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Resumo
O texto aborda momentos das relações de produção na Floresta Estadual (Flota) do Paru, no
oeste do Pará, relativos a mudanças nas políticas territoriais no Brasil e à discussão da
conservação ambiental como estratégia de acumulação capitalista. Essas mudanças são
expostas através de uma recapitulação dos usos da terra, da relação com o mercado e da
reprodução do trabalho na margem esquerda do Baixo Amazonas, primeiramente em tensão
com o planejamento e sua ambição na mobilização de trabalho para a produção de um
território do Estado nacional unificado. A crescente promoção da pauta ecológica desde os
anos 2000, por sua vez, situa a criação de unidades de conservação, entre elas a Flota do
Paru, em práticas de incentivo ao engajamento comunitário em esferas de participação
política. A partir de revisão bibliográfica e de pesquisas de campo, suscitamos contradições
entre continuidades e variações nas atividades extrativistas, questionando o sentido atual de
mobilização do trabalho no processo de valorização. Aqui, a probabilidade de uma
acumulação através da conservação, radicada no complexo estatal-financeiro, instiga novas
dinâmicas de expropriação e a criação de novas variedades de mercadorias, que entretanto
exprimem um limite interno absoluto na exploração do trabalho, no qual se inscrevem padrões
de confinamento territorial da população.
Palavras-chave: Flota do Paru; acumulação por conservação; políticas territoriais;
extrativismo; crise.
Introdução
A criação da Floresta Estadual (Flota) do Paru na margem esquerda do Baixo
Amazonas, em 2006, é parte de um esforço que resulta na configuração do maior mosaico de
unidades de conservação (UC) do planeta. Essa motivação ambientalista parece contrastar
com o padrão de políticas anteriores, vigentes sobretudo durante a ditadura civil-militar (1964-
1985), que se pautaram na concessão de incentivos fiscais e de crédito subsidiado para
empresas, obras de infraestrutura e programas de colonização agrícola. A instalação de
projetos florestais, agropecuários, minerais e fundiários desencadeou, indiretamente, a
crescente circulação de dinheiro na Amazônia, mas também instigou expropriações e
concentração de terras tanto quanto deslocamentos de trabalhadores sazonalmente
empregados em tais empresas, sendo um expediente que exprime o avanço da fronteira
interna brasileira (Costa, 2000; Leal, 2018; Ianni, 1979; Velho, 1979; Hébette e Marin, 1981;
Becker, 1982; Baumfeld, 1984; etc.)2.
Desde a redemocratização do país, a inserção progressiva da pauta ambiental como
agenda de governo condiz com seu apoio à participação comunitária em instâncias de decisão
local, junto ao reconhecimento do acesso das populações tradicionais à terra e à amplificação
de programas de subsídios de crédito e de transferência de renda para a agricultura familiar.
Não obstante essa orientação tenha estimulado a conservação remediando riscos, outras
políticas jamais deixaram de subscrever, direta ou indiretamente, a dilapidação da
sociobiodiversidade. Planos de infraestrutura recentes, com obras de articulação viária e no
setor energético, como o Avança Brasil e os Programas de Aceleração do Crescimento
1
Doutorando em Geografia Humana pelo PPGH-FFLCH-USP, Brasil. E-mail: daniel.leal@usp.br.
2
Efetuamos uma revisão dessa bibliografia em nossa dissertação de mestrado (Leal, 2018).
2
(PACs), assim como o financiamento à exportação de commodities (Leão, 2017), atiçam uma
nova corrida por terras, regida por cotações em bolsas de valores e que continua a instigar a
expansão da fronteira (Boechat et. al., 2019).
Com efeito, em que pese a retenção do desmatamento, a instituição de UCs não
dispensa a exploração capitalista de terra e trabalho e a replicação de juros nos mercados de
ativos. É até mesmo possível problematizar um fundamento comum à evolução mais recente
da fronteira. O presente texto busca assinalar tal consubstanciação, questionando a
conservação como meio viável de acumulação capitalista e os limites dessa estratégia a partir
da particularidade da Flota do Paru. As discussões aqui levantadas estão ancoradas na
revisão bibliográfica, em nossa dissertação de mestrado e na recapitulação de dois trabalhos
de campo realizados em Monte Alegre/PA em 2017. A observação direta e entrevistas abertas
com lavradores de uma comunidade vizinha à UC permitiram distinguir momentos das
relações de trabalho, de usos da terra e de elos estabelecidos com o mercado, sobretudo os
relativos ao extrativismo de castanha e às percepções sobre a atuação de uma madeireira no
interior da Flota.
