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12) GALEFFI, D. A Epistemologia Do Educar Na Perspectiva Da Interdisciplinaridade
12) GALEFFI, D. A Epistemologia Do Educar Na Perspectiva Da Interdisciplinaridade
&
EDUCAR
Inquietações Pensantes
2a Edição
FILOSOFAR
&
EDUCAR
Volume I
INQUIETAÇÕES PENSANTES
2a Edição
SUMÁRIO:
Prefácio
O livro, ora editado, tem como base o trabalho de pesquisa do autor desenvol-
vido no período de 1999-2002, a partir do projeto Regimes Epistemológicos nas
Pesquisas em Educação: sentidos, contextos, validades e possibilidades.
A publicação constitui-se de palestras, trabalhos apresentados em encontros a-
cadêmicos, participação em mesa-redonda, artigos publicados em revistas e reflexões
desenvolvidas ao longo do projeto de pesquisa.
Dante Galeffi caminha em uma aventura aberta ao seu acontecimento e suspei-
ta da própria filosofia, enquanto conhecimento instituído. Não pretende substituir a
que está instituída por outra filosofia, mas na tensão instituinte-instituído aprender
sempre mais o filosofar, ou seja, sair da nominação substantiva para a ação do verbo
que, como afirma o autor, é uma realização perene do que sem ocaso, nunca teve
origem.
Nesse sentido, enfatiza o estado aprendente como atitude fenomenológica
permanente, implicando na necessidade, no caso da educação, da ação do educar.
Aprender passa a ser o mesmo que aprender a viver junto, aprender a fazer, a-
prender a pensar, aprender a ver, aprender a falar, aprender a escrever, aprender a
aprender.
A vida em primeiro lugar, o que nos dirige para um educar com a vida. Isto
significa aprender a ser, isto é, aprender a cuidar da vida na vida, com a vida, em
vida.
O autor desenvolve uma crítica radical à ciência, afirmando que a tragicidade
da espécie humana continuará vinculada à arcaica luta de opostos, se a atual forma
crítica da produção do conhecimento dominante não se dedicar a criar novas possi-
bilidades aprendentes.
Estas novas possibilidades encontram caminho na abordagem poemático-
pedagógica que se define como um fazer inventivo, que inventa no próprio ato do
fazer.
Propõe então o caminho fenomenológico-hermenêutico próprio e apropriado,
baseado em Husserl, em Heidegger e em Gadamer, mas que não se esgotam neles.
É com esse caminho que emerge a diferença para propiciar jogos ainda não jo-
gados e colocar a pedagogia da diferença para problematizar o discurso pedagógico
contemporâneo.
Homem e ser encontram-se imbricados no sem-fundamento, pois um e outro
devem responder ao apelo da igualdade originante.
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1
TENSÕES FILOSÓFICAS CONTEMPORÂNEAS:
UMA DESCRIÇÃO EM PERSPECTIVA1
1
Palestra realizada na V Semana de Filosofia promovida pelo Centro Acadêmico de Filo-
sofia e pelo Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da
UCSal, no dia 06/06/2002. Texto publicado na Revista ÁGERE 6, 2002.
7
preciso, agora, saber em que medida esta afirmação faz sentido para nós. Po-
demos, de forma filosófica, dizer tal coisa sem uma concreta argumentação
discursiva? Esta afirmação é de per si universal e verdadeira, portanto incontes-
tável?
É assim que, tanto para Nietzsche como para Heidegger, uma concilia-
ção dialética entre as polaridades se torna risível. Não se trata, em base à dife-
rença descrita, de conciliar e superar a luta dos opostos, mas de compreender
que o pensar mesmo em sua constituição depende deste jogo tensivo dos o-
postos. Deste modo, a diferença pensada como ―des-tituição do caráter defini-
tivo da presença torna-se essencial ao pensamento para que este se constitua
como pensamento crítico‖ (Vattimo, p. 12). E isto contra qualquer tentativa
de pensamento dialético conciliador; contra igualmente à ideia de uma ordem
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res formados pela lentidão do tempo pensante. Meios eficazes, entretanto, não
são meios cujo controle é atribuído a uma racionalidade previsível e monoto-
nal. A eficácia dos meios depende do vigor com que se trabalha a coisa do pen-
samento. Neste aspecto, caberia a uma academia filosófica propiciar os meios
de rigor da investigação filosófica aberta e desafiante, tendo como páthos a in-
dignação pela condição humana dada, e a disposição às novas e imprevisíveis
aventuras diferenciais do pensar laborioso e lento, rigoroso e dançante como a
música polifônica do tempo incessante, porém mutante em seus modos de ser
re-tornante.
Porque sei que este discurso é também uma aventura aberta ao seu a-
contecimento, encerro esta fala com a convicção de que precisamos, para a-
prender a filosofar, começar por suspeitar severamente da própria filosofia em
sua intenção instituída, não para depor um rei e substitui-lo por outro, mas
para abandonar em definitivo qualquer pretensão de sobre-determinação do
ser-aí, e para que se aprenda a alcionizar sempre mais o filosofar como realiza-
ção duradoura do que, sem ocaso, nunca teve origem. E as tensões sociais?
Bem, estas dependem de uma outra atitude aprendente para serem equaciona-
das em favor de uma revolução cultural de longo alcance. De novo o papel do
filósofo parece ser o de ultrapassar-se no movimento de seu próprio pensar. O
resto é apenas conversa para fazer dormir o menino assustado. Vamos, então,
ouvir as tensões porventura provocadas a partir da minha fala infilosófica. O-
brigado pela atenção.
Referência Bibliográfica:
2
DELINEAMENTOS DE UMA FILOSOFIA DO
EDUCAR POLILÓGICA: NO CAMINHO DE UMA
ONTOLOGIA RADICAL2
Introdução
2
Trabalho apresentado no Iº Encontro do GT de Filosofia da Educação do Norte e Nor-
deste; realizado em Recife, de 4 a 6 de setembro de 2002, promovido pela UFPE.
18
Esta atitude aprendente não se deixa levar pelo argumento fácil do que
se impõe como lei estabelecida excludente. Do ponto de vista de quem apren-
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Pelo visto ficamos ainda no que pode ser tomado como simples produ-
ção de sentido singular. O nosso ponto de radicalidade pode fazer pensar que
permanecemos no limiar das filosofias da consciência. Afinal, como usar
Husserl como inspiração e não praticar uma estrita filosofia da consciência? A
questão, nos parece, tangencia o conceito de consciência e suas implicações
de sentido já instituídos historicamente. Entretanto, podemos ainda tomar a
consciência como pertencente ao campo pré-reflexivo, o que nos permite sair
da ideia de consciência como consciência intelectual. Deste modo, ousamos a sa-
ída, para nós uma evidência, do ego transcendental, isto é, não aceitamos co-
mo dada a existência do eu natural e nem do eu transcendental, mas apenas
abarcamos a egoidade e a naturalidade enquanto nos inscrevemos no fluxo
da consciência em seu infinito campo de possibilidades focais. A consciência,
assim, é sempre uma implicação existencial, ou seja, pressupõe o ser capaz de
consciência, a partir de uma consciência de consciência. Deste modo, o im-
24
Claro, isso não é algo fácil de compreender. Afinal, não se exime nin-
guém de ter que fazer o esforço de auto-esvaziamento para poder alcançar
atitude aprendente atenta ao acontecimento sempre vivo e presente. Permane-
cer no presente é o ato aprendente em si mesmo. Isto não se ensina e não se
transmite geneticamente. Permanecer na consciência de uma consciência que
tem consciência de ser consciência é um ato de intuição que ultrapassa os limi-
tes do ser consciente: o permanecer vazio diante do tempo psicológico recor-
rente. A recorrência psicológica é o obstáculo a vencer. Deixar de lado o que
parece claro e cheio de si é o caminho para a saída do ego transcendental, co-
mo realização de outras possibilidades aprendentes: construção verbal, filosofia
do educar polilógica.
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gio de uma das partes sobre a outra. Assim, entre o ser e o pensar passou a
existir uma relação de derivação fundada em uma igualdade desigual, porque,
na identidade da relação, uma das partes acabou aparecendo como dominante e
a outra como dominada.
O pensar mesmo é ele mesmo o ser. Isto em hipótese alguma quer di-
zer que um deriva do outro, mas que ambos se encontram na relação de co-
pertencimento originário e igual, isto é, ambos se dão a saber um pelo outro
enquanto são o mesmo, ou melhor, se dão a saber no pensar como ser-no-
mundeo-com. Esta proposição pode parecer arbitrária e enigmática, mas ela está
dizendo que o educar e o filosofar são apenas distintos como traços de uma
mesma identidade: a relação de co-pertencimento. Esta afirmação nos abisma
em um universo de sentidos ainda desconhecidos, o que nos convoca a apren-
der a aprender a ser-pensante.
