do
que divina.
Discernir as tristezas
Acenda um fósforo em uma fogueira no acampamento, e tanto a gasolina quanto
o jornal pegarão fogo. Ambos são capazes de iniciar o fogo para fazer o jantar.
Ambos são capazes de destruir o acampamento todo. Mas um deles é volátil e
não é digno de con ança.
Do mesmo modo, tanto o diabo quanto Deus falam sobre o pecado. Mas seu
impacto difere de modo dramático. Conquanto o Espírito Santo nos convença
do pecado, nunca o Espírito Santo é identi cado como o acusador. O modo de
Deus confrontar o seu povo em seus pecados é o que Paulo chama de “tristeza
segundo Deus” (2Co 7.9–11).
Primeiro, a tristeza segundo Deus não produz apenas lágrimas ou novas
resoluções. Na verdade, produz arrependimento — isso signi ca um verdadeiro
ponto de virada. A mudança é terna, é nova e incompleta, mas é real.
Segundo, a tristeza segundo Deus leva a pessoa de volta a um novo
conhecimento da provisão da salvação — o mérito e a misericórdia de Jesus. As
suas sandálias, a cruz, o túmulo vazio, sua presente intercessão e defesa — fazem
um feliz reencontro no ser da pessoa. A pessoa sabe que no nal, foi contra Deus
que ela pecou e a Deus ela volta quando vem para casa.
Terceiro, a tristeza segundo Deus propõe mandar embora o remorso: “Porque
a tristeza segundo Deus produz arrependimento para a salvação, que a ninguém
traz pesar” (2Co 7.10). Em contraste, existe uma espécie de sofrimento pelo
pecado que nada tem a ver com Deus. No decorrer dos anos, tenho observado
que aqueles apreendidos do pecado da mentira, por exemplo, exigem energia e
tempo mais ativos — especialmente se a mentira tem se tornado o seu estilo de
vida.
Por que é assim? De um lado, uma longa vida nesse pecado dá à pessoa uma
forte habilidade com a manipulação. Essa pessoa é adepta às lagrimas, citação
dos versículos certos, dar olhares signi cativos e dizer aquilo que a pessoa à sua
frente quer ouvir. É fácil concluir que alguém tem tristeza piedosa quando, na
verdade, ela sente tristeza por ter sido pega e está simplesmente tentando fazer o
que precisa para tirar todo mundo de cima das suas costas, para que tudo volte
ao normal.
Por outro lado, quando a graça começa a ensinar de novo ao mentiroso como
amarrar os seus sapatos, como com qualquer outro pecado e pecador, a mudança
frequentemente não acontece tudo de uma só vez, mas em acessos e aos trancos e
barrancos. Isto quer dizer que a pessoa mentirosa exige tempo para ver quão
profundamente ela mente e como as suas palavras giram saturando sua vida
diária. Por esta razão, uma pessoa a quem Jesus esteja transformando poderá
contar a verdade numa mesma conversa em que mentiras não percebidas
também estejam presentes. É fácil concluir que não há mudança, quando, de
fato, uma poderosa mudança está ocorrendo. Só que leva muito mais tempo do
que desejaríamos.
À luz de tudo isso, o ponto que Paulo destaca é de grande valor. Uma tristeza
autogerada, que o diabo aproveita para aumentar, “produz morte”, diz Paulo (v.
10). Isto é, derrama lágrimas, mas não converte; faz resoluções e cita versículos.
Mas não descansa somente em Jesus nem se submete a Deus.
O pesar ainda conta a história na primeira pessoa e no presente, como se ainda
estivéssemos naquele momento. Aconteceu anos atrás, mas as pessoas que estão
ouvindo têm a ideia, vinda de você, de que tenha acontecido recentemente.
O pesar também guarda segredos. Colocamos a tampa sobre ele e não
contamos a ninguém, a m de preservar nossa imagem. Aos poucos isso nos
corrói. Mas a tristeza segundo Deus eventualmente vira nossos segredos
pecaminosos em testemunhos da graça.
Primeiro, de acordo com Paulo, nossa tarefa não é nos separar ou julgar os
nossos vizinhos não cristãos. Para fazer isso teríamos de sair do mundo (muitos
de nós entendemos isso muito erradamente).
Segundo, quando Paulo diz: “em alguma falta”, nosso coração é sondado,
porque ele inclui toda espécie de coisa maculada com a qual podemos nos
deparar no armário de outra pessoa.
Antes do ministério vocacional, trabalhei com as vítimas de crimes no
município de Blackford, Indiana. Eu estava despreparado para os tipos de
transgressões que existiam fora de minha janela. O trabalho abriu as cortinas do
mundo — assassinato, abuso sexual, violência doméstica, abuso infantil, uso de
drogas. No ministério pastoral, o fato de que essas questões ocorram também
nas igrejas, muitas vezes, me pegou desprevenido. Um pastor da mocidade que
tem sexo com as meninas do grupo de jovens, um homem que forja a morte do
lho para seus colegas de trabalho, uma mulher que leva sua família à falência ao
mentir habitualmente e manipular os fundos do banco. As palavras de Paulo:
“qualquer transgressão” prendem nossa atenção e localizam nosso trabalho
pastoral.
