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Table of Contents

Introduçã o: Aqui há dragõ es?


1. O que Deus fazia antes da criaçã o?
2. Criaçã o: o amor do Pai transborda
3. Salvaçã o: o Filho partilha o que é dele
4. A vida cristã : o Espírito embeleza
5. Quem entre os deuses é como tu, ó Senhor?
Conclusã o: Nã o há outra escolha
 
 
 
 

Deleitando-se na Trindade
Uma introduçã o à fé cristã
 
 
 
 
 
Michael Reeves
 

 
 

Copyright © 2012 de Michael Reeves


Publicado originalmente em inglês sob o título
The Good God: Enjoying Father, Son and Spirit
pela Paternoster Press — uma divisã o da Authentic Media Limited,
Milton Keynes, MK8 0ES, Reino Unido.

Todos os direitos em língua portuguesa reservados por

EDITORA MONERGISMO
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Telefone: (61) 8116-7481 — Sítio: www.editoramonergismo.com.br

1 a ediçã o, 2013
 
Tradução : Josaías Cardoso Jú nior
Revisão : Rogério Portella e Felipe Sabino
Capa : Raniere Maciel Menezes

PROIBIDA A REPRODUÇÃ O POR QUAISQUER MEIOS,


SALVO EM BREVES CITAÇÕ ES, COM INDICAÇÃ O DA FONTE.

Todas as citaçõ es bíblicas foram extraídas da Bíblia da


versã o Bíblia Almeida Século 21,
© 2008, publicada por Ediçõ es Vida Nova,
salvo indicaçã o em contrá rio

 
Minha querida Mia,
 
Meu amor a você nada é além de uma faísca da poderosa chama de amor sobre a qual você
pode ler aqui. Espero que isto ajude-a a desfrutar do amor do Pai.

Sumá rio

Sumário
Introduçã o: Aqui há dragõ es?
1. O que Deus fazia antes da criaçã o?
2. Criaçã o: o amor do Pai transborda
3. Salvaçã o: o Filho partilha o que é dele
4. A vida cristã : o Espírito embeleza
5. Quem entre os deuses é como tu, ó Senhor?
Conclusã o: Nã o há outra escolha
Introdução: Aqui há dragões?
 
“Deus é amor”: é quase impossível haver três palavras mais expressivas. Elas parecem
vívidas, amá veis e tã o calorosas quanto uma fogueira crepitante. Mas e quanto a “Deus é
uma Trindade”? Nã o. Dificilmente haveria o mesmo efeito: a expressã o soa fria e pesada.
Trata-se de algo compreensível, mas o alvo deste livro é dar fim a essa tolice. Sim, a
Trindade pode ser apresentada como um dogma sufocante e irrelevante, mas na verdade
Deus é amor justamente por ser uma Trindade.
Assim, este livro versa apenas sobre o crescimento no prazer em Deus e na observaçã o de
como o ser triú no de Deus torna belos todos os seus caminhos. É a chance de provar e ver
como o Senhor é bom, de ter o coraçã o cativado e ser revigorado. Afinal, apenas quando sã o
entendidas as implicaçõ es de Deus ser uma Trindade é possível sentir de fato a beleza, a
amabilidade arrebatadora de coraçõ es e a bondade transbordante de Deus. Se a Trindade
fosse uma característica divina que pudéssemos eliminar, nó s nã o o estaríamos livrando de
um peso incô modo; na verdade, arrancaríamos algo tã o encantador a respeito dele. Pelo
fato de Deus ser triú no, seu caráter trino o torna tã o bom e desejá vel.
Devo parabenizá -lo, no entanto, por ter lido até este ponto. Os livros cristã os mais vendidos
versam sobre “como fazer” — sã o os que atribuem tarefas de imediato. E para os viciados
em “fazer”, a ideia de ler um livro sobre a Trindade deve se parecer com ter de falar “Três
pratos de trigo para três tigres tristes” — algo um pouco complicado, mas desprovido de
propó sito. Entretanto, o cristianismo nã o consiste primariamente na mudança do estilo de
vida; ele diz respeito a conhecer a Deus. Conhecer a Deus e crescer no gozo dele é o motivo
para a nossa salvaçã o — e isso será enfatizado aqui.
Todavia, conhecer melhor a Deus contribui na realidade para mudanças mais profundas e
prá ticas também . Conhecer o amor de Deus é precisamente o que nos faz amar. Sentir a
desejabilidade de Deus altera nossas preferências e inclinaçõ es, o que dirige nosso
comportamento: começamos a desejar Deus mais que qualquer outra coisa. Assim, ler este
livro nã o significa participar de um jogo intelectual. Na verdade, veremos que a natureza
trina desse Deus afeta tudo — do modo que ouvimos mú sica a como oramos: ela contribui
para casamentos mais felizes, para tratarmos os outros com mais afeto, para a vida melhor
na igreja; ela dá segurança aos cristã os, molda a santidade e transforma a pró pria maneira
que enxergamos o mundo ao nosso redor. Sem exagero: o conhecimento desse Deus muda
o rumo da vida.
 
Assustador, hein?
 
Há , claro, o grande obstá culo no caminho: que a Trindade seja vista, nã o como uma soluçã o
e um deleite, mas como uma esquisitice e um problema. Na verdade, a maneira usada por
algumas pessoas para falar sobre a Trindade parece apenas reforçar essa ideia. Pense, por
exemplo, em todas as ilustraçõ es que soam tã o desesperadas. “A Trindade”, alguma alma
prestativa explica, “assemelha-se a um ovo, onde há casca, gema e clara; no entanto, trata-
se de um só ovo!”. “Nã o”, diz outra, “a Trindade é mais parecida com um trevo: uma ú nica
folha, mas há três pontas sobressalentes. Como o Pai, o Filho e o Espírito”. E ficamos
imaginando por que o mundo zomba. Afinal, seja comparada a um arbusto, a uma tira de
bacon, aos três estados da á gua ou a um gigante de três cabeças, a Trindade começa a soar
bastante bizarra, como um crescimento inú til e disforme ao entendimento a respeito de
Deus, que com certeza poderia ser eliminado sem qualquer consequência além de um
suspiro universal de alívio.
Torna-se evidente que, se a Trindade for vista como uma monstruosidade estranha e
fantá stica, nã o é muito surpreendente a aparência irrelevante. Como o cará ter oval de Deus
poderia ser mais que uma curiosidade esquisita? Eu nunca me prostrarei em assombro ou
descobrirei meu coraçã o atraído por um Deus tã o ridículo. Porém, de muitas formas, é
nesse ponto que estamos hoje. Apesar de tudo o que se possa assentir de forma ortodoxa
com a crença na Trindade, ela parece misteriosa demais para fazer alguma diferença
prá tica em nossa vida. Em outras palavras, a ilustraçã o do ovo e suas variaçõ es podem nã o
ser o rumo certo a tomar.
Outro rumo que pode reforçar a ideia do cará ter essencialmente problemá tico da Trindade
é limitar-se apenas a versar sobre o que nã o constitui a Trindade. Explicamos que o Pai nã o
é o Filho, o Espírito nã o é o Pai, nã o há três deuses, e por aí vai. Tudo isso é verdade.
Contudo, é possível terminar com a sensaçã o vazia de que tivemos sucesso em fugir de
todos os tipos de heresias só rdidas, ao custo da permanência na dú vida sobre quem ou qual
deus adorar de fato.
Surge a palavra “mistério”, um vocá bulo tã o tranquilizador que nos permite sentir que a
absoluta ignorâ ncia sobre como a possibilidade de Deus ser ao mesmo tempo um e três é
de fato como tudo deveria ser. “Deus é um mistério”, podemos sussurrar nas entonaçõ es
mais piedosamente murmuradas, “nó s nã o devemos saber essas coisas”. No entanto, ainda
que esses sentimentos recebam uma pontuaçã o alta pelo tom reverente, eles ganham uma
nota muito baixa em precisã o. Em Efésios 3, por exemplo, quando Paulo escreve sobre o
“mistério” de os gentios agora estarem incluídos na salvaçã o, a palavra “mistério” significa
apenas segredo. Paulo está partilhando um segredo conosco. Agora sabemos. Nã o fomos
deixados imaginando seu possível significado. Os gentios agora foram incluídos. Nã o há
nada “misterioso” nesse mistério.
Com Deus ocorre o mesmo. Deus é um mistério, mas nã o no sentido de abduçõ es
alienígenas ou de coisas que fazem barulho à noite. Com certeza, nã o no sentido de “vai
saber, por que se incomodar?”. Deus é um mistério no sentido de que sua identidade e suas
qualidades sã o segredos, coisas que jamais teríamos descoberto por nó s mesmos. Mas esse
Deus triú no se revelou a nó s. Assim, a Trindade nã o constitui o exemplo de algo absurdo e
visivelmente inexplicá vel, como um círculo quadrado ou um teó logo interessante. Pelo
contrá rio, pelo fato de o Deus trino ter se revelado, pode-se compreender a Trindade. Isso
nã o equivale a dizer que se pode exaurir o conhecimento a respeito de Deus, abarcar e
envolver o cérebro em torno dele, ao apenas acumular algumas partículas de informaçã o
antes de passar para outra doutrina. Conhecer a Trindade é conhecer Deus, o Deus eterno e
pessoal de beleza, interesse e fascínio infinitos. A Trindade é o Deus que se pode conhecer e,
para sempre, crescer em conhecimento mais profundo.
Tudo isso quer dizer que a Trindade nã o é um problema. Ao examinar a Trindade, nã o se
abandona o mapa para entrar em á reas perigosas e inexploradas de vã especulaçã o. Muito
longe disso. O aprofundamento na Trindade cumpre o que Davi afirmou poder fazer todos
os dias de sua vida no salmo 27: contemplar a beleza do Senhor. E, enquanto o fazemos,
espero que você comece a se sentir como Davi, e que você possa agir da mesma forma.
 
Monges entediados em tardes chuvosas
 
Há outro problema que as pessoas podem ter com a Trindade: a palavra nã o é usada na
Bíblia. Isso nã o soa bem e deu origem à lenda de que a Trindade é uma invençã o de
teó logos enclausurados com muito tempo disponível. Diz o relato que a Bíblia reconhece
apenas o monoteísmo simples e sucinto, mas que, com alguma engenhosidade, especulaçã o
intensa e toda uma série de truques filosó ficos, a igreja conseguiu preparar esse prato
intricado e desconcertante, a Trindade.
Contudo, nã o é isso que a histó ria registra. O apó stolo Paulo, por exemplo, nã o mostrou
qualquer sinal de conflito ao confessar: “Jesus Cristo é o Senhor, para gló ria de Deus Pai”
(Fp 2.11). Nã o é perceptível a ignorâ ncia quase absoluta a respeito do Pai, do Filho e do
Espírito no ano 50 d.C. e seu esclarecimento absoluto por volta do ano 500 d.C. E mais:
ainda que os teó logos dos séculos posteriores da igreja usem termos e vocá bulos filosó ficos
nã o encontrados na Bíblia (como “Trindade”), eles nã o estavam tentando fazer acréscimos à
revelaçã o apresentada por Deus sobre si mesmo, como se a Escritura fosse insuficiente.
Eles estavam tentando expressar a verdade sobre a identidade de Deus de acordo com a
revelação encontrada na Escritura . De modo particular, eles tentavam articular a
mensagem da Escritura como uma reaçã o aos que a distorciam das mais diversas formas —
e, para cada nova distorçã o, era necessá rio cunhar um novo vocá bulo em resposta.
De maneira bastante deliberada, entã o, pretendo demonstrar que, do começo ao fim, a
Trindade é uma verdade bíblica — e quero que até o formato do livro deixe isso claro.
Assim, daremos atençã o a muitas das grandes mentes que pensaram sobre o assunto, mas
quero evitar passar a impressã o de que elas estavam em algum está gio mais elevado de
evoluçã o religiosa que a Bíblia. Essas pessoas foram meros arautos do Deus triú no revelado
na Escritura.
 
 
“Bíblica? Sério?”’
 
“E quanto a Deuteronô mio 6.4?”, ouço meus muitos leitores muçulmanos exclamarem:
“Ouve, ó Israel: O SENHOR , nosso Deus, é o único SENHOR ”. O ú nico, nã o três. Mas o objetivo
de Deuteronô mio 6.4 nã o é ensinar que “O Senhor, nosso Deus, é uma singularidade
matemá tica”. No meio de Deuteronô mio 6, isso seria completamente inesperado, para dizer
o mínimo. Pelo contrá rio, Deuteronô mio trata do povo de Deus tendo o Senhor como o
único objeto de afeiçã o. Ele é o ú nico digno deles, e eles devem amá -lo exclusivamente, e de
todo coraçã o, alma e força (Dt 6.5). Na verdade, a palavra para “ú nico” em Deuteronô mio
6.4 também nã o transmite nada de “singularidade matemá tica”. Ela também é usada, por
exemplo, em Gênesis 2.24, passagem em que Adã o e Eva — duas pessoas — sã o
mencionadas como apenas uma .
Examinaremos muitos desses versículos e, através deles todos, creio que ficará claro:
quanto mais avançamos nas Escrituras, mais vemos que o Deus que elas apresentam é
realmente triú no.
 
 
Característica cristã
 
Afinal, qual é exatamente a importâ ncia da Trindade? Ela é o petit gâteau da fé — uma
ó tima maneira de encerrar os trabalhos, porém opcional — ou é o prato principal?
Protejam-se dos trovõ es do Credo atanasiano , uma declaraçã o de fé do século V ou VI, que
assim se inicia:
Quem quiser se salvar deve antes de tudo professar a fé cató lica [isto é, a fé ortodoxa da igreja]. Pois quem nã o a
professar de forma integral e inviolada perecerá sem dú vida por toda a eternidade. A fé cató lica é esta: que
adoremos o ú nico Deus na Trindade e a Trindade na unidade.

Hoje, porém, isso soa exagerado a ponto de histeria. Devemos crer na Trindade ou “perecer
por toda a eternidade”? Nã o. Isso vai longe demais, certo? Afinal, embora estejamos
dispostos o bastante a incluir a Trindade em nossa lista de “coisas em que os cristã os
creem”, a sugestã o de que a pró pria salvaçã o depende da Trindade surge como uma
ameaça ridiculamente desmedida. Como algo tã o curioso poderia ser “antes de tudo”
necessá rio para a salvaçã o?
E, ainda assim, a inabalá vel ousadia do Credo atanasiano nos força a perguntar o que é
essencial à fé cristã . Qual dos artigos de fé, nós diríamos, deve ser professado antes de
todos os outros? Salvaçã o apenas pela graça? A obra expiató ria de Cristo na cruz? Sua
ressurreiçã o corporal? Com certa essas sã o coisas de “primeira importâ ncia” (1Co 15.3),
tã o críticas que nã o podem ser abandonadas sem que se perca a pró pria natureza e
excelência do evangelho; entretanto, elas nã o se encontram “ antes de tudo ”. Por si
mesmas, nã o sã o elas que tornam cristã o o Evangelho cristã o. As testemunhas de Jeová
podem acreditar na morte de Cristo; os mó rmons em sua ressurreiçã o; outros na salvaçã o
pela graça. Claro, à s vezes, as semelhanças sã o apenas superficiais, mas o pró prio fato de
certas crenças cristã s poderem ser compartilhadas por outros sistemas de fé mostra que
elas nã o podem ser a fundaçã o do Evangelho cristã o, a verdade que se encontra “antes de
tudo”.
 
Os budistas protestantes
 
Francisco Xavier foi missioná rio cató lico romano à Á sia. Ao chegar ao Japã o, em 1549,
deparou-se com uma facçã o particular do budismo ( Jōdo Shinshū ) que cheirava, segundo
ele, ao que chamou de “heresia luterana”. Isto é, como o reformador Martinho Lutero, esses
budistas criam na salvaçã o só pela graça, nã o pelo esforço humano. A simples confiança em
Amida, [1]
eles afirmavam, em vez da confiança no eu, era suficiente para alcançar o
renascimento na terra pura. Se nó s o invocarmos, eles ensinavam, entã o, a despeito de
nossas falhas, todas as conquistas dele se tornarã o nossas.
Evidentemente, a “salvaçã o” mencionada nã o se parecia em nada com o conceito cristã o da
salvaçã o: nã o se tratava de conhecer Amida ou de ser conhecido por ele; e sim a iluminaçã o
e a obtençã o do nirvana. [2]
Todavia, trata-se da salvaçã o fundamentada nas virtudes e
conquistas de outra pessoa, cuja apropriaçã o decorre apenas da fé.
 
 
Nã o é preciso perturbar-se com essas semelhanças. A distinçã o do cristianismo nã o foi
usurpada. Afinal, o que torna o cristianismo sui generis é a identidade divina. O Deus que
adoramos: esse é o artigo de fé que se encontra antes de todos os outros. O alicerce da
nossa fé centra-se em nada menos que o pró prio Deus, e cada aspecto do evangelho —
criaçã o, revelaçã o, salvaçã o — é cristã o só na medida em que consiste na criaçã o, revelaçã o
e salvaçã o desse Deus, o Deus. Eu poderia crer na morte de um homem chamado Jesus, em
sua ressurreiçã o corporal, poderia até acreditar na salvaçã o só pela graça; no entanto, caso
nã o creia nesse Deus, entã o, nã o sou um cristã o, simples assim. Desse modo, pelo fato de o
Deus cristã o ser, a Trindade assume o controle de toda a fé cristã , tornando-se a verdade
que molda e embeleza todas as outras. A Trindade é a cabine de comando de todo o
pensamento cristã o.

Não podemos nos contentar com apenas “Deus”?


Por mais estranho que pareça, a identidade de Deus e suas características sã o assuntos que
já presumimos conhecer e, portanto, nã o é preciso pensar muito mais sobre eles. Em
especial no Ocidente pó s-cristã o — em que durante séculos houve uma aparente
concordâ ncia universal sobre a identidade de Deus —, isso parece ó bvio. Assim, os cristã os
perguntam aos nã o cristã os se eles acreditam em “Deus” — como se o pró prio conceito de
“Deus” fosse autoexplicativo, como se todos pensassem sobre o mesmo tipo de ser.
Porém, a tentaçã o de moldar Deus de acordo com expectativas e pressuposiçõ es pessoais,
de tornar esse Deus muito parecido com outro, tem força entre os seres humanos. Ela é
observá vel por toda a histó ria: na Idade Média, parecia ó bvio para as pessoas pensarem em
Deus como um senhor feudal; os primeiros missioná rios aos vikings achavam ó bvio
apresentar Cristo como um Deus guerreiro, um berserker divino de posse de um
[3]

machado que poderia desbancar Odin. E por aí vai. O problema é que o Deus triú no nã o se
encaixa bem no molde de nenhum outro Deus. Tentemos nos contentar com algum “Deus”
indeterminado, e muito rá pido nos descobriremos com outro Deus.
De forma irô nica, é por isso que muitas vezes nos debatemos com a Trindade: em vez de
começar do zero e perceber que o Deus triú no é um tipo de ser radicalmente diferente de
qualquer outro candidato a “Deus”, tentamos atribuir ao Pai, Filho e Espírito o molde que
sempre atribuímos ao nosso Deus. No Ocidente, em geral, o conceito “Deus” já é sutilmente
definido: refere-se a uma pessoa, nã o três. Assim, quando tratamos da Trindade, sentimo-
nos como se estivéssemos tentando apertar duas pessoas a mais no entendimento a
respeito de Deus — e isso, para dizer o mínimo, é bastante difícil. E ideias difíceis assim sã o
abandonadas. A Trindade se torna um apêndice inconveniente.
Estamos tã o acostumados a moldar Deus de acordo com nossas premissas que nossa mente
se rebela contra a ideia do Deus que nã o se assemelha ao que esperaríamos. Imaginá vamos
que Deus fosse um ser mais simples — um Deus monopessoal. Portanto, talvez a
matemá tica aparentemente ruim da Trindade nã o nos desencoraje tanto quanto a simples
imposiçã o de um tipo inesperado de Deus.
E nã o é apenas o caso de que somos rá pidos em substituir o Deus vivo por deuses de nossa
concepçã o: o mundo já está repleto de incontá veis candidatos — muitas vezes,
drasticamente diferentes — a “Deus”. Alguns sã o bons, alguns nã o. Alguns sã o pessoais,
alguns nã o. Alguns sã o onipotentes, outros nã o. Você os encontra na Bíblia. Nela, o Senhor
Deus de Israel, Baal, Dagom, Moloque e Á rtemis sã o completamente diferentes. Ou, por
exemplo, veja como o Alcorão de forma explícita e inequívoca distingue Alá do Deus
descrito por Jesus:
… e nã o digais: Trindade! Abstende-vos disso, que será melhor para vó s; sabei que Allah é Uno.
Glorificado seja ! Longe está a hipó tese de ter tido um filho. [4]

Dize: Ele é Allah, o Ú nico!


Allah! O Eterno e Absoluto!
Jamais gerou ou foi gerado!
E ninguém é compará vel a Ele!’ [5]

Em outras palavras, Alá é um Deus monopessoal. Ele nã o é Pai (“jamais gerou”) em nenhum
sentido e nã o tem um Filho (“ou foi gerado”) em qualquer sentido. Ele é uma pessoa, nã o
três. Assim, Alá é um tipo de ser totalmente diferente do Deus que é Pai, Filho e Espírito. E
nã o estamos lidando aqui apenas com nú meros incompativelmente diferentes: essa
diferença, como veremos, significará que Alá existe e funciona de uma maneira
completamente diferente do Pai, Filho e Espírito.
Sendo esse o caso, seria loucura contentar-nos com alguma ideia preconcebida de Deus.
Sem sermos específicos sobre a identidade de Deus, que Deus adoraremos? À adoraçã o de
que Deus convocaríamos as outras pessoas? Considerando os diferentes conceitos das
pessoas sobre “Deus”, é de fato improdutivo falar de forma abstrata sobre um “Deus”
genérico. E aonde isso nos levaria? Se nos contentarmos em sermos apenas monoteístas e
falarmos de Deus em termos tã o vagos que poderiam se aplicar a Alá e à Trindade, nunca
desfrutaremos do que é tã o fundamental e encantadoramente diferente no cristianismo ou
o compartilharemos.

A alegria chocante
A ironia nã o poderia ser mais profunda: o que tomamos por irrelevâ ncia enfadonha ou
peculiar revela-se a fonte de todo o bem no cristianismo. Nem problema, tampouco termo
técnico: o ser triú no de Deus é o oxigênio vital e a alegria do cristianismo. E, assim, é minha
esperança e oraçã o que, enquanto lê este livro, o conhecimento do Pai, Filho e Espírito
insufle nova vida em você.
 

1. O que Deus fazia antes da criação?


 

O caminho sombrio e a estrada iluminada


Há duas maneiras ou formas bastante diferentes de pensar sobre Deus. A primeira é uma
trilha escorregadia e inclinada até o cume de uma montanha. Em uma noite tempestuosa e
sem lua. Durante um terremoto. É o caminho de tentar decifrar Deus usando a pró pria
inteligência. Eu observo o mundo ao redor e sinto que tudo deve ter vindo de algum lugar.
Alguém ou alguma coisa causou sua existência, e a esse alguém chamo Deus. Deus,
portanto, é o ser que traz tudo à existência, mas que ele mesmo nã o foi trazido à existência
por nada. Deus é a causa incausada. Essa é sua identidade . Deus é , em essência, o Criador,
aquele que manda.
Tudo soa bastante razoá vel e incontestá vel, mas caso eu parta daí, esse pensamento como
conceito bá sico de Deus, descobrirei cada centímetro do meu cristianismo coberto e
desperdiçado com os mais poluentes resíduos tó xicos. Em primeiro lugar, caso a identidade
de Deus seja o Criador, o Soberano, entã o ele precisa da criaçã o para governar a fim de ser
quem é . Assim, apesar de todo o seu poder có smico, esse Deus acaba se mostrando
lamentavelmente fraco: ele precisa de nó s. E você ainda teria de se esforçar para lamentar,
considerando como ele é. Apó s a Segunda Guerra Mundial, o teó logo suíço do século XX,
Karl Barth, afirmou com vigor:
Talvez você se recorde de como Hitler, quando costumava falar sobre Deus, chamava-o de “o Todo-
Poderoso”. Mas nã o é Deus “o Todo-Poderoso”; não podemos entender, partindo do ponto de vista de
um conceito supremo de poder, quem é Deus. E o homem que chama Deus de “o Todo-Poderoso”
equivoca-se sobre Deus da maneira mais terrível. Pois, quando “poder em si mesmo” é ruim, “o Todo-
Poderoso” é ruim. O “Todo-Poderoso” significa Caos, Mal, o Diabo. Nã o há maneira melhor de
descrevermos e definirmos o Diabo que tentando imaginar essa ideia de uma capacidade soberana,
livre e autofundada. [6]

Barth nã o estava de forma alguma negando o cará ter todo-poderoso de Deus; ele queria
deixar muito claro que o mero poder nã o é Deus.
Os problemas nã o param por aí, no entanto: se a pró pria identidade de Deus é ser “o”
Soberano, que tipo de salvaçã o ele pode me oferecer (caso esteja preparado para me
oferecer algo do tipo)? Se Deus é “o” Soberano, aquele que faz as regras, e o problema está
no fato de eu ter quebrado as regras, a ú nica salvaçã o disponível é perdoar-me e tratar-me
como se eu tivesse seguido as regras.
Mas sendo Deus assim, meu relacionamento com ele será pouca coisa melhor que o
relacionamento com um guarda de trâ nsito qualquer (sem a intençã o de ofender algum
leitor que faça parte da força policial). Permita-me expressar desta forma: se, como nunca
acontece, um ó timo policial me pegasse por correr e, assim, quebrar as regras, eu seria
punido; se, como nunca acontece, ele nã o conseguisse me flagrar ou eu conseguisse livrar-
me dele apó s uma empolgante perseguiçã o, eu ficaria aliviado. Mas, em nenhum dos casos,
eu o amaria. E mesmo que, como Deus, ele decidisse me livrar das consequências da quebra
da lei, ainda nã o o amaria. Eu poderia sentir-me grato, e essa gratidã o talvez fosse
profunda, mas isso nã o é a mesma coisa que amor. O mesmo vale para o policial divino: se a
salvaçã o significa apenas que ele me livra e considera um cidadã o cumpridor da lei, entã o
gratidã o (nã o amor) é tudo que tenho. Em outras palavras, jamais poderei amar de verdade
o Deus que é em essência apenas “o” Soberano. E isso, ironicamente, significa que jamais
poderei guardar o maior dos mandamentos: amar o Senhor, meu Deus. É a este lugar frio e
sombrio que a trilha escura nos conduz.
O outro caminho para pensar a respeito de Deus é iluminado por lâ mpadas e pavimentado
com uniformidade: é Jesus Cristo, o Filho de Deus. Na realidade, esse é “o” Caminho. É uma
estrada que termina de forma bem alegre em um lugar muito diferente, com um tipo muito
diferente de Deus. Como? Bem, apenas o fato de Jesus ser “o Filho já diz tudo. Ser Filho
implica existência do Pai. O Deus que ele revela é, acima de tudo, Pai: “Eu sou o caminho, a
verdade e a vida; ninguém chega ao Pai, a nã o ser por mim” (Jo 14.6). Esta é a identidade
revelada por Deus sobre si mesmo: nã o Criador ou Soberano, antes e acima de tudo, mas
Pai.
Uma possível forma de apreciar melhor essa verdade é perguntar o que Deus fazia antes da
criaçã o. Ora, para os seguidores da trilha, essa é uma pergunta absurda e de resposta
impossível; seus teó logos mais espirituosos responderam com a reprimenda “O que Deus
estava fazendo antes da criaçã o? Criando o inferno para os atrevidos o suficiente para
perguntar tais coisas!”. Na estrada, porém, essa é uma pergunta de fá cil resposta. Jesus nos
conta de modo explícito em Joã o 17.24: “Pai”, ele diz, “… me amaste antes da fundaçã o do
mundo”. Esse é o Deus revelado por Jesus Cristo. Antes mesmo de criar, antes mesmo de
governar o mundo, antes de tudo mais, esse Deus era o Pai que amava o Filho.
 
 
“Ele defendeu a doutrina trinitária”
No começo do século IV, em Alexandria, norte do Egito, um teó logo chamado Á rio começou
a ensinar que o Filho era um ser criado, e nã o o verdadeiro Deus. Ele fez isso por crer em
Deus como a origem e causa de tudo, nã o tendo, no entanto, origem em coisa alguma.
“Incausado” ou “inoriginado”, assim ele defendia, era a melhor definiçã o bá sica da essência
de Deus. Mas, visto que o Filho, sendo filho, deve ter recebido origem do Pai, ele nã o
poderia, de acordo com a definiçã o de Á rio, ser Deus.
O argumento persuadiu muitas pessoas; mas nã o convenceu Ataná sio, o brilhante e jovem
contemporâ neo de Á rio. Acreditando que Á rio tinha partido do lugar errado com sua
definiçã o bá sica de Deus, Ataná sio dedicou o resto de sua vida a provar quã o catastró fico o
pensamento de Á rio era para a vida cristã saudá vel. Na verdade, expressei-me com muita
gentileza: Ataná sio simplesmente ficou assombrado com a presunçã o de Á rio. Como ele
poderia saber como é Deus além da sua pró pria revelaçã o? “É mais piedoso e mais preciso”,
ele disse, “denotar Deus a partir do Filho e chamá -lo Pai, que nomeá -lo a partir de suas
obras somente e chamá -lo inoriginado”. Isso significa que a maneira correta de pensar
[7]

sobre Deus é começar com Jesus Cristo, o Filho de Deus, nã o com algum construto nosso,
uma definiçã o abstrata, como “incausado” ou “inoriginado”. Na verdade, nã o deveríamos
sequer firmar nossa compreensã o de Deus pensando em Deus em primeiro lugar como
criador (nomeando-o “a partir de suas obras somente”) — o que, como já vimos, o tornaria
dependente da criaçã o. Nossa definiçã o de Deus deve-se basear no Filho que o revela. E,
quando o fazemos, começando pelo Filho, descobrimos que a primeira coisa a ser dita
sobre Deus é, de acordo com a declaraçã o do credo: “Cremos em um Deus, o Pai ”.
Esses pontos diferentes de partida e de compreensã o bá sica de Deus significavam que o
evangelho pregado por Ataná sio parecia-se e soava de modo muito diferente do pregado
por Á rio. O “inoriginado” escutaria? Ataná sio poderia orar “Pai Nosso”. Com o
“inoriginado”, somos deixados à cata de um dicioná rio em uma palestra filosó fica; com um
Pai, os termos sã o conhecidos. E se Deus é Pai, entã o ele deve dar vida e se relacionar, e esse
é um tipo de Deus que se pode amar.
 