Ora, isto pode até parecer um mero jogo de palavras jogadas ao acaso,
mas apresenta um solo ontológico novo para a construção local de uma filoso-
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Tudo isso, entretanto, não descreve uma saída facilitada para os ―me-
nos esforçados‖ nos estudos filosóficos, e nem muito menos pretende negar
outras possibilidades conceptivas não contempladas nesta perspectiva polilógi-
ca. Não pretendemos negar a história da Filosofia da Educação no Ocidente,
mas apenas mostrar um possível caminho de ressignificação do ato educante
como sendo da ordem da ação livre e inventiva, cabendo a cada um realizar em
si mesmo a experiência de retorno radical ao mundo da vida, segundo o modo
como vivemos e re-fazemos o mundo aparentemente dado. Afinal, do ponto
de vista fenomenológico, o mundo dado passou a ser apenas um fenômeno de
existência, e não algo derradeiro e intocável. Este é um campo de investigação
fundamental para que se possa compreender o educar como filosofar. Agora,
para que isto aconteça é preciso alcançar o estado da arte no fazer aprendente.
Assim, o educar não mais se pode associar à aplicação de normas de conduta
exemplares, no processo de imposição de modelos supostamente bons.
O educar passa a ser uma ação aprendente aberta ao seu próprio acon-
tecimento. É justamente neste ponto que o educar é, por natureza, filosófico,
isto é, se dispõe aberto ao acontecimento do sentido como aprendizado dialó-
gico, onde o co-pertencimento dos dialogantes no enamoramento vivente é o
solo onde brota a fonte da sabedoria. E a sabedoria é sempre um tesouro dos
que dialogam, e só os que dialogam a dispõem, ou melhor, são tomados por
ela.
porque ele mesmo é um modo de fazer arte. A filosofia, portanto, nesta nossa
visada, é um modo peculiar de fazer arte. Este modo peculiar encontra-se fun-
dado na própria necessidade humana de fazer e de agir para poder-ser.
Afinal, uma filosofia do educar assim concebida não quer antecipar na-
da daquilo que possa vir a acontecer, daqui por diante, com o ser-pensar au-
tônomo e inventivo. Isto sobretudo por que o seu ethos fundamental é o sen-
timento de indignação pela condição da humanidade histórica aí instalada e
atuante, e o seu páthos é ainda a paixão pela completude do ser-sendo, em seu
acontecimento extático diante do infinito turbilhão caldérico do mundo feno-
menal. Assim, a fenomenocidade do nosso ser-no-mundo-com é aquilo mesmo
que sabemos ser a partir de nós mesmos, independente do mundo objetivo
que se perfila em nossas percepções comuns e ordinárias. Portanto, uma filo-
sofia do educar polilógica só pode acontecer no âmbito de um exercício filo-
sofante aprendente a aberto aos questionamentos radicais do próprio ser. As-
sim, qualquer que seja a idealização produzida pela razão humana acerca do
que significa ser-sendo não passará de pálida sombra do que só é por inteiro
no âmbito do seu próprio advento desvelante.
É isto o que queremos que seja esta filosofia do educar polilógica ligei-
ramente delineada: uma abertura aprendente lançada na infinita investigação
criadora de si mesmo. Isto é de espantar até mesmo os mais céticos interlocu-
tores, ainda mais espantará os que se sentirem convocados a este mergulho
radical nas absolutas e turvas fontes do conhecimento humano. Educar, en-
tão, é uma questão de raça e grima, sendo a grima a forja necessária para o sur-
gimento de realizações do próprio ser na incompletude do acontecimento in-
cessante da vida-sendo: um ato de metaconsciência crítica no acontecimento
transcendente de nosso ser de passagem. O trabalho, então se mostra longo e
árduo, não sendo larga a passagem que pode levar ao ego transcendental e à
saída do mesmo em si mesmo, sem que haja a perda de sua diferença ontoló-
gica originante. Eis, talvez algo digno ainda para poder merecer a tenção filo-
sófica dos que se buscam a si mesmos. Um convite ao pensar sempre aberto
ao inesperado e ao indizível. Entretanto, um pensar capaz de se indignar pela
perpetuação do estado humano de submissão e de bestialidade. Um pensar
que é também um saber-ser próprio e apropriado, pela desapropriação de si
mesmo e do mundo. Um pensar livre de donos e comandantes: absoluto de-
sinteresse pela vida dissociada.
Referências
3
EDUCAÇÃO: TECENDO SONHOS, HUMANI-
ZANDO O MUNDO — HOMENAGEANDO PAU-
LO FREIRE 3
3
Trata-se do tema da mesa-redonda incluída nas atividades da VIII Jornada Pedagógica do
SIMPRO-BA, em 20/09/2002.
36
se, como caso, na própria ação pedagógica desenvolvida por Paulo Freire. Se
soubermos lê-lo com atenção criativa, haveremos de ouvi-lo falar de uma con-
vocação à ad-miração como modo de aprendermos a ver com consciência, a
partir de nós mesmos:
Para o ponto de vista crítico que aqui defendemos, a operação de mirar im-
plica outra — a de ―ad-mirar‖. Ad-miramos e ao adentrar-nos no ad-mirado o mira-
mos de dentro e desde dentro, o que nos faz ver. (FREIRE, 2001, p. 43)
Entre outras coisas, as palavras de Paulo Freire indicam para uma dife-
rença de atitude diante dos fenômenos que nos constituem. Trata-se de sair-
mos da atitude ingênua em que comumente nos inserimos e adentrarmos na
atitude crítica. É preciso não apenas mirar o sentido do educar, mas ad-mirar o
campo da mira em sua eclosão e recolhimento. Ou seja, é preciso que, além de
professores, possamos ser também educadores. É preciso, assim, que apren-
damos a ad-mirar o que se encontra na mira do nosso desejo: o educar. Portan-
to, não basta apenas mirar, como diz Freire, é preciso, antes de tudo, ad-mirar
o educar, isto é, saber-ser próprio e apropriado — partir sempre do acolhimento de
si mesmo, e em si mesmo permanecer além de si mesmo. O ad-mirar implica o
ser que nós mesmos podemos ser na clareira do evento humanidade. E porque
não sabemos ainda ad-mirar, apenas miramos o educar na perspectiva da pro-
fissão: tornamo-nos meros professores de conhecimentos adquiridos pela hu-
manidade ao longo de sua historicidade dominante. E a educação humana,
onde fica a educação humana? Ou melhor, o educar, onde fica ele? Somos
professores ou somos educadores? Ou ainda, somos professores- educadores?
Sabemos apenas mirar, ou sabemos já ad-mirar? Ou ainda, sabemos mirar-ad-
mirando?
nossas tão ocupadas vidas, vidas vividas para o trabalho profissional, segundo
as imperiais e incontestáveis leis do mercado.
Vejam bem, estou aqui fazendo uma provocação pensante, e, em ho-
menagem a Paulo Freire, gostaria de inquietar vossos corações com questões
cruciais que dizem respeito à vida planetária, e não apenas nosso pequeno
mundico familiar. De modo bem radical, não poderemos sair da condição de
subalternidade em que nos encontramos historicamente, se não soubermos ad-
mirar a conjuntura histórica do nosso tempo contemporâneo. Isto requer estu-
do e pesquisa. Não necessariamente estudo e pesquisa nos moldes oficiais insti-
tuídos de cientificidade e seriedade epistemológica, mas necessariamente com-
preendendo por estudo e pesquisa aquilo que tira um povo, isto é, tira seus
indivíduos, da oclusão de sua própria de-cisão soberana de ser-livre, construin-
do futuro no cuidado com a vida-sendo, concebendo a realização plena da
humanidade do humano no tempo instante da vida ad-mirante.
sentados em sua constituição. Para cada um de nós aqui presentes, sem dúvida
que o Estado é um ―nós‖: somos cidadãos e cidadãs conscientes de direitos e
deveres — exercemos nossa cidadania.
Para que a expressão aprender a ser se torne algo vivo e vital, é preciso
considerar as coisas para além do ego. A impessoalidade deste aprender é a
chave de sua perene singularidade. O acontecimento da vida não precisa de
explicações, e nem é melhor entendido por meio destas. O acontecimento da
vida é da ordem do aprender a ser. Ora, o que isto significa? Significa, entre ou-
tras coisas, na inspiração de Paulo Freire, um cuidado radical com o aconteci-
mento da vida em sua florescência e fenecência infindáveis. O aprender a ser,
assim, não repropõe egoísmos condicionados, mas, pelo contrário, convoca
para uma revolução ontológica no âmbito do ser-coletivo que somos como
ente-espécie humanidade — ente ontologicamente livre, porém onticamente
determinado pela historicidade do sensível: âmbito do vivo.
Talvez seja desagradável ouvir isto. Mas, o que diria Paulo Freire em
uma ocasião semelhante? Por ventura falaria ele de consolações metafísicas, ou
convocaria para ações revolucionárias? E como é possível ser revolucionário,
no sentido freireano, se apenas poucos são os senhores e muitos os escravos?