Terceiro, Paulo esclarece que entrar na confusão da recuperação de um pecador
que foi pego em seu pecado está fora dos limites para a maioria de nós. Como
isso é diferente! Em minha experiência de igreja, muitas pessoas tomam sobre si
e acreditam ser o seu papel confrontar aquilo que enxergam em qualquer pessoa
que veem. Mas Paulo diz de outro modo. Somente aquele “que é espiritual”
deverá restaurá-lo (Gl 6.1)
Por “espiritual”, Paulo evidencia o contexto dos versículos anteriores com os
quais ele tratou do fruto do Espírito em contraste com as obras da carne. Se
intentamos ou nos encontramos confrontando um pecador que foi “pego no ato”
com o uso de ferramentas de inimizade ou contendas ou estouros de ira, por
exemplo, então nós não somos um daqueles que deverá andar com o pecador que
foi surpreendido. Outra pessoa que seja “espiritual”, isto é, entregue à graça de
envolver o pecador com amor, paz, paciência, bondade e autocontrole, tem essa
tarefa, porque esse pecador deve ser restaurado “com espírito de brandura” (v. 1).
Além do mais, estamos tratando de uma transgressão ou pecado. A disciplina
da igreja (como ocorre com qualquer espécie de disciplina, a de pais com seus
lhos por exemplo) tem a ver com pecados. Isso quer dizer que nós não podemos
disciplinar alguém por ter opinião diferente da nossa, estilo de ensino diferente,
por expressar um temperamento diferente do nosso, não fazer o que queremos
que faça ou não fazer algo quando achamos que deve ser feito.
Nem toda fraqueza ou luta advém do pecado. Imagine uma mãe cujo lho
derramou o leite. Pecado não é a única causa possível para o leite derramado, e,
portanto, a mãe não tem razão para tratar a criança como se ela estivesse em
enroscada. Para começar, as crianças (como os adultos) têm limites. Um
garotinho de dois anos não consegue fazer o que seu irmão de cinco anos
consegue. Uma criança terá de fazer cinco anos antes de ter dez anos de idade.
Assim como não disciplinamos uma aluna de primeiro ano por ela errar em um
problema de matemática de quinta série, um garotinho de dois anos de idade
pode derramar seu leite porque suas mãos e coordenação ainda não são aquilo
que serão no futuro.
As crianças não têm apenas limites; elas também sofrem acidentes. Uma
criança pode simplesmente ter tentado passar as ervilhas para a pessoa a seu lado
na mesa, e, sem malícia e sem querer, derrubou o leite. Neste caso, nossa
frustração é problema nosso, para ser levado diante do Senhor, e não algo pelo
qual disciplinamos legitimamente nosso lho. Os acidentes podem ter maiores
consequências quando envolvem arremessar uma bola de beisebol ou dirigir um
carro. Um motorista adolescente que, enquanto dirige dentro do limite de
velocidade, não viu a criancinha correr de trás de um carro estacionado, terá de
enfrentar o pesadelo de uma situação que não escolheu. Aqueles que cuidam dele
mantém por ele a sua consciência de que há uma diferença entre ele e alguém que
tente dirigir temerariamente ou até mesmo premeditando o mal a uma criança.
Uma nuança ainda mais séria é que para os adultos, os acidentes também
podem ser provenientes de pontos cegos, particularmente em relacionamentos.
Pequenos grupos e ministérios frequentemente se deparam com isso. “Como o
louco que lança fogo, echas e morte, assim é o homem que engana a seu
próximo e diz: Fiz isso por brincadeira” (Pv 26.18–19).
Muitas vezes, os adultos in igirão dor sobre os outros por suas palavras ou
ações relacionais e depois se surpreenderão que outra pessoa tenha se ofendido.
Adultos respondem à dor que causaram dizendo: “Não z por mal”, “Não foi
minha intenção”, ou, “Era só brincadeira”. Isto é verdade. Eles não tinham
intenção ativa de machucar alguém. Muitas vezes, portanto, eles assumem que o
problema está com quem se sente ferido. “Ela não deveria se sentir desse jeito.
Ela tem um problema”, e então o adulto prossegue adiante. O “acidente” na
verdade é um pecado devido, não à intenção, mas a uma falta de instrução.
O problema é que adultos assim estão cegos quanto ao impacto de seu jeito de
relacionar-se, porque não enxergam nem aprenderam a estultícia do que estão
fazendo. Assim, sem querer, é causado ferimento. Embora às vezes seja verdade
que a pessoa ofendida possa aprender a se tornar menos sensível, igualmente é
verdade que dizer “Eu z sem querer” ou “Isso não signi ca nada”, pode ser uma
desculpa esfarrapada. A ajuda vem quando esses adultos deixam a ferida não
intencionada mudar de uma desculpa para uma bandeira vermelha. Causar
constantemente feridas não intencionadas é convite ao adulto para se afastar para
o lado da estrada e olhar novamente o jeito que está dirigindo. Talvez seja
necessária uma mudança pela graça.
Um pecado é diferente de um limite ou um acidente exatamente nisto: se a
criança ergue o copo e, de cara ousada ta seus pais, os pais dizem não
(presumindo-se que a criança tenha aprendido o que essa palavra signi ca), e a
criança deixa cair o copo sem desviar o olhar, estamos agora no âmbito do
pecado. Contudo, mesmo aqui Paulo nos ensina que o erro feito não justi ca que
emprestemos as obras da carne para disciplinar o que cometeu o erro.
A propósito, um líder individual pode não ter a graça de entrar em
determinada situação de um pecador (como uma pessoa molestada por um
abusador, uma mulher assediada por um molestador), mas em um todo, toda a
comunidade de Jesus deverá ter a capacidade de fazê-lo. Surge a pergunta: Existe
alguma espécie de pecado que não nos encontraríamos dispostos a enfrentar ou
seríamos incapazes de tratar da forma como Jesus faria? Nossa resposta nos
mostra onde precisamos da graça individual e de uma comunidade em Jesus que
possa tratar mais coisas de modo coletivo do que pessoalmente.
Conclusão
Muitas vezes penso em Judas e Pedro. Ambos pecaram terrivelmente. Ambos
choraram amargamente.