O Pai amoroso
O aspecto mais fundamental de Deus nã o é uma qualidade abstrata, mas o fato de ele ser
Pai. Repetidas vezes, as Escrituras equiparam os termos “Deus” e “Pai”: no Ê xodo, o Senhor
chama Israel de “meu primogênito” (Ê x 4.22; v. tb. Is 1.2, Jr 31.9, Os 11.1); ele conduz o
povo “como um homem conduz o pró prio filho” (Dt 1.31), os corrige “como um homem
corrige o filho” (Dt 8.5); ele os chama, dizendo:
Como um pai se compadece de seus filhos, assim o SENHOR se compadece dos que o temem (Sl 103.13).
e
Pensei como te incluiria entre os filhos e te daria a terra desejá vel, a mais bela herança das naçõ es.
Também pensei que me chamarias de meu Pai e que nã o te afastarias de mim (Jr 3.19; v. tb. 3.4, Dt 32.6,
Ml 1.6).

Portanto, Isaías ora “Mas tu és nosso Pai […] Ó SENHOR , tu és nosso Pai” (Is 63.16; v. tb.
Is 64.8); e um nome popular no Antigo Testamento era “Abias” (“O SENHOR é meu pai”).
Assim, Jesus repetidamente refere-se a Deus como “o Pai” e direciona a oraçã o ao “Pai
nosso”; ele diz aos discípulos que voltará “para meu Pai e vosso Pai, meu Deus e vosso
Deus” (Jo 20.17). Paulo e Pedro referem-se a “o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo”
(Rm 15.6; 1Pe 1.3). Paulo menciona “um só Deus, o Pai” (1Co 8.6), “Deus, nosso Pai, e do
Senhor Jesus Cristo” (1Co 1.3). O livro de Hebreus aconselha: “Deus vos trata como filhos.
Pois qual é o filho a quem o pai nã o disciplina?” (Hb 12.7).
Visto que Deus é, antes de tudo, um Pai, e nã o apenas o Criador ou Soberano, todos os seus
caminhos sã o formosamente paternais. Nã o é que esse Deus “assume o papel” de Pai, como
um emprego, apenas para retornar à tarde como o bom e velho “Deus”. Nã o é como se ele
tivesse uma bela bola de glacê paternal no topo. Ele é Pai. O tempo todo. Assim, tudo que ele
faz, ele o faz como Pai. Trata-se de sua identidade. Ele cria como Pai e ele governa como Pai;
e isso significa que a maneira de ele reinar sobre a criaçã o é muito diferente da maneira
como qualquer outro Deus reinaria sobre a criaçã o. O reformador francês Joã o Calvino,
apreciando com profundidade esse fato, escreveu certa vez:
É preciso considerar diligentemente na pró pria ordem das coisas criadas o amor paternal de Deus […]
assumindo o cuidado de um chefe de família provido e zeloso, mostrou Deus sua mirífica bondade para
conosco… Por fim, para que se conclua definitivamente: sempre que chamarmos a Deus o Criador do
céu e da terra, ao mesmo tempo nos venha à mente que […] realmente somos seus filhos, aos quais ele
tomou sob seu patrocínio e proteçã o para prover-lhes sustento e instruçã o… De modo que, atraídos
pelo dulçor tã o ingente de sua bondade e beneficência, diligenciemos por amá -lo e servi-lo de todo o
coraçã o. [8]

Foi uma observaçã o profunda, pois só quando virmos que Deus governa a criaçã o como Pai
dócil e amoroso seremos levados a deleitar-nos em sua providência. Seria possível
reconhecermos que o governo de algum policial celestial é justo; no entanto, jamais
poderíamos nos deleitar em seu regime como podemos deleitar-nos no gentil cuidado de
um pai.
 
Quando “Pai” é algo ruim
Nem todas as pessoas emocionam-se de modo instintivo com a ideia de Deus como Pai.
Para muitos, as experiências pessoais de pais indiferentes, abusivos ou autoritá rios fazem
as pró prias entranhas contorcerem-se quando ouvem Deus ser referido como Pai. O
filó sofo francês do século XX, Michel Foucault, tinha muitos problemas desse tipo. A maior
parte de sua obra tratou dos males da autoridade, e tudo parece ter começado com a
primeira figura de autoridade em sua vida: o pai. Temendo ter um maricas como filho, o
senhor Foucault —cirurgiã o — fez o que podia para “endurecer” o pirralho. Isso envolvia,
por exemplo, atos macabros: forçá -lo a testemunhar uma amputaçã o.
A imagem, por certo, tem todos os ingredientes de um pesadelo recorrente: o pai sá dico, a criança impotente, a
faca repartindo a carne, o corpo cortado até o osso, a exigência de reconhecer o poder soberano do patriarca e a
humilhaçã o inexpressiva do filho — com sua masculinidade colocada à prova. [9]

Para Foucault, o poder paternal nã o tinha sido usado para cuidar, sustentar e abençoar e,
assim, para ele, a palavra “pai” ficou associada a uma horda de imagens sombrias.
Solidarizamo-nos com os filhos desse tipo de pais, e dentre nó s, os pais, reconhecemos que
também estamos longe da perfeiçã o. Contudo, Deus Pai nã o é chamado Pai porque ele copia
pais terrenos. Ele nã o é a versã o mais forte do seu pai. Transferir as falhas de pais terrenos
para ele é em si um equívoco. Pelo contrá rio, as coisas sã o o oposto total: todos os pais
humanos deveriam refleti-lo — mas, enquanto alguns fazem isso bem, outros realizam um
trabalho que é mais assemelhado ao diabo.
 
Entã o, o que realmente significa Deus ser um Pai? Bem, em primeiro lugar, isso de fato
significa algo. Nem todos os nomes têm significados. Meu cachorro chama-se Max, mas isso
nã o revela de fato alguma coisa sobre ele. O nome dele nã o diz o que ele é ou como é. Mas
— se for permitido que eu faça a transposiçã o — o Pai chama-se Pai porque ele é Pai. E um
pai é uma pessoa que dá vida, que gera filhos. Veja que essa ideia é como uma banana de
dinamites em todos os nossos pensamentos sobre Deus. Afinal, se acima de tudo, Deus era
eternamente Pai, entã o esse Deus é um Deus inerentemente expansivo e doador de vida.
Ele nã o deu vida pela primeira vez quando decidiu criar; desde a eternidade ele tem dado
vida.
Isso nos é revelado em 1 Joã o 4:
Amados, amemos uns aos outros, porque o amor é de Deus, e todo aquele que ama é nascido de Deus e conhece a
Deus. Aquele que nã o ama nã o conhece a Deus, porque Deus é amor (1Jo 4.7,8).

Você já conheceu alguém tã o magneticamente gentil e gracioso, tã o caloroso e generoso de


espírito que apenas poucos momentos com ele afetam seus pensamentos, sentimentos e
comportamentos? Alguém cuja presença lhe torna melhor — mesmo que apenas por alguns
momentos, quando você está com essa pessoa? Eu conheço pessoas assim, e elas se
parecem pequenos retratos de Deus, de acordo com Joã o. Esse Deus, ele diz, é o amor de
uma maneira tã o profunda e potente que você nã o pode apenas conhecê-lo sem se tornar
também amá vel.
É precisamente isso o significado da paternidade divina. Quando Joã o escreve “Deus é
amor” no fim do versículo 8, ele se refere com clareza ao Pai. Suas palavras seguintes, no
versículo 9, afirmam: “O amor de Deus para conosco manifestou-se no fato de Deus ter
enviado seu Filho unigênito”. O Deus que é amor é o Pai que envia o Filho. Ser o Pai,
portanto, significa amar, dar vida, gerar o Filho. Antes das demais coisas, por toda a
eternidade, esse Deus estava amando, dando vida e deleitando-se no Filho.
Observando isso, muitos teó logos apreciam comparar o Pai a uma fonte, de onde jorram
eternamente vida e amor (de fato, o Senhor chama a si mesmo de “fonte de á guas vivas” em
Jeremias 2.13, e a imagem surge muitas e muitas vezes na Escritura). E como a fonte, para
ser fonte, deve verter á gua, assim o Pai, para ser Pai, deve transmitir vida. Assim ele é. Essa
é sua identidade mais fundamental. Portanto, o amor nã o é algo possuído pelo Pai, apenas
uma de suas muitas emoçõ es. Na realidade, ele é amor. Ele nã o poderia nã o amar. Se ele
nã o amasse, ele nã o seria Pai.

“Meu escolhido em quem me deleito”


Ora, Deus nã o poderia ser amor se nã o houvesse alguém para amar. Ele nã o poderia ser Pai
sem o filho. Ao mesmo tempo, nã o é como se Deus criasse para poder amar alguém. Ele é
amor, e ele nã o precisa criar a fim de ser quem é. Se assim fosse, ele seria alguém carente e
solitá rio! “Pobrezinho de Deus”, diríamos. Se ele nos criasse a fim de ser quem é, nós lhe
daríamos vida.
Nã o. “Pai”, diz o Filho Jesus em Joã o 17.24: “ me amaste antes da fundaçã o do mundo”. O
Filho Eterno, que de acordo com Colossenses 1, é “antes de toda as coisas” (v. 17), aquele
por meio de quem “foram criadas todas as coisas” (v. 16), aquele que Hebreus 1 chama de
“Senhor” e “Deus”, que “fund[ou] a terra” (v. 10), é amado pelo Pai antes da criaçã o do
mundo. O Pai, assim, é o Pai do Filho eterno, e ele encontra a pró pria identidade, sua
Paternidade, em amar e transmitir sua vida e ser ao Filho.
Por isso é importante perceber que o Filho é o Filho eterno . Nunca houve um tempo em
que ele nã o existisse. Sendo o caso, entã o Deus seria de um tipo completamente diferente.
Se houve tempo em que o Filho nã o existia, entã o houve tempo em que o Pai nã o era Pai. E,
sendo o caso, entã o houve tempo em que Deus nã o amava, pois, por conta pró pria, ele nã o
teria ninguém para amar. Comentando Hebreus 1.3, que diz que o Filho é “o resplendor da
sua gló ria e a representaçã o exata do seu ser”, o teó logo do século IV, Gregó rio de Nissa,
explicou:
como a luz da lâ mpada é da natureza da que verte o brilho, e está unida a ela (pois tã o logo a lâ mpada surge, a luz
que vem dela brilha simultaneamente), nesta passagem, o apó stolo deseja que consideremos que o Filho é do Pai e
que o Pai nunca está sem o Filho; pois é impossível haver gló ria sem resplendor; é impossível que a lâ mpada exista
sem o brilho. [10]

O Pai nunca está sem o Filho, mas, como uma lâ mpada, irradiar o Filho é a pró pria natureza
do Pai. E, da mesma forma, é a pró pria natureza do Filho ser o irradiador do Pai. O Filho
recebe o pró prio ser do Pai. Na verdade, ele é a expansã o — o resplendor — do pró prio ser
do Pai. Ele é o Filho.
Em tudo isso, temos visto que o Pai ama o Filho e deleita-se nele. É isso que você descobrirá
repetidamente na Escritura: “O Pai ama o Filho e entregou todas as coisas nas suas mã os”
(Jo 3.35); “Porque o Pai ama o Filho e mostra-lhe tudo o que ele mesmo faz” (Jo 5.20), e
assim por diante (v. tb. Isaías 42.1). Mas Jesus também diz “mas faço aquilo que o Pai me
ordenou, para que o mundo saiba que eu amo o Pai ” (Jo 14.31). Nã o é só que o Pai ame o
Filho; o Filho também ama o Pai — e ama tanto que fazer o prazer do Pai é como alimento
para ele (Jo 4.34). É sua alegria e deleite absoluto sempre fazer o que seu Pai diz.
Entretanto, embora o Pai ame o Filho e o Filho ame o Pai, há uma forma bem definida para
o relacionamento dos dois. Em geral, o Pai é o amante, o Filho é o amado. A Bíblia está
repleta de citaçõ es sobre o amor do Pai pelo Filho, mas, embora o Filho sem dú vida ame o
Pai, dificilmente algo é dito sobre isso. O amor do Pai é primá rio. O Pai é a fonte principal
do amor. Isso significa, entã o, que em seu amor ele enviará e dirigirá o Filho, enquanto o
Filho nunca envia ou dirige o Pai.
Isso é muito importante, como o apó stolo Paulo destaca em 1 Coríntios 11.3:
Todavia, quero que saibais que Cristo é o cabeça de todo homem; o homem, o cabeça da mulher; e Deus, o cabeça
de Cristo.

Em outras palavras, a forma do relacionamento Pai-Filho (a liderança) inicia uma graciosa


cascata, como uma cachoeira de amor: como o Pai é o que ama e lidera o Filho, da mesma
forma, o Filho vem para amar e liderar a igreja. “Como o Pai me amou, assim também eu
vos amei; permanecei no meu amor” (Jo 15.9). Aqui está a pró pria excelência do evangelho:
como o Pai é o amante e o Filho, o amado, Cristo torna-se o amante e a igreja, a amada. Isso
significa que, antes de tudo, Cristo ama a igreja: seu amor não é uma resposta, oferecida só
quando a igreja o ama; seu amor vem primeiro, e somente o amamos porque ele primeiro
nos amou (1Jo 4.19).
Essa dinâ mica também é replicada nos casamentos. O marido é o líder da mulher, amando-
a como o líder Cristo ama sua noiva, a igreja. Ele é o amante, ela é a amada. Como a igreja,
portanto, a esposa nã o fica tentando conquistar o amor do marido; ela pode desfrutar dele
como algo derramado sobre ela de forma liberal, má xima e incondicional. Pela eternidade,
o Pai ama tanto o Filho que estimula o amor eterno do Filho como resposta; Cristo ama
tanto a igreja que ele estimula nosso amor em resposta; o marido ama tanto a mulher que a
estimula a amá -lo de volta. Tal é a excelência contagiante que se desdobra do pró prio ser
de Deus.

O Espírito de amor
O Pai ama o Filho de uma maneira muito particular, algo observá vel caso se examine o
batismo de Jesus:
Depois de batizado, Jesus saiu logo da á gua. E viu o céu se abrir e o Espírito de Deus descer como uma pomba,
vindo sobre ele. E uma voz do céu disse: Este é o meu Filho amado, de quem me agrado (Mt 3.16,17).

Aqui, o Pai declara seu amor ao Filho, e seu prazer nele, e o faz quando o Espírito desce
sobre Jesus . A concessã o do Espírito é precisamente a maneira como o Pai torna conhecido
seu amor. Em Romanos 5.5, por exemplo, Paulo escreve sobre como Deus derramou seu
amor em nosso coraçã o pelo Espírito Santo . Assim, é dando-lhe o Espírito que o Pai declara
seu amor ao Filho.
É tudo profundamente pessoal: o Espírito provoca o deleite do Pai no Filho e o deleite do
Filho no Pai, inflamando-lhes o amor e unindo-os na “comunhã o do Espírito Santo”
(2Co 13.14). Ele torna o amor do Pai conhecido ao Filho, levando-o a declarar “Aba!”— algo
que ele também fará por nó s (Rm 8.15, Gl 4.6). E deixemos claro que “Aba!” é dito com
alegria, pois o Espírito torna o Pai conhecido do Filho de forma tal que o Filho exulta.
Naquela mesma hora Jesus exultou no Espírito Santo e disse: Graças te dou, ó Pai, Senhor do céu e da terra…

Ao tornar conhecido o amoroso Pai das luzes, o Espírito é o portador nã o apenas de amor,
mas de alegria, e é regularmente associado a uma alegria perto da qual a euforia do vinho
nã o é substituta (Ef 5.18; v. tb. Gl 5.22, Rm 14.17).
A maneira como Pai, Filho e Espírito relacionaram-se no batismo de Jesus nã o foi pontual;
toda a cena está repleta de ecos de Gênesis 1. Ali, na criaçã o, o Espírito também pairou,
como pomba, sobre as á guas. E como o Espírito, apó s o batismo de Jesus, o enviaria ao
deserto sem vida, em Gênesis 1, o Espírito surge como o poder pelo qual a Palavra de Deus
parte para o vazio sem vida. No princípio de tudo, Deus cria por meio de sua Palavra (a
Palavra que, mais tarde, tornar-se-ia carne), e ele faz isso enviando sua Palavra no poder de
seu Espírito ou Sopro.
Tanto na obra da criaçã o (Gn 1), quanto na obra da salvaçã o ou recriaçã o (nos evangelhos),
a Palavra de Deus parte dele por meio do Espírito. O Pai fala, e, em seu Sopro, sua Palavra é
ouvida. Tudo isso revela como esse Deus realmente é. O Espírito é o meio usado pelo Pai
para amar, abençoar e capacitar seu Filho. O Filho sai do Pai pelo Espírito.
Consequentemente, Jesus é conhecido como “o Ungido” (“Messias” em hebraico, “Cristo” em
grego), pois ele é supremamente ungido com o Espírito. Da mesma forma que reis e
sacerdotes — até profetas — eram ungidos e consagrados com ó leo para a realizaçã o de
suas tarefas no Antigo Testamento, Jesus é ungido com o Espírito. De fato, os termos “Filho”
e “Ungido” à s vezes sã o quase sinô nimos (p. ex., Sl 2).
O Pai ama (e capacita) o Filho dando-lhe seu Espírito; isso nã o significa, contudo, que o
Espírito é apenas, de alguma forma, uma força divina impessoal. Também seria possível
dizer que o Filho é uma força impessoal em razã o de como ele é chamado Palavra de Deus.
Na verdade, o Filho tem muitos outros títulos que poderiam fazê-lo parecer igualmente
impessoal (“o braço do SENHOR ”, por exemplo, em Is 53.1); mas o objetivo desses títulos é
explicar seu papel em cada situaçã o (como Palavra, ele revela a mente de Deus; como braço
do Senhor, ele executa sua vontade); eles nã o sugerem que o Filho seja de alguma forma
menos que completamente pessoal. E o mesmo vale para o Espírito: sendo uma pessoa, ele
fala e envia (At 13.2,4); escolhe (At 20.28), ensina (Jo 14.26), concede (Is 63.14); é possível
mentir para ele e colocá -lo à prova (At 5.3,9); ele pode ser resistido (At 7.51), entristecido
(Is 63.10; Ef 4.30) e blasfemado (Mt 12.31). Em tudo, ele é apresentado com o Pai e o Filho
como uma pessoa real. Quando é mencionado no mesmo contexto que eles (como, por
exemplo, em Mt 28.19, quando Jesus ordena aos discípulos a ir e fazer discípulos,
batizando-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo), há tanta razã o para alguém
achar que o Pai e o Filho sã o impessoais quanto para pensar que o Espírito o é.
 

O Deus que compartilha


Em algum ano da década de 1150, um jovem escocês chamado Ricardo ingressou na Abadia
de sã o Vítor, localizada fora das paredes de Paris, à margem do Sena. Lá , ele dedicou-se a
contemplar Deus e, logo, ficou conhecido como um dos autores mais influentes dos seus
dias.
Ricardo argumentou que se Deus era apenas uma pessoa, ele nã o poderia ser
intrinsecamente amoroso, pois, por toda a eternidade (antes da criaçã o), ele nã o teria
contado com ninguém para amar. Se houvesse duas pessoas, ele prossegue, Deus poderia
ser amoroso, mas de uma maneira excludente e mesquinha. Afinal, quando duas pessoas se
amam, elas podem estar tã o encantadas que simplesmente ignoram tudo mais — e um
Deus como esse estaria muito distante de consistir em boas-novas. Porém, quando o amor
entre duas pessoas é alegre, saudá vel e seguro, elas alegram-se em compartilhá -lo. Com
Deus é assim, disse Ricardo. Sendo perfeitamente amá veis, desde toda eternidade, o Pai e o
Filho têm se deleitado em partilhar seu amor e alegria com o Espírito, e por meio dele.
Assim, nã o é que Deus passa a compartilhar; sendo triú no, Deus é o Deus que partilha, o
Deus que ama incluir. De fato, é por isso que Deus prosseguirá em criar. Seu amor nã o é
para ser guardado, mas para ser distribuído.

Uma bagunça celestial?


Estamos percebendo que, no caso desse Deus, lidamos com três pessoas reais e distintas, o
Pai, o Filho e o Espírito. E eles devem ser pessoas reais: nã o poderia haver verdadeiro amor
entre eles se eles fossem, digamos, apenas diferentes aspectos de uma ú nica personalidade
divina. Ainda assim, mantê-los distintos em nossa mente é sem dú vida uma batalha: pense
em quantas vezes você ouviu (ou orou): “Amado Pai… obrigado por morrer por nó s”;
“Amado Jesus… obrigado por enviar seu Filho. Nó s oramos isso em nome de Jesus”, etc.
Jogar Pai, Filho e Espírito em um liquidificador desse tipo é polidamente chamado de
modalismo entre os teó logos. Eu prefiro chamar de humordalismo . Humordalistas pensam
que Deus é uma pessoa que têm três humores ou estados de espírito (ou, se você preferir,
modos) diferentes. Um conceito humordalista popular é o de que Deus costumava sentir-se
Paternal (no Antigo Testamento), tentou adotar uma disposiçã o mais Filial por trinta e
poucos anos e, desde entã o, ficou mais Espiritual. Você entende o fascínio, é claro: isso
impede que as coisas fiquem muito complicadas.
O problema é que, tã o logo você faz uma salada das três pessoas, fica impossível saborear o
evangelho nelas. Se o Filho é apenas um humor do qual Deus entra e sai, entã o nã o nos
parece grande coisa a adoçã o como filhos no Filho: quando Deus passa a ter outro humor,
nã o haverá Filho para nele estarmos. E mesmo quando Deus está no modo Filho, nã o
haverá Pai para dele sermos filhos. E se o Espírito é apenas outro de seus estados de
espírito, só posso imaginar o que acontecerá quando Deus sentir vontade de seguir em
frente. “Ele me completa, ele nã o me completa”. O humordalista é deixado com nenhuma
segurança e um Deus profundamente confuso. De alguma forma, o Filho deve ser seu
pró prio Pai, enviar a si mesmo, amar a si mesmo, orar a si mesmo, sentar-se à sua pró pria
destra e por aí vai. Tudo começa a parecer, arrisco dizer, bastante estú pido.
Um bando de deuses?
Como, entã o, levaremos a sério o fato de que Pai, Filho e Espírito sã o três pessoas reais e
distintas, e nã o apenas três humores divinos? O que preocupa, evidentemente, é que a
Trindade possa soar como algum panteã o ou clube em que as pessoas divinas escolhem
entrar. Como vacas se reú nem em manadas e ovelhas em rebanhos, as pessoas divinas
congregam na Trindade. E, sendo o caso, entã o a Trindade começa a parecer demais com o
que o monte Olimpo teria sido para os gregos antigos — da mesma forma que Zeus, Apolo e
o restante escolheram habitar ali, Pai, Filho e Espírito reú nem-se na Trindade.
Porém, como Pai, Filho e Espírito sã o pessoas com relacionamentos reais uns com os outros
(o Pai amando o Filho e assim por diante), os teó logos cristã os têm alegre e
desinibidamente falado da comunhã o da Trindade. Jonathan Edwards, teó logo do século
XVIII, escreveu sobre “a sociedade ou família dos três”, mesmo indo longe o bastante para
dizer que a pró pria “felicidade da Deidade, como todas as outras verdadeiras felicidades,
consiste em amor e sociedade”. Mas (e esse é um grande “mas”), isso nã o é dizer que a
[11]

Trindade é como um clube de que Pai, Filho e Espírito decidiram fazer parte. Eles nã o sã o
três pessoas que simplesmente conseguem se dar bem — até bem demais — entre si.
Entã o o quê? Bem, vamos voltar ao início, e ao Pai. Antes da criaçã o, antes de todas as
coisas, observa-se que o Pai amava e gerava seu Filho. Pela eternidade, era isso que o Pai
fazia. Ele nã o se tornou Pai em algum momento; ao contrá rio, sua identidade é ser o gerador
do Filho. Ele é assim. Portanto, nã o é como se, um dia qualquer, o Pai e o Filho colidissem e,
para surpresa dos dois, descobrissem como eles se davam bem. O Pai é quem ele é em
virtude do relacionamento com o Filho. Pense outra vez na imagem da fonte: uma fonte nã o
é fonte se nã o verte á gua. Da mesma forma, o Pai nã o seria Pai sem o Filho (a quem ele ama
por meio do Espírito). E o Filho nã o seria Filho sem o Pai. Ele recebe o pró prio ser do Pai. E,
assim, vemos que Pai, Filho e Espírito, embora pessoas distintas, sã o absolutamente
insepará veis um dos outros. Nã o confundidos, mas indivisíveis. Eles sã o quem sã o juntos .
Eles estão sempre juntos e, portanto, sempre trabalham juntos.
Isso significa que o Pai nã o é “mais” Deus que o Filho ou o Espírito, como se outrora tivesse
existido ou pudesse existir sem eles. Sua identidade e o pró prio ser consistem
precisamente em transmitir sua plenitude ao Filho. Ele é insepará vel do Filho. Isso também
significa que nã o há “Deus” além de Pai, Filho e Espírito. Este, na realidade, pode ser o
problema ao falar sobre “Deus”: tudo pode com facilidade nos levar a imaginar que há algo
(ou pior, alguém) chamado Deus e do qual Pai, Filho e Espírito emergiram. Como se alguém
pudesse orar para esse “Deus”. Como se alguém já tivesse encontrado ou lidado com algo
assim. Pegue o recurso pedagó gico tradicional, por exemplo, à s vezes chamado de “O
Escudo da Trindade”: de forma completamente involuntá ria, ele pode deixar a impressã o
de que no meio há uma quarta coisa chamada “Deus” além do Pai, do Filho e do Espírito. Se
esse fosse o caso, entã o, obviamente, nã o somente haveria quatro na Trindade, mas Pai,
Filho e Espírito também seriam, na verdade, deuses diferentes, cada qual apenas
consistindo da mesma “coisa”. Já , partindo do Pai, evita-se toda essa grosseria: por trá s de
tudo, em vez de algum “Deus” abstrato, vê-se o Pai, cuja natureza é dar-se e gerar seu Filho.
 
Santo Hilário

Alegre de nome, alegre de teologia: esse era Hilá rio. (Hoje, ele é sisudamente chamado
“Hilá rio de Poitiers”, mas isso só mostra a triste situaçã o em que nos encontramos). Afiado
como uma espada e educado como um cordeiro, ele dedicou a vida e liberdade a defender a
eterna deidade do Filho. Argumentou com vigor que os seguidores de Á rio, que afirmavam
que o Filho tinha passado a existir em algum ponto, estavam cometendo um erro
desastroso — dizer que nem sempre houve Filho significava que Deus nem sempre havia
sido Pai. Portanto, Deus nã o é primordialmente um Pai, nã o é em essência amoroso e
doador de vida, mas outra coisa.
Mas Hilá rio recusou-se em absoluto a crer em “certa substâ ncia imaginá ria” do qual o Pai e
o Filho possam ter vindo. Por trá s de tudo há , nã o “Deus”, mas o Pai, que ama eternamente
seu Filho. “Deus”, ele disse, “jamais pode ser algo além de amor, ou algo senã o o Pai: e ele,
que ama, nã o inveja; o Pai é completa e inteiramente Pai. Esse nome nã o admite exceçã o:
ninguém pode ser em parte pai, e em parte nã o”. Em outras palavras, nã o há um “Deus” ou
“material-divino” por trá s de Pai, Filho e Espírito. No fundo, há o Pai, e isso significa o ativo
Deus de amor, o Deus que nã o é um avarento invejoso, negador de vida, mas alguém que se
deleita em transmitir a vida e o ser ao Filho.
Para impedir que as pessoas pensassem haver algum “Deus” por trá s de Pai, Filho e
Espírito, Hilá rio advertiu: “Devemos confessar Pai e Filho antes de podermos assimilar
Deus como ú nico e verdadeiro”. Tentando definir Deus sem começar com o Pai e seu
[12]

Filho, ele observou, apenas concluiríamos com um Deus diferente.


 

Ovos e trevos reformulados


Voltemos agora para aquelas “ilustraçõ es” da Trindade: os três estados de H O e mais. Com 2

o que elas se parecem? O Deus triú no é como H O, o Pai todo gelado até que você o aqueça
2

e ele se transforme no Filho aguado, que entã o vaporiza-se e se torna o fumegante Espírito
quando o calor é intensificado? Nã o, isso é apenas humordalismo. Deus é como um trevo —
Pai, Filho e Espírito sã o apenas três pontas sobressalentes? É possível ouvir o lamento
enquanto o velho Hilá rio começa a revirar-se na frequência de 90 rotaçõ es por minuto no
tú mulo. Além de todos esses problemas, essas figuras elaboram Deus como uma coisa
impessoal. Nada pessoal, nada amoroso — nada parecido com Pai, Filho e Espírito, afinal.
Se em algum momento a Bíblia apresenta uma imagem, ela está em Gênesis 1 e 2.
E disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme nossa semelhança; domine ele sobre os peixes do mar,
sobre as aves do céu, sobre o gado, sobre os animais selvagens e sobre todo animal rastejante que se arrasta sobre
a terra. E Deus criou o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou (Gn 1.26,27).

Há algo no relacionamento e na diferença entre o homem e a mulher, Adã o e Eva, que


espelha o ser de Deus — algo a que, observamos, o apó stolo Paulo faz referência em
1 Coríntios 11.3. Eva é uma pessoa bastante distinta de Adã o, ainda assim, ela recebe a vida
e o ser de Adã o. Ela tem origem no lado dele, é osso de seus ossos e carne de sua carne, é
uma com ele na carne (Gn 2.21-24). Muito melhor que folhas, ovos e líquidos, isso reflete
um Deus pessoal, um Filho distinto do seu Pai, mas que é do pró prio ser do Pai e
eternamente um com ele no Espírito.