Em homenagem a Paulo Freire, afirmo aqui uma pedagogia da vida, e não uma
simples pedagogia de bancos escolares. Neste sentido, a escola deve ad-mirar a
vida para realizar sua transformação. Entretanto, isto é, sem dúvida, uma uto-
pia, ou melhor uma heterotopia. É claro, portanto, que é algo que ainda não é,
mas pode tornar-se.
Não há palavra verdadeira que não seja práxis. Daí que dizer a palavra ver-
dadeira seja transformar o mundo.
A palavra inautêntica, por outro lado, com que não se pode transformar a
realidade, resulta da dicotomia que se estabelece entre seus elementos constituintes.
Assim é que, esgotada a palavra de sua dimensão de ação, sacrificada, automaticamen-
te, a reflexão também se transforma em palavreria, verbalismo, blábláblá. Por tudo is-
so, alienada e alienante. É uma palavra oca, da qual não se pode esperar a denúncia do
mundo, pois não há denúncia verdadeira sem compromisso de transformação, nem
este sem ação. (FREIRE, 1987, p. 77-78)
Decidir pela vida: eis o nosso mais premente desafio pedagógico! En-
tretanto, um tal desafio não pode ser adiado em sua adveniência. Não se trata
de vivermos para um futuro ideal, e sim, justamente, de aprendermos a sair
desta ilusão coletiva de um tempo além da vida-instante. E se levarmos a sério
a diferença entre ser professor ser educador, isto não quer dizer deixar de ser
professor, o que, no nosso caso, implicaria em estado de desemprego.
Não se trata, portanto, de uma pregação moralista sobre o que deve ser
a educação, e sim de uma convocação para a efetivação de um compromisso
histórico com o todo conjuntural da humanidade do humano. Deste modo, é
claro que a escola precisa ser reestruturada em sua função político-social, e que
um tal acontecimento só poderá ocorrer a partir de organizações políticas legí-
timas e legais, e isto a longuíssimo prazo. Neste sentido, não cabe apontar os
defeitos dos outros, e sim realizar uma saída gradual do atual modelo pedagó-
gico vigente. É isto o que permite vislumbrar uma revolução cultural fundada
no cuidado incondicional à vida em sua totalidade conjuntural, incluindo o ser
humano e sua humanidade histórica.
nunciam o mundo, não deve ser doação do pronunciar de uns a outros‖ (ibid.,
p.78). Neste sentido, será sempre um ato de criação e não uma mera repetição
do que já passou.
Referências Bibliográficas
FREIRE, Paulo. Ação cultural para a liberdade: e outros escritos. 9ª ed. São
Paulo: Paz e Terra, 2001. (O Mundo, Hoje, v.10)
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1987.
45
4
A CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO CIEN-
TÍFICO EM QUESTÃO: CONSIDERAÇÕES PO-
LILÓGICAS SOBRE A AMBIGÜIDADE DA CIÊN-
CIA4
cimento científico. Em toda parte há ciência. Toda a nossa vida, afinal, depen-
de cada vez mais de ciência. Esta é, ao meu ver, a imagem imperial da ciência:
em toda parte ela impera soberana e implacável. A ciência é tão imperativa que
já se transformou em senso comum. Todos sabem que a nossa é a era da tec-
nociência. Esta afirmação tornou-se domínio público, um percepto coletivo
global. Em toda parte, em todo canto, a ciência é a palavra de ordem, o motivo
dominante da era da globalização imperativa. Em um sentido muito estrito, a
ciência confunde-se hoje com o fenômeno arrasador da
globalização planetária. Não há como separar uma coisa da outra. E é justa-
mente aí que mora o perigo. A questão é que o tempo virtual do fenômeno da
globalização se confunde, agora, com a consciência metafísica da ciência con-
temporânea. O acontecimento de uma grande rede mundial midiatizada parece
ser hoje a própria meta-consciência da imperativa tecnociência.
E pelo fato de ser algo que não se discute, este modo de conceber a ci-
ência pertence hoje ao domínio comum, requisitando uma atitude crítica para
ser devidamente contestado e desmascarado em seus efeitos impositivos, coisa
que sempre dependerá de uma nova formação para a ciência que saiba elevar a
qualidade do espírito humano livre e empreendedor, a partir de um ordena-
mento ontológico abissalmente novo, totalmente outro. E isto nunca poderá
ocorrer se não for devidamente construído e cultivado, a partir de ambientes
de pesquisa e convivência que não se submetam à ordem imperativa da acefalia
crônica dos discursos hoje instituídos de validade e validação, de autoridade e
autorização, de mais qualificado e menos qualificado etc., segundo regras fixa-
das por comunidades científicas imperiais e nada cordiais e integradoras.
5
A EPISTEMOLOGIA DO EDUCAR NA PERSPEC-
TIVA DA INTERDISCIPLINARIDADE5
Abertura
Diante dessa questão logo se levanta uma outra: o que é mesmo que se
pode fazer-aprender? Com este questionamento alcançamos o cerne de uma
crítica radical de todas as nossas crenças e atitudes diante do mundo dado. Tra-
zendo isto para a nossa proximidade, alcançamos o ponto de partida para a
efetuação de uma crítica radical de nossas atitudes pedagógicas, sejam elas do-
centes ou discentes. Como é mesmo que cada um se comporta sendo professor
e sendo aluno? O que é que cada um pensa sobre educação? O que significa
educar para cada um? Em outras palavras, para iniciarmos uma investigação
sobre as condições de possibilidades relativas à construção de uma epistemolo-
gia do educar interdisciplinar e polilógica, é preciso que os participantes se dis-
ponham a realizar um retorno radical sobre si mesmos. Este é o principal fun-
damento da prática aprendente aqui proposta.
Com isso eu quero dizer muitas coisas. Sobretudo quero dizer que é
preciso aprender a ser. Até aqui, porém, parece que não saí de uma tautologia;
não disse muita coisa. Afinal, o que significa aprender a ser? Em que sentido
tomamos e interpretamos o ser em questão? Diante de uma tamanha generali-
dade, como fazer com que cada um seja tocado por um sentido do ser que a
tudo une no mesmo um? Esta me parece a questão mais difícil: fazer ver que
não se trata de um ser genérico e vazio, mas do ser que cada um é enquanto
existe, isto é, do ser João ou Pedro, Maria ou Ana, Joaquina ou José. Claro,
trata-se do ser pessoa, ou melhor, do ser indivíduo de uma determinada coleti-
vidade, de uma específica sociedade.
tido comum que a tudo une no mesmo um? Assim, pode-se falar em um a-
prender a ser comum sem que seja preciso modelar este aprender em um com-
portamento padronizado e normatizado, isto é, em um comportamento igual e
mecanicamente repetido? Afinal, não é a norma que estabelece o sentido de
comunidade entre os seres humanos? E sem a norma, o que seria do sentido
comum do aprender a ser?
O fato é que não existe uma base comum de compreensão para se po-
der realizar um trabalho concretamente interdisciplinar. As questões filosóficas
fundamentais precisariam de uma atenção que em geral é apenas dada do pon-
to de vista simplesmente formal. Basta ver onde entra a filosofia como ativida-
de de formação na grade curricular dos cursos de pedagogia. No máximo ela
entra como um saber geral, considerado pela maioria como um saber especiali-
zado de difícil compreensão. No fundo, mesmo com existência de algumas
matérias que levam o nome de filosofia, não se pratica, na maioria das vezes a
atitude filosófica como atitude crítica radical.
De modo geral, penso que isto não ocorre simplesmente porque nunca
paramos para analisar concretamente os termos da questão interdisciplinar.
Como seria possível a existência de um trabalho interdisciplinar sem a prévia
existência de acordos epistemológico-críticos entre os trabalhadores da educa-
ção? Logicamente, sem que se construa não se pode levar a sério o sentido
interdisciplinar das várias disciplinas de um determinado curso de formação
para o trabalho especializado. Antes de tudo, a interdisciplinaridade é sempre
um constructo coletivo de fato. Ela só existe quando é devidamente feita e
articulada. É neste ponto que o caráter transdisciplinar aparece como elemento
que deve anteceder a existência dos acordos interdisciplinares, porque se não
houver clareza em relação ao sentido do ser que se quer formar, a formação do
educador corre sérios riscos de nunca poder alcançar a consciência crítica de
64
Pode até parecer, mas este não é um jogo de palavras que visa persuadir
alguém acerca de uma verdade particular. Pelo contrário, aqui jogamos o jogo
do sentido-significado em uma possibilidade polilógica e radicalmente aberta
ao próprio acontecimento do que faz sentido, na medida da nossa não-
submissão a pretensas verdades inabaláveis e indiscutíveis. Justamente porque
podemos investigar a verdade do ser, podemos contestar toda espécie de impe-
rativo categórico que queira se impor como norma de conduta incompreensí-
vel e subjugante.
Edgar Morin, em seu livro Ciência com Consciência (1996), nos ajuda a
compreender melhor o que aqui foi articulado como necessidade transdiscipli-
nar para a unificação da produção do sentido das ciências humanas, base, por-
tanto, de toda trama interdisciplinar efetiva. Para Morin, é preciso ir além do
66
Aqui, há que observar que uma revolução se opera sob nossos olhos.