Assim, distinguimos que as atividades predominantes na unidade são o extrativismo
de madeira e castanha-do-pará e o garimpo de ouro. Ainda, o manejo de uma parcela fica a
cargo de uma madeireira licitada, cujos rendimentos são tributados e repassados para os
municípios onde se localiza a UC e para um fundo estadual de conservação. A coleta de
castanha na maior parte das vezes complementa a agricultura, e pode continuar vinculada ao
empréstimo de mercadorias a crédito, quitadas com a produção ou com o dinheiro obtido de
sua venda a atravessadores. Diversamente do garimpeiro, que depende, com exceção de
caça e pesca de subsistência, de sua remuneração em ouro, calculada sobre a produção do
garimpo. Por fim, consta na cartilha do plano de manejo a intenção de estimular o ecoturismo
e a negociação de créditos de carbono como ações financeiras (Pará, 2010).
Essas dinâmicas parecem se inscrever no que têm sido tratado na literatura como
“acumulação por conservação” (Büscher & Fletcher, 2014) ou “conservação como
acumulação primitiva” (Kelly, 2011), fundadas no complexo estatal-financeiro e que promovem
tanto expropriações como a criação de novas variedades de mercadorias. Visto que nosso
texto traça um percurso que atravessa da ênfase do planejamento na alocação de fatores de
produção – radicada na exploração do trabalho por meio de sua circulação pelo território – à
gestão de um trabalho cujo sentido é confinar territorialmente (Kluck, 2019), aqui expresso na
conservação, sugerimos que emerge daí a imposição de um limite imanente do modo de
produção. Assim considerando, mesmo que a conservação instigue expropriações e a
produção de novos tipos de mercadorias, sua relação com a totalidade exprime a insuficiência
da exploração de trabalho, na condição de este ser a “substância do capital” (Kurz, 2016;
Scholz, 2019) e, consequentemente, da acumulação.
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Marques (2018, pp. 119-120) discorre sobre o Código Florestal de 2012 como um marco para a retomada de
um ritmo de desmatamento que vinha arrefecendo, se bem que timidamente, na década anterior.
3
um adiantamento a ser quitado com a produção. Como relata Muniz (1922) em outra ocasião,
certos comerciantes atuavam como mediadores quase exclusivos dos produtores com o
mercado, comprando, a produção de castanha e descontando de seu pagamento os bens
emprestados do armazém, lastreando uma dívida virtualmente impagável. Esse controle dos
meios de circulação e do acesso ao mercado fixam laços de dependência pessoal que Geffray
(1996) define como paternalistas. Dessa forma, a violência necessária à mobilização do
trabalho, por parte do Estado na produção de um território de circulação de força de trabalho,
está aqui capitaneada por oligarquias locais que, segundo Oliveira (2008), “fecham” a região
a formas diferenciadas de geração do valor.
Tendo em conta a incursão do desenvolvimentismo como programa de intervenção
estatal, que ganha corpo desde a década de 1950, o autor (Oliveira, 2008) também suscita os
esforços de dissolução daquelas formas regionais de controle da força de trabalho. Nesses
termos, as variegadas particularidades que emergem das diferenças na divisão regional do
trabalho figuram como disparidades, que justificam a “abertura” da região pelo planejamento.
Como instrumento da integração nacional, ou melhor, de homogeneização das formas de
reprodução do capital na produção de um território do Estado-nação, o planejamento não é
neutro: ele pode, somente, transferir parte da mais-valia social a fim de repor os pressupostos
da produção capitalista determinados na concorrência global (Oliveira, 2008).
É especialmente nos anos 1960 e 1970, com a construção das estradas em conexão
com o Centro-sul do país, a execução de planos de colonização e a concessão de isenções
fiscais e de subsídios de crédito que o planejamento mostra maior ímpeto na Amazônia. A
demarcação e distribuição de lotes nas margens dessas rodovias, em terras federalizadas e
concebidas como devolutas, instiga a circulação de trabalho e mercadorias de modo a, quase
sempre, desencadear uma série de expropriações. Colonos e posseiros que já se encontram
nos centros de colonização podem ser sequencialmente expulsos e empregados de maneira
intermitente em projetos fomentados pela Sudam e nas obras públicas, migrar para as cidades
ou retomar a posse da terra em áreas cada vez mais distantes das rodovias. Não raro, todas
essas alternativas se combinam como estratégia de reprodução dos produtores, mesmo entre
aqueles que não são arrancados de seus meios de produção (cf. nota 2).