O pesar conforme o mundo e a tristeza piedosa são exibidos e apresentados em
contraste.
Um lastimou seu erro, mas não voltou atrás. Ele não era deprimido. Nenhum
teve um surto doentio devido a alguma disfunção química. Era diferente. Ele
enforcou-se como a própria solução para o seu pecado. Remorso, e não salvação,
foram as duas mãos que amarraram a corda.
O outro homem encontrou mais do que choro — salpicado na oração e
intercessão de um Salvador. Todo dia, pelo restante de sua vida, os galos ainda
cantavam. Não foram embora de Jerusalém. Todo dia as aves da lembrança
continuavam a gritar e Pedro as ouvia. Mas a cruz permaneceu. O túmulo se
esvaziou. O pesar murchou. O caráter cresceu. Desvaneceu a multidão. Deus
segurou o homem em suas mãos.
Ver Rm 16.16; 1Co 16.20; 2Co 13.12; 1Ts 5.26.
14 | Conhecimento Local
Como é que chegamos a essa oresta quebrada? Será possível construirmos uma casa aqui, fazer
amigos desses tocos destroçados?
–E M
Deus assim planejou. Abrir o seu livro exige necessariamente um ato de amor
por vizinhos e lugares sem renome, desconhecidos. Para acessá-lo, temos de ler
páginas de histórias de pessoas cujos nomes não conseguimos pronunciar, vindos
de lugares dos quais nunca ouvimos falar. Para o conhecer, temos de tratar do
contexto e pano de fundo nas coisas especí cas da vida comum entre pessoas
que, à primeira vista, são irrelevantes para nós. Pense nisso por um momento,
sim? A nal de contas, você é uma pessoa desconhecida em um mundo
desconhecido, que parecerá irrelevante para a maioria das pessoas do mundo de
hoje, quanto mais para aqueles que lerão a respeito de sua vida daqui a um
século. Contudo, Deus ajunta todos os detalhes de nossos dias com amor e
interesse. A próxima vez que você abrir o seu livro, lembre-se disso: Deus quer
que você habite no conhecimento local, está bem?
Chamado
A maioria de nós, em nossos lugares ordinários, quando dizemos que Deus nos
chamou, queremos dizer que, com o passar do tempo nos tornamos mais atentos
a um desejo interno que diminui e aumenta, mas não se apaga. Colocamos então
esse desejo em oração diante de Deus a cada momento, dia a dia. Tomamos
passos nesse tempo para provar na comunidade, com as Escrituras, se temos ou
não os dons que combinam com esse desejo. Ao longo do caminho, aqueles que
nos conheciam melhor no local, bem como aqueles a quem tentamos servir, nos
disseram que foram fortalecidos em Jesus por causa de nosso uso desses dons.
Consequentemente, depois de um tempo (talvez anos), tomamos passos
desajeitados e assustadores de fé, sem saber para onde esses passos nos levariam.
Mas, a essa altura estávamos seguros por esse desejo que não se apagava e essas
a rmações da comunidade dentro do contexto da Palavra de Deus, que talvez
Deus estivesse realmente nos conduzindo a isso. As oportunidades
circunstanciais chegaram, então, nós entregamos nossa vida àqueles que nos
foram dados em obediência e gratidão a Deus.
O que acabo de descrever soa como um curso intensivo no escutar devagar,
comum, que se aprende do pobre sábio ou do servo sofredor contemplativo, não
é mesmo?
Minha pergunta é a seguinte: E se o jeito que Deus usa para chamar a maioria
de nós ao ministério for, em si mesmo, uma educação na espécie de habilidades
que o ministério requer?
Contudo, algo estranho nos acontece. Uma vez que nos tornamos pastores,
muitos de nós deixamos completamente de escutar desse jeito. Em vez disso,
reagimos, falamos muito, e constantemente nos apresentamos como indivíduos
peritos e experimentados, que já sabem o que é necessário e conseguem
rapidamente agir para resolver qualquer questão ou problema que se apresenta.
Isso é especialmente visível quando tentamos a rmar nossa visão e mudar a
cultura de uma congregação. Isso é um problema.
Porque não pertenciam a nenhum lugar, era quase inevitável que se comportassem com violência
nos lugares a que vinham.71
O que as duas histórias destacam é uma tendência de a rmar nossa visão para
determinado lugar sem tê-lo conhecido ou amado antes. Nos dois casos ocorrem
danos desnecessários. Quando os pastores fazem isso com as congregações (ou
vice-versa), os danos são feitos em nome de Deus.
Humilhando-nos
Dezoito meses depois de pregar descalço naquele auditório de segundas chances,
muitos da nossa congregação não estavam mais impressionados. Assim, certo
domingo de manhã (na mesma semana que eu dirigira uma conferência sobre
pregação em outro estado), pedi a todos que me escutavam em minha própria
congregação aquilo que jamais imaginei que eu lhes pediria: “Vocês me ensinam
a pregar? Preciso de sua ajuda”.
As pessoas estavam, por muitas razões, deixando a nossa congregação em
turmas. Uma das razões era a minha pregação. Eu tinha três escolhas. Desistir,
estourar usando a minha autoridade (como os conselheiros jovens de Roboão
zeram), ou me humilhar e escutar o que o conhecimento local tinha a dizer.
Às vezes eu queria desistir e ter um acesso de raiva. Mas con ar em Jesus
signi ca que você e eu temos de fazer o que não queremos, a m de que aqueles a
quem servimos vejam o que precisam ver em Jesus ( Jo 21.18).