Enquanto o saber, na tradição grega clássica até a Era das Luzes e até o fim do
século 19 era efetivamente para ser compreendido, pensado e refletido, hoje,
nós, indivíduos, nos vemos privados do direito à reflexão.
Nesse fenômeno de concentração em que os indivíduos são despos-
suídos do direito de pensar, cria-se um sobrepensamento que é um subpensa-
mento, porque lhe faltam algumas das propriedades de reflexão e de consciên-
cia próprias do espírito, do cérebro humano. Como ressituar então o proble-
ma do saber? Percebe-se que o paradigma que sustém o nosso conhecimento
científico é incapaz de responder, visto que a ciência se baseou na exclusão do
sujeito. É certo que o sujeito existe pelo modo que tem de filtrar as mensa-
gens do mundo exterior, enquanto ser que tem o cérebro inscrito numa cultu-
ra, numa sociedade dada. Em nossas observações mais objetivas entra sempre
um componente subjetivo.
Hoje, a questão do retorno do sujeito é fundamental e está na ordem
do dia. Mas, neste momento, há que formular a questão dessa separação total
sujeito/objeto em que o monopólio do sujeito é entregue à especulação filosó-
fica.
Precisamos de pensar-repensar o saber, não com base numa pequena
quantidade de conhecimentos, como nos séculos 17-18, mas no estado atual
de proliferação, dispersão, parcelamento dos conhecimentos. Mas como faze-
lo? (1996: 136-137)
Como se pode ver, Morin é uma das vozes que conclamam para uma
nova unificação epistemológica das ciências do espírito. Seguramente, a sua
voz é importante mas não é a única. Não se trata, no caso,de seguirmos a risca
o pensamento epistemológico de um grande pensador, mas de realizarmos o
alcance metodológico de uma nova ciência humana unificada, sem a perda das
inevitáveis complexidades e diferenças na produção e reconhecimento deste
saber. Isto só pode ser feito por meio de uma decisão irrevogável. Esta deci-
são nos deve empenhar na construção de um sentido comum para a atividade
científica de uma nova pedagogia crítica, fruto não de especulações meramente
filosófica, mas de ações implicadas e conseqüentes que garantam uma forma-
ção humana pensante e altiva, e não um mero simulacro de ciência que só faz
67
ende, projeta, age, memoriza, recorda, sonha, trabalha, come, relaciona-se, con-
figura-se, representa-se, constitui-se, transmuta-se, desaparece, reaparece etc.
Este ser espírito faz toda a diferença. É mesmo um problema de diferença ontoló-
gica. Ser espírito é a própria diferença ontológica. Não limito aqui o espírito ao
campo da consciência e da autoconsciência. O espírito não se define pela cons-
ciência ou autoconsciência do ser humano histórico. O espírito antecede a
consciência ou a autoconsciência e seria tolice imaginá-lo categorizado deste ou
daquele modo. O espírito é por definição o transcendens: não é possível atribuir-
lhe atributos que explicariam sua essência incriada. O espírito se vive, e nunca
pode ser confundido com um ente simplesmente dado. Dissociar o espírito do
mundo da vida é o que me parece o grande problema. Até aqui ao falar de es-
pírito não o dissociei do mundo da vida. Não dá para separar o espírito do
mundo. O espírito, justamente, é o dínamo do mundo, e é por isto que ele não
é apenas o homem, mas o homem é que se reconhece espírito enquanto ek-
siste no mundo. O espírito ultrapassa o homem, mas o homem é espírito em
seu próprio modo de ser-viver.
Referências:
6
HERMENÊUTICA E FENOMENOLOGIA DO
EDUCAR: TRAÇOS DE UM FILOSOFAR POLI-
LÓGICO PRÓPRIO E APROPRIADO6
Abertura
6
Texto escrito para o Encontro de Fenomenologia e Hermenêutica, promovido pelo Mes-
trado em Filosofia da UFBA, Salvador, dias 11, 12 e 13 de dezembro de 2002. O mesmo foi
apresentado, de forma resumida, na mesa-redonda do mesmo encontro Gramática e Cons-
trução do Sentido.
73
filosófica realizada por Husserl não há lugar para falsos problemas filosóficos. Nesta
visada, os verdadeiros problemas filosóficos são verdadeiros na medida de seu desco-
lamento dos fatos naturais. Assim, um verdadeiro problema filosófico é aquele
que alcança o desvelamento de algo em seu próprio discurso, permanecendo,
deste modo, um fenômeno da fenomenologia. O saber filosófico verdadeiro é o
saber que se desvela e se constrói no discurso e pelo discurso de pensamento.
Claro, a verdade absoluta que se alcança por meio de uma intuição ei-
dética desse gênero está fora do jogo demonstrativo das ciências positivas, e
só se pode comunicar aos outros, mas nunca imaginar que seja possível dizer
ao outro do que se trata, se esse outro não tiver em si mesmo uma experiência
do mesmo gênero. Entretanto, quando se realiza uma descrição como esta,
algo também se prefigura através do próprio discurso, e esse algo é de algum
modo percebido pelos que entram no fluxo de sua aparição e de sua aparência.
Portanto, não acredito na possibilidade de ser compreendido, exceto no âmbito
daquilo mesmo que no discurso rasga o velamento do sentido-sendo, para logo
em seguida proteger-se de novo no silêncio da fala. Assim, a contaminação
fenomenológica descrita nada tem a ver com opiniões pessoais sobre o ―quê‖
75
que é no acontecimento do sentido. Sem sentido não há ser, e sem ser o senti-
do não ek-sistiria no acontecimento espacial do tempo.
De certo modo, hoje como hoje, olho para Heidegger com admiração e
suspeita simultaneamente. A admiração vem do reconhecimento da sua obra
monumental e de grande fôlego criador. A suspeita provém do fato de sua
excessiva melancolia em relação a ―origem‖, para não dizer obsessão. Talvez
tivesse sido para ele salutar afastar-se um pouco mais vigorosamente de suas
convicções filosóficas, aprendendo, assim, a falar com mais desenvoltura a
língua do pensamento em seu silêncio rasgante. Ora, mas isto ele sempre deu
provas de saber fazer com maestria indiscutível. Neste caso, não estou aqui
procurando diminuir o seu valor como pensador autêntico, mas simplesmente
dando provas do reconhecimento da diferença entre a pessoa de Heidegger e o
seu dizer de pensador radical. Afinal, para quem falava Heidegger? Por ventura
pode-se medir os efeitos da propagação de um dizer filosófico como aquele de
Heidegger? Trata-se de manter-se fiel à fonte original do seu pensar, ou essa
fonte não pertence mesmo a ninguém, e Heidegger teria simplesmente bebido
dela e se embriagado, a ponto de não mais saber o caminho de volta para casa?
(1991). Assim, quando Husserl diz que ―... poderemos definir o caráter bilateral
da investigação da consciência, descrevendo-o como uma coordenação insepa-
rável (2001, p. 57), isto revela uma de-cisão irrevogável de plenitude no ato
minucioso e metódico da descrição fenomenológica da consciência como um
retorno radical a si mesmo. Pleno de potência e esperançoso pela possibilidade
de um conhecimento universal do ser que é-sendo, conclui suas Meditações
dizendo:
Temos diante de nós um sistema de disciplinas fenomenológicas, do qual a
base fundamental não é o axioma ego cogito, mas uma plena, inteira e universal tomada
de consciência de si mesmo.
Em outros termos, a via que conduz a um conhecimento dos fundamen-
tos últimos , no mais alto sentido do termo, ou seja, a uma ciência filosófica, é aquele
em direção a uma tomada de consciência universal de si mesmo, de início monádica e
depois intermonádica. Podemos igualmente afirmar que a própria filosofia é um de-
senvolvimento radical e universal das meditações cartesianas , ou seja, um conheci-
mento universal de si mesmo, e abrange toda ciência autêntica, responsável por si
mesma.
