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FILOSOFAR

&
EDUCAR
Inquietações Pensantes

2a Edição

Dante Augusto Galeffi


1

FILOSOFAR
&
EDUCAR
Volume I

INQUIETAÇÕES PENSANTES

2a Edição

DANTE AUGUSTO GALEFFI


2

SUMÁRIO:

Prefácio da primeira edição


Prefácio da segunda edição
1. TENSÕES FILOSÓFICAS CONTEMPORÂNEAS: UMA
DESCRIÇÃO EM PERSPECTIVA

2. DELINEAMENTOS DE UMA FILOSOFIA DO EDUCAR


POLILÓGICA: NO CAMINHO DE UMA ONTOLOGIA RA-
DICAL

3. EDUCAÇÃO: TECENDO SONHOS, HUMANIZANDO O


MUNDO — HOMENAGEANDO PAULO FREIRE

4. A CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO CIENTÍFICO


EM QUESTÃO: CONSIDERAÇÕES POLILÓGICAS SOBRE
A AMBIGUIDADE DA CIÊNCIA

5. A EPISTEMOLOGIA DO EDUCAR NA PERSPECTIVA DA


INTERDISCIPLINARIDADE

6. HERMENÊUTICA E FENOMENOLOGIA DO EDUCAR:


TRAÇOS DE UM FILOSOFAR POLILÓGICO PRÓPRIO E
APROPRIADO

7. A CONSTRUÇÃO CULTURAL DA DIFERENÇA


8. PEDAGOGIA DA DIFERENÇA: NOTAS IMPLICADAS I
9. PEDAGOGIA DA DIFERENÇA PENSADA COMO DIFE-
RENÇA: NOTAS IMPLICADAS II

10. A ESPECIFICIDADE DA FILOSOFIA

11. RESSIGNIFICAÇÃO DOS CONCEITOS DE CIÊNCIA E E-


PISTEMOLOGIA VISANDO-SE A FORMAÇÃO DE UMA
EPISTEMOLOGIA DO EDUCAR POLILÓGICA NÃO-
VERDADEIRA
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Prefácio
O livro, ora editado, tem como base o trabalho de pesquisa do autor desenvol-
vido no período de 1999-2002, a partir do projeto Regimes Epistemológicos nas
Pesquisas em Educação: sentidos, contextos, validades e possibilidades.
A publicação constitui-se de palestras, trabalhos apresentados em encontros a-
cadêmicos, participação em mesa-redonda, artigos publicados em revistas e reflexões
desenvolvidas ao longo do projeto de pesquisa.
Dante Galeffi caminha em uma aventura aberta ao seu acontecimento e suspei-
ta da própria filosofia, enquanto conhecimento instituído. Não pretende substituir a
que está instituída por outra filosofia, mas na tensão instituinte-instituído aprender
sempre mais o filosofar, ou seja, sair da nominação substantiva para a ação do verbo
que, como afirma o autor, é uma realização perene do que sem ocaso, nunca teve
origem.
Nesse sentido, enfatiza o estado aprendente como atitude fenomenológica
permanente, implicando na necessidade, no caso da educação, da ação do educar.
Aprender passa a ser o mesmo que aprender a viver junto, aprender a fazer, a-
prender a pensar, aprender a ver, aprender a falar, aprender a escrever, aprender a
aprender.
A vida em primeiro lugar, o que nos dirige para um educar com a vida. Isto
significa aprender a ser, isto é, aprender a cuidar da vida na vida, com a vida, em
vida.
O autor desenvolve uma crítica radical à ciência, afirmando que a tragicidade
da espécie humana continuará vinculada à arcaica luta de opostos, se a atual forma
crítica da produção do conhecimento dominante não se dedicar a criar novas possi-
bilidades aprendentes.
Estas novas possibilidades encontram caminho na abordagem poemático-
pedagógica que se define como um fazer inventivo, que inventa no próprio ato do
fazer.
Propõe então o caminho fenomenológico-hermenêutico próprio e apropriado,
baseado em Husserl, em Heidegger e em Gadamer, mas que não se esgotam neles.
É com esse caminho que emerge a diferença para propiciar jogos ainda não jo-
gados e colocar a pedagogia da diferença para problematizar o discurso pedagógico
contemporâneo.
Homem e ser encontram-se imbricados no sem-fundamento, pois um e outro
devem responder ao apelo da igualdade originante.
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Nesse processo discursivo, o autor desenvolve uma nova concepção de episteme


e de logos, de maneira que a epistemologia não é vista nem como filosofia da ciência,
nem como teoria do conhecimento. O logos é, assim, o lugar do encontro da dife-
rença ontológica entre ser e ente, o âmbito da clareira e de seu velamento protetor,
isto é, o que há a-se-pensar e o que protege do sem-sentido.
Esta publicação, juntamente com as pesquisas desenvolvidas pelo autor, é um
marco de radicalidade no filosofar e no educar, sem se constituir em um modelo a
ser reproduzido, pois no seu fundante sem-fundamento está a concepção da ação de
cada um enquanto singularidade, pois a maior aprendizagem que se encontra no
discurso de Dante é: seja você, na dinâmica da vida, aprendendo a ser-sendo ou mais
ainda, aprendendo a aprender a ser-sendo.
Salvador, 18 de fevereiro de 2003
Luiz Felippe Perret Serpa
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1
TENSÕES FILOSÓFICAS CONTEMPORÂNEAS:
UMA DESCRIÇÃO EM PERSPECTIVA1

Do meu ponto de partida, estou convencido de que os problemas filo-


sóficos tornaram-se tensões filosóficas na contemporaneidade. Não há mais
problema filosófico para decifrar, examinar e analisar e sim tensões filosóficas,
conflitos, modos de ser para deixar acontecer o com-sentido.

Partindo desta constatação absolutamente pessoal, o que aqui conside-


ro é uma simples e despretensiosa apresentação do que venho reconhecendo
como tensões filosóficas contemporâneas e significativas, dignas, portanto, de
acolhida e atenção respeitosa. Portanto, desde o início optei pela atitude filosó-
fica de radicalidade, e o que me interessa relevar são campos tensivos que a-
bram o nosso âmbito pensante para outras possibilidades ainda não pensadas.
Assim, não descreverei tensões do ponto de vista de conflitos ideológicos em-
pedernidos. O meu foco de atenção se concentra no como hoje pensamos filo-
soficamente, se é que se pode dizer que se pensa filosoficamente. As tensões
filosóficas aqui apresentadas dizem respeito ao modo de ser das filosofias contempo-
râneas, no sentido específico da perspectiva epocal na qual me inscrevo e cons-
telo. Apresento, então, uma
compreensão em perspectiva das tensões filosófica contemporâneas.

Em momento algum estaremos falando em verdade/falsidade, nem muito


menos nos importa determinar qual seria o ethos mais adequado para formar
um ser humano santo; assim como não nos interessa discorrer sobre leis estéti-
cas do belo/feio. Vejam bem, propositalmente saí da primeira pessoa e fui
para a terceira pessoa. Quero com isto destacar uma certa polifonia presente
em todo este discurso. Quando me refiro a mim mesmo, quero dizer ao todo em
que este mim se encontra reunido em assembléia. Claro, não me refiro a uma
assembléia no sentido político, e sim ao âmbito onde um mim é um nós atado a

1
Palestra realizada na V Semana de Filosofia promovida pelo Centro Acadêmico de Filo-
sofia e pelo Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da
UCSal, no dia 06/06/2002. Texto publicado na Revista ÁGERE 6, 2002.
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um destino. Trata-se de um âmbito eminentemente ontológico: campo a partir


do qual o homem experiencia o ser como potência e pura possibilidade.

Gravito em um campo de força chamado filosofia. A minha apreensão


do que seja filosofia vem de uma rede de relações empáticas que não aceitam o
mundo-aí como dado. Pelo contrário, olhando o mundo-aí como ser-no-
mundo, associo-me às vozes da chamada filosofia da diferença, onde é possível
empreender uma radical transvaloração de todos os valores, a partir de realizações
ontológicas. Esta minha associação às filosofias da diferença não significa a
adesão a um sistema veritativo concluído e certo, do ponto de vista formal.
Pelo contrário, significa a repulsa a toda significação já dada e a todo conforto
metafísico possível. Significa, em outras palavras, um exercício filosófico altivo
e inventivo em um só tempo; um exercício, entretanto, marcado por uma ―on-
tologia fraca‖, no sentido de um retorno radical ―às coisas mesmas‖, segundo o
modo como constituem nossas corriqueiras vivências perceptivas e cognitivas.
Trata-se de uma ontologia marcada pelo signo da diferença, o que delimita um
campo de possibilidades abertas ao seu próprio fluxo de acontecimentos ras-
gantes.

Para descrever a perspectiva filosófica na qual este discurso se inscreve


e tensiona, recorro à voz de Gianni Vattimo em sua obra ―As Aventuras da
Diferença‖ (1980; 1988). Com o subtítulo ― O que significa pensar depois de
Nietzsche e Heidegger, Vattimo apreende de maneira condizente as tensões
filosóficas nutridas pela perspectiva das filosofias da diferença, particularmente
em virtude das filosofias de Nietzsche e Heidegger, que empreendem uma
complexa desconstrução do pensamento ocidental marcado metafisicamente
por um platonismo deliberado, isto é, por uma ideia de unidade polarizante,
portanto, dicotomizante, para a qual a aparência não passa de um espelho da
essência, em uma rigidez e violência marcadas pelo signo da culpa e do medo,
pelo signo da retração diante do des-velamento e da entrega ao acontecimento
em seu vórtice transvalorante.

Trata-se, assim, de compreender como, a partir da perspectiva da dife-


rença pensada ontologicamente, seja possível reconfigurar a própria filosofia em
sua instância polifônica e polissêmica, o que abre para a possibilidade de supe-
ração radical de toda oposição metafísica fundada em uma unidade estática e
dedutível em suas leis e princípios perenes.

Gianni Vattimo considera que ―Nietzsche e Heidegger modificaram de


uma maneira substancial a própria noção de pensamento, pelo que, depois
deles, «pensar» assume um significado diverso do de antes‖ (1988, p. 9). É
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preciso, agora, saber em que medida esta afirmação faz sentido para nós. Po-
demos, de forma filosófica, dizer tal coisa sem uma concreta argumentação
discursiva? Esta afirmação é de per si universal e verdadeira, portanto incontes-
tável?

Indico aqui uma das mais eminentes tensões filosóficas contemporâ-


neas: a filosofia da diferença rompe definitivamente com a tradição filosófica
do Ocidente. Bem, mas em que medida este rompimento ocorre? O rompi-
mento com a tradição filosófica do Ocidente realizado pelos filósofos da dife-
rença é mais proximamente o quê mesmo?

A questão crucial diz respeito ao pensar: o que é pensar depois de Ni-


etzsche e Heidegger? Na sentença há o deslocamento da filosofia para o pensar
filosófico. A questão em Nietzsche não é de ordem teórica; tão pouco pode-se
dizer que é de ordem prática. A questão em Nietzsche é o próprio pensar em
seu acontecimento, é ontológica e não gnosiológica. Também a questão em
Heidegger escava a superação da questão lógico-ontológica e edifica o retorno
radical à fenomenologia do ente em sua condição prévia, na perspectiva de
realizações do ser-sendo.

A perspectiva filosófica diferenciada de Nietzsche é um claro dizer não


ao excesso de conhecimento da racionalidade filosófica ocidental. Com Heráclito, Nietzs-
che afirma o eterno retorno do mesmo, em uma decidida superação do binômio
metafísico entre teoria e práxis, essência e aparência etc. Ele opera justamente
uma fusão de teoria e prática, não pelo viés lógico-normativo, mas pelo salto
ontológico nas infinitas possibilidades do ser-sendo potencializado como ultra-
homem, além-homem. O eterno retorno do mesmo é o ato de superação de toda
dualidade metafísica. Não se trata de um conceito logicamente formulado, e
sim de uma ação no tecido do tempo: acontecimento. Entretanto, aconteci-
mento não significa qualquer acontecimento. Trata-se do acontecimento de
realização da ultrapassagem do pensamento filosófico ocidental, considerado
por Nietzsche como uma ―doença‖, o que significa uma recusa radical a toda a
tradição daí proveniente.

De maneira cautelosa, é preciso que a esta interpretação de Nietzsche e


Heidegger encontre uma distância poética condizente, pois não se trata de levá-
los tão a sério, mas de meditar com eles o que dizem e provocam, não para
segui-los ou adotá-los como guias eleitos, mas para beber na mesma fonte que
eles, visar com eles o infundado de tudo o que é; exercer com eles o primado
de uma vida com sentido no evento, vida além do sem-sentido no advento: abertura
radical às aventuras da diferença.
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Para Nietzsche, a ―doença‖ do pensamento ocidental tem origem na


separação, tida como insuperável, entre ser e valor, evento e sentido. Como
releva Vattimo: ―... esta separação é apenas um efeito das relações de domínio,
isto é, da ‗estrutura edipiana do tempo‖.

Na perspectiva de Nietzsche, o significado do pensar, como já se disse,


não é nem teorético nem prático. Não estando polarizado, Nietzsche pensa ao
modo do jogo, isto é, ao modo da gratuidade e da não-fundamentação de tudo
em seus acontecimentos. A preocupação de Nietzsche não se configura como
praxiológica justamente porque, como diz Vattimo (1988, p.10), para ele uma
transformação revolucionária das relações sociais não pode vir a ocorrer sem
que simultaneamente sejam demolidas as estruturas onde as mesmas têm as
suas raízes mais resistentes, isto é, na gramática, ou seja , no cerne das categori-
as ordenadoras de nossa experiência elementar do mundo. Entre tais categorias
pode-se encontrar as seguintes relações polarizadas: relação sujeito-predicados
(propriedades), sujeito-objeto, substância-acidente, essência-aparência, verda-
de-falsidade etc.

De modo similar, não se pode dizer que o pensar em Nietzsche tenha


algo a ver com a tradição gnosiológica do Ocidente. Não se trata mais de uma
teoria do conhecimento, segundo os moldes acadêmicos da tradição, mas de
uma atitude disposta ao acontecimento do pensar em sua aventura diferente, não
mais fundado no primado de uma racionalidade lógica operativa, mas no pri-
mado da vontade exercida como potência de vida no acontecimento da vida.

Acolhendo a consonância do dizer de Gianni Vattimo (1988, p.10):


O novo pensamento a que Nietzsche aspira com o anúncio do ultra-homem
é também ele legível como ―aventura da diferença‖, sobretudo no sentido em que é
um pensamento capaz de se abandonar (sem medos metafísicos, sem as atitudes de
defesa que se exprimem na redução de tudo a um único princípio, na posse do qual
nada pode acontecer) à multiplicidade das aparências libertas da condenação platôni-
ca, que faz delas cópias de um original transcendente, o qual imediatamente impõe
hierarquias e asceses.

As tensões até agora descritas atiçam-nos em uma constelação marcada


pelo signo da infundamentação última. Esta maneira de propor o pensar é des-
concertante antes de ser concertante. O elemento diferenciador é o próprio
perspectivismo ultra-valorante. A ultra-valoração não segue a ―doença históri-
ca‖, pois se abre para a ultrapassagem da polarização hierarquizante. Nesta
medida, o elemento fundante em Nietzsche não é nem o ser nem a aparência,
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mas a dissolução da luta de opostos pelo lado da superfície, do eterno jogar


sem ocaso, numa clara alusão heraclitiana. Ora, este elemento é um campo de
força sem fundamento; o seu fundamento não está nem no ser nem na aparên-
cia, mas em seu próprio âmbito desejante e pulsivo, em seu acontecimento
sempre retornante, sempre potente e ígneo, sempre cambiante, sempre-vida,
ou melhor, ―mais-vida‖.

A abertura perplexiva e desconstrucional do pensamento de Nietzsche


encontra, sem vacilos, ampla ressonância no pensamento de Heidegger, não
porque este seja um nietzschiano declarado, e sim muito mais em virtude da
visada da diferença pensada como diferença. É mais do que claro de que se
trata de dois pensadores independentes. Mas é também compreensível uma
convergência de ambos para o primado da diferença como caminho marcado
pelo eterno retorno do mesmo — eterno retorno do infundado.

De fato, a grande contribuição de Heidegger vem de sua analítica exis-


tencial, um caminho rigorosamente filosófico de desconstrução do edifício da
metafísica ocidental, como foi edificado desde Sócrates, considerado por Hei-
degger o primeiro filósofo da história, e ao mesmo tempo um caminho de retor-
no ao ser em seu acontecimento aberto a infinitas possibilidades. Trata-se da
invenção de uma hermenêutica que procura capturar o ser em seu advento
originário, compreendendo aí o alvorecer do pensamento dos primeiros pensa-
dores gregos. Esta é uma hermenêutica curiosa, sobretudo pela sua intenção de
deixar ao ser a primazia de uma re-tomada de seu dizer vigorante. Uma tensão
que trabalha a partir da relação memória-esquecimento, ou desvelamento-
velamento. Este modo de dizer, então, assume a tarefa de uma investigação
existencial do ser que nós mesmos somos, enquanto ecsistimos, isto é, enquan-
to somos ao modo do da-sein, do ser-aí já dado, já instalado como ser-no-mundo-
com: o ser como pré-sença.

Em Heidegger, a questão da diferença ontológica se torna o campo focal,


compreendido como fundamento infundado, de toda a gênese historial do ser-
no-mundo-com, isto é, do constructo da-sein. É no âmbito da diferença onto-
lógica que se opera uma virada lingüística, para a qual não é a linguagem que se
encontra a serviço do pensamento racionalmente concebido, mas, pelo contrá-
rio, é o pensamento que se encontra a serviço da linguagem do ser. E a lingua-
gem do ser não se expressa por meio de sentenças logicamente formuladas,
mas pela pujança de sua origem sempre originante, independentemente de jus-
tificativas metafísicas fundadas em um princípio de identidade que se compre-
ende como um traço do ser.
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Em sua virada ontológica, Heidegger pensa o princípio da identidade


como sendo o campo da relação entre os opostos metafísicos, o que permite
pensar a identidade como forjada a partir da relação entre os opostos da rela-
ção, ou melhor, os diferentes da relação. Propriamente falando, a identidade
aparece pela relação de diferentes. A identidade é propriamente a relação indis-
sociável entre ser e ente (ser e pensar), o que permite superar o conceito e a
atitude de um diferente na diferença, ou seja, do privilégio de uma das polaridades
sobre a outra: um chefe e um empregado, um dominante e um dominando, um
forte e um fraco etc. Em todos estes casos há sempre uma parte privilegiada e
uma parte usurpada, isto é, há sempre um diferente na diferença.

A identidade assim pensada torna-se o campo fundante de todas as


possibilidades de acontecimentos fenomenológicos do ser-sendo. Nesta virada,
não é a identidade que é um traço do ser, mas é o ser que se mostra como tra-
ço da identidade, isto é o ser se mostra em pé de igualdade com o ente. A iden-
tidade, assim, não é mais pensada como identidade lógica hierarquizante, e sim
pensada como identidade ontológica fundada no sem-fundamento do que nun-
ca tem ocaso. A perspectiva do jogo aqui aparece em pleno relevo. Entretanto,
não é este um jogo dramático. Pelo contrário, ele é trágico: desvela a condição
humana na condição humana — propicia o velamento protetor para o salto
liberador. A vida como jogo jogado na altivez do espírito em liberdade.

Entretanto, eu penso que a questão do salto liberador em Heidegger


não se deixa levar pela produção de sentido substitutiva de sistemas criticados.
Nele a questão é muito mais uma aspiração do que propriamente uma certeza
sobre a presença, enquanto presente. É este aspecto aberto que pessoalmente
me atrai no pensamento de Heidegger: o instigamento/provocação de outras
possibilidades radicais para o pensar; o pensar, então, se comemora como festa
e celebração; não é um fardo insuportável, mas fardo que se suporta em uma
revolução no âmbito da história do ser-no-mundo. O pensar, assim , é feito de
lentidão e suspeita. O pensar, deste modo, não comemora a efervescência do
instante, mas seu acontecimento na proximidade de uma origem sempre-viva.

Os críticos de Heidegger e Nietzsche, não sem razão, destacam uma


nostalgia da origem pela reproposição de uma circularidade temporal. Com a dife-
rença de que em Nietzsche isto alcança uma mais radical e severa atitude vi-
vencial, enquanto em Heidegger isto se torna um diálogo constante com a tradição,
uma redescrição da tradição que permite liberar os textos filosóficos do enclave
monolingüísta da tradição do significado único, de cuja posse se incumbem
bacharéis seculares. Isto permite, de certo modo, implodir toda figuração filo-
sófica hierarquizante, seja ela alemã ou francesa, inglesa ou italiana, portuguesa
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ou apenas brasileira, hindu ou chinesa, africana ou árabe. Nada fica de pé


diante da crítica heideggeriana. Contudo, nada é destruído em sua historicidade
remota. O campo da analítica, assim, torna-se a preparação para uma revolução
do pensamento, sem contudo firmar-se em declarações programáticas em no-
me de humanismos familiares e nacionais. Entretanto, isto não é dado na teo-
ria como simples possibilidade remota, mas conclama para uma decisão irrevo-
gável, na destinação do ser-humanidade que somos.

Acolhendo a filosofia da diferença de Heidegger, fica para mim eviden-


te que a diferença é por ele pensada como ―ruptura‖, isto é, ―como des-
tituição do caráter definitivo da presença‖ (Vattimo, p. 12). Isto quer dizer que
a ―ruptura‖ não é concebida como forma de conciliação com nada, mas provo-
ca irrupções desconcertantes e inesperadas do ser-sendo. Para Heidegger a
ruptura provocada pela reproposição da diferença ontológica não se ocupa
com a concepção existencialista do homem como problematicidade, na pers-
pectiva de sua condição de finitude e de seu inevitável drama pela escolha de
sua destinação.

Neste sentido, a diferença não é pensada a partir do que já é ou está


cotidianamente presente, mas a partir de seu próprio arché, de sua própria ori-
gem vigorante-originante. Isto é um concreto salto no abismo infundado do
sentido-sendo. O importante aqui é aprender a dançar suspensos no Nada. O senti-
do de origem assim concebido é algo de absolutamente indeterminado, atendo-
se ao eterno fluir da potência ígnea que não encontra fundamento nem no ser
nem em sua aparência, mas no acontecimento instante de sua plenitude solar
ao infinito. Entretanto, Heidegger não se entrega à consumação de um destino
trágico, daí a sua acentuada nostalgia grega. Apesar desta nostalgia, com Hei-
degger se re-aprende algo que já havia sido uma conquista de Nietzsche: se
aprende que o páthos de uma filosofia do homem, relativa a sua problematici-
dade existencial e o drama de sua livre escolha não merece a atenção de uma
filosofia que se devota a anunciar e realizar o além-homem.

É assim que, tanto para Nietzsche como para Heidegger, uma concilia-
ção dialética entre as polaridades se torna risível. Não se trata, em base à dife-
rença descrita, de conciliar e superar a luta dos opostos, mas de compreender
que o pensar mesmo em sua constituição depende deste jogo tensivo dos o-
postos. Deste modo, a diferença pensada como ―des-tituição do caráter defini-
tivo da presença torna-se essencial ao pensamento para que este se constitua
como pensamento crítico‖ (Vattimo, p. 12). E isto contra qualquer tentativa
de pensamento dialético conciliador; contra igualmente à ideia de uma ordem
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política investida de um chamado ―socialismo real‖, e que proclama o fim da


alienação e apresenta as condições para a efetuação da autenticidade.

A perspectiva da diferença forjada por Heidegger, a diferença como


ruptura da tradição metafísica, se não enfatiza o caráter existencialista do ho-
mem, enfatiza, entretanto, a condição ontológica do ente homem, em sua con-
dição existencial de ser-para-a-morte. Fora do enquadramento propriamente
existencialista, Heidegger repensa a finitude constitutiva da existência, o que
caracteriza-se pela fundação de uma ontologia aberta ao apelo ouvido do ser,
onde o ocaso do Ocidente é tomado como declínio e exaustão de um ciclo
historial.

O importante de tudo isso, para mim, toca o âmbito de um novo co-


meço para a filosofia que parece não dirigir-se ao velho mundo em seu apelo,
mas ressoa em ambientes com pouca ou quase nenhuma tradição filosófica
acadêmica. Isto é uma tensão significativa: o conflito entre um pensamento da
diferença e a manutenção de uma filosofia escolástica padronizada e hierarqui-
zante. Entretanto, em nenhum momento penso em soluções fáceis, porque
reconheço o quanto seja preciso fazer para mudar os rumos destinais de um
povo modernamente constituído.

Acreditando ainda na tarefa do pensamento, penso que as perspectivas


abertas pelas filosofias da diferença de Nietzsche e Heidegger são ainda fontes
para uma revolução do pensamento. E isto é uma outra tensão muito significa-
tiva: encontramo-nos abertos às múltiplas possibilidades pensantes, mas é pre-
ciso deixar de lado qualquer pretensão e intenção de acabamento formal, de
verdade definitiva, de primado indiscutível. Como tensão significativa, a possi-
bilidade de um novo pensar filosófico não se faz como projeto aplicável em
uma dada sociedade histórica, mas alcança o cerne onde o próprio ser humano
dorme o sono de sua impertinência ancestral e violência simbólica. Neste sen-
tido, não propondo descrever as estruturas permanentes da verdade do ser,
pensadores como Nietzsche e Heidegger assinalam em suas próprias obras
caminhos para realizações do ser que libertem-nos de toda pretensão e insis-
tência em figurações imponentes e hegemônicas do ser-sendo. Isto, de certo
modo, abre possibilidades para novas narrativas filosóficas, consolidadas, en-
tretanto não por suas descendências autorizadas, mas justamente pela pujança
de seus conceitos manifestos no próprio aparecer de seus jogos libertamente
jogados, para além das maquinações partidárias do evento aberto a infinitas
possibilidades de vínculo e aderência às crenças emergentes e mediadas pela
alucinação violenta do capital mercantil.
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A perspectiva aqui descrita tem o seu foco na constatação da morte de


um sistema, de uma cultura histórica: o Ocidente. Acontece, entretanto, que as
litanias não são mais entoadas devidamente, o que provoca uma estranha sen-
sação de perda irreparável. O efeito nostálgico vem daí, isto é, vem da queda
em uma depressão deliberada onde todos os valores humanos são incinerados
na fornalha do mundo-sendo. A questão está no alcance de um estado de ser
que supere as oscilações desconcertantes do aniquilamento da centralidade
egóica do homem. O foco, então, não é mas o homem em sua historicidade
moderna, mas a própria superação da importância de tal homem para a manu-
tenção do acontecimento imperante do que não conhece ocaso.

As poucas tensões filosóficas aqui descritas são pretextos para o texto


do pensamento provocado pelo questionamento acerca das possibilidades do
pensar filosófico depois de Nietzsche e Heidegger. Em todo caso, esta asserti-
va pressupõe a imersão em uma constelação epocal, mesmo quando a mesma
alcança, nos seus limites, o alciônico estado de ser-no-mundo vivido gramati-
calmente por Nietzsche.

Vejamos com mais afinco. Considero que a maior tensão filosófica


contemporânea encontra-se na passagem do tempo historial do Ocidente. A
planetária ocidentalização mostra-se, assim, como contratempo: o valor é meio
como mercadoria. É neste contratempo da cultura mundial da mais valia que o
Ocidente experimenta, de diversas formas, o seu ocaso, ou melhor, a sua morte
como hegemonia planetária e como identidade e destino epocal. Inevitavel-
mente nossa época é marcada pela dissolução da passagem do tempo real. O
tempo tornou-se a efervescência da precipitação dos instantes na ocupação
monitorada. Maquinações são as marcas das manipulações autorizadas. A bes-
tialidade pode aí ser experimentada em sua plenitude.

É diante deste cenário que pode brotar o sentimento de indignação pela


condição humana. Indignar-se da condição humana dada é uma tensão filosó-
fica relevante e significativa. É pela indignação às condições humanas impostas
pelo modo de ser da humanidade dominante presente, que se pode criar condi-
ções para o aparecimento de uma filosofia do além-homem. Isto muda o modo
de compreensão do processo formador da atitude filosófica. E, para formar
para esta possibilidade pensante, é preciso construir condições e meios favorá-
veis ao seu engendramento. Isto não é uma tarefa que se possa programar sem
que haja potência humana para tensionar a corda da espécie estendida na pas-
sagem do tempo biológico.
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A tensão nesse ponto toca o âmbito dos ambientes formadores


do discurso filosófico contemporâneo. As passagens aí são construções cultu-
rais enraizadas. É inevitável reconhecer que é ainda a Europa que detém a tec-
nologia filosófica competente, e que em nosso meio o que se vê é a perpetua-
ção das matrizes filosóficas européias. Entretanto, vejo que uma grande tensão
filosófica está na possibilidade do aparecimento/construção de uma nova Pai-
deia humana. Isto indica para a potencialização de uma nova atitude aprenden-
te, para a qual o filosofar se torna um caminho de realização do ser-no-mundo-
com, pelo vigor da indignação e altivez de espírito. Neste sentido, o lugar da
filosofia se desterritorializa e se encontra em lugar algum. Significa, então, dizer
que a filosofia mais significativa de hoje não mais se encontra no meio acadê-
mico autorizado, e sim na vida e obra de pensadores que vivem de vida pró-
pria. Quem são estes pensadores? Bem, alguns são ainda desconhecidos, outros
são ainda marginais, como é o caso de Krishnamurti e David Bohn.

O caso é que pensamos ainda a filosofia como sendo posse de alguns


bacharéis e doutores, e não sabemos ainda reconhecer o filósofo em sua radi-
calidade alciônica. Assim, os territórios consagrados da filosofia ficam restritos
a especialistas e homens/mulheres de alta cultura, e os temas filosóficos fecha-
dos em círculos incomunicáveis. A questão é que, vacinados por Nietzsche e
Heidegger, não é mais possível acreditar nas verdades pronunciadas por filóso-
fos de cátedra, exceto como verdades da contingência histórica dos mesmos. E
por incrível que pareça, isto não leva a uma desvalorização dos filósofos passa-
dos; pelo contrário, permite uma mais rigorosa apreciação das obras filosóficas
marcadas pelo signo da indignação e da livre criação.

A tensão, então, entre a velha filosofia e a filosofia do aventurar-se no


tempo do sendo, se configura como tensão criadora, o que permite uma re-
composição do próprio modo do trabalho filosófico acadêmico. Claro, em
filosofia não há espaço para a improvisação indecisa. A improvisação filosófica
exige um alto grau de tensão criadora, o que não se pode realizar fora de um
ambiente propício e potencializador. Condições propícias e deliberadas, por-
tanto, são fundamentais para o aparecimento de obras filosóficas originantes, o
que não quer dizer que as mesmas tenham sorte diferente de toda e qualquer
obra humana criadora.

Tais condições, entretanto, precisam da artesania de indivíduos alciôni-


cos, e não pode ser transmitida através de processos formais escolarizados,
porque depende de uma atividade de efetuação própria e apropriada. Portanto,
não se trata de imaginar uma maquinação para a produção de filósofos em
série, mas de construir meios eficazes para o aparecimento de novos pensado-
16

res formados pela lentidão do tempo pensante. Meios eficazes, entretanto, não
são meios cujo controle é atribuído a uma racionalidade previsível e monoto-
nal. A eficácia dos meios depende do vigor com que se trabalha a coisa do pen-
samento. Neste aspecto, caberia a uma academia filosófica propiciar os meios
de rigor da investigação filosófica aberta e desafiante, tendo como páthos a in-
dignação pela condição humana dada, e a disposição às novas e imprevisíveis
aventuras diferenciais do pensar laborioso e lento, rigoroso e dançante como a
música polifônica do tempo incessante, porém mutante em seus modos de ser
re-tornante.

Porque sei que este discurso é também uma aventura aberta ao seu a-
contecimento, encerro esta fala com a convicção de que precisamos, para a-
prender a filosofar, começar por suspeitar severamente da própria filosofia em
sua intenção instituída, não para depor um rei e substitui-lo por outro, mas
para abandonar em definitivo qualquer pretensão de sobre-determinação do
ser-aí, e para que se aprenda a alcionizar sempre mais o filosofar como realiza-
ção duradoura do que, sem ocaso, nunca teve origem. E as tensões sociais?
Bem, estas dependem de uma outra atitude aprendente para serem equaciona-
das em favor de uma revolução cultural de longo alcance. De novo o papel do
filósofo parece ser o de ultrapassar-se no movimento de seu próprio pensar. O
resto é apenas conversa para fazer dormir o menino assustado. Vamos, então,
ouvir as tensões porventura provocadas a partir da minha fala infilosófica. O-
brigado pela atenção.

Referência Bibliográfica:

VATTIMO, Gianni. As Aventuras da Diferença. O que significa pensar de-


pois de Heidegger e Nietzsche. Tradução: José Eduardo Rodil. Lisboa: Edições
70, 1988.
17

2
DELINEAMENTOS DE UMA FILOSOFIA DO
EDUCAR POLILÓGICA: NO CAMINHO DE UMA
ONTOLOGIA RADICAL2

 Introdução

Este trabalho quer ser o balanço provisório de uma longa investigação


que vem sendo efetuada por mim junto ao Grupo de Pesquisa Epistemologia do
Educar e Práticas Pedagógicas, cadastrado no CNPQ e vinculado à Faculdade de
Educação e ao Programa de Pós-Graduação em Educação (mestra-
do/doutorado) da UFBA, inscrito na Linha de Pesquisa Filosofia, Linguagem e
Práxis Pedagógica. As suas áreas de concentração são a Filosofia e a Educação.
Filosofia e Educação, entretanto, compreendidas como caminhos aprendentes da
atitude crítica radical, no sentido específico de uma ciência do homem e para o
homem, uma ciência do além homem, ciência de um saber-ser e saber-fazer
próprios e apropriados.

Partindo deste horizonte tensivo fundamental, temos procurado inven-


tariar o processo aprendente do pensar crítico, ressignificando, de forma radi-
cal, as próprias Filosofia e Educação que, por esta torção conceitual, são com-
preendidas como o aprender a aprender a ser. Neste sentido, pode-se dizer que
caminhamos construindo uma Filosofia do Educar polilógica, polissêmica,
polifônica, ocupada em descrever a ação educante a partir de uma ontologia
radical, isto é, a partir de um plano de realização humana fundado na liberdade
incondicional do sem-fundamento. Isto indica, entretanto, na dimensão acio-
nal, que desenvolvemos pesquisas no campo da formação de professo-
res/pesquisadores visando ultrapassar os modos e modalidades instituídos da
educação formal vigente. Interessa-nos saber na raiz a gênese da ciência oci-
dental, compreendidas aí a filosofia e a educação em suas historicidades geopo-
líticas.

2
Trabalho apresentado no Iº Encontro do GT de Filosofia da Educação do Norte e Nor-
deste; realizado em Recife, de 4 a 6 de setembro de 2002, promovido pela UFPE.
18

Procura-se trabalhar sempre com a atitude crítica de radicalidade. Não se tra-


ta, deste modo, de uma investigação ocupada com as concepções de educação
instrumental que o mercado cultural dispõe, e sim de uma proposição que visa
ultrapassar o atual horizonte da formação crítica de professores/pesquisadores
e, conseqüentemente, a própria formação crítica dos indivíduos que passam
pelo sistema formal de educação nacional. Neste sentido, pode-se falar com
propriedade de uma Filosofia do Educar que assume como tarefa a construção
de uma Ciência (Epistemologia) do Educar Polilógica. E se aqui ainda insisti-
mos no uso da palavra ―ciência‖, não é nossa intenção construir um sistema
teórico (seja ele esférico ou tórico) sobre a educação, e sim intervir no tecido
histórico da educação humana, oferecendo possibilidades acionais concretas de
aprendizado dialógico, pelo aprender a cuidar de si e dos outros, isto é, pela
realização autoconhecente.

Com a palavra ―ciência‖, portanto, não queremos afirmar a possibilida-


de de verdades únicas a serem explicadas pela razão humana objetivamente
disposta. Não usamos a palavra no sentido moderno, não falamos em ciência
experimental ou natural, mas em ciência fenomenológica. Portanto, falamos de
ciência em sentido propriamente filosófico, o que pressupõe uma absoluta li-
berdade de vôo. Falamos em ciência como atividade aprendente de conheci-
mentos que dizem respeito ao nosso comum pertencimento ao ente-espécie
humanidade, segundo nossas concretas e históricas condições existenciais (am-
bientais, corporais, materiais, simbólicas).

A comum dicotomia entre as ciências exatas e as ciências não-exatas é


estruturada, também, dicotomicamente. Há um privilégio das ciências objetivas
sobre aquelas ditas subjetivas. Não se trava aí uma relação de iguais e sim de
uma relação de subserviência. É como se as ciências humanas tivessem sempre
que imitar o modelo das ciências objetivas, e não pudessem nunca ultrapassar a
condição de subalternidade em relação às mesmas. Esta comum dicotomia não
foi ainda resolvida no plano da produção do conhecimento oficial. Ela ainda
regula as formas de valoração das atividades humanas produtivas, permitindo a
desvalorização, ou subserviência, das investigações que compreendem o ser hu-
mano em sua radicalidade, justamente porque estas não se curvam ao sistema
maquínico armado como domínio e dominância — a mais-valia hegemônica e
planetária imperante. É claro, diante de um sistema hegemônico como o do
capital mais-valente, só o que pode vir a dar lucro contábil e imediato pode ser
objeto de interesse e investimento, o resto faz a figura do pobre: vive da cari-
dade dos senhores.
19

É a atitude de indignação ao estado de coisas dadas que nos move nesta


busca epistêmica. Levantamos nossa voz para restaurar um sentido de ―ciên-
cia‖ que diga respeito, como ação, à aquisição de um conhecimento que nos
liberte do jugo imperante da bestialidade e da rudeza espiritual dominante.
Com a palavra ciência está em jogo nossa própria sorte como ente-espécie huma-
nidade. Queremos, assim, falar de uma ciência que se exercita como constru-
ção humana de uma sociedade de iguais. Esta é a maior ciência de todas, jus-
tamente porque se ocupa do único ente que necessita de cuidado e atenção
absoluta: o ser humano. O maior bem não pode encontrar-se fora de nós. En-
tão, ciência é para nós o mesmo que saber-pensar, saber-ver, saber-viver-junto, saber-
fazer, saber-não-saber, saber-calar, saber-falar, saber-ser. É isto mesmo, ciência é algo
que nos diz respeito, como humanos, em nosso modo de ser para a liberdade de
ser. Assim, o que dizemos como ciência é o nosso próprio modo de ser-
consciente do que sabemos fazer com a vida — um saber-fazer com arte.

Esta ressignificação do conceito de ciência não exclui de seu espectro


nenhuma das formas de ciência já realizadas na história. Entretanto, não esta-
mos interessados em teorizar sobre o passado da ciência, e sim interessados em
construir uma ciência do educar polilógica, isto é, uma ciência que se confunde
com o nosso modo concreto de ser-no-mundo: uma ciência autônoma e inven-
tiva, porém própria e apropriada.

Tal proposição é, sem dúvida, ousada e até mesmo inquietante, pois


não se trata de seguir uma determinada tradição instituída, mas de romper,
metodologicamente, com ela. Ou seja, o aprendizado da atitude aprendente feno-
menológica é o campo focal de nossa investigação. O importante não é ter acu-
mulado muitos conhecimentos, mas aprender a distanciar-se de todo e qual-
quer conhecimento dado, como modo de desenvolver-se em cada um a capa-
cidade empírico-analítica de construção epistêmica do conhecimento crítico.
Decidimos levar a sério a atitude de radicalidade aprendente que a fenomenologia
procura descrever. Não compreendemos mais os fenômenos como dados, e
sim como campos de forças conflitantes e interativos, em relação aos quais não
se pode nunca explicar, mas simplesmente dizer o que nunca se deixa paralisar
na fixação de uma só face, de um só sentido, de uma única verdade. E se pre-
tendemos descrever acontecimentos aprendentes, não nos cabe determinar a
priori as categorias da nossa realidade verdadeira, pois a tarefa, agora, é justa-
mente de silenciar o acúmulo de representações do sentido, realizando-se, as-
sim, um retorno radical sobre nós mesmos.

Esta atitude aprendente não se deixa levar pelo argumento fácil do que
se impõe como lei estabelecida excludente. Do ponto de vista de quem apren-
20

de, o importante é aprender a aprender. Este é o grande desafio fenomenológico


da Filosofia do Educar proposta.

 Descrição do ponto de partida fenomenológico

O nosso ponto de partida fenomenológico encontra ampla ressonância


e inspiração na atitude aprendente de Edmund Husserl, em relação a ―uma
reforma total da filosofia, para fazer desta uma ciência com fundamentos ab-
solutos‖ (s/d: 10). Em suas Meditações Cartesianas (s/d), ele apresenta o protó-
tipo do retorno filosófico sobre si mesmo, inspirado em Descartes. É com
este fundamento — o retorno radical sobre nós mesmos — que ousamos
construir uma filosofia polilógica. Acolhendo alguns pensamentos de Hus-
serl, esclarecemos, em consonância com a atitude descrita, nosso ponto de
origem radical:
Em primeiro lugar, quem quiser verdadeiramente tornar-se filósofo
deverá «pelo menos uma vez na sua vida» virar-se para si próprio e, a partir de
si, tentar derrubar todas as ciências admitidas até aí e tentar reconstruí-las. A
filosofia — a sabedoria — é de algum modo um assunto pessoal do filósofo.
Deve constituir-se enquanto sua, ser a sua sabedoria, o seu saber que, ainda que
tendendo para o universal, seja por ele adquirida e que ele deve poder justifi-
car desde a origem e em cada uma de suas etapas apoiando-se em intuições
absolutas. A partir do momento em que tomei a decisão de acometer estes
objetivos, decisão que só me pode conduzir à vida e ao desenvolvimento filo-
sófico, fiz, pois, por isso mesmo, voto de pobreza em matéria de conhecimen-
to. Então é manifesto que foi necessário perguntar-me como poderia encon-
trar um método que me mostrasse o caminho a seguir para chegar ao saber
verdadeiro. [...] ... estas meditações esboçam o protótipo do gênero de medi-
tações necessárias a qualquer filósofo que começa a sua obra, só estas medita-
ções podem dar origem a uma filosofia‖. (Husserl, s/d: 10-11)

Tomando essa passagem de Husserl como inspiração, queremos afir-


mar que a nossa construção de uma Filosofia do Educar Polilógica parte de
uma atitude de radicalidade justificada da mesma forma. Para dizer: é sempre
um ponto de partida radical que pode dar origem a uma filosofia necessária,
independente da sua condição existencial concreta, ou melhor, da sua singula-
ridade e novidade radical.

Portanto, a novidade desta concepção não nos coloca em vantagem na


disputa pelo ―conhecimento verdadeiro‖. Trata-se, pelo contrário, de uma ne-
21

cessidade: só é possível filosofar a partir de si mesmo; ou seja, ou realizamos o


caminho de retorno sobre nós mesmos, ou a filosofia não passará de uma es-
pécie de espelhamento natural das coisas do mundo. E neste sentido, também uma
Filosofia da Educação não passará de campo subalterno do conhecimento au-
torizado. Assim, preferimos evitar a forma substantiva de nomeação das coisas,
assumindo a forma verbal como conceito limite absoluto. É neste sentido que
falamos de Filosofia do Educar (filosofar educante), evitando a expressão já
consagrada de Filosofia da Educação. Com esta mudança de nome mudamos
também o conceito da coisa que é filosófica: o educar. Ou seja, não pensamos
o educar separado do filosofar, e a filosofia continua aparecendo como relação
amorosa com a coisa mesma do pensar-ser.

Partimos, desse modo, de uma atitude de suspensão de todos os dados


e de todos os juízos de valor já produzidos até então, na linha do tempo de
nossa condição histórico-existencial concreta. Este ponto de partida fez voto
de pobreza em relação ao conhecimento adquirido secularmente, o que não
significa desconhecimento ou grosseira desvalorização das tradições vigentes, e
sim uma repulsa aos elaborados racionais que queiram se impor como leis na-
turais do mundo dado, sem que seja preciso nenhum esforço transcendental
próprio e apropriado. Partimos, portanto, de uma radicalidade de princípio que
realiza o esforço transcendental como alcance apodíctico do ―conhecimento
geral do ser-no-mundo-com‖, ou seja, do que é necessário e universal, isto é,
alcance do que nos constitui fenomenologicamente falando, em nossa condi-
ção de existência concreta e histórica.

Entretanto, com esta forma de ―crença transcendental‖, não corremos


o risco de permanecer no horizonte gnosiológico da filosofia e da ciência mo-
dernas? Será ainda necessário afirmar verdades apodícticas como caminho
fundamental para a construção da filosofia e da ciência? Que garantias, enfim,
temos ao trilhar um caminho de retorno radical sobre nós mesmos? Acredita-
mos em universais necessários, deduzidos por intuições intelectuais solipsistas
totalizadoras? Podemos, como acreditavam Descartes e Husserl, realizar o
retorno radical sobre nós mesmos e, em nós mesmos, encontrar a evidência
absoluta da verdade universal — o verdadeiro ego transcendental?

Bem, o nosso ponto de partida fenomenológico necessita de maiores


esclarecimentos. A questão, então, concentra-se no movimento de retorno
radical sobre nós mesmos. Queremos, então, saber: o que isto significa — o
movimento de retorno ao nosso ego transcendental? As figurações, aqui, são a
essência da nossa questão. Queremos saber o que nos constitui como egos
transcendentais, isto é, como consciências viventes abertas ao acontecimento
22

do sentido, em constelações anelares pré-existentes. Então, podemos alcançar,


ainda, uma abrangência universal para a questão do conhecimento transcen-
dental?

Tais questões nos desconcertam e nos confundem momentaneamente.


O que estamos propondo segue o desenho da crítica racionalista moderna de
Descartes a Deleuze? Ou procura, justamente, um novo início para o filosofar?
E ao procurar este novo início, qual é mesmo a novidade do empreendimento?
Não seria ela, a novidade, uma ilusão renovada da plenitude inalcançável? Ou
seja, não seria isto uma fuga da realidade dura e árida do saber sempre certo da
racionalidade apartada do mundo?

O que propomos não é algo fácil de justificar, porque construímos algo


que tem sua própria marca de origem. E qual é mesmo esta marca? Onde en-
contrar os seus traços e sinais certos e incontestáveis? Pelo visto, não seremos
facilmente acolhidos em nossas intenções de um novo começo para o filosofar como
prática aprendente do ser-sendo. É claro, quem somos nós, e de onde provém a nos-
sa autorização para falar algo tão inusitado: uma filosofia do educar polilógica?

Este é o problema: estamos justamente no início; somos iniciantes.


Entretanto, queremos aprender com brio e altivez; não queremos permanecer
sob a guarda de qualquer que seja a autoridade externa à nossa própria vonta-
de. É claro, não falamos de vontade individual, mas de conjugação e comu-
nhão de forças múltiplas e associadas. Não falamos senão em nosso próprio
nome, segundo a pulsão de nossas vidas consteladas.

 A saída do ego transcendental

O ponto de partida fenomenológico descrito não nos deixa repousar


no conceito limite de ego transcendental postulado por Husserl. Entretanto, ele
nos serve de ponto de inflexão, no sentido de uma mudança de horizonte no-
emático para o tratamento-vivência do tema do educar. Neste sentido, nosso
campo conceitual funda sua própria evidência predicativa, apesar das mesmas
encontram o seu fundamento em juízos e evidências ante-predicativas. O al-
cance do eu transcendental é realizado na epoché (è) fenomenológica.
Reduzindo meu eu humano natural e a sua vida psíquica (domínio da experiência
psicológica interna) ao meu eu transcendental e fenomenológico (domínio da expe-
riência interna transcendental e fenomenológica), alcanço uma evidência absoluta. A
questão, portanto, não se limita a uma mera representação de fatos vividos
pelos outros, mas requer que se alcance a vivência meditativa concreta do ego
transcendental. Este ponto de radicalidade permite a saída da própria ideia de
23

ego transcendental. Como diz Husserl, ―o conceito de transcendental e o seu


correlativo, o conceito de transcendente, devemos retira-los exclusivamente
da nossa própria meditação filosófica‖ (s/d,p. 40).

Ora, isto afirma a necessária atitude de radicalidade (transcendência) di-


ante do aparente e manifesto mundo natural. Isto nós joga para dentro de nós
mesmos, no sentido de um retorno ao nosso eu transcendental. Ou melhor,
todos os objetos e todos os dados externos da experiência já não mais se en-
contram fora de nós, mas se constituem a partir do ego transcendental. Por-
tanto, o mundo natural já não é um problema que nos toca. O eu e sua vida
psíquica não constituem mais uma parte do mundo. O que isto quer dizer?
Bem, quer dizer que o eu já não se confunde como sendo isto ou aquilo, este
ou aquele homem, nem muito menos se confunde com o homem capaz, em
sua limitação de produção de abstrações singulares, de alcançar a sua própria
mente ou alma ou intelecto, nem mesmo o alcance da própria alma tomada sepa-
radamente. Portanto, o eu não se confunde com a egoidade tipicamente hu-
mana. Assim, a experiência puramente interna de meu eu é deixada de lado
em sua singularidade, ficando apenas o fluxo existencial do próprio eu em sua
indistinção.

O eu, assim, não é mais um EU afirmativo e singular, mas a própria


possibilidade de uma Filosofia fenomenológica ou transcendental, alias a pró-
pria possibilidade de uma Filosofia apropriadamente crítica, independente,
desde de si mesma, de toda e qualquer ordem implícita ou explícita: livre e-
xercício absoluto — exercício de ser fundando-se e re-fundando-se infinita-
mente.

Pelo visto ficamos ainda no que pode ser tomado como simples produ-
ção de sentido singular. O nosso ponto de radicalidade pode fazer pensar que
permanecemos no limiar das filosofias da consciência. Afinal, como usar
Husserl como inspiração e não praticar uma estrita filosofia da consciência? A
questão, nos parece, tangencia o conceito de consciência e suas implicações
de sentido já instituídos historicamente. Entretanto, podemos ainda tomar a
consciência como pertencente ao campo pré-reflexivo, o que nos permite sair
da ideia de consciência como consciência intelectual. Deste modo, ousamos a sa-
ída, para nós uma evidência, do ego transcendental, isto é, não aceitamos co-
mo dada a existência do eu natural e nem do eu transcendental, mas apenas
abarcamos a egoidade e a naturalidade enquanto nos inscrevemos no fluxo
da consciência em seu infinito campo de possibilidades focais. A consciência,
assim, é sempre uma implicação existencial, ou seja, pressupõe o ser capaz de
consciência, a partir de uma consciência de consciência. Deste modo, o im-
24

portante é a vida em seu acontecimento consciente, isto é, na vivência do ego


transcendental instante, em que o objeto do conhecimento é o próprio sujeito
do conhecimento, e o sujeito, assim, se torna um polijecto do conhecimento.

Não se discute, portanto, se há conhecimento, mas se procura meditar


o conhecimento do conhecimento como modo de ser-no-mundo-com. Assim, o
foco de nossa saída do ego transcendental é o acontecimento da relação de
possibilidades aprendentes ainda não experienciadas. Neste sentido, na medi-
da em que não cabe mais estabelecer princípios para a validação de regras de
conduta universais e uniformes, o importante é cuidar do estado do que é vi-
vo e vital. Trata-se de um cuidar que é um aprender a ser infinito.

Com tais encaminhamentos, o que temos é a possibilidade de fazer va-


ler uma atitude de radicalidade aprendente que realize, desde do começo, o
retorno radical sobre si mesmo, independente de todo e qualquer estatuto ou
regra externa ao próprio contexto aprendente efetivo. Isto significa deixar a-
para trás a ideia de um sistema filosófico completo, que permitiria, também,
tratar de temas como a educação de uma forma sistematicamente filosófica.
Não queremos aqui construir uma Filosofia da Educação, e sim realizar uma Fi-
losofia do Educar, ou melhor, um filosofar por si só educante: ser-no-mundo-
fazendo-se, ultrapassando-se, doando-se ao que é instante-vivo.

Aqui nosso intuito não é o de construir uma substância chamada educa-


ção,a partir de uma ótica especificamente filosófica. Queremos, pelo contrário,
desconstruir os cenários das representações que a filosofia da educação vem
montando ao longo de um tempo significativo. Ou seja, queremos descons-
truir a pretensão de uma Filosofia da Educação. Desconstruir, entretanto, não
significa desconhecer os cenários a desmontar, mas justamente conhecê-los
em seus momentos determinados e em suas conexões radiais infinitas. A car-
ga do sentido, deste modo, é sempre um presente vivo que se devota a viver.
Tem carga e sentido aquilo que se auto-percebe em relação ao seu ser-
sentido-sendo: modo de ser do ser consciente/inconsciente de si, do outro e
do ambiente de vida.

Diante dessa específica figuração transcendental, o melhor mesmo é


não procurar entender, posto que o que importa não é o entendimento no
sentido intelectual do termo. Muito além disto, trata-se de uma apreen-
são/vivência que nos dispõe ao acontecimento de um retorno radical ao fun-
do comum de tudo: o sem-fundamento, o vazio, o caos. Ora, uma tal possi-
bilidade já se encontra implicada no mundo-da-vida, e dele não se aparta para
nada. A questão, então, é saber o que compreendemos por mundo-da-vida. O
25

mundo e todas as vivências psicológicas possíveis já se encontram dados em


uma consciência de que há consciência. Deste modo, não se trata de confun-
dir os pólos da relação, como se fossem regidos por uma identidade corres-
pondente a um traço do ser, e estivessem submetidos a uma falsa igualdade
entre ente e ser. O mundo dado, assim, não é nunca um ―mundo natural‖, e
isto porque, para a consciência de consciência todo ―mundo natural‖ é tam-
bém ―mundo construído‖, isto é, fenômeno de consciência de que se tem
consciência. Deste modo, qualquer forma de relação bipolarizada é eliminada
da cena, porque o que importa não é averiguar objetivamente as leis do mun-
do, mas abandonar de vez, a ideia da existência de um mundo natural, conse-
qüentemente, de um ―homem natural‖. É precisamente esta ―naturalidade‖
que passa a ser colocada de lado: não há dados naturais dotados de conteúdos
humanos, e sim conteúdos humanos dotados da naturalidade de processos
gerativos auto-reguladores.

Diante disso, a saída do ego transcendental quer ressignificar as possibi-


lidades de um exercício filosófico autônomo e inventivo, e quer fazer disto
um caminho aprendente radical: caminho absolutamente aberto ao seu pró-
prio absoluto — a imagem do infinito no finito.

 Mudança de estado: do substantivo ao verbo

A partir da torção fenomenológica esboçada anteriormente, deixamos


de lado qualquer tentativa de construção substantiva da educação, como prática
filosófica sistemática, e partimos para a concretização do fazer educante, no
sentido de um educar aberto ao acontecimento implicado e solidário das mul-
tiplicidades viventes. Isto deixa de lado qualquer ideia de filosofia como porta-
dora da tarefa de produzir metanarrativas verdadeiras e objetivas, e restitui ao
filosofar a primazia do ato filosófico, no sentido próprio do termo, isto é, co-
mo ato implicado no acontecimento do com-sentido, independente do modo e
da forma em que se diga e se mostre o ser-fenômeno. E é justo aí, no ser-
fenômeno, que importa ressaltar a abertura do aprendizado. Trata-se da passa-
gem do estado substantivo para o estado verbo. Bem, não se trata de uma oposição.
Pelo contrário, falamos em passagem de um estado a outro: passagem de um
estado de consciência ingênua para um estado de consciência cética: uma cons-
ciência interrogante. E porque é uma passagem e não uma contraposição, não
se nega a existência arqueológica de sistemas filosóficos que se dedicaram e
dedicam, também, aos problemas pedagógicos. Em outras palavras, a passagem
do estado substantivo para o estado verbo implica na reformulação radical de todas
as categorias que regem nossos regimes de significação, a partir de um novo
26

começo, um começo suficientemente iniciado para poder engendrar novas


formas de fazer e de dizer, de ser e de pensar — novas aventuras filosofantes.