Trinitarismo puro e simples


Joã o escreveu seu evangelho, ele nos conta, para “que possais crer que Jesus é o Cristo, o
Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais vida em seu nome” (Jo 20.31). Mas até o chamado
mais bá sico para crer no Filho de Deus é um convite à fé trinitá ria. Jesus é descrito como o
Filho de Deus. Deus é seu Pai. E ele é o Cristo, o ungido com o Espírito. Quando você começa
com o Jesus da Bíblia, chega ao Deus triú no. A Trindade, portanto, nã o é o produto de
especulaçã o abstrata: quando você proclama Jesus, o Filho do Pai ungido pelo Espírito, você
proclama o Deus triú no.
Á rio demonstrou o contrá rio: quando não se começa com Jesus, o Filho, acaba-se com um
Deus diferente, que nã o é o Pai. Pois o Filho é o ú nico Caminho para conhecer Deus de
verdade: só ele revela o Pai. Certa vez, Joã o Calvino escreveu que se tentá ssemos pensar
sobre Deus sem pensar sobre Pai, Filho e Espírito, entã o “no cérebro nos revolve apenas o
nome de Deus, desnudo e como um vá cuo, sem o Deus real”. Ele tinha toda razã o. Há um
[13]

vasto mundo de diferença entre o Deus triú no revelado por Jesus e todos os outros deuses.
Esse Deus simplesmente nã o se encaixa no molde de nenhum outro. A Trindade nã o é um
complemento dispensá vel de Deus, um software opcional que pode ser instalado nele. No
fundo, esse Deus é diferente, pois, no fundo, ele nã o é criador, soberano, ou mesmo “Deus”
em qualquer sentido abstrato: ele é o Pai, que ama e dá vida ao Filho na comunhã o do
Espírito. O Deus que é amor em si mesmo, que antes de todas as coisas nã o poderia “ser
algo além de amor”. Felizmente, ter um Deus assim muda tudo.

2. Criação: o amor do Pai transborda


 
Deus solteiro, não fumante, procura criação atraente e bem-humorada.

Imagine por um momento que você é Deus. Tenho certeza de que você já fez isso antes.
Agora pense: em sua divina sabedoria e poder, você gostaria de criar um universo? Se sim,
por quê? Porque você se sente solitá rio e queria alguns amigos? Porque você gosta de ser
mimado e quer alguns criados? É uma das perguntas mais profundas a se fazer: se Deus
existe, por que há algo mais? Por que o universo? Por que nó s? Por que Deus decidiria
criar?
Uma das tentativas mais antigas de responder pode ser vista no antigo mito babilô nico da
criaçã o, chamado Enuma Elish . Ali, o deus Marduque fala abertamente: ele criará a
humanidade para que os deuses possam ter escravos. Dessa forma, os deuses podem
relaxar e viver do esforço de sua força de trabalho humana. Ora, Marduque é mais franco
que a maioria dos outros deuses; porém, de forma independente da religiã o, muitos deuses
tendem a apreciar essa abordagem. E quem pode culpá -los? A ló gica de Marduque é muito
atraente. Caso você seja deus.
Na verdade, o motivo de muitos deuses imitarem Marduque nã o é apenas questã o de
preferência pessoal. Imagine um Deus que origina e causa todas as outras coisas. Ele trouxe
todos e tudo à existência. Mas, antes de causar a existência de tudo, esse deus estava
completamente sozinho. Ele ainda nã o tinha criado ninguém. Solitá rio pela eternidade. E,
assim, pela eternidade, esse deus solitá rio nã o deve ter tido alguém ou algo para amar.
Amor aos outros sem dú vida nã o é sua paixã o. É claro que provavelmente ele amaria a si
pró prio, mas tendemos a considerar esse amor egoísmo e nã o amor de verdade. Pela
pró pria natureza, portanto, esse deus solitá rio e solteiro deve ser fundamentalmente
ensimesmado, nã o expansivamente amoroso. Em essência, tudo nele envolve
autogratificaçã o. Portanto, essa é a ú nica razã o para criar.
No islamismo, há uma fascinante tensã o bem nesse ponto. Segundo a tradiçã o, afirma-se
que Alá tem 99 nomes, títulos que o descrevem na eternidade. Um deles é “o amoroso”. Mas
como Alá poderia ser amoroso na eternidade? Antes que ele criasse, nã o havia outra coisa
que ele pudesse amar (e o título nã o se refere ao amor autocentrado, mas a amor aos
outros). A ú nica opçã o é que Alá ame eternamente a criaçã o. No entanto, por si só , isso gera
um enorme problema: se Alá precisa da criaçã o para ser quem é (“o amoroso”), entã o Alá
depende da pró pria criaçã o, e uma das crenças cardeais do islã é que Alá nã o depende de
nada.
Eis o problema: como um Deus solitá rio pode ser eterna e essencialmente amoroso se o
amor envolve amar outro? No século IV a.C., o filó sofo ateniense Aristó teles lutou com uma
questã o muito semelhante: como Deus pode ser eterna e essencialmente bom quando
bondade envolve ser bom com outro ser ? Sua resposta foi: Deus é eternamente a causa
incausada. Essa é a identidade de Deus. Portanto, ele deve causar eternamente a existência
da criaçã o — o que significa que o universo é eterno. Dessa forma, Deus pode verdadeira e
eternamente ser bom, pois o universo existe para sempre junto com ele e Deus lhe oferece
sua bondade. Em outras palavras, Deus é eternamente generoso e bom por sua eterna
generosidade e bondade para com o universo . Isso foi engenhoso, como sempre é com
Aristó teles. Entretanto, significa mais uma vez que para Deus ser ele mesmo, ele precisa do
mundo. Ele é, essencialmente, dependente disso para ser quem ele é. E, apesar de ser “bom”
(em termos técnicos), o deus de Aristó teles com muita dificuldade pode ser descrito como
bondoso ou amoroso. Ele nã o escolheu criar livremente o mundo para poder abençoá -lo; ao
que parece, o universo apenas escoou dele.
Sã o esses os problemas com deuses nã o triú nos e a criaçã o. Deuses monopessoais, tendo
passado a eternidade sozinhos, sã o inevitavelmente autocentrados e, assim, fica difícil
perceber por que eles trariam algo mais à existência. Nã o seria a existência do universo
uma distraçã o irritante para o deus cujo maior prazer é olhar-se no espelho? Criar parece
algo muito artificial para um deus assim realizar. E, se esses deuses criassem, eles sempre
pareceriam fazê-lo a partir da necessidade ou do desejo essencial de usar a criaçã o apenas
para a pró pria gratificaçã o.
 
O êxtase de Deus

Tudo muda quando se trata de Pai, Filho e Espírito. Aqui está o Deus que nã o é
essencialmente solitá rio, e que ama por toda eternidade — o Pai ama o Filho no Espírito.
Amar outros nã o é algo novo ou estranho para esse Deus; está na raiz de sua identidade.
Pense em Deus Pai: ele é, pela pró pria natureza, doador de vida. Ele é um pai. É possível
questionar se um deus estéril, que nã o é pai, seria capaz de dar vida e, assim, conceber a
criaçã o. Mas nã o há como nutrir essas dú vidas em relaçã o ao Pai: pela eternidade ele tem
sido frutífero, potente, vitalizador. Para o Deus assim (e só para ele), parece muito natural e
esperado que ele suscite mais vida e, assim, crie.
Aqui, Karl Barth faz uma profunda (porém, densa!) observaçã o que tentaremos desdobrar:
Nesta mesma liberdade e amor em que Deus nã o está sozinho em si mesmo, mas é o eterno gerador do Filho —
eternamente gerado do Pai—, ele também surge como Criador ad extra [exteriormente], para que, de forma
absoluta e externa, nã o seja solitá rio, mas o que ama em liberdade. Em outras palavras, como Deus em si mesmo
nã o é surdo, nem mudo, mas fala e ouve sua Palavra desde a eternidade, ele nã o deseja estar sem som ou eco fora
de sua eternidade, ou seja, sem os ouvidos e as vozes das criaturas. A eterna comunhã o entre Pai e Filho, ou entre
Deus e sua Palavra, encontra assim correspondência na pró pria comunhão — diferente, mas não dessemelhante —
entre Deus e a criatura. Isso está de acordo com o Pai do Filho eterno, o que fala a Palavra eterna como tal; é
totalmente digno dele que em seu relacionamento ad extra [exterior] ele seja o Criador. [14]

Sim, muitas vezes, os teó logos escrevem desse jeito. O que ele quer dizer é que, como Deus
Pai tem amado o Filho por toda a eternidade, é inteiramente característico dele prosseguir
e criar outros para que também possa amá -los. Observe que Barth nã o está de forma
alguma dizendo que Deus Filho foi criado ou, em algum sentido, é menos que totalmente
Deus. Ele diz que o Pai sempre teve prazer em amar outro e, portanto, que o ato da criaçã o
para amar a criatura parece inteiramente apropriado a ele.
Logo, Jesus Cristo, Deus Filho, é a Ló gica, o diagrama da criaçã o. Ele é o eternamente amado
do Pai; a criaçã o é a extensã o externa desse amor de forma que ele possa ser desfrutado
por outros. A fonte de amor extravasou. O Pai deleitou-se tanto em seu Filho que seu amor
por ele transbordou, de forma que o Filho seja o primogênito de muitos filhos. Como Paulo
expressa em Romanos 8.29: “Pois os que conheceu por antecipaçã o, também os
predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o
primogênito entre muitos irmã os” (v. tb. Ef 1.3-5). Esse Deus nã o reluta em contar com
alguém a seu lado: ele o aprecia. Ele sempre apreciou derramar seu amor sobre o Filho e,
ao criar, ele regozija-se em derramá -lo sobre filhos amados por intermédio do Filho.
Curiosamente, quando Paulo fala do Filho como “o primogênito sobre toda a criaçã o” em
Colossenses, ele conecta essa ideia de forma direta ao fato de que o Filho é “a imagem” de
Deus. “Ele é a imagem do Deus invisível, o primogênito sobre toda a criaçã o” (Cl 1.15). O
Filho é a imagem de Deus, manifestando com perfeiçã o como é seu Pai: “Ele é o resplendor
da sua gló ria e a representaçã o exata do seu Ser” (Hb 1.3; v. tb. 2Co 4.4). E, assim, quando
vem com gló ria, “ilumina” e “irradia” de seu Pai, ele nos mostra que o Pai é essencialmente
expansivo . Nã o surpreende que um Deus assim crie. E o fato de sermos entã o criados à
imagem de Deus e destinados à semelhança de Cristo, a Imagem, é apenas a continuaçã o
desse movimento expansivo de amor. O Deus que ama ter uma Imagem expansiva de si no
Filho ama ter muitas imagens desse amor (que sã o, elas pró prias, expansivas).
Há algo que Jesus diz no fim da oraçã o sacerdotal em Joã o 17 que mostra com clareza o
significado de ser ele a gló ria de Deus emanada do Pai (ou a Palavra divina procedente de
Deus):
Pai, meu desejo é que aqueles que me deste estejam comigo onde eu estiver, para que vejam a minha gló ria, a qual
me deste, pois me amaste antes da fundação do mundo . Pai justo, o mundo nã o te conheceu, mas eu te conheço; e
estes reconheceram que tu me enviaste. E fiz que conhecessem o teu nome e continuarei a fazê-lo conhecido; para
que o amor com que me amaste esteja neles , e eu também neles esteja (Jo 17.24-26).

O Pai o amava antes da criaçã o do mundo, e a razã o do envio dele pelo Pai é para que o
amor do Pai por ele possa também estar em outras pessoas. Por isso o Filho sai do Pai, na
criaçã o e na salvaçã o: para que o amor do Pai ao Filho seja compartilhado.
Pelo fato de o Filho, em um sentido, ser o modelo da criaçã o, sua resposta ao Pai também
serve de modelo sobre como a criaçã o e todas as criaturas deveriam responder. Jesus disse:
“que o mundo saiba que eu amo o Pai” (Jo 14.31). Portanto, como o Pai decidiu incluir-nos
no amor ao Filho, partilhá -lo conosco, o Filho escolheu incluir-nos no amor ao Pai. Ele
deleita-se em repetir o amor do Pai de volta ao Pai, e isso significa estar ao lado de Deus,
ser sua imagem e filho. Fomos criados de forma que, conhecendo seu amor, possamos amar
o Senhor nosso Deus.
 
 
Isso é grego para mim

Há duas palavras gregas que você nunca usará nas férias em Corfu, mas que gotejam néctar.
A primeira é hypostasis [hipó stase]. Eu sei, soa como uma doença de pele nojenta, mas na
realidade significa algo como “fundaçã o” ( hypo = “sob”; stasis = “algo que é ou existe”). O
Antigo Testamento grego usa a palavra em Salmos 69.2, quando o salmista diz: “Atolei-me
em lamaçal profundo, onde nã o se pode firmar o pé [ hypostasis ]”. Em outras palavras, nã o
há nada firme abaixo dele para ficar em pé. Porém, essa também é a palavra usada para
descrever o “ser” de Deus em Hebreus 1.3 (“Ele é o resplendor da sua gló ria e a
representaçã o exata do seu Ser [ hypostasis ]”). A hipóstase descreve o “ser” do Pai, o que
lhe é fundamental. [15]

A outra palavra é ekstasis , de onde se obtém a palavra êxtase. É uma palavra que tem
relaçã o com o ser além dele mesmo ou fora dele ( ek = “fora de”; stasis = “algo que é ou
existe”).
O que se observou é que a hypostasis de Pai, Filho e Espírito existe em sua ekstasis . Ou seja,
o ser interior de Deus ( hypostasis ) é um ser vivificador, amoroso e expansivo. O Deus
triú no é extático : ele nã o é um Deus que mesquinha a vida, mas que a entrega, como ele
mostraria no momento supremo da autorrevelaçã o na cruz. O Pai encontra sua exata
identidade em dar a vida e ser ao Filho; e o Filho reflete o Pai ao partilhar sua vida conosco
por meio do Espírito.
 
 
Tudo isso para dizer que a pró pria natureza do Deus triú no está em completo desacordo
com a natureza dos outros deuses. Em Cartas de um Diabo a seu Aprendiz , Clive S. Lewis
capturou bem a diferença entre o diabo (que é o deus carente e solitá rio definitivo) e o
Deus vivo de amor extá tico, autossacrificial e transbordante. Fitafuso, um demô nio
veterano, escreve:
Temos de admitir que toda aquela conversa sobre Seu amor pelos homens e sobre o fato de que o serviço a Ele é
a perfeita liberdade nã o é, como acreditaríamos de bom grado, mera propaganda, mas uma terrível verdade. Ele
realmente quer preencher o universo com inú meras pequenas réplicas repugnantes de Si mesmo — criaturas
cuja vida, em escala menor, será qualitativamente como a d'Ele, nã o porque Ele as absorveu, e sim porque a
vontade deles está em espontâ nea harmonia com a d'Ele. Nó s queremos apenas um gado que finalmente poderá
ser transformado em alimento; Ele quer servos que finalmente poderã o tornar-se filhos. Nó s queremos sugá -los;
Ele quer fortalecê-los. Somos vazios, e por isso queremos ser preenchidos; Ele está repleto e transborda. [16]

E Fitafuso nã o está sozinho: ele parece pensar de forma notavelmente semelhante a


Á rtemis dos efésios. Em Atos 19, Demétrio, o fabricante de ídolos, queixa-se de que se for
permitido a Paulo dizer que deuses feitos pelo homem nã o sã o deuses, entã o,
Nã o há somente perigo de que esse nosso negó cio caia em descrédito, mas também que o templo da grande deusa
Á rtemis perca toda a sua importâ ncia, vindo até mesmo a ser destituída da sua majestade aquela a quem toda a
Á sia e o mundo adoram. Ao ouvirem isso, ficaram furiosos e gritaram: Grande é a Á rtemis dos efésios!
(At 19.27,28).

Em outras palavras, a divina majestade de Á rtemis depende do culto dos adoradores. Em si


mesma, ela parece vazia e parasitá ria, como se sua magnificência nã o fosse nada além do
brilho da prata trazida a seu templo por seus escravos.
A tragédia é que tantos considerem que o Deus vivo é o diabó lico aqui, como se ele nos
criasse apenas para ganhar, exigir, tomar de nó s. Mas o contraste entre o diabo e o Deus
triú no dificilmente poderia ser mais gritante: o primeiro é vazio, faminto, ganancioso,
invejoso; o segundo é superabundante, generoso, radiante e autossacrificante. E, assim , [17]

o Deus triú no pode e, de fato, cria. Graça, portanto, nã o é só sua bondade sobre os que
pecaram; a pró pria criaçã o é uma obra de graça, fluindo do amor de Deus. Com esse Deus, o
amor nã o é mera reaçã o. Na verdade, nã o é reaçã o. O amor de Deus é criativo. O amor vem
em primeiro lugar. Ele dá vida e ser como dom gratuito, pois sua pró pria vida, ser e
bondade sã o como o fermento, espalhando-se para que possa haver mais do que é
verdadeiramente bom.
Jonathan Edwards, teó logo da Nova Inglaterra no século XVIII, expressou esse conceito de
forma impressionante. O alvo de Deus em criar o mundo, Edwards disse, era ele mesmo.
Porém, como a pró pria identidade de Deus é muito diferente da identidade de qualquer
outro, isso significa algo completamente diferente do que significaria para outros deuses. A
identidade desse Deus encontra-se em dar, nã o em tomar. Ele é como uma fonte de
bondade e, assim, Edwards disse, “almejar-se a si mesmo” significa “almejar-se em
propagaçã o e expressã o” — em outras palavras, almejar a si mesmo, sua vida e sua
bondade compartilhados. Sua natureza gira em torno de expandir e partilhar sua
[18]

plenitude, e ele gira em torno disso. Em contraste com todos os outros deuses, a exuberante
natureza desse Deus significa que seu prazer “é mais um prazer em se estender e
comunicar à criatura que em receber da criatura”. [19]

 
 
Sob os raios de sol do amor de Deus

Normalmente, as pessoas pensam nos “puritanos” como um grupo rígido e gélido: amargo,
exigente e, francamente, tã o chato que pombos podiam empoleirar-se neles. Bem, alguns
deles eram.
Mas, nã o Richard Sibbes. Sibbes, quase contemporâ neo de Shakespeare, foi um pregador e
teó logo puritano que falava de forma tã o atraente sobre a bondade e o amor de Deus que se
tornou conhecido como o pregador “boca de mel”. Entretanto, isso nã o aconteceu apenas
porque Sibbes nasceu com uma disposiçã o radiante; ele mesmo estava persuadido de que
nosso conceito de Deus nos molda de forma mais íntima. Nó s nos tornamos o que
adoramos.
E Sibbes percebeu com clareza a atratividade, bondade e amabilidade do Deus triú no: ele
falou do Deus vivo como um sol caloroso e doador de vida que se “deleita em lançar seus
raios e sua influência sobre coisas inferiores, tornando tudo frutífero. Essa bondade está
em Deus como em uma fonte, ou no seio que ama aliviar-se de leite”. Isto é, Deus [20]

transborda de nutriçã o cordial e vivificante, bem mais disposto a dar do que estamos a
receber. E, ele explicou, é precisamente por isso que Deus criou o mundo :
Se Deus nã o contasse com uma bondade comunicativa e contagiante, ele nunca teria criado o mundo. Pai, Filho e
Espírito Santo estavam felizes consigo mesmos, e desfrutavam um do outro antes de o mundo existir. Sem o fato
de Deus deleitar-se em comunicar e espalhar sua bondade, jamais haveria criaçã o ou redençã o. [21]

Assim, Deus nã o precisava criar o mundo a fim de satisfazer-se ou ser ele mesmo. A
majestade divina desse Deus nã o depende do mundo. Pai, Filho e Espírito Santo “estavam
felizes consigo mesmos, e desfrutavam um do outro antes de o mundo existir”. Mas o Pai
apreciava tanto sua comunhã o com o Filho que desejou a bondade disso espalhada e
comunicada ou partilhada com outros.
A criaçã o foi uma escolha livre corroborada apenas pelo amor. [22]

O conhecimento de que Deus é tã o ensolarado, tã o radiante de bondade e amor, tornou


Sibbes um modelo atraente da semelhança com Deus. Ele disse: “Os guiados pelo Espírito
de Deus sã o semelhantes a ele; eles têm uma bondade comunicativa e expansiva que ama
espalhar-se”. Em outras palavras, conhecendo o amor de Deus, ele tornou-se amoroso; e
seu entendimento de quem Deus é o transformou em um homem, um pregador e um
escritor de genialidade magnética. Essa amabilidade brilhou em sua pregaçã o; ela ainda
resplandece em seus escritos; e, observando sua vida, fica claro que ele contava com uma
capacidade realmente extraordiná ria de cultivar amizades cordiais e duradouras. Ele tinha
se tornado como seu Deus.
 
 
Como o Deus triúno criou?

Por ser o amor paterno ao Filho o motivo por trá s da criaçã o, o Credo niceno atribui a
criaçã o em especial ao Pai: “Cremos em um só Deus, Pai todo-poderoso, criador do céu e da
terra”. Fluindo de seu amor, cabe a ele chamar à existência. Assim, o clamor de
Apocalipse 4.11 sobe especificamente a ele: “Nosso Senhor e nosso Deus, tu és digno de
receber a gló ria, a honra e o poder, porque tu criaste todas as coisas e, por tua vontade, elas
existiram e foram criadas”.
Mas, como pode ser visto em Gênesis 1, ele cria por meio da Palavra e do Espírito. Assim,
um teó logo do século II, Irineu de Lion, gostava de falar do Filho e do Espírito como “as
duas mã os” do Pai. Ele nã o queria de forma alguma implicar que o Filho e o Espírito nã o sã o
realmente pessoas (o pró prio Jesus estava disposto a chamar o Espírito de “dedo de Deus”:
cp. Mt 12.28/Lc 11.20); o Filho e o Espírito sã o agentes do Pai, realizando a vontade dele.
Contudo, os papéis do Filho e do Espírito na criaçã o sã o diferentes. Como vimos no capítulo
anterior, em Gênesis 1, a Palavra parte no poder do Espírito que paira, para que no Sopro
de Deus, sua Palavra seja ouvida: “Haja luz!”. Assim, o Pai cria por meio da Palavra (Jo 1.3),
sendo a Palavra seu braço executor. Isso significa que o Filho está tã o envolvido na obra da
criaçã o do Pai que Paulo pô de escrever:
Ele é a imagem do Deus invisível, o primogênito sobre toda a criaçã o; porque nele foram criadas todas
as coisas nos céus e na terra, as visíveis e as invisíveis, sejam tronos, sejam dominaçõ es, sejam
principados, sejam poderes; tudo foi criado por ele e para ele (Cl 1.15,16).

“E para ele”. Foi seu amor transbordante pelo Filho que motivou o Pai a criar, e a criaçã o é
sua dá diva ao Filho. O Pai faz do Filho o beneficiá rio, o “herdeiro de todas as coisas”
(Hb 1.2; v. tb. Dt 32.8,9; Sl 2.8). Assim, o Filho nã o é apenas a origem motivadora da criaçã o:
ele é o objetivo. O Filho é o alfa e o ô mega, o princípio e o fim da criaçã o. E aqui chegamos a
algo espantoso: como o amor do Pai ao Filho superabundou para ser partilhado conosco, a
herança do Filho também é (de modo extraordiná rio!) partilhada conosco. “Se somos filhos,
também somos herdeiros, herdeiros de Deus e coerdeiros de Cristo” (Rm 8.17). Esta é uma
expressã o física da maravilhosa verdade de que o Pai partilha conosco seu amor pelo Filho:
os mansos herdarã o a terra!
Assim, alguns textos da Escritura falam da criaçã o como obra do Pai (concebida em seu
amor); outros falam da criaçã o como obra do Filho (ele realiza a vontade do seu Pai); mas,
outros também falam dela como obra do Espírito. “Os céus foram feitos pela palavra do
SENHOR , e todo o exército deles, pelo sopro (ou Espírito) da sua boca” (Sl 33.6). Como? Qual
é o papel do Espírito? Nó s já vimos que o Espírito capacita a Palavra, mas ele faz ainda
mais: enquanto o Filho estabelece e sustenta todas as coisas (Hb 1.3), o Espírito aperfeiçoa
ou completa a obra de criaçã o. Jó 26.13 expressa de forma encantadora: “Com seu sopro
(ou Espírito) clareou o céu”. Em outras palavras, o Espírito ornamenta e embeleza os céus e
a terra. Nossa primeira visã o do Espírito em Gênesis 1, semelhante a uma pomba
sobrevoando, captura algo essencial. Como uma pomba chocando seus ovos, o Espírito
vivifica, trazendo o que foi criado à vida. E, assim, embora o Credo niceno fale do Pai como o
“Criador do céu e da terra”, ele fala do Espírito como “Senhor e Vivificador”.
Vida é algo que Deus sempre teve e, na criaçã o, é algo que agora ele partilha conosco. Por
seu Espírito, ele insufla vida em nó s. E nã o apenas no princípio: isso é sempre obra do
Espírito, dar vida. No livro de Jó , Eliú diz: “O Espírito de Deus me fez, e o sopro do Todo-
poderoso me dá vida” (Jó 33.4). Continuamente na criaçã o, o Espírito vitaliza e reanima. Ele
ama tornar a criaçã o — e suas criaturas — frutíferas . Isaías escreve sobre o tempo quando
“se derrame sobre nó s o Espírito lá do alto, e o deserto se torne em campo fértil, e este seja
conhecido como um bosque” (Is 32.15). O salmista canta: “Envias teu fô lego [Espírito], e [os
seres] sã o criados; e assim renovas a face da terra” (Sl 104.30). Nã o é de se admirar,
portanto, que a criatividade, a capacidade de manufaturar, adornar e tornar belo, seja dom
do Espírito:
Depois dessas coisas, o SENHOR disse a Moisés: Eu designei Bezalel, filho de Uri, filho de Hur, da tribo de
Judá , e o enchi do Espírito de Deus, dando-lhe sabedoria, entendimento e habilidade em toda atividade
artística, para criar obras artísticas e trabalhar em ouro, prata e bronze, para lavrar pedras de engaste e
fazer entalhe em madeira, enfim, para trabalhar em toda atividade artística (Ê x 31.1-5).

O Espírito vitaliza a criaçã o com beleza. Gerard Manley Hopkins capturou isso muito bem
quando escreveu sobre a obra do Espírito de revigorar o mundo agora fatigado pelo
pecado:
Um límpido frescor do ser das coisas vaza;
E quando a ú ltima luz o torvo Oeste turva
Ah, a aurora, ao fim da fímbria oriental, abrasa —
Porque o Espírito Santo sobre a curva
Terra com alma ardente abre ah! a asa alva. [23]

 
“E era bom"

Deus Pai é um Deus que se deleita em ter outro a seu lado (o Filho eterno). Ele é o Deus que
acha isso bom. E, assim, ele é o Deus que pode declarar a criaçã o boa. Se ele tivesse vivido
eternamente sozinho, preocupado somente consigo, seria difícil acreditar que ele pudesse
fazer isso. A nova existência de algo além dele com certeza seria um estorvo ou, talvez,
aquilo se parecesse com um rival. Veja, por exemplo, algo que o influentíssimo Abu Hamid
al-Ghazali, teó logo islâ mico (1056-1111), escreveu certa vez:
Deus de fato os ama [pessoas], mas, na realidade, ele nã o ama outro além de si mesmo, no sentido de
que ele é a totalidade [do ser], e nada existe à parte dele. [24]

Pelo fato de Alá “nã o ama[r] outro além de si mesmo”, ele nã o se exterioriza de verdade
para expressar o amor aos outros. Portanto, nã o pode haver razã o para que tudo mais deva
existir. Na realidade, “nada existe à parte dele”. Obviamente, o Alcorão menciona o amor de
Alá e da criaçã o, mas é difícil perceber com exatidã o como essas coisas podem ser. O
universo, no pensamento islâ mico, deve ter uma existência apenas nebulosa e incerta.
E, olhando em volta, parece verdade que seres supremos absolutamente singulares tendem
a demonstrar uma evidente perturbaçã o em relaçã o à existência da criaçã o. Nesses
sistemas de crença, o mundo físico nã o raro é visto de modo negativo e com cautela. E a
esperança oferecida por esses deuses muitas vezes nã o inclui a visã o, o conhecimento ou o
relacionamento com eles. Eles oferecem o “paraíso”, mas eles mesmos nã o estarã o de fato
lá . Por que eles gostariam de envolver-se com a criaçã o?
Um exemplo nítido disso pode ser visto na estranha coletâ nea de crenças do século II e III,
que chamamos de gnosticismo. Se você já leu O código Da Vinci , de Dan Brown, ou viu o
filme, já teve seu encontro com o gnosticismo. No mundo de Dan Brown, o cristianismo
ortodoxo é uma religiã o autoritá ria, chauvinista e intolerante: é assim, aparentemente, que
o Deus do cristianismo é e, portanto, como seus servos sã o. Porém, à margem da histó ria,
perseguidos e caçados nos esconderijos, estã o os gnó sticos; e, na mente de Dan Brown, os
gnó sticos sã o os mocinhos de mente aberta, tolerantes, protofeministas.
Bem. Vejamos. No gnosticismo, tudo começou com o Uno. Isto é, havia uma realidade
[25]

espiritual e nada mais. Tudo estava ó timo e divino. Imagine que a sala onde você está agora
é essa realidade: na sala há paz e um livro muito bom que você recomendaria para seus
amigos. Fora da sala, nã o há nada. Entã o, de alguma forma, algo dá errado. Uma
perturbaçã o na sala. O cachorro começa a vomitar no carpete, digamos. É claro, você quer
continuar lendo o livro muito bom, logo, a perturbaçã o e a bagunça devem ser jogadas fora.
Mas agora, assim que a perturbaçã o é retirada da sala, algo problemá tico e detestá vel existe
fora dela. Esse é o relato gnó stico da criaçã o: outrora havia apenas a realidade espiritual;
algo deu errado; o problema foi jogado fora; agora existe algo fora da realidade espiritual
que se tornou o universo físico.
Gênesis menciona a criaçã o boa e, então , a queda para o mal; o gnosticismo imaginou
primeiro a queda para o mal, e a criaçã o como resultado. Para os gnó sticos, o Uno era bom;
a existência de algo além dele é má . Assim, eles falam desse algo mais (o universo, nossos
corpos e toda a existência física) como o vô mito nocivo expelido pelo Uno. As boas-novas,
eles afirmavam, eram que, como um cachorro, o Uno retornaria ao vô mito e o engoliria.
Entã o, tudo o que é físico seria consumido e ingerido pelo espiritual, tudo felizmente seria
apenas o Uno mais uma vez, e o universo seria nada além de uma lembrança embaraçosa
na mente do Uno.
Seres supremos absolutamente singulares nã o gostam de criaçã o.
 