O oráculo délfico conhece-te a ti mesmo adquiriu um novo sentido. A
ciência positiva é uma ciência do ser, a qual se perdeu no mundo. É preciso de início
perder o mundo pela epoché, para reencontra-lo em seguida numa tomada de consciên-
cia universal de si mesmo. Noli foras ire, disse Santo Agostinho, in te redi, in interiore ho-
mine habitat veritas. (2001, p. 170)
Então, quem devo, afinal, escolher como a melhor fonte filosófica para
continuar pensando, Husserl ou Heidegger? Bem, já falei desta de-cisão: nem
Husserl e nem Heidegger, mas o pensar mesmo, em si mesmo, além de si
mesmo. É isto, porém, possível, dadas as condições adversas ao pensar mes-
mo, tão marcantes nos tempos hodiernos? Afirmativamente, digo ser possível
83
Diante de toda essa saga pensante, resta ainda enfrentar, de modo radi-
cal, a conformação da falsa consciência histórica que vem determinando o estado
de submissão ontológica de alguns povos do planeta e de algumas nações do
mundo. A falsa consciência histórica nos captura pelo lado de nossa pretensão do
alcance de um conhecimento intelectual apartado dos acontecimentos concre-
tos do existir. O mundo da vida reclama cuidados redobrados. A vida humana
requer atenção absoluta. Isto é algo que a humanidade haverá de aprender se
quiser vencer a barbárie por ela mesma criada e perpetuada desde a origem dos
tempos. O ser que se pode apreender não diz respeito apenas ao indivíduo
isolado ou às sociedades históricas nacionalizadas. Trata-se de uma revolução
que alcança toda a espécie humana e diz respeito a todos sem exceção. É preci-
so cuidar da vida na vida e com a vida. É preciso aprender a cuidar da vida em
vida. O bem maior, portanto, deste caminho fenomenológico-hermenêutico é
a vida-sendo: o educar com a vida, o cuidar do que é sem ocaso, na diversidade
de suas intermináveis flutuações criadoras.
problema com as demais vozes acolhidas. Nenhuma delas pode servir para
resolver nossos problemas em definitivo, do ponto de vista do aprendizado de
nossa comum pertença ao primado do que não tendo início, não tem por isso
mesmo ocaso. Entretanto, culturalmente nada seríamos sem a presença dos
que nos antecederam e realizaram, igualmente, uma de-cisão de plenitude.
Referências Bibliográficas:
7
A CONSTRUÇÃO CULTURAL DA DIFERENÇA 7
que entendem a lei da diferença como algo de uso exclusivo dos seus identifi-
cados, a luta por um regime político fundado na diferença como diferença deve
ser travada em outra dimensão, onde não basta apenas levantar bandeiras pró
ou contra isto ou aquilo, mas é preciso ultrapassar o próprio assujeitamento ao
que quer que seja. Enquanto perdurar a psicologia do assujeitamento aí estabe-
lecida, a lei do diferente da diferença não terá sido ultrapassada. O seu ultrapassa-
mento só pode ocorrer através de uma revolução cultural de longo alcance,
onde o singular humano seja acolhido em sua própria humanidade criadora e
diferente.
8
PEDAGOGIA DA DIFERENÇA: NOTAS IMPLI-
CADAS I 8
Na zona dos efeitos de um discurso como este, devo dizer que o que
tenho em mira não é um simples jogo de efeitos persuasivos, mas um jogo que
disponha o pensar ao pensar mesmo: um jogo implicado, interrogante e aberto,
inconclusível, polifônico, polilógico, polissêmico. Este jogo, ao dispor-se co-
mo pensar mesmo, não delega seu acontecimento às vozes autorizadas do co-
nhecimento pedagógico, mas procura pensar exclusivamente a partir do que se
mostra como o que há para ser pensado como pedagogia da diferença. Peda-
gogia da diferença, o que é mesmo isto? Se não é modismo, do que se trata?
8
Artigo publicado na Revista ÁGERE 4, 2001.
96
não aponta para uma igualdade e sim para um movimento. O que é está sendo,
não foi e nem será. Pensar é ser, então, diz: ser faz pensar, pensar faz ser. O
―é‖ é o que está sendo. Assim, o pensar está sendo o ser e o ser só é no pensar.
Ou melhor, o pensar acolhe o que é como ser. Mas, o que é o que é acolhido
como ser pelo pensar?
Com esse discurso algo de estranho se nos apresenta. Aonde nos leva
este questionamento ontológico? Qual é o seu nexo com a nossa realidade
instituída e com a nossa possibilidade instituinte? Indo direto ao assunto, com
este discurso ontológico recolocamos a questão pedagógica a partir de um sen-
tido radicalmente simples e originário. A questão da diferença, então, passa a
ser o eixo gerador de uma nova articulação crítica para a investigação e mudan-
ça de regime do nosso próprio estado pedagógico. Qual é a consciência que
possuímos do educar? Somos seres pensantes, como educadores, ou simples-
mente máquinas programadas que se limitam a expelir o que se impõe como
norma e como dever? Se somos seres pensantes em nossas práticas e teorias
pedagógicas, por que é que não somos capazes de transformar o mundo? O
que nos falta para transformar o mundo?
Gramsci etc. como referenciais pedagógicos, mas poucos são aqueles que ou-
sam fazer destes grandes apenas um motivo para ir adiante, dar continuidade
criativa ao que ofereceram como obra. O dado é que não precisamos de dou-
trinas pedagógicas, e sim de ações pedagógicas criticamente instruídas. Os
grandes autores são nossos interlocutores não nossos mandatários. Afinal, só
se pode compreender um grande quando nos tornamos da sua altitude. O diá-
logo só existe entre iguais. A desigualdade é geradora de submissão e de covar-
dia. Não há grandeza na desigualdade e submissão, apenas assujeitamento.
so. Nenhuma consolação metafísica e nenhuma migalha social podem nos bas-
tar, caso desejemos realizar a vontade de potência de uma humanidade de i-
guais e não de desiguais.
É muito comum que o atual estado de miséria humana nos torne pes-
simistas incorrigíveis. O mais difícil é fazer brotar uma pedagogia da diferença
em um terreno já ocupado e já indiferente. O dado é que para mudar este es-
tado de indigência indiferente é preciso mudar todas as relações de poder vi-
gentes. Isto significa, a rigor, uma mudança radical de atitudes em relação ao
que está aí imposto pelos poderosos autorizados. Isto significa uma revolução
cultural de longo alcance. Infelizmente, talvez isto ainda não nos alcance, por-
que estamos muito comprometidos com as estruturas vigentes de poder, e já
não possuímos potência para salinizar a indiferença. Nos tornamos demasia-
damente assujeitados para que de nós possa nascer algo de grande. É isto
mesmo? Somos impotentes diante das estruturas de poder dominantes e impe-
rantes? É esta a nossa atitude diante do educar: silenciamos frente à indiferen-
ça e como rebanho de desalmados cumprimos a lei do diferente da diferença?
Seria possível para nós, seres assujeitados, romper esta cadeia de indiferença e
desamor? Se possível, como fazer isto?
Penso que só pode haver uma pedagogia da diferença quando nos dis-
pusermos a aprender a aprender entre iguais. Isto muda tudo. Mas este mudar
é ainda porvir, porque não estamos ainda sendo iguais em nossas práticas e
hábitos pedagógicos. Nos comportamos, de uma maneira geral, como diferen-
tes da diferença: pretendemos ensinar aos outros o que apenas pode ser apren-
dido conjuntamente. Nos esquecemos do cuidar da diferença que todo apren-
dizado requisita. Não se aprende o que é ensinado. Aprende-se o que é apre-
endido em um ambiente de interações abertas e iguais. A igualdade, no caso,
não é o que se conhece, mas o que se pode saber. Igual é somente aquele que
sabe. O que apenas conhece não é igual, pois o conhecer impõe hierarquias
desiguais e anula a diferença como diferença.
Penso que a surpresa e possível indignação que este modo de falar pro-
vocam atesta o nosso estado geral de assujeitamento à ordem tirânica estabele-
cida. Como mudar esta ordem? Que poder possuímos para um tamanho feito?
Não é esta uma aspiração impossível diante do quadro geral da submissão rei-
nante? Como aprender a ser em um mundo marcado pelo diferente da dife-
rença? A que serve, então, o aprendizado do pensar? Serve para nos enquadrar
à ordem estabelecida, ou serve para nos acostumar à não submissão a qualquer
que seja o argumento indiferente? O que podemos fazer diante deste estado
patológico onde a igualdade não é ainda vivenciada como diferença?
Até aqui provoquei o pensar próprio e apropriado, nada fiz senão ten-
sionar a possibilidade de uma outra época pedagógica fundada na diferença
enquanto diferença. Incomodei-vos? Se não fui capaz de tanto, sairei daqui
frustrado. Caso, porém, vos tenha provocado uma outra possibilidade para o
pensar pedagógico, tenham certeza de que isto não diz respeito a uma posição
pessoal, mas a uma dimensão comum que a todos convoca como seres nela
implicados. Estas notas implicadas de pedagogia da diferença, então, dizem respeito a
uma Filosofia do Educar polilógica e polifônica, posto que a igualdade admiti-
da como fundamento comum é a própria diferença enquanto diferença, o que
significa dizer: acontecimento criador implicado, isto é, responsabilidade ética
105
A minha questão, agora, é saber como é que algo deste quilate pode vir
a tornar-se tema de interesse nos discursos pedagógicos e filosóficos da con-
temporaneidade. Como é, afinal, que vamos aprender a aprender, já que esta é
a máxima desta pedagogia da diferença? Este desafio é deveras desafiante. Ele
pressupõe uma sistemática desconstrução de todo o edifício da metafísica oci-
dental e de toda crença dogmática na ciência imperante e na técnica dominante.