É na medida da passagem anunciada que falamos aqui em Filosofia do


Educar polilógica. Como filosofia, ela pressupõe, antes de tudo, a atitude de
radicalidade aprendente. Assim, por filosofia dizemos a atitude de aprendizado
autoconhecente. Neste sentido, a filosofia do educar aqui delineada ensaia a
formulação de novas aventuras do aprendizado de si mesmo, deixando em
aberto os infinitos caminhos para se alcançar o êxito de uma ação criadora.
Entretanto, esta abertura apenas indica que a realização do que chamamos filo-
sofia do educar não se representa apenas neste modo de dizer a coisa do edu-
car, mas, ao mesmo tempo, afirma que este modo pode ser também um modo
vivo de conceber o educar criador.

A partir, portanto, do salto epistemológico descrito, a passagem do


substantivo para o verbo, queremos anunciar o surgimento de uma tensão
filosófica que se funda na ação aprendente aberta fenomenologicamente. Isto
significa dizer que qualquer tema pode tornar-se objeto de uma investigação
filosófica, desde que se compreenda a filosofia como atitude aprendente radi-
cal: alcance do modo de ser criador e guardador do que não se pode comparar
e reduzir a mero estatuto de objeto ou de sujeito. Neste sentido, o ato educante
realizado é aquele mesmo que realizamos a partir de nós mesmos, em nós
mesmos. Melhor dizendo: este ―nós‖ não se reduz ao eu psicológico dos hu-
manos, e nem muito menos pode-se dizer que não é humano. Pelo contrário, o
humano se reconhece como tal a partir de seu próprio modo de existência situ-
ada, e de nenhum modo podo-se querer reduzir o acontecimento do ser-sendo
aos moldes monológicos de uma racionalidade doentia e perversa. Uma filoso-
fia do educar se ocupa justamente da ação educante em sua nascente. Não é o
antes ou o depois que interessa, mas a ação em si mesma.

Claro, isso não é algo fácil de compreender. Afinal, não se exime nin-
guém de ter que fazer o esforço de auto-esvaziamento para poder alcançar
atitude aprendente atenta ao acontecimento sempre vivo e presente. Permane-
cer no presente é o ato aprendente em si mesmo. Isto não se ensina e não se
transmite geneticamente. Permanecer na consciência de uma consciência que
tem consciência de ser consciência é um ato de intuição que ultrapassa os limi-
tes do ser consciente: o permanecer vazio diante do tempo psicológico recor-
rente. A recorrência psicológica é o obstáculo a vencer. Deixar de lado o que
parece claro e cheio de si é o caminho para a saída do ego transcendental, co-
mo realização de outras possibilidades aprendentes: construção verbal, filosofia
do educar polilógica.
27

 Proposição simples: no caminho de uma ontologia radical

O ponto focal da filosofia do educar aqui delineada é a realização de


um novo início para o aprendizado do pensar. Como vimos, este novo início
não pode ser buscado fora de nós mesmos. E porque é em nós mesmos que se
encontra a possibilidade de tal acontecimento, tudo o que até então já se disse
sobre o ato de educar é matéria prima para a construção de uma filosofia do
educar ontologicamente fundada. O ato de ser-no-mundo-com que nos é peculiar
se configura, agora, a partir de um esvaziamento de todo sentido atribuído ao
filosofar e ao educar. Educar e filosofar são, assim, o mesmo. O filosofar é um
educar e o educar um filosofar. Neste sentido, o educar não depende do filoso-
far nem o filosofar do educar. Ambos são o mesmo, ou melhor, são modos de
ser aprendentes e abertos à liberdade do encontro inusitado. O filosofar é em
si mesmo educar e o educar em si mesmo é um filosofar.

O ponto comum é a identidade nascida da relação de co-pertencimento


ao mesmo. Não se trata, entretanto de uma identidade lógica, e sim de uma
identidade ontológica. Em outras palavras, trata-se da identidade que funda o
filosofar e o educar na relação de co-pertencimento à diferença ontológica. O
filosofar é um pensar assim como o educar é um modo de ser; o educar é um
pensar assim como o filosofar é um modo de ser. Esta correspondência diz
respeito à unidade múltipla do ato de ser e pensar. O fundo comum é a dife-
rença entre ser e pensar, isto é, o mesmo, o igual. A correspondência, entretan-
to, não é causal e sim modal. Por serem diferentes ser e pensar se encontram
unidos no mesmo Um: o sem-fundamento. Tanto o ser como o pensar são
idênticos no co-pertencimento. Ambos identificam-se apenas a partir da rela-
ção de comum pertencimento. A identidade assim, é a própria diferença onto-
lógica que, na raiz, se encontra relacionada com o igual. Ora, igual a si mesmo
tanto é o pensar como é o ser. Entretanto, na relação de co-pertencimento um
não é sem o outro, e em nenhum deles se encontra a causa primeira derradeira,
porque um só é com o outro o idêntico a si mesmo. Portanto, a identidade não
é mais pensada como um traço do ser, e sim o ser torna-se um traço da identi-
dade, ou melhor, da diferença ontológica originante.

Aqui o fundamental é o princípio da diferença ontológica. É ele que


aponta para uma identidade que não se restringe à fórmula consagrada A = A,
porque um A somente é igual a ele mesmo,e nenhum outro A poderá igualar-se
a qualquer que seja o A. Esta fórmula lógica com a qual se expressou o concei-
to central do princípio de identidade na cultura ocidental revelou-se contraditó-
ria, na medida em que da relação entre iguais ela permite estabelecer o privilé-
28

gio de uma das partes sobre a outra. Assim, entre o ser e o pensar passou a
existir uma relação de derivação fundada em uma igualdade desigual, porque,
na identidade da relação, uma das partes acabou aparecendo como dominante e
a outra como dominada.

Este modo lógico de pensar a identidade como um simples traço do


ser, em que coisas distintas, mesmo que símiles, se confundem com o igual, faz
do pensar uma instantânea cópia do ser, ou melhor, seu espelhamento. Ora,
mas o que está dito é que o pensar e o ser são o mesmo, o que em nenhum
momento significa dizer que um é cópia imagética e fantasiosa do outro e que
só um é o real, sendo o outro apenas o imaginário, o flutuante , o efêmero.
Esta forma grosseira de se conceber o acontecimento do sentido é mesmo para
fazer desesperar o mais santo dos homens. Entretanto, a partir de uma herme-
nêutica ontológica fundada na diferença como diferença ocorre uma reviravol-
ta no âmbito da interpretação do ser pelo pensar.

O pensar mesmo é ele mesmo o ser. Isto em hipótese alguma quer di-
zer que um deriva do outro, mas que ambos se encontram na relação de co-
pertencimento originário e igual, isto é, ambos se dão a saber um pelo outro
enquanto são o mesmo, ou melhor, se dão a saber no pensar como ser-no-
mundeo-com. Esta proposição pode parecer arbitrária e enigmática, mas ela está
dizendo que o educar e o filosofar são apenas distintos como traços de uma
mesma identidade: a relação de co-pertencimento. Esta afirmação nos abisma
em um universo de sentidos ainda desconhecidos, o que nos convoca a apren-
der a aprender a ser-pensante.

O ser pensante tornou-se, então, o foco de nossa identidade entre edu-


car e filosofar. Só uma ontologia radical permite configurar uma tal possibili-
dade. O acesso a isto é o nosso próprio ser enquanto existe. É aí que se encon-
tra toda possibilidade e toda impossibilidade de ser e de não-ser. E porque a
origem é um campo de co-pertencimento e de diversidades, enquanto somos
nunca podemos abandoná-la. Ou seja, nunca abandonamos a origem do nosso
comum-pertencimento ao ente e ao ser, sendo o ente agora o próprio pensar
enquanto é ser. Neste sentido o educar é em si mesmo um filosofar em si
mesmo. Entretanto, para que isto ocorra é necessário abdicar de toda e qual-
quer pretensão sistemática de abarcar a lei perene e imutável das coisas, porque
a única lei perene para o acontecimento do sentido é o seu comum-
pertencimento ao âmbito do sem-fundamento, o Vazio, o Caos.

Ora, isto pode até parecer um mero jogo de palavras jogadas ao acaso,
mas apresenta um solo ontológico novo para a construção local de uma filoso-
29

fia do educar polilógica. E porque não se pretende edificar um sistema conclu-


sivo metalingüístico sobre a educação e/ou o educar, e sim realizar possibilida-
des aprendentes concretas e bem distintas umas das outras, é preciso que por
primeiro cada um por sua conta cumpra o esvaziamento ontológico do seu
próprio eu encarnado. Isto quer dizer que o interesse de uma filosofia do edu-
car polilógica é da ordem do aprender a ser-sendo, isto é, é uma ação que exige
de cada um de nós o aprendizado meticuloso e longo da arte de viver o presen-
te como acontecimento do co-pertencimento originante.

Tudo isso, entretanto, não descreve uma saída facilitada para os ―me-
nos esforçados‖ nos estudos filosóficos, e nem muito menos pretende negar
outras possibilidades conceptivas não contempladas nesta perspectiva polilógi-
ca. Não pretendemos negar a história da Filosofia da Educação no Ocidente,
mas apenas mostrar um possível caminho de ressignificação do ato educante
como sendo da ordem da ação livre e inventiva, cabendo a cada um realizar em
si mesmo a experiência de retorno radical ao mundo da vida, segundo o modo
como vivemos e re-fazemos o mundo aparentemente dado. Afinal, do ponto
de vista fenomenológico, o mundo dado passou a ser apenas um fenômeno de
existência, e não algo derradeiro e intocável. Este é um campo de investigação
fundamental para que se possa compreender o educar como filosofar. Agora,
para que isto aconteça é preciso alcançar o estado da arte no fazer aprendente.
Assim, o educar não mais se pode associar à aplicação de normas de conduta
exemplares, no processo de imposição de modelos supostamente bons.

O educar passa a ser uma ação aprendente aberta ao seu próprio acon-
tecimento. É justamente neste ponto que o educar é, por natureza, filosófico,
isto é, se dispõe aberto ao acontecimento do sentido como aprendizado dialó-
gico, onde o co-pertencimento dos dialogantes no enamoramento vivente é o
solo onde brota a fonte da sabedoria. E a sabedoria é sempre um tesouro dos
que dialogam, e só os que dialogam a dispõem, ou melhor, são tomados por
ela.

Deste modo, caminhando em uma ontologia radical realizamos a pas-


sagem do estado substantivo para o estado verbo. Entretanto, isto apenas nos deixa
vazios para o aprendizado do que apaixona os mais distantes recantos do ser-
sendo. Ora, isto só se pode fazer através de modos apropriados, porque o es-
tado da arte requerido sempre pressupõe modos de ser-sendo muito peculiares
e distintos. Assim, um primeiro passo para o alcance de um conceito guia para
significar uma Filosofia do Educar polilógica é o esvaziamento de nosso pró-
prio ego com todas as suas convicções e crenças. Este é o estado da arte que
pretendemos para o filosofar educante. Neste sentido o filosofar é um educar
30

porque ele mesmo é um modo de fazer arte. A filosofia, portanto, nesta nossa
visada, é um modo peculiar de fazer arte. Este modo peculiar encontra-se fun-
dado na própria necessidade humana de fazer e de agir para poder-ser.

Trata-se, ainda que ressignificado, do mundo do trabalho em que o


homem se encontra sendo. Infelizmente, a falta de uma hermenêutica mais
radical sobre o sentido do trabalho para a vida humana é fonte de muitos equí-
vocos e disputas belicosas entre culturas históricas distintas. As chamadas ati-
vidades intelectuais, aparecem, então, como sofisticação e perfumaria produzi-
das por grupos humanos dominantes e pretensamente superiores aos pobres
coitados que vivem no mundo natural. Mas afinal, quem é humano que vive
em um mundo natural? O incrível que o preconceito é em relação ao próprio
homem. A pretensa naturalidade humana, assim, se mostra quase como uma
evidência antropológica e biológica. Entretanto, que homem é homem que
vive em estado natural? Seguramente todo ser humano deixado à própria sorte
desde o nascimento, podem dizer biólogos e antropólogos. É claro, isto é um
fato bastante condizente. Contudo, reduzir o ser humano ao determinismo
pretensamente biológico ou antropológico mostrou-se sempre como algo se-
melhante a querer deduzir leis perenes do ser humano de estudo de casos ou
de série de casos.

Por mais que se proceda ao infinito a multiplicação dos casos, em qual-


quer parte de uma escala ou de uma progressão poderá ocorrer a descontinui-
dade da série deduzida. Isto demonstra a impossibilidade de se chegar a verda-
des exatas através da mera investigação empírica. A empiria, neste caso, faz
parte da própria experiência do educar e do filosofar, e as formas modernas de
definição e regulação da empiria não passam de casos isolados e singulares.
Assim, o educar anunciado como filosófico e polilógico não admite fechar-se
em seriações e modulações estanques e hegemônicas, porque é uma força em si
mesmo plástica e plasmante, capaz sempre de romper continuidades já instituí-
das e ordinárias. Este é o foco: uma filosofia do educar polilógica é ação a-
prendente no próprio ato de aprender o diálogo interrogante entre interlocuto-
res dialógicos e não apenas discursivos e opositivos.

 O sentido prévio do educar como disposição ao acontecimento do


sentido infinito e implicado do ser-sendo
31

O educar tornou-se para nós um filosofar efetivo. Isto implica conce-


ber o educar como disposição ao acontecimento do sentido infinito e implicado se ser-sendo.
É aqui que entra a necessidade de se compreender a filosofia do educar como
caminho aprendente do ser-sendo. Isto também pressupõe o estado da arte.
Educar é uma arte tanto como o filosofar. Dizer qua são arte, não significa
dizer que não são técnicos, e sim que são artísticos em seus modos de dizer e
de fazer — modos sempre inventivos, irrepetíveis. A técnica, no caso, é assun-
to pessoal do filósofo ou educador, é o seu próprio modo de dizer e fazer sua
obra. Nem o filosofar nem o educar são meras técnicas de saber-fazer, mas são
caminhos aprendentes abertos ao seu próprio acontecimento. Os problemas
começam quando se pretende ensinar o estado da arte sem o fazer propria-
mente arte. E o fazer propriamente não é objeto de ensino, exceto quando se
trata do fazer nas atividades de repetição e assimilação. Estas também fazem
parte do elenco moderno do que se deve aprender para se poder ser melhor no
mundo do capital. Mas isto não diz respeito ao ato filosófico e educante em
suas naturezas pensantes e radicais, em seus saltos inventivos e extraordinários.
Isto apenas diz respeito aos atos mecanicamente repetidos e aos interesses
mercantis determinados.

Falando assim até parece que a condição humana é ideal e benfazeja.


Mas é justo o contrário o que acontece: a condição humana é a mais desequili-
brada de todas as formas de vida conhecidas. As desigualdades são incontáveis
em suas infindáveis séries e casos. A bestialidade também tem se mostrado um
traço comum aos seres humano existentes. É mesmo desesperadora a condição
humana desde sua origem. Apenas uma minoria goza do estado de bem-
aventurança, e não me refiro à minoria dos grupos humanos socialmente abas-
tados e ricos, mas à minoria dos que atravessam o limiar do próprio ego trans-
cendental e desembocam no mundo da vida com a germinação de suas trans-
cendências silenciosas.

Neste sentido, a condição de miserabilidade humana fica restrita aos


grilhões do mundo da necessidade. Até no mito da criação do homem se en-
contra, desde o meio do caminho, a interdição divina em relação à sua liberda-
de absoluta. Pelo contrário, ao ser humano cabe rastejar e submeter-se aos
ditames do mundo da necessidade, pagando com o seu trabalho a perpetuação
de uma vida ou de escravo ou de senhor. Esta interdição divina é o estigma da
humanidade histórica, porque a necessidade é filha do desejo pela completude
de ser como Deus é, em seu ser eternamente incompleto e inacabado. Aconte-
ce que o Deus mítico é uma obra inacabada do espírito na condição humana.
Pelo conhecimento científico ou pela ascese mística, ou pelo empreendimento
32

econômico, o ser humano sempre busca o querer-ser e o querer-saber. Aconte-


ce que há o ser humano em uma concreta condição de existência.

E porque o ser humano é apenas enquanto existe o ente-espécie huma-


nidade, ele está sempre predisposto ao acontecimento divino em seu próprio
ser, apesar de dificilmente deixar vir ao encontro a liberdade do ser humano
que se põe em pé de igualdade com os deuses e os imortais. Esta condição
simbólica originante não depende de um progresso do espírito humano para
poder vir a acontecer, simplesmente porque ela já é plenitude e liberdade em si
mesma, independente de qualquer posse ou de qualquer território pré-
estabelecido nas relações instituídas de poder. É claro, este acesso ao mundo
da sabedoria não nos chega por sortilégios ou rituais mágicos deliberados, mas
implica em uma escarposa ascensão de autoconhecimento construído cotidia-
namente. Neste sentido, uma filosofia do educar assim concebida não se inte-
ressa em descrever os fenômenos vigentes da educação humana contemporâ-
nea, entendendo aí toda a memória histórica disponível nos arquivos da huma-
nidade histórica. Estamos, assim, falando de uma condição humana que é pro-
cesso histórico permanente. De uma condição humana que pode tornar-se
liberta de sua própria necessidade, sem que a necessidade seja negada em seu
efetivo acontecimento. Somos todos filhos da necessidade. Enquanto huma-
nos, somos a necessidade vivente encarnada. É na e pela necessidade que se
pode também aprender a ser livre como necessidade. Vista deste modo, a li-
berdade aparece como o próprio fundante da necessidade, e não o contrário.

Portanto, ao dizermos que o sentido prévio da filosofia do educar aqui


delineado é a disposição ao acontecimento do sentido infinito e implicado do ser-sendo,
afirmamos a necessidade de construirmos os caminhos históricos de perpetua-
ção do ente-espécie humanidade em sua disposição ao cuidar e ao criar do seu
próprio ser. É como ser-humanidade que o agir humano nos interessa, fazen-
do sentido a construção de uma filosofia do educar polilógica. Este sentido
encontra-se no próprio agir dialogante do aprender a ser-sendo, isto é, encon-
tra-se na conjugação e na conjunção de filosofar e educar. Educar para filoso-
far e filosofar para educar. Até parece frase feita de partido em época de elei-
ção. Mas a questão aqui é de outra alçada.

A questão é uma tensão existente entre um estado substantivo e um es-


tado verbo de ser-no-mundo. É em nome deste salto que a filosofia se fez no
filosofar. Só o acesso a si mesmo, através do autoconhecimento, dá acesso à
saída do ego transcendental instituído. Isto mostra como é fundamental o a-
prender a pensar e, desta forma, apresenta-nos a urgência de uma filosofia do
educar polilógica: ela pode nos ajudar a sair a velha gramática e ancorarmos
33

nossa embarcação nas águas densas da fenomenologia transcendental, ou me-


lhor, da filosofia em seu exercício poemático-pedagógico radical. O fazer e o
saber-fazer são os fundamentos de toda prática humana concretizada. No fa-
zer e no saber-fazer estão os focos da intencionalidade aprendente do filosofar
e do educar. Só se aprende o que se mostra necessário no pensar-ser. Só o ne-
cessário pode ser aprendido em seu evento. Necessário é o livre vôo do pássa-
ro no ar. Sem a resistência do ar o vôo nunca seria possível.

Este é o estado aprendente que pode e se deve realizar plenamente: a


condição humana que alcança o estado filosofante do fazer-se com arte, nas
dialogias diferenciais de cada relação de co-pertencimento amoroso e apren-
dente de ser-sendo. Nestas passagens e sinapses risomáticas múltiplas o impor-
tante é alcançar um estado de sabedoria pessoal que nos permita permanecer
atentos ao instante presente, sem que seja preciso negar os efeitos matérias do
passado ou do futuro do ente-espécie humanidade. Pelo contrário, este estado
de sabedoria é fruto de um esvaziamento de toda e qualquer pretensão de co-
nhecimento verdadeiramente verdadeiro das coisas. Acontece que com a epoché
fenomenológica realizada ocorreu um ponto de não retorno ao estado supos-
tamente natural do ser humano, o que implica em experimentar-se lançado em
novas possibilidades de ser e de pensar. È isto o que anunciamos como condi-
ção prévia para a vivência da filosofia do educar polilógica aqui delineada.

 Delineamentos conclusivos: o agir pedagógico como aprender a


pensar-ser

Até agora em nossa investigação ficou evidente a necessidade de um


recomeço radical para da filosofia e do filosofar, o que se identifica, pela pro-
ximidade e pela relação, com o próprio educar filosofante. Isto ficou eviden-
ciado no movimento de desconstrução fenomenológica praticado. Todas as
verdades e todas as crenças até então determinadas pelos regimes humanos de
significação são pretextos na construção da realização do ser-pensar concebi-
do como filosofar educante.

Ora, o educante aqui não ocupa o papel paterno da norma ou da lei


modelada, mas apenas a condição de possibilidade do aprender a ser próprio
ao ente espécie-humanidade. Isto nos obriga a abandonar, por princípio, as
amarras da velha gramática metafísica do Ocidente e enveredar em sendas e
caminhos ainda não vividos. Este é o estado aprendente que vimos realizando
como atitude fenomenológica permanente. Isto implica que o delineamento
de uma filosofia do educar polilógica é o resultado do meu ponto de inflexão
radical no caminho aprendente do filosofar como caminho de retorno à sabe-
34

doria do que simplesmente é o ser do ente em sua infinita gênese e transfor-


mação.

Afinal, uma filosofia do educar assim concebida não quer antecipar na-
da daquilo que possa vir a acontecer, daqui por diante, com o ser-pensar au-
tônomo e inventivo. Isto sobretudo por que o seu ethos fundamental é o sen-
timento de indignação pela condição da humanidade histórica aí instalada e
atuante, e o seu páthos é ainda a paixão pela completude do ser-sendo, em seu
acontecimento extático diante do infinito turbilhão caldérico do mundo feno-
menal. Assim, a fenomenocidade do nosso ser-no-mundo-com é aquilo mesmo
que sabemos ser a partir de nós mesmos, independente do mundo objetivo
que se perfila em nossas percepções comuns e ordinárias. Portanto, uma filo-
sofia do educar polilógica só pode acontecer no âmbito de um exercício filo-
sofante aprendente a aberto aos questionamentos radicais do próprio ser. As-
sim, qualquer que seja a idealização produzida pela razão humana acerca do
que significa ser-sendo não passará de pálida sombra do que só é por inteiro
no âmbito do seu próprio advento desvelante.

É isto o que queremos que seja esta filosofia do educar polilógica ligei-
ramente delineada: uma abertura aprendente lançada na infinita investigação
criadora de si mesmo. Isto é de espantar até mesmo os mais céticos interlocu-
tores, ainda mais espantará os que se sentirem convocados a este mergulho
radical nas absolutas e turvas fontes do conhecimento humano. Educar, en-
tão, é uma questão de raça e grima, sendo a grima a forja necessária para o sur-
gimento de realizações do próprio ser na incompletude do acontecimento in-
cessante da vida-sendo: um ato de metaconsciência crítica no acontecimento
transcendente de nosso ser de passagem. O trabalho, então se mostra longo e
árduo, não sendo larga a passagem que pode levar ao ego transcendental e à
saída do mesmo em si mesmo, sem que haja a perda de sua diferença ontoló-
gica originante. Eis, talvez algo digno ainda para poder merecer a tenção filo-
sófica dos que se buscam a si mesmos. Um convite ao pensar sempre aberto
ao inesperado e ao indizível. Entretanto, um pensar capaz de se indignar pela
perpetuação do estado humano de submissão e de bestialidade. Um pensar
que é também um saber-ser próprio e apropriado, pela desapropriação de si
mesmo e do mundo. Um pensar livre de donos e comandantes: absoluto de-
sinteresse pela vida dissociada.

Referências

HUSSERL, Edmund. Meditações Cartesianas. Introdução à Fenomenologia.


Tradução:António M. Magalhães. Porto-Portugal: RÉS, s/d.
35

3
EDUCAÇÃO: TECENDO SONHOS, HUMANI-
ZANDO O MUNDO — HOMENAGEANDO PAU-
LO FREIRE 3

Em primeiro lugar, agradeço o convite para participar desta mesa re-


donda por ocasião da VIII Jornada Pedagógica do SIMPRO-BA. O tema des-
ta mesa coincide com o da Jornada, que homenageia Paulo Freire. Portanto, a
tarefa desta mesa é dupla: configurar o tema geral, a partir de uma interpreta-
ção própria e apropriada, e homenagear Paulo Freire. Sem dúvida, não é fácil
fazer estas duas coisas ao mesmo tempo, mas é o que intencionamos, eu e o
professor Felippe Serpa, neste momento: tecer sonhos possíveis, no sentido da
humanização do mundo, e fazer ecoar a voz de um dos grandes educadores da
história humana.

De qualquer modo, o nosso foco é a educação, ou melhor, o aconteci-


mento do educar humano. E qual é a nossa perspectiva de compreensão do
fenômeno educar? Bem, gostaríamos de colocar esta questão para todos vo-
cês: o que pensam acerca do educar? Há um dado capital em tudo isso: somos
todos professores. Portanto, a pergunta dirige-se aos professores e professoras,
isto é, a todos nós profissionais da educação. Possuímos, por ventura, uma
concepção unitária e comum da educação e do educar?

O problema diz respeito as nossas pré-concepções de educação, isto é,


os modos como miramos o fenômeno. Afinal, somos educadores ou apenas
simples professores? Qual é a diferença entre ser professor e ser educador? Na
verdade, esta é uma distinção provocante: ela visa uma tomada de consciência
de nossa real condição existencial. Trata-se, assim, de um questionamento que
cada um deveria fazer de si mesmo, isto é, um perguntar-se seriamente: sou
professor ou sou educador? Qual é a diferença?! Bem, a diferença encontra-

3
Trata-se do tema da mesa-redonda incluída nas atividades da VIII Jornada Pedagógica do
SIMPRO-BA, em 20/09/2002.
36

se, como caso, na própria ação pedagógica desenvolvida por Paulo Freire. Se
soubermos lê-lo com atenção criativa, haveremos de ouvi-lo falar de uma con-
vocação à ad-miração como modo de aprendermos a ver com consciência, a
partir de nós mesmos:
Para o ponto de vista crítico que aqui defendemos, a operação de mirar im-
plica outra — a de ―ad-mirar‖. Ad-miramos e ao adentrar-nos no ad-mirado o mira-
mos de dentro e desde dentro, o que nos faz ver. (FREIRE, 2001, p. 43)

Na ingenuidade, que é uma forma ―desarmada‖ de enfrentamento com a


realidade, miramos apenas e, porque não ad-miramos, não podemos mirar o mirado
em sua intimidade, o que não nos leva a ver o que foi puramente mirado. (idem, p.
44)

Entre outras coisas, as palavras de Paulo Freire indicam para uma dife-
rença de atitude diante dos fenômenos que nos constituem. Trata-se de sair-
mos da atitude ingênua em que comumente nos inserimos e adentrarmos na
atitude crítica. É preciso não apenas mirar o sentido do educar, mas ad-mirar o
campo da mira em sua eclosão e recolhimento. Ou seja, é preciso que, além de
professores, possamos ser também educadores. É preciso, assim, que apren-
damos a ad-mirar o que se encontra na mira do nosso desejo: o educar. Portan-
to, não basta apenas mirar, como diz Freire, é preciso, antes de tudo, ad-mirar
o educar, isto é, saber-ser próprio e apropriado — partir sempre do acolhimento de
si mesmo, e em si mesmo permanecer além de si mesmo. O ad-mirar implica o
ser que nós mesmos podemos ser na clareira do evento humanidade. E porque
não sabemos ainda ad-mirar, apenas miramos o educar na perspectiva da pro-
fissão: tornamo-nos meros professores de conhecimentos adquiridos pela hu-
manidade ao longo de sua historicidade dominante. E a educação humana,
onde fica a educação humana? Ou melhor, o educar, onde fica ele? Somos
professores ou somos educadores? Ou ainda, somos professores- educadores?
Sabemos apenas mirar, ou sabemos já ad-mirar? Ou ainda, sabemos mirar-ad-
mirando?

O que cada um de nós diz a respeito? Sou professor ou sou educador?


Entretanto, qual é mesmo a diferença entre uma coisa e outra? Há, afinal, dife-
rença entre o professor e o educador? E vocês têm alguma dúvida em relação
a isto? Quem haveria de negar a Paulo Freire o título de educador da humani-
dade do homem? E nós, alcançamos a altitude de um Paulo Freire em nossas
práticas pedagógicas hodiernas? A resposta, então, pode ser muito simples: a
maioria de nós professa o saber constituído em cada uma das áreas do conhe-
cimento especializado. Entretanto, quantos praticam a investigação radical de
si mesmo, ao modo, também, de um Paulo Freire? Este é o dado que pode, de
alguma maneira, fazer aparecer um pouco da consciência histórica mundial em
37

nossas tão ocupadas vidas, vidas vividas para o trabalho profissional, segundo
as imperiais e incontestáveis leis do mercado.
Vejam bem, estou aqui fazendo uma provocação pensante, e, em ho-
menagem a Paulo Freire, gostaria de inquietar vossos corações com questões
cruciais que dizem respeito à vida planetária, e não apenas nosso pequeno
mundico familiar. De modo bem radical, não poderemos sair da condição de
subalternidade em que nos encontramos historicamente, se não soubermos ad-
mirar a conjuntura histórica do nosso tempo contemporâneo. Isto requer estu-
do e pesquisa. Não necessariamente estudo e pesquisa nos moldes oficiais insti-
tuídos de cientificidade e seriedade epistemológica, mas necessariamente com-
preendendo por estudo e pesquisa aquilo que tira um povo, isto é, tira seus
indivíduos, da oclusão de sua própria de-cisão soberana de ser-livre, construin-
do futuro no cuidado com a vida-sendo, concebendo a realização plena da
humanidade do humano no tempo instante da vida ad-mirante.

Infelizmente, ou talvez felizmente, a nossa liberdade é apenas uma pos-


sibilidade aprendente. Ninguém nasce livre, mas se faz livre em seu ser. Consti-
tucionalmente falando, é livre todo o cidadão que cumprir a lei do seu estado.
Espiritualmente falando, é livre todo aquele que se fizer livre de si mesmo, em
si mesmo. E porque não nascemos livres, mas para nos tornarmos livres preci-
samos exercer a liberdade, de algum modo o ser livre não é da ordem dos regu-
lares conhecimentos adquiridos em bancos escolares. O que não quer dizer que
a escola não seja importante, e sim que a educação humana se dá na vida, e as
instituições são artifícios criados culturalmente pelos homens para o exercício
efetivo da vida associada. É nesta perspectiva que ser professor e ser educador
são coisas distintas, e que ser professor e ser educador podem tornar-se o mes-
mo, isto é, coincidir na mesma pessoa sem polarizações funcionais.

De modo geral, porque somos profissionais da educação e não apren-


demos a pensar por conta própria, ficamos a reboque de actantes coletivos
hegemônicos e centralizadores. Não aprendemos o suficiente a questionar as
condições de existência da nossa humanidade próxima, e nos contentamos em
repetir o que já está estabelecido. De certo modo, encontramo-nos abandona-
dos à própria sorte de um acaso pleno de cartas marcadas e vícios de subordi-
nação. E porque nada fazemos para mudar este estado de coisas, nossa sorte
vaga como folha ao vento, dominada por desconhecidas forças místicas e po-
deres invisíveis. Do alto de sua humildade, seguramente Paulo Freire gostaria
de ver-nos mais altivos e despertos, menos acomodados e mais criadores de
ser. O fato é que a sua pedagogia visa o educar humano para a emancipação
plena e não para a continuidade das mazelas e desgraças sociais tão arrasadoras.
38

A rigor, a proposta de Freire requer revoluções do espírito, revoluções


do ser-no-mundo-com-outros. E revoluções, nesta perspectiva, não separam
teoria de práxis, e nem aceitam o mero acúmulo de conhecimento como sinal
de alguma coisa grande. As revoluções necessárias são revoluções de atitude
ética diante do acontecimento vida. O grande mestre desta história não é o
homem com seu prepotente intelecto plenamente racional, mas a vida que ele
carrega em si mesmo, para além de si mesmo. Definitivamente, não é o ser
humano que possui a vida, mas é a vida que possui o ser humano. Isto muda
muita coisa para a compreensão humana de suas condições, limites e possibili-
dades de ser-plenamente, fazendo-se plenamente — vivendo plenamente. E
esta é uma dádiva do acontecer do sentido fora de qualquer prescrição moral
ou limite institucional tradicional, secular.

De alguma forma, Paulo Freire toca a questão da nossa alienação diante


dos acontecimentos que nos cercam. O modo de mira do nosso educar não
alcança o ad-mirar criador em sua nascente sempre instante. Dormimos, assim,
o sono dos injustos enquanto não aprendemos a ser-sendo de forma mais radi-
cal e genuína. Vivemos esquecidos do nosso próprio dom de ser criando-se
ultrapassagem.

Nossas pedagogias estão cheias de boas intenções. Entretanto, em ge-


ral, são pedagogias da acomodação e do aplicado treinamento de habilidades e
capacidades a serviço de um mundo dominado pela tecnociência. O exercício
profissional dos professores é regido por normas e leis determinadas pelo Es-
tado. Mas, quem é o Estado? Ou melhor, quem está no poder no Estado? De
modo exaltado, poder-se-á até responder: o Estado somos nós. Bem, mas que
―nós‖ é este? Onde encontrar o fundamento e a efetividade deste ―nós‖? Cla-
ro, poder-se-á responder: em nós mesmos encontraremos o fundamento deste
―nós‖. Entretanto, como é isto, em nós mesmos funda-se o Estado? É isto
uma efetividade ou é apenas efetividade para alguns poucos?

Bem, todos aqui fazem parte de um movimento sindical genuíno, sa-


bem muito bem o significado e o peso da palavra cidadania. É claro, isto faz
parte de um movimento de esclarecimento coletivo, fruto de lutas históricas
longas e, na maioria das vezes, violentas. Sem dúvida, o Estado funciona atra-
vés de suas representações legítimas. O Estado, assim, tem sempre a forma dos
que o governam, segundo os interesses dos grupos dominantes. O Estado mu-
da com a mudança de seus campos de interesse, isto é, com a mudança de seus
atores e actantes. Então, o ―nós‖ é sempre algo determinado no Estado: ele
sempre diz respeito aos grupos associados dominantes. Ora, isto quer dizer que
o Estado é um ―nós‖ apenas para os que se encontram legitimamente repre-
39

sentados em sua constituição. Para cada um de nós aqui presentes, sem dúvida
que o Estado é um ―nós‖: somos cidadãos e cidadãs conscientes de direitos e
deveres — exercemos nossa cidadania.

Não ponho em dúvida nossa organização sindical, nossa participação


na luta não-armada das políticas públicas, visando-se um bem comum justo e
humanitário. Ponho em dúvida a suficiência e eficiência de nossas ações políti-
cas organizadas, no sentido de uma educação básica mais humana e menos
imediatista. No campo da educação isto é uma evidência. Não é preciso recor-
rer a nenhum grande pensador da educação para saber do descompasso exis-
tente entre teorias educacionais emancipatórias e práticas educacionais engaja-
das na transformação humana livremente determinada e compartilhada.

Tomemos como objeto de análise o sistema da educação formal em


nosso país. Não é preciso falar do óbvio. Apesar dos aparentes avanços, o sis-
tema privilegia, ainda, a pedagogia de conteúdos, segundo os moldes de uma
excelência competitiva e excludente. No fundo, responde-se ainda ao regime
de dominação vigente, e privilegia-se quantitativamente uma minoria que é
preparada para comandar, nas diversas áreas do conhecimento, os rumos futu-
ros da história. O nosso país ainda não é democrático, apesar de seu regime
político ser democrático. E só será democrático no momento em que realizar
uma socialização que cumpra rigorosamente com o Estatuto dos Direitos e
Deveres Humanos, de uma forma uni-plural, isto é, a partir de um sentido co-
mum de humanidade e de realizações singulares de vida associada. Isto abre-
nos para tensões existenciais antes insuspeitadas, porque acolhe a abertura hu-
mana para sua emancipação planetária. Um projeto-processo, sem dúvida, utó-
pico.

Esse ponto alcançado de uma possível consciência planetária, marcada


pelo acontecimento das diferenças, das diversidades-múltiplas e do engajamen-
to com a vida-sendo, demarca novos horizontes para a educação neste milê-
nio. Entretanto, pelo fato de já existir esta compreensão de novos horizontes, e
isto já ser admitido como diretrizes mundiais da educação contemporânea, não
quer dizer que a coisa já se encontra dada. Pelo contrário, o único dado é o
acontecimento da vida em sua premência de mais-vida. Isto faz a diferença. O
fato, entretanto, é que o nosso sistema formal de ensino ainda não alcançou
este horizonte pedagógico que compreende a educação como aprender a ser.

Ora, aprender a ser não é o mesmo que mera transmissão de conhecimentos


bancários. Só se aprende a ser, sendo. Isto é uma evidência. Entretanto, como
realizar o aprender a ser por meio de práticas tão homogeneizantes, para as quais
40

o sujeito da aprendizagem deve ser moldado de fora para dentro e adequar-se


ao já estabelecido? Este movimento de subordinação pedagógica é, na raiz,
contrário à concepção do educar como aprender a ser-sendo. Pode-se até dizer:
tanto faz uma coisa como outra, isto é, de qualquer modo se aprende a ser.
Entretanto, quando hoje se fala e se elaboram diretrizes da educação do tercei-
ro milênio como aprendizado do ser, isto não significa um ser qualquer dotado de
vontade maquínica, e sim significa a abertura humana para a compreensão de
sua condição existencial como ente-espécie, e não apenas como indivíduos ou
grupos de indivíduos encerrados em seus mundicos particulares.

Para que a expressão aprender a ser se torne algo vivo e vital, é preciso
considerar as coisas para além do ego. A impessoalidade deste aprender é a
chave de sua perene singularidade. O acontecimento da vida não precisa de
explicações, e nem é melhor entendido por meio destas. O acontecimento da
vida é da ordem do aprender a ser. Ora, o que isto significa? Significa, entre ou-
tras coisas, na inspiração de Paulo Freire, um cuidado radical com o aconteci-
mento da vida em sua florescência e fenecência infindáveis. O aprender a ser,
assim, não repropõe egoísmos condicionados, mas, pelo contrário, convoca
para uma revolução ontológica no âmbito do ser-coletivo que somos como
ente-espécie humanidade — ente ontologicamente livre, porém onticamente
determinado pela historicidade do sensível: âmbito do vivo.

Assim, aprender a ser é o mesmo que aprender a viver-junto, aprender a fazer,


aprender a pensar, aprender a ver, aprender a falar, aprender a escrever, aprender a aprender.
Isto aponta para uma revolução de comportamento societário, revolução ética.
A vida em primeiro lugar: educar com a vida. O cuidado em primeiro lugar: edu-
car com cuidado — cuidar do que é vivo e único, pois nada nunca se repete,
mas se multiplica como unidade geradora de unidades geradoras. Aprender a ser,
deste modo, ultrapassa a concepção escolar de educação, porque, antes de tu-
do, diz respeito à atitude de cuidado de si e dos outros, independente dos mei-
os de tal realização.

Diante de uma tamanha abertura para a acolhida da diversidade huma-


na, nenhum modelo hegemônico pode figurar como a lei canônica do mundo da
ação e do aprendizado de ser. Pelo contrário, caberia agora educar e não mais pro-
fessar conhecimentos indiscutíveis. Isto muda toda a didática e muda toda a
pedagogia, muda também toda a filosofia da educação, e a psicologia da educa-
ção e a antropologia da educação e a história da educação. Isto muda tudo,
rigorosamente falando. Todos os saberes e formas de conhecimento são sabe-
res e formas de conhecimento humano. Todos eles dizem respeito ao ser que
somos, enquanto somos humanos.
41

A conclamação, então, para uma educação do aprender a ser, diz respeito


ao âmbito da vida-instante, isto é, responde à necessidade do ser que cada um
é, no sentido do alcance de si mesmo em seu próprio ser-no-mundo-com. Ora,
isto não prescreve nenhuma norma de conduta específica, mas indica para a
atitude fundamental da liberdade humana: o ser cuidando-se no mundo-com — ser de
relação em relação com o mundo do outro no mundo. Aprender a ser, então, significa,
aprender a cuidar de si no mundo-com — aprender a cuidar da vida na vida, com a vida, em
vida.

Olhando bem, nossa pedagogia anda de mal a pior. Nossa didática é a-


inda generalista e conteudista. Como afirma Luckesi, nosso sistema de avalia-
ção escolar, não sabe ainda avaliar, e sim examinar. Aprovamos nossos alunos
por meio de exames de conhecimentos normativos, e não através de avaliações
efetivas, onde estaria em jogo uma outra relação aprendente, um outro ethos: o
cuidar do outro como a si mesmo, isto é, o respeito incondicional ao ser-livre
do outro, pelo respeito incondicional ao próprio ser-livre. Isto diz tudo. Nossa
pedagogia não se ocupa da vida humana em seu processo aprendente instante,
mas encontra-se a serviço da tecnociência planetária dominante, no sentido do
descuidado com a vida-instante: a alienação planetária.

Talvez seja desagradável ouvir isto. Mas, o que diria Paulo Freire em
uma ocasião semelhante? Por ventura falaria ele de consolações metafísicas, ou
convocaria para ações revolucionárias? E como é possível ser revolucionário,
no sentido freireano, se apenas poucos são os senhores e muitos os escravos?
Em homenagem a Paulo Freire, afirmo aqui uma pedagogia da vida, e não uma
simples pedagogia de bancos escolares. Neste sentido, a escola deve ad-mirar a
vida para realizar sua transformação. Entretanto, isto é, sem dúvida, uma uto-
pia, ou melhor uma heterotopia. É claro, portanto, que é algo que ainda não é,
mas pode tornar-se.

O desafio, então, reside no como nos tornarmos aprendentes do ser-livre?


Aqui o tornar-se é um ser-sendo, não é só projeto, mas é processo: acontecimento
próprio e apropriado da vida. E porque o tornar-se é verbo, não se trata de
modelagem segundo um código pré-estabelecido, e sim de uma ação de co-
pertencimento ao instante vívido. É assim que, não nos tornamos nem no amanhã
nem no ontem, pois o tornar-se é sempre o que é duradouro no presente vivo:
o tornar-se é o mesmo que fazer acontecer a ad-miração do que se tem em mira:
co-pertencimento na humanização do mundo. Portanto, não compreendemos
o tornar-se como um dever-ser ideal, e sim como realização plena do próprio ser
no acontecimento de cada instante humano. Não se trata, portanto, de professar
42

nenhuma doutrina última acerca do sentido do ser-no-mundo-com, e sim de uma


convocação para que aprendamos a pensar o ser da educação a partir de nós
mesmos, isto é, a partir das condições histórico-político-sociais em que existi-
mos concretamente.

Paulo Freire, em sua Pedagogia do oprimido (1987), fala da necessidade do


diálogo para a formação da liberdade autêntica dos seres humanos, isto é, fala
da dialogicidade da educação como Prática da Liberdade. Para Freire, o diálogo como
fenômeno humano tem seu ser na palavra. Mas, se a palavra não é o movimento
de uma práxis, ela é apenas palavra oca, palavra impotente. Como diz:

Não há palavra verdadeira que não seja práxis. Daí que dizer a palavra ver-
dadeira seja transformar o mundo.
A palavra inautêntica, por outro lado, com que não se pode transformar a
realidade, resulta da dicotomia que se estabelece entre seus elementos constituintes.
Assim é que, esgotada a palavra de sua dimensão de ação, sacrificada, automaticamen-
te, a reflexão também se transforma em palavreria, verbalismo, blábláblá. Por tudo is-
so, alienada e alienante. É uma palavra oca, da qual não se pode esperar a denúncia do
mundo, pois não há denúncia verdadeira sem compromisso de transformação, nem
este sem ação. (FREIRE, 1987, p. 77-78)

Nas palavras de Freire, a palavra verdadeira é dialógica e transformado-


ra, e este seu modo de ser é de todos e não apenas de alguns poucos. Neste
sentido, ―dizer a palavra não é privilégio de alguns homens, mas direito de to-
dos os homens‖ (ibid. p.78). E é justo por isto que ninguém ―pode dizer a
palavra verdadeira sozinho, ou dize-la para os outros, num ato de prescrição,
com o qual rouba a palavra aos demais‖.

Acolhendo essas palavras, o diálogo é uma exigência existencial. Não se trata


de imposição, mas de condição para a Prática da Liberdade. A Liberdade é
livre, ela não tem proprietários e senhores. A Liberdade é Diálogo entre iguais:
―Conquista do mundo para a libertação dos homens‖ (FREIRE, 1987, p. 79).

Bem, talvez agora fique mais claro porque, no início, diferenciamos o


ser professor do ser educador. Somos, afinal, professores ou educadores, ou
ainda, professores-educadores? Penso que não se trata de julgarmos ninguém,
mas de reconhecermos as condições de existência concreta em que estamos.
Mudar este estado de coisas requer muito desejo e muito trabalho. Isto não
pode vir a acontecer por um simples decreto legal. Pelo contrário, é o decreto
legal que deveria encontrar-se a serviço desde acontecimento. Portanto, não se
trata de iludir com promessas esperançosas de um futuro melhor, mas de reali-
zá-lo no agora de nossas vidas. Não se trata, portanto, de uma utopia compre-
endida como lugar imaginário ideal, e sim utopia como o lugar em que o humano
43

realiza plenamente a doação libertadora de seu próprio ser-sendo: a ad-


mirância do instante sem ocaso.

Decidir pela vida: eis o nosso mais premente desafio pedagógico! En-
tretanto, um tal desafio não pode ser adiado em sua adveniência. Não se trata
de vivermos para um futuro ideal, e sim, justamente, de aprendermos a sair
desta ilusão coletiva de um tempo além da vida-instante. E se levarmos a sério
a diferença entre ser professor ser educador, isto não quer dizer deixar de ser
professor, o que, no nosso caso, implicaria em estado de desemprego.

Não se trata, portanto, de uma pregação moralista sobre o que deve ser
a educação, e sim de uma convocação para a efetivação de um compromisso
histórico com o todo conjuntural da humanidade do humano. Deste modo, é
claro que a escola precisa ser reestruturada em sua função político-social, e que
um tal acontecimento só poderá ocorrer a partir de organizações políticas legí-
timas e legais, e isto a longuíssimo prazo. Neste sentido, não cabe apontar os
defeitos dos outros, e sim realizar uma saída gradual do atual modelo pedagó-
gico vigente. É isto o que permite vislumbrar uma revolução cultural fundada
no cuidado incondicional à vida em sua totalidade conjuntural, incluindo o ser
humano e sua humanidade histórica.

Vejam bem: o tempo todo estou provocando para uma tomada de


consciência histórica planetária, onde o educar é acolhido como aprender a ser-
sendo. Ouso afirmar que isto encontra ressonância com o legado pedagógico
deixado por Paulo Freire. Ou melhor, ouso afirmar que a pedagogia de Freire é
uma Pedagogia da Vida Emancipada, e não uma simples metodologia escolar
voltada para a aquisição de habilidades e competências a serviço de um mundo
do trabalho cada vez mais seletivo e excludente. Nisto Paulo Freire se afina
com as possibilidades abertas pelas filosofias de Hegel e Marx. E isto, sem
dúvida, a partir de uma concepção compreensiva do tempo histórico como
processo aberto ao querer-poder, e ao querer-saber do homem em suas possi-
bilidades aprendentes livres.

E porque isto não se apresenta como um sistema fechado de verdades


dadas e sim com uma atitude aprendente permanente diante do acontecimento
da própria vida, não se trata de seguir o método pedagógico de Paulo Freire, o
que seria uma traição ao mesmo, mas de buscar em sua obra alimento vívido
na transformação do nosso modo de ser professor. E isto, de tal forma que
também na escola formal possa ser a vida-livre o próprio campo da sua função
social de formação humana, pela criação de novas possibilidades de ser livre. E
porque, usando palavras de Freire, o diálogo é ―encontro de homens que pro-
44

nunciam o mundo, não deve ser doação do pronunciar de uns a outros‖ (ibid.,
p.78). Neste sentido, será sempre um ato de criação e não uma mera repetição
do que já passou.

Assim, a minha convocação/provocação é a de que possamos parar pa-


ra pensar intensamente as nossas práticas docentes cotidianas, e possamos agir
pelo lado da transformação radical, isto é, possamos tornar-nos educadores e não
desautorizados professores que insistem na liturgia da sala de aula, como reifica-
ção subordinada e subordinante do ato de ser não livremente aberto ao ser
aberto do aprender a ser-sendo. Dizendo isto, passo a palavra ao amigo Felippe
Serpa para que ele desvele para nós a voz da sua indignação criadora.

Referências Bibliográficas
FREIRE, Paulo. Ação cultural para a liberdade: e outros escritos. 9ª ed. São
Paulo: Paz e Terra, 2001. (O Mundo, Hoje, v.10)

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1987.
45

4
A CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO CIEN-
TÍFICO EM QUESTÃO: CONSIDERAÇÕES PO-
LILÓGICAS SOBRE A AMBIGÜIDADE DA CIÊN-
CIA4

Começo esta fala buscando imagens apropriadas para tratar do tema


sugerido, no âmbito deste 3º CINFORM. Tratando-se de um painel sobre o
―Conhecimento Científico‖, escolhi quatro imagens para descrever a Ciência
Contemporânea: a Imperial, a Ideal, a Virtual e a Trágica. Por meio destas
imagens procurarei apresentar questões pertinentes a uma crítica radical do
conhecimento científico, sem perder de vista a inevitável provisoriedade de
todo discurso que se apresente com as credenciais de crítico. Percorrendo estas
quatro imagens, procurarei, portanto, apresentar algumas tensões de um ques-
tionamento epistemológico rigoroso, nunca, porém, exato, visando com isto
provocar uma possibilidade de leitura polilógica do constructo ―conhecimento
científico‖ em sua ambigüidade incorrigível, neste ambiente de ouvintes e fa-
lantes.

1. A imagem Imperial da Ciência como senso comum

Vivemos, sem dúvida, sob a égide da ciência em todos os recantos do


mundo presente. O mundo tem se tornado cada vez mais o mundo do conhe-

4Comunicação apresentada no III CINFORM – LABORATÓRIO DE CIÊNCIA DA INFOR-


MAÇÃO, ÁREA TEMÁTICA: INFORMAÇÃO E CONHECIMENTO NO III MILÊNIO,
SUBTEMA: CONSTRUINDO O CONHECIMENTO, PAINEL: CONHECIMENTO
CIENTÍFICO; participantes: Felippe Serpa (UFBA) – Coordenador; Eliany Alvarenga (UFPE) –
Relatora; Dante Galeffi (UFBA) – Palestrante; Wilson Gomes (UFBA) – Palestrante; Salvador-
2001.
46

cimento científico. Em toda parte há ciência. Toda a nossa vida, afinal, depen-
de cada vez mais de ciência. Esta é, ao meu ver, a imagem imperial da ciência:
em toda parte ela impera soberana e implacável. A ciência é tão imperativa que
já se transformou em senso comum. Todos sabem que a nossa é a era da tec-
nociência. Esta afirmação tornou-se domínio público, um percepto coletivo
global. Em toda parte, em todo canto, a ciência é a palavra de ordem, o motivo
dominante da era da globalização imperativa. Em um sentido muito estrito, a
ciência confunde-se hoje com o fenômeno arrasador da
globalização planetária. Não há como separar uma coisa da outra. E é justa-
mente aí que mora o perigo. A questão é que o tempo virtual do fenômeno da
globalização se confunde, agora, com a consciência metafísica da ciência con-
temporânea. O acontecimento de uma grande rede mundial midiatizada parece
ser hoje a própria meta-consciência da imperativa tecnociência.

O mundo virtual que se abre através dos novos meios de informação e


comunicação funda-se no conhecimento tecnocientífico, e isto de tal modo
que sem este conhecimento não se pode entrar na sua rede voraz como produ-
tor de sentido, mas apenas como ambiência das forças hegemônicas constituídas,
ou melhor, como mera coisa a ser manipulada na correnteza das incertezas
quânticas e nas boas intenções do empreendimento sempre politicamente cor-
reto.

Inevitavelmente, os detentores do conhecimento tecnocientífico con-


tribuem para uma modulação de época onde o valor do indivíduo ou das soci-
edades organizadas é medido pelo seu conhecimento efetivo em relação aos
novos meios computacionais. Isto implica em novas configurações de forças,
o que gera novos campos de poder e de dominação tecnocientífica. Definiti-
vamente, não é mais o Estado que realiza em si a ideia de ciência hegemônica,
através dos seus mecanismos burocráticos e de sues aparatos legais. Pelo con-
trário, hoje a figura do Estado corre em desespero atrás da imperial e empresa-
rial iniciativa privada.

Definitivamente o privado tornou-se o modelo de conduta de todo Es-


tado seriamente antenado com a nova ordem mundial neoliberal. Qualquer
Estado para ser levado a sério precisa empresariar-se, isto é, tornar-se uma
empresa eficiente e lucrativa. Os ideais socialistas e de justiça humanitária pre-
gados pelas ideologias dos Estados democráticos ficam adiados em virtude da
premência das novas redes de conhecimento empresarialmente articulados.
Tudo é, então, sacrificado em nome de uma nova hegemonia do conhecimento
tecnocientífico. É em nome da nova ciência que a onda neoliberar avassaladora
justifica a sua dominação planetária.
47

O argumento é absolutamente dogmático, porque se pauta na pura e


simples medição de resultados manipulados convenientemente, segundo fluxos
que mais lembram o risoma do que a árvore. A rede risomática, entretanto,
dos novos acontecimentos da razão tecnocientífica, fica ainda submetida ao
antigo processo hierarquizante da árvore do conhecimento. Mais do que nun-
ca se procede de modo geométrico, apesar de tudo se apresentar em redes ri-
somáticas. Uma certa geometria dos novos territórios do conhecimento se
sobrepõe ao evento risomaticamente estruturado. É a força de regulação da
nova ordem tecnocientífica. Curiosamente, esta nova ordem adota o princípio
da exclusão como sua própria lei. Excluindo diferenças possíveis fica sempre
mais fácil dominar um certo território simbólico marcado por multiplicidades.
Nesta medida, está nova ordem age de forma cega e tradicional, muito mais do
que se imagina. O processo regulador é hierarquizante e reducionista, preferen-
cialmente quantificador. Tudo acaba ganhando extensão e regularidade, ou
melhor, sem extensão e regularidade não há como quantificar a eficácia de um
constructo tecnocientífico potencialmente hegemônico, portanto, verdadeiro.

A geometria reducionista da nova ordem mundial tecnocientífica conti-


nua essencialmente euclidiana. Apesar da risomação das teias produtoras de
conhecimento científico, há um jogo de triangulações entre os regimes de for-
ças produtivas onde prevalece a hierarquia piramidal. É a velha forma sobre-
pondo-se ao novo campo dos acontecimentos instantes. No fundo, o processo
de autojustificação da racionalidade tecnocientífico continua sendo uma super-
estrutura baseada em uma centralidade absoluta e estranhamente metafísica.
Sua forma continua sendo piramidal, apesar dos eu discurso mostrar-se risomá-
tico. A tendência absolutista do saber-fazer tecnocientífico contemporâneo se
arma e é dominada pela ordem político-empresarial reinante.