Na margem esquerda do Baixo Amazonas, ao resgatarmos momentos da formação
da comunidade do Limão no início dos anos 1960, observamos como os depoimentos sempre
ressaltavam o empréstimo de dinheiro por um comerciante da cidade, sendo a dívida saldada
pela encomenda do arroz desses lavradores (Leal, 2018). Em contraste, a posse comum da
área envolvia relações pessoais de vizinhança e ajuda mútua na abertura e distribuição dos
roçados, já que a apropriação dos meios de produção não produzidos (Marx, 2017) na mata
continuava a possibilitar parte da reprodução. Pouco depois, por sua vez, o órgão federal de
colonização começara a demarcar lotes, reservando uma fração da área para a construção
do patrimônio da comunidade enquanto japoneses daquelas imediações se articulavam para
obter aquelas terras mais próximas do mercado.
Com a abertura da rodovia PA-254 e a criação do Projeto Integrado de Colonização
Monte Alegre em suas margens, em 1971, são distribuídos lotes de 100 hectares a lavradores
cadastrados no Incra. Entre os resultados, consta a intensificação da transação de terrenos e
benfeitorias e sua relativa concentração por produtores da própria área, devido a trajetórias
individuais de acumulação. Assim, deter dinheiro num contexto em que este progressivamente
mediava as relações interpessoais se tornaria decisivo, permitindo inclusive contrair crédito
bancário de pequena escala para a pecuária. Os que vendiam os lotes ou suas benfeitorias,
por sua vez, também destacavam acesso imediato a dinheiro, mas junto ao esgotamento da
caça e à possibilidade de retomar a posse alhures, a fim de desfrutar das condições pretéritas
à produção e para criar gado. Fica nítida a concatenação entre generalização da pecuária e
estratificação fundiária, que carrega consigo uma conversão do uso do solo, tendencialmente,
para o cultivo de pastagens e até para mudanças nos hábitos alimentares. Sob tais condições,
à medida que na retaguarda do processo a posse vai sendo dificultada, a fronteira se alastra
rumo nordeste, designando o surgimento e a dissolução de comunidades rurais (Leal, 2018).
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do Baixo Amazonas4 (Mapa 01). Conforme a cartilha de seu plano de manejo (Pará, 2010),
sua formação resulta do projeto de Macrozoneamento Ecológico-Econômico do Pará, de
2005, sendo a própria Flota fracionada em seis zonas de intervenção, de intensidades baixa,
moderada e alta, de uso comunitário, de ocupação temporária e de amortecimento. Esse
processo de criação, igualmente, empreendeu consultas públicas e oficinas participativas,
tendo em conta a ação das comunidades locais, de pesquisadores e de órgãos
governamentais e não governamentais (Pará, 2010, pp. 20-25).
O plano de manejo também informa que vivem 642 pessoas no interior da unidade,
sendo 620 lotadas nos garimpos do rio Jari e o restante dedicada à coleta de castanhas e à
agricultura. Ainda, 3300 indivíduos moram no entorno, em 25 comunidades, e outros 200
migrantes sazonais das cidades próximas e 400 garimpeiros e extrativistas do rio Maicuru
acessam a floresta (Pará, 2010, p. 13). A maior parte dos coletores se instala temporariamente
em barracões de estacas de madeira e cobertos com palha, ao passo que os garimpeiros
moram em barracas de lona, isolados ou em vilas. Estas não possuem escola, posto de saúde
ou iluminação pública, enquanto a iluminação doméstica é fornecida por geradores e a
comunicação com o exterior e entre os garimpos é efetuada por rádio (Pará, 2010, pp. 110-
114).
Estima-se que 96% dos 3,6 milhões de ha da Flota estejam preservados, atendendo o
propósito de contenção do desmatamento e da grilagem. Contudo, despontam ali problemas
4
A unidade compreende os municípios de Óbidos, Monte Alegre, Alenquer, Prainha e Almeirim, fazendo divisa,
ao norte, com a Reserva Biológica Maicuru; ao sul com a Flona Mulata; a sudeste com a Estação Ecológica do
Jari; a leste com Reserva de Desenvolvimento Sustentável do Rio Uiratapuru; a oeste com a Flota Trombetas; e
a noroeste com a Terra Indígena Zo’é e com a Estação Ecológica Grão-Pará (Mapa 01).