Trata-se, sem dúvida, do aprendizado do pensar próprio e apropriado. Não há
fórmulas para isto e nem sistemas filosóficos ou pedagógicos que possam ser
adotados como modelos garantidos de intervenção metodológica, por que o
que está em jogo é o ser humano em sua igualdade singular. Isto, então, pres-
supõe pessoas preparadas para lidar com a polifonia e a polissemia do aprendi-
zado, isto é, pressupõe pessoas abertas ao acontecimento da diferença, pessoas
responsáveis e efetivamente críticas, pessoas dedicadas ao cuidado dos iguais
em suas possibilidades únicas de criação do mesmo poder-ser.
Isto nos lança no abismo do nada, onde temos que aprender a dançar
sem nenhuma razão ou desrazão. E esta dança não é a embriaguez mística das
alucinações lisérgicas ou psicotrópicas, mas a própria abertura da diferença em
seu inevitável retraimento advencial. O que é não pode ser dito. O que pode
ser dito é sempre o que já foi ou será. O que é está sempre protegido de qual-
quer conhecimento sobre sua origem ou fim. O que é apenas desvela-se en-
quanto diferença. Por isso o que é jamais pode ser perscrutado em seu aconte-
cimento. O que é irrompe do silêncio e a ele retorna sem cessar: mostra-se,
ocultando-se no acontecimento. O que é não pode ser descrito, apenas viven-
ciado. A descrição já não alcança o é, mas apenas o que foi. Mas, é na descri-
ção que se guarda o que está sendo de sua alienação. O que está sendo, afinal, é
o que ainda é, portanto, o próprio aberto da abertura originante.
Sem dúvida, todo este discurso nada tem de normativo e nada resolve
para o estado atual da nossa indigência pedagógica. Caso fosse um discurso
107
normativo não seria filosófico. Porque é filosófico, ele não precisa esquivar-se
da compreensão transcendental para fazer-se conhecimento comprovado.
Esta é uma diferença que quando não apreendida na sua dinâmica articuladora
conceitual e agente, acaba provocando uma noção obtusa de Filosofia, como se
esta fosse apenas a metafísica, entendida como o lugar da verdade dogmática,
provinda da interpretação autorizada e teologicamente justificada, interpretação
que institui significados únicos e unívocos. A verdade é que a imagem que se
faz da Filosofia é a de uma velha senhora aposentada que vive a recordar. Cla-
ramente, não é esta a Filosofia da qual me refiro. Não falo de uma Filosofia
escolástica e cheia de interdições normativas. Falo da atitude de investigação
radical do nosso comum pertencimento ontológico. Filosofia, não é, então,
um sistema de ideias concluídas e concludentes, mas apenas a abertura para a
realização do projeto e processo humanos a partir de um ethos concretizador e
advencial, ou seja, a partir de uma atitude prolongada e duradoura que acolha o
viver na sua bem querência e se disponha à plenitude valente e transvalorante,
cuja meta é o instante único na sua polifonia irradiante e re-tornante.
9
PEDAGOGIA DA DIFERENÇA PENSADA COMO
DIFERENÇA: NOTAS IMPLICADAS II 9
9
Artigo publicado na Revista ÁGERE 5, 2002.
10
Esta uma expressão que forjei para dar conta da nosso complexa estrutura de ser-no-
mundo-com, e da irredutibilidade de tal estrutura a padrões hegemônicos de interpretação
polarizados metafisicamente, como sujeito / objeto, essência / existência, alma / corpo,
racionalidade / sensibilidade, teoria / prática etc.
110
rem atores conscientes no processo de suas próprias vidas associadas. Para ser
fiel ao princípio da igualdade originante, uma pedagogia da diferença não pode
aceitar o princípio da exclusão e da indiferença humanas. Entretanto, fica claro
que este grau de consciência só se pode alcançar por meio de um efetivo esfor-
ço aprendente. Neste sentido, não é repetindo a tradição já consagrada do
pensamento pedagógico ou filosófico que se pode chegar ao concreto exercício
da autonomia desejada.
deveras surpreendente: ela nos joga para algo ainda não pensado de forma ra-
dicalmente diferente. Vou ao concreto. Como é que funciona o princípio da
identidade em nossas operações mentais corriqueiras? Na matemática apren-
de-se que o número é sempre igual a ele mesmo. Entretanto, todo número
demarca a possibilidade de uma operação lógica de grande complexidade. To-
do número é signo do processo abstrativo da inteligência humana. Por este
processo é possível igualar similares em uma extensão homogênea e vazia.
rença. A questão agora torna o ser o mesmo que o pensar. O mesmo, portanto,
é o meio através do qual pensar e ser tornam-se unidos no sem-fundamento.
O que diz toda esta argumentação desenvolvida? Aonde ela nos leva?
Segundo penso leva-nos para o equacionamento de uma outra possibilidade
pedagógica ainda impensada. Neste sentido, falar em pedagogia da diferença é
o mesmo que reinventar o sentido que nomeia a identidade como a diferença
entre ser e pensar, o que significa tomar a diferença ontológica como a articu-
lação necessária para se determinar a identidade do ente-espécie que somos
como humanidade. Trata-se, portanto, de uma pedagogia do aprender a a-
prender e não mais do ensinar como imperativo do diferente da diferença.
Neste ângulo de interpretação, o importante é que hoje podemos pensar o ser
a partir do comum-pertencer. Isto significa que para nós o pensar é a doação
deste comum-pertencimento. Por isto precisamos aprender a pensar — a-
prender a aprender. A única maneira de sairmos do estado de submissão onto-
lógica em que nos encontramos como sujeitos sociais é aprendendo a pensar
— aprendendo a ser. Precisamos ser para que o nosso pensar nos liberte da
interdição ontológica. Este deveria ser o primeiro passo do aprendizado hu-
117
Tudo isso vos deixa perplexos? Se não vos deixa perplexos, isto sim
que é preocupante. A perplexidade tem que estar na origem de todo possível
aprendizado humano potencializador, ou como diz Miguel Bordas, a indigna-
ção deve ser a marca de nossa comum atitude aprendente. Os educadores têm
que estar preparados para a polilógica do sentido. Não se pode mais aceitar a
ideia de que o educador tenha que ser um funcionário dependente e submisso
às autoridades constituídas pelas trocas políticas que falam em nome de inte-
resses particulares. Permanecer hoje na ordem dos interesses meramente parti-
culares é o mesmo que se submeter às forças obscuras do oportunismo de ca-
pital e à má-fé dos que se colocam no lugar do diferente da diferença. Isto
toca no cerne de uma revolução cultural ainda distante, e é daí que uma peda-
gogia da diferença pode armar a trama de uma nova educação pública, porque
118
11Trata-se de uma expressão forjada para a redefinição do ser humano situado: nem sujeito,
nem objeto e sim polijecto. A expressão esclarecida na nota 1, interpolijectualidade, é derivada
desta.
119
O nosso sentido de povo e nação não pode mais se limitar a uma iden-
tidade que se impõe como lei de exclusão e manipulação empresarial hegemô-
nica. Este sentido haverá de nascer da diferença ontológica que nos dispõe
120
Resta, sem dúvida, o como fazer isto para que o homem transcenda a
ordem do ser dado e instituído como hegemonia planetária da tecnociência
empresarial. Entretanto, este ―como fazer‖ não constitui um problema neces-
sário, porque não há um ―como fazer‖ único e hegemônico, simplesmente
porque não há um ser que deve prevalecer com sua autoridade incontestável,
mas seres que no seu transcurso existencial realizem o ser na singularidade
irrepetível do acontecer-apropriar, próprio da igualdade do homem em relação
ao ser e da mesmidade de ambos enquanto comum-pertencer. O co-
pertencimento pode ainda, a partir desta correspondência originante, abrir o
nosso ser para a realização da decisão soberana da liberdade aprendente em um
mundo de iguais, mundo onde a diferença pode ser pensada como diferença, e
a identidade pode ser acolhida no acontecimento plural do idêntico, isto é, do
mesmo.
Referência:
10
A ESPECIFICIDADE DA FILOSOFIA
tes – no conceito não há nem princípio nem fim: o conceito como aconteci-
mento da mesmidade entre ser e pensar: advento do que nunca é concluível.
lógico, é preciso aprender Lógica para pensar corretamente. Mas, por acaso
é a Lógica a ciência filosófica por excelência?
12
As partes aspadas do texto transcrito são citações que Heidegger faz de Hölderlin, expressões poéticas, portan-
to, apropriadas para marcar a diferença entre a doutrina da lógica e a lógica das coisas.
136
lógico. Só assim a palavra lógica pode ser reassumida como ponto focal da
atividade filosófica. Mas isto não é uma tarefa fácil de ser realizada.
Ora, tudo isso continua, sem dúvida, muito vago e impreciso. O que
dissemos nada esclarece, apenas põe o pensar mesmo em uma perspectiva
enviesada e provocante, mantendo-o protegido de sua consumação precoce.
Para aprender a aprender é preciso por primeiro saber escutar o que diz o
Lógos. Em que sentido, porém, se coloca este saber escutar o Lógos? O
que quer dizer Lógos? Em primeiro lugar, com estas perguntas não se pode
chegar a nada de certo, posto ser a própria palavra obscura em sua origem, e
139
que diz o Lógos. Nem razão, nem discurso e nem linguagem são suficientes
para traduzir o que diz o Lógos. E o que diz o Lógos? O indizível? Como
pode o que diz ser indizível?