Portanto, eu me humilhei, e estabelecemos várias casas abertas. As pessoas
vinham e me diziam o quanto eu poderia melhorar minha pregação. No meu
orgulho eu reclamava a Deus: “Com certeza eles se ofenderiam, e com razão, se
eu entrasse em seus escritórios, sem treino ou experiência naquilo que fazem, e
lhes dissesse como deveriam fazer melhor o seu trabalho”. Então eu gritava ainda
mais alto a Deus. “Não mereço isto. Algumas dessas pessoas querem até mesmo
me ferir. Não querem me amar. Querem que eu produza a experiência que eles
desejam, ou vão embora para outro lugar”.
Era a ameaça do consumidor de “ir para outro lugar”. Às vezes os pastores
desejariam fazer a mesma ameaça. Mas daí viriam os lobos, e de que adiantaria?
Finalmente, as brandas graças vinham como as chuvas suaves, lembrando-me
nas vigílias da noite de que eu não sou empresário, mas pastor de ovelhas, não
sou um servo contratado, mas um pastor com a tarefa de prover cuidado
espiritual a um povo amado por Deus. Minha vida não me pertence. Nem a sua.
Então, que textos há para nos ensinar sobre fazer caminhos que contribuam
para o que é nativo em vez de dinamitar o caminho da congregação com a nossa
visão?
Tito
Creta era uma igreja iniciante, precisando de ajuda real e difícil labor. Era
distante, sem prestígio e sem reputação, exceto de ser notoriamente corrupta.
Mas havia uma história se fazendo em Creta. Jesus tem algo a dizer ali. O que
Tito, esse grande homem com dons superiores deveria fazer por Jesus quando
chegasse ali? Paulo nos diz:
• Fique conhecendo pessoas comuns do local e comece a instruir aqueles que têm
dons de liderança (“para que... constituísse presbíteros”, Tt 1.5). Tito deverá
aprender o nome e a história das pessoas do local.
• Gaste tempo conhecendo cada cidade próxima e, desta forma, busque o bem delas
(“em cada cidade”, v. 5). Tito deverá aprender o nome, a condição e as
necessidades das cidades de sua região.
• Fique sabendo das narrativas locais que se opõem ao evangelho (“Porque existem
muitos insubordinados... É preciso fazê-los calar...”, vv. 10–11). Tito deverá
gastar tempo aprendendo os ensinos, os preconceitos e as personalidades que
desa am o evangelho.
• Gaste tempo para conhecer as famílias do local para cuidado pastoral (“porque
andam pervertendo casas inteiras, ensinando o que não devem”, v. 11). Tito
deverá equipar as famílias em seu andar com Jesus em meio a esses desa os
locais.
• Familiarize-se com a história e literatura do lugar (“Foi mesmo, dentre eles, um
seu profeta [poeta], que disse: Cretenses, sempre mentirosos...”, v. 12 ). Tito
precisa ler as notícias e os porta-vozes locais.
• Cultive uma cultura congregacional que seja de ética relacional (homens mais
idosos, homens mais jovens, mulheres mais velhas, mulheres mais jovens,
2.1–6). Tito deve cuidar da formação de um ambiente relacional, em que
vivam a vida juntos.
Nada disso acontece em um só dia.
Eis algumas coisas que nos fazem andar mais devagar, deixando-nos atentos
antes de acender um fusível ou levar seu órgão portátil à tundra.
Palavras e Memórias
Primeiro, lembre-se de que essa cultura e essas pessoas existiam antes de você
chegar. Eles já usaram palavras e deram a elas seus signi cados, algo que todos
nós fazemos.
Mencione a mim a palavra Mamaw, e minha memória desperta. Ouço a voz
dela dizendo: “As minhas terras”, ou: “ele é um peralta”, ou se referindo a mim
como “Charlie Brown”. Eu a vejo assistindo programas de viagens na televisão,
usando blusa amarela de manga curta, andando pelo quintal catando os pedaços
de pau ou sentada calmamente com os sentidos não falados que às vezes
dançavam e às vezes choravam em seus olhos no Natal. Sinto o cheiro de seu
perfume ou o efeito de suor na pele, das horas gastas cozinhando vagens com
bacon. Vejo a sujeira debaixo de suas unhas por cavoucar seu jardim e horta, nos
quais plantava e colhia as mesmas vagens. Sinto o cheiro do sabonete após um
banho de chuveiro, da madeira bolorenta das escadas que Papaw construiu.
Sinto o sabor de sua macarronada com tomates, os franguitos que ela me trazia
depois do trabalho quando eu era menino, e das lágrimas que beijei em seu rosto
antes dela morrer. Sinto seu abraço na varanda quando ia voltar para a faculdade.
Sinto seu cabelo escuro seco e entregue sobre sua fronte quando ela estava na
casa de repouso.
Mencionar a palavra Mamaw de modo leviano, até mesmo de jeito inofensivo,
é entrar em minha história e revirar as águas emotivas de meu ser. Meu ser
desperta com sentimentos.
Quando se diz qualquer palavra, tal como mamaw, lhos, morte, teologia, Bíblia,
evangelismo ou graça, você o faz num contexto de signi cados estabelecidos antes
de você chegar. Talvez tenha de esclarecer o que quer dizer por algum tempo, e
aprender deles o que eles estão querendo dizer. Fazer isso não é enfrentar
problemas indevidos, mas se envolver no trabalho pastoral normativo.
Entrevista
Sentávamos ao redor de uma mesa na sala. Nossos pratos do jantar já haviam
sido retirados e estávamos apreciando a sobremesa. Eu estava sendo
entrevistado. Eu já estivera aí tempo su ciente para conhecer as duas grandes
perguntas que os comitês norte-americanos de procura de pastor querem saber.
Já havia respondido à primeira pergunta, e não estava certo de que tivesse feito
isso de maneira satisfatória. Essa era, claro: “Qual é a sua visão para essa igreja?”