A ciência, neste sentido, está a serviço do capital politicamente articula-


do: o seu avanço ou o seu retrocesso só dependem dos incentivos provenientes
do capital politicamente organizado. A trama desta saga é deveras complexa e
flutuante. É que a forma risomática determina as oscilações do constructo
hegemônico tecnocientífico na linha do tempo, mas a forma piramidalmente
hierarquizante estabelece a regulação final do processo. Em nome da regulari-
dade e de um certo equilíbrio estático do sistema dominante, a tecnociência é
mantida por uma ordem moral extremamente refratária ao polilogismo propa-
lado pelos efetivos pensadores da ciência: os construtores de novos conceitos e
novos instrumentos metodológicos. É que a propalada independência da ciên-
cia em relação à ordem política e moral de um meio social hegemônico é mais
complicada do que parece ser.
48

No fundo o que conta é o poder de barganha e a capacidade de persua-


são de grupos organizados na produção do conhecimento tecnocientífico. Mas
o poder hegemônico continua sendo determinado na esfera político-
empresarial. E este é um poder estranhamente invisível, como se existisse uma
entidade superior (Deus) por trás do caráter regulador das forças produtivas,
uma espécie de voluntarismo que acredita que este Deus só pode estar do lado
dos que estão no comando do mundo. Entretanto, quem são os comandantes
do mundo? Este tipo de identificação é impossível na atual ordem mundial,
porque todos os seus partícipes são apenas funcionários de um voluntarismo
soberano e arrasador, onde impera um maniqueísmo do tipo: a luta do Bem
contra o Mal. O actante coletivo que prevalece nesta nova ordem é, portanto,
imperial e reducionista, hegemônico e dissimulador. Nesta luta do Bem contra
o Mal, o próprio Mal é sempre o outro lado da face hegemônica da moeda.
Quem não se afina com a regulação estabelecida pelas forças hegemônicas, está
contra a ordem metafísica do mundo. Afinal, a velha máxima do direito do
vencedor regular a vida dos vencidos continua vigorando. Só o vencedor tem
direito à liberdade autojustificada. Aos vencidos resta sempre a esperança de
um desenvolvimento controlado pelos novos donatários imperiais, desde que
se submetam à regulação imposta pelos mesmos e mostrem servidão delibera-
da.

Tudo isso para dizer como hoje o conhecimento científico é o senso


comum da nova ordem mundial estabelecida. As novas maquinações cogniti-
vas dispõem o horizonte humano em ilusórias aberturas humanitárias, quando
o que prevalece é a mais cruel rede de manipulações e regulações que atentam
contra o princípio da vida natural, no sentido de uma meta-consciência ecoló-
gica planetária em favor da biodiversidade e da etnodiversidade. Assim, a di-
mensão de cuidado que caracteriza esta meta-consciência planetária é vista pela
hegemonia tecnocientífica vigente como um verdadeiro empecilho para o a-
vanço de sua rede de dominação e controle regular. É nesta medida que o
conhecimento científico se mostra ambíguo e cego em sua voracidade imperial,
a partir do momento em que serve de horizonte ontológico hegemônico para a
dominação planetária de cunho político-empresarial, onde todas as possibilida-
des parecem igualmente contempladas, mas onde o que prevalece é uma forma
de seleção cruel que impede o autodesenvolvimento dos povos e nações histo-
ricamente alienados deste processo de produção dos meios técnicos e intelec-
tuais planetariamente dominantes.

A cegueira dessa forma hegemônica da tecnociência dominante é mes-


mo preocupante. Sobretudo porque já é senso comum afirmar a consumação
49

de sua vigência planetária. É preocupante, portanto, na medida em que nos


deixamos, em geral, iludir pela aparente positividade desta forma de ser impe-
rante. Neste aspecto, concordo com Heidegger quando assinala para o caráter
de arrazoamento (Ge-Stell) da nossa atual era tecnológica. Neste sentido, a sim-
ples constatação de tal acontecimento nos tem tornado, em geral, impotentes
diante dos desígnios do mundo para o qual o sentido do ser tornou-se o pró-
prio êxito da dominação tecnocientífica planetária. É isto o que compreendo
como senso comum nesta imagem onde a ciência se mostra imperial, dominan-
te, hegemônica e hierarquizante.

E pelo fato de ser algo que não se discute, este modo de conceber a ci-
ência pertence hoje ao domínio comum, requisitando uma atitude crítica para
ser devidamente contestado e desmascarado em seus efeitos impositivos, coisa
que sempre dependerá de uma nova formação para a ciência que saiba elevar a
qualidade do espírito humano livre e empreendedor, a partir de um ordena-
mento ontológico abissalmente novo, totalmente outro. E isto nunca poderá
ocorrer se não for devidamente construído e cultivado, a partir de ambientes
de pesquisa e convivência que não se submetam à ordem imperativa da acefalia
crônica dos discursos hoje instituídos de validade e validação, de autoridade e
autorização, de mais qualificado e menos qualificado etc., segundo regras fixa-
das por comunidades científicas imperiais e nada cordiais e integradoras.

Para finalizar esta breve descrição da imagem imperial da ciência, forjei


uma metáfora que me parece condizente com o fio condutor até aqui desfiado.
Trata-se da metáfora do Jogo de Xadrez: o mundo da tecnociência dominante
como jogo hierarquizante e polarizado. De fato, o tabuleiro de xadrez é divi-
dido em 64 quadrados idênticos, metade claros e metade escuros (preferenci-
almente pretos e brancos). O jogo é sempre jogado a dois. Cada jogador dis-
põe de 16 figuras hierarquicamente especializadas, cada uma das quais com
uma específica competência de ação, dentro das estritas e indiscutíveis regras
do jogo, todas subordinadas a um único princípio, simbolizadas pelo poder
real. O poder unitário, entretanto, é sempre dual. O rei tem uma rainha que
realiza todo o seu poder de mobilidade, recolhendo em si todas as possibilida-
des dispostas de ação. Entretanto, o rei possui uma mobilidade mínima. De
fato, o rei é o símbolo da inteligência do jogo, isto é, do poder de conhecimen-
to e estratégia do jogador. Afinal, ganha o jogo quem eliminar o rei do outro.

Trata-se, portanto, de um jogo de ganhar-perder: um dos jogadores


sempre vence a contenda. Claro, esta descrição parece limitar em demasia a
ideia do jogo de forças estruturado a partir da hegemonia tecnocientífica plane-
tária, mas se presta para chamar a atenção para o fato de que o senso comum
50

da ciência adota esta mesma forma mental do jogo e da hierarquização, onde


tudo se reduz ou se subordina à figura de um governante ou de um deus sim-
bolicamente constituídos e articulados. Tudo isto para dizer que o que predo-
mina em meio à grande diversidade do mundo tecnocientífico é ainda a velha
forma dual hierarquizadora e hegemônica, mesmo quando se pratique um dis-
curso que prega a diversidade e o respeito às inúmeras possibilidades do ser
tecnicamente determinado, ou mesmo se admita a forma risomática do aconte-
cimento do sentido filosoficamente recortado.

A ciência, em sua imagem imperial, confunde-se com o senso comum


da dominação planetária. Nesta perspectiva, o saber tecnocientífico se torna
conhecimento a serviço da hierarquia régia da política-empresarial globalizante,
onde ao cientista não cabe mais a tarefa de pensar com independência e altivez
a totalidade conjuntural do mundo instante, cabendo-lhe, entretanto a função
especializada de conhecimento de certos domínios maquinalmente construídos
e mantidos. Enfim, diante desta imagem imperial da ciência, o bom cientista
será justamente aquele capaz de executar funções altamente especializadas,
porque, como uma máquina algorítmica, foi programado para atender ao
campo de ação de uma determinada competência técnica, e não para pensar ou
contestar a ordem estabelecida, ou mesmo pensar as possibilidades de uma
nova ordem moral planetária. Claro, a vida privada deste trabalhador intelectual
fica garantida em seus múltiplos direitos de posse, poder e prazer, e isto desde
que se comporte como uma competente máquina humana altamente especiali-
zada. A lei deste senso comum que é a imagem imperial da ciência pode ser
expressa na seguinte frase: competir para sobressair, mas nunca contestar a
ordem régia estabelecida.

2. A imagem Ideal da Ciência como discurso acadêmico

Propositalmente, a partir de agora vou diminuir a intensidade descritiva


das outras três imagens da ciência, e isto para poder cumprir o percurso pro-
metido no início, dentro do tempo que me resta. Desde o início elegi como fio
condutor da minha fala um percurso discursivo essencialmente problematiza-
dor. No fundo trato a questão da ciência e do conhecimento científico em uma
perspectiva filosófica, entendendo por filosofia justamente uma atitude de in-
vestigação do acontecimento do sentido-significado, atitude aberta ao instante
e plasticamente indeterminada. Aliás, talvez esta seja a única via, no sentido
estrito da atitude investigativa radical, para a realização de uma crítica do co-
nhecimento construído historicamente, pois suspende toda e qualquer crença
ingênua ou dogmática relativa ao sentido do ser-no-mundo-com, isto é, sus-
pende os regimes habituários de suas valências ostensivas e imperiais, sejam
51

estas ontológicas ou epistemológicas. Neste sentido, o discurso filosófico se


articula como modulador de conceitos ideais. E tais conceitos são axiologica-
mente autônomos e autojustificados, apesar da sua inevitável interdependência
em relação à ordem dos acontecimentos efetivos.

O dado é que a filosofia não preciso requisitar autorização do princí-


pio hegemônico régio para poder plasmar as suas grandezas ideais, apesar da
raridade de uma tamanha façanha propositiva. E porque é rara, a atitude filo-
sófica de absoluta radicalidade diante dos acontecimentos do sentido-
significado é o que menos se vê na imagem Ideal da ciência. Pelo contrário, a
idealidade discursiva da ciências, das várias ciências teoréticas e práticas, vive
submetida a processos extremamente imperiais, o que de per si mostra-se co-
mo contra-senso filosófico. O fato é que a abrangência ontognosiológica de
uma crítica radical de todo conhecimento possível passa ao largo da maioria
dos ambientes acadêmicos instituídos e regulares. Até mesmo na específica
área de formação filosófica o que se vê é a reificação de sistemas já autorizados
de pensamento crítico, o que torna o atual filósofo de profissão um sofisticado
arqueólogo das obras de pensamento produzidas no passado. Nesta margem
de produção ideal, poucos escapam desta tendência hegemônica do especialista
autorizado.

Mudando o foco da imagem Ideal da Ciência da produção crítica, de


cunho estritamente filosófico, para a produção de competências epistêmicas
comprovadas, o que vemos é um amplo espectro de possibilidades. De qual-
quer modo, todo campo epistêmico de formação para uma determinada área
do conhecimento possui o seu próprio viço ideacional, isto é, produz o seu
próprio discurso articulado idealmente, porém inserido em determinada linha
de competência produtiva. Neste sentido, a imagem Ideal da ciência também
é ambígua, porque tanto pode apresentar-se como discurso crítico do mais alto
teor de inquietação insubordinada, como pode reificar modulações convenien-
tes à ordem imperial estabelecida metafisicamente.

O fato, entretanto, é que, também na sua idealidade, a ciência contem-


porânea exercita-se a partir de processos excludentes e hegemônicos, sendo
fácil detectar isto na próprio configuração das agências de fomento da pesquisa
acadêmica. De modo geral, há um conceito hegemônico de produção de co-
nhecimento científico que adota um certo modelo das ciências físico-
matemáticas aplicadas. Se diz que a produção do conhecimento científico re-
quer experimentação e comprovação regular. Neste aspecto, é claro que as
ciências do homem saem perdendo no fatiamento das cotas de investimentos
destinadas à pesquisa científica. Ou melhor, saem perdendo na medida em que
52

não adotem os mecanismos de aferição e medição próprios das chamadas ciên-


cias objetivas. O que se vê, então, é uma forma de idealidade, isto é, de produ-
ção discursiva em que os modelos metodológicos quantificáveis se impõem
como única modalidade de produção de conhecimentos válidos epistemologi-
camente.

É claro, inclusive, que a rede de distribuição dos recursos para a pes-


quisa científica já esteja devidamente mapeada, e que mais vale investir em cen-
tros de produção de alguma tecnologia imediatamente aplicável, do que nos
centros de formação onde a ciência passe a ser submetida à crítica filosófica
radical, exigindo investimento a fundo perdido e de longo prazo, sem nenhuma
garantia de retorno político-empresarial imediato. De qualquer forma, é na
imagem Ideal da ciência que encontramos, ainda que tênue, a possibilidade de
uma crítica radical do imperialismo tecnocientífico vigente.

Apesar desta possibilidade, o que ainda prevalece é a forma imperial da


ciência, mesmo neste campo onde o ser humano se redefine a partir do seu
regime discursivo constelado e tradicional, e onde as melhores imagens são
fornecidas pelos pensamentos mais improváveis e mais incertos, do ponto de
vita da pragmática imperativa reinante. Nesta medida, os novos jogos discursi-
vos propostos pelos filósofos contestadores só são acolhidos quando não re-
presentam mais nenhuma ameaça à manutenção de uma ordem instituída e
metafisicamente soberana, e o que mais se vê na academia é a imposição de
modelos de produção de conhecimento em que o senso crítico apurado passa a
ser visto como empecilho para o atendimento das normas de qualificação e
reconhecimento vigentes.

Enquanto um discurso filosófico ameaçar uma certa hegemonia territo-


rial de grupos de intelectuais que muito bem representam o rei invisível, ele
será publicamente desautorizado e banido do rol dos saberes autorizados, cla-
ro, com a exceção de algumas raridades indiscutíveis, pois contestadoras, se
inscrevem em ampla tradição de competência discursiva. Infelizmente, o atual
sistema de qualificação vigente é cada vez mais fechado para esta possibilidade
criadora. Basta ver como hoje raros são os filósofos contestadores dentro da
ambiência acadêmica: lugar onde se alimenta toda possibilidade ideacional da
fantasia criadora da ciência, mas onde é cada vez mais difícil alimentar o adven-
to de novas possibilidades contestadoras e críticas.
53

3. A imagem Virtual da Ciência como retórica estetizante e sedução em-


presarial deliberada

Diante desta imagem permaneço na estesia dos novos meios computa-


cionais. A sua espetacularidade é estonteante e igualmente imperativa. A digita-
lidade computacional vigente dispõe o mundo em novas janelas imaginárias. O
problema é que todas se subordinam à ordem empresarial reinante, o que só
tem aumentado o processo de exclusão social dos intelectualmente não qualifi-
cados para competir em um mercado de trabalho onde é o conhecimento dos
meios operativos cognitivos o que qualifica e demarca o usufruto dos privilé-
gios de pertencer a uma sociedade tecnologicamente avançada. Tudo bem, isto
é hoje um movimento mundial irreversível.

O problema é que a aparente democratização da informação que os


novos meios computacionais permitem é uma falácia das mais tenebrosas e
enganosas. As novas teorias gestadas na onda da cibercultura contemporânea
estão, na sua maioria, a serviço de forças empresariais que só visam o aumento
do consumo telemático, e pouco cuidam da saúde humana planetária, ou me-
lhor, só cuidam dos que possuem o mínimo de poder para o consumo virtual
das maravilhosas consolações imaginárias que os novos meios oferecem para a
o usufruto dos ciberneticamente qualificados e financeiramente amparados.
De modo rápido, isto descortina, finalmente, a imagem Trágica da ciência.

4. A imagem Trágica da Ciência como Filosofia da Diferença

É nesta imagem Trágica que concentro o meu esforço de superação do


horizonte imperial da tecnociência planetariamente dominante. Entretanto, esta
imagem foge de toda e qualquer previsão operativa e empresarial da cultura
contemporânea, abrindo-se para a compreensão de novas possibilidades a-
prendentes ainda marginais, desconhecidas. Claro, isto também faz parte de
um certo percurso discursivo que pressupõe uma ampla formação crítica,
compreendendo em seu espectro todos os efetivos contestadores da ordem
imperial estabelecida, sejam eles poetas, filósofos, cientistas ou religiosos. O
caso é que a tragicidade da ciência se mostra em sua própria historicidade, a
começar do fato de sua peculiar mentalidade hierarquizante e imperial. Em si
mesma, a ciência e o saber científico não possuem o poder de resolver os pro-
blemas trágicos da espécie humana planetária.

A ciência, segundo a sua configuração epocal contemporânea, tem se


mostrado absolutamente inepta para a resolução das desigualdades sociais tra-
gicamente dispostas. Assim, se a atual forma crítica da produção do conheci-
54

mento dominante não se devotar a criar os meios de novas possibilidades a-


prendentes, a tragicidade da espécie humana continuará submetida à arcaica e
truculenta luta de opostos, mesmo no imagem sofisticada do jogo de xadrez.
Para repensarmos a produção científica em sua tragicidade ontológica funda-
mental, teríamos que reinventar a ambiência pensante e aprendente da espécie
humana para além das maquinações político-empresariais dos possuidores do
conhecimento científico operante. Isto, entretanto, talvez não esteja mais ao
nosso alcance, cabendo-nos, finalmente, adormecer nas novas estesias virtuais
que tanta esperança insuflam no imaginário teleológico do curso historial da
espécie humana como um todo.

Bem, a imagem Trágica da ciência é apenas uma provocação pensante,


não sendo,portanto, nenhuma solução fácil e nem muito menos uma aceitação
passiva e cordial da estupidez humana imperante, mesmo quando esta estupi-
dez se exercita em nome da mais soberba vontade de domínio pela posse dos
meios computacionais mais bem intencionados. A imagem trágica da ciência,
então, mostra-se como a contracultura que tanto incomoda e apavora os posi-
tivistas cegados pelo poder luminoso e infinito de suas crenças político-
empresarias tão expansivas e imperiais.

Enfim, estas são as minhas provocações pensantes abertas e ampla-


mente críticas, o que nada garante e nada determina para a resolução do pro-
blema do conhecimento, mas apenas decide por um caminho radicalmente
disposto a contestar o sentido imperante do ser da técnica, como modo novo
de redimensionar os problemas emergentes da ciência e do conhecimento pos-
sível de ser construído em benefício de uma outra regulação epocal da espécie
humana. Utopia filosófica deliberada e implicada em uma revolução planetária
ainda desconhecida.
55

5
A EPISTEMOLOGIA DO EDUCAR NA PERSPEC-
TIVA DA INTERDISCIPLINARIDADE5

 Abertura

Em primeiro lugar, quero agradecer o convite para participar desta ativida-


de de extensão promovida pelo colegiado do curso de pedagogia da UNEB de
Juazeiro, que tem como tema central a epistemologia do educar na perspectiva da in-
terdisciplinaridade. Aceitei o convite como um desafio poemático-pedagógico.
Isto é, encontro-me aqui disposto a investigar com vocês o âmbito de possibi-
lidades de uma prática epistemológica do educar que possua a peculiaridade
polilógica da interdisciplinaridade. O poemático-pedagógico evocado diz res-
peito à construção criteriosa de uma filosofia do educar, que também é uma
crítica rigorosa da produção e metodologização do conhecimento científico.
Trata-se de um esforço de redimensionamento do fazer científico na sua ins-
trumentalidade e na sua finalidade de servir ao ser humano em seu processo
autopoético aberto e livremente determinando.

Portanto, trata-se da discussão sobre a possibilidade de se construir


uma epistemologia do educar como campo interdisciplinar de nossas práticas
pedagógicas efetivas, no sentido de caminharmos para uma superação do mo-
delo pedagógico vigente, fundado claramente em relações de dependência e
submissão simbólica do educando em relação ao educador. Um sinal claro
disto encontra-se no uso ostensivo que fazemos da palavra ensino. Se diz que o
professor ensina e o aluno aprende. E porque pretendemos, como educadores,
sempre ensinar, na maioria das vezes não somos capazes de instaurar um pro-
cesso aprendente epistemologicamente conseqüente. Claro, mudar esta ordem
de funções não é uma tarefa fácil. Não prego aqui que isto possa acontecer
pelo simples discurso crítico-epistemológico, mas defendo a necessidade de
elaboração de questões que nos permitam construir uma ciência do educar em
nova chave crítica.
5 Palestra realizada no Curso de Extensão promovido pelo Departamento de Ciências Humanas do Campus III da UNEB – Curso de
Pedagogia - Juazeiro – BA, novembro de 2001.
56

Nesse aspecto, a figura do ensinar dá lugar à figura do fazer-aprender.


Não se trata mais de ensinar, mas de fazer-aprender. O professor não tem que
ensinar nada, mas tem que saber fazer-aprender. Este é o tema principal de
uma epistemologia do educar aqui batizada de poemático-pedagógica: o fazer
aprendente autônomo e inventivo. Neste sentido, tratamos de uma pedagogia para a
liberdade, isto é, elevamos a ciência do educar ao patamar de um saber próprio
e apropriado. Ora, isto requer uma construção efetiva, construção de relações
aprendentes que são a superação do modelo ensinante em vigência.

 O tema epistemológico da interdisciplinaridade em questão: a ima-


gem do aprender a ser

É nesse âmbito que o tema da interdisciplinaridade me parece relevante e


necessário, porque só por meio de uma construção interdisciplinar nova se
poderá alcançar a prática de uma revolução pedagógica aprendente, ou melhor,
se poderá realizar a superação do modelo pedagógico vigente, claramente fun-
dado em uma autoridade externa hierarquizante e subordinante. Portanto, os
meus questionamentos convocam a que paremos para pensar e analisar o mo-
do como ensinamos os conteúdos de nossas específicas especialidades discipli-
nares, e por qual motivo não logramos hoje alcançar uma interação efetivamen-
te interdisciplinar em nossas práticas docentes cotidianas. Afinal, o que seria
necessário fazer para que pudéssemos caminhar na direção de uma construção
pedagógica interdisciplinar fundada no processo aprendente, isto é, no saber
fazer-aprender, e não mais no processo ensinante de conteúdos generalistas e
repetitivos?

Diante dessa questão logo se levanta uma outra: o que é mesmo que se
pode fazer-aprender? Com este questionamento alcançamos o cerne de uma
crítica radical de todas as nossas crenças e atitudes diante do mundo dado. Tra-
zendo isto para a nossa proximidade, alcançamos o ponto de partida para a
efetuação de uma crítica radical de nossas atitudes pedagógicas, sejam elas do-
centes ou discentes. Como é mesmo que cada um se comporta sendo professor
e sendo aluno? O que é que cada um pensa sobre educação? O que significa
educar para cada um? Em outras palavras, para iniciarmos uma investigação
sobre as condições de possibilidades relativas à construção de uma epistemolo-
gia do educar interdisciplinar e polilógica, é preciso que os participantes se dis-
ponham a realizar um retorno radical sobre si mesmos. Este é o principal fun-
damento da prática aprendente aqui proposta.

Nitidamente, acabo de propor a prática da epoché fenomenológica para


cada um dos participantes. Entretanto, tenho clara consciência da dificuldade
57

de realização deste retorno a si mesmo propugnado pela atitude fenomenológi-


ca. Não falo, portanto, de algo óbvio e de imediata compreensão. Contudo,
falo de algo absolutamente necessário para que se possa instaurar uma outra
possibilidade pedagógica em nosso meio; uma possibilidade aberta diante do
desafio do poder-ser-livre. Neste sentido, falo de uma necessária revolução
espiritual e cultural da humanidade, e, assim, de uma revolução do indivíduo e
no interior do indivíduo. Portanto, não falo em favor desta ou daquela facção
ideológica, mas afirmo igualmente uma ideologia: a possibilidade de uma educação
humana capaz de fazer-aprender a ser.

Com isso eu quero dizer muitas coisas. Sobretudo quero dizer que é
preciso aprender a ser. Até aqui, porém, parece que não saí de uma tautologia;
não disse muita coisa. Afinal, o que significa aprender a ser? Em que sentido
tomamos e interpretamos o ser em questão? Diante de uma tamanha generali-
dade, como fazer com que cada um seja tocado por um sentido do ser que a
tudo une no mesmo um? Esta me parece a questão mais difícil: fazer ver que
não se trata de um ser genérico e vazio, mas do ser que cada um é enquanto
existe, isto é, do ser João ou Pedro, Maria ou Ana, Joaquina ou José. Claro,
trata-se do ser pessoa, ou melhor, do ser indivíduo de uma determinada coleti-
vidade, de uma específica sociedade.

Assim, esta imagem do aprender a ser carrega-se de significados concre-


tos e acionais. Aprender a ser é o mesmo que tornar-se pessoa autônoma e
inventiva. Isto implica em uma vastíssima gama de possibilidades e em concre-
tos ambientes de vida comum. Em que sentido, então, aprende-se a ser? Não
aprendemos sempre a ser alguma coisa, uma determinada pessoa, um específi-
co profissional, uma peculiar natureza? E se sempre aprendemos a ser, o que
uma tal imagem acrescenta de novo ao nosso horizonte pensante?

Esta imagem do aprender a ser passa a adquirir um novo significado na


medida em que realizarmos em nós mesmos a experiência da individuação pes-
soal do sentido ontológico do nosso ser-no-mundo. Afinal, quem é este ser
que nós mesmos podemos ser? Entro aqui em uma questão muito inquietante,
especialmente porque ela coloca o sentido do ser de uma forma aprendente,
isto é, não como conteúdo a ser assimilado pela memória, mas como atitude a
ser praticada por cada um em particular e por todos em suas múltiplas relações
com-outros. Toco, sem dúvida, em uma questão deveras abissal: o que é o ser,
enquanto é cada um em particular e todos em geral?

Estou falando de um sentido comum de ser. Entretanto, como é que


cada um compreende e descreve este sentido comum? Existe mesmo um sen-
58

tido comum que a tudo une no mesmo um? Assim, pode-se falar em um a-
prender a ser comum sem que seja preciso modelar este aprender em um com-
portamento padronizado e normatizado, isto é, em um comportamento igual e
mecanicamente repetido? Afinal, não é a norma que estabelece o sentido de
comunidade entre os seres humanos? E sem a norma, o que seria do sentido
comum do aprender a ser?

As questões colocadas são muito incisivas: elas decidem por um corte


epistemológico que se fundamenta em uma ontologia fenomenológica. Tudo
aqui é muito escorregadio. Isto é inevitável diante da tarefa de propor e cons-
truir uma epistemologia do educar tão abrangente e tão ousada. Portanto, todo
cuidado é pouco. Convém avançarmos com cautela e atenção redobrada, caso
não queiramos banalizar a atitude aprendente em foco nesta provocação pen-
sante.

Partindo de um corte ontológico fundamental, penso a interdisciplina-


ridade como uma possibilidade que só poderá começar a fazer sentido em uma
específica construção epistemológica. Isto significa dizer que, se quisermos
efetivamente sair do círculo vicioso do atual discurso pedagógico que prega a
interdisciplinaridade como modelo, devemos claramente nos posicionar diante
de uma crítica radical do conhecimento pedagógico contemporâneo. Neste
caso, não pode haver meio termo. É preciso decidir em que direção avançar.

Assim, de nada adianta falar em interdisciplinaridade sem a existência


de um sentido comum para o processo educacional humano. Queremos, en-
fim, educar em que sentido? O que queremos fazer do pedagogo que se forma
em um curso superior? Que horizontes teleológicos demarcamos em nossas
concretas práticas disciplinares? Temos, por acaso, clareza acerca do que po-
demos, queremos e devemos ser, enquanto seres aprendentes? Ou isto ainda é
tema considerado inútil e apenas filosófico, no sentido logicamente pejorativo
do termo?

 O retorno radical a si mesmo como ponto de partida para a constru-


ção de uma epistemologia do educar que possa tornar a formação
pedagógica um saber fazer-aprender a ser

A questão agora concentra-se no caráter autônomo do processo apren-


dente que se tem em mira. Isto aponta para uma análise da estrutura prévia de
toda possibilidade aprendente: aponta para o constructo ser-no-mundo-com.
Este retorno a nós mesmos, entretanto, não significa retorno ao suposto eu de
cada um em particular. Este retorno é a realização da atitude aprendente que
59

nos torna indivíduos pertencentes a um todo estrutural já previamente deter-


minado. Husserl acentuava que este era um retorno às coisas mesmas. Com
isto ele enfatizava a atitude aprendente como fundamento absoluto do exercí-
cio filosófico que assume como sua tarefa primacial a elucidação de uma ciên-
cia da essência do fenômeno absoluto. Claramente, trata-se de um retorno à
consciência. Entretanto, de qual consciência se fala? O que é, na perspectiva
de um filosofar fenomenológico, retornar à consciência?

De certa forma, com esta questão tocamos naquilo que é o ponto de


partida de todo exercício crítico-fenomenológico rigoroso. Assim, a própria
discussão epistemológica acerca dos princípios e fundamentos das ciências em
geral pressupõe a atitude de rigor como seu ponto de partida crítico. Deste
modo, quando usamos a expressão epistemologia para indicar a cientificidade
de procedimentos disciplinares, é preciso que por primeiro saibamos o que é
ciência. Claro, todos haverão de dizer que fazem ciência e que, portanto, sa-
bem o que é ciência? Entretanto, sabem todos que a discussão epistemológica
acerca do que é ciência é sempre e necessariamente uma discussão crítica? E
porque é crítica, sabemos suficientemente o significado radical desta expres-
são?

Pelo visto, estamos ainda no significado de um ponto de partida radical


sobre nós mesmos. Retornamos, então, à nossa consciência no momento em
que realizamos uma epistemologia do ato educante? De novo a consciência se
mostra um obstáculo para o avanço compreensivo da questão do sentido pri-
macial da epistemologia do educar interdisciplinar, aqui proposta como tema
investigativo. A questão é que a palavra consciência é logo associada à figura
do sujeito. Com esta palavra logo atraímos as gangues das filosofias da cons-
ciência constituinte para a esfera de nossa compreensão de consciência. E
nesta perspectiva, facilmente se confundem as múltiplas abordagens fenome-
nológicas do conhecimento construído e histórico com meras idealizações i-
maginativas. Esta é uma contenda curiosa. É comum se ver na academia a
disputa entre as múltiplas abordagens epistemológicas e metodológicas das
diversas áreas do conhecimento. Por exemplo, atualmente no meu ambiente de
trabalho venho notando uma disputa entre uma abordagem materialista histó-
rico-dialética e uma abordagem fenomenológica. O curioso é que dificilmente
se tem oportunidade para o travamento de uma investigação comum, e o que
prevalece é um jogo de poderes calcados em crenças determinadas sobre o que
é a ciência e o que deve ser ensinado. No fundo, trata-se de uma disputa tola,
que não leva a nenhum lugar conseqüente, mas apenas adia a necessidade de
uma unificação epistemológica para o exercício da atitude aprendente efetiva: o
tornar-se indivíduo autônomo e inventivo.
60

É lastimável perceber como, na maioria das vezes, não sabemos discutir


as questões essências e comuns da nossa condição humana, e nos perdemos
em partidarismos epistemológicos que são a expressão de nossa incapacidade
de realizar uma ciência de rigor, no mais radical sentido do termo. Nitidamen-
te, ainda não há uma epistemologia do educar que nos garanta o alcance abso-
luto de uma ciência do educar polilógica, necessariamente interdisciplinar e
dinâmica: aberta ao acontecimento. E ainda não há porque isto não pode ser
feito de uma única vez. Ou seja, não se trata de pregar uma determinada dou-
trina sobre a verdade epistemológica, mas de se praticar a atitude investigativa
de rigor. Isto implica sempre em uma suspensão dos juízos imediatos que for-
mulamos sobre as coisas verdadeiramente verdadeiras. A nossa comum atitude
ingênua diante do conhecimento já dado deve poder ser ultrapassada, e o nos-
so olhar deve alcançar um distanciamento justo para uma nova compreensão
dos nexos de sentido do ser-no-mundo-com.

Em primeiro lugar, em geral a nossa prática epistemológica é muito


pobre. É muito pobre porque não aprendemos a pensar de uma maneira pró-
pria e apropriada, mas, preferencialmente, nos tornamos repetidores de certas
verdades estabelecidas, sem nunca termos parado para questionar sua validade
e sua indiscutível certeza. De modo geral, não agimos, em nossas práticas epis-
temológicas, muito diferente dos fanáticos religiosos. O dado é que o nosso
peculiar modo de pensar tem sempre razão. Todo mundo acha que sempre
tem razão, ainda mais quando se tem em mãos um poder qualquer sobre o
outro. O problema todo está aí: temos sempre razão; a nossa é sempre a me-
lhor forma de compreensão. Diante disto, o que fazer para fazer entender a
necessidade de um ponto de partida filosófico radical, sem o qual qualquer
exercício epistemológico não passará de regime de crença fechado em sua pró-
pria razão?

A atitude fenomenológica que aqui coloco como ponto de partida para


a construção de uma epistemologia do educar, centrada no saber fazer-
aprender a ser é a chave crítica para a edificação das bases de uma nova ciência
do educar aprendente: ciência aberta ao acontecimento do ser-sendo;ciência
unida pelo viés da multiplicidade e da diferença ontológica essencial entre o ser
e o ente. Ora, o dado é que esta atitude aprendente não se pode ensinar, mas
apenas saber fazer-aprender. Diante da compreensão articuladora aberta pela
atitude fenomenológica radical, é preciso ter presente a superação dos horizon-
tes ingênuo e dogmático, sem que se perca de vista a inevitável ingenuidade e
dogmaticidade desta mesma atitude. Trata-se, então, do alcance de uma consci-
ência crítica efetivamente transcendental, isto é, de uma consciência que alcan-
61

ça, em si mesma, a amplitude dos seus limites, condições e possibilidades como


compreensão articuladora. Neste sentido, a consciência não pode mais se con-
fundir com a figura do sujeito transcendental de kantiana memória, mas, tam-
bém não pode se desvencilhar do esquematismo de sua própria elaboração ek-
sistencial, no sentido heideggeriano do termo.

Diante disso, abre-se para nós um campo assustador de possibilidades


aprendentes, sem que se perca de vista a condição ek-sistencial prévia de nosso
ser-no-mundo-com, isto é, o nosso peculiar modo de ser-aprendente — ser
lançado no mundo em sentido. Isto quer dizer que, sem fazermos a conta com
o fundamento de nossa peculiar forma de ser, não lograremos alcançar o re-
torno sobre nós mesmos propugnado como fundamento da atitude crítico-
epistemológica radical. Entretanto, este tom do discurso não deveria vos con-
fundir em relação ao seu caráter aparentemente especulativo. Com a atitude
fenomenológica, como já disse, não se alcança uma verdade já dada, mas ape-
nas a posse de nexos compreensivos que nos fazem duvidar de tudo o que
logo se apresente como verdade incontestável.

Com a atitude fenomenológica não aderimos a um sistema de verdades


já construído e consolidado, mas nos colocamos na disposição aprendente da
ciência do fenômeno vivo e instante. Não se trata, portanto, de um mero de-
vaneio especulativo e idealista. Este ponto de partida necessário ao exercício de
uma epistemologia do educar efetivamente interdisciplinar nos ata imediata-
mente à fenomenologia de nossos gestos e atitudes de ralação com o mundo e
com os outros. Ora, esta é por definição uma atitude prática: é preciso saber
fazer-aprender a ser. Sem este movimento praxiológico, dificilmente se pode
compreender o caráter articulador do exercício epistemológico criticamente
instruído. Entretanto, é preciso sempre partir desta atitude aprendente radical,
caso se queira alcançar o âmbito de uma epistemologia capaz de autojustificar-
se diante do tribunal das ciências ditas experimentais.

A questão é que as ciências humanas, na sua maioria, não passaram a-


inda da sua fase pré-crítica. A pedagogia, por exemplo, é uma destas ciências
que mais parecem pré-críticas do que outra coisa. Basta avaliar o que é que se
valoriza como ciência social aplicada na atual sociedade do conhecimento e da
informação, para perceber que o campo de uma reflexão filosófica estrita é
ainda muito pouco valorizado e entendido em sua função articuladora essencial
do sentido geral do ser-no-mundo-com. E enquanto a pedagogia não realizar
um retorno crítico sobre as suas próprias crenças e certezas, não será possível
vê-la concorrendo de igual para igual na disputa dos vários territórios do saber
fazer qualificado. É por isto que aqui insisto na importância de um ponto de
62

partida radical para se dar início à construção de uma epistemologia do educar


nova e efetivamente produtora de inusitadas competências ontológicas, capa-
zes de nos fazer aprender a ser-sendo.

 O pressuposto da transdisciplinaridade para se poder construir uma


trama aprendente interdisciplinar

De um modo geral, hoje é muito comum se ouvir falar em interdisciplinaridade


como uma conquista da nova LDB vigente. Entretanto, o que não é claro para
ninguém é a efetividade de um processo interdisciplinar. Muito se fala, mas
não se pratica ainda, em larga escala, a atitude interdisciplinar tão propalada.
Aliás, a maioria das pessoas não sabe muito bem o que fazer diante deste novo
conceito pedagógico.

O fato é que não existe uma base comum de compreensão para se po-
der realizar um trabalho concretamente interdisciplinar. As questões filosóficas
fundamentais precisariam de uma atenção que em geral é apenas dada do pon-
to de vista simplesmente formal. Basta ver onde entra a filosofia como ativida-
de de formação na grade curricular dos cursos de pedagogia. No máximo ela
entra como um saber geral, considerado pela maioria como um saber especiali-
zado de difícil compreensão. No fundo, mesmo com existência de algumas
matérias que levam o nome de filosofia, não se pratica, na maioria das vezes a
atitude filosófica como atitude crítica radical.

Assim, no momento em que aqui falamos em atitude filosófica funda-


mental, como esteio para uma prática pedagógica armada criticamente, não nos
referimos aos conteúdos das disciplinas de filosofia, mas ao próprio ato de
retorno radical sobre nós mesmos, coisa que nunca pode ocorrer a partir de
um aprendizado meramente cumulativo e baseado na repetição modelar de
certas crenças atitudinais. Se assim fosse, o aprendizado crítico da ciência já
estaria garantido pela enormidade de disciplinas que cada um tem que cursar ao
longo de sua vida escolar e acadêmica. Se o mero acúmulo de conhecimentos
resolvesse a situação, já estaríamos em patamares pedagógicos muito mais a-
vançados e surpreendentes. Mas, o fato é que nos encontramos ainda muito
longe de uma efetiva formação crítica, que garanta o aparecimento de educado-
res e educandos autônomos e inventivos.

Com isso o horizonte de sentido alcança uma complexidade bastante


considerável. Ora, mais do que nunca precisamos aprender a pensar critica-
mente. Este aprendizado crítico é que deveria ser o elemento comum de todas
63

as atividades disciplinares cumpridas na suposta formação acadêmica qualifica-


da. Afinal, que tipo de competência se espera de um pedagogo? Claro, deve
existir um projeto que justifique esta competência. Entretanto, será que a
mesma está adequadamente ajustada ao novo mundo que se abre diante da
contemporânea sociedade do conhecimento e da informação? Sinceramente,
vocês estão satisfeitos com o que são capazes de desenvolver como conheci-
mento aplicado no vosso curso de pedagogia? É a atual formação pedagógica
uma formação já crítica e interdisciplinar, ou isto ainda precisa ser feito?

Bem, não é nada fácil provocar a inquietação crítica aprendente. Inevi-


tavelmente, as reações são as mais inesperadas. Afinal, quem é que gosta de
reconhecer que o que faz poderia ser melhor dimensionando? Quem gosta de
se reconhecer alienado? Seguramente o que estou propondo não é algo que
possa ser aceito por todos como uma verdade indiscutível. Aliás, não estou
aqui apresentando nenhuma verdade indiscutível, e sim o modo de construção
de uma crítica radical do conhecimento epistemológico sobre o educar. Neste
sentido, não apresento um sistema de conhecimento já acabado, e sim uma
possibilidade de agenciamento para uma nova ciência do educar.

O fato é que precisamos alcançar o âmbito transdisciplinar de nossas


atividades aprendentes. Sem este, a interdisciplinaridade fica apenas no papel,
permanecendo uma figura abstrata e estranhamente ensimesmada em sua pró-
pria cegueira operante. O passo, porém, para a transdisciplinaridade requer
uma radical mudança de mentalidade. Isto significa, em outras palavras, o saber
fazer-aprender a ser anunciado. De nada adianta, portanto, se falar em inter-
disciplinaridade quando isto ainda não ocorre concretamente na trama curricu-
lar da formação pedagógica praticada na academia. E por que isto não ocorre?
Será por incapacidade de se praticar uma ciência aprendente efetiva?

De modo geral, penso que isto não ocorre simplesmente porque nunca
paramos para analisar concretamente os termos da questão interdisciplinar.
Como seria possível a existência de um trabalho interdisciplinar sem a prévia
existência de acordos epistemológico-críticos entre os trabalhadores da educa-
ção? Logicamente, sem que se construa não se pode levar a sério o sentido
interdisciplinar das várias disciplinas de um determinado curso de formação
para o trabalho especializado. Antes de tudo, a interdisciplinaridade é sempre
um constructo coletivo de fato. Ela só existe quando é devidamente feita e
articulada. É neste ponto que o caráter transdisciplinar aparece como elemento
que deve anteceder a existência dos acordos interdisciplinares, porque se não
houver clareza em relação ao sentido do ser que se quer formar, a formação do
educador corre sérios riscos de nunca poder alcançar a consciência crítica de
64

sua específica condição humana livremente determinada, portanto, uma atitude


autônoma e inventiva, onde o certo não pode ser confundido com a formação
de conteúdos para serem repetidos segundo o modelo que os justifica e deter-
mina. Isto seria um atentado à inteligência aprendente do ser humano singular,
e só produz no máximo bons funcionários incapazes de contestação e de críti-
ca fundamentada. É isto o que se quer com a famigerada interdisciplinaridade:
formar pessoas destituídas de sendo crítico e de vontade criadora própria?

Aqui a figura da transdisciplinaridade é a chave de compreensão para a


construção de uma epistemologia do educar interdisciplinar. E isto é verdade,
na medida em que sem a superação do horizonte de saberes e disciplinas sepa-
radas em compartimentos quase estanques, não se pode dimensionar com pre-
cisão a afetiva trama interdisciplinar de um determinado campo do conheci-
mento. É o caráter transdisciplinar que nos convoca a perceber uma estrutura
comum previamente determinada do nosso ser-no-mundo-com. Em outras
palavras, isto significa a existência de um nexo unificador que nos permite a-
prender a ser-sendo, isto é, nos permite alcançar um grau de autonomia de ser
e saber fazer que nos coloca acima de toda contingência meramente subjetiva
ou objetiva: nos coloca diante da possibilidade de uma tematização epistemo-
lógica do fenômeno ontológico do nosso próprio ser como acontecimento
integrante do sentido-sendo.

Pode até parecer, mas este não é um jogo de palavras que visa persuadir
alguém acerca de uma verdade particular. Pelo contrário, aqui jogamos o jogo
do sentido-significado em uma possibilidade polilógica e radicalmente aberta
ao próprio acontecimento do que faz sentido, na medida da nossa não-
submissão a pretensas verdades inabaláveis e indiscutíveis. Justamente porque
podemos investigar a verdade do ser, podemos contestar toda espécie de impe-
rativo categórico que queira se impor como norma de conduta incompreensí-
vel e subjugante.

Portanto, para chegarmos a propor uma trama interdisciplinar efetiva,


dentro de um determinado campo de disciplinas, é necessário partilhar de uma
compreensão transdisciplinar do sentido do ser-no-mundo-com. Sem isto, a
interdisciplinaridade não passará de arranjo meramente convencional e vazio,
não logrando alcançar nenhuma consistência ativa, permanecendo no rol das
coisas abstratas e de nenhuma utilidade para a vida prática. O problema é co-
mo chegar a esta compreensão transdisciplinar assinalada. Seguramente, ela não
pode ocorrer por um simples ato intuitivo, mas deve nascer de um esforço de
superação do horizonte epistemológico determinado pelo surto moderno das
ciências empíricas e matemáticas. Nesta medida, para que se possa minima-
65

mente colocar em movimento a construção interdisciplinar de um determina-


do campo do conhecimento, se faz preciso uma ampla crítica da atividade cien-
tífica contemporânea. É esta crítica que pode permitir o alcance de um campo
unificado comum, sem a perda das especificidades dos diversos modos de co-
nhecimento disciplinares.

O problema, então, se articula a partir de uma superação dos horizon-


tes epistêmicos modernos e contemporâneos, e isto na direção da ultrapassa-
gem das dicotomias clássicas da racionalidade ocidental. Portanto, o que está
em jogo com a figura da transdisciplinaridade é uma radical mudança do mode-
lo compreensivo global do sentido do ser-no-mundo-com, onde não mais ca-
bem perspectivas ou puramente subjetivistas ou somente objetivistas do co-
nhecimento, mas perspectivas que privilegiem o ser humano em sua natureza
complexa e plural.

No nosso caso, a transdisciplinaridade que precisamos para compor


uma suficiente trama interdisciplinar em nossas práticas de formação pedagógi-
ca passa por um essencial aprendizado filosófico. Sinceramente, sem uma filo-
sofia capaz de discutir as questões primaciais do nosso tempo, não se pode
alcançar nenhuma soberania espiritual deliberada, isto é, não se pode alcançar
uma autonomia de gestão pedagógica altamente qualificada, gestão que não
fique a reboque das grandes teorias do sentido, mas que formule os seus pró-
prios princípios de compreensão articuladora e que produza a sua própria epis-
temologia transdisciplinar.

Portanto, precisamos de filosofia para chegarmos a construir uma tra-


ma interdisciplinar entre as diversas disciplinas pertencentes ao campo das ci-
ências sociais aplicadas. É filosoficamente que se pode falar em transdiscipli-
naridade sem que se corra o risco de ser confundido com os novos místicos da
ciência planetária. Sem uma compreensão articuladora geral das condições,
limites e possibilidades do nosso ser-no-mundo-com não é possível fazer uma
ciência que acolha em seu âmbito o ser humano como o seu próprio sentido
implicado. Trata-se, assim, de cumprirmos uma nova revolução ontognosioló-
gica como substrato para a construção de uma nova ciência aprendente, o que
exige que cada um realize radicalmente o retorno a si mesmo como fundamen-
to de toda ciência humana que queira ultrapassar a sua própria impotência.

Edgar Morin, em seu livro Ciência com Consciência (1996), nos ajuda a
compreender melhor o que aqui foi articulado como necessidade transdiscipli-
nar para a unificação da produção do sentido das ciências humanas, base, por-
tanto, de toda trama interdisciplinar efetiva. Para Morin, é preciso ir além do
66

que hoje se propala como necessidade interdisciplinar, alcançando o que ele


chama de transdisciplinaridade. E isto se deve à própria natureza da ciência que,
sem um determinado campo unificado, não teria florescido com tanta pujança
e concretude. Entretanto, na contemporaneidade este caráter unificador da
atividade científica perdeu valência e o que se vê é a franca disputa entre sabe-
res que se proclamam independentes uns dos outros, sem a mínima preocupa-
ção com uma unidade de referência comum. Como diz Morin:

Aqui, há que observar que uma revolução se opera sob nossos olhos.
Enquanto o saber, na tradição grega clássica até a Era das Luzes e até o fim do
século 19 era efetivamente para ser compreendido, pensado e refletido, hoje,
nós, indivíduos, nos vemos privados do direito à reflexão.
Nesse fenômeno de concentração em que os indivíduos são despos-
suídos do direito de pensar, cria-se um sobrepensamento que é um subpensa-
mento, porque lhe faltam algumas das propriedades de reflexão e de consciên-
cia próprias do espírito, do cérebro humano. Como ressituar então o proble-
ma do saber? Percebe-se que o paradigma que sustém o nosso conhecimento
científico é incapaz de responder, visto que a ciência se baseou na exclusão do
sujeito. É certo que o sujeito existe pelo modo que tem de filtrar as mensa-
gens do mundo exterior, enquanto ser que tem o cérebro inscrito numa cultu-
ra, numa sociedade dada. Em nossas observações mais objetivas entra sempre
um componente subjetivo.
Hoje, a questão do retorno do sujeito é fundamental e está na ordem
do dia. Mas, neste momento, há que formular a questão dessa separação total
sujeito/objeto em que o monopólio do sujeito é entregue à especulação filosó-
fica.
Precisamos de pensar-repensar o saber, não com base numa pequena
quantidade de conhecimentos, como nos séculos 17-18, mas no estado atual
de proliferação, dispersão, parcelamento dos conhecimentos. Mas como faze-
lo? (1996: 136-137)

Como se pode ver, Morin é uma das vozes que conclamam para uma
nova unificação epistemológica das ciências do espírito. Seguramente, a sua
voz é importante mas não é a única. Não se trata, no caso,de seguirmos a risca
o pensamento epistemológico de um grande pensador, mas de realizarmos o
alcance metodológico de uma nova ciência humana unificada, sem a perda das
inevitáveis complexidades e diferenças na produção e reconhecimento deste
saber. Isto só pode ser feito por meio de uma decisão irrevogável. Esta deci-
são nos deve empenhar na construção de um sentido comum para a atividade
científica de uma nova pedagogia crítica, fruto não de especulações meramente
filosófica, mas de ações implicadas e conseqüentes que garantam uma forma-
ção humana pensante e altiva, e não um mero simulacro de ciência que só faz
67

agravar a impotência diante da soberania dos novos meios alienadores do sen-


tido unificado do ser humano em sua totalidade conjuntural.

Sem dúvida, tudo isso é extremamente complexo e assustador. Ao


mesmo tempo é alentador perceber a premência de construção de uma ciência
do educar orientada polilogicamente. Isto implicaria em um efetivo avanço de
nossa área de conhecimento em relação ao saber global de nossa Era tecnoló-
gica. Estamos, assim, diante de um desafio pensante do mais alto risco. Inclu-
sive porque com ele alcançamos, de novo, o fundamento de nossa soberania
espiritual em relação ao que hoje se tem feito com o conhecimento hegemôni-
co da tecnociência reinante.

Afinal, que tipo de relações podemos hoje estabelecer com o conheci-


mento, na imperante sociedade da informação globalizada? Será possível alcan-
çarmos uma autonomia de pensamento e ação, a partir de novos horizontes
articuladores do sentido educante do ser-no-mundo-com? Ou não temos, ain-
da, a mínima chance de desenvolver uma atitude crítica deste porte, em nossos
corriqueiros cursos de formação para as ciências sociais aplicadas, como é o
caso da Pedagogia? O que, então, nos falta para que realizemos uma unificação
epistemológica dos campos das ciências humanas e exatas? Que tipo, portanto
de epistemologia haveremos de praticar para que se alcance uma tamanha deci-
são pedagógica: saber fazer-aprender a ser?

 A abordagem poemático-pedagógica como meio articulador de uma


nova epistemologia do educar, pensada como campo unificador de
todas as ciências humanas e exatas — campo transdisciplinar como
fundamento da construção de ações pedagógicas interdisciplinares.

Bem, claramente estamos diante de um verdadeiro impasse: como decidi-


remos que tipo de epistemologia fundará nossas práticas pedagógicas daqui
para a frente? Esta é uma questão muito importante. Em primeiro lugar preci-
samos decidir qual será a nossa atitude epistemológica na construção de uma
ciência do educar criticamente articulada. Sem esta decisão não se pode lograr
construir nenhuma epistemologia rigorosa. E sem a concretização de uma epis-
temologia rigorosa não se pode vir a superar o atual horizonte disciplinar dos
saberes dispersos e especializados, o que significa prolongar indefinidamente o
estado de indigência crítica das áreas de conhecimento identificadas como ci-
ências sociais aplicadas.

Ou procuramos sair deste estado de indigência pela via do retorno radi-


cal às coisas mesmas, ou permaneceremos cativos de um modo de saber domi-
68

nante e hegemônico que não admite o princípio fundamental da multidiversi-


dade aprendente. Isto seria lastimável: que o nosso específico campo de co-
nhecimento não consiga alcançar a sua independência axiológica e sua inteli-
gência operativa concreta e abstrata. É neste sentido que se torna urgente
uma nova epistemologia do educar transdisciplinar, o que ainda exige uma
efetiva construção interdisciplinar entre as várias especialidades e disciplinas
envolvidas, isto é, exige que as pessoas implicadas neste processo se comuni-
quem em torno das questões essenciais e comuns. É este acordo intersubjetivo
que pode garantir o aparecimento de uma prática interdisciplinar ainda inexis-
tente. Mas este acordo não pode ser feito apenas na base do formalismo disci-
plinador do processo legal.

Não se trata apenas de acordo formal, pois é necessário que em primei-


ro lugar exista um acordo afetivo. Sem um acordo afetivo é impossível consti-
tuir uma trama interdisciplinar concreta. No máximo com isto se alcança o
formalismo abstrato de um dever, sem que se experimente ainda o direito de
interpelação e questionamento dos seus actantes coletivos. Entretanto, este
acordo decisivo para o engendramento do processo interdisciplinar não é algo
que se pode alcançar por meio de um comando técnico qualquer. Admitir esta
possibilidade é o mesmo que achar que com a nossa racionalidade nós pode-
mos sempre dominar, sempre acertar, sempre dizer a verdade verdadeiramente
verdadeira. A afetividade necessária para a existência de um sentido comum
para a vida humana não pode provir de um planejamento estratégico da razão
instrumental. Isto seria o mesmo que aceitar a dialética do senhorio e do escra-
vo como a lei inalienável do mundo humano historicamente determinado.

A esfera da afetividade que a tudo é capaz de unir no mesmo um, sem


nunca perder de vista a diversidade operante do ser-sendo, não pode explicar-
se por uma causa mecânica qualquer. Pensar assim seria o mesmo que aban-
donar a soberania do espírito humano na sua relação afetiva com a vida. Na
verdade, parece que é isto mesmo que o sistema político-econômico dominan-
te quer imputar ao exercício das humanidades: que as mesmas se submetam
claramente às leis do novo mercado de trabalho hegemônico. Neste aspecto, é
como se não existisse mais espaço para a crítica radical de todo conhecimento
possível ao ente-espécie humanidade.

Assim, posso dizer agora como entendo a urgência de praticarmos uma


epistemologia do educar transdisciplinar e rigorosa. Esta tem a função de in-
terdisciplinarizar os vários campos aprendentes envolvidos na formação hu-
mana e pedagógica. Isto implicaria em uma formação crítica comum, que teria
que nascer do retorno radical a si mesmo. Ora, isto só é possível através de um
69

concreto sentido de comunidade presente em todos os participantes do pro-


cesso. Só é possível pela existência de uma afetividade comum que ultrapasse
as barreiras dos múltiplos territórios especializados hoje existentes na socieda-
de globalizada do conhecimento e da informação. Isto, portanto, implica no
alcance comum de um sentido de humanidade além dos mesquinhos interesses
particulares da vida cotidiana das sociedades constituídas. Isto requer que sai-
bamos pensar a construção de uma revolução cultural de longa duração, para a
qual o sentido do ser-no-mundo-com alcança a totalidade do todo estrutural da
humanidade. É este sentido macro de humanidade que hoje ainda nos falta
para que possamos realizar uma nova epistemologia do educar interdisciplinar
e voltada para o desenvolvimento humano espiritualmente autoconsciente e
ontologicamente livre, porém noológica e ecologicamente responsável por cada
um dos seus atos e atitudes concretas.

A abordagem poemático-pedagógica que proponho como trama para a


construção de uma nova teoria da educação procura responder ao desafio de
um saber fazer-aprender a ser, compreendendo com isto o próprio e apropria-
do meio de formação para o aparecimento de indivíduos autônomos e inventi-
vos; indivíduos finalmente capazes de realizarem em si mesmos as maiores
conquistas do espírito humano sempre novo, sempre o mesmo, sempre outro.
Isto aponta e requisita uma explicitação mais demorada sobre as dimensões
aprendentes que podem se tornar os signos comuns de uma trama construtiva
interdisciplinar das ciências humanas marcadas por uma nova epistemologia
crítica.

Entendo por abordagem (compreensão) poemático-pedagógica a ur-


gência de um processo aprendente que eleve a condição humana ao patamar de
uma vita activa digna e altiva, soberana e pacífica. Forjei este conceito para co-
brir uma nova concepção de educação. E digo nova não por ignorar a história
que nos antecede, mas por reconhecer a premência de uma educação aberta ao
próprio acontecimento implicado da realização humana. Falo do novo que se
renova na própria atividade vital, o novo da nova primavera ou do próximo
inverno, o novo da vida-instante aberta diante de suas possibilidades aprenden-
tes. Afinal, a vida humana não é feita apenas de passado: ela encontra-se proje-
tada em sua própria historicidade dialética. Trata-se, assim, de uma nova edu-
cação para a vida do espírito. O espírito, entretanto, não deve ser aqui entendi-
do no sentido idealista do termo, nem muito menos no sentido apenas materia-
lista-histórico-dialético do termo.