 
Não é bom que o homem esteja só.

Se foi assim que os gnó sticos rearranjaram Gênesis 1 — inserindo um “nã o” em cada “E viu
Deus que isso era bom” —, imagine como eles leem Gênesis 2 e a histó ria da criaçã o de Eva.
Para eles, o capítulo começa de maneira bastante positiva: o homem está só . Há apenas um.
Isso deve ser bom. Mas, entã o, de maneira horripilante, da mesma forma que a realidade
física foi excretada da espiritual, Eva sai de Adã o. Agora há dois. E como a existência de
duas realidades (espiritual e física) é má , a existência de dois sexos é má . De forma mais
específica, a existência das mulheres é má . Assim, o versículo final do Evangelho gnó stico de
Tomé diz:
Simã o Pedro disse: Seja Maria afastada de nó s, porque as mulheres nã o sã o dignas da vida. Respondeu
Jesus: Eis que eu a atrairei, para que ela se torne homem, de modo que também ela venha a ser um
espírito vivente, semelhante a vó s homens. Porque toda a mulher que se fizer homem entrará no Reino
dos céus. [26]

Esse versículo nã o aparece de maneira chocante ou estranha no fim do Evangelho de Tomé ;


ele é filho natural do pensamento gnó stico. A existência de duas realidades, dois sexos, do
físico e do feminino, é uma tragédia. Mas assim deve ser quando se trata do ser supremo
sozinho e solitá rio. Intolerante à existência de algo mais, é simplesmente natural que ele
prefira esconder o físico e o feminino, ou usá -los, se puder, só para a autogratificaçã o.
Assim, pelo menos para as mulheres, a salvaçã o gnó stica significaria mudança de gênero. A
insinuaçã o de Dan Brown, de que os gnó sticos eram protofeministas tolerantes, soa
bastante vazia, na realidade.
E quanto aos cristã os chauvinistas? Crendo que Deus nã o é solitá rio, faz perfeito sentido
dizer que nã o é bom ter homens solitá rios. Como Deus nã o está sozinho, entã o o homem,
em sua imagem, nã o deveria estar só . Portanto, eles confessam a criaçã o e o físico, a
feminilidade, os relacionamentos e o casamento, tudo como intrinsecamente bom, reflexos
criados pelo Deus que nã o está só .
Sem a Trindade, é difícil ver como essas coisas poderiam, em ú ltima aná lise, ser afirmadas.
(É claro, alguém poderia apenas defender que homens e mulheres sã o iguais pela
humanidade de ambos, mas essa é uma afirmaçã o inteiramente desprovida de amor, e nã o
oferece fundamento para ver essas coisas como bens absolutos nos quais se deleitar). Em 1
Coríntios 11.3, o apó stolo Paulo escreveu: o cabeça de Cristo é Deus, o cabeça da mulher é
seu marido. Porém, se o Filho é menos Deus que o Pai, a esposa é menos humana que o
marido? Sem crer em Deus Pai e Deus Filho, um no Espírito, por que o marido nã o deveria
tratar a mulher como ser inferior? Se a liderança do marido sobre a mulher é, de alguma
forma, semelhante à liderança do Pai sobre o Filho, entã o que relacionamento amá vel deve
resultar! A pró pria identidade do Pai envolve fornecer vida, amor e ser ao Filho, fazendo
tudo por amor a ele.
Evidentemente, isso nã o significa afirmar que os cristã os sempre acertam na vida ou
demonstram viver essas crenças, mas é o início de uma vigorosa refutaçã o do conceito de
que o cristianismo é inerentemente chauvinista. A crença na Trindade trabalha de modo
preciso contra o chauvinismo e a favor do prazer por relacionamentos harmoniosos.
E isso é relatado pela histó ria quando o cristianismo espalhou-se inicialmente pelo mundo
greco-romano. Estudos têm demonstrado que, nesse mundo, era algo muito raro, mesmo
para famílias grandes, ter mais de uma filha. Como isso foi possível em diversos países ao
longo de séculos? Simplesmente porque o aborto e o infanticídio feminino eram bastante
praticados como forma de aliviar as famílias do fardo do gênero considerado supérfluo pela
cultura. Nã o é surpresa, entã o, que o cristianismo tenha sido especialmente atraente para
mulheres, grande parte dos primeiros convertidos: o cristianismo denunciava esses antigos
e arriscados procedimentos abortivos; recusava-se a ignorar a infidelidade dos maridos
como o paganismo fazia; no cristianismo, as viú vas eram apoiadas pela igreja; as mulheres
eram até recebidas como “cooperadoras” do evangelho (Rm 16.3). No cristianismo, elas
eram valorizadas.
 
 
Explicando bem…

A pró pria natureza do Deus triú no é ser efusivo, ebuliente e sobrejante; o Pai regozija-se
em ter outro a seu lado, e encontra a pró pria identidade ao extravasar seu amor. Criaçã o
significa a expansã o, difusã o e explosã o externa desse amor. Esse Deus é o completo oposto
do vazio egoísta, faminto, mesquinho; em sua autoentrega, ele naturalmente verte vida e
bondade. Portanto, ele é a fonte de todo o bem, e isso significa que ele nã o é o tipo de Deus
que atrairia pessoas para si enquanto as afasta da alegria das coisas boas. Bondade e
felicidade supremas devem ser encontradas nele, nã o à parte dele.
E a natureza sobejante do criador triú no faz toda a diferença em como vemos a criaçã o. Se
Marduque tivesse o que queria, e nó s existíssemos para ser escravos, a criaçã o
simplesmente forneceria matéria-bruta para manter o pessoal trabalhando. Tal como ela é,
há algo gratuito na criaçã o, um sobejamento desnecessá rio de beleza e, por meio de seus
prazeres e bens, podemos regalar-nos na completa generosidade do Pai. Na verdade, disse
C. S. Lewis, mesmo que nossa visã o de Deus nos impeça de fazê-lo, é exatamente isso que os
animais fazem. Escrevendo a seu amigo Owen Barfield, pouco depois da Segunda Guerra
Mundial, ele observou:
Falando em feras e pá ssaros, já percebeu esse contraste? Quando você lê o relato científico de qualquer
vida animal, fica com a impressã o de uma atividade econô mica laboriosa, incessante, quase racional
(como se todos os animais fossem alemã es), mas quando você estuda algum animal conhecido — o
primeiro aspecto que lhe chama a atençã o é a alegre tolice, a falta de propó sito em quase tudo que faz.
Diga o que quiser, Barfield, o mundo é mais excêntrico e divertido do que se supõ e. [27]

Isso faz toda a diferença: esse mundo é um deserto de mera e cruel sobrevivência? Uma
casa de correçã o criada para os deuses? Ou é o dom do Pai mais gentil e generoso?
 
…e mal
Se Deus nã o é triú no, fica ainda pior: porque nã o sendo triú no, fica muito difícil nã o apenas
explicar a bondade da criaçã o (como vimos), mas também explicar a existência do mal
dentro dela. Se Deus é o ser supremo, entã o o mal nã o pode ser uma força rival,
eternamente existente junto dele. Porém, se Deus é absolutamente solitá rio em sua
supremacia, entã o com certeza o mal deve originar-se no pró prio Deus. Acima e antes de
tudo, ele é a origem de todas as coisas, boas e má s. Evidencia-se nã o ser bom que Deus
esteja só .
O Deus triú no, contudo, é o tipo de Deus que dará espaço para outros terem existência real.
O Pai, que se deleita em ter um Filho, escolhe criar muitos filhos que terã o vida pró pria e
real, partilharã o do amor e da liberdade de que ele sempre desfrutou. As criaturas do Deus
triú no nã o sã o meras extensõ es dele; ele lhes dá vida e ser pessoal. Conceder isso, porém,
significa conceder que elas desviem-se dele — e essa é a origem do mal. Ao graciosamente
permitir que as criaturas existam, o Deus triú no concede a elas a liberdade de se desviarem,
sem ele mesmo ser o autor do mal.
 
De harmonia em harmonia

O cristianismo sempre teve um caso de amor especial com a mú sica. As Escrituras estã o
impregnadas com mú sica, como a vida na igreja. John Dryden, o poeta do século XVII,
tentou explicar por que deve ser assim em sua “Cançã o para o dia de santa Cecília” (santa
Cecília é a padroeira da mú sica sacra):
Da celeste harmonia, da harmonia
Originou-se esse sistema universal
Quando a Natureza sob um cú mulo
De dissonantes á tomos estava,
Incapaz de erguer sua fronte,
Do alto, ouviu-se a afinada voz,
“Levantai-vos, mais que mortos!”
Entã o, frio e quente, ú mido e seco,
A suas posiçõ es saltam,
E o poder da mú sica obedece.
Da celeste harmonia, da harmonia
Originou-se esse sistema universal:
De harmonia em harmonia
Toda a escala das notas percorreu,
O diapasã o [a oitava] completando no homem.

As palavras de Dryden encontram ecos por todo o mundo cristã o: C. S. Lewis mostrou a
figura de Cristo, Aslam, cantando Ná rnia à existência em O sobrinho do mago ; seu amigo,
John R. R. Tolkien, imaginou a criaçã o do cosmo como um evento musical em O Silmarillion ;
e, no século XVIII, Georg Friedrich Hä ndel musicou a ode de Dryden de forma tal que se
pode escutar de fato na melodia, apó s o vazio e silêncio dramá ticos, que lembram Gênesis
1, a explosã o da transbordante alegria da harmonia celestial.
É da harmonia celestial de Pai, Filho e Espírito que esse sistema universal do cosmo — e
toda harmonia criada — vem. Ouvir uma harmonia afinada pode ser uma das experiências
mais inebriantemente belas. E nã o é de admirar: assim na terra, como no céu. Pai, Filho e
Espírito sempre existiram em deliciosa harmonia e, assim, eles criam o mundo em que
harmonias — seres, pessoas ou notas distintas trabalhando em unidade — sã o bons,
refletindo o pró prio ser do Deus triú no.
A eterna harmonia entre Pai, Filho e Espírito fornece a ló gica para o mundo em que tudo foi
criado para existir em alegre convivência e que, a despeito da dissonâ ncia do pecado e do
mal, ainda é em essência harmonioso. Assim, Ataná sio, o teó logo do século IV, comparou
Deus Filho a um mú sico, e o universo à sua lira:
Como o mú sico com a lira bem afinada, combinando habilmente os sons graves com os agudos e os
intermédios, executa uma harmonia, assim também a Sabedoria de Deus, tomando em suas mãos o
universo como uma lira, associando as coisas do ar com as da terra e as do céu com as do ar,
harmonizando o singular com o todo, segundo a sua vontade e beneplá cito, criou um mundo unificado,
formosa e harmoniosamente ordenado. [28]

Esses pensamentos têm inspirado muitos mú sicos cristã os. Johann Sebastian Bach, por
exemplo, estava muito comprometido com a ideia de que o mú sico humano poderia ecoar e
sondar a harmonia có smica do mú sico divino; a ordem, os tons maiores e menores, as
sombras e luzes na mú sica repetiriam a estrutura da grande sinfonia da criaçã o. Ao
escrever mú sica dessa forma, Bach, de maneira bastante deliberada, buscava fornecer
combustível para a mente e o coraçã o, desafiando o intelecto e agitando as afeiçõ es, pois a
realidade final encontrada além da mú sica é nã o apenas fascinante, mas inefavelmente
bela.
O jovem contemporâ neo de Bach, Jonathan Edwards, era um ardente amante da mú sica.
Uma de suas palavras favoritas era “harmonia”. Declarando que Pai, Filho e Espírito
constituíam “a harmonia suprema de tudo”, ele acreditava, como Bach, que quando
cantamos juntos em harmonia (como ele sempre fazia com sua família), fazemos algo que
reflete a beleza do pró prio Deus.
A melhor, mais bela e mais perfeita maneira de expressar uma doce conformidade mental uns com os
outros é por meio da mú sica. Quando formo em minha mente a ideia de uma sociedade da mais alta
alegria, penso na expressã o do amor, da alegria e beleza espiritual, da harmonia e conformidade
internas da alma quando cantam com doçura uns para os outros. [29]

Aqui está a mais profunda e fascinante beleza a ser descoberta na harmonia celestial da
Trindade. Karl Barth disse: “A triunidade de Deus é o segredo de sua beleza”. É claro. Na [30]

vívida harmonia das três pessoas, no amor radiante, na transbordante excelência desse
Deus há uma beleza inteiramente contrá ria à monotonia interesseira dos deuses
monopessoais de acordo com a descriçã o de Fitafuso. E pelo fato de Deus ter derramado
seu amor e sua vida, também podemos dizer: “A triunidade de Deus é a fonte de toda a
beleza”.
 
1+1=?
Como vivemos no mundo criado pelo Deus triú no, faz sentido que diferentes notas possam
soar agradá veis quando unidas, que diferentes cores possam se complementar, que as
coisas possam concordar. De fato, uma das maiores ironias encontra-se aqui: a Trindade é
sempre desprezada pela suposta absurdidade matemá tica (1 + 1 + 1 = 1). Nã o obstante, é a
Trindade que fornece a mais convincente base ló gica para a matemá tica.
À primeira vista, seria possível pensar que matemá tica é uma disciplina muito, muito
distante de qualquer forma de opiniã o religiosa. Com certeza 1 + 1 = 2, quer você ame
Jesus, sirva Alá ou abrace á rvores. Mas nã o é bem assim. Para os monistas, os zen-budistas
e os hinduístas vedantas, a realidade é que o todo é um. Assim, sei que pareço uma pessoa
diferente de você, mas infelizmente essa aparência é mera ilusã o a ser transcendida. Eu sou
você. Sinto muito. Pois, nã o há algo como “2”. Em ú ltima aná lise, 1 + 1 = 1.
É preciso haver algo como uma pluralidade absoluta para a matemá tica fazer sentido de
verdade, para que eu creia que “2” realmente significa alguma coisa. Ainda assim, também é
preciso haver algo como a unidade absoluta, de forma que 1 + 1 sempre seja = 2, e nã o 83
(de vez em quando). Para ser coerente e significativa, a matemá tica postula a existência de
absoluta pluralidade na unidade.
 

O que os céus proclamam?

O salmo 19 começa com “os céus proclamam a gló ria de Deus”. É fá cil interpretar isso como
nada além de uma referência ao poder e à imensidã o divinos. Você olha para o céu e
contempla o poder e a supremacia transcendentes do Criador. Mas o poder de Deus nos fala
somente de como ele pô de trazer tudo à existência. Ele nã o nos diz por quê .
Agora olhe para o céu de novo. O Deus triú no nã o pô s apenas umas estrelas aqui e ali; ele
encheu os céus com milhõ es e bilhõ es delas. Como o salmo 19 prossegue dizendo, lá no céu,
ele colocou o sol, que fornece calor, luz e vida ao mundo. Há também as nuvens que
derramam chuva para fazer as coisas crescerem. Os céus declaram a amorosa generosidade
de Deus. E foi por isso que ele criou.
Entã o, na pró xima vez que você observar o sol, a lua e as estrelas, e ficar admirado, lembre-
se de que eles estã o ali porque Deus ama, porque o amor de Deus ao Filho irrompeu para
que pudesse ser desfrutado por muitos. E eles permanecem lá apenas porque Deus nã o
para de amar. Ele é o Pai atento que conta cada fio de cabelo da nossa cabeça, para quem a
queda de cada pardal é importante; e, por amor, sustenta todas as coisas por meio do Filho,
e sopra vida natural em tudo por meio do Espírito.
E nã o só a alegre, sobejante e expansiva bondade de Deus é a razã o para a criaçã o; o amor e
a bondade do Deus triú no é a fonte de todo o amor e de toda a bondade. O teó logo puritano
do século XVII, John Owen, escreveu que o amor do Pai ao Filho é “a fonte e o protó tipo de
todo o amor… E todo o amor na criaçã o foi introduzido dessa fonte, para oferecer sombra e
semelhança dela”. [31]
De fato, no Deus triú no está o amor por trá s de todo o amor, a vida
por trá s de toda a vida, a mú sica por trá s de toda a mú sica, a beleza por trá s de toda a
beleza e a alegria por trá s de toda a alegria. Em outras palavras, no Deus triú no está o Deus
do qual podemos desfrutar de coraçã o — e desfrutar na criaçã o e por meio dela.
 

3. Salvação: o Filho partilha o que é dele


 
Amor distorcido

O Deus triú no criou o universo bom, um lugar de beleza, alegria, harmonia e amor. Ainda é
o universo bom, e nó s ainda podemos desfrutar dessas coisas hoje, mas agora a harmonia
está manchada pelo ó dio, a alegria pela dor, a beleza pela morte. O que deu errado? Ou,
expressando de outra forma, o que exatamente aconteceu quando Adã o e Eva pecaram em
Gênesis 3 para nos deixar carentes de salvaçã o?
A resposta a essa questã o depende, na verdade, do que era originalmente “certo”. E com o
que “certo” se parece depende do tipo de Deus que você tem. Pegue, por exemplo, o Deus
monopessoal: esse Deus nã o criou a partir do amor transbordante, ele criou apenas para
reinar e ser servido. Nesse caso, “certo” significa nada mais que o comportamento certo.
Assumindo esse Deus, o que entã o deu errado? Simplesmente que Adã o e Eva fizeram o que
Deus lhes disse para nã o fazer. Eles falharam em obedecer. Claro, em um nível, é
exatamente isso que vemos em Gênesis 3: o Senhor Deus ordenou que Adã o nã o comesse
da á rvore do conhecimento do bem e do mal, mas Adã o e Eva fizeram exatamente isso.
Mas essa resposta nã o se aprofunda o bastante. Na Bíblia, pecado é algo que vai além do
nosso comportamento. De fato, nó s podemos fazer o que é “certo” e nã o sermos melhores
que sepulcros caiados, limpos por fora, mas podres por dentro. Jonathan Edwards
argumentou que mesmo os demô nios podem fazer o que é certo no sentido superficial de
bom comportamento:
Certa ocasião, o diabo pareceu religioso por temer o tormento. Lucas 8.29: “Quando ele viu Jesus, gritou, prostrou-
se diante dele e exclamou em voz alta: Que tenho eu contigo, Jesus, Filho do Deus Altíssimo? Imploro-te que nã o
me atormentes”. Aqui está adoraçã o externa. O diabo é religioso; ele ora: ele ora em uma postura humilde; ele
prostra-se diante de Cristo, permanece ajoelhado; ora com sinceridade, grita em alta voz; usa expressõ es humildes
— “Imploro-te que não me atormentes” — usa expressõ es respeitosas, honrosas, de louvor — “Jesus, Filho do Deus
Altíssimo”. Nada faltava, senã o amor. [32]

Este é o problema com o relato do Deus monopessoal: se o pecado envolve apenas agir e
comportar-se da forma correta, entã o aqui o diabo nã o está pecando.
E se, em vez disso, começarmos com o Deus triú no? Como isso mudaria o que era “certo”
em Gênesis 2? Como isso mudaria o que deu errado em Gênesis 3? Bem, em Gênesis 1.27,
“Deus criou o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou”.
O fato de sermos criados à imagem de Deus pode significar e significa mesmo muitas
coisas; mas o fato de esse Deus ser de forma específica o Deus triú no de amor tem
repercussõ es que ecoam por toda a Escritura. Feitos à imagem desse Deus, fomos criados
para deleitarmo-nos em relacionamentos harmoniosos, para amarmos Deus e uns aos
outros. Assim, Jesus ensinou que o primeiro e maior mandamento da Lei é amar o Senhor,
seu Deus, com todo o coraçã o e com toda a alma e com toda a mente, e o segundo é amar o
pró ximo como a si mesmo (Mt 22.36-39). Para isso fomos criados.
Entã o, o que deu errado? Adã o e Eva nã o pararam de amar. Eles foram criados como
amantes à imagem de Deus, e eles nã o podiam desfazê-lo. Na verdade, o amor deles mudou .
Quando o apó stolo Paulo escreve sobre pecadores, ele os descreve como “amantes de si
mesmos, amantes do dinheiro […] mais amantes do prazer que amantes de Deus” (2Tm 3.2-
4, ESV). Amantes permanecemos, mas distorcidos, nosso amor pervertido e mal-orientado.
Criados para amar Deus, passamos a amar nó s mesmos e qualquer coisa, menos Deus. Isso
vemos no primeiro pecado de Adã o e Eva. Eva toma e come o fruto proibido porque o amor
a si mesma — e obtençã o de sabedoria para si — superou qualquer amor que ela poderia
ter tido em relaçã o a Deus.
Entã o, vendo a mulher que a á rvore era boa para dela comer, agradável aos olhos e desejável para dar
entendimento, tomou do seu fruto, comeu e deu dele a seu marido, que também comeu (Gn 3.6).

O problema é mais profundo que suas açõ es, mais profundo que a desobediência externa.
Seu ato de pecado era apenas a manifestaçã o da mudança no coraçã o: agora, ela deseja o
fruto mais do que desejava Deus. E isso, diz Tiago, é o que acontece com todo pecado: ele
flui de nossos desejos, do que amamos de forma errada:
Cada um é tentado quando atraído e seduzido por seu pró prio desejo. Entã o o desejo, tendo concebido, dá à luz o
pecado; e o pecado, apó s se consumar, gera a morte (Tg 1.14,15).

Temas similares surgem no lamento de Ezequiel a respeito do rei de Tiro. Lá , o Senhor fala
ao rei, dizendo: “Você estava no É den, no jardim de Deus; todas as pedras preciosas o
enfeitavam: sá rdio, topá zio e diamante, berilo, ô nix e jaspe, safira, carbú nculo e esmeralda.
Seus engastes e guarniçõ es eram feitos de ouro; tudo foi preparado no dia em que você foi
criado. Você foi ungido como um querubim guardião ” (Ez 28.13,14, NVI). Todas essas
pedras preciosas dispostas no ouro que ele vestia com certeza nos lembram do sumo
sacerdote de Israel, que vestia doze pedras preciosas em um peitoral enquanto servia
diante da arca da aliança no taberná culo. E na arca da aliança havia dois querubins de ouro,
com olhos fixos no propiciató rio (a tampa da arca), onde o Senhor deveria assentar
entronizado (Lv 16.2; 1Sm 4.4).
Entã o, algo dá errado em Ezequiel. O Senhor diz a esse querubim: “O teu coraçã o elevou-se
por causa da tua beleza, corrompeste a tua sabedoria por causa do teu resplendor”
(Ez 28.17). Em outras palavras, como os desejos de Eva voltaram-se para si, o olhar do
querubim voltou-se para ele. Isso é o que deu errado no É den, o jardim de Deus: os criados
para apreciar a beleza do Senhor desviaram-se para apreciar a pró pria beleza. Os anseios
de amor e os desejos do coraçã o deles mudaram do Senhor para eles mesmos. E, assim, em
vez de correrem para ele, eles agora se escondem dele.
John Milton buscou capturar essa realidade em Paraíso perdido, escrevendo sobre o nefasto
fascínio de Eva pelo pró prio reflexo. Antes que ela tomasse de fato o fruto proibido, ele nos
diz, seu olhar já havia começado a focar em si mesma. Tudo começa perto de um agradá vel
e límpido lago, e Eva inclina-se para olhar:
Mal que me inclino para baixo olhando,
Eis que dentro aparece uma figura
Que para mim a olhar também se inclina:
Medrosa me retiro, e ela medrosa
Retira-se também; mas complacente
A olhar me dobro logo, e ela instantâ nea
Torna a dobrar-se e complacente me olha
De simpá tico amor com mú tuas vistas.
Fitando os olhos meus ali té’-gora
Eu penando estaria em vã os desejos [33]

Como Deus Pai sempre olhou para além de si no Filho, e vice-versa, Eva também foi criada
para olhar além de si, para olhar como Deus, e para deleitar-se em Deus como origem de
toda a vida e bondade. Eva, porém, estava voltando-se para dentro, para amar a si mesma.
E, assim, ela estava desviando da imagem de Deus em direçã o à imagem do diabo.
 
 
Dois evangelhos diferentes

Todos gostam de pregadores que fazem sermõ es “desafiadores” e ninguém foi mais
desafiador que Pelá gio. Em algum ponto no final do século V, ele chegou a Roma como uma
vassoura nova, censurando a imoralidade e incitando os cristã os a viver em pureza. Pura
inspiraçã o.
Entretanto, quando Agostinho, o genial bispo de Hipona, examinou o que Pelá gio estava
ensinando, ele percebeu que, apesar de todo o vocabulá rio cristã o, Pelá gio havia
compreendido mal a pró pria essência da natureza de Deus e do evangelho. Pelá gio
ensinava que fizemos coisas erradas — esse era o problema —, mas se quisermos ter a
chance de entrar no céu, devemos começar a fazer coisas certas. Nã o havia compreensã o do
amor de Deus em parte alguma: simplesmente nã o ocorreu a Pelá gio que fomos criados
para conhecer Deus e amá-lo . Portanto, para ele, o alvo da vida cristã nã o era desfrutar de
Deus, mas usá -lo como o vendedor do céu pelo preço de sermos morais.

Como era diferente a visã o de Agostinho! Sabendo que Deus é o Deus triú no de amor, ele
defendia que nã o fomos criados para simplesmente viver sob seu có digo moral, esperando
por algum paraíso onde ele nunca estará . Fomos feitos para encontrar nosso descanso e
satisfaçã o na comunhã o todo-suficiente com ele. Além disso, nosso problema nã o é tanto
que tenhamos nos comportado mal, mas que fomos levados a amar mal. Feitos à imagem do
Deus de amor, Agostinho argumentou que somos sempre motivados pelo amor — por isso
Adã o e Eva desobedeceram a Deus. Eles pecaram porque amavam outra coisa mais do que
ele. Isso também significa que apenas mudar o comportamento, como Pelá gio sugeriu, nã o
faria bem algum. Algo muito mais profundo é necessá rio: o coraçã o de todos nó s deve ser
trazido de volta.
Pouco mais de mil anos depois, Martinho Lutero adotou a linha de pensamento de
Agostinho para definir o pecador como “alguém curvado sobre si mesmo”, alguém que já
nã o amava de forma expansiva como Deus, nã o mais buscava a Deus, voltado para si
mesmo, obcecado consigo, demoníaco. Pessoas assim podem até comportar-se moral ou
religiosamente, mas tudo o que elas fazem expressa apenas o amor fundamental por si
mesmas.
 
A natureza do Deus triú no faz toda a diferença do mundo na hora de entender o que deu
errado quando Adã o e Eva caíram. Significa que aconteceu algo mais profundo que a
quebra de regras e o mau comportamento: pervertemos o amor e rejeitamos aquele que
nos criou para amá -lo e sermos amados por ele.

Deus amou tanto…

Por mais assombroso que seja, a pró pria rejeiçã o de Deus alavancou as extremas
profundezas de seu amor. Observando sua resposta ao pecado, aprofundamo-nos mais do
que nunca no pró prio ser de Deus.
Aquele que não ama nã o conhece a Deus, porque Deus é amor . O amor de Deus para conosco manifestou-se no fato
de Deus ter enviado seu Filho unigênito ao mundo para que vivamos por meio dele. Nisto está o amor: nã o fomos
nó s que amamos a Deus, mas foi ele quem nos amou e enviou seu Filho como propiciaçã o pelos nossos pecados
(1Jo 4.8-10).

O Deus de amor manifesta esse amor de forma definitiva ao mundo quando lhe envia o
Filho eternamente amado para expiar seu pecado. E, assim, por meio do envio do Filho para
a nossa salvaçã o, vemos com mais clareza que nunca o quanto é generoso e
autossacrificante o amor do Deus triú no.
Sem a cruz, jamais poderíamos imaginar a profundidade e a seriedade do significado de
dizer “Deus é amor”. “ Nisto conhecemos o amor: Cristo deu sua vida por nó s, e devemos dar
nossa vida pelos irmã os” (1Jo 3.16). Na cruz, observamos a grandiosa santidade do amor de
Deus, que a luz de seu puro amor destruirá as trevas do pecado e do mal. Na cruz, vemos a
intensidade e a força do seu amor, que nã o é algo insípido, mas majestosamente poderoso
ao encarar morte, batalhar o mal e conceder vida. Pois Cristo nã o foi preso contra sua
vontade e arrastado para a crucificaçã o indesejada. Ninguém pode lhe tirar a vida, ele disse.
“Eu a dou espontaneamente. Tenho autoridade para dá -la e para retomá -la. Essa ordem
recebi de meu Pai” (Jo 10.18). O amor autossacrificante de Jesus é inteiramente livre e
espontâ neo. Ele tem origem, nã o em alguma necessidade, mas inteiramente em quem ele é,
a gló ria do Pai. Pela cruz, vemos o Deus que se deleita em entregar-se.
Mas, por que o Pai enviou seu Filho a nó s? Uma razã o suficientemente boa foi apresentada
em Joã o 3.16: “ Deus amou tanto o mundo , que deu o seu Filho unigênito”. Isso é formidá vel
o bastante; porém, mais adiante no evangelho de Joã o, Jesus fala de uma razã o ainda mais
poderosa e primordial. Orando a seu Pai, Jesus diz:
Pai justo, o mundo nã o te conheceu, mas eu te conheço; e estes reconheceram que tu me enviaste. E fiz que
conhecessem o teu nome e continuarei a fazê-lo conhecido; para que o amor com que me amaste esteja neles, e eu
também neles esteja (Jo 17.25,26).