Referências:
11
RESSIGNIFICAÇÃO DOS CONCEITOS DE CI-
ÊNCIA E EPISTEMOLOGIA VISANDO-SE A
FORMAÇÃO DE UMA EPISTEMOLOGIA DO
EDUCAR POLILÓGICA NÃO-VERDADEIRA
Portanto, o padeiro possui um ―saber‖ sobre o pão, assim como cada ar-
tesão sobre sua arte, e cada habilidade é lida como aquisição de um saber que é
um fazer próprio: um saber fazer isto ou aquilo com maestria. Aqui a ciência
ainda não é uma teorização pura, mas apenas uma atividade que por si mesma
é reflexiva. Aqui a ciência é uma atividade de produção de um bem utilitário,
um serviço social. E é como serviço utilitário que a ciência querer um aprendi-
zado: ninguém nasce sabendo fazer pão, mas apenas com a possibilidade de
saber fazer isto ou aquilo. Este saber fazer algo como algo só sobrevive pela
transmissão de sua ciência a outros que a tomem como tarefa e se tornem seus
mestres.
Mesmo pertencente à família do verbo epistamai, com toda a pregnância
semântica assinalada, epistéme é uma palavra específica do vocabulário dos filó-
sofos a partir de Sócrates. De qualquer modo, mesmo entre os filósofos ela
continuará referindo-se a uma atividade competente, só que agora esta ativida-
de tornar-se-á teorética e não mais prática. Trata-se, finalmente, da ciência
compreendida como ―intuição intelectual‖, como atividade ideacional. Entre-
tanto, o que é isto – ―intuição intelectual‖, atividade ideacional?
O conceito de ciência, como hoje é usado por nossa civilização, tem sua
gênese epistêmica entre os primeiros filósofos gregos. Aquilo que por eles foi
estabelecido permanece sendo uma referência imprescindível para uma investi-
gação compreensiva do conceito (ou conceitos) de ciência em vigência. Veja-
mos porque. A atividade da ciência, mesmo se necessariamente empírica, per-
manece sendo uma competência intelectual. É intelectualmente que a ciência
se constitui como atividade prática, porque seus operadores são grandezas ide-
ais: números, conceitos, equações, escalas, definições etc. Sem a atividade inte-
lectual a ciência seria vazia: faltar-lhe-ia o meio computacional, o cérebro hu-
mano. Este dado, apesar de óbvio, é precioso para a compreensão da atividade
científica. A ciência, então, é uma atividade intelectual, requerendo para o seu
exercício competência cognitiva de alcance abstrato e conceitual. Seja ele qual
for, o exercício científico requer o aprendizado de ―medidas e propriedades das
grandezas discretas‖. Ora, justamente este é o objeto da matemática. Mas, o
que tem a ver matemática com ciência (epistéme)?
Eis aqui o sentido de ser mathematikós para Tales, isto é, ensinar o povo he-
lênico uma nova concepção de mundo, cujo símbolo maior condensava-se no conceito
de princípio, isto é, da arkhé — compreendida como ―aquilo de onde algo sur-
ge‖ (Heidegger, 1979: 21). A arkhé articula-se em uma compreensão cosmoló-
gica nova, cujo foco de interesse transfere-se da ambiência antropomórfica do
mito para a constituição de uma compreensão cosmológica fundada na abertu-
ra para a Physis. O princípio é Arché. Como princípio, a arkhé não é deixada
para trás no momento em que acontece. Pelo contrário, como princípio a arkhé
é aquilo que impera, ou melhor, aquilo que, estando na origem, vigora. Aqui
aparece a ideia de uma unidade tipo (arché) para toda a Physis. E este aparecer é
resultado de operações matemáticas bem delineadas e sucedidas, inevitavel-
mente sedimentadas. Em Tales teria ocorrido pela primeira vez uma mudança
de atitude diante dos acontecimentos do sentido. Ele expressou esta mudança
afirmando a ―água‖ como a arkhé de todas as coisas.
méstica da Trácia — fato recontado por Platão no diálogo Teeteto —, que tro-
çou dele quando, caminhando, caiu em um buraco. Ao que ela retrucou: —
Que homem és tu que pões todo entusiasmo nas coisas que se passam no céu e
não prestas atenção às coisas que tens diante de ti e debaixo dos olhos? Tales
―ensinava matemática‖. Claro, trata-se apenas de uma interpretação. Entretan-
to, de algum modo isto indica uma diferença radical entre um indivíduo que
desenvolveu habilidades cognitivas relativas ao cálculo e à medida e um indiví-
duo que não passou por esse aprendizado: que não formatou o seu cérebro
para poder observar estrelas e encontrar nisso um sentido altamente implicado
e apaixonante.
é‖. Entretanto, para Hegel isto é apenas o início de um longo movimento para
o alcance definitivo do espírito absoluto. Neste sentido, Tales teria identificado
o princípio com um elemento físico, empírico, e não ainda com um conceito
puro autoconsciente.
―Aqui está a falha: aquilo que deve ser verdadeiro princípio não precisa ter
uma forma unilateral e singular, mas a diferença mesma deve ser de natureza
universal. A forma deve ser totalidade da forma: isto é a atividade e a auto-
consciência mais alta do princípio espiritual, que a forma se tenha elevado pe-
lo esforço para a forma absoluta — o princípio do espiritual‖. (1978: 10)
―... em primeiro lugar porque essa proposição enuncia algo sobre a origem
das coisas; em segundo lugar, porque o faz sem imagem e fabulação; e en-
fim, em terceiro lugar, porque nela, embora apenas em estado de crisálida,
está contido o pensamento: ‗Tudo é um‘. A razão citada em primeiro lugar
deixa Tales ainda em comunidade com os religiosos e supersticiosos, a se-
gunda o tira dessa sociedade e no-lo mostra como investigador da natureza,
mas, em virtude da terceira, Tales se torna o primeiro filósofo grego. Se
tivesse dito: ‗Da água provém a terra‘, teríamos apenas uma hipótese cientí-
fica, falsa, mas dificilmente refutável. Mas ele foi além do científico. [...] (p.
10)
Até aqui até parece que ele está dizendo a mesma coisa que Hegel. En-
tretanto, há uma abissal diferença entre um e outro. Para Nietzsche não há
nada a ser superado na adveniência do tempo. Pelo contrário, ele acolhe do
pensamento originário algo de insuperável no tempo do acontecimento: o salto
à totalidade do ente, enquanto é, fora do tempo linear e progressivo da razão.
inerente a uma atividade cerebral altamente especializada. Este fato deve ter
demorado muito tempo para acontecer na espécie humana. Tudo indica que,
de algum modo, a cultura grega da Ásia Menor acolheu uma época em que se
fez presente uma espécie de explosão neural, ocorrida em alguns indivíduos –
os pensadores originários. Isto abre novos horizontes, perspectivas e possibi-
lidades para o desenvolvimento da espécie humana. De certo modo, lembran-
do Heidegger, isto está na certidão de nascimento do curso historial do Oci-
dente.
Fazendo uma reflexão, há, sem dúvida, uma diferença entre o número
pitagórico e o que hoje somos capazes e conceber numericamente. A questão é
que, em geral, estamos acostumados a considerar a gênese da Ciência a partir
de óticas progressistas e evolucionistas. Falamos, então, na passagem do mito
para a ciência (filosofia) como se estivéssemos falando de uma superação dialé-
tica (no plano do espírito universal, seja essa superação de cunho kantiano,
darwiniano, hegeliano, newtoniano, marxiano, ou de qualquer outro cunho)
que alcança o ser de toda a humanidade. Trata-se da ótica etnocêntrica – ou
melhor – eurocêntrica? Então, quando nos reportamos aos antigos, sempre
ocorre uma redução intencional que os coloca como nossos antecessores na
escala evolutiva?
mas não conseguiram chegar até o final. E com isso reificamos nossa crença
de progresso e evolução. Temos sempre a impressão de que somos melhores,
pensamos melhor, somos mais evoluídos do que os que nos antecederam.
Então concluímos: — Pitágoras não fez ciência, apenas praticou magia. Essa
era uma forma ingênua de conceber o mundo.... E por aí vai....
O caso é que com a epoché nada se pode admitir como previamente dado,
o que requer um ponto de partida que ela própria põe, tirando de si mesma,
como conhecimento primeiro. Esta não é uma passagem de fácil e imediata
compreensão, mas requer o esforço do absoluto retorno às coisas mesmas.
Quando, então, a ideia de um saber absoluto soa pretensiosa e nos dias atuais
inconcebível, como é possível sustentar o caráter radical da epoché fenomenoló-
gica, sem cair no contra-senso e no vazio das questões metafísicas? Afinal, que
saber absoluto é este tomado como princípio da própria epoché?