Anos antes, em meu primeiro pastorado, eu havia respondido a essa pergunta
com uma declaração de cinco pontos, que incluía um diagrama preparado que
entreguei a todos. “Era impressionante”, disseram eles naquela época, e
aparentemente, eu também achei isso. Mas após todos esses anos, tendo
cometido tantos erros, eu não con ava mais como poderia saber, após passar um
total de apenas quatro dias em três meses com pessoas que nunca tinha
conhecido antes, o que eles precisavam da parte de Deus. Antigamente eu não
pensava assim. Mas isso foi antes de pensar sobre pastores e pobres homens
sábios, silêncios e não apenas sentenças, e a obra contemplativa do servo
sofredor.
Após essa caminhada, a minha visão para a igreja foi: “Não sei. Tenho um
punhado de ideias sobre o que signi ca amar a Deus e ao próximo e como isso
impacta a visão de qualquer congregação que queira seguir a Jesus. Acho que
Atos 2 nos oferece direção para os tipos de ministério que qualquer congregação
deve buscar. Estou familiarizado com alguns truísmos sobre Saint Louis, tendo
vivido aqui por algum tempo, que podem provar ser de ajuda. Mas ainda não
posso responder completamente quanto a como essas diretrizes bíblicas devem
ser formuladas nessa determinada congregação e comunidade. Precisaremos de
muito mais tempo juntos.”
Pelos olhares que se seguiram e as perguntas que recebi dessa boa gente, era
óbvio que minha resposta soou estranha. Assim, quando chegou a segunda
pergunta iminente, eu senti que não tinha nada a perder: “Por que nós
deveríamos convidá-lo para ser nosso pastor?”
“Não tenho certeza. Nem sei se deveriam fazê-lo”, respondi.
Cada membro olhou para o outro e voltou o olhar para mim. Com um sorriso
caloroso, um membro respondeu: “Não acho que é assim que se deve responder
a essa pergunta”. Todos nós demos risadas.
“Eu sei”, disse eu. “Sei como eu deveria responder e posso lhes dizer, se
quiserem. Posso lhes dar meu currículo, minha altura, meus anos de experiência
e livros, e minha visão quanto ao que poderei fazer por essa igreja diferentemente
de qualquer outro. Então posso dizer que Deus colocou isso em meu coração e
dizer que, para a sua glória, eu creio que poderemos nos mobilizar e realizar
grandes coisas para um futuro notável”.
“E tem problema com isso?”, um dos membros perguntou ao dar generosa
risada, se inclinando à frente.
“Sim”, acenei. “Se pudermos ser honestos um com o outro, todos sabemos que
só passamos juntos algumas horas. Têm sido ótimas, mas ainda não nos
conhecemos bem. Vocês querem um pastor, e eu quero um trabalho. Estamos
todos apresentando nossa melhor cara. Mas daqui a um ano, as grandes coisas
sobre as quais conversamos hoje não serão importantes. Até lá, vocês conhecerão
as minhas fraquezas, feridas e pecados, e eu saberei dos seus. Daqui a um ano, o
que vai importar é se realmente amamos uns aos outros com nossos pontos
fortes e fracos, nossas dores e pecados. Se não for assim, nossas declarações de
visão e planos não vão mesmo fruti car, não obstante quão animados ou bem-
enunciados. Assim, não sei como fazer, mas espero que haja um meio de chegar a
essa pergunta mais difícil, porém verdadeira.”
Olho para trás e co humilhado. Não estava tentando ser modesto ou difícil.
Mas sei que não foi fácil para eles. Havia jeito melhor de dizer essas coisas e
agora vejo que eu estava mais cínico e ferido do que queria estar. Contudo, estava
sendo tão sincero quanto eu sabia ser meu coração. Não queria que ngíssemos
juntos, quer eu me tornasse seu pastor quer não. Quaisquer que fossem nossos
grandes planos, havia ainda uma cultura de partilhar a vida juntos com a qual
teríamos de contender. Eu não queria feri-los nem ser ferido por eles, porque não
havíamos levado em conta isso. De algum modo, em minha imperfeição, essa
gente querida graciosamente enxergou tudo e soube disso. Devemos ter sido
criados para estar juntos. Tem sido assim desde então. Existe uma graça sobre
graça.
Annie Dillard, Teaching a Stone to Talk: Expeditions and Encounters [Ensinando uma pedra a falar], (Nova
York: HarperPerennial, 1992), 36–39.
Robert Flayhart, Gospel-Centered Mentoring, D.Min Dissertation, Covenant Teological Seminary, 2001
Robert Flayhart, Gospel-Centered Mentoring, D.Min Dissertation, Covenant eological Seminary, 2001.
15 | Liderança
Mas você tem de entender, existem muitas formas de se estar em um lugar.
–T Á
Você e eu temos aprendido muitas formas de liderança e nem todas elas vêm
de Jesus. E se liderar for principalmente uma questão de tentar incorporar aquilo
que você convida os outros a seguir?
O que fazemos: Pastoreamos o povo da Igreja Riverside com nossas orações, presença, ensino e
planejamento.
A próxima declaração diz:
Tomar decisões
Como a nossa tentativa de valorizar coisas pequenas, geralmente negligenciadas,
que são importantes em longos períodos de tempo, formam o modo como
procuramos tomar decisões como presbíteros? De início, eu me encontro com
cada presbítero uma vez por mês para almoçarmos juntos, e tentamos aos
trancos e barrancos achar tempo para gastar juntos, de modo prático na vida da
igreja. Queremos nos conhecer bem quando não há em pauta nenhuma decisão a
tomar para que, quando chegarem as crises de tarde da noite, tenhamos
con ança relacional su ciente para enfrentar momentos onde qualquer um de
nós não esteja em sua melhor hora.