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A cartilha sintetiza as oportunidades de exploração vislumbradas listando os potenciais: 1. madeireiro, por sua
capacidade e geração de emprego e de receitas; 2. de extrativismo de castanha-do-pará, ressaltando
investimentos em capacitação – de práticas, associativismo, gerenciamento de negócios, etc. –, transporte e
comercialização para incrementar a produção e os ganhos dos castanheiros; 3. de belezas cênicas, explorando o
potencial ecoturístico de corredeiras e cachoeiras, formações rochosas e campos gerais, além da pesca esportiva;
4. biológico, sendo mais da metade da extensão da Flota composta de áreas insubstituíveis (Pará, 2010, pp. 151-
155).
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No garimpo de barranco, o cascalho é molhado e a lama formada é sugada para caixotes forrados com carpete,
onde o ouro fica preso após a aplicação de mercúrio; o cascalho é então retirado numa nova lavagem e o ouro é
queimado, para se separar do mercúrio. No garimpo de filão, cava-se uma gruna revestida de madeira, de onde
o friso extraído é transportado para o moinho, para ser moído e armazenado num centralizador com mercúrio a
fim de ser queimado para a obtenção do ouro.
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Embora o autor frise como nos anos 1990 essa tendência tenha se revertido para uma ênfase do crédito rural
para os médios e grandes projetos pecuários, é possível ver como desde os anos 2000, junto ao agronegócio,
surgem ações de grande monta, como o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF)
e projetos associados, a exemplo do Plano Safra.
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Similarmente, segundo Büscher & Fletcher (2014, p. 18), nem toda UC foi estabelecida
com o propósito direto de capitalização. Contudo, atualmente, a conservação funciona como
um sistema de subsídio global na expectativa de que a natureza possa “pagar por si mesma”
e gerar lucro (Büscher & Fletcher, 2014, p. 21). A conservação atuaria como uma nova
possibilidade de acumulação, transformando as “contradições ambientais do capital” em
recursos para assegurar a acumulação, lançando mão seja de expropriações seja da
conversão do “uso não-material da natureza” em mercadoria. Essa duplicidade exprime um
momento do capitalismo centrado na financeirização e na especulação, de modo que à tal
conservação equivalem instrumentos variados de inovação financeira, incluindo créditos de
carbono e uma acepção de natureza como “fornecedora de serviços ambientais” (Büscher &
Fletcher, 2014, p. 16). Nesses termos, a financeirização é encarada como necessária para
liberar o capital de suas limitações de investimento em fontes fixas, abstraindo recursos de
seus locais de origem na forma de ativos que podem ser negociados em todo o mundo. Por
conseguinte, está em curso uma “conservação fictícia”, em que, como acontece com o “capital
fictício”, desaparecem as distinções entre produção, troca e consumo (Büscher & Fletcher,
2014, p. 16).
Relacionando essa questão às restrições à reprodução baseada na posse de “terras
livres” na margem esquerda do Baixo Amazonas, temos que apesar da contenção do avanço
da fronteira, a expropriação prossegue nas áreas já ocupadas. Ainda, mesmo o manejo de
recursos previsto pela Flota aprofunda a submissão ao mercado enquanto é esperado que o
meio ambiente seja conservado. Assim, a formação de áreas protegidas poderia, à primeira
vista, ser problematizada tendo em conta os ganhos das empresas licitadas e os meios de
sua distribuição para as comunidades locais, além de podermos perguntar sobre como a força
de trabalho poderia ser, aqui, empregada. Mas indo além, sustentamos a crítica da própria
noção de transformação de espaços não capitalistas em capitalistas e da capacidade dessa
mudança promover a acumulação.
Ambos os autores consideram a conservação como expediente de expansão do capital
a novos espaços, vertendo a natureza em meio de acumulação, segundo concepções
reconhecidamente tributárias da “acumulação por espoliação” de Harvey (2014). De acordo
com o geógrafo, em suma, o capital precisa, para evitar sua desvalorização, descobrir formas
lucrativas de absorver seus excedentes, entre as quais se encontram a expansão geográfica
e a reorganização espacial. Essa ordenação capitalista depende do Estado e de instituições
financeiras que, ao deterem “o poder-chave de gerar e oferecer crédito”, cumprem o papel de
mediadores no direcionamento dos fluxos de capital (Harvey, 2014, p. 97). Na medida em
que, portanto, o Estado apoia o capital financeiro, ocorre “o que com frequência equivale à
acumulação por outros meios” (Harvey, 2014, p. 114).