O espírito é aqui tomado em seu sentido lato, isto é, designa o próprio


ser-do-homem-no-mundo-com. O ser-do-homem é espírito, isto é, compre-
70

ende, projeta, age, memoriza, recorda, sonha, trabalha, come, relaciona-se, con-
figura-se, representa-se, constitui-se, transmuta-se, desaparece, reaparece etc.
Este ser espírito faz toda a diferença. É mesmo um problema de diferença ontoló-
gica. Ser espírito é a própria diferença ontológica. Não limito aqui o espírito ao
campo da consciência e da autoconsciência. O espírito não se define pela cons-
ciência ou autoconsciência do ser humano histórico. O espírito antecede a
consciência ou a autoconsciência e seria tolice imaginá-lo categorizado deste ou
daquele modo. O espírito é por definição o transcendens: não é possível atribuir-
lhe atributos que explicariam sua essência incriada. O espírito se vive, e nunca
pode ser confundido com um ente simplesmente dado. Dissociar o espírito do
mundo da vida é o que me parece o grande problema. Até aqui ao falar de es-
pírito não o dissociei do mundo da vida. Não dá para separar o espírito do
mundo. O espírito, justamente, é o dínamo do mundo, e é por isto que ele não
é apenas o homem, mas o homem é que se reconhece espírito enquanto ek-
siste no mundo. O espírito ultrapassa o homem, mas o homem é espírito em
seu próprio modo de ser-viver.

Este meu modo de compreensão abrangente e indeterminada do espíri-


to acaba sendo o nexo articulador do que batizei de compreensão poemático-
pedagógica para o fazer-aprender a ser. A abordagem poemático-pedagógica pro-
posta articula-se como movimento compreensivo do ser-do-homem-no-
mundo-com, relevando o caráter operativo e inventivo da formação humana
para a vida do espírito, isto é, a vida vivida como livre criação do espírito no
mundo das relações efetivas e das tradições justificadas e cultivadas nos pro-
cessos ritualizadores da vida humana comum, ou melhor, vida cotidiana. Cla-
ro, esta imagem da ―livre criação do espírito‖ não é a melhor forma de apre-
sentar a possibilidade desta abordagem, porque logo pode ser associada ao
ciclo do pensamento idealista e, com isto, pode provocar associações indevi-
das. Entretanto, prefiro correr este risco a negar o que para mim não é apenas
uma abstração intelectual, pois é um modo de vida engajado no processo de
desenvolvimento espiritual das sociedades históricas — as sociedades compos-
tas por seres humanos concretos, fulanos, beltranos, Josés, Marias etc. Penso
que o nosso problema ao falar de espírito seja a falta de intimidade com ele.
Com isto não estou representado nada de fixo e imutável, mas apenas reconhe-
cendo uma correspondência imediata com o sentido do ser-sendo.

A minha abordagem poemático-pedagógica define-se como fazer in-


ventivo, ou seja, fazer que ao fazer inventa o próprio modo de fazer. Portanto,
um fazer aprendente por excelência — um fazer que aprende fazendo. Neste
sentido é que enfatizo o aprender a ser, isto quer dizer: aprender a ver, aprender a
pensar, aprender a viver-junto, aprender a fazer, aprender a sentir, aprender a conceber, a-
71

prender a julgar, aprender a falar, aprender a escrever. Estas dimensões figuradas,


entretanto, não são suficientes para resolver o problema concreto do aprendi-
zado das múltiplas disciplinas em uma chave transdisciplinar e em uma articu-
lação interdisciplinar. Para que isto ocorresse todo professor em particular ha-
veria de ter sido formado ao modo do Emílio de Rousseau, isto é, teria que
passar por um processo complexo de ativação destas várias dimensões em si
mesmo, fora dos enquadramentos prescritivos e formais do ensino disciplinar
instituído. Em outras palavras, cada professor haveria de ter alcançado o limiar
do seu próprio projeto existencial aberto ao aprendizado implacável do ser-
sendo. Sem isto, nada do que se diz poemático-pedagógico pode fazer sentido
e nutrir o espírito de força e metamorfose aprendente: o retorno eterno do
livre espírito da criança aberta e empenhada em des-velar o mundo no gesto
poemático da celebração da vida pela vida do espírito.

Uma descrição mais pormenorizada das várias dimensões do aprender


a ser é algo que deixo em aberto para tratar em outra ocasião, porque agora me
apraz finalizar esta fala com a nítida convicção de ter já inquietado o suficiente,
o que já indica para uma necessária continuidade desta conversação epistemo-
lógica, caso se deseje tornar esta epistemologia do educar uma prática pedagó-
gica indispensável para a criação de uma nova Paideia em nosso comum meio
de existência. E com palavras de Rousseau encerro estas considerações com
uma exortação serenojovial:

―Jovem professor, prego-vos uma arte difícil, a de educar sem precei-


tos e de tudo fazer sem nada fazer‖. (Rousseau, 1999: 132)

Com isso recolho-me na ideia de uma compreensão poemático- peda-


gógica que nos disponha a realizar uma revolução do espírito a partir do traba-
lho aprendente como obra de arte, criação livre e consumação plena do prima-
do da vida sobre a morte: alimento fundamental para a nutrição da soberania
sábia de uma humanidade digna de partilhar a potência ígnea do equilíbrio im-
ponderável.

Referências:

MORIN, Edgar. Ciência com Consciência. Tradução: Maria D. Alexandre e


Maria Alice Sampaio Dória. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1996.

ROUSSEAU, J.-J. Emílio ou Da Educação. Tradução: Roberto Leal Ferrei-


ra. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
72

6
HERMENÊUTICA E FENOMENOLOGIA DO
EDUCAR: TRAÇOS DE UM FILOSOFAR POLI-
LÓGICO PRÓPRIO E APROPRIADO6

 Abertura

Para começar, cumpre-me descrever o uso dos termos envolvidos:


Hermenêutica, Fenomenologia e Educar. No título escolhido, dois substanti-
vos estão coligados ao verbo educar. O foco deste discurso, portanto, é o ver-
bo, a ação educante. As palavras hermenêutica e fenomenologia entram aí co-
mo regimes de enunciação, ou, usando uma expressão de Paul Ricoeur, como ―gre-
lha de leitura‖. Portanto, as palavras hermenêutica e fenomenologia assinalam
uma contaminação de certa tradição da filosofia ocidental. Entretanto, em que
âmbito dessa tradição este discurso se inscreve e por quais autorizações ele se
sustenta? Em que sentidos, portanto, aqui são usados os termos hermenêutica
e fenomenologia e como os mesmos desvelam o educar? Em outras palavras,
qual é a perspectiva fenomenológico-hermenêutica que constitui o horizonte
articulador do que aqui comunicamos?

 A origem dos sentidos fenomenológico e hermenêutico do discurso


apresentado

O ponto de partida deste discurso é um questionamento filosófico.


Assim, o termo ―contaminação‖ é aqui usado como reconhecimento de uma
apropriação filosófica que configura uma voz singular como precipitação de
um discurso que fala de um lugar que lhe é próprio: o ser-sendo. Do lugar de
onde germina este dizer, o sentido de clareza apodíctica de uma proposição
pensante é imediatamente compreensível. O poder-ser do ser-sendo é evidente por
si mesmo. Entretanto, não se trata de uma clareza lógica, no sentido demons-

6
Texto escrito para o Encontro de Fenomenologia e Hermenêutica, promovido pelo Mes-
trado em Filosofia da UFBA, Salvador, dias 11, 12 e 13 de dezembro de 2002. O mesmo foi
apresentado, de forma resumida, na mesa-redonda do mesmo encontro Gramática e Cons-
trução do Sentido.
73

trativo do conhecer, nem de uma evidência racional, como dedução de catego-


rias preexistentes, e nem muito menos de uma certeza conceitual ao modo de
gramáticas regimentais, e sim de uma realização de ser-sendo: acolhimento do
vigor rasgante — o ―é‖ da coisa ela mesma em si mesma.

A contaminação da qual me refiro diz de um percurso de pensamento que


germina da radicalidade do ponto de partida fenomenológico. Husserl e Heidegger são
alguns dos interlocutores dessa contaminação. Interlocutores sim, autoridades
externas não. Com eles, não confirmamos o que se supõe e se determina co-
mo discurso filosófico autorizado. Pelo contrário, com eles, o discurso filosófi-
co autorizado encontra-se sob julgamento. Com eles, a única certeza é a vida-
sendo. Fui sendo levado, assim, a refazer os percursos lógicos e ontológicos
das filosofias ocidentais, através do diálogo de pensamento. Em primeiro lugar,
o movimento de retorno ao si-mesmo. Com Husserl uma convicção:

Em primeiro lugar, quem quiser realmente tornar-se filósofo deverá ―uma


vez na vida‖ voltar-se para si mesmo e, dentro de si, procurar inverter todas as ciên-
cias admitidas até aqui e tentar reconstruí-las. A filosofia — a sabedoria — é de qual-
quer forma um assunto pessoal do filósofo. Ela deve constituir-se como algo dele, ser
a sua sabedoria, seu saber, que, embora se volte para o universal, seja adquirido por ele
e a qual ele possa ter condições de justificar desde a origem e em cada uma de suas e-
tapas, apoiando-se em suas intuições absolutas. (HUSSERL, 2001, p.20)

Husserl envereda na procura de um saber verdadeiro, a partir do qual


uma ciência absoluta se reconfirma em sua gênese própria. A sua fenomenolo-
gia é modo de acesso ao saber absoluto. Neste sentido, um método, o método
filosófico propriamente dito. Seu cartesianismo consiste justamente na posição
de princípio. Neste âmbito, Husserl fala para filósofos empenhados com a sabe-
doria. Seguindo os passos de Descartes, Husserl recoloca o problema do co-
nhecimento transcendental como uma sabedoria pessoal do filósofo: uma radi-
calidade como retorno às coisas mesmas. A pergunta, então, pelo conhecimento
verdadeiro, se desatrela dos compromissos ontológicos e metafísicos de qual-
quer espécie e se encaminha para o âmbito do acontecimento-precipitação do
sentido-sendo. Contudo, o saber absoluto do filósofo não se encontra vincula-
do a nenhuma espécie de vivência psicológica. Pelo contrário, pelo movimento
de ―retorno às coisas mesmas‖ ocorre ―deixar-de-lado‖, ―des-montar‖, des-
fazer todo saber já construído e realizado até aqui pela ciência e pela moral. O
fundo desse saber absoluto é, contraditoriamente, um não-saber absoluto. A
provocação da fenomenológica de Husserl foi por mim acolhida nesta possibi-
lidade: a de ser o movimento metódico de esvaziamento de todo pretenso sa-
ber absoluto e de toda imperativa moralidade, que queiram se apresentar como
a verdade e a norma transcendentes e indiscutíveis. No âmbito da radicalidade
74

filosófica realizada por Husserl não há lugar para falsos problemas filosóficos. Nesta
visada, os verdadeiros problemas filosóficos são verdadeiros na medida de seu desco-
lamento dos fatos naturais. Assim, um verdadeiro problema filosófico é aquele
que alcança o desvelamento de algo em seu próprio discurso, permanecendo,
deste modo, um fenômeno da fenomenologia. O saber filosófico verdadeiro é o
saber que se desvela e se constrói no discurso e pelo discurso de pensamento.

Aprendi a ouvir essa provocação de Husserl para além dos psicologis-


mos e filosofismos sobre a verdade. No modo como acolho a atitude fenome-
nológica, o fundamental não é possuir muitos conhecimentos e muitas infor-
mações sobre as verdades científicas e filosóficas vigentes, e sim permanecer
sempre atentos às coisas mesmas, no modo mesmo como constituem o nosso
comum perceber. A atitude fenomenológica, assim, nos mantém atentos ao
presente. É, deste modo, um estado de atenção absoluta.

O importante, nesse retorno radical sobre si mesmo, não é acumular


conhecimentos e informações sobre as verdades históricas consagradas, e sim
aprender a lê-las no enviesamento constelado do presente vivo. É, sem dúvida,
um ato de livre de-cisão que não faz sentido como simulacro de discurso filo-
sófico. Ou é discurso filosófico verdadeiro ou não passará de simulacro. Entre-
tanto, o ser verdadeiro desse discurso não se pode medir por ―autoridades exter-
nas‖. Portanto, não se trata de nenhuma verdade lógica, muito menos de uma
verdade ontológica. O sentido de verdade aqui mostrado só se pode compreender
por meio de uma intuição absoluta própria e apropriada. Neste âmbito, é algo
da sabedoria pessoal do filósofo. Este sentido de certeza interna e absoluta é o que
funda uma fenomenologia empenhada em descrever os fenômenos como apa-
recer e aparência, no modo, portanto, como constituem o ego transcendental, ou
melhor, a consciência em seu modo de ser-em-situação.

Claro, a verdade absoluta que se alcança por meio de uma intuição ei-
dética desse gênero está fora do jogo demonstrativo das ciências positivas, e
só se pode comunicar aos outros, mas nunca imaginar que seja possível dizer
ao outro do que se trata, se esse outro não tiver em si mesmo uma experiência
do mesmo gênero. Entretanto, quando se realiza uma descrição como esta,
algo também se prefigura através do próprio discurso, e esse algo é de algum
modo percebido pelos que entram no fluxo de sua aparição e de sua aparência.
Portanto, não acredito na possibilidade de ser compreendido, exceto no âmbito
daquilo mesmo que no discurso rasga o velamento do sentido-sendo, para logo
em seguida proteger-se de novo no silêncio da fala. Assim, a contaminação
fenomenológica descrita nada tem a ver com opiniões pessoais sobre o ―quê‖
75

da filosofia e da ciência, mas consiste em um caminho de investigação radical


do saber-ser-sendo. Compreendem?

Por outro lado, a contaminação se deu também pelo lado da Herme-


nêutica. Como se não bastasse o abismo aberto pela fenomenologia de Husserl,
fui contaminado pelo passo de volta que marca o pensamento de Heidegger. A
Fenomenologia do Da-sein é uma Hermenêutica da questão do ser: uma Onto-
logia Fundamental. Neste âmbito, o importante é a escuta atentiva do pensa-
mento que germina na origem. Isto interpreta o sentido da filosofia como o
―pensamento próprio do a-se-pensar‖ (HEIDEGGER, 1998, p. 17). Esta é a
grande questão hermenêutica em Heidegger: de que maneiras o pensamento
dos pensadores originários descortinou a origem, como aquilo mesmo a-se-
pensar, e que relações tem isso com a época hegemônica do Ocidente? E como
pela expressão ―pensamento originário‖ Heidegger compreende não a obra de
pensadores da época arcaica grega, mas a ―dádiva daquilo que no e para o pen-
samento essencial é o a-se-pensar‖, isto significa, no modo grego de pensar,
―amizade pelo que constitui o a-se-pensar‖. Ora, essa ―amizade‖ é justamente
o que os gregos chamaram, na origem, filosofia. Nesta perspectiva, não existiria
filosofia não ocidental, no sentido de que o Ocidente é originariamente grego.
Com palavras de Heidegger:
Não existe filosofia além da ocidental. Em sua essência a ―filosofia‖ é tão o-
riginariamente ocidental que carrega dentro de si o fundamento da história do Oci-
dente. E é unicamente desse fundamento que nasce a técnica. Só existe uma técnica
ocidental. Ela é consequência da ―filosofia‖ e nada além disso. (1998, p. 17)

Nessa compreensão, uma Hermenêutica do Da-sein tem sotaque grego,


ou melhor, é um retorno ao modo originário dos pensadores que ―pensam no
âmbito da origem‖. Para Heidegger, estes são apenas três: Anaximandro, Par-
mênides e Heráclito. Quer isto dizer, então, que sem o domínio da língua gre-
ga não se pode propriamente filosofar? Se, como afirma Heidegger, é uma
redundância dizer ―filosofia ocidental‖, e isto justamente porque a filosofia é
exclusivamente ocidental, ou melhor, grega, quem não tem acesso à língua gre-
ga arcaica ou à língua alemã moderna não pode dizer que filosofa. É assim
mesmo, ou essa é apenas a ―verdade‖ de Heidegger e só dele e de seus segui-
dores?

Sim, a filosofia é grega, assim como o taoísmo é chinês. Bem, e daí?


Somos ocidentais ou apenas seres humanos faladores de línguas específicas?
Qual é a diferença entre ser ocidental ou ser oriental, ou ser médio-oriental?
Aqui começa minha dúvida em relação à origem do pensamento que se diz
filosófico. O que fulgurou como encontro com a origem, só aconteceu exclu-
76

sivamente no pensamento grego dos pensadores originários nominados? Ou o


pensamento desses pensadores, na acolhida do a-se-pensar, se fez sensível à coisa
mesma do pensar? Então, as palavras ditas, por eles, ecoaram com vigor de
fonte e não com indiferença, des-velando a época do Ocidente em sua origem
e em sua vigência de origem? O que isto significa? Que o fundamento da his-
tória do Ocidente se confunde com a essência da ―filosofia‖ grega, e que, por-
tanto, é unicamente desse fundamento que nasce a técnica? O que tudo isto
propriamente quer dizer de forma inequívoca? E daí? Para onde nos leva esta
constatação? É preciso ainda filosofar.
O próprio Heidegger pode ajudar no esclarecimento relativo ao sentido da origem
propriamente dita da ―filosofia‖, e isto na direção de uma melhor compreensão
das possibilidades abertas por sua hermenêutica ontológica. Recorrendo a
Kant, ele confirma a impossibilidade de se poder dizer com precisão onde e
quando nasceu o espírito filosófico entre os gregos. Com isso ele se contenta
— mesmo a distância — ―em fazer a experiência do fundamento do ‗começo‘
da ‗filosofia‘, isto é, da metafísica numa dimensão própria‖ (1998, p. 18). Tra-
ta-se, deste modo, da Hermenêutica compreendida como experiência da ―ori-
gem‖ através da escuta do pensamento originário ouvido (lido) em sua sonân-
cia grega. Heidegger embarca fundo nessa viagem sem retorno. O seu pensar
vive dessa ressonância com a palavra da origem. Como hermeneuta do ser-
sendo, ele ―interpreta‖ o dizer dos pensadores originários como acolhimento da
origem. A sua hermenêutica é uma ressignificação do sentido-sendo a partir da
―origem‖. Ele reinventa o filosofar como reaproximação da ―origem‖ e distan-
ciamento do ―fim‖. O ―fim‖, no caso, é a técnica em sua hegemonia planetária.
É neste ponto que a contaminação de Heidegger me alcança de maneira radi-
cal, permitindo-me usar o termo Hermenêutica além do horizonte filosófico
grego. Apesar de grego, e logicamente alemão, Heidegger é, também, e antes de
tudo, Da-sein. Ele também esteve no mundo-com. É isto o que me interessa da
Hermenêutica ontológica de Heidegger: sua abertura para uma revolução ain-
da impensada no seio do ser-sendo.

É nesse ponto que o sotaque alemão ou grego da ―filosofia‖ não faz


nenhuma diferença, porque só se pode filosofar em linguagem e língua própria,
não interessando se grega ou latina, japonesa ou hindu, espanhola ou portugue-
sa. A prova disto é que em todas as línguas e culturas do planeta há poetas e
pensadores, artífices e legisladores. A questão, me parece, é de desenvolvimen-
to humano. Todo povo desenvolvido espiritualmente produz artífices e pensa-
dores próprios. E dizer isto significa reconhecer como o filosofar, antes de
corresponder apenas ao modo grego de ser, caracteriza-se pela busca amorosa
do sentido do ser em sua diversidade incessante. Afinal, o ser é sempre aquilo
77

que é no acontecimento do sentido. Sem sentido não há ser, e sem ser o senti-
do não ek-sistiria no acontecimento espacial do tempo.

De certo modo, hoje como hoje, olho para Heidegger com admiração e
suspeita simultaneamente. A admiração vem do reconhecimento da sua obra
monumental e de grande fôlego criador. A suspeita provém do fato de sua
excessiva melancolia em relação a ―origem‖, para não dizer obsessão. Talvez
tivesse sido para ele salutar afastar-se um pouco mais vigorosamente de suas
convicções filosóficas, aprendendo, assim, a falar com mais desenvoltura a
língua do pensamento em seu silêncio rasgante. Ora, mas isto ele sempre deu
provas de saber fazer com maestria indiscutível. Neste caso, não estou aqui
procurando diminuir o seu valor como pensador autêntico, mas simplesmente
dando provas do reconhecimento da diferença entre a pessoa de Heidegger e o
seu dizer de pensador radical. Afinal, para quem falava Heidegger? Por ventura
pode-se medir os efeitos da propagação de um dizer filosófico como aquele de
Heidegger? Trata-se de manter-se fiel à fonte original do seu pensar, ou essa
fonte não pertence mesmo a ninguém, e Heidegger teria simplesmente bebido
dela e se embriagado, a ponto de não mais saber o caminho de volta para casa?

O que me interessa da perspectiva fenomenológico-hermenêutica de


Heidegger é aquilo mesmo que ele diz em consonância com o seu mergulho
denso na ―origem‖ do pensamento grego. Mas justo no momento em que ele
procura territorializar a ―filosofia‖ como sendo uma coisa exclusiva dos gregos,
ele mesmo acaba deixando-se levar pela soberbia pensante, que só sabe ver a
verdadeira filosofia como sua coisa exclusiva, um domínio particular de um
determinado tipo de inteligência de dominação ideológica, longamente treinada
pela escolástica acadêmica. Neste sentido, o viço humano pela posse da totali-
dade conjuntural do todo estrutural da pre-sença contaminou também o ho-
mem Heidegger, que sofreu de apatridade radical, mas não foi corajoso o sufi-
ciente para abandonar sua confortável cidadela e lançar-se na aventura da dife-
rença por ele mesmo anunciada de maneira quase obsessiva.

Ilhado em seu próprio território simbólico-filosófico, não cabe ao pro-


feta realizar em sua totalidade a utopia da própria obra. A obra, assim, não tem
pátria nem nome próprio, pois acolheu a vertigem da ―origem‖ e se espargiu
com os ventos do mundo-vivo. A obra, também, não se resume apenas à sua
forma perenal de registro autêntico do que disse o pensador, mas ultrapassa a
própria letra em seu brilhar de estrela madura. A obra se oferta ao mundo da
vida em seu dizer impessoal e procura sempre aqueles capazes de acolhê-la em
seu dizer sempre outro, em seu aparecer sempre o mesmo.
78

Não penso aqui em negar a influência decisiva de Heidegger para este


modo de pensar, mas apenas, sendo fiel ao chamado da origem, cumprir sem
vacilos a saída jovial da cidadela do ego transcendental travestido de Da-sein.
Ou seja, se o Da-sein apresenta-se como constructo capaz de abarcar o modo
de ser próprio ao humano, como esperar que o dizer do ser fale apenas, na
origem, grego, e modernamente alemão? Não estaria na hora de radicalizarmos
o sentido do Da-sein como efetivamente aquilo que só se pode dizer o que é
pelo que já foi, mas que nunca, por isso mesmo, se pode dizer em definitivo e
por meio de uma racionalidade qualquer o que propriamente é o que se en-
contra, no presente, sendo-ser?

De Heidegger, portanto, me aproprio do sentido de abertura do que há


a-se-pensar em sentido próprio e que envolve o ente-espécie humanidade como
um todo. Sua obra interpretativa dos pensadores originários é fonte inegável de
beleza e grandeza de pensamento rasgante. É por esta possibilidade que enve-
redo por esse pensar fenomenológico e hermenêutico do educar.

 Compreensão polilógica — fenomenológico-hermenêutica — do


educar na instância do a-se-pensar

O modo sintético como descrevi a gênese da minha concepção de fe-


nomenologia e hermenêutica própria e apropriada acentua o caráter atitudinal
do caminho investigativo (filosófico) em curso. E justo por ser um caminho-
sendo (em curso), não falo de uma investigação passada, e sim de um movi-
mento instante que avança pulsivamente no âmbito de sua projeção em um
novo tempo do ser-sendo. Neste sentido, a minha pesquisa fenomenológico-
hermenêutica não oferece resultados como aqueles próprios das pesquisas em-
píricas. Os ―resultados‖, se assim se quiser, são indicadores de sínteses dos
processos vividos ao longo da investigação. A questão, então, é dimensionar o
tempo próprio da investigação. Não sendo uma investigação quantificável, o
tempo da pesquisa é o tempo do ser. Isto para dizer que a pesquisa fenomeno-
lógico-hermenêutica por mim realizada compreende o todo estrutural da vida-
sendo, em uma flutuação característica de um momento irrepetível do ser-
sendo. A pesquisa é de tal maneira a vida em sua totalidade que é inconcebível
qualquer separação entre lazer e trabalho, entre tempo de ócio e tempo de
produção de algo. E como o seu objetivo não é a mera produção de algo, mas
a realização do próprio ser, a única coisa mensurável do movimento é o que se
comunica à comunidade implicada na produção do conhecimento científico,
através do que se diz e do que se escreve em ocasiões como essa. Contudo,
quero deixar registrada a minha posição em relação ao que se qualifica como
pesquisa acadêmica séria. Não se pode medir a produção acadêmica de pen-
79

samento através dos quantificadores instituídos, porque, por princípio e natu-


reza, só se pode comparar coisas distintas através de um regime de exclusão
baseado em critérios formais e ideais de ―produtividade‖ e ―melhor desempe-
nho‖ na multiplicação de um determinado capital especulativo. Não estaria
mais do que na hora de dizer basta a essa maneira de julgar o valor da produ-
ção de conhecimento acadêmico?

Com isso quero dizer que a investigação não se fundamenta em ne-


nhuma autenticação ou autorização externa, mas se afirma pelo seu ser-sendo:
ela também é obra em movimento de vida. Assim, se pode dizer que essa for-
ma de investigação não se associa a nenhuma escola ou tendência metodológi-
ca nos campos da fenomenologia e da hermenêutica. Pelo contrário, sendo
uma pesquisa própria e apropriada é mais apropriado dizer que ela dialoga com
muitas vozes, mas não segue nenhuma delas. É neste sentido que este filosofar
foi chamado de polilógico, compreendendo-se aí não apenas a junção arbitrária
de muitas ―lógicas‖, mas, sobretudo, a reunião de diferentes vozes engajadas
em diferentes temporalidades. E isto para esclarecer um modo peculiar de
compreensão do filosofar como construção de sentido-sendo. Diante da mul-
tiplicidade de vozes existentes não tomo posição, mas acolho o ultrapassamen-
to de todas elas. É neste âmbito que o educar é o campo efetivo deste exercício de
vida fenomenológico-hermenêutico. Para mim, não há mais como separar o
fenomenológico do hermenêutico, muito menos o que se pode chamar propri-
amente de investigação filosófica pode-se separar da vida em seu acontecer
criador. Uma convicção maturada longamente é esta: a rigor, a atitude feno-
menológico-hermenêutica é disposição para a realização da vida altiva e cuida-
dosa, criadora e justa. O problema do ser, assim, é o problema do ser-no-mundo-
com. O filosofar do ser, deste modo, se torna o aprender a ser-sendo-com. Está
implicada nesta convicção uma indissociabilidade entre filosofar e educar. Não
separo o educar do filosofar. Penso o educar como o a-se-pensar — o apelo amoroso do
ser-sem-ocaso. Acolho o filosofar como aprender a ser no ser-sendo — aprender a ser na
vida-vivente; aprender o ―a-se-pensar‖ na polilogia do pensar-ser.

Aqui a perspectiva polilógica pede esclarecimentos. Na medida em que


a contaminação fenomenológico-hermenêutica deste filosofar é fundamental-
mente uma peculiar atitude filosófica, antes de tudo, é preciso realizar em si mesmo
o encontro com o des-velamento do sentido do ser. Neste âmbito, todo filosofar é
criador, e não há filosofar não criador e sim um não-filosofar. Desde a origem,
a atitude filosófica se caracteriza pelo querer-saber-ser radical. O Fragmento
101 de Heráclito — ―Eu me busco a mim mesmo‖ — pode ser acolhido nesta
possibilidade. Não vejo meio termo para o filosofar: ou ele é a busca-encontro
de si mesmo, além de si mesmo, ou ele nada será além de vaidade egóica e
80

prepotência intelectual. Muito além das vaidades, o filósofo é o que acolhe em


si mesmo a potência do ser-sendo e dela cuida como um bem que não lhe per-
tence. Neste sentido, ser filósofo significa partilhar do âmbito onde tudo se
encontra unido no mesmo Um. Assim, o que é propriamente a filosofia não diz
respeito as obras dos chamados filósofos e sim muito mais ao âmbito em que
o apelo do ser-sendo é acolhido na impermanência sensível do a-se-pensar dos
pensadores curadores do ser-sendo.

Com essa visada polilógica, o tempo do a-se-pensar próprio da atitude filo-


sófica não é o mesmo tempo linear das representações historiográficas sobre a
filosofia. Entre Platão e Aristóteles, quem é mais filosófico? E, entre Husserl e
Heidegger, quem é mais verdadeiro, no sentido próprio do des-velamento?
Em outras palavras, como negar a diversidade de vozes vigorosas que ecoam
no tempo do ser-sendo, como estações da vida em seu fluir perenal? Como
escolher, então, entre Husserl e Heidegger, quando o caso é o de saber escolher a si
mesmo, além de si mesmo?

Apresento aqui uma compreensão polilógica do sentido-sendo. Ao


juntar Husserl com Heidegger, apenas como caso pontual, não corro o risco
de cair em nenhum ecletismo filosófico. Isto porque para mim Husserl e Hei-
degger são incomparáveis, assim como são incomparáveis todas as realizações
criadoras. E como não se trata de seguir uma doutrina ou aderir a uma escola
de pensamento, e sim de realizar o a-se-pensar como dádiva amorosa do saber-
ser, qualquer pensador autêntico é fonte de um saber inigualável. Neste senti-
do, não há como afirmar que um determinado filósofo está superado e que o
que se deve agora fazer é aderir às novidades das modas ditadas pelos novos
filósofos territorializados. Afinal de contas, toda obra humana (filosófica ou
não), como obra, é superada. Desde a nascente, todo filósofo já se encontra
em si mesmo superado. Enfim, tudo o que é obra é o que já foi. Entretanto,
naquilo que já foi, na obra já feita, percute e repercute o a-se-pensar do ser-sendo.
Em tudo o que já foi o é sempre atravessa o âmbito do tempo no instante ger-
minal . Só o que não é não pode nunca tornar-se. O que é, é sempre um ser-
sendo.

E porque toda obra humana já é em si mesma um ―passado‖, não há


nunca a possibilidade de elaboração completa e acabada do sistema da Nature-
za, ou da vida cósmica, ou da vida humana. Entretanto, em cada caso singular
do ser-vida se manifesta uma de-cisão irrevogável de plenitude. E porque aqui-
lo que ―é‖ ama velar-se, o ser-sendo consiste justamente em continuar a ser.
No enviesamento de nossas vidas corriqueiras, os limites impostos pelas con-
dições sócio-históricas da humanidade não são os empecilhos para o floresci-
81

mento do pensamento criador, porque o nosso ser é sempre um ser-em-


situação. Não há, deste modo, condições ideais a serem repetidas em cada caso
para que se possa realizar a plenitude, e sim apenas falta de de-cisão radical, em
qualquer dos casos ou situação limite. Dificilmente a condição humana deixará
de lado as contradições que lhe são próprias. Dificilmente filosofaremos me-
lhor se aparelharmos nossos ambientes acadêmicos ao modo deste ou daquele
centro de excelência. O que precisamos é de melhores condições éticas para o
trabalho de pensamento. Isto é o que pode fazer a diferença. Sem isto, portan-
to, não se pode querer aprender a filosofar de modo radical e criador, e isto
sem que seja necessário apagar uma estrela sequer do céu. Entre o acender e o
apagar de estrelas, lembrando Heráclito, a vida tem um Logos que se aumenta a si
mesmo (Fragmento 115). É este o espírito que me move a filosofar, ou melhor,
dispõe-me à vida-sendo.

No polilogismo de minha fala, acolho igualmente Husserl e Heidegger,


assim como acolho uma infinidade de outras vozes. Não encontro neles e em
todas elas senão uma realização do mesmo Um. Como, então, escolher entre os
dois ou entre uma delas? Na verdade, não escolho nem um e nem outro, mas
escolho a mim mesmo, ou melhor, escolho o que me escolheu nesta aproxima-
ção com o sendo-ser. E porque eu mesmo não escolhi a mim mesmo mas fui
escolhido, atendo ao chamado do que me é possível enquanto ser humano:
conhecer-me a mim mesmo e pensar. Nesta possibilidade, nem a fenomenolo-
gia de Husserl e nem a hermenêutica fenomenológica de Heidegger são cami-
nhos possíveis para quem quer que seja, porque trazem a marca do aconteci-
mento da plenitude humanamente vivida. Para que pudessem ser caminhos
possíveis para quem quer que seja, cada um de nós teria que ser Heidegger ou
Husserl sem tirar nem pôr. Quando, por exemplo, Husserl discorre, em suas
Meditações Cartesianas, acerca do caráter bilateral da consciência, para daí falar da
síntese como forma original da consciência, sua descrição alcança uma plenitude ini-
gualável. Lendo suas considerações ocorre aprender com ele aquilo sobre o que
discorreu, mesmo se este aprendizado nunca se possa igualar a qualquer outro
aprendizado, e nunca se possa dizer que coincide com o que ele disse. Toda
leitura filosófica é sempre uma aproximação nunca uma coincidência. De qualquer
modo, as descrições feitas por Husserl são tão verdadeiras quanto aquelas fei-
tas por Heidegger, e umas não superam as outras nunca. São ambas revelado-
ras, em modos distintos, do a-se-pensar. Bem, pelo menos este é o meu modo
de acolher a diferença vívida em cada obra do pensador que dá a pensar.

A maneira como Husserl descreve a gênese da sua fenomenologia


transcendental é tão abissal como o modo com o qual Heidegger executa sua
leitura de Heráclito ou realiza sua Hermenêutica do Da-sein, em Ser e Tempo
82

(1991). Assim, quando Husserl diz que ―... poderemos definir o caráter bilateral
da investigação da consciência, descrevendo-o como uma coordenação insepa-
rável (2001, p. 57), isto revela uma de-cisão irrevogável de plenitude no ato
minucioso e metódico da descrição fenomenológica da consciência como um
retorno radical a si mesmo. Pleno de potência e esperançoso pela possibilidade
de um conhecimento universal do ser que é-sendo, conclui suas Meditações
dizendo:
Temos diante de nós um sistema de disciplinas fenomenológicas, do qual a
base fundamental não é o axioma ego cogito, mas uma plena, inteira e universal tomada
de consciência de si mesmo.
Em outros termos, a via que conduz a um conhecimento dos fundamen-
tos últimos , no mais alto sentido do termo, ou seja, a uma ciência filosófica, é aquele
em direção a uma tomada de consciência universal de si mesmo, de início monádica e
depois intermonádica. Podemos igualmente afirmar que a própria filosofia é um de-
senvolvimento radical e universal das meditações cartesianas , ou seja, um conheci-
mento universal de si mesmo, e abrange toda ciência autêntica, responsável por si
mesma.
O oráculo délfico conhece-te a ti mesmo adquiriu um novo sentido. A
ciência positiva é uma ciência do ser, a qual se perdeu no mundo. É preciso de início
perder o mundo pela epoché, para reencontra-lo em seguida numa tomada de consciên-
cia universal de si mesmo. Noli foras ire, disse Santo Agostinho, in te redi, in interiore ho-
mine habitat veritas. (2001, p. 170)

De modo paralelo, pode-se acolher este mesmo sentido de plenitude


em Heidegger, assim como em qualquer outro pensador autêntico. Em Ser e
Tempo, Heidegger afirma que:
Ontologia e fenomenologia não são duas disciplinas diferentes da filosofia ao
lado de outras. Ambas caracterizam a própria filosofia em seu objeto e em seu modo
de tratar. A filosofia é um ontologia fenomenológica e universal que parte da herme-
nêutica da pre-sença, a qual, enquanto analítica da existência, amarra o fio de todo
questionamento filosófico no lugar de onde ele brota e para onde retorna.
As investigações que se seguem são apenas possíveis na base estabelecida por
E. Husserl, cujas Investigações Lógicas fizeram nascer a fenomenologia. As explicitações
do conceito preliminar de fenomenologia de-monstraram que o que ela possui de es-
sencial não é ser uma ―corrente‖ filosófica real. Mais elevada do que a realidade está a
possibilidade. A compreensão da fenomenologia depende unicamente de se apreendê-la
como possibilidade. (1995, p. 70)

Então, quem devo, afinal, escolher como a melhor fonte filosófica para
continuar pensando, Husserl ou Heidegger? Bem, já falei desta de-cisão: nem
Husserl e nem Heidegger, mas o pensar mesmo, em si mesmo, além de si
mesmo. É isto, porém, possível, dadas as condições adversas ao pensar mes-
mo, tão marcantes nos tempos hodiernos? Afirmativamente, digo ser possível
83

deixar de lado toda e qualquer pretensão de acabamento filosófico sem perder


de vista a de-cisão pela plenitude vivente, no ato mesmo em que se pensa o
ser-sendo como realização singular do que nunca tem ocaso.

A compreensão polilógica — fenomenológico-hermenêutica — do


educar, na instância do a-se-pensar, aqui desenhada, privilegia o verbo como
lugar próprio do ser-sendo. O verbo educar é o meio de reunião de diferenças
na base do mesmo sem-fundamento. Uma hermenêutica-fenomenológica do educar
tem como seu campo de investigação o aprendizado da atitude filosófica, isto é, o
aprendizado de si mesmo enquanto ser-no-mundo-com. Neste âmbito, importa aprender
a ser-sendo. Como aprendizado de si mesmo, o educar implica na possibilidade de se
fazer-aprender a ser-sendo. Como todas as palavras aqui usadas, o ―educar‖ é uma
palavra provisória para indicar uma nova possibilidade aprendente no seio da vida-
sendo. Quero enfatizar com isto um agir fenomenológico-hermenêutico empe-
nhado em aprender-a-ser-com. Trata-se de um agir-com no horizonte histórico-
social de nossas possibilidades criadoras. Fazer-aprender a ser-com, esta é a tarefa
desta hermenêutica e fenomenologia do educar. Não se trata, assim, de pres-
crever uma doutrina filosófica nova. Pelo contrário, a questão apontada não é
doutrinal e sim ontológica: diz respeito ao ser que somos e podemos ser en-
quanto somos-no-mundo-com.

O aprendizado aqui referido fala da diversidade do poder-ser no saber-ser. O


poder-ser requisita o saber-ser. Nem poder-ser sem saber-ser, nem saber-ser sem poder-
ser. Não se trata, portanto, de um aprendizado escolar ou escolástico, um aprendiza-
do comprometido com programas sociais e políticos aparelhados ideologica-
mente para atender a certos fins mercadológicos pela qualificação tecnocientí-
fica. Entretanto, é também um aprendizado para ser realizado no âmbito da
educação formal básica e da educação superior. Portanto, é um aprendizado
que interessa a todo estado de direito constituído democraticamente. Afinal,
educar para quê?

De qualquer modo, o horizonte de sentido aqui apresentado para o edu-


car é heterotópico: o seu âmbito não prefigura uma realidade e sim uma possibi-
lidade, e uma possibilidade marcada pelo signo da diferença como diferença. O ―lugar‖
é um campo de possibilidades que escapa de toda e qualquer certeza fundada
na imobilidade do inaparente. O inaparente, afinal, não é móvel e nem imóvel,
ele é simplesmente inaparente. O ―outro lugar‖ é o lugar do tempo inaparente. A
heterotopia, assim, implica no próprio movimento das precipitações fenomêni-
cas: ela é diversidade de possibilidades de relações-com-diferentes. Afinal, a luz é
onda ou é partícula? Sendo oras onda, oras partícula, dependendo do meio de
captura, a luz é sempre ela mesma em si mesma luz. Desta forma, o lugar ima-
84

ginário próprio da utopia humanista moderna tornou-se agora o lugar imaginá-


rio inaparente. Neste sentido, não mais se trata de lutar por ideais inalcançáveis
e por sonhos irrealizáveis, mas de fazer valer a potência do poder-ser e saber-ser
que há em cada um de nós, no sentido de uma ação educante, isto é, que dê
passagem ao florescimento e frutescimento do a-se-pensar como realização do
inaparente sempre outro, sempre o mesmo. Afinal, ―como alguém poderia manter-se
encoberto diante do que nunca tem ocaso?‖ (Heráclito, Frag. 16). É este o tempo do ser-
sendo que se des-vela no horizonte deste caminho fenomenológico e hermenêu-
tico do educar.

Em relação ao tempo do ser, recorto uma passagem de Ilya Prigogine que


considero extraordinária na nomeação de outras possibilidades de compreen-
são do tempo e do seu nascimento cosmológico. Diz ele:
Aconteceu «nascimento do tempo»? A questão é muito complexa. Provavel-
mente aconteceu nascimento do nosso tempo. Provavelmente houve nascimento do
nosso universo. Está aqui o nascimento do tempo em si? [...]
Não devemos esquecer-nos: a ciência só pode descrever fenômenos repetí-
veis. Se se deu um fenômeno único, uma singularidade como o Big Bang, eis que nos
encontramos perante um elemento que introduz aspectos quase transcendentais, que
escapam à ciência.
Da mesma maneira, não creio que a vida corresponda a um fenômeno único:
forma-se sempre que as condições planetárias sejam favoráveis. E mais, creio que se
formará outro universo sempre que as condições astrofísicas forem favoráveis a tal
evento.
O nascimento do nosso tempo não é, por conseguinte, o nascimento do
tempo. Já no vazio flutuante o tempo preexistia no estado potencial.Talvez nisto se-
jamos tributários da nossa linguagem. O tempo não é a eternidade, nem o eterno re-
torno. E isto já não é somente irreversibilidade e evolução. Talvez hoje necessitemos
de uma nova noção do tempo capaz de transcender as categorias de devir e de eterni-
dade. [...]
Hoje observamos o papel das micro-estruturas, das decisões individuais, das
flutuações que se amplificam. [...]
Na cosmologia que acabo de expor é a totalidade que desempenha o papel
determinante. O fato singular, individual, só se torna possível quando implicado nesta
totalidade.
Chegamos assim a um tempo potencial, um tempo que está «sempre já a-
qui», em estado latente, que só exige um fenômeno de flutuação para se atualizar. Nes-
te sentido, o tempo não nasceu com o nosso universo: o tempo precede a existência, e
poderá fazer nascer outros universos. (1999, p. 59-60)

Ora, o tempo do ser aqui acolhido rasga a existência humana em precipi-


tações ―sempre já aqui‖. Isto implica em outras possibilidades para o ente-
espécie humanidade em sua saga aprendente. Se o tempo não evolui e tão pou-
co devém, se não retorna ao mesmo e muito menos é eterno, o tempo precede a
existência na justa medida em que a constitui em seu aparecer e em sua aparência
85

instante e multívoca. Como o inaparente de todo aparecer e aparência, o tempo é


diverso em seu próprio ser-sendo: ele é a morada do ser-sendo sempre outro,
sempre distinto, sempre único. Nesta medida incomensurável do tempo do ser-
sendo, a totalidade conjuntural do todo estrutural da pre-sença só ocorre nas
realizações singulares das flutuações viventes, e cada jogo do ser-sendo, pela
repetição do poder-ser, é sempre um jogo aberto ao tempo instante sem ocaso.
Como jogo aberto, o grande aprendizado é tornar-se sempre presente, enquanto
corpo-vivo flutuante — ek-sistente. Isto apresenta o tempo em sua diferença
ontológica germinal.

Nessa perspectiva assustadora da diferença ontológica que o tempo carrega,


a hermenêutica-fenomenológica aqui acolhida se abre para o aprendizado radical
do ser-sendo em polifônicas e polilógicas florações epocais, no sentido do espar-
gimento da potência do ser em universos paralelos e desconhecidos uns aos
outros, sem que, contudo, a inaparência radical do tempo sofra qualquer altera-
ção com isso. Assim o aprendizado do tempo do ser é o grande desafio pedagó-
gico do ―milênio das incertezas‖, iniciado neste século XXI de nossa era oci-
dental. O grande desafio, também, é aprender a conjugar o verbo ser na diver-
sidade de sua potência e na amplitude de sua extensão. Então, o aprendizado
requisitado já não diz respeito ao projeto escolástico de formação humanista,
mas requer uma outra artesania filosófica, aberta, agora, ao acontecimento do
sentido na diversidade de seus poderes criadores. Assim, divisamos a ultrapas-
sagem do tempo do Ocidente e de sua ocidentalização, no sentido da origem
originante do tempo do ser, mesmo sabendo que este divisar não exclui nada
daquilo que é a vida em seu acontecimento plural e divergente, múltiplo e im-
previsível. A questão, então, é: como fazer-aprender a ser? Temos aí uma nova
tarefa para o saber filosófico: aquela de potencializar o surgimento de novos
poetas e pensadores do tempo, pelo ultrapassamento da interdição ontológica
instituída. O tempo é, agora, a precipitação de uma outra era: a era poliental.

 O passo de volta fenomenológico-hermenêutico como uma revolu-


ção no âmbito do ser-sendo fundada na diferença como diferença —
palavras finais: o educar com a vida

A imagem do passo de volta, tão presente no pensamento de Heidegger, é


algo que define tanto uma fenomenologia da consciência como uma herme-
nêutica do ser-sendo. Na fenomenologia de Husserl, com a epoché ocorre um
afastamento (distanciamento) das verdades estabelecidas para ressignificá-las a
partir de dentro, por meio de uma atitude aprendente radical. Isto não deixa de
ser um passo de volta: um retorno às coisas mesmas, isto é, à consciência en-
carnada e situada em sua pertença ao inaparente tempo do ser. Com a atitude
86

fenomenológica, visa-se o alcance da atitude aprendente na vida e para a vida. O


caráter transcendental desta operação consiste no alcance pessoal e intransferí-
vel do fulgurar conjuntural do todo estrutural do ser-no-mundo-com. Bem com-
preendida, esta operação permitiria iluminar os âmbitos em que são conforma-
das nossas condições existenciais concretas, por meio de descrições inicialmen-
te monádicas e, posteriormente, intermonádicas e ultramonádicas. Este fluir da
consciência de si seria o fundamento para a construção de uma sociedade de
iguais. Os iguais, entretanto, são diferentes em seus modos de ser. São iguais
justamente na diferença de seus modos de ser.

Caminhando em uma paralela, na hermenêutica de Heidegger se cum-


pre, decididamente, o ―passo de volta‖ como retorno à ―origem‖. Este retorno
não é um retrocesso ao tempo histórico da origem, e sim uma retomada do
vigor originante, pelo ―afastamento‖ do ensimesmamento metafísico do ser.
Ora, isto nos joga no vórtice do tempo instante do que não conhece ocaso. É
esta abertura que me parece o a-se-pensar e que se doa para além dos territórios
culturais da filosofia secular instituída. O a-se-pensar, em sua originariedade, não
escolhe o povo ou a nação privilegiada para fazer-se palavra. Pelo contrário, se
um povo ou uma nação aprende a pensar o a-se-pensar, isto ocorre como dádiva
da acolhida da linguagem do ser na cotidianidade de sua existência. Curiosa-
mente, o ser-sendo torna-se, de múltiplos modos, o acontecimento da vida-
vivente na vida-vivida.

Diante de toda essa saga pensante, resta ainda enfrentar, de modo radi-
cal, a conformação da falsa consciência histórica que vem determinando o estado
de submissão ontológica de alguns povos do planeta e de algumas nações do
mundo. A falsa consciência histórica nos captura pelo lado de nossa pretensão do
alcance de um conhecimento intelectual apartado dos acontecimentos concre-
tos do existir. O mundo da vida reclama cuidados redobrados. A vida humana
requer atenção absoluta. Isto é algo que a humanidade haverá de aprender se
quiser vencer a barbárie por ela mesma criada e perpetuada desde a origem dos
tempos. O ser que se pode apreender não diz respeito apenas ao indivíduo
isolado ou às sociedades históricas nacionalizadas. Trata-se de uma revolução
que alcança toda a espécie humana e diz respeito a todos sem exceção. É preci-
so cuidar da vida na vida e com a vida. É preciso aprender a cuidar da vida em
vida. O bem maior, portanto, deste caminho fenomenológico-hermenêutico é
a vida-sendo: o educar com a vida, o cuidar do que é sem ocaso, na diversidade
de suas intermináveis flutuações criadoras.

Consigo ouvir em Gadamer (1998; 2002) uma voz que conclama ao


equilíbrio da vida espiritual (histórico-cultural) pela ―retificação de nossa cons-
87

ciência‖, ou melhor, de nossa ―falsa consciência histórica‖. Isto, de certo mo-


do, introduz uma outra voz nesta perspectiva polilógica do sentido-sendo, o
que vem aumentar ainda mais o seu campo de abertura para o sentido do edu-
car nele implicado. A ―retificação‖ assinalada por Gadamer aponta para a posi-
tividade do filosofar nesta nossa era dominada pela tecnociência. O modo de
acesso ao conhecimento das estruturas que conformam historicamente nossos
modos de ser-no-mundo, é aquele da vida cultural ativa. Sem história e sem
memória, o ser humano cai no esquecimento do seu peculiar poder-ser e que-
rer-saber. A vida espiritual dos povos se define pelo seus modos de vida. A
sabedoria humana tem sua gênese no modo de ser dos povos e nações ao lon-
go de suas histórias reais. O conhecimento humano só se desenvolve pela a-
cumulação de potência provinda da combustão do que é vivo e vital na memó-
ria do tempo presente.

O conhecimento humano, assim, descortina encobrimentos do que ―é‖


pela remissão ao passado. Não haveria, portanto, conhecimento humano sem
cultura histórica para cuidar dele como um bem vivo e, portanto, como um
bem que sempre está na passagem do tempo presente dos seres humanos. Para que a
história temporal do espírito humano seja algo digno de ser levado ao ―futuro‖,
é preciso a existência de curadores do tempo, no sentido daquilo mesmo que
configura a essência humana em suas possibilidades latentes e atuais. Não se
trata, assim, de fechar os olhos diante da realidade que constitui a humanidade
histórica da qual fazemos parte como seus descendentes, se não diretamente
culturais pelo menos biológicos.

Nesse sentido, teríamos que aprender a filosofar em língua e linguagem


própria se decidíssemos acolher a diversidade da vida espiritual dos povos e
nações humanas a partir de nossas próprias formas de celebrar o acontecimen-
to da existência. Isto poderia nos fazer-aprender a conviver com as diferentes
vozes do ser-sendo espalhadas pelo mundo. Teríamos, inclusive, um bom
motivo para ―apurar‖ a nossa comum prepotência intelectual diante do que se
afirma que pode e deve ser considerado verdadeiramente filosófico, ou com-
provadamente científico, ou reconhecidamente artístico, ou fielmente religioso.
Isto sem falar nas interdições abstrusas de certas autoridades epistemológicas
instituídas que se arvoram a ditar normas extrínsecas para validar processos
autorizados de produção do conhecimento, tendo como única base suas po-
bres e suspeitas competências tecnocientíficas. Para um filosofar autêntico, a
única interdição aceitável é aquela que lida com os próprios limites do aconte-
cimento humano, em seu modo de ser peculiar. Qualquer outra interdição é
jogo escuso de poder, que se deve aprender a reconhecer e a descartar com
veemência.
88

É mais ou menos assim que consigo ouvir o apelo de Gadamer quando


chama a atenção para a condição humana efetiva, no sentido de um aprendiza-
do comum e necessário a ser realizado por todos em benefício da preservação
e transformação criadora da vida-sendo. Referindo-se ao debate atual de sua
época, ele identificou duas formas de responder à pergunta sobre o papel da
filosofia na conscientização do real, no sentido da condição humana concreta.
Indo de encontro a ambas as formas de responder à pergunta, a ―conservador‖
e a ―revolucionário‖, sem deixar de reconhecer em cada uma delas alguma po-
sitividade, Gadamer pondera:

A conscientização do real poderia trazer à consciência justamente o fa-


to de que, quando tudo parece transformar-se tão radicalmente, as coisas de
fato pouco se modificam. Isso não significa que estejamos defendendo a ma-
nutenção do status quo de uma ordem (ou desordem). Trata-se antes de uma
retificação de nossa consciência que deveria reaprender a perceber por trás do
que se modifica e do que podemos e devemos transformar o inalterável e o
real. Creio que tanto o conservador como o revolucionário necessitam igual-
mente da retificação de sua consciência. As realidades imutáveis e estáveis —
nascimento e morte, juventude e velhice, pátria e estrangeiro, vínculo e liber-
dade — exigem ser acatadas por parte de todos. Essas definem o espaço de
jogo dentro do qual os homens podem planejar e estabelecer os limites de suas
possibilidades. Por mais que avance a ciência, as regiões e os reinos do mundo,
as revoluções do poder e do pensamento, todo planejamento e organização de
nossa vida nesse planeta e fora dele não poderão ultrapassar uma medida im-
posta a todos mesmo que, provavelmente, desconhecida por todos. (2002, p.
204)

Diante dessa correção de Gadamer, desse chamado para o concreto, é


preciso dizer, também corrigindo rotas, que nem tanto e nem tão pouco, e nem
muito menos no meio. É verdade, os limites de nossa existência são determi-
nados por fatores e funções por nós, provavelmente, desconhecidos. E, em
qualquer que seja o caso, haverá sempre um modo de ser-sendo que se man-
tém atrelado ao passado e se multiplica no futuro, sempre a partir do presente.
Essa correção da falsa consciência também serve para desimpedir o julgamento
parcial da pluralidade da vida. Neste sentido, a medida de Gadamer só é váli-
da, a rigor, para o próprio Gadamer, mesmo com toda a grandeza de sua obra
e com a considerável influência do seu pensamento em muitas das linhagens
hermenêuticas contemporâneas. Entretanto, isto não quer dizer que a sua obra
deve sofre restrições de qualquer espécie, do mesmo modo que não se deveria
impor restrições a nenhuma grande obra da criação humana. Ocorre o mesmo
89

problema com as demais vozes acolhidas. Nenhuma delas pode servir para
resolver nossos problemas em definitivo, do ponto de vista do aprendizado de
nossa comum pertença ao primado do que não tendo início, não tem por isso
mesmo ocaso. Entretanto, culturalmente nada seríamos sem a presença dos
que nos antecederam e realizaram, igualmente, uma de-cisão de plenitude.

Assim, neste sentido, nem Husserl, nem Heidegger, nem Gadamer é


suficiente para a de-cisão deste caminho fenomenológico-hermenêutico pró-
prio e apropriado. Mas, sem cada um deles, seguramente, este caminho não
teria a possibilidade de uma nova e única realização do que não cansa de dizer
o mesmo na refulgência do instante vívido. Na acolhida desta possibilidade,
compreendo, em síntese a fenomenologia como atitude aprendente do ser
próprio e apropriado; a hermenêutica como o modo de compreensão do ser
que somos no-mundo-com — interpretação do sentido do ser-sendo em sua
polifonia incorrigível; o educar como a atitude aprendente acolhedora das in-
findáveis possibilidades do ser-sendo, em sua inconsciente inaparência.

Filosofar, então, só em linguagem e língua próprias, o que se aprende


na acolhida atenta do instante, que nos alcança em sua valência de fonte e de
origem, sempre o que surpreende e rasga, para velar de novo, o véu protetor
do ser-sendo.

Referências Bibliográficas:

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método II. Complementos e índice.


Tradução de Enio Paulo Giachini. Petrópolis: Vozes, 2002. (Coleção Pensa-
mento Humano)

HEIDEGGER, Martim. Heráclito. A origem do pensamento ocidental Lógi-


ca. A doutrina heraclítica do lógos. Tradução de Márcia de Sá Cavalcante Schu-
back. Rio de Janeiro: relume-Dumará, 1998.

HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Parte I. Tradução de Márcia de Sá Ca-


valcante. 5ª ed. Petrópolis: Vozes, 1995.

HUSSERL, Edmund. Meditações cartesianas. Introdução à Fenomenologia.