Ou seja, o Pai enviou o Filho para fazer-se conhecido — isso significa nã o que ele queria
apenas fornecer alguns dados sobre si mesmo, mas que o amor eterno do Pai ao Filho
pudesse estar nos que cressem nele, e que eles pudessem desfrutar do Filho como o Pai sempre
o fez . Logo, aqui está a salvaçã o que nenhum deus monopessoal poderia oferecer mesmo
que quisesse: o Pai deleita-se tanto no amor eterno ao Filho que ele deseja partilhá -lo com
todos os que crerã o. Em ú ltima instâ ncia, o Pai enviou o Filho porque o Pai tanto amou o
Filho — que queria compartilhar esse amor e comunhã o. Seu amor ao mundo é o
derramamento de seu todo-poderoso amor ao Filho.
De fato, apenas alguns versículos antes, Jesus se expressa de forma ainda mais provocativa,
dizendo ao Pai: “Eu lhes [aos que creem] dei a gló ria que me deste” (Jo 17.22). Essas sã o
palavras que deveriam nos levar a um infarto, pois, em Isaías 42.8, o Senhor clara e
enfaticamente afirma: “Eu sou o SENHOR ; este é o meu nome. Não darei a minha gló ria a
outro”. Como, entã o, Jesus poderia dar sua gló ria?
Todavia, o Senhor Deus em Isaías 42 nã o é um Deus monopessoal, abraçando
desesperadamente a si mesmo e recusando-se a compartilhar enquanto choraminga “Nã o
darei minha gló ria a outro”. Em Isaías 42, o Senhor está falando de Seu servo, seu
Escolhido, aquele a quem ele unge com seu Espírito (v. 1). Isto é, o Pai está falando do Filho
ungido, o que nã o quebrará a cana esmagada, nem apagará o pavio que esfumaça (v. 3; cf.
Mt 12.15-21, onde se diz que Jesus cumpre a profecia de Isaías). Na verdade, o Senhor
passa a dirigir-se de forma direta a ele:
Eu, o SENHOR , te chamei em justiça; tomei-te pela mão e guardei-te; eu te fiz mediador da aliança com o povo e
luz para as naçõ es; para abrir os olhos dos cegos, para tirar da prisã o os presos e do cá rcere os que habitam em
trevas. Eu sou o SENHOR ; este é o meu nome. Nã o darei a minha gló ria a outro (Is 42.6-8).

Em outras palavras, longe de guardar sua gló ria, o Pai a entrega, livre e completamente, ao
Filho. Significa simplesmente que ele nã o dará a outro além de seu Filho.
Porém, como se encontra, isso poderia parecer generosidade limitada e contida. Com
certeza, é melhor que a recusa completa do Deus monopessoal de compartilhar, mas a
exclusividade nã o nos atinge de imediato como ó timas notícias e causa de alegria. Na
verdade, porém, isso está no cerne do motivo de a salvaçã o do Deus triú no ser tã o
infinitamente superior à salvaçã o oferecida por outro deus. O Pai entrega toda a sua gló ria,
seu amor, suas bênçã os, seu pró prio ser com exclusividade ao Filho — e, entã o, ele envia o
Filho para partilhar essa plenitude conosco: “Eu lhes dei a gló ria que me deste”.
O Pai, entã o, nã o verte bênçã os de longe; e a salvaçã o provida por ele nã o envolve sermos
mantidos à distâ ncia, meramente apiedados e perdoados pelo Criador. Em vez disso, ele
derrama todas as suas bênçã os no Filho e, entã o, o envia para que possamos partilhar de
sua gloriosa plenitude. O Pai ama tanto que ele deseja envolver-nos na amorosa comunhã o
de que ele desfruta com o Filho. E isso significa que posso conhecer Deus como ele
verdadeiramente é: Pai. Na verdade, posso conhecer o Pai como meu Pai.
Mas como? Como meu Criador poderia passar a tratar-me como trata seu Filho?

Nosso grande sumo sacerdote

O texto de Joã o 17, em especial, abre as cortinas. É uma passagem tradicionalmente


conhecida como “oraçã o sacerdotal” de Jesus, e isso porque ela faz alusã o à obra dos sumos
sacerdotes de Israel no Antigo Testamento — homens como Arã o, o irmã o de Moisés,
designados para comparecer à presença do Senhor a favor do povo de Deus e, em particular,
para trazer o sangue do sacrifício anual de expiaçã o ao Senhor.
O primeiro ponto sobre os sumos sacerdotes de Israel era que eles tinham de ser israelitas
(da tribo de Levi), partilhando da carne e do sangue do povo de Deus. Assim, ao tornar-se o
verdadeiro e definitivo sumo sacerdote, o Deus Filho desceu do céu e assumiu nossa carne
e sangue, tornando-se um de nó s.
Portanto, visto que os filhos compartilham de carne e sangue, ele também participou das mesmas coisas, para que
pela morte destruísse aquele que tem o poder da morte, isto é, o Diabo; e livrasse todos os que estavam sujeitos à
escravidã o durante toda a vida, por medo da morte. Pois, na verdade, ele nã o auxilia os anjos, mas sim a
descendência de Abraã o. Por essa razão era necessá rio que em tudo se tornasse semelhante a seus irmã os, para
que viesse a ser um sumo sacerdote misericordioso e fiel nas coisas que dizem respeito a Deus, a fim de fazer
propiciaçã o pelos pecados do povo (Hb 2.14-17).

O evento em letras garrafais na agenda de todo sumo sacerdote era o Yom Kippur , o Dia da
Expiaçã o (Lv 16). Nesse dia, ele sacrificaria um bode, que em sentido simbó lico morreria
pelos pecados do povo, e traria o sangue do animal à presença do pró prio Senhor no
taberná culo. Todo o ritual possuía apenas um cará ter simbó lico, claro,
pois é impossível que o sangue de touros e de bodes apague pecados. Por isso, entrando no mundo, ele diz: Tu nã o
quiseste sacrifício e oferta, mas me preparaste um corpo (Hb 10.4,5).

No verdadeiro Dia da Expiaçã o, Cristo, o sumo sacerdote nã o sacrificaria um bode, mas o


pró prio corpo — sua carne e sangue — na cruz.
 

“Quando eu vi a cruz, vi a Trindade”


O fantá stico é que o Filho penda da cruz. O Pai, em seu grande amor, envia o Filho; e o Filho,
deleitando-se em realizar a vontade do Pai, e partilhar o amor do Pai, vai. De fato, esse
amor e deleite tornam o Filho irrefreá vel: ele manifesta o firme propó sito de ir a Jerusalém,
onde morrerá ; censura Pedro por sugerir o contrá rio; estremece ao pensar nisso, mas dá a
vida de forma espontâ nea (Jo 10.18). Pois ele, o Filho, deseja ser sumo sacerdote e sacrifício
pelo pecado, oferecendo-se ao Pai por meio do Espírito (Hb 9.14).
Isso significa que o Pai nã o faz um terceiro indivíduo sofrer para efetuar a expiaçã o. O ú nico
a morrer é o cordeiro de Deus, o Filho. E isso significa que ninguém além de Deus contribui
para a obra da salvaçã o: Pai, Filho e Espírito realizam tudo. Porém, se Deus nã o fosse
triú no, se nã o houvesse Filho, nem cordeiro de Deus para morrer em nosso lugar, entã o
teríamos de expiar o pecado por nó s mesmos. Precisaríamos providenciar, pois Deus nã o
seria capaz. Mas — Aleluia! — Deus tem um Filho e, em sua infinita bondade, ele morre,
pagando o salá rio do pecado por nós. Porque Deus é triú no a cruz consiste em tamanha boa-
nova.
 
Esse momento viria em Joã o 19, mas, em Joã o 17, Jesus mostra o que tudo isso realizaria.
Em Joã o 17, Jesus realiza a funçã o mais comum do sumo sacerdote — uma obra que
dependia do ato sacrificial de expiação . E que obra é essa? Todo dia, o sumo sacerdote
deveria oferecer incenso de aroma suave diante de Deus no taberná culo (Ê x 30.7-10), e
deveria realizar isso enquanto vestia sobre o coraçã o uma placa de ouro em que estavam
presas doze joias. Cada uma dessas joias estava gravada com o nome de uma das tribos de
Israel (Ê x 28.15-29). Assim, o sumo sacerdote estaria na presença do Senhor com o povo de
Deus, por assim dizer, no coraçã o.
Tudo isso é exatamente o que Jesus faz em Joã o 17: ele chega diante de Deus, seu Pai, com o
incenso de suas oraçõ es (como aroma agradá vel diante do Senhor, o incenso simboliza a
oraçã o; v. Sl 141.2; Ap 5.8). E ele o faz com o povo de Deus no coraçã o: “E rogo nã o somente
por estes [os apó stolos], mas também por aqueles que virã o a crer em mim pela palavra
deles” (Jo 17.20). Em outras palavras, como o sumo sacerdote de Israel simbolicamente
trazia o povo de Deus perante o Senhor no peitoral sobre o coraçã o, Cristo nos traz, nele,
diante do Pai. Deus Filho veio do Pai, tornou-se um de nó s, morreu nossa morte — e tudo
para levar-nos de volta para diante de seu Pai, como as joias no coraçã o do sumo sacerdote.
A primeira oraçã o de Jesus por todo o seu povo é “para que todos sejam um […] para que
sejam um, assim como nó s somos um; eu neles, e tu em mim, para que eles sejam levados à
plena unidade ” (v. 21-23). É uma oraçã o muito apropriada para Jesus orar como nosso
sumo sacerdote, pois o Salmo 133 inicia assim:
Como é bom e agradá vel os irmã os viverem em uniã o! É como o ó leo precioso sobre a cabeça, que desce para a
barba, a barba de Arã o, e desce sobre a gola das suas vestes (Sl 133.1,2).

O salmo refere-se à ordenaçã o de Arã o como sumo sacerdote, quando o ó leo sagrado da
unçã o seria derramado sobre sua cabeça (Lv 8.12). Da mesma forma, Cristo (o “Ungido”)
seria ungido pelo Espírito no batismo. E como o ó leo descia da cabeça de Arã o para o corpo,
o Espírito desceria de Cristo, nosso Cabeça, para seu Corpo, a igreja. Assim, nós nos
tornamos “participantes de sua unçã o”. O Espírito, por meio de quem o Pai havia amado
[34]

o Filho na eternidade, agora ungiria os crentes “para que sejam um, assim como nó s somos
um” (v.22). Um com o Senhor, um com cada outro.
Isso é bem mais que salvaçã o. Na verdade, quanto mais trinitá ria a salvaçã o, maior ela é.
Pois nã o apenas somos trazidos diante do Pai no Filho, também recebemos o Espírito com o
qual ele foi ungido. Jesus disse em Joã o 16.14 que o Espírito “me glorificará , pois receberá
do que é meu e o anunciará a vó s”. O Espírito toma o que é do Filho e torna nosso. Quando o
Espírito desceu sobre o Filho no batismo, Jesus ouviu o Pai declarar do céu: “Este é o meu
Filho amado, de quem me agrado”. Mas agora que o mesmo Espírito de filiaçã o desce sobre
mim, as mesmas palavras aplicam-se a mim: em Cristo, meu sumo sacerdote, sou filho
adotado, amado, ungido pelo Espírito. Como Jesus diz ao Pai em Joã o 17.23: “[Tu] os
amaste, assim como me amaste”. Assim, quando o Filho me leva diante do Pai, com seu
Espírito em mim, posso declarar com ousadia: “Aba”, porque agora partilho com liberdade
de sua comunhã o: o Altíssimo, meu Pai; o Filho, meu irmã o maior; o Espírito, nã o mais
apenas o Consolador de Jesus, mas também o meu.

Tão amados quanto o Filho

Joã o 1.18 descreve Deus Filho eternamente “no seio ou ao lado do Pai”. Ninguém
imaginaria, mas Jesus declara que seu desejo é que os crentes possam estar com ele ali
(Jo 17.24). Foi por isso, na verdade, que o Pai o enviou, para que nó s, que o rejeitamos,
pudéssemos ser trazidos de volta — e trazidos de volta nã o só como criaturas, mas como
filhos, para desfrutar do abundante amor que o Filho conhece desde sempre.
James I. Packer escreveu certa vez:
Se quiser julgar até que ponto uma pessoa entendeu o que é cristianismo, descubra que valor ela dá ao fato de ser
filha de Deus e ter a Deus por Pai. Se este pensamento nã o dominar e controlar suas oraçõ es, adoraçã o e toda a sua
atitude perante a vida, isso demonstra nã o ter entendido bem o cristianismo. [35]

De fato. Quando uma pessoa deliberada e confiantemente chama o Todo-Poderoso de “Pai”,


isso mostra que ela entendeu algo belo e fundamental sobre quem Deus é e para o que ela
foi salva. E como isso nos conquista o coraçã o de volta a ele! Afinal, o fato de Deus Pai estar
feliz e até deleitar-se em partilhar seu amor ao Filho e, assim, ser conhecido como nosso Pai
revela quã o insondavelmente gracioso e bondoso ele é.
É de fato com magnâ nimo deleite que ele nos dá esse privilégio. Quando alguém vem à fé,
os cristã os com frequência sorriem e dizem (em alusã o a Lc 15.10) que os anjos se alegram
no céu. Mas o que Lucas 15.10 realmente diz é que há alegria no céu na presença dos anjos
de Deus por um pecador que se arrepende. Quem está no céu na presença dos anjos de
Deus? Deus. É Deus, antes e acima de todos, que se regozija em extravasar seu amor sobre
os que o rejeitaram.
Conhecer Deus como nosso Pai nã o só embeleza de maneira maravilhosa nossa visã o dele;
isso nos dá o mais profundo conforto e alegria. Essa honra é estonteante. Ter por pai algum
rei rico seria ó timo; mas ser o amado do Imperador do universo está além das palavras.
Claramente, a salvaçã o desse Deus é melhor que o perdã o e, com certeza, mais segura.
Outros deuses podem oferecer perdã o, mas esse Deus nos recebe e abraça como seus filhos,
ele jamais nos afastará . (Pois filhos nã o sã o rejeitados por serem maus). Ele nã o oferece
algum tipo de relacionamento “bem me quer, mal me quer” em que preciso buscar seu
favor e manter-me nele com o comportamento impecá vel. Nã o, “a todos que o receberam,
aos que creem no seu nome, deu-lhes a prerrogativa de se tornarem filhos de Deus”
(Jo 1.12) — e, assim, a segurança de desfrutar de seu amor para sempre.
Pense em quem é o Filho: ele é o ú nico eterna e absolutamente amado pelo Pai; o Pai jamais
moderaria ou renunciaria o amor ao Filho — e o Filho vem para partilhar isso , como o Pai
desejou. Visto que Jesus nã o se envergonha de chamar-nos irmã os (Hb 2.11), seu Pai nã o se
envergonha de ser conhecido como nosso (Hb 11.16). Nada poderia nos dar maior
confiança e deleite ao aproximar-nos do trono celestial de graça. “Vede que grande amor o
Pai nos tem concedido, o de sermos chamados filhos de Deus, o que realmente somos”
(1Jo 3.1).

A diferença entre um Pai e um Führer

Agora, imagine um deus que nã o é Pai, Filho e Espírito: jamais em seus sonhos mais loucos
ele poderia preparar essa salvaçã o. Se Deus nã o fosse Pai, ele nã o nos poderia dar o direito
de sermos seus filhos. Se ele nã o desfrutasse de eterna comunhã o com o Filho, teríamos de
perguntar se haveria alguma comunhã o para compartilhar conosco, ou se ele mesmo
saberia o que é comunhã o. Se, por exemplo, o Filho fosse uma criatura e nã o estivesse “no
seio do Pai” pela eternidade, conhecendo-o e sendo amado por ele, que tipo de
relacionamento com o Pai ele poderia dividir conosco? Se o pró prio Filho nunca foi
pró ximo do Pai, como poderia nos aproximar dele?
Se Deus fosse monopessoal, a salvaçã o seria completamente diferente. Ele poderia
permitir-nos viver sob seu poder e proteçã o, mas a uma distâ ncia infinita, acessível, talvez,
por meio de intermediá rios. Ele poderia até oferecer perdã o, mas nã o ofereceria
intimidade. E, como, por definiçã o, ele nã o amaria por toda a eternidade, ele lidaria
pessoalmente com o preço do pecado e ofereceria esse perdã o de graça? Muito imprová vel.
Continuaríamos mercená rios distantes, jamais ouvindo as preciosas palavras do Filho ao
Pai: “Tu os amaste, assim como me amaste”.
Mas esse Deus vem a nó s em pessoa, o Pai regozijando-se em partilhar seu amor ao Filho,
enviando-o para que nele possamos ser trazidos de volta ao seio do Pai, para, pelo Espírito,
clamar-lhe “Aba”.
 

Odiando Deus e amando o Pai

O reformador Martinho Lutero sabia bem o quanto a Paternidade de Deus muda a estrutura
da salvaçã o e todos os nossos pensamentos sobre Deus. Como monge, sua mente estava
tomada pelo conhecimento de que Deus é justo e odeia o pecado, mas ele nã o conseguiu
avançar no conhecimento sobre quem é Deus — o que é sua justiça e por que ele odeia o
pecado.

O resultado, ele disse, foi que “eu nã o amava; sim, eu odiava o Deus justo que pune
pecadores e, em segredo, se nã o em blasfêmia, mas certamente murmurando de modo
considerá vel, estava irado com Deus”. Nã o reconhecendo Deus como o Pai gentil e
[36]

disposto, o Deus que nos aproxima de si, Lutero descobriu que nã o poderia amá -lo. Ele e
seus colegas monges transfeririam suas afeiçõ es a Maria e a muitos outros santos; era a
eles que eles amariam e a eles orariam.
Isso mudou quando ele começou a ver que Deus é o Deus paternal que compartilha, que dá
sua justiça, gló ria e sabedoria a nó s. Mais tarde, recordando, ele refletiu que, como monge,
nã o estava de fato adorando o Deus certo, pois “nã o é o bastante”, ele disse entã o, conhecer
Deus como criador e juiz. Só quando Deus é conhecido como Pai amoroso ele é conhecido
com correçã o.
Pois o mundo inteiro, ainda que com toda a diligência tenha buscado saber o que Deus é e o que tem em mente e
faz, jamais logrou alcançar qualquer dessas coisas. Mas […] ele mesmo revelou e patenteou o mais profundo
abismo de seu coraçã o paterno e de seu amor totalmente inexprimível. [37]

Ao enviar seu Filho para trazer-nos de volta a si, Deus revelou-se como inexprimivelmente
amoroso e supremamente paternal. O que Lutero descobriu foi que isso nã o só oferece
grande segurança e alegria, mas também nos arrebata o coraçã o, a fim de “sentirmos e
vermos nisso seu coraçã o paterno e seu imenso amor para conosco. Isto aqueceria o
coraçã o e o estimularia a ser grato”. Na salvaçã o desse Deus, vemos o Deus a quem
[38]

podemos amar de verdade.


 

O Filho compartilha seu conhecimento do Pai

“Pois nã o obstante o mundo todo tenha, mui cuidadosamente, procurado compreender a


natureza, a mente e a atividade de Deus, nã o têm obtido sucesso nesse assunto”, escreveu
Lutero. Seu colega reformador, Joã o Calvino, expressou com franqueza ainda maior (e ser
mais franco que Lutero é sempre impressionante):
aqueles que dentre os homens sã o os mais talentosos, são mais cegos que as toupeiras! […] Afinal, por
certo jamais nem sequer o cheiro sentiram daquela certeza da divina benevolência para conosco, sem a
qual a mente do homem necessariamente se enche de desmedida confusã o. Portanto, a razão humana
nem se aproxima, nem se esforça, nem sequer mira em direçã o a esta verdade, de sorte a entender
quem seja o Deus verdadeiro, ou o que ele seja para conosco. [39]

Lutero e Calvino tinham em mente versículos como Mateus 11.27: “Ninguém conhece o
Filho, senã o o Pai; e ninguém conhece o Pai, senã o o Filho e aquele a quem o Filho o quiser
revelar” e Joã o 1.18: “Ninguém jamais viu a Deus. O Deus unigênito, que está ao lado do Pai,
foi quem o revelou”. Resumindo, se Deus nã o tivesse dito uma palavra a nó s, simplesmente
nã o o conheceríamos ou sonharíamos com sua profunda benevolência.
Claro, se Deus é monopessoal, e sempre esteve sozinho, por que ele deveria falar? Na
solidã o da eternidade anterior à criaçã o, com quem ele teria falado? E por que ele
começaria agora? O há bito de guardar-se para si mesmo estaria arraigado. Seria mais
prová vel que um Deus assim continuasse desconhecido.
Mas, e se, por acaso, esse Deus tivesse algo a dizer? Aqui, nã o ficamos a imaginar: o Alcorão
é um exemplo perfeito de palavra de um deus solitá rio. Alá é um deus monopessoal que
tem uma palavra eterna com ele no céu, o Alcorão . À primeira vista, isso faz Alá parecer
menos que eternamente solitá rio. Porém, muito importante é o fato de que a palavra de Alá
é um livro , nã o um verdadeiro companheiro. E trata-se de um livro somente sobre ele.
Assim, quando Alá entrega o Alcorão , ele dá uma coisa , um depó sito de informaçõ es sobre
si mesmo e sobre como ele gosta das coisas.
Entretanto, quando o Deus triú no nos entrega sua Palavra, ele entrega o pró prio ser, pois o
Filho é a Palavra de Deus, a perfeita revelaçã o desse Pai. A Palavra estava com Deus e a
Palavra era Deus. É tudo muito revelador. Esse Deus nã o nos dá algo além dele mesmo, ou
apenas nos conta sobre si mesmo; ele se entrega de verdade a nó s. Se ele apenas jogasse um
livro do céu, poderia manter-nos ao tipo de distâ ncia esperado. Mas ele nã o o faz. A pró pria
Palavra de Deus — que é Deus — vem a nó s e habita conosco.
E, assim, em Jesus Cristo, a Palavra de Deus, vemos a mais reveladora revelaçã o. Em Jesus,
vemos que Deus é Pai, Filho e Espírito, pois ele é amado pelo Pai e ungido com o Espírito.
Em Jesus, vemos o Deus tã o generoso e bom que ele se entrega a nó s e vem para estar
conosco. E visto que o Filho é “a imagem do Deus invisível” (Cl 1.15), “o resplendor da sua
gló ria e a representaçã o exata do seu Ser” (Hb 1.3), nó s podemos saber, como ele diz, que
“Quem vê a mim, vê o Pai” (Jo 14.9). Se ele nã o fosse verdadeiramente Deus, do pró prio ser
do Pai, ele nã o poderia de fato revelar Deus, e ficaríamos imaginando se o Deus por ele
representado é de verdade tã o bom quanto ele. Porém, considerando quem ele é, podemos
confiante e deliberadamente dizer que, em Jesus, conhecemos Deus . Pois ele é o pró prio
Deus, e ele vem, nã o apenas para partilhar o amor do Pai conosco, mas também para
partilhar seu conhecimento do Pai conosco. Ele vem para que possamos crescer em
conhecer o Pai como ele o conhece. Assombrosamente, entã o, porque Deus é Pai, Filho e
Espírito — porque o Pai tem uma Palavra que é Deus, de seu pró prio ser, e que está com ele
e o conhece — nó s podemos conhecê-lo, e conhecê-lo com uma intimidade que nenhum
outro Deus poderia permitir.
Entã o, há o Espírito — e mais e mais, este capítulo estica-se para alcançar o pró ximo, pois
há muito a falar sobre o Espírito. Por enquanto, contudo, vamos notar apenas uma coisa: ao
revelar-se, nã o apenas o Pai envia o Filho no poder de seu Espírito, mas, juntos, Pai e Filho
enviam o Espírito para tornar o Filho conhecido. O Filho torna o Pai conhecido; o Espírito
torna o Filho conhecido. Ele faz isso em primeiro lugar ao inspirar as Escrituras (2Tm 3.16;
1Pe 1.11,12) para que nelas, a “palavra de Cristo”, Jesus possa ser conhecido (Rm 10.17;
(Cl 3.16).
Isso significaria, na verdade, que estamos de volta a Deus apenas nos dando um livro, como
no islã ? Longe disso, pois — como veremos, se você puder aguentar a espera — Deus
Espírito nã o só inspira a Escritura, ele também vem a nó s. Com efeito, ele vem para dentro
de nó s. Nã o poderia haver maior intimidade com esse Deus.
Isso significa que o motivo de toda a Escritura é tornar Cristo conhecido. Como o Pai torna
o Filho conhecido, as Escrituras sopradas pelo Espírito tornam o Filho conhecido. Paulo
escreveu a Timó teo: “desde a infâ ncia sabes as Sagradas Letras, que podem fazer-te sá bio
para a salvaçã o, pela fé que há em Cristo Jesus” (2Tm 3.15). Ele refere-se ao Antigo
Testamento, claro, mas o mesmo poderia ser dito do Novo. Da mesma forma, Jesus disse
aos judeus de sua época:
Vó s examinais as Escrituras, pois julgais ter nelas a vida eterna; e sã o elas que dão testemunho de mim;
mas nã o quereis vir a mim para terdes vida! […] Pois se crêsseis em Moisés, creríeis em mim; porque
ele escreveu a meu respeito (Jo 5.39,40,46).

De maneira muito clara, Jesus acreditava que é bastante possível examinar as Escrituras e
perder por completo o foco, que é proclamá -lo de forma que os leitores possam vir a ele
para ter vida.

Por quem você está procurando?

Tudo isso afeta bastante o motivo de abrirmos a Bíblia. Podemos abrir a Bíblia por todos os
tipos de razõ es estranhas — uma obrigaçã o religiosa, uma tentativa de conquistar o favor
de Deus, ou achando que ela serve como guia de autoajuda, um manual de dicas ú teis para a
vida religiosa eficaz. Na verdade, essa ideia é uma das razõ es principais de muitos
sentirem-se desencorajados na leitura bíblica. Esperando encontrar liçõ es rá pidas sobre
como eles deveriam viver o dia de hoje, essas pessoas encontram, em vez disso, uma
genealogia ou uma lista de vá rios sacrifícios. E como pá ginas e pá ginas de histó rias,
descriçõ es do templo, instruçõ es aos sacerdotes poderiam afetar como eu descanso,
trabalho e oro hoje?
Porém, quando você vê que Cristo é o assunto de toda a Escritura, que ele é a Palavra, o
Senhor, o Filho que revela seu Pai, a esperança prometida, o verdadeiro templo, o
verdadeiro sacrifício, o grande sumo sacerdote, o Rei supremo, entã o você consegue ler,
nã o tanto perguntando: “O que isso significa para mim, nesse exato momento?”, mas, “O
que aprendo aqui sobre Cristo?”. Saber que a Bíblia é sobre ele, e nã o sobre mim, significa
que, em vez de ler a Bíblia obcecado por mim, sou capaz de contemplá -lo. E, assim, ao ser
cativado pelo encanto de sua histó ria nessas pá ginas, você descobrirá o coraçã o pulsando
por ele de uma maneira que nunca alcançaria se tratasse a Bíblia como um livro a seu
pró prio respeito.
Ou, permita-me falar como pregador. À s vezes, quando sou convidado para pregar em
algum lugar, as coisas acontecem mais ou menos assim:
LEITOR ( lê a passagem bíblica escolhida com muita simpatia e diz ): Essa é a
Palavra do Senhor.
PESSOAS: burburinho.
LÍDER: Obrigado, leitor. E agora, creio que Reeves subirá e tentará explicar
essa passagem para nó s.
REEVES ( pensa consigo ): Nã o, eu nã o vou! Isso nã o será algum tipo de
exercício de interpretaçã o de texto. Eu pretendo proclamar a Palavra de
Deus! ( caminha até o púlpito/tribuna, tentando livrar-se do mau humor ).
Eu sei, é um pouco pedante, mas isso nasce do medo de apenas estudarmos as Escrituras
como textos interessantes em vez de ouvi-las como as pró prias palavras de Deus que nos
prometem Cristo e nos atraem a ele. Pois o Espírito inspirou essas palavras para que
possamos fixar nossos olhos nele, aquele que revela o Pai a nó s. Charles Spurgeon, o
pregador-mestre de olhos brilhantes do século XIX, expressou essa verdade da seguinte
forma:
O lema de todos os verdadeiros servos de Deus deve ser: “Pregamos Cristo, e este crucificado”. Um
sermã o sem Cristo é como pão sem farinha nele. Nã o há Cristo em seu sermã o, amigo? Entã o vá para
casa, e jamais pregue outra vez até ter algo digno para pregar. [40]

 
Sim! Pois Cristo é a Palavra de Deus. Sem ele, seríamos “mais cegos que toupeiras”, jamais
imaginando quã o paternal Deus é. Mas, as Escrituras inspiradas pelo Espírito o proclamam
como o resplendor de seu Pai, o ú nico que pode partilhar conosco a verdadeira vida em que
se conhece e se é amado pelo Pai.

4. A vida cristã: o Espírito embeleza


 

O Espírito de vida
A primeira coisa que o Credo niceno diz sobre o Espírito é que ele é “Senhor e Vivificador”.
No princípio, foi o Espírito que, como uma pomba mã e, primeiro vitalizou a criaçã o e
soprou vida nela; da mesma forma, é o Espírito que dá nova vida — primeiro a Jesus no
tú mulo (Rm 8.11) e, entã o, a nó s.
Ora, apenas dizer isso equivale a uma declaraçã o profunda: nã o há vida em nó s mesmos.
Dependemos inteiramente do Espírito. E se é assim que fomos criados para ser, muito mais
verdadeiro isso é para nó s agora! Quando Adã o e Eva desviaram-se de Deus em Gênesis 3,
eles passaram para a morte. Como resultado, todos nó s entramos no mundo como
natimortos espirituais, mortos em nossas transgressõ es e pecados (Ef 2.1). “Morte” aqui,
evidentemente, nã o significa nã o existência; mas que, como Adã o e Eva, o coraçã o de todos
nó s está desviado do Senhor. Por natureza, amamos e desejamos outras coisas — de modo
especial, nó s mesmos — e nã o ele, que é a fonte de vida.
Esse é um problema real, pois fomos criados para seguir o coraçã o, fazer o que queremos.
Como Adã o e Eva seguiram os desejos de seu coraçã o quando pecaram no início, nó s os
repetimos. “O coraçã o do homem planeja seu caminho” (Pv 16.9). Mas se nã o quisermos —
se o coraçã o nã o desejar — o Senhor da vida, entã o jamais o escolheremos e, assim,
permaneceremos prisioneiros da morte. Nã o há esperança de vida a ser encontrada em nó s
mesmos. Assim, Martinho Lutero escreveu que a primeira coisa que a crença no Espírito
significa é que “por minha pró pria razã o ou força nã o posso crer em Jesus Cristo, meu
Senhor, nem vir a ele. Mas o Espírito Santo me chamou pelo evangelho”. [41]

Visto que nosso problema está em nosso coraçã o, o Espírito nos confere novo nascimento
em uma nova vida precisamente por dar-nos um coraçã o novo (Ez 36.26; Jo 3.3-8). A
ferramenta que ele usa é a Escritura (1Pe 1.23; Tg 1.18), mas por meio da Escritura ele abre
nossos olhos cegos para verem quem o Senhor verdadeira e formosamente é e, assim, ele
conquista nosso coraçã o de volta a ele. E isso é vida — conhecê-lo (Jo 17.3).
 

