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Extrativismo na Floresta Estadual do Paru


Políticas territoriais, acumulação por conservação e crise

Daniel Nunes Leal1


Mesa Temática 43 – Los nuevos vínculos con la tierra de las geografías extractivas

Resumo
O texto aborda momentos das relações de produção na Floresta Estadual (Flota) do Paru, no
oeste do Pará, relativos a mudanças nas políticas territoriais no Brasil e à discussão da
conservação ambiental como estratégia de acumulação capitalista. Essas mudanças são
expostas através de uma recapitulação dos usos da terra, da relação com o mercado e da
reprodução do trabalho na margem esquerda do Baixo Amazonas, primeiramente em tensão
com o planejamento e sua ambição na mobilização de trabalho para a produção de um
território do Estado nacional unificado. A crescente promoção da pauta ecológica desde os
anos 2000, por sua vez, situa a criação de unidades de conservação, entre elas a Flota do
Paru, em práticas de incentivo ao engajamento comunitário em esferas de participação
política. A partir de revisão bibliográfica e de pesquisas de campo, suscitamos contradições
entre continuidades e variações nas atividades extrativistas, questionando o sentido atual de
mobilização do trabalho no processo de valorização. Aqui, a probabilidade de uma
acumulação através da conservação, radicada no complexo estatal-financeiro, instiga novas
dinâmicas de expropriação e a criação de novas variedades de mercadorias, que entretanto
exprimem um limite interno absoluto na exploração do trabalho, no qual se inscrevem padrões
de confinamento territorial da população.
Palavras-chave: Flota do Paru; acumulação por conservação; políticas territoriais;
extrativismo; crise.

Introdução
A criação da Floresta Estadual (Flota) do Paru na margem esquerda do Baixo
Amazonas, em 2006, é parte de um esforço que resulta na configuração do maior mosaico de
unidades de conservação (UC) do planeta. Essa motivação ambientalista parece contrastar
com o padrão de políticas anteriores, vigentes sobretudo durante a ditadura civil-militar (1964-
1985), que se pautaram na concessão de incentivos fiscais e de crédito subsidiado para
empresas, obras de infraestrutura e programas de colonização agrícola. A instalação de
projetos florestais, agropecuários, minerais e fundiários desencadeou, indiretamente, a
crescente circulação de dinheiro na Amazônia, mas também instigou expropriações e
concentração de terras tanto quanto deslocamentos de trabalhadores sazonalmente
empregados em tais empresas, sendo um expediente que exprime o avanço da fronteira
interna brasileira (Costa, 2000; Leal, 2018; Ianni, 1979; Velho, 1979; Hébette e Marin, 1981;
Becker, 1982; Baumfeld, 1984; etc.)2.
Desde a redemocratização do país, a inserção progressiva da pauta ambiental como
agenda de governo condiz com seu apoio à participação comunitária em instâncias de decisão
local, junto ao reconhecimento do acesso das populações tradicionais à terra e à amplificação
de programas de subsídios de crédito e de transferência de renda para a agricultura familiar.
Não obstante essa orientação tenha estimulado a conservação remediando riscos, outras
políticas jamais deixaram de subscrever, direta ou indiretamente, a dilapidação da
sociobiodiversidade. Planos de infraestrutura recentes, com obras de articulação viária e no
setor energético, como o Avança Brasil e os Programas de Aceleração do Crescimento

1
Doutorando em Geografia Humana pelo PPGH-FFLCH-USP, Brasil. E-mail: daniel.leal@usp.br.
2
Efetuamos uma revisão dessa bibliografia em nossa dissertação de mestrado (Leal, 2018).
2

(PACs), assim como o financiamento à exportação de commodities (Leão, 2017), atiçam uma
nova corrida por terras, regida por cotações em bolsas de valores e que continua a instigar a
expansão da fronteira (Boechat et. al., 2019).
Com efeito, em que pese a retenção do desmatamento, a instituição de UCs não
dispensa a exploração capitalista de terra e trabalho e a replicação de juros nos mercados de
ativos. É até mesmo possível problematizar um fundamento comum à evolução mais recente
da fronteira. O presente texto busca assinalar tal consubstanciação, questionando a
conservação como meio viável de acumulação capitalista e os limites dessa estratégia a partir
da particularidade da Flota do Paru. As discussões aqui levantadas estão ancoradas na
revisão bibliográfica, em nossa dissertação de mestrado e na recapitulação de dois trabalhos
de campo realizados em Monte Alegre/PA em 2017. A observação direta e entrevistas abertas
com lavradores de uma comunidade vizinha à UC permitiram distinguir momentos das
relações de trabalho, de usos da terra e de elos estabelecidos com o mercado, sobretudo os
relativos ao extrativismo de castanha e às percepções sobre a atuação de uma madeireira no
interior da Flota.
Assim, distinguimos que as atividades predominantes na unidade são o extrativismo
de madeira e castanha-do-pará e o garimpo de ouro. Ainda, o manejo de uma parcela fica a
cargo de uma madeireira licitada, cujos rendimentos são tributados e repassados para os
municípios onde se localiza a UC e para um fundo estadual de conservação. A coleta de
castanha na maior parte das vezes complementa a agricultura, e pode continuar vinculada ao
empréstimo de mercadorias a crédito, quitadas com a produção ou com o dinheiro obtido de
sua venda a atravessadores. Diversamente do garimpeiro, que depende, com exceção de
caça e pesca de subsistência, de sua remuneração em ouro, calculada sobre a produção do
garimpo. Por fim, consta na cartilha do plano de manejo a intenção de estimular o ecoturismo
e a negociação de créditos de carbono como ações financeiras (Pará, 2010).
Essas dinâmicas parecem se inscrever no que têm sido tratado na literatura como
“acumulação por conservação” (Büscher & Fletcher, 2014) ou “conservação como
acumulação primitiva” (Kelly, 2011), fundadas no complexo estatal-financeiro e que promovem
tanto expropriações como a criação de novas variedades de mercadorias. Visto que nosso
texto traça um percurso que atravessa da ênfase do planejamento na alocação de fatores de
produção – radicada na exploração do trabalho por meio de sua circulação pelo território – à
gestão de um trabalho cujo sentido é confinar territorialmente (Kluck, 2019), aqui expresso na
conservação, sugerimos que emerge daí a imposição de um limite imanente do modo de
produção. Assim considerando, mesmo que a conservação instigue expropriações e a
produção de novos tipos de mercadorias, sua relação com a totalidade exprime a insuficiência
da exploração de trabalho, na condição de este ser a “substância do capital” (Kurz, 2016;
Scholz, 2019) e, consequentemente, da acumulação.