Tradução de Frank de Oliveira. São Paulo: Madras, 2001.
90

PRIGOGINE, Ilya. O nascimento do Tempo. Tradução do Departamento


Editorial de Edições 70. Lisboa, Portugal: Edições 70, 1999.
91

7
A CONSTRUÇÃO CULTURAL DA DIFERENÇA 7

A cultura planetária contemporânea vem sendo marcada pelo signo da


Diferença. Em toda parte se ouve falar em diferença como palavra de ordem.
A palavra chega a ganhar contornos assustadores e abarca desde a mais comba-
tiva consciência ecológica até a mais torpe realidade social da exclusão. Os seus
correlatos mais próximos são a diversidade (biodiversidade, etnodiversidade,
diversidade cultural), a multirreferência (multilingüísmo, multiculturalismo,
multilogicidade) e a alteridade em suas múltiplas instâncias. Entretanto, a Dife-
rença não foi ainda dimensionada o suficiente em sua possibilidade efetiva de
diferença. Ela ainda continua subordinada ao princípio autoritário do diferente da
diferença, à separatividade metafísica entre o ser e o aparecer, o senhor e o es-
cravo. No mundo do trabalho isto fica muito evidente, mas não só aí, em toda
parte esta é a lei imperante.

Procuro aqui problematizar a construção cultural da Diferença, partin-


do de uma investigação ontológica fundamental. Para tanto, recorro ao discur-
so interrogante e tensivo, aproximando-me de uma dialogia aberta ao pensar
mesmo pelo viés da Filosofia da Diferença. A minha intenção é provocar o
pensar mesmo em quem se dispuser a seguir esta trilha discursiva dia-ferente.
Desejo apresentar uma pequena peça polifônica onde a Diferença apareça co-
mo Diferença, em uma rasgadura da cena hodierna da cultura contemporânea.

O que seria necessário, sem meias palavras, para a construção da cultu-


ra da diferença em nosso mundo globalizado, marcado pelo signo da indiferen-
ça deliberada? Seria isto possível, ou não passaria de mero devaneio, útil apenas
enquanto objeto de consumo ficcional?

A questão assim posta provoca um imediato mergulho no ambiente


complexo e turbulento da cultura contemporânea. A polifonia de vozes des-
conhecidas é assustadora. É como se todas as vozes do passado, do presente
e do futuro se encontrassem no espaço virtual de todas as possibilidades. Tudo
é aí possível. Entretanto, uma tal gama de abertura fica adiada em virtude da
soberania da indiferença no meio político e cultural global. A diferença tornou-
7
Artigo publicado na Revista Pré-textos para Discussão, da UNIFACS, 2001
92

se palavra de ordem, é verdade. Passou, inclusive, a ser politicamente correto


acolher a diferença como princípio ético universal. Mas, a diferença não está
sendo ainda vivida visceralmente como diferença, porque a ela se atribui ape-
nas o aspecto marginal da cultura de massa vigente, como se bastasse apenas
boas publicidades sobre a inclusão social das diferenças para se mudar a menta-
lidade ultramilenar da humanidade sobre o assunto. Tornou-se retórica pública
incluir o direito dos excluídos nos discursos bem intencionados do poder polí-
tico constituído, mas a ação efetiva vai em outra direção: a da indiferença deli-
berada e promíscua, onde o que vale é a lei feudal da manutenção do próprio
território material e simbólico, no qual um Diferente da diferença se coloca no
lugar da própria lei e se faz o direito universal. Trata-se, sem dúvida, de uma
doença histórica de graves consequências para a saúde espiritual da humanida-
de andante.

De modo geral, pelo fato de pertencermos ao ambiente cultural pós-


moderno, imaginamos que hoje exista mais civilidade do que nas culturas pas-
sadas. Entretanto, do ponto de vista do que aí está posto como regime moral,
mais do que nunca prolifera e domina o princípio do Diferente da diferença. Em
toda parte há exclusão e opressão, discriminação cultural e preconceito eugêni-
co. Mais do que nunca o planeta vive oprimido e indiferente ao princípio da
Diferença. A diferença agora é de ordem financeira. O valor humano é medi-
do pelo tamanho da conta bancária e não pela estatura ética do homem. E di-
zer isto é também problemático, porque a própria ética passou a fazer parte do
rol das palavras vazias e contraditórias. Tornou-se mais uma palavra que só
tem valor no enquadramento retórico das disputas por territórios marcados
por opulência e insensatez, territórios principescos e nababescos.

Os delitos, por exemplo, são sempre cometidos pelos escravos econô-


micos, nunca pelos senhores, que sempre encontram a vítima certa para pagar
por eles. Claro, há exceções louváveis, onde algum Diferente se torna a vítima
de um Diferente ainda maior. Nestes casos, a justiça humana é apenas adiada
pela aparente correção da lei cega e imutável. O fato é que vivemos sob a égide
do diferente da diferença. Em toda parte domina o indiferente, a saber: o diferente da
diferença. O que, então, significa hoje pensar a diferença como diferença, se já sem-
pre domina o diferente da diferença?

Corro aqui o risco, ao colocar uma perspectiva de compreensão da


construção cultural da diferença, de apresentar uma questão que de questão
não tem nada. E isto pelo simples fato de já se considerar como descontada a
realidade constituída pela relação do senhorio e do escravo, mesmo em pleno
estado democrático de direito. Além da panfletagem de grupos minoritários,
93

que entendem a lei da diferença como algo de uso exclusivo dos seus identifi-
cados, a luta por um regime político fundado na diferença como diferença deve
ser travada em outra dimensão, onde não basta apenas levantar bandeiras pró
ou contra isto ou aquilo, mas é preciso ultrapassar o próprio assujeitamento ao
que quer que seja. Enquanto perdurar a psicologia do assujeitamento aí estabe-
lecida, a lei do diferente da diferença não terá sido ultrapassada. O seu ultrapassa-
mento só pode ocorrer através de uma revolução cultural de longo alcance,
onde o singular humano seja acolhido em sua própria humanidade criadora e
diferente.

Diante de tamanha possibilidade, o que hoje ouvimos e vemos como


discurso da diferença não passa, na maioria das vezes, de reificação do já esta-
belecido princípio milenar do diferente da diferença. Entretanto, nada disto é ainda
claro em seu intuito provocante de um pensar pensante. E não é claro na me-
dida em que deixo em suspenso qualquer resposta pronta e previsível sobre o
que estou dizendo como diferença como diferença. Na verdade, o que estou fazen-
do é jogo jogante e não apenas jogo jogado, evocando aqui um dos temas prediletos
do atual filosofar do amigo Felippe Serpa. É como jogo jogante que falo da cons-
trução cultural da diferença, isto é, falo de algo que ainda não é já sempre sen-
do, pois risco o acontecimento da diferença enquanto diferença e não do que já está
posto como lei imperativa do diferente da diferença. Isto é mesmo de enlouquecer
a frágil psicologia humana da consolação assujeitada. Mas é diante deste vórtice
embriagante que a questão da diferença pensada enquanto diferença aparece
em cena e se impõe por força de sua própria força.

Que esquisito, acabo de afirmar que a questão da diferença tira de si


mesma a força de sua própria força. É como dizer: não se trata de uma ques-
tão derivada de uma outra coisa que a antecede, nem muito menos de algo que
a sucede enfuturando-se no arquétipo protótipo do antropomorfismo universal. Pelo
contrário, trata-se de uma questão instante: como fonte, ela brota de si mesma
ininterruptamente — pelo menos até que cessem suas condições de princípio.
Quando, então, o que está em questão é uma força que tira a sua força de si
mesma, isto também quer dizer que para que esta força exista são necessárias
condições específicas e concretas. Neste sentido, não falo de suposições fanta-
siosas, mas de efetivas condições para que a força da diferença enquanto dife-
rença nasça de si mesma, isto é, do seu próprio meio de existência. Entretanto,
como isto é possível em um ambiente cultural dominado pela indiferença onto-
lógica?
Seguindo o viés de um interrogar inconcluso, pensar hoje a diferença
enquanto diferença requer a força de pelo menos 12 mil Hércules reunidos.
Não se trata de força motora, como cavalos que movem ainda hoje carros e
94

máquinas fantásticas. Pelo contrário, a força é de natureza ética e requer um


grande potencial de energia espiritual para poder ser usada de forma criadora.
Enquanto prevalecer a lei do diferente propugnador e disseminador da indife-
rença, a diferença não encontrará condições para florescer em sua igualdade
originante. O ponto crucial, então, da propalada diferença é a igualdade origi-
nante. Ora, mas esta não está dada como dom natural, mas apenas como condi-
ção de abertura originante aberta ao seu próprio poder-ser diferente. Isto, sem
dúvida, é espantoso. E é espantoso porque põe em cena a própria liberdade
humana rasgada em sua própria possibilidade querente. Trata-se de uma que-
rência e não de uma interdição malograda. A querência origina-se da altivez
ética, e nunca um estado de submissão pode nutri-la em seu vigor extravagante.

De qualquer modo, a questão da construção cultural da diferença fica


aqui apenas anunciada em sua abertura originante. Em um espaço como este
de discussões pré-textuais, o que importa, segundo penso, é provocar fendas
pensantes que desfaçam a falsa segurança do princípio imperial do diferente da
diferença. Chega de imperadores e senhores algozes. A hora é de abandono
desta forma de filiação arrogante e subjugante. É preciso, então, cultivar amo-
rosamente a diferença enquanto diferença em sua nascente sempre nova. Isto
não quer dizer nenhuma forma de conciliação amortecedora da força jorrante
da imprevisível diferença originante da igualdade múltipla. E porque falo em
tom provocante, tenho a certeza de que permaneci fiel ao jogo jogante do i-
nesperado.

E porque o inesperado é sempre desconhecido, permaneço aberto ao


acontecimento inesperado e sempre protegido em seu próprio desconhecimen-
to. A diferença pensada como diferença, então, é aquilo mesmo que ainda não
pode ser pensado sem ser identificado como sendo isto ou aquilo. Neste senti-
do, bem melhor do que apresentar uma nova teoria da diferença é permanecer
perscrutando o advento inesperado da diferença sempre instante do instante
sem ocaso. Mas isto é uma outra questão que tangencia a temporalidade abso-
luta do ser-sendo, mesmo em sua aparente e persistente oclusão instalada e
permanente. Pensar a construção cultural da diferença é plantar sementes dife-
rentes das já plantadas, é jogar jogos ainda não jogados, é escrever pré-textos
ainda não escritos: jorrar como fonte em direção a tudo que jorra permanente,
e mesmo assim nunca abandonar o lugar nascente.
95

8
PEDAGOGIA DA DIFERENÇA: NOTAS IMPLI-
CADAS I 8

O que mais falta no campo da produção discursiva sobre educação e


pedagogia é voz própria. O pedagogo acostumou-se a ser uma voz desautori-
zada e enfadonha, que sempre fala de um lugar que não é o seu e de uma for-
ma submissa e inócua. Colocar, então, em discussão a questão da Diferença
como problema pedagógico pode logo parecer um destes modismos verborréi-
cos que acometem renomadas personalidades do mundo acadêmico, ávidos de
sucesso e de rápida inserção mediática no rol das celebridades ocas. Não trato
aqui de modismo e nem de moda. Trato da questão pedagógica por excelência,
que apesar dos enormes avanços tecnológicos e da grande quantidade de textos
sobre educação que o país vem produzindo na última década, é ainda uma
questão não respondida: — Afinal, o que significa educar?

O peso dessa questão é semelhante à questão: o que significa pensar? E


estas são perguntas tão vagas quanto: o que significa ser? Sim, o que significa
pensar, educar, ser? Não são estas, em si mesmas, questões impossíveis? E a
pergunta: o que significa Diferença, não é também impossível? Uma Pedago-
gia da Diferença, o que isto significa? Não é fácil, diante destas expressões, cair
em um jogo de efeitos persuasivos e passageiros, em um jogo de palavras apa-
rentemente consistentes e conceitos espetaculares?

Na zona dos efeitos de um discurso como este, devo dizer que o que
tenho em mira não é um simples jogo de efeitos persuasivos, mas um jogo que
disponha o pensar ao pensar mesmo: um jogo implicado, interrogante e aberto,
inconclusível, polifônico, polilógico, polissêmico. Este jogo, ao dispor-se co-
mo pensar mesmo, não delega seu acontecimento às vozes autorizadas do co-
nhecimento pedagógico, mas procura pensar exclusivamente a partir do que se
mostra como o que há para ser pensado como pedagogia da diferença. Peda-
gogia da diferença, o que é mesmo isto? Se não é modismo, do que se trata?

8
Artigo publicado na Revista ÁGERE 4, 2001.
96

Com a expressão ―pedagogia da diferença‖ quero justamente problema-


tizar o discurso pedagógico contemporâneo. Portanto, não se trata da apresen-
tação de uma diferenciada concepção pedagógica, mas da própria crítica ao
estado pedagógico no qual nos encontramos imersos como educadores e estu-
dantes de pedagogia. Assim, trata-se de dispor um discurso sobre o educar que
se articule filosoficamente, não para responder às questões próprias do nosso
tempo ou apresentar uma concepção alternativa de Filosofia da Educação que
se oferte como mercadoria intelectual a ser comercializada na basílica acadêmi-
ca autorizada. Aqui coloco simplesmente o que há para se pensar como pro-
blema pedagógico gerador de novas ações educantes, a partir do primado da
Diferença Ontológica. Trata-se, deste modo, de um acontecimento de Filosofia
do Educar que agora se oferece como hermenêutica do ser-sendo, abrindo-se
para novas florações epocais. O que digo, portanto, é apenas um dizer que
acolhe o que há ainda para se pensar como educar, lançado-se na saga interro-
gante e poemática do sentido.

Aproximo-me de um fazer poético. O que posso aqui dizer é o que me


surpreende nesta abertura para o ser-sendo. Falo do instante. Instancio uma
provocação pensante. Dimensiono o ócio como condição para que este jogo
do pensar mesmo seja jogado no vigor de um dizer dia-ferente, des-referente, di-
ferente. O objeto é o pensar mesmo, isto é, a intencionalidade é o próprio
pensar pensante. O pensar mesmo interroga: O que significa educar? O pen-
sar mesmo vive do círculo do perguntar e do co-responder. A resposta é para o
pensar uma nova pergunta, e a pergunta uma nova resposta. Por isso nunca se
responde quando se pensa, mas apenas se co-responde. É um contínuo fluir
que nunca chega à verdade, mas sempre descortina instantes do mesmo, apesar
de sempre outro.

Não pensamos quando buscamos a verdade, pensamos quando o des-


velamento vem a nós. O desvelamento é sempre uma implicação do que ad-
vém de si mesmo no encontro com a Diferença Ontológica. Pensar é ser!
Com esta máxima o pensar se faz implicado no ser do ente. Não se trata da
representação de algo passado, mas daquilo mesmo a-se-pensar como advento
de uma revolução cultural de longo alcance. A máxima de Parmênides ―...ser e
pensar são o mesmo‖, permanece aberta ao ainda não pensado: é advento advin-
do. Nos sulcos do ser o pensar se encarna no ente pensante. Não se trata do
cogito cartesiano, que deduz do pensar a prova do existir. Não é uma operação
lógica que se apresenta na máxima: pensar é ser. Trata-se, antes de tudo, de um
encontro do ser e do ente, uma conjunção, uma comunhão entre diferentes. A
expressão pensar é ser nomeia a diferença a partir do mesmo. O mesmo, portan-
to, não é a identidade de ser e pensar, mas a diferença de ser e pensar. O ―é‖
97

não aponta para uma igualdade e sim para um movimento. O que é está sendo,
não foi e nem será. Pensar é ser, então, diz: ser faz pensar, pensar faz ser. O
―é‖ é o que está sendo. Assim, o pensar está sendo o ser e o ser só é no pensar.
Ou melhor, o pensar acolhe o que é como ser. Mas, o que é o que é acolhido
como ser pelo pensar?

Com esse discurso algo de estranho se nos apresenta. Aonde nos leva
este questionamento ontológico? Qual é o seu nexo com a nossa realidade
instituída e com a nossa possibilidade instituinte? Indo direto ao assunto, com
este discurso ontológico recolocamos a questão pedagógica a partir de um sen-
tido radicalmente simples e originário. A questão da diferença, então, passa a
ser o eixo gerador de uma nova articulação crítica para a investigação e mudan-
ça de regime do nosso próprio estado pedagógico. Qual é a consciência que
possuímos do educar? Somos seres pensantes, como educadores, ou simples-
mente máquinas programadas que se limitam a expelir o que se impõe como
norma e como dever? Se somos seres pensantes em nossas práticas e teorias
pedagógicas, por que é que não somos capazes de transformar o mundo? O
que nos falta para transformar o mundo?

Essa é uma provocação que chama a atenção para a importância do


aprender a pensar. Infelizmente, não fomos educados para o pensar. A verdade é
que não aprendemos ainda a pensar. A nossa pedagogia é marcada pela aquisi-
ção de conhecimentos e não por uma efetiva construção do saber-ser. O a-
prendizado do pensar é ainda uma promessa pedagógica em nossas práticas
cotidianas. Estamos ainda muito longe de uma prática pedagógica efetivamente
fundada no primado da diferença enquanto diferença. Nós educadores, de uma
maneira geral, praticamos ainda uma pedagogia do desespero e da opressão, e
nos submetemos ao primado da heteronomia do poder instituído e tirano.
Fazemos, ainda, muito pouco em relação ao que há a ser feito. Somos muito
acomodados. Será por isso que não se quer levar a sério o radical aprender a
pensar? Afinal, a que forças servem os educadores? Ser educador significa,
por ventura, ser serviçal de um poder instituído e prepotente? O educador é
um servo das forças imperantes, um funcionário burocrático sem direito a voz
própria?

Infelizmente, é preciso que reconheçamos a nossa condição de indi-


gência como educadores de profissão. Não fomos ainda capazes de produzir
um pensar próprio, ou quando isto ocorre, temos insistido em adotar posições
partidárias e irrefletidamente dogmáticas, quando o que se precisa é justamente
a ampliação da potência que um pensar próprio faz germinar. Adotamos Pia-
get ou Vygotsky, Paulo Freire ou Wallon, Anísio Teixeira ou Rogers, Marx ou
98

Gramsci etc. como referenciais pedagógicos, mas poucos são aqueles que ou-
sam fazer destes grandes apenas um motivo para ir adiante, dar continuidade
criativa ao que ofereceram como obra. O dado é que não precisamos de dou-
trinas pedagógicas, e sim de ações pedagógicas criticamente instruídas. Os
grandes autores são nossos interlocutores não nossos mandatários. Afinal, só
se pode compreender um grande quando nos tornamos da sua altitude. O diá-
logo só existe entre iguais. A desigualdade é geradora de submissão e de covar-
dia. Não há grandeza na desigualdade e submissão, apenas assujeitamento.

A perspectiva aqui apresentada de uma pedagogia da diferença dirige-se


aos sequiosos de igualdade, os livres. A diferença pensada como diferença
nada tem a ver com desigualdade. A diferença não é o desigual, a diferença é o
igual na proximidade do encontro com a diferença. O que isto quer dizer?
Quer dizer apenas isto: o mesmo. O mesmo, entretanto, não é repetição, mas
diferença instante: imanência aberta no nada, o sem-fundamento. O mesmo da
diferença é a sua repetição como diferença. A diferença, entretanto, não admi-
te um diferente da diferença. Isto seria cair na trama metafísica do mundo, e aceitar
como lei o que é apenas caso. Não há um diferente da diferença na diferença.
Isto seria identidade hierarquizante, ou seja, seria admitir uma polarização onde
um dos pólos comanda e outro é comandado. Trata-se do binômio metafísico
que nomeia o ser como o diferente da diferença, impondo ao pensar uma iden-
tidade de espelhamento do ser. Este binômio estrutura a história da metafísica
ocidental, e estabelece para a razão humana uma tarefa hierarquizante e morali-
zante. A própria racionalidade desenvolvida no Ocidente é hierarquizante e
moralizante. A razão ocidental se desenvolveu na direção da vontade de co-
nhecimento, e neste sentido ela abomina a vontade de potência. Como vontade
de conhecimento, a razão perpetua domínios e territórios: hierarquiza.

Pensar a razão ocidental como história da barbárie e como estrutura


hierarquizante significa reconhecer que assim todos nós somos programados.
Nossa cultura, nossa história é feita de barbárie e de desigualdade. A nossa
igualdade de origem, a nossa diferença, não foi pensada pela razão, exceto para
manutenção de seu sofisma idealista. O sentido de igualdade foi tomado a par-
tir do primado de um diferente da diferença. Toda sorte de imperialismo daí
advém. O fato é que vivemos em um regime de desigualdade quando nossa
origem é igual. Todos somos iguais. Esta afirmação, entretanto, não desfaz o
estado de coisas em que nos encontramos imersos: há desigualdades em toda
parte. Vivemos sob um regime tirânico disfarçado de democracia. E não me
refiro apenas ao nosso país, pois isto é um fenômeno mundial. E neste regime
parece não haver muito espaço para a germinação de uma humanidade de i-
guais fundada na diferença. A luta a ser travada é ainda do tamanho do univer-
99

so. Nenhuma consolação metafísica e nenhuma migalha social podem nos bas-
tar, caso desejemos realizar a vontade de potência de uma humanidade de i-
guais e não de desiguais.

Se a pedagogia da diferença aqui apresentada não é um mero jogo de


efeitos persuasivos e encantatórios e nenhum instrumento de vaidade pessoal,
ela há de ser o além-pedagogia que aí está. Neste sentido, ela ainda não foi, mas
está sendo. E é porque está sendo que ela ainda é o que não aparece. Assim,
ela é o lugar da crítica pedagógica contemporânea e o seleiro de uma nova Fi-
losofia do Educar. Agora o que importa é o verbo. Trata-se de uma Filosofia
da ação de ser-sendo: acontecer-apropriar. Isto ainda é promessa porvindoura,
apesar de já ser-sendo. É porvindoura porque não se identifica com o estado
de coisas que aí está. É porvindoura na esperança dos que a realizam no agora,
na imperfeição do caso. Portanto, não se trata de mais uma ideologia imposta
por feudatários diligentes e espertalhões, mas do cuidado com a humanidade
do humano advindo, do humano igual no seio da diferença.

É claro, um tal discurso não resolve nada do ponto de vista do estado


de coisas instaladas na cotidianidade burocrática dos eventos disciplinados pe-
las minorias usurpadoras. Entretanto, como discurso, ele dispõe este estado
de coisas no campo imanente de uma revolução cultural de longo alcance.
Então, para que isto possa fazer sentido, precisamos aprender a aprender. A-
prende-se a aprender, é claro, aprendendo. Isto é óbvio. Aliás, nada do que
aqui se pode dizer é algo de novo. Nada há de novo sob o sol. Isto é tão antigo
quanto Salomão. Contudo, o mundo é sempre novo a cada instante, a come-
çar do sol. O que não há de novo sob o sol é o espectro de suas infindáveis
possibilidades. Mas tudo é sempre novo sob o sol, mesmo na aparente repeti-
ção. Aliás, a repetição é o acontecimento da diferença. Mas há também repe-
tição sem diferença, esta é a submissão. Na submissão não há diferença na
igualdade e sim negação repetida. O problema é o estado de submissão. Ser
submisso é a negação da diferença na igualdade, é o mesmo que não-ser.

De modo evidente, a questão da diferença dificilmente nos deixa indi-


ferentes. Ela é uma questão crucial e incômoda. O dado é que somos, em ge-
ral, demasiadamente indiferentes à ausência da diferença. Nossa indiferença
nos torna submissos e impotentes, meros funcionários de hegemonias estúpi-
das. Ser indiferente, então, é o mesmo que não-ser. Afinal, como pode alguém
sensato acomodar-se diante de tanta indigência? Que mundo é este? Que lei
tirânica é esta que não deixa ser o igual? Que inferno é este onde impera a
desigualdade entre iguais?
100

A indiferença, entretanto, se impõe como norma de conduta: moral de


rebanho, falsa mansidão, falsa humildade. Porque somos indiferentes às desi-
gualdades instituídas socialmente não sabemos realizar a potência da igualdade.
Contudo, a igualdade nada tem a ver com uniformidade e submissão. A igual-
dade nos é dada como diferença. Mas não se trata de uma diferença pensada e
vivida a partir de um diferente. A diferença é o que nos garante a igualdade de
origem no campo da imanência absoluta. Não se trata, em nenhum dos possí-
veis casos, de uma submissão a algo transcendente, mas de um encontro ima-
nente de iguais: eis a diferença! E isto não acontece indiferentemente, como
poderia ocorrer uma diferença indiferente?

A diferença é sempre uma implicação imanente: acontecimento explo-


sivo do ser-sendo — rompimento do véu subjetivo da submissão. Não há
diferença fora da igualdade originante. O que pode haver, sem dúvida, é o uso
indiferente do poder-ser igual. Mas isto nada tem a ver com a diferença, isto é a
oclusão da potência igualitária do ser-sendo. Pela oclusão da igualdade na dife-
rença, a diferença se torna indiferença. Pela indiferença nada somos além de
máquinas humanas em estado permanente de submissão. Que pobreza de espí-
rito deixar-se dominar pela indiferença e pela desigualdade! Mas, infelizmente,
este é o nosso estado de não-ser.

Como, então, aprender a ser — aprender a aprender? Será isto tarefa


pedagógica viável, ou não passa de imaginação assustadora? Podemos, então,
realizar uma pedagogia da diferença, ou isto não está ao nosso alcance, ou está
apenas ao alcance da imaginação? Mas, não seria temeroso um pensar que não
potencializasse o concreto permanecendo na simples especulação? Para que
serviria um pensar meramente especulativo? Não seria isto o mesmo que per-
manecer encoberto na indiferença do ser e do ente? Não seria isto negação da
potência imanente e lucífera da diferença ontológica, isto é, da igualdade origi-
nante do ser humano e sua possível humanidade ou desumanidade?

Se a questão primacial da pedagogia da diferença é o aprender a apren-


der, a ideia de ensinar se torna ultrapassada. E isto é verídico em todas as ins-
tâncias da vida prática. O conceito de ensinar é próprio de uma pedagogia de
conteúdos e se baseia na negação da diferença enquanto diferença, pela afirma-
ção do diferente da diferença. É justo este princípio, que privilegia uma das
partes da diferença, que está na base das forças da indiferença humana do que
está aí instalado como lei e realidade. O mundo em que vivemos é a expressão
de uma época dominada pela indiferença em relação à diferença ontológica.
Neste sentido, estamos em um mundo marcado pela desigualdade entre ser e
ser do ente, entre dominante e dominado. É para este mundo que o conceito
101

de ensinar está a serviço: um mundo apenas para alguns, mundo de exclusões e


sabichões. Diante disto, o âmbito da igualdade originante permanece encober-
to, cabendo à parte privilegiada da diferença ensinar o certo e o errado. Que
pobreza! Que desolação! Que tristeza!

A questão da diferença ontológica, então, descortina uma outra possibi-


lidade para o educar. E esta possibilidade não é quimérica e inatual, diante do
quadro geral da civilização robótica e da virtualidade instantânea de todo co-
nhecimento. Esta possibilidade é via de acesso para o acontecimento do educar
como aprender a aprender, e isto pressupõe a superação do atual regime de
desigualdades e de imposições dogmáticas, e requer a presença viva dos que
são capazes de sair dos domínios da indiferença ontológica e da desigualdade
imperante. Neste caso, conhecimento sem saber é assujeitamento ao que usur-
pa o poder da igualdade fazendo-se o diferente da diferença. Pedagogia do
ensinar é a pretensão de alguns de se tornarem senhores absolutos do sentido.
Esta é a estupidez da nossa civilização: somos cativos de um desarranjo gástri-
co-intestinal crônico e acabamos como excrementos dos diferentes da diferen-
ça. Como, porém, ultrapassar este estado de coisas? Não já estamos atolados a
essa lama gástrico-intestinal até o limite, como seria, então, possível sair dela?

É muito comum que o atual estado de miséria humana nos torne pes-
simistas incorrigíveis. O mais difícil é fazer brotar uma pedagogia da diferença
em um terreno já ocupado e já indiferente. O dado é que para mudar este es-
tado de indigência indiferente é preciso mudar todas as relações de poder vi-
gentes. Isto significa, a rigor, uma mudança radical de atitudes em relação ao
que está aí imposto pelos poderosos autorizados. Isto significa uma revolução
cultural de longo alcance. Infelizmente, talvez isto ainda não nos alcance, por-
que estamos muito comprometidos com as estruturas vigentes de poder, e já
não possuímos potência para salinizar a indiferença. Nos tornamos demasia-
damente assujeitados para que de nós possa nascer algo de grande. É isto
mesmo? Somos impotentes diante das estruturas de poder dominantes e impe-
rantes? É esta a nossa atitude diante do educar: silenciamos frente à indiferen-
ça e como rebanho de desalmados cumprimos a lei do diferente da diferença?
Seria possível para nós, seres assujeitados, romper esta cadeia de indiferença e
desamor? Se possível, como fazer isto?

De certo modo, é preciso reconhecer que o nosso sujeito está assujei-


tado a ideia de dever. Trata-se de um sujeito que deve obedecer à lei do dife-
rente. A nossa pedagogia está infelizmente perpassada por esta covardia onto-
lógica. Toda ela é uma pedagogia da submissão. Por isto ela inventou a ideia de
ensino e de imposição de conteúdos supostamente úteis para o desenvolvimen-
102

to das capacidades e habilidades humanas a serviço de um mundo territoriali-


zado e indiferente à diferença originante de nossa igualdade ontológica, isto é,
indiferente à igualdade ontológica do ser humano enquanto ser humano: sua
diferença na diferença.

Diante desse quadro assustador, que coloca a nossa atual pedagogia no


rol dos crimes cometidos contra a humanidade do ser humano, como é que os
pedagogos e educadores aqui presentes se sentem? Indignados, por serem
acusados de assujeitados crônicos? O que vocês me dizem? Mandar-me-ão
para o inferno por vos acusar de indiferença diante da diferença ontológica?
Bem, podem me xingar a vontade. Eu também me incluo entre os acusados:
estou me auto-acusando de assujeitado ao dizer isto. Reconheço, em mim
mesmo, o acontecimento da impotência diante de um mundo já dominado
pelo diferente da diferença. Um mundo onde não há lugar para o igual, apenas
para o desigual. Entretanto, por reconhecer a impotência responsabilizo-me,
também, pela sua possível cura, em primeiro lugar em mim mesmo, não como
sujeito isolado, mas como ente-espécie que também sou. E então, por que
estou sendo tão duro na apresentação desta pedagogia da diferença? Por que
me insurgi contra a indiferença peculiar de uma pedagogia marcada pela lei do
ensinar? Por que escolhi incomodar e não acomodar?

Penso que só pode haver uma pedagogia da diferença quando nos dis-
pusermos a aprender a aprender entre iguais. Isto muda tudo. Mas este mudar
é ainda porvir, porque não estamos ainda sendo iguais em nossas práticas e
hábitos pedagógicos. Nos comportamos, de uma maneira geral, como diferen-
tes da diferença: pretendemos ensinar aos outros o que apenas pode ser apren-
dido conjuntamente. Nos esquecemos do cuidar da diferença que todo apren-
dizado requisita. Não se aprende o que é ensinado. Aprende-se o que é apre-
endido em um ambiente de interações abertas e iguais. A igualdade, no caso,
não é o que se conhece, mas o que se pode saber. Igual é somente aquele que
sabe. O que apenas conhece não é igual, pois o conhecer impõe hierarquias
desiguais e anula a diferença como diferença.

Uma pedagogia da diferença, então, não é uma mirabolante fantasia vir-


tual, um mero jogo de estilo onde as palavras diferença e igualdade são eleitas
como signos imaginários de um delírio filosófico qualquer. Uma pedagogia da
diferença corresponde ao acontecimento encarnado de uma outra possibilida-
de para a espécie humana, fora do regime de desigualdades em que nos encon-
tramos imersos. Isto implica em uma revolução ontológica lenta e contínua,
onde a meta é a própria igualdade humana fundada na diferença. E a lentidão
desta revolução nos vacina contra a apressada procura de soluções pedagógicas
103

fáceis e mantenedoras da desigualdade imperante. Afinal, será que somos ca-


pazes de uma tamanha façanha ontológica: romper definitivamente com o
princípio moral do diferente da diferença?

Penso que a surpresa e possível indignação que este modo de falar pro-
vocam atesta o nosso estado geral de assujeitamento à ordem tirânica estabele-
cida. Como mudar esta ordem? Que poder possuímos para um tamanho feito?
Não é esta uma aspiração impossível diante do quadro geral da submissão rei-
nante? Como aprender a ser em um mundo marcado pelo diferente da dife-
rença? A que serve, então, o aprendizado do pensar? Serve para nos enquadrar
à ordem estabelecida, ou serve para nos acostumar à não submissão a qualquer
que seja o argumento indiferente? O que podemos fazer diante deste estado
patológico onde a igualdade não é ainda vivenciada como diferença?

Bem, uma pedagogia da diferença não é doutrina pedagógica, mas críti-


ca radical da condição de assujeitamento dos iguais. Ela é um éthos aberto na
igualdade originante que a tudo une na diferença ontológica. Pedagogia da
diferença, então, é o nome apropriado para uma radical mudança de estado de
ser. Estamos diante de um projeto mais que milenar, um projeto ultramilenar.
Isto não poderá ser feito senão lentamente, ao longo de muitas e muitas gera-
ções. Entretanto, é preciso cuidar para que o advento de uma humanidade de
iguais possa se fazer carne encarnada: espírito vivo imanente. E isto requer
estratégias de ação. Estratégias abertas, cujas regras não estão mais ditadas pelo
diferente da diferença, mas são constituídas na relação de iguais. A diferença,
então, não assinala para os diferentes tipos humanos, e sim para o fundamento
comum que nos torna iguais em potência.

A diferença não é, portanto, a dessemelhança dos tipos humanos, mas


apenas o âmbito do advento do inesperado. Como iguais nunca somos idênti-
cos, mas apenas participantes da mesma potência originante. E esta potência
não pára de acontecer em sua instantaneiadade absoluta. Esta potência é ins-
tante advencial impermanente: sua força originante é o caos e não a ordem.
Não se trata do caos compreendido como desordem, mas do caos como âmbi-
to de todas as possibilidades originantes e ontologicamente iguais, não apenas
semelhantes ou reflexivas.

Não é, definitivamente, por comparações ou espelhamentos que se po-


de alcançar o veio pulsivo do aprender. As comparações, no caso, são apenas
imposições hierárquicas que perpetuam a manutenção da estrutura desigual
entre iguais. Comparar é assujeitar-se ao já determinado pelo diferente da dife-
rença. Em uma pedagogia da diferença o ato de comparar é cuidadosamente
104

abolido. A comparação perpetua o princípio da exclusão, e a diferença fica


confundida com o ato de manipular iguais pela astultícia de alguns. Em uma
pedagogia da diferença a comparação dá lugar ao reconhecimento da singulari-
dade criadora.

Os iguais produzem o alimento da vida ativa, e não deixam margem pa-


ra comparações assujeitadoras. Não se compara o que é igual, mas valoriza-se
a proveniência e perpetua-se a singularidade do comum. É assim que uma pe-
dagogia da diferença reencontra-se com o mundo da vida e o mundo vivido. É
enquanto ser-no-mundo que a relação entre o homem e a natureza se faz na
Diferença. Isto significa dizer que o ―mesmo‖ está sempre acontecendo, e é
este acontecer que torna o ser igual ao ente, isto é, a diferença fica garantida no
próprio reconhecimento do pensar como ser. Assim, só o pensar abarca o ser
em sua totalidade enquanto ente. Só o pensar propriamente é o mesmo que
ser. O ser, portanto, não é o ente, mas o que ultrapassa sempre o ente. Ora, o
que sempre ultrapassa o ente não é nada, ou seja, nunca é isto ou aquilo, ape-
nas é o que é. Sendo o que apenas é, o ser está sempre sendo. Que espanto!

O ―mesmo‖, então, é o próprio campo desta Diferença, o meio de seu


acontecimento criador. Neste sentido, a Diferença é a própria condição de
abertura originária para o advento de uma humanidade de iguais, na singulari-
dade criadora de cada igual. Não há, então, monotonia ontológica neste reco-
nhecimento da igualdade na Diferença, porque a Diferença, agora, é aconteci-
mento advencial do ser-no-mundo. Diante de tal ontologia, o acontecimento é
sempre polifônico e único. A igualdade, então, é o sinal de uma potência co-
mum para o não assujeitamento do ser a qualquer que seja o ente determinado,
Deus ou a Natureza, o Capital ou o Estado, o macho ou a fêmea. O ser, nesta
grandeza, pode ser cada um de nós na advencialidade do encontro criador com
a diferença, isto é, na medida em que cada um se fizer igual pela realização de
sua potência ontológica.

Até aqui provoquei o pensar próprio e apropriado, nada fiz senão ten-
sionar a possibilidade de uma outra época pedagógica fundada na diferença
enquanto diferença. Incomodei-vos? Se não fui capaz de tanto, sairei daqui
frustrado. Caso, porém, vos tenha provocado uma outra possibilidade para o
pensar pedagógico, tenham certeza de que isto não diz respeito a uma posição
pessoal, mas a uma dimensão comum que a todos convoca como seres nela
implicados. Estas notas implicadas de pedagogia da diferença, então, dizem respeito a
uma Filosofia do Educar polilógica e polifônica, posto que a igualdade admiti-
da como fundamento comum é a própria diferença enquanto diferença, o que
significa dizer: acontecimento criador implicado, isto é, responsabilidade ética
105

diante da própria possibilidade humana de não-assujeitamento a nenhum ente


determinado: disposição para o inesperado retorno do mesmo, o instante abso-
luto na proveniência do nada.

A minha questão, agora, é saber como é que algo deste quilate pode vir
a tornar-se tema de interesse nos discursos pedagógicos e filosóficos da con-
temporaneidade. Como é, afinal, que vamos aprender a aprender, já que esta é
a máxima desta pedagogia da diferença? Este desafio é deveras desafiante. Ele
pressupõe uma sistemática desconstrução de todo o edifício da metafísica oci-
dental e de toda crença dogmática na ciência imperante e na técnica dominante.
Trata-se, sem dúvida, do aprendizado do pensar próprio e apropriado. Não há
fórmulas para isto e nem sistemas filosóficos ou pedagógicos que possam ser
adotados como modelos garantidos de intervenção metodológica, por que o
que está em jogo é o ser humano em sua igualdade singular. Isto, então, pres-
supõe pessoas preparadas para lidar com a polifonia e a polissemia do aprendi-
zado, isto é, pressupõe pessoas abertas ao acontecimento da diferença, pessoas
responsáveis e efetivamente críticas, pessoas dedicadas ao cuidado dos iguais
em suas possibilidades únicas de criação do mesmo poder-ser.

É claro, estamos muito longe de uma pedagogia da diferença assim


concebida. Mas é justamente esta distância que circunstancia a necessidade de
uma nova epistemologia do educar, tendo como campo intencional uma revo-
lução espiritual de longa duração, e não uma pedagogia a serviço do que aí está
posto como mundo do trabalho e do capital aplicado. Apesar de já ter sido
iniciada desde o início do tempo humano, está revolução ainda não foi mini-
mamente experienciada pela humanidade, o que torna o empreendimento ain-
da mais ousado e assustador.

Trata-se de uma revolução de mentalidade e atitude diante do aconte-


cimento da vida implicada, isto é, a vida encarnada do ente-espécie humanida-
de. E como se sabe, nada há de mais indeterminado e difícil do que a mudança
de mentalidade. Afinal, trata-se de abandonar uma programação humana base-
ada na desigualdade e na indiferença. Quantas gerações serão necessárias para
que esta mudança ocorra? Felizmente a razão humana não tem como estimar
esta possibilidade, porque a ela não cabe comandar o processo na condição de
dominante — o diferente da diferença —, mas apenas de registrar a continui-
dade do advento da diferença enquanto diferença. Isto já é muito para a razão
humana: ser o seleiro advencial do inesperado que se espera no instante abso-
luto do tempo.
106

Isto nos lança no abismo do nada, onde temos que aprender a dançar
sem nenhuma razão ou desrazão. E esta dança não é a embriaguez mística das
alucinações lisérgicas ou psicotrópicas, mas a própria abertura da diferença em
seu inevitável retraimento advencial. O que é não pode ser dito. O que pode
ser dito é sempre o que já foi ou será. O que é está sempre protegido de qual-
quer conhecimento sobre sua origem ou fim. O que é apenas desvela-se en-
quanto diferença. Por isso o que é jamais pode ser perscrutado em seu aconte-
cimento. O que é irrompe do silêncio e a ele retorna sem cessar: mostra-se,
ocultando-se no acontecimento. O que é não pode ser descrito, apenas viven-
ciado. A descrição já não alcança o é, mas apenas o que foi. Mas, é na descri-
ção que se guarda o que está sendo de sua alienação. O que está sendo, afinal, é
o que ainda é, portanto, o próprio aberto da abertura originante.

A questão, agora, é o como realizar esta revolução espiritual a partir do


educar em todas as suas instâncias e graus. Claro, isto implica em decisões
radicais e em uma prática pedagógica que assuma, como prática, sua própria
ciência com independência e colaboração com as demais áreas do conhecimen-
to. A questão, então, é de superação do atual estado de assujeitamento do edu-
cador, através de uma atitude revolucionária diante com os seus iguais educan-
dos. É preciso preparar uma nova floração de indivíduos humanos que não se
assujeitem ao princípio de autoridade imposto pelos regimes barbáricos das
sociedades prepotentes e monologicamente hegemônicas. É preciso que o edu-
car esteja a serviço do aprender a ser para além do formalismo escolar instituí-
do, abrindo-se para o salto liberador da diferença ontológica, isto é, da igualda-
de originante em todas as instâncias do existir humano.

Bem, aqui o tom do discurso é exortativo, o que nada resolve e talvez


nada esclareça. O ―é preciso que...‖ indica apenas uma urgência. A questão é
saber se temos condições para atender a esta urgência e quais são elas, as con-
dições, para uma efetiva mudança de regime pedagógico em nosso meio. Se
assim decidimos, por onde começar? Por que não começar agora? Começar
agora significa decidir tornar-se um igual na diferença em todos os momentos.
Significa despertar do sono dogmático e da má querência ancestral. Apenas
uma decisão é preciso, mas sem ela nada se pode fazer, nada se pode desejar de
grande. E esta decisão é sempre uma cisão bem demarcada. Decidir significa
romper e rasgar, cindir e interromper uma ambigüidade subjugante. Decidir é o
mesmo que aprender a ser-sendo: lançar-se ocioso no acontecimento da doa-
ção liberta.

Sem dúvida, todo este discurso nada tem de normativo e nada resolve
para o estado atual da nossa indigência pedagógica. Caso fosse um discurso
107

normativo não seria filosófico. Porque é filosófico, ele não precisa esquivar-se
da compreensão transcendental para fazer-se conhecimento comprovado.
Esta é uma diferença que quando não apreendida na sua dinâmica articuladora
conceitual e agente, acaba provocando uma noção obtusa de Filosofia, como se
esta fosse apenas a metafísica, entendida como o lugar da verdade dogmática,
provinda da interpretação autorizada e teologicamente justificada, interpretação
que institui significados únicos e unívocos. A verdade é que a imagem que se
faz da Filosofia é a de uma velha senhora aposentada que vive a recordar. Cla-
ramente, não é esta a Filosofia da qual me refiro. Não falo de uma Filosofia
escolástica e cheia de interdições normativas. Falo da atitude de investigação
radical do nosso comum pertencimento ontológico. Filosofia, não é, então,
um sistema de ideias concluídas e concludentes, mas apenas a abertura para a
realização do projeto e processo humanos a partir de um ethos concretizador e
advencial, ou seja, a partir de uma atitude prolongada e duradoura que acolha o
viver na sua bem querência e se disponha à plenitude valente e transvalorante,
cuja meta é o instante único na sua polifonia irradiante e re-tornante.

O que queremos ser, afinal, na condição de educadores? Onde encon-


trar coragem para uma tamanha façanha revolutiva? A condição da nossa indi-
gência pensante nos torna mal querentes. Os hábitos adquiridos e os costumes
cotidianos nos tornam preguiçosos para uma mudança tão intensa e radical
como esta. É mais fácil, então, permanecer na comodidade do que já está deci-
dido. Dá menos trabalho do que agir segundo o ethos da co-responsabilidade
integradora da diferença. Entretanto, a única possibilidade para o surgimento
cultural de uma pedagogia fundada na diferença enquanto diferença é a exis-
tência de seres humanos transgressores da indiferença ontológica. É preciso
que alguns se tornem agentes de uma pedagogia da diferença em suas próprias
praticas pedagógicas. Estes alguns haverão de estar muito bem preparados para
este agir diferenciado, e haverão de assumir o ônus da impertinência de suas
ações. Isto não prescreve nenhum caminho acabado. Pelo contrário, apenas
lembra como uma pedagogia da diferença só faz sentido a partir do ethos da
igualdade originante, onde não se ensina, mas se aprende a ser-sendo-com-
outros na adveniência do aberto transpessoal. Não se trata, portanto, de afir-
mação pessoal, mas de encontro derradeiro com a diferença surpreendente,
sempre outra, sempre a mesma, nunca antes, nunca depois, sempre única: ins-
tante sem ocaso.

E os demais passos? Bem, os demais passos são ações discretas que


passam despercebidas do olhar cativo: recolhem-se no velamento protetor.
Desejo, então, que alguns aqui possam sonhar com o descortinamento mostra-
do e de que se percebam implicados no princípio infundado da diferença: pos-
108

sam se fazer diferentes na igualdade originante — realizem em suas vidas a


pedagogia da diferença. Ofereçam-se altivos ao acontecimento da maestria do
que nunca tem ocaso. A guerra está declarada! E agora, como serei devorado por
vocês?
109

9
PEDAGOGIA DA DIFERENÇA PENSADA COMO
DIFERENÇA: NOTAS IMPLICADAS II 9

Felippe Serpa vem insistindo no fato de que a questão da Diferença


como Diferença vem sendo comumente articulada a partir do conceito de I-
dentidade. Deste modo, interpreto que o que deveria ser a Diferença como
Diferença se mostra como o Diferente da diferença, tornando-se a questão
uma mera redução da Diferença ao Princípio de Identidade pensado no hori-
zonte da metafísica tradicional. Parto desta tensão para desenvolver o tema da
Pedagogia da Diferença. Não vou aqui falar desta nova moda pedagógica cha-
mada de Pedagogia da Diferença, no sentido de proclamar uma doutrina e pro-
fessar uma nova verdade hegemônica e monológica. Pelo contrário, vou aqui
problematizar estes dois conceitos: o Diferente da diferença e a Diferença co-
mo Diferença.

A rigor, a investigação da questão da Diferença pensada como Diferen-


ça requer uma radicalidade de princípio de difícil acesso. E como não acredito
em mediações facilitadoras e sim em mediações potencializadoras, não preten-
do aqui facilitar a sua compreensão por meio de simplificações. Entretanto,
pretendo fazer-vos pensar a Diferença na perspectiva do aprender a ser, isto é,
sob a égide da experiência própria e irrepetível de cada um em sua interpolijec-
tualidade 10, isto é, enquanto membro de uma coletividade associada e partici-
pe de uma unidade indissociável entre sujeito e objeto. Deste modo, pretendo
apresentar uma possibilidade de elaboração crítica do tema da Diferença e o
conseqüente efeito disto no campo do discurso pedagógico contemporâneo,
mostrando a urgente tarefa de construção de uma nova Paideia nascida do
princípio da Diferença como Diferença. Isto tangencia uma revolução cultural
abrangente e de longa duração, e não um simples dado proveniente de uma

9
Artigo publicado na Revista ÁGERE 5, 2002.
10
Esta uma expressão que forjei para dar conta da nosso complexa estrutura de ser-no-
mundo-com, e da irredutibilidade de tal estrutura a padrões hegemônicos de interpretação
polarizados metafisicamente, como sujeito / objeto, essência / existência, alma / corpo,
racionalidade / sensibilidade, teoria / prática etc.
110

realidade já constituída e hegemônica, realidade marcada pelo signo da Identi-


dade e da conseqüente desigualdade dos iguais.

Com o intuito de provocar para a realização de uma crítica radical da


condição humana contemporânea, especificamente de nossa própria condição
contextual, convoco a todos os que se dispuserem a seguir este discurso a dei-
xarem de lado suas convicções e opiniões pessoais acerca dos dados que cons-
tituem nossas crenças e atitudes diante do sentido-sendo. Com isto, vos con-
voco a partilhar de uma vivência instantânea de suspensão momentânea de
nossos juízos de valor sobre a realidade instituída e instituinte. Trata-se de
praticarmos a atitude filosófica de modo genuíno. E esta atitude encontra-se
imediatamente em nós mesmos.

Não se trata, assim, de buscarmos fora de nós o acontecimento do sen-


tido e da significação articuladora de nosso ser-no-mundo, mas em nós mes-
mos. Claro, é sempre preciso partir da própria condição existencial de cada
um, o que abarca a totalidade do nosso comum perceber e ser. Partindo da
condição existencial que nos é própria, estaríamos aptos para esta vivência
proposta de radicalidade filosófica, ou simplesmente não nos encontramos
ainda devidamente preparados para tal? Esta forma de perguntar já mostra
como não se trata de encontrar uma resposta pronta às questões suscitadas,
resposta que apenas satisfaça a mera curiosidade desinteressada. Também mos-
tra como o que está em jogo diz respeito ao aprender a ser de cada um de nós.
Em outras palavras, tratar do tema da Pedagogia da Diferença requer um con-
creto exercício filosófico. É isto o que faz a diferença em relação ao mero dis-
curso sobre a diferença, em que vozes autorizadas pretenderiam ensinar os
seus próprios dogmas grupais, tornado-os princípios fundantes hegemônicos e
monológicos. E como aqui procuro apontar na direção de um pensar rigoroso
e conseqüente, na perspectiva de um concreto aprender a ser, proponho algu-
mas questões de princípio como modo de alimentar a investigação acerca do
sentido de uma Pedagogia da Diferença pensada como Diferença.

Começo pelas perguntas: — O que a palavra diferença provoca em


nossa pré-compreensão? Quantos de nós suspeitam do tema da diferença co-
mo mais uma das artimanhas de mercado promovida por uma Pedagogia Em-
presarial? Seria possível colocar o problema da Diferença como Diferença a
partir de uma atitude filosófica radical, onde não mais caberiam representações
autorizadas da verdade humana? Seria isto possível para nós, acostumados
longamente ao assujeitamento ideológico do poder instituído? Por ventura,
poderíamos realizar um pensar autêntico a partir de nossas precárias e desauto-
rizadas vozes?
111

Bem, a questão que apresento neste ensaio diz respeito ao necessário e


radical aprendizado do pensar. Proponho, então, que este discurso seja filoso-
fante. Eu vos convido a filosofar. O mais importante agora não é a nossa
comum convicção sobre o mundo e o homem, mas a nossa disposição ao a-
prendizado do pensar próprio e apropriado. Esta é, a meu ver, a condição para
se elaborar o tema pedagógico da diferença além do comum princípio metafísi-
co do Diferente da diferença. Isto, sem dúvida, requer uma disposição interro-
gante de grande ímpeto, pois sem a presença de um pulsivo interesse pelo que
se tem em mira como investigação e construção dos conhecimentos e da sabe-
doria, não se logra filosofar com propriedade e efetiva autonomia axiológica e
sócio-histórica. Em outras palavras, afirmo que não sabemos ainda filosofar
em língua e ambiente próprios. E por que isto? Simplesmente porque ainda
não aprendemos a pensar por conta própria. O argumento, então, é de que isto
ocorre porque não nos ensinaram a pensar. O curioso é que este argumento
denuncia uma grave falta: ao afirmar deste modo, quem afirma encontra-se na
perspectiva do Diferente da diferença. Em outras palavras: pensa a Diferença
como Identidade metafísica e princípio hegemônico monológico. Tentarei
elucidar melhor esta afirmação a seguir.

A localização histórica do problema da diferença pressupõe uma ampla


revisão do conceito de identidade que funda a racionalidade metafísica ociden-
tal. Assim, falar de Diferença requer, também, que se fale de Identidade. En-
tretanto, por acaso quando dizemos identidade já sabemos de imediato do que
se trata, e apenas quando dizemos diferença ocorre uma estranheza desconhe-
cida? Com esta questão articulo uma compreensão que supera a dicotomia
entre identidade e diferença e ousa pensar a diferença como diferença. Não se
trata, portanto, de mero formalismo semântico, mas efetivamente da criação de
um conceito que não nos é dado intuitivamente, como se bastasse abrir os o-
lhos para ver. A criação deste conceito é uma decisão e nunca uma mera re-
presentação de um dado da realidade vivida. Para alcançá-lo precisamos apro-
ximar-nos do originante, do originário e do original. Ora, isto convoca o nosso
ser a um salto revolutivo radical, onde a doação liberadora nos alcance e nos
possua irrestritamente. Isto mudaria todo o curso da pedagogia que vem sendo
praticada por nós, marcada, desafortunadamente, pelo signo da desigualdade e
da indiferença. Afinal, de que maneira iremos realizar o ideal de liberdade parti-
lhada que nos torne dignos e criativos e não meros subalternos de senhores
impostores?

A questão primacial em uma Pedagogia da Diferença, deste modo, diz


respeito ao princípio da Igualdade Originante, convocando a todos a se torna-
112

rem atores conscientes no processo de suas próprias vidas associadas. Para ser
fiel ao princípio da igualdade originante, uma pedagogia da diferença não pode
aceitar o princípio da exclusão e da indiferença humanas. Entretanto, fica claro
que este grau de consciência só se pode alcançar por meio de um efetivo esfor-
ço aprendente. Neste sentido, não é repetindo a tradição já consagrada do
pensamento pedagógico ou filosófico que se pode chegar ao concreto exercício
da autonomia desejada.

A questão, como se pode ver, é muito mais densa do que se poderia


imaginar. Todos nós estamos sendo convocados a uma efetiva construção de
um saber que nos torne irrestritamente responsáveis por aquilo mesmo que
somos ou queremos ser. Nada do que está aí mudará de curso sem o intercur-
so de nossa decisão radical. E o que é mais surpreendente é que todos estão
convocados para esta responsabilidade aprendente e originante. Inegavelmen-
te, trata-se de uma revolução espiritual ainda nova e desconhecida, para a qual
devemos nos dirigir com ímpeto e prudência simultaneamente. Afinal, para que
se mude esta nossa forma mental própria de subjugados e subordinados meta-
físicos são necessárias múltiplas gerações de seres livres e criadores. Tudo isto
porque a liberdade à nossa disposição é apenas uma possibilidade e não uma
realidade já estabelecida. O fato é que vivemos em um mundo de desiguais,
onde existem diferentes condições de desenvolvimento humano e onde a dife-
rença é medida na base de um princípio hegemônico e linear, o que é o mesmo
que tomar a diferença como princípio de desigualdade. Para que isto possa
desvelar novas formas de compreensão da condição humana, vou tratar o con-
ceito de Diferença como Diferença a partir da consideração do princípio de
identidade que funda a epistéme ocidental. Sigo aqui algumas trilhas de Hei-
degger encontradas no seu texto Identidade e Diferença (1979).

A Identidade é comumente associada a um princípio lógico. Ela é tradi-


cionalmente representada pela fórmula A = A. Tal princípio vale como a su-
prema lei do pensamento verdadeiro. Entretanto, o que é identidade? Esta
fórmula permite-nos experimentar efetivamente o que é identidade? Em caso
afirmativo, de que maneira isto ocorre? No caso, antes de aceitarmos o princí-
pio de identidade expresso pela fórmula já consagrada, paremos para pensar
mais demoradamente sobre o que é mesmo a identidade que se supõe a lei
fundante de toda racionalidade possível. Ora, agindo assim estamos no cami-
nho do pensamento interrogante, onde sempre é preciso aprender do princí-
pio. Portanto, não nos interessa saber que conteúdos determinados pertencem
ao tema, mas de que maneira podemos experimentar o princípio de identidade
como caminho interrogante, isto é, como investigação radical das condições
prévias do ser que somos no mundo. Com isto tocamos no problema do fun-
113

damento da forma comum de agir no mundo, e este é um problema ainda


pouco explorado em nossas investigações epistemológicas sobre o que é e o
que tem de ser a educação humana socialmente instituída.