Então nos movemos, embora imperfeitamente, em direção à tomada de
decisões, com um arcabouço de três perguntas que encontramos nas palavras de
Paulo em 2Timóteo 2.23–26.
O círculo interno
No contexto de tomada de decisões, tenho descoberto o que C. S. Lewis
chamava de “Círculo interno” como sendo o desa o mais difícil à liderança. Isso
nos tenta a abrir mão de “amigos a quem realmente amamos e cuja amizade
poderia ter durado a vida inteira, a m de cortejar as amizades daqueles que
parecem ser mais importantes”.73
O que é uma roda interna ou círculo interior? “Do lado de fora, se você já se
desesperou por não conseguir penetrá-lo, você os chama de ‘aquela turma’ ou
‘eles’ ou ‘fulano de tal e sua panela’”.74 Diáconos, presbíteros, conselhos, mesas
administrativas, assembleias, rol de contribuintes, lista de votantes, comitês,
equipes ministeriais, autoridades, amizades, famílias — todos esses funcionam
como círculos internos. No pior cenário, os círculos internos locais expõem
“nosso anseio por fazer parte deles, nossa angústia quando somos excluídos, e a
espécie de prazer que sentimos quando conseguimos entrar”.75
O ídolo do círculo interior expõe a razão porque somos propensos a desculpar
um líder colega a quem amamos, mesmo quando ele ou ela estiver prejudicando
outras pessoas. Vemos a dignidade ou os dons desse líder com tanta clareza que,
quando experimentamos dor ou preocupação pelo lado mais obscuro de seu
caráter, sentimo-nos desorientados, encontramos meios de racionalizar ou
camos ansiosos quanto a perder nosso relacionamento ou nosso emprego ou
desconcertar a outros. A sabedoria de julgar com lentidão as fraquezas do
próximo passa à loucura de fazer um catálogo de desculpas esfarrapadas.
Lembro-me de um homem que foi candidato a presbítero numa das igrejas em
que eu servi. Surgiu uma divisão entre os outros líderes quanto a este homem ser
capacitado para o serviço. Aqueles que expressaram cautela e acharam que era
melhor esperar perderam no voto. Duas coisas dolorosas vieram à tona quase
imediatamente.
Primeiro, apenas algumas semanas depois de eleito, esse presbítero encurralou
um membro da igreja depois de uma reunião da congregação, tomando sobre si a
tarefa de corrigi-lo intensamente por uma resposta dada na reunião. O membro
da igreja, quase em lágrimas e confuso, gritou pelo corredor pedindo ajuda ao
pastor.
Segundo, veio à luz que, na realidade, nenhum membro da congregação tinha
apresentado o nome desse homem para a liderança. Somente os seus amigos que
já eram presbíteros o zeram. Ingenuamente, esses homens bem-intencionados,
por lealdade e amor a um amigo, haviam usurpado a prática sábia. Sabiam que
ninguém na congregação reconhecia quaisquer dons de pastoreio nessa pessoa.
Mas desculparam isso, porque a seus olhos o homem tinha quali cações e eles,
a nal, eram os líderes. Fecharam os olhos ao fato de que ele não tinha sido
provado em seu cuidado para com as pessoas comuns. Como resultado, o
presbítero foi defendido (mas não ajudado a crescer). Enquanto isso, a
congregação foi mal-usada. A m de minorar os danos feitos por líderes do
círculo íntimo, Paulo relembra a Timóteo:
Conjuro-te, perante Deus, e Cristo Jesus, e os anjos eleitos, que guardes estes conselhos, sem
prevenção, nada fazendo com parcialidade. A ninguém imponhas precipitadamente as mãos. Não
te tornes cúmplice de pecados de outrem... Os pecados de alguns homens são notórios e levam a
juízo... ao passo que os de outros só mais tarde se manifestam. (1Tm 5.21–24).
Criaturas no Éden,
almejando.
que retornam,
como pobres homens sábios em lugares pequenos,
esquecidos por aqueles que eles ajudam a libertar,
mas por Ele conhecidos, a quem eles contemplam
nos silêncios, escutando, momento a momento
para sustentar com uma palavra,
Viúvas e lavradores
Sei que o chamado para ser um profeta e rei soa mais nobre do que ser viúva ou
lavrador. A nal, profeta e rei signi cam grandes posições, para momentos
heroicos em uma geração. Não desprezo isso. Ansiamos por uma geração na qual
Deus nos conceda tais líderes. Tomemos, por exemplo, a Elias no Monte
Carmelo, e desejamos que nós também possamos permanecer rmes contra os
falsos ensinos e falsos profetas de nossa época, com a mesma coragem. Não é de
se maravilhar! Considere que nos dias dos juízes, quando “cada um fazia o que
achava mais reto” ( Jz 21.25), Deus levantou homens e mulheres para feitos
poderosos e eventos de campeão. “Suscitou o S juízes, que os livraram da
mão dos que os pilharam” ( Jz 2.16). Ah! Levantar-se como Débora ou Gideão
ou Sansão, não com espadas, mas com verdadeiro poder espiritual! Olhamos
para nossos tempos. Vemos todos fazendo o que acham certo aos próprios olhos.
Nós também ansiamos justamente por tal reforma e avivamento. Os que são
propensos a resignar-se precisam que Jesus desperte esses desejos para a nossa
geração.
Mas, aqueles entre nós que foram chamados ao trabalho pastoral precisarão da
ajuda do lavrador e da viúva mais frequentemente. Esses heróis improváveis nos
ensinam algo vital sobre Deus e a nossa vocação.