O desejo de viver
Um homem que aprendeu tudo isso de forma bastante pessoal foi William Tyndale, o gênio
linguista que traduziu pela primeira vez a totalidade da Bíblia dos originais hebraico e
grego para o inglês. Ele cresceu acreditando que o cristianismo era, em grande parte, uma
questã o externa — de comportamento e rituais corretos. Por meio da á vida leitura da
Escritura, contudo, ele veio a perceber que sua mentalidade tinha sido, na melhor hipó tese,
invertida.

Como ele escreveria mais tarde, o pecado nã o é “aquela obra externa cometida apenas pelo
corpo”; pelo contrá rio, todo ato pecaminoso nasce
do coraçã o, com todos os poderes, afeiçõ es e apetites, com os quais nada podemos senã o pecar […] a Escritura
perscruta com singularidade o coração e a raiz e fonte original de todo pecado, que é a incredulidade no íntimo do
coraçã o.

Nosso problema encontra-se nos nossos desejos. Por natureza, nã o temos apetite por Deus
e depositamos nossas afeiçõ es em outro lugar. Nossa ú nica esperança de vida é sermos
achados com o Espírito, o qual “provoca cobiça [isto é, desejo!], desoprime o coraçã o, torna-
o livre, coloca-o em liberdade”. [42]

Essas frases surgem em muitos dos escritos de Tyndale e, como sulcos brancos na
superfície do mar, elas mostram que algo poderoso move-se abaixo. Se a primeira obra do
Espírito na salvaçã o é “desoprimir” nosso coraçã o para que possamos ter cobiça ou desejo
pelo Senhor, entã o a vida cristã envolve muito mais que “chegar ao céu”. O Espírito deseja
incluir-nos na vida divina. O Pai deleita-se eternamente no Filho por meio do Espírito, e o
Filho no Pai; a obra do Espírito em dar-nos nova vida, entã o, nã o é nada menos que
conduzir-nos à participaçã o nesse deleite mú tuo.
 

O Espírito dá a si mesmo
A vida que o Espírito dá nã o é algo abstrato. Na verdade, nã o é primariamente uma coisa o
que ele dá . O Espírito nos dá seu pró prio ser, para que possamos conhecer e desfrutá -lo e,
assim, desfrutar de sua comunhã o com o Pai e o Filho. O teó logo puritano Thomas Goodwin
escreveu: “Nã o apenas Deus nos abençoa com todas as outras coisas boas, mas acima de
tudo, comunicando a si próprio e sua pró pria bem-aventurança”. Vimos antes que muitos
teó logos apreciam comparar Deus a uma fonte em que seu pró prio ser envolve emitir vida
e amor. Outra imagem que os teó logos têm apreciado usar para Deus é a do sol radiante
(seguindo os versículos de Sl 84.11 e Jo 8.12), e é ao sol que Goodwin compara Deus:
O sol nã o só enriquece a terra com tudo o que há de bom […] mas alegra e revigora a todos derramando
diretamente suas próprias asas de luz e calor, o que é tã o agradá vel de contemplar e desfrutar. E deste modo age
Deus, e Cristo, o sol da justiça. [43]

Assim como o sol dá de si — de sua luz e calor — ao brilhar sobre nó s, Deus dá -nos de si
mesmo e da bem-aventurança de que ele sempre desfrutou. Ele o faz ao dar-nos seu Filho, e
o faz ao dar-nos seu Espírito.
Essa é uma das verdades um pouco semelhante à prata — facilmente embaçada e coberta
por fuligem. Quando cristã os falam de Deus dando-nos “graça”, por exemplo, podemos de
forma rá pida imaginar que “graça” é algum tipo de trocado que ele distribui. Mesmo a
antiga explicaçã o de “graça” como “riquezas de Deus à custa de Cristo” pode fazer soar [44]

como uma coisa que Deus nos dá . Na verdade, porém, a palavra “graça” é um atalho para
falar sobre a bondade amorosa e pessoal pela qual, em ú ltima aná lise, Deus entrega a si
mesmo .
Agora estamos nos aproximando do coraçã o da Reforma no século XVI. No catolicismo
romano medieval, a graça passara a ser vista como uma “coisa”: os cató licos rezavam “Ave
Maria, cheia de graça” como se Maria fosse uma garrafa e a graça, o leite. O efeito colateral
dessa crença pode ser sentido no debate seminal de 1539, entre (no canto vermelho) o
cató lico romano cardeal Sadoleto e (no canto azul) o reformador Joã o Calvino.

Um dos argumentos de Sadoleto contra a mensagem da Reforma era que, se for pregado
que Deus salva pessoas somente por sua graça, elas nã o receberã o qualquer razã o para
desejar a santidade. Afinal, se minha santidade nã o contribui de forma alguma para me
salvar, por que me incomodar? Eu tenho a “graça”, ora. Foi um jab poderoso na cabeça
teoló gica de Calvino, mas o reformador reagiu com um nocaute: que Sadoleto tinha
fundamentalmente se equivocado sobre a salvaçã o, como se ela fosse algo diferente de ser
levado a conhecer, amar e, assim, desejar agradar o Deus formosamente santo. Para
Calvino, salvaçã o nã o significava obter uma coisa chamada “graça” — e, sim, receber com
gratuidade o Espírito, e, deste modo, o Pai e o Filho.
Problema similar ao de Sadoleto ocorre quando o Espírito é considerado uma força, e nã o
uma pessoa. Mais uma vez, isso dá a impressã o de Deus lá no céu lançando sinais de sua
bênçã o (“a força”) enquanto ele pró prio permanece completamente à distâ ncia. E, se esse é
o caso, entã o dificilmente posso ter comunhã o com essa força (ou com o Pai ou com o
Filho): o Espírito deve ser um poder que devo obter e usar enquanto sigo com minha vida.
Alguns praticam magia, outros têm dinheiro e os ú ltimos produtos de beleza; eu uso o
Espírito. E se eu consigo usar o Espírito mais do que os outros cristã os, parabéns
espirituais para mim.
Que diferença faz saber que o Espírito é uma pessoa tã o real quanto Jesus Cristo, e que ele
vem para viver em mim! Reuben A. Torrey colocou (muito exoticamente) desta forma:
Quã o comumente certo jovem tem sua mão à porta de algum aposento do pecado, no qual está prestes a
entrar, e lhe vem o pensamento: “se eu entrar ali, minha mã e talvez saiba e isso quase a mataria”. E ele
dá as costas à porta e parte para uma vida pura, para nã o entristecer sua mã e. Mas há Alguém mais
santo que qualquer mã e, Alguém mais sensível contra o pecado que a mulher mais pura que já
caminhou sobre esta terra, e que nos ama como nenhuma mãe jamais amou. Este Alguém habita em
nosso coraçã o se somos de fato cristã os, e ele vê cada ato que praticamos de dia ou na sombra da noite.
Ele escuta cada palavra que proferimos em pú blico ou em particular. Vê cada pensamento que
cogitamos, contempla cada fantasia e imaginaçã o que se hospeda, ainda que de cará ter temporá rio, em
nossa mente. E, se há algo profano, impuro, egoísta, cruel, trivial, rude, á spero, injusto ou qualquer ato,
palavra, pensamento ou fantasia maus, ele é entristecido por isso. [45]

Nã o é apenas tristeza que nosso pecado pode causar-lhe, a presença pessoal do Espírito em
nó s significa que somos conduzidos a desfrutar da pró pria comunhã o íntima do Espírito
com o Pai e o Filho. Se o Espírito nã o fosse Deus, ele nã o poderia fazer isso. Por Deus ser
três pessoas — Pai, Filho e Espírito — podemos ter semelhante comunhã o. Se Deus
estivesse no céu e seu Espírito fosse mera força, ele estaria mais distante que a lua.

O oxigênio da nova vida


A vida concedida pelo Espírito nã o é um pacote abstrato de bênçã os. É sua pró pria vida
partilhada conosco, a vida de comunhã o com o Pai e o Filho. Assim, o Espírito nã o é um tipo
de leiteiro divino, deixando o dom da “vida” na nossa porta, e partindo para a pró xima. Ao
dar-nos vida, ele vem para estar conosco e permanecer conosco. Depois de dar-nos vida, ele
nã o segue adiante; ele permanece para fazer a vida florescer e crescer.
“Onde está o Espírito, é sempre verã o”, escreveu William Tyndale, pois ali “sempre haverá
bons frutos, isto é, boas obras”. Tyndale nã o escolheu uma figura antiga ao acaso — o
[46]

calor de verã o do Espírito é importante, pois, como o Espírito, em primeiro lugar nos
aquece com vida ao voltar-nos o coraçã o e os desejos para Cristo, e da mesma forma ele
continua a aquecer-nos depois. A nova vida outorgada pelo Espírito é uma vida de calor,
pois é sua vida de deleite no Pai e no Filho, e ele a suscita precisamente para nos aquecer o
coraçã o para eles.
Jonathan Edwards explicou a figura de Tyndale desta forma:
Todos estarã o diante do Deus, a fonte de amor, como se abrissem o coraçã o para serem saciados com
essas efusõ es de amor que dali sã o vertidas, como as flores na terra em uma agradá vel manhã
primaveril abrem os botõ es ao sol para serem saciadas com seu calor e sua luz e, por seus raios,
florescer em beleza e fragrâ ncia. Cada santo é como uma flor no jardim de Deus, e amor santo é a
fragrâ ncia e o aroma suave que todos eles desprendem, e com os quais eles preenchem esse paraíso.
[47]

Embora nã o diga aqui, Edwards descreve a obra do Espírito, a forma como “o amor de Deus
foi derramado em nosso coraçã o pelo Espírito Santo que nos foi dado” (Rm 5.5). É assim
que o Espírito insufla sua vida em nó s: ele nos ilumina para conhecermos o amor de Deus, e
essa luz nos aquece, atraindo-nos para amá -lo e transbordar de amor sobre os outros.
Como, porém, o Espírito nos ilumina para conhecer o amor de Deus? Simplesmente
abrindo-nos o coraçã o para vermos a gló ria de Deus. É assim que ele conforta os crentes.
Como Jesus disse: “Quando vier o Consolador, que eu vos enviarei da parte do Pai, o
Espírito da verdade, que procede do Pai, esse dará testemunho acerca de mim ” (Jo 15.26).
Conhecer Cristo — e, por meio dele, o Pai — é a vida concedida pelo Espírito. Em
2 Coríntios 3, Paulo escreve sobre como a face de Moisés começou a resplandecer por ter
ele estado com o Senhor e que, da mesma forma, é contemplando a gló ria do Senhor no
evangelho que nó s mesmos “somos transformados de gló ria em gló ria na mesma imagem,
que vem do Espírito do Senhor” (2Co 3.18). Com 2 Coríntios 3 em mente, Richard Sibbes
escreveu:
A pró pria visã o de Cristo é transformadora. O Espírito que nos faz novas criaturas, e incita-nos a
contemplar esse servo, é uma visã o transformadora… Um homem nã o pode contemplar o amor de Deus
e de Cristo no evangelho sem que isso o transforme a ser como Deus e Cristo. Porquanto, como é
possível vermos Cristo, e Deus em Cristo, sem observarmos como Deus odeia o pecado? E sem que isso
nos transforme a odiar o pecado como Deus odeia? E ele o odeia de tal forma que este nã o poderia ser
expiado senã o com o sangue de Cristo, Deus-homem. Assim, observar a santidade de Deus nessas coisas
nos tornará santos. Quando vemos o amor de Deus no evangelho, e o amor de Cristo ao dar-se por nó s,
seremos transformados para amar a Deus. [48]

Minha nova vida começou quando o Espírito primeiro abriu meus olhos (aqui está a luz) e
conquistou meu coraçã o (aqui está o calor) para Cristo. Entã o, pela primeira vez, comecei a
apreciar e amar Cristo como o Pai sempre fez. E, por meio de Cristo, pela primeira vez,
comecei a apreciar e amar o Pai como o Filho sempre fez. Foi assim que começou, e é assim
que a nova vida prossegue: ao revelar-me a beleza, o amor, a gló ria e a bondade de Cristo, o
Espírito acende em mim um amor cada vez mais profundo e sincero por Deus. E, ao
estimular-me a pensar cada vez mais em Cristo, ele me faz mais e mais semelhante a Deus:
menos obcecado comigo mesmo e mais ligado a Cristo.

A beleza do eu e a beleza de Deus


É claro que a mudança pecaminosa de amantes de Deus para amantes de nó s mesmos nos
torna mais feios, à semelhança dos demô nios, a cada momento, sempre mais
ensimesmados e corruptos. Porém, ao cultivar em nó s o gosto crescente por Cristo, a
epítome da beleza, o Espírito refina a nova humanidade que começa a brilhar na
semelhança dele. Nó s nos tornamos semelhantes ao que adoramos. E, em ú ltima aná lise,
tudo isso se aplica até ao nosso corpo: o desvio de Deus em Gênesis 3 significou a queda em
decadência, podridã o e morte física; mas tudo isso será mais que desfeito pelo Espírito, que
transformará os corpos arruinados de todos nó s à semelhança do glorioso corpo da
ressurreiçã o de Cristo (Fp 3.21; 1Co 15.44-49). O Espírito embeleza a nova criaçã o.
Isso significa destorcer-me. Eu naturalmente sou curvado sobre mim mesmo e tenho um
prazer infernal na minha suposta independência. Mas, se devo parecer-me de alguma forma
com os extrovertidos e expansivos Pai, Filho e Espírito, o Espírito deve tirar meus olhos de
mim (o que ele faz ganhando-me para Cristo). Evidentemente, se o pró prio Deus nã o fosse
voltado para além de si, o Espírito nã o precisaria incomodar-se — e, com certeza, ele nã o
iria. Se Deus me quisesse apenas para viver sob seu governo, entã o o Espírito — caso ele
pudesse incomodar-se — estaria mais preocupado em ajudar-me a ser um cidadã o
cumpridor das leis. Meu amor-pró prio jamais precisaria ser desafiado. Na verdade, eu
poderia alimentá -lo com muita alegria concentrando-me em como sigo bem as regras. Mas
o Espírito vem com um propó sito bem mais profundo: que eu conheça o Filho e seja como
ele — portanto, o cerne da questã o é que meus olhos o contemplem. Conhecê-lo é vida e
contemplá -lo é o que aviva. Perceber isso, disse Charles Spurgeon, é o segredo da felicidade
cristã :
É sempre obra do Espírito Santo afastar nossos olhos do eu para Jesus; mas a obra de Sataná s é o
oposto disso, pois ele está constantemente tentando fazer-nos estimar a nó s mesmos no lugar de
Cristo… Jamais encontraremos felicidade contemplando nossas oraçõ es, nossos atos ou nossos
sentimentos; o que Jesus é, nã o o que somos, dá descanso à alma. Se quisermos vencer Sataná s de vez e
ter paz com Deus, isso deverá ser feito “fixando os olhos em Jesus”. [49]

Vida na Trindade
Ao conceder o Espírito, Deus partilha conosco — e nos arrebata para — a vida dele. O Pai
tem conhecido e amado eternamente seu grandioso Filho e, pelo Espírito, ele nos abre o
coraçã o para que também possamos conhecê-lo e, assim, ele ganha o nosso coraçã o para
que também possamos amá -lo. Nosso amor ao Filho, portanto, é eco e extensã o do amor
eterno do Pai. Em outras palavras, por meio do Espírito, o Pai permite-nos ter parte no
gozo do que mais lhe deleita — seu Filho. Foi esse amor avassalador ao Filho que em
primeiro lugar o inspirou a criar-nos, e tudo para que possamos compartilhar daquele que
é seu mais elevado prazer.
Esse, na verdade, é o â mago do significado de ser piedoso, ser como esse Deus. Por isso que
Jesus diz: “Se Deus fosse o vosso Pai, vó s me amaríeis” (Jo 8.42). A identidade do Pai
consiste no amor ao Filho e, assim, quando amamos o Filho, refletimos o que é mais
característico no Pai. É a razã o principal para a outorga do Espírito. O teó logo puritano John
Owen escreveu: “Nisso consiste a principal parte de nossa renovaçã o à sua imagem. Nada
nos torna tã o parecidos com Deus quanto nosso amor a Jesus Cristo”. [50]

Mas o Espírito nã o apenas nos capacita a conhecer e amar Cristo; ele também nos dá a
mente de Cristo, tornando-nos como ele. Porém, acima de tudo, o mais característico no
Filho é o relacionamento com seu Pai, que ele conhece e agrada-se em receber o amor e a
vida do Pai: “eu amo o Pai, e […] faço como o Pai me mandou” (Jo 14.31, ACF). No cerne de
nossa transformaçã o à semelhança do Filho, portanto, está a participaçã o nesse profundo
deleite no Pai. Em nosso amor ao Filho e prazer nele, somos como o Pai; em nosso amor ao
Pai e prazer nele, somos como o Filho. Essa é a vida alegre a que o Espírito nos chama.
Vimos, no ú ltimo capítulo, que o Espírito nos une a Cristo. Como o ó leo descendo pelo corpo
do sumo sacerdote, ele comunica as bênçã os de Cristo, o Cabeça, a seu Corpo, a igreja. Ele
toma o que é de Cristo e torna nosso (Jo 16.14) para que no amado Filho possamos ser os
amados filhos de Deus. Quã o grandiosa e amá vel, entã o, é a obra do Espírito! Ele nos une ao
Filho de forma que o amor do Pai ao Filho também nos envolva; ele nos conduz a partilhar
do deleite que o pró prio Pai tem no Filho; e ele nos leva a tomar parte do deleite do Filho
no Pai. O que poderia ser mais delicioso que andar com o Espírito cujo propó sito é esse?
Jonathan Edwards escreveu:
o princípio divino nos santos possui a natureza do Espírito: pois, tal qual a natureza do Espírito de Deus
é amor divino, o amor divino é a natureza e essência do princípio santo no coraçã o dos santos. [51]

Por meio do Espírito o Pai tem amado eternamente seu Filho. E, assim, ao partilhar seu
Espírito conosco, Pai e Filho partilham conosco a pró pria vida, o pró prio amor e a pró pria
comunhã o. Por meio da uniã o com Cristo promovida pelo Espírito, o Pai me conhece e ama
como seu filho; pelo Espírito, começo a conhecer e amá -lo como meu Pai. Pelo Espírito,
começo a amar com correçã o — libertando-me do meu amor-pró prio, ele me conquista
para partilhar do prazer do Pai no Filho e do Filho no Pai. Pelo Espírito, (lentamente!)
começo a amar como Deus ama, com seu amor generoso, transbordante e autossacrificante
pelos outros.
 

Conhecendo e orando ao Pai, ao Filho e ao Espírito


Um dos livros mais perspicazes sobre o significado de conhecer Pai, Filho e Espírito foi
escrito pelo grande teó logo puritano do século XVII, John Owen. Ele lhe deu o pequeno e
sucinto título Comunhão com Deus Pai, Filho e Espírito Santo, cada pessoa distintamente, em
amor, graça e consolação (os títulos dos livros eram assim na época).

Ele o intitulou assim porque queria deixar bastante claro que nã o havia um “deus-genérico”
ou divindade abstrata com quem termos comunhã o ou a quem orar. Cristã os sã o levados à
comunhã o com o Pai, o Filho e o Espírito.
Ele começa pela comunhã o com o Pai, e o que ele diz é especialmente tocante por sua
notá vel sensibilidade para a maneira tã o fá cil com que nos afastamos do Pai, como se ele
fosse completamente distante e nebuloso. “Mas, lembre-se”, Owen diz com efeito, “ele é
nosso mui amá vel Pai ”.
Qualquer outra descoberta de Deus que nã o leve isso em conta fará que a alma se afaste dele; mas, se o
coraçã o for tomado com a eminência do amor do Pai, nã o pode escolher algo além de ser conquistado
por ele e querido dele. Isso, além de qualquer outra coisa, se realizará em nó s para fazer-nos
permanecer nele. Se o amor de um pai nã o fizer uma criança se alegrar nele, o que mais o fará ?
Experimente, entã o, exercitar seus pensamentos sobre o eterno, livre e frutífero amor do Pai, e veja se
seu coraçã o nã o será moldado no prazer dele. [52]

O Pai é a fonte de todo o amor que vemos em Cristo e, assim, nã o devemos pensar nele
como distante e indiferente. Na verdade, Owen argumenta, a maior descortesia que você
pode lhe fazer é recusar a crer que ele o ama: “nã o podem sobrecarregá -lo ou preocupá -lo
mais”. Eles nos adotou e é nosso Pai.
[53]

A seguir, o Filho revela o Pai a nó s de forma perfeita e, por meio de sua vida, morte,
ressurreiçã o e ascensã o, nos conduz a gozá -lo como nosso Pai . O Filho, entã o, é o revelador
e o mediador, por ele temos comunhã o com o Pai. Ele também é o noivo da igreja, e alegra-
se nã o apenas em trazer sua noiva ao Pai, mas também no fato de o Pai mesmo
experimentar doce comunhã o com ela.
Por fim, o Espírito nos conforta. Onde o pecado nos torna propensos à dú vida, ansiedade e
frieza de coraçã o, onde Sataná s golpeia-nos com acusaçõ es, o Espírito traz a segurança do
amor do Pai e da perfeita salvaçã o do Filho. Ele torna a comunhã o com o Pai e o Filho real e
deliciosa. “E esta é sua obra até o fim do mundo: trazer as promessas de Cristo a nossa
mente e coraçã o, nos dar o consolo, a alegria e a doçura delas”. [54]

O que tudo isso significa para a maneira como oramos? Bem, já que temos comunhã o com
as três pessoas, é bastante certo que devamos orar a todas as três: Jesus orienta a orar ao
Pai (Jo 16.23); Estêvã o orou a Jesus em Atos 7.59; e, embora seja difícil encontrar claros
exemplos bíblicos de oraçã o ao Espírito, Owen está seguro dessa possibilidade: “o Espírito
Santo também é Deus, e devemos invocá -lo, orar a ele e clamar a ele nã o menos que ao Pai e
ao Filho”. [55]

Dito isso, a oraçã o cristã normal é algo mais rico e suculento: nó s nos unimos à comunhã o
já desfrutada por Pai, Filho e Espírito. Ou seja, o Filho — que já intercede por nó s junto ao
Pai — leva-nos consigo para diante do Pai. Pense no sumo sacerdote entrando na presença
do Senhor no Santo dos Santos: da mesma forma, o Filho nos traz perante o Pai — e ali o
Espírito nos auxilia (Rm 8.26). E, assim, o Espírito sustenta, o Filho conduz, e o Pai — que
sempre se deleita em ouvir as oraçõ es do Filho — ouve-nos com alegria. Com o Filho,
seguros neles, capacitados como ele pelo Espírito, oramos a nosso Pai.
Orar assim — orar “Aba” em nome de Jesus, habilitado pelo Espírito — nã o é a maneira de
cristã os exibidos ostentarem seu virtuosismo teoló gico; significa regozijar-se no padrã o da
pró pria beleza e comunhã o de Deus. Pense em como seria diferente se Deus nã o fosse
assim: se o Espírito nã o nos fizesse clamar “Aba” porque Deus nã o é de fato Pai e nã o tem o
Amado consigo. Poderia tal Deus monopessoal sequer ouvir-nos lá de cima em sua
transcendência autoabsorta? Nã o seriam nossas lamú rias apenas interrupçõ es do seu
precioso tempo pessoal? Sim, se Deus nã o fosse triú no, provavelmente seria melhor ficar
quieto e torcer para nã o ser ouvido. Afinal, ele pode nã o querer que outra coisa exista.
 

“A verdadeira religião, em grande parte, consiste em…”


Tudo que temos visto significa que a vida com esse Deus é tã o diferente da vida com outro
Deus quanto jaca de jaca ré. Por exemplo, se Deus nã o se interessa em que nó s o
conheçamos e amemos, mas apenas em colocar-nos debaixo de seu poder, entã o nosso
comportamento e desempenho seriam as ú nicas coisas importantes. As questõ es mais
profundas e internas sobre nossos desejos, amores e o que apreciamos jamais seriam
tratadas. Como a vida cristã significa sermos levados a partilhar do deleite de Pai, Filho e
Espírito um pelo outro, os desejos são importantes . Como Jonathan Edwards escreveu: “A
verdadeira religiã o, em grande parte, consiste em afeiçõ es santas”. Ele pensava em [56]

sentido primá rio no amor a Cristo e na alegria nele, e escreveu uma de suas principais
obras ( Afeições religiosas ) em grande parte para desenvolver essa convicçã o.
Edwards percebeu o fato de o Espírito nã o procurar levar-nos ao mero desempenho
externo por Cristo, mas conduzir-nos de fato a amá -lo e a encontrar nossa alegria nele. E
qualquer comportamento “a favor dele” que nã o seja expressã o desse amor nã o lhe traz
qualquer prazer. Edwards compara esse cristianismo sem amor ao casamento frio,
perguntando
se a mulher portar-se muito bem para seu marido, mas, de maneira nenhuma, por amor a ele, mas por
outras consideraçõ es percebidas com clareza e certamente conhecidas do marido, teria ele mais deleite
no respeito externo que se uma imagem de madeira fosse esculpida para fazer gestos respeitosos em
sua presença? [57]

“É claro que nã o!”, é o que Edwards espera que digamos rindo.


O que amamos e apreciamos é de fundamental importâ ncia. É muito mais significativo que
nosso comportamento externo, pois sã o os desejos que dirigem nosso comportamento. Nó s
fazemos o que queremos. Pai, Filho e Espírito amam e apreciam um ao outro e, criados à
imagem deles, fomos feitos para amá -los e apreciá -los. Cega e tolamente, contudo, todos
nos desviamos para amar e apreciar outras coisas — coisas que, na realidade, sã o
completamente incapazes de satisfazer. Mas, a primeira obra do Espírito é colocar os
desejos em ordem, abrir nossos olhos e dar-nos o pró prio prazer do Pai pelo Filho, e o
pró prio gozo do Filho pelo Pai.
O Catecismo de Heidelberg (1563) captura esse conceito de forma brilhante quando
pergunta “O que é o nascimento do novo homem?”.
Resposta: É a alegria sincera em Deus, por Cristo, e o forte desejo de viver conforme a vontade de Deus
em todas as boas obras. [58]

O Espírito do Pai e do Filho jamais estaria interessado em capacitar-nos apenas a “fazer o


bem”. Seu desejo (que é o desejo do Pai e do Filho) é trazer-nos à satisfaçã o tã o ardente em
Deus por meio de Cristo que nos deleitaremos em conhecê-lo, nos deleitaremos em todos
os seus caminhos e que, como consequência , desejaremos fazer o que ele quer e odiaremos
até a sugestã o de entristecê-lo.
 

O poder expulsivo da nova afeição


Thomas Chalmers (1780-1847) começou a carreira clerical com alguém que pouco se
importava com sua funçã o. Na verdade, ele foi explícito em sua convicçã o de que as
obrigaçõ es na paró quia de Kilmany (perto de Saint Andrews, na Escó cia) nã o exigiriam
muito mais de um dia por semana. Entã o, aos 29 anos, ele ficou enfermo e esteve confinado
à cama (com perigo de morte) tendo a seu alcance as obras de evangélicos como William
Wilberforce.

Ao recuperar a saú de, era um novo homem, desejoso de pregar a salvaçã o só pela graça, e
multidõ es logo desciam a Kilmany para ouvi-lo. Quatro anos depois, em 1815, ele se mudou
para a Igreja Tron, em Glasgow, e, pelo país, espalharam-se relatos de seu “fogo vivo” no
pú lpito. “Todo o mundo estava ensandecido com Chalmers”, escreveu Wilberforce em seu
diá rio — e ele nã o estava exagerando: milhares vinham para ouvir seu extenso timbre de
pífano; certa vez, Chalmers só pô de entrar na igreja por uma janela.
Mais tarde, ele teria uma cadeira nas universidades de Saint Andrews e Edimburgo —
lideraria a formaçã o da Free Church of Scotland [Igreja Livre da Escó cia] — mas, foi
naqueles anos em Glasgow que ele pregou um sermã o que explicava do que sua pregaçã o
agora se tratava, e como caminhamos no Espírito. O sermã o era baseado em 1 Joã o 2.15 e
recebeu o título “O poder expulsivo da nova afeiçã o”. [59]

Nosso problema, ele explicou, é que a vida de todos nó s é naturalmente guiada e controlada
pelo amor “ao mundo”. O que podemos fazer? Resolver melhorar? Tentar convencer a nó s
mesmos de que o mundo nã o é na realidade tã o atraente assim? Nã o, ele disse, isso “é
completamente incompetente e ineficaz”, pois ninguém pode “desapropriar o coraçã o da
antiga afeiçã o, senã o pelo poder expulsivo da nova”. Nó s nã o podemos escolher o que
amamos, mas sempre amamos o que nos parece desejá vel. Portanto, só mudaremos o que
amamos quando algo provar-se mais desejá vel a nó s que o que já amamos. Logo, sempre
amarei o pecado e o mundo até que sinta de verdade que Cristo é melhor.
É isso que o Espírito faz em nó s: ele nos faz provar e ver que o Senhor é bom,
supremamente bom e, assim, ele nos leva a desejá -lo:
ele, o Deus de amor, apresenta-se com qualidades tã o cativantes que nada, senã o fé, e nada, senã o o
entendimento, faltam a você para novamente restabelecer o amor do seu coração. [60]

Era assim que Chalmers manejava a espada do Espírito: ele tornava Cristo conhecido para
que coraçõ es fossem ganhos.
 