A fórmula A = A apresenta o princípio da identidade. Tal princípio


nos diz que A é igual a A, isto é, que A é A: A é idêntico A. Trata-se eviden-
temente de uma tautologia, isto é, da repetição do mesmo. A se define, portan-
to, como A: repete-se como o mesmo — A é o mesmo que A. Uma tal repeti-
ção, entretanto, parte de uma suposta comparação entre dois termos de um
mesmo conjunto. Entretanto, o mesmo é ele mesmo em si mesmo, não preci-
sando da igualdade apresentada na fórmula para definir-se. Como diz Heideg-
ger, ―Para que algo possa ser o mesmo, basta cada vez um. Não é preciso dois
como na igualdade‖ (1979: 179).

A confusão, ao que parece, nasce daí. A fórmula que nomeia o princí-


pio de identidade fala de uma igualdade e não do mesmo — o idêntico. Deste
modo, o princípio de identidade, pensado a partir da sua mesmidade, não no-
meia apenas a similitude entre A e A, mas, sobretudo a Diferença de cada A
em si mesmo. O idêntico se diz o mesmo. Ora, o mesmo não é nunca o igual a
outro qualquer, mas apenas o idêntico, isto é, o que em si mesmo é o mesmo.
Não sendo o igual, o mesmo não se equipara a um outro de si, mas apenas ao
que em si mesmo é ele mesmo para si mesmo o mesmo. Ora, isto nos joga
para uma outra compreensão de identidade onde o princípio fundante é o idên-
tico, isto é, o mesmo, ou melhor: a diferença como diferença. De que forma,
entretanto, isto fica claro para nós, neste caminho de pensamento?
Segundo Heidegger, ―A fórmula mais adequada para o princípio de
identidade A é A não diz apenas: cada A é ele mesmo o mesmo, ela diz antes:
consigo mesmo é cada A ele mesmo o mesmo‖ (1979: 179). Em outras pala-
vras, em cada identidade reside a relação ―com‖, isto é, ―uma mediação, uma
ligação, uma síntese: a união numa unidade‖ (idem). Na identidade, portanto, o
que está em jogo é sempre uma relação com, o que é bem diferente de se pen-
sar o igual a partir da polarização metafísica, onde uma das partes da relação se
mostra como princípio fundante e a outra como princípio derivado. Quanto,
então, se diz que algo é segundo seu princípio de identidade, ou este algo se
encontra fundado na sua diferença ou não passará de mera figuração subordi-
nada ao já estabelecido como princípio fundante homogêneo e vazio.

Tomando esta crença como verídica, fala-se em identidade fora de seu


elemento fundante: a diferença. Desta forma, admite-se uma noção de identi-
dade marcada pelo signo de um Diferente da diferença, e não logramos pensar
a identidade fundada na Diferença como Diferença. Ora, esta é uma questão
114

deveras surpreendente: ela nos joga para algo ainda não pensado de forma ra-
dicalmente diferente. Vou ao concreto. Como é que funciona o princípio da
identidade em nossas operações mentais corriqueiras? Na matemática apren-
de-se que o número é sempre igual a ele mesmo. Entretanto, todo número
demarca a possibilidade de uma operação lógica de grande complexidade. To-
do número é signo do processo abstrativo da inteligência humana. Por este
processo é possível igualar similares em uma extensão homogênea e vazia.

Assim, quando comumente se diz que A é igual a A, se quer dizer que


A vale pela sua própria afirmação, e que o seu efeito é sempre um outro A
igual a si mesmo. Esta é uma expressão capaz de cobrir o campo de possibili-
dades relativas a toda habilidade de cálculo e medida que esta lógica realiza. A
verdade é que esta lógica não se encontra ainda ao alcance comum, porque se
parássemos para pensar sobre o princípio de identidade, o veríamos em sua
configuração diferencial originária, onde o mesmo é nomeado em sua essência
— o mesmo como o idêntico.

O idêntico, desta forma, não é um outro de si que se espelha na dupli-


cidade da igualdade, mas é ele mesmo nele mesmo o mesmo, e não um outro
de si fora de si. O idêntico do princípio de identidade não é nunca o ser igual a
um outro semelhante. O idêntico é o ente que é em si mesmo o seu ser-sendo.
O idêntico funda a identidade na relação do ente consigo mesmo. A identidade
é o ente de relação em seu campo de relação. A identidade nomeia homens e
coisas pelo transcurso da Diferença Ontológica. A identidade é identidade para
o ser que alcança o idêntico em seu próprio ser-sendo. A identidade é a unida-
de em seu alcance existencial. Uno é todo ente no ser. A questão é que esta
unidade do idêntico ―não é absolutamente o insípido vazio daquilo que, em si
mesmo desprovido de relações, persiste na monótona uniformidade‖ (Heideg-
ger, 1979: 179). Deste modo, a identidade não diz respeito ao conceito lógico
de identidade, mas ao modo de ser-no-mundo-com.

A identidade, assim, é configuração ontológica do idêntico na relação


do mesmo consigo mesmo. A identidade deste o início do pensamento origi-
nário esteve fundada na diferença ontológica entre pensar e ser. Entretanto, a
partir do momento em que a identidade se apresenta como princípio supremo
do pensamento, ela se torna apenas uma representação conceitual homogênea
e vazia. É contra esta forma de identidade que o discurso da diferença procura
construir sua interpretação. A identidade pensada como homogeneidade é
justamente o que aí se encontra determinado como princípio da desigualdade
ontológica. E porque nossa civilização se funda no princípio da identidade
homogênea e vazia, estamos acostumados a conceber a identidade como afir-
115

mação do Diferente da diferença, isto é, a partir da ótica de quem domina e


não de quem é dominado. Nesta fórmula encontra-se o modo de ser da desi-
gualdade e da exclusão que é própria da racionalidade tecnocientífica da con-
temporaneidade.

O nosso mundo cultural é dominado por este princípio hegemônico da


identidade lógica, isto é um acontecimento incontestável. Cada um de nós é a
expressão desta lei da exclusão e da desigualdade, não precisamos recorrer a
exemplos abstratos para compreender esta facticidade de nosso comportamen-
to de relação. Apesar de vivermos em um regime político democrático, a lei da
exclusão está em toda parte. A começar do fato de que todo o regime de edu-
cação formal em nossa civilização encontra-se marcado pelo signo de uma re-
ferência que se impõe como lei universal, exigindo do aprendiz obediência ao
que se ensina e não ao que se pode aprender além da medida instituída e estra-
tegicamente disciplinada para a repetição da submissão deliberada de uma das
partes do processo.

Deixando de lado o princípio da identidade lógica do pensamento, en-


contramo-nos diante da diferença enquanto diferença. A identidade agora é
marcada pelo signo do apelo. Trata-se do apelo que fala desde o ser do ente.
Historicamente isto é tão antigo quanto Parmênides. Uma das proposições de
Parmênides afirma: ―O mesmo, pois, tanto é aprender (pensar) como também
ser‖.

De maneira equívoca o princípio de identidade pronunciado logica-


mente se diz inspirado nesta proposição de Parmênides. Entretanto, o que se
pode apreender nos termos de sua proposição é que coisas diferentes como
pensar e ser são pensadas como o mesmo. Segundo Heidegger, isto quer dizer
algo absolutamente diverso do que afirma a doutrina metafísica, para a qual a
identidade faz parte do ser. Pelo contrário, Parmênides parece dizer que ―o ser
faz parte da identidade‖.
Ora, se assim interpretarmos, na sua proposição não mais aparece a i-
dentidade como um traço do ser, mas o ser se mostra como uma das partes da
identidade. Neste sentido, não há primeiro o ser e depois a identidade, mas o
ser e o pensar se reúnem no mesmo como identidade. A identidade, assim, não
é um traço do ser, mas a unidade que une no sem-fundamento o ser e o pen-
sar. A questão, deste modo, se articula como diferença pensada como diferen-
ça, o que permite redefinir a igualdade como o meio a partir do qual o idêntico
se faz pela mediação de ser e pensar, e não pela polarização que faz do pensar
um traço do ser. Tudo aqui muda de sentido. O que se diz igual já não é mais
a homogeneidade de um conceito que nomeia o ser como o diferente da dife-
116

rença. A questão agora torna o ser o mesmo que o pensar. O mesmo, portanto,
é o meio através do qual pensar e ser tornam-se unidos no sem-fundamento.

Tomado a proposição de Parmênides como enigmática e ainda desve-


lante, concordo com Heidegger quando afirma que nela ―Pensar e ser têm seu
lugar no mesmo e a partir deste mesmo formam uma unidade‖ (1979: 181).
Deste modo, nos primórdios do pensamento a identidade não aparece ainda
como princípio de exclusão da diferença ontológica, mas afirma a sua marca de
origem nomeando a diferença como diferença, isto é, a identidade é o idêntico
da relação entre pensar e ser.

O idêntico é justamente o mesmo em seu comum-pertencer. Pensar e


ser são o mesmo como comum-pertencer. Neste caso, ―o ser é determinado a
partir de uma identidade, como um traço desta identidade‖, e não a identidade
é representada, como acontece na metafísica sistemática, como um traço do
ser. Neste sentido, a identidade é que é o elemento fundante, e este funda-se
no sem-fundamento. Portanto, a identidade é pensada como o idêntico no seio
de uma relação de diferentes. A identidade garante para o ser e o pensar a
mesma proveniência, não cabendo reduzi-la a um traço do ser. Esta redução
significaria o privilégio do diferente (o ser) da diferença (o pensar), como se o
pensar fosse apenas um traço identitário do ser. O mesmo, entretanto, une no
mesmo âmbito homem (pensar) e ser (ente), de tal modo que a identidade do
homem se dá na junção com o ente, e é isto que permite pensar a igualdade
como fundada na diferença compreendida como diferença e não como um
traço do ser.

O que diz toda esta argumentação desenvolvida? Aonde ela nos leva?
Segundo penso leva-nos para o equacionamento de uma outra possibilidade
pedagógica ainda impensada. Neste sentido, falar em pedagogia da diferença é
o mesmo que reinventar o sentido que nomeia a identidade como a diferença
entre ser e pensar, o que significa tomar a diferença ontológica como a articu-
lação necessária para se determinar a identidade do ente-espécie que somos
como humanidade. Trata-se, portanto, de uma pedagogia do aprender a a-
prender e não mais do ensinar como imperativo do diferente da diferença.
Neste ângulo de interpretação, o importante é que hoje podemos pensar o ser
a partir do comum-pertencer. Isto significa que para nós o pensar é a doação
deste comum-pertencimento. Por isto precisamos aprender a pensar — a-
prender a aprender. A única maneira de sairmos do estado de submissão onto-
lógica em que nos encontramos como sujeitos sociais é aprendendo a pensar
— aprendendo a ser. Precisamos ser para que o nosso pensar nos liberte da
interdição ontológica. Este deveria ser o primeiro passo do aprendizado hu-
117

mano: a abrangente doação libertadora. Somente com este passo se pode


compreender o aprender a ser como aprender a pensar, o que dispõe para o
cuidado permanente do acontecer-apropriar que é o ente-espécie humanidade
em sua historialidade.

De um modo geral, estou aqui falando de uma subversão ontológica


radical. Imagino, com isto, que precisamos nos tornar filósofos do sentido para
alcançar a grandeza do que se dispõe como possibilidade aprendente, e não
mais simplesmente ensinante. Esta é uma visão efetivamente guerreira. Ela
nos provoca para a decisão de nosso próprio ser. É preciso, então, decidir o
que queremos fazer de nós mesmos. O que queremos ser? Devemos, assim,
aceitar passivamente o estado de coisas aí imperante? Devemos aceitar como
lei inderrogável o princípio da identidade excludente? Devemos aceitar as de-
sigualdades instituídas como inevitáveis? Devemos cruzar os braços diante da
miserabilidade de nosso ser cotidiano? Está tudo posto, tudo dado?

Pensar a pedagogia sob o prisma da diferença ontológica significa dis-


posição para o acontecimento instante e polilógico do sentido. Ora, isto re-
quer uma revolução de mentalidade, uma revolução de atitude diante da doa-
ção que hoje dispõe o nosso ser diante da hegemonia planetária das tecnociên-
cias. Não dá para fugir desta condição contemporânea do nosso ser. A globa-
lização tecnocientífica é hoje um acontecimento hegemônico. O que fazer di-
ante desta vaga neoliberal com ares de absoluta? Como conduzir o floresci-
mento crítico do ser do educando, em uma época onde não se cuida mais do
ser em sua potência irrepetível? Se tudo agora parece falar em nome de regi-
mes pedagógicos empresariais, como propor uma revisão crítica radical de tudo
o que aí está, sem provocar uma inevitável mudança de comportamento de
relação?

Tudo isso vos deixa perplexos? Se não vos deixa perplexos, isto sim
que é preocupante. A perplexidade tem que estar na origem de todo possível
aprendizado humano potencializador, ou como diz Miguel Bordas, a indigna-
ção deve ser a marca de nossa comum atitude aprendente. Os educadores têm
que estar preparados para a polilógica do sentido. Não se pode mais aceitar a
ideia de que o educador tenha que ser um funcionário dependente e submisso
às autoridades constituídas pelas trocas políticas que falam em nome de inte-
resses particulares. Permanecer hoje na ordem dos interesses meramente parti-
culares é o mesmo que se submeter às forças obscuras do oportunismo de ca-
pital e à má-fé dos que se colocam no lugar do diferente da diferença. Isto
toca no cerne de uma revolução cultural ainda distante, e é daí que uma peda-
gogia da diferença pode armar a trama de uma nova educação pública, porque
118

o que está em jogo é a elevação político-espiritual dos que recorrem ao ensino


formal vigente. Isto indica na direção de um salto qualitativo do sistema de
ensino considerado. É preciso, a todo custo, fazer aprender a ser.

O horizonte de sentido que nos pode tirar do escanteio da história he-


gemônica da era digital há de ser de uma grandeza incomensurável. A questão
não se limita à nossa imediata vizinhança habitual. A questão diz respeito ao
sentido de soberania que deve aflorar em cada um em particular. Todos são
chamados a partilhar do banquete. Não se pode mais aceitar a ideia de que a
formação escolar obrigatória tenha que estar a serviço de uma política do des-
mando e da usurpação de direitos constitucionais. Só mesmo um povo sub-
misso pode aceitar formar-se para um mercado de trabalho marcado pelo signo
da indiferença e da monocultura empresarial aparentemente adepta da diversi-
dade. Este tipo de educação de faz de conta é justamente o que não precisa-
mos. Daí a necessidade de uma revolução de mentalidade. Só se pode pensar
uma pedagogia da diferença, que se apresente além do mero jogo retórico insti-
tuído como educação pública obrigatória, a partir de uma nova prática pedagó-
gica.

A forma mental atual dos professores da rede escolar é demasiadamen-


te estreita para poder provocar uma mudança radical na atitude pedagógica.
Isto só poderá ocorrer em longo prazo. Trata-se de um processo que exige um
grande trabalho criador e conservador ao mesmo tempo. Não se pode imaginar
que uma simples teoria pedagógica da diferença irá solucionar a questão com
um passe de mágica. É preciso, antes de tudo, prover os meios materiais e sim-
bólicos desta mudança. E isto de tal forma que a prática pedagógica se inspire
no mais radical sentido do aprender a aprender. É isto o que pode fazer a dife-
rença, e em longo prazo propiciar uma mudança de mentalidade no modo de
relação professor-aluno. Nesta nova possibilidade, o professor não ensina,
mas apenas media o aprendizado. E o aprendizado haverá de tornar-se cada
vez mais a realização de um novo ser independente. É pela independência do
outro que o professor haverá de agir como mediador do processo. Esta inde-
pendência não pode ser constrita a modelos formais pré-estabecidos. Esta in-
dependência é o que pode garantir o surgimento de polijectos 11 humanos dota-
dos de um senso de responsabilidade aprendente e sempre abertos à superação
de si mesmos pela relação pulsiva e tensiva com os outros.

11Trata-se de uma expressão forjada para a redefinição do ser humano situado: nem sujeito,
nem objeto e sim polijecto. A expressão esclarecida na nota 1, interpolijectualidade, é derivada
desta.
119

O fato é que vivemos, como educadores, na perspectiva de meros fun-


cionários de uma educação já modulada e legalizada. Este é o problema: a edu-
cação é para nós um sistema já realizado. Isto nos impede de suspeitar que a
nossa condição humana é ainda extremamente carente de cuidado e acompa-
nhamento permanente. Para se chegar, então, ao patamar desta revolução cul-
tural encabeçada por uma pedagogia da diferença, precisamos muito mais de
afeto e cuidado do que de punição e disciplina estúpida regulada por aqueles
que se fazem os diferentes da diferença, usurpando, assim, o direitos dos ou-
tros de também se tornarem iguais no âmbito do mesmo fundamento não-
fundado.

É claro, nada disso é imediatamente compreensível. Não poderia ser de


outro modo, pois estou provocando um pensar inquietante. Na verdade, é isto
o que me importa: provocar um pensar pensante. Se de algum modo isto acon-
teceu, significa que esta minha fala não se encerra no limite temporal deste
discurso, mas se prolonga na possível continuidade da investigação crítica que
nos pode empenhar em uma transformação radical do nosso ser social. Pode-
mos, de modos variados, ousar a análise das condições do nosso próprio ser-
situado. Inclusive podemos exercer uma liberdade aprendente que não esmore-
ça diante da inevitável resistência do meio instituído como escola formal. Infe-
lizmente o legal parece se sobrepor ao legítimo, impedindo, assim, o floresci-
mento mais definido da diferença na igualdade originante. Onde, então, encon-
trar a identidade que nos torne potências ígneas encarnadas? Como fazer para
que a diferença como diferença se torne o fundamento de nossas práticas pe-
dagógicas cotidianas? Como deixar acontecer o ser da diferença, sem o trans-
curso da interdição e da desigualdade indiferente? Como, então, cuidar para
que possamos formar seres humanos altivos e independentes, sem a devida
atenção afetiva e o concreto respeito pelo seu mistério ontológico?

Em nossa pedagogia hodierna, agimos como se tudo estivesse funcio-


nando perfeitamente: aplicamos uma dogmática legalmente instituída, mas
pouco contribuímos para a sua desconstrução crítica. Afinal, qual ser humano
queremos formar? Queremos formar bons funcionários, ou queremos formar
seres humanos soberanos e surpreendentes? De forma direta, penso que o
discurso de uma pedagogia da diferença pensada como diferença não possa
ater-se ao imperativo legalista da interdição e do disciplinamento ideológico
instituído.

O nosso sentido de povo e nação não pode mais se limitar a uma iden-
tidade que se impõe como lei de exclusão e manipulação empresarial hegemô-
nica. Este sentido haverá de nascer da diferença ontológica que nos dispõe
120

abertos ao âmbito concreto da igualdade originante. E esta diferença deverá


impor-se em sua identidade plural e polilógica, superando o princípio da iden-
tidade onde um Diferente da diferença se coloca no lugar do ser e pretende a
todos submeter e subjugar. A nossa única saída é o aprendizado permanente
do sentido-sendo. Para tanto precisamos sempre aprender. O nosso estado de
ser deve sempre estar aberto ao aprender a aprender. Com isto, o que temos
que superar não é pouco. Daí a necessária intensificação das atividades apren-
dentes, coisa que só se pode fazer caso por caso. Neste sentido, uma pedago-
gia da diferença haverá de fazer-se na diferença de cada acontecimento instan-
te, e não poderá moldar-se por uma lei exterior a ela mesma. Pode parecer pa-
radoxo, mas o espírito da Lei de Diretrizes e Bases vigorante aponta na direção
da soberania nacional. Mas, como tornar soberano um povo que não aprendeu
ainda a pensar, tendo como fundamento a diferença como diferença? Este é o
desafio que temos pela frente. Equacioná-lo já significa decidir por uma mu-
dança de regime pedagógico radical.

Assim, faz sentido se falar em pedagogia da diferença, porque ela con-


clama a todos à realização do próprio sentido constelado de uma nova consci-
ência humana: consciência de ente-espécie e de inevitável liberdade criadora
auto-responsável. Uma pedagogia da diferença, portanto, nada tem a ver com
o discurso vazio da reificação da conveniência subordinada ao princípio da
identidade excludente e imperialista. Uma pedagogia da diferença há de fazer-
se soberanamente nos seleiros locais das múltiplas inteligências desgarradas. O
que é preciso é preparar o educador para que não seja ele o repetidor passivo
do processo excludente da pedagogia da indiferença. O educador haverá de ser
ele mesmo um campo de realização soberana das potencialidades e possibilida-
des locais; ele haverá de sempre aprender a ser no âmbito da modificabilidade
ontológica permanente e na dinâmica incessante do processo histórico em cur-
so. Nada do que foi será ou poderá ser de novo como já foi um dia: a lei da
mutabilidade operante deve instruir o novo patamar aprendente da pedagogia a
ser construída por cada educador efetivo. Devemos aprender a ser na sobera-
nia da nossa possibilidade absoluta de liberdade partilhada e combativa. Tudo,
então, deve fazer-se na diferença do acontecimento que reúne as múltiplas vo-
zes no âmbito do comum-pertencimento de homem e ser.

Como diz Heidegger, o homem é manifestamente um ente. Neste sen-


tido, ele faz parte da totalidade do ser, como a pedra, a árvore e a águia. Per-
tencer aqui quer dizer: inserido no ser. Tal inserimento é uma relação de co-
pertencimento: o homem pertence ao ser e o ser pertence ao homem. Deste
modo, a doação do ser em relação ao homem e do homem em relação ao ser
se dá no âmbito da correspondência ao apelo do ser. Nesta relação de corres-
121

pondência, Heidegger chega a dizer o seguinte: ―Homem e ser estão entregues


reciprocamente um ao outro como propriedade. Pertencem um ao outro‖
(1979: 182).

Trata-se de um comum-pertencer. Melhor ainda: de um comum-


pertencer. Contudo, este originário comum-pertencer é por nós teimosamente
ignorado quando tendemos a representar tudo através de categorias redutoras e
princípios polarizados. Este comum-pertencer é ainda marcado pelo princípio
de identidade metafisicamente polarizado. É aí que mora o perigo, porque ao
representarmos metafisicamente o sentido de comum-pertencimento, abdica-
mos da possibilidade da igualdade originante em função da afirmação de um
Diferente da diferença. Como, então, em uma pedagogia marcada por este
princípio monológico e homogêneo de identidade se pode chegar a pensar a
identidade como fundada na diferença ontológica do co-pertencimento de ho-
mem e ser? Evidentemente que não é possível sair desta ótica da identidade
homogênea senão pelo ―passo de volta‖, isto é, pelo distanciamento crítico em
relação à cidadela da racionalidade metafísica da tecnociência contemporânea.

Isto requer também uma revolução de conceitos, o que só se pode fa-


zer por meio de uma revolução do comportamento humano no seu co-
pertencimento ontológico. Infelizmente, não é este simples discurso que vai
resolver as tensões inerentes a esta nova abertura perplexiva diante da diferen-
ça humana. O homem, na qualidade de ente-espécie, não deve submeter-se ao
ser da era tecnocientífica contemporânea. Pelo contrário, na qualidade de igual
ao ser no âmbito ontológico, cabe ao homem chamar para si a responsabilida-
de de pertencer ao ser e de possui-lo na sua possibilidade. É o homem que
deve realizar o ser e não o ser que deve realizar o homem. Na medida de sua
realização, o ser da era tecnocientífica imperante não pode servir de referência
para a revolução espiritual do ser humano. Neste momento, a responsabilida-
de não pode mais ser transferida ao ser-como-tal. O ser-como-tal não pode
ensinar nada ao homem. É o homem que deve aprender a ser além do ser-
como-tal.

Diante disso, minha perplexidade aumentou de potência. Não sei bem


o que dizer para finalizar este breve discurso sobre pedagogia da diferença co-
mo diferença. No aprendizado do comum-pertcncimento de pensar (homem)
e ser (ente) abre-se para nós uma outra possibilidade ontofilogenética. É sobre
esta outra possibilidade que quero ver realizada uma pedagogia da diferença
como diferença. Isto me deixa relativamente confortável diante desta enorme
tarefa: sei que estou construindo uma epistemologia do educar polilógica, onde
o conceito de ciência é re-descrito inventivamente em aberturas imprevisíveis e
122

conseqüentes, ciência para a qual o aprender a aprender — aprender a ser se


apresenta pelo signo da diferença ontológica, fundamento não fundado da i-
gualdade originante — igualdade de potência e ato; igualdade de soberania e
altivez: vontade de sempre mais-vida.

Resta, sem dúvida, o como fazer isto para que o homem transcenda a
ordem do ser dado e instituído como hegemonia planetária da tecnociência
empresarial. Entretanto, este ―como fazer‖ não constitui um problema neces-
sário, porque não há um ―como fazer‖ único e hegemônico, simplesmente
porque não há um ser que deve prevalecer com sua autoridade incontestável,
mas seres que no seu transcurso existencial realizem o ser na singularidade
irrepetível do acontecer-apropriar, próprio da igualdade do homem em relação
ao ser e da mesmidade de ambos enquanto comum-pertencer. O co-
pertencimento pode ainda, a partir desta correspondência originante, abrir o
nosso ser para a realização da decisão soberana da liberdade aprendente em um
mundo de iguais, mundo onde a diferença pode ser pensada como diferença, e
a identidade pode ser acolhida no acontecimento plural do idêntico, isto é, do
mesmo.

Ora, o mesmo é sempre a relação de iguais no campo da diferença. A


diferença pensada como diferença, então, nos diz apenas isto: homem e ser
encontram-se imbricados no sem-fundamento: um e outro devem correspon-
der ao apelo da igualdade originante. A nenhum deles, portanto, cabe atribuir a
primazia ontológica porque ambos são traços do mesmo, isto é, do idêntico.
Entretanto, como representar este idêntico quando ele é sempre acontecimen-
to instante e singular? Resta-nos sempre a decisão ou a indecisão radicais. O
que queremos ser?

Está é a questão. Agora, o como podemos ser é uma questão para a


qual nenhuma prescrição pode cobrir a amplitude e grandeza de suas infinitas
possibilidades. Diante disto, nenhuma lógica linear instituída é capaz de abrir-
nos para o acontecer-apropriar do homem em relação ao ser.Tudo depende de
nossa própria construção social, isto é de nossa identidade fundada na diferen-
ça como diferença. Penso que agora cabe a cada um responder ou correspon-
der a estas provocações pensantes, não no sentido de uma concordância passi-
va, mas de um encontro efetivamente contrastante e combativo. Tudo isto
afinal está apenas no início, e nem valeria a pena imaginar que possa um dia ter
um fim preciso e uma conceituação única e acabada. Isto seria o mesmo que
não aprender a pensar, justo o que não queremos com a problematização de
uma pedagogia da diferença como diferença.
123

Referência:

HEIDEGGER, Martin. Identidade e Diferença. In: Heidegger — Conferên-


cias e Escritos Filosóficos, Coleção Os Pensadores; tradução de Ernildo Stein.
São Paulo: Abril Cultural, 1979, p 177-202.
124

10
A ESPECIFICIDADE DA FILOSOFIA

Começo discutindo a especificidade de uma investigação filosófica,


porque aqui afirmo tratar-se de uma. O tema enfocado: ―Concepção filosófi-
ca de uma Pedagogia da Diferença‖ impõe-se como Filosofia do Educar.
O que isto quer dizer? Em primeiro lugar, quer dizer uma específica con-
cepção de Filosofia: um devir filosófico em ação. Em segundo lugar diz de
uma invenção pedagógica germinada do conceito de diferença ontológica
entre ente e ser, o que requer a elaboração de um específico discurso do
educar instruído por uma Hermenêutica do ser-sendo.

Esse conceito anunciado de especificidade filosófica lança-nos na


aventura do próprio pensar historial da humanidade. Portanto, não se trata
de uma simples opinião subjetiva sobre algo, mas do próprio acontecimento
da criação do espírito humano investigador de si mesmo. Não há aqui meio
termo. A especificidade filosófica consiste justamente em uma disposição
ao apelo imperante do ser-sendo. Consiste, portanto, em ato criador disposto
ao acontecimento do sentido-sendo, interpretado como isto ou aquilo e sig-
nificado nos regimes habituários da existência cotidiana de uma dada coleti-
vidade.

Não há como negar que a especificidade filosófica seja justamente


uma disposição imperante no acontecimento do ser-sendo. A questão, então
é: como pôde algo deste âmbito chegar a ser identificado com uma mera
produção de sentido conceitual, uma simples idealização mental, um comum
ato reflexivo, uma pueril curiosidade intelectual? E foi justo isto o que aca-
bou acontecendo com a conceituação de especificidade filosófica no Oci-
dente: ela passou a ser confundida e tida como jogo intelectual inócuo e
abstrato, no máximo útil como campo disciplinar para o desenvolvimento da
inteligência prática e astuta dos humanos.

Defino a especificidade filosófica como investigação radical do a-


contecimento multifacetado do ser-sendo. Não se trata apenas de uma sim-
ples ―invenção de conceitos‖, mas de uma conceituação do que nos toca
125

como humanidade. Não sendo apenas uma atividade de produção de con-


ceitos, a filosofia tem a sua especificidade na conceituação compreensiva do
ente em sua totalidade. Ora, isto não é qualquer coisa, muito menos uma
invenção. Nem mesmo é uma suposição ou uma hipótese artificiosa. A Filo-
sofia, desde sua origem, é teorética. Mas, em que sentido ela sempre foi
teorética?

O querer-saber manifesto na atitude filosófica é teorético na clara


acepção de percepção compreensiva do sentido-sendo. Trata-se sempre de
uma disposição do querer-saber. A disposição é sempre também um que-
rer-saber. Estas não são instâncias separadas, mas complementares. A dis-
posição é já uma implicação do querer-saber. Não se trata, portanto, de uma
disposição qualquer, mas da disposição como acontecimento do ser-sendo.
O que isto quer dizer? Quer dizer apenas que não há acesso à Filosofia sem
a experiência do pensar, isto é, sem o ato de contemplar o sentido ou senti-
dos do ser-sendo. Ora, mais uma vez, o que isto quer dizer? Como chegar
a tal atitude? Não é isto muito vago e impreciso para qualificar a especifici-
dade da Filosofia?

A especificidade da Filosofia, então, é apenas isto: uma radical ati-


tude de investigação do ser do ente em sua totalidade. Mas, não é justo
isto o que se diz superado na Filosofia: a pura atividade teorética e o afasta-
mento da atividade prática? Como, então, sustentar uma tal afirmação de
especificidade da Filosofia em dias tão exigentes?

Bem, o que importa neste momento é esclarecer a especificidade


anunciada. Ela nos lança na origem do pensamento interrogante. No âmbito
desta origem tudo é originante: aparece o conceito de totalidade como acon-
tecimento do ser-sendo – advento. O conceito de totalidade, entretanto, não
se presta para apresentar nenhuma verdade universal como tal, porque é
sempre um ser-sendo. A unidade do conceito não se presta a uma transmis-
são genérica e vazia, qual repetição de um modelo ideal qualquer, e isto
porque esta unidade é sempre única: ela advém em fluxo intensivo e instan-
te: passa, fenece, recolhe-se na ambiência do seu ―pre‖. Nesta ambiência da
unidade do conceito, o transcendente é o acontecimento do sentido-sendo. O
transcendente se faz na imanência do seu acontecer: algo existe como tal –
há ser no pensar; ser e pensar são o mesmo.

O conceito, portanto, não é uma abstração possível apenas na espécie


humana, a partir de sua peculiar estrutura cerebral. O conceito de totalidade
126

é o acontecimento do próprio pensar sapiencial: ―Hén Panta‖ - ―Tudo é


Um‖ (Heráclito, Frag. 50). Ora, isto assim dito ressoa como o conceito do
conceito, a matéria e a forma imanentes do próprio conceito-sendo. Entre-
tanto, nada de certo e acabado se encontra neste descortinar-se da totalidade
no pensamento originário. Dizer, portanto, que a Filosofia é produção de
conceitos, e que isto está descortinado na percepção de totalidade dos pri-
meiros pensadores, nada garante e nada determina.

É fundamental, então, que o conceito se faça advento. É aí que ele se


faz passagem e fluxo, nexo e velocidade encarnada. Nesta instância, o con-
ceito se faz teoria, isto é, abarca uma totalidade imanente absoluta. Entretan-
to, isto não é representável como princípio uni-versal, ao modo de uma es-
peculação extravagante, e nem muito menos se opõe à prática. Pelo contrá-
rio, a unitotalidade própria do conceito é justamente o acontecimento do
fluxo dinâmico do ser-sendo, e não uma paralise imagética suscetível de
repetição e imitação. Neste âmbito, portanto, não há conceito fora do acon-
tecimento do sentido-sendo como encarnação e consumação do advento.
Sim, todo conceito por ser advento consuma-se, encerra-se, recolhe-se no
seu ―pre‖, morre como tal. Todo conceito é fluxo advencial do que se dá na
passagem do seu instante: ele sempre advém aquilo mesmo que é pensado
como ser-sendo. Sua multivalência é inesgotável. Nada o reduz para além
do seu próprio advir: ele sempre advém, torna-se, encarna-se, conecta-se,
articula-se e aparece na sua própria consistência – o tornar-se coisa do con-
ceito. O conceito, assim, não é determinado por referências fora do seu âm-
bito, mas é ele mesmo o acontecimento do sentido-sendo: o Tudo-Um sem-
pre implicado, sempre o mesmo, sempre outro do mesmo. O conceito, deste
modo, não é mais uma representação ou generalização do mesmo, mas ape-
nas um acontecimento implicado do sentido-sendo: um consistens – algo
que em si mesmo é em si mesmo o seu ser e aparecer; algo que é no seu
consistir conceptivo: concepção absoluta em um campo de imanência relati-
vo – tensão-instante: ato de ser-sendo – advento.

Tocamos aqui o cerne da questão da especificidade filosófica. Onde,


afinal, se pode dizer o que é filosofia sem ser? Plano de imanência, imanên-
cia pura, transcendência imanente, imanência transcendente, transcedência-
transcendental, todos estes são termos de uma mesma problemática: O que
significa pensar filosoficamente? É pensar o mesmo que ser?

Qual é mesmo a especificidade da Filosofia? O problema da especi-


ficidade diz respeito tanto ao fenômeno territorializante da Filosofia acadê-
127

mica quanto ao acontecimento da desterritorialização do filosofar consisten-


te. A especificidade, portante, tem também dupla articulação: tanto ela se
presta como afirmação territorializante quanto como negação desterritoriali-
zante. Esta dupla articulação da especificidade filosófica mostra, com maior
relevo, que a problemática filosófica é produzida por pelo menos duas espé-
cies de ―campos de imanência‖ (para não usar a expressão cunhada por De-
leuze/Guattari, 1992, ―planos de imanência‖): o campo sistemático-
territorializante e o campo radicalmente desterritorializador. A rigor, só à
segunda articulação de especificidade pode-se chamar propriamente filosó-
fica. A primeira se ocupa da lei, o que a torna condizente com a reificação
identitária, com a construção histórica de territórios independentes e cultu-
ralmente preservados, uma vez mantida sua hegemonia de território.

Tudo isso é impactante. A especificidade filosófica é da ordem do


acontecimento do pensar livre. Ora, o livre pensar não é deixar-se levar para
lugar algum, e sim permanecer fiel ao acontecimento do pensar-ser. É este
elo de fidelidade o âmbito da consistência do específico pensar filosófico.
Sem fidelidade a um conceito instrutor o filosofar se perde na impermanên-
cia. E a impermanência, neste caso, não é o caráter do que desterritorializa,
e sim daquilo que não tem sentido algum. E o que não tem sentido algum
não é o sema do soma - túmulo do corpo morto: eidolón, ídolo, imagem
pálida do que foi-sendo. O que não tem sentido é o sem-sentido: o não-ser.
O não-ser, entretanto, não é o que está ausente, mas apenas aquilo que não é,
nunca foi, nunca será. O que nunca é, foi ou será não é absolutamente nada.
O nada, entretanto, não é o umbroso desconhecido, por assim dizer, o in-
consciente individual e coletivo. O nada simplesmente nada é. A confusão
sobre o ―que‖ do nada começa quando se pretende falar do transcendente
como de algo além do lógos – não necessariamente da ―razão‖ -, o que é um
contra-senso patente. Esta confusão pode ser desfeita no ato mesmo do
específico filosofar. Para quem filosofa com radicalidade não há a possibi-
lidade de um transcendente que explicaria o imanente. No caso, um trans-
cendente assim conceituado ou é imanência inclusa ou não passa de equívo-
co resultante da falsa consciência. Os que filosofam com radicalidade pre-
cisam sempre territorializar o discurso filosófico. Afinal, nestes casos é
sempre a posse de algo o que importa. E este algo, no caso específico da
Filosofia, é sempre o devir pensante do pensador: produção de sua obra de
pensador. Sem obra não há Filosofia, e sem que a Filosofia se torne ―minha
posse‖, sua especificidade fica confundida com trâmites legais e burocráti-
cos, perdendo a sua consistência – negando o advento da sua liberdade radi-
cal.
128

Esse assunto é mesmo provocante. A especificidade filosófica não é


uma mera convenção formal e burocrática. E como poderia ser assim, se
sua peculiaridade é a de sempre ser um ato criador? Não sendo convencio-
nal, sua especificidade e consistência estão na força de sua duração. A espe-
cificidade filosófica é sempre um acontecimento criador. Isto significa: o
filósofo sempre inventa filosofemas, isto é, cria conceitos ao modo de cor-
pos sem órgãos - totaliza, engloba, supera, substancializa, territorializa o seu
saber, protege a sua descendência, perpetua sua dominância. É, ao final, um
ato de ser livremente determinado. Este é o pressuposto de toda especifici-
dade filosófica: a liberdade da livre determinação do pensar devindo – o ser-
sendo da Filosofia. E aqui a ―determinação‖ não promana da ―vontade‖,
mas do ―poder-ser‖. A ―vontade‖, no caso, é a determinação agente do con-
sistente e durável ser-sendo.

A especificidade da Filosofia é um problema tão antigo quanto sua


origem. Desde o início, a Filosofia foi definida como ciência teorética pura:
investigação sobre os primeiros princípios e as primeiras causas (Aristóte-
les, 1969). Tratava-se aí de uma específica competência: a competência
teorética. Esta não tinha por fim nem o fazer utilitário e estético nem a ação
moral e política, mas a pura contemplação dos primeiros princípios e das
primeiras causas. Esta contemplação, entretanto, requeria uma competência,
uma maestria, uma habilidade e conseqüente aprendizado habitual. Não era
sem esforço que se poderia alcançar uma tamanha façanha, a de contemplar
o princípio e o fim de todas as coisas que são e que não são. A especifici-
dade, neste caso, residia na investigação do que é primeiro e último no âm-
bito do todo estrutural do Ente em sua totalidade. Princípios, causas, meios
e fins são os conceitos-chave desta especificidade. A investigação teorética
visava, portanto, o conhecimento das coisas em seus primeiros princípios e
primeiras causas, isto é, visava seus conceitos absolutos.

Ao longo da história da Filosofia, a especificidade do fazer filosófico


apareceu em florações múltiplas. Entretanto, tais florações sempre mantive-
ram os laços com o pensamento grego, sobretudo pela figura de Sócrates e
pelas obras escritas de Platão e Aristóteles. Do ponto de vista estritamente
histórico, a formação do pensamento especulativo do Ocidente sempre es-
teve ligada a esta santíssima trindade. O dado é que o meio de formação do
pensamento especulativo ocidental configurou-se como humanismo a partir
da tríade grega, mas sofreu metamorfoses extraordinárias ao longo de seus
aproximados 2600 anos de existência. É curioso, então, parar para averiguar
129

de que modos e formas a Filosofia que nasceu na Grécia foi se perpetuando


ao longo do ciclo do Ocidente histórico, chegando aos dias de hoje. Tratar-
se-ia, neste caso, de um estudo sócio-antropológico, o que não é o foco in-
tencional desta ocasião. Poucos, entretanto, foram os filósofos efetivos, isto
em termos comparativos. Muitas vezes em um século apareceu apenas um
grande filósofo, ou mesmo nenhum. Os grandes filósofos se contam, ainda,
com os dedos. O que isto diz? Diz que a História da Filosofia é simples-
mente o efeito das obras singulares de alguns poucos, e que são tais obras
que fazem a diferença.

Então, a especificidade filosófica é multiplamente matizada, sobre-


tudo porque toda obra de pensamento criador dificilmente se torna de domí-
nio público imediato. A Filosofia, então, reclama sua especificidade pelas
vozes de seus fazedores efetivos. Portanto, só o filósofo criador tem certeza
da especificidade de seu filosofar, o que não garante que a mesmo possa ser
facilmente comunicada aos outros, e muito menos garantir a quem quer que
seja as certezas que se buscam para esconder a condição humana de extrema
indigência e de cruel brutalidade. Não, a especificidade da Filosofia nada
tem a ver com escolas de pensamento secular e sedimentada, apesar de sua
história sempre ter mantido estrita relação com as mesmas. Só na experiên-
cia do pensamento radical se pode alcançar o específico da Filosofia, porque
de outra forma o específico da Filosofia se torna um mero trâmite legal e
burocraticamente instituído. Nada pior do que isto se pode esperar para a
Filosofia: que a sua especificidade se restrinja ao domínio de uma impulsiva
e inescrupulosa vontade de conhecimento.

As múltiplas habilidades que podem ser adquiridas freqüentando


uma notável academia ou faculdade de Filosofia, nunca garantiram a produ-
ção filosófica de qualidade. O itinerário clássico de formação do filósofo,
pelo contrário, tem sido o lugar da não-filosofia, onde conviria a alguém
mais livre evitar. Mas, em geral, esta nossa civilização ocidental padece de
uma doença crônica curiosa e malfazeja: a despotencialização do espírito
criador, o niilismo de alma e corpo. O dado é que a Filosofia ocidental aca-
bou prisioneira de sua própria imagem de consolação e conciliação, o que a
tornou demasiadamente frágil para sair do próprio lamaçal em que se atolou
por excesso de baixa estima. Hoje a Filosofia padece da ausência de grandes
pensadores, e aqueles que ocupam este lugar, não se encontram à altura de
procriarem o além homem e de engendrarem a transvaloração de todos os
valores, como bradou Nietzsche no seu tempo de pobreza e escassez de
espírito criador.
130

A Filosofia, assim, manteve-se sempre apartada da vulgarização, o


que a torna uma atividade rara e em franca extinção – quase uma arara azul.
Assim, quando hoje alguém se levanta para falar da especificidade filosófica
para além do convencional e do já territorializado, isto pode perfeitamente
soar como ato de vaidade pessoal, querendo, entretanto, apenas ser um pen-
sar radical e singularmente provocante e desterritorializante: a Filosofia
como ação guerreira; Filosofia como arte da guerra em sua totalidade.

Dizer, entretanto, que a Filosofia é a arte da guerra, não significa


grande coisa. Esta é uma expressão que não especifica nada. Arte da guerra
pode ser a experiência cósmica e humana como um todo. Qualquer atividade
natural ou humana pode assim ser também chamada. A política e a religião,
por exemplo, são tipicamente guerreiras; a arte, a ciência, o comércio e o
lazer também fazem guerra; o cosmos vivente vive ebulindo. O Mundo é
guerra, dizia Heráclito. Tudo pode ser guerra. Mas a guerra de que fala
Heráclito não é a ―guerra‖, não é qualquer luta, qualquer disputa. Esta guer-
ra é um estado permanente de atrito entre campos distintos de forças efeti-
vas. Tudo está em movimento sempre. O movimento em si é o que Herácli-
to chamava pólemos. Movimento é mudança, mutabilidade, transformação,
geração, causação agindo e reagindo. Guerra, portanto, como ação em si.
Ora, deste ponto de vista, se tudo é guerra, onde estaria a especificidade da
Filosofia como arte da guerra? Por ventura seria a produção/invenção de
conceitos? Mas, o que é o conceito? Não é este também um termo tão po-
lêmico como guerra?

Afirmar que a especificidade da Filosofia é a produção/invenção de


conceitos é algo tão vago como afirmar a sua essência como arte da guerra.
O conceito em Filosofia não é nunca a sua representação, nem muito menos
sua auto-imagem. O conceito é o modo de ser da Filosofia: sua efetividade.
O conceito é sempre uma forma sem partes: totalidade do sentido-sendo. O
conceito, assim, não se transmite através da comunicação, mas se dá no en-
contro da diferença-acontecimento. O conceito é o ser-sendo da filosofia:
seu campo, seu meio, seu advir perene. O conceito é sempre uma certeza,
uma claridade advinda da clareira do sentido. Conceito é sentido transpassa-
do pelo fulgor luminescente. Conceito não é uma representação de uma efe-
tividade, mas a efetividade em seu compreender-se. Conceito não é ima-
gem, não é coisa, não é fato. Conceito é concepção problemática, interroga-
ção, indagação do seu percepto. Conceito é flecha, instrumento de ação,
projétil lançado no âmbito do sendo, cujo arco e a meta permanecem ausen-
131

tes – no conceito não há nem princípio nem fim: o conceito como aconteci-
mento da mesmidade entre ser e pensar: advento do que nunca é concluível.

Sim, Filosofia é produção de conceito. Entretanto, o conceito é inde-


finível. Dele não se pode dizer senão o que não é, tendo já sido. Conceito é
acontecimento do sentido-sendo – concepção des-velante da totalidade vi-
vente. Concepção como devir, geração de origem, gênese do acontecimento
destinal: destino inelutável do que se percebe percebendo o sentido-sendo.
O conceito é ação do que tem sentido. O sentido do conceito é sempre com-
preensão total do que se apresenta em sentido – nexo, ponte, passagem,
articulação, relação de forças, conjugação de partes, configuração do que é
pela distinção dos seus modos de aparecer: critério. É como critério que o
conceito se faz ação formadora da investigação dos acontecimentos, se faz
acontecimento-aprendiz. É enquanto ―aprender‖ que o conceito se mostra
em sua especificidade. Conceito é processo de aprendizado. Neste sentido,
se pode afirmar que o conceito, em seu modo de ser critério, nada tem de
intuitivo, pois apenas se constitui enquanto processo de invenção permanen-
te – esforço de criação do ser em seu sentido-sendo. Conceito, assim, é
sempre um aprender a ser-sendo – usando a força da redundância desta ex-
pressão. Portanto, conceito não é uma representação mental e lingüística de
algo, mas ação inventiva e realizante do pensamento interrogante. Todo
conceito interroga: ele é força conjugada de tensões instáveis no aconteci-
mento do sentido. Nada no conceito é supérfluo. Tudo nele é sentido-sendo.
O conceito, assim, não se parece com nada: é sempre o que nunca está, sen-
do isto ou aquilo. O conceito está sempre na interface, na passagem, no
meio. Ele nunca é ou isto ou aquilo. Ele nunca é um ente determinado, e
nem muito menos a expressão do ser. O conceito é o próprio ser-sendo He-
ráclito ou Parmênides, Platão ou Aristóteles, Descartes ou Locke, Hume ou
Kant, Hegel ou Marx. Nietzsche ou Deleuze, Husserl ou Heidegger etc. In-
venção humana, o conceito se dá como obra.

O ser-sendo do conceito é sempre a vida de Heráclito, de Parmêni-


des, de Kant, de Heidegger. Entretanto, deles só se pode conhecer as obras,
e só através delas se pode dizer se são ou não filosóficas. Mas as obras são
sempre efeito plasmado de um conceito encarnado como Heráclito, Sócra-
tes, Marx etc. As obras requisitam leitura. A leitura é vivência. A vivência é
aprendizado de uma determinada forma de aparecer. Vivência é a memória
da obra: leitura viva da não-forma. A obra, portanto, oferece a vivência do
especificamente filosófico, mas não limita o acontecimento do conceito.
132

O conceito, neste sentido, é sempre um destino: vigorosa paixão em


equilíbrio estático, pela dinâmica do evento. O conceito como evento é
sempre o desconhecido: ele nunca está onde parece ser — se impõe como
força concreta. O conceito ultrapassa sempre sua auto-imagem: ele não tem
forma fixa, mas tem aparência conjugada: articula-se em rede e totaliza pla-
nos. O conceito separa, distingue, examina, clareia, destaca... O conceito é
sempre mudo: sua fala é sempre vazia de imagens virtuais ou atuais. O con-
ceito jamais se confunde com imagem e imageabilidade. Ele nunca é uma
expressão de verdade coincidente, mas apenas condiz com o acontecimento
— é seu fio condutor, conduz o compreender pensante; é ensinante. O con-
ceito é sempre força ativa, nunca passividade perceptiva e imaginante. A
imageabilidade do conceito é o seu próprio exercício, nunca o seu funda-
mento. A imagem é apenas a ocasião do conceito, e nunca lhe corresponde,
porque a imagem é sempre coisa, e o conceito é um ser.

Claro, todo conceito é também imagem. Entretanto, a imagem em si


não é conceito, tão pouco ideia. Sendo apenas a ocasião do conceito, a ima-
gem é sempre o meio de seu acontecimento: sem isto o sentido não seria
corpóreo. Imagem, assim, é o conceito em fuga de si mesmo: aparência. A
aparência, neste sentido, é mais ausência do que presença: ela adverte a falta
e a procura do que não se tem. A aparência é vizinha do desejo: só o que é
desejado aparece, tem aparência. Ela é o negativo da presença em si. O mo-
do como aparece é apenas motivo construído, nunca sua identidade ou es-
sência transcendente. O aparecer é obra já feita — passado. O conceito, po-
rém, nunca é passado: ele sempre ultrapassa a aparência, sua forma de obra.
Alcançar o conceito, assim, significa encarná-lo no acontecimento do senti-
do totalizante. Isto, entretanto, não significa nenhuma oposição entre maté-
ria e forma, sensível e inteligível, corpo e espírito, porque o conceito, aqui
pensado e dito, não se dissocia nunca de seu acontecimento encarnado: ul-
trapassagem do que é simplesmente coisa.

Temos aqui um clássico problema filosófico: o conceito e sua rela-


ção com o transcendente. O fato é que, em geral, não fomos habituados a
conceber o conceito como abertura para o aberto e engendramento do ser
que é, e sim como definição de algo como algo à luz da distinção de sua
aparência. O conceito assim concebido torna-se apenas ícone ou símbolo
de outra coisa que sempre transcende o seu aparecer, caracterizando muito
mais a aquisição de conhecimentos estruturados do que a investigação radi-
cal do acontecimento do ser-sendo. É nesta medida que a clássica proble-
mática da transcendência fica confundida com uma simples expressão icôni-
133

ca e simbólica, o que vela o caráter transcendental da transcendência e faz


transparecer a representação significada. Isto sim se pode chamar propri-
amente de abstração. Entretanto, o conceito compreendido como abertura
para o aberto e engendramento do ser dimensiona não a abstração mental,
mas a concretude existencial no acontecimento da diferença ontológica. O
conceito, neste caso, é estado de ser: acontecimento da ultrapassagem no
âmbito da diferença entre o que percebe e o simplesmente percebido. Como
pode, então, o conceito tornar-se mera coisa? Como pode ser ele apenas um
ícone do pensamento em si, ou apenas um símbolo do espírito?

O conceito pensado a partir da diferença ontológica confunde-se


com a própria atividade filosófica em sua nascente. Não se trata de nenhu-
ma verdade dada, mas de uma atividade aberta ao acontecimento do que é
como deve ser: destino. Confundir, portanto, o conceito filosófico com me-
ras representações mentais e culturais dadas e concluídas é o mesmo que
perder de vista a especificidade do fazer filosófico.

Desde sua origem grega, a Filosofia esteve sempre ligada à arte de


pensar. Filosofia era a arte de pensar: um aprender a pensar. Claro, trata-
va-se, também, de uma ―técnica‖ — um específico fazer e um conseqüente
saber fazer. Como saber fazer, a Filosofia se oferecia como ―método‖ para
o conhecimento ―das primeiras causas e dos princípios primeiros e últimos‖.
Este saber fazer filosófico era uma atividade da atitude de autoconhecimen-
to, e não qualquer atividade. Tratava-se do exercício de pensar, do aprender
a pensar, ou melhor, aprender a ser. Não se tratava, portanto, de um co-
nhecimento dado, mas da sua busca, ou melhor, da efetivação de um conhe-
cimento do que conhece. Qualquer tentativa de definição escolástica sobre o
assunto é perda de densidade e vitalidade pensante. Não precisamos mais
das definições escolásticas de Filosofia. Elas devem ser abandonadas para
que se possa ainda pensar com vigor e abertura radical para o acontecimento
do ser-sendo. Mais do que uma arquitetura já edificada e concluída, a Filo-
sofia é uma disposição imperante. Platão e Aristóteles a isto ainda chama-
vam thaumazen – o espanto, a admiração, a abertura de compreensão unito-
tal. Infelizmente, uma certa impotência diante da possibilidade do aconteci-
mento do pensar-ser, induz a conceber o espanto como o que imperava na
origem grega da Filosofia, tendo sido ultrapassado pelo ulterior desenvol-
vimento do pensamento especulativo, que teria deixado de lado definitiva-
mente qualquer procedimento mágico-místico em nome de uma razão sem-
pre lógica e certa. Então se ouve dizer: Pensar é um ato lógico. Como ato
134

lógico, é preciso aprender Lógica para pensar corretamente. Mas, por acaso
é a Lógica a ciência filosófica por excelência?

Recorro a uma provocação pensante de Heidegger. Diz ele: ―Pensar


é preciso, e, em primeiro lugar, aprender a pensar. Aprendemos isso com a
´lógica´? O que o pensamento tem a ver com a ´lógica´? O que significa
este termo?‖ (1998: 203)

De maneira bastante ostensiva, se diz que a Filosofia é uma atividade


eminentemente ―lógica‖, e que sua especificidade residiria justamente aí —
em sua natureza lógico-discursiva. O thaumazen, neste caso, faria apenas
parte de um momento histórico da Filosofia, quando os gregos se espanta-
ram pela primeira vez, não fazendo nenhum sentido no surto moderno da
ciência. Mas, como aceitar isto como algo indiscutível? Como perder de
vista a dimensão espantosa do pensar — do aprender a pensar?

Uma tal dimensão só se perde de vista quando abandonamos a sorte


da Filosofia aos domínios da técnica da chamada arte da Lógica, isto é, do
aprendizado correto do pensar. Entretanto, é preciso duvidar deste estado de
coisas com rigor e vigor, pois disto depende o acontecimento de um filoso-
far que não perca de vista a sua especificidade de aprender a pensar, per-
manecendo aberto ao acontecimento imprevisível e luciferente do ser-sendo.
O espanto diante do acontecimento do que se torna ser é ainda o páthos im-
perante da Filosofia, e é daí que se pode determinar de novo a sua especifi-
cidade atuante. Isto, em outras palavras, dimensiona o sentido da logicidade
do filosofar e de sua especificidade a partir do próprio discurso. Lógos é a
palavra-chave deste enigma. Mas, como entendemos este termo? Não se
circunscreve sua significação autorizada no que comumente chamamos de
―lógica do sentido‖ ou ―ciência da lógica‖? Mas, o que é isto — a Filosofia
como ciência da lógica?