Primeiro, existem heróis que nunca receberam os holofotes de sua geração.
Enquanto os juízes participaram publicamente em transformação cultural
substancial, um fazendeiro de nome Boaz calmamente andava pelos campos
enlameados, plantava seus grãos, tratava bem os seus empregados, e buscava o
bem comum de sua comunidade com trabalho diário, duro e cheio de oração.
Esse lavrador amava a mulher gentia e sua família. Tinham uma vida ordinária,
de verdadeiro amor, juntos. Eles amavam a Deus. Aqueles que conhecem a
história argumentarão que esse amor comum, nessa vida comum, provou ser
igual, se não maior, do que os grandes feitos dos juízes naquela geração.
Segundo, momentos heroicos são celestiais, mas não são o céu. Que alívio, que
celebração, que gratidão e felicidade surgem quando uma pessoa é livrada da
opressão, corrupção e maus-tratos; quando as almas são despertadas; quando
dignidade e integridade e decência não são somente divisas, mas as ações dessa
terra! Contudo, os efeitos dos momentos heroicos desvanecem. Isso era verdade
nos tempos dos juízes. O coração humano não foi mudado intrinsecamente, de
modo universal, pelos feitos poderosos. Em pouco tempo surgia outra geração
que precisava de outro juiz. Mesmo essas poderosas libertações não puderam
devolver a família de Noemi ou o marido de Rute. Vieram os avivamentos, mas
as lápides dos túmulos permaneceram em Moabe.
Terceiro, às vezes as visitas de Deus são vistas quando pão comum é colocado
sobre a mesa de uma família comum (Rt 1.6). Às vezes, o auxílio de Deus é
encontrado na provisão de um grão corriqueiro ou em um amigo comum.
Quarto, os momentos heroicos têm como alvo a recuperação daquilo que é
ordinário e comum. Débora e Gideão foram levantados por Deus para que todos
pudessem voltar para suas casas, com uma vida em paz. O grande triunfo de um
Super-homem na cção é libertar do mal os cidadãos de Metrópoles, para que
possam voltar para o trabalho, casar-se, viver e comer e encontrar signi cado
nisso. O grande triunfo da “Grande Geração”76 foi livrar o mundo da tirania para
que as pessoas pudessem voltar à bendita alegria da vida diária e do amor. O
verdadeiro ato de heroísmo em Jesus na cruz e no túmulo vazio é para que o seu
povo retorne para a graça de viver a vida com Deus, em um lugar, com amor por
nossos vizinhos, e com a liberdade de gozar a Deus no trabalho, lazer, descanso e
amor que ali ele nos dá.
Romantismo e resignação
Sem essas lembranças, alguns de nós nos desgastamos com o romantismo. Não
conseguimos encontrar Deus nas coisas comuns, no ordinário. Mexemo-nos,
inquietos, de um grande momento para o próximo. Com regularidade,
empurramos os outros para o mesmo redemoinho. Damos pouco espaço no
ministério para uma Noemi, que não tem o marido de volta, ou para um local
onde a grande visitação de Deus seja o fato de que as comuns mesas de jantar
tenham novamente o que comer. Temos di culdades em glori car a Deus
comendo, aprendendo a amar, indo dormir, levantando na manhã seguinte para
ir ao mesmo trabalho. A ideia de viver e ministrar em um ou dois lugares
desconhecidos e comuns por cinquenta anos, para então ir para casa estar com o
Senhor soa como a morte. De que vale, para Deus, uma vida comum nos campos
de trigo?
Outros se deterioram internamente pela resignação. Se há alguns de nós que
não encontram Deus nas coisas comuns, há muitos que desistiram de qualquer
coisa extraordinária dada por Deus ou realizada por nós. Dizemos com Noemi:
“Não me chameis Noemi; chamai-me Mara, porque grande amargura me tem
dado o Todo-Poderoso” (Rt 1.20). Nenhum amor encontrará de novo a Rute.
Nenhum pão virá à nossa mesa. Nenhum juiz nos salvará. Tudo é amargo e sem
razão de ser; não adianta tentar. Acho que meu amigo pastor que tirou sua
própria vida aterrissou aqui. O que adianta para Deus uma vida comum nos
campos de trigo?
O resultado é um tipo de pensamento de “tudo ou nada”. Ou tudo é
maravilhoso ou não existe nada de bom — de qualquer jeito, um campo de trigo
não é su cientemente grandioso (por exemplo, Adão e Eva no Éden). O
romantismo e a resignação têm esse lema em comum.
Em contraste aos dois, Jesus nos conclama ao realismo romântico. Ele comprou
isto por nós na cruz. Ansiamos por momentos heroicos, mas reconhecemos que
eles não são o céu e que mais provavelmente, outra pessoa entre uns poucos e
raros terá esse papel momentâneo. Somos realistas quanto ao fato de que os
momentos heroicos não são o modo normal em que Deus visita diariamente o
seu povo. No entanto, ainda cremos que Deus está fazendo algo maior do que
conseguimos enxergar atualmente. Em seu amor por nós, ele está recuperando
em Jesus aquilo que foi perdido. Somos realistamente românticos. Vemos pão
sobre a mesa e damos graças a Deus! Pão não é mais apenas pão. Pão é uma
dádiva, um dom — Deus se lembrou de nós. O amor comum, do jeito que deve
ser, junto com uma longa vida de corriqueira delidade a Deus, realiza muito
mais do que sabemos. Um fazendeiro, uma viúva e uma gentia, em um lugar
desconhecido por toda sua vida, poderão revelar, no m, a verdadeira grandeza
de Deus. O realista romântico fala desse modo:
Se você fosse marcar as pessoas mais importantes na geração dos juízes, quem seriam? Gideão?