Em contrapartida, criticando o que chama de “teorias da colonização mais recentes”,
Scholz (2019), lendo Kurz (2014), ressalta como a crise capitalista em seu período de
formação diverge do capitalismo já constituído. É diferente tratar o capitalismo como “regresso
do mesmo” do que considerá-lo como “movimento direcionado” a um fim em si, à medida que
a autora grifa existir uma expansão externa do capital que é restrita à formação do modo de
produção. Logo, com a revolução microeletrônica da década de 1980 “já não pode ser gerado
mais nenhum ‘novo modelo de acumulação’” (Scholz, 2019, p. 120), à revelia da apropriação
externa de um princípio criado internamente, como ocorre em Harvey (2014). A “colonização”,
talvez outro modo de falar de “espoliação”, que só poderia ser fenomênica, é tratada nos
termos dos limites internos de um capital que só se realiza dispensando a fonte da riqueza
social, ou seja, o trabalho.
Significa que o “limite interno absoluto” do capitalismo, de que trata Kurz (2014),
repousa na incapacidade de exploração de trabalho em medida suficiente para a reprodução
capitalista. O capital precisa cada vez mais recorrer ao crédito, que, como promessa do valor,
passa de um recurso esporádico a um pressuposto da acumulação, ficcionalizando-a. Nesse
sentido, o funcionamento de um mercado de derivativos ambientais, incluídos a oferta de
créditos de carbono, PSA, REDD+, etc., tal qual postulado por Büscher & Fletcher (2014),
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está decididamente ancorado em “capital fictício”. Mas isso consiste, menos do que na
indistinção entre produção, troca e consumo e em novos mecanismos de acumulação, apenas
numa simulação desse processo.
As receitas do Estado também são dependentes de capital fictício, sendo daí oriundos
os fundos de distribuição fundiária e de renda que caracterizam a “recampenização” (Leite,
2015) discutida anteriormente. E como suscitam Boechat et. al. (2019), tais fundos têm por
base a ascensão do ciclo das commodities em vigor no começo do século, tanto que, quando
o preço dessas culturas caem, também minguam as medidas redistributivas. Do mesmo
modo, assinalamos que a reorientação do planejamento regional, da mobilização de
trabalhadores a políticas na senda da conservação e de incentivos ao protagonismo local,
resultam num trabalho territorialmente confinado (Kluck, 2019). Por tais percursos, a
expansão da fronteira e a conservação ambiental aparecem consubstanciadas.
Considerações finais
A partir das ponderações do texto, que cotejam a criação da Flota do Paru com
alterações nas políticas territoriais e nas formas da acumulação do capital, podemos levantar
dois tópicos que, entrelaçados, podem servir para debates futuros. Nossa abordagem, que
trespassa níveis de análise distintos, insere a reprodução das relações de produção no interior
da Flota num contexto histórico e contraditório de desenvolvimento mais amplo. Ou seja, as
formas de uso da terra e as relações de trabalho, de dominação e com o mercado na área,
na margem esquerda do Baixo Amazonas, se desdobram segundo um sentido dado por
relações autonomizadas em categorias capitalistas aparentemente independentes entre si
(Marx, 2017, cap. 48).
Posto isso, pudemos perceber, inicialmente, que esse desenvolvimento não é
teleológico, à medida que não culmina forçosamente na proletarização dos posseiros
eventualmente expropriados de suas condições de produção. Tampouco a conotação inversa
pode ser estritamente sustentada. Quer dizer, a manutenção do campesinato na terra não
significa estagnação nem um eterno retorno das mesmas condições. Hoje, essas relações
parecem inseridas num movimento de reposição do capital radicado na ficcionalização deste.
O que nos leva ao outro ponto: as teorias da conservação como novo expediente de
acumulação terminam por desconsiderar os limites imanentes do modo de produção. São
justamente artifícios como a criação de derivativos ambientais, ao abstraírem os “recursos”
na forma de ativos negociáveis no mercado de capitais, que expressam não uma incorporação
sistêmica, mas a dispensabilidade de trabalho do processo de valorização. Ainda que ocorram
expropriações, proletarização e geração de novos gêneros de mercadorias, o que tende a
comandar essa acumulação é o capital fictício como seu pressuposto e resultado, ao passo
que a exploração de trabalho vai se reduzindo à expectativa sempre adiada de sua realização.
Eis que, não custa repetir, a conservação ambiental e a redistribuição dos rendimentos da
exportação das commodities produzidas na fronteira, por políticas engajadas na autonomia,
estão de mãos dadas.
Referências
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metamorfose. ARAÚJO, R. & LÉNA, P. (eds.). Desenvolvimento sustentável e sociedades na
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BAUMFELD, C. M. (1984). Formação do trabalho: mobilidade e imobilização da força de
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BOECHAT, C. A. & PITTA, F. T. & TOLEDO, C. A. (2019). “Pioneiros” do MATOPIBA: a corrida
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