Segundo Heidegger (1998:199-200), com o título de ―Lógica‖ cos-


tuma-se compreender ―a doutrina do pensamento correto‖. Neste sentido,
ainda hoje é comum entender-se a ocupação lógica como o aprendizado
correto do pensar. Contudo, um tal aprendizado é visto comumente como
disciplina formalmente estabelecida, onde normas e leis já se encontram
dadas e aptas ao movimento de repetição e interiorização do aprendizado do
correto pensar. Tratar-se-ia de uma técnica a partir da qual se aprenderia a
pensar sem erro, um método ou doutrina das formas e regras do pensamento
certo. Entretanto, em sentido corretamente compreendido, ―pensamos ‗logi-
135

camente‘ quando seguimos a lógica inerente à coisa e pensamos a partir da


coisa‖. Neste sentido, nunca aprendemos a ―pensar corretamente‖ através do
simples conhecimento da construção e das regras do pensamento, aprenden-
do-as de cor, segundo se diz, sem que sejamos tocados pela lógica interna
das coisas e sermos por ela conscientemente conduzidos. Com palavras de
Heidegger:

Alguém pode dominar inteiramente a ―lógica‖ sem, no entanto, jamais


produzir um pensamento verdadeiro. Pensamentos verdadeiros são, porém, muito
raros. O homem produz, com freqüência, muitos ‗pensamentos‘. Só que os pensa-
mentos assim produzidos não são os confiáveis. Os pensamentos verdadeiros e ra-
ros não surgem do pensamento auto-produzido. Também não se encontram nas
coisas, da mesma maneira que uma pedra se encontra no campo, ou uma rede na
água. Os pensamentos verdadeiros são dis-pensados ao homem, e isso somente
quando ele se encontra na correta com-pensação, ou seja, na prontidão exercida pa-
ra o pensamento, que vem ao seu encontro como o a-se-pensar. (1998: 2000)

Aqui nos encontramos diante da ambigüidade do termo ―lógica‖ co-


mo a palavra-chave da especificidade filosófica. De um lado o termo desig-
na a lógica do pensamento e, de outro, a lógica das coisas, isto é, de um lado
o ―teor de regra e da atitude pensante‖ e, de outro, a ―conjunção das coisas‖.
De onde, entretanto, provém esta ambigüidade? Não é ela tendenciosa, no
sentido do predomínio da lógica entendida como doutrina das formas e re-
gras do pensamento?

Sigo, então, algumas pistas de Heidegger, ao considerar essa ambi-


güidade anunciada da ―lógica‖. Diz ele (1998: 202):

Pensar corretamente, a partir das coisas, pensar de modo geral é


preciso. Sim, sobretudo, aprender a pensar é o mais preciso. E tudo isso de manei-
ra alguma para simplesmente evitar erros de pensamento. Pensar é preciso para
que se possa corresponder a uma determinação do homem histórico que ainda se
acha inteiramente velada. Talvez tenha mesmo de ser assim. Talvez no futuro um
bom tempo tenha que ser dedicado unicamente a decidir-se, para o homem histó-
rico, continua garantia ou fica recusada a possibilidade de correspondência e a ca-
pacidade de pensar. ―O homem histórico‖ significa a humanidade à qual foi dis-
pensado um envio de destino como a-se-pensar. E que outro povo, nessa hora do
mundo, poderia receber a dádiva do pensamento para os dias provindouros senão
―o povo dos pensadores‖, sobre o qual um errante apartado chegou a dizer que se
trata do ―coração sagrado dos povos‖ e que dele advém ―conselho‖ , ―em torno do
que é do rei e do povo‖. 12

12
As partes aspadas do texto transcrito são citações que Heidegger faz de Hölderlin, expressões poéticas, portan-
to, apropriadas para marcar a diferença entre a doutrina da lógica e a lógica das coisas.
136

Sim, aprender a pensar é a questão imperante da Filosofia. Entretan-


to, um tal aprender não se restringe ao âmbito de uma disciplina formal que
daria as regras seguras para o específico exercício filosófico. Deste modo, a
concepção da especificidade filosófica como atividade eminentemente ―ló-
gica‖ deve ser colocada em dúvida e investigada na sua gênese histórica.
Este ato investigativo nos empenha em uma de-cisão de acolher o ato de
pensar como realização do ser, e não simplesmente como ―jogo lógico e
propositivo‖ relativo ao ―verdadeiro‖ e ao ―falso‖. Como realização do ser,
o pensar nos ata a um destino: o aprender-sendo acontecimento do ser. Este
destino encontra-se aberto ao pensar como o que há ―a-se-pensar‖.

O campo específico da Filosofia, então, não se delimita pela ―lógica‖


compreendida como doutrina do correto pensar, e sim pela efetiva corres-
pondência ao apelo imperante do pensar que descortina mundo, coisas e
Terra como um sinal do verdadeiro. Entretanto, esta compreensão de espe-
cificidade do ato filosófico não encontra fácil acolhida no meio dos que se
ocupam de cultura filosófica, sobretudo porque imprime ao filosofar uma
outra possibilidade ainda não tentada, apesar de inspirar-se no mais antigo
pensamento que aparece sob a luz dos pensadores originários da Grécia ar-
caica. Trata-se da realização de um pensamento descortinador do evento da
diferença ontológica, a partir do qual desenvolve-se a Filosofia como cor-
respondência ao apelo imperante do ser-sendo, tornando-se o lugar dia-
lógico do especificamente verdadeiro.

Ora, nada disso é imediatamente claro e indiscutivelmente certo. A


especificidade da Filosofia não se deixa enredar no já estabelecido como
sistema da ciência do conhecimento verdadeiro. É aqui que mora o perigo
do filosofar: sua inalienável desterritorialização do que se considera já esta-
belecido. Assim, muito mais do que o conforto de uma certeza ―lógica‖, a
Filosofia é o lugar da realização da verdade como advento, o que impossibi-
lita qualquer sistema de ciência poder abarcar o efetivamente verdadeiro,
pois este é ato vivo do ser-sendo, e nunca uma mera representação formal
dos dispositivos permanentes do ser. Afinal, o ―ser‖ é justo o que não é uma
mera ―coisa‖. É porque não é mera coisa que o ser não pode nunca se iden-
tificar com o ente simplesmente dado, o imediatamente à mão. É este abis-
mo do pensar que cabe ainda pensar como especificidade da Filosofia. Isto
implica em aprender a pensar. Nada, porém, garante acesso seguro a este
aprender. Talvez, seguindo pistas de Heidegger, a questão seja ainda mais
primária: ―Talvez precisemos primeiro aprender a aprender, e aprender a
137

poder aprender‖. Mais ainda: ―Talvez precisemos primeiro estar prontos


para aprender a aprender‖ (1998: 202). Mas, o que significa este ato —
aprender?

Para Heidegger, uma só palavra não é capaz de responder a essa


questão, e no máximo o que se pode fazer é esclarecer:

... Aprender é apropriar-se com saber de algo a partir de uma indicação e


assinalamento, a fim de presentear esse algo como propriedade do saber, sem per-
dê-lo ou empobrecê-lo. Aprender diz respeito a um tornar próprio mediante o sa-
ber, uma propriedade do saber que não nos pertence, mas à qual nós pertencemos.
Precisamos primeiro aprender a aprender. Tudo deve ser muito primário, muito
cheio de espera, muito lento, para que, enquanto único envio de destino, o verda-
deiro possa vir verdadeiramente ao nosso encontro e ao encontro de nossos suce-
dâneos, sem que seja preciso calcular quando, onde e em que fisionomia isso ocor-
rerá com propriedade. Deve surgir uma geração de lentos, para que a pressa exa-
gerada da vontade de produção e a corrida das prestações e compromissos, para
que a cobiça de informações imediatas e soluções baratas não nos precipitem num
vazio ou nos desviem para a fuga, em opiniões e crenças apenas derivadas, que
nunca podem constituir origem, unicamente subterfúgio. (1998: 203)

Como se vê, aqui não há meio termo para o sentido originário do


aprender. E isto é o mais difícil de aceitar: a especificidade da Filosofia não
se encontra fora do acontecimento do pensar-ser, e só ocorre como aconte-
cimento da diferença ontológica, no ato mesmo do seu advento pensante.
Sem o nexo da diferença entre o ser e o ente o pensar seria uma mera ex-
pressão do capricho humano, e não haveria caminho possível para o advento
do aprender a aprender como realização do que há a-se-pensar. Isto indica
encontro e acontecimento, o que é bem diferente de algo que pretende ser o
mapa completo do conhecer possível ao homem consciente de si. No a-
prender a aprender, portanto, não ocorre uma assimilação de preceitos já
codificados pela ―lógica‖ formalmente concebida, porque o próprio ato de
pensar é este aprender que se aprende com as coisas mesmas, segundo sua
própria possibilidade e abertura.

Se, entretanto, não é a ―lógica‖ que garante a especificidade da Filo-


sofia, isto apenas significa uma distância da ideia de sistema e de acabamen-
to que a palavra comumente carrega. Contudo, há lógica na atividade filosó-
fica, e a palavra pode ser resignificada na sua valência originária. Trata-se,
evidentemente, da palavra Lógos. É por meio dela que se pode realizar uma
descrição hermenêutica da relação da atividade filosófica com a o discurso
138

lógico. Só assim a palavra lógica pode ser reassumida como ponto focal da
atividade filosófica. Mas isto não é uma tarefa fácil de ser realizada.

O que quero dizer é bastante simples e lento. A atividade filosófica


não pode ser ensinada, apenas aprendida. O seu aprendizado requer o saber
aprender. Em primeiro lugar, saber aprender a aprender. A dimensão lógi-
ca do filosofar, então, não consiste em sistemas determinados pelo engenho
humano para favorecer a obtenção de conhecimentos, porque ela é o pensar
mesmo no seu acontecimento pensante. Este é o problema: o pensar mesmo.
É ele que é a incógnita. Defini-lo já pressupõe um devir filosófico: um des-
tino encarnado. O pensar mesmo nunca se encontra em nenhum ente deter-
minado, apesar de poder manter relação com qualquer coisa ou ente deter-
minado. O pensar mesmo sempre se distingue do meramente formal e do
imediatamente material. O formal e o material são planos do acontecimento
do sentido-pensado, e não sua essência. Claro, sem matéria e forma o pen-
samento não consistiria. Entretanto, o pensar mesmo transcende estas trans-
cendências dadas, porque é imanência absoluta. É como imanente absoluto
que o pensar pode ser dito transcendente. Ele é transcendente na medida em
que não é coisa, ente, isto ou aquilo, mas o traspassamento do sentido-
sendo: o é da coisa — unidade sem partes.

A ―lógica‖ do pensar mesmo sempre surpreende, pois nunca está


onde a colocam como sendo isto ou aquilo. Tal lógica só se aprende no pen-
sar mesmo. Assim, não há uma lógica a ser aprendida como método forma-
lizado, e sim apenas o exercício do pensar. A lógica que se pode aprender é
sempre acontecimento des-velante, nunca é isto ou aquilo, esta ou aquela
técnica. Afinal, com as técnicas lógicas disponíveis o que se pode aprende é
a forma própria de domínio da ―vontade de conhecimento‖, mas isto nada
tem a ver com o pensar mesmo. Imaginar que através do pensar se alcança o
conhecimento dos meios de produção e manipulação do homem e da nature-
za é o mesmo que negar ao pensar o seu específico ofício: o evento do pró-
prio aprender a aprender como acontecimento único e germinante.

Ora, tudo isso continua, sem dúvida, muito vago e impreciso. O que
dissemos nada esclarece, apenas põe o pensar mesmo em uma perspectiva
enviesada e provocante, mantendo-o protegido de sua consumação precoce.
Para aprender a aprender é preciso por primeiro saber escutar o que diz o
Lógos. Em que sentido, porém, se coloca este saber escutar o Lógos? O
que quer dizer Lógos? Em primeiro lugar, com estas perguntas não se pode
chegar a nada de certo, posto ser a própria palavra obscura em sua origem, e
139

só por meio de interpretações já consagradas e gastas se considera válido o


acesso à sua significação. Pretender, portanto, dizer algo de certo sobre a
essência da palavra Lógos é, sem dúvida, um ato improvável e desnecessá-
rio. O único caminho possível e válido é a escuta do pensar mesmo.

É pensado o que diz Lógos que seguimos escutando-o. E o escuta-


mos através dele mesmo, enquanto o interrogamos. Isto quer dizer: pensa-
mos o lógos como o próprio pensar interrogante. Lógos, então, já não é uma
palavra que significa algo apenas próprio aos pensadores originários gregos,
mas se descortina como o que há a-se-pensar. Neste sentido, aqui não inte-
ressa seguir os filões lingüísticos próprios ao uso histórico e contextualizado
da palavra, nas apenas fazer com que ela nos fale em sua propriedade ainda
impensada. Como isto, porém, é possível sem que se transforme em um
artifício ―lógico‖ e em maquinaria mental artificiosa? É possível ouvir o
Lógos em sua origem advencial desconhecida? De qualquer modo, é isto
que aqui se tenta: ouvir o que diz o Lógos a partir dele mesmo. Mas, como
isto é feito? Simplesmente interpelando o pensamento acerca do que ainda é
obscuro como pensar mesmo, isto é, escutando o que diz de si o pensar.
Neste sentido, não pensamos o pensamento, mas somos por ele pensados.
Escutar o lógos, então, é a audição do pensamento que se apossa de nossa
querência e se faz o impensado. O que o lógos diz é sempre o mesmo na
singularidade do impensado. O lógos, agora, tornou-se o âmbito do surgi-
mento da diferença ontológica: encontro do ente no ser. As palavras se tor-
nam aqui armadilhas e empecilhos: lógos é a medida de cada acontecer des-
tinal. O sentido do ser torna-se, assim, o apeíron inominável, e o seu sem-
sentido a absoluta atenção ao evento: o que se faz palavra e gesto, duração e
memória no instante gerativo do que eclode e se destina. A que se destina?
Destina-se a ser sempre instante motivo e esquecimento. Destina-se ao e-
vento do ser-sendo. Para onde vai, entretanto, esta figura etérea que se afi-
gura como ser-sendo? Ela nunca vai para lugar algum, porque é sempre o
seu próprio lugar. O que já é o lugar, para onde pode ir? Por acaso se vai
para outro lugar quando se muda de lugar, ou a mudança de lugar é apenas
passagem do mesmo de lugar a lugar?

Esse modo de colocar a questão filosófica é mesmo inquietante. Ló-


gos não diz senão o pensar mesmo — o impensado. Razão, discurso, lin-
guagem, lógica são palavras que se apresentam como autênticas represen-
tantes da pregnância semântica e da polifonia e polissemia da palavra Lógos.
Sem dúvida, ela é uma dessas palavras que parecem fazer nascer o mundo
como de uma torrente inesgotável. Entretanto, nada disso pode abarcar o
140

que diz o Lógos. Nem razão, nem discurso e nem linguagem são suficientes
para traduzir o que diz o Lógos. E o que diz o Lógos? O indizível? Como
pode o que diz ser indizível?

Aqui não tratamos de significar o lógos, apenas de dizê-lo. Lógos


nada significa porque é o lugar do acontecimento único de tudo: tudo é um.
O lógos não é, em sua nascente, nem discurso, nem razão, nem linguagem.
Lógos é a passagem do que é, o ser, na amplitude de sua oclusão. Lógos,
assim, não é apenas o lugar da reminiscência e da memória, mas também do
esquecimento e da oclusão. A perplexidade é sempre o seu horizonte, mes-
mo na decadência mais inimaginável da história humana. Perplexo ficava
Heráclito diante do que nunca tem ocaso. Perplexo também ficava Heráclito
diante da ignomínia dos homens, pois não sabiam auscultar o que diz o Ló-
gos. Perplexos ficamos diante da grandeza do universo que se descortina
diante de nós, em sua multivalência cada vez mais extraordinária. Perplexos
também ficamos diante da vileza humana e da insensatez, miserabilidade,
estupidez e dessacralização de tudo. É a situação humana que causa espanto
diante da possibilidade do tudo um e do desperdício. É o cosmo em suas
redes invisíveis e sempre mais concretas que provoca o estupor da compre-
ensão silente de tudo, pela via do esquecimento que provém de sua fonte
jorrante. O esquecimento, entretanto, não é o foco de negatividade do Ló-
gos, mas seu velamento protetor — a garantia de sua irrepetível gênese.
Ouvir o Lógos, então, significa o ultrapassamento do sem-sentido no adven-
to conjunto do ser e do ente. Lógos, assim, é o lugar do encontro da dife-
rença ontológica entre ser e ente, o âmbito da clareira e de seu velamento
protetor — clareira como o que há a-se-pensar e velamento como o que
protege da indiferença e da estupidez do sem-sentido.

Esse modo de dizer é mesmo inquietante. Foi dito: o Lógos é o âmbi-


to da clareira e do velamento protetor, simultaneamente. Clareira (Lichtung)
é a palavra que Heidegger usa para indicar a essência impensada da Physis.
Como diz: ―No sentido de abrigar abrindo e clareando, a clareira é a essên-
cia originária que se vela na Alethéia‖ (1998: 32). Pode-se, assim, dizer que
clareira é o nome apropriado para indicar o ―encobrimento essencial do a-
se-pensar (ser)‖. Lógos, portanto, antes de ser o lugar do discurso racional e
do discernimento sistemático e metódico, é o âmbito protetor da clareira,
enquanto o a-se-pensar. Entretanto, como sustentar uma tamanha compreen-
são do pensar mesmo diante do atual momento histórico da Filosofia, que se
apresenta como o lugar da hiper-crítica e do mais estúpido modismo intelec-
tual?
141

Ouvindo Heidegger, que logicamente não é o Lógos, mas fala em sua


proximidade, encontro motivo e acolhida para seguir adiante nesta senda
indagante. O Lógos, então, se torna proximidade e encontro da diferença
ontológica ainda impensada, e abre a clareira do pensar em sua adveniência
impensada. Sibilinidade? É isto o que aqui proponho como pensar mesmo?
Não é isto, então, facilmente tachado de obscurantismo crasso e imperdoá-
vel presunção sapiencial? Como, então, pensar filosoficamente fora da ―ló-
gica‖ ou do pensar correto? Não é esta a marca nefasta da metafísica oci-
dental: pretender pensar o impensável e nominar o inominável?

Diante desse jogo de remissões e de imprecisões conceituais, qual é


mesmo a especificidade da Filosofia? O que tem a ver a Filosofia com o
Lógos pensado como o âmbito do encontro e conjunção da diferença onto-
lógica? E como pode esta diferença iluminar diversamente o sentido da
Filosofia e de uma conseqüente pedagogia da diferença? Tais questões,
agora, ocupam o lugar de fechas mortais, e não deixam espaço para acomo-
dações já pensadas acerca do sentido a-se-pensar. É como a-se-pensar que o
Lógos se descortina em sua adveniência. Só o impensado pode propriamente
arquear-se e lançar-se como o que dele se pode escutar na sua germinância.
Heráclito fala dessa escuta de maneira surpreendentemente obscura. Numa
tradução do fragmento 50, podemos ouvir: ―Se não ouvirem simplesmente a
mim mas se tiverem auscultado (obedecendo-lhe, na obediência) o lógos,
então é um saber (que consiste em) dizer igual o que diz o lógos: tudo é um‖
(Heidegger, 1998: 256).

Nada de imediatamente claro se encontra neste dizer. Pelo contrário,


trata-se justamente do que não se pode dizer sem que se perca sua adveniên-
cia. Então, como ouvir o que diz o Lógos a partir de quem o nomeou? De
qualquer modo, Heráclito fala de ―escuta‖, de algo passível de escuta, por-
tanto de discurso e voz. Escutar é sempre a recepção de uma voz que é um
discorrer. Mas que voz é esta que se pode escutar como Lógos? De que
proveniência é esta escuta e esta voz? É escuta ainda mântica e poética?
Ou é apenas escuta? Escuta de que? Voz de quem?

Se Lógos é a palavra da qual deriva ―lógica‖, e se ―lógica‖ é a pala-


vra de ordem da Filosofia instituída historicamente deste Sócrates, convém
ouvir o que pode ainda dizer o Lógos. Como, então, auscultá-lo em seu a-
contecimento único? Inevitavelmente, através do discurso e da voz. Mas de
qual discurso e de que voz se fala? Por acaso é este discurso e esta voz que
142

dele aparece, Lógos? Lógos é qualquer discurso e qualquer voz? E se não é


qualquer discurso e qualquer voz, o que diz o Lógos como discurso e voz?

Referências:

ARISTÓTELES. Metafísica. Tradução: Leonel Vallandro. Porto Alegre,


RS: Editora Globo, 1969, 311p.

DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. O que é a Filosofia? Tradução:


Bento Prado Jr. E Alberto Alonso Muñoz. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora 34,
2000, 288p.
HEIDEGGER, Martin. Heráclito. A origem do pensamento ocidental
Lógica. A doutrina heraclítica do lógos. Tradução: Márcia Sá Cavalcante
Schuback. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1998, 415 p.
143

11
RESSIGNIFICAÇÃO DOS CONCEITOS DE CI-
ÊNCIA E EPISTEMOLOGIA VISANDO-SE A
FORMAÇÃO DE UMA EPISTEMOLOGIA DO
EDUCAR POLILÓGICA NÃO-VERDADEIRA

 Descrição semântica da epistemologia

O termo ―epistemologia‖ entrou em uso muito recentemente no rol


dos saberes acadêmicos. Hoje ele é usado largamente em qualquer área do co-
nhecimento, apesar da grande ambigüidade e polissemia do mesmo. De forma
imediata, basta focar o olhar nas definições dos múltiplos programas de pós-
graduação existentes. Todas as áreas do conhecimento, hoje, postulam um
patamar epistemológico autojustificável, apesar do inevitável trânsito entre os
diversos saberes autorizados (consolidados historicamente), o que vem confi-
gurando uma era que podemos chamar de absolutamente híbrida, ou melhor,
interdependente, multívoca e indeterminada (aberta e sujeita a casos e ocorrên-
cias específicas, configuradas por feixes de forças pulsivas, cristalizada em re-
des e regimes morais).

Segundo Canguilhem (apud Carrilho, 1991), o termo ―epistemologia‖


foi originalmente proposto em língua inglesa (―epistemology‖), em 1954, sendo
usado em oposição à ―ontology‖ (ontologia), ou seja, significando a ―teoria do
conhecimento‖ em oposição à metafísica clássica como ―teoria do ser‖. En-
tretanto, há registros de seu aparecimento em língua francesa desde 1901,
quando da tradução do livro de Bertrand Russell ―Ensaio sobre os fundamen-
tos da Geometria‖ (1894). Aí o termo ―epistemologie‖ significa uma ―filosofia
da ciência‖, entenda-se, dos ―fundamentos‖ da ciência. Em inglês, o que em
francês é ―epistemologie‖ se diz ―philosophy of science‖.

Esse sentido ambíguo do termo epistemologia permite falar de dois


usos predominantes: um continental e outro anglo-saxônico. O dado é que
tanto o alemão como o italiano, usam o termo segundo os franceses, o que
caracteriza um uso continental. Epistemologia, portanto, é para a cultura con-
tinental o mesmo que ―filosofia da ciência‖ e para a cultura anglo-saxônica é o
mesmo que ―teoria do conhecimento‖.
144

Se usarmos a expressão ―epistemologia‖, em sentido continental, esta-


remos nos referindo ao discurso de constituição da ciência positiva, ramificado
para as ciências particulares, segundo os seus métodos e determinações postu-
lativas, factuais e possíveis. Já se usarmos o termo no sentido anglo-saxônico
estaremos falando de ―teoria do conhecimento‖ (gnoseologia), o que se carac-
teriza pela pretensão de um meta-discurso regulador hegemônico, no sentido
de uma ―teoria geral do conhecimento‖, teoria esta delineada pela análise lógica
das proposições e por um tácito e explícito combate à ontologia ou metafísica.

De qualquer modo, o uso do termo ―epistemologia‖ continua ambíguo,


sendo necessário sempre contextualizar o seu sentido, segundo o regime de
crenças de uma dada comunidade de interesses. E como o discurso epistemo-
lógico se tornou ostensivo em todos os campos da produção do conhecimen-
to, convém distinguir e separar, unir e conjugar diferenças discretas, para daí
configurar um sentido próprio e apropriado para o mesmo, na medida em que
se possa até mesmo deixá-lo de lado, ou apresentar motivos que o destituam da
sua posição hegemônica, sobretudo no âmbito das ciências do espírito.
De modo geral, quando alguém se propõe a discorrer sobre epistemo-
logia não pode prescindir de um mapeamento prévio dos territórios da ciência,
num esforço preliminar de inventariar o que se apresenta como exercício exato
e rigoroso da racionalidade sistemática. Isto requer uma investigação sobre a
história da ciência e sobre os modos de justificação e operação que caracteri-
zam a atividade epistêmica, isto é, a atividade científica. Ora, mas o que é ciên-
cia?

 Analise preliminar dos termos que compõem a palavra epistemo-


logia: epistéme + lógos

Antes de tratarmos diretamente de uma arqueologia do conceito de ciên-


cia e da ciência em seus regimes acionais, procuraremos abordar uma genealo-
gia da palavra epistemologia. Etimologicamente, ―epistemologia‖ é formada
por dois vocábulos gregos: epistéme + lógos. Analisaremos cada um deles separa-
damente, para depois uni-los. O primeiro é da mesma família do verbo epista-
mai, significando ―saber, ser capaz de, ser competente no fazer algo, ser versa-
do em‖. Este saber, este ser capaz de e competente para, indica uma empería,
isto é, uma experiência unida à técnica (techné), configurando-se como ―ciência
de‖, ―maestria em‖. De qualquer modo, mesmo na sua forma mais original,
epistamai significava ―ciência de‖, ciência prática, resultado da experiência e da
técnica. Nesta medida, todas as atividades humanas que envolvem habilidades
e maestria são compreendidas como ciências práticas, o que requer aprendiza-
145

do do fazer próprio a cada caso. O padeiro possui a ciência do fazer pão; o


timoneiro a ciência da condução; o pastor a ciência do pastoreio etc.

Portanto, o padeiro possui um ―saber‖ sobre o pão, assim como cada ar-
tesão sobre sua arte, e cada habilidade é lida como aquisição de um saber que é
um fazer próprio: um saber fazer isto ou aquilo com maestria. Aqui a ciência
ainda não é uma teorização pura, mas apenas uma atividade que por si mesma
é reflexiva. Aqui a ciência é uma atividade de produção de um bem utilitário,
um serviço social. E é como serviço utilitário que a ciência querer um aprendi-
zado: ninguém nasce sabendo fazer pão, mas apenas com a possibilidade de
saber fazer isto ou aquilo. Este saber fazer algo como algo só sobrevive pela
transmissão de sua ciência a outros que a tomem como tarefa e se tornem seus
mestres.
Mesmo pertencente à família do verbo epistamai, com toda a pregnância
semântica assinalada, epistéme é uma palavra específica do vocabulário dos filó-
sofos a partir de Sócrates. De qualquer modo, mesmo entre os filósofos ela
continuará referindo-se a uma atividade competente, só que agora esta ativida-
de tornar-se-á teorética e não mais prática. Trata-se, finalmente, da ciência
compreendida como ―intuição intelectual‖, como atividade ideacional. Entre-
tanto, o que é isto – ―intuição intelectual‖, atividade ideacional?

O conceito de ciência, como hoje é usado por nossa civilização, tem sua
gênese epistêmica entre os primeiros filósofos gregos. Aquilo que por eles foi
estabelecido permanece sendo uma referência imprescindível para uma investi-
gação compreensiva do conceito (ou conceitos) de ciência em vigência. Veja-
mos porque. A atividade da ciência, mesmo se necessariamente empírica, per-
manece sendo uma competência intelectual. É intelectualmente que a ciência
se constitui como atividade prática, porque seus operadores são grandezas ide-
ais: números, conceitos, equações, escalas, definições etc. Sem a atividade inte-
lectual a ciência seria vazia: faltar-lhe-ia o meio computacional, o cérebro hu-
mano. Este dado, apesar de óbvio, é precioso para a compreensão da atividade
científica. A ciência, então, é uma atividade intelectual, requerendo para o seu
exercício competência cognitiva de alcance abstrato e conceitual. Seja ele qual
for, o exercício científico requer o aprendizado de ―medidas e propriedades das
grandezas discretas‖. Ora, justamente este é o objeto da matemática. Mas, o
que tem a ver matemática com ciência (epistéme)?

De algum modo, desde a sua origem filosófica, o que se entende por


epistéme como ―competência teórica‖ se confunde com o que os gregos deno-
minavam mathematiké, que também subentende techné. Trata-se da ―ciência ma-
146

temática‖, ou seja, o feminino de mathematikós, quer dizer, o possuidor do co-


nhecimento de ensinar medidas e propriedades dos entes naturais aos huma-
nos. Essa operação de transmissão de medidas e grandezas discretas é máthema
– atos, ―ensinamento‖, por sua vez derivado de matháno, ―eu ensino‖. A ênfa-
se aqui dada ao ato de ensinar na primeira pessoa delimita uma competência
própria do pensador.

Na cultura grega, os pensadores originários foram portadores de um


saber matemático que se constituiu a partir da cidade de Mileto. O foco inicial,
portanto, é a Ásia Menor, onde as novas colônias gregas aí instaladas depara-
ram-se com culturas tradicionais territorializadas, possuidoras de um saber
matemático já praticado institucionalmente. Em Mileto teria nascido Tales
(provavelmente no final do século VII a . C., tendo lá vivido até meados do
século VI a. C.). Ele é tido como o fundador da escola de Mileto (milesiana), e
teve como seus sucessores Anaximandro (cerca de 610-547 a. C.) e Anaxíme-
nes (cerca de 585-528 a. C.). Tales era considerado um grande matemático
pelos seus contemporâneos, e a ele se atribui uma articulação política de alta
engenharia: teria ele planejado e armado uma trama confederativa entre as ci-
dades-Estados da Ásia Menor, na tentativa de uni-las contra o avanço das inva-
sões de povos orientais. Com isso ele fortalecia uma unidade identitária para o
mundo helênico, em uma época de extrema barbárie, em um ambiente cultural
profundamente mítico-religioso.

Eis aqui o sentido de ser mathematikós para Tales, isto é, ensinar o povo he-
lênico uma nova concepção de mundo, cujo símbolo maior condensava-se no conceito
de princípio, isto é, da arkhé — compreendida como ―aquilo de onde algo sur-
ge‖ (Heidegger, 1979: 21). A arkhé articula-se em uma compreensão cosmoló-
gica nova, cujo foco de interesse transfere-se da ambiência antropomórfica do
mito para a constituição de uma compreensão cosmológica fundada na abertu-
ra para a Physis. O princípio é Arché. Como princípio, a arkhé não é deixada
para trás no momento em que acontece. Pelo contrário, como princípio a arkhé
é aquilo que impera, ou melhor, aquilo que, estando na origem, vigora. Aqui
aparece a ideia de uma unidade tipo (arché) para toda a Physis. E este aparecer é
resultado de operações matemáticas bem delineadas e sucedidas, inevitavel-
mente sedimentadas. Em Tales teria ocorrido pela primeira vez uma mudança
de atitude diante dos acontecimentos do sentido. Ele expressou esta mudança
afirmando a ―água‖ como a arkhé de todas as coisas.

Diante desta aparente ingenuidade de achar que em tudo há água, algo


absolutamente novo acontece: a investigação do princípio das coisas a partir da
empería Apesar de tudo, Tales é muito mais conhecido na perspectiva da do-
147

méstica da Trácia — fato recontado por Platão no diálogo Teeteto —, que tro-
çou dele quando, caminhando, caiu em um buraco. Ao que ela retrucou: —
Que homem és tu que pões todo entusiasmo nas coisas que se passam no céu e
não prestas atenção às coisas que tens diante de ti e debaixo dos olhos? Tales
―ensinava matemática‖. Claro, trata-se apenas de uma interpretação. Entretan-
to, de algum modo isto indica uma diferença radical entre um indivíduo que
desenvolveu habilidades cognitivas relativas ao cálculo e à medida e um indiví-
duo que não passou por esse aprendizado: que não formatou o seu cérebro
para poder observar estrelas e encontrar nisso um sentido altamente implicado
e apaixonante.

Ao longo da História da Filosofia, pelo menos até o século XIX, os


pensadores originários foram tratados como infantes da filosofia e da ciência:
os primeiros a balbuciarem conceitos e desenvolverem investigações fantasio-
sas sobre o Ente em sua totalidade. Inegavelmente, foi graças a Hegel que os
primeiros pensadores ganharam atenção historiográfica na investigação das
origens da filosofia e do filosofar no Ocidente. Mas, só através de Nietzsche é
que os mesmos aparecem fora de uma leitura dialética e evolutiva dos estágios
de desenvolvimento da especulação filosófica, e ganham luzes insuspeitadas e
uma ênfase compreensiva nova.

Para se ter uma ideia mais precisa da diferença de interpretação entre


Hegel e Nietzsche acerca do pensamento originário, evoco aqui palavras de
ambos sobre Tales.

Para Hegel Tales é o primeiro filósofo da história em virtude de mani-


festar o conceito de unidade de todas as coisas, a partir do elemento água. Diz
ele em suas Preleções sobre a História da Filosofia (1979: 9):

―A proposição de Tales de que a água é o absoluto ou, como diziam


os antigos, o princípio, é filosófica: com ele, a Filosofia começa, porque atra-
vés dela chega à consciência de que o um é a essência, o verdadeiro, o único
que é em si e para si. Começa aqui um distanciar-se daquilo que é nossa per-
cepção sensível; um afastar-se deste ente imediato — um recuar diante dele‖.

Segundo Hegel, com Tales começa a aquietação da ―imaginação selva-


gem, infinitamente colorida de Homero‖; começa a dissociação de uma infini-
dade de princípios, isto é, a representação de que um objeto singular é algo
que verdadeiramente subsiste para si, como força autônoma e acima das outras;
começa a afirmação de que há apenas uma lei universal, um universal ser em si
e para si, ―a intuição simples e sem fantasia, o pensamento de que apenas um
148

é‖. Entretanto, para Hegel isto é apenas o início de um longo movimento para
o alcance definitivo do espírito absoluto. Neste sentido, Tales teria identificado
o princípio com um elemento físico, empírico, e não ainda com um conceito
puro autoconsciente.

Contudo, a afirmação da existência de uma única lei universal, identifi-


cada no elemento água, atesta o aparecimento de uma nova compreensão do
mundo, que agora desloca a atenção do singular para o universal, do múltiplo
para o uno. Como diz Hegel, a separação entre o absoluto e o finito é aí en-
frentada. Entretanto, não se trata de uma separação que dicotomiza o um e o
finito, como se tratasse da existência de dois mundos separados: o um estaria,
por conseguinte, sempre além do múltiplo, e este não passaria de uma pálida
sombra do mesmo. Pelo contrário, segundo Hegel ―o ponto de vista filosófico
é que somente o uma é a realidade verdadeiramente efetiva‖ (1978: 90). Isto
significa, em outras palavras, uma superação dialética do estágio inconsciente
do espírito absoluto. Portanto, significa uma mudança de estado compreensi-
vo, onde o verdadeiramente efetivo é o um, isto é, o múltiplo e singular estado
de coisas é subsumido na consciência efetiva de que tudo é um. Ora, aqui não
há mais luta de opostos, mas superação da falsa visão de mundo centrada em
deuses concebidos a imagem e semelhança dos homens, com a diferença da
condição mortal destes.

Entretanto, o caráter filosófico que Hegel reconhece em Tales perma-


nece associado à ideia de uma dialética perene do espírito absoluto, o que acaba
subsumindo todas as etapas anteriores do espírito na história humana: a idade
mítica teria sido superada pela idade filosófica, e esta pela idade da ciência do
absoluto autoconsciente. Neste sentido, na visão de Hegel, Tales teria sido o
primeiro a dar início à passagem de um estágio consciente para um outro auto-
consciente, permanecendo, entretanto, ele mesmo apenas no princípio. Deste
modo, Hegel aponta a falha de Tales na identificação de um princípio universal
a partir de um elemento singular, a água. Diz ele:

―Aqui está a falha: aquilo que deve ser verdadeiro princípio não precisa ter
uma forma unilateral e singular, mas a diferença mesma deve ser de natureza
universal. A forma deve ser totalidade da forma: isto é a atividade e a auto-
consciência mais alta do princípio espiritual, que a forma se tenha elevado pe-
lo esforço para a forma absoluta — o princípio do espiritual‖. (1978: 10)

Hegel aqui assinala para a atividade e a autoconsciência do princípio


espiritual mais elevado: a forma como totalidade da forma. As implicações
desta forma de compreender as coisas são densas e problemáticas. Simples-
149

mente, para ele o estágio da autoconsciência, como alcance da forma absoluta


do princípio espiritual, só teria ocorrido a partir do seu ―esforço para a forma
absoluta‖. É este modo de subsumir o passado que é diferente na interpreta-
ção de Nietzsche sobre os primeiros pensadores (filósofos).

Vejamos, então, de que modo Nietzsche abre uma outra perspectiva de


compreensão do pensamento originário. Segundo afirma, em um dos seus
ensaios sobre os pré-socráticos, a filosofia grega parece começar com uma
ideia absurda, expressa na proposição de Tales: a água é a origem e a matriz de
todas as coisas. Nietzsche considera que esta afirmação, aparentemente simpló-
ria, merece atenção por três razões:

―... em primeiro lugar porque essa proposição enuncia algo sobre a origem
das coisas; em segundo lugar, porque o faz sem imagem e fabulação; e en-
fim, em terceiro lugar, porque nela, embora apenas em estado de crisálida,
está contido o pensamento: ‗Tudo é um‘. A razão citada em primeiro lugar
deixa Tales ainda em comunidade com os religiosos e supersticiosos, a se-
gunda o tira dessa sociedade e no-lo mostra como investigador da natureza,
mas, em virtude da terceira, Tales se torna o primeiro filósofo grego. Se
tivesse dito: ‗Da água provém a terra‘, teríamos apenas uma hipótese cientí-
fica, falsa, mas dificilmente refutável. Mas ele foi além do científico. [...] (p.
10)

Até aqui até parece que ele está dizendo a mesma coisa que Hegel. En-
tretanto, há uma abissal diferença entre um e outro. Para Nietzsche não há
nada a ser superado na adveniência do tempo. Pelo contrário, ele acolhe do
pensamento originário algo de insuperável no tempo do acontecimento: o salto
à totalidade do ente, enquanto é, fora do tempo linear e progressivo da razão.

Isso tudo é bastante lógico, mas não é necessariamente uma verdade


coincidente, porque o que aqui fazemos é uma aproximação arqueo-
genealógica do conceito de ciência no Ocidente, numa tentativa de descobrir-
inventar novas perspectivas de compreensão e de autojustificação para o que
temos em mira com este estudo: o delineamento de uma epistemologia do e-
ducar, epistemologia radicalmente resignificada e redescrita em suas possibili-
dades e processualidades – uma epistemologia além da epistemologia.

Agora re-pergunto: — Em que medida procede a afirmação de que a


ciência é, antes de tudo, uma atividade matemática? O caráter de medição e
definição de grandezas discretas próprio da atividade matemática parece ser
150

inerente a uma atividade cerebral altamente especializada. Este fato deve ter
demorado muito tempo para acontecer na espécie humana. Tudo indica que,
de algum modo, a cultura grega da Ásia Menor acolheu uma época em que se
fez presente uma espécie de explosão neural, ocorrida em alguns indivíduos –
os pensadores originários. Isto abre novos horizontes, perspectivas e possibi-
lidades para o desenvolvimento da espécie humana. De certo modo, lembran-
do Heidegger, isto está na certidão de nascimento do curso historial do Oci-
dente.

Provavelmente, o surgimento dessa ―ciência matemática‖, ou melhor,


dessa ―sapiência‖, é um acontecimento único na história do universo, e aquilo
que por ela se divulga permite a laicização e o manuseio do cálculo e da medi-
da. Bastaria, então, ter presente uma reduzida definição de ciência como toda
atividade de cálculo e de medida capaz de formar acontecimentos seqüenciados e autojustifica-
dos. Este tipo de definição se apresenta destituída de polarização: não é nem
boa nem má, nem verdadeira e nem falsa. Como definição, trata-se apenas de
uma abertura de novas possibilidades. Entretanto, ela se presta para múltiplos
usos, inclusive aquele das ações humanas consideradas maléficas. Ninguém
pode negar, por exemplo, a capacidade de cálculo e medida de grupos de or-
ganização criminosa, como máfias e cartéis do tráfego de drogas, ou certos
serviços secretos de nações hegemônicas. Tudo isso cabe no conceito de ciên-
cia, porque antes dela ser isto ou aquilo, a matemática ou a geometria, a robó-
tica ou a filosofia, ela é uma atividade cerebral altamente complexa e especiali-
zada, independentemente do formato acadêmico e erudito como se apresenta o
que se pretende que seja a chamada ―ciência dura‖.

Essa passagem quer apenas justificar a matemática como pano de fun-


do de toda atividade científica, isto é, a capacidade de calcular e medir as gran-
dezas discretas em qualquer dos contextos possíveis é próprio do desenvolvi-
mento da inteligência abstrata, o que permite redefinir o conceito moderno e
hegemônico de ciência como sendo apenas um caso histórico do que é próprio
ao ser humano como espécie, caso ramificado em múltiplos eventos movidos
pelo mesmo impulso de ―vontade de conhecimento‖, e marcado por formas
de desenvolvimento cognitivo que privilegiam habilidades de manipulação e
resolução de artimanhas utilitárias, mesmo dentro do mais extremado utilita-
rismo estético-virtual. O sujeito, então, se forma publicitário para poder enga-
nar os outros com tanta habilidade quanto os grandes nomes da publicidade.
Isto também cabe no conceito de ciência. Cabe também a estranheza dos
grandes cientistas e pensadores, que sempre dão a impressão de que existe uma
humanidade muito mais elevada do que aquela experimentada pelos comuns
mortais no dia-a-dia.
151

Inicialmente, o saber matemático se desenvolve na Grécia em duas


grandes escolas. A primeira é a escola de Mileto já mencionada. Falemos, ago-
ra, um pouco da escola Pitagórica, a segunda. Ela confunde-se com a figura
legendária de Pitágoras de Samos, ilha do Mar Egeu na Ásia Menor, e liga-se ao
orfismo e a uma transformação radical do mesmo. Diz-se que Pitágoras substi-
tuiu o culto ao deus Dioniso pelo culto à matemática, inaugurando uma inves-
tigação da Physis pautada nos números inteiros. A ideia de unidade chama-se
número para os pitagóricos, sendo a realidade representada segundo uma sim-
bólica numérica dual e decânica. Ao um se contrapõe o dois, ao três o quatro e
assim sucessivamente. Neste sentido, número é medida de todas as coisas, con-
figurando pares de opostos complementares: finito e infinito, ímpar e par, uni-
dade e multiplicidade, repouso e movimento, macho e fêmea, luz e obscurida-
de, bem e mal, quadrado e retângulo, à direita e à esquerda etc. Tais opostos
estruturam tudo: tanto se referem ao movimento cosmológico quanto às ati-
tudes morais. Números são medidores de estados de coisas, sejam elas grande-
zas físicas ou éticas. Números são arquétipos geradores de todas as configura-
ções possíveis, aquelas limitadas e aquelas ilimitadas. Números são essências
discretas e holográficas, isto é, a estrutura-tipo de todo ente existente ou passí-
vel de existência. Estes são traços da concepção pitagórica.

Fazendo uma reflexão, há, sem dúvida, uma diferença entre o número
pitagórico e o que hoje somos capazes e conceber numericamente. A questão é
que, em geral, estamos acostumados a considerar a gênese da Ciência a partir
de óticas progressistas e evolucionistas. Falamos, então, na passagem do mito
para a ciência (filosofia) como se estivéssemos falando de uma superação dialé-
tica (no plano do espírito universal, seja essa superação de cunho kantiano,
darwiniano, hegeliano, newtoniano, marxiano, ou de qualquer outro cunho)
que alcança o ser de toda a humanidade. Trata-se da ótica etnocêntrica – ou
melhor – eurocêntrica? Então, quando nos reportamos aos antigos, sempre
ocorre uma redução intencional que os coloca como nossos antecessores na
escala evolutiva?

Então, dizemos: — Houve um tempo em que o número era concebido


como relação mágica entre os fenômenos. Na cultura grega, Pitágoras de Sa-
mos inaugurou um sistema mathemátikos que pensava toda a ordem cósmica
através de uma simbólica aritmética. Então, ficamos surpresos com tamanha
ingenuidade, e dizemos: — Houve um tempo em que o número era concebido como rela-
ção mágica entre os fenômenos... Portanto, olhamos o passado com a estranheza de
um estrangeiro diante de um novo mundo. E porque estamos olhando fósseis,
temos sempre a impressão de que foram incompletos, de que tentaram algo
152

mas não conseguiram chegar até o final. E com isso reificamos nossa crença
de progresso e evolução. Temos sempre a impressão de que somos melhores,
pensamos melhor, somos mais evoluídos do que os que nos antecederam.
Então concluímos: — Pitágoras não fez ciência, apenas praticou magia. Essa
era uma forma ingênua de conceber o mundo.... E por aí vai....

Essa evocação da relação de epistéme com máthema serve-nos como ten-


sor conceitual para a ressignificação almejada. O caso é que, desde a antiguida-
de, o termo epistéme tem estreita relação com processos de cálculo e medição,
ponderação e divisão, multiplicação, redução e redução simbólica. Este dado
não parou de metamorfosear-se ao longo do tempo do Ocidente. O importan-
te, então, é acatarmos a dimensão do acontecimento inaugural da logicidade
humana em suas múltiplas manifestações e possibilidades. Assim, de igual
modo à escola milesiana ou pitagórica, comumente consideramos também
todo o pensamento desta época como mero primórdio da nossa soberba e
prepotente racionalidade lógica e tecnocientífica. Deste modo, caímos na ten-
tação de considerar os primeiros pensadores como menores, infantes na saga
autoconsciente da razão.

Essa forma de preconceito tira-nos a possibilidade de uma investigação


mais radical sobre a gênese da ciência na humanidade do homem. Porque nos
deixamos enredar pela crença de uma continuidade histórica dos eventos, cri-
amos uma ilusão psicológica do tempo. Essa ilusão nos custa muito caro. Par-
timos quase sempre do ponto oposto. Queremos sempre ter razão, uma razão
mais clara, mais justa... Imaginamos que os nossos juízos são os mais apurados.
Tudo, então, se reduz à nossa ótica etnocêntrica, à nossa corrente ou escola de
ciência, ao nosso próprio umbigo.

Assim, perdemos tempo quando permanecemos prisioneiros do tempo


psicológico? Mas, como escapar do tempo psicológico, não é ele o símbolo do
inconsciente ativo? Não é ele ―pulsão de vida‖ ? Há uma passagem de Hus-
serl em A ideia da Fenomenologia (1990), onde ele descreve o conhecimento, que
aqui uso para melhor dimensionar a natureza desse ―tempo psicológico‖. Diz
ele:

O conhecimento é, em todas as suas configurações, uma vivência psíquica: é


conhecimento do sujeito que conhece. Perante ele estão os objetos conhecidos. Mas,
como pode o conhecimento estar certo da sua consonância com os objetos conheci-
dos, como pode ir além de si mesmo e atingir fidedignamente os objetos? [...] O co-
nhecimento é, pois, apenas conhecimento humano, ligado às formas intelectuais humanas, in-
capaz de atingir a natureza das próprias coisas, as coisas em si.‖ (p. 42-43)
153

Segundo Husserl, a forma de sair das amarras desse ―tempo psicológi-


co‖ é a atividade filosófica radicalmente fenomenológica. Na sua perspectiva,
é preciso ir além do psicologismo para se chegar a fazer uma crítica da ciência
natural rigorosa, e é exatamente esta crítica que ele chama de Filosofia. A críti-
ca ao psicologismo é, então, a reafirmação da possibilidade de uma ciência do
conhecimento fenomenológico, isto é, conhecimento da objetualidade do co-
nhecer: conhecimento do conhecer — conhecimento transcendental, mas não
transcendente; conhecimento absoluto. Como ele afirma:

―Se abstrairmos das metas metafísicas da crítica do conhecimento, atendo-


nos apenas à sua tarefa de elucidar a essência do conhecimento e da objectalidade cognitiva, ela é
então fenomenologia do conhecimento e da objectalidade cognitiva e constitui o fragmento
primeiro e básico da fenomenologia em geral.
‗Fenomenologia‘ – designa uma ciência, uma conexão de disciplinas científi-
cas; mas, ao mesmo tempo, e acima de tudo, ‗fenomenologia‘ designa um método e
uma atitude intelectual: a atitude intelectual especificamente filosófica, o método especifica-
mente filosófico‖. (1990: 46)

O que aqui ressalto é a ―atitude intelectual filosófica‖ da fenomenologia


proposta por Husserl. Nela o importante é a radical crítica ao conhecimento
natural e a inclusão de uma nova tarefa para a filosofia. Trata-se de uma filosofia
re-inventada, re-significada, re-descrita. Para Husserl, há de se colocar a filoso-
fia em uma dimensão nova, e por mais que essa nova dimensão possua conexões
inevitáveis e essenciais com as antigas dimensões admitidas pela ciência, a ela
corresponde um método novo desde os seus fundamentos, contrapondo-se decidida-
mente aos métodos naturais de autojustificação epistêmica. Ora, isto abre um
campo de puras possibilidades, onde os fatos são tomados apenas como acon-
tecimentos casuais: casos reais, mas nunca casos em si mesmos capazes de de-
monstrar essa ou aquela concepção de verdade e de certeza.

Então dizemos: — A filosofia é uma ciência de rigor. E por encontrar-


se em uma dimensão completamente nova, precisa de pontos de partida inteiramen-
te novos e de um método totalmente novo; método este capaz de distingui-la, por prin-
cípio, de toda ciência natural. Ora, então, concluímos: — A matemática pita-
górica, ou grega de uma maneira mais geral, não passa de ciência natural. E
com essa afirmação encerramos a nossa possibilidade de reconhecer que tam-
bém Pitágoras fazia ―ciência‖ — ou melhor, produzia conhecimento visando a
posse de certos princípios e causas, de certos meios de intelecção do todo na-
tural. Mas, como se pode estabelecer a crítica do conhecimento fora do âmbi-
to natural, se esta é a condição primeira de todo conhecimento humano?
154

Na visada da fenomenologia de Husserl, trata-se de praticar a epoché no


mais radical sentido do termo. Ora, a epoché não coloca o seu praticante diante
de nenhuma doutrina mais verdadeira do que aquelas praticadas pelas ciências
naturais, mas apenas dá início à investigação metódica do que é próprio ao
conhecer humano, a partir de uma distância já cumprida em relação às verda-
des estabelecidas pelas ciências naturais e pelos hábitos conceptivos calcados
no senso natural – senso comum. Trata-se, então, de autojustificar o âmbito a
partir do qual se edifica uma ciência do espírito que já não acredita nem nas
verdades do mundo natural e nem nas verdades do mundo psicológico (moral).

Mas, onde essa operação de radicalidade suspensiva encontra o seu a-


poio, se já não são válidas nem as verdades objetivas e naturais e nem as ver-
dades subjetivas e humanas? É isto científico, ou não passa de delírio filosófi-
co de extremo poder sedutor, pois apresenta a possibilidade de um ponto de
início absoluto para a filosofia criticamente posta ?

Nesse ponto, Husserl segue os passos de Descartes. Trata-se de admitir


um ponto de partida de forma alguma ambíguo, mas, pelo contrário, claro e
evidente por si só. Mas, é isto possível fora das referências naturais e psicoló-
gicas? E se é possível, como é possível? Então, cartesianamente, a questão se
coloca em uma perspectiva de saber absoluto, onde algo se apresenta como
conhecimento primeiro e evidente, fora de qualquer dúvida ou de qualquer
incerteza? Este algo, entretanto, não se encontra em estado natural, mas re-
quer uma atividade de elucidação permanente, continuada. E, sobretudo, este
algo não se encontra fora do sujeito cogitante. Mas, Husserl segue apenas o
ponto de partida de Descartes, a ―radicalidade do ponto de partida‖, deixando
clara a diferença da sua intenção filosófica (fenomenológica).

O caso é que com a epoché nada se pode admitir como previamente dado,
o que requer um ponto de partida que ela própria põe, tirando de si mesma,
como conhecimento primeiro. Esta não é uma passagem de fácil e imediata
compreensão, mas requer o esforço do absoluto retorno às coisas mesmas.
Quando, então, a ideia de um saber absoluto soa pretensiosa e nos dias atuais
inconcebível, como é possível sustentar o caráter radical da epoché fenomenoló-
gica, sem cair no contra-senso e no vazio das questões metafísicas? Afinal, que
saber absoluto é este tomado como princípio da própria epoché?

Facilmente somos levados a pensar a ideia de saber absoluto como algo


pertencente ao ciclo imponente da racionalidade iluminista, como expressão de
uma vontade de conhecimento incapaz de dimensionar a sombra produzida
pela sua própria luz. Deste modo, a ideia de uma suspensão radical dos dados
155

do conhecimento nos parece absolutamente fora de propósito. E com este


sentimento de impossibilidade, somos levados a não cumprir um retorno radi-
cal sobre nós mesmos, enquanto ente-espécie que somos. Adiamos, assim, a
possibilidade de uma epistemologia própria e apropriada aos nossos fins. Ou
seja, adiamos a possibilidade de uma crítica radical do conhecimento que nos
coloque na perspectiva do ensaiador, para o qual os dados são apenas imagens
perceptivas, dados em si mesmos absolutos. Como diz Husserl, evocando Des-
cartes sobre a natureza da dúvida e da certeza na cogitatio:

―Sempre que percepciono, represento, julgo, raciocínio, seja qual for a certeza ou a
incerteza, a objectalidade ou a inexistência de objectos destes actos, é absolutamente
claro e certo, em relação à percepção, que percepciono isto ou aquilo e, relativamente
ao juízo, que julgo isto ou aquilo, etc.‖ (1990: 54)

Aqui aparece um sentido de ―certeza‖ muito diferente do que aquilo


que em geral representamos sobre o tema. Nos parece deslocado se falar em
saber absoluto, porque não sabemos muito bem do que se trata, e logo imagi-
namos tratar-se de uma falácia da razão. Entretanto, se deslocarmos o foco
intencional da suspensão para o próprio conhecer, então, o conhecer é sempre
um dado absoluto, seja ele isto ou aquilo, percepção reflexiva intuitiva, ou ape-
nas fantasia reflexiva intuitiva. Este é o núcleo central da radicalidade do pon-
to de partida: o conhecer que se conhece a si mesmo e em si mesmo. Estaria
aí o ponto de partida da fenomenologia de Husserl: ―Toda evidência intelectiva e
toda a vivência em geral, ao ser levada a cabo, pode fazer-se objeto de um puro ver e cap-
tar e, neste ver, é um dado absoluto.‖ (1990: 55)

Há aqui um ponto de partida que, ao suspender os dados naturais da


intelecção, abre-se para a investigação da ―essência do conhecimento‖. É o
projeto de uma crítica radical do conhecimento, pela perspectiva do conhecer,
ou melhor, do conhecedor. De forma radical, Husserl põe o conhecimento em
suspeição judicativa. No entanto, isto não anula ou nega as múltiplas formas de
conhecimento existentes, apenas postula uma ciência humana fundada em seu
próprio absoluto, isto é, a partir das suas próprias condições, limites e possibi-
lidades. Isto requer uma crítica radical do conhecimento e uma crítica rigorosa
da ciência.

Não se trata, entretanto, de um sistema de ciência que estabelece hie-


rarquias exatas e imutáveis. Portanto, não se trata de compreender a atitude
fenomenológica como saber absoluto do transcendente, mas apenas saber ab-
soluto do imanente – sobretudo do ―puramente imanente‖. Nesta medida, a
―redução fenomenológica‖ coloca-se como método para a investigação do
conhecimento puro, isto é, do ―puramente imanente‖, suspendendo todo e
156

qualquer juízo e intelecção relativos ao ―imanente incluso‖. Suspende-se, as-


sim, os dados relativos a sistemas de crenças, e foca-se a intenção apenas no
―imanente em si mesmo‖, isto é, na própria consciência na sua abertura trans-
cendental, isto é, na apreensão absoluta de si mesma como consciência para,
consciência de alguma coisa. Mas a consciência em si, a pura imanência, não se
confunde com os dados da transcendência, e só pode ser tal em um ser para-si,
isto é, em um ser aberto ao próprio acontecimento vivo da criação da humani-
dade.

A fenomenologia, assim, se autojustificaria como ciência do espírito,


nada tirando das ciências naturais como suporte e modelo de suas operações
demonstrativas. E ela, como ciência do espírito, nada tem contra as diversas
formas de conhecimento produzidas pela humanidade desde os seus primór-
dios, porque isto seria um contra-senso, mas apenas requisita das outras ciên-
cias o mesmo respeito para o seu ponto de partida, porque uma crítica do co-
nhecimento não poderia estar submetida a nada fora do seu próprio campo
intencional. Portanto, se as ciências naturais se proclamam válidas em virtude
da objetividade de seus correlatos e postulados, maior motivo tem uma feno-
menologia para seguir adiante na investigação da essência do conhecimento,
posto ser o seu campo intencional tão objetivo quanto qualquer outro objeto
das ciências dogmáticas ou naturais. Mas, qual é, então, o próprio objeto da
fenomenologia?