―Sempre que percepciono, represento, julgo, raciocínio, seja qual for a certeza ou a
incerteza, a objectalidade ou a inexistência de objectos destes actos, é absolutamente
claro e certo, em relação à percepção, que percepciono isto ou aquilo e, relativamente
ao juízo, que julgo isto ou aquilo, etc.‖ (1990: 54)
Para Husserl, toda vivência psíquica tem um correspondente fenômeno puro, que
exibe a sua essência imanente (singularmente tomada) como dado absoluto. Neste sen-
tido, toda posição de uma realidade apresentada como transcendente, isto é,
não contida no fenômeno, encontra-se desconectada, isto é, suspensa. Deste
modo, ―se há possibilidades de converter tais fenômenos puros em objetos de
investigação, é evidente que já não estamos na psicologia, esta ciência trans-
cendentemente objectivante‖ (1990:71).
dados uma certa característica, porque nada se preconceitua acerca do ser e não
ser da realidade.
Contudo, ainda faltam novos passos e novas reflexões para que se pos-
sa pôr o pé firme no país da fenomenologia. Esta abordagem inicial é concer-
nente a todos os fenômenos, apesar da fenomenologia ocupar-se, segundo suas
metas críticas, apenas dos fenômenos do conhecimento. Isto, entretanto, não
impede que o ponto de partida assumido pela fenomenologia refira-se igual-
mente a todos os casos onde há fenômeno. A questão, agora, alcança um pon-
to de máxima tensão. Trata-se da autojustificação da validade do conhecimen-
to fenomenológico, o que requer a presença do sujeito capaz de intuir e cogitar
sobre o puramente imanente, sem perder de vista a sua existencialidade efetiva.
Este é um ponto crítico abissal e é inevitável. Dizendo com Husserl: ―Para
explorar a essência do conhecimento, tenho, naturalmente, de possuir como dado
o conhecimento em todas as suas formas questionáveis e de um modo tal que
este dado nada tenha em si do problemático que qualquer outro conhecimento
consigo traz, por mais que pareça fornecer dados‖ (1990: 72). Este é justamen-
te o problema do conhecimento puro, e é ele o principal objeto da fenomeno-
logia husserliana.
Sem dúvida, tudo isso parece um mero jogo de tautologias, jogo desco-
lado dos chamados fatos. Não há que se negar a força desta aparência. Ela é
um dado, apesar de não ser um dado absoluto. E não é um dado absoluto
justamente porque aparece desta ou daquela maneira, segundo esta ou aquela
crença no mundo natural. Afirma-se, postula-se, nega-se isto ou aquilo como
dado. Tudo isto é mero jogo de aparências, mera tautologia do referente, seja
imanente puro, imanente incluso ou apenas transcendente. A ―pureza‖, então,
é apenas mais um referente de algo como algo? O importante, então, é perce-
ber que há algo como algo: é este perceber que é puro. Ele, então, não é puro
porque se sobressai, mas é puro porque existe como tal, isto é, como é perce-
bido em si mesmo, como puro ver. Ora, esta ―pureza‖ nada tem a ver com
grandezas ideais, mas apenas com a consciência de que há, de qualquer modo,
consciência no ver: o puro fenômeno da fenomenologia. Assim, enquanto o
objeto da fenomenologia é o puro fenômeno, não há problema e incerteza
quanto à possibilidade do conhecimento, porque não se trata do transcendente,
mas apenas do que é em si evidente: o aparecer e a aparência do puro ver. A
dúvida só persiste diante do que não é evidente em si mesmo: o puro transcen-
dente. Este, porém, é inacessível ao conhecimento fenomenológico. Fenome-
nologicamente falando, só o puro dado é evidente em si mesmo. E, felizmente,
o puro dado é, em si mesmo, apenas imanente, pois o conhecimento do trans-
cendente é apenas um preconceito sobre a possibilidade do conhecimento ser,
em si mesmo, algo além de si mesmo.
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Nesta descrição, baseei-me em uma fonte imediata, apenas como início de conversa.
Trata-se do Glossário encontrado em Chauí (1994). Isto, portanto, não me impede de conti-
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O légein como pousar (estender) significa: levar algo a se deitar. Isto tam-
bém quer dizer: deitar uma coisa junto da outra, recolher. Assim, ―pousar‖ é sinôni-
mo de colher. Entretanto, o sentido do ―colher‖ não se limita ao uso mais co-
nhecido de ler um texto, mas antes evidencia o sentido de trazer-junto-para-o-
estender-diante. O sentido se aproxima da agricultura. A metáfora é agrícola.
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Quando se fala colher que apanha e junta, não se diz algo que se encerra
no apanhar os frutos, mas também aparece o juntar. Aqui se evidencia a ima-
gem do estender-diante: juntar é dispor a colheita para uso comum – é recolher e
oferecer. É claro, ―recolher‖ não é apenas ―amontoar‖, mas, antes de tudo, prote-
ger e abrigar, para daí distribuir e oferecer. Portanto, colher é recolher que é,
também, abrigar e proteger, oferecer e distribuir. Como diz Heidegger: ―Do
recolher faz parte o procurar e trazer para um lugar‖ (1978: 112). Ora, este
lugar é o ―seleiro‖, o lugar onde se guarda o que se colhe, o lugar do recolhi-
mento da colheita. O ―seleiro‖, portanto, é lugar de ―reunião‖ do colhido: é
acolhida do alimento – proteção de sua serventia. Por seu turno, o seleiro é
também lugar onde se recolhe o que foi ―selecionado‖ na colheita. O que foi,
assim, ―selecionado‖, mostra-se como o ―escolhido‖. O colher, então, é tam-
bém selecionar, isto é, ação que dispõe para a escolha. Escolher é recolher o
que foi selecionado na colheita: é recolhimento.
Mas, então, foi isso o que aconteceu: légein, pensado originalmente co-
mo pousar-estender, passou a significar dizer e falar? Na visada de Heidegger,
esta não é a questão. Seguindo a sua trilha, posso dizer que lógos significa dizer
/ falar tendo em vista o próprio recolhimento, isto é, o pousar-estender. Nesta me-
dida, o caráter mais originário do légein não é deixado de lado quando o acento
recai no dizer e falar, mas apenas velado. O que isto quer dizer? Quer dizer
que no sentido mais originário do pousar-estender está contido o dizer e o falar.
Assim, estes não são simples derivados do que se supõe como mais antigo (o-
riginário), mas constituem o légein desde o princípio. O caso é que, concor-
dando com Heidegger, desde os primórdios ―...o dizer e discorrer dos mortais
realiza-se como légein, como pousar‖. Portanto, no dizer e falar mais originário
está implicado o recolhimento do que se presenta diante: o acontecimento do
que se des-vela diante como sentido-situado – sentido próprio. Ora, dizendo
assim, nada do que se possa afirmar sobre o que é ou deixa de ser pode ser
concebido como descolado do ato de pousar e estender diante de si – a pre-sença.
Entretanto, o que significa ―pre-sença‖ é sempre algo que só se presenta no
dizer e no falar, o que sempre requer decisões e seleções invariavelmente loca-
lizadas: um ser-aí, portanto, um passado-passando.
―ouvir‖ não é associado ao órgão receptor dos sons e ruídos produzidos por
fontes sonoras externas. Este ―ouvir‖ é o próprio aparecer do nome das coisas
divisadas. Logos, portanto, é um ouvir-falante: o recolhimento do ente à luz do
ser. Mas, de que modo é isto sustentável? De que modo é possível assentar a
essência mais originária da linguagem em um ouvir-falante que não é uma mera
reverberação de sons externos e repetição de palavras soltas?
soa hoje trivial e até mesmo ingênua. Estamos tão viciados ao logos discursivo
que nos deixamos levar pelas representações triviais da linguagem ordinária.
Então, de modo quase espontâneo, passamos a acusar o Logos de ter sido o
causador dos males da civilização ocidental, porque a palavra parece estar de-
finitivamente significada pela ótica de um racionalismo pragmático capaz de
alcançar os extremos das oposições metafísicas comuns. Então se chega a di-
zer: — A razão ocidental tornou-se o portal do inferno do capitalismo selvagem e da sofisti-
cação telemática e maquínica do capital virtual aliado a regimes políticos neo-liberais ainda
paternalistas e centralizadores, portanto, acentuadamente excludentes, autoritários e legalis-
tas.
O fato é que vejo claramente uma nova possibilidade para o nosso pen-
sar filosófico, que agora assume como tarefa o ultrapassamento do que já era –
o imediatamente dado ao nosso perceber e inteligir legado pela tradição epis-
têmica do Ocidente. Aparece, assim, uma nova ―clareira‖ para o pensar pró-
prio e apropriado. Como, então, deixar de ouvir o Logos como escutar-pousar?
Sinceramente essa questão nos joga para o âmbito de uma tarefa que
corresponde a uma revolução cultural de longo alcance. Trata-se de partir de um
novo ponto zero na redescrição fenomenológica da ciência e da filosofia. Tra-
ta-se de educar para esta possibilidade. Mas, como fazer isto — educar para o
exercício de um pensamento próprio e apropriado?
Referências:
NOTAS