Salvação reduzida
Que vida o Espírito dá ! Ele se entrega a nó s, torna acessível a amá vel comunhã o de Pai,
Filho e Espírito; e nos conquista o coraçã o para partilhar o prazer e a satisfaçã o de cada um
pelo outro. Quem, sabendo disso, preferiria o conceito mais “limpo” e enxuto do deus
monopessoal? Reduza Deus e enxugue-o, e você lhe reduz a salvaçã o e o torna cruel. Em
lugar da vida transbordando de amor, alegria e comunhã o, tudo o que lhe restará é o
aguado mingau da religiã o. Em vez do Pai amoroso, um potentado distante; em vez de
companheirismo, contrato. Nenhuma segurança no Filho amado, nenhuma mudança de
coraçã o, nenhuma alegria em Deus poderia esse espírito trazer.
Longe, bem longe da confusã o teoló gica, o ser de Deus como Pai, Filho e Espírito é
justamente o que embeleza a vida cristã .

A família do céu
Um dos ingredientes principais dessa beleza é quã o amigá vel e familiar tudo isso é. Deus
Pai deleita-se em ser ele mesmo: ele se deleita no Filho, ele se deleita em ser um Pai para
ele, e tanto que ele decidiu partilhar sua paternidade e comunhã o com os seres que criaria.
E, assim, Deus “criou o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; homem e mulher
os criou” (Gn 1.27). Amando o relacionamento familiar, esse Deus faz o homem e a mulher,
o marido e a esposa; ele cria a família e as pessoas planejadas para terem comunhã o entre
si. Assim como Pai, Filho e Espírito sempre conheceram comunhã o um com o outro, nó s
fomos feitos à imagem de Deus para a comunhã o.
Porém, é claro que nã o valorizamos, nem tendemos a valorizar a comunhã o — ou, pelo
menos, nã o tanto quanto valorizamos seguir o pró prio rumo. Em Gênesis 3, quando Adã o e
Eva voltaram-se para si mesmos em amor-pró prio, eles nã o apenas se afastaram do Senhor
Deus; eles afastaram-se um do outro. Assim, nã o só seu relacionamento com o Senhor foi
rompido, também seu relacionamento com o outro: envergonhados da nudez explícita
diante do outro, eles se esconderam atrá s de folhas de figueira e começaram a culpar um ao
outro. E, pouco depois, Caim matou Abel, Lameque sonhou com vingança, e a família
humana foi despedaçada com desamor e malícia.
Mas o deleite do Deus triú no na família permanece. E, assim, o Pai envia o Filho, nã o só para
reconciliar-nos consigo, mas para reconciliar-nos uns com os outros, a fim de que o mundo
seja um lugar de harmonia, e reflita a harmonia deles. O propó sito do Filho, escreveu Paulo,
era
em si mesmo criar dos dois [judeus e gentios] um novo homem, fazendo assim a paz, e pela cruz
reconciliar ambos com Deus em um só corpo, tendo por ela destruído a inimizade. E vindo ele,
proclamou a paz para vó s que está veis longe e também para os que estavam perto; pois por meio dele
ambos temos acesso ao Pai no mesmo Espírito (Ef 2.15-18).

O Espírito conquista macho e fêmea, branco e preto, judeu e gentio para o mesmo amor
conciliador de Deus, que transborda em amor sincero uns pelos outros. Ele nos une ao Filho
para que juntos clamemos “Aba” e comecemos a reconhecer de verdade uns aos outros
como irmã os e irmã s, pois a nova humanidade é uma nova família; é a família do Pai em
expansã o.
No coraçã o da oraçã o sumo sacerdotal de Jesus ao Pai a favor dos crentes está o pedido
“para que sejam um, assim como nó s somos um" (Jo 17.22). Esse nã o é o tipo de pedido que
alguém poderia fazer ao deus monopessoal. Esse deus, obviamente, amaria a unidade —
afinal, ele é um — mas seria um tipo muito diferente da unidade que Jesus tem em mente.
Unidade para o deus monopessoal significaria uniformidade . Sozinho pela eternidade, sem
ninguém além de si, por que ele valorizaria outros e suas diferenças? Pense em como isso
se desenvolve com Alá : sob sua influência, as outrora diversificadas culturas da Nigéria,
Pérsia e Indonésia tornam-se, deliberada e crescentemente, uniformes . O islamismo
apresenta um estilo de vida completo para indivíduos, naçõ es e culturas, limitando-os a
uma maneira de orar, uma maneira de casar, comprar, lutar, relacionar-se — até, alguns
diriam, uma maneira de comer e vestir-se.
Para o Deus triú no, unidade significa união . O Pai é absolutamente um com o Filho, mas
nã o é o Filho; da mesma forma Jesus pede que os crentes sejam um, mas nã o que todos eles
sejam idênticos. Criados macho e fêmea, à imagem desse Deus, e com tantas outras boas
diferenças entre nó s, unimo-nos valorizando a maneira como o Deus triú no fez cada um
ú nico.
Há diversidade de dons, mas o Espírito é o mesmo. Se o corpo todo fosse olho, onde estaria o ouvido? Se
o corpo todo fosse ouvido, onde estaria o olfato? Mas, na realidade, Deus colocou os membros no corpo,
cada um conforme quis. E, se todos fossem um só membro, onde estaria o corpo? Portanto, há muitos
membros, mas um só corpo (1Co 12.4, 17-20).

Assim, nã o só Pai, Filho e Espírito nos chamam à comunhã o consigo, como também
partilham sua harmonia celestial para que haja harmonia na terra, para que pessoas de
diferentes gêneros, línguas, passatempos e dons possam ser um em paz e amor; para que,
um dia, com um coraçã o e uma voz, possamos clamar: “Salvaçã o ao nosso Deus, que está
assentado no trono, e ao Cordeiro” (Ap 7.10). E é isto que a família de Deus — pela pró pria
existência — torna conhecido ao mundo: que o Deus de harmonia é a esperança de paz
mundial; que ele pode reunir e reunirá inimigos, rivais e forasteiros em uma família
amorosa sob seu cuidado paterno.

Para frente e para fora


Algumas famílias gostam de resguardar-se, mas nã o essa. Nã o, o Pai expansivo, a fonte
originá ria de toda a vida e todo o amor, é o cabeça de uma família crescente. Sua vida e ser
caracterizam-se pela exteriorizaçã o do seu amor, e seus filhos sã o levados a compartilhar
essa vida.
Um bom caminho para isso começa nas primeiras palavras de Jesus a seus amigos apó s a
ressurreiçã o. Na noite do primeiro domingo de Pá scoa, Jesus veio aos discípulos e disse:
Paz seja convosco! Assim como o Pai me enviou, também eu vos envio. E havendo dito isso, soprou
sobre eles e disse-lhes: Recebei o Espírito Santo (Jo 20.21,22).

Os discípulos nã o deveriam ficar muito surpresos. Jesus lhes disse que seria ressuscitado, e:
“tudo quanto ele [o Pai] faz, o Filho faz também” (Jo 5.19). A primeira coisa que o Pai faz,
evidentemente, é amar o Filho, soprar seu Espírito sobre ele. Assim, como seu Pai faz, Jesus
sopra o Espírito sobre os discípulos. Na verdade, ele já tinha lhes dito que “Como o Pai me
amou, assim também eu vos amei; permanecei no meu amor” (Jo 15.9). Mas o Pai também
envia o Filho; e fazendo tudo quanto seu Pai faz, Jesus envia seus discípulos. Tal Pai, tal
Filho.
Com isso, a missã o muda completamente de figura. Ela nã o significa que o Pai fique
relaxando no céu, enquanto solicita por telefone que continuemos com o evangelismo para
ele arrumar mais servos. Se esse fosse o caso, o evangelismo exigiria muita motivaçã o
pessoal — e você sempre pode perceber quando a igreja pensa assim, pois é quando o
evangelismo é deixado aos profissionais/vendedores mais movidos a adrenalina. Mas a
realidade é muito diferente. A verdade é que Deus já está em missã o: em amor, o Pai enviou
seu Filho e seu Espírito. É a exteriorizaçã o de sua natureza.
Isso significa que, quando nó s saímos e compartilhamos o conhecimento do grande amor
de Deus, refletimos algo muito profundo sobre a identidade dele. Pois, quando Jesus nos
envia, ele permite o compartilhamento do padrã o missional, generoso e expansivo da
pró pria vida de Deus. O escritor de Hebreus expressa assim:
Por isso, para santificar o povo por meio do seu sangue, Jesus também sofreu fora da porta da cidade
[isto é, ele foi para além de onde o povo de Deus está]. Saiamos, pois, até ele, fora do acampamento
(Hb 13.12,13).

Em outras palavras, Jesus encontra-se lá fora , no lugar de rejeiçã o. Foi ali que o Pai o
enviou, para que ele possa trazer pecadores de volta como filhos. A vida cristã caracteriza-
se por estar onde ele está , por participar da maneira como ele foi enviado.
E a motivaçã o? Bem, por que o Pai enviou o Filho? Porque o Pai tanto desfrutava o amor do
Filho que desejou que seu amor estivesse em outros. Joã o 17.25,26:
Pai justo, o mundo nã o te conheceu, mas eu te conheço; e estes reconheceram que tu me enviaste . E fiz
que conhecessem o teu nome e continuarei a fazê-lo conhecido; para que o amor com que me amaste
esteja neles, e eu também neles esteja .

E por que o Filho vem? Porque ele diz: “faço aquilo que o Pai me ordenou, para que o
mundo saiba que eu amo o Pai" (Jo 14.31). Assim, o Pai enviou o Filho por tanto amar o
Filho (e por querer que esse amor fosse compartilhado e desfrutado), e o Filho veio porque
ele tanto amou seu Pai (e quis que esse amor fosse compartilhado e desfrutado). A missã o
advém do transbordamento de amor, do irreprimível prazer na comunhã o.
É assim com o Pai e o Filho, é assim conosco. O Espírito nos alcança para partilhar esse
prazer, e esse deleite nele nos impele a desejar torná -los conhecidos. O prazer na
comunhã o, causado pelo Espírito, o crescente amor ao Pai e ao Filho: isso nos leva a
partilhar seu amor expansivo com o mundo. Nó s nos tornamos semelhantes ao que
adoramos.
O puritano Richard Sibbes disse certa vez que o cristã o que canta os louvores de Deus ao
mundo é como um pá ssaro cantando. Os pá ssaros cantam mais alto, ele disse, quando o sol
levanta e os aquece; e o mesmo vale para os cristã os: quando eles sã o aquecidos pela Luz
do mundo, pelo amor de Deus em Cristo, eles cantam mais alto.
Como o brilho primaveril do sol alarga o espírito das pobres criaturas, os pássaros, para cantar, assim,
de modo proporcional, a apreensão do doce amor de Deus em Cristo alarga o espírito de um homem, e o
torna repleto de alegria e gratidã o. Ele irrompe em alegria, de forma que toda a sua vida é motivo de
alegria e gratidã o. [61]

Sibbes estava certo, pois “a boca fala do que o coraçã o está cheio” (Mt 12.34). Se eu nã o
aprecio Cristo, nã o falarei sobre ele. Ou, pior, talvez fale, mas sem amor e prazer — e se
minha boca de fato revela meu coraçã o, as pessoas ouvirã o sobre o Cristo indesejado. E
quem gostaria disso?
É claro, o Espírito pode usar esse evangelismo sem amor. Mas sua obra real é conduzir-nos
e manter-nos sob os raios de sol do amor de Deus. Lá cantaremos de coraçã o; lá ,
permanecendo em Cristo, daremos fruto. O Espírito compartilha a vida triú na de Deus
conduzindo os filhos de Deus ao deleite mú tuo do Pai e do Filho — e, ali, nos tornamos
como nosso Deus: frutíferos e vivificadores.
 

5. Quem entre os deuses é como tu, ó


Senhor?
 
Como os ateístas estão certos

Pelos ú ltimos duzentos anos ou mais, o ateísmo vem avançando no Ocidente com confiança
e vitalidade cada vez maiores. Suas alegaçõ es nã o animaram apenas o homem comum que
prefere apenas seguir sem Deus e religiã o; elas têm inspirado um novo e bastante agressivo
esquadrã o de “antiteístas”. Abandonando o argumento frontal de que nã o há Deus, esses
“antiteístas” vã o além ao argumentar que mesmo que Deus existisse, isso seria algo ruim. A
fé em Deus nã o se parece tanto com o cobertor de estimaçã o de uma criança, mas com o
pesadelo dela.
Por quê? O argumento é fascinante e profundamente revelador. Christopher Hitchens, [62]

autor de Deus Não é Grande — e um dos quatro cavaleiros do “novo ateísmo” militante —
expressou-se desta forma:
Acho que seria bastante horrível se fosse verdade. Se houvesse permanente, total e contínua supervisã o
e vigilâ ncia divina de tudo que você fizesse, você jamais teria um momento de sono ou de vigília sem ser
vigiado, controlado e supervisionado por alguma entidade celestial, desde o momento de sua concepção
até o momento de sua morte — seria como viver na Coreia do Norte.

Para Hitchens, Deus é “o” Soberano e, assim, por definiçã o, deve ser um “Stá lin no céu”, um
big brother [grande irmã o]. E quem, em sã consciência, desejaria que um ser como esse
existisse? Em outras palavras, o problema do antiteísta nã o é tanto a existência de Deus e
sim o caráter dele. Ele escreverá e lutará contra a existência de Deus porque é repelido pela
ideia desse tipo de ser. Esse Deus nã o é grande.
Mas o Deus triú no nã o é esse Deus. Hitchens, claramente, tinha em mente o Deus que é
fundamentalmente “o” Soberano, “o” mandachuva, caracterizado por “supervisã o e
vigilâ ncia”. A figura muda por completo, no entanto, se Deus for fundamentalmente o Pai
mais amoroso e gentil, e só exerce seu poder de acordo com sua natureza — um Pai. Nesse
caso, viver sob seu teto nã o é como viver na Coreia do Norte, mas como morar no lar do
tipo de pai cuidadoso que o pró prio Hitchens desejava.
É coincidência demais que o avanço do ateísmo corresponda ao recuo da doutrina da
Trindade na igreja? O século XIX foi o século em que Marx rejeitou a religiã o como “o ó pio
do povo” e Nietzsche declarou que “Deus está morto”. E foi o século que iniciou com o
teó logo talvez mais destacado (Friedrich Schleiermacher) fazendo da Trindade mero
apêndice à fé cristã ; foi o século que encerrou com o maior sucessor de Schleiermacher
(Adolf von Harnack) rejeitando de modo total a Trindade como um monte de tolices
filosó ficas. É claro que os teó logos nã o estavam alimentado os ateístas, mas estavam
desarmando a igreja de tal forma que os ateístas puderam atacar sem encontrar muita
oposiçã o real. Afinal, se Deus nã o é Pai, se ele nã o tem Filho e nã o terá filhos, entã o ele deve
ser solitá rio, distante e inacessível; se ele nã o é triú no e, desse modo, nã o é em essência
amoroso, entã o nã o haver Deus parece algo bem melhor.

Os ateístas nã o estã o sozinhos nessa. O interesse popular em diversas espiritualidades


alternativas — de “nova era” e neopaganismo a wicca e velhas superstiçõ es — nã o raro
está conectado à aversã o do conceito do Deus pessoal. Com certeza, um ser como esse nã o
seria, na melhor das hipó teses, uma chatice monstruosa e, na pior, algo muito, muito
sinistro? Por experiência pró pria, conversando com estudantes nã o cristã os, sempre
descubro que a descriçã o deles do Deus em quem nã o acreditam se parece mais com
Sataná s do que com o Pai de Jesus Cristo: voraz, egoísta, agressivo e inteiramente
desprovido de amor. E se Deus nã o é Pai, Filho e Espírito, eles nã o estã o certos?

A alternativa de Israel

Porém, quã o radical e drasticamente diferente é o Deus da Bíblia! Nada carente, solitá rio e
egoísta, mas generoso, amoroso e autossacrificante — essa é a pró pria essência dele. Karl
Barth escreveu:
a triunidade de Deus é o segredo de sua beleza. Se negarmos isso, teremos, de uma vez, um Deus sem
esplendor e sem alegria (e sem humor!); um Deus sem beleza. Perdendo a dignidade e o poder da
divindade real, ele também perde sua beleza. Porém, se nos apegarmos nisso, […] que o ú nico Deus é
Pai, Filho e Espírito Santo, nã o poderemos escapar do fato de que, de forma geral ou nos detalhes, além
de tudo, Deus também é belo. [63]

Se Deus nã o é Pai, Filho e Espírito, entã o ele é eminentemente rejeitá vel: sem amor,
esplendor ou beleza. Quem gostaria que um Deus assim tivesse algum poder, ou mesmo
existisse? Mas, o Deus vivo e triú no da Bíblia é beleza. Aqui está um Deus que podemos de
fato desejar , e em cuja soberania podemos nos alegrar com sinceridade.
Colin Gunton, que, até sua trá gica morte há alguns anos, foi professor de Doutrina Cristã no
King’s College de Londres, resumiu assim uma das principais diferenças que a Trindade
proporciona:
Proeminente entre os atributos [ou seja, as características divinas], encontramos o da misericó rdia
divina, que raramente aparece no topo de uma lista de atributos em uma descriçã o “normal” do divino…
Misericó rdia é o desenvolvimento no tempo e na histó ria caída da ação de um Deus para quem o amor
pelo outro é central ao seu ser. [64]

Ou seja, se Deus nã o fosse pessoal, ele nã o poderia ser misericordioso [ coisas nã o


demonstram misericó rdia]; se Deus fosse apenas uma pessoa, entã o amor ao outro nã o
seria central ao seu ser. Nã o haveria ninguém na eternidade para ele amar. Assim, o ú nico
Deus inerentemente inclinado a demonstrar misericó rdia é o Pai que tem eternamente
amado o Filho por meio do Espírito. Só com esse Deus qualidades atraentes como amor e
misericó rdia obtêm posiçõ es tã o altas.
É de importâ ncia crucial, portanto, que os cristã os sejam claros e específicos sobre o Deus
em quem cremos. Nã o devemos dizer que acreditamos apenas em algum “Deus”, mas nesse
Deus. Hoje, isso parece especialmente vital. E nã o apenas por causa dos incrédulos. Joã o
Calvino disse que a mente humana em pecado é como “uma fá brica perpétua de ídolos”, [65]

o que significa que todos distorcemos com constâ ncia a natureza de Deus em nossa mente,
diminuindo do Pai das luzes, e tornando-o diabó lico. De fato, essa tendência é a fonte exata
de toda a frieza espiritual, pois quando suspeitamos que Deus seja, na verdade, um “Stá lin
no céu”, é ó bvio que fugiremos dele.
Temos um desafio sério aqui, pois é muito fá cil falar sobre um “Deus genérico”, talvez como
se houvesse algum “Deus” sob o Pai, o Filho e o Espírito, e anterior a ele. Podemos
conversar muito sobre Deus, até falar sobre sua fidelidade, gló ria, soberania etc., e ainda
nã o sermos claros quanto ao Deus a que nos referimos. O deus monopessoal pode ser
descrito como glorioso, fiel e poderoso, mas todas essas características, quando
características desse Deus, seriam aterrorizantes. Ele é fiel em sua falta de amor? Para que
fim ele utiliza seu terrível poder? E o que exatamente é sua gló ria?
O ser triú no de Deus, porém, muda o sabor e o sentido de cada palavra que usamos sobre
ele. Sua gló ria, por exemplo, é inteiramente diferente da gló ria de qualquer outro Deus, seu
poder e justiça, singulares. Na verdade, quando falamos das características de Deus —
digamos, sua majestade — e deixamos claros que estamos nos referindo à majestade do
Pai, do Filho e do Espírito, entã o a majestade divina mostra-se muito mais bela do que
poderíamos ter percebido de outra maneira. Obviamente, até agora distinguimos a
majestade do Deus vivo da majestade dos ídolos.
Peguemos a majestade divina, por exemplo. Se o Deus de Aristó teles, o “Motor Imó vel”,
fosse Deus, entã o sua majestade seria exclusiva e completamente ameaçadora. Aristó teles
cria que a perfeiçã o da majestade de Deus significa que tudo o mais está aquém de sua
atençã o. Por que Deus pensaria sobre outra coisa, quando ele tem sua pró pria e perfeita
majestade para contemplar? Sua majestade significa nossa condenaçã o à irrelevâ ncia.
Mas, se Deus é um Deus expansivo , se ele é fundamentalmente o Pai vivificador, para quem
o “amor ao outro é central o seu ser”, entã o sua majestade deve ser expansiva. E é
justamente isto que vemos na Escritura: a majestade divina manifesta-se quando ele parte
e age, quando ele salva seu povo e repele o mal da terra. Sua majestade é uma majestade de
amor. Considere o conflito de imagens no Salmo 113:
Quem é semelhante ao SENHOR , nosso Deus, que se assenta nas alturas, que se inclina para ver o que
está no céu e na terra? Do pó levanta o pobre, e da miséria ergue o necessitado (Sl 113.5-7).

Khaled Anatolios comenta: “Compaixã o pelo humilde, em vez de contemplaçã o narcisista, é


característica pró pria da majestade divina nas Escrituras hebraicas”. Na verdade, essas [66]

demonstraçõ es de compaixã o sã o as aplicaçõ es da eterna majestade do Pai em amor ao


Filho.
Pelo restante do capítulo, gostaria de observar como o ser triú no de Deus molda algumas
palavras que usamos a seu respeito. Ou seja, observar algumas das diferenças que a
Trindade promove na maneira como pensamos sobre Deus. E, ao longo de todo esse
processo, buscaremos em especial o auxílio de Jonathan Edwards: venho descobrindo que,
nesta á rea, como em muitas outras, ele é singularmente perspicaz, claro e ú til. Contudo,
como usamos um monte de palavras para descrever Deus, e nã o quero transformar este
livro em um monstro pesado, teremos apenas um aperitivo, por assim dizer, e
examinaremos três á reas fundamentais: a santidade, a ira e a gló ria de Deus. Como a
Trindade as ilumina e define?
 
A mais elevada beleza

Primeiro: a santidade de Deus. “Essa nã o…”, você pode suspirar — e eu entendo, pois, sem a
Trindade, a santidade de fato cheira à naftalina e parece uma matrona vitoriana
administrando ó leo de rícino. E muito do que se passa por santidade tem apenas aquela
aura em seu redor: apenas rigor e moralismo. As pessoas até dizem coisas como “Sim, Deus
é amoroso, mas também é santo” — como se santidade fosse algo sem amor, o lado frio de
Deus que o impede de ser amoroso demais .
Bobagem! Disparate! Ou pelo menos é caso você fale sobre a santidade de Pai, Filho e
Espírito. Nã o, disse Jonathan Edwards,
Santidade é algo muito lindo e amá vel. Desde a infâ ncia, os homens sã o inclinados a sorver de estranhos
conceitos de santidade, como se ela fosse algo melancó lico, moroso, amargo e desagradá vel; mas nela
nã o há nada além de doçura e amabilidade arrebatadora. Esta é a mais elevada beleza e amabilidade,
consideravelmente acima de todas as outras belezas; esta é a beleza divina. [67]

O que é santidade, entã o? As palavras usadas para descrever a santidade na Bíblia têm o
significado bá sico de ser “separado”. Mas aqui nossos problemas começam, porque
naturalmente penso que sou amá vel. Assim, se Deus está “separado” de mim, presumo que
o problema esteja nele (e posso fazer tudo isso da forma mais sutil e subconsciente). Sua
santidade parece mais uma rejeiçã o pedante da minha alegre e saudá vel amabilidade.
Arrisco-me a acabar com minha alegria? Preciso, pois a verdade é que sou frio, egoísta e
perverso, cheio de trevas e sujeira. Deus é santo — “separado” de mim — precisamente por
não ser assim. Ele nã o está separado de nó s por pedantismo, mas pelo fato de nã o existirem
nele esses traços repulsivos como há em nó s. “Deus é Deus”, escreveu Edwards, “e distinto
de [isto é, separado de] todos os outros seres, e exaltado acima deles, principalmente por
sua divina beleza ” (para a conexã o entre santidade e beleza, cf. versículos como Sl 96.9). [68]

Já a santidade do deus monopessoal seria algo bem diferente. Ela significaria seu
afastamento dos outros . Em outras palavras, sua santidade consistiria apenas no
distanciamento indiferente. Mas, a santidade do Pai, Filho e Espírito gira em torno do amor.
Considerando quem esse Deus é, deve ser assim. Edwards mais uma vez:
Tanto a santidade quanto a felicidade da Divindade consistem nesse amor. Como já provamos, toda a
santidade da criatura consiste essencial e sumamente no amor a Deus e amor às outras criaturas; da
mesma forma, a santidade de Deus consiste em seu amor, especialmente na perfeita e íntima união e amor
entre o Pai e o Filho . [69]

A santidade do Deus triú no é a perfeiçã o, a beleza e a pureza absoluta do amor entre o Pai e
o Filho. Nã o há nada contaminado ou abusivo no amor desse Deus — portanto , ele é santo.
Meu amor é, por natureza, integralmente perverso e mal-orientado; mas seu amor é
separado do meu em perfeiçã o. Assim, a santidade do Deus triú no nã o reprime ou esfria
seu amor; sua santidade é o esplendor e a imaculabilidade de seu amor transbordante.
Tudo isso afeta bastante o que significa para o crente ser santo e piedoso — em outras
palavras, significa ser como Deus. Ser como outro deus seria completamente diferente. Se
Deus fosse um ser curvado sobre si mesmo, entã o, para ser como ele, também eu deveria
ser assim. Se o deus eternamente introspectivo de Aristó teles fosse Deus, entã o eu seria
chamado para olhar bastante para meu umbigo. Afinal, o que pensamos sobre os atributos
de Deus deve moldar nossa piedade, e o que pensamos sobre a piedade revela nossos
pensamentos sobre Deus. Assim, o que aconteceria, por exemplo, se o amor e o
relacionamento nã o fossem centrais ao ser de Deus? Entã o, eles também nã o chamariam
minha atençã o enquanto busco crescer à semelhança divina. Esqueça-se dos outros. Se
Deus é simples e solitá rio, seja um eremita. Se Deus é cruel e soberbo, seja cruel e soberbo.
Se Deus é o tipo de deus guerreiro, beberrã o e sexualizado ao extremo — amado pelos
vikings—, seja assim. (Por favor, nã o seja).
Mas, com esse Deus, nã o surpreende que os dois maiores mandamentos sejam: “Amará s o
Senhor, teu Deus” e “Amai o pró ximo como a ti mesmo”. Afinal, isso é ser como esse Deus —
partilhar o amor que Pai e Filho têm um ao outro e, entã o, transbordar ao mundo esse
amor. Ou veja, por exemplo, Levítico 19, em que o Senhor memoravelmente disse: “Sereis
santos, porque eu, o SENHOR vosso Deus, sou santo” (v. 2). Com o que a santidade se parece
aqui? Significa nã o voltar-se para ídolos, mas achegar-se ao Senhor com ofertas pacíficas
apropriadas (v. 4-8). Isto é, significa comunhã o com o Senhor. E significa nã o ser cruel com
o pobre, nã o mentir, nã o furtar etc. (v. 10-16) — ou seja, significa “Nã o odiará s o teu irmã o
no coraçã o […] pelo contrá rio, amará s o teu pró ximo como a ti mesmo” (v. 17,18). Amor ao
Senhor, amor ao pró ximo — esse é o coraçã o da santidade e é assim que o povo do Deus
triú no pode ser como ele.

A bela e amorosa santidade desse Deus torna a verdadeira piedade ardente, atraente e
deliciosa. Ela nã o envolve tornar-se mais mesquinho e tacanho, pois esse Deus nã o é
mesquinho e tacanho. Santidade para Deus, disse Edwards, “é como a beleza e doçura da
natureza divina”, consequentemente, “cristã os que brilham ao refletir a luz do sol da
justiça, brilham com o mesmo tipo de esplendor, os mesmos compassivos, doces e
agradá veis raios”. E conhecer o Deus que é amor e desfrutá -lo significa, de forma
[70]

essencial, tornar-se — como ele é — amoroso.


Amados, amemos uns aos outros, porque o amor é de Deus, e todo aquele que ama é nascido de Deus e
conhece a Deus. Aquele que nã o ama nã o conhece a Deus, porque Deus é amor (1Jo 4.7,8).