Para Husserl, toda vivência psíquica tem um correspondente fenômeno puro, que
exibe a sua essência imanente (singularmente tomada) como dado absoluto. Neste sen-
tido, toda posição de uma realidade apresentada como transcendente, isto é,
não contida no fenômeno, encontra-se desconectada, isto é, suspensa. Deste
modo, ―se há possibilidades de converter tais fenômenos puros em objetos de
investigação, é evidente que já não estamos na psicologia, esta ciência trans-
cendentemente objectivante‖ (1990:71).

Assim, a fenomenologia não investiga fenômenos psicológicos nem


ocorrências da chamada realidade efetiva, mas apenas interessa-se pelo que é e
vale, independente da existência ou não de algo como a realidade objetiva, e
sem pretender julgar a validade e legitimidade de tais transcendências. No
memento em que a fenomenologia suspende os dados naturais ela se depara
com o próprio fenômeno da consciência. Isto, segundo Husserl, é algo tão
objetivante quanto a objetivação das ciências que lidam com imanências trans-
cendentes. Estes são os dados absolutos puramente imanentes, e ainda que se
refiram intencionalmente à realidade objetiva, o próprio referir-se é para tais
157

dados uma certa característica, porque nada se preconceitua acerca do ser e não
ser da realidade.

Esse esclarecimento é, para Husserl, o lançamento da âncora na costa


da fenomenologia,
―....cujos objetos são postos como existentes, da mesma maneira que a ciên-
cia põe os objetos da sua investigação; não estão postos como existência num eu, num
mundo temporal, mas como dados absolutos, captados no ver puramente imanente.
O puramente imanente, deve aqui, de início, caracterizar-se mediante a redução fenome-
nológica: eu intento justamente isto aqui, não o que ele visa transcendentemente, mas o
que é em si mesmo e tal como está dado. Tais expressões são, naturalmente, apenas
rodeios e auxílios para levar a ver o primeiro que aqui importa ver, a diferença entre
os quase-dados do objeto transcendente e o dado absoluto do próprio fenômeno.‖
(1990: 72)

Contudo, ainda faltam novos passos e novas reflexões para que se pos-
sa pôr o pé firme no país da fenomenologia. Esta abordagem inicial é concer-
nente a todos os fenômenos, apesar da fenomenologia ocupar-se, segundo suas
metas críticas, apenas dos fenômenos do conhecimento. Isto, entretanto, não
impede que o ponto de partida assumido pela fenomenologia refira-se igual-
mente a todos os casos onde há fenômeno. A questão, agora, alcança um pon-
to de máxima tensão. Trata-se da autojustificação da validade do conhecimen-
to fenomenológico, o que requer a presença do sujeito capaz de intuir e cogitar
sobre o puramente imanente, sem perder de vista a sua existencialidade efetiva.
Este é um ponto crítico abissal e é inevitável. Dizendo com Husserl: ―Para
explorar a essência do conhecimento, tenho, naturalmente, de possuir como dado
o conhecimento em todas as suas formas questionáveis e de um modo tal que
este dado nada tenha em si do problemático que qualquer outro conhecimento
consigo traz, por mais que pareça fornecer dados‖ (1990: 72). Este é justamen-
te o problema do conhecimento puro, e é ele o principal objeto da fenomeno-
logia husserliana.

O reconhecimento de um dado absoluto é algo em relação ao qual não


paira nenhuma dúvida. O dado absoluto, então, não é nada mais do que abrir os
olhos e ver, apurar os ouvidos e ouvir, aguçar o falar e falar, nutrir o julgar e
palatar, despertar o tato e tocar. O ―puro ver‖, o ―puro ouvir‖, o ―puro falar‖,
o ―puro tocar‖, o ―puro degustar‖. Este é o dado absoluto: o puro imanente.
Claro, trata-se de um dado perceptivo, de um perceber: ver, ouvir, falar, tocar,
sentir etc. O ―puro imanente‖, então, é aquilo que esta imediatamente diante
de nós: o fenômeno, no sentido do ―aparecer‖ e daquilo que ―aparece‖. Este
―aparecer que aparece‖, no caso de um crítica do conhecimento, é o ―conhe-
cer‖ que ―conhece‖: o ego transcendental (evitando-se a palavra sujeito).
158

Seguindo esse fio condutor, a fenomenologia de Husserl apresenta-se


como ciência do fenômeno, ou seja, ciência da constituição da consciência
relativa a seus efeitos perceptíveis, ao seu aparecer como ente, a seu ser isto ou
aquilo. Ora, decididamente, aqui não se lida com metafísicas apriorísticas e
nem com certezas inclusas, mas apenas com a ―essência do conhecimento‖.
O ponto de partida, então, da fenomenologia continua sendo o cogito? Admitir
isso não significa permanecer no horizonte moderno das filosofias da consci-
ência, para as quais o mundo é representação do espírito e o espírito é uma
ideia universal?

É, parece que estamos em uma encruzilhada. Torna-se necessário, en-


tão, decidir. Em primeiro lugar decido pela clareza do ―puro imanente‖, o que
me faz suspender a própria ideia de certeza, seja ela objetiva ou subjetiva. A
questão da certeza, então, confunde-se com a disposição para acolher o dado absolu-
to: o puro ver, o puro sentir, o puro dizer, o puro ouvir etc. Não é uma ―certeza certa‖
no sentido cartesiano, porque ainda não se trata de uma cogitatio, ou melhor, de
uma meditação intelectualmente disposta, mas se trata apenas de uma disposi-
ção espiritual absolutamente aberta ao fluxo do acontecimento do fenômeno,
isto é, aberta como ―consciência pré-reflexiva‖. O dado absoluto, então, é o puro
imanente, e dado que ele não se encontra apenas em um sujeito singular, ele é a
pré-condição de todo conhecimento possível, em toda a extensão e profundi-
dade da humanidade do homem. Em primeiro lugar o sujeito encontra-se no
mundo. O mundo, deste modo, apresenta-se como dado natural ao sujeito:
coisas, objetos, manifestações, horizontes, correlações etc. A seguir, o sujeito
se reconhece no mundo. E aí o mundo passa a ser objeto de investigação por
parte do sujeito. O sujeito, então, coloca o ―problema‖ do conhecimento: Que
é conhecer, e quem conhece?

Ora, essa pergunta tipicamente filosófica é a marca fundante das epis-


temes ocidentais. Também os cientistas naturais perguntam, e isto é um dado
absoluto. Não importando a matriz, a ciência é ciência porque de algum modo
interroga, seja isto ou aquilo, este fato ou aquele objeto. O curioso é que com
este olhar alguma coisa se ilumina de forma inesperada: o próprio conhecer se
torna conhecido a partir do conhecedor. Diria Descartes: Penso que sou, logo sou.
É este o dado puro: — Sou porque sei que percebo. Este é o ponto de início de uma
filosofia fenomenológica, ponto de abertura para uma crítica radical da ciência
e do conhecimento, em suas múltiplas aparições. Primeiramente, há o que
pensar, e este é o próprio pensador. A reflexividade é, então, um dado absoluto.
Como dado absoluto, a reflexividade é um puro fenômeno: é no seu próprio apa-
recer na aparência.
159

Esse é o campo do conhecimento puro. Podemos agora estudá-lo, es-


tabelecendo uma ciência dos fenômenos puros, uma fenomenologia? Entretanto,
é patente que só se pode clarificar a essência do conhecimento, se cada um de
nós o perscrutar por si mesmo, e se ele próprio nos for dado a perceber tal
como é, em seu estado puro. Há aqui uma dificuldade de natureza semântica.
Em geral, a imagem de ―pureza‖ nos chega associada a fenômenos morais.
Então, logo dizemos: não há nada puro na percepção de algo como algo, muito
menos no entendimento de algo. A expressão ―puro‖, então, nos soa como
assepsia ou eugenia voluntária. A ela logo associamos imagens como ―alma
pura‖, ―caráter puro‖, ―virtude pura‖, ―água pura‖ etc., como se estivéssemos
falando de grandezas puramente ideais, grandezas numéricas em si, absoluta-
mente quantificáveis. Mas, para esta visada fenomenológica, ―conhecimento
puro‖ é apenas o conhecer, isto é, o ser que conhece em si mesmo: o conhece-
dor.

Sem dúvida, tudo isso parece um mero jogo de tautologias, jogo desco-
lado dos chamados fatos. Não há que se negar a força desta aparência. Ela é
um dado, apesar de não ser um dado absoluto. E não é um dado absoluto
justamente porque aparece desta ou daquela maneira, segundo esta ou aquela
crença no mundo natural. Afirma-se, postula-se, nega-se isto ou aquilo como
dado. Tudo isto é mero jogo de aparências, mera tautologia do referente, seja
imanente puro, imanente incluso ou apenas transcendente. A ―pureza‖, então,
é apenas mais um referente de algo como algo? O importante, então, é perce-
ber que há algo como algo: é este perceber que é puro. Ele, então, não é puro
porque se sobressai, mas é puro porque existe como tal, isto é, como é perce-
bido em si mesmo, como puro ver. Ora, esta ―pureza‖ nada tem a ver com
grandezas ideais, mas apenas com a consciência de que há, de qualquer modo,
consciência no ver: o puro fenômeno da fenomenologia. Assim, enquanto o
objeto da fenomenologia é o puro fenômeno, não há problema e incerteza
quanto à possibilidade do conhecimento, porque não se trata do transcendente,
mas apenas do que é em si evidente: o aparecer e a aparência do puro ver. A
dúvida só persiste diante do que não é evidente em si mesmo: o puro transcen-
dente. Este, porém, é inacessível ao conhecimento fenomenológico. Fenome-
nologicamente falando, só o puro dado é evidente em si mesmo. E, felizmente,
o puro dado é, em si mesmo, apenas imanente, pois o conhecimento do trans-
cendente é apenas um preconceito sobre a possibilidade do conhecimento ser,
em si mesmo, algo além de si mesmo.

E como diz Husserl, a ideia de transcendência tem, em si mesma, dois sen-


tidos, ambos correlacionados à imanência.. O primeiro deles apresenta o objeto
160

do conhecimento como se não fosse ingrediente no ato cognitivo, de tal forma,


que por ―dado imanentemente‖ se entende o ―estar inclusamente contido‖.
Assim, o ato de conhecimento, a cogitatio (cogitação) tem momentos ingredien-
tes, e como ingredientes a constituem. Entretanto, neste caso, a coisa que a
―cogitação‖ intenciona, encontra-se na própria cogitatio como vivência, mas
não inclusamente como fragmento, como algo que realmente nela existe. Mas,
como pode a vivência ir a além de si mesma? Como pode ela transcender o
imanente incluso, o que é percebido, recordado etc.? Assim, diante desta ideia de
transcendência, o imanente é apenas imanente incluso, enquanto vivência cognitiva.
Este é o problema: como pode, então, a vivência transcender, se ela se con-
funde apenas com o imanente incluso – a própria vivência da cogitatio? Facilmen-
te, diante desta ideia de transcendência a confusa vaguidade impera, provocan-
do obscuridades e não clarezas – claridades.

O outro sentido de transcendência tem como contrário uma imanência intei-


ramente diversa, a saber: o dar-se absoluto e claro, a autopresentação em sentido absoluto
(Husserl, 1990: 62). Neste sentido, é transcendente todo conhecimento não
evidente, que intenta ou põe o ente objetivamente, mas não o intui ele mesmo.
Com esta transcendência se vai além do dado, isto é, se vai além do que direta-
mente se pode ver e captar. A pergunta, então, que suspende a validade de tal cren-
ça, Husserl a coloca como pedra de toque para sua crítica fenomenológica:
―Como pode o conhecimento pôr como existente algo que nele não está direta e verdadeiramen-
te dado? (ibid., p.61)

Recapitulando. São duas as transcendências e duas as imanências, exis-


tindo uma correspondência polarizada entre ambas. A primeira transcendência
contrapõe-se a uma imanência inclusa, distinguindo a vivência em si dos conteú-
dos próprios das vivências inclusas. Deste modo, toda vivência ingrediente,
isto é, toda vivência disto ou daquilo é a expressão da imanência, e apenas a
vivência do que é intentado como cogitação se diz transcendente, porque não
se confunde com coisas ou conteúdos fragmentariamente existentes ao modo
de coisas. Mas, como pode a vivência ir além da vivência? Já a segunda trans-
cendência se contrapõe à pura imanência. Todo conhecimento não evidente em
si é transcendente. E para ser evidente em si, o conhecimento é puramente ima-
nente. Só este pode ser dito conhecimento absoluto. Portanto, não há sentido
em se falar de um conhecimento transcendente do dado absoluto: a pura ima-
nência.

No âmbito do desenvolvimento da teoria do conhecimento (gnoseolo-


gia), essas duas transcendências e imanências se confundem inicialmente. Foi
necessário um longo percurso discursivo antes da meditação acerca da possibi-
161

lidade do conhecimento crítico ter sido aprofundada. De qualquer modo, a


transcendência, segundo os dois sentidos equívocos assinalados, ela constitui-
se no problema inicial e guia da possibilidade da crítica do conhecimento. E
como diz Husserl, este é o enigma que bloqueia o caminho do conhecimento
natural, constituindo o impulso para as novas investigações. Nesta medida, a
investigação fenomenológica parte do reconhecimento da impossibilidade do
conhecimento transcendente, seja ele qual for, admitindo, então, apenas o ima-
nente como objeto efetivo do conhecimento crítico. A evidência, assim, deixa
de ser um dado para além do dado, e passa a ser o dado puro: o puramente imanen-
te. É este o ponto de partida de uma fenomenologia, compreendida como crí-
tica da essência do conhecimento. Trata-se, portanto, de deixar evidente que a
autojustificação da fenomenologia não pretende alcançar verdades transcen-
dentes, mas apenas mostrar a validade do que é puramente imanente: o fenômeno no
seu aparecer e na sua aparência; a consciência compreendida como campo intencional e rela-
cional, consciência de, consciência-sendo.

Segundo essa perspectiva apresentada, uma teoria crítica do conheci-


mento jamais pode edificar-se sobre uma ciência natural de qualquer espécie.
Apesar disto, os enigmas não desaparecem, porque uma ciência fenomenológi-
ca não se ocupa de fatos, mas apenas da ―essência do conhecimento‖, isto é,
do campo virtual relativo às possibilidades do conhecer. Entretanto, no mo-
mento em que a fenomenologia privilegia o campo das possibilidades em de-
trimento do campo das realidades inclusas, ela deixa em aberto o enigma, por-
que a sua evidência e certeza dizem apenas respeito ao campo do dado puro — o
dado puro como abertura de todas as possibilidades onde há conhecimento —
e, em absoluto, pretenda que esta certeza deva ser necessariamente transcen-
dente. Neste sentido, qualquer ―certeza transcendente‖ é um contra-senso,
porque pretende justificar algo que está absolutamente fora do seu alcance
cognitivo. E porque a fenomenologia privilegia a possibilidade, o seu enigma
configura-se no como é possível o conhecimento, e não mais no por quê é ele verda-
deiro. Ser verdadeiro, então, neste sentido, significa simplesmente o ―fenôme-
no‖, isto é, aquilo que só é possível para uma consciência que percebe e viven-
cia o des-velamento por si mesma. Responder ao como torna-se a tarefa de uma
crítica do conhecimento e da ciência. O como, então, é movimento de produção
de sentido circunstanciado, existente segundo esta ou aquela emergência. O
como está sempre aberto, e nenhuma teoria metafísica pode assegurar a sua exis-
tência perpétua. O como é a ciência prática: o agir desta ou daquela forma, se-
gundo este ou aquele critério, movido por esta ou aquela pulsão. O como é
possível o conhecimento crítico? é o próprio conhecimento crítico no seu
acontecimento tessitural. Por isto, a ele não cabe responder por compromissos
162

ontológicos transcendentes, porque a sua essência é o próprio como e não o


transcendente por quê.

De certo modo, Husserl chama este como de meditação infinita. E digo de


certo modo, porque isto não se encontra explícito na sua fala. Claro, esta
―meditação‖ é uma ―investigação‖ permanente, porque meditar não significa
alcançar verdades eternas por meio de uma contemplação direta das essências
incorpóreas, mas, antes, significa manter-se distante de toda e qualquer repre-
sentação de realidade que queira se impor como verdade última, obrigando-nos
a uma espécie de aderência partidária compulsória. A ―meditação fenomeno-
lógica‖, então, é justamente o alcance da disposição necessária para se realizar o
como é possível o conhecimento humanamente fundado. Neste caso, o como se confunde
com a própria produção do conhecimento, porque está claro que o conheci-
mento é sempre conhecimento de alguma coisa, portanto, é sempre conheci-
mento como isto ou aquilo.

Apesar desse último esclarecimento, a pergunta pelo como é possível o


conhecimento fenomenológico? é respondida pelo como este conhecimento é
produzido. E para alguém que tenha passado por esta visada crítica, torna-se
impossível reconhecer a validade das ciências humanas a partir dos métodos
quantitativos das ciências físico-matemáticas — ciências naturais. Este é um
erro crítico de gravíssimas consequências, porque só em base à liberdade abso-
luta pode o espírito humano libertar-se dos grilhões de sua própria absurdida-
de. Querer, então, justificar as ciências humanas tomando como base métodos
quantitativos é o mesmo que pretender que um cego veja, ou que um mudo
fale. E querer tal coisa é, indubitavelmente, possível. Mas, querer que este seja
o modelo para toda ciência válida é o mesmo que pretender transformar a pos-
sibilidade em apenas uma ou duas opções. É o mesmo que pretender dizer que
apenas esta ou aquela ciência é verdadeira, sendo as demais simplesmente pré-
científicas. A expressão para isto pode ser a seguinte: excluir para melhor coman-
dar; eliminar as diferenças para melhor impor-se.

Sem pretender exaurir nada, com a fenomenologia coloquei o proble-


ma do conhecimento a partir de outras possibilidades, o que ilumina o necessá-
rio sentido da crítica na edificação de uma autojustificação absoluta das ciências
humanas. E isto, de algum modo, requer o aprendizado crítico-epistemológica,
aprendizado semelhante ao almejado por Marx no seu projeto revolucionário.
Trata-se, sem dúvida, de recolocar o problema da formação humana para o
domínio científico em outra abertura, o que requer que a ciência humana se
defina como processo permanente de auto-superação, porque não se trata de
demonstrar verdades já sabidas metafisicamente, mas apenas de ―mostrar‖ o
163

acontecimento do sentido-significado: dar prosseguimento ao como realizar


uma ciência da essência do conhecimento no próprio exercício do conhecer
crítico — abertura para o aberto e para o fechado.

Pelo fato da fenomenologia responder apenas pelo como do conheci-


mento, ela deve começar sempre do início. Esta é a sua sina: ela está sempre
começando, e nunca supera o ponto de início radical. Mas esta ―sina‖ não é um
fardo e sim um destino serenojovial. Porque está sempre começando a fenome-
nologia é apenas um método, jamais um sistema apriorístico a ser demonstrado
passo por passo. O conhecimento, assim, é uma aventura do espírito humano,
aventura que também pode ser acolhida como acréscimo de potência, e não
como reificante aprisionamento do espírito criador e inventivo: poema também
apenas começado.

Ora, então dizemos: só a ciência experimental e quantitativa é ciência. Claro,


esta é uma afirmação dogmática e excludente. Entretanto, na medida em que
praticamos a epoché fenomenológica, uma tal afirmação torna-se absurdamente
vazia de sentido e contra-sensual. A questão, então, requer a redefinição do
que é ciência. E isto só se pode fazer pelo discurso e no discurso.

Caímos, assim, na segunda palavra que compõe ―epistemologia‖, lógos.


É justamente através dela que a ciência se autojustifica desta ou daquela ma-
neira. Na língua grega, lógos possuía uma pregnância semântica muito além do
seu uso tecnocientífico, que indica ―estudo‖, ―teoria‖, ―racionalização de‖ etc.
Supostamente derivado do verbo légo (légein, no infinitivo), lógos significa várias
coisas em contextos diferentes. É uma palavra polissêmica de grande fecundi-
dade. Recolhendo algumas de suas sonâncias e ressonâncias, temos pelo me-
nos 5 seqüências que indicam proximidades e diferenças, desde o seu uso mais
antigo até o contemporâneo. Lógos, assim, pode significar:
1) reunir, colher, acolher, pousar, pausar, repousar, ouvir, ponderar,
contar, escolher, selecionar, calcular;
2) narrar, dizer, pronunciar, proferir, falar, declarar, anunciar, discutir,
nomear, designar, convencer;
3) ordenar, refletir, pensar, raciocinar, investigar, racionalizar, demons-
trar, analisar, teorizar, fundamentar;
4) significar, expressar-se oralmente, discursar, contar, comunicar-se
com outros;
5) ler em voz alta, recitar, fazer dizer, discursar. 13

13
Nesta descrição, baseei-me em uma fonte imediata, apenas como início de conversa.
Trata-se do Glossário encontrado em Chauí (1994). Isto, portanto, não me impede de conti-
164

De tudo isso destaca-se o caráter lingüístico da palavra, seja em sua a-


cepção apophántica ou naquela apodíctica, isto é, tanto como articulação verbal (o
lógos como discurso) quanto como conceito e fundamento racional universal e
necessário (o lógos como pensamento verdadeiro, lugar da essência). Lógos, por-
tanto, é uma daquelas palavras que ocupam lugar de destaque no âmbito da
compreensão, interpretação, explicação, comunicação e produção simbólica do
ser humano. Claro, trata-se de uma palavra grega, assim, ocidental. Entretanto,
aquilo que os gregos chamavam légo não foi algo exclusivo de sua língua. Com
expressões correlatas, todos os povos humanos perceberam e percebem a
importância da ―palavra‖, e, de algum modo, possuíram e possuem regimes de
significação onde o ―mesmo‖ foi e é dito e pensado. Comparar regimes de
signos de povos e culturas distintas seria muito instrutivo a este respeito. Mas
este não é o lugar para tamanha tarefa. Limito-me, então, a ―descrever‖ as-
pectos (sintomas) do uso da palavra.

No campo das ciências em geral, lógos compõe a nomeação da maior


parte delas, querendo sempre dizer ―teoria‖, ―estudo‖, ―investigação‖, ―ciência
sistemática‖. Assim, da cosmologia à astrologia, da antropologia à biologia, da
gnosiologia à epistemologia, toda palavra com a terminação ―logia‖ quer dizer
sempre o mesmo: procedimento investigativo e sistemático. O lógos aqui é usado em
uma de suas múltiplas dimensões. Entretanto, a impressão que se tem, do lado
da ignorância geral, é que a palavra apenas signifique, na sua nascente, ―razão‖,
―princípio‖, ―causa‖, ―fundamento‖. Quando, então, dizemos ―epistemologia‖
queremos dizer uma investigação de certo tipo, isto é, com o seu próprio obje-
to temático. Exclui-se, deste modo, o uso não científico da palavra? Seria,
então, impossível re-inventar novos sentidos para a palavra, onde caberia uma
epistemologia do educar que não se limitasse a acolher como paradigmas irre-
futáveis as tradições continental e anglo-saxônica? Seria possível formular uma
epistemologia do educar que contemplasse uma compreensão polilógica do
lógos, onde se descreveriam apenas acontecimentos implicados com as nossas
efetivas emergências existenciais, sem compromissos com partições e confrari-
as e nem com crenças ontológicas inderrogáveis, porém sempre engajado com
o ―cuidado‖ e o ―cuidar‖ da vida em comum?

Dei um salto importante. Com essas questão deixei de lado múltiplos


compromissos fantasmáticos. Retomo, então, uma descrição de lógos que me
permitirá cunhar um outro sentido para a expressão epistemologia do educar. Se o

nuar aprofundando a etimologia da palavra de forma circular, prometendo outros resulta-


dos mais adiante.
165

uso da palavra lógos é deste a origem polissêmico, só com o advento da filosofia


ele se tornará predominantemente ―teorético‖. Entretanto, mesmo entre os
pensadores originários e os filósofos gregos o seu uso era ainda muito mais
plástico do que aquele por nós atribuído modernamente. Derivado do verbo
légo – como vimos – lógos é uma palavra que parece ter nascido da boca de um
pensador, Heráclito de Éfeso. Légo, algo assim como ―ler-dizer‖, ―perceber-
falar‖, ―tornar algo legível por palavras‖, soa como des-velamento e presenti-
ficação de sentido. Soa como sentido. Sentido, entretanto, é sentido situado,
descortinar-se de coisas, mundo, moradas, céu e terra, homens e deuses. Senti-
do é predominantemente sentido. O verbo légo, assim, se diz légein, isto é, ―dizer
e falar‖. Trata-se sempre de algo dito e falado com sentido, o que caracteriza o
modo de ser próprio ao homem. De forma paralela, lógos é uma palavra que
nomeia sentido.

Examinando o Fragmento 50 de Heráclito, Heidegger (1978) chama a a-


tenção para uma outra possibilidade de compreensão da palavra logos. Segundo
a tradução de Snell, o fragmento soa do seguinte modo:

―Se aprenderam não a mim, mas o sentido,


então é sábio dizer no mesmo sentido: Um é Tudo.‖
...ouk emou allà tou Lógou akoúsantas
homologein sophón estin Hèn Pánta.

Heidegger considera esta sentença como enigmática, apesar de se ter a


impressão de que a mesma é compreensível sob qualquer ponto de vista. Para
mostrar que não se trata de algo de imediata compreensão, ele recorre ao escla-
recimento das palavras correlatas logos e légein. O dado é que desde a Antigüi-
dade o logos de Heráclito foi interpretado de diversas maneiras: ―como ratio,
como verbum, como lei do mundo, como o elemento ‗lógico‘ e a lei do pensa-
mento, como o sentido e como a razão‖ (1978: 111). Entretanto, pouco ou
quase nada se fez na direção de um mergulho nas cercanias da obscuridade do
sentido dado por Heráclito à palavra. Claro, com tal mergulho não se pode
imaginar alcançar a dimensão do seu dizer originário, porque isso é impossível,
mas, sem dúvida, pode-se apenas mostrá-lo de maneira diversamente aproxi-
mada.

Heidegger, então, usa légein para aproximar-se do logos enunciado por


Heráclito. De imediato, légein significa dizer e falar. Nesta proximidade, logos
significa ―enunciar‖ e legómenon ―o que foi enunciado‖ — dito, falado. De certo
modo, o enunciar se fixa no que foi enunciado. Há, então, um movimento do
aparecer e da aparência, um jogo fenomenalmente dado: acontecimento-
166

apropriação de algo como algo, enquanto aparecer e aparência, dizer e dito


(fato), falar e falatório. Há verbo e há substantivo. Agir e Produção. Légein,
portanto, aparece como falar, dizer, narrar, e pressupõe a produção da fala e do
dito, do narrar e da narrativa.

Apoiado no alemão, Heidegger reapresenta um sentido ainda mais ori-


ginário da apalavra légein, da qual se forma logos. Trata-se da palavra ―legen‖, que
no alemão soa aproximado de: deitar e estender diante. Aqui a ideia proeminente
é o recolher, e encontra ressonância no legere latino, como colher no sentido de ir pegar
e recolher. Deste modo, mais originariamente, antes de significar dizer, falar e
narrar, légein significa propriamente o pensar e apresentar o que recolhe a si e às outras
coisas. Na sua forma média légein se diz légesthai, significando estender-se no reco-
lhimento do repouso. Por seu turno, légesthai se relaciona com lékhos, que é o lugar
de pouso, e com lókhos, que é o lugar da emboscada, onde algo está escondido e em posição
de ataque. Aparece, também, a palavra álego (alfa copulativo), significando algo
me importa, algo me preocupa (segundo Heidegger álego foi saindo de uso depois
de Ésquilo e Píndaro) Álego lembra muito o nosso alegar: recorro ao que me parece
convincente; alego o que se mostra evidente; argumento desta ou daquela forma.

Repentinamente, lógos passou a significar pousar, deitar, estender, recolher.


Mas, de que forma é isto sustentável comunitariamente, e não apenas um jogo
de estilo, jogo de palavras livres, descompromisso ontológico? Então, qual é o
sentido de resgatar um sentido mais originário para logos, além do dizer e falar?
Não é esta uma tarefa irrelevante, diante de emergências próximas e de outra
ordem? Que sentido, então, há neste trabalho de interpretação da epistemolo-
gia e da ciência, visando o delineamento de uma epistemologia do educar?

Apesar de estranho, continuo interessado em investigar o como o lógos


deixou de significar pousar e recolher, passando a significar falar e dizer. Trata-se,
sem dúvida, de um narrar e de uma narração. Nesta narração ousa-se ouvir o
logos em uma outra sonância. A importância disto é absolutamente pessoal.
Entretanto, fazemos desta pessoalidade uma abertura para a re-invenção inter-
pessoal do sentido da ciência, epistemologia e educar. Então, seguindo a her-
menêutica de Heidegger, insisto no sentido de légein como pousar: prolongo a
estranheza do inesperado.

O légein como pousar (estender) significa: levar algo a se deitar. Isto tam-
bém quer dizer: deitar uma coisa junto da outra, recolher. Assim, ―pousar‖ é sinôni-
mo de colher. Entretanto, o sentido do ―colher‖ não se limita ao uso mais co-
nhecido de ler um texto, mas antes evidencia o sentido de trazer-junto-para-o-
estender-diante. O sentido se aproxima da agricultura. A metáfora é agrícola.
167

―Colher‖ pressupõe um movimento sincronizado entre o ―semear‖ e o ―reco-


lher‖. Podemos dizer que o ―colher recolhe‖. É claro que ―recolhe‖, dizemos.
Apesar dessa evidência, ―colher‖ aparece como uma atividade de ―recepção‖,
como o ato de ler um texto, isto é, ―colher‖ suas palavras, como colhemos
frutos. Mas o colher quer dizer, antes de tudo, trazer-junto-para-o-estender-diante.
Portanto, deparamo-nos com um sentido muito além do uso moderno e bur-
guês do ato de ler, muito semelhante ao modo de consumo de nossos egos habi-
tuais, degustadores de ―frutos‖ produzidos industrialmente. Onde só é preciso
pagar para usufruir — ou até mesmo apenas furtar. O ―colher‖, é, deste mo-
do, também um apanhar: ―Quem colhe as espigas levanta o fruto do chão. Na
colheita da uva se tiram os cachos da parreira‖ (Heidegger, 1978: 112). É neste
sentido que ouvimos o colher: colher é apanhar e juntar. Assim, ouvimos diferente
o que significa légein no seu sentido anterior a ―dizer e falar‖?

Quando se fala colher que apanha e junta, não se diz algo que se encerra
no apanhar os frutos, mas também aparece o juntar. Aqui se evidencia a ima-
gem do estender-diante: juntar é dispor a colheita para uso comum – é recolher e
oferecer. É claro, ―recolher‖ não é apenas ―amontoar‖, mas, antes de tudo, prote-
ger e abrigar, para daí distribuir e oferecer. Portanto, colher é recolher que é,
também, abrigar e proteger, oferecer e distribuir. Como diz Heidegger: ―Do
recolher faz parte o procurar e trazer para um lugar‖ (1978: 112). Ora, este
lugar é o ―seleiro‖, o lugar onde se guarda o que se colhe, o lugar do recolhi-
mento da colheita. O ―seleiro‖, portanto, é lugar de ―reunião‖ do colhido: é
acolhida do alimento – proteção de sua serventia. Por seu turno, o seleiro é
também lugar onde se recolhe o que foi ―selecionado‖ na colheita. O que foi,
assim, ―selecionado‖, mostra-se como o ―escolhido‖. O colher, então, é tam-
bém selecionar, isto é, ação que dispõe para a escolha. Escolher é recolher o
que foi selecionado na colheita: é recolhimento.

Segundo Heidegger, ―A colheita exige de si e para si este recolhimento.


No recolher recolhido impera uma concentração originária‖ (1978: 113). Aqui
o colher e o pousar não se situam como coisas distintas e paralelas, pois o co-
lher já se encontra no pousar. Um pressupõe o outro. Deste modo, quando
Heidegger resgata o sentido do légein como pousar, isto é, como deixar-as-coisas-
juntas-estendidas-diante, este ―deixar‖ não quer dizer o mesmo que ―deixar cor-
rer‖, ―deixar de lado‖, ignorar. Pelo contrário, trata-se do ―deixar‖ no sentido
do ―recolhimento‖, portanto, do ―deixar‖ que algo se conserve no ato de reco-
lhê-lo. Recolher, assim, é sempre um ―reconhecer‖ algo como algo: deixar-
estendido-diante.
168

Mas, então, foi isso o que aconteceu: légein, pensado originalmente co-
mo pousar-estender, passou a significar dizer e falar? Na visada de Heidegger,
esta não é a questão. Seguindo a sua trilha, posso dizer que lógos significa dizer
/ falar tendo em vista o próprio recolhimento, isto é, o pousar-estender. Nesta me-
dida, o caráter mais originário do légein não é deixado de lado quando o acento
recai no dizer e falar, mas apenas velado. O que isto quer dizer? Quer dizer
que no sentido mais originário do pousar-estender está contido o dizer e o falar.
Assim, estes não são simples derivados do que se supõe como mais antigo (o-
riginário), mas constituem o légein desde o princípio. O caso é que, concor-
dando com Heidegger, desde os primórdios ―...o dizer e discorrer dos mortais
realiza-se como légein, como pousar‖. Portanto, no dizer e falar mais originário
está implicado o recolhimento do que se presenta diante: o acontecimento do
que se des-vela diante como sentido-situado – sentido próprio. Ora, dizendo
assim, nada do que se possa afirmar sobre o que é ou deixa de ser pode ser
concebido como descolado do ato de pousar e estender diante de si – a pre-sença.
Entretanto, o que significa ―pre-sença‖ é sempre algo que só se presenta no
dizer e no falar, o que sempre requer decisões e seleções invariavelmente loca-
lizadas: um ser-aí, portanto, um passado-passando.

Pre-sença indica para o modo de ser-no-mundo próprio ao ser humano.


A palavra é uma tradução do Da-sein alemão. O ―aí‖ indicado na partícula Da é
o que se encontra dado, o ente presente. Ora, ele só é presente na medida em que
já passou. O que é presente, portanto, é sempre Ente. Entretanto, pre-sença não se
reduz apenas ao que já passou, o presente, porque também é ―ser‖, ou melhor,
passado-passando, ser-sendo. Este ser-sendo nunca é apenas o ente simplesmente
dado, nunca é apenas o que já se encontra feito, porque também é o fazer-
fazendo-se: o Ser propriamente dito, mas nunca circunscrito ao limite do dito.
Por definição, Ser é aquilo que é, mas aquilo que é nunca é o simplesmente
dado, a pura ―presença‖. Ser é aquilo que é na medida do seu sendo, da sua ―ec-
sistência‖. O que ―ec-siste‖ encontra-se ―fora de si‖: transcende em si mesmo
a si mesmo como ―estar-lançado‖. Ser, portanto, é indefinível, porque nunca
é apenas o que já era ou o que se mostra ―presente‖. Ser, assim, é abertura
para o aberto: poder-ser-sendo.

Seguindo essa dinâmica da ―pre-sença‖ (Da-sein), é possível, então,


afirmar que a nomeação originária do Ser não corresponde à sua definição ca-
tegorial, mas apenas ao seu aparecimento enquanto pre-sença, portanto, en-
quanto ultrapassa o ―pré‖ e destitui o ―ser‖ de toda e qualquer possível defini-
ção última. É aí que o logos ouvido mais originariamente pode soar como ―es-
tender diante‖ e ―pousar‖. Estender diante, então, é próprio daquilo que é
―coisa‖ ou ―ente‖. Pousar, entretanto, é próprio daquilo que re-colhe a potência no
169

seleiro, visando poder lançar-se no aberto, como continuidade do ser-sendo, e


não mais dos entes simplesmente dados. Quando no seleiro se recolhe o que
se extraio da colheita, pousa-se a potência do que foi recolhido em uma plata-
forma de lançamento. E é esta dimensão do ―estar-lançado‖ que faz do ―es-
tender diante‖ e do ―pousar‖ um modo de dizer o Ser que sempre é, porque é
sempre um sendo: jogo aberto no aberto de suas possibilidades. Assim, o Ser
nunca é o Ente, porque este é apenas coisa, fato, acontecimento, e o Ser está
sempre além do que dele se pode dizer e do que foi dito, porque ele está sempre-
sendo. O ―é‖ do Ser , portanto, é o ser-sendo.

Entretanto, essa constatação não foi sempre clara na história da filoso-


fia e da ciência. Pelo contrário, esta é uma conquista muito recente da discursi-
vidade teorética, e custou muito para que pudesse ser ouvida com seriedade e
respeito. Imediatamente, quem não está acostumado com tais questões metafí-
sicas logo imagina tratar-se de algo totalmente abstrato e distante dos fatos
corriqueiros. A questão do Ser, infelizmente, foi enquadrada na moldura de
uma metafísica ultrapassada pelo progresso da racionalidade moderna. E com
este tipo de crença se acredita que tal questão não passe de um equívoco lin-
güístico, uma formulação deslocada e ingênua da realidade, um estado de insa-
nidade metafísica, justamente porque contrário ao princípio da ―vida encarna-
da‖.

Na perspectiva de uma aproximação hermenêutica do pensamento


originário, o légein, o pousar, ―...perpassa tudo o que está desvelado, como o dizer e
falar‖ (Heidegger, 1978: 115). Ora, isto significa que, desde o princípio, é no
dizer e falar que impera o pousar propriamente dito. Segundo Heidegger, é en-
quanto pousar que a essência do dizer e discorrer articula-se. Aqui se esconde
uma decisão mais antiga e mais rica sobre a essência da linguagem. Neste sen-
tido, Heidegger levanta a seguinte questão: ―Qual é a amplitude da marca que a
essência da linguagem recebeu do pousar?‖ (1978: 114)

Com essa questão somos lançados no vórtice da metafísica construída a


partir do Logos. Teria a essência da linguagem sido determinada no pousar que
recolhe? O que isto tem a ver com o tema da ciência e da filosofia? O que inte-
ressa na questão, afinal, que ultrapasse qualquer dos horizontes demarcados
pela tradição, e que diga diretamente a ciência e a filosofia em uma perspectiva
aberta?

De modo inequívoco, a colocação dessa questão diz respeito a um cer-


to modo de ver, a uma certa disposição espiritual para compreender o aconte-
cimento originário na sua vigência, e não apenas na sua representação históri-
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co-crítica construída. Neste sentido, a compreensão se desloca de um plano


arqueológico e se aproxima de uma abordagem genealógica, o que sempre
pressupõe pontos de partida, mesmo quando tais pontos são contestadores e
divergentes dos tradicionais, ou consolidados por tradições culturais vivas.
Este ponto de partida genealógico evita uma compreensão de ciência e filosofia
baseada apenas nas estratificações / sedimentações históricas referidas ao pas-
sado, porque localiza o fluxo do sentido na agoridade. É a agoridade que permite
que os conceitos de ciência e filosofia preservem a sua abertura mais originária.
E aqui nos deparamos com a imagem da decisão que determinou o processo
metafísico da compreensão da linguagem como um mero instrumento do pen-
samento. Mas isto não quer dizer que, desde a origem, Logos tenha algo a ver
com Razão e racionalidade. A questão é de outra ordem. E esta outra ordem
repousa no reconhecimento de que, desde o início, ―... a desocultação do oculto no
desvelado é a presença mesma daquilo que se presenta. Denominamo-lo o ser do ente.‖
(1978: 114). Assim, desde o início do pensamento originário, o que se desvela
é o ―ser do ente‖ em sua totalidade, e é aqui que o ―pousar‖ aparece na sua
primazia.

Tocamos a questão da ―essência da linguagem‖. Nesta visada heideg-


geriana, a determinação mais originária da linguagem não é nem a phoné e nem
o semaínein, isto é, não é nem a fonação e nem a significação das palavras, mas
sim o pousar. Mas, o que isto quer dizer? Como o pousar pôde determinar o
sentido do Logos, e como este tornou-se apenas o lugar da verdade racional-
mente articulada?

Para nossa surpresa, o simples se mostra na sua Diferença: ―Dizer é


légein‖, isto é, pousar. Segundo Heidegger, esta simples frase nomeia um segre-
do antes impensável: ―o falar da linguagem se produz a partir do desvelamento das
coisas que se presentam e se determina como o deixar-estendido-conjuntamente-diante, de
acordo com o fato de que aquilo que se presenta está estendido diante de nós‖ (1978: 114).
Nesta sonância, o logos sempre traz consigo o sentido daquilo que aparece, isto é,
―aquilo que se produz e se estende diante de nós‖. Assim, o logos é sempre um
mostrar-se a partir de si mesmo, ―um auto-mostrar-se na clareira‖, isto é, um
mostrar-se que desvela o ente em sua totalidade.

Essa imagem da ―clareira‖ é bastante sugestiva. Trata-se de um


divisar de coisas e acontecimentos em uma abrangência compreensiva, onde
tudo se une e se recolhe na clareira. Este divisar clarificante, este recolher do
que se mostra-diante é, antes de tudo, um ouvir. É como ouvir que o pousar
recolhe aquilo que se presenta diante. Assim, antes da significação ser determi-
nada pela articulação de palavras ela ocorre como ―ouvir‖. Entretanto, este
171

―ouvir‖ não é associado ao órgão receptor dos sons e ruídos produzidos por
fontes sonoras externas. Este ―ouvir‖ é o próprio aparecer do nome das coisas
divisadas. Logos, portanto, é um ouvir-falante: o recolhimento do ente à luz do
ser. Mas, de que modo é isto sustentável? De que modo é possível assentar a
essência mais originária da linguagem em um ouvir-falante que não é uma mera
reverberação de sons externos e repetição de palavras soltas?

Essa operação só se mostra possível através de aproximações impreci-


sas e inconclusas, porque o que está em jogo não é saber como os primeiros
pensadores ouviram primeiro para depois falar, mas saber de que modo isto
ainda impera em nossos atos de fala. A questão, então, é saber como pensa-
mos hoje algo assim como a essência da linguagem, e de que modo nos enga-
namos com as representações já constituídas, imaginando que o ―pousar‖ te-
nha sido apenas o primeiro estágio da linguagem humana.

Se como ―pousar‖ logos é também um ouvir – primeiramente um ouvir


-, há que se recolocar a questão da tradição logofonocográfica do Ocidente a partir
de uma outra visada. O que isto significa? Para mim significa um ponto de
não-retorno a qualquer dos regimes morais marcados pelas oposições metafí-
sicas. Aqui de novo põe-se em relevo a atitude fenomenológica, para não chamar
simplesmente de método fenomenológico, porque a palavra ―método‖ encontra-se
carregada de uma pretensão de universalidade e monolinguísmo que impede a
apreensão da amplitude do estado de abertura que se descortina a partir da
radicalidade do ponto de partida, e em seu lugar impõe hierarquias axiológicas em
nome de práticas de dominação e exclusão. Assim, alcançando este ponto de
não-retorno aos regimes metafísicos tradicionais, a partir da atitude fenomenológica
ou radicalidade do ponto de partida, a recolocação da amplitude semântica da pala-
vra logos requisita de nós uma disposição para a escuta atenta do que o Lógos diz.

Heidegger, ao tratar do Lógos em Heráclito, toma o Fragmento 50 co-


mo motivo para permitir-se uma outra escuta das palavras seminais dos Pensa-
dores Originários. O Fragmento 50 apresenta, em sua tradução, a trilha seguida
por Heidegger, em uma tradução de Emmanuel Carneiro Leão (1991: 71):

Auscultando não a mim mas o Logos, é sábio concordar que tudo é um

O que aqui em primeiro lugar aparece é o auscultar – o ouvir. Heráclito


fala do escutar e do ter escutado. O que ele diz ele ouviu do Logos. Não é ele que
está dizendo de sua cabeça algo apenas pessoal, mas ele está correspondendo ao
Logos, convocando quem ouvir possa para ouvir ele mesmo o que diz o Logos.
Este ouvir é, em si mesmo, um ouvir com-juntamente. Esta coisa assim dita nos
172

soa hoje trivial e até mesmo ingênua. Estamos tão viciados ao logos discursivo
que nos deixamos levar pelas representações triviais da linguagem ordinária.
Então, de modo quase espontâneo, passamos a acusar o Logos de ter sido o
causador dos males da civilização ocidental, porque a palavra parece estar de-
finitivamente significada pela ótica de um racionalismo pragmático capaz de
alcançar os extremos das oposições metafísicas comuns. Então se chega a di-
zer: — A razão ocidental tornou-se o portal do inferno do capitalismo selvagem e da sofisti-
cação telemática e maquínica do capital virtual aliado a regimes políticos neo-liberais ainda
paternalistas e centralizadores, portanto, acentuadamente excludentes, autoritários e legalis-
tas.

Essa descrição sumária do modo como o senso filosófico hoje ainda


concebe as mazelas atribuídas à instituição do Logos ocidental, confundido a
palavra com Ratio, razão, sobretudo na visada do racionalismo da Modernida-
de, é o que nos impede de re-ouvir o que diz o Lógos, sem que seja necessário,
minimamente, que saibamos grego antigo e latim clássico. Neste ponto dis-
cordo radicalmente de Heidegger que afirmava só ser possível se filosofar em
grego ou alemão.

Em minha compreensão, só se pode filosofar em língua própria, e para


ser exato e coerente, a partir de um Logos ouvido como acontecimento da Dife-
rença que a Tudo une no mesmo Um, em primeiro lugar da minha própria condição
e circunstância histórico-cultural. Sim, se pode até mesmo contestar esta pos-
sibilidade de só se poder filosofar em língua própria, pela constatação de que
não são todas as línguas vivas ou mortas que, em sua própria dinâmica falante,
encontram-se abertas ao acontecimento de um pensar originário e seminal.
Deste modo, poderíamos supor que a nossa língua não é muito afeita às ques-
tões abertas pelo pensar radical, e deste modo, o nosso estágio cultural (civili-
zatório) não teria ainda condições de fazer florescer um filosofar genuíno a
partir de nossa própria língua. Acontece, entretanto, que a nossa língua não é
morta, é neolatina e tem suas raízes mais antigas calcadas na língua grega, que
por sua vez é indo-européia. Isto confere múltiplas possibilidades plásticas
ainda abertas e indeterminadas pela tradição. Afinal, quando é que os filósofos
de língua portuguesa vão poder alcançar ―montes vizinhos‖ da estatura de um
Guimarães Rosa ou Fernando Pessoa, Cecília Meireles ou Clarice Lispector? O
que impediria o pensar filosófico de ser tão genuíno como o poetar português
ou a música brasileira?

Vejo aqui uma questão de de-cisão histórica. É claro, o mundo con-


temporâneo não quer mais saber de metanarrativas monolinguistas, o que pode
dar a impressão de que não cabe mais a ocupação por um pensamento filosófi-
173

co que seja demarcado em um horizonte de língua própria, porque isto recairia,


aparentemente, no esquema de um idealismo absoluto revisitado e travestido.
Não é nada disto o que me interessa com este texto e com esta fala em favor
de um filosofar em língua própria. É evidente que temos diante de nós novos
e desconhecidos caminhos e desafios, e porque a História só se ―repete‖, no
sentido de nada acrescentar de novo, para aqueles que dela se ―esquecem‖, ou
por falta de condições existenciais ou por inércia, e com ela não mantêm uma
relação co-responsável e dinâmica.

O fato é que vejo claramente uma nova possibilidade para o nosso pen-
sar filosófico, que agora assume como tarefa o ultrapassamento do que já era –
o imediatamente dado ao nosso perceber e inteligir legado pela tradição epis-
têmica do Ocidente. Aparece, assim, uma nova ―clareira‖ para o pensar pró-
prio e apropriado. Como, então, deixar de ouvir o Logos como escutar-pousar?

Sinceramente essa questão nos joga para o âmbito de uma tarefa que
corresponde a uma revolução cultural de longo alcance. Trata-se de partir de um
novo ponto zero na redescrição fenomenológica da ciência e da filosofia. Tra-
ta-se de educar para esta possibilidade. Mas, como fazer isto — educar para o
exercício de um pensamento próprio e apropriado?

Tenho apenas algumas pistas, porque a questão não se limita a um mo-


nolinguísmo, que seria, por exemplo, o meu modo peculiar e próprio de rein-
ventar o Logos. Não é nada disto. Não uso a palavra invenção de forma tão
leviana. Entendo por invenção um ato absolutamente correlacionado com
condições e com contextos muito concretos, o que em nenhum momento
pretende apresentar o novo como simples oposição ao tido como velho pelo
discurso alternativo. Invenção, portanto, quer apenas dizer que é preciso a-
prender-a-ser de forma própria e apropriada, para que o monolinguísmo da meta-
física tradicional possa dar lugar ao plurilinguismo de uma diferente forma de
compreender a linguagem humana e os processos da intersubjetividade e da
comunicação polifônica e polissêmica.

Então, se do ponto de vista de uma crítica radical dos processos de


significação do mundo é preciso deixar-de-lado a ideia obtusa de verdade uni-
versal, por meio dela é também possível estabelecer a plataforma de lançamen-
to para novas maneiras de demarcar os territórios simbólicos da produção do
conhecimento humano, tendo em vista o alcance de novas e surpreendentes
narrativas que nos joguem de novo no espanto de nossa mais genuína possibilida-
de-de-ser-sendo.
174

Assim posto, o desafio nos convoca a realizar uma poética filosófica


que tem a função de desconstruir/construir continuamente o objeto dos nossos
desejos de ser-sendo, para além do mero discurso grafado em moldes acadêmi-
cos e esclerosados pela ausência de oxigenação primeva. E esta se encontra
imediatamente diante de nós, sem tirar nem pôr. O que, entretanto, não signi-
fica dizer que já se encontra dada, mas apenas que se encontra imediatamente
em nós como possibilidade.

 Como haveremos de entender os discursos epistemológicos das


ciências físico-matemáticas?

 Redescrevendo a atitude epistemológica: desconstrução herme-


nêutica do conceito de epistemologia, segundo sua configuração
analítica epistemológico, e elaboração de um novo conceito epis-
temológico.

Até aqui discorremos acerca dos conceitos de epistéme e de lógos. Segui-


mos um fio condutor aberto e indeterminado. Chega um momento que um tal
caminho já não nos ajuda a ultrapassar o seu próprio horizonte ontológico
previamente disposto. A atitude epistemológica requerida para a aquisição e
produção do conhecimento científico autorizado, não admite a mistura com as
gangues psicológicas das singularidades. Só as regularidades mensuráveis são
admitidas em seu campo experimental. Esta caracterização da atitude episte-
mológica se prende à historicidade de suas posições autorizadas. E como aqui
o que procuramos fazer é justamente um afastamento desta atitude de crença
em um epistemologia praticada ao modo dos lógicos fisicalistas e matematicis-
tas, convém esclarecer a gênese do novo conceito de epistemologia aqui elabo-
rado. Fazendo isto, estamos abandonando definitivamente o monolingüísmo
dos epistemólogos do século XX. Não mais falamos em epistemologia ao mo-
do do chamado ―círculo lógico‖, sem, contudo, cairmos no engano de descon-
siderar o valor e a importância da métrica lógica na estruturação da cultura
contemporânea globalizada.

Sem dúvida, a palavra epistemologia tem sua própria historicidade. Isto


não se pode negar. Entretanto, queremos aqui ressignificar a palavra na cons-
trução de uma filosofia do educar polilógica. Vamos, assim, configurar um
novo sentido para a expressão, que agora passa a significar uma operação me-
todológica de crítica radical do conhecimento possível e de seus instrumentos e
procedimentos de ação, sem que se perca de vista a impossibilidade de um
conhecimento verdadeiro articulado ao modo de um modelo ideal e monológi-
co. Este é o nosso principal obstáculo: como propor uma epistemologia do
175

educar não-verdadeira, se a própria epistemologia, na sua historicidade, prima


pela crença e manuseio de critérios afirmativamente verdadeiros? Falamos,
então, de ciência e cientificidade a partir de quais fundamentos e princípios
indiscutíveis? Sem os instrumentos usuais de mensuração e cálculo, de que
forma se pode pretender fazer uma ciência do educar?

Referências:

CARRILHO, Manuel Maria. Epistemologia: posições e críticas. Lisboa:


Fundação Calouste Gulbenkian, 1991.

CHAUÍ, Marilena. Introdução à História da Filosofia. Vol. I. São Paulo:


Brasiliense, 1994.

HEGEL, Georg W. F. Tales de Mileto. In: Os Pré-Socráticos. Tradução: vários.


São Paulo: Abril Cultural, 1978, p. 9-10.

HEIDEGGER, Martin. Logos. In: Os Pré-Socráticos; Coleção Os Pensadores.


Tradução: Ernildo Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1978, p. 111-123.

HEIDEGGER, Martin. O que é isto — a filosofia? In: Heidegger. Conferências e


Escritos Filosóficos; Coleção Os Pensadores. Tradução: Ernildo Stein. São
Paulo: Abril Cultural, 1979, p. 7-24.

HUSSERL, Edmund. A ideia da fenomenologia. Tradução: Artur Morão.


Lisboa: Edições 70, 1990.

LEÃO, Emmanuel Carneiro. Os Pensadores Originários: Anaximandro,


Parmênides e Heráclito. Introdução e Tradução Emmanuel Carneiro Leão.
Petrópolis: Vozes, 1991.

NOTAS

Trabalhar com dimensões: inventário da cultura geral, onde esteja implicada a


educação humana em suas formas, regimes e possibilidades. As dimensões
podem ser: Lógica, Ética, Estética, Política e Econômica. Ou, instrumental-
epistemológica-conceitual-operativa, auto-reflexiva e soberana, inter-reflexiva
176

e percepiente-imaginífica, inter-agente e dominante (legislante e legisladora),


vital-ambiental-escambiante.

Postulados (proposições) de uma Epistemologia do Educar polilogicamente


articulada, articulando e articuladora.

 O Educar é o Celeiro da Humanidade


 O objetivo primacial do Educar é desconhecido, mas é imperante como
volição ab-soluta
 O Educar não possui formas a priori, e nem muito menos formas a poste-
riori. O Educar não tem medidas nem inatas nem adquiridas.
 O Educar é aquilo que é no seu sendo. Não se educa melhor hoje do
que ontem, nem nunca se educará melhor amanhã.
 O Educar não tem medidas e nem muito menos feições. Não se pode
querer que se eduque por geração espontânea. Este é um querer vão, in-
conseqüente.
 É preciso querer Educar livremente, isto é, cuidar de si mesmo em tudo.
 A compreensão é o modo de ser do Educar. Mas a compreensão não é
meramente contemplativa, teorética. Compreender é existir como cor-
po-no-mundo-com. Compreender é o mesmo que ser-sendo-mundo-
com.
 Uma Epistemologia do Educar é esforço compreensivo de uma época:
haverá de fazer-se entender pela urgência e não pelo artifício.
 Epistemologia do Educar = construindo a consciência plena de ser-no-
mundo-com, com rigor e altivez.
 A epistemologia do educar haverá de ser energéia - força viva consciente
do seu ato ab-solutamente livre: ultrapassagem vivente; perpetuação da
vontade soberana, porém impermanente. A fluidez do sendo-imperante:
não-descendência da crônica insensatez humana: vigor incontido.
 Semióticas são lógicas do sentido, portanto, regimes epistemológicos
dos sentidos.
 As representações e as figurações do sentido são campos demarcados
por práticas culturais de longa duração, o que prefigura formas de ação
modeladas pela força do hábito, mas não indica nenhuma lei invisível
escondida atrás dos fenômenos.
 Só aquele que tem consciência perpassa o ambiente como aparece a
quem percebe. Só a consciência transcende o dado e o fato, porque é
177

um sendo-em-si. Ora, um sendo-em-si é um ser-para-si. Entretanto, não


há ser-para-si limitado em si, exceto o ser-para-a-morte. Mas o ente-
espécie não padece desta morte, perpetua-se no sendo-outro-de-si: a Di-
ferença ontológica – ser-no-mundo-com: a Identidade imperante, multi-
vocamente a mesma.

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