Políticas territoriais e suas transformações na margem esquerda do Baixo Amazonas


Uma série de políticas territoriais concebidas e implantadas na Amazônia desde a
redemocratização brasileira tem se direcionado ao protagonismo comunitário em decisões
locais e ao reconhecimento do direito da agricultura familiar e de populações tradicionais à
terra e ao território (Léna & Araújo, 2010). Essa tendência, contudo, vai se fortalecer após os
anos 2000, acompanhando crescentes esforços pela conservação, entre os quais contamos
a multiplicação de reservas ambientais e uma legislação restritiva ao desmatamento, apesar
do alcance efêmero da mesma3 (Marques, 2018). Simultaneamente, as políticas voltadas ao
agronegócio e à implantação de grandes infraestruturas parecem replicar o padrão exercido
durante a ditadura quanto à sua magnitude e consequências, em especial aquelas relativas à
cadeia de expropriações provocadas, aos deslocamentos e à concentração fundiária. Trata-

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Marques (2018, pp. 119-120) discorre sobre o Código Florestal de 2012 como um marco para a retomada de
um ritmo de desmatamento que vinha arrefecendo, se bem que timidamente, na década anterior.
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se de uma continuidade que, todavia, se refere a momentos díspares da territorialização de


relações capitalistas de produção. Logo, especificar relações circunscritas à
contemporaneidade permite explicitar uma base comum entre o avanço mais recente da
fronteira e a conservação ambiental, o que também designa como o Estado se autonomiza
em instituições e agentes que não são necessariamente coerentes entre si. Não enquanto
anomalia ou falta, mas enquanto forma de ser.
Não há dúvida de que a expansão da fronteira se consuma variadamente no interior
da Amazônia, dada a própria diversidade territorial do processo, seu desenvolvimento
histórico e a contradição de níveis de análise na qual ela se encerra e pode ser estudada. Se
as formas de reprodução pessoal na Flota do Paru emergem em tensão com os padrões de
reposição capitalista que visam ser centralizados pelo planejamento, em suas variações
conjunturais, elas também permitem distinguir os desdobramentos contraditórios das relações
de produção na margem esquerda do Baixo Amazonas. A composição de um corredor de
áreas protegidas acabou operando, à primeira vista, como barreira para um bastante provável
recrudescimento da fronteira madeireira-pecuária oriunda do sudoeste do Pará, nas ourelas
da rodovia BR-163, e que avançava em direção à margem oposta do rio Amazonas. A mesma
retenção interferiu, porém, num movimento de posse da terra que se desenrolava desde o
final do século XIX, e que tem rebatido num cenário de crescente esgotamento de fertilidade
dos solos e de dependência de dinheiro, como esmiuçado em nossa dissertação (Leal, 2018).
Na última década do século retrasado, os primeiros projetos de colonização agrícola
da área foram implantados a fim de atrair tanto nordestinos, contrabalançando a ascensão da
borracha e o êxodo assim motivado para partes da Amazônia mais ricas em seringais, quanto
imigrantes espanhóis, italianos e, mais tarde, japoneses. Mas, nessas circunstâncias, os lotes
que seriam ocupados com produção agrícola logo eram “abandonados” em vistas do
deslocamento, de um lado, para cidades e para a exploração gomífera, ou, de outro, para a
posse de terras floresta adentro, tal qual o faziam lavradores que já residiam nas redondezas.
A frustração da tentativa de fixação foi encarada por um funcionário público da época,
o engenheiro-geógrafo João de Palma Muniz, como um problema de “falta de braços” e de
incentivos governamentais (Muniz, 1916). O diagnóstico remete ao caso do Sr. Peel,
capitalista que transporta sua fábrica e operários da Inglaterra para a atual Austrália em
meados do século XIX, mas que no fim das contas fica sem qualquer trabalhador para
empregar. Esse acontecido é apresentado por Marx no capítulo que encerra o primeiro livro
d’O capital, a partir da crítica da obra de E. Wakefield (Marx, 2013). Este teria descoberto que
não bastam meios de produção para a acumulação de capital nas colônias sem que houvesse
seu complemento, o trabalhador assalariado, obrigado a vender a si voluntariamente. Se para
suprir a demanda de trabalhadores, mantendo por baixo sua remuneração, seria preciso criá-
los por meios artificiais, Wakefield formula um programa de “colonização sistemática” como
forma de impedir o acesso do produtor a seus meios de produção e, então, de enriquecer a
si em vez de ao capitalista. Em outros termos, sua doutrina propõe regular a terra no mercado
estipulando preços altos o suficiente para forçar o produtor ao assalariamento, ao menos até
este ser substituído por outro (Marx, 2013, cap. 25).
O diagnóstico de Muniz também se assemelha ao “problema da mão de obra” que
Celso Furtado (1984) atribui àquele contexto de crise das relações escravistas no Brasil. Não
à toa, a proibição definitiva do tráfico negreiro transatlântico e a concepção da Lei de Terras,
na sua previsão de regular a propriedade fundiária no país, datam de 1850, de modo que os
projetos de “colonização sistemática” daí resultantes subsidiariam a imigração. Seus efeitos,
contudo, não repercutiram na generalização do trabalho assalariado (Martins, J. S. 1979).
Como ocorre com a própria situação das colônias agrícolas aqui discutidas, a capacidade de
posse da terra que mantinha a fronteira “aberta” denuncia que a exploração do trabalho
requisitada na produção de mercadorias se dava por formas particulares de mobilização
desse trabalho (Gaudemar, 1977). Assim como subsistiam de agricultura, pesca, caça,
extrativismo, etc., os lavradores dependiam do fornecimento a crédito de alguns bens de
consumo e instrumentos de trabalho, não produzidos domesticamente, pelo comércio local,
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um adiantamento a ser quitado com a produção. Como relata Muniz (1922) em outra ocasião,
certos comerciantes atuavam como mediadores quase exclusivos dos produtores com o
mercado, comprando, a produção de castanha e descontando de seu pagamento os bens
emprestados do armazém, lastreando uma dívida virtualmente impagável. Esse controle dos
meios de circulação e do acesso ao mercado fixam laços de dependência pessoal que Geffray
(1996) define como paternalistas. Dessa forma, a violência necessária à mobilização do
trabalho, por parte do Estado na produção de um território de circulação de força de trabalho,
está aqui capitaneada por oligarquias locais que, segundo Oliveira (2008), “fecham” a região
a formas diferenciadas de geração do valor.
Tendo em conta a incursão do desenvolvimentismo como programa de intervenção
estatal, que ganha corpo desde a década de 1950, o autor (Oliveira, 2008) também suscita os
esforços de dissolução daquelas formas regionais de controle da força de trabalho. Nesses
termos, as variegadas particularidades que emergem das diferenças na divisão regional do
trabalho figuram como disparidades, que justificam a “abertura” da região pelo planejamento.
Como instrumento da integração nacional, ou melhor, de homogeneização das formas de
reprodução do capital na produção de um território do Estado-nação, o planejamento não é
neutro: ele pode, somente, transferir parte da mais-valia social a fim de repor os pressupostos
da produção capitalista determinados na concorrência global (Oliveira, 2008).
É especialmente nos anos 1960 e 1970, com a construção das estradas em conexão
com o Centro-sul do país, a execução de planos de colonização e a concessão de isenções
fiscais e de subsídios de crédito que o planejamento mostra maior ímpeto na Amazônia. A
demarcação e distribuição de lotes nas margens dessas rodovias, em terras federalizadas e
concebidas como devolutas, instiga a circulação de trabalho e mercadorias de modo a, quase
sempre, desencadear uma série de expropriações. Colonos e posseiros que já se encontram
nos centros de colonização podem ser sequencialmente expulsos e empregados de maneira
intermitente em projetos fomentados pela Sudam e nas obras públicas, migrar para as cidades
ou retomar a posse da terra em áreas cada vez mais distantes das rodovias. Não raro, todas
essas alternativas se combinam como estratégia de reprodução dos produtores, mesmo entre
aqueles que não são arrancados de seus meios de produção (cf. nota 2).
Na margem esquerda do Baixo Amazonas, ao resgatarmos momentos da formação
da comunidade do Limão no início dos anos 1960, observamos como os depoimentos sempre
ressaltavam o empréstimo de dinheiro por um comerciante da cidade, sendo a dívida saldada
pela encomenda do arroz desses lavradores (Leal, 2018). Em contraste, a posse comum da
área envolvia relações pessoais de vizinhança e ajuda mútua na abertura e distribuição dos
roçados, já que a apropriação dos meios de produção não produzidos (Marx, 2017) na mata
continuava a possibilitar parte da reprodução. Pouco depois, por sua vez, o órgão federal de
colonização começara a demarcar lotes, reservando uma fração da área para a construção
do patrimônio da comunidade enquanto japoneses daquelas imediações se articulavam para
obter aquelas terras mais próximas do mercado.
Com a abertura da rodovia PA-254 e a criação do Projeto Integrado de Colonização
Monte Alegre em suas margens, em 1971, são distribuídos lotes de 100 hectares a lavradores
cadastrados no Incra. Entre os resultados, consta a intensificação da transação de terrenos e
benfeitorias e sua relativa concentração por produtores da própria área, devido a trajetórias
individuais de acumulação. Assim, deter dinheiro num contexto em que este progressivamente
mediava as relações interpessoais se tornaria decisivo, permitindo inclusive contrair crédito
bancário de pequena escala para a pecuária. Os que vendiam os lotes ou suas benfeitorias,
por sua vez, também destacavam acesso imediato a dinheiro, mas junto ao esgotamento da
caça e à possibilidade de retomar a posse alhures, a fim de desfrutar das condições pretéritas
à produção e para criar gado. Fica nítida a concatenação entre generalização da pecuária e
estratificação fundiária, que carrega consigo uma conversão do uso do solo, tendencialmente,
para o cultivo de pastagens e até para mudanças nos hábitos alimentares. Sob tais condições,
à medida que na retaguarda do processo a posse vai sendo dificultada, a fronteira se alastra
rumo nordeste, designando o surgimento e a dissolução de comunidades rurais (Leal, 2018).
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Sugerimos que o dinheiro empregado no mercado local e que move a comercialização


da terra representa, contraditoriamente, uma relação de dependência social a atravessar a
reprodução dos indivíduos. A seara de bens de consumo vai se ampliando e diversificando,
vão-se estreitando conexões com mercados externos à área e as formas de mobilizar força
de trabalho também se diversificam. É, daí, cada vez mais comum que relações de ajuda
mútua como o puxirão (mutirão), por exemplo, sejam substituídas pela contratação de diárias
e que as atividades agrícolas sejam combinadas com formas temporárias e sazonais de
assalariamento. A propósito disso, é nesses termos que Hébette & Marin (1981) argumentam
como o aumento da circulação de mercadorias industriais na Amazônia, fruto dos fomentos
estatais a infraestruturas e à capilarização da rede bancária, aumenta o consumo e atua na
dissolução indireta das organizações produtivas prévias, impondo a busca por atividades que
completam ou substituem intermitentemente a agricultura. Atividades, acrescentaria Baumfeld
(1984), marcadas pela superexploração e pela alta rotatividade como distintivos da formação
do trabalho em países de industrialização recente.
Portanto, é possível ponderar que os efeitos do planejamento regional na margem
esquerda do Baixo Amazonas tenham sido mais indiretos e atados à monetarização (Leal,
2018), o que conduz à circulação, altamente transitória, de uma superpopulação relativa, ou
seja, subsidiária à valorização (Marx, 2013, cap. 23), pelo território. Outro aspecto da
determinação do dinheiro figura numa necessidade crescente de investimento na produção,
através de crédito, contratação de diárias, mecanização, insumos, etc. Tendencialmente, com
o gradual esgotamento da fertilidade do solo, o lavrador tem mais dificuldades de vender seu
excedente frente a produtores mais monetarizados que, inclusive, compram os terrenos de
seus vizinhos para investir na pecuária e no cultivo de pastagens (Leal, 2018).
Daqui, duas alternativas se difundem com ainda mais força desde meados da década
de 1990. A primeira é o êxodo para cidades próximas, de modo que muitos montealegrenses
formam bairros nas periferias e passam a trabalhar sobretudo no comércio, na construção civil
ocasional, como mototaxistas, etc.; ou ainda, como empregados de fazendas e diaristas,
alternando ou não essa plêiade de atividades com um roçado próprio ou arrendado. Em todos
os casos, a importância de programas assistenciais no orçamento familiar, com destaque para
o Bolsa Família e a aposentadoria rural, é significativa.
Em segundo lugar, a continuidade na posse de terras mais distantes poderia
permanecer uma possibilidade, mas esbarra no corredor de unidades de conservação
instalado na área no começo dos anos 2000. Dessa maneira, as zonas limítrofes das mesmas
se tornam alvo de intensas disputas. Em Monte Alegre, nessa época, grileiros oriundos das
faixas da rodovia BR-163, no sudoeste do Pará, interessados no comércio ilegal de madeira
e na criação de gado, entraram em conflito com lavradores que lutavam pela regulação de um
Projeto de Desenvolvimento Sustentável ao sul da Flota do Paru, se bem que tais disputas
tenham arrefecido desde 2015.
Nesse arranjo, a capacidade de avançar com a tomada de terras pela posse confronta
a própria agenda ambiental, o que não significa que tais lavradores estejam interditados de
qualquer outro meio de reprodução que não seja via assalariamento. Além das estratégias
expostas acima, a exploração da Flota do Paru parece revelar a manutenção ou até a criação
de novos meios para a reposição da família, embora tais mecanismos devam ser situados no
contexto de reprodução capitalista em que se inscrevem. As formas de mobilização da força
de trabalho implicadas, em relação à conservação ambiental, levantam um debate a respeito
dos percalços mais recentes de acumulação do capital a partir da área aqui estudada.

Extrativismo e formas de reprodução social na Floresta Estadual do Paru


A Floresta Estadual do Paru é uma unidade de conservação de uso sustentável
localizada no mosaico de áreas protegidas da Calha Norte paraense, na margem esquerda
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do Baixo Amazonas4 (Mapa 01). Conforme a cartilha de seu plano de manejo (Pará, 2010),
sua formação resulta do projeto de Macrozoneamento Ecológico-Econômico do Pará, de
2005, sendo a própria Flota fracionada em seis zonas de intervenção, de intensidades baixa,
moderada e alta, de uso comunitário, de ocupação temporária e de amortecimento. Esse
processo de criação, igualmente, empreendeu consultas públicas e oficinas participativas,
tendo em conta a ação das comunidades locais, de pesquisadores e de órgãos
governamentais e não governamentais (Pará, 2010, pp. 20-25).

Mapa 01: Localização da Floresta Estadual do Paru

Fonte: Pará (2010, p. 23).

O plano de manejo também informa que vivem 642 pessoas no interior da unidade,
sendo 620 lotadas nos garimpos do rio Jari e o restante dedicada à coleta de castanhas e à
agricultura. Ainda, 3300 indivíduos moram no entorno, em 25 comunidades, e outros 200
migrantes sazonais das cidades próximas e 400 garimpeiros e extrativistas do rio Maicuru
acessam a floresta (Pará, 2010, p. 13). A maior parte dos coletores se instala temporariamente
em barracões de estacas de madeira e cobertos com palha, ao passo que os garimpeiros
moram em barracas de lona, isolados ou em vilas. Estas não possuem escola, posto de saúde
ou iluminação pública, enquanto a iluminação doméstica é fornecida por geradores e a
comunicação com o exterior e entre os garimpos é efetuada por rádio (Pará, 2010, pp. 110-
114).
Estima-se que 96% dos 3,6 milhões de ha da Flota estejam preservados, atendendo o
propósito de contenção do desmatamento e da grilagem. Contudo, despontam ali problemas

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A unidade compreende os municípios de Óbidos, Monte Alegre, Alenquer, Prainha e Almeirim, fazendo divisa,
ao norte, com a Reserva Biológica Maicuru; ao sul com a Flona Mulata; a sudeste com a Estação Ecológica do
Jari; a leste com Reserva de Desenvolvimento Sustentável do Rio Uiratapuru; a oeste com a Flota Trombetas; e
a noroeste com a Terra Indígena Zo’é e com a Estação Ecológica Grão-Pará (Mapa 01).
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associados sobretudo a disputas por posse de terra, à sobreposição de castanhais e à


insegurança fundiária, além da extração ilegal de ouro e madeira, pecuária comercial irregular
e infraestrutura de produção e escoamento, tal qual oferta de serviços públicos, insuficientes
(Martins et. al., 2015, p. 174; Pará, 2010, p. 150). Considerando esses conflitos e os propósitos
de criação da unidade, é claro que a conservação não deixa de levantar interesses pela
exploração da floresta. O plano de manejo enfatiza um “alto potencial florestal para produtos
madeireiros e não madeireiros”, o que abrange “grande estoque de espécies madeireiras de
valor econômico e reservas de castanhais, além de ecoturismo” e da sua capacidade biológica
e como reserva de carbono (Pará, 2010, pp. 20/151-155)5.
Interessa questionar como tal conjunção de fatores se relaciona com a reprodução dos
moradores e usuários da Flota. Como dito, as atividades mais recorrentes na unidade dizem
respeito ao garimpo de ouro, ao extrativismo de castanha-do-pará e, parcialmente, à lavoura
branca, com criação de pequenos animais e caça e pesca para subsistência. A população
garimpeira trabalha com garimpo de barranco ou de filão6. No garimpo de barranco servem
de quatro a oito garimpeiros, que recebem, juntos, 30% da produção, enquanto o restante
pertence ao dono do garimpo, também responsável por despesas com moradia, alimentação
e transporte de seus empregados. Já no garimpo de filão, um grupo de geralmente quatro
garimpeiros trabalha em rodízio e recebe 20% da produção, que, por outro lado, é maior e de
mais rápido retorno monetário. Além do garimpeiro, participam da cadeia produtiva o gerente,
que supervisiona os trabalhos e pode ser o próprio dono do garimpo ou das máquinas, mas
que não é necessariamente proprietário da área; o explorador, que empreende expedições
na floresta à procura de novas áreas para exploração; o serrador, que extrai madeira para a
construção das vilas e garimpos; o cozinheiro; o cantineiro e o vendedor, que comercializa
artigos como roupas e perfumes, mas não reside na área. Em todos os casos, a remuneração
ocorre em ouro ou sobre um percentual da produção do garimpo (Pará, 2010, pp. 127-130).
Já a coleta da castanha normalmente ocorre após o período das chuvas, de fevereiro
a julho, quando caem os ouriços, que são amontoados em cestos de palha e quebrados. A
amêndoa é retirada, lavada e seca ao sol em depósitos de madeira, para ser ensacada e
transportada por via fluvial até o ponto de comercialização. Conforme nosso trabalho de
campo, em Monte Alegre os compradores são, em sua maior parte, atravessadores que
transportam a produção de comunidades ao sul da Flota para o trapiche (porto) da cidade,
onde a revendem para empresas maiores. O plano de manejo, por sua vez, descreve a venda
da castanha em portos em Laranjal do Jari e Monte Dourado/AP, onde os maiores
compradores são a exportadora Mutran, a empresa Ouro Verde e a cooperativa Comaja
(Pará, 2010, p. 116). Na beira do rio Paru, a extração de castanha se assenta numa
organização chefiada pelo “dono de serviço”, que recruta a força de trabalho do castanheiro,
mantém um comércio e possui seus próprios veículos e colocações. Ele pode, inclusive,
comprar a produção do “dono de colocação”, que, apesar de controlar castanhais, não tem
meios de transportar a castanha para os portos de onde estas são exportadas. Já os
castanheiros, trabalham temporariamente, pagando com produto o uso da área do dono da
colocação, ou via contrato, com remuneração por produção (Pará, 2010, p. 122).

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A cartilha sintetiza as oportunidades de exploração vislumbradas listando os potenciais: 1. madeireiro, por sua
capacidade e geração de emprego e de receitas; 2. de extrativismo de castanha-do-pará, ressaltando
investimentos em capacitação – de práticas, associativismo, gerenciamento de negócios, etc. –, transporte e
comercialização para incrementar a produção e os ganhos dos castanheiros; 3. de belezas cênicas, explorando o
potencial ecoturístico de corredeiras e cachoeiras, formações rochosas e campos gerais, além da pesca esportiva;
4. biológico, sendo mais da metade da extensão da Flota composta de áreas insubstituíveis (Pará, 2010, pp. 151-
155).
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No garimpo de barranco, o cascalho é molhado e a lama formada é sugada para caixotes forrados com carpete,
onde o ouro fica preso após a aplicação de mercúrio; o cascalho é então retirado numa nova lavagem e o ouro é
queimado, para se separar do mercúrio. No garimpo de filão, cava-se uma gruna revestida de madeira, de onde
o friso extraído é transportado para o moinho, para ser moído e armazenado num centralizador com mercúrio a
fim de ser queimado para a obtenção do ouro.
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Quanto a extrativistas de balateira ao longo do rio Maicuru – uma sapotácea da qual


se retira látex para artesanato e fabricação, sobretudo, de materiais odontológicos –, Martins
et. al. (2015, p. 181) assinalam uma “revisão das formas tradicionais de trabalho” em direção
à “garantia de acesso a direitos coletivos”. A supressão do atravessador ensejou a
organização dos balateiros para facilitar relações diretas com os consumidores finais, assim
como repercutiu na inclusão da balateira como espécie protegida de corte e na regularização
de termos de uso coletivos para a exploração do látex.
Por sua vez, em acordo com o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (Snuc)
e com a Lei de Gestão de Florestas Públicas (Lei 11.284/06), o plano prevê a exploração de
recursos madeireiros e não madeireiros e de serviços florestais por empresas licitadas,
enquanto espera formalizar termos de uso para a população local (Pará, 2010, p. 39). Assim,
a Secretaria do Meio Ambiente abre editais para a concessão de Unidades de Manejo
Florestal (UMFs) pelo prazo de quarenta anos, avaliando o projeto financeiro de companhias
em concorrência, o plano destas para a geração de empregos e sobre as espécies manejadas,
os métodos de extração, etc.
Uma vez que a empresa licitada passa a operar na área, os ganhos são tributados e
repartidos entre os municípios da Flota, um fundo de desenvolvimento florestal estadual
(Fundeflor) e o órgão gestor da floresta, o Instituto de Desenvolvimento Florestal do Pará
(Pará, 2010, pp. 27-28). No Paru, três empresas obtêm, inicialmente, a licitação, mas a
primeira sequer chega a funcionar. A segunda empresa é a Semasa, embargada pelo
transporte de madeira ilegal – como continua a acontecer, mas em escala atenuada,
atendendo a encomendas de empresários locais (Leal, 2018). A última empresa, a RRX
Florestal, funciona em três UMFs, num total de 91 556, 45 ha de concessão. Em seu plano
operacional consta “promover o crescimento econômico [...] respeitando e fomentando os
valores sociais, ambientais e culturais das comunidades do entorno” (RRX, 2017, p. 3). Entre
seus objetivos, aparece a exploração “sustentável” de madeira, aplicando técnicas de manejo
e exploração de impacto reduzido e aperfeiçoando a produção, além da promoção da
silvicultura para regeneração da floresta. Para tal, a empresa esperava empregar a força de
trabalho local (RRX, 2017, p. 5).
Os funcionários da RRX são, em sua maioria, operadores de motosserra e de tratores
vindos de outras porções do Pará, que prestam serviços nos meses de estiagem. Um
entrevistado residente próximo à Flota relata que os lavradores não se interessam em
trabalhar na companhia “porque o salário pago não é tão alto” e porque eles preferem produzir
na terra para manter o assentamento. Outro fator, colocado por um engenheiro local, é que
os montealegrenses dificilmente atendem as exigências de certificação técnica da empresa
(Leal, 2018, p. 195). Posto isso, a reprodução deve ser tomada num registro que não o do
assalariamento necessário.
Por último, figuram as expectativas de exploração da Flota pelo ecoturismo, por seu
potencial biológico e pela oferta de créditos de carbono em mercados de ativos. A despeito
da incapacidade de avaliar consequências de ações que ainda não foram lançadas, certas
tendências podem ser indicadas em vistas dos casos de outras unidades de conservação pelo
planeta. Kelly (2011), por exemplo, exibe como na África Central parques ecoturísticos são
geridos por multinacionais que exploram comunidades proletarizadas com baixos salários,
também alimentando uma indústria de direitos de imagens vinculadas a paisagens. Existem,
igualmente, meios de dilapidação movidos por patentes de estoques genéticos em favor de
grandes grupos farmacêuticos, bem como a conivência de ONGs que recebem donativos de
empresas que, por comprarem cotas ambientais de determinado local, se sentem autorizadas
a prosseguir poluindo onde mantêm suas fábricas. Já a operação de mercados de carbono,
visando preservar as condições ambientais dessas unidades, por vezes motiva a expropriação
de populações locais (Kelly, 2011). Em que pesem distintas particularidades nacionais, tal
como o fato de o mercado de carbono não ser regulado no Brasil, as situações acima descritas
não devem ser desprezadas. Ademais, convém grifar que na quantificação de estoques de
carbono, no pagamento por serviços ambientais (PSA), em mecanismos de REDD+, etc., a
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biodiversidade é transfigurada em derivativos ambientais, passíveis de transação no mercado


mundial de ações, o que significa que a acumulação pode ser simulada sem necessariamente
recorrer ao trabalho de populações expropriadas. Pois então, que posição assume a
exploração do trabalho nesse processo recente de acumulação?

Acumulação por conservação, confinamento territorial e crise


A abordagem da particularidade da Flota do Paru nos possibilita distinguir relações de
trabalho baseadas no assalariamento mensal e por produção, em ouro ou dinheiro; ou ainda,
em serviços ocasionais como as diárias, na coleta e no roçado. De todo modo, o sentido de
expropriação impulsionado pelo mercado fundiário, que historicamente expandiu a fronteira,
parece aqui confrontado com a variedade de formas de reprodução radicadas na ligação do
produtor a seus meios de produção, inclusive como condição assegurada pelo Estado. Esse
suporte se traduz numa série de medidas mencionadas, apesar dos conflitos ali presentes: no
despacho de termos de uso coletivo da terra, em esforços de substituição da relação de
extrativistas com intermediários por uma organização em contato direto com o consumidor,
no repasse da tributação das empresas atuantes nas unidades de manejo florestal, em
programas de transferência de renda, na aposentadoria rural, no pequeno crédito subsidiado,
etc.
Os arranjos produtivos assim possibilitados tendem a conformar um processo
designado por Leite (2015) como “recampenização”, sobre o qual seria preciso buscar origens
e limites referidos ao nosso caso em particular. Doravante, convém retomar como Costa
(2000) argumenta que, seguindo a crise fiscal dos anos 1980 do Brasil, numa conjuntura de
redemocratização, de introjeção da “questão ambiental” e de fortalecimento dos movimentos
sociais, passa a receber maior atenção do Estado a concessão de créditos para a agricultura
camponesa7. Já Araújo & Léna (2010, p. 30) notam o aumento do interesse por “formas
‘tradicionais’ de utilização ou de manejo dos recursos”, a partir duma ideia de desenvolvimento
embutida em “sistemas de conhecimentos e práticas locais”.
Igualmente, as diretrizes das políticas fundiárias, sem exatamente abandonarem o
modelo de assentamento pautado na propriedade privada individual, voltam-se a projetos
baseados na emissão de certificados coletivos de uso da terra. Porém, o mesmo cenário no
qual emergem medidas focadas no campesinato elucida a dependência de dinheiro, por parte
do Estado, para financiar suas ações. Então, de que maneiras a conservação ambiental
corresponde a demandas globais da acumulação capitalista e se veiculam à reprodução do
trabalho no caso da Flota do Paru?
Kelly (2011, pp. 683-684) busca mostrar como áreas protegidas “criam e reproduzem
os meios da produção capitalista”, tornando-se “aptas a se tornarem elas mesmas capital na
forma de serviços ambientais, espetáculos e estoques genéticos”. Assim, a conservação é
tomada como forma particular de acumulação primitiva, envolvendo a espoliação da terra e
dos recursos naturais. Para a autora, a acumulação primitiva é um processo que persiste até
hoje, embora com outros percalços, com novos agentes expropriadores, ampliando o alcance
da economia de mercado ao assegurar suprimento de materiais e de força de trabalho barata.
Áreas protegidas seriam exemplos da expansão da produção capitalista a novos espaços,
excluindo as populações residentes ao passo que as puxa para a economia de mercado. Por
outro lado, a criação de força de trabalho oriunda da expropriação pode se apartar da
acumulação por um longo intervalo de tempo, só recentemente tornando-se capital as áreas
assim apropriadas, o que implica que, mesmo quando unidades de conservação são mantidas
pelo Estado, estas possibilitam a acumulação privada (Kelly, 2011, pp. 687-689).

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Embora o autor frise como nos anos 1990 essa tendência tenha se revertido para uma ênfase do crédito rural
para os médios e grandes projetos pecuários, é possível ver como desde os anos 2000, junto ao agronegócio,
surgem ações de grande monta, como o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF)
e projetos associados, a exemplo do Plano Safra.
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Similarmente, segundo Büscher & Fletcher (2014, p. 18), nem toda UC foi estabelecida
com o propósito direto de capitalização. Contudo, atualmente, a conservação funciona como
um sistema de subsídio global na expectativa de que a natureza possa “pagar por si mesma”
e gerar lucro (Büscher & Fletcher, 2014, p. 21). A conservação atuaria como uma nova
possibilidade de acumulação, transformando as “contradições ambientais do capital” em
recursos para assegurar a acumulação, lançando mão seja de expropriações seja da
conversão do “uso não-material da natureza” em mercadoria. Essa duplicidade exprime um
momento do capitalismo centrado na financeirização e na especulação, de modo que à tal
conservação equivalem instrumentos variados de inovação financeira, incluindo créditos de
carbono e uma acepção de natureza como “fornecedora de serviços ambientais” (Büscher &
Fletcher, 2014, p. 16). Nesses termos, a financeirização é encarada como necessária para
liberar o capital de suas limitações de investimento em fontes fixas, abstraindo recursos de
seus locais de origem na forma de ativos que podem ser negociados em todo o mundo. Por
conseguinte, está em curso uma “conservação fictícia”, em que, como acontece com o “capital
fictício”, desaparecem as distinções entre produção, troca e consumo (Büscher & Fletcher,
2014, p. 16).
Relacionando essa questão às restrições à reprodução baseada na posse de “terras
livres” na margem esquerda do Baixo Amazonas, temos que apesar da contenção do avanço
da fronteira, a expropriação prossegue nas áreas já ocupadas. Ainda, mesmo o manejo de
recursos previsto pela Flota aprofunda a submissão ao mercado enquanto é esperado que o
meio ambiente seja conservado. Assim, a formação de áreas protegidas poderia, à primeira
vista, ser problematizada tendo em conta os ganhos das empresas licitadas e os meios de
sua distribuição para as comunidades locais, além de podermos perguntar sobre como a força
de trabalho poderia ser, aqui, empregada. Mas indo além, sustentamos a crítica da própria
noção de transformação de espaços não capitalistas em capitalistas e da capacidade dessa
mudança promover a acumulação.
Ambos os autores consideram a conservação como expediente de expansão do capital
a novos espaços, vertendo a natureza em meio de acumulação, segundo concepções
reconhecidamente tributárias da “acumulação por espoliação” de Harvey (2014). De acordo
com o geógrafo, em suma, o capital precisa, para evitar sua desvalorização, descobrir formas
lucrativas de absorver seus excedentes, entre as quais se encontram a expansão geográfica
e a reorganização espacial. Essa ordenação capitalista depende do Estado e de instituições
financeiras que, ao deterem “o poder-chave de gerar e oferecer crédito”, cumprem o papel de
mediadores no direcionamento dos fluxos de capital (Harvey, 2014, p. 97). Na medida em
que, portanto, o Estado apoia o capital financeiro, ocorre “o que com frequência equivale à
acumulação por outros meios” (Harvey, 2014, p. 114).
Em contrapartida, criticando o que chama de “teorias da colonização mais recentes”,
Scholz (2019), lendo Kurz (2014), ressalta como a crise capitalista em seu período de
formação diverge do capitalismo já constituído. É diferente tratar o capitalismo como “regresso
do mesmo” do que considerá-lo como “movimento direcionado” a um fim em si, à medida que
a autora grifa existir uma expansão externa do capital que é restrita à formação do modo de
produção. Logo, com a revolução microeletrônica da década de 1980 “já não pode ser gerado
mais nenhum ‘novo modelo de acumulação’” (Scholz, 2019, p. 120), à revelia da apropriação
externa de um princípio criado internamente, como ocorre em Harvey (2014). A “colonização”,
talvez outro modo de falar de “espoliação”, que só poderia ser fenomênica, é tratada nos
termos dos limites internos de um capital que só se realiza dispensando a fonte da riqueza
social, ou seja, o trabalho.
Significa que o “limite interno absoluto” do capitalismo, de que trata Kurz (2014),
repousa na incapacidade de exploração de trabalho em medida suficiente para a reprodução
capitalista. O capital precisa cada vez mais recorrer ao crédito, que, como promessa do valor,
passa de um recurso esporádico a um pressuposto da acumulação, ficcionalizando-a. Nesse
sentido, o funcionamento de um mercado de derivativos ambientais, incluídos a oferta de
créditos de carbono, PSA, REDD+, etc., tal qual postulado por Büscher & Fletcher (2014),
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está decididamente ancorado em “capital fictício”. Mas isso consiste, menos do que na
indistinção entre produção, troca e consumo e em novos mecanismos de acumulação, apenas
numa simulação desse processo.
As receitas do Estado também são dependentes de capital fictício, sendo daí oriundos
os fundos de distribuição fundiária e de renda que caracterizam a “recampenização” (Leite,
2015) discutida anteriormente. E como suscitam Boechat et. al. (2019), tais fundos têm por
base a ascensão do ciclo das commodities em vigor no começo do século, tanto que, quando
o preço dessas culturas caem, também minguam as medidas redistributivas. Do mesmo
modo, assinalamos que a reorientação do planejamento regional, da mobilização de
trabalhadores a políticas na senda da conservação e de incentivos ao protagonismo local,
resultam num trabalho territorialmente confinado (Kluck, 2019). Por tais percursos, a
expansão da fronteira e a conservação ambiental aparecem consubstanciadas.

Considerações finais
A partir das ponderações do texto, que cotejam a criação da Flota do Paru com
alterações nas políticas territoriais e nas formas da acumulação do capital, podemos levantar
dois tópicos que, entrelaçados, podem servir para debates futuros. Nossa abordagem, que
trespassa níveis de análise distintos, insere a reprodução das relações de produção no interior
da Flota num contexto histórico e contraditório de desenvolvimento mais amplo. Ou seja, as
formas de uso da terra e as relações de trabalho, de dominação e com o mercado na área,
na margem esquerda do Baixo Amazonas, se desdobram segundo um sentido dado por
relações autonomizadas em categorias capitalistas aparentemente independentes entre si
(Marx, 2017, cap. 48).
Posto isso, pudemos perceber, inicialmente, que esse desenvolvimento não é
teleológico, à medida que não culmina forçosamente na proletarização dos posseiros
eventualmente expropriados de suas condições de produção. Tampouco a conotação inversa
pode ser estritamente sustentada. Quer dizer, a manutenção do campesinato na terra não
significa estagnação nem um eterno retorno das mesmas condições. Hoje, essas relações
parecem inseridas num movimento de reposição do capital radicado na ficcionalização deste.
O que nos leva ao outro ponto: as teorias da conservação como novo expediente de
acumulação terminam por desconsiderar os limites imanentes do modo de produção. São
justamente artifícios como a criação de derivativos ambientais, ao abstraírem os “recursos”
na forma de ativos negociáveis no mercado de capitais, que expressam não uma incorporação
sistêmica, mas a dispensabilidade de trabalho do processo de valorização. Ainda que ocorram
expropriações, proletarização e geração de novos gêneros de mercadorias, o que tende a
comandar essa acumulação é o capital fictício como seu pressuposto e resultado, ao passo
que a exploração de trabalho vai se reduzindo à expectativa sempre adiada de sua realização.
Eis que, não custa repetir, a conservação ambiental e a redistribuição dos rendimentos da
exportação das commodities produzidas na fronteira, por políticas engajadas na autonomia,
estão de mãos dadas.

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