 
Quando o amor encontra o mal

Se a santidade de Deus pode parecer desmotivadora, sua ira pode parecer medonha. E se
Deus nã o fosse triú no, com certeza sua ira realmente seria medonha. Se Deus fosse só o
valentã o da escola, que deveria ter os desejos atendidos ou se perderá em ataques de fú ria
insana, entã o sua có lera seria repulsiva. Todas as suas outras qualidades seriam como nada
quando víssemos os olhos vermelhos. Todavia, a ira de Deus é considerada muitas vezes
assim. Comentando Romanos 1.18 (“A ira de Deus se revela do céu contra toda impiedade e
injustiça dos homens”), Stephen Moore, estudioso do Novo Testamento, escreve “Quase
podemos ouvir os ossos se partindo na roda da tortura ao descer sobre o corpo do
condenado o poder do soberano ofendido”. [71]

Mas, na verdade, permita-me repetir: Mas. Embora esse possa ser o caso com os outros
deuses, nã o é assim com Pai, Filho e Espírito. Com esse Deus, nã o é como se, à s vezes, ele
tivesse amor e, à s vezes, ele tivesse ira, como se esses fossem diferentes humores, e quando
ele está sentindo um, nã o sente o outro. Nã o. Por toda eternidade, o Pai amou o Filho, mas
nem uma vez sequer esteve furioso. Por quê? Porque nã o havia nada com que estar furioso
até que Adã o pecasse em Gênesis 3. Assim, a ira de Deus por causa do mal, de Gênesis 3 em
diante, é algo novo : trata-se da resposta do Deus amoroso ao mal.
Como a santidade de Deus, portanto, a ira nã o é algo que se senta constrangido ao lado do
amor. Nem é algo desligado do amor. Deus se ira com o mal porque ele ama. Isaías fala do
derramamento da ira divina com a sua “ estranha obra”, seu “ estranho feito” (Is 28.21)
porque nã o é que Deus esteja naturalmente irado, mas que o mal o provoca: em seu amor
puro, Deus nã o pode tolerar o mal. Como pai, isso faz completo sentido para mim: se eu
conseguisse ficar de braços cruzados e bocejar enquanto minhas filhas sofrem, isso
provaria que nã o as amo de verdade; mas, precisamente porque eu as amo tanto, odeio a
sugestã o de que algo ruim lhes sobrevenha. Quanto mais com o Pai das luzes, em quem nã o
há treva alguma. O amor cuida, e isso significa que ele nã o pode ser indiferente ao mal. “O
amor seja sem fingimento. Odiai o mal e apegai-vos ao bem” (Rm 12.9). Somente esse amor
é sincero.
O teó logo croata Miroslav Volf descreveu como os horrores do conflito étnico acontecendo
ao seu redor foram necessá rios para que ele apreciasse a bondade da ira de Deus:
Eu costumava pensar que a ira era algo indigno de Deus. Deus nã o é amor? O amor divino nã o deveria
estar acima da ira? Deus é amor, e Deus ama cada pessoa e cada criatura. Exatamente por isso que Deus
está irado com algumas delas. Minha ú ltima resistência à ideia da ira divina foi uma casualidade de
guerra na antiga Iugoslá via, regiã o de onde venho. De acordo com algumas estimativas, 200 mil pessoas
foram mortas e mais de 3 milhõ es ficaram desabrigadas. Minhas vilas e cidades foram destruídas, meu
povo penou dia sim, dia nã o, alguns deles brutalizados além da imaginaçã o, e eu nã o conseguia
imaginar Deus sem estar irado. Ou pense na Ruanda, na ú ltima década do século passado, onde 800 mil
pessoas foram retalhadas até a morte em cem dias! Como Deus reagiria à carnificina? Mimando os
perpetradores como um avô ? Recusando-se a condenar o banho de sangue, afirmando a bondade bá sica
dos perpetradores? Deus nã o estava violentamente irado com eles? Embora eu costumasse reclamar da
indecência da ideia da ira de Deus, passei a pensar que eu teria de rebelar-me contra um Deus que não
estivesse irado diante do mal no mundo. Deus não está irado a despeito de ser amor. Deus está irado por
ser amor. [72]

Se Deus nã o fosse triú no e, portanto, nã o fosse eternamente amor, sua ira lhe faria parecido
com uma criança gigante esperneando, um valentã o arrumando briga ou um sultã o
impiedoso. Pense nas explosõ es hormonais dos deuses da Grécia e Roma antigas. Mas com
o Deus eternamente amor, sua ira deve proceder desse amor. Assim, sua ira é santa,
separada de nossos acessos temperamentais; é como ele reage ao mal em amor. O Pai ama
o Filho, e odeia o pecado, o que, em ú ltima aná lise, significa a rejeiçã o do Filho; ele ama seus
filhos e, assim, odeia que sejam oprimidos; ele ama o mundo e, assim, odeia todo o mal nele.
Portanto, em amor, ele erradica o pecado do povo, chegando a discipliná -lo para que seja
liberto do cativeiro da pecaminosidade. Em seu amor, ele é paciente conosco. E, em seu
amor, ele promete destruir por fim todo o mal como a luz destró i as trevas.
A ira do Deus triú no é exatamente o oposto de uma falha de cará ter ou de um lado sombrio
nele. É a prova da sinceridade de seu amor, de que ele realmente cuida. Seu amor nã o é
condescendente e hesitante; é furioso, potente e comprometido. E aqui está nossa
esperança: por meio de sua ira, o Deus vivo mostra-se verdadeiramente amoroso e,
mediante sua ira, ele destruirá toda a malícia para que possamos desfrutar dele no mundo
purificado, o lar da justiça.
 
De Sião, perfeito em beleza, Deus refulge
Mas Deus é realmente impelido por amor? Depois de tudo o que vimos, isso pode parecer
uma questã o tola. Deus é amor; ele demonstrou seu amor enviando o Filho; seu desejo era
partilhar seu amor ao Filho: qual poderia ser o problema? Entretanto, existem versículos
que podem parecer pedras no sapato. Paulo, por exemplo, escreveu que o Pai “nos
abençoou com todas as bênçã os espirituais nas regiõ es celestiais em Cristo […] a fim de
sermos para o louvor da sua glória, nós, os que antes havíamos esperado em Cristo ” (Ef 1.3-
12). Existira, entã o, uma motivaçã o mais profunda e, talvez, egoísta em Deus: nã o amor,
mas desejo de aplauso?
Tudo depende do significado da expressã o “gló ria de Deus”. No Antigo Testamento, a
palavra para “gló ria” tem relaçã o com “peso”. Em 1 Samuel 4.18, por exemplo, “Eli caiu da
cadeira para trá s, perto da porta, e quebrou o pescoço e morreu, porque era velho e pesado
”. Assim, a gló ria de algo é sua massa, seu volume, sua dignidade, o que lhe constitui, o que
ela significa — de fato, o que a torna ela mesma . Talvez a gló ria de Eli fosse seu estô mago. A
gló ria de outra pessoa pode ser seu cérebro, emprego ou visual, se é isso que ela mais
valoriza. A gló ria de um homem que vive por dinheiro é dinheiro — logo,
Nã o temas quando alguém se enriquece, quando aumenta a glória da sua casa. Pois, quando morrer,
nada levará consigo; sua glória nã o o acompanhará (Sl 49.16,17).

(A liçã o é ter uma gló ria que lhe fará companhia apó s a morte, como o salmista fez: “Mas
Deus resgatará minha vida do poder da morte, pois ele me receberá ” [v. 15].)
Tudo isso significa que “glorificar” Deus nã o pode ser inflá -lo, melhorá -lo ou ampliá -lo. Isso
com certeza é impossível para o Deus que já supersobejante e transbordante de vida. Pelo
contrá rio, quando damos gló ria a Deus, apenas lhe atribuímos o que já é dele, declarando-o
como realmente é. “Tributai ao SENHOR a gló ria devida ao seu nome ”, disse Davi (Sl 29.2).
Entã o, o que é a gló ria desse Deus, o Deus triú no? Como ela é? Ela será , é claro,
radicalmente diferente do tipo de gló ria de qualquer outro deus. Esse Deus simplesmente
em nada se parece com os outros. A resposta é surpreendente: Ezequiel 1 fala da gló ria de
Deus em termos tanto de uma pessoa quanto de luz/resplendor/brilho. Ezequiel escreve
sobre como, junto ao rio Quebar, ele viu um trono aproximando-se, carregado por quatro
seres viventes. Sobre o trono “estava sentado alguém que parecia um homem” e
da cintura para cima, parecia um metal brilhante, cheio de fogo; e, da cintura para baixo, vi como um
fogo que brilhava ao seu redor. O aspecto do brilho ao seu redor era como o aspecto do arco nas
nuvens, em dia de chuva. Essa era a aparência da glória do SENHOR (Ez 1.26-28).

A aparência da gló ria assemelha-se a um homem e uma luz radiante.

Primeiramente, a luz . Você nã o esperaria que o peso de Deus fosse descrito como
semelhante à luz, mas Ezequiel está simplesmente relatando algo visto por toda a Bíblia:
que a gló ria de Deus — sua natureza e cará ter — é como uma luz pura e ofuscante
resplandecendo e irradiando-se. Aqui estã o apenas alguns exemplos:
Entã o a gló ria do SENHOR se levantou de sobre o querubim e passou para a entrada do templo; e o
templo encheu-se de uma nuvem, e o pá tio se encheu do resplendor da glória do SENHOR (Ez 10.4).
E vi a gló ria do Deus de Israel vindo do oriente; e o seu som parecia o som de muitas á guas, e a terra
resplandecia com a sua glória (Ez 43.2).

Levanta-te, resplandece, porque é chegada a tua luz, e a glória do SENHOR nasceu sobre ti. Pois as trevas
cobrirão a terra, e a escuridão cobrirá os povos; mas o SENHOR resplandecerá sobre ti, e sobre ti se verá a
sua glória (Is 60.1,2).

No Salmo 19, diz-se que os céus “proclamam a gló ria de Deus… Mas sua voz se faz ouvir por
toda a terra, e suas palavras, até os confins do mundo”. Entã o, o salmista especifica: “Ali pô s
uma tenda para o sol, que como um noivo sai do seu aposento, e como heró i se alegra, a
percorrer o seu caminho. Sai de uma extremidade dos céus e percorre até a outra
extremidade; nada se esconde do seu calor”. Assim como a gló ria do Senhor nasce e brilha,
dispersando as densas trevas, o sol nasce e brilha para preencher os céus e a terra com uma
prévia dessa gló ria.
Naquela mesma regiã o, havia pastores que estavam no campo, à noite, tomando conta do rebanho. E um
anjo do Senhor apareceu diante deles, e a glória do Senhor os cercou de resplendor ; e ficaram com
muito medo (Lc 2.8,9).

Na transfiguraçã o de Jesus, Pedro e seus companheiros “viram a sua gló ria” (Lc 9.32). E
qual era a aparência dela? “O seu rosto resplandeceu como o sol, e suas roupas tornaram-se
brancas como a luz” (Mt 17.2).
A cidade nã o necessita nem do sol, nem da lua, para que nela brilhem, pois a glória de Deus a ilumina , e
o Cordeiro é a sua lâ mpada. (Ap 21.23)

Assim, a gló ria de Deus é como luz radiante, brilhante, iluminando e concedendo vida. É
assim que o ser e o peso de Deus sã o em seu íntimo: ele é um sol de luz, vida e calor,
sempre brilhante. Como o Pai provê vida e ser ao Filho, como o Pai e o Filho sopram o
Espírito, o Espírito sopra vida ao mundo. A gló ria desse Deus é radiante e visível. Como o
sol dá de sua luz e calor, esse Deus se gloria em dar-se. Assim, escreveu Jonathan Edwards:
O que Deus tem em vista nã o é (seja na manifestação de sua gló ria ao entendimento, seja na
comunicaçã o ao coraçã o) que ele possa receber, mas que ele [possa] exteriorizar-se: o fim principal de
seu brilho nã o é que ele tenha seus raios refletidos de volta a si, mas que os raios se mostrem. [73]

Em outras palavras, a bela gló ria do Deus triú no é radiante, autossacrificante e amá vel. Por
isso, comentando sobre a gló ria de Ezequiel 1 e sua contraparte neotestamentá ria,
Apocalipse 4 e 5, Edwards disse:
Na revelaçã o do evangelho, Cristo aparece vestido com amor, como se estivesse assentado sobre um
trono de misericó rdia e graça, um assento de amor envolvido com aprazíveis raios de amor. O amor é a
luz e a gló ria encontradas à volta do trono em que Deus se senta […] a luz e a gló ria com a qual Deus
parece cingido no evangelho é de modo especial a gló ria de seu amor e graça pactual. [74]

Assim, a ideia de que a gló ria de Deus seja algo diferente em Deus, em conflito com seu
amor, é um completo equívoco. Sua gló ria nã o significa tomar, mas dar. “O amor é a luz e a
gló ria encontradas à volta do trono em que Deus se senta”. John Owen escreveu que Deus
“glorifica a si pró prio na comunicação de toda boa dádiva ”. De fato — e, [75]

particularmente, na comunicaçã o dele mesmo, ao compartilhar-se.


Mas, espere um momento: no êxodo, Deus glorifica a si mesmo julgando o Egito; “a
aparência da gló ria do SENHOR [… ] era como fogo que consome” (Ê x 24.17). Esse parece ser
um tipo bem diferente de gló ria. Na verdade, nã o. Uma das coisas mais amá veis na luz é que
ela bane e triunfa sobre as trevas. Certa vez, Jonathan Edwards estava pregando sobre
Cristo como o sol da justiça a partir desta passagem, o começo de Malaquias 4:
Diz o SENHOR dos Exércitos: Aquele dia virá , abrasador como fornalha; todos os presunçosos e todos os
que cometem maldade serã o como palha; e o dia que virá os queimará , nã o sobrará raiz nem ramo. Mas
para vó s, os que temeis o meu nome, nascerá o sol da justiça, trazendo cura nas suas asas (Ml 4.1,2).

A principal liçã o que Edwards tirou disso foi que “aquele mesmo sol espiritual, cujos raios
sã o os mais agradá veis e benéficos para os crentes, queimará e destruirá os incrédulos”. [76]

É a mesma luz, a mesma gló ria. Mas a pró pria gló ria — a fragrâ ncia de vida para alguns — é
odor de morte para outros. O propó sito de Deus é imperscrutavelmente amá vel: por fim,
ele espalhará de tal modo sua vida, ser e bondade que ele será tudo em todos; por fim, ele
cobrirá o universo com a luz de sua maravilhosa gló ria. Ele é todo luz — mas isso é terrível
para quem ama as trevas.

A glória do Senhor estava ali

A gló ria de Deus é como a luz radiante; mas, em Ezequiel 1, a aparência da gló ria também é
semelhante a um homem (v. tb. Ez 3.23). Ou, como Hebreus 1.3 expressa: “O Filho é o
resplendor da gló ria de Deus”. Essa, na verdade, é a razã o de a gló ria de Deus irradiar-se e
se exteriorizar: por ser trinitá ria. O Filho — a luz do mundo — é o esplendor do Pai, o
brilho da radiante gló ria do Pai. Como tal, Jesus é a gló ria e o peso de Deus: ele vem do Pai
precisamente para nos mostrar com exatidã o como é o ser do Pai. E, como viu Ezequiel,
semelhante a seu Pai, ele é radiante. De fato, o Filho é o resplendor do Pai.
Ora, quando percebemos que Jesus é o resplendor da gló ria de Deus, fica impossível pensar
que a gló ria de Deus envolva algo além do amor. Por meio de Jesus, o Pai nos mostra seu
íntimo — sob a forma de um servo, morrendo para dar-nos vida. É quando Jesus vem a nó s
do céu, fazendo-se nada, que sua gló ria se manifesta: “E o Verbo se fez carne e habitou
entre nó s, pleno de graça e de verdade; e vimos a sua gló ria, como a gló ria do unigênito do
Pai” (Jo 1.14). Por intermédio de Jesus, nã o se vê uma orgulhosa gló ria divina, mas a gló ria
de humildade e bondade inexprimíveis.
Pense em como Jesus mostra sua gló ria. Nas bodas de Caná , ele “manifestou sua gló ria”
(Jo 2.11). Como? Transformando á gua no melhor vinho. Entã o, ele é “glorificado” ao
ressuscitar Lá zaro dos mortos (Jo 11.). Mas, nã o é como se Jesus fizesse essas coisas para
tornar-se uma celebridade, tipo um má gico itinerante. O fato é que, por meio dessas coisas,
ele mostrava-se compassivo, com a capacidade de curar, trazer vida e rico sobejamento.
Assim, o Espírito o “glorificará ”, ele diz, porque “receberá do que é meu e o anunciará a vó s”
(Jo 16.14). Ele compartilha, é frutífero e torna seus discípulos frutíferos — e, nisso, seu Pai
também “é glorificado” (Jo 15.8). Ele é revelado como frutífero.
Mas tudo isso é apenas o prelú dio da “hora” de sua glorificaçã o. Em Joã o 12, Jesus anuncia
que “chegou a hora de ser glorificado o Filho do homem”. O que ele quer dizer?
Em verdade, em verdade vos digo: Se o grã o de trigo nã o cair na terra e nã o morrer, ficará só ; mas, se
morrer, dará muito fruto. […] Chegou a hora do julgamento deste mundo, e o seu príncipe será expulso
agora. E eu, quando for levantado da terra, atrairei todos a mim. Ele dizia isso referindo-se ao modo
pelo qual morreria (Jo 12.23-33).

Jesus é a gló ria de seu Pai, irradiando do Pai e nos iluminando com perfeiçã o para
enxergarmos como o Pai é em realidade. Agora, o pró prio Jesus deve ser glorificado. Ou
seja, agora veremos a manifestaçã o do mais profundo de seu ser e peso. E com o que ele se
parece? Com uma semente que morre para dar fruto. Pois ele falava da sua morte.
Supreendentemente, o momento em que Jesus alcança o ponto mais baixo de sua
humilhaçã o, na cruz, é o momento em que ele é glorificado e mais claramente
testemunhamos quem ele é. Na cruz, vemos a glorificaçã o da gló ria de Deus, a mais íntima
revelaçã o do pró prio coraçã o de Deus — e tudo gira em torno da entrega da pró pria vida
para dar vida, para dar frutos. Joã o Calvino, o reformador, escreveu:
na cruz de Cristo, como um teatro magnificente, a inestimá vel bondade de Deus é manifesta diante do
mundo todo. Em todas as criaturas, com efeito, tanto grandes quanto pequenas, a gló ria de Deus brilha,
mas em lugar algum brilhou mais luminosamente que na cruz. [77]

Aqui está uma gló ria que nenhum outro Deus desejaria. Outros deuses precisam de
adoraçã o, serviço e sustento. Mas esse Deus nã o precisa de nada. Ele tem vida em si mesmo
— e tanta que ele transborda. Sua gló ria é inestimavelmente boa, supersobejante,
autossacrificial.

“Deus está morto”

Em 1882, Friedrich Nietzsche anunciou de forma resoluta a morte de Deus. Com isso, ele
queria dizer que a crença em Deus simplesmente nã o era mais viá vel. Sua intençã o era que
isso se tornasse o fim da fé. Na realidade, porém, “Deus está morto” é onde a verdadeira fé
começa. Na cruz, Cristo, a Gló ria, condena à morte todas as falsas ideias sobre Deus; e, ao
clamar a seu Pai e oferecer-se pelo Espírito (Hb 9.14), dando seu ú ltimo suspiro, ele revela
um Deus além da nossa imaginaçã o.
Através da cruz, vemos o Deus infinitamente melhor. Ali, nó s nã o vemos um Deus que nã o
se importa com nossa situaçã o; vemos um Deus que lida pessoalmente com a raiz disso
tudo. O deus babilô nico Marduque disse desejar a existência da humanidade como sua
escrava. Jesus disse que “nã o veio para ser servido, mas para servir e para dar a vida em
resgate de muitos” (Mc 10.45).
Assim, chegamos aonde começamos: Jesus Cristo como o caminho iluminado para o
conhecimento do verdadeiro Deus. Como o glorioso Filho ungido pelo Espírito, ele revela o
Pai. Revela que Deus é Pai, Filho e Espírito — e, assim, revela o ú nico Deus que é amor e nos
manifesta a verdadeira gló ria desse amor na cruz. Nele, vemos o Deus muito acima dos
chatos e tiranos que todos nos apressamos em rejeitar. Nele, vemos o bom Deus. E quã o
bom ele é!

Conclusão: Não há outra escolha


 
Como é sua vida cristã ? Como é seu evangelho, sua fé? Afinal, tudo dependerá de como você
pensa que Deus é. Quem Deus é governa tudo. Entã o, qual é o problema humano? É apenas
que nos desviamos de um có digo moral? Ou é algo pior: que nos desviamos dele? O que é
salvaçã o? É só que sejamos reconduzidos como cidadã os cumpridores da lei? Ou é algo
melhor: que sejamos reconduzidos como filhos amados ? Do que trata a vida cristã ? Mero
comportamento? Ou algo mais profundo: desfrutar Deus? É assim que nossas igrejas,
nossos casamentos, nossos relacionamentos, nossa missã o serã o: todos serã o moldados da
forma mais profunda pelo que pensamos sobre Deus.
No início do século IV, Á rio voltou-se para um Deus pré-cozido, semipronto, em sua mente.
Ignorando o caminho, a verdade e a vida, ele definiu Deus sem o Filho , e as consequências
foram catastró ficas: sem o Filho, Deus nã o poderia ser um Pai de verdade; sozinho, entã o,
ele nã o é verdadeiramente amor. Assim, ele nã o poderia ter qualquer comunhã o para
dividir conosco, nenhum Filho para nos aproximar dele, nenhum Espírito por meio de
quem pudéssemos conhecê-lo. Á rio foi deixado com um mingau bem aguado: uma vida de
esforço autossuficiente sob o olho que tudo vê desse Deus distante e indiferente.
A tragédia é que todos nó s pensamos como Á rio todos os dias. Pensamos em Deus sem o
Filho. Pensamos em “Deus”, e nã o no Pai do Filho. Partindo daí, porém, nã o demora muito
até descobrir que você é muito mais interessante que esse Deus. E, se você pudesse se
enxergar, perceberia que está rapidamente tornando-se como esse Deus: completamente
ensimesmado e infrutífero. O teó logo russo do século XX, Vladimir Lossky, expressou-se
assim:
Se rejeitarmos a Trindade como a ú nica base de toda a realidade e todo o pensamento, estaremos
comprometidos com uma estrada conducente a lugar nenhum; terminaremos em aporia [desespero],
em loucura, em desintegraçã o do nosso ser, em morte espiritual. Entre a Trindade e o inferno nã o há
outra opçã o. [78]

Entretanto, começando com Jesus, Ataná sio descobriu o Deus que nã o poderia ser mais
diferente do Deus de Á rio. Nã o foi como se ele tivesse descoberto as letras miú das em sua
descriçã o de Deus (“a Trindade”): Ataná sio tinha o Deus de amor, o Pai bondoso que nos
atrai para partilhar do seu eterno amor e comunhã o.
A escolha permanece: que Deus nó s teremos? Que Deus proclamaremos? Sem o Filho Jesus,
nã o podemos conhecer Deus como o Pai verdadeiramente amoroso. Sem o Filho Jesus, nã o
podemos conhecê-lo como nosso Pai amoroso. Mas, como Lutero descobriu, por meio de
Jesus, podemos saber que Deus é Pai, e “sentirmos e vermos nisso seu coraçã o paterno e
seu imenso amor para conosco. Isto aqueceria o coraçã o e o estimularia a ser grato”. [79]

Sim, aqueceria e estimularia. E mais: motivaria uma reforma.

[1]
  Amida-butsu , o “Buda Amida”, é a versã o japonesa do termo sâ nscrito Amitābha . Trata-se de uma corrente budista
ligada à Escola Maaiana e disseminada no Tibete e extremo Oriente (em especial, China, Vietnã , Coreia e Japã o). [N. do R.]
[2]
 De acordo com o Dicionário Houaiss [versã o eletrô nica], o nirvana é “a extinçã o definitiva do sofrimento humano
alcançada por meio da supressão do desejo e da consciência individual”. [N. do R.]
[3]
Guerreiro agressivo e leal ao deus Odin, parte da mitologia nó rdica. [N. do T.]
[4]
An Nissá (4. a Surata), 171, in: O significado dos versículos do Alcorão sagrado com comentários , trad. Samir El Hayek,
Sã o Paulo: MarsaM Editora, 11. ed., 2001, p. 138.
[5]
  Op. cit. , Al ‘ikhlass (112. a Surata), p. 775; ênfase acrescentada.
[6]
Dogmatics in Outline , transl. G. T. Thompson, London: SCM, 1949, p. 48.
[7]
  Contra os arianos , 1.34.
[8]
  Institutas , 1.14.2,22.
[9]
 James Miller, The Passion of Michel Foucault (New York: Simon & Schuster, 1993), p. 366.
[10]
Nicene and Post-Nicene Fathers, 2nd series, vol. V, p. 338.
[11]
The Works of Jonathan Edwards [obra daqui em diante identificada pelas iniciais, WJE] (New Haven & London: Yale
University Press, 1957-2008), vol. 21, p. 135, 187.
[12]
On the Trinity, 4.4; 9.61; 5.35
[13]
  Institutas , 1.13.2.
[14]
Church Dogmatics III/1, p. 50.
[15]
Os teó logos passariam a usar o vocá bulo hipóstase para se referir individualmente a Pai, Filho e Espírito. O objetivo da
expressã o é vital: nã o há nada além e mais bá sico em Deus que ser Pai, Filho e Espírito. Nã o há “Deus” ou “substâ ncia
divina” por trá s deles ou de onde eles emergiram.
[16]
Glasgow: Collins, 1942, p. 45-6.
[17]
Como exemplo do contraste, compare, em 1 Pedro 5, a forma como Deus é mencionado no v. 7 e o diabo, no v. 8.
Podemos lançar fora toda ansiedade porque ele cuida de nó s (v. 7), enquanto o diabo está buscando a quem devorar (v. 8).

[18]
WJE, vol. 8, p. 459.
[19]
WJE vol. 8, p. 448.
[20]
Works of Richard Sibbes , vol. 6, p. 113.
[21]
Ibid., vol. 6, p. 113.
[22]
Ibid., vol. 6, p.. 113 .
[23]
‘God’s Grandeur’, em Poems of Gerard Manley Hopkins (London: OUP, 1930), p.7. Tradução: Augusto de Campos.
Disponível em http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?
option=com_content&view=article&id=2338&secao=282&limitstart=9
[24]
The Revival of Religious Studies , vol. 6, book 36, transl. Reza Shah-Kazemi.
[25]
 Para ser exato, o “gnosticismo” era, na realidade, um apanhado de pequenas seitas desconectadas, de forma que nã o
podemos realmente dizer que elas acreditavam no “gnosticismo”. Mas, esta é uma tentativa de descrever o que pelo
menos era um padrã o bem comum.
[26]
The Gospel of Thomas , logia 114, em J. M. Robinson, ed., The Nag Hammadi Library , 3rd edition (San Francisco:
Harper & Row, 1988), p. 139, v. tb. logia 22.
[27]
Collected Letters : Books, Broadcasts, and War, 1931-1949, New York: HarperCollins, 2004, p. 930.
[28]
  Contra os gentios , 42.
[29]
Works of Jonathan Edwards , 26 volumes, (New Haven & London: Yale University Press, 1957-2008), vol. 13, p. 329,
331.
[30]
  Church Dogmatics II/1, p. 661.
[31]
Works , vol. 1, p. 144.
[32]
Works of Jonathan Edwards , 26 volumes (New Haven & London: Yale University Press, 1957-2008), vol. 21, p. 171.
[33]
Paraíso perdido , livro IV.460-466. Traduçã o de Antô nio José de Lima Leitã o.
[34]
  Catecismo de Heidelberg , pergunta 32.
[35]
O conhecimento de Deus , São Paulo: Mundo Cristã o, 1996, p. 242-3.
[36]
Luther’s Works, v ol. 34, p. 336-7.
[37]
Livro de Concórdia. Sã o Leopoldo: Sinodal; Canoas : Ulbra; Porto Alegre : Concó rdia, 2006. p. 456.
[38]
Ibid., p. 449.
[39]
Institutas , 2.2.18.
[40]
Sermon # 2899, Metropolitan Tabernacle Pulpit , London: Passmore & Alabaster, 1904, vol. 50, p. 431.
[41]
Livro de Concórdia. Sã o Leopoldo: Sinodal; Canoas: Ulbra; Porto Alegre: Concó rdia, 2006. p. 371.
[42]
“A Prologue upon the Epistle of St Paul to the Romans”, em The Works of William Tyndale , Edinburgh & Carlisle, PA.:
Banner of Truth, 2010, vol. 1, p. 489.
[43]
The Works of Thomas Goodwin , Edinburgh: James Nichol, 1861, vol. 1, p. 46, ênfase acrescentada.
[44]
Em inglês, a frase é um acró stico que forma a palavra GRACE [ G od’s R iches A t C hrist’s E xpense’]. [N. do T.]
[45]
The Person and Work of The Holy Spirit , New York: Fleming H. Revell, 1910, p. 15.
[46]
P. 499.
[47]
The Works of Jonathan Edwards , New Haven & London: Yale University Press, 1957-2008, vol. 8, p. 386.
[48]
Works of Richard Sibbes , vol. 1, p. 14.
[49]
Morning and Evening , Morning, June 28.
[50]
Works of John Owen , vol. 1, p. 146.
[51]
WJE , vol. 21, p. 191.
[52]
Comunhão com o Deus Trino: o caminho para um relacionamento vital com o Senhor , São Paulo: Cultura Cristã, 2010,
p. 97.
[53]
Ibid., p. 82.
[54]
Ibid., p. 292.
[55]
Ibid., p. 285.
[56]
WJE vol. 2, p. 95.
[57]
WJE vol. 21, p. 172.
[58]
Catecismo de Heidelberg , pergunta 92.
[59]
The Expulsive Power of a New Affection , no original. [N. do E.]
[60]
The Works of Thomas Chalmers , Bridgeport: M. Sherman, 1829, vol. 3, p. 64.
[61]
Works , vol. 6, p. 388.
[62]
 Christopher Eric Hitchens (1949-2011) foi jornalista, polemista e autor anglo-americano. Suas obras foram muito
divulgadas no Brasil. [N. do R.]
[63]
Church Dogmatics , vol. II/1, p. 661.
[64]
The Christian Faith : An Introduction to Christian Doctrine, Oxford: Blackwell, 2001, p. 188.
[65]
Institutas , 1.11.8.
[66]
Athanasius: The Coherence of his Thought , London & New York: Routledge, 1998, p. 14.
[67]
WJE vol. 10, p. 478.
[68]
WJE vol. 2, p. 298, ênfase acrescentada.
[69]
WJE vol. 21, p. 186, ênfase acrescentada.
[70]
WJE vol. 2, p. 201, 347.
[71]
God’s Gym , New York & London: Routledge, 1996, p. 17.
[72]
Free of Charge: Giving and Forgiving in a Culture Stripped of Grace, Grand Rapids: Zondervan, 2006, p. 138-9.
[73]
WJE vol. 13, p. 496.
[74]
WJE vol. 8, p. 145.
[75]
Works of John Owen , vol. 23, p. 99, ênfase acrescentada.
[76]
WJE vol.22, p. 52.
[77]
Comentá rio sobre Joã o 13.31.
[78]
The Mystical Theology of the Eastern Church , Cambridge: James Clarke & Co., 1957, p. 66.
[79]
Livro de Concórdia, p. 449.

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