Débora? Sansão? Que feitos poderosos! Que ajuda Deus trouxe por intermédio deles. Mas Jesus
comprou novos olhos para ver mais do que os juízes heroicos. Mateus, no primeiro Evangelho do
Novo Testamento, nos conta de outros dois que viveram no tempo desses juízes impressionantes.
Ele recorda para nós “o livro da genealogia de Jesus Cristo, lho de Davi, lho de Abraão” (1.1).
Nos versículos 5 e 6, Mateus diz o seguinte: “Boaz; de Rute, gerou a Obede; e Obede, a Jessé;
Jessé gerou ao rei Davi;”
Enquanto todo mundo fazia o que era certo aos próprios olhos e os
reformadores procuravam virar com poder a maré espiritual, a promessa de
Genesis 3.15 estava sendo buscada por Deus em uma simples fazenda, em meio
a sonhos esmiuçados e recuperados de amor e vida comuns.
Os romantizados e os resignados — nenhum deles teria visto a Rute como
senhora real na linha do Rei. Enquanto os romantizados cavam na la para
conseguir o autógrafo de alguém como Gideão, e enquanto os resignados caram
em casa reclamando do exagero, ninguém teria notado o tremendo mover de
Deus em seu meio.
Não importa quão grandes ou talentosos somos, Deus nos convida para ele por
amor local, a pessoas locais, em uma localidade de nida, com a longa sabedoria
aprendida pelo conhecimento local em Jesus, até que ele venha. Isto quer dizer
que, se você estiver se desgastando, tentando ser e fazer mais do que isso, Jesus o
chama para parar com todo esse pisoteio por todo lado e vir nalmente para
casa. A grande obra a ser realizada está bem à nossa frente, com as pessoas e nos
lugares que a sua providência nos concedeu. Para mim, isso quer dizer ler os
jornais Webster-Kirkwood Times ou St. Louis Post Dispatch, quando soaria muito
mais atraente e importante ler o New York Times ou o USA Today. Posso ler os
jornais anteriores sem os últimos, mas não vice-versa, porque aqui é o lugar para
onde ele me chamou. É aqui que ele está operando. Aqui está meu posto, meu
lugar, minha vida, a sua glória.
Palavra e Sacramento
Realismo romântico explica a razão pela qual nos entregamos à leitura e pregação
da Palavra de Deus junto à acolhida regular do pão e do cálice.
Alguns romanticamente fazem uma encantação de um texto bíblico, como se a
mágica estivesse enterrada nas páginas e tinta. Outros se resignam a nada mais
que recitar palavras antigas sobre uma superfície morta. Mas Paulo, o apóstolo,
confunde esses dois pontos de vista e fala de um tempo em que a pregação vem
para certa localidade, com suas pessoas, “em poder, no Espírito Santo e em plena
convicção” (1Ts 1.5).
Alguns romanticamente exageram a voz, como se a santidade tivesse um tom
alto, como se Deus falasse com uma articulação de trombeta, carregada de
tremor ou, em contraste, apenas com uma voz tímida, sussurrando gritos de
glória. Outros fazem raio-X de brincadeiras vocais, sendo cínicos quanto ao
cântico. “Voz”, dizem eles, “ nada mais é que voz”. “A voz é limitada pelas cordas
vocais, vazia. A voz é fria como a religião”.
Mas Paulo diz o contrário. Há tempos em que a voz humana fala em toda sua
grandeza e fragilidade, mas o que a congregação ouve é o próprio Deus, que lhes
fala por meio desse texto impresso e dessa voz humana. “Tendo vós recebido a
palavra que de nós ouvistes, que é de Deus, acolhestes não como palavra de
homens, e sim como, em verdade é, a palavra de Deus, a qual, com efeito, está
operando e cazmente em vós, os que credes” (1Ts 2.13).
O Espírito toma essa Palavra lida e pregada. O alfabeto ordinário, a voz
comum, aqueles que dão vida pelo sopro do Espírito, e pessoas comuns
respondem a um Deus que está presente. Seu Espírito em Jesus lhes fala, e com
seus defeitos e limites eles realmente ouvem: “deixando os ídolos, vos
convertestes a Deus, para servirdes o Deus vivo e verdadeiro e para aguardardes
dos céus o seu Filho, a quem ele ressuscitou dentre os mortos, Jesus, que nos
livra da ira vindoura” (1Ts 1. 9–10).
Da mesma forma, o pão e o vinho anunciam “a morte do Senhor” (1Co 11.26).
Pão e suco, hóstia ou vinho, nada mais são que isso. Compramos em oferta no
mercado da esquina. Contudo, Deus se aproxima de nós aqui; de maneira
singular nós degustamos e provamos, vendo não somente a massa e as uvas
esmagadas, mas a própria bondade do Cristo vivo. Lembrarmo-nos dele torna-se
em recebê-lo. Ele nos encontra em verdadeira presença, enquanto pela fé
mastigamos e engolimos e oramos. A morte espreita aqui entre os pedaços. A
vida surge quando nos ajuntamos para celebrar. O corpo do Senhor é aqui
discernido. É sagrado o que comemos (١Co 11.27–29).
Estou aprendendo que o realista romântico encontra seu caminho em direção a
um longo compasso, em um lugar local. Porque pela fé, existe mais nessa tinta e
nesse texto, nessas vozes variadas de pregadores humanos, nessas pessoas do
local com as suas histórias do cotidiano, nesse pão comprado no mercado ou
assado no forno caseiro e nesses copos de suco ou vinho barato — existe mais
aqui, estou dizendo, do que podemos ver com nossos olhos. Deus está aqui. Essa
mesma velharia, esse mesmo velho de sempre